Encontro Internacional UFOP Mariana XIII da ANPHLAC 24 a 27 de julho de 2018

Anais Eletrônicos Capa e contracapa: Rafael Amato Projeto Gráfico e Diagramação: Marianna Andrade Melo (A4 Diagramações)

E562a Encontro Internacional da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (13.: 2018 : Mariana)

Anais do XIII Encontro Internacional da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas [E-book] / Adriane Vidal Costa, Mateus Fávaro Reis (organizadores). – Mariana: ICHS, 2018.

721 p. ISBN 978-85-66056-03-7 Encontro realizado entre os dias 24 e 27 de julho de 2018.

1. História das Américas. 2. Política e cultura nas Américas. 3. Identidades e Alteridades I. Universidade Federal de Ouro Preto – (UFOP) II. Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS). III. Programa de Pós-Graduação em História: Estudos da Linguagem. IV. Departamento de História (DEHIS). V - Título

CDU: 94(7/8)

Catalogação: [email protected]

CDU: 81’1:82

Encontro Internacional UFOP Mariana XIII da ANPHLAC 24 a 27 de julho de 2018 Apresentação

Temos a satisfação de trazer a público os Anais do XIII Encontro Internacional da ANPHLAC, realizado na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), entre 24 e 27 de julho de 2017. Neste Encontro, comemoramos os 25 anos da Associação que, ao longo de sua trajetória, promoveu 12 eventos bianuais, fundou uma importante revista – a Revista Ele- trônica da ANPHLAC – e foi responsável pelo expressivo aumento das pesquisas na área de História das Américas no país e também pelo intercâmbio com pesquisadores latino-ame- ricanos, norte-americanos e europeus. Não há dúvidas de que a ANPHLAC tem colaborado substancialmente para transformar o Brasil em um importante centro de pesquisa sobre a História das Américas no contexto latino-americano. A Associação, nesses 25 anos, também contribui para o aperfeiçoamento do ensino de História das Américas em seus diversos níveis e estimulou o estudo, a pesquisa e a divul- gação de assuntos referentes à área. Para levar a cabo todos esses desafios, a ANPHLAC contou e conta com o trabalho e a dedicação de muitas pessoas sendo, portanto, fruto de um importante trabalho coletivo que, acreditamos, continuará pelos próximos 25 anos. Os encontros bianuais são, por excelência, espaços de compartilhamento ideias e ex- periências e promoção de debates e reflexões. Exemplo disso foram as 239 comunicações distribuídas em 68 mesas redondas; três conferências internacionais; a tradicional mesa redonda Debates Contemporâneos, que discutiu a História das Américas na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Fundamental e Ensino Médio; a exibição de um documentário sobre a trajetória da ANPHLAC e uma aula show que propôs reflexões sobre 1968 por meio da canção realizados durante os quatro dias do XIII Encontro Internacional da ANPHLAC, na UFOP. Os temas debatidos nesses encontros foram os mais diversos possíveis, diluídos em diferentes tempos históricos: do século XVI ao século XXI, abrangendo as Américas e o Ensino de sua História; a América Colonial; imaginários, religiosidades e política; a for- mação dos estados e fronteiras no século XIX; os estudos de gênero; a pesquisa sobre os indígenas e os indigenismos; as histórias, as memórias e as ditaduras militares na América Latina; os movimentos sociais e as revoluções do século XX; as relações entre Estados Uni- dos e América Latina; as direitas na América Latina e Estados Unidos; a história intelectual e a circulação de ideias no continente e muitos outros. Um evento dessa magnitude foi resultado da capacidade e esforço de muitos. Des-

Encontro Internacional UFOP Mariana XIII da ANPHLAC 24 a 27 de julho de 2018 sa maneira, agradecemos imensamente aos membros da Diretoria e Comissão Organiza- dora do evento: Prof.ª Dr.ª Andrea Puydinger de Fazio (Unimontes), Prof.ª Dr.ª Adriane Vidal Costa, Prof. Dr. Caio Pedrosa da Silva (UFVJM), Prof. Dr. Fernando Luiz Vale Castro (UFRJ), Prof.ª Dr.ª Flávia Preto Godoy (IFSP), Prof. Dr. Giliard da Silva Prado (UFU), Prof.ª Dr.ª Isabel Cristina Leite da Silva (UFF), Prof. Dr. Iuri Cavlak (UNIFAP/UNIFESP), Prof. Dr. José Carlos Vilardaga (UNIFESP), Prof. Dr. Luis Guilherme Assis Kalil (UFRRJ), Prof. Dr. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes (UFOP), Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Bohn Martins (UNISINOS), Prof.ª Dr.ª Mariana Martins Villaça (UNIFESP), Prof. Dr. Mateus Fávaro Reis (UFOP), Prof.ª Dr.ª Priscila Ribeiro Dorella (UFV), Prof. Dr. Raphael Nunes Nicoletti Se- brian (UNIFAL), Prof. Dr. Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos (IFMG). Agradecemos à secretária Mayra Coan Lago pelo compromisso, atenção e disponibilidade ao longo de todo o processo e aos monitores que se disponibilizaram a ajudar na organização do evento. Agradecemos também à Universidade Federal de Ouro Preto por receber o Encontro da ANPHLAC, à diretoria do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Prof. Dr. Luciano Campos da Silva e Profa. Dra. Helena Miranda Mollo e ao Coordenador da Pós-Graduação, Prof. Dr. Sérgio da Mata, pelo apoio ao evento. Agradecemos também o apoio da CAPES, CNPq e do SESI. Por fim, agradecemos àqueles que contribuíram com os textos para a composição dos Anais do XIII Encontro Internacional da ANPHLAC. Reiteramos o nosso desejo de que a arte estampada no banner, no caderno de programação e resumos, nas camisetas, nas bolsas e na capa dos Anais, inspirada no movimento estudantil de 68 no México inspire a todos nós: Unión, Libertad, Firmes, Adelante, Pueblo, Venceremos!

Adriane Vidal Costa – Presidente da ANPHLAC – Biênio 2016-2018 Mateus Fávaro Reis – Membro da Comissão Organizadora

Mariana, novembro de 2018

Encontro Internacional UFOP Mariana XIII da ANPHLAC 24 a 27 de julho de 2018 EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE 10 PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO

VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN 26 AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ

DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO 36 ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK

DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E 52 AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE

A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO 68 “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO

CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO 80 INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU

LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE 91 PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICANA PELOS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT

TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: 101 UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI

POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE 117 JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS

A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O 132 REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS

DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE 147 NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI

INDICE EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE 159 RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA

REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA 174 ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN- 187 TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO

DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO- 204 GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEIRA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO

ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: 214 TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES

O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: 224 ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO

EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO 235 JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA

NAÇÃO, SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO 248 ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS

JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA 266 EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS

TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA 280 FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI

“¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA 292 CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO

DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A 302 REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES

INDICE CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA 312 DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO

JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS 325 DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO 336 “CIBERMERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO

STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA 350 POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART

O QUADRO LOS MULATOS DE ESMERALDAS E A DOMINAÇÃO 366 ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SÉCULO XVI ISABELA CANDELORO CAMPOI

“POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E 382 LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUERDAS SUL- AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA

URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM 398 ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE

90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA 410 REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA

IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A 426 PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTINA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA

OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA 442 E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGIMES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES

EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO- 457 EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO-AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO

IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO

INDICE 468 TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK

A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM 481 PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO 496 NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI

UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS 510 UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935- 1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS

SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO 524 LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA 541 MARCOS SORRILHA PINHEIRO

UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA 551 REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABAJO SOCIAL (1976-1983) MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN

ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, 567 ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

O TESTEMUNHO VOLUNTÁRIO E AS MARCAS DAS DITADURAS 580 DO CONE SUL A PARTIR DOS DOCUMENTÁRIOS DIÁRIO DE UMA BUSCA E OS DIAS COM ELE MARILUCI CARDOSO DE VARGAS

JAMES ELLROY E A LEITURA DA OBSESSÃO 597 MICHELLY CRISTINA DA SILVA

A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O 609 LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE

LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO 620 ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR

A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE

INDICE 629 BANDEIRANTE. A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUBJETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO

LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO 635 ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA 644 “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI

UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 656 NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES

BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E 672 POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO

UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) 683 RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DAS VITÓRIAS ELEITORAIS DE FOX 699 (2000) E LULA (2002) RICARDO NEVES STREICH

A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA 713 CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS

AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E 730 OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO

HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE 746 INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS

DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES 762 INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNACIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI INDICE 10

Educação pública no contexto de Inde- pendência de Peru e Bolívia

AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO Doutorado Latino-Americano em Educação: Políticas Públicas e Profissão Docente – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Órgão financiador: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Endereço de e-mail: [email protected]

Resumo

Neste trabalho são apresentados os principais resultados de estudo recente realizado sobre a política pública educacional de Simón Rodríguez para Peru e Bolívia no momento imediato das Independências destas Repúblicas, quando ocupou cargo equivalente ao de Ministro da Educação durante os governos de Simón Bolívar e do Marechal Sucre (1825-1826). Tendo como principais fontes históricas a legislação educacional decretada, a comunicação interna governamental do Ministério do Interior e o epistolário dos principais envolvidos no episódio, foi possível analisá-lo numa perspectiva que foca nas ideias inovadoras de Rodríguez e a resistência por elas sofrida ante as elites locais, com destaque para a natureza “anticlerical” da sua legislação educacional que “aplicou” na educação pública a maior parte dos bens do clero regular, literalmente transformando conventos e monastérios em escolas, colégios, hospitais e hospícios; e empregando os religiosos nestas novas instituições públicas como empregados do governo que deveria generalizar a educação básica colocando na mesma “escola social” os filhos da elite branca e os dos mestiços a fim de forjar a consciência e a sociabilidade “republicana” nas novas gerações de cidadãos.

Introdução

Em princípios de 1825, a pedido de Bolívar, Simón Rodríguez chegou em Lima para ajudar a consolidar a nova política administrativa das províncias peruanas e organizar a educação pública e a distribuição de terras entre os indígenas. Bolívar, presidente da República da Grã-Colômbia, recebeu poderes ditatoriais do Congresso Peruano que solicitou seu apoio para expulsar definitivamente as tropas espanholas da América do Sul, tarefa concluída pelo Marechal Sucre em Ayacucho. Bolívar nomeou Simón Rodríguez Diretor Geral EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 11

de Ensino Público, cargo equivalente ao de Ministro da Educação do Peru, encarregado de organizar a educação pública da República enquanto a comitiva do Libertador percorreu as províncias do Sul do Peru desde Lima, em direção ao Alto-Peru, onde uma assembleia reunida em Chuquisaca proclamaria em agosto do mesmo ano a República da Bolívia, da qual Bolívar foi nomeado presidente. Lá chegando, nomeou Simón Rodríguez como Diretor Geral de Ensino Público, responsável pela elaboração da legislação educacional, semelhante à decretada no Peru, a fim de organizar um sistema nacional de educação. A radical legislação anticlerical decretada por Bolívar e Sucre, enquanto Rodríguez foi ministro e que, só na Bolívia foi responsável por fechar 25 dos 41 conventos cerca de um ano após a proclamação da República (BETHELL, 2009, 270), foi hostil principalmente ao clero monacal. Ela “aplicou” as casas destes religiosos, então subutilizadas, para abrigar escolas primárias e colégios, hospitais e hospícios, além de financiar a educação pública com outros bens e rendas, também confiscados e suprimidos da Igreja e do clero. Tal processo foi investigado e o resultado apresentado a seguir faz parte da tese de doutorado em educação defendida recentemente (MAZILÃO FILHO, 20171).

A política pública educacional de Simón Rodríguez para Peru e Bolívia

Bolívar e Rodríguez criaram, nesse percurso, vários importantes colégios nacionais, instituições que ficariam conhecidas como “colégios bolivarianos”, como o Colégio de Ciencias y Artes de Lambayeque. Em decreto (nº 262), de 8 de julho, teve início a legislação anticlerical, que transferiu para o Estado os fundos e bens confiscados de ordens religiosas e os aplicou à educação pública, o que motivaria, como indicam as fontes, a resistência do clero ante o cumprimento desses decretos e a decorrente sabotagem dos planos de Rodríguez. Nesse decreto, foi ordenado que os religiosos regulares betlemitas se trasladassem de Cuzco para o convento que tinham em Lima, e que seus fundos ficassem disponíveis, na totalidade, para o financiamento dos Colégios de Estudos de Cuzco (BOLÍVAR, 1975, 569).

No terceiro decreto (nº 236), de 8 de julho, considerando que a educação da juventude se achava quase abandonada pela insuficiência dos estabelecimentos, e dada

1 Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUOS-AWKMEA EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 12

a necessidade de criação de um estabelecimento público de instrução em que fossem reunidos todos os ramos de ensino, foi determinado o estabelecimento de um Colégio de Estudos e Artes com o título de Colégio de Cuzco, na sede da extinta ordem jesuítica, incluindo sua igreja. Os colégios de San Bernardo e del Sol foram ali reunidos, formando um só corpo. Determinou-se também “que las rentas que han poseído hasta aquí los Betlemitas de esta ciudad, las de los colegios de San Bernardo y del Sol, la Caja de censos, y las temporalidades de este departamento sean aplicadas a la dotación del nuevo Colegio del Cuzco” (BOLÍVAR, 1975, 570).

Esses decretos atingiram principalmente a clerezia monacal, o que denota a natureza da lei, que nem sempre se submete às instituições tradicionais ou reproduz a ideologia de determinada classe dominante. Aqui, a lei revela a mudança de mãos do poder estatal. No antigo regime, o clero era o “primeiro estamento” e principal privilegiado, e, portanto, sustentáculo ideológico da dominação da monarquia absolutista espanhola sobre suas colônias americanas. Com a guerra de independência, vencida pelos caudilhos criollos, estes se tornaram os governantes do novo regime e utilizaram a lei à revelia da Igreja e de seus sacerdotes, contrários à emancipação. Eram, portanto, inimigos que deveriam ser enfraquecidos com a transferência de seu patrimônio para a República.

De Urubamba, em 17 de julho de 1825, foi comunicado ao prefeito do Departamento de Cuzco que o Convento dos Recoletos daquela vila, com suas respectivas rendas, seria aplicado a um estabelecimento de ensino público, no qual a juventude de toda a província receberia educação primária (BOLÍVAR, 1975, 576). Pelo decreto (nº 276), de 19 de julho, foram criados dois hospícios em Cuzco, um para inválidos e mendigos de ambos os sexos, e outro para expostos e órfãos, também lhes destinando fundos e conventos expropriados. Outro decreto (nº 277), do mesmo dia, considerando que por falta de um hospício os expostos e órfãos se achavam privados de educação, determinou que a casa de San Boaventura fosse destinada ao Hospício de Expósitos e Huérfanos (BOLÍVAR, 1975, 578).

Esses decretos são indício da preocupação com a educação de órfãos e expostos revelada pela atuação de Simón Rodríguez, que também foi um menino exposto. A legislação busca responder a um problema social que tem longa duração na região: a grande quantidade de crianças de rua que se tornavam mendigos. Muitos deles se EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 13

tornaram órfãos de pais vitimados pela guerra de independência, e seriam tratados, na falta de escola, como problema de polícia. Esses hospícios, portanto, além de retirar das ruas mendigos e crianças, dar-lhes-iam a educação de que até então estavam privadas, transformando-as em cidadãos “úteis” para a república.

No Alto-Peru, uma assembleia reunida em Chuquisaca (atual Sucre) aprovou a criação da República da Bolívia, no dia 6 de agosto de 1825, nomeada em homenagem ao Libertador — então investido do tríplice poder de presidente das repúblicas da Bolívia e da Grã-Colômbia e de ditador do Peru — a fim de conseguir seu apoio e proteção do exército grã-colombiano ao novo Estado Nacional. Depois de percorrer as províncias do sul do Peru e de organizar a educação pública, Simón Rodríguez ascendeu à Bolívia, acompanhando a numerosa comitiva do exército libertador grã-colombiano.

O presidente Simón Bolívar atendeu à demanda dos deputados pela destinação dos fundos julgados necessários para a educação pública em seus decretos de 11 de dezembro de 1825. Estes foram considerados anticlericais por confiscar a maior parte dos bens da Igreja católica, principalmente o administrado pelo clero monástico, fundos de obras piedosas e religiosas, monastérios e conventos, que foram aplicados no financiamento e na estruturação da instrução pública boliviana, parecido, em seu sentido “anticlerical”, com o que fizera no Peru. O primeiro desses decretos considerando que as obras religiosas tinham por objeto a educação, instrução e beneficência pública, decretou que:

1º Todos los bienes de raíces, derechos, rentas y acciones de capellanías fundadas, o que estén por fundarse, que no sean de llamamiento de familias, quedan desde ahora aplicados a los establecimientos públicos. 2º Así mismo quedan aplicadas a estos establecimientos todas las sacristías mayores de canónigos y curas; las cofradías, hermandades, memorias, fundaciones o cualesquiera otros establecimientos piadosos que no pertenezcan a familias por sangre. 3º Quedan aplicadas para el mismo objeto las rentas de los monasterios que se supriman en cada departamento y las de la caja general de censos y comunidades de indios. (REPÚBLICA BOLIVIANA, 1825-1826, 71-73).

O primeiro dos decretos de 11 de dezembro de 1825 determinou, portanto, a “aplicação” daquelas obras piedosas, capellanías e sacristias, entre outros recursos monopolizados pelo clero aos fundos de beneficência pública, como os censos, que eram capitais investidos em propriedades — e que foram todos confiscados para o fundo de financiamento da educação pública nacional. A política pública educacional radical de EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 14

Bolívar e Rodríguez foi literalmente a de, através dos decretos, “aplicar” os bens do clero aos estabelecimentos públicos; transformar igrejas, conventos e monastérios em escolas, colégios e hospitais públicos; substituir à força a formação de padres e freiras potencialmente monarquistas pela formação de cidadãos “úteis” e republicanos em sintonia com o governo da Bolívia independente. Esses decretos de 11 de dezembro foram alegadamente as motivações principais da oposição constante do clero regular ao governo Sucre, desobedecendo e sabotando a todo custo o seu cumprimento pelo diretor geral de ensino público, Simón Rodríguez.

O segundo decreto, de 11 de dezembro de 1825, tratou do estabelecimento de escolas primárias e colégios de ciências nas capitais de departamento, além de uma escola militar em Chuquisaca. Determinou que a administração dos fundos fosse sujeita a uma direção geral, e que não fossem desviados dos usos destinados pelo decreto anterior. Segundo a justificativa do decreto, considerando que “o primeiro dever do governo era dar educação ao povo; que esta deveria ser uniforme e geral; que os estabelecimentos do gênero deveriam se pôr de acordo com as leis do Estado; e que a saúde de uma república dependia da moral que pela educação se adquirem os cidadãos na infância”, o texto determinou que o director general Simón Rodríguez propusesse ao governo um plano que abraçasse todos os ramos da instrução, fazendo-a geral a todos os povoados da República.

O decretou também definiu que, sem perda de tempo, fosse estabelecida em cada capital de departamento uma escola primária, com as divisões correspondentes, para receber todas as crianças de ambos os sexos que estivessem em estado de instruir-se, o que comprova que aquela ordenação legal tinha o objetivo de universalizar a educação primária. As ideias de universalização da educação primária nacional de Rodríguez se assemelham às do “Plano de Educação Comum”, aprovado durante a convenção jacobina na França revolucionária:

O plano de Lepeletier se baseava no de Condorcet, com o qual concordava nos aspectos referentes aos quatro graus de ensino e à organização dos três últimos. No entanto, faz uma crítica à organização do primeiro grau, que, segundo Lepeletier, deveria ser conveniente às necessidades de todos, pois, sendo uma dívida da República para com todos, deveria ser verdadeira e universalmente nacional. Desejava a criação de um sistema novo, através do qual se pudesse operar uma inteira regeneração, criar um novo povo. (LOPES, 2008, 104). EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 15

O decreto ordenou ainda que, na visita que o diretor devia fazer a todas as capitais dos departamentos, fossem designados com consulta aos presidentes os melhores edifícios para uso dos colégios de ciências e artes e das escolas primárias, que se estabeleceriam conforme os de Chuquisaca. Para os fundos de manutenção desses estabelecimentos, seriam destinados em cada departamento todos os bens de raiz, direitos, rendas e ações de capellanía aplicadas aos estabelecimentos públicos, além do direito que se cobrar por cada porção de farinha ao entrar nas cidades (REPÚBLICA BOLIVIANA, 1825-1826: 74-76).

Esse último decreto assinado por Bolívar determinou ainda que, enquanto não fossem estabelecidos em cada capital de departamento um colégio de ciências e artes (como mandou o decreto de 11 de dezembro), deveriam ser disponibilizadas sete cátedras: língua castelhana e latina; retórica, eloquência e oratória; matemáticas puras e arquitetura; medicina; botânica e agricultura; filosofia moderna; moral e direito natural, civil “e de gentes”, além do estudo da Constituição e das leis da República. Essa recomendação evidencia o currículo “social” de Simón Rodríguez: fazer particular estudo da Constituição e das leis da República era fundamental para forjar a consciência, sociabilidade e sensibilidade republicana nos educandos. Simón Bolívar transferiu o cargo de presidente da Bolívia para o seu lugar-tenente, o marechal Antônio José de Sucre — “El Gran Mariscal de Ayacucho” –, em 29 de dezembro de 1825. Retornou em seguida ao Peru, separando-se definitivamente de seu antigo mestre.

Em um comunicado de Simón Rodríguez para o general Felipe Santiago Estenós, secretário do Ministério do Interior (principal secretário de Sucre), de 30 de dezembro de 1825, fica evidente que Rodríguez mandou então avisar a Sucre de seu plano de colocar no colégio de Cochabamba três superiores: um reitor moral, um vice-reitor ecônomo e um ministro de estudos, além dos sete professores, um de cada cátedra. Isso é importante pois Sucre, em carta a Bolívar (que veremos mais adiante), reclamou que Rodríguez não lhe disse nada sobre os empregados nomeados, considerando-os demasiado caros pelo grande montante dos fundos demandados para pagar três superiores:

Exmo. Sõr. El director General de enseñanza pública, habiéndose impuesto de este expediente relativo al establecimiento de un colegio en la ciudad de Cochabamba Capital del Departamento de la propia denominación, hace presente a V.E. que en conformidad del decreto expedido para promover y arreglar en toda la república un plan uniforme y general de educación extensivos a los ramos principales de EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 16

Instrucción, debe establecerse en Cochabamba el Colegio que justamente reclama su Municipalidad que recomienda S. Ex. el Gran Mariscal de Ayacucho, y que aprueba la Diputación permanente. El citado colegio debe tener las cátedras 1ª de lengua castellana y latín, 2ª de Retórica, Elocuencia y Oratoria, 3ª de Matemáticas puras y Arquitectura, 4ª de Medicina, 5ª de Botánica y Agricultura, 6ª de Filosofía moderna, y 7ª de Moral e Derecho Natural y Civil, y de Gentes, haciendo particular estudio de la Constitución y Leyes de la República. Para su dirección y economía debe tener un Rector con la dotación de mil pesos, y un vicerrector con la de quinientos, y un ministro con la de cuatrocientos: los siete catedráticos deben también dotarse cada uno con quinientos de los fondos que se proponen al efecto, y que se aplican por el decreto ya citado. El director constituido en Cochabamba fara logo como le permitan sus rituales menciones consagrar a sus esfuerzos a planificar dicto Colegio de Ciencias y Artes, y la escuela primaria, si V.E. se sirve ordenes necesarias. Chuquisaca, diciembre 30, 1825. Simón Rodríguez (Fonte: MI, T1, N.º 8; Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia; Sucre).

Ora, na época da independência, o Alto Peru simplesmente não possuía edifícios adequados e suficientes para abrigar um grande número de educandos, quanto mais dar conta de todos em idade escolar, como pretendia Simón Rodríguez. A única alternativa encontrada por Bolívar e Rodríguez foi repetir o que já tinham feito no Peru: expropriar bens da Igreja, aplicando-os no financiamento da educação pública, e destinar para tal fim os conventos que então estavam subutilizados, com menos religiosos instalados aquém da capacidade desses recintos. Da mesma forma, não havia outra fonte de recursos para bancar o ensino e beneficência que não fossem as rendas de bens imóveis, como fazendas, obras piedosas e dízimos, até então monopolizados e administrados pelo clero regular.

Uma questão que podemos colocar aqui é a seguinte: na ausência de Bolívar, teria sido Simón Rodríguez identificado pelos religiosos atingidos pelos decretos educacionais como o autor intelectual dessa legislação anticlerical, tornando-se, portanto, o alvo do ressentimento daqueles? Em carta a Bolívar, de 10 de julho de 1826, Sucre afirma, sobre Rodríguez, “que los decretos fueran revisados y casi redactados por él antes de publicarse (…) Pero, lo que más alarma causó, fue que dijo que o él había de poder poco, o que antes de seis años, él destruiría en Bolivia la religión de Jesucristo” (SUCRE In: O’LEARY, 1919: 48/49).

Esses decretos indicam a natureza da política educacional de Rodríguez, tanto no sentido de universalizar a educação primária, inclusive feminina, quanto do recolhimento dos mendigos. Segundo uma visão que os considera “desocupados” e, portanto, “inúteis” para a sociedade, eles seriam obrigados pelo governo a ter alguma ocupação para a qual se disponibilizariam ferramentas aos que pudessem trabalhar. Nesse sentido, como já EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 17

sugerido pelo próprio, buscava-se torná-los “úteis” à força, na medida em que deveriam ser todos recolhidos, bem como ser proibida sua mendicância, a qual, nos tempos coloniais, chegou-se a requerer autorização especial para tal prática. É importante, portanto, reiterar que a preocupação com a indigência social daqueles adultos demandava a atenção à instrução da infância desvalida para que o Estado paternalista evitasse que aqueles jovens engrossassem a já grande quantidade de mendigos daquela sociedade injusta, contrariando em certo sentido a naturalização da desigualdade em voga, e problematizando dessa forma a questão da pobreza.

Por sua vez, a crescente exploração do trabalho infantil e a ampliação da miséria e da mendicância converteram a forma de tratamento das crianças pobres num problema político e social. No final do século XVIII e ao longo do XIX registrou-se uma intensa preocupação com a educação física, intelectual e moral das crianças, principalmente das provenientes de famílias com maior poder aquisitivo. Contudo, também as crianças pobres foram objeto de políticas estatais e/ou filantrópicas, na tentativa de evitar a ‘vadiagem’ e a mendicância, proporcionando a elas, como princípio moralizador, uma educação voltada para o trabalho. (VEIGA, 2007: 118).

Sobre esse momento, Simón Rodríguez afirmaria posteriormente que o governo Sucre o declarou louco, e ainda acusaria o prefeito Dr. Calvo de fechar seu estabelecimento, argumentando que o tesouro público estava sendo esgotado com o lustre de “putas” e “ladrões” — cholitas e cholitos recolhidos das ruas por Rodríguez. Tais expressões do prefeito denotam o destino comum para essas crianças: as meninas eram empurradas pela miséria e abandono à prostituição, enquanto os meninos caiam na marginalidade social.

Denunciado por sus vicios y ridiculeces, se le despreció como merecía y el Gobierno lo declaró por loco — mandó echar a la calle los niños, porque los más eran cholos, ladrones los machos y putas las hembras (según informe de un sujeto muy respetable, que a la sazón era Prefecto del Departamento) — se aplicó el dinero a la fundación de una casa para viejos — a reedificar un colegio para enseñar ciencias y artes a los hijos de la gente decente — establecer la escuela de Lancaster para la gente menuda — a la construcción de un mercado — y de otras cosas que hacen el lustre de las naciones cultas (según parecer del Secretario de la Prefectura). Bolívar (decían varios sujetos principales) por acomodar a su hombre le dio una importancia que no tenía..., (RODRÍGUEZ, 1830: 156).

As fontes aqui analisadas indicam tanto a intenção de Rodríguez em universalizar a educação primária para a classe “chola” boliviana, quanto a resistência da elite local a tal EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 18

iniciativa. A classe dos “cholos” era, na época da Independência, a categoria social em que se encontrava a maioria dos pobres que viviam em cidades e povoados, ou próximos a eles. Por suas ruas, vagavam naquele momento centenas de crianças, as “cholitas” e os “cholitos”, órfãs filhas das vítimas da revolução, de pais mortos durante a guerra de independência no Alto Peru. Era a classe intermediária entre a elite local criolla branca e a população nativa indígena Quéchua e Aimara, concentradas em suas aldeias e mais distantes da vida urbana.

A formação do cidadão republicano e “útil”, produtivo e ocupado em algum ofício profissional, foi a preocupação central de Rodríguez, que considerava cidadãos todos os habitantes do território, uma fronteira que funde o Estado e a nação. Portanto, todos deveriam ter acesso à educação porque todos são cidadãos. Ele visava a criação de uma “sensibilidade republicana” nas novas gerações, por uma educação classificada por ele como “social”, capaz de forjar uma “sociabilidade republicana” através do particular estudo da Constituição e das leis da República. Em outras palavras, para Rodríguez a cidadania é anterior à educação, ao passo que dela dependia para o aperfeiçoamento da “republicanização” daqueles cidadãos. Bolívar, contudo, limitava em sua Constituição a condição de cidadão, entre outras, a ser alfabetizado e possuir ofício conhecido.

Sobre a história da restrição de alfabetização aos direitos políticos, Marcelo Caruso aponta o significado estratégico desse sistema de exclusão política, cuja demora para ser extinto na América Latina apresentaria um caso inconfundível da importância particular da escolarização elementar como um problema político na região (CARUSO, 2010: 477). Segundo o autor, restrições de alfabetização acompanharam o ritmo lento do desenvolvimento educacional nos países latino-americanos há mais de 150 anos. A “escola social” de Simón Rodríguez, portanto, forneceria aos educandos duas condições necessárias para a cidadania, conforme a Constituição da República: alfabetização e instrução profissional em algum ofício mecânico; com a perspectivas desses cidadãos ainda receberem do governo terras e auxílio para estabelecer-se, “colonizar o país com seus próprios habitantes” — uma verdadeira proposta de reforma agrária:

La intención no era (como se pensó) llenar el país de artesanos rivales o miserables, sino instruir, y acostumbrar al trabajo, para hacer hombres útiles — asignarles tierras y auxiliarlos en su establecimiento... era colonizar el país con sus propios habitantes. Se daba instrucción y oficio a las EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 19

mujeres para que no se prostituyesen por necesidad, ni hiciesen del matrimonio una especulación para asegurar su subsistencia. (RODRÍGUEZ, 1830: 155).

Sucre escreveu, em 10 de julho, uma longa carta para Bolívar tratando dos problemas com Rodríguez. A primeira informação importante é a explicação do desgosto de Rodríguez, mais complexa do que as dadas nas cartas anteriores: a interferência do governo e do congresso nos assuntos referentes aos ramos de educação e economia, sobre os quais Rodríguez teria recebido de Bolívar a garantia de independência absoluta em sua direção. Reafirmou ainda sua desaprovação sobre a conduta de Rodríguez em Cochabamba — onde teria feito “cem desatinos” e contrariado decretos — como motivo para seu pedido de renúncia. Informação fundamental, dada por Sucre nesta carta, é a de que os decretos foram revisados e quase reeditados por Rodríguez antes de serem publicados.

Essa carta nos revela ainda importantes informações quanto à atuação de Rodríguez em Cochabamba, onde teria brigado e insultado a todos, tratando-os de ignorantes e brutos. Contudo, o que teria causado mais alarme foi supostamente ter dito que, em menos de seis anos, destruiria a religião católica na Bolívia. Sucre considerou as atitudes de Rodríguez como “francesadas”, disparates da cabeça de um francês aturdido. Seria isso uma referência às ideias radicais oriundas da ilustração francesa em um momento histórico, a “era das revoluções”, no qual a burguesia foi classe revolucionária? “Especialmente na França, as convicções anticlericais e antiteológicas herdadas do Iluminismo e da Revolução conservaram uma força impressionante e uma grande atratividade entre a burguesia instruída” (GAY, 1988: 52).

Evidência de que Sucre estava informado do plano de Rodríguez é o próprio decreto de 3 de fevereiro, que trata da instalação do Colégio de Ciências e Artes de Cochabamba. No artigo 4, lemos: “Para la dirección y economía de este colegio, tendrá un rector, con la dotación de ochocientos pesos anuales, un vicerrector, con la de cuatrocientos, y un ministro, con la de trecientos” (REPÚBLICA BOLIVIANA, 1825-1826: 135). Fica evidente, portanto, que Sucre desaprovou o sistema de Rodríguez depois de ter assinado os decretos que o implementavam, decidindo não apoiar um projeto que considerou demasiado caro frente à situação financeira do governo. Isso pode ser indício de uma velada intenção de aplicar em outros ramos o patrimônio suprimido do clero, que, pelos decretos de Bolívar, deveria ser destinado exclusivamente para os estabelecimentos de EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 20

educação e beneficência pública. Podemos aqui levantar a seguinte questão: teria sido Sucre, e não Rodríguez, quem de fato contrariou os decretos educacionais — escritos por Rodríguez e assinados por Bolívar e por ele próprio?

Em 1º de setembro de 1826, o administrador do Tesouro Público boliviano passou ao Ministério do Interior as “cuentas de Don Simón” — a razão das contas prestadas por Simón Rodriguez (ver anexo 2 da tese — fonte: MI — T. 12 — Nº 14; 1826; Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia; Sucre), em que constam as quantidades que recebeu e com o que foi gasto. São fontes inéditas e muito importantes, pois esclarecem diversos detalhes, como nomes de empregados e dos jovens que receberam formação docente de Rodríguez, além da quantidade de pessoas assistidas em seus estabelecimentos, inclusive com a descrição dos gastos de alimentação. Também dá notícia do que foi construído pelos carpinteiros contratados, inclusive para serem professores de carpintaria, comprovando que Rodriguez conseguiu pôr em prática a instrução em ofícios mecânicos e que os móveis fabricados eram em quantidade superior aos que Sucre informou a Bolívar. É importante reiterar que, sobre tais informações, são feitas as devidas referências ao longo da tese, quando se justifica a reprodução de dados ali contidos de acordo com sua relação com a narrativa realizada.

Com o cruzamento dessas fontes, é possível notar a insatisfação de Sucre ante os gastos realizados por Rodríguez, desconsiderando a natureza de investimento daquela obra, que necessitava de uma mínima infraestrutura física para funcionar. A questão parece situar-se na prioridade que cada personagem dava às verbas disponíveis: enquanto o presidente da República se via às voltas com demandas urgentes de todos os ramos da administração pública, cujos gastos militares devoravam a maior fatia do orçamento, Rodríguez se mostrou resoluto em fazer o uso que lhe conviesse do patrimônio destinado à educação e beneficência pública pelos decretos de Bolívar. Para o diretor ecônomo Simón Rodríguez, a prioridade era estruturar um sistema nacional de educação, que, por visar à universalização da instrução primária, em cumprimento aos decretos, era necessariamente caro, e mais encarecido ficou com a evidente valorização salarial dos professores ea multiplicação por três dos superiores de cada estabelecimento, como já foi visto.

Em outras palavras, a universalização da educação primária proposta por Rodríguez não teve o necessário apoio governamental por questões — do ponto de vista daqueles presidentes — essencialmente financeiras, em face da enorme demanda de recursos EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 21

para a urgente manutenção do aparato militar garantidor da ordem e da independência daqueles territórios ante sua antiga metrópole. Somado à questão financeira, Rodríguez menciona a oposição sofrida ao recolher as crianças pobres, reforçando a necessidade de “gente nova” para se fazer repúblicas, em clara alusão à ideia ilustrada de educação do “homem novo”, o cidadão republicano:

Dos ensayos llevo hechos en América, y nadie ha traslucido el espíritu de mi plan. En Bogotá hice algo y apenas me entendieron: en Chuquisaca hice más y me entendieron menos; al verme recoger niños pobres, unos piensan que mi intención es hacerme llevar al cielo per los huérfanos… y otros que conspiro a desmoralizarlos para que me acompañen al infierno. Sólo U. sabe, porque lo ve como yo, que, para hacer repúblicas, es menester gente nueva; y que de la que se llama decente lo más que se puede conseguir es el que no ofenda. (RODRÍGUEZ, 2001: 153).

O cruzamento das variadas fontes aqui apresentadas indica que tal resistência tem a ver também com a não concordância, por parte dos formadores de opinião, com a ideia da universalização da educação primária, defendida por Rodríguez, a qual seria requisito para o que ele definia como “educação social”: “La Instrucción que ahora se llama, con tanta impropiedad, pública, lo será efectivamente, haciéndose general… SIN EXCEPCIÓN — entonces será SOCIAL” (RODRÍGUEZ, 1840: 30). Nesse sentido, importam os seguintes questionamentos:

Existiam forças sociais adequadas para o projeto de Rodríguez? Simón Bolívar não teria gostado que elas se desenvolvessem. É uma ideia utópica nesse sentido, a de Simón Rodríguez. [...] Este é o dilema: a que meios acudir para que as propostas teóricas possam se converter na política em campo fértil, pleno da ação e mobilização das pessoas? Para onde apontar para poder converter cada homem em lugar positivo de um poder novo? (ROZITCHNER, 1990: 242).

Fica evidente, portanto, o projeto de formação de uma “sensibilidade republicana” na obra e na prática de Simón Rodríguez. O projeto pretendia atender a todas as crianças da Bolívia, não só os filhos doscriollos , mas principalmente os órfãos mais pobres e desamparados, cujo Estado passaria a ser o “pai comum”, unindo sob o mesmo teto de conventos e monastérios aplicados ao ensino público os brancos, os “cholos” (mestiços de brancos com índios) e os indígenas, sendo garantidas pelos decretos cotas de vagas especiais para estes nos colégios, como já visto. Contudo, tal proposta era “utópica”, na medida em que contrariava o desejo de manutenção da estrutura social, principalmente por parte dos que historicamente foram beneficiados por sua própria posição naquela hierarquia. EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 22

Em resumo, o projeto de Rodríguez era construir um modelo de gestão a ser aprendido pelas novas gerações de cidadãos, um protótipo da própria República Boliviana que pretendia fundar: um estabelecimento, ao reunir escola primária e colégio, seria um microestado governado por três poderes independentes (os três reitores), cujos demais cidadãos (estudantes e professores) estudariam, gozariam e praticariam a “Liberdade” (então sinônimo de “Independência” nacional e individual conquistada pela República contra a Monarquia absolutista). Isso lhes daria, por essa prática e pelo próprio direito a ela, pragmaticamente um “quarto poder” análogo ao “poder eleitoral” da Constituição, e ao “poder moral” da maioria instruída naquele microcosmo social representado por cada estabelecimento público gerido nesse modelo.

Assim, mais uma vez as marcas da experiência francesa podem ser percebidas na atuação de Simón Rodríguez — atitudes classificadas pelo presidente Sucre como “francesadas” —, tendo em vista que, ao se inspirar em modelos estrangeiros, professores franceses conceberiam a escola como uma república de crianças: “É dado a elas um poder sobre sua vida, seu espaço e seu tempo. Inventam e fazem evoluir, pela sua experiência, uma instituição, em vez de padecer a ela e de se submeter a regras externas” (FOUCAMBERT, 2010: 128). A escola social republicana e universal projetada por Simón Rodríguez, se adotada e implementada pelo governo, forjaria a opinião pública e o povo republicano em apenas cinco anos, segundo suas estimativas:

Todas las faltas pueden reducirse a una… diciendo, “El lugar de las Instituciones es la opinión pública, esta está por formar — y nada se hace por instruir. Persuádanse los Jefes del Pueblo que nada conseguirán si no instruyen”. Cuando se les hace esta observación, unos responden que el Gobierno no es Maestro — y otros, que para formar un pueblo se necesitan siglos. Ni unos ni otros reflexionan bastante, y no reflexionan porque desprecian la advertencia. El Gobierno debe ser maestro y para formar el Pueblo a la República necesita cuando más 5 años. No es este el lugar de exponer las razones que lo obligan a enseñar, ni de presentarle el plan de enseñanza que debe adoptar. Solo se les dirá que — por haber visto la Instrucción Republicana como objeto secundario, han perdido los jefes mucho tiempo, y arriesgan perder el que les queda. Con universidades no se hacen fuertes las naciones, ni en el rincón de un Colegio caben todos los que deben aprender — Suponiendo que allí se enseñen los deberes del Ciudadano. Grandes proyectos de ¡ILUSTRACIÓN! al lado de una absoluta IGNORANCIA, contrastarán siempre y nunca se asociarán — juntos, hacen un MONSTRUO SOCIAL. (RODRÍGUEZ, 1830: 129).

Contudo, tal projeto era demasiado dispendioso sobre os escassos recursos do governo — ainda mais existindo a alternativa do sistema mútuo de Lancaster, muito mais barato por teoricamente permitir que toda a escola fosse governada por um único EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 23

professor, capaz de ensinar até mil alunos, como já visto. Em síntese, Sucre poderia alegar em sua defesa que o sistema de Rodríguez era dez vezes mais caro que o de Lancaster, o que indica o poder de difusão internacional que o método de ensino mútuo, enquanto modelo de política pública, tinha naquela época, em que na Europa já era adotado por vários governos. O raciocínio é simples: se o sistema de Lancaster foi adotado por vários governos no “centro do mundo civilizado” e implantado de forma econômica pela exigência de um relativamente baixo número de professores, por que não o adotar em lugar de outro sistema, dez vezes mais caro e sem experimentação prática comprovada e recomendada por qualquer governo?

Isso explicaria o que foi feito pelo governo Sucre após a renúncia de Rodríguez: escolas lancasterianas para a “gente miúda” e colégios de ciências e artes para a “gente decente”. O projeto de Simón Rodríguez era caro porque propunha converter o “baixo povo” em “gente decente” ou “gente nova”; previa formar pela educação social, em quatro anos, doze mil jovens empregados no serviço militar e policial, além de 25 mil pessoas ocupadas e com propriedade, todos cidadãos instruídos em seus deveres morais e sociais — uma visão, portanto, “utópica” no sentido de que “imaginar el no lugar es mantener abierto el campo de lo posible” (RICOEUR, 2009: 91).

A tese defendida é a de que a política pública educacional elaborada e posta em prática por Simón Rodríguez para as recém-independentes repúblicas do Peru e da Bolívia visava forjar uma sensibilidade republicana através de uma escola social financiada pela maior parte do patrimônio do clero regular católico, que foi aplicada na estruturação da educação pública, ramo do qual Rodríguez foi nomeado diretor geral. As fontes indicam, como vimos, que Rodríguez sofreu resistência de grupos poderosos daquela sociedade: a elite criolla e o clero regular, por meio de seus doutores intelectuais tradicionais interessados na manutenção de seus privilégios de classe no novo regime. Os religiosos, como o padre teólogo Dr. Centeno, então capelão de freiras e reitor do orfanato de Cochabamba, descontentes com o confisco de seus bens, seminários e conventos pelo Estado republicano, ofereceram resistência e sabotagem ante a aplicação dos decretos educacionais pelo governo, acusando Simón Rodríguez de ter anunciado que destruiria a religião católica na Bolívia em menos de seis anos, tendo em vista que ele foi o autor daquela legislação anticlerical e redator dos decretos educacionais, como indica o epistolário analisado. EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DE INDEPENDÊNCIA DE PERU E BOLÍVIA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO 24

Outro grupo importante que inviabilizou a política educacional de Simón Rodríguez, desaprovando suas providências, foi a própria classe política governante, como o prefeito departamental de Chuquisaca e membro da aristocracia togada alto-peruana, o advogado Dr. Calvo, e o próprio presidente da República, o Marechal Sucre, em desacordo quanto aos gastos efetuados por Rodríguez. A elite boliviana tampouco estava disposta a colocar seus filhos destinados a serem doutores na mesma escola ou colégio de crianças mestiças e indígenas, da mesma forma que não estavam interessados em que seus filhos recebessem uma educação profissionalizante em ofícios mecânicos reservados àquelas classes subalternas. Várias foram, portanto, as forças conservadoras que impediram Simón Rodríguez de efetivar seu plano de dar fundamento republicano ao novo regime, formar uma jovem geração de cidadãos úteis e sociáveis por uma educação social que forjaria uma nova e necessária sensibilidade, ensinando como se deveria viver em República na América do Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RICOEUR, Paul. Educación y política: de la historia personal a la comunión de libertades. Buenos Aires: Prometeo Libros/Universidad Católica Argentina, 2009.

RODRÍGUEZ, Simón. El Libertador del Mediodía de América y sus compañeros de armas defendidos por un amigo de la causa social. Imprenta Pública: Arequipa, 1830. Facsímil In: RODRÍGUEZ, Simón. Escritos de Simón Rodríguez. Tomo I. Caracas: Imprenta Nacional, 1954.

RODRÍGUEZ, Simón. Luces y Virtudes Sociales. Imprenta del Mercurio, Valparaíso, 1840. Facsímil In: RODRÍGUEZ, Simón. Escritos de Simón Rodríguez. Caracas: Tomo II. Imprenta Nacional, 1954.

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Varnhagen y Alamán: dos formas historiográficas en América durante el siglo XIX

ALFREDO NAVA SÁNCHEZ Doctor en Historia por El Colegio de México; Professor visitante Universidade Federal de Alagoas; [email protected]

Introducción

Son diversas las interrogantes y los temas que encierran esta presentación respecto a una historia “comparada” de la historiografía “latinoamericana” y poco el espacio para ahondar en ellos, de aquí la decisión de introducir una de esas interrogantes, a expensas de parecer un tanto débil su sustento argumentativo. ¿En una historia de la historiografía las particularidades de los autores individuales y su base nacional son elementos necesarios? La respuesta es que no, que es posible otra perspectiva que no arraigue el sentido de su análisis en el sujeto de la producción historiográfica como autor, ni en la particularidad del “contexto nacional” de ella. Esa otra perspectiva se funda en la historiografía como ejercicio político, el de la legitimación de la diferencia como forma de dominación, y el del lugar social de la escritura, en sus formas materiales de documento o de libro.

La propuesta se funda en una contradicción evidente: la de tomar dos nombres y sus obras como puntos de referencia. No se intenta evadir tal contradicción. Lejos de eso, representa el punto de partida para tratar de explicar su posible resolución, y siendo el único gesto por retocarla situar esos dos nombres en un espacio americano impreciso durante la primera mitad el siglo XIX.

Por un lado, se toma la figura de Francisco Adolfo de Varnhagen, diplomático e historiador del Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, reconocido entre sus pares como una de las figuras más importantes de la historiografía de la época. Se recupera de su autoría algunos argumentos plasmados en su libro História geral do Brasil, escrito VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 27

en la década de los cincuenta del siglo XIX. Por otro lado, Lucas Alamán, también diplomático e historiador, promotor de un gobierno monárquico para México durante el siglo XIX e impulsor en su momento del conocimiento público de la historia. Muestra de ello fue su empeño en la fundación de un Museo Nacional, lo que consiguió en 1825. En su caso, se recogen partes del texto Historia de Méjico desde los primeros movimientos que prepararon su independencia en el año de 1808 hasta la época presente, publicado en 1849.

La medida que organiza esta comparación es el argumento de ambos alrededor de las situaciones marcadas en sus historias por la relación entre la “Iglesia” y los “indios” durante el dominio de las monarquías portuguesa y española, respectivamente. En Varnhagen, el lugar de la “Iglesia” está ocupado por la Compañía de Jesús y su capacidad de control sobre los indios, no obstante las críticas que ésta le mereció por sus apetitos “autonomistas”. (WEHLING, 1999, 168-169) Mientras qué en Alamán, remite al gobierno colonial y a sus atributos para implantar un “orden” y equilibrio social a partir de una “natural” constitución y diversidad de la población mexicana. (PALTI, 2014) Delante de ello estaba lo que había que controlar y gobernar, los indios y su condición “salvaje”, incompleta, necesitada y externa, paradójicamente, dentro de lo que podía ser pensado como nacional.

Historiadores contemporáneos han determinado salidas particulares para ambos autores respecto a sus “teorías” de la historia y su lugar en el terreno de la “construcción nacional”. A partir de ello han sido adscritos a las taxonomías “adecuadas”. Sin embargo ¿puede decirse algo de la historiografía de ambos por encima –o por bajo– de sus estructuras teórico - metodológicas?

Podría indagarse en ese lado de la producción historiográfica de ambos que moldea e impulsa un conjunto de argumentos que legitiman una realidad política sobre la composición de la sociedad en la que escriben. Varnhagen y Alamán, además de cierta afinidad por la monarquía y los cambios moderados, producen diferencia apoyados en las categorías de indios, negros, “escravos”. Evidentemente, estas categorías no son nuevas, pero los contenidos llevan a otros terrenos, a otras oposiciones, particularmente a la de “civilización contra la barbarie”. Lugar común todavía hoy día para sostener un orden maniqueo del mundo. VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 28

Civilización y barbarie

La Iglesia, su relación con los indios y su participación en la educación de las élites durante los siglos anteriores se presentaba, en ambos casos, como un tema importante para pensar, así como sugerente para derivar proyectos sobre la vida social de las naciones en construcción.

Para reflexionar sobre ellos, ambos personajes recurrieron a la evidencia de conceptos como civilización, progreso, salvajismo, etc., reclamados por una perspectiva vigente en la época. Buscando organizar teóricamente los fundamentos de lo nacional, parecía también natural recurrir a la historia para arreglar la política, así como utilizar la política para arreglar la historia. Tanto en Varnhagen como en Alamán puede identificarse un lenguaje común, constituido por esos tópicos y estos recursos. Comparten, a pesar de una distancia geográfica, una necesidad y su posible satisfacción en términos muy similares: legitimar teóricamente la marginación y sumisión de segmentos de la sociedad en nombre de la constitución de un nuevo grupo –“la nación”– más amplio, gobernado por un “Estado basado en la razón”, y con la esperanza que en él arraiguen las ideas del progreso y la evolución social.

Hoy se sabe que esas vecindades de pensamiento tenían presencia en varios espacios americanos, sobre todo, durante los procesos de independencia de las antiguas posesiones españolas y portuguesas. Ese lenguaje y sus formas aún tienen ecos que pueden identificarse en temas históricos contemporáneos o en explicaciones del habla cotidiana, que identifican, por ejemplo, qué en la relación entre jesuitas e indígenas, los primeros poseían un estatuto superior a los segundos. Este significado del vínculo es el que resuena en las valorizaciones dispares de unos y otros, en la identificación de “individuos” entre los misioneros jesuitas y de “comunidades” o “grupos” para referirse a los indígenas.

No hay duda de que estas caracterizaciones remiten a otros tiempos y no obligadamente de las palabras producidas por Varnhagen o Alamán. No obstante, habrá que tener cuidado y distinguir las particularidades y los límites de la configuración de la diferencia de los reinos cristianos durante de los siglos XV a XVII, que miran más a la Edad Media, y los que emergen durante la segunda mitad del XVIII. (LOCKHART, 2000) Existía un fundamento de la distinción basado en los criterios de nobleza. Para el VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 29

caso de la América hispana, por ejemplo, junto con esos criterios convivían los de las particularidades de la “naturaleza” de las naciones, un concepto medieval que remitía a las propiedades específicas de los pueblos. (RUCQUOI, 2012). En este sentido, existía una separación que consistía en separar por un nombre, atributos fenotípicos y otros elementos –el vestido o las costumbres– a los grupos que componían la sociedad. Lo importante en este caso es que esa diferencia permitía, por ejemplo, la participación de una “nobleza india” en labores de gobierno. Evidentemente nunca ningún príncipe indio fue Virrey, existía sin duda una desigualdad respecto al lugar de los grupos que constituían la sociedad. Pero esa participación desapareció en la configuración del Estado nacional del siglo XIX. Desconozco alguna propuesta similar que se concretizara en la experiencia política de las nuevas naciones latinoamericanas durante este tiempo. Tal vez una respuesta a esta presentación pueda desmentir la aseveración.

En las narraciones históricas de estos dos letrados del siglo XIX, la relación de la Iglesia con los “indios” tomó otros rumbos con la inclusión de las consideraciones antes señaladas sobre el lugar que podía cobrar la experiencia del pasado en la política y los conceptos de civilización y progreso orientando sus prácticas. Algunas de las tareas más inmediatas que aludían a estos temas incluían pensar la unidad o diversidad de la nación a partir de los “grupos” que la integraban, los “retrasos” de unos y los obstáculos para el “progreso” representados por otros. Al final, la reflexión sobre estos y otros temas incluidos en las historias escritas por Varnhagen y Alamán procuraban intervenir en las decisiones políticas del momento. En el centro estaba la discusión sobre el futuro de la “nación”. En el caso del mexicano esto era presentado en forma de crisis que ameritaba una revisión urgente:

Pero si los males hubieren de ir tan adelante que la actual nación mejicana, víctima de la ambición extranjera y del desorden interior, desaparezca para dar lugar a otros pueblos, a otros usos y costumbres que hagan olvidar hasta la lengua castellana en estos países, mi obra todavía podrá ser útil para que otras naciones americanas, si es que alguna sabe aprovechar las lecciones que la experiencia agena (sic) presenta, vean por qué medios se desvanecen las más lisonjeras esperanzas, y cómo los errores de los hombres pueden hacer inútiles los más bellos presentes de la naturaleza. (ALAMAN, 1849, xii.)

Hay finalmente, además de las similitudes antes referidas, una coincidencia esencial entre ambos que posibilitó la reproducción y la sobrevivencia de sus narraciones. Los dos pertenecían a las élites sociales y políticas de sus respectivos espacios, lo que les VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 30

permitió el ejercicio de la opinión y la injerencia de ella en los procesos políticos más tangibles. Tenían a su disposición el “poder de la palabra”, hablada y escrita, y el acceso a las instituciones y los personajes que disputaban la dirección de los nuevos Estados nacionales. Son estos rasgos los que permiten definir a estos dos personajes como individuos y “autores” en solitario, e incluirlos en un campo más amplio de relaciones sociales y políticas que los determinan y que ellos mismo modifican. Pero desde otra perspectiva, son esos mismos rasgos, junto con sus productos historiográficos –que utilizan un lenguaje común– los que permiten agruparlos bajo una “teoría de la diferencia” que recorrió el mundo occidental durante el siglo XIX, y que a partir de la segunda mitad se consolidó en su forma racista.

Entre Varnhagen y Alamán, también existen divergencias, sin duda alguna. Cuando se habla de un “lenguaje común” se entiende un conjunto de recursos disponibles que fueron empleados en marcos sociales particulares y que exigían, por tanto, respuestas particulares. Es sobre esas posibilidades y esas respuestas que trata esta presentación.

El discurso nacional y la necesidad de civilización

Según los referentes europeos difundidos entre las élites letradas americanas, monárquicas o republicanas, dos imperativos se presentaban para argumentar la consolidación nacional. Por un lado, la configuración de un referente “original” que los separara delas antiguas metrópolis y proporcionara un camino propio como entidad nacional. En el caso del surgimiento de Brasil diversas opciones argumentativas fueron propuestas para establecer fronteras con una monarquía en donde no había mediado una ruptura violenta. Mientras que en el espacio recientemente tornado “mexicano” esa quiebra tenía como “testimonio fuerte” un movimiento armado, que fue uno de los temas que Alamán historiza en una de sus obras. Más allá de indagar en las consecuencias que ambos procesos implicaron en su formulación narrativa, hay que subrayar la necesidad de la separación.

Por otra parte, el segundo imperativo del momento era dotar a esa entidad de los atributos que otorgaban una calidad destacable a las naciones. No era suficiente el presentarse como un “pueblo” con cualidades propias, ese pueblo también tenía que ser una civilización. Según Valdei Lopes de Araujo, refiriéndose a las formas de la historiografía en Brasil durante la primera mitad del siglo XIX, el concepto de civilización remitía a los VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 31

triunfos intelectuales que una sociedad pudiera reivindicar mediante sus avances materiales y su consolidación institucional. El modelo para medir tales avances se encontraba del otro lado del Atlántico. (LOPES DE ARAUJO, 2008, 104-15). La edición de 1822 del Diccionario de la Lengua Castellana definía el término y otros adyacentes de la siguiente manera:

Civilización. Aquel grado de cultura que adquieren pueblos o personas, cuando de la rudeza natural pasan al primor, elegancia y dulzura de voces, usos y costumbres propios de gente culta. Civilizado, da. Adj. El que ya se ha acostumbrado al lenguaje, usos y modales de gente culta. Civilizarse. v. r. Suavizarse el lenguaje y las costumbres de pueblos o personas ruda, acomodándose al uso de gentes urbanas y cultas. Usase también como activo. (REAL ACADEMIA ESPAÑOLA, 1882)

El término estaba orientado a consolidarse como un adjetivo al que aspiraban las naciones recién fundadas. Había que comunicar la historia de una nación brasileña civilizada, de un México civilizado. Pensando en que el modelo de los atributos que constituían ese adjetivo estaba ajustado a la realidad europea, el problema era justificarlo en un “pueblo” heterogéneo, como era caracterizado el brasileño y el mexicano. Nuevamente, encontramos otro término que tiene que ser matizado. El concepto de “pueblo” dentro de este lenguaje definía al conjunto de grupos que constituían la esencia e individualidad de la nación, así como su evidencia más concreta.

Argumentar y dar sentido a esa homogeneidad constituía uno de los mayores retos de los historiadores aquí presentados, pues lo que les devolvía la realidad era lo opuesto, una heterogeneidad en donde, lo más grave, era “identificar grupos” que cargaban un atraso respecto de lo que prescribía el concepto de civilización. Los indios eran uno de esos grupos atrasados y con indicios de barbarie que era preciso transformar. Los negros eran, sobre todo en el caso de Brasil, el otro obstáculo para conseguir una armonía civilizada. A pesar de que para los historiadores aquí estudiados los dos “grupos” aludidos representaran un problema a resolver, hay que decir que no había un acuerdo sobre ello, otras posturas veían con ojos más positivos ese reto, y entendían que por méritos propios podía reivindicarse la presencia africana e indígena como parte de la nación.

El problema de los indios, la civilización y los jesuitas

La sección VIII del libro de Francisco Adolfo de Varnhagen fue dedicada a los “indios del Brasil en general” y abría con el siguiente párrafo: VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 32

En toda la extensión que hemos descrito no había poblaciones fijas y que mostrasen en sus habitantes rasgos de civilización permanente, ni siquiera en las sierras del sertão, en donde se halló algunas señas de cultura, siendo las casas de tierra, como las de los africanos menos civilizados, y los habitantes de ellas idolatras. (VARNHAGEN, 1854, 97)1

Refiriéndose al territorio “brasileño”, antes y durante el dominio portugués, Varnhagen describía un territorio sin ocupar por los indios, las poblaciones se distanciaban unas de otras mediando varias leguas de espacio vacío. La llegada de los africanos habría resuelto en algo el poblamiento de las tierras, pero su costumbre de levantar viviendas solo de tierra no habría contribuido a cultivar las formas civilizadas necesarias para arraigar ciudades. Los indios no habrían terminado por habitar del todo el territorio por la fragilidad de sus establecimientos, pero también por su inclinación por las luchas intestinas, que alentaban el nomadismo para arrebatar la tierra al contrincante. Y a lo expuesto, Varnhagen argumentaba:

Es conocido el axioma de la estadística que en cualquier país la población solo alcanza el debido desarrollo cuando los habitantes abandonan la vida errante o nómada para entregarse a la cultura de la tierra como viviendas fijas.

La población indígena estaba imposibilitada para convertir el territorio en un espacio de civilización, por su número –menos de un millón, según anotaba Varnhagen–, que no conseguía ocupar la amplitud del territorio del Brasil, por sus pugnas internas y particularmente por una incapacidad inherente:

Pues en esas almas, en las que predominaban los instintos de venganza, ningún sentimiento de abnegación se podía albergar a favor del interés común e de la posteridad. En los salvajes no existe el sublime desvelo que llamamos patriotismo, que no es tanto el apego a un pedazo de tierra, o a un barrio, (que ellos, por ser nómadas, no tenían), como un sentimiento elevado que nos impulsa a sacrificar el bienestar y hasta la existencia por los compatriotas, o por la gloria de la patria, con la única idea de que la posteridad será grata a nuestra memoria y a ella dará en este mundo la inmortalidad –que la fe promete para nuestras almas en el otro. (VARNHAGEN, 1854, 98)

Para Varnhagen estas señas identificaban una homogeneidad suficiente para hablar de una raza o una “gran nación”, pues, además de los rasgos antes mencionados, la lengua

1 Las traducciones del portugués al español son nuestras. VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 33

consolidaba la prueba de que existía un origen común entre los indios que habitan el Brasil. Esta unidad lingüista era para el letrado uno de los principios que habría posibilitado la colonización portuguesa de varios territorios. El dominio de la comunicación indígena por el mensaje cristiano sería la razón que aceleraría esa mudanza.

Fue la introducción del cristianismo lo que llevó a una trasformación de ese estado salvaje en el que los indios mantenían el territorio brasileño, y al que poco contribuyeron los africanos. De ellos, de los indios, no podía haber historia, pues no había medio “letrado” que transmitiera su origen y devenir, solo quedaba para ellos la etnografía, cuya posibilidad de conocimiento se reducía a la infantilidad de esos grupos. Al conocimiento por medio oral. Estos “infantes” y un territorio despoblado recibieron los portugueses cuando llegaron al Brasil. Es en este punto en donde la Compañía de Jesús aparece en el argumento de Varnhagen para favorecer la unidad brasileña.

Aunadas a las dificultades propias de las formas portuguesas para colonizar definitivamente aquel territorio, el letrado concluía: “Todo mostraba la necesidad de acudir con pronto remedio a la religión, poderosísimo agente de civilización y de moral.” (VARNHAGEN, 1854, 204) Los jesuitas fueron los agentes de este proceso civilizatorio. En su trabajo misionero y de conversión religiosa, avivaron no solamente en el “alma” de los indios el ideal civilizatorio, sino que materializaron la reunión del territorio brasileño. Salvador sería el núcleo del cual se extenderían los hilos para configurar la unión del pueblo brasileño. El padre Nobrega sería uno de sus impulsores esenciales al solicitar misioneros y enviarlos a extender el cristianismo:

Y con eso favoreció la unidad proverbial de la Compañía, contribuyendo mucho para favorecer también la del Brasil, estableciendo más frecuencia de noticias y relaciones de unas villas para otras, y contribuyendo con las pacificadoras palabras del Evangelio para establecer más hermandad entre los habitantes de las diferentes capitanías y para destruir el feo habito resultante de la falta de educación de los habitantes. (VARNHAGEN, 1854, 205)

Para explicar la situación crítica en la que se encontraba la nación mexicana algunas pocas décadas después de su independencia, Lucas Alamán entendía necesario referirse a un pasado mucho más lejano, a la llegada de los españoles y la conquista de México- Tenochtitlán. Teniendo como prolegómeno obligado, según la época, la descripción física del territorio, Alamán definía como diversas las naciones que lo habitaban, las del centro con un VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 34

cierto grado de civilización, mientras que las del norte en un estado de “completa barbarie”: Estos eran los pueblos que por sus leyes, instituciones políticas y conocimientos en la astronomía y en las artes, habían llegado a un grado más o menos elevado de civilización, especialmente los mejicanos, y todavía más el reino de Tezcuco, que, así como el de Tacuba, se hallaban unidos a aquellos por una especie de triple alianza, de que sería difícil encontrar otro ejemplo en la historia. (ALAMÁN, 1849, 5)

Como puede intuirse por sus enunciados, para Alamán, no obstante, esta civilización de los indios del centro, de los “mejicanos” –entiéndase mexicas– no alcanzaba a completarse del todo. La civilidad plena seria alcanzada con la enseñanza jesuita, no en las misiones, sino en sus colegios, en donde se educaba la élite del virreinato:

Pero en los colegios de la Compañía fue donde se dio mayor extensión a la enseñanza, pues además de la filosofía y la teología, se cultivaba en ellos las bellas letras, y muchas composiciones latinas en prosa y en verso que nos quedan de los discípulos que en ellos se formaron, prueban el buen gusto que se les inspiraba en las lecciones que recibían. La expulsión de los religiosos de esta orden en 1767 causó un atraso muy considerable en la ilustración, pues con ellos cesaron los colegios que tenían a su cargo, y aunque algunos siguieron administrados por el gobierno, estuvieron lejos de conservar el lustre que tenían. (ALAMÁN, 1849, 18)

Breves reflexiones

Lo anterior es solo una pequeña parte de un proyecto más amplio que busca entender la configuración de un lenguaje historiográfico alrededor de la producción de la diferencia social durante el siglo XIX en Latinoamérica. Dentro del estudio de ese lenguaje se busca poner especial énfasis en la conformación de enunciados que sirvieron para legitimar y dar sentido a las clasificaciones sociales. Al respecto, el vínculo entre la Compañía de Jesús, los indios y el concepto de civilización sigue funcionando en varios de los aspectos en los que fue formulado durante aquel siglo. Las líneas precedentes intentaron ser sólo una pequeña muestra de ello. VARNHAGEN Y ALAMÁN: DOS FORMAS HISTORIOGRÁFICAS EN AMÉRICA DURANTE EL SIGLO XIX ALFREDO NAVA SÁNCHEZ 35

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALAMÁN, Lucas. Historia de Méjico desde los rimeros movimientos que prepararon su independencia en el año de 1808 hasta la época presente, T.I, Ciudad de México, Imprenta de J.M. Lara, 1849.

LOCKHART, James. La formación de la sociedad hispanoamericana. In: Historia General de América Latina, Vol. II. Madrid. UNESCO/Trotta, 2000, p. 343-372.

LOPES DE ARAUJO, Valdei. A experiencia do tempo. Conceitos e Narrativas na Formação Nacional Brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008.

PALTI, Elías José. Lucas Alamán y la involución política del pueblo mexicano ¿Las ideas conservadoras “fuera de lugar”? In: ¿Las ideas fuera de lugar? Estudios y debates en torno a la historia político-intelectual latinoamericana. Buenos Aires: Prometeo, 2014, p.105-126.

REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Española. Sexta edición. Madrid. Imprenta Nacional. 1822.

ROCQUOI, Adeline. Tierra y gobierno en la península ibérica medieval. In: Las Indias Occidentales. Procesos de Incorporación Territorial a las Monarquías Ibéricas. Ciudad de México: El Colegio de México, 2012, p.45-69.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História geral do Brazil, T.I, Rio de Janeiro, E.e H Laemmert, 1854.

WEHLING, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. 36

Debates oitocentistas sobre a expansão territorial do Estado chileno rumo à Araucania

ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK Doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Professora Substituta de História da América da UFRJ. E-mail: [email protected]

Desde o século XVI, agrupações indígenas de forte ímpeto bélico representaram um empecilho à penetração colonizadora na porção austral do continente americano conhecida como Araucania1. Retratado por Alonso de Ercilla no poema épico La Araucana (1569-1589), o sangrento confronto entre índios mapuche2 liderados por Caupolicán e Lautaro e espanhóis conduzidos por Pedro de Valdivia foi responsável por interromper a expansão da colonização para além de cidades como Santiago (1541) e Concepción (1550). A insurreição geral dos mapuche levou o governador Francisco de Villagra a decretar, no ano de 1554, a evacuação forçada das cidades de Arauco, Santa Cruz, Osorno, Valdívia, La Imperial, Angol e Villarrica. Uma vez abandonada, esta última foi reduzida às cinzas pelos índios sublevados.

Graças à exploração de ouro e prata e ao comércio estabelecido com as cidades transandinas de Córdoba e Buenos Aires, Villarrica refloresceu em população e arquitetura. Mas, em fins de 1598, uma nova rebelião mapuche resultou na morte do governador Martin Oñez de Loyola, dando início a uma guerra que se estendeu ao longo de quatro anos. Devido às dificuldades de comunicação, a cidade se viu obrigada a enfrentar o inimigo indígena sem ajuda alguma proveniente do exterior. Ao enumerarem as dificuldades vividas pelos espanhóis durante esse período, os relatos sobre a resistência comandada

1 Situada a 667 km de Santiago, a Araucania possui como limites geográficos o Bío Bío ao norte, a região dos Lagos Andinos ao sul; a leste a República Argentina e a oeste o Oceano Pacífico.

2 Sobre as duas designações possíveis para referir-se aos habitantes da Araucania, mapuche e araucanos, Jacques Rossignol esclarece que “Los indígenas se designaban a si mismos como mapuches u hombres de la tierra (che: gente, hombre; mapu: tierra.” (ROSSIGNOL, 2007) DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 37

pelo corregidor Rodrigo Bastidas converteram Villarrica em um importante símbolo do poderio mapuche em terras austrais, assim como transformaram em heróis aqueles que perderam suas vidas defendendo a cidade.

A incessante resistência indígena, a ameaça de invasões holandesas e inglesas e a atuação de missionários jesuítas, dentre os quais se destacou Luis de Valdívia (1560-1642), contribuíram para que o projeto de submissão forçada e de extermínio cedesse progressivamente espaço para uma estratégia de colonização evangelizadora e pacificadora, denominada de “guerra defensiva”.

Um episódio que elucida essa mudança de postura por parte dos espanhóis foi a celebração das Paces de Quilín, entre 5 e 6 de janeiro de 1641. “Dar las Paces” significava realizar um acordo ou tratado internacional entre “Estados soberanos” representados por seus príncipes, no intuito de pôr fim a guerras e conflitos, estabelecer uma convivência tranquila e harmoniosa e determinar os limites dos domínios (BENGOA, 2007). Portanto, o Tratado de Quilín consistiu em uma “capitulação de paz” estabelecida em assembleia (em espanhol, parlamento) pelo governador D. Francisco López de Zúñiga, representante da Coroa espanhola, e Lincopichón e Butapichón, representantes dos “Índios Araucanos do Reino do Chile”.

Ao atuarem como signatários das Paces, os chefes mapuche assumiram o mesmo estatuto jurídico dos demais dignitários e príncipes europeus: tornaram-se vassalos livres do rei espanhol; adquiriram uma espécie de “cidadania”, galgando o direito à independência sem ter que pagar tributos ou ser submetidos; foram protegidos pelo juízo formal contra a guerra injusta e a escravização.

No entanto, é importante fazer uma ressalva que diferencia as Paces dos tratados comuns à época: os mapuche não firmaram nenhum documento, já que sua cultura era ágrafa; o ritual e a cerimônia do parlamento foram determinantes para agregar valor ao que estava sendo acordado. Como esclarece Bengoa, “Quilín […] se puede entender como el primer encuentro entre mapuche e hispánicos, donde más que las palabras fueron los gestos los que dominaron y surtieron efecto.” (BENGOA, 2007, p.87)

Ainda que possamos relativizar o real efeito exercido sobre a contenção guerras na DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 38

Araucania, o Tratado de Quilín possui um significado histórico inestimável. Foi responsável não apenas por estabelecer o rio Bío Bío como linha de fronteira e limite da ocupação espanhola, mas também por institucionalizar a celebração de parlamentos entre os mapuche e representantes do poder hispanocriollo. Dessa forma, reconheceram-se os nativos como interlocutores políticos, dotados de direitos e de condições para negociar com as autoridades coloniais, e como legítimos proprietários dos territórios ancestrais, instituindo assim sua soberania formal sobre os territórios situados ao sul do Bío Bío.

É importante salientar que os parlamentos implicaram importantes transformações nas estruturas objetivas e nas formas de definição identitária das populações indígenas na Araucania. À época da conquista, sua organização sociopolítica caracterizava-se pela dispersão e pela presença de múltiplas parcialidades, dissociadas de uma instituição política central. Inexistia assim a figura de um chefe que exercesse um poder de representação permanente, a exceção dos períodos de guerra, quando um toki era eleito (BOCCARA, 2002). As unidades políticas autônomas, os rewe e os ayllarewe, compreendiam múltiplos nexos endogâmicos.

Na época colonial, a prática dos parlamentos resultou no reordenamento das alianças grupais, que adquiriram um maior grau de institucionalização e de permanência. Enquanto dispositivos de controle estatal e espaços de imposição da norma jurídico- política hispanocriolla, os parlamentos foram responsáveis por fixar realidades e imobilizar as identidades indígenas. Os ayllarewe foram reunidos em unidades políticas macrorregionais, os butalmapus ou fütanmapus, que dividiram a Araucania em três grandes espaços longitudinais. Cada uma tinha uma grande chefe (apoulmen), que congregava seus índios (mapuche) para combater os espanhóis (wingkas).

Conforme se se faziam mais complexas, as relações fronteiriças exigiram que os indígenas se agrupassem em comunidades formais e até mais centralizadas, dirigidas por um só interlocutor respeitado e obedecido por todos os integrantes da agrupação. Com estes novos líderes, os colonizadores – isto é, as entidades burocráticas encarregadas das relações fronteiriças e da administração dos territórios indígenas (os capitães de amigos, comissários de nações e lenguaraces) – poderiam verdadeiramente “fazer política” (VILLALOBOS, 1982). DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 39

A mudança estrutural da sociedade mapuche tornou visível para os conquistadores a possibilidade de explorar alianças e divergências entre os diferentes grupos indígenas, exacerbando sua fragmentação. A convocatória regular dos parlamentos obrigou os butanmapus ou fütanmapus a institucionalizar mecanismos de delegação de poder. Os chefes nativos converteram-se em “caciques embaixadores”, criando unidades indígenas segmentadas que logo seriam absorvidas pelo Estado. Tal processo de etnificação levou à agrupação arbitrária dos nativos em categorias externas ao seu mundo e atreladas à territorialidade por eles ocupada: costinos, abajinos, arribanos, pehuenches e huilliches.

Fato é que, no início do século XIX, importantes mudanças encontravam-se cristalizadas no seio da sociedade mapuche (BECHIS, 1999). Não se pode negar que a consolidação das relações fronteiriças, o desenvolvimento da economia ganadeira mercantil, a introdução da prática agrícola e a intensificação do comércio também fomentaram o surgimento de matizes distintos nas comunidades indígenas nas porções ocidental e oriental da Cordilheira dos Andes.

Em primeiro lugar, a organização social tornara-se estratificada e assentada em relações de subordinação entre os mocetóns, lanzas ou conas (guerreiros) e os longkos: homens de bom juízo e razão, generosos, possuidores do dom da oratória e conhecedores das famílias aliadas e da parentela. Consolidaram-se nesse momento chefaturas centralizadas, dotadas de pouco poder institucional ou coercitivo, mas de grande capacidade de dominação pessoal, de administração dos assuntos internos à comunidade e de processamento de informações intra e inter étnicas. Imbuídos de maior responsabilidade executiva e organizativa do que deliberativa, os longkos representaram a consolidação de uma sociedade indígena de caráter segmental, baseada no exercício multitudinário da soberania e em formas difusas, coletivas e centrífugas de poder político.

A diplomacia fronteiriça ao longo do século XIX esteve, pois, atravessada pelo peso dessas “autoridades pessoais”, o que implicou a produção de acordos entre “partes” constantemente revogados e renovados. As redes de intercâmbio de sujeitos, bens materiais e apoios políticos e militares entre as chefaturas mapuche e destas com as autoridades criollas foram reguladas por instâncias de poder conhecidas como secretarias mapuche (OJEDA, 2008). Verdadeiras fábricas epistolares, eram constituídas por um núcleo burocrático de lenguaraces, escrivães e longkos, expressando o caráter coletivo e mediado assumido pela escritura em uma cultura indígena tradicionalmente oral. DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 40

Diante do escasso domínio do castelhano por parte dos longkos ou do simples interesse em manter o distanciamento interétnico, os lenguaraces e escrivães adquiriram um papel central no processo de escritura, leitura, transcrição e tradução de documentos impressos no espaço político mapuche.

Geralmente criollos cativos ou refugiados e índios alfabetizados, foram responsáveis por ler, explicar e redigir as correspondências e tratados. Indicadores de prestígio e íntimos das práticas culturais ocidentais, garantiam o melhor posicionamento dos grupos indígenas perante as autoridades governamentais a partir do desenvolvimento de uma política autônoma e coerente (ZÁVALA, 2005). Dessa forma, estes podiam aspirar à manutenção de sua autonomia territorial, mediante a celebração de formas não violentas de acordos ou de “tratados de paz”.

A imagem do índio mapuche foi recuperada de maneiras bastante distintas pelo discurso político criollo ao longo do século XIX, visando ao aproveitamento de sua máxima funcionalidade para o impulso do processo de construção do Estado nacional chileno. No contexto da independência, por exemplo, os dirigentes patriotas retomaram, ainda que emblemática e alegoricamente, as figuras dos guerreiros mapuche Lautaro e Caupolicán, reforçando o seu espírito libertário, indômito e valente. A Guerra de Arauco do século XVI e o passado pré-hispânico são vistos como elementos potencialmente articuladores do discurso emancipador, que, revestido de densidade histórica, torna-se capaz de mobilizar os homens em torno da emancipação política e da luta anticolonial (CASANUEVA, 1998).

A criação do primeiro escudo nacional, no qual figuravam um casal de índios representando a Nação chilena “em glória e majestade”, e o surgimento das Logias Lautarinas, agências propagadoras do pensamento emancipacionista (assim batizadas em homenagem a Lautaro), atestam a carga ideológica positiva associada aos mapuche. Determinadas ações políticas também refletiam esse estado de espírito dos patriotas.

Embora na prática se considerasse necessário submeter os nativos ao paternalismo e à tutela do Estado, também a proposta de concessão de um canal de expressão política para os indígenas na Nação chilena em vias de gestação esteve presente. Contudo, à exceção dos abajinos, os mapuche alinharam-se ao bando realista, mantendo os compromissos contraídos com os espanhóis no período colonial e combatendo os patriotas no sangrento conflito conhecido comoGuerra a Muerte (RODRIGUEZ, 2003). DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 41

O que à primeira vista pode parecer ingenuidade ou estupidez dos nativos, revela na realidade a posse de uma consciência política. Na lógica indígena, seria mais conveniente reforçar os acordos reafirmados com as autoridades espanholas nos subsequentesparlamentos , que fixavam a fronteira rio Bío Bío e atribuíam ao território mapuche umstatus jurídico independente, do que aventurar-se em uma aliança sem precedentes com os criollos.

A pesquisa documental realizada aponta para o fato de que, no contexto anterior à expansão territorial do Estado moderno chileno, a questão indígena não fomentou discussões significativas em termos da aprovação de legislações nacionais, tal como ocorreu no caso argentino. Repercutiu, sobretudo, no âmbito militar e da imprensa, daí a centralidade adquirida pelos relatos expedicionários, pelos ofícios expedidos pelo Ministério da Guerra e pelos periódicos enquanto formadores de opinião pública e fomentadores de debates políticos.

Nutrido desde o contexto da transição republicana, o discurso depreciativo em relação aos mapuche tardaria ainda algumas décadas para suplantar a política governamental que rechaçava a resolução da questão de Arauco pela via militar, privilegiando os meios pacíficos como forma de se relacionar com os indígenas.

Para além das questões ideológicas que envolviam a construção de um Estado moderno, segundo os exemplos fornecidos pela Europa do Norte e pelos Estados Unidos, enfrentar os indígenas fazia-se urgente diante da intranquilidade das populações fronteiriças e do estremecimento das relações diplomáticas com a Confederação Argentina, em virtude da fundação de Punta Arenas no ano antecedente. Ademais, a descoberta do ouro na Califórnia trouxera a propriedade agrícola para o centro dos interesses mercantis, gerando uma inédita expansão das exportações chilenas e tornando tal atividade econômica altamente rentável. Foi nesse contexto que o presidente Manuel Bulnes (1841-1851), consagrado general e membro do Partido Conservador, nomeou o ex-Ministro da Justiça, Culto e Instrução Pública Antonio Varas como “visitador judicial” do território araucano.

Antonio Varas viria a ser um personagem central no desenvolvimento da política estatal de colonização. Em 1850, enquanto Ministro do Interior e das Relações Exteriores, fomentou a criação de uma colônia modelo para famílias alemãs nas proximidades da lagoa de Llanquihue. DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 42

Ficou também conhecido no meio político por compartilhar suas doutrinas com Manuel Montt, sucessor de Manuel Bulnes na Presidência da República (1851-1861). Junto a este, fundou em 1857 o Partido Nacional ou Monttvarista, dissidência do Partido Conservador.

A partir do resultado de suas próprias observações, ilustradas pela experiência de indivíduos acostumados a viver entre os indígenas, Varas redigiu um informe à Câmara dos Deputados, com o objetivo de expor a conveniência de estabelecer um regime especial de governo dos territórios habitados por indígenas não reduzidos3.

Segundo Varas, a estrutura administrativa dos territórios indígenas estabelecida pelo regime espanhol havia sido mantida praticamente intacta nas primeiras décadas de construção do Estado chileno. As parcialidades mapuche em contato imediato com os criollos tendiam a reconhecer as autoridades constituídas ao longo dos três séculos de relações fronteiriças, a exemplo dos comissários, capitães de amigos, intendentes e comandantes de praças. O que não significava dizer que estivessem submetidas ao regime constitucional e às demais autoridades republicanas, pois gozavam de isenções particulares e de privilégios instituídos nos parlamentos coloniais, como o reconhecimento da independência de seus territórios ao sul do rio Bío Bío. Torna-se bastante evidente a permanente disputa travada entre criollos e indígenas pelo exercício do poder e da soberania sobre determinadas porções territoriais.

Entretanto, afirmava o visitador, a situação tornava-se ainda mais complexa nas localidades distantes da linha de fronteira. Nelas, o respeito aos funcionários e o grau de influência de que gozavam os nativos debilitavam-se visivelmente, já que o espírito guerreiro e independentista se encontrava mais arraigado entre eles.

Varas apostava que a solução para a incorporação formal da Araucania à jurisdição do Estado chileno estaria na civilização e na redução dos seus habitantes. Ciente de que a localidade visitada não reunia as condições requeridas para a implantação do regime constitucional e tendo como exemplo a bem sucedida experiência norte americana, propunha o estabelecimento de um regime excepcional comandado por autoridades dotadas de funções especiais. Varas considerava o uso da força uma flagrante injustiça,

3 “Informe presentado a la Cámara de Diputados por Don Antonio Varas, visitador judicial de la República en cumplimento del acuerdo celebrado en la sesión del 20 de diciembre del año de 1848, sobre la reducción pacífica del territorio araucano”. DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 43

que contribuiria apenas para acentuar seu caráter “bárbaro” e sua atuação bandoleira, semeando o terror entre as populações fronteiriças.

Mesmo assumindo um discurso de tom tutelar e paternalista, que acentuava a ingenuidade, a menoridade e a credulidade dos indígenas, é interessante mencionar que Varas não abre mão de caracterizá-los de forma animalesca, na medida em que seriam igualmente dotados de um caráter altivo que precisaria ser “domado”. O entendimento de que a humanidade caminhava em uma marcha linear ascendente e irrefreável e de que os grupos humanos poderiam ser escalonados em termos raciais e culturais integrava o espírito da época, servindo de base para que os intelectuais direcionassem suas medidas políticas fundamentalmente a suprimir a distância ou a diferenciação entre “bárbaros” e “civilizados”.

Contudo, Varas acreditava que, mesmo quando submetidos à empresa civilizadora e conversora, os nativos poderiam cometer depredações contra as propriedades chilenas, sendo assim pouco confiáveis. Segundo ele, a “inconstância da alma selvagem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011) tornava imprevisível o comportamento dos araucanos: a indiferença, a incredulidade e a recusa faziam com que facilmente perdessem a nova roupagem adquirida a partir do contato com os criollos e retornassem aos costumes originários.

Dessa forma, é compreensível a ideia de Varas de que “las autoridades de la frontera se porten como tales con los indígenas, que los traten con benevolencia, pero sin minguar el poder que representan”. Portanto, ao fim e ao cambo, seu projeto de civilização não prescindiu da atuação da força militar de fronteira, “no para que obre contra los indígenas, para que les haga guerra, sino para que imponga, para dar peso a las resoluciones y eficácia a las providencias”. O exercício da autoridade protetora caminharia lado a lado ao poder de repressão das sublevações.

Ao analisar o regime excepcional ao qual estariam submetidos os territórios indígenas, o visitador defende que a direção do governo fosse assumida por intendentes ou superintendentes, comandantes, capitães de amigos e comissários. Em conjunto com missionários, professores e imigrantes estrangeiros, essas autoridades atuariam em prol da civilização e da redução dos mapuche, nunca perdendo de vista que “las circunstancias de los gobernados son especiales, y los medios de gobernarlos, por necesidad, han de ser especiales”. DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 44

Protetor dos indígenas e autoridade superior, o intendente seria responsável por estudar a situação da terra e o caráter dos caciques, além de exercer vigilância ativa sobre os funcionários, reprimindo abusos e injustiças cometidos. Dotado de um poder análogo ao do intendente, embora em um territorial âmbito mais restrito, o comandante reuniria em si a autoridade militar, jurídica e política, assumindo o caráter de juiz e inspetor. Os capitães de amigos, como agentes subalternos do comandante, estariam encarregados da constante vigilância, do estudo e da observação das parcialidades indígenas, prezando por conhecê- los individualmente, por cultivar sua índole e comprimir suas más inclinações. Por fim, os comissários estariam a serviço das populações criollas e indígenas nos pontos fronteiriços, regulando seu contato e sua relação imediata.

A partir da década de 1850, tornam-se visíveis a radicalização da linguagem política empregada para referir-se aos mapuche e o crescimento do sentimento contrário ao indígena no seio da sociedade chilena. O “aprisionamento” dos nativos entre dois focos expansivos de colonização, a partir da chegada dos primeiros colonos alemães a Valdívia, Puerto Octay e Puerto Montt (BENGOA, 2014), assim como os inúmeros incidentes envolvendo criollos e araucanos nas áreas de fronteira, geraram uma tensão irredutível que encontraria sua válvula de escape no delineamento de propostas de conquista militar da Araucania.

O naufrágio do brigue Joven Daniel nas praias de Puancho (Valdívia), em julho de 1849, suscitou boatos dramáticos e repletos de requintes de crueldade, que atribuíam aos mapuche a responsabilidade pela matança dos marinheiros e pelo rapto da passageira Elisa Bravo. A investigação acerca da veracidade de tais acusações coube ao general José María de la Cruz, enviado especial do Departamento de Guerra e Marinha à Araucania.

Ao longo de sua carreira militar, Cruz participou ativamente das guerras de independência, destacando-se por sua atuação no exército de José de San Martín. No plano político, foi intendente de Valparaíso e de Concepción; em 1851, foi escolhido pela oposição penquista4 como candidato à Presidência da República, fazendo frente à candidatura de Manuel Montt.

Segundo a historiografia chilena, as ideias conservadoras do general Cruz nãose contrapunham àquelas sustentadas pelos partidários de Montt. Nesse sentido, algumas questões teriam sido determinantes para a formação de uma coalizão favorável à

4 De Concepción. DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 45

indicação de Cruz. Em primeiro lugar, muitos conservadores desconfiavam de Montt: este pertencia a um círculo político do qual não eram afeitos e não se demonstrava moderado ou conciliador. Em segundo lugar, jovens liberais consideravam-no inimigo das liberdades políticas. Por fim, o espírito provincial de Concepción rivalizava com Santiago pela criação de um novo centro de ação para a República.

Na Memória redigida a partir das observações feitas em sua expedição, Cruz (2013) constata a ausência de evidências que comprovassem os assassinatos atribuídos aos nativos. Contudo, o verdadeiro valor de seus informes está em fornecer um detalhado esboço da situação das forças defensivas e das posições políticas assumidas pelos principais longkos da região.

Levando em consideração a tradição de alianças entre abajinos e criollos e a desconfiança preservada pelos arribanos em relação às autoridades republicanas, o general externa sua preocupação frente ao aumento de prestígio do longko arribano Juan Mañil Bueno (também conhecido como Manguil Wenu). Dotados de consciência política, os indígenas se faziam temer por sua capacidade de organização e mobilização. Intranquilizava-o também a já referida “inconstância” dos mapuche, que tornava imprudente a confiança integral em seus compromissos de paz e amizade. Com base nesses argumentos, o general encontra justificativas para o aumento das guarnições na linha de fronteira.

Cruz visivelmente atribui ao poder militar as funções de reduzir e submeter das tribos indígenas da Araucania. Diante da constante ameaça de depredações e rebeliões, julgava necessária uma força capaz de neutralizar seu instinto bélico. Somente a partir daí estaria assegurada sua possibilidade de civilização e moralização por vias pacíficas.

O perigo de uma sublevação mapuche previsto por José Maria de la Cruz viria a concretizar- se dois anos depois e, curiosamente, a partir do envolvimento político do próprio general. A vitória de Manuel Montt sobre Cruz nas eleições presidenciais resultou na declarada oposição da província de Concepción ao governo santiaguense. Junto às forças penquistas lideradas por Cruz lutaram determinadas parcialidades mapuche; estas viriam a ser derrotadas por Manuel Bulnes no emblemático Combate de Loncomilla, em dezembro de 1851.

O incidente de 1851 chama mais uma vez atenção para o caráter conflituoso e instável DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 46

da Araucania. Enquanto espaço fronteiriço dinâmico, possuía uma singularidade identitária, mesclando elementos econômicos, culturais e materiais variados. Constituía um submundo regido por suas próprias regras éticas e sociais, convertendo-se em uma área apartada do mundo estatal. Tal conjuntura tornou corriqueiro o estabelecimento de alianças entre montoneros – chefes militares originários da guerra de independência – e os mapuche, que se envolvem nas lutas políticas internas do país impulsionados por necessidades e interesses específicos de cada parcialidade indígena.

A adesão dos araucanos à revolução de 1851 e sua negativa repercussão entre as populações fronteiriças reforçaram, tanto para a intelectualidade como para a opinião pública, a importância da adoção de uma política de institucionalização do poder estatal na Araucania. É sob essa ótica que podemos interpretar a criação da Província de Arauco, no ano de 1852, medida que evidenciou o início de uma atitude mais incisiva por parte do Estado chileno no sentido de assegurar sua jurisdição na zona fronteiriça.

A partir de então, segregaram-se de Concepción os territórios indígenas situados ao sul do Bío Bío e ao norte da província de Valdívia, assim como os departamentos e as comunas vizinhas que, a juízo do Presidente da República, conviessem ser incorporados. Los Ángeles foi erigida como capital da nova província e o rio Bío Bío taticamente reconhecido como limite territorial. O trecho situado entre os Andes e a encosta oriental da Cordilheira de Nahuelbuta foi denominado “alta fronteira” e o seguinte, até chegar ao mar, “baixa fronteira”.

Ao estabelecer-se em lei que “los territórios habitados por indígenas i los fronterizos, se sujetarán a las autoridades i al régimen que, atendidas las circunstancias especiales, determine el Presidente de la República”, converteu-se a Araucania em “zona de exceção”. É nítida a influência exercida pelas opiniões defendidas por Antonio Varas em seu informe de 1849 na criação da Província de Arauco, já que estas legitimaram juridicamente as ações intervencionistas sobre a região.

Todavia, nem mesmo ao submeter a Araucania à jurisdição militar o Estado chileno foi capaz de neutralizar a autonomia dos mapuche. Como evidência, pode-se citar o envolvimento indígena na nova revolta contra o governo de Manuel Montt, ocorrida em 1859. Na ocasião, a Fusão Liberal-Conservadora deu início a uma campanha de resistência constitucional que se converteu em uma revolução armada. A estratégia adotada foi o fomento de insurreições DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 47

urbanas e da atuação de bandos guerrilheiros no Vale Central. Nessa ocasião, vislumbrando a oportunidade de barrar a infiltração de colonos para além do Bío Bío, osarribanos liderados por Juan Mañil Bueno engajaram-se nas montoneras organizadas por haciendados, que armavam rudimentarmente os camponeses.

A ação dos mapuche em Concepción foi acompanhada de perto por muitos homens que haviam se estabelecido na Araucania, com o intuito de evitar o enfrentamento com a justiça. Dentre eles, destacou-se o caudilho Bernardino Pradel. Acolhido por Mañil Bueno, Pradel possuía muita influência e prestígio entre os mapuche; por essa razão, partidários de Montt enfatizavam sua participação na revolução e consideravam-no instigador das sublevações, condenando a sua permanência em território araucano. Todavia, o caudilho dizia-se vítima de infames intrigas políticas por parte do governo”, já que, ao se ver como “árbitro” das relações entre os indígenas e o governo nacional, atribuía a si o papel de conter as depredações.

De todos os modos, os episódios ocorridos na fronteira araucana ao longo da década de 1850, culminados com a revolução de 1859, foram responsáveis por um sentimento coletivo de dignidade nacional maculado pelos mapuche. A perda de vidas e os demais prejuízos causados aos povos fronteiriços foram convertidos em justificativa para o aumento do contingente militar e para o avanço da ocupação do território.

A imprensa certamente constituiu um dos mais profícuos canais de expressão e de disseminação do vocabulário político depreciativo do indígena na América Hispânica. No que diz respeito ao caso chileno, os jornais que tiveram uma atuação de destaque nesse debate foram El Mercurio de Valparaíso, El Ferrocarril de Santiago, El Correo del Sur de Concepción, La Tarántula de Concepción e El Meteoro de Los Ángeles. Citemos alguns exemplos que elucidem a atuação dos periódicos chilenos junto à questão de fronteiras no país.

Em consonância com o espírito da época, El Correo del Sur valeu-se do emprego de uma linguagem política que recorria aos conceitos antitéticos e assimétricos “civilização e barbárie” (KOSELLECK, 2006) para delinear uma imagem negativa dos indígenas, legitimando assim sua submissão ao poder estatal. É nesse sentido que o autor de “Colonias de Araucania” faz a seguinte afirmação:

Esto en cierto modo es pagar un tributo y no deja de ser bastante original, por no decir vergonzoso, DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 48

que una nación civilizada y poderosa, como lo es Chile con respeto a los araucanos, se vea obligada a guardar consideraciones, a halagar y a respetar a un pueblo débil, bárbaro y sin recursos de ninguna especie, por temor de sus piraterías que, a pesar de todo, continuamente sufre. Por esto es de necesidad urgente hacer desaparecer este borrón de nuestro solo, utilizando al mismo tiempo en provecho de sus habitantes y de Chile, uno de los países más hermosos del mundo (EL CORREO DEL SUR, no509, 28 de junho de 1855).

Contudo, não deixa de ser significativo o fato de que o vocabulário que maculava a imagem dos araucanos tenha aparecido no periódico – ainda que de modo esporádico e pontual – combinado à crença na possibilidade de civilizá-los, de transformá-los em “cidadãos chilenos” e de estabelecer negociações frutíferas entre criollos e longkos.

Já na visão dos autores de El Mercurio, a submissão da barbárie indígena à civilização criolla não poderia prescindir da imposição da soberania nacional sobre a Araucania e seus habitantes, que “no solo la desconocen, sino que se mantienen dispuestos a hostilizarnos, y a caer como enemigos implacables sobre poblaciones cristianas indefensas”(EL MERCURIO, no 8591, 13 de março de 1856).

Sob essa ótica, três séculos de experiência demonstrariam a irredutibilidade dos mapuche por meios pacíficos e a ineficácia da bondade ou da predicação. Recorre-se então à reprodução de relatos que acabavam por animalizar os indígenas, ao descreverem as inúmeras agressões supostamente sofridas pelos criollos. Como exemplo, podemos citar um trecho da carta dirigida por Jerónimo Aguero, importante proprietário de terras de Valdívia, ao redator do periódico:

Como estaba yo tendido las olas me mojaron y me volvieron al conocimiento, encontrándome entonces con las manos atadas por detrás, y un indio cortándome al palto por el lado derecho del pecho, obedeciendo a la voz de otro que le mandaba me sacase el corazón, mientras que uno levantaba los laques para darme en la cabeza, pues las órdenes del jefe eran pega mata y aun intentaron amarrarme los pies: en estos momentos vi que a mi compañero lo sacaban a uno muerto y arrastrándolo del agua; yo entonces, perdida la esperanza de vivir, empecé a amenazar en su idioma, diciéndoles, que el pueblo de Valdivia y algunas tribus de indios castigarían su crimen; esto, unido a la circunstancia de que la canoa, doblando una punta, se presentó a nuestra vista a unas cuarenta varas de distancia, les hizo desistir de su intento […] Mi compañero se había visto en circunstancias peores que las mías: después de haberlo votado al lago, aturdido por los muchos golpes y heridas, lo sacaron para degollarlo, empezando a cortarle la corbata que tenía puesta, y él, tomando el cuchillo con la mano derecha, consiguió quebrarlo, rebanándose los dedos hasta el hueso (EL MERCURIO, no 8867, 3 de fevereiro de 1857).

Entra aqui em cena uma linguagem política que, distanciando-se do discurso poético que exaltava o caráter heroico e libertário dos mapuche, buscava justificar a aniquilação da “barbárie”: DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 49

Aniquilad, extirpad la barbarie y tendréis en lugar suyo la civilización; pero es preciso antes imposibilitar la reaparición de aquel elemento destructor. Los hombres no nacieron para vivir inútilmente y como los animales selváticos, sin provecho del género humano; y una asociación de bárbaros, tan bárbaros como los pampas o como los araucanos, nos es más que una horda de fieras, que es urgente encadenar o destruir en el interés de la humanidad y en bien de la civilización (EL MERCURIO, no 9505, 24 de maio de 1859).

É importante ressaltar que, dentre os periódicos analisados, a Revista Católica consistiu em um exemplo de “voz dissidente” no interior da imprensa chilena. Porta-voz oficial do Arcebispado de Santiago entre os anos de 1843 e 1894, atuou como plataforma de difusão dos dogmas e posturas da Igreja Católica, combatendo a propagação das ideias liberais e a destruição dos valores cristãos entre a população chilena. Seu corpo de redatores era formado por membros do clero, em sua maioria professores do Seminário Pontifício; seu diretor e fundador foi o arcebispo Rafael Valentín Valdivieso.

A análise dos textos publicados revela que o ponto central da argumentação da Revista Católica consistia na distinção entre os conceitos de conquista e civilização:

La conquista es la usurpación a mano armada: es la guerra del fuerte contra el débil, guerra inicua e inhumana: es una violación flagrante de los principios más obvios de equidad i justicia; es, en fin, un ataque directo contra la propiedad, libertad e independencia de un pueblo que, por bárbaro que se suponga, no puede ser despojado de sus legítimos i naturales derechos. Con razón, pues, se ha hecho tan odiosa i antipática, la palabra conquista para todo corazón recto, noble i generoso. La civilización es todo lo contrario. Traer a los barbaros por medio de la persuasión a la vida civil, ilustrar su entendimiento, mudar su corazón, reformar sus costumbres, respetando siempre sus derechos: ¡oh esto sí, que es sobremanera laudable i meritorio! Esta es la obra grandiosa de la caridad i del patriotismo (REVISTA CATÓLICA, no 590, 18 de junho de 1859).

Conquista e civilização são interpretados enquanto fenômenos históricos opostos. Consistindo na agressão do forte contra o débil, aquela requeria apenas a presença de um exército numeroso, apto a consumar sua ação destrutiva em um breve espaço de tempo. Já esta – a civilização – é interpretada como uma tarefa árdua, pois visava a transformação moral dos indígenas, levando ao progresso de sua cultura “atrasada e rudimentar”. Uma empreitada de tal dimensão demandaria “fervor apostólico” e “heroicos sacrifícios”. Por isso, a responsabilidade por sua concretização era atribuída àqueles que se autodenominavam “civilizados” e que haviam abraçado a religião como sua “profissão de fé”.

Para a Revista Católica, por mais que se mostrasse conveniente e necessário fazer DEBATES OITOCENTISTAS SOBRE A EXPANSÃO TERRITORIAL DO ESTADO CHILENO RUMO À ARAUCANIA ALESSANDRA GONZALEZ DE CARVALHO SEIXLACK 50

desaparecer a “barbárie” indígena do coração da República, o emprego da coerção e da força visando a tal fim transcenderia o princípio da justiça. Isso porque considerava-se que toda e qualquer empreitada voltada para a ocupação militar do território araucano resultaria inevitavelmente na declaração de guerra e no extermínio dos araucanos.

Inserido em um meio intelectual predominantemente hostil, o periódico do Arcebispado de Santiago manifestou um discurso religioso que retomava o par conceitual “civilização e barbárie” e o tom paternalista presentes nas décadas anteriores. Constituía-se, assim, uma “voz dissidente” de tom conservador, mas que ao menos direcionava um olhar mais humano ao mundo indígena:

Contudo, ao que tudo indica, a Revista Católica foi uma das poucas manifestações públicas contrárias à conquista militar da Araucania. De fato, os mapuche pareciam haver perdido o apoio consistente na sociedade chilena. Em fins da década de 1850, os “nobres filhos de Caupolicán e Lautaro” haviam sido convertidos no âmbito da opinião pública em “índios bárbaros e sanguinários”. E tal transformação discursiva refletiu a capacidade da palavra em atuar sobre o campo da ação. A propagação de tal estereótipo criou o ambiente propício para a institucionalização da política estatal de expansão territorial. Reforçou a discussão em termos bélicos sobre a conquista de Arauco, justificando assim a guerra de fronteira a ser colocada em prática a partir da década seguinte.

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Descolonialidade do Poder: Pluralismo Jurídico e autonomia indígena no Estado Plurinacional da Bolívia

ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestre em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutoranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História Política Social da UFES. Email: [email protected]

O surgimento de novas configurações estatais baseadas no modelo plurinacional, levadas a efeito como resultado da luta de movimentos étnicos presentes em países latino-americanos como a Bolívia e o Equador que, por meio de suas constituições, acabaram por causar reflexões sobre o a própria ideia de Estado Nacional Moderno, com o objetivo de ampliar os espaços para o pluralismo jurídico, à autonomia de grupos étnicos situados dentro do território nacional, além de estabelecer lugar de destaque para as cosmovisões indígenas em seus textos constitucionais tem sido analisados pelo campo jurídico e político como uma revolução da própria percepção de Estado, bem como de conceitos como soberania, democracia e autodeterminação. Para chegar a este panorama, tais Estados, como a Bolívia e o Equador, foram palco de movimentos que se fortaleceram ao longo do século XX, principalmente após os anos finais da década de 1970, dando espaço ao que ficou conhecido como “ressurgimento indígena” com o crescimento de organizações, de manifestações e reivindicações por uma sociedade onde as maiorias excluídas fossem enfim consideradas jurídica e politicamente, “quebrando” a ideia de Estado Nacional étnica e culturalmente homogêneo.

Tal processo, que ficou conhecido como “Novo Constitucionalismo Latino Americano”, não concentra sua originalidade na formação de Estados plurinacionais, visto que a existência de tais Estados não é algo novo no cenário internacional. O que emerge como DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 53

aspecto inovador destas constituições se encontra na formação de Estados Plurinacionais fundamentados na ideia do estabelecimento de ordenamentos jurídicos e aparelhamento estatal com o intuito de possibilitar o funcionamento da sociedade baseando-se na realidade pluriétnica e no respeito às autonomias, rompendo com a tradição acadêmica, histórica e jurídica que por meio da política e do direito interno e externo interpretam os Estados como configurações baseadas na homogeneidade das relações entre os indivíduos e o Estado, bem como na unicidade do modo de aplicação dos ordenamentos jurídicos nacionais, desconsiderando as diferentes etnias presentes dentro de um mesmo território. Assim, a configuração dada aos Estados nos manuais de Direito e Política, ao estabelecer a tríade “território, população e soberania”, foi modificada por ordenamentos como o originado pela Constituição Boliviana de 2009, visto que tal documento estabeleceu o reconhecimento de várias “nações” indígenas dentro do território estatal.

Ademais, a complexidade e originalidade dessas novas legislações e consequentemente desses novos Estados baseados no reconhecimento de autonomias, exigem análise da política estatal quanto aos indígenas tendo como fundamento conceitos como identidade nacional, identidades étnicas, plurinacionalismo, autonomia, livre determinação, autodeterminação, dentre outros, assumindo o desafio de “enxergar” além desses conceitos, uma vez que as novas formações nacionais em curso na Bolívia e Equador, baseadas nas cosmovisões indígenas, acabam por dar espaço ao questionamento de conceitos básicos da política moderna de matriz eurocêntrica, como o próprio corolário dos direitos individuais, visto que estabelecem como fundamento de tais sociedades as cosmovisões indígenas, dando primazia às coletividades e ao protagonismo da natureza. Desta maneira, na Bolívia, a Constituição de 2009 e as normas infraconstitucionais fizeram surgir inovações em âmbito do Direito Mundial, ao estabelecer a natureza como um sujeito de Direito e o Direito ao Bem Viver como Princípios norteadores do ordenamento jurídico.

É importante ressaltar que todo este processo de ressignificação do papel do Estado boliviano é decorrência da história das etnias e dos movimentos étnicos presentes na Bolívia, que assim como em outros países latino-americanos, esteve marcada pela resistência das populações indígenas diante das adversidades decorrentes da violência do processo colonizador (ALMEIDA, 2011, p. 127). Tal resistência se constituiu por estratégias de sobrevivência, de negociação e de apropriação das instituições estabelecidas pelo colonizador e teve continuidade após o processo de independência das colônias na América DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 54

Latina durante o século XIX, visto que, não obstante o fim do colonialismo formal, os aspectos coloniais foram perpetuados nas políticas dos novos Estados nacionais, formando o que Aníbal Quijano (1992, p. 776) denominou de processo de colonialidade do poder.

O termo colonialidade é utilizado por Quijano para expressar um continuísmo dos aspectos coloniais presentes nas políticas estatais em diferentes países da América Latina, tendo fundamento na afirmação do poder por meio de critérios de diferenciação social originados na relação colonial. Segundo Quijano (1992, p. 776), as elites independentistas que estiveram à frente da construção dos Estados latino-americanos acabaram por reafirmar relações permeadas pela dicotomia europeu/não europeu

Para fundamentar suas colocações sobre a colonialidade do poder, Quijano (2009, p. 99) afirma que entre o fim do século XVIII e o fim do século XIX, a percepção da totalidade a partir da Europa já havia sido definitivamente organizada como uma dualidade histórica: a Europa (e neste caso sobretudo a Europa Central e Inglaterra) e a não‑Europa. Tudo o que era a não-Europa, ainda que existisse no mesmo cenário temporal, passou a ser visto como passado de um tempo linear cujo ponto de chegada era o modelo europeu. Na não-Europa existiam nesse mesmo tempo, século XIX, todas as formas não-salariais do trabalho, assim, a não-Europa podia ser “pré-capitalista” ou “pré-industrial”, mas o destino final devia ser o alcance do modelo europeu.

Na não-Europa tinham sido impostas identidades raciais não-europeias ou “não- brancas” sob o discurso de que elas, corresponderiam a diferenças “naturais” de poder entre europeus e não-europeus. Na Europa estavam em formação ou já estavam formadas as instituições “modernas” de autoridade: os estados-nações modernos e as suas respectivas identidades. Na não-Europa só eram percebidas as tribos e as etnias, ou seja, o passado pré-moderno. Estes elementos pré-modernos destinavam-se a ser substituídos no futuro por Estados-Nações como na Europa. Assim, naturalizou-se a percepção de que a Europa era civilizada e de que a Não-Europa era primitiva. O sujeito racional era o europeu (QUIJANO, 2009, p. 99).

Desta maneira, já nas últimas décadas do Séc. XIX, passado o processo de instalação das novas repúblicas, os grupos que faziam parte das elites percebiam a heterogeneidade cultural e social como um problema, como aspectos pré-modernos, raízes de atraso, “fracasso” DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 55

que via de regra era justificado nos discursos pela presença de grupos sociais quenão compartilhavam das ideias de modernidade. A intelectualidade local se deparava com questões que tentava responder no intuito de impor as novas nacionalidades homogeneizantes.

Sobre o estabelecimento do foi visto como “problema étnico” pelas elites latino- americanas, Quijano (2009, p. 105) afirma que na história anterior ao capitalismo mundial certos atributos da espécie tiveram um papel central na classificação social das pessoas e nas relações de poder: sexo, idade e força de trabalho sendo os mais antigos. Na América, acrescentou-se o fenótipo. O sexo e a idade seriam atributos biológicos diferenciais, ainda que o seu lugar nas relações de exploração/dominação/conflito estivesse associado à elaboração desses atributos como categorias sociais. Por outro lado, a força de trabalho e o fenótipo não poderiam sequer serem apontados como atributos biológicos diferenciais, visto que as características quanto a cor da pele, forma do cabelo, olhos ou nariz, não apresentam influência na estrutura biológica e menos ainda nas capacidades históricas dos indivíduos, sendo resultado das disputas pelo controle dos meios sociais.

Todas essas ferramentas de poder historicamente construídas a partir da Europa foram impostas pelas elites locais em diferentes países da América latina e nos permitem refletir sobre os fundamentos da inadequação do modelo de Estado-Nação homogêneo em tais países e especialmente na Bolívia. Isso porque mesmo nos dias atuais, os debates políticos e jurídicos que envolvem os países da América latina e a sociedade internacional no que diz respeito às questões étnicas ainda apresentam o Estado-nação como ponto de referência e polarização discursiva.

É sabido que o modelo de Estado-nação foi amplamente adotado durante os séculos XIX e XX, decorrendo do séc. XIX a ideia de que este era o modelo necessário para a modernização e o desenvolvimento econômico, tendo como inspiração as Revoluções liberais e seus expoentes, notadamente, França e Inglaterra. Neste sentido, progressivamente cristalizou-se a ideia da relação entre o Estado-nação e a soberania. Segundo Vincent (1995, p. 264), embora o termo soberania tenha uso muito anterior ao nacionalismo, no séc. XVII teve início o seu uso na expressão “soberania do povo” ou “soberania popular”, tornando-se muito significativo no vocábulo da revolução francesa. A soberania deixou de ser evocada no sentido de poder de um monarca, de lei, e passou a ser evocada em relação ao “povo”. O termo povo por sua vez, passou a coincidir, DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 56

em muitos discursos, com a ideia de “nação”. Destas relações, se passou rapidamente ao discurso que enxergava a necessidade de que o sentido de “povo” fosse o de um grupo populacional homogêneo, exercendo sua soberania por meio de sua coesão, que se expressa nas leis e no governo de um Estado.

É interessante observar como a construção discursiva desses conceitos, forjados conscientemente durante os séculos XIX e início do XX para a imposição do modelo de organização política entendido naquele momento histórico como o mais moderno, ainda suscita dúvidas quanto à possibilidade, viabilidade e legitimidade de outros modelos de Estados, como frequentemente se observa nas discussões que envolvem os países com grande número de identidades étnicas, quando participam de negociações em tratados internacionais sobre direitos indígenas, por exemplo, visto que os pontos mais polêmicos continuam sendo a possibilidade de conceituação de grupos étnicos como “povos indígenas”, prevalecendo entre os líderes dos diferentes Estados o receio de secessão, de mitigação da soberania, em decorrência da autodeterminação e do direito à autonomia, demonstrando a prevalência de conceitos e estruturas modernas, mesmo em tempos de pós-modernidade.

Da mesma maneira, Lacerda (2014, p. 47) considera uma permanência do pensamento hegemônico europeu a própria padronização do conceito de “Estado-nação” sem que se realize reflexões sobre o que vem a ser o Estado e o quanto este é ou não dependente da ideia de existência de uma única nação. Para Lacerda, o vocábulo “nação” tem sido frequentemente empregado como sinônimo de Estado, a ponto de ser padronizado no uso corrente a expressão “Estado-nação”. Visto como expressão de uma identidade nacional única, diz-se “Estado- nação”, ao mesmo tempo que se tornou corrente o uso da expressão “nação” como sinônimo de Estado. Para a autora, daí decorre, por exemplo, o uso do vocábulo “Nações Unidas” à organização intergovernamental que congrega os Estados no cenário internacional.

Diante das colocações dos autores expostos acima, ficam visíveis os conflitos e inadequações do modelo eurocêntrico de Estado imposto pela elite boliviana ao longo da história do país, bem como a colonialidade do poder, que na Bolívia pode ser identificada por meio das políticas de exploração, incorporação e discriminação das populações originárias, mas também a luta por descolonizar o poder, presente na trajetória dos movimentos indígenas. Segundo Bello (2004, p. 78), na Bolívia os levantamentos indígenas se fizeram comuns desde o fim do século XVIII, mas após a independência no século DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 57

XIX, a exclusão e a marginalização de grupos indígenas pelas elites foram intensificadas. Depois de 1866, uma reforma tributária pareceu ter o intuito de minar a unidade das comunidades locais com o fim do tributo indígena, substituído por outras formas de tributo, de caráter individualizado, contudo mantiveram a comunidade como unidade fiscal para a cobrança, o que permitiu que oayllu , a comunidade indígena, permanecesse até o século XX sem sofrer processo de desintegração. Este e outros fatores permitiram que a expansão de grandes propriedades no final do século XIX e início do século XX fossem contestadas por chefes aimarás das montanhas, que se levantaram para conter o ímpeto das elites defendendo suas propriedades herdadas por títulos coloniais.

Contudo, o século XX vem sendo apontado como o período de ebulição e ressurgimento da questão étnica na Bolívia, devido à movimentação social e das diferentes políticas públicas quanto ao indígena no país, passando desde a identificação do indígena enquanto camponês, forma encontrada para incorporá-lo ao conceito de classe e ensejar a sua sindicalização, até a formação de organizações e movimentos indígenas que se colocaram para além da política estatal ou movimentos que através de alianças formaram partidos étnicos que passaram a atuar por meio da política eleitoral estatal (BELLO, 2004, p. 94).

Segundo Ayerbe (2011, p. 72), o início do século XX na Bolívia esteve marcado pelo domínio político de uma elite mineradora fundamentada na produção de estanho, visto que até 1929 a Bolívia era a segunda produtora mundial deste produto. A queda do preço internacional do estanho a partir de 1929, a derrota do país na Guerra do Chaco1 e as subvenções e isenções dadas à elite mineradora por membros deste grupo que dominavam a política nacional levaram o país a contrair empréstimos internacionais, resultando em um processo de crise econômica e social que levou a sucessivos golpes políticos, gerando uma insurreição popular que colocou no poder o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) em 1952, formado pelo Partido Comunista (fundado em 1950) e pelo POR (Partido Obreiro Revolucionário).

Segundo Maria Eugenia Choque e Carlos Mamani Condori, intelectuais de origem aimará, a chegada do MNR ao poder se constituiu como um divisor de águas na política do Estado boliviano quanto ao indígena. Isso porque, segundo os autores, o movimento

1 A derrota na Guerra do Chaco (1932-1935), com a consequente humilhação, perda de territórios e agudização da crise econômica, provocou o desprestígio do Exército, responsabilizado, junto com a “rosca”- nome dado à elite mineradora, por se considerar que girava em torno dos próprios interesses - pelo fracasso (AYERBE, 2011. p. 182). DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 58

de 1952 assumiu o fracasso da política de exclusão e extermínio do indígena que havia se estabelecido até aquele momento, substituindo-a por uma política de assimilação (CHOQUE, M. E.; MAMANI, 2003, p. 204). Utilizando-se de relatórios realizados durante os censos do início do século XX na Bolívia, Choque e Condori demonstram que até a tomada de poder pelo MNR a república estava assentada em uma política racista que esperava a morte gradual de indígenas por meio de doenças, do alcoolismo, para que ao longo dos anos conseguissem a solução do “problema indígena” no país. Não obstante, documentos estatais do movimento revolucionário de 1952, também relatam que ao buscar a assimilação do indígena por meio da educação, o que se buscava era a erradicação do uso da coca, de “superstições”, vistas pelo movimento como sintoma de atraso, sendo necessário extirpar a tradição, a cultura e a memória indígena (CHOQUE, M. E.; MAMANI, 2003, p. 205).

Paradoxalmente, a política de assimilação iniciada pelo movimento de 1952 propiciou o crescimento do número de indígenas educados em instituições superiores e universidades, que passaram a atuar politicamente e a questionar a escrita da história boliviana, formando centros culturais e políticos que buscavam a construção da história dos povos indígenas bolivianos por meio da história oral, num processo de fortalecimento das identidades e tomada de consciência da necessidade de autonomia (CHOQUE, M. E.; MAMANI, 2003, p. 205).

Contudo, as medidas tomadas pelo Movimento Nacional Revolucionário não atingiram as expectativas quanto à situação econômica do país, fazendo aumentar a inflação e as manifestações dos setores médios urbanos e da classe operária mineira, uma vez que os mineiros concentravam um grande poder de mobilização. Assim, por volta de 1953, diante das pressões desses setores, buscando alcançar o equilíbrio econômico, o MNR se aproxima dos Estados Unidos e do FMI (AYERBE, 2011, p. 184).

Os contínuos planos econômicos deste período conseguiram estabilizar a inflação, mas deterioraram todos os indicadores sociais, gerando rompimento dos partidos de esquerda e o MNR. Nesta ocasião o movimento nacional revolucionário mantinha a governabilidade apoiado pelo exército, que desde 1953 recebia treinamento norte- americano, até que em 1964, um golpe militar deu início a uma série de governos que intercalaram presidentes que buscaram a continuidade de obra de 1952, aprofundando a DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 59

reforma agrária e a identificação do indígena como campesino e outros que defendiam a abertura do país ao capital estrangeiro.

É possível perceber que o referencial tomado para o tratamento da “questão indígena” na Bolívia - tanto nos primeiros anos do pós-independência em que predominou o alijamento do indígena em relação à política nacional, quanto após a Guerra do Chaco, quando o trabalho de incorporação do indígena levou às tentativas de identificação dos grupos étnicos como classe campesina – esteve fundamentado numa percepção eurocêntrica da política e da formação e desenvolvimento de um Estado Nacional Homogêneo e capitaneado pelos ideais europeus de soberania, população e território.

De acordo com Albó, desde o avanço do processo de reforma agrária iniciado pelo MNR, houve um esforço por esquecer a questão étnica e substituir a palavra “índio” pela palavra “camponês”, associando-se o nome “indígena” aos habitantes da selva, mas mesmo em relação a estes últimos, a palavra “comunidade” foi esquecida, falando-se em sindicatos, cooperativas ou produtores agrários. A partir da década de 1950, em espaços acadêmicos como a antropologia, os estudos sobre o indígena se proliferavam, assim como a sua utilização para a inspiração de obras literárias, enquanto a política estatal apostava na mestiçagem. Segundo o mesmo autor, a política de mestiçagem foi compartilhada pela direita e pela esquerda, com o objetivo de suprimir a identidade étnica frete à identidade estatal, homogênea. Contudo, na década de 1970 começou o que Albó denomina um “despertar étnico” (ALBÓ, 2002, P. 32).

A partir da década de 1970, a Bolívia passa a ser alvo da política de combate ao tráfico de drogas efetivada pelos Estados Unidos, devido à acusações de grande crescimento da produção de cocaína no país, mesclando governos que buscaram alinhamento à política norte-americana contra o tráfico por meio do combate ao plantio da folha de coca, e governos que incentivavam tal plantação, com alguns casos de envolvimento direto de membros da presidência com o tráfico, até que em 1982 teve início a redemocratização (AYERBE, 2011, p. 190).

Além ser apontada como marco temporal da inserção da Bolívia como alvo das políticas norte-americanas de combate ao tráfico internacional de drogas, a década de 1970 também pode ser vista como tempo de crescimento dos movimentos de inspiração DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 60

indígena, quando teve início um movimento de contestação à opressão, inspirado na luta do líder indígena Tupac Katari, que comandou um levante do povo aimará contra o governo colonial em 1780. O Katarismo2 foi um dos grandes difusores da ideia de identidade étnica e da necessidade de formação de um Estado pluriétnico, com papel fundamental durante a década de 1970, tendo como consequência a formação de importantes lideranças políticas e intelectuais que passaram a atuar na formação de outras organizações indígenas, no fortalecimento étnico de sindicatos locais formados desde o governo do MNR e participação no surgimento de partidos étnicos criados nas décadas de 1980 e 1990, expressando diferentes correntes de pensamento (GARCÍA LINERA, 2009). Dentre as diversas correntes do Katarismo, destacamos, como exemplo, a vertente defendida por seu fundador, Felipe Quispe, que tem como proposta um governo socialista baseado na administração dos ayllus, contudo, várias vertentes podem ser encontradas dentro deste movimento.

Assim, na década de 1970, jovens dirigentes aimarás passaram a ocupar os principais cargos diretivos em Federações departamentais como La Paz e Oruro, contudo, assumiram como tarefa a contestação ao paternalismo e dirigismo estatais que haviam se tornado tradição entre os antigos dirigentes ligados ao governo (GIANOTTEN, 2006, p. 41).

Com o processo que culminou na redemocratização do país em 1982 os espaços de debate se ampliaram e os movimentos étnicos iniciados na década de 1970 cresceram em força, levando ao surgimento de novas organizações indígenas como a Confederação Indígena do Oriente, Chaco e Amazônia Boliviana (CIDOB) fundada formalmente em 1982, o Conselho Nacional de Ayllus y Markas do Qullasuyu (CONAMAQ), fundado em 1997, além de uma mudança em algumas organizações como a CSUCTB (Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos de Bolívia), fundada em 1979, que passou a assumir um discurso étnico, congregando várias organizações indígenas. Contudo, o processo de redemocratização aconteceu paralelamente à chegada ao poder de governos que assumiram políticas de cunho liberal, caracterizando o final dos anos de 1980 e a década de 1990 como cenário de lutas e negociações entre governo e essas “novas” organizações indígenas.

2 As origens do Katarismo remontam ao final da década de 1960, quando grupos de estudantes aimarás em La Paz, vindos das zonas rurais, formaram várias organizações para representar seus interesses e defender-se coletivamente da discriminação que enfrentavam. O Katarismo englobou uma série de movimentos de contestação ao paternalismo estatal e à política da mestiçagem que começou com o Movimento de 1952. (ESCARZÁGA p. 185-210, 2012). DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 61

Camille Goirand (2009, p. 331) ressalta que o que estes movimentos, logo nomeados como “novos movimentos sociais”, apresentaram de “novo” pode ser visto desde suas características, definição de seus anseios até a formação, configuração, estrutura e área de atuação que assumiram, com o declínio dos aspectos e características que estiveram ligadas aos movimentos operários, afastando-se dos discursos fundamentados apenas nas relações de trabalho, demandando mudanças sociais mais profundas, afirmando-se na cultura e em princípios identitários para refletir sobre a necessidade de reestruturação dos valores da sociedade como um todo.

Segundo Maria da Glória Gohn (1997, p. 122), a Teoria dos novos movimentos sociais surgiu por meio das reflexões de autores como Touraine, Offe, Melucci, Laclau e Mouffe, entre outros, que percebendo a inadequação dos conceitos do marxismo tradicional para análise dos movimentos sociais que passaram a ocorrer a partir da década de 1960 na Europa e na década de 1980 na América latina, buscaram compreender a influência da cultura, das lutas sociais cotidiana e as identidades criadas em meio aos movimentos sociais. Tais autores identificaram a cultura como elemento capaz de ir além do papel de conjunto fixo e predeterminado de valores herdados do passado, além de redimensionar a relação entre cultura e ideologia, deixando de conceituar a ideologia como falsa representação do real para identifica-la como conjunto de representações que configuraram uma visão de mundo.

Gohn (1997, p. 122) enfatiza que os teóricos destes movimentos, identificados como “novos movimentos sociais” utilizaram algumas categorias como a importância de consciência, das lutas sociais, da solidariedade nas ações coletivas, mas o marxismo clássico foi descartado exatamente por ter como aspecto basilar para a análise o papel das estruturas, da ação das classes, dos aspectos macro da sociedade, uma vez que os movimentos que se configuraram a partir dos anos de 1980 na América latina se concentraram no campo político e cultural, demonstrando a força dos atores sociais para a mudança, longe do determinismo dos aspectos econômicos neste processo.

O sujeito histórico que emerge nestes movimentos não é predeterminado pelas contradições do capitalismo ou direcionado por uma vanguarda partidária, ao contrário, formam-se sujeitos coletivos difusos, em luta contra a discriminação de acesso aos bens da modernidade, mas, ao mesmo tempo, críticos de seus efeitos nocivos, numa ação DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 62

baseada em valores comunitários, indo além da busca por direitos imediatos, ressaltando a necessidade de transformação da própria sociedade.

Assim como Maria da Glória Gohn, a análise de Camille Goirand também destaca a utilização de novos canais de participação, como redes sociais e mídias na internet, além de mobilidade heterogênea, com a participação dos movimentos étnicos em ambientes diversificados, operando na contestação da política estatal, ao mesmo tempo em que luta por espaços de maior atuação e transformação desta política, com algumas organizações que passaram por um processo de institucionalização, com seus dirigentes em funções governamentais ou transformando-se em partidos. Se por um lado, Gohn ressalta a recusa desses movimentos em repetir a tradicional política de cooperação entre as agências estatais e os sindicatos, aspecto presente em países como a Bolívia até a década de 1960, por outro Goirand reafirma a “novidade” desses movimentos étnicos, se apropriando da política eleitoral, como aconteceu na Bolívia na década de 1980 e 1990.

Desta maneira, a chegada da década de 1990 e 2000 na América latina pode ser percebida como o momento de confluência de todo o processo de ressignificação e de fortalecimento dos movimentos sociais. Durante este período o fortalecimento do discurso étnico se materializou em grandes mobilizações nas planícies indígenas. Na Bolívia, a “Marcha pelo Território e Dignidade” de 1990 trouxe para a sede do governo cerca de mil caminhantes que interpelavam a sociedade e o governo sobre o seu direito territorial, assumindo uma noção mais profunda de dignidade e cidadania, exigindo uma democracia pluralista e articuladora da diversidade (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 16).

A crise política que se instalou no país em decorrência de medidas neoliberais, principalmente quanto à privatização dos recursos hídricos e de hidrocarbonetos, se intensificou em 2003. Neste período Gonzalo Sanchez de Lozada (2002 – 2003), eleito com 22,46% dos votos, contra 20,94% de Evo Morales, desenvolveu um projeto de governo neoliberal e propôs a exportação de gás para o México e Estados Unidos através do Chile. Diante de tais medidas, desencadeia-se um levante popular que envolve greves, paralisação de estradas, manifestações, com apoio de organizações camponesas, da COB e partidos de esquerda, que se radicaliza frente à forte repressão lançada pelo presidente, forçado a renunciar em junho de 2003. Neste momento manifestações populares e indígenas em La Paz e El Alto exigiam uma nova Assembleia Constituinte e a nova Lei de Hidrocarbonetos (AYERBE, 2011, p. 198). DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 63

Ante o exposto, é possível notar que nos últimos trinta anos o país passou por grandes transformações históricas, com o fortalecimento e visibilidade mundial de seu movimento indígena e cocaleiro3, bem como a ascensão ao poder do presidente Evo Morales pela primeira vez em 2006, baseando-se em elementos simbólicos indígenas e camponeses, num discurso que enfatizava a necessidade de enfrentamento dos modelos de colonialidade e fundação de uma nova sociedade em conformidade com as culturas e grupos indígenas bolivianos. Podemos afirmar que a Bolívia é atualmente lugar de efervescência tanto política quanto em relação à própria formação estatal, onde a força dos movimentos indígenas chama a atenção dos analistas internacionais de diversas áreas.

Com a renúncia de Sánchez de Lozada em 2003 e de seu vice-presidente Carlos Mesa em 2005, foram convocadas eleições presidenciais em que o MAS (Movimento ao Socialismo) lançou a candidatura de Evo Morales à presidência, vinculado à três propostas: convocação de uma Assembleia Constituinte, nacionalização de hidrocarbonetos, defesa do cultivo e industrialização da coca. Em continuidade a este processo de luta dos movimentos indígenas e cocaleiro e de ascensão do MAS ao poder foi promulgada uma nova Constituição (2009) que pretendeu refundar o Estado, declarando a formação de um Estado plurinacional, tendo como consequência o reconhecimento da livre determinação dos grupos indígenas dentro do mesmo Estado e a necessidade de respeito à sua autonomia. Podemos destacar aqui, os seus três primeiros artigos:

CAPÍTULO PRIMERO - MODELO DE ESTADO Artículo 1 - Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país. Artículo 2 - Dada la existencia precolonial de las naciones y pueblos indígenas originarios campesinos

3 O movimento cocaleiro se caracteriza pela defesa do cultivo e do consumo tradicional da folha de coca, visto que tal consumo é parte da cultura andina. A polêmica que se estabeleceu quanto a produção da folha de coca na Bolívia envolve de um lado a tradição das populações locais que remonta ao período pré-colombiano, com o consumo da folha de coca como tranquilizante, estimulante e analgésico, e a utilização desta planta para a produção de cocaína, voltada ao mercado internacional. Desta feita, desde a década de 1970 países consumidores de cocaína, principalmente os EUA encabeçam políticas de combate ao plantio de coca como forma de controlar o consumo de cocaína, influenciando diretamente a economia boliviana. Neste contexto, os diferentes presidentes bolivianos assumiram políticas que por vezes combatiam rigorosamente o plantio da coca, e em outros governos estabeleciam projetos que tentavam negociar tal plantio frente às pressões externas por sua erradicação. Dentro deste cenário, surgem movimentos organizados de plantadores de coca, principalmente na região do Chapare, com a crescente visibilidade de Evo Morales. Em 1994 seis federações de plantadores de coca se reuniram em uma nova entidade chamada de Coordenadoria de Produtores de Coca, sob a direção de Evo, passando a atuar por meio da política eleitoral, conseguindo eleger seus representantes numa escalada de ascensão que culminou com a chegada de Evo Morales à presidência em 2006 (CAMARGO, 2006. p. 184). DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 64

y su dominio ancestral sobre sus territorios, se garantiza su libre determinación en el marco de la unidad del Estado, que consiste en su derecho a la autonomía, al autogobierno, a su cultura, al reconocimiento de sus instituciones y a la consolidación de sus entidades territoriales, conforme a esta Constitución y la ley. Artículo 3 - La nación boliviana está conformada por la totalidad de las bolivianas y los bolivianos, las naciones y pueblos indígenas originarios campesinos, y las comunidades interculturales y afro bolivianas que en conjunto constituyen el pueblo boliviano.

A Constituição boliviana de 2009, juntamente com outras constituições como a do Equador (2008) foram o marco de uma nova corrente constitucional, mundialmente apontadas como inovadoras, trazendo aspectos originais quanto às questões étnicas, quanto à visão de democracia representativa e quanto a própria configuração do Estado, declaradamente plurinacional, intercultural, descentralizado e com autonomias, além de estabelecer como um de seus fundamentos o pluralismo jurídico4. Nos dias atuais, em que a tradição e a história do Direito Constitucional vem sendo alvo de debates e críticas no cenário internacional, quando no campo jurídico as discussões se dão exatamente diante da inadequação dos ordenamentos diante das reivindicações por novos direitos (direito ao meio ambiente sadio, direito à liberdade de constituição das famílias, direito a uma vida saudável, direito ao equilíbrio intergeracional) o surgimento de ordenamentos jurídicos que congreguem tais elementos como decorrência da luta de grupos indígenas até então excluídos de direitos vem sendo compreendido como uma revolução jurídica e como caminho a ser seguido no velho mundo, invertendo a lógica colonial.

Segundo José Luiz Quadro de Magalhaes:

A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente. O Estado plurinacional reconhece a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes. (MAGALHÃES, 2008, p. 208)

Como exemplos de inovações da Constituição Plurinacional da Bolívia de 2009 podemos citar a existência de cotas para parlamentares indígenas, garantia de propriedade exclusiva da terra, dos recursos hídricos e florestais pelas comunidades indígenas, necessidade de

4 O pluralismo jurídico pode ser entendido “grosso modo” como a possibilidade da existência de uma pluralidade de ordenamentos em um mesmo espaço temporal e geográfico. DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 65

consulta prévia dos povos indígenas envolvidos em qualquer proposta de intervenção em territórios indígenas, pluralismo jurídico com reconhecimento da jurisdição indígena com a mesma força que a jurisdição estatal.

Para dar efetividade ao texto constitucional, surgiram ainda documentos legais infraconstitucionais, como a Lei de Regime Eleitoral, que criou mecanismos de eleição por meio dos usos e costumes das comunidades indígenas, a Lei de Deslinde5 Jurisdicional, que regulamentou a autonomia da justiça e dos tribunais indígenas dentro das comunidades, a Lei Marco da Mãe Terra e Desenvolvimento Integral para o Viver Bem que cuidou da autonomia em relação à manutenção das relações tradicionais estabelecidas entre as comunidades indígenas quanto ao uso da terra e dos recursos naturais, e órgãos de Estado como o Vice Ministério de Descolonização e Vice Ministério de Autonomias. Tais normas constitucionais e infraconstitucionais demonstram a originalidade do ordenamento jurídico boliviano, que juntamente com outros países como o Equador formaram um novo pensamento constitucional e estatal que ficou conhecido como “Novo Constitucionalismo latino-americano ou Andino”.

Considerações Finais:

Consideramos que após séculos de predomínio do pensamento ocidental europeu na construção das interações sociais, principalmente por meio do Estado Nacional homogeneizante, começa a ser produzida na América latina uma resposta teórico-prática original, fruto das lutas dos povos indígenas. Acreditamos que os movimentos indígenas bolivianos nos últimos 30 anos, por meio de sua luta por autonomia política, sobre suas terras e bens naturais, estão subvertendo a lógica da colonialidade estatal e do Direito enquanto instrumento de imposição da vontade da minoria sobre a maioria, visto que procuram atuar por meio do Estado e do Direito, rompendo padrões de exclusão predominantes durante séculos de história na Bolívia.

Não obstante os avanços constitucionais, estabelecendo um Estado plurinacional (2009), as relações sociais e políticas na Bolívia atual se caracterizam pela existência

5 A palavra “deslinde” em espanhol significa delimitação, traçar limites, demarcação, definição de competência. Assim, a Lei de Deslinde Jurisdicional traçou os limites e as competências para o exercício da justiça indígena (GARCIA– TALAVERA, 2003). DESCOLONIALIDADE DO PODER: PLURALISMO JURÍDICO E AUTONOMIA INDÍGENA NO ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA ALINE DE SOUZA VASCONCELLOS DO VALLE 66

de tensões decorrentes dos interesses dos diferentes grupos que compõem a sociedade, tornando relevante o reconhecimento de que diferentes representações de conceitos como autonomia, autogoverno, nação, interculturalidade, podem se formar entre os representantes das autonomias indígenas e os representantes estatais, com compreensões divergentes quanto aos documentos legais e os direitos indígenas, levando consequentemente a distintas ações políticas. Diante deste contexto, pode-se afirmar que a Bolívia vive hoje momento de construção do Estado inaugurado por meio da Constituição de 2009, onde a atuação dos movimentos indígenas, por meio de forte pressão social e de constante luta por seus direitos, foi e continuará sendo o divisor de águas entre a mera positivação de direitos e a efetivação de direitos verdadeiramente emancipatórios.

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A participação feminina no grupo armado argentino “Partido Revolucionário dos Trabalhadores - Exército Revolucionário do Povo” -PRT-ERP (1969-1980)

AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Órgão financiador: Universidade Federal de Juiz de Fora E-mail: [email protected]

Introdução

O grupo armado Partido Revolucionário dos Trabalhadores - Exército Revolucionário do Povo PRT-ERP se organizou em fins dos anos de 1960. O contexto argentino nesse período era de intensa agitação política e social, basta lembrarmos o radicalismo da ditadura de 1966, o retorno de Perón do exílio em 1973 e a ditadura civil-militar de 1976. No entanto, é importante ressaltar que essa intensa agitação teve origens bem anteriores, desde de meados da década de 1950 com o golpe de estado conhecido como “Revolução Libertadora” (nome dado pelos próprios militares envolvidos), Perón foi deposto do poder e todas as formas de repressão se fizeram presentes. No entanto, além das influências específicas do contexto da Argentina, influxos externos também moldaram a identidade do grupo. Partindo desse princípio, podemos destacar como influência externa a urgência revolucionária trazida pela Revolução Cubana, principalmente no que se refere à luta armada. Dessa maneira, podemos entender um pouco da formação dos grupos armados no período, incluindo PRT-ERP.

A partir de consultas a materiais bibliográficos, pode-se perceber que nas décadas de 1960 e 1970 muitas mulheres jovens estavam envolvidas na luta política e em muitos dos grupos de esquerda existentes no momento, inclusive no PRT-ERP. Dessa maneira, levando em consideração o contexto de formação dos grupos armados e a grande inserção de mulheres neles, principalmente a partir da década de 1970, buscamos entender suas A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 69

atuações e participações em espaços “masculinizados” e “reservados aos homens”.

Para alcançar os objetivos propostos organizamos o artigo em três partes ou subtítulos. Na primeira, abordamos o contexto político da época e os elementos que influenciaram e propiciaram a formação do grupo PRT-ERP com a sua configuração específica. Na segunda, apresentamos o grupo PRT-ERP, suas origens e suas formas de atuação. Por fim, na última parte, apresentamos as atuações femininas no grupo simultaneamente aos impactos de uma sociedade ligada a questões de cunho machista.

As influências da Revolução Cubana e o contexto argentino: a formação de grupos armados na Argentina a partir da década de 1970

A Revolução Cubana ocorreu em 1959, em reação à ditadura de Fulgêncio Batista (1901-1973). O governo de Batista representava todas as formas de exploração social, tendo sido alicerçado pelo imperialismo dos Estados Unidos, que estimulava a corrupção e a desigualdade social. Segundo Reis (2011), Cuba vivia sob forte dependência política e econômica dos Estados Unidos. Economicamente, foi montada uma estrutura rigorosamente voltada para o mercado estadunidense. São exemplos dessa dependência econômica, as grandes empresas de proprietários americanos, muitas delas com o monopólio da produção açucareira, principal produto de exportação vendido para o mercado norte-americano praticamente com exclusividade e a preços vantajosos e preferenciais.

A partir desse contexto, pode-se pensar as bases que deram sustentação à oposição ditatorial, que logo culminou na Revolução Cubana. Para Reis (2011), o grupo revolucionário inicial, com liderança de Fidel Castro, Raul Castro e Che Guevara, tinha como princípios básicos o fim do imperialismo, a liberdade e a autonomia da nação. O grupo era constituído por muitos jovens e pessoas diretamente afetadas pela situação precária em que se encontrava o país. Levando em consideração esse contexto de ditadura e de grande influência exercida pelos Estados Unidos em Cuba, os revolucionários viram na luta armada e na guerra de guerrilhas os únicos caminhos possíveis para se fazer a revolução e alcançar o poder.

O momento vivido em toda a América Latina não era muito diferente daquele de Cuba, uma vez que, nesse período (década de 1950 até 1970), se estabelece uma forte A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 70

competição internacional por mercados. Os países da América Latina, por conseguinte, haviam construído mercados nacionalistas e, a partir de então, começam a sofrer pressões para a abertura de mercado, prejudicando a continuidade do desenvolvimento nacional e ficando, assim, cada vez mais dependentes do mercado internacional. (AYERBE, 2004). Essa situação vai ao encontro do contexto cubano, uma vez que seu mercado, como vimos anteriormente, está totalmente influenciado pelo sistema internacional.

Dessa forma, a Revolução Cubana de 1959 se torna uma referência de luta para toda a América Latina, um exemplo de rompimento com o imperialismo e o estabelecimento da liberdade nacional.

Na Argentina, as ideias de revolução, de violência justa, de guerrilhas urbanas e rurais, de transformação política, bem como o anti-imperialismo foram de fundamental importância para a formação dos novos grupos de esquerda radicalizados. (ADAMOVSKY, 2012). Além disso, o cenário argentino descrito por Adamovsky (2012) como de desigualdade social, exploração nacional por parte das empresas internacionais e injustiças sociais, sofridas principalmente pelos setores pauperizados, também contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento de tais grupos. Os jovens que formavam a nova esquerda1 acreditavam que a única saída para a Argentina seria através da luta armada. (ARAÚJO, 2008).

A partir dos anos 1960, muitos foram os grupos radicalizados de esquerda que se formaram, vários deles provenientes do peronismo, mais especificamente da esquerda peronista2. Entre esses grupos estavam Montoneros, Juventude Peronista (JP), Forças Armadas Peronistas (FAP), Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e outros. No entanto, como afirma Adamovsky (2012), é nos fins da década de 1960 que a formação desses

1 De acordo com Araújo (2008), a nova esquerda era constituída em sua maioria, por jovens que se organizaram em grupos críticos aos partidos socialistas e comunistas. A construção da nova esquerda se baseava em novas práticas e novos valores em que o fundamental era a ação direta sem intermediários, o pragmatismo e o confronto.

2 O peronismo englobava uma direita e uma esquerda com diferentes ideais. A direita peronista era constituída pela corrente sindical-burocrata e por grupos empresariais que se beneficiavam com a política protecionista e antiliberal estabelecida pelos governos de Perón (1946-1955, 1973-1974). Além desses, a direita era constituída também por organizações paramilitares que incitavam o terror em nome de uma bandeira peronista. Já a esquerda peronista era composta, em sua maioria, por jovens que acreditavam que a luta dos trabalhadores seria o alicerce principal para a luta - inspirada na revolução e não na democracia - contra o imperialismo e o fim do capitalismo. Era caracterizada como um grupo que se sustentava na figura de Perón, mesmo que esse não compartilhasse da sua posição ideológica. Dessa maneira, a esquerda utilizava-se dos discursos peronistas a fim de alcançar o apoio das classes trabalhadoras para se legitimarem enquanto movimento social ou partidário. (ROCHA, 2011). A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 71

grupos se intensifica. Segundo o autor, “As coisas, no entanto, mudaram rapidamente a partir do fim dos anos sessenta, sobretudo devido ao impacto doCordobazo .” (ADAMOVSKY, 2012, p. 259, tradução nossa).3 Assim, de acordo com Adamovsky, nos fins da década de 1960 havia se formado mais de quinze organizações guerrilheiras que propunham como método a luta armada.

Sobre a experiência e escolha pela opção da luta armada como melhor método de luta no momento, explica Araújo,

No caso da Argentina, a experiência da luta armada foi, digamos assim, “entre dois golpes” – posterior à ditadura de Onganía, mas anterior ao golpe de 1976. Mas, sem dúvida, a instauração de regimes militares arbitrários, violentos e repressivos fez recrudescer a opção pela luta armada e pela guerrilha na região latino-americana. (ARAÚJO, 2008, p. 252).

Em virtude de todo esse cenário repressivo e das influências externas a que nos referimos anteriormente, a luta armada foi eleita como a via possível para trazer justiça, dignidade e autonomia para o povo argentino. (ADAMOVSKY, 2012; ARAÚJO, 2008).

Formação e organização do Exército Revolucionário do Povo- Partido dos Trabalhadores ERP-PRT

O PRT-ERP, se formou através da fusão de dois grupos: FRIP (Frente Revolucionário Indoamericano Popular), vinculada aos trabalhadores açucareiros do noroeste argentino e Parabra Obrera, organização trotskista com atuação entre estudantes universitários e trabalhadores industriais em Buenos Aires, Córdoba, Tucumán e Rosário. Dessa maneira em 1965 ocorreu a fusão dos referidos grupos e a formação do PRT. No entanto, PRT-ERP se consolidou apenas em 1970, a partir de “rachas” causados dentro da organização, principalmente por causa da questão militar (adesão ou não da luta armada). Assim, em 1970, no V Congresso do PRT, foi fundado o ERP (com a adesão da luta armada) e assim se originou o PRT-ERP.

De acordo com Pozzi (2009), o PRT-ERP foi uma das principais organizações guerrilheiras do período na Argentina, era constituída principalmente por jovens estudantes e trabalhadores de todas as idades, inspirados principalmente na revolução

3 Las cosas, sin embargo, cambiaron rápidamente a partir de fines de los sesenta, sobre todo gracias al impacto del Cordobazo. A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 72

contra o imperialismo. Tinham como objetivo principal vencer o imperialismo e instaurar um sistema socialista na Argentina. No entanto, de todos os grupos que surgiram no momento, o PRT-ERP se configurava em um caso diferente, na medida que se apresentava como una alternativa marxista para uma classe trabalhadora peronista. (POZZI, 2009).

A partir de 1975 o PRT-ERP tinha participação em mais de quatrocentas das principais fábricas da grande Buenos Aires. Obteve êxito na organização dos grupos dos trabalhadores industriais de Córdoba, dos metalúrgicos, dos trabalhadores da carne, dos petroquímicos de Rosário e dos petroleiros patagônicos. Além disso, tinha grupos muito ativos no movimento estudantil. (POZZI, 2009).

No que se refere à esfera militar o grupo, a partir de 1975, estava organizado em numerosas esquadras locais e fabris. Além disso, construiu uma espécie de parceria com os grupos Tupamaros (do Uruguai), MIR (do Chile) e PRT- ELN (da Bolívia). Os referidos grupos juntamente com o PRT-ERP, instalaram uma fábrica de armas na Argentina, lá eram produzidos: explosivos, granadas e submetralhadoras JCR1. Os quatro grupos se apoiavam mutuamente, principalmente no financeiro e no político. Nesse sentido, entre 1969 e 1977 o PRT-ERP realizou diversas ações armadas na Argentina, tais como: ataques a quarteis militares, desarmamento de policiais, roubo (de veículos, dinheiro e alimentos, que depois eram repartidos em bairros pobres), assassinatos de repressores e empresários, sequestros, atentados com explosivos, entre outras ações. (POZZI, 2009; CARNOVALE, 2011).

Por fim, é importante ressaltar as dificuldades encontradas no que se refere à precisão de dados da organização, como por exemplo, o número exato de membros homens e mulheres que atuaram no grupo. Além da questão da clandestinidade (1973) e dos atos repressivos do estado, que geravam problemas gravíssimos em relação a esta precisão, várias questões relacionadas ao machismo reproduzido na organização, impediu, em muitos momentos, a participação das mulheres nos quadros de direção e liderança do grupo. Muitas vezes colaboravam da mesma forma que os homens, mas pelo fato de serem mulheres não alcançavam reconhecimento e não apareciam nem mesmo como militantes do referido grupo. Assim, o resultado era a redução do número de mulheres atuantes nos registros (documentos internos) da organização. Tal situação alterava totalmente os números e dados do grupo. Dessa forma, entendemos umas das razões do silêncio da participação feminina em muitos dos documentos analisados. A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 73

Em virtude de tudo isso, analisamos os números e dados do grupo, pensando a questão da masculinização do espaço e problematizando as questões de gênero.

A Participação Feminina no Partido Revolucionário dos Trabalhadores- Exército Revolucionário do Povo -PRT-ERP-

A partir da década de 1960 as relações entre homens e mulheres e os papéis sociais estabelecidos para cada um deles começaram a serem questionados pela geração mais jovem: a “moral tradicional” foi criticada em todas as suas formas. Assuntos como igualdade de gênero, subordinação das mulheres ao poder masculino, repressão sexual feminina e todas as formas de discriminação da mulher estavam na ordem do dia. Os referidos questionamentos estavam inseridos no contexto de deflagração da Segunda Onda Feminista,4 que se desenvolveu nos países da América Latina, aproximadamente no início da década de 1970. Não que essas discussões se iniciassem apenas nesse momento, mas se sustentaram nessa base, que condicionou a radicalização de muitas premissas.

Entretanto, os grupos de esquerda da década de 1970, incluindo o PRT-ERP também reproduziam normas sociais conservadoras. Essa reprodução, em muitos momentos, não acontecia de forma explícita, mas estava presente em vários momentos no interior dessas organizações. A questão dos filhos de militantes, por exemplo, pode ilustrar a reprodução de espaços de dominação. Na maior parte dos relatos de militantes em que o pai e a mãe militavam, o cuidado dos filhos era atribuição apenas das mães. Abaixo, segue o relato da militante Alicia, que aborda o referido assunto.

Nós vivíamos em casas operativas e mesmo que os companheiros tentassem ajudar ou dissessem que ajudavam, sempre o serviço da casa ficava para a mulher… a cozinha, a limpeza, o cuidado com as crianças… éramos nós as que estávamos carregando as crianças para todos os lados. (GÓMEZ, 2011, p. 28.) 5

Como podemos observar, os espaços domésticos continuavam sendo reservados

4 De acordo com Pedro (2010- NÃO ESTÁ NAS REFERÊNCIAS), a Primeira Onda Feminista esteve centrada principalmente na reivindicação de direitos políticos, como o de votar e ser eleita. A Segunda Onda surgiu, por sua vez, após a Segunda Guerra Mundial e tinha como prioridade as lutas pelo direito ao corpo, ao prazer e contra o patriarcado. Uma das palavras de ordem era: “o privado é político”.

5 As militantes entrevistadas são apresentadas apenas por seu primeiro nome. A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 74

às mulheres. Dessa forma, se quisessem militar, tinham que conseguir conciliar os dois planos: o doméstico e o político.

Outro aspecto de reprodução da lógica social no interior dos grupos de esquerda, se refere ao cuidado dispensado às mulheres. Abaixo, um militante do PRT-ERP relata sobre o assunto.

Além disso, quando estava se fazendo algo em conjunto, aí é onde talvez se perceba o machismo. Por exemplo, quando você vai a uma ação e você talvez não pega na mão do companheiro, pega na mão da companheira, porque talvez você acredita que fisicamente não pode correr como você corre. Então aí é onde você vê um pouquinho de fraqueza, viu, entendeu? Eu acho que talvez aí as companheiras, você pegava na mão e dizia “tudo bem, vamos.” (Varón, PRT-ERP apud PASQUALI6, 2008, p. 62-63, tradução nossa).7

Nesse sentido, pode-se perceber que a condição feminina por si só, independente da atuação, expressava debilidade aos olhos de muitos militantes homens. Por essa razão, muitas mulheres, para serem respeitadas e aceitas de forma igualitária em relação aos homens, se masculinizavam. De acordo com Belej, Huerta, Martin e Silveira (2005), a “masculinização” foi a única alternativa encontrada por essas mulheres para alcançar níveis de igualdade em relação aos homens, tendo em vista que naquele momento as discussões de gênero não eram tratadas em grupos de esquerda. Essas discussões eram vistas como práticas burguesas e antirrevolucionárias. Para Destuet e Valle (2005), as reivindicações dos grupos estavam relacionadas com o social; outras questões, como a discussão de gênero, por exemplo, eram secundárias. Segundo as referidas autoras, as próprias mulheres demoraram muitos anos para perceber que as problemáticas de gênero estavam diretamente envolvidas em seus contextos de atuação.

Por outro lado, a “condição social feminina” foi explorada com o objetivo de angariar benefícios aos grupos de esquerda. Para Noguera (2013, p. 19, tradução nossa)8, “A utilização de estereótipos genéricos tradicionais, como a mãe, a puta ou a namorada, foi explorada

6 A referida autora não nomeia os(as) militantes entrevistados(as). Utiliza as palavras varão e mulher para identificá-los(as).

7 Aparte cuando se estaba haciendo algo en conjunto, ahí es donde se ve por ahí el machismo, por ejemplo, cuando vos vas a una acción y vos a lo mejor no lo agarrás de la mano al compañero, la agarrás de la mano a la compañera, porque a lo mejor vos crées que físicamente no puede correr como corrés vos. Entonces ahí es dónde vos ves un poquito de debilidad, viste, ¿entendés? Yo creo que, por ahí las compañeras, vos la agarrabas de la mano y decías “bueno, vamos.

8 La utilización de estereotipos genéricos tradicionales, como la madre, la puta o la novia, fue explotado por las organizaciones para no levantar sospechas a la hora de chequear objetivos, generar distracción o facilitar el acceso a lugares y personas. A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 75

pelas organizações para não levantar suspeitas à hora de checar objetivos, gerar distração ou facilitar o acesso a lugares e pessoas.” Dessa maneira, a “condição social feminina” era tão “cristalizada” naquele momento que se tornou uma estratégia de atuação para alguns grupos. Uma militante citada por Noguera (2013) relata que se uma mulher levasse uma arma debaixo da manta de um bebê, ninguém desconfiaria de tal situação.

Outro artifício em que a “condição feminina” foi explorada como estratégia foi relatado pela militante do PRT-ERP Elena, citada por Diana9, como segue abaixo:

(…) Tomei um ônibus com meu bebê e uma bolsa cheia de armas e material. Fiquei presa em um pino e pararam o ônibus. Quando chegou a minha vez, eu, que não tinha documentos, pedi ao policial que esperasse um momentinho porque não os achava na bolsa. Eu enfiava a mão e simulava procurá-los, mas quando mexia na bolsa escutava-se o barulho dos ferros que levava. No fim, pedi-lhe desculpas e disse que não os achava, e entre a carinha de circunstância, o neném que chorava e o sorriso, não sei, tudo ficou por isso mesmo. (ELENAapud DIANA, 1998, p. 165, tradução nossa).10

A respeito desse tipo de situação, vários relatos foram encontrados: muitas mulheres conseguiram sair de ocasiões difíceis utilizando a “condição feminina”.

O tema dos espaços masculinizados é problematizado em vários relatos de militantes do PRT-ERP. Uma militante do referido grupo fala das dificuldades encontradas pelas mulheres para atuar como um militante “normal” no grupo, independente da condição feminina.

(...) nós mulheres temos alguns problemas para poder ocupar cargos, somos discriminadas em alguns aspectos, temos muitos problemas para poder avançar em certas carreiras, inclusive, dentro das organizações tínhamos problemas para avançar. Nós, as companheiras, éramos descartadas de algumas tarefas, sempre havia um jeito de dizer.... Eu sempre dizia aos homens que eles tinham o discurso: “Sim, as companheiras mulheres que se integram à luta, tudo bem, mas a minha não, que me acompanhe ma non tropo.” (PASQUALI,11 2005, p. 131, tradução nossa).12

9 Os nomes das militantes entrevistadas por Marta Diana não são reais nem “nomes de guerra”, são inventados. As exceções são: Teresa Meschiatti, Liliana Callizo, Nélida Augier e Graciela Daleo.

10 Me subí a un colectivo con mi bebé y un bolso lleno de armas y material. Me agarra una pinza y paran el colectivo. Cuando me toca a mí, que no tenía documentos, le pido al policía que esperara un momentito porque no los encontraba en el bolso. Yo metía la mano y simulaba buscarlos, pero al revolver el bolso se escuchaba el ruido del fierrerío que llevaba. Al final le pedí disculpas y le dije que no los encontraba, y entre carita de circunstancias, y nene que lloraba, y sonrisa, no sé ahí quedo.

11 A referida autora não nomeia os(as) militantes entrevistados(as). Faz as identificações utilizando a palavra militante acompanhada dos artigos “o” e “a”.

12 (...) las mujeres tenemos algunos problemas para poder ocupar cargos, somos discriminadas en algunos aspectos, tenemos muchos problemas para poder avanzar en ciertas carreras, incluso dentro de las organizaciones teníamos A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 76

Como podemos observar, esses espaços eram bem marcados por posicionamentos hierarquizados em relação ao gênero. Independentemente de qualquer motivo, a atuação, só por ser feminina, já era considerada inferior. Assim, em muitos casos, o fato de as mulheres não ocuparem cargos importantes não era consequência de sua atuação, mas de uma “concepção machista” de dominação reproduzida socialmente e no interior dos grupos. De acordo com Ramona, militante do PRT-ERP, “Havia companheiras muito capacitadas que se arriscavam com as armas; no entanto, não chegavam aos altos cargos.” (RAMONA apud DIANA, 1997, p. 85, tradução nossa).13 Outros relatos apresentados por Diana mostram ex-chefes de distintas organizações reconhecendo a pouca inserção das mulheres em âmbitos militares e defendendo a ideia de que muitas mulheres foram tão boas quanto os homens.

Outra militante do PRT-ERP relatou para Diana a situação do machismo nos grupos de esquerda e a vontade, por parte de militantes mulheres, de erradicá-lo. Ela afirma:

Não nego que nas organizações tenha havido machismo. Erradicá-lo foi justamente a tarefa que tentamos dentro do novo estilo de relações que propúnhamos entre um homem e uma mulher novos. Existia uma vontade expressa de considerar a mulher igual. O que acontece é que há uma questão com os filhos que é um tema muito difícil de resolver, e que também nós não fizemos. Dada a relação entre o filho e a mãe, parece que por lei e direito corresponde a ela quase tudo, e é o que acontecia geralmente. (LILIANA CALLIZO apud DIANA, 1997, p. 115, tradução nossa).14

Dessa maneira, como podemos notar, o PRT-ERP se apresentava de forma muito machista. As mulheres tiveram que se adaptar das mais diversas formas aos espaços masculinizados presentes na sociedade e no referido grupo. Só assim garantiam suas participações.

Nesse sentido, é importante ressaltar que, mesmo com todas as formas de hierarquização de gênero presentes no interior dos grupos de esquerda da década de 1970, foram significativas as mudanças sociais, principalmente no que diz respeito aos problemas para avanzar. Siempre las compañeras éramos relevadas de algunas tareas, siempre estaba la onda de decir... Yo siempre les decía a los varones que ellos tenían un discurso “Si, las compañeras mujeres, que se integran a la lucha, todo bien, pero la mía no, que me acompañe ma non tropo.”

13 Había compañeras muy capacitadas que se jugaban con las armas; sin embargo, no llegaban a los puestos altos.

14 No niego que en las organizaciones haya habido machismo. Erradicarlo fue justamente la tarea que intentamos dentro del nuevo estilo de relaciones que planteamos entre un hombre y una mujer nuevos. Existía una voluntad expresa de considerar igual a la mujer. Lo que pasa es que hay una cuestión con los hijos que es un tema muy difícil de resolver, y tampoco nosotros lo hicimos. Dada la relación entre el hijo y la madre parece que por ley y derecho a ella le corresponde casi todo, y es lo que pasaba generalmente. A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 77

espaços destinados às mulheres naquela sociedade. Para Noguera,

Tanto no ERP quanto em Montoneros podemos reconhecer uma ativa participação das mulheres que, no contexto da militância, quebraram os papéis tradicionais que as relegavam ao âmbito doméstico, para participar conscientemente na vida pública e política. (NOGUERA, 2013, p. 22, tradução nossa).15

Destarte, é necessário termos em mente que se a atuação das mulheres foi, em alguns momentos, limitada, isso se deve principalmente à exploração e repressão desses sujeitos por sua “condição social”, não por falhas ou falta de capacidade individual. Ademais, levando em consideração as condições estabelecidas socialmente, esses sujeitos conseguiram ganhos significativos e contribuíram intensamente na luta por melhores condições.

Considerações Finais

Através dos testemunhos dos militantes do grupo PRT-ERP, pudemos perceber que as mulheres atuaram em vários momentos da mesma forma que os homens, mostrando suas capacidades em diversas frentes, mesmo com as inúmeras formas de desigualdade de gênero.

No entanto, isso não aparece de forma clara na historiografia. As mulheres, os negros, além de outras “minorias”, foram ocultadas de vários processos de construção histórica. Segundo Pedro e Soihet (2007), alguns autores acreditavam que, ao falar dos homens, as mulheres também eram contempladas.

Partindo do presente artigo e da bibliografia consultada, podemos considerar que esse tipo de afirmação se torna um problema, pois excluímos dos processos históricos sujeitos que atuaram significativamente e que contribuíram para chegar aonde estamos hoje. Assim, reduzimos também a capacidade de compreensão da história como um todo, uma vez que é através da interação dos diferentes sujeitos que constituem a história que podemos chegar a uma compreensão satisfatória. Nesse sentido, pode-se entender a importância deste tema não apenas para a historiografia, mas para pensarmos em um mundo mais humano, com menos hierarquias, preconceitos, discriminações e, sobretudo, com menos violência e dominação de um sujeito sobre outro.

15 Tanto en el ERP como en Montoneros podemos reconocer una activa participación de las mujeres que, en el marco de la militancia, rompieron con los papeles tradicionales que las relegaban al ámbito doméstico, para participar conscientemente en la vida pública y política. A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GRUPO ARMADO ARGENTINO “PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES - EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO” -PRT-ERP (1969-1980) AMANDA MONTEIRO DINIZ CARNEIRO 78

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Civilizar pela violência: debates sobre a questão indígena no Pampa argentino

ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU Doutora em História pela Universidade de Brasília, [email protected]

O Deserto

Quando as tropas comandadas por Júlio Argentino Roca chegaram até o rio Negro, “conquistaram” o deserto do Pampa das lanças de seus inimigos étnicos seculares e abriram caminho para a ocupação definitiva da Patagônia. Povoado por diversas sociedades étnicas, o “deserto”, que corresponde a região do Pampa, possuía mais significados do que uma simples localização geográfica. A utilização do conceito de deserto por seus contemporâneos, conota o entendimento de um espaço vazio. A definição de um espaço povoado como “vazio” é simbólica, e corresponde a ausência dos elementos culturais associados a “civilização”. Por esse último, entendia-se a cultura europeia, com sua população, seus hábitos e seu progresso material (TAGUIEFF, 2007, 125). O deserto, portanto, era um espaço a conquistar, passível de progresso uma vez incorporado a sociedade de origem europeia, seria povoado novamente e utilizado economicamente visando a inserção no mercado internacional. No entanto, mais que um local sem civilização, e, portanto, um local de barbárie, o deserto também era um inimigo a ser combatido, passando de um substantivo, para uma espécie de “sujeito”.

Construir uma “nação para o deserto” era o projeto político definido na década de 1870. “Para” o deserto, pois, o “deserto” era o sujeito da ação, o inimigo que deveria ser dominado, conquistado, para então, servir de instrumento para a “civilização” (TORRE, 2010, 11-12). O projeto político de “povoar o deserto”, também funcionou como uma forma de consolidar definitivamente o Estado nacional, que iria estender sua soberania definitiva por todo território considerado herdado da colonização espanhola, além de afirmar os valores culturais e identitários aos grupos de índios que habitavam e defendiam seus espaços. CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 81

Por várias gerações, os espaços onde o “deserto” encontrava-se com a sociedade criolla argentina, formavam um espaço de fronteira fluido, ondem ocorriam a convivência com as diversas sociedades de índios, perpassando relações de mestiçagem, comércio e o conflito (NACUZZI, 2010, 11). Porém, a partir da segunda metade do século XIX, foram adotados discursos cada vez mais agressivos e que enfatizavam a necessidade de resolver a “questão de índios”, acabando com as chamadas “fronteiras internas” pela ocupação dos espaços indígenas e pela demarcação das fronteiras internacionais da Argentina.

A tendência de não mais considerar os indígenas como integrantes de nações autônomas, mas sim como “selvagens” que necessitavam da tutela do Estado, provocou uma tendência de diminuição da política de tratados com os caciques para uma atitude ofensiva. Não havia a percepção da fronteira como espaço de intercâmbios entre culturas distintas, ao contrário, ela era construída discursivamente como espaço de conflitos, como uma linha que “avançava” a partir da sociedade ocidental à sociedade sem Estado (LOPES, 2003, 16; WEBER, 1994, 3).

Conquista do Deserto: debates de ideias e ações

Terminadas as fases de conflitos internacionais, como a Guerra do Paraguai, que retirava as forças de exército dos fortes das fronteiras internas, o governo argentino pode finalmente voltar seus exércitos a solução do conflito com os índios do Pampa, o que coincidiu com o governo de Nicolás Avellaneda (1874-1879). A antiga disposição em definir as fronteiras internacionais e promover a “conquista do deserto”, foi então mobilizada pelo Ministério de Guerra e Marinha. No entanto, apesar da promoção das guerras de fronteira se tratarem de uma posição quase unânime, as formas de executá- la e os possíveis planos de ação, foram pensados de maneiras diferentes. A ocupação militar do Pampa e da Patagônia acompanhava questões sobre o destino dos índios, uma vez que nesse período já se sabia que era possível derrotá-los. Nas décadas anteriores, a impossibilidade militar de enfrentar os caciques, levou o desenvolvimento de mecanismos diplomáticos como o estabelecimento de tratados com os principais caciques, seguidos do pagamento de víveres na forma de animais como o gado e o cavalo, além de outros insumos criollos apreciados pelos índios (JONG, 2011, 103). A criação de um exército profissional, o desenvolvimento do setor de armamentos como os fuzis de repetição CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 82

e o incremento de tecnologia de comunicação e transportes na Argentina, foram um dos motivos da crescente vantagem criolla sobre esse conflito Inter étnico (BECHIS, 2010, 170).

Além disso, o projeto sociocultural de formação da nação argentina, que tinha como objetivo a construção de uma “civilização” de características europeias no Rio da Prata, tinha no combate a existência autônoma das sociedades originárias uma de suas metas principais. A busca pela formação de uma sociedade culturalmente homogênea como base para o projeto da nação argentina, foi acompanhada das questões sobre a submissão dos nativos, transitando por projetos que iam da transculturação ao extermínio. Dessa forma, pensou-se aqueles que deveriam ou não fazer parte da nação, dentro do referencial da civilização. Discursos com sentidos racialistas passaram a definir “outros internos” em construções que produziam diferenças raciais entre índios e brancos, afastando ou aproximando-os da civilização ou da barbárie.

A construção de uma sociedade culturalmente homogênea, se tratava de um projeto de modernização, em que a população escolhida para compor os quadros étnicos e identitários do país, estaria associada a valores como a civilização e o progresso. Era, portanto, um projeto cultural onde a adoção da cultura civilizada e europeia moldaria uma identidade oposta àquela indígena e preexistente. Nesse projeto identitário, os projetos políticos se baseavam no horizonte de expectativas formado por uma sociedade branca baseada na cultura da civilização, e as ações do presente para tal se ocupariam em combater o “elemento indígena” que eram obstáculos para a modernização social. Nesse trecho de “Bases y puntos de partida para la organización política de la republica argentina”, escrito por Juan B. Alberdi em 1852, a ação de civilizar os desertos, são colocados como inerentes ao seu povoamento com população civilizada e capaz de transformá-lo, combatendo esse “inimigo” que aglutinava a barbárie a um espaço físico:

Así Europa ejerce en América una acción civilizadora, al paso que América ejerce en Europa una reacción en sentido opuesto. (...) América ha sido descubierta, conquistada y poblada por las razas civilizadas de Europa (...). Así, el fin providencial de esa ley de expansión es el mejoramiento indefinido de la especie humana, por el cruzamiento de las razas, por la comunicación de las ideas y creencias, y por la nivelación de las poblaciones con las subsistencias. Por desgracia su ejecución encontró en la América del Sud un obstáculo en el sistema de exclusión de sus primeros conquistadores. Monopolizado por ellos durante tres siglos su extenso y rico suelo, quedaron esterilizados los fines de la conquista en cierto modo para la civilización del mundo (ALBERDI, 1852, 20 e 34) CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 83

Com aporte da ciência e das teorias raciais vindas da Europa, mas relidas e adaptadas às realidades argentinas, os intelectuais desse país produziram discursos homogeneizadores que definiam aqueles que estavam aptos a integrar sua população ideal, juntamente com discursos de heterogeneidade, produtores de diferenças que apontavam àqueles que não se adequavam. A redefinição do Estado por bases raciais, resultou na associação da Argentina como um Estado branco, colocando os índios (também os negros e mestiços) como entraves a essa realidade em construção, onde as armas ou a conversão forçada foram as únicas alternativas possíveis para as sociedades do Pampa se “integrarem” ao processo definitivo de formação da nação (BOLSANELO, 1996, 154; STEPAN, 1991, 15). Conquistar os espaços de deserto e transformá-los em território nacional, seria uma forma de ingressar definitivamente na economia capitalista baseada na pecuária, uma vez formalizada a intenção do Estado em promover a conquista dos “desertos” e em assumir a modernidade como ação política (JONG, 2016, 18).

Se modernizar significava promover a civilização, o combate à barbárie, sua antítese, também era uma forma de promover essa modernidade. Transformar “desertos”, ou seja, áreas vazias de civilização, em espaços de jurisdição do Estado argentino, correspondia a combater a barbárie contida nesses espaços, representada pelos índios que tentavam ressignificar a si mesmos no sentido de resistirem e sobreviverem. Ademais, o Estado Nacional buscava se impor sobre todos os indivíduos que se opunham ao ideal de homogeneização imposto por meio da ideia de nacionalidade, provocando conflitos entre as etnias que se viam em oposição ao novo estatuto de raça, nacionalidade e modernidade (BECHIS, 2010, 80). O processo de consolidação do Estado Nacional na Argentina é um elemento chave para compreensão das modificações na política de relações com as sociedades indígenas, já que as medidas que definiam esse Estado foram colocando em contradição a presença desses “outros internos”, resultando em discursos em que a convivência com a diferença não eram mais possíveis (HOLT e WADE, 2003, 2; BECHIS, 2010, 83).

Álvaro Barros

Entre os militares e políticos que se ocuparam em refletir sobre o fim dos desertos e o destino a ser dado a suas populações, estava a visão de Álvaro Barros. Exposta em cartas (BARROS, 1876) escritas em 1876 para Júlio Argentino Roca, comandante de CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 84

uma das posições de fronteira, Barros mostrou-se contra o que considerava o “sistema de segurança” atual das fronteiras com o Pampa e encaminhou uma nova proposta para submissão dos índios e para a conquista de seus territórios. Pode-se resumir suas propostas em três objetivos: impedir a passagem de gado para o Chile efetuada pelos índios e com a finalidade comercial, estabelecer relações de paz com os índiospehuenches (norte da Patagônia) e ocupar essas áreas de “deserto” de forma produtiva.

De acordo com Barros, era inútil manter o sistema de segurança que consistia na existência de fortes militarizados, o que ele chamava de “muralha china”, para impedir o trânsito na fronteira, uma vez que essa situação mantinha as fronteiras internas diferentes das fronteiras internacionais pretendidas, abrindo possibilidade para ocupações estrangeiras. Considerava que a falta de ações para acabar com a fronteira interna eram responsáveis pela situação de insegurança nos povoados e fazendas mais próximas deixando-os vulneráveis às invasões estrangeiras. Para Barros, lidar com a “questão de índios” não era tão difícil como se pensava. Argumentava que as etnias já haviam sido diluídas em cacicados para facilitar as negociações com o governo, o que enfraquecia o poderio étnico. Também colocava que os tratados e as rações eram meios de subsistência e os índios desejavam a paz na fronteira para manter os víveres e o seu comércio. Cessar as negociações de paz e impedir o comércio indígena deveriam ser empregados para acabar com a principal forma de subsistência dos caciques do Pampa e acelerar seu desaparecimento.

Em sua visão, a manutenção de uma “linha de fronteira” correspondia a um anacronismo, pois, esse sistema era uma continuidade com aquele operado na colônia, onde não existia o problema dos limites internacionais e apenas reproduzia uma situação de fracasso que se limitava a “oponer obstáculos materiales a la entrada o a la salida de los indios, limitandose a la importancia estrategica de las posiciones tomadas”, e ainda:

No son los indios si no nosotros mismos los verdaderos autores de nuestros males. (...) Dos millones de habitantes [argentinos] señores de todos los elementos que constituyen la riqueza y el poder no solo son impotentes para reprimir y dominar a un puñado de bárbaros hambrientos, si no son por estos dominados y devorados. (...) El resultado más grandioso obtenido alguna vez muy rara ha sido matar 20 o 30 indios dejando ellos mayor número de víctimas indefensas en nuestras poblaciones. (BARROS, 1876) CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 85

A manutenção do sistema de tratados representava a continuação da soberania indígena no Pampa, em condição independente das leis do Estado, sendo incoerente com as novas políticas adotadas no final da década de 1870. O conflito entre a soberania estatal ea soberania indígena estava presente nos tratados que demonstravam a incapacidade criolla em conquistar os territórios indígenas, dada a manutenção de acordos que garantiam a paz nas fronteiras, o que mostrava o limite de atuação do exército. A diminuição dos tratados foi um marco na mudança de postura sobre os índios, respaldada pelo novo fator: a construção do Estado Nacional. “Mientras los indios se mantengan en actitud independiente de nuestros gobiernos, tratando de potencia a potencia, para violar abiertamente los tratados, haciendo la más sangrienta burla de nuestro poder.” (BARROS, 1876)

Júlio Argentino Roca

As posições de Barros se assemelham com as de Roca: acabar com a “linha de fortes”. A manutenção de uma fronteira interna composta por uma linha de fortes, era parte da argumentação do ministro da guerra de marinha, Adolfo Alsina, que defendia ao menos para a fase inicial da conquista, a manutenção da fronteira para atuar como retaguarda para os exércitos que se ocupavam de acatar os índios e de estabelecer novas posições no deserto. O diálogo entre Roca e o ministro Alsina vai além da posição de um sistema ofensivo versus defensivo, como exposto por uma historiografia de tendência liberal (PAGANO e DEVOTO, 2009) e que engrandeceu Roca e seu papel perante a construção do Estado argentino. Tanto a ideia de Roca, quanto a executada pelo ministro Alsina a partir de 1876 se tratavam de posições ofensivas perante os índios. No entanto, Roca manifestava em cartas para Alsina, e perante a imprensa, posições diferentes daquelas aplicadas pelo ministro. Assim como Barros, Roca, um militar de carreira e conhecedor das táticas de guerras modernas, já acreditava ser possível abandonar as posições na fronteira interna e atacar diretamente os cacicados, com o objetivo de estabelecer uma nova fronteira interna no rio Negro, no norte da Patagônia argentina. O rio Negro funcionaria então como uma nova posição de retaguarda para os exércitos, pensando na ocupação efetiva da Patagônia (BANDIERI, 2009, 119).

Em julho de 1877, Roca escreveu para Adolfo Alsina reiterando a importância de acabar com a fronteira interna no Pampa e estabelecer a fronteira interna do país no rio Negro, ao explicar que na região mais a oeste do Pampa: CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 86

Dara por resultados: cortar el tráfico inmoral de los comerciantes chilenos con los ganados robados por los indios; dar mayor ensanche a la Provincia de Mendoza que necesita campos de pastoreo, al mismo tiempo que seguridad y garantías (...) y poder por aquel lado amenazar la retaguardia de los Pampas y Ranqueles. (ROCA, 1877)

A segurança e as novas razões econômicas atreladas a expansão da fronteira, eram duas motivações das expedições ao “deserto” que não podiam ser dissociadas, uma vez que a segurança relacionada com o combate aos malones era de interesse direto dos estancieiros, que também almejavam aumentar as áreas para criação de animais nas regiões mais férteis do Pampa, que geralmente correspondiam às áreas habitadas pelos índios. “La vida del robo y del pillaje que hacen los indios” era “incentivada”, na visão de Roca, pelos comerciantes do Chile, indígenas ou não, que mantinham as rotas comerciais ativas, o que incluíam os assaltos nas estâncias argentinas, embora Roca colocasse que alguns caciques como Purán, tivessem “estancias y campos de ganado” (ROCA, 1877, grifos nossos) para alimentar o sistema econômico que dependiam.

Para Roca, se os índios fossem aptos ao trabalho, poderiam ser utilizados como mão de obra, mas sua sobrevivência estaria associada a essa condição:

Es posible que las numerosas tribus que habitan esa región se sometan sin grandes dificultades y quizá se puedan hacer servir más tarde como auxiliares contra los Pampas, que ha de ser al fin necesario desalojarlos de donde estás y echarlos bien lejos o bien concluir con ellos. (ROCA, 1877, grifos nossos)

O extermínio indígena era uma pauta para Roca, que considerava que a manutenção dos tratados com os índios levaria a uma situação de paz na fronteira que eram almejada por esses grupos, pois, a situação de estabilidade era uma condição para a manutenção das rotas comerciais indígenas que ligavam o Pampa com um sistema comercial trans- cordilheirano (JONG, 2015, 35). Se fosse entendido que essas populações dos desertos não podiam atuar como mão de obra ou se resistissem se submeter aos exércitos argentinos, esses grupos étnicos deveriam ser eliminados, o que corresponderia a uma intenção clara de genocídio (LENTON, 2009, 5).1

1 Apesar desse conceito não pertencer a essa época, muitos autores preferem utilizá-lo para reforçar o caráter de destruição programada contra um grupo étnico que teve a Campanha do Deserto. Outros, de outro lado, definem como um etnocídio, em que essas populações indígenas foram destruídas como grupo social autônomo, mas que continuaram sua existência de maneira transculturada e “invisível” como parte da população argentina. CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 87

Linhas de fronteiras na década de 1870.

Mapa elaborado com base em (DE MARCO, 2010, 193) mostrando a “linha” de fortes até 1870 e depois os avanços promovidos pelo ministro Adolfo Alsina entre 1876 e 1877.

Miguel Malarin

Por fim, temos a posição de Miguel Malarin, um militar argentino que se correspondeu com Roca desde uma temporada nas legações argentinas em Washington e Paris, durante 1875-1879. Um dos principais argumentos dentro do seu conjunto de cartas, está a preocupação com o destino dos índios, uma vez terminada a etapa militar da conquista. As possíveis soluções dadas aos índios apareciam como o verdadeiro problema atrelado a Conquista do Deserto, principalmente nas cartas escritas entre 1878 e 1879, momento em que Júlio A. Roca se tornou ministro de Guerra e já estava na execução de seu plano militar de reposicionamento da fronteira interna. Definir como esses índios seriam transformados em paisanos e como seriam integrados à civilização, apareciam como o foco de suas preocupações.

Em suas considerações e em referência ao que observou nos Estados Unidos em relação as políticas contra os índios daquele país, Malarin argumentou que as políticas de extermínios eram “lentas e caras”, e que a melhor solução para o que chama de “questão de índios” era incluir os grupos étnicos na “civilização”, para que adquirissem seus hábitos e se tornassem “economicamente produtivos”. (MALARIN, 1878) Em sua visão, o verdadeiro problema não era mais o avanço das fronteiras, já que essas estavam em CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 88

vias de serem ampliadas, mas sim, o que chamava de “verdadeiro problema” estava nas políticas de incorporação da população nativa. Povoar as terras indígenas com imigrantes era uma das soluções propostas para inserir o índio nas atividades da “civilização”, tentando mudar o chamado “elemento índio”, ou seja, sua cultura e hábitos sociais.

A “parte principal” da questão se relaciona ao que fazer com os índios, como integrá-los e transformá-los, pois, para fazer parte do país, não podiam manter seus velhos hábitos: “según el sistema que se ponga en práctica la cuestión india será resuelta en 20 años o durará aun siglos; y en esto no hay que hacer ilusión: pero no creo a U. capaz de ella, pues conoce mejor que nadie nuestra historia y del continente norte-americano.” (MALARIN, 1878, grifos nossos). Pensar e aplicar formas de integração dos índios consistia no “verdadeiro problema”, baseando suas conduções nos exemplos encontrados nos Estados Unidos e aplicados por analogia ao contexto argentino. A solução desse “problema” dependia de ações conduzidas a longo prazo e Malarin não acreditava que seria solucionado por Roca, mas que caberia ao militar dar os primeiros passos nessa direção.

La expedición al desierto no viene a ser así sino un medio de obligar al indio a aceptar nuestros proyectos y en manera alguna la resolución de la parte principal. Sometidos los Pampas es necesario darles ocupación, vestirlos, racionarles, adminístralos, cuidar de ellos y mantenerse en guardia a fin de que no vuelvan a las andadas. (MALARIN, 1878, grifos nossos).

A conquista militar, nesse sentido, seria somente um meio de impor a cultura da “civilização” para as sociedades indígenas, mas que não resolveria o problema. “¿Que hacer de nuestros 200.000 indios? Se dice con frecuencia los del Norte”. (MALARIN, 1878, grifos nossos). Para responder essa pergunta destinada ao contexto norte-americano, Malarin expôs sua crença na aptidão dos índios a se civilizarem, assim como, na aptidão dos argentinos para os absorverem como parte da população, sugerindo, portanto, políticas de invisibilização sociocultural ao transformar os caciques e seus seguidores em cidadãos argentinos (TARQUINI, 2010, 55). Comparando o que viu nos Estados Unidos com as possibilidades de submissão dos índios na Argentina:

Los resultados no han correspondido aun a las esperanzas de los americanos, pero si, han dado a luz un lado bueno del carácter del indio: es decir su aptitud para civilizarse y ser moral. Para conseguir estos resultados se han fundado colonias de indios selectos (...) o bien dando a las familias más civilizadas casas y terreno en medio de poblaciones civilizadas. El pueblo americano es poco CIVILIZAR PELA VIOLÊNCIA: DEBATES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO PAMPA ARGENTINO ANA CAROLLINA GUTIERREZ POMPEU 89

simpático a la raza india, y de aquí que la asimilación de la raza india sea lenta; pero los mismos medios aplicados entre nosotros darían mejores resultados. (MALARIN, 1878, grifos nossos).

Seja priorizando o “problema” dos índios ou das fronteiras essas diferentes posições mostram como a questão foi tratada como prioridade pelo governo de Nicolás Avellaneda. Combater esse inimigo, o deserto, por meio da utopia da civilização e do progresso, teve implicações na definição da identidade e territorialidade na Argentina. Na identidade, pois, o sentido de uma nação homogênea culturalmente foi a base do discurso que legitimou as ações militares de extermínio. E de territorialidade, já que a consolidação definitiva do Estado Nacional, implicava na definição das fronteiras internais, acabando com a existência de regiões, que embora fossem consideradas como partes legítimas do que se considerava como Argentina, a presença de sociedades independentes e soberanas nesses espaços, rivalizava com as possibilidades de fechamento definitivo dessas fronteiras.

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Leitores, fãs, autores e editores: a circulação de papéis e a construção da ficção científica americana pelos futurians na década de 1940

ANDREYA S. SEIFFERT Doutoranda no Programa de Pós-graduação em História Social na Universidade de São Paulo (USP), pesquisa “O amanhã do ontem: The Futurians e a ficção científica americana na década de 1940”, financiada pela FAPESP, processo 2015/17754-3, contato: [email protected]

A ficção científica começou a ser publicada, lida e escrita nos Estados Unidos, de forma mais intensa, a partir da criação da pulp Amazing Stories, em 1926. Pulp é como ficaram conhecidas as revistas literárias impressas em papel mais barato e que se proliferaram nos Estados Unidos na primeira metade do século XX. Geralmente cada revista publicava um tipo de história: faroeste, de detetives, romances e, a partir de 1926, ficção cientifica. Depois da Amazing, outras pulps foram criadas para esse gênero literário que começava a fazer sucesso.

Imagem 01: capa da primeira edição da revista Amazing Stories, publicada em abril de 1926

Fonte: Internet Speculative Fiction Database LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 92

Além das histórias, havia nas revistas uma seção de cartas dos leitores. Nesse espaço, os leitores comentavam as histórias e trocavam impressões sobre elas. Os nomes e endereços eram impressos e assim os fãs começaram a se corresponder entre si. Os que estavam próximos, montaram grupos que se encontravam frequentemente para discutir ficção científica. Esses grupos de fãs ficaram conhecidos como fandoms e se espalharam pelos Estados Unidos dos anos 30 e 40. Esses fandoms eram bastante formais, e para fazer parte era preciso se filiar. Os grupos contavam com uma hierarquia estabelecida com presidente, tesoureiro e secretário.

Em geral, os grupos se interessavam mais pela parte da ciência da ficção científica. Nas reuniões, procuravam discutir os avanços especulados pelas histórias e muitos deles se interessavam em conduzir experimentos, sendo o foguete o principal interesse da época.

Cabe aqui uma diferenciação importante entre fãs e leitores: a tiragem da Amazing Stories, a primeira pulp de ficção científica atingiu 100.000 exemplares já nos primeiros meses de publicação (ASHLEY, 2000). Como as revistas circulavam bastante, ainda mais em tempos de crise, estima-se que o número de leitores seja bem maior. Os fãs, no entanto, são aqueles que se engajavam nas discussões, que mandavam cartas para as revistas e que faziam parte dos fandoms. Esse número é bem menor e girava em torno de algumas centenas de pessoas na década de 1930.

Os fandoms não costumavam ser grandes – em geral cada grupo contava com cerca de vinte membros - em sua maioria homens jovens. Esses jovens eram apaixonados por ficção científica e eram bastante envolvidos com isso. Assim, conduziam os fandoms de forma séria e afirmavam que para eles não se tratava de um hobby simplesmente - era um modo de vida (CHENG, 2012). Brigas e desentendimentos eram normais e quando isso acontecia, o grupo se desmanchava e novos eram compostos.

Foi assim que foi criado The Futurian Society of New York, ou simplesmente The Futurians, o fandom com o qual eu trabalho no meu doutorado. A palavra futurians é um neologismo e, em português, significa algo como futuranos. O grupo foi criado após um desentendimento no Greater New York Science Fiction Club. Alguns membros acreditavam que a ficção científica deveria engajar-se com as questões políticas de seu tempo, enquanto outros “puristas” achavam que não. Os que acreditavam que a LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 93

ficção científica não deveria se envolver formaram o grupo Queens Science Fiction Club, enquanto que aqueles que achavam que havia espaço para a política na ficção científica fundaram o grupo The Futurians.

Imagem 02: os futurians Joseph Harold Dockweiler, John B. Michel, , Donald A. Wollheim, Chester Cohen, Walter Kubilius, , , Cyril Kornbluth, Jack Gillespie e Jack Robins.

Fonte: POHL, 1978

The Futurians foi fundado em 1938 e existiu até 1945, portanto quase coincide com Segunda Guerra Mundial. Desde o começo, o grupo se diferenciou dos demais. Primeiro, pela questão política, mas esse não foi o único motivo. Como dito anteriormente, a maior parte dos grupos se interessava em falar de ciência. Embora os futurians – como eram chamados os membros – gostassem do assunto, o grupo nutria um interesse especial pela ficção. Desde o começo, os membros se interessavam em discutir as formas como as histórias eram construídas, para além do plano de fundo científico dela. E uma terceira característica fundamental dos futurians foi que ao longo da sua existência o grupo foi perdendo sua estrutura formal e foi se parecendo cada vez mais com uma família estendida.

E como uma família estendida, vários membros passaram a morar juntos e os que não moravam, frequentavam a residência onde juntos comiam, se divertiam e discutiam ficção científica. Assim, o grupo foi perdendo a rigidez comum aos fandoms de então. A parceria e troca entre eles se deu de forma intensa durante os anos de convivência do grupo, principalmente no começo da década de 1940. Os futurians enxergavam na ficção científica um mundo de possibilidades e passaram a explorar elas. LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 94

Logo, os futurians passaram a se aventurar na escrita de ficção científica. Alguns membros com mais experiência já haviam inclusive sido publicados pelas pulps de ficção científica. As histórias escritas pelosfuturians eram discutidas pelos membros do grupo, que assim se aprimoravam enquanto escritores, editores e críticos. Dessa forma, compartilhavam o conhecimento e juntos iam moldando uma noção sobre ficção científica.

Como dito anteriormente, o grupo The Futurians foi criado a partir da briga com outros fãs. Por seu posicionamento político, à esquerda, eles eram vistos como radicais e por vezes alienados da grande comunidade de ficção científica de então. Um episódio que ilustra bem a questão ocorreu em 1939, quando da primeira Convenção Mundial de Ficção Científica ocorrida em Nova Iorque. Quem teve a ideia de criar o evento foi ofuturian Donald Wollheim, aproveitando a Feira Mundial que ocorreria na cidade (POHL, 1978). O grupo rival dos futurians, no entanto, conseguiu “apossar-se” do comitê que organizava a convenção e ficou responsável por planejá-la. Ainda assim, osfuturians compareceram à convenção, mas seis deles foram impedidos de entrar. Eles resolveram, então, fazer uma “contra convenção”. O evento paralelo ocorreu na filial do Brooklyn da Liga Comunista Jovem, cujo presidente era o futurian Frederik Pohl. Esse e outros episódios de desentendimento com outros fãs contribuíram para um certo fechamento dos futurians entre si. Isso os fortaleceu enquanto grupo e para as práticas que eles passaram a desenvolver.

Os futurians levaram essa experiência do grupo para o começo de suas carreiras profissionais. Além de escritores, alguns se arriscaram também como editores. No início da década de 1940, os futurians chegaram a controlar metade das publicações de ficção científica nos Estados Unidos. O futurian Robert Lowndes editou as pulps Future combined with science fiction e Science Fiction Quartely; o futurian Donald Wollheim editou Cosmic Stories e Stirring Science Stories e o futurian Frederik Pohl foi editor das revistas e Super Science Stories com apenas dezenove anos de idade.

O orçamento das revistas era baixo e eles contavam com o apoio dos companheiros do grupo para preencher as páginas. Boa parte das histórias publicadas nas revistas editadas pelos futurians eram dos próprios futurians. Isso permitia que os escritores tivessem uma liberdade maior na hora de escrever suas histórias e pudessem testar novas abordagens e temas. Assim, os futurians foram responsáveis por criar, juntos, uma ficção científica diferente, experimental, que fugia das “fórmulas” de então. LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 95

Outra característica única dos futurians em relação a outros grupos é que eles além de se ajudarem mutuamente, também escreveram diversas histórias em conjunto. Em um levantamento que eu fiz, na década de 1940, 17 futurians publicaram nas revistas pulp 277 histórias. Destas, 27 foram em conjunto. Uma história curiosa sobre essa escrita em conjunto ocorreu com o conto The psychological regulator. O futurian Donald Wollheim submeteu ela para a pulp recém-criada Comet e foi rejeitado. O futurian Robert Lowndes então reescreveu ela e submeteu novamente à revista e foi rejeitado também. Então o futurian John Michel tentou e também foi rejeitado. Depois, foi a vez da futurian Elsie Balter reescrever e submeter a história, também sem sucesso. Por fim a versão do futurian Cyril Kornbluth foi aceita pela revista e publicada na edição de março de 1941. Kornbluth e Wollheim dividiram o dinheiro da história (RICH, 2009).

Um exemplo muito interessante da ficção científica experimental produzida pelos futurians possibilitada por essa liberdade de criar e pela proximidade entre escritor e editor é encontrado na pulp Future Fiction de agosto de 1941. A história A million years and a day foi escrita pelo futurian Donald Wollheim e narra a volta de dois astronautas – um homem e uma mulher – à Terra. Eles encontram toda a humanidade suspensa por uma espécie de coma. O mundo estava dividido por uma guerra e os dois lados criaram uma arma que, quando acionada, deixava a outra metade dormindo. Os astronautas descobrem que há dois botões possíveis de serem acionados na arma: se eles acionarem a opção “renovação” da arma, todos que estão dormindo morrerão. É possível, no entanto, acordar metade ou mesmo toda a humanidade – só que se fizerem isso é provável que a guerra continuará. O homem quer matar todo mundo e propõe que os dois recomecem a humanidade. Já a mulher não tem certeza, mas é ela quem aperta um botão. A história termina com o final aberto, sem saber o que ela decidiu. O editor da revista então, o futurian Robert Lowndes, pede sugestões aos leitores do que é que aconteceu. Janice apertou os botões para renovação, matando toda a humanidade? Ou foi para acordá- la e assim dar continuidade à guerra? Como forma de incentivo para que os leitores enviassem suas respostas, é anunciado que as três melhores irão ganhar as ilustrações originais daquele número da revista.

O concurso revela que questões os futurians consideravam que a ficção científica deveria tratar. Para além de extrapolações científicas ou literatura escapista, há outras reflexões possíveis. No caso de A million years and a day, um dilema moral. Cabia ao LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 96

leitor colocar-se no papel de autor e pensar um desfecho para a história. O exercício de imaginação proposto tanto pelo autor quanto pelo editor da revista oferecia um papel ativo para os leitores na elaboração da história. Dessa forma, a ficção científica era pensada de forma conjunta e experimental e construída o tempo todo no próprio fazer. Cada uma das três respostas vencedoras escolhidas por Wollheim e Lowndes propunha uma solução diferente: o primeiro lugar sugeria que Janice matou apenas metade do mundo, o velho mundo. O segundo lugar falou que Janice matou toda a humanidade. Já o terceiro, assim como o primeiro, propôs que Janice matou metade da população, mas dessa vez a do novo mundo. Enquanto o segundo e terceiro lugares escreveram justificando suas escolhas, o primeiro lugar entrou no modo escritor e enviou o que seria a continuação da história.

Um outro exemplo interessante da ficção científica produzida pelos futurians é a história Space Episode, da futurian Doris Marie Claire Baumgardt. O conto foi publicado na pulp Future combined with science fiction, editada pelo também futurian Robert Lowndes. O ambiente da ficção científica era hostil com as mulheres e o número de autoras era baixo. Algumas preferiam publicar sob pseudônimos masculinos justamente para evitar a reação masculina. Baumgardt encarou a audiência difícil e ainda por cima ousou ao fazer de uma mulher a heroína da história em um período em que mulheres dificilmente eram retratadas nas histórias de ficção científica e quando eram, quase sempre apareciam para fins de romance com o herói da história. EmSpace Episode, uma nave espacial é atingida por um cometa. Se não fizerem nada, os três astronautas que estão nela morrerão. A pessoa que sair para consertar, no entanto, sabe que morrerá, pois não será capaz de voltar para o foguete. Como os homens não reagem, a única mulher é quem se sacrifica:

Suddenly, it all seemed amusing to her; the question of sacrifice lay between Michael and Erik – this was strictly men’s work. But they were finding life a sweet thing – a sudden burst of laughter overcame her (…). There was only a sudden decision and she made it. This was her exit and to hell with heroes! She bowed to them scornfully, waving aside their fears with a flippant sweep of her hand. Only one regret remained now. They could have chosen fairly, made a pretense of flipping a coin. She looked cocky and defiant now, gathering tools for her job. A grin twisted her mouth into a quivering scarlet line. Would she make a television headline? Would they name a ramp after her, or, perhaps, someday, a rocket division? There were several photos of her in newspaper files; she hoped they would pick a good one when they ran the story. Oh, hers would be a heroic end (BAUMGARDT, 1994, p. 64-65)1.

1 De repente, tudo lhe pareceu divertido; a questão do sacrifício estava entre Michael e Erik - este era estritamente o trabalho de homem. Mas eles estavam achando a vida uma coisa doce - uma explosão súbita de riso a LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 97

Na seção de cartas dos leitores da edição seguinte, alguns falam que detestaram a história enquanto outros gostaram. O editor da revista, o futurian Robert Lowndes comenta:

In regard to Space Episode, the girls all thought it was grand, and most of the males seemed hurt. Well, I’ll have to admit that it was definitely a woman’s story and not exactly jibing with the masculine ego. And, further, that I wouldn’t care for a great many of such stories myself - but this once, I found it refreshingly different. Let you know next issue just how it finally came out (LOWNDES, 1942a, p. 104)2.

Na edição seguinte, Lowndes conta que Space Episode ficou em último lugar entre as histórias publicadas naquela edição da revista. E comenta:

But even though it placed last, this tale came out on the credit side of the ledger: more of you liked than disliked it. It seems as if a lot of masculine egos were wounded by Perri tale – but ardent feminists plugged it roundly. It served to show, if nothing else, that more than just a few girls read Future and they can be stirred into writing letters to the editor at times (LOWNDES, 1942b, p. 102)3.

Nessa mesma edição de abril de 1942, Lowndes publicou uma história sob o pseudônimo de “Carol Grey” e muitos leitores quiseram saber quem era essa nova autora. Ele publicou mais uma história com esse pseudônimo em dezembro daquele ano e no ano seguinte, sob o pseudônimo de Wilfred Morley, publicou uma história dedicada à Carol Grey. Nela, há um autor chamado Carol que o protagonista achava ser uma mulher, mas que era, na verdade, um homem. Assim, Lowndes brincava com seus leitores, colocava dicas para que eles conseguissem resolver o “mistério” da autoria e fazia com que as revistas tivessem uma história maior por trás.

dominou (...). Houve apenas uma decisão súbita e ela a fez. Esta foi a sua saída e para o inferno com os heróis! Ela se inclinou para eles com desdém, acenando para longe seus medos com uma varredura irreverente de sua mão. Restava apenas um arrependimento. Eles poderiam ter escolhido de forma justa, feito uma pretensão de lançar uma moeda. Ela parecia arrogante e desafiadora agora, reunindo ferramentas para seu trabalho. Um sorriso torceu sua boca em uma linha escarlate trêmula. Será que ela seria uma manchete de televisão? Será que nomeariam uma rampa com seu nome, ou, talvez, algum dia, uma divisão de foguetes? Havia várias fotos dela em arquivos de jornais; ela esperava que eles escolhessem um bom quando eles contassem a história. Oh, o fim dela seria heroico (tradução própria).

2 Em relação a Space Episode, todas as garotas pensaram que era grandiosa, e a maioria dos homens pareceu magoada. Bem, vou ter que admitir que foi definitivamente uma história de mulher e não exatamente de acordo com o ego masculino. E, além disso, eu mesmo não me importaria com muitas dessas histórias - mas, desta vez, achei-a refrescantemente diferente. Deixo vocês saberem na próxima edição como ela se saiu (tradução própria).

3 Mas, apesar de ter ficado em último lugar, essa história tem um crédito: mais de vocês gostaram do que não gostaram. Parece que muitos egos masculinos foram feridos pela história da Perri - e feministas fervorosas se importaram muito com isso. Serviu para mostrar, no mínimo, que mais do que apenas algumas garotas leem a Future e elas podem ser movidas para escrever cartas ao editor às vezes (tradução própria). LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 98

Assim, os futurians procuraram tratar de outras questões além da ciência em suas histórias e promover nas revistas discussões mais amplas. Para além da política (no sentido estrito do termo) os futurians também foram progressistas em algumas esferas num contexto bastante conservador, como é o caso das mulheres. Em outros casos, no entanto, eles não ousaram se manifestar. Ou então quando fizeram, foi através de metáforas, sem abordar o problema diretamente.

Um exemplo é o racismo. Em dezenas de histórias ele é abordado, mas sempre em relação a raças alienígenas, nunca de forma direta, falando sobre as situações do contexto que viviam. E, naquele momento, os Estados Unidos viviam a discriminação legalizada. Tanto de negros nos estados do sul do país, quanto de japoneses e descendentes presos em campos de concentração na Califórnia. Externamente, eles também assistiam ao confinamento e extermínio de judeus promovidos pelo governo nazista, sendo que vários deles eram de origem judaica. Ainda assim, nenhum deles falou diretamente sobre qualquer uma dessas coisas. As histórias geralmente se passam no futuro e é um futuro em que não há mais racismo entre os humanos – o que é positivo. Porém, o passado racista da humanidade é apagado. Na história The avenger, por exemplo, do futurian Damon Knight, uma raça alienígena avançada ataca a Terra e o personagem fala: “They have treated us precisely as we, in less enlightened days, might have treated a newly-discovered race of lower animals” (KNIGHT, 1944, p. 33)4. Knight tinha uma chance boa de abordar o racismo aqui, mas preferiu não fazer.

Ainda sobre o racismo, há um fato interessante sobre o escritor Isaac Asimov, talvez o futurian mais conhecido hoje. Asimov estava empenhado em sua carreira como escritor e, diferente dos outros futurians, publicava suas histórias quase que exclusivamente na revista Astounding Science Fiction, a pulp de maior prestígio e também a que melhor pagava à época. Essa pulp era editada por John Campbell Jr., que de certa forma era um pouco o oposto daquilo que os futurians representavam. Campbell valorizava histórias que mostrassem a superioridade humana sobre outras raças alienígenas. Asimov conta:

Por vezes tenho a desconfortável impressão, no entanto, de que esta atitude refletia os sentimentos de Campbell na escala menor, da Terra. Parecia-me que ele aceitava a superioridade natural dos americanos sobre os não americanos, e parecia assumir automaticamente a imagem de um americano

4 Eles nos trataram precisamente como nós, em dias menos esclarecidos, poderíamos ter tratado uma raça recém-descoberta de animais inferiores (tradução própria). LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 99

como alguém originário do noroeste da Europa (…). Alguns críticos de ficção científica deram-me o crédito por ter inventado a galáxia puramente humana, como se fosse alguma espécie de progresso literário. Outros podem ter pensado, em particular (pois nunca ouvi nada declarado), que eu tinha apenas inteligências humanas na galáxia porque faltava- me imaginação para criar extraterrestres. Mas o fato é que eu estava apenas tentando evitar um choque com as opiniões de Campbell; não quis estabelecer uma situação em que eu seria forçado a encarar as alternativas de adotar as opiniões de Campbell, quando as achava repugnantes, ou deixar de vender uma história (que eu também achava repugnante) (ASIMOV, 1978, p. 174).

Assim, Asimov criou algo novo para a ficção científica – que é a galáxia povoada apenas por humanos – para não ter que reproduzir em suas histórias uma noção que ele não concordava, vindo de um editor com ideias racistas.

Já em relação às ideias políticas dos futurians minha pesquisa tem sido bastante surpreendente. Como dito anteriormente, eles ficaram conhecidos como um grupo de esquerda. O “arqui-inimigo” dos futurians acusava eles de receberem dinheiro do partido comunista para propagarem a agenda comunista entre os fãs de ficção científica! Embora os futurians tivessem essa fama de comunistas, dentro do grupo havia vários ideais políticos distintos. Além disso, vivendo em uma época bastante conturbada, vários deles foram mudando seus posicionamentos ao longo dos anos. Ainda assim, eu esperava encontrar muito mais histórias tratando de política do que eu encontrei: a fama é bem maior do que a realidade de fato. O futurian que mais tratou de política em suas histórias foi o John Michel.

Uma história de Michel bem interessante é Rebirth of tomorrow, publicada na edição de abril de 1941 da pulp Stirring Science Stories, editada pelo futurian Donald Wollheim. Na história, Michel imagina um futuro em que o mundo atingiu um certo equilíbrio. Uma nova ordem foi implantada a partir da década de 1960 e duzentos e cinquenta anos depois não existem mais países nem governos locais, apenas um governo mundial. O que levou à essa situação foi um avanço científico/tecnológico, que inclui máquinas automatizadas (que inclusive se consertam sozinhas), energia atômica e viagens espaciais. Os autores nessa época depositavam uma esperança muito grande na ciência como a solução de todos os problemas e, no caso de Michel, inclusive para a política.

A Segunda Guerra vai mudar em partes essa visão otimista em relação à ciência, principalmente depois do lançamento das bombas atômicas e da noção da destruição que elas podem causar. A Segunda Guerra também vai alterar drasticamente o cotidiano de LEITORES, FÃS, AUTORES E EDITORES: A CIRCULAÇÃO DE PAPÉIS E A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO CIENTÍFICA AMERICA- NA PELOS FUTURIANS NA DÉCADA DE 1940 ANDREYA S. SEIFFERT 100

todos os futurians. Depois que os Estados Unidos entraram na guerra, o país começou um racionamento de várias coisas, inclusive de papel e as revistas que os futurians editavam não sobreviveram. Vários deles pausaram suas jovens carreiras como escritores e editores e serviram nas forças armadas americanas.

O grupo acabou em 1945, mas vários deles continuaram na ficção científica e muitos se destacaram. Asimov é um dos autores mais conhecidos do gênero. Frederik Pohl foi um importante editor, assim como Donald Wollheim e Judith Merril. James Blish escreveu, além da ficção, textos críticos. Virginia Kidd foi uma agente literária renomada. As experiências que eles tiveram como futurians e as discussões do grupo certamente tiveram impacto na forma como eles pensaram a ficção científica durante toda sua carreira e contribuíram para o desenvolvimento do gênero.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASHLEY, Mike. The Time Machines: The Story of Science-Fiction Pulp Magazines from the beginning to 1950. Liverpool: Liverpool University Press, 2000.

ASIMOV, Isaac. O Futuro Começou. São Paulo: Hemus, 1978.

BAUMGARDT, Doris Marie Claire [como Leslie Perri]. “Space Episode”. Future Combined with Science Fiction. December 1941. Holyoke: Columbia Publications, Inc, 1941.

CHENG, John. Astounding Wonder: Imagining Science and Science Fiction in Interwar America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2012.

KNIGHT, Damon [como Stuart Fleming]. “The Avenger”. Planet Stories. Spring 1944. New York: Love Romances Publishing Co., Inc., 1944.

LOWNDES, Robert A. W. “Station X”. Future Combined with Science Fiction. February 1942. Holyoke: Columbia Publications, Inc, 1942a.

LOWNDES, Robert A. W. “Station X”. Future Combined with Science Fiction. April 1942. Holyoke: Columbia Publications, Inc, 1942b.

POHL, Frederik. The way the future was: a memoir. New York: Balantine Books, 1978.

RICH, Mark. C.M. Kornbluth: The Life and Works of a Science Fiction Visionary. Jefferson: McFarland, 2009. 101

Teoria Marxista da Dependência e integração regional: uma conversa necessária

BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI Mestre em Integração da América Latina, Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP), apoio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), [email protected]

Introdução

A Teoria Marxista da Dependência (TMD) nasceu a partir da crítica à fragilidade do pensamento desenvolvimentista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) dos anos 1940-70. O estruturalismo da CEPAL a época confiava nas burguesias nacionais latino-americanas como propulsoras de uma industrialização regional, o qual reverteria o intercâmbio desigual entre centro e periferia de produtos de alto valor agregado por commotidies, respectivamente. No entanto, a expansão das multinacionais e dos investimentos externo direto das economias centrais às subdesenvolvidas a partir da década de 1950 demonstrou a continuidade da dependência da América Latina, mesmo em processo de industrialização. Tendo isso como base fundamental da TMD, foram desenvolvidos conceitos como a superexploração do trabalho e o subimperialismo. Tomando como base os conceitos fundamentais da TMD, este trabalho examina o fenômeno da integração regional, levantando as diversas interpretações já desenvolvidas. A partir disso, este trabalho tem por objetivo central levantar as contribuições da teoria para a integração latino-americana e, por fim, verificar a situação atual da integração na região.

1 Conceitos fundamentais da Teoria Marxista da Dependência

Para a TMD, o subdesenvolvimento é um fenômeno concomitante e dialético ao próprio desenvolvimento, na medida em que um alimenta o outro. Nesse sentido, Bambirra (2013) TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 102

critica as teorias liberais, modernistas e desenvolvimentistas por partirem de uma concepção gradualista do subdesenvolvimento ao desenvolvimento, não vendo, portanto, estes fenômenos como parte de uma mesma unidade histórica. Acima de tudo, a dependência é entendida como preponderante sobre o subdesenvolvimento, ou seja, a dependência dentro do sistema capitalista é a razão para o subdesenvolvimento e não o oposto.

Desta forma, os países latino-americanos mantendo-se dentro do sistema capitalista se inserem como dependentes e subdesenvolvidos, haja vista que seu esforço em se desenvolver, na realidade, é transferido aos países centrais. Além disso, o papel da burguesia nacional no desenvolvimento é descartado, haja vista que estes, por serem dependentes financeira e tecnologicamente da burguesia central, não conseguiriam agir em prol dos interesses nacionais, mas sim do capital internacional (DOS SANTOS, 1970).

Nos países dependentes, portanto, o funcionamento da economia esteve historicamente ditado pela relação entre exportações de baixo valor agregado e importações de alto valor agregado – inversamente proporcional aos centrais –, o que resulta na deterioração dos termos de troca, como já descrito na teoria desenvolvimentista cepalina (PREBISCH, 1998; FURTADO, 1968). Contudo, a precariedade dos países subdesenvolvidos aumenta, haja vista que, como forma de tentar compensar essa transferência de mais-valia,

las naciones desfavorecidas por el intercambio desigual no buscan tanto corregir el desequilibrio entre los precios y el valor de sus mercancías exportadas (lo que implicaría un esfuerzo redoblado para aumentar la capacidad productiva del trabajo), sino más bien compensar la pérdida de ingresos generados por el comercio internacional, recurriendo a una mayor explotación del trabajador (MARINI, 1973, p. 123)

Tem-se aqui um conceito central para a TMD: a superexploração do trabalho. Dentre as formas de superexploração apontadas por Marini (1973) estão: a) a intensificação do trabalho; b) o prolongamento da jornada de trabalho; e c) a expropriação de parte do trabalho necessário para que o trabalhador reponha sua força de trabalho (i.e., não é pago nem o mínimo necessário para a sobrevivência do trabalhador, podendo explorá-lo mais). Assim, além da apropriação da mais-valia por meio do intercâmbio comercial desigual, adiciona-se a apropriação por meio da superexploração do trabalho dentro do próprio país.

A viabilidade desse processo se dá, pois, a produção da economia latino-americana é, em grande medida, desvinculada de seu mercado interno, sendo voltada ao mercado externo, TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 103

ou seja, o trabalhador não é, ao mesmo tempo, um consumidor como nos países centrais. Outro fator que contribui para a superexploração nos países capitalistas subdesenvolvidos é o fato de que, enquanto na indústria manufatureira, quando se aumenta o trabalho, necessariamente acentuam-se os gastos com insumos, na agroindústria ou no extrativismo, a maior exploração do trabalho não significa o incremento de outro capital adicional, na medida em que o faz com a simples ação do homem sobre a natureza (MARINI, 1973).

Com o fim da II Guerra Mundial, iniciou-se o período que Bambirra (2013) chama de integração monopólica mundial – ou a dependência tecnológico-industrial de Dos Santos (2011). A partir desse momento, de acordo com Marini (1971), os EUA tentaram reverter sua incapacidade de absorver o rápido crescimento de seu excedente por meio de duas estratégias: grandes investimentos improdutivos – como em publicidade e na indústria bélica1 – e no mercado exterior, pela exportação de capitais, impulsionando a industrialização em países subdesenvolvidos2. Assim, criou-se uma nova divisão internacional do trabalho, agora, sob hegemonia dos EUA, o qual detinha abundância de recursos, concentrava o capital internacional e contava, ainda, com grandes multinacionais.

Concomitantemente à necessidade de expansão estadunidense, à medida que a América Latina se industrializou, cresceu a demanda pela importação de maquinários e equipamentos para a indústria, o que resultou em uma profunda crise na balança comercial por não possuir divisas suficientes para tais importações3. A partir da década de 1950, então, estimulou-se o investimento estrangeiro, iniciando-se um processo de desnacionalização da indústria, via: a) instalação direta de filiais; b) compra majoritária de ações; e c) convênios com o capital privado ou estatal para a abertura de novos setores produtivos (BAMBIRRA, 2013).

Atrelado a essa dependência tecnológica e desnacionalização da indústria, o pagamento de serviços tecnológicos, assistência técnica, patentes e royalties aprofundam ainda mais os déficits e a dependência (DOS SANTOS, 2011b). Como aponta Dos Santos,

1 A indústria bélica pode ser vista como um investimento produtivo, haja vista seu papel no desenvolvimento econômico de alguns países, como no próprio EUA. Contudo, investimento “improdutivo” aqui deve ser entendido como aquele que não produz nada que seja revertido para a sociedade.

2 Tendo em vista que as inovações tecnológicas levavam a uma redução do prazo de renovação do capital fixo, os EUA precisavam vender os maquinários obsoletos que ainda não tivessem sido totalmente amortizados. (MARINI, 1971; BAMBIRRA, 2013)

3 Segundo Marini (1971), a insustentabilidade desse esquema de industrialização dependente do setor agroexportador se dá porque este último constantemente sofrerá com a deterioração dos termos de troca, TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 104

El papel ejercido por el capital extranjero se presenta cíclicamente: los períodos de entrada y de boom económico amplían de manera provisoria la elasticidad de la balanza de pagos y propician saltos tecnológicos, pero éstos son más que compensados por los períodos de crisis, que restablecen los déficits anteriores con mayor profundidad (DOS SANTOS, 2011b, p. XXX)

Outra problemática da economia dependente é sua estreiteza de mercado interno. Com a superexploração do trabalhador e a concentração de terras4/rendimentos, o mercado das economias dependentes é estruturalmente pequeno e débil. Adicionando o capital estrangeiro, a situação se aprofunda, pois, à medida que ele se introduz na economia dependente e estimula o avanço tecnológico, a produção aumenta, necessitando de mercados ainda maiores para seu escoamento.

Em resposta a isso, forma-se o fenômeno subimperialista (MARINI, 1971), que, de acordo com Luce (2014),

deve ser compreendido como um nível hierárquico do sistema mundial e ao mesmo tempo uma etapa do capitalismo dependente (sua etapa superior), a partir da qual algumas formações econômico- sociais convertem-se em novos elos da corrente imperialista, sem deixarem a condição de economias dependentes, mas passando também a se apropriarem de valor das nações mais débeis – além de transferirem valor para os centros imperialistas (LUCE, 2014, p. 46)

Ainda segundo o autor, cinco são os elementos necessários para a manifestação do subimperialismo:

a) a ascensão de um país dependente [...] para a condição de subcentro regional respondendo pelas pautas da acumulação mundial, ao se converter em subcentro da indústria pesada com certa escala da produção interna e certo grau de operação do capital financeiro; b) a unidade entre frações burguesas, por meio do deslocamento das suas contradições internas; c) a formulação de um projeto nacional subimperialista; d) a formação de trustes capitalistas nacionais, com a atuação do Estado como instrumento de intermediação na vinculação da economia dependente ao imperialismo; e) a condição de economia dependente que não apenas apresenta transferência de valor para as economias imperialistas, mas também se apropria de valor das nações mais débeis (LUCE, 2014, p. 52). além de o mercado internacional ser incapaz de absorver as quantidades crescentes de exportação para gerar as divisas necessárias à indústria.

4 Dos Santos (2010) afirma que passadas as várias fases da industrialização, a articulação estrutural entre a sobrevivência do setor exportador e a industrialização permaneceu e solidificou uma aliança política entre ambos os setores, o que retirava qualquer dimensão revolucionária da burguesia. TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 105

Desta forma, foi possível somente ao Brasil replicar os mecanismos de transferência de valor para seus parceiros, enquanto que para países como Argentina e México não, na medida em que o primeiro não tinha o elemento “b” e o segundo não manifestou o “d” (LUCE, 2014). Outra especificação que deve ser feita é que, diferentemente do imperialista, o subimperialista não é capaz de utilizar a mais-valia gerada em sua atuação como forma de elevar seu nível de vida doméstico, pois, por estar subjugado ao imperialismo, precisa apresentar um sobrelucro ao seu parceiro, o qual só é possível a partir da exploração de seus países vizinhos e da superexploração de seu próprio trabalhador. A partir disso, lhe é consentida a criação de uma esfera de influência regional própria, com o fim de reproduzir a divisão regional desigual do trabalho na relação com seus vizinhos e transferir parte de seus lucros às economias centrais do capitalismo.

Desta forma, os projetos de integração regional, segundo Marini (1971), foram a solução encontrada para superar a situação de capacidade crescente de oferta na produção e a restrição sistemática das possibilidades do consumo. Como afirma o próprio autor,

en la medida que la extrema concentración de la propiedad y del ingreso frena el desarrollo de las áreas rurales y de las mismas islas industriales, no se ha pensado en nada mejor que interligar a éstas entre sí y, volviendo la espalda a las hambrientas masas campesinas, integrarlas en un sistema más o menos coherente (MARINI, 1971, p. 21).

Com base nisso, analisa-se em seguida a construção da integração regional.

2 Integração regional e integração latino-americana

A temática da integração regional surge já nas teorias clássicas do comércio internacional, por Adam Smith e David Ricardo, os quais acreditavam na complementaridade econômica alcançada por meio do comércio. Desta forma, têm-se os conceitos de vantagem absoluta e comparativa, os quais indicam que um país deve produzir e exportar o bem no qual tem maior vantagem produtiva frente aos demais Estados. Isso é demonstrado, por exemplo, nas clássicas fases de integração de Béla Balassa (1961), as quais têm sua evolução a partir da complexificação da integração econômico-comercial: i) zona de livre comércio; ii) mercado comum; iii) união aduaneira; e iv) união econômica completa (monetárias e fiscais). TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 106

Em relação ao impulso para a integração, Mattli (1999, apud MALAMUD, 2011) disserta que existiriam dois tipos: i) a demanda, quando o processo de integração parte de uma pressão da própria sociedade (ou parte dela); e ii) a oferta, onde o Estado toma a liderança em promover o processo de integração para estimular a interdependência entre os membros do bloco. O fenômeno da demanda seria mais comum em economias mais desenvolvidas e que já tenham algum tipo de troca.

el incremento de las transacciones transnacionales genera un aumento de interdependencia que, a la larga, conduce a los protagonistas del intercambio (principalmente empresarios y firmas) a solicitar a las autoridades nacionales o transnacionales que adapten regulaciones y políticas a las nuevas necesidades generadas durante el proceso (MALAMUD, 2011, p. 223).

A oferta, por outro lado, é mais comum em economias menos desenvolvidas. No caso da América Latina, assim como de outras regiões subdesenvolvidas, segundo Malamud (2011), a integração não se dá a partir de uma convergência inicial entre os Estados, mas sim de uma atuação central do Estado como promotor desta, ou seja, uma integração baseada na oferta.

Quanto ao funcionamento do bloco regional, existem duas teorias divergentes: o intergovernamentalismo liberal e a governança supranacional. Para o intergovernamentalismo, a soberania dos Estados nacionais é mantida na condução da integração. Enquanto isso, para a teoria da governança supranacional, a integração geraria uma dinâmica própria, alcançando uma governabilidade para além dos Estados nacionais. A União Europeia estaria no meio dessas duas teorias, pela soberania de algumas instituições do bloco (e.g. Comissão Europeia e Corte de Justiça), em contraponto com a rejeição da proposta de uma constituição europeia por França e Holanda em 2005.

Boye (2008) destaca o caráter intergovernamental dos processos de integração latino-americanos, o que reflete o controle estatal da integração e o desinteresse na perda de sua soberania em prol de uma instituição supranacional, sendo que isso está diretamente relacionado ao conceito de interpresidencialismo utilizado por Malamud (2005) para descrever a integração latino-americana, na medida em que esta estaria totalmente dependente da iniciativa de seus presidentes.

Nesse sentido, Frambes Bruxeda (1993) reflete que TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 107

En países industriales desarrollados, los aspectos económicos propician y catalizan la integración mientras que los aspectos políticos tienen una importancia secundaria. Para los países subdesarrollados ocurre todo lo contrario, es decir, no existen todas las condiciones económicas que impulsen la integración y, por lo tanto, los aspectos políticos cobran mayor pertinencia. En los países subdesarrollados es posible constatar que otros grandes intereses económicos nacionales e internacionales no se interesan en la integración, y por ello, este tipo de integración depende de una acción directa política por parte del Estado (FRAMBES BRUXEDA, 1993, p. 305)

Adentrando agora na perspectiva da TMD, mais especificamente, para Marini (S/D) e Souza (2012), a integração econômica latino-americana é pré-requisito para sua integração à economia mundial, na medida em que, separados, os países da região estariam sujeitos a serem anexados, sendo levantada até a formação de um Estado supranacional.

Chegamos àquele ponto em que nossa sobrevivência como brasileiros, mexicanos, chilenos, argentinos depende da nossa habilidade para construir novas superestruturas políticas e jurídicas, dotadas de capacidade de negociação, resistência e pressão que se requer para ter efetiva presença ante os super-Estados que existem já ou que estão emergindo na Europa, na Ásia e na própria América (MARINI, 1992, p.146)

Por isso, deve-se lutar contra as forças que buscam dilacerá-la e anexá-la separadamente. Para o Marini (1992), mesmo com o risco de destruir os setores menos competitivos de alguns países em benefícios de outros, o desenvolvimento conjunto compensaria, por meio da criação de novos setores produtivos e de serviços, baseados, principalmente, em alta tecnologia. Para isso, seria necessário deslocar a integração da administração exclusiva dos governos e da burguesia, para as mãos das forças populares, para, assim, se converter em um projeto, não só econômico, mas político e social. Ou seja, incorporar a população na integração, direcionando os investimentos à revolução educacional, à redução das altas taxas de superexploração do trabalho e à melhor distribuição de renda. (MARINI, 1992; S/D)

Contudo, ao mesmo tempo, Marini destaca que a sua própria dependência frente ao sistema capitalista impossibilita a região de integrar-se. Assim, Marini (1992) e Souza (2012) concordam que quão mais subordinada é a inserção latino-americana no sistema internacional, maior sua desintegração. Por isso, os processos de integração latino-americanos seriam impulsionados em momentos que sua inserção ao sistema estivesse em crise e a influência das potências fosse menor. Nesse sentido, Souza (2012) divide a integração latino-americana em quatro ondas. TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 108

A primeira onda (da independência às Guerras Mundiais) é caracterizada pela disputa entre os EUA e a Inglaterra pela divisão da América Latina, a qual impede a integração regional. Em um lado, estava a Inglaterra, potência política, econômica, financeira e comercial da época em função de sua alta produtividade pela Revolução Industrial. No outro, estavam os EUA com sua projeção expansionista e a Doutrina Monroe – “América para os americanos” – utilizando-se de duas estratégias: a ocupação territorial e/ou controle dos governos da região (primordialmente na América do Norte, Central e Caribe) e o próprio avanço de sua economia pujante via acordos comerciais5 (na América do Sul, principalmente). Nesta primeira onda inclui-se a primeira tentativa frustrada de integração: o projeto integracionista da Simón Bolivar na América Espanhola por meio do Congresso Anfictiônico do Panamá (1826).

A segunda onda (da crise de 1929 ao fim dos anos dourados do capitalismo em 1973) já se estabelece sob hegemonia dos EUA, em meio ao seu controle no âmbito

econômico, convertendo o dólar em dinheiro mundial, controlando as instituições multilaterais (FMI, BIRD) e promovendo o avanço de suas transnacionais; [...] militar e geopolítico, mantendo suas tropas na Europa, patrocinando a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e tentando evitar o avanço do socialismo na Ásia (guerra contra e Coreia); e, [...] político-ideológico, erigindo o anti-comunismo a doutrina central da sua propaganda ideológica, deflagrando a chamada Guerra Fria (SOUZA, 2012, p. 100).

Neste período é propulsada a industrialização nos países da região, haja vista a oportunidade criada pela crise no período das Guerras Mundiais e a política desenvolvimentista adotada por seus governos, o que levou a uma atuação mais político- ideológica (como pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR – e a Organização dos Estados Americanos – OEA) de guerra contra o comunismo, do que uma inserção econômica. Nesse sentido, a diversificação econômica na América Latina favoreceu o surgimento de iniciativas de integração. A primeira delas foi um acordo de integração comercial entre Brasil e Argentina em 1941, o qual fracassou por conta dos obstáculos postos pelos EUA frente à neutralidade da Argentina na II Guerra Mundial. Posteriormente, a criação da CEPAL (1948) foi um importante passo em prol da construção de um pensamento latino-americano. O seu principal resultado em termos de integração

5 Vale lembrar que a primeira proposta de uma “Alca” se deu nesse período, no ano de 1889. TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 109

foi a criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) (1960), mas o expansionismo estadunidense teria obstaculizado seu progresso, na medida em que necessitava buscar renovar sua indústria e buscar mercados frente a competição alemã e japonesa – vide os golpes militares na região nas décadas de 1960 e 1970.

A terceira onda (da crise da década de 1970 até o neoliberalismo dos anos 1990) se estabelece em um período de “esfriamento” da Guerra Fria e a ascensão da Alemanha e Japão frente aos EUA. Nesse contexto, foi criado o Pacto Andino (1966), o Sistema Econômico Latino-Americano (SELA) (1975), a reformulação da ALALC para Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) (1980), o Grupo de Apoio a Contadora (1983), o Grupo do Rio (1986) e ainda a aproximação entre Brasil e Argentina na década de 1980 – que resultou, posteriormente, no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Ainda assim, a influência dos EUA prejudicou algumas dessas iniciativas, como na reconfiguração do Pacto Andino6 e na proposta do MERCOSUL aos moldes do neoliberalismo. Desta forma, Souza (2012, p. 113) conclui que “A ação dos EUA não conseguiu bloquear o processo de integração latino-americano [...], mas o moldou segundo os interesses de suas corporações, ao provocar a ênfase nas relações de comércio e no regionalismo aberto”7.

Por fim, a quarta onda (de 2000 a 2013) reflete a emergência de governos progressistas, como resultado à contestação política gerada pelas crises econômico-sociais nos governos neoliberais, e o fracasso da ALCA, com a forte atuação do MERCOSUL e da Venezuela. Nesse sentido, Souza (2012) afirma que a integração latino-americana passou a fomentar os âmbitos produtivos, físico-energéticos, sociais, políticos e culturais, com a criação da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Segundo o autor, esta seria a onda com maiores possibilidades de consolidação. Frente a isso, a estratégia dos EUA tem sido a de dividir o movimento, a partir da oferta de acordos bilaterais.

Durante essa onda criou-se um ambiente propício para ações conjuntas e coordenadas na América do Sul construindo o que Sanahuja (2012) chama de regionalismo pós-

6 Além de sua fragmentação com a saída da Venezuela.

7 De acordo com Saludjian (2013), o regionalismo aberto ou “novo regionalismo” foi uma forma de incluir as novas teorias econômicas de comércio internacional – neoliberais – à integração regional, restabelecendo o modelo de desenvolvimento para fora (export-led grow) em contraposição ao protecionismo, nacionalismo e desenvolvimentismo anterior. TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 110

liberal, onde se enfatiza a contraposição ao regionalismo aberto das décadas de 1980-90, e Riggirozzi (2012) de regionalismo pós-hegemônico, o qual tem como base a resposta da região à hegemonia estadunidense.

Por outro lado, Malamud e Gardini (2012, p. 118, 131) são críticos de tais conceitos, afirmando que na realidade não haveria novos “paradigmas”, mas sim uma confusão na região, com a sobreposição de acordos de cooperação, mais do que de acordos de integração de fato: “it goals and outcomes are no longer integration but cooperation, in line with the revitalized will of the larger states”, sendo que a estratégia desses países seria de “speak regional, act unilateral, and go global”. Ou seja, haveria a disseminação de “acordos de cooperação” em prol do interesse das potências regionais, o que reflete na sobreposição do regionalismo e o conflito dos interesses nacionais.

Neste contexto, a

América Latina ha heredado en el siglo XXI, las opciones y los condicionantes estructurales de la década de los noventa, que se traducen en distintas orientaciones de política exterior atinentes a la posición en la estructura del sistema internacional por parte de los Estados y diferentes concepciones de desarrollo (BIZZOZERO, 2011, p. 40).

Segundo Briceño Ruiz, estabeleceu-se uma grande variedade de blocos econômicos com diversos eixos de “integración regional, que expresan la adopción de distintos modelos económicos, lo que a su vez es resultado de complejos procesos políticos y económicos que están teniendo lugar en la región desde inicios de la primera década del nuevo milenio” (BRICEÑO RUIZ, 2013, p. 12). Nesse sentido, são analisados três eixos de integração regional na América Latina elencados por Briceño Ruiz (2013): o eixo do regionalismo aberto, o eixo revisionista e o eixo antissistêmico.

O eixo do regionalismo aberto faz parte ainda da estratégia de integração profunda desenvolvida ao longo da década de 1990, sendo que sua estratégia de integração se dá pela liberalização comercial, primordialmente por meio de tratados bilaterais. Este eixo segue o que o autor chama de modelo do “regionalismo estratégico”, o qual tem uma marcada inclinação comercial via livre comércio para a abertura da região integrada à economia internacional. Dentre os exemplos levantados, para além dos próprios tratados bilaterais, estão o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), a tentativa frustrada da TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 111

ALCA e, mais recentemente, a Aliança do Pacífico, o que prova a sua permanência como estratégia de integração contemporânea na região.

O eixo revisionista, por outro lado, é descrito por meio do MERCOSUL, o qual “sufre la transformación de un modelo de regionalismo estratégico a un hibrido que incluye elementos de los modelos de regionalismo social y productivo” (RUIZ, 2013, p. 23). Desta forma, o MERCOSUL teria adicionado à sua origem como regionalismo aberto a dimensão social e produtiva8, como com a criação do MERCOSUL Social (2005), do Plano Estratégico de Ação Social (2010), do Programa de Integração Produtiva e do Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM). Outro exemplo levantado pelo autor é a Unasul, a qual estabelece um projeto de integração que abrange a esfera política (projeto de liderança brasileira sul-americana), social, infra estrutural (IIRSA/ Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento – COSIPLAN) e securitária (Conselho de Defesa). Seu hibridismo se apresenta na transformação de sua origem em 1993 na Área Sul-Americana de Livre Comércio (ALCSA) – com um foco no comércio e na infraestrutura –, para, em 2004, tornar-se Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), até, em 2008, ser nomeada como UNASUL.

Finalmente, o eixo antissistêmico é caracterizado por seu foco no regionalismo social e produtivo, onde se busca o desenvolvimento por meio da cooperação (e não pela competição), ao mesmo tempo em que se concebe como um modelo anticapitalista e anti-imperialista. Sua representação se dá pela ALBA, a qual nasceu como resposta da investida estadunidense da ALCA. Dentre suas principais iniciativas estão o Sistema Unitário de Compensação Regional (SUCRE), a Eco ALBA, as empresas Grannacionais (desenvolvimento produtivo conjunto), a Petrocaribe e a Petrosur. Ainda assim, Briceño Ruiz (2011) destaca que

El ALBA se presenta como un nuevo modelo de integración, pero no existe literatura que lo explique conceptualmente. En otras palabras, no se conoce la teoría del “modelo de integración ALBA”. Apenas se ha mencionado el concepto de “ventajas cooperativas”, pero no existe ni una definición de éstas ni una explicación de la forma como operan. Por otra parte, el ALBA se describe como “un modelo no capitalista”, pero tampoco se dan muchos detalles de este modelo (Briceño Ruiz, 2011, p. 62, apud LANA SEABRA, 2014)

8 A dimensão produtiva também é abrangida no eixo do regionalismo aberto, vide a integração produtiva (mesmo que desigual) existente entre EUA e México pelas maquiladoras. No entanto, tal integração partiu mais da iniciativa privada do que de políticas públicas promovidas pelo NAFTA, por exemplo. É neste TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 112

Contudo, o cenário regional e internacional a partir de 2013 mudou drasticamente. No cenário global, o ciclo de crescimento econômico baseado na expansão econômica chinesa teve um declínio. Paralelamente, a crise econômico-financeira vivida pelos EUA e pela Europa desde 2008 deu lugar à sua recuperação e retomada do crescimento e estabilidade. Politicamente, a postura conservadora e nacionalista ascendeu nos países centrais, como se pode constatar pela votação em favor da saída da Grã-Bretanha da União Europeia (2016) e a eleição de Donald Trump (2017-) à presidência dos EUA.

Frente a este cenário de reduzida margem de manobra, ao contrário da adoção de medidas “anticíclicas” ao conservadorismo e retomada de espaço das potências regionais, a região recuou tanto no que diz respeito ao crescimento econômico quanto à integração regional. Como reflexo da queda dos preços das commodities e do petróleo, grande parte das economias sul-americanas foi afetada e teve seu crescimento e estabilidade reduzidos drasticamente, como é o caso da Argentina, Brasil e Venezuela. No plano político, os governos progressistas da onda rosa foram perdendo sua base e espaço para a ascensão de lideranças mais conservadoras e alinhadas a reformas neoliberais, vide eleição de Maurício Macri na Argentina (2015), o golpe vestido de “impeachment” de Dilma Rousseff no Brasil e a crise político-econômico-institucional do governo Nicolás Maduro na Venezuela.

Com base nisso, inicia-se uma nova onda da integração latino-americana: a “contrarregionalização”. O cenário de crise, a instabilidade política e a ascensão conservadora e neoliberal enfraquecem as iniciativas progressistas lançadas na onda anterior, paralisando-as ou, até mesmo, desconstruindo-as. Dentre os exemplos estão: a CELAC, a ALBA, a Aliança do Pacífico e a UNASUL. A CELAC, desde sua própria concepção, sofre com o obstáculo de sua abrangência, na medida em que os diferentes modelos de desenvolvimento adotado por seus membros e a própria preferência brasileira à América do Sul (SARAIVA, 2013) refletem uma profunda heterogeneidade política, econômica, infra estrutural, social, demográfica e cultural entre seus membros. Assim, somado ao cenário atual, a CELAC carrega um papel diplomático de baixo perfil, mantendo-se como um mecanismo intergovernamental de diálogo e concertação política caso haja vontade política para isso.

ponto, portanto, que se agregou a dimensão produtiva ao regionalismo híbrido, ao terem sido fomentadas políticas nesse sentido. TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E INTEGRAÇÃO REGIONAL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA BEATRIZ WALID DE MAGALHÃES NADDI 113

A ALBA se sustenta como uma grande resistência, mas que se vê cada dia mais ameaçada frente à instabilidade político-econômica do governo de Maduro. A própria Aliança do Pacífico, mesmo sendo uma proposta de regionalismo aberto, tem seu projeto de integração ao pacífico enfraquecido pois o próprio Trans-Pacific Partnership perdeu seu peso com a retirada dos EUA pelo governo conservador de Donald Trump em 2017. Por fim, o mais simbólico dessa nova fase foi a suspensão voluntária de Brasil, Argentina, Paraguai, Colômbia, Chile e Peru da UNASUL em abril de 2018 justificada pela paralisia do bloco, vide a dificuldade no estabelecimento de consensos e a própria ausência de um secretário-geral (PARAGUASSU, 2018).

Reflexão final

A partir do exame conjunto dos conceitos fundamentais da TMD e das características do fenômeno da integração regional foi possível construir uma análise da integração latino-americana, levantando seus parâmetros e suas fases. Nesse sentido, verifica-se que a fase mais próxima à proposta da TMD para a integração latino-americana foi entre 2000 e 2013, com destaque para a ALBA e, em menor grau, a UNASUL. Contudo, o cenário multipolar deste período é reduzido a partir do reposicionamento conservador das hegemonias centrais (EUA e Europa). Refletindo tal cenário internacional, as forças políticas regionais também são paulatinamente substituídas por tendências conservadoras e neoliberais. O resultado é uma nova onda de contrarregionalização e fragmentação das iniciativas construídas no período anterior. Questiona-se, enfim, qual o futuro da integração latino-americana?

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Política e identidade norte-americana em O Álamo, de john wayne

BRENO GIROTTO CAMPOS Mestrando em história pela Universidade Estadual Paulista campus Assis. Órgão financiador: CAPES. E-mail para contato: [email protected]

O ano de 1960 é uma baliza interessante para a história dos EUA. Escancarando as contradições que se consolidam ao longo da década, esse momento histórico conflitante se manifesta também no cinema e O Álamo se encontra inserido neste momento de transição revelando muito de seus aspectos. O pós-guerra trouxe um surto de crescimento e desenvolvimento para o Estados Unidos, o tornando uma das potências globais juntamente com a União Soviética, sua rival na busca pela hegemonia global. Internamente, os norte-americanos presenciaram uma estabilidade econômica em decorrência da geração de empregos e aumento do Produto Nacional Bruto durante a II Guerra Mundial que proporcionou um aumento do consumo, da taxa de natalidade (o chamado baby boom) e o surgimento de uma classe média que contrastava com o período de crise econômica dos anos 1930. Agora todas famílias sonhavam em ter um uma casa no subúrbio, carro na garagem e um aparelho de televisão na sala. Este último se tornou onipresente nos lares estadunidenses. Desenvolvido em fins da década de 1920, era uma raridade encontra-lo até os anos 1945, mas em 1952 dois terços de todas as famílias possuíam um aparelho ao menos. Era a partir dele que a família sentada na sala comendo suas refeições descongeladas no micro-ondas assistiam aos mais diversos programas, seriados, noticiários e principalmente filmes de cowboys (GRANT, 2008, p. 23).

Se a década de 1950 foi marcada pelo crescimento e consumo, os anos 1960 foram marcados pela tensão. A sociedade que crescia pujante agora demonstrava sinais de rompimento e suas contradições eram latentes. As mulheres que saíram para trabalhar durante os anos 1940 não queriam mais ser tratadas como simples esposas e mães a cuidar do lar, o movimento pelos direitos civis dava continuidade a POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 118

uma longa batalha pelo reconhecimento da cidadania do povo negro e o movimento da contracultura questionava as bases da sociedade estadunidense pautada no lucro, crescimento profissional e família monogâmica.

Na política externa, os anos 1960 foram igualmente conturbados para o Estados Unidos. Marcados por uma tentativa de arrefecimento das tensões entre Estados Unidos e União Soviética, a transição dos anos 1950 e 1960 presenciou a Revolução Cubana e sua aproximação com o bloco soviético em 1961, representando um grande perigo para os norte-americanos. O ponto de tensão máximo foi em 1962 quando o governo de Moscou instalou mísseis na ilha caribenha, no episódio conhecido como a Crise dos Mísseis. Apesar de assinaturas de tratados entre as duas potências do período, conflitos como a Guerra da Coreia e a construção do muro de Berlim demonstram a tensão que o mundo estava inserido e escancarava suas contradições.

John Wayne via este momento com muita apreensão. Para ele, este era um momento muito perigoso para o Estados Unidos pois as pessoas teriam esquecido os atributos essenciais a América:

O melhor lembrete que podemos ter na história do mundo em minha opinião é o que aconteceu no Álamo em San Antonio, Texas. Onde 182 americanos se trancaram em uma velha missão por 13 dias e noites contra cinco mil homens do ditador Santa Anna[...] Sou grato por produzir um filme que traz a verdade e a realidade do acontecimento e apresenta um dos temas mais inspiradores e divertidos que já foi visto nos filmes (EYMAN, 2014, p. 330).

Wayne acreditava que O Álamo seria o filme mais importante em décadas e se dedicou a ele como se sua carreira dependesse disso.

John Wayne foi uma das estrelas mais populares na história do cinema. Foi descrito pelo crítico de cinema Eric Bentley como o “americano mais importante de todos os tempos”. Para o General Douglas MacArthur, que liderou as tropas americanas na Guerra da Coreia, Wayne representava o militar americano melhor que o próprio militar americano. John Wayne foi muito além de um ator e estrela de cinema, ele foi uma lenda nacional, um símbolo do Sonho Americano.

A carreira de John Wayne durou de 1926 até 1976. Ele presenciou as principais POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 119

transformações na indústria cinematográfica, como a transição do cinema mudo para o falado. Wayne participou de aproximadamente 200 filmes, mas sua participação em diversos westerns de baixo orçamento dificulta precisar a quantidade exata. Segundo Emanuel Levy, crítico de cinema, sua carreira consiste em 5 fases distintas. A primeira, entre 1925 e 1930, vimos sua escalada de um ajudante de estúdio a protagonista do filme Big Trail (1930). Na segunda fase, de 1930 a 1939, Wayne declinou de uma estrela em potencial para um ator de filmes B de faroeste. Na década seguinte, de 1939 a 1948, ele continuou crescendo como ator. Entre 1949 e 1969 é a fase crucial de sua carreira, quando atinge o status de ator mais popular dos EUA. E na década de 1970, Wayne salta de estrela de cinema a lenda nacional e se torna um genuíno herói do folclore americano (LEVY, 1998, p. xvi).

Nascido como Marion Michael Morrison em 26 de maio de 1907, em Winterset, no Iowa, Wayne começou a trabalhar na indústria do cinema ainda jovem. Quando estava na Universidade do Sul da Califórnia cursando direito, seu treinador de futebol americano, Howerd Jones, lhe conseguiu um emprego junto a Tom Mix, ator de diversos filmes westerns, dentre eles A Grande Emboscada (The Great K & A Train Robbery, 1926) e O Cavalo Alado (The Miracle Rider, 1935). No verão de 1925, John Wayne começou a trabalhar no departamento de produção do Fox Studios.

Nunca foi o sonho de Wayne trabalhar com produção de filmes ou mesmo se tornar um ator. Como ele mesmo definia sempre que questionado sobre o rumo que sua vida tomou: “eu fui o homem certo, no lugar certo, na hora certa”. Mas retornando a faculdade depois das férias de verão ele começou a pensar que todos seus colegas tinham parentes e contatos no ramo do direito e que se ele quisesse seguir esse caminho teria que gastar muito tempo como assistente para depois iniciar sua própria carreira.

Ao longo da década de 1920, Wayne continuou trabalhando como assistente de produção ganhando 35 dólares por semana. Mas sem dúvida seu trabalho mais importante durante este período foi em Mother Machree (1928), onde ocorre seu primeiro encontro com o diretor de cinema John Ford. Ford foi uma grande influência profissional e pessoal para Wayne e certamente ele foi um dos responsáveis pelo seu sucesso. Se inspirando em John Ford, John Wayne tinha ambição de se tornar diretor de cinema, desejo que se realizaria anos mais tarde com a produção de O Álamo. POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 120

A primeira vez que apareceu nas telas de cinema foi como dublê em cenas de futebol americano Brown of Harvard (1926) e Drop Kick (1927). E em 1930, Duke, apelido pelo qual era conhecido entre seus familiares e amigos, fez sua estreia como protagonista em um filme. EmBig Trail (1930), dirigido por Raoul Walsh, então conhecido como Duke Morrison, interpreta Breck Coleman, um jovem que retorna ao Missouri para guiar uma caravana em direção à Califórnia e descobrir quem matou seu amigo. Ao creditar o filme, o produtor Winfield Sheehan não gostou do nome artístico utilizado por Morrison, Walsh sugeriu então Anthony Wayne, general da Revolução Americana. Sheehan achou “muito italiano”, quando alguém sugere “John Wayne”, que é prontamente aceito pelo diretor, sendo desde então o nome artístico de Marion Morrison.

A década de 1930 é o período que Wayne mais atuou, aparecendo em 67 filmes, quase um terço de todos os filmes que fez na vida. A maioria destes filmes eramwesterns de baixo orçamento, o que facilitava a produção e seu lançamento por terem roteiros simples e as vezes até os nomes se assemelhavam: The Telegraph Trail, The Desert Trail e The Oregon Trail; Ride Him, Cowboy, Riders of Destiny e Randy Rides Alone. Por serem baratos e filmados em poucos dias, Wayne conseguia participar de em média 7 filmes por ano, chegando ao ápice de filmar 11 em 1933. (LEVY, 1998, p. 12)

Após as décadas iniciais participando em filmes de baixo orçamento, Wayne conseguiu diversos papéis em filmes de maior orçamento e bilheteria com diretores consagrados no final dos anos 1930. Neste período, participou de 31 filmes e eu papel em No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), considerado por ele mesmo como o início de sua carreira, inaugura esta nova fase. Na trama, Wayne interpreta o jovem Ringo Kid, um criminoso que foge da cadeia para vingar o assassinato de seu pai e irmão. Para chegar a Lordsburg, cidade onde os assassinos de sua família se encontram, ele pega carona em uma diligência que se dirige a cidade e leva pessoas muitos diferentes entre si. Ali, Ringo conhece o doutor Boone e a prostituta Dallas, que foram expulsos da pequena cidade de Toto, de onde parte a diligência, pela Liga da Lei e da Ordem, uma jovem grávida chamada Lucy, que está viajando para encontrar seu marido, um oficial da cavalaria, um vendedor de whisky, Samuel Peacock, e um banqueiro com uma retórica liberal chamado Henry Gatewood. No caminho até Lordsburg a diligência é ataca pelos índios apaches liderados por Gerônimo e seus ocupantes são salvos pela chegada da cavalaria. No Tempo das Diligências é um dos westerns mais clássicos produzidos por John Ford e foi considerado POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 121

em 1995 pela Biblioteca do Congresso americano como um filme significativo pelos seus aspectos culturas, históricos e estéticos (LEVY, 1998, p. 13)

Durante a II Guerra Mundial, os filmes do gênero Western caíram de popularidade. Historiadores estimam que entre 1942 e 1945 foram produzidos 1700 filmes, sendo que 500 deles tratavam de alguma maneira da guerra. Wayne fez aproximadamente 16 filmes de guerra, o primeiro foi A Longa Viagem de Volta (The Long Voyage Home) e Fugitivos do Terror (Three Faces West) ambos de 1940. Um dado curioso é que Wayne nunca participou de filmes sobre a Guerra das Coreias, mas por outro lado foi o primeiro diretor a tratar da Guerra do Vietnã, em Os Boinas Verdes (The Green Berets, 1968).

Autores como Emanuel Levy atribuem a fascinação de Wayne por filmes de guerra ao fato dele nunca ter ido para o front. Durante a Primeira Guerra Mundial, Duke era muito jovem, tinha apenas 7 anos. E durante a Segunda Guerra Mundial, ele já estava com 34 anos e tinha um problema no joelho recorrente de seus anos jogando Futebol Americano na universidade, além de ter uma família grande para sustentar. E sua frustração só aumentou quando viu atores de Hollywood como James Stewart, Clark Gamble e Henry Fonda irem servir os Estados Unidos no conflito.

Wayne conseguiu criar uma persona em seus filmes de guerra, que era caracterizado por temas que recorrentemente apareciam nos filmes. São eles: o comandante durão e patriótico, o homem de ação que quer lutar e odeia trabalhos de escritório e o líder carismático. Mas o mais importante em seus filmes de guerra era sua atitude em relação aos soldados e seu desejo obsessivo em torna-los “homens de verdade”. Na maioria dos filmes há a questão do conflito geracional, o contraste entre Wayne, um comandante experiente, e seus soldados, jovens e inexperientes.

Esse é o pano de fundo de Tigres Voadores (Flying Tigers, 1942). Wayne no papel do Capitão Jim Gordon lida com um novo recruta, Woody Jason, interpretado por John Carrol, que foi para o exército apenas visando conseguir dinheiro. Depois de ver um de seus amigos morrer em combate e Wayne o afastar da ação, Jason compreende a guerra de fato: “Eu era uma criança, e precisou que alguém morresse para eu me tornar um homem”. Aqui, o personagem de Wayne funciona como o exemplo de homem, uma espécie de pai sociológico, como Levy define, para que Jason amadureça e encarar o que POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 122

realmente era a guerra. Apesar de ter uma postura severa e muitas vezes autoritária, os personagens de Wayne possuem um lado afetivo onde se manifesta seu lado paternal. É o que vemos em Horizontes de Glória (Flying Leatherneck, 1951), onde Wayne interpreta o Major Dan Kirby, um comandante odiado por seus subordinados, mas que na hora do combate real ganha o apreço do grupo (LEVY, 1998, p. 29).

Após os anos de guerra, Wayne volta a fazer filmes westerns. As duas décadas seguintes entre 1946 e 1960 é o momento mais importante de sua carreira. É onde ele protagoniza seus filmes mais icônicos, como Iwo Jima – O Portal da Glória (Sands of Iwo Jima, 1949), filme responsável pela primeira nomeação de Wayne ao Oscar de melhor ator e colocá-lo também pela primeira vez na lista das 10 estrelais mais populares do Estados Unidos no ano de 1949. No filme, Wayne sustenta sua persona de líder severo e disciplinador, onde seu personagem o Sargento John Stryke não tem o apreço de seus homens até provar que suas táticas e conhecimento sobre o campo de batalha são valiosos e conquista a confiança daqueles que comanda.

A última fase da carreira de Wayne começa com Bravura Indômita (True Grit, 1969), pelo qual ganhou um Oscar de melhor ator, e se encerra com O Último Pistoleiro (The Shootist) em 1976. Neste período, ele participou de 12 filmes, sendo 10 Westerns. Este foi o período que alçou Wayne de grande estrela do cinema para se tornar uma lenda. Um crítico escreveu sobre sua atuação em Bravura Indômita “o verdadeiro clímax de uma grande e amável carreira, se não como um ator então como uma instituição americana”.

A partir dos anos 1950, John Wayne começou a introduzir suas ideologias nos filmes e utilizá-los como ferramenta de propaganda de suas ideias. Através da Batjac, a produtora que fundou para produzir os projetos que refletiam suas posições políticas, Wayne lançou filmes como Aventura Perigosa (Big Jim Mclain, 1952), filmes com forte conteúdo anticomunista, O Álamo, fonte de nossa pesquisa, e Os Boinas Verdes (Green Berets, 1968), o único filme pró-Vietnam da época. Estes filmes são importantes para compreender a crenças políticas e visões de mundo de Wayne, principalmente em relação ao seu anticomunismo e devoção aos valores da América.

Um dos primeiros filmes de sua produtora, Aventura Perigosa (Big Jim McLain, 1952) conta a história de Jim McLain (John Wayne) e Mal Baxter (James Arness), dos POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 123

investigadores do Comitê de Atividades Antiamericanas1 (HUAC) que, após mais um absolvição de um grupo de comunistas pelo Comitê baseado na 5ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante o direito aos réus de não se auto incriminarem, são enviados para o Havaí em uma missão secreta para investigar uma suposta conspiração comunista na ilha. O objetivo da operação, batizada como “Operação Abacaxi’, era acabar uma rede de espionagem comunista responsável por inúmeros distúrbios na ilha.

Uma clara propaganda a favor do HUAC e uma crítica direta aos investigados que recorriam a 5ª emenda para não prestarem os esclarecimentos, Aventura Perigosa teria sido baseado em um artigo publicado na Saturday Evening Post intitulado “We almost lost Hawaii to the reds”. A maioria dos temores de uma infiltração comunista no Havaí no final dos anos 1940 quando uma série de protestos e paralisações de estivadores ocorreram na ilha.

As cenas iniciais do filme já dão o tom que a história seguira. Após a cena inicial, vemos uma tempestade e uma árvore balançando com a forte chuva e vento2, a tela mostra a imagem do capitólio e um narrador diz:

Nós, os cidadãos dos Estados Unidos da América, temos como estes, nossos representantes eleitos, uma grande dívida. Destemidos pela viciosa campanha de difamação lançada contra eles como um todo e como indivíduos, eles continuaram firmemente sua investigação perseguindo suas crenças declaradas que qualquer um que continuasse a ser comunista depois de 1945 seria culpado de alta traição.

Em seguida vemos a audiência do Comitê de Atividades Antiamericanas, onde ocorre um interrogatório a um professor universitário suspeito de ser membro do partido Comunista. Ao ser questionado, o suspeito evoca a 5ª emenda para não responder à pergunta. Outro investigador questiona se o suspeito, em caso de uma guerra entre Estados Unidos e União Soviética, serviria seu país de bom grado, o investigado novamente evoca a emenda que garante o direito de não se auto incriminar. Em seguida aparece, com uma narração over o personagem de John Wayne indignado pelos 11 meses de investigação

1 John Wayne esteve envolvido com outra organização que defendia os valores americanos e o anticomunismo, a Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals (MPA, como era conhecido). Wayne apoiou a criação do órgão juntamente com outros atores, diretores e roteiristas de Hollywood. Wayne se tornou presidente da entidade em 1949, servindo por quatro mandatos, até 1953.

2 Nanci Espinosa, em sua dissertação intitulada Hollywood e a contenção do “mal”: Propaganda e legitimação das ações de repressão ao comunismo na Era McCarthy, 1947 – 1954, analisa profundamente esta cena inicial e o filme em questão. POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 124

perdidos, os quais levantou documentos irrefutáveis da associação do suspeito com o partido Comunista. E a maior indignação do personagem de Wayne é que o professor retornará a sua universidade para “contaminar mais crianças”.

Aventura Perigosa, é um dos filmes protagonizados por Wayne onde o anticomunismo está mais latente e visível. Os comunistas são representados como pessoas cruéis e sem remorso que apenas querem tomar o poder, abandonam a própria família e não sentem empatia por ninguém. Em contraposição, Jim McLain é um homem sério, dedicado ao trabalho, crente a Deus e que busca construir uma família, defendendo os valores da América. Quase o próprio Wayne no filme (ESPINOSA, 2015, p. 40)

O estilo de vida de John Wayne estava intimamente conectado com sua imagem nos filmes. Diferente de outras estrelas de Hollywood que nem sempre eram aquilo que passavam ao público, criando uma tensão entre sua vida pública e a privada, Wayne reforçava suas visões de mundo e explicitava suas opiniões. E seus valores iam de encontro com os valores da nação americana: o trabalho duro, conquistas individuais e o sucesso financeiro. No seu estilo de vida, Wayne exemplificava os valores mais importantes do Sonho Americano: a mobilidade ascendente, o sucesso e realização social. Ele mesmo era um exemplo de self-made man, ideia muito arraigada ao imaginário norte-americano. Ele tinha se tornado ator por acaso, mas sua dedicação e ambição pelo sucesso o levaram ao topo. O crítico Joan Mellen diz que a importância do fenômeno de Wayne é que ele era um estadunidense comum que subiu ao topo da escala social e tornou-se um exemplo do sistema democrático americano (LEVY, 1998, p. 260)

Wayne entendia que seus filmes eram um veículo para suas ideias. Em carta dirigida ao presidente Lyndon B. Johnson, ele explicita seu desejo de produzir um filme sobre a Guerra do Vietnã que ajude a sensibilizar o povo estadunidense à causa da guerra. Wayne reconhecia que a participação do Estados Unidos no conflito não agradava a população, mas ele concordava com a postura do presidente Johnson e acreditava que a melhor forma de sensibilizar e informar a opinião pública sobre o conflito no Sudeste Asiático era através do cinema:

Nós queremos contar a história de nossos combatentes no Vietnã com bom senso, emoção, caracterização e ação. Nós queremos fazer de uma forma que inspirará uma atitude patriótica por POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 125

parte de nossos companheiros americanos - um sentimento que nós já tivemos nesse país no passado durante tempos de estresse e problemas. (DA SILVA, 2016, p. 22)

Wayne sempre apoiou os esforços americanos em guerras. Apesar de não ter servido as forças armadas em nenhum conflito, sempre esteve próximo dos soldados, seja em visitas a acampamentos ou os representando em filmes, os quais eram muito populares e funcionavam de certa forma como propaganda para alistamento. Sua opinião sobre a Guerra do Vietnã não era diferente e ele abominava atores e atrizes hollywoodianos que criticavam a atuação dos Estados Unidos na guerra.

O filme que congregava o desejo de Wayne e sua visão sobre este conflitoé Os Boinas Verdes (The Green Berets), dirigido por ele próprio e lançado em 1968, e sua mensagem principal é reforçar a intervenção norte-americana como algo positivo e necessário. Na trama, somos apresentados ao jornalista Georg Beckworth que não está convencido sobre a participação dos Estados Unidos no conflito do Sudeste Asiático. Após uma apresentação das Forças Especiais (também conhecidos como Boinas Verdes por conta de sua boina distinta de serviço) ele decide acompanha-los ao Vietnã para ter uma outra visão sobre a guerra. Lá, Beckworth percebe que os Estados Unidos têm a missão de libertar os vietnamitas da ofensiva comunista que, na ótica do filme, apenas leva tirania e miséria ao país. Em diversas passagens vemos como os Boinas Verdes fazem um trabalho humanitário no Vietnã, como cuidar do pequeno Hamchuck, um órfão vietnamita que vive junto com os soldados na base construída no meio da selva.

Os Boinas Verdes, além de servir como uma propaganda pró-intervenção estadunidense no Vietnã, funciona também como uma forte propaganda anticomunista. Isso é percebido logo nas primeiras cenas do filme. Em uma apresentação para a imprensa e civis, os soldados das forças especiais relatam suas funções e qualificações e em seguida respondem a perguntas da plateia. Na primeira pergunta o suboficial Muldoon é questionado por um jornalista se os Estados Unidos deveriam lutar nesta “guerra cruel”, responde que não cabe aos militares tomar decisões sobre política externa, apenas combater onde é ordenado. Outro jornalista então questiona se os Boinas Verdes são robôs sem sentimentos e se os sul-vietnamitas realmente querem a presença estadunidense. O Sargento McGee responde que não há como eles não se sensibilizarem com a morte de civis alheios à guerra e reflete que se o POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 126

mesmo ocorresse nos Estados Unidos, se os políticos, intelectuais e as autoridades morressem, seria necessária uma intervenção externa.

Neste ponto, o jornalista George Beckworth, que iremos acompanhar no filme, levanta o questionamento se seria correto lutar pelo governo sul-vietnamita, um governo que não foi estabelecido com eleições livre e nem possui uma constituição. Quem responde sua pergunta é o suboficial Muldoon:

A escola onde estudei ensinou que as 13 Colônias com lideranças instruídas, todas visando o mesmo objetivo após a Guerra de Independência, levaram de 1776 e 1787, 11 anos de esforço pacífico para escrever um documento que todas as 13 colônias assinassem. A nossa atual constituição. (BOINAS VERDES, 1968, cap. 3)

Muldoon é aplaudido pela plateia presente. Esta cena revela todo sentido que John Wayne almeja passar sobre a intervenção estadunidense no Vietnã. Ao recorrer ao exemplo da luta das 13 colônias pela independência, o suboficial coloca os esforços norte-americanos no Vietnã como uma luta de um povo oprimido pela sua liberdade, onde os Comunistas seriam os catalizadores de toda a opressão e autoritarismo e os Estados Unidos o grande libertador e exemplo de democracia a ser seguido.

Ainda não convencido, Beckworth diz que as pessoas acham que esta é uma guerra entre os vietnamitas, na qual o governo norte-americano nada tem a ver. Muldoon então apresenta armas apreendidas pelo exército estadunidense no Vietnã produzidas pelos “chineses vermelhos” e por “comunistas russos” e munições produzidas por “comunistas tchecos”. As armas, segundo o suboficial, eram as provas cabais da dominação comunista do mundo.

Ao fim da apresentação o jornalista passa pelo Coronel Kirby, personagem de John Wayne, e afirma ainda não concordar com o envolvimento do Estados Unidos no Sudeste Asiático. Kirby apenas pergunta se ele já esteve no Vietnã para ter esta opinião e quando Berckworth responde que não, ele apenas o ignora. Aqui temos o exemplo da linha de raciocínio condutora de Os Boinas Verdes, o ver para crer. Os jornalistas seriam os representantes da figura do intelectual, aqueles que não tem vivência prática sobre o campo de batalha e apenas condenam o conflito atrás de suas mesas ou em seus escritórios. Após Beckworth ir para o campo de batalha e vivenciar o que realmente é a POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 127

guerra, ele muda de opinião e apoia as ações dos Boinas Verdes3.

Os Boinas Verdes é um filme com a marca de John Wayne, não só pela posição política defendida, mas por trazer elementos básicos que Wayne tinha familiaridade típicas do gênero western. No filme, os boinas verdes se dirigem para uma região afastada que se assemelha a uma região de fronteira do velho Oeste americano no Vietnã do Sul onde ajudam na construção de uma base militar. O embate contra o exército do Vietnã do Norte reproduz o binômio estadunidense e seus aliados sul-vietnamitas representantes da civilização, liberdade e valores nobres do Ocidente contra os bárbaros vietcongs aliados do comunismo.

Apesar de apresentar um discurso anticomunista tão escancarado como os dois filmes apresentados anteriormente, O Álamo é, segundo Emmanuel Levy, o trabalho que mais expressa as visões política e sobre a América de John Wayne. Ele dedicou 14 anos de sua vida para realizá-lo e sempre o tratou como um projeto muito pessoal e ninguém além dele mesmo poderia filmar esse trecho história dos Estados Unidos. Wayne dedicou todo seu tempo e dinheiro no filme, chegando a hipotecar imóveis para viabilizar o projeto e economicamente (LEVY, 1998, p. 313).

O próprio Wayne dizia que sua versão da Batalha do Álamo era muito mais do que apenas uma propaganda anticomunista. Para Michael Munn, Wayne disse que há um discurso anticomunista em O Álamo, mas que ele significava mais do que isso:

Eu espero que ele transmita para todos as pessoas do mundo livre que eles têm um débito com todos os homens que deram suas vidas lutando pela liberdade. Eu acho que esta representação da batalho do Álamo irá lembrar as pessoas que o preço da liberdade não é barato (MUNN, 2005, p. 216)

Wayne sempre disse que seu principal objetivo em fazer filmes era entreter a família norte-americana média. No entanto, ele também acreditava que poderia deixar algum ensinamento para seu público: “se ao mesmo tempo eu conseguir passar uma mensagem de democracia e liberdade, então eu vou colocar um pouco disso”. E O Álamo está cheio destas mensagens a fim de atingir os corações e mentes dos espectadores, não só de estadunidenses, mas do mundo.

3 Para mais informações sobre Hollywood e filmes sobre a guerra do Vietnã, conferir o artigo de Tiago da Silva A Guerra do Vietnã no Cinema Hollywoodiano. POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 128

Além de todo o contexto da Batalha do Álamo ser facilmente associado a uma luta contra o autoritarismo e opressão, dois momentos do filme que merecem destaque. Primeiro o diálogo de Davy Crockett e William Travis na cantina de San Antonio. Como já exposto no primeiro capítulo, em um momento do filme William Travis vai ao encontro de Crockett e seus homens que acabaram de chegar a vila de San Antonio de Bexar e comemoram em uma cantina. Nesta cena, o personagem de Wayne faz um monólogo sobre as qualidades da República, único regime pelo qual as pessoas podem viver livres, falar livremente e tem o direito de ir e vir. Ao evocar estas qualidades do regime republicano, Wayne através do seu personagem cria a dicotomia clássica no gênero western entre civilização e barbárie, delegando ao governo de Santa Anna um rótulo de autoritário e tirano.

No início do filme, o texto que serve para explicar o conflito indica ao expectador essa dicotomia, definindo o governo de santa como tirânico e que a luta dos estadunidenses no Texas era pela liberdade. Tão simplista quanto isso. O texto inicial do filme não explica por que motivos Santa Anna seria um ditador e faz sua “marcha sanguinária” em direção ao norte do país e nem por que os texanos se revoltam, simplificando um conflito complexo entre o governo mexicano e uma de suas províncias que envolve colonos estrangeiro e mexicanos, de ambos os lados.

Outra cena que merece destaque é o final do filme. Após a batalha que destrói a missão do Álamo e massacra seus ocupantes, mulheres e crianças que decidiram não sair da missão antes da batalha são encontrados e poupados pelo exército mexicano. Demonstrando nobreza e compaixão, o General Santa Anna, na sua única aparição no filme, provém aos sobreviventes uma saída honrada da missão, com saudação de cornetas e continência de todos seus soldados e o próprio Santa Anna retira seu chapéu quando a viúva do Cap. Dickson e sua filha passam por ele, dando uma impressão de que mesmo vitorioso quem venceu de fato foram os texanos massacrados no Álamo. A música ao fundo também aumenta o clima patriótico:

Os mais velhos contam a história. Deixe a lenda crescer e crescer dos 13 dias de glória do cerco do Álamo. Icem a bandeira feita de trapos, orgulhosamente. Enquanto os olhos do Texas brilham. Essa era uma missão forte. Seja um santuário eterno. Uma vez que eles lutaram para nos dar a liberdade. Isso é tudo que você precisa saber sobre os 13 dias de glórias do cerco do Álamo (O ÁLAMO, 1960, cap. 32). POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 129

Em O Álamo percebemos dois tipos de propagandas apontado pelo sociólogo Jacques Ellul. Ele define que há dois tipos de propagandas: apropaganda política e a sociológica. A primeira, mais facilmente reconhecida por governos, partidos políticos, administrações, grupos de interesse com o objetivo de alterar o comportamento ou opinião de determinado público, muitas vezes utilizada com objetivos políticos, buscando resultados imediatos na definição e criação de um inimigo comum, no caso da Alemanha Nazistas os judeus, no caso do Estados Unidos do período macartista os comunistas. É isso que ocorre nos filmes citados acima, uma tentativa de definir um inimigo e demonstrar suas ações que atacam os valores daquela sociedade. Por conta disso, sua difusão ocorre com maior frequência em períodos de crise política e guerras. (ELLUL, 1973, p. 62)

Já a propaganda sociológica é definida por Ellul como um tipo de propaganda mais difundido e menos claro, que trata do interesse de grupos em manifestar suas vontades, visões de mundo e ideologias em determinadas sociedades e integrar o número máximo de indivíduos em si, unificando o comportamento de seus membros de acordo com um padrão e difundindo seu estilo de vida no exterior e, assim, impor-se a outros grupos. Dessa forma, a propaganda sociológica é mais difundida porque todos os grupos exprimem seus interesses desta maneira e porque sua influência é muito mais sobre um estilo de vida do que sobre opiniões. Por conta disso, sua difusão é mais comum em períodos de estabilidade política que permite consolidar o estilo de vida estabelecido (ELLUL, 1973, p. 62).

Ainda segundo Ellul, a propaganda sociológica é mais complexa de ser percebida e entendida por agir em um movimento reverso a propaganda política. Enquanto esta age de forma a espalhar uma ideologia com o objetivo de fazem as pessoas aceitarem um determinado regime político ou econômico, a primeira age quando a ideologia é a base de um determinado grupo, arraigada a sua formação. Dessa forma, a propaganda sociológica na maioria das vezes surge espontaneamente. Esses dois tipos de propaganda podem ser percebidos em O Álamo. Enquanto a propaganda política, apesar de sutil, refere-se ao anticomunismo, a propaganda sociológica trata de difundir todo o modo de vida americano presente no filme, relacionado a família, modelo de homem a ser seguido e a posição da mulher na sociedade.

O engajamento político de Wayne sempre foi uma de suas marcas. Sempre se posicionando abertamente como eleitor republicano, apoiou as campanhas presidenciais POLÍTICA E IDENTIDADE NORTE-AMERICANA EM O ÁLAMO, DE JOHN WAYNE BRENO GIROTTO CAMPOS 130

de Dwight Eisenhower em 1952 e 1956 e de Richard Nixon em 1960, 1968 e 1972. Wayne e Nixon tinham uma relação muito próxima, uma admiração recíproca pelo que cada um fez. Nixon era um grande fã de Wayne, acreditava que seus filmes inspiravam a nação, e Wayne acreditava que Nixon era o líder necessário para os Estados Unidos. Na campanha presidencial de 1960, Wayne acreditava que poderia utilizar seu filme para atrair eleitores para Nixon. O filme de John Wayne é um documento importante para compreender suas posições políticas e visões de mundo. Seu posicionamento republicano, anticomunista e liberal se faz presente ao longo de todo o filme e apesar de não ser um filme tecnicamente bom, apresentando problemas no roteiro, direção e montagem, O Álamo não deve ser negligenciado pois está inserido em um momento histórico importante da sociedade americana e traduz todos seus dilemas e contradições.

REFERÊNCIA BIBLIGRÁFICA

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A polêmica entre Vargas Llosa e Ángel Rama: entre o regresso dos “demônios” e o escritor como produtor

BRUNA TAVARES CAMARGOS Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil. [email protected]

O debate entre o crítico uruguaio Ángel Rama e o escritor peruano Mario Vargas Llosa ocorreu nas páginas do semanário uruguaio Marcha, em 1972, em torno do livro Gabriel García Márquez: historia de un deicídio (1971). A polêmica teve origem com a resenha de Rama, intitulada Demonio vade retro (nº1591, mai.1972), na qual o crítico uruguaio reprova a teoria dos demônios sustentada por Vargas Llosa no livro, dando início a uma profícua discussão em torno das problemáticas do romance – suas metodologias de análise, repertório crítico e os fatores que condicionam a criação1. Concepções distintas sobre a literatura e sua especificidade no contexto latino-americano permearam as páginas dos artigos que, entre réplicas e tréplicas, iluminam o contraste entre as leituras, os projetos intelectuais e o horizonte das urgências teórico-metodológicas no exercício da crítica literária da época. Podemos identificar no repertório utilizado, ao longo do debate, o desenvolvimento de ideias que já haviam sido articuladas em textos anteriores de Vargas Llosa e Ángel Rama, como também em textos que seriam publicados posteriormente. Nesse sentido, nos interessa compreender as principais divergências, estabelecendo os diálogos, distinções e movimentos que constituíram o pensamento de ambos os autores.

1 Os ensaios que compõem a polêmica são: resenha de Rama, Demonio vade retro (nº1591, mai.1972); resposta de Vargas Llosa, El regreso de Satán (nº 1602, jul.1972); réplica de Rama, El fin de los demonios (nº 1603, jul.1972); e as tréplicas de Vargas Llosa, Resurrección de Belcebú o la dissidência creadora (nº 1609, set.1972), e Rama, Segunda respuesta a Mario Vargas Llosa (nº 1610, set.1972). Todos os textos em torno desse debate estão reunidos no livro García Márquez y la problemática de la novela, publicado em Buenos Aires, em 1973, pela Corregidor – Marcha, ediciones. Os textos de Vargas Llosa, também estão reunidos no livro Contra Vento e Maré, publicado no Rio de Janeiro, em 1985, pela Francisco Alves. A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 133

O livro Gabriel García Márquez: historia de un deicídio, de Mario Vargas Llosa, é fruto de sua tese de doutorado, defendida em 1971, na Universidade Complutense de Madrid. A escrita ensaística perpassa uma análise minuciosa da trajetória biográfica e narrativa de García Márquez, assim como os recursos técnicos e procedimentos literários utilizados pelo escritor colombiano na composição de suas obras. Em entrevista concedida a Reynaldo Trinidad em 1971, Vargas Llosa (2004, p.77) ressalta que, o livro pode ser compreendido como um tratado sobre a vocação do romancista, cujo intento concentra-se, de modo geral, nas relações e influências entre literatura e realidade.

A história do livro remonta as redes intelectuais da década de sessenta, formada por escritores, críticos, editores, entre outros intelectuais, que a partir de suas conexões contribuíram para promover e renovar a agenda cultural na América Latina. Essa rede de sociabilidade intelectual formada, sobretudo, por latino-americanos que viviam no exílio, constituiu-se como uma comunidade atuante através do imaginário, que tinha como convicção uma identidade comum baseada na ideia de América Latina. O intenso interesse pela política e a compreensão de que uma transformação radical, em todas as ordens, era eminente, levou muitos destes intelectuais ao envolvimento com os processos políticos latino-americanos, sobretudo em torno de Cuba.

A rede de sociabilidade intelectual de esquerda, das décadas de 1960 e 1970, se estabeleceu por uma complexa trama de relações, desenvolvida através de correspondências, participações nas revistas culturais, casas editoriais, congressos, conferências, jornadas e colóquios. Num desses congressos, o XIII Congresso Internacional de Literatura Ibero-americana, realizado em 1967, em Caracas, Vargas Llosa e García Márquez se conheceram pessoalmente, antes disso trocavam correspondências e planejavam fazer juntos alguns projetos. A amizade entre os dois se aprofundou após o encontro em Caracas, tanto que García Márquez e sua esposa Mercedes Barcha tornaram-se padrinhos do segundo filho de Mario Vargas Llosa e Patrícia Llosa, Gabriel Rodrigo Gonzalo cujo nome foi dado em homenagem ao compadre.

García Márquez e Vargas Llosa eram nomes proeminentes do ficou conhecido como nova literatura latino-americana ou “boom narrativo”, que incluía nomes como Jose Donoso, Carlos Fuentes, Júlio Cortázar, entre outros. Um fenômeno literário circunscrito temporalmente entre a década de 1960 e início dos anos 1970. Nesse sentido, não é A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 134

gratuito que Vargas Llosa tenha se dedicado numa tese de doutorado ao exame da narrativa de García Márquez, cuja escrita revela dados da intimidade dessa amizade. O livro Gabriel García Márquez: historia de un deicídio, foi um grande tributo a García Márquez, em certa medida, consolida o sucesso de vendas e crítica de Cien años de soledad (1967). Com o livro, Vargas Llosa contribuiu para difundir a ideia de que a Cien años de soledad e a cidade imaginária de Macondo eram chaves interpretativas e expressão simbólica da América Latina.

No início da década de 1970, por uma série de fatores, iniciou-se um processo de ruptura dessa rede de sociabilidade intelectual de esquerda latino-americana. Entre os acontecimentos que marcaram a cisão do grupo, podemos citar os posicionamentos desencadeados pela prisão e a posterior autocrítica do poeta Heberto Padilla, em Cuba, em 1971, e o desentendimento pessoal entre García Márquez e Vargas Llosa. O escritor peruano rompeu com Cuba, após o “caso Padilla”, tornando-se um crítico constante da Revolução, enquanto García Márquez, após o episódio, aproximou-se com maior intensidade de Fidel Castro e do governo cubano. Entretanto, o rompimento definitivo ocorreu em 1976, quando os dois escritores protagonizaram uma briga dentro de um cinema mexicano. O motivo do ocorrido nunca foi explicado pelos escritores, dando margem as especulações. A que mais circulou na mídia foi que o desentendimento teria ocorrido por ciúmes e acusações de traição e adultério.

Pode-se compreender o livro Gabriel García Márquez: historia de un deicidio como a afirmação de uma prática e cosmovisão literária, ou ainda, como a materialidade de uma amizade que o tempo não manteve. A história do livro se expressa em suas edições. Publicado originalmente pela editora barcelonesa Barral Editores, e no mesmo ano, através da parceria Caracas-Barcelona, pela editora venezuelana Monte Ávila, o livro voltou a circular, somente em 2006, por decisão de Vargas Llosa, compondo a coleção obras completa da editora espanhola Galaxia Gutenberg. Em 2007, na ocasião da publicação da edição comemorativa dos quarenta anos de Cien años de soledad, Vargas Llosa foi convidado a escrever o prefácio, mas preferiu encaminhar um fragmento de história de un deicidio. A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 135

A Liberdade dos Demônios

Algumas noções centrais da percepção de Vargas Llosa sobre o papel do escritor- intelectual e a função político-social da literatura estão presentes na teoria dos demônios, no livro sobre a obra de García Márquez, embora não circunscritas a ele. A teoria dos demônios, desenvolvida sistematicamente no livro, pode ser encontrada, de modo fragmentado, em artigos, discursos e entrevistas, publicados ao longo das décadas de 1960 e 1970, nos quais Vargas Llosa manifesta sua subjetividade crítica nas formas como emprega os conceitos de rebeldia, liberdade e obsessão, elementos chaves em sua crítica literária. Nesse período, em que para além dos princípios estéticos estavam em pauta os propósitos político-ideológicos do texto, pensar a literatura era também pensar os modos de existência político-social no continente. Assim, Vargas Llosa ao elaborar sua compreensão da criação narrativa está também formulando seus posicionamentos políticos, ou vice-versa.

Na teoria dos demônios, Vargas Llosa (1971, p.91) sustenta a tese de que a vocação do romancista não se elege racionalmente. Esta vocação seria fruto de pressões instintivas e do subconsciente. “Escravo” de sua vocação, o escritor seria um ser afligido por seus “demônios”, uma espécie de “obsessão”, que pode ser desenvolvida por questões pessoais, históricas ou culturais. Os demônios pessoais consistem em experiências que afetaram o escritor em sua vida íntima; os culturais são aqueles que incidem sobre as experiências que o escritor sentiu indiretamente, mediante a arte, a música, a mitologia, entre outros; os demônios históricos são os acontecimentos de caráter social que o escritor compartilha com a sociedade.

O conceito de “demônios” como impulso inconsciente da criação artística não é uma novidade na história literária. Johann Wolfgang von Goethe atribuía aos “demônios” à força interior ou deidade que dirige e inspira o escritor. Vargas Llosa parte do conceito goethiano para desenvolver sua própria teoria dos demônios. Mas, não se trata de um diálogo exclusivamente goethiano. Os intercâmbios conceituais de Vargas Llosa na elaboração da teoria dos demônios podem ser estendidos – com seus diálogos, afastamentos e deslocamentos – a Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Sigmund Freud. Na teoria dos demônios, fazem-se presente as concepções literárias de Sartre, principalmente do livro Que é literatura (1947) e a noção sartreana de liberdade. Ainda que apareça como uma A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 136

contradição, são desenvolvidas interlocuções com o inconsciente descrito por Freud em Escritores criativos e devaneio (1907-1908) e as formulações de Albert Camus em O homem revoltado (1951).

Para Vargas Llosa, a vocação do romancista nasce do desacordo de um homem com o mundo, das fricções e desencontros entre a história singular de um indivíduo e a história do mundo em que vive. A insatisfação com o “mundo real” transforma o escritor num deicida, um suplantador de Deus que recria a realidade através de mundos verbais. Assim, a criação narrativa consistiria em transformar o “mundo real”, em extravasar a subjetividade mais restrita para um plano objetivo da realidade, convertendo os demônios em temas. Em uma segunda fase da criação narrativa, o escritor liberta ou “exorciza” seus demônios dotando-os de forma, através de métodos e estratégias narrativas que resultam o romance. A partir desse momento o escritor assumiria, então, a responsabilidade por sua obra e seu êxito.

A rebeldia se configura como um elemento central na vocação do escritor. Para Vargas Llosa, o direito de discordar é inalienável a qualquer ser humano e a dissidência uma característica fundamental do romance moderno. Convicção que esteve presente desde o início de sua trajetória intelectual, em seus posicionamentos políticos e literários. Relação evidente no discurso La literatura és fuego (1967), proferido por Vargas Llosa, em Caracas, ao receber o Prêmio Rómulo Gallegos, no qual se posiciona criticamente diante do realismo socialista. Para o escritor peruano,

Ninguém que esteja satisfeito é capaz de escrever, ninguém que esteja de acordo, reconciliado com a realidade, cometeria o ambicioso desatino de inventar realidades verbais. A vocação literária nasce do desacordo de um homem com o mundo, da intuição de deficiências, vazios e escórias à sua volta. A literatura é uma forma de insurreição permanente e não admite camisas-de-força. Todas as tentativas destinadas a dobrar sua natureza airada e indócil fracassarão. A literatura pode morrer, mas jamais será conformista. (VARGAS LLOSA, 1985, p.136)

Argumentos que podem ser encontrados, também, na declaração enviada, por Vargas Llosa, a Prensa Latina, na qual o escritor explica sua renúncia ao comitê da Casa de las Américas e sua desaprovação em torno dos usos feitos pela imprensa de sua contenda com o governo cubano no “caso Padilla”. O escritor peruano observa: A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 137

Certa imprensa está usando minha renúncia ao comitê da revista Casa de las Américas para atacar a revolução cubana a partir de uma perspectiva imperialista e reacionária. [...] Minha renúncia é um ato de protesto contra um fato específico [...]. O direito à crítica e à divergência não é um privilégio burguês. Ao contrário, só o socialismo pode assentar as bases de uma verdadeira justiça social, dar o verdadeiro sentido a expressões como liberdade de opinião, liberdade de criação. Foi no exercício desse direito socialista e revolucionário que discordei do discurso de Fidel sobre o problema cultural, que critiquei o que sucedeu com Heberto Padilla e outros escritores. Fiz por ocasião dos acontecimentos na Tchecoslováquia, e continuarei fazendo cada vez que julgar necessário, porque essa é minha obrigação como escritor. (VARGAS LLOSA, 1986, p.255-256)

Segundo Efrain Kristal (2001, p.344), a participação protagonista de Vargas Llosa no “caso Padilla”, precipitou o rechaço nos meios de esquerda de sua obra literária, desenvolvendo-se em três etapas: A primeira foi uma agressiva reprimenda política por seu comportamento contrarrevolucionário; as outras duas se deram no âmbito literário: se condenaram suas ideias literárias e logo seus romances. Kristal elenca, entre os críticos que mudaram de perspectiva sobre as concepções literárias e os romances de Vargas Llosa: Roberto Fernández Retamar, Óscar Collazos, Mirko Lauer, Washington Delgado, Carlos Rincón, Jorge Lafforgue, e Ángel Rama – este último mencionado a partir da polêmica sobre a teoria dos demônios. Consideramos que, embora no debate entre Vargas Llosa e Ángel Rama, em 1972, as tensões e contendas políticas estejam presentes, não se trata de um rechaço às concepções do escritor peruano por esse viés, senão pelo debate travado nestes anos pela crítica literária acerca dos repertórios e arcabouços metodológicos.

Entre os demônios e o produtor

Embora Rama tenha considerado o livro Gabriel García Márquez: historia de un deicidio, de modo geral, surpreendente pela atenção incomum que Vargas Llosa dedica a outro narrador de sua época e pelo refinamento de sua análise técnica muito pessoal, o crítico uruguaio declarou, na resenha Demonio vade retro que a tese lhe parecia carecer de fundamentação crítica. Assim, Rama toma para si a tarefa de elucidar o que considerava ser de um “assombroso arcaísmo” crítico, advertindo para os possíveis “prejuízos” derivados da teoria dos demônios para as letras latino-americanas.

Na leitura de Rama (1973, p.7-8), Vargas Llosa apela a uma cosmovisão tradicionalista, originária das concepções filosóficas idealistas do século XIX, para definir a natureza do A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 138

escritor, promulgando uma percepção irracional tanto do fazer criativo como da análise crítica. Para o autor, contrariando a ideia da arte como trabalho humano e social, que o marxismo havia aportado, Vargas Llosa reedifica a tese idealista, romântica da obra literária, agravada por uma operação metafórica que regressa à teologia. Para o crítico, elementos como o desenvolvimento das sociedades, a complexidade crescente das bases econômicas, a aparição de novos grupos sociais e suas demandas, haviam elevado há tempos uma moderna acepção do escritor – distante daquele protegido por suas musas ou possuído por seus demônios – assimilado a um produtor, uma vez que sua visão da criação narrativa deixou de ser teológica e passou a ser a de uma nova sociedade manufatureira baseada no trabalho produtivo.

O crítico uruguaio, em Los poetas modernistas en el mercado económico (1967), havia formulado algo semelhante ao analisar o contexto de produção de Rubén Darío e seus companheiros do modernismo hispano-americano, que a seu ver, teriam sido os responsáveis pelo início da formação do sistema literário na América hispânica. No texto, Rama sustenta que para a constituição efetiva de um sistema literário seria necessária uma conscientização do poeta em relação a sua nova tarefa. Ele deveria assumir a postura de um produtor cultural, diante da inexistência de um mercado consumidor para suas poesias, de um público leitor, e, consequentemente, da impossibilidade de sua profissionalização. O autor deveria tomar para si uma função necessária nanova sociedade burguesa – escritor de jornais – e ainda participar da formação de seus leitores. Somente na segunda metade do século XX, o romance ganharia maior impulso, com os consumidores provenientes da classe média. Contudo, apesar do crescimento, esse número de leitores ainda seria reduzido e concentrado, situação que mudaria radicalmente nos anos sessenta. Rama (1973, p.29) cita seus estudos do modernismo hispano-americano para repreender Vargas Llosa por extrair sua posição “da linha mais retraída do romantismo” e por desconsiderar análises que concorriam a um progressivo entendimento social da cultura.

Para o crítico uruguaio (1973, p.29-30), Vargas Llosa se “esquece” que o escritor não é um indivíduo fechado em si mesmo, que se opõe à “totalidade que é o mundo”, senão que integra um grupo social, uma classe, um movimento. Rama argumenta que o escritor, como membro de uma comunidade, resulta moldado pelas condições culturais de seu país, período e setor social, partícipe no plano nacional, histórico, grupal ou A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 139

classista na evolução de sua sociedade. Portanto, o escritor expressaria valores que não são restritamente individualistas, senão próprios de coordenadas que somente se podem definir como sociais.

No artigo Diez problemas para el novelista latinoamericano (1964), Rama ao eleger os desafios para o pensamento crítico literário na América Latina, já havia produzido algumas ideias centrais que posteriormente irão figurar em seu debate com Vargas Llosa. Será, principalmente, a necessidade de uma análise histórica da incorporação social do criador de narrativas dentro de um determinado sistema político-literário aquela que persistirá como potência e desdobramento de sua crítica. No ensaio, Rama argumenta (2005, p. 51-56) que o escritor, principalmente o romancista, busca pela objetividade de um universo que possa ser compartilhado como um diálogo vivo que todo homem estabelece com o seu tempo. A função do romance não seria a de substituir os tratados de sociologia, mas sim de promover estruturas de sentido que situassem artisticamente o homem no mundo. Rama (2005, p.73) ao analisar o “dom criador” dos romancistas, ressalta que, em todo caso, não se deveria buscar no “ser escritor” uma exaltação romântica do mistério da criação, mas a perspectiva de uma “vocação de ofício”, que deveria ser cumprida como um modo de inserção, até mesmo de sua auto justificação na sociedade.

Na contenda com Vargas Llosa, o crítico uruguaio (1973, p.09-11) considera que ao invés de um escritor vitimado pela sociedade, que vê a si mesmo como o “forçoso intermediário entre um universo de forças obscuras e um público homogêneo” que necessitaria dessas pulsações misteriosas, objetivadas numa individualidade excepcional “que proporciona a obra literária encarada como afirmação do autor e dissidência com a estrutura da realidade”, o momento solicitaria a ratificação doescritor-produtor “como o correto representante de nosso tempo”. Na definição de Rama:

Ele [o escritor-produtor] elabora conscientemente um objeto intelectual – a obra literária – respondendo a uma demanda da sociedade ou de qualquer setor que está necessitado não somente de dissidências senão de interpretações da realidade que pelo uso de imagens persuasivas permita compreendê-la e situar-se em seu seio validamente. A obra não é então espelho do autor nem de seus demônios, senão mediação entre um escritor mancomunado com seu público e uma realidade desentranhada livremente, a que somente pode alcançar coerência e significado através de uma organização verbal. (RAMA, 1973, p.10-11) A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 140

O conceito escritor-produtor reivindicado pelo crítico uruguaio encontra nas formulações de Walter Benjamin sua principal interlocução. No ensaio O autor como produtor (1934), Benjamin discute o papel dos escritores no combate ao fascismo, chamando a atenção para a necessidade do engajamento dos intelectuais no sentido de modificarem os meios de produção. É interessante observar que o texto de Walter Benjamin foi redigido no contexto de cisão da esquerda política alemã, que teve reflexos também no âmbito cultural. Se nos atentarmos ao contexto da polêmica entre Ángel Rama e Vargas Llosa, poder-se-ia dizer que se trata também de um momento de cisão da esquerda intelectual latino-americana, com a fragmentação dos intelectuais em torno do governo revolucionário cubano e as divergências pós “caso Padilla”.

Rama parece aproveitar o ensejo do debate com Vargas Llosa para afirmar a especialização da crítica literária, distinguindo os fazeres, repertórios e intencionalidades, tal como fizera em outro debate ocorrido, também em 1972, durante o Coloquio del libro, realizado em Caracas. O debate publicado no número de agosto (nº 14) da revista Zona Franca, organiza uma ampla discussão sobre o fenômeno do boom literário, onde novamente figuram as divergências do pensamento de Rama e Vargas Llosa. Deum lado, estavam às perspectivas que sustentavam uma autonomia do fazer literário diante das pressões mercadológicas atreladas à expansão da narrativa latino-americana. Nesta direção estão às percepções de Vargas Llosa e do crítico Rodríguez Monegal, que enfocam a livre eleição do público e da crítica, assim como das conotações positivas em torno da experimentação linguística e estética das produções do boom. Em contraposição, Rama (1996, p.10-15), num empenho sociológico, propunha uma interpretação dos interesses do capital, fortemente assimilado à onomatopeia boom. Para ele, a crítica literária estava substituindo os juízos e as análises pela informação; substituindo a interpretação pela mera descrição; e os jornalistas substituindo os críticos, veiculando informações sobre a vida do escritor, transformado em popstar para o grande público. A seu ver, se fazia necessário um debate metodológico “entre os grandes críticos da América Latina”, a fim de superar o campo empírico e pragmático no qual se encontrava a crítica latino-americana.

Ángel Rama não foi o único a reprovar a teoria dos demônios. Em 1969, o colombiano Óscar Collazos (1970, p.28-29), partindo de uma concepção de cunho político-ideológico, censurou as formulações de Vargas Llosa em torno da autonomia literária e seu conceito de realidade na literatura, sobretudo, por compreender que se A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 141

tratava de um distanciamento do contexto sociocultural e político latino-americano. Para o mexicano Jorge Aguilar Mora (1973, p.66-67), o livro de Vargas Llosa poderia ser considerado uma fraude intelectual, “deplorável e perigosa”, cuja proposta baseava-se em “ideias retrógradas, contraditórias, termos falsos e lugares comuns”. Aguilar Mora criticou, principalmente, o uso do método biográfico como cerne do estudo de Vargas Llosa sobre a obra de García Márquez, destacando a demasiada relevância concedida à metáfora do escritor em competição com Deus e a omissão da linguagem como centro da análise literária. Por sua vez, com um posicionamento distinto, o espanhol Joaquín Marco (1972, p.306) ressaltou que a análise de Vargas Llosa contribuía para uma compreensão do panorama do romance contemporâneo hispano-americano, fazendo ressalvas à carência de conotações ideológicas no ensaio. Esse contraste de leituras evidencia as diferenças nos modos de organização dos aparatos críticos em ambos os lados do oceano, pautando- se, no caso latino-americano, pelo grau de urgência de uma política emancipadora que corroborava na validação ou não de uma teoria literária.

Para Rama, o ensaio de Vargas Llosa havia assumido as características metodológicas e o endurecimento das universidades espanholas com sua estrutura rígida, filha do historicismo e do biografismo romântico. Tal constatação levou o crítico a afirmar que (1973, p.28): “apesar dos desajustes diacrônicos da cultura latino-americana, [a teoria dos demônios] não entra em seus projetos de expansão, nem nas linhas da evolução universal”, pois não é possível operar uma leitura coerente da arte moderna com um método que corresponde a um século passado. Rama considera que as diversas metodologias desprezadas no estudo de Vargas Llosa como, por exemplo, a reconstrução da retórica operada pelo estruturalismo, a psicanálise pós-junguiana, o neomarxismo ocidental, a linguística transformacional contribuía para uma leitura coerente de toda a literatura passada, pois, citando Roland Barthes, a introduziria no sistema de nossa linguagem.

Vargas Llosa (1985, p.195) defendeu-se das críticas de Rama sustentando que suas opiniões lançam mão de imagens românticas, mas que seu conteúdo se deve mais a Freud ou a Sartre. Para o autor, a utilização do método biográfico, que pode e deve ser completado por outros, torna-se pertinente na medida em que através dele é possível encontrar a raiz e as causas do desacordo do escritor com a “realidade real”, por conseguinte, o verdadeiro significado da obra literária. Desse modo, considera Vargas Llosa (1972, p.19- 20) que, estudos como o de Roland Barthes são insuficientes como explicação da vocação A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 142

do romancista e da natureza da literatura, pois se baseiam puramente na explicação formal da obra literária. No entanto, argumenta Vargas Llosa que se o propósito do crítico é concentrar-se no exame de um dos aspectos do universo ficcional - o linguístico, o estrutural, o histórico, o ideológico –, o material biográfico poderia ser abandonado sem grandes danos, porém, se a intenção é mostrar o mecanismo através do qual uma obra de ficçãonasce ou o processo que culmina no exercício da vocação de um romancista, o método biográfico é completamente pertinente, ainda que muitos o considerem “fora de moda”. O escritor peruano declara:

Se o ponto de referência é a vanguarda intelectual de esquerda na Europa, não há dúvida que minhas ideias são obsoletas: aquela analisa agora a literatura através de um prisma construído com altas matemáticas, o formalismo russo dos anos vinte, as teorias linguísticas do círculo de Praga, o livro roxo de Mao e uma beliscada de orientalismo budista. Isso significa, também, que se a maneira de ser maduro e moderno na literatura é adotando, com algumas simplificações, as teses dos pensadores neomarxistas que a Europa Ocidental põe na moda, Rama está tão decrépito como suas convicções neo-lukacsianas e seu entusiasmo por Benjamin, como eu com meu romantismo satânico. (VARGAS LLOSA, 1985, p.185)

Para Vargas Llosa a visão do crítico uruguaio é demasiadamente sociológica, o que implica uma leitura parcial do fato literário. Em seguida, ressalva o escritor peruano, que os termos “deicida” e “produtor” não são termos contraditórios, senão complementares

o primeiro alude à ambição rebelde que preside toda vocação narrativa, a aspiração do narrador de “refazer a realidade”, e o segundo a condição do trabalhador cujas obras se convertem em “bens” (ou mercadorias) dentro de uma sociedade determinada. Onde está o antagonismo? Uma definição se refere ao problema individual da literatura e outra ao problema social: ambos existem, se condicionam e modificam mutuamente e eu nunca pretendi segregá-los, como faz Rama, ao reduzir a literatura, segundo o padrão positivista, à sua exclusiva função social. Na realidade, a diferença entre “deicida” e “produtor” é uma diferença de metáforas: a primeira presta seu termo ao vocabulário “religioso” e a segunda ao da “economia” e o divertido é que tanto Rama como eu somos profanos nessas matérias das que saqueamos imagens para explicar a literatura. (VARGAS LLOSA, 1985, p.181)

O escritor peruano enfatiza que ao afirmar o irracional como elemento decisivo na “temática” de um escritor, isto não isenta sua responsabilidade com relação ao que escreve. Para ele, um escritor não escolhe seus “demônios”, mas sim o que faz com eles. Neste âmbito, Ángel Rama percebe uma dicotomia entre tema (inspiração demoníaca) e escritura (racionalização humana). Essa perspectiva, para o crítico uruguaio, corrobora com a “cegueira do escritor” em relação ao mundo real (1973, p.36): “quando disse A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 143

[Vargas Llosa] que o escritor constrói sua obra para liberar-se de seus demônios, afirmo que se trata de servir a um determinado projeto cultural”. E, neste projeto, interessa a Rama analisar a América Latina enquanto uma construção histórica de sua cultura, exigindo do crítico a capacidade de decifrar suas tramas simbólicas.

Considerações finais

O debate entre Vargas Llosa e Rama concorre a um progressivo entendimento das questões socioculturais que se interpunham na prática da crítica literária da época. De um lado, Rama afirmava o postulado da literatura enquanto produção social. Por outro, Vargas Llosa comprometia-se com a literatura como trabalho especializado, afirmando a produção de um espaço específico do romance.

Rama demonstrará uma compreensão da América Latina implicada em seus elementos históricos, sociais e culturais, como um projeto que espera sua realização concreta. O crítico afirma:

Creio que em nossa América foi [José] Martí o primeiro que percebeu esta nova condição da criação artística (ou, ao menos assim o expus em meu ensaio “La dialéctica de la modernidade em Martí”) quando em 1881, exclamava: “Ao povo indeterminado, literatura indeterminada! Tal pensamento, que atravessa a melhor ensaística latino-americana do século, e que tão claro aparece em Mariátegui, permitiu que recentemente o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro situasse a perspectiva da cultura iminente em termos que estão nas antípodas da concepção que maneja Vargas [Llosa]. Dizia Ribeiro: ‘De fato, uma nova civilização está nascendo. Uma civilização que a respeito da cultura somente sabemos que será mais uniforme em todo o mundo e se baseará cada vez mais no saber explícito e na racionalidade’. (RAMA, 1973, p.30-31)

Pode-se considerar que ao ressaltar um futuro a ser construído, Ángel Rama está enfatizando a ideia de que a América Latina integrada seria um projeto futuro a ser desenvolvido num viés intelectual e cultural. O projeto de integração de Rama propunha uma percepção de América Latina acima das arbitrárias imposições administrativas coloniais. De acordo com Roseli Barros Cunha (2007, p. 307), evidencia-se, desde o início da atividade crítica de Rama, a ênfase numa necessidade de se constituir um sistema literário voltado para as peculiaridades do subcontinente. Anos depois, Rama aprofundará sua ideia, argumentando que a literatura deveria ser produzida a partir de uma conjunção entre o material interno de cada região da América Latina e as inovações técnicas que iam sendo incorporadas. Para A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 144

a autora, ao longo dos anos sessenta – de forma mais amadurecida em artigos como Los construcción de uma literatura e Diez problemas para el novelista latinoamericano – podemos encontrar várias questões, temas e procedimentos que se estenderiam ao longo da carreira do crítico, além de alguns sinais de seus conceitos de transculturação narrativa e comarca cultural. Na década de setenta, Ángel Rama se aprofundaria na questão da pluralidade latino-americana. Paralelamente a outros ensaios, o crítico vinha escrevendo o material que posteriormente faria parte de Transculturación narrativa en América Latina (1982).

As preocupações teóricas, particularmente sobre o romance, acompanharam o trabalho intelectual e ficcional de Vargas Llosa. Segundo o crítico peruano José Miguel Oviedo (1982, p.341), a existência de uma estação crítica no itinerário imaginativo de Vargas Llosa pode ser considerada como fruto de sua atividade acadêmica em algumas universidades da América e da Europa (King’s College de Londres, Universidade de Porto Rico, Washington State University, etc.); ou como fruto remanescente do conjunto de leituras, notas, artigos, crônicas, prólogos, polêmicas e vários escritos que vão pautando e forjando sua vida profissional, com seus particulares gostos e aversões, suas aberturas e seu confinamento; porém, sobretudo, é a manifestação teórica que surge de sua própria experiência narrativa.

Nos argumentos críticos de Vagas Llosa emergem conotações que, ao mesmo tempo, adquirem um sentido de afirmação, fatalidade e denúncia. Por um lado, o escritor peruano enfatizava uma nova condição da criação literária, em termos de especialização e de possibilidade de o escritor dedicar-se exclusivamente ao seu ofício, com a ampliação do mercado editorial. Por outro, é a condição de marginalidade do escritor, assinalada em diferentes ocasiões, que ocupou grande parte de sua crítica, como por exemplo, no ensaio Sebastián Salazar Bondy y la vocación del escritor en el Peru (1966). Trata-se, em alguns aspectos, de uma denúncia quanto à desigualdade social e às condições de circulação da obra literária em sociedades que, em grande medida, eram assoladas pelo analfabetismo, denotando, ainda, a angústia do escritor diante do descaso das elites pela cultura e pelas políticas de promoção cultural. O tema da “marginalidade” do escritor esteve presente no ensaio sobre a obra de García Márquez, principalmente, no primeiro capítulo do livro. Para Vargas Llosa, ao assumir a vocação literária, o escritor assume a práxis de um ser marginal. O autor considera que esta condição de marginalidade, origem e ao mesmo tempo resultado da vocação literária, se projeta de formas variadas, complexas, “às vezes elusivas e quase indetectáveis, às vezes óbvias, nos produtos desta práxis”. A POLÊMICA ENTRE VARGAS LLOSA E ÁNGEL RAMA: ENTRE O REGRESSO DOS “DEMÔNIOS” E O ESCRITOR COMO PRODUTOR BRUNA TAVARES CAMARGOS 145

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Ditadura militar argentina e o nacionalismo presente no filme De Cara Al Cielo (1979)

BRUNO JOSÉ ZENI Possui graduação em História, pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Atualmente é mestrando do Programa em História e Sociedade da Universidade Estadual Paulista- Unesp/Assis. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

A ditadura militar Argentina que ocorreu após o golpe militar de 1976 instalou o Processo de Reorganização Nacional, mais conhecido como PRN. Este processo teve como base a doutrina de segurança nacional (DSN). As DSN’s orientavam os militares acerca do combate ao que militares acreditavam ser inimigos da ditadura.

Neste trabalho analisamos como a Ditadura Militar Argentina tentou por meios não violentos legitimar certos conceitos que eram imprescindíveis para o PRN, assim, este trabalho analisa a película De Cara al Cielo (1979), um filme que contou com a ajuda dos militares que estavam no poder.

É imprescindível que destaquemos que entre 1976 a 1983 foi um dos períodos mais violentos da história argentina, tendo este deixado um saldo de milhares de argentinos mortos e um número infindável de desaparecidos. E é justamente neste período que são produzidas e filmadas diversas películas em que a narrativa era favorável ditadura militar argentina. Destacamos aqui alguns: Dos locos en el aire (1976), Brigada en accíon (1977), Comandos azules (1980), Comandos azules en accíon (1980)1, entre tantos outros. Todavia, este texto nos concentraremos na película De Cara al Cielo produzida em 1979 por Enrique Dawi. Os filmes aqui mencionados, de forma geral e em especial o analisado neste trabalho, foram utilizados para a propaganda política do regime ditatorial

1 Além das obras destacas no texto, o site Memoria Abierta faz um compilado com diversas obras que foram a favor do regime. Para mais informações acessar: http://www.memoriaabierta.org.ar/ladictaduraenelcine/ DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 148

argentino. Para a definição do conceito de propaganda política utilizamos a proposta feita pela historiadora Maria Helena Capelatto. Para essa historiadora:

A propaganda política vale-se de ideias e conceitos, mas os transforma em imagens e símbolos; os marcos da cultura são também incorporados ao imaginário que é transmitido pelos meios de comunicação. A referência básica da propaganda é a sedução, elemento de ordem emocional de grande eficácia na atração das massas. Nesse terreno onde política e cultura se mesclam com ideias, imagens e símbolos, define-se o objeto propaganda política com um estudo de representações políticas. (CAPELATO, 1998, p. 36)

Assim, destacamos que o objeto fílmico, neste caso as películas constituem um meio fértil para a representação de ideais políticos, bem como para a difusão de fatos, símbolos e ideias importantes e especiais na composição das mais diversas ditaduras no continente latino-americano. A película aqui analisada retrata alguns momentos da campanha do General Júlio Roca em fins do século XIX em direção ao deserto. Esta obra foi lançada em três de maio de 1979 e dirigida por Enrique Dawi, que também escreveu o roteiro. O filme foi ganhador de um concurso do “Ente de Calificacion Cinematografica” em comemoração ao centenário da Campanha ao Deserto. Estas campanhas foram empreitadas militares organizadas pelo general Júlio Roca para a conquista e colonização do território dos pampas e da patagônia argentina. Importante destacar que nestes territórios viviam várias comunidades originárias ou povos indígenas. Os Mapuches são os mais conhecidos. A historiografia e as análises sobre a campanha para o deserto empreendida por Rocca, tem apresentado várias versões para a tomada desse território por parte deste General. Uma destas análises, apresentada por Passeti (2010) consiste no fato de que estas comunidades seriam de origem chilena, ou seja, estrangeiros. Além do fato de serem considerados intrusos, também acreditavam que os indígenas eram improdutivos e bárbaros - e as únicas atividades a que se dedicavam era à guerra e roubo. Nessa linha interpretativa a eliminação dessas comunidades consideradas “bárbaras” contribuiria para o desenvolvimento do Estado argentino. É importante destacar que os pampas e a região patagônica não eram desertos no sentido geográfico, mas sim do ponto de vista populacional, isto é, houve, a construção da ideia de que esta região consistia em um vazio demográfico por parte de grupos políticos que visavam conquistá-la. Como afirmar Claudia Briones e Walter Delrio;

Llevaron a que la “generación romántica” de 1837 acuñara la idea de “desierto” como imagen de un territorio ya propio, pero caracterizado por una naturaleza cruel e indómita por doblegar. En ese tropo DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 149

había mucho más que descripción de características ambientales, lo cual queda de manifiesto cuando se advierte que, así como el avance militar sobre Pampa y Patagonia se denominó “la conquista del desierto” (BRIONES, DELRIO, 2007, p.9)

Assim, o deserto não existia de fato. Nesse sentido, a conquista e a posterior colonização dos territórios em disputa encontravam nessa construção discursiva uma justificativa econômica, já que expandiria as áreas para a agricultura e a agropecuária, e também atrairia colonos europeus (BRIONES & DELRIO, 2007).

O filme tem como personagem central o Coronel Álvaro (interpretado pelo ator Gianni Lunadei), um homem respeitado por suas tropas e que dedica sua vida à conquista do deserto. Trata-se de um homem que personifica o governo, de forma que o representa e cumpre suas ordens, não hesitando em matar indígenas que não se submetessem ao seu mando. Além disso, seu principal intento era combater a venda de terras a estrangeiros e os índios insurgentes para que depois de conquistadas pudesse fazer uma divisão entre os beneficiários. Esta divisão seria de 50% para as pessoas que viessem de outros lugares da Argentina e 50% para os nativos da região.

A película, é dividida em três blocos. No primeiro bloco é apresentado ao expectador um Coronel honrado, que havia cumprido serviço militar por diversos anos naquela região. Isto é, um homem que conhecia o do local em disputa. Todavia, seus anos de préstimo militar ao governo argentino naquela região tornara a personagem um homem cansado, que recebera diversas sugestões para voltar a Buenos Aires para casar e ter filhos. Além disso mostra diversos enfrentamentos entre índios e militares pelo controle da região. Em um destes combates o Coronel Álvaro acaba ferido e resolve tirar uma licença e voltar por um tempo a Buenos Aires. Este fato constitui a virada para o segundo bloco. Assim, o segundo bloco começa com o Coronel retornando à cidade de Buenos Aires, onde ele se apaixona por Elisa, uma mulher que é noiva de um funcionário inglês. Elisa é retratada como alguém que não amava o noivo, o seu casamento era, portanto, interesse do seu pai e não o seu. No entanto, ela acaba também apaixonando-se pelo Coronel. Neste bloco, além do núcleo romântico da trama também é apresentado um discurso sobre estrangeiros, o que pode ter ligação com o conflito entre Argentina e Chile pelo canal de Beagle2, e também pela crescente tensão por conta das denúncias realizadas no exterior

2 O Canal de Beagle é um estreito separando as ilhas do arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul. Esse conflito entre Argentina e Chile levou estes países a iminência de uma guerra, em decorrência do tratado de DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 150

sobre a violação dos direitos humanos por parte da ditadura do General Videla.

Ambos os eventos acima citados acontecem durante o tempo de produção do filme e podem ter influenciado o diretor a assumir esse discurso em seu conteúdo, ainda que os estrangeiros a quem o filme se refere sejam homens do século XIX. No terceiro e último bloco, o Coronel Álvaro retorna ao fortim para realizar uma última missão. É neste momento que o personagem tem seu fim, morto em combate contra os indígenas da região.

No fim de 1978 o conflito com o Chile pelo Canal de Beagle aumentou. Assima SIP organizou uma campanha a nível nacional chamada “Día de la Tradición” que tinha por objetivo motivar a população para assumir com orgulho e entusiasmo as tradições argentinas, uma vez que a ditadura militar argentina acreditava que em zonas fronteiriças, não havia uma cultura genuinamente Argentina (principalmente nas fronteiras com o Brasil e com o Chile). Neste sentido, ao se acirrar os ânimos com o Chile também tentava- se reforçar as tradições argentinas.

Ese mes fue de “festejos” corridos: la SIP también organizó el “Día de la Soberanía Nacional”. Las ideas-fuerza contenidas en el documento de la SIP establecían una analogía entre la Vuelta de Obligado y la actualidad: Quien es atacan a la Argentina acusándola de violadora de los derechos humanos, sin reconocer su sacrificio espiritual y material para erradicar la subversión, mantiene en idéntica posición que los agresores ingleses y franceses en aquella dura jornada. (RODRIGUEZ, 2015, p. 313)

Assim, à medida que a ditadura argentina criava campanhas de comemoração e de reafirmação da soberania nacional (a partir do que entendiam como tradições argentinas) através de órgãos específicos para estes fins buscava-se através dessas práticas abarcar a sociedade da época de forma mais efetiva. Segundo Azconegui (2011) a comemoração pelo centenário da “Conquista do Deserto” estava vinculada a reafirmação do governo ditatorial, já que o mesmo passava por uma crise de legitimidade causada - como já mencionado – por conta da campaña anti-argentina. A organização da festa do centenário3 fronteiras de 1881 não definir claramente a posse do arquipélago. Em 1977 um laudo da Inglaterra condeceu a posse do arquipélago ao Chile. A Argentina considerou o laudo nulo e as animosidades foram se elevando. Foi a intervenção do Papa João Paulo II que pôs fim ao imbróglio. Este atuou como mediador do diálogo e ambos os países entraram em acordo, ficando a posse do arquipélago para o Chile e o controle marítimo ficou sob jurisdição argentina (NOVARO, 2007)

3 A denominada Campanha do Deserto foi o processo de conquista do território norte da região patagônica, que era habitado até então por comunidades Mapuches, Ranquel e Tehuelche. O conflito entre o Estado argentino e os povos aconteceu durante os anos de 1878 à 1885. Ao longo desse período o exército argentino construiu diversos fortins ao longo do Rio Negro, onde então as pessoas que eram capturadas eram enviadas. Para mais informações ver: PEREZ, DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 151

foi largamente pensada e planejada. A data estipulada pela organização foi fechada em 11 de junho de 1979. Posteriormente à organização nacional dos atos, enviou-se ofícios as autoridades provinciais para que também criassem as suas comissões. Estabeleceu-se ainda algumas instruções sobre como estas deveriam proceder:

Dar a las celebraciones un carácter solemne, sobrio y austero que expresen el justo homenaje del país al legislador, al militar, al misionero, al colonizador, a la mujer, al aborigen, y a todos aquellos que con su visión, esfuerzo y sacrificio posibilitaron el logro de tan significativa epopeya; y buscar dar continuidad al resurgimiento de argentinidad y solidaridad de nuestra población advertido ya en estos meses. (Ministro do Interior apud AZCONEGUI, 2011, p. 4)

Além disso, Azconegui argumenta que “La utilización de esta conmemoración como un instrumento de legitimación del régimen también se evidenció en la política educativa” (AZCONEGUI, 2011, p. 4). Foram incorporados ao calendário escolar diversos centenários, como: A chegada dos primeiros imigrantes Alemães (1978), a conquista do deserto (1979) e da ‘Geração de Oitenta’ (1980).

Neste texto, nos propomos a analisar o nacionalismo que é apresentado e difundido ao espectador através da obra fílmica. Uma definição clara do conceito de nacionalismo que seja aplicável a locais e contextos históricos diferentes pode ser inimaginável dentro dos estudos históricos, pois o nacionalismo é mutável, apresenta características próprias e de contexto, além disso pode ser utilizado como oposição ou apoio. O nacionalismo pode inventar uma nação, memórias e identidades. Assim, partiremos de duas definições sobre o nacionalismo, ou seja, o nacionalismo cívico e o nacionalismo étnico.

Michael Ignatieff no seu livro sangre y pertinencia (2012) define o nacionalismo em duas vertentes: o cívico e o étnico. Porém, apesar de tratar de duas definições a sua utilização é mais ampla. Assim, Ignatieff vislumbra ao menos três tipos de utilização: 1º) Como doutrina política; 2º) Como ideal cultural; 3º) Como ideal moral. A saber:

Como doctrina política, el nacionalismo es la idea de que los pueblos están divididos en naciones y que cada una de esas naciones tiene derecho a la autodeterminación, bien como unidades de autogobierno dentro de estados nación ya existentes, bien como estados nación mismos.

Pilar. Historia y Silencio: La Conquista del Desierto con genocidio no-narrado. Corpus, Vol 1, Nº 2. 2011. DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 152

Como ideal cultural, el nacionalismo es la creencia de que, aunque los hombres y las mujeres tienen muchas identidades, es la nación la que les proporciona la forma primaria de pertenencia. Como ideal moral, el nacionalismo es una ética del sacrificio heroico, que justifica el uso de la violencia en defensa de la nación propia frente a los enemigos internos y externos. (IGNATIEFF, 2012, p. 58, 62)

Assim, para Ignatieff essas percepções, nacionalismo, doutrina política, ideal cultural e moral atuariam se reforçando mutuamente. Pois, para o historiador a consideração do nacionalismo como ideal moral proporcionaria a ideia de que as nações têm o direito de ser defendidas pelo uso da força e da violência. A doutrina política se liga com o ideal cultural e moral por acreditar que os povos têm o direito de lutar para serem nações. Nesse sentido os três ideais se reforçariam contribuindo para o nacionalismo difundir que somente uma nação poderia satisfazer suas necessidades (Ignatieff, 2012). É ainda importante salientar que Ignatieff apresenta essas ideias como discutíveis e também que nenhuma é evidente por si mesma. Apresentada a discussão mais ampla, faz-se importante também definirmos o conceito de nacionalismo em suas duas vertentes, o nacionalismo cívico e o nacionalismo étnico. Ignatieff nos traz posições claras sobre essas duas vertentes. Para ele a definição de nacionalismo cívico seria:

Un tipo, el «nacionalismo cívico», mantiene que la nación debe estar formada por todos aquellos que suscriben el credo político de la nación, independientemente de su raza, color, fe, género, lengua o etnia. Este nacionalismo se llama cívico porque considera a la nación como una comunidad de ciudadanos iguales poseedores de derechos, unidos por un vínculo patriótico a un conjunto compartido de usos y valores políticos. Este nacionalismo es necesariamente democrático ya que la soberanía reside en todo el pueblo. (IGNATIEFF, 2012, p. 100).

Acreditamos, portanto, que o nacionalismo cívico é o que mais se ajusta a realidade da Argentina durante a época de produção da película aqui analisada. Apesar de não concordar que seja possível aplicar o nacionalismo étnico dentro do contexto social que abarca o período de realização e lançamento do filme, ainda assim fica necessário mostrarmos a definição feita por Michael Ignatieff. Assim, nacionalismo étnico não seria os direitos compartilhados pela população de determinado lugar, mas sim, suas características, tais como: religião, língua e tradições (Ignatieff, 2012), ainda segundo o autor:

El nacionalismo étnico, en cambio, defiende que los vínculos más profundos de un individuo son heredados, no elegidos. Es la comunidad nacional la que define al individuo, no los individuos los que definen la comunidad nacional. Esta psicología de la pertenencia puede ser más profunda que la del nacionalismo cívico, pero la sociología que la acompaña es mucho menos realista. (IGNATIEFF, 2012, p. 100). DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 153

Assim, conceito de nacionalismo étnico, como já escrevemos, não se aplica a realidade aqui problematizada, ou seja, apesar da ditadura militar argentina ter utilizado de práticas violentas contra pessoas denominadas como inimigos, a eliminação desses ditos “subversivos” não era com base em sua cor, raça ou gênero, mas sim, pelo tipo de sociedade almejada pelos perseguidos pela ditadura, que ao fim e ao cabo, lançava olhares agudos sobre os “subversivos” que não concordavam com o tipo de nacionalismo aplicado pelas ditaduras e apresentado no filme. Vejamos, pois, cenas que corroboram a nossa afirmação.

Esta cena, da película De Cara al Cielo se inicia com os membros do agrupamento sentados à mesa de jantar e as mulheres servindo a refeição para o Coronel e alguns militares. Canedo adentra o recinto e informa que o agrupamento de índios comandados pelo cacique Caleifu estavam pedindo abrigo por conta do inverno. Um dos oficiais mostra seu descontentamento afirmando “que achava que este ano eles iriam ficar sem essa classe de problemas”. O coronel pergunta quantos homens eram e Canedo informa que eram cerca de cem pessoas. O Coronel fala ao Padre e ao oficial - que mostrou descontentamento - “que de acordo com as leis deve considera-los argentinos”. O Padre levanta da mesa e pondera que não deveriam deixar esses seres humanos serem enterrados na neve. Então o Coronel manda que Canedo e o oficial que havia mostrado descontentamento que eles dessem jeito de dispor das coisas necessárias para a tribo. O Padre se retira do recinto afirmando que seria uma longa jornada. A sequência vai para o pátio do fortim e mostra a chegada dos indígenas. A câmera em plano geral apresenta o coronel saindo dos seus aposentos e olhando. Nesse momento, a película utiliza do recurso do trevilling, - indo desde o coronel até a entrada dos indígenas. Estes caminhavam até o encontro com Cando prestando continência ao cacique e mandando um oficial que o acompanhava sugerir para as mulheres que acompanhavam os militares “que se ocupem das crianças e dos velhos, os demais deveriam o acompanhar”. DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 154

Cena 1 (Chegada de um agrupamento Indigena)

Prosseguindo a cena, o coronel junto com alguns militares retorna para o interior do local em que jantavam. Quando a câmera retorna aos aposentos, um dos militares bate à porta e entra informando aos que estavam presentes que ao grupo indígena foi dado abrigo no rancho auxiliar e que também repartiram alimentos. O Padre comenta que “eles estavam famintos e que algumas mulheres e crianças iam ficar no rancho dele e que no outro dia ele iria começar o catecismo e a falar sobre o dia 25 de maio”. Então o Coronel afirma que se alegra muito por essa gente e termina pergunto se havia algo mais. O militar que havia entrado e informado sobre a situação explica que o “Cacique tinha um oferecimento, que ele achava que não deveria ser recusado devido as circunstâncias” Então o Coronel pergunta “o que é?” e o soldado responde que o cacique queria “entregar a sua filha. O padre por sua vez se opõe” assim, o Padre diz que “se o Coronel aceitasse hoje mesmo haveria casamento”. O Coronel então pergunta a quem o Cacique queria entregar a sua filha e o padre o responde que ele queria entregar ao Coronel. O coronel assume uma postura mais séria e mandar entrar a índia. O militar busca a mulher e o padre chega perto do coronel com passos curtos e pergunta qual seria a sua resolução. Ele o responde que vai aceita-la, e que não haverá casamento. O padre começa a responde- lo e o Coronel levanta a voz perguntando se algum soldado não iria concordar com a sua resolução. Diz ainda ser o chefe e que iria resolver segundo sua consciência. O Padre somente o olha e sai do recinto. Por fim, o coronel fala para Arcondo que avise o Cacique que aceitaria o oferecimento e que se agradece. DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 155

Cena 2 (Discussão entre o Coronel e o Padre)

Temos assim, a construção da do arquétipo de herói utilizado pela ditadura militar Argentina. Importante destacar/perceber a importância que a religião assumiu dentro do contexto ditatorial, pela atuação do Padre dentro da sequência da cena. Portanto, ao mesmo tempo em que o Coronel aceita pessoas de etnias que não é a sua, ele justifica este fato ao falar que pela lei eles são considerados argentinos. Nesse sentido, o Padre tem papel fundamental ao enfatizar que iria iniciar a catequese e falar sobre o vinte e cinco de maio - o dia da independência argentina -. Assim, através desta fala pode-se perceber os fortes elos da religião católica com a festa comemorativa, que possibilitaria ao mesmo tornarem-se de fato argentinos. Cabe relembrar que para a ditadura argentina, o inimigo era estrangeiro, ateu e imoral. Assim a ditadura militar argentina tentou reafirmar as suas origens hispânicas e a religião cristã como sendo pertencentes aos habitantes por meio das festas oficiais, como demonstrado na descrição da cena. O que o Padre estava fazendo com os indígenas era transformá-los eles em “verdadeiros” argentinos.

Passemos, portanto, para outra sequência. Nela temos os signos da nação. O signo que aparece mais constantemente é a bandeira. Em algumas sequencias em que ela aparece, logo após a sequência inicial a película corta e vai direto para uma cena de hasteamento da bandeira nacional argentina. Assim ao hastear a bandeira o filme delimita logo no inicio que aquele território em que se encontravam os militares era pertencente à nação Argentina. E mesmo se tratando dos confins do território, dá-se a DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 156

ideia de que estes símbolos precisam tremular em todos os locais que que fossem parte do país, ajudando a consolidar o sentimento nacional.

Cena 3 (Hasteamento da Bandeira)

Na cena 3 temos o hasteamento do pavilhão nacional. Nela, os representantes do Estado, nesse caso, os militares e também o Padre, aparecem como legítimos guardiões da soberania nacional que deve ser garantida e promovida. Além disso a proteção das fronteiras precisa ser reforçada, assunto este recorrente na da película. Em outra sequência o Coronel prepara uma missão/um destacamento para diversos lugares como Aunquem, Tromen e Lago Aluminé. Nesta cena, o Cel. avisa seus comandados que estes deveriam registrar todo e qualquer índio que se encontrasse pelo caminho e que qualquer intromissão estrangeira deveria ser rechaçada de imediato. Façamos um parêntese aqui para uma colocação importante: aqui o Coronel se refere a que registrem todo o índio e também que não se permita a intromissão estrangeira. Para nós esta sequência gera uma dúvida. O combate era contra um agrupamento indígena, mas não fica explícito se esse agrupamento era ou não estrangeiro. Assim, não podemos afirmar se o que o Coronel se refere diz respeito aos indígenas que eles combatem ou sobre algum agrupamento mais amplo.

Retornemos à cena: quando o Coronel avisava seus comandados que deveriam registrar todo e qualquer indígenas que encontrasse a câmera nesse momento faz um DITADURA MILITAR ARGENTINA E O NACIONALISMO PRESENTE NO FILME DE CARA AL CIELO (1979) BRUNO JOSÉ ZENI 157

travelling entre o mapa e o rosto do Coronel - parando em primeiro plano – onde o coronel termina o diálogo avisando que o destacamento teria um mês para fazer esta missão antes que a neve se iniciasse. A câmera passa a acompanhar o Coronel e Molinada caminhando e conversando sendo que este ordena que os militares montassem a cavalo.

Ao destacar essas cenas para análise tivemos o intuito de colocar em evidencia seu relacionamento direto com uma outra sequência do filme em que são apresentados outros símbolos nacionais. Assim, neste texto buscamos demonstrar como a ditadura militar difundiu de uma maneira não convencional aspectos sociais que eram importantes para a propaganda política do regime bem como para a sua manutenção. Nesse sentido, a ditadura militar argentina apropriava-se do nacionalismo – como dissemos, por meios não convencionais – como é o caso do uso da película – para reforçar o nacionalismo frente a sua população e desse modo buscar nessa mesma população mais um sustentáculo para a permanência dos militares no poder. Além disso, tentamos mostrar qual era o tipo de nacionalismo difundido na película, a partir de descrições de sequências que poderíamos interpretar como difusoras desse conceito.

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Em face do outro: José de Gumilla, um viajante religioso na América espanhola do século XVIII?

BRUNO SILVA Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, professor adjunto de História da América na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), e-mail: slvbruno@ unifesspa.edu.br.

O ano de 1738 trouxe grandes surpresas para a região de Cartagena das Índias. O alvoroço que se estabeleceu nos arrabaldes da cidade se formou por conta das informações que se passavam boca a boca sobre um acontecimento ocorrido na enfermaria mantida pelo Colégio da Companhia de Jesus. Entre os pacientes havia uma mulher negra que, enferma por mais de seis meses, não deixara o hospital desde o nascimento de sua filha. Mas, a agitação, enfim, não fora causada por conta da internação de uma mulher e sim pela criança a qual a mesma trouxera ao mundo. A recém-nascida, uma menina que nunca havia deixado o hospital, era “criatura, qual creo que jamás han visto los siglos [...]”, dizia um conhecido padre da região, o espanhol José de Gumilla (GUMILLA, 1963, p.18).

De acordo com as informações passadas por Gumilla, a menina havia nascido com duas cores; ao longo do corpo, faixas brancas e pretas, divididas de forma igualmente proporcionais, davam o tom para que se pudesse caracterizar aquela criança como bicolor. O padre nos faz pensar em uma garota com manchas uniformes espalhadas pelo corpo, umas brancas, outras pretas, impossibilitando aos presentes de decifrarem se tratava de um ser humano branco ou de pele preta.

Toda la niña (que tendría como unos seis meses, y hoy ha entrado ya en los cinco años de su edad) desde la coronilla de la cabeza hasta los pies está tan jaspeada de blanco y negro, con tan arreglada proporción en la varia mixtura de entrambos colores, como si el arte hubiera gobernado el compás para la simetría y el pincel para el [?] y colorido. La mayor parte de la cabeza, poblada EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 160

de pelo negro y asortijado, se ve adornada con una pirámide de pelo crespo, tan blanco como la misma nieve; la cúspide piramidal remata en la misma coronilla, de donde baxa ensanchando sus dos líneas colaterales hasta la mitad de una y otra ceja; con tanta puntualidad en la división de los colores, que las dos medias cejas que sirven de basas á los dos ángulos de la pirámide, son de pelo blanco y asortijado; y las otras dos partes que miran hacia las orejas, son de pelo negro y crespo y para mayor realce de aquel campo blanco que la pirámide forma en medio de la frente, le puso naturaleza un lunar negro y proporcionado que sobresale notablemente, y le da mucha hermosura. Lo restante del rostro es de un negro claro, salpicado con algunos lunares más atezados; pero lo que sobre lo apacible, risueño y bien proporcionado del rostro y vivacidad de sus ojos da el mayor ayre á su hermosura, es otra pirámide blanca, que, estribando en la parte inferior del cuello, sube con proporción; y después de ocupar la ifedianía de la barba, remata su cúspide al pié del labio inferior, entre una sombra muy sutil (GUMILLA, 1963, p.18).

Após semanas de análises do que seria aquela criança, as pessoas ainda rumavam ao local de repouso da mãe e filha no intuito de observar o ocorrido; o alarde era de tal maneira que Gumilla diz ter ficado assustado com o desfecho que tal fato poderia causar.

Ao voltarem para casa, mãe e filha bicolor, receberam inúmeras visitas; dentre elas, José de Gumilla que acompanhou de perto o caso e, ao chegar ao local de moradia daquela família, percebeu que na residência havia um cão que carregava as mesmas manchas observadas na pele da criança. Ao questionar sobre a presença do cachorro, foi informado pela mãe que o animal fora sua companhia durante toda a gravidez, sobretudo em momentos de ausência do marido. Quão grande a estranheza de Gumilla; mas, naquele momento, assustado com o que vira, confirmava sua tese e a dos antigos, da influência do ambiente em que vive a mãe no feto que ela carrega. Ao fim, o contato contínuo com o cão, no caso espetacular de Cartagena, teria sido o responsável para que o ao mundo chegasse uma criança, com aspecto – no que diz respeito a coloração da pele – tão parecida com o cachorro.

Com essa história longa, Gumilla encerrava suas ponderações a respeito da coloração da pele dos negros. Se não fora a maldição do patriarca bíblico, também não fora diretamente a influência do clima; mas, com base em teólogos da Antiguidade e do Medievo, destacava que poderia ser a influência do local em que vivia a mãe, sua percepção, a transferência de imagens através da alma, de forma que isso ficava impresso no feto. Portanto, a imaginação da mãe teria forte poder na passagem de caracteres ao bebê que ela carregava. E isso, de alguma forma, poderia ser a causa das diferentes nações existentes na face da terra. No início eram poucos seres. Mas, com milhares de anos passados os casos aumentaram e, assim, se compreendia, para Gumilla, a diversidade humana. EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 161

Ao entrar em contato com a humanidade americana, em suas andanças pelo novo continente, o religioso viajante também se via às voltas com essas diferenças, vistas como fora do normal, a ponto de uma criança nascer com as características de um cachorro. Segundo Gumilla, desde que o mundo era mundo, ele jamais teria ouvido falar de tal acontecimento. Para o autor, nem o “pincel” do melhor artista da terra conseguiria retratar aquela estranheza. Decerto, o Novo Mundo, aos olhos de Gumilla, não fazia parte do “mundo” de onde ele vinha e prezava como tal. A narração dessa história, ao fim, buscava de alguma maneira, exteriorizar explicações que pudessem dar conta da origem da diversidade humana. A impressão passada pela mãe ao feto explicaria tudo? Qual era a origem dos índios? Qual a origem dos negros? Qual a razão da coloração de suas peles? O viajante religioso vai tateando pelas possibilidades.

Do viajante religioso

Padre José de Gumilla é um exemplo de viajante religioso que, embora se preocupasse em descrever as riquezas naturais e materiais dos locais por onde passava, de uma forma geral, estava muito inclinado à propagação da fé católica e à salvação dos gentios.

Gumilla nasceu em Valência, em fins do século XVII. Seu ingresso na Companhia de Jesus foi em 1704; sendo que um ano mais tarde, ele já se encontrava nas terras do Novo Mundo. Seus estudos sobre filosofia e teologia foram concluídos na Universidade de Bogotá, em solo americano. Em meados de 1716, enfim, o religioso começou a colocar em prática sua empreitada missionária. Num primeiro momento, foi ao trabalho de campo, percorrendo as comunidades e regiões ribeirinhas próximas ao rio Orenoco. Empreendeu uma reestruturação da missão de catequese, possibilitando, assim, uma empresa rentável nas missões próximas ao grande rio, região que havia sido abandonada pelos jesuítas, desde fins do século XVII, por conta das dificuldades em estabelecer contatos com os nativos.

Devido ao bom êxito de Gumilla nas questões referentes à ocupação dos espaços abandonados pelos seus antecessores e, principalmente, a capacidade que ele teve para levar em frente a expedição que lhe foi confiada, acabou deixando a região do rio Orenoco para se envolver com a máquina administrativa do império espanhol. Desta feita, em 1737 tornou-se reitor do Colégio de Cartagena; no ano seguinte, assumiu o posto de Vice Provincial do Novo Reino; recebendo também, nesse mesmo ano, o posto de Procurador EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 162

para Assuntos Religiosos que fossem discutidos em Roma e Madri. A importância de Gumilla nos quadros administrativos espanhóis se deu, sobretudo, em virtude do domínio que o religioso possuía da cultura e dos idiomas dos nativos.

Gumilla chegou à América com o intuito de cuidar da evangelização. De fato, em 1723, ele foi nomeado como Superior das missões do Orenoco, Meta e Casanare. Foram quinze anos de muita dificuldade, como narra o próprio viajante religioso. Contudo, o sucesso da sua empreitada adveio da sua transferência com a missão de restaurar os espaços de catequização da região do rio que era ocupada pelos índios Caribes e, portanto, considerada à época, área perigosa e de difícil contato com os nativos. Não obstante, esse momento marcou o trabalho do padre como missionário. Ali se observou a fundação de seis Povos e o profundo estudo das línguas e das culturas nativas. Os historiadores Carlos Del Cairo e Esteban Pabón destacam que a obra de José Gumilla, decerto, é um componente fundamental no rol dos documentos utilizados para se entender e interpretar a história missionária dos jesuítas na América espanhola do século XVIII (CAIRO; PABÓN, 2006, p.10).

O viajante missionário e, por fim, também viajante administrativo, esteve em distintas partes da América Centro-Sul na tentativa de estabelecer regras e limites geográficos de atuação dos distintos grupos religiosos existentes naquela região. Esteve na Guiana, firmando acordo com os Capuchinos sobre as fronteiras das missões daquela terra. Discutiu as jurisdições de ação dos grupos religiosos em Caracas e Píritu, atual Venezuela. Sua habilidade em esclarecer o importante papel das missões no processo de reestruturação da colonização, com certeza, foi observada e admirada por homens de outras instâncias administrativas. E embora não tenha ocupado cargos na alta administração espanhola, nem mesmo nos altos escalões da Igreja, seu trabalho e as funções que ocupou foram suficientes para lhe render expressiva rede de amigos. Isso fica comprovado quando o religioso retorna a Madri, em 1741, e, imediatamente, tem a primeira edição de sua obra El Orinoco Ilustrado publicada.

Em 1743, Gumilla voltou para suas Missões na América. Sua obra chama a atenção pela chancela que autoridades eclesiásticas e civis lhe concedem, aprovando a publicação de seus escritos. No prefácio da obra Histoire naturelle, civile et geographique, José Gumilla descreve o quanto era impressionante, para os homens do Velho Mundo, toda a novidade que se encontrava na América, destacando que EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 163

a la vûe de tant de nouveautés, on ne doit pas être surpris que les hommes, que la Providence a destines à cultiver ces nouveaux Païs, paraissent aussi de nouveaux hommes, & nous frappent d’autant moins, qu’ils nous paroissent moins raisonnables (GUMILLA, 1758, p.14).

Ao apresentar sua obra, José de Gumilla destacava as possíveis falhas ocorridas. Mas entendia que era uma das mais importantes para se compreender a América e a construção das ordens missionárias, bem como os povos e as riquezas naturais do Novo Mundo. Na introdução do seu livro, destacava deixar por conta de M. Freron, responsável pelo Journal Étranger, a análise de seu trabalho. E, de fato, na edição de 1746 do periódico supracitado, encontra-se uma avaliação da obra do viajante missionário.

Le P. Gumilla termine son Orénoque Illustré par une Dissertation sur la population des Indes, & par une longue Apostrophe aux Missionaires de la Compagnie de Jesus. Pour nous nous finirons par donner au P. Gumilla les justes éloges qu’il mérite. Son livre est plein de récherches curieuses, présentées avec ordre, & dans un jour agréable. La pureté & le tour simple & naturel de son stile, le distinguent des Ecrivains de sa Nation, qui tombent souvent dans un excés, dont cependant on commence à revenir en Espagne, ll regne dans le cours de l’ouvrage une tendresse Apostolique, qui donne une heureuse idée du caractére de l’Auteur (GUMILLA, 1758, Prefácio).

O padre José de Gumilla morreu na América, em 1750, numa das missões que ele organizara e que lhe trazia tanto orgulho. Não se tem notícias se o missionário elaborou listas de obras pessoais em busca de glória própria. E penso nem ter sido preciso, uma vez que o reconhecimento pelos escritos do religioso não veio só de instâncias ligadas à Igreja, mas também as governamentais. Gumilla identificou os povos americanos que viviam ao longo das missões do rio Orenoco. Ele dizia que muito antes de se concentrar nas capacidades, o intelecto e os usos dos indígenas, era preciso considerar o frontispício e a fachada dos povos pesquisados, afinal de contas, as configurações exteriores demonstravam muito a respeito do caráter e forma de agir dos povos.

El indio en general (hablo de los que habitan las selvas y de los que empiezan a domesticarse) es ciertamente hombre; pero su falta de cultivo le ha desfigurado tanto lo racional que en el sentido moral me atrevo a decir: que el indio bárbaro y silvestre es un monstruo nunca visto, que tiene cabeza de ignorancia, corazón de ingratitud, pecho de inconstancia, espaldas de pereza, pies de miedo, su vientre para beber y su inclinación a embriagarse: son dos abismos sin fin (GUMILLA, 1963, p.103). EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 164

Classificando a humanidade do Novo Mundo

Ao abordar as nações indígenas encontradas nos arredores do Rio Orenoco, região da atual América do Sul, o autor destacava que eram povos incultos e agrestes que não sabiam ler e nem escrever, não possuíam nenhum tipo de pintura hieroglífica e, portanto, eram distintos dos Mexicas e dos Incas que possuíam livros e manifestações culturais que guardavam suas memórias. Lembravam nações do início da história da humanidade e mais bárbaras que estas era difícil encontrar. Assim, a maior parte desses povos da região em questão não sabiam o que responder quando se perguntava sobre seus antepassados, “no se levantan sus pensamientos un dedo arriba de la tierra: no tienen otra idea, que la de las bestias, que es comer, beber, multiplicar y resguardarse de lo que aprenden como dañoso y perjudicial. Esta y no o’ra, es la vida de aquellos hombres silvestres (GUMILLA, 1963, p.140).

Contudo, o viajante destacava que havia nações mais esclarecidas que outras e, por isso, mais desenvolvidas em se tratando de corpo, desembaraço no modo de falar e numa maior suavidade da língua, sendo, portanto, àquelas que possuíam vantagens se comparadas umas com as outras. Gumilla destacava que na região do Rio Orinoco a nação que mais se sobressaía era a Cariba (Caraíbas), de modo que

Son los Caribes de buen arte, altos de cuerpo, y bien hechos; hablan desde la primera vez con cualquiera, con tanto desembarazo y satisfacción, como si fuera muy amigo y conocido. En materia de ardides y traiciones son maestros aventajados, por lo mismo que de suyo son muy temerosos y cobardes. Preguntados estos ¿de dónde salieron sus mayores? no saben dar otra respuesta, que ésta: ‘Nosotros solamente somos gente’. Y esta respuesta nace de la soberbia, con que miran al resto de aquellas Naciones, como esclavos suyos: y con la misma lisura se lo dicen en su cara con estas formales palabras: ‘Amucón paporáro itóto nantó: Todas las demás gentes son esclavos nuestros.’ Esta es la altivez bárbara de esta Nación Cariba; y realmente trata con desprecio y con tiranía á todas aquellas gentes, rendidas unas, y otras temerosas de su yugo (GUMILLA, 1963, p.148).

O padre ainda lembra que se os caraíbas não sabiam explicar a origem da sua gente; os povos da nação Saliba diziam que o Puru enviou seu filho desde o céu para matar uma terrível serpente que devorava as populações do Orinoco. E tendo o tal Puru vencido aquele feroz animal, deixou a todos na região felizes e em grande júbilo. O guerreiro ainda teria dito ao bicho: “Vete al Itifierno, maldito, que no entrarás en mi casa jamás (note el curioso en esta tradición una confusa idea de la redención del Género Humano.)”, afirma Gumilla (GUMILLA, 1963, p.148) EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 165

Contudo, a paz teria durado pouco pois logo que apodreceu o corpo da grande serpente, se formaram nas suas entranhas enormes vermes e de cada verme saiu um índio Caraíba acompanhado de sua mulher. Assim “y que como la Culebra Ó Serpiente fué tan sangrienta enemiga de todas aquellas Naciones; por eso los Carices hijos de ella, eran bravos, inhumanos y crueles” (GUMILLA, 1963, p.148). A nação Jcbagua, por sua vez, destacava que os Caraíbas eram descendentes legítimos dos tigres e por isso se comportavam com tamanha crueldade. Por isso,

Por esta causa del nombre Cbavi, que en su lengua significa Tigre, deducen la palabraCbavimvt , que para ellos significa lo mismo que Caribe, oriundo de Tigre. Otros Acbaguas de otras Parcialidades, ó Tribus explican mas la especie, y le dan mas alma de este modo: Cbceui es el Tigre en su lengua; y Cbavina es la Lanza; y de las dos palabras Tigre y Lanza sacan el nombre de los Caribes, llamándolos Cbavinavi, que es lo mismo que hijos de Tigres con Lanzas: alusión ó semejanza muy propia para la crueldad sangrienta de los Caribes (GUMILLA, 1963, p.103).

A nação Othomaca (Otomaca), segundo Gumilla a mais bárbara entre todos os bárbaros da região do rio Orinoco, também possuía uma explicação “tosca” em relação a origem do seu povo, diziam que uma grande pedra formada de três partes, umas sobre as outras, levantada como um promontório, de nome Barraguan, teria sido sua primeira avó. E, de acordo com o viajante, um outro penhasco “horrendo” era considerado pelos Otomacas, seu primeiro avô. Partindo dessa lógica, cada pedra que estava na formação daquele alto promontório de penhascos teria sido um dos antepassados daquela nação. Portanto, eles enterravam seus defuntos; mas, depois de um ano, restituíam suas caveiras e levavam os ossos para serem jogados nas cavidades do tido promontório, local tomado por grande número de restos mortais. Os índios da nação Mapoya “llaman á la tal piedra, en que remata, y que sirve como de chapitel al picacho del Barraguan, Uruana; y dicen que aquella es la raíz de todas las gentes de su Nación; y por eso gustan mucho de que lo llamen Uruanayes, y ensartan esta raíz con una arga cadena de quimeras y desatinos” (GUMILLA, 1963, p.103).

Para José de Gumilla, a melhor explicação para a origem dos índios vinha dos Saleas e dos Adaguas, já que eram nações mais capazes e com melhor índole em toda a região; acreditam terem se originado da terra. Entretanto, para o autor, eles erravam ao pensarem totalmente dessa forma, afinal as almas possuíam uma origem superior. E eles diziam que da terra brotara, muito antigamente, homens e mulheres. Assim, segundo Gumilla, as explicações para a gênese daqueles grupos eram perpassadas por idolatrias que impediam aos europeus terem mais informações verídicas a respeito daquelas gentes. EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 166

A obra de Gumilla buscou apresentar uma síntese a respeito da diversidade. Contudo, não fugiu da lógica da unicidade humana. Portanto, os nativos americanos e os africanos possuíam origem branca. O prelado tentava rebater teses que foram escritas no século XVII a respeito da possibilidade de existência de diferentes raças. E se a cor da pele era diferente, pelo menos a princípio, o viajante religioso entendia que não se tratava de uma outra espécie e nem tampouco fruto de um outro evento edênico, como defendera alguns letrados.1

Para Gumilla, a impressão materna passada para o feto era a explicação para o mosaico de cores. Desse modo, destacava que todas as crianças eram brancas ao nascer, embora o mesmo tivesse escrito fartamente sobre a menina bicolor de Cartagena. Todavia, o viajante afirma que eram brancos por alguns dias os filhos dos indígenas, assim que vinham ao mundo. Tal fato também sucedia com os filhos dos negros que, ao nascerem, sempre possuíam uma pinta negra nas extremidades das unhas, mostrando que seriam de cor preta em poucos dias, e enfatiza que

(…) así también nacen los Indiecillos con una mancha acia la parte posterior de la cintura de color obscuro, con visos de entre morado y pardo; la qual se va desvaneciendo al paso que la criatura va perdiendo el color blanco, y adquiriendo el suyo natural. Esta eña ó mancha es cierta, y cosa que tengo vista y exlininada repetidas veces: su tamaño es poco mas ó menos del espacio que ocupa un peso duro de nueva fábrica (GUMILLA, 1963, p.155).

Como se percebe, a cor da pele era importante no inventário da diversidade americana proposto por de José de Gumilla. Mas, a despeito disso, em grande parte da obra parece não haver preconceito ou discriminação exteriorizada pelo viajante a respeito dos povos indígenas ou africanos. Ao que aparenta, o autor entendia que a coloração da cútis não deveria ser usada para classificar o ser humano em inferior ou superior; e se ele acreditava ser difícil reverter a cor da tez, nem por isso encontrava algum problema grave nesses povos.

De todo modo, o autor explicava algumas formas de classificação dos diversos

1 C.f POPKIN, Richard H. Isaac La Peyrère (1596-1676): his life, work and influence. New York: E.J. Brill, 1987, p. 27. La Peyrère levantou a hipótese de que diferentes eventos da criação humana teriam ocorrido, negando assim que todos os povos da terra eram oriundos do evento ocorrido no Éden, a tese de uma origem pré-adâmica já existia há séculos. Embora seja complicado precisar o nascimento de tais ideias, muito provavelmente possamos considerar que nasceu e cresceu entre os pagãos que se confrontavam com o que os judeus e cristãos ofereciam como resposta para a origem da raça humana. “Probably when the first Greek to meet a Jew heard what the Bible said about human origins, he retorted with a version of the pre-Adamite theory”. EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 167

grupos que se originaram na América, por meio da miscigenação, que precisam ser consideradas. Em relação aos mestiços, declarava:

Pero aquí es de saber, que, si la Mestiza se casó con Mestizo, la prole es mestiza, y se llama vulgarmente tente en el ayre; porque ni es mas, ni es menos que sus padres, y queda en el grado de ellos. Si la Mestiza se casó con Indio, la prole se llama salta atrás; porque en lugar de adelantar algo j se atrasa ó vuelve atrás, de grado superior á inferior (GUMILLA, 1963, p.155).

Logo, percebe-se que o autor indica o binômio superior-inferior para inferir que as misturas entre uma mulher indígena e um índio faria com que o processo de melhoramento da espécie fosse interrompido. Pode-se concluir que, através da nomenclatura das castas, o autor estabelece alguma espécie de segregação de grupos? Talvez não.

Afinal, ele segue enfatizando que é preciso se considerar as cores no processo de classificação da humanidade, sem, contudo, dar preferência à alguma, uma vez que o resultado dessas misturas era sempre incerto, desdobramento da vontade divina e não da razão. E afirma que

Por otra parte es cierto que la hermosura no consiste solo en el color blanco: de este color hay caras muy feas; y del color negro las hubo muy hermosas: y en lo literal consta, que la Esposa que se arrebató la Corona y los cariños del Rey, fué negra y muy hermosa; y aun el Mantuano, instruyendo á un Joven mal informado en este punto de apreciar colores, le puso á la vista, quanto mas apreciamos las violetas en contraposición de otras muchas flores blancas: de todo que en esta materia el aprecio nace, no del color, ni de la cosa ó persona que le tiene , sino del afecto con que se mira; por lo qual dixo el adagio: Qfíisquis amat ranam, ranamputat esse Díanam. Sin que guarde consequencia el afecto humano: pues aun las Señoras que mas aprecian su blancura, engastan en ella lunares negros por mucha gala: y el amor á ios ojos negros en las Provincias del Norte, ha dexado á muchas Damas tuertas, y á otras ciegas, á fuerza de acres saumerios ue paca dicho fin han inventado. Los hombres blancos han dado mayores muestras de dicha inclinación y amor al color negro: y hoy en dia, en Cartagena de Indias, en Mompóx y en otras partes se hallan Españoles honrados, casados (por su elección libre) con Negras, muy contentos y concordes con sus mujeres (GUMILLA, 1963, p.155).

Aparentemente, José de Gumilla condenava qualquer tipo de discriminação baseada na cor da pele, também defendia que era possível a união entre pessoas de nações diferentes, desde que sob o manto dos sacramentos católicos. Ele também descartava a possibilidade de reversão da cor da pele dos indivíduos a partir da mudança de clima. Ao fim, explicava que cor da humanidade fora se modificando por conta do olhar materno para os ambientes mais distintos, o que redundou em seres humanos com distintas colorações. EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 168

Contraditório Gumilla?

Apesar do exposto acima, o viajante religioso apresentou probabilidades de branqueamento do fruto de um casal composto por branco e negro, caso fossem mantidas uniões com brancos, o que redundaria em total alvura depois de quatro gerações. Assim, o jovem viajante destacava que um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento do Cristianismo estava atrelado exatamente com a visão míope que não permitia que se considerasse a possibilidade de retroceder o processo de mestiçagem entre brancos e mulatos. Portanto o erro consistia “en ce qu’on est persuadé que les enfans des Mulâtres ne deviennent jamais blancs, comme ceux des Métifs et des Indiens” (GUMILLA, 1963, p.149).

Gumilla apontava, com base em obras da época, que era possível o branqueamento dos frutos entre brancos e mulatos e destacava que tal processo era mais difícil de perceber por conta da dificuldade de se encontrar uniões desse tipo. No entanto, a degeneração causada pelo encontro de diferentes nações poderia ser revertida se as uniões fossem mantidas com homens brancos, nas quais:

1 – D’un Européen et d’une Négresse, naissent les Mulâtres = Deux quarts de chaque partie. / 2 – D’un Européen et d’une Mulâtre, les quarterons = un quart de la Mulâtre. / 3 – D’un Européen et d’une Quarterone, les Ochavons = Un hutième de la Mulâtre. / 4 – D’un Européen et d’une Ochavano, naissent les Puchuelas = Tout-à-fait blancs (GUMILLA, 1758, p.155).

A preocupação de Gumilla era tentar explicar que a reversão do processo de mistura ocorreria se mantivesse nas conjunções a presença do sangue europeu, ao qual ele atribuía o poder de apagar as máculas ou vestígios perpetrados pelo sangue indígena ou mestiço. No fundo, embora o autor não use exatamente tal expressão, o sangue europeu teria uma força “purificadora”, expressando, assim, a superioridade das nações do Velho Mundo. Para o viajante, que destacava ser preciso empreender mais pesquisas nessa área, o ideal era que não houvesse misturas. No entanto, em casos específicos, poderia contorná-las em favor da pureza do sangue branco. Evidente, como o mesmo enfatizava, em caso de retrocesso no processo de branqueamento, ou seja, caso o fruto do encontro entre branco e mulato “retroagisse” e se unisse a outro mulato, índio ou, sobretudo, negro, era um passo atrás no processo de limpeza.

O viajante destacava que as crianças nascidas de casais indígenas vinham ao mundo com propensão ao escurecimento da pele. E, embora o autor não desqualificasse EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 169

explicitamente o homem americano por conta da coloração da pele, o ponto seguinte abordado pelo viajante se coadunava com a ideia de que a cor da casca tênue europeia era o ideal. Afinal, Gumilla montou um quadro teórico onde tentava provar que a filha de um casal indígena que se casasse com um europeu, o fruto dessa conjunção, certamente já estaria mais próximo dos caracteres europeus e, portanto, se tal procedimento fosse mantido por até quatro gerações, estava convicto que os descendentes dessa união seriam tal como os europeus. Os cálculos apresentados pelo viajante partiam da seguinte lógica:

1 – D’un Européen & d’une Indienne viennent les Metif = Deux quarts de chaque partie. 2 – D’un Européen & d’une Metive, vient l’espece Quartetona = Un quart de l’Indienne. 3 – De l’Européen & de la Quarterona naît l’Ochavona = Une huitiéme partie de l’Indienne. 4 – De l’Européen & de l’Ochavona sort la Puchuela = Tout-à-fait blanche”. […] Il est étonnant de voir avec quelle promptitude les Indiens blanchissent: qu’une Indienne se Marie avec un homme de la même Nation, l’enfant qui naîr à la quatrième génération, est aussi blanc qu’un François né dans le sein de Paris” (GUMILLA, 1758, p. 145).

Como vemos, a consideração da imaginação materna como fator de explicação para as diferentes cores de pele foi hipótese cara ao jesuíta espanhol José Gumilla que, no início do século XVIII, propunha observar as características dos diversos povos que compunham a região do rio Orenoco (América Espanhola) e destacava que sua principal missão era descrever os povos, seus costumes e seus modos.

Gumilla entendia que o sol, que ele apontava como uma estrela, não podia e não possuía capacidade para interferir diretamente na mudança da pele dos indivíduos. E ele lembrava que, caso fosse possível, inúmeras famílias brancas que viviam na América já teriam perdido sua coloração de pele original depois de algum tempo. Gumilla advertia que se a influência climática possuía tanto poder, sobretudo quando se tratava da presença do sol, como explicar que ursos, leões e pássaros mantivessem a coloração da pele, pena e pelo estando debaixo do mesmo céu? Portanto, para o autor, o clima não podia ser encarado como único responsável pela cor da pele; até porque em Angola e Serra Leoa inúmeras famílias brancas viviam por muitos anos e, mesmo assim, seus “frutos” permaneciam brancos.

Ao questionar a total influência climática nas cores da pele dos indivíduos, Gumilla acreditava na importância da mãe para a definição da coloração. Assim, retomava os argumentos bíblicos da criação do mundo e da humanidade, destacando a aparição da espécie humana e, subsequentemente, sua dispersão pela face da terra que, depois EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 170

de milhares de anos, houve a multiplicação de diferentes nações. Mas, inicialmente, tais nações teriam suas diferenças apresentadas por conta das percepções que as progenitoras teriam tido a respeito do universo social que as circundavam durante a gravidez. Portanto, o jesuíta voltava ao passado e reintegrava argumentos de homens como Tomás de Aquino e Santo Isidoro, para explicar que a mãe era capaz de transmitir ao feto, algo sobre as percepções que tinha sobre o mundo em sua volta.

Na verdade, o inventário proposto por José Gumilla, no qual aglomerava informações importantes sobre povos americanos, começava com os indígenas. Nele, o viajante nos lembra de que nos “países” americanos era possível encontrar diversidade de povos, no que dizia respeito às características físicas, assim como também se encontrava na Europa. Portanto, em suas anotações, Gumilla destacava que em algumas nações indígenas os povos eram altos e fortes, em outras eram baixos e pequenos, bem como alguns apresentavam traços de formosura, enquanto outros eram feios. Assim sendo, para ele, alguns mostravam muita vivacidade em seus olhos e em suas ações, enquanto outros eram extremamente preguiçosos e indolentes (GUMILLA, 1758, p.165). Esta variedade, para Gumilla, era uma das melhores performances do universo e provava o poder admirável do Criador.

Ao atravessar o Atlântico, no alvorecer do século que seria classificatório por excelência, Gumilla encarava a diversidade de povos que despontava em sua frente, como resultado da perfeição divina e da vontade criadora de demonstrar seu poder ao constituir nações tão diferentes em seus aspectos físicos e costumes. Suas tentativas de explicações para tanta diversidade, embora não abandonasse os interstícios religiosos, passava por um viés científico que tentava conceder coerência aos fatores que causavam determinados fenômenos.

Seja como for, ainda no que diz respeito à cor da pele dos africanos, o jesuíta refutava a tese da influência climática, algo que, anos mais tarde, seria defendido pelo famoso conde de Buffon. Para o último, a humanidade teria partido de uma única espécie. Mas, ao se multiplicar pela face da terra, essa humanidade teria passado por modificações em sua estrutura física, sobretudo por conta das influências climáticas, da alimentação, do modo de vida, das epidemias e das doenças, dentre outros. Para Gumilla, a proximidade do Equador não era responsável pela cor diferente das pessoas; assim, não se podia provar que quanto mais próximo do Norte mais branca era a pele, ao passo que mais afastado a pele ficava mais escura. EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 171

De fato, a tonalidade da epiderme e os aspectos físicos não eram as únicas formas de classificar a humanidade. Homens como José de Gumilla que também negavaa influência climática no processo de configuração das tonalidades humanas, não entendia que esse era um dado importante, uma vez que, sendo o homem branco ou preto, no fim, se tratava da expressão da grandiosidade divina. Mas, curiosamente, Gumilla ofereceu inúmeras receitas nas quais, ainda muito influenciadas pelo pensamento de fins do século XVII, especialmente por conta de viajantes que também estiveram na América, poderiam reverter a coloração preta ou vermelha dos indivíduos, desde que eles mantivessem relações com homens de cor branca.

Recusar a influência do clima na disposição da coloração da humanidade, nem sempre esteve associada com a negação de que o homem americano era oriundo de raça distinta da europeia. Isso fica evidente na obra de Gumilla, particularmente em virtude da posição por ele assumida naquela sociedade do século da Ilustração. Mas alinhavar que a cor preta ou vermelha da pele poderia ser revertida demonstra que esse homem, mesmo como discípulo de Deus e defensor da obra magna do Todo Poderoso, acreditava que o ideal de pele era o branco e, com isso, posicionava as outras nações existentes na terra em patamar diferente dos europeus, por mais que seja perigoso afirmamos que tal posição seria de inferioridade permanente, já que nem sempre esse viajante colocava essas ideias nesses termos. Embora Gumilla, hora ou outra, se sirva do binômio inferior-superior para se referir aos brancos europeus e aos ameríndios e os descendentes de africanos na América.

Gumilla afirmava que a cor preta causava melancolia aos olhos dos brancos. Entretanto, presumia que, talvez, isso também ocorresse aos olhos dos pretos ao se depararem com os homens de tez branca. Se atentarmos para o fato de que ele afirmava tal comportamento para o homem branco no contato com o preto, mas, apenas vislumbrava tal hipótese no caso do indivíduo de epiderme preta, significa que o viajante não se preocupou em pesquisar qual era a posição do negro em relação à pele branca dos europeus, afinal de contas, mesmo tentando negar, apostava no fato de que o homem de cor branca era o padrão.

Durante todo o século XVIII, a metáfora das cores assumiria papel mais preponderante nas sociedades do Antigo Regime, fosse em região europeia ou no Novo Mundo. No EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 172

fim do século, a aceitação da influência climática também seria mais combatida, muito embora a teoria do clima não negasse a existência das raças. E mesmo aqueles que aceitavam a possível influência do ambiente, começaram a destacar que a reversão da degeneração das nações era algo improvável. Porém, ideias que parecem “brotar” das tintas de homens do século XVIII haviam sido trazidas à baila em fins da centúria anterior. Os letrados nem sempre se serviam da expressão raça para expressar suas hipóteses, de todo modo, a consideração do processo de degeneração como aquele que fora responsável por alocar a humanidade americana em patamar distinto dos homens europeus, estava posto na segunda metade do século XVII. O uso da expressão raça que, na Europa, era utilizado desde fins da Idade Média para hierarquizar grupos de animais e também grupos humanos, foi só uma questão de tempo.

Portanto, fica fácil perceber que o autor não fazia o enquadramento dos povos do Orinoco somente pela cultura ou modo de agir; mas, acima de tudo, pelas características físicas, não indicando nenhum traço de imutabilidade no sangue e nos caracteres dessas nações. Porém, ainda assim, os qualificando como inferiores, porque se não o fossem, qual a razão para Gumilla propor um projeto que visava desaparecer com as nações negras e indígenas?

Missionário sério e comprometido com a expansão da fé Católica, Gumilla hesitou em assumir que os indígenas eram de uma nação inferior. No fim das contas, ficou com a ideia de que existia apenas uma raça humana. Contudo, apresentou pesquisas mirabolantes que apontavam o processo de branqueamento dos nativos do Novo Mundo, se cada vez mais o sangue branco e europeu penetrasse naquela sociedade, através da miscigenação com os nativos. Apesar disso, relutou em destacar o poder regenerador do sangue branco quando se tratava da mistura com o sangue negro. E apresentou a possibilidade das impressões que a mãe possui a respeito do seu entorno influenciar nas características dos filhos. Mas, ao fim, se percebe que o autor, por mais que sua posição na fosse explícita, via o homem americano como inferior com base na análise dos caracteres físicos, ainda que não tenha feito uso da palavra raça para se referir àqueles povos. Não fosse isso, não haveria razões para Gumilla propor o embraquecimento das nações da América. EM FACE DO OUTRO: JOSÉ DE GUMILLA, UM VIAJANTE RELIGIOSO NA AMÉRICA ESPANHOLA DO SÉCULO XVIII? BRUNO SILVA 173

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAIRO, Carlos del & PABÓN, Esteban Rozo. El salvaje y la retórica colonial en El Orinoco ilustrado (1741) de José Gumilla S. J. Fronteras de la Historia, 2006.

GUMILLA, José. Histoire naturelle, civile et géographique de l’Orénoque et des principales rivières qui s’y jettent... Par le P. Joseoh Gumilla, ... traduite de l’espagnol sur la seconde édition par M. Eidous, v. 1, 1758.

GUMILLA, Joseph. El Orinoco ilustrado y defendido. Historia natural, civil y geográfica de este gran río y de sus caudalosas vertientes. Escrito en 1731. Ediciones posteriores: 1745, 1791 y 1882. Versión francesa, 1758. Caracas: Academia Nacional de la Historia, Fuentes para la Historia Colonial de Venezuela, n. 68, 1963.

POPKIN, Richard H. Isaac La Peyrère (1596-1676): his life, work and influence. New York: E.J. Brill, 1987. 174

Reflexões sobre intelectuais e esquerdas na Argentina dos anos 1960: acadêmicos, críticos e a EUDEBA (1955-1966)

CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO Mestrando em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação da professora Gabriela Pellegrino Soares. E-mail: [email protected]

Na Argentina os “años sesenta” começaram em 1955. Essa afirmação categórica carrega significados velados. O golpe de Estado que tirou Juan Domingo Perón do poder, em 16 de setembro de 1955, é um marco temporal da trajetória política argentina. Tal acontecimento transcendeu, entretanto, a esfera política, influenciando e até mesmo pautando diversos processos de transformação social e cultural ocorridos nos anos vindouros. Um desses processos foi a disputa ideológica pela construção de uma cultura “pós-peronista”.

O fenômeno peronista – bem como a queda do primeiro governo de Perón – estão longe de ser objetos de análise simples. De maneira sintética, podemos afirmar que a derrubada do mandatário argentino em 1955 se deu por meio de uma conjunção de forças opositoras extremamente heterogênea. De conservadores a anarquistas, passando por socialistas, comunistas e liberais (progressistas ou não), todos os que comemoraram sua queda poderiam agora lutar por protagonismo e espaço em diversas esferas de atuação – entre elas, a esfera cultural.1

Nesse contexto, a atuação dos intelectuais argentinos será muito importante. Escanteados durante o primeiro governo de Perón, eles terão a possibilidade de assumir protagonismos em prol de sua visão de mundo e, também, de trabalhar por sua inserção – e a de seus grupos e círculos intelectuais – em um campo de ação e legitimação que se

1 Consideramos importante ressaltar que nessa disputa também tomarão parte aqueles que não comemoraram a deposição de Perón, ou seja, seus apoiadores. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 175

apresentava consideravelmente permeável. Em seu livro Intelectuales y poder en Argentina – la década del sesenta (SIGAL, 2002 (1991)), a socióloga Silvia Sigal analisa as motivações e estratégias de diversos grupos intelectuais atuantes na Argentina dos anos sessenta. Entre os diversos argumentos sustentados por Sigal em sua tentativa de compreender os caminhos percorridos pelos intelectuais argentinos do período, encontra-se um que nos parece essencial mencionar nesse ponto: a “disponibilidade ideológica” (SIGAL, 2002 (1991), p. 34). Em poucas palavras, esta seria uma espécie de disposição dos intelectuais do período em receber conjuntos de ideias diferentes das que consideram tradicionais e refletir acerca de modos de ação também distintos dos usuais. Isso teria ocorrido porque, durante anos, a identidade desses intelectuais foi construída sob a égide de Perón, entre as fluidas categorias do peronismo e do antiperonismo. Ao menos no período imediatamente posterior à queda do presidente, diversos grupos intelectuais se abriram a influências distintas em seu trabalho de busca por protagonismo na esfera pública argentina.

Nossa argumentação, aqui, será centrada na análise de determinadas estratégias utilizadas por intelectuais majoritariamente antiperonistas e ligados a perspectivas ideológicas de esquerda para levar a cabo um projeto cultural de grande importância para a Argentina dos “años sesenta”. Tal projeto foi a criação da EUDEBA – Editorial Universitária de Buenos Aires –, que iniciou suas atividades no ano de 1958.

Antes de adentrarmos os claustros e salas de reunião que abrigaram as primeiras deliberações acerca da criação da EUDEBA, consideramos válido sobrevoar o contexto político que permeou o período. O tom geral dos governos formados após a derrubada de Perón pode ser sintetizado em duas palavras: desperonização e modernização. O discurso construído nos gabinetes e nas declarações de membros do governo à imprensa era de que o período de atraso representado pelo peronismo havia acabado e a modernização que levaria ao desenvolvimento do país estava apenas começando.

Nesse sentido, o primeiro presidente pós-golpe, Arturo Frondizi, adotou um discurso que mesclava propostas de mudança e tentativas de conciliação. Visava, assim, ganhar apoio e acalmar os ânimos de grupos políticos que passariam – assim como os grupos intelectuais – a disputar protagonismo em um cenário em que, oficialmente, o peronismo estava proibido. Apenas oficialmente. Os grupos peronistas se organizaram de maneira clandestina e há fortes indícios de que o antigo líder popular organizava seus fiéis partidários mesmo estando exilado. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 176

Tanto Frondizi quanto seu sucessor, o casualmente homônimo Arturo Illia, buscaram a conciliação com os interesses antiperonistas – marcadamente representados pelas ideias liberais, à direita, e pelas ideias socialistas, à esquerda – e com os “ilegais” interesses peronistas – representados majoritariamente pelos grupos populares e sindicais de apoio ao ex-presidente e seu discurso de término de sua proscrição. Ambos foram retirados do poder por golpes militares.

Os intelectuais de esquerda engajaram-se em pensar estratégias para auxiliar no desenvolvimento nacional. Apoiaram, eu sua maioria, uma aliança com Arturo Frondizi – visto como intelectual progressista – para que fosse eleito e organizasse as reformas progressistas de que julgavam necessitar a Argentina. A eleição ocorreu, mas a lua de mel durou pouco. Atitudes e acordos do então presidente – notadamente a autorização da exploração estrangeira do petróleo e a autorização da exploração de universidades pela iniciativa privada – provocaram iradas reações nos meios intelectuais, que passaram a caracterizar o conjunto de seu governo como sendo uma “traición Frondizi”. Um dos periódicos à esquerda que circularam à época, Propósitos, por meio de um texto de capa de seu editor, Leónidas Barletta, definiu assim a sua insatisfação com as atitudes do então presidente:

Hasta ahora el presidente se ha mostrado fuerte con la populación inerme. Ha agrietado a su partido y corroído el prestigio de quienes se embarcaron en tan extraña aventura levantando este inocente estandarte: ‘Un paso atrás, para dar el gran salto’. Hemos retrocedido tánto que por grande que sea el salto, siempre caeremos ‘atrás’. A los correligionarios que están ubicados o tienen la esperanza de acomodarse, no les importa que gobierne Frigerio o Alsogaray o Perón y van a llevar su adhesión al refugio de Olivos. Los más delicados renuncian. El primer golpe se lo dio el Dr. Frondizi a sí mismo. Ahora se lo dan los que lo acorralan a chorritos. (BARLETTA, 1959)

Com rara astúcia, Barletta sintetiza um certo espírito geral das esquerdas – nesse caso, políticas e intelectuais – em relação a Frondizi e à subida ao poder por meio de uma aliança com políticos conciliadores, moderados, que dariam “um passo atrás” para depois efetuar um “grande salto”. O diagnóstico é que a traición Frondizi foi tão nefasta que qualquer que fosse o tamanho do “salto”, ele não seria suficiente para superar os retrocessos ocorridos no mesmo período. O golpe “a chorritos”, que tomaremos a liberdade de traduzir aqui como golpe a “conta gotas”, prenunciado por Barletta transbordaria o copo da política argentina em março de 1962, quando militares retiraram Frondizi do poder, acusando-o de conivência com o peronismo e inépcia administrativa. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 177

A intelectualidade argentina não estava imune às negociações e aos acirrados embates que ocorriam na política. Em suas entranhas ocorriam também disputas e acomodações que influenciavam o transcorrer do processo político, da mesma forma que eram por ele influenciadas. Qual seria o papel do intelectual perante um mundo em transformação? Era uma das inúmeras questões colocadas pelos intelectuais argentinos do período.

O importante pensador Oscar Terán escreveu um livro essencial para a compreensão do período – é dele, inclusive, que nos apropriamos da expressão “años sesenta”. Em Nuestros años sesenta, Terán analisa os principais percursos teóricos de alguns dos principais intelectuais de esquerda da Argentina entre 1955 e 1960. (TERÁN, 2013). Para ele, a tensão que marca a entrada desses intelectuais no período se dá entre os “críticos” e os “acadêmicos”. A primeira categoria seria composta por intelectuais mais à esquerda, que considerariam, de maneira geral, que a função do intelectual em uma sociedade está necessariamente associada ao compromisso do mesmo com a diminuição das opressões e da desigualdade social. As pesquisas e os textos produzidos pelos pensadores e cientistas deveriam dialogar diretamente com a realidade social e contribuir para melhorá-la. A segunda categoria seria composta por intelectuais mais ligados à estrutura burocrática e institucional das universidades e órgãos de produção e difusão cultural. Seriam, assim, intelectuais não tão preocupados com o conhecimento “para”, mas com o conhecimento “em si”.

Compromissados ou não, os intelectuais argentinos invariavelmente partiam de um mesmo ponto para tratar da situação nacional: o hecho peronista, como enuncia Carlos Altamirano (ALTAMIRANO, 2013, p. 19). Afinal, Perón estava exilado e o peronismo estava proibido, mas os grupos peronistas e suas ideias não paravam de se propagar pela sociedade – em especial entre as camadas populares. Como se posicionar diante disso? As esquerdas e os intelectuais ligados às ideias de esquerda passarão a trilhar caminhos cada vez mais divergentes. Enquanto parte das esquerdas se baseava em uma interpretação mais ortodoxa do peronismo como uma etapa necessária e passageira na revolução argentina, os estudantes se abriam para outras vertentes e interpretações e buscavam voz nessas disputas. Além disso, parte dos intelectuais reelabora seu pensamento acerca do peronismo. Afinal, se tal pensamento fora proibido, Perón exilado e, não obstante, suas ideias continuavam sendo fortes entre as camadas populares, talvez não representasse um mal tão grande assim. Os professores e intelectuais ligados às universidades reivindicarão um papel de debatedores da realidade nacional por meio da REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 178

razão, da pesquisa. Esses embates ocorrerão, para além dos corredores de universidades, das ruas e cafés e dos lares de centenas de argentinos, em jornais e revistas, profusamente publicados no período. Como exemplo, citamos a revista Imago Mundi, dirigida pelo historiador José Luís Romero e o semanário Propósitos, que era dirigido pelo escritor e teatrólogo Leónidas Barletta e oferecia espaço para um pensamento de esquerda menos ortodoxo, mais radical e “antenado” com as movimentações universitárias – não à toa, uma das seções do periódico era “Tribuna Universitaria”, que trazia textos de estudantes acerca de temáticas ligadas às universidades argentinas.

No dia 31 de maio de 1958, era encaminhado ao gabinete do reitor da UBA, Risieri Frondizi, um estudo que sugeria diretrizes e planos de ação para a criação de uma editora universitária. No início do turbilhão dos “años sesenta”, tomava forma a EUDEBA.

O estudo foi elaborado por ninguém menos que Arnaldo Orfila Reynal, importante intelectual e editor argentino. Reynal participara do processo de reforma universitária iniciado em 1918 na cidade de Córdoba, representara os estudantes argentinos no primeiro congresso internacional de estudantes realizado no México em 1921 e era, em 1958, diretor da editora Fondo de Cultura Económica no México. Tais credenciais levaram o reitor Risieri Frondizi – irmão de Arturo Frondizi, o já mencionado presidente da Argentina pós-Perón – a contratá-lo para projetar o processo de criação da editora. Nesse projeto, Orfila postula que:

Fundamentalmente, la Editorial Universitaria debe ponerse al servicio del estudiante y del profesor en primer término, satisfaciendo las necesidades fundamentales que se observan en esos medios con respecto al problema del libro. Y en este sentido, la acción editorial tiene dos posibilidades fundamentales a cumplir: la didáctica y la de extensión cultural que la Universidad ha proclamado entre sus fines.2

A editora nasceria, então, sob uma proposta de difusão da cultura letrada para além dos limites da universidade – sem deixar de lado, entretanto, as necessidades acadêmicas da instituição. A proposta de Reynal dialoga com uma visão expressa no já mencionado periódico Propósitos pelo estudante Gustavo Soler, que escreve:

2 Expediente de Arnaldo Orfila Reynal ao reitor Risieri Frondizi. 31 de maio de 1958. pp.1-2. Consultado no arquivo da Editorial Universitária de Buenos Aires. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 179

(...) FALTA UMA EDITORIAL UNIVERSITARIA, que edite los libros de texto, con los cursos y dictados durante el año, como dispuso Rivadavia al fundar la universidad y que todavía no se ha cumplido y por cuya causa existe un infame comercio en la venta y alquiler de libros, en donde medra la usura y la incompetencia científica. Eso usted lo aludió y también será apoyado, sin duda, por todos. Pero se olvidó de conectarlo con la angustia económica de los educandos que luchan en el medio hostil de una sociedad en crisis.3

O incisivo texto de Soler é dirigido ao reitor Risieri Frondizi e permite que notemos o eco que sua fala acerca da criação de uma editora universitária – feita em seu discurso de posso – teve em um dos meios de comunicação presentes nos embates intelectuais da esquerda argentina. A iniciativa é valorizada por Soler, com a ressalva de que a editora deverá ter um compromisso com a acessibilidade dos textos para os estudantes mais pobres.

Nesse ponto, questionamos: em que ponto do espectro dos intelectuais de esquerda estariam o projeto e, mais importante, as realizações editoriais da EUDEBA? Seria a editora expoente da parte “crítica” ou da parte “acadêmica” dos intelectuais?

Fica explícito que a EUDEBA, em sua fundação – o projeto de Reynal foi aprovado e a editora foi criada em junho de 1958 – estava inserida no olho do furacão dos embates de afirmação intelectual e política que ocorriam no período. Vinculada à UBA, a editora associava-se a um discurso modernizador e de retomada de determinados ideais da Reforma de 1918 por parte da universidade. Nesse sentido, o processo de criação da EUDEBA liga-se também a uma tentativa de desperonização da UBA, marcado, no plano institucional, pelo expurgo de professores ligados ao peronismo e pela recontratação de professores que sofreram expurgos nos governos de Perón.

Além disso, o lema escolhido pela editora para o início de suas atividades foi “libros para todos”, pressupondo que o processo editorial da nova empresa não se restringiria às demandas da universidade. Afirmar que editaria para livros para todas as pessoas também pode ser entendido como uma crítica velada ao antiintelectualismo que marcara os governos de Perón, cristalizado pela máxima “Alpargatas sí, libros no” (SIGAL, 2002 (1991), p. 34). Desse modo, ao menos institucionalmente, a EUDEBA atrelava-se a uma postura reformista e compromissada que, entretanto, mantinha como uma de suas preocupações centrais a demanda de edição universitária. Se analisarmos de maneira

3 Gustavo Soler. “Carta al nuevo rector”. In: Propósitos. 9 de janeiro de 1958. Consultado na Hemeroteca da Biblioteca Nacional Mariano Moreno, na Argentina. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 180

estanque a trajetória da EUDEBA em seus primeiros anos e tentarmos encaixá-la em uma das categorias mencionadas (“críticos” X “acadêmicos”) obteremos um resultado que pouco contribui para a ampla compreensão do papel da EUDEBA nos “años sesenta” argentinos. Como qualquer projeto cultural, a editora apresenta-se como uma instituição híbrida, que mistura diferentes práticas e representações4 para atingir seu objetivo, construindo uma trajetória que não deve prescindir de nenhum dos dois domínios.

Comecemos pelo campo das representações. Em agosto de 1966, após o golpe de Estado perpetrado pelo general Juan Carlos Onganía, grande parte dos funcionários e administradores da EUDEBA renunciaram a seus cargos após o lamentável episódio da “noche de los bastones largos”, no qual a polícia invadiu, agrediu e prendeu diversos estudantes e professores da UBA. A renúncia foi acompanhada por uma carta, da qual separamos um trecho extremamente significativo:

Durante ocho años un libro costó menos que un kilo de pan (...). Durante ocho años miles de ojos vieron por primera vez pinturas y dibujos que los maravillaron. Durante ocho años el pueblo argentino se sintió orgulloso de sus escritores, de sus artistas, de sus pensadores, del prestigio de una empresa que con un capital pequeño en relación con su obra (...) representaba como ninguna en el exterior a su propia patria. ¿Cómo pudo surgir y desarrollarse lo que para todo el país y para todo el mundo fue un fenómeno cultural sin precedentes? Pudo surgir y pudo desarrollarse porque fue producto de una Universidad nueva, (...) una Universidad abierta a todos los vientos y puesta al servicio de todo el país. Una Universidad que entregaba al pueblo que la sostenía una de las más antiguas y poderosas herramientas: el libro.5

Aqui, transparece a ideia de uma editora compromissada com um projeto amplo de reorganização da sociedade. Tal projeto, envolvia a reorganização da universidade, em que a EUDEBA se encaixa como produto e agente. Ao mesmo tempo em que surge nesse contexto, contribui para a construção de uma universidade que se coloca a serviço do país. Além disso, cabe ressaltar o papel de mediação cultural que a declaração atribuiu à editora, reforçando que era a primeira vez que muitos cidadãos tinham acesso aos livros, considerados uma ferramenta de transformação social. Tais livros teriam sido, durante os oito anos transcorridos entre a criação da editora e o golpe de Onganía, projetados, organizados e produzidos pela universidade – por meio da EUDEBA –, que os entregava

4 Aqui são mobilizados conceitos do historiador francês Roger Chartier. (CHARTIER, 1990)

5 Retirado da carta de renúncia assinada por diversos integrantes da EUDEBA no dia 4 de agosto de 1966. Consultada no Fundo EUDEBA do Arquivo da Biblioteca de La Nación Argentina. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 181

ao povo como nunca fizera antes e como não se sabe se fará depois, uma vez que a carta busca representar a renúncia do grupo como o fim de uma era.

A representação da EUDEBA como um projeto cultural de mediação e intervenção na realidade também está presente nesse pequeno texto publicado em uma revista interna da UBA no ano de 1962:

En junio de 1958, la Universidad de Buenos Aires creó, por iniciativa de su Rector, doctor Risieri Frondizi, la Editorial Universitaria de Buenos Aires (EUDEBA), con el propósito no solo de difundir en nuestro medio las obras fundamentales de la ciencia (...), sino también contribuir al conocimiento de la realidad y las creaciones intelectuales del país y del continente.6

Em outro ponto do texto, encontra-se uma síntese do trabalho da editora até então:

EUDEBA ha probado que una editorial universitaria puede estar al servicio de la cultura del pueblo sin menoscabar su jerarquía ni desatender las funciones estrictamente universitarias. Y que pueden publicarse libros de toda índole y a precios reducidos, sin originar pérdidas ni gastos adicionales.7

Ambas as citações reforçam o discurso construído pela EUDEBA de que colocar-se como mediadora cultural era uma atitude importante para o desenvolvimento do país e para o conhecimento da realidade. Na segunda citação, nota-se, também, uma tentativa de conciliar a universidade e sua “hierarquia” com a edição de livros “populares”. Tal afirmação, sob uma análise mais detida, permite que vislumbremos certa necessidade, por parte da EUDEBA, de justificar constantemente seu trabalho diante da academia – bem como diante da população em geral. Além disso, a última frase da citação permite que passemos das representações às práticas. Como levar libros para todos?

Entre as práticas utilizadas na tentativa de efetivar o lema da editora, destaca-se a instalação de kioscos nas ruas da Argentina. Os kioscos eram bancas de vendas de livros construídas em lugares de grande movimento com o objetivo de divulgar e vender os livros da EUDEBA, como mostra a fotografia a seguir:

6 Retirado do Guía UBA 1962. Consultado no Fundo EUDEBA do Arquivo da Biblioteca de La Nación Argentina, página 25.

7 Retirado do Guía UBA 1962. Consultado no Fundo EUDEBA do Arquivo da Biblioteca de La Nación Argentina, página 30. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 182

Kiosco da Eudeba na Avenida de Mayo, em Buenos Aires.

A foto ilustrou a capa de um encarte publicado pelo periódico La Nación e foi reproduzida por Jorge B Rivera (RIVERA, 1986, p. 632).

Os kioscos inseriam os livros no cotidiano prático de diversas pessoas que, de outra forma, não os acessariam. A única referência encontrada acerca da localização das bancas da EUDEBA está presente na contracapa de um exemplar de novembro de 1960 do Boletin da UBA, publicação que tinha por objetivo divulgar e integrar as ações acadêmicas e sociais da universidade e foi criada no mesmo contexto de reorganização da universidade pós-peronista. Ali, compondo uma propaganda dos últimos títulos lançados pela editora, estão os endereços de 21 kioscos espalhados por todo o país. Só na Gran Buenos Aires eram 17, distribuídos da seguinte maneira:

Localização de 17 kioscos da Eudeba na Gran Buenos Aires em novembro de 1960.

Mapa elaborado pelo autor utilizando o aplicativo Google Maps. Dados retirados de Boletín de Informaciones da UBA, año 3, n. 18, novembro de 1960.

Além desses, há mais quatro kioscos em cidades do interior: Rosário, Santa Fé, Córdoba e São Miguel de Tucumán.

A distribuição dos kioscos e a diligência da iniciativa – a construção de 21 kioscos em dois anos de editora – oferecem-nos indícios de que o lema libros para todos possuiu REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 183

uma correspondência prática bastante interessante. A localização dos kioscos, instalados em logradouros importantes – como a calle Florida, a avenida Rivadavia e a Avenida de Mayo –, próximos a estações de trem – como no bairro de Morón, periferia de Buenos Aires – ou em praças centrais – como a Praça Pringles, em Rosário – é um fator que contribuiu para a difusão dos livros da editora e para a quebra de paradigmas acerca da cultura letrada. Afinal, se havia um kiosco inclusive em frente à livraria sede da EUDEBA – localizada até hoje na avenida Rivadavia, próximo ao Congresso Nacional – a mensagem transmitida era a de que os livros não deveriam assustar os leitores. Pelo contrário. Deveriam ir até eles, levando a livraria à rua.

Além dos kioscos, a EUDEBA adotou estratégias de produção editorial que traziam para a prática a tentativa de difundir o conhecimento letrado para diferentes camadas da população. Organização dos livros em coleções, edições em material rústico e com preço reduzido, capas e projeto gráfico atraente, entre outras, foram características do processo de trabalho da editora. Como exemplo, trataremos sinteticamente do processo de publicação, em 1962, de uma edição do canônico poema de José Hernández, Martín Fierro, ilustrado pelo artista Juan Carlos Castagnino.

Em 1962, foi colocado em prática o plano de produção da mencionada obra. De acordo com um documento interno da editora, a expectativa acerca da publicação de Martín Fierro era a seguinte:

Impacto: por la calidad y cantidad de ilustraciones, por sus características físicas, por el precio de las ediciones populares y por la resonancia que las obras publicadas por Eudeba alcanzan en el público, se estima que ésta será, y con mucho, la edición más importante del Martín Fierro publicada hasta la fecha.8

Nota-se que as práticas de edição popular da EUDEBA transformaram-se, no período de quatro anos desde a abertura da editora até a publicação do livro de José Hernandez, em um argumento utilizado para justificar os próprios empreendimentos futuros do grupo. Esse é um indício de que os libros para todos atingiram, de fato, um grande número de pessoas, permitindo que o projeto de edição do Martín Fierro sonhasse alto:

8 Retirado de documento interno da EUDEBA datado de 03/07/1962. Consultado no Fundo EUDEBA do Arquivo da Biblioteca de La Nación Argentina. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 184

Tirada: de la edición popular del libro se hará una tirada inicial de 50000 ejemplares y de la carpeta una tirada inicial no inferior a los 5000; estas tiradas se estiman reducidas y se cree que habrá posteriores reediciones. De los libros y carpetas para vender en librerías, a crédito y a coleccionistas se harán ediciones mucho menores.9

A alta tiragem da edição popular e a existência de edições de luxo mostram que, aliada à difusão da cultura letrada, estava uma visão comercial aguçada, necessária, inclusive para a manutenção da existência da editora. Teria sido bem-sucedida a empreitada do Martín Fierro? Vejamos o que diz a revista Primera Plana em novembro de 1962:

Calculase que sumarán centenares las personas que este fin de año, en lugar de tarjeta de felicitación, recibirán de sus relaciones un primoroso Martín Fierro em algunas de las ocho formas em que salió a la venta. Además, llevar descuidadamente un ejemplar bajo el brazo se ha convertido en contraseña de intelectuales, sobre todo en el radio estudiantil cercano a Filosofía y Letras y a las principales salas de exposiciones. 10

A publicação foi um sucesso, e a mesma edição da revista afirma que uma reimpressão fora necessária para a versão popular da obra, uma vez que a primeira havia sido vendida em vinte e cinco dias. Entre os adeptos da edição de luxo, a ira foi provocada pela ausência dos exemplares das lojas especializadas, tamanho foi o nível de interesse e procura.

Considerações finais

Dessa forma, a EUDEBA configura-se como exemplo da fluidez e da diversidade intrínsecas às práticas culturais. Não obstante a importância metodológica e histórica das categorias de análise, os processos históricos possuem nuances que só a análise particular permite ressaltar. A despeito das críticas ou elogios feitos à época, a trajetória da EUDEBA transcende as categorias em que poderíamos encaixá-la comodamente. Teria sido ela um projeto de intelectuais “críticos”, que tinham por objetivo alterar a realidade social por meio da edição de livros? Sim. Teria sido ela um projeto de intelectuais “acadêmicos” que enxergavam na edição de livros uma maneira de colocar a população mais pobre em contato com a cultura letrada por meio da publicação de títulos considerados bons em edições baratas e acessíveis? Também.

9 Retirado de documento interno da EUDEBA datado de 03/07/1962. Consultado no Fundo EUDEBA do Arquivo da Biblioteca de La Nación Argentina.

10 Retirado de Primera Plana, 24 de novembro de 1962. Consultado no Fundo EUDEBA do Arquivo da Biblioteca de La Nación Argentina. REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS E ESQUERDAS NA ARGENTINA DOS ANOS 1960: ACADÊMICOS, CRÍTICOS E A EUDEBA (1955-1966) CAIO HENRIQUE VICENTE ROMERO 185

Seu projeto e sua prática editorial, coadunando-se com os años sesenta argentinos, constituíram uma tentativa de intervenção na realidade social feita por grupos de intelectuais que lidavam – e colaboravam – com uma disputa ideológica ferrenha.

Mais que uma editora, a EUDEBA atuou na cultura do período fazendo as vezes de uma espécie de centro cultural que oferecia oportunidades de emprego e discussões para intelectuais que começavam suas carreiras. Por ali passaram, por exemplo, as jovens Susana Zanetti e Beatriz Sarlo, que se tornariam duas das mais importantes intelectuais do país, trazendo aportes importantes para os debates culturais na Argentina de seu tempo e para além dele.

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Jugar la carta de las masas: A política de massas do MLN-Tupamaros e a guerrilha simbólica (1968 – 1972)

CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO Mestre em História pela Unifesp. Prefeitura Municipal de São Paulo. E-mail: [email protected]

Resumo

O MLN-Tupamaros foi uma guerrilha uruguaia que atuou entre os anos de 1965 e 1972. Inserida no contexto de renovação das esquerdas latino-americanas inspiradas pela revolução cubana, a experiência guerrilheira tinha como objetivo promover a revolução socialista por meio da luta armada. No entanto, a influência de Cuba não diminuiu expressões políticas próprias do Uruguai.

Apesar de o MLN defender a via armada como único caminho possível para promover a revolução, em diversos momentos eles utilizaram outras ferramentas. A mais emblemática delas foi a criação de um periódico, intitulado Boletim Tupamaro. Esse jornal esteve inserido dentro de uma nova diretriz de jugar la carta de las masas, tomada pela organização a partir de 1968, na qual eles indicavam como fundamental conquistar o apoio massivo da população uruguaia para promover a revolução social.

A adoção de uma política de massas e a criação de um periódico voltado para o diálogo com a população revela certa identidade própria da experiência tupamara, fortemente impactada pela cultura política uruguaia. Essa análise revela que apesar da inspiração na via cubana, as guerrilhas latino-americanas tiveram um impacto muito forte de suas políticas locais.

Palavras-chave: Tupamaros, Esquerdas, Uruguai, JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 188

Introdução

Este texto tem como objetivo analisar o conjunto de publicações intituladas Boletins Tupamaro, criado pela organização revolucionária MLN-Tupamaros no ano de 1969. Esse jornal cumpriu função essencial dentro da tática política que ficou conhecida comojugar la carta de las masas, praticada pelo grupo a partir de 1968 como parte da estratégia para o processo revolucionário. Ao empreender essa tática, os Tupamaros optaram por criar um diálogo com os mais diferentes setores sociais do Uruguai, empreendendo assim uma verdadeira política de massas, algo fora dos padrões preconizados pelas cartilhas de luta armada como ferramenta da revolução. Com isso, analisar algumas edições desses boletins possibilita compreender como a despeito de defenderem uma ação fora das arenas políticas institucionais, os tupas foram diretamente influenciados pela cultura política uruguaia, forjando assim uma ação violenta pautada por diversas características da política tradicional, como a política de massas defendida no periódico. Para isso, será necessário apresentar brevemente a trajetória do MLN-Tupamaros.

A formação e a trajetória do MLN-Tupamaros entre 1965 e 1968.

O MLN foi uma organização de luta armada fundada em 1965, em uma confluência de militantes originários do Partido Socialista (PS) uruguaio, com outros militantes que vieram de setores ligados aos trabalhadores agrários e, ainda, de grupos menores da esquerda daquele país. Sua origem está intrinsecamente relacionada ao grupo chamado de El Coordinador, um coletivo criado em 1962 que aglutinou as principais tendências da esquerda daquele país com o objetivo central de resistir aos possíveis ataques que a democracia uruguaia pudesse sofrer e vislumbrando o uso da via armada como ferramenta de luta. (CABRAL, 2008). O aparecimento do El Coordinador sinalizou uma mudança na tradição política daquele país, pois historicamente o Uruguai era visto como irretocavelmente democrático, possuindo tradição eleitoral bastante consolidada, que respeitava as diversas instâncias desse jogo político construído pela democracia. Segundo André Lopes Ferreira, “a história política uruguaia foi, pelo menos na maior parte do tempo, a história da atuação de seus partidos”. marcada por elementos de continuísmo e estabilidade. (FERREIRA, 2011, p. 31) O aparecimento do Coordinador e os debates em torno da luta armada como ferramenta de transformação foi o fim de um longo processo de desmonte dessa estabilidade democrática. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 189

Até a década de 1950, O Uruguai ficou conhecido como La Suiza de América. As principais características que levaram o país a se diferenciar de seus vizinhos continentais foram a pujança econômica somada a certas garantias oferecidas pelo Estado no campo do consumo, além de um nível cultural bastante elevado impulsionado pela escolarização de sua população. Esses fatores consolidaram uma baixa desigualdade social, principalmente para os padrões da América Latina. Essas características nasceram de maneira decisiva nos primeiros anos daquele século, quando se iniciou a chamada política batllista. O batllismo foi uma espécie de ideologia política forjada pela ala do partido colorado uruguaio, na figura do presidente José Batlle y Ordóñez, que governou o país de 1903 a 1907, e que retornou para um segundo mandato entre 1911 e 1915. (NAHUN, 1995, p. 47 e 48)

Dessa forma, toda a primeira metade do século XX foi marcada, em maior ou menor medida, pelo modelo político e econômico nomeado de Estado Batllista1. Esse modelo de Estado vigorou até meados dos anos 1950, quando o Uruguai mergulhou em uma crise econômica que consequentemente se tornou uma crise política severa. Nesse contexto, a esquerda uruguaia passou por uma profunda reflexão, que levou a uma transformação ideológica. Houve uma rearticulação a partir dos dois partidos da esquerda tradicional (o Partido Comunista Uruguayo e o Partido Socialista) e surgiram outros grupos, que criticavam as supostas estruturas arcaicas desses dos partidos e defendiam novas propostas de atuação. Nessa reorganização da esquerda, debatia- se de maneira intensa o pensamento revolucionário propagado por Cuba, a partir da Revolução de 1959. Foi nesse contexto que a luta armada passou a ser defendida como uma tática de ação, dando início já no ano de 1962 ao El Coordinador2. Esse grupo atuou até o ano de 1965 e de sua reestruturação nasceu o mais importante grupo guerrilheiro do país: o Movimiento de Liberación Nacional - Tupamaros.

Segundo Jimena Alonso e Carla Larrobla, nesse momento de constituição do MLN-T, o grupo reuniu cerca de 52 membros, que se dividiram em células para estruturar a

1 A ideia fundamental desses autores é demonstrar como a estruturação do batllismo se convertendo em modernização do país através das ações já comentadas serviu para criar um modelo de Estado próprio, sendo então algo mais profundo do que apenas a corrente política de um partido. CF: DE SOUZA, Marcos Alves. O Reformismo uruguaio sob a égide do “batllismo” na primeira metade do século XX. III Encontro Internacional da Anphlac. Anais eletrônicos. 2002 e PANIZZA, Francisco. Uruguay: Batllismo y después. Pacheco, militares y Tupamaros en la crisis del Uruguay batllista. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1990.

2 Há uma importante diferença entre a atuação do El Coordinador e dos Tupamaros. Ela não será abordada aqui, mas é importante ressaltar que se tratam de grupos diferentes, tanto com relação a sua composição social e política JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 190

organização, sem promover massivamente a entrada de novos militantes. (ALONSO; LARROBLA. 2009, p, 48 – 49). Tanto que o contato para isso era feito através de encontros individuais entre essas pessoas que estavam na fundação da organização. Portanto, os primeiros debates entre os militantes e alguns dos documentos embrionários da organização defendem a necessidade de criar estruturas para a ação, através de expropriações que visavam garantir dinheiro, documentos e armas, que seriam imprescindíveis para a luta revolucionária.

Analisando alguns aspectos simbólicos é notável como já na sua constituição o grupo expressou certos aspectos peculiares de sua ideologia, como se percebe ao analisar a escolha do nome Tupamaros. Os primeiros que utilizaram esse nome no Uruguai foram os remanescentes dos camponeses que lutaram ao lado de José Artigas, durante as guerras de independência do começo do século XIX. (REY TRISTÁN, 2006, p. 164 – 165). Após as derrotas sofridas, o grupo de gauchos3 que lutaram junto com ele se refugiaram nas regiões mais afastadas, promovendo saques para que pudessem sobreviver. A inspiração era o líder indígena Tupac Amaru II (José Gabriel Condorcanqui Noguera), que em 1780 havia se insurgido, no Peru, contra os colonizadores espanhóis. Segundo Rey Tristán, a partir dessa rebelião do século XVIII, todos os rebeldes da região do Rio da Prata passaram a ser conhecidos como Tupac Amarus, ou Tupamaros. (REY TRISTÁN, 2006, p. 166).

Segundo Fernández Huidobro, a inspiração para o nome – que foi dado por Tabaré Rivero, um dos fundadores do grupo – veio da canção de Osíris Rodriguez Castillo, chamada Cielito de los Tupamaros, de 1959. Castillo foi um grande poeta e compositor uruguaio, que tinha forte influência da música folclórica. (CAMPODÓNICO, 1999, p. 85). Esse pertencimento àquilo que era mais tradicional no país também motivou a escolha do nome da organização. Outra motivação era se afastar de símbolos da “velha” esquerda. (REY TRISTÁN, 2006, p. 165).

Os Tupamaros se empenharam em reforçar aspectos constituintes da nacionalidade uruguaia, expressando isso nos documentos internos do grupo se expressava essa

como também no que diz respeito aos seus projetos e proposições de ação. Para mais informações sobre essas diferenças consultar: REY TRISTÁN, Eduardo. A la vuelta de la esquina: la izquierda revolucionaria uruguaya, 1955- 1973. Montevideo: Editorial Fin de Siglo, 2006. E ALDRIGHI, Clara. La izquierda armada: ideología, ética e identidad en el MLN-Tupamaros. Ediciones Trilce, 2001.

3 Termo pelo qual ficaram conhecidos as pessoas das áreas rurais da região da Plata. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 191

vontade: “La nación és el pueblo: asumir el nacionalismo es asumir las tareas históricas de este pueblo”. (Proyecto de Documento nº 5, 1968: S/P). Portanto, para o grupo a luta revolucionária deveria ser empreendida em nome de todos aqueles tidos como uruguaios, uma ideia bastante alargada de povo.

Segundo o historiador Rey Tristán, os Tupamaros entendiam por povo todos os herdeiros daqueles que lutaram junto de Artigas pela independência uruguaia e contra o colonialismo. Por esse prisma, a ideia de povo para os Tupamaros não se restringe a elementos de classe social ou setores definidos da sociedade e que a teoria marxista- leninista consagrou como sendo os agentes da revolução, como por exemplo, o operário. Também não se percebe uma substituição do operário pelo camponês, como foi comumente feito pelas guerrilhas na América Latina depois da revolução cubana. Trabalhando com a ideia de povo relacionada à nação uruguaia, a organização insere qualquer setor do país – que fosse nacionalista - dentro do seu projeto político. Essa diretriz tinha o objetivo de conquistar o apoio da população uruguaia, visto como decisivo para a vitória da guerrilha. Isso foi expresso no primeiro texto internou que definia a linha política do grupo, o Documento nº 1, de 1967:

Desde luego que además del trabajo silencioso tendremos el otro, crear una base popular significa que habrá que procesar acciones que conciten la simpatía popular; pertrecharse significa que habrá que salir a veces a la luz pública en acciones. (DOCUMENTO I, 1967: s/p)

O respaldo popular para o projeto tupamaro seria construído através de ações que visavam conquistar a simpatia popular, como os diversos roubos de alimentos seguidos pela sua distribuição nas periferias de Montevidéu. Essa tática, contudo, estava dentro da fase de estruturação da guerrilha. No momento em que a luta guerrilheira havia se constituído, e os Tupas haviam passado para a fase de embate contra o governo, seria necessário modificar a estratégia para construir esse respaldo popular. Por isso que entre o ano de 1968 e 1969, foi moldada a etapa, definida por eles próprios, dejugar la carta de las massas.

Portanto, já na concepção ideológica da guerrilha ficou estabelecido alguns aspectos notavelmente próprios, como a identidade simbólica calcada em aspectos da identidade do Estado Nação uruguaio, somado ao uma ideia alargada de agentes revolucionários, que não se restringiram a grupos ligados à esquerda. Mas essa primeira impressão foi JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 192

reforçada quando passamos a analisar algumas táticas estabelecidas pela organização nessa nova etapa. E elas demonstram como os tupas buscaram se aproximar do jogo democrático mesmo sendo agentes defensores da via armada. É importante ressaltar que a ideia do uso da violência como mecanismo de transformação social se colocava como uma via radical de revolução, deixando de lado as demais arenas de disputa política, principalmente aquelas próprias dos partidos tradicionais. O surgimento das organizações de luta armada ocorreu com uma forte crítica aos modelos dos partidos políticos, principalmente por conta do imobilismo identificado em suas práticas. Nesse sentido, a via armada tinha como objetivo acelerar o processo revolucionário, substituindo todos os antigos mecanismos, vistos como ineficientes. Mas os Tupamaros, como será visto a seguir, não renegaram totalmente as demais arenas de luta política; ao contrário, utilizaram-se delas para levar a cabo seu processo revolucionário.

A escalada autoritária no Uruguai e a guerrilha simbólica.

As novas estratégias concebidas dentro da etapa da carta de las masas estiveram diretamente relacionadas ao processo de escalada do autoritarismo na sociedade uruguaia que se iniciou em dezembro de 1967, com a morte do presidente Oscar Gestido.

Ao falecer, Gestido deixou o poder para Jorge Pacheco Areco, então vice-presidente do país. Após sua posse, Areco empreendeu uma série de mudanças institucionais, colocando em prática, já nos primeiros dias de governo, uma agenda extremamente autoritária. Tais medidas estão inseridas dentro de um contexto de crise econômica bastante severa naquele país, na segunda parte da década de 1960, resultando em grande agitação social e política. Ainda sob o governo Gestido já se notava tentativas de conter essa agitação popular, principalmente com a implantação das Medidas Prontas de Seguridad, as MPS aprovadas em outubro de 1967 e que permitiram a aprovação de mudanças políticas profundas sem passar pelo legislativo. (KIERSZENBAUM, 2012: p. 100).

Esse expediente legal foi implementado na Constituição de 1967, que dava ao executivo o poder de “Tomar medidas prontas de seguridad en los casos graves e imprevistos de ataque exterior o conmoción interior”. (PADRÓS, 2005: p. 274). Enrique Serra Padrós afirma que apesar de já ser utilizada durante o governo de Oscar Gestido, seu uso foi disseminado durante o governo de Pacheco Areco, se tornando a “expressão JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 193

da autonomização do Poder Executivo diante dos demais poderes e da Sociedade Civil”. (PADRÓS, 2005: p. 275). Para ele, “uso rotineiro das MPS confluíram na voragem de acontecimentos que aceleraram a deterioração das instituições políticas e da própria democracia”. (PADRÓS, 2005: p. 276).

Ainda segundo o historiador, com as Medidas Prontas de Seguridad

O governo passou a ignorar essa normativa ao invadir inúmeros locais públicos e particulares, deter centenas de pessoas e mantê-las incomunicáveis durante dias. Na prática, a manutenção das MPS implicou em diversas irregularidades como a suspensão das garantias individuais e do direito do Habeas Corpus, o desrespeito da inviolabilidade de domicilio, do processo legal além da detenção arbitrária. (PADRÓS, 2005: pp. 275 - 276).

Isso fez com que o país tivesse uma “inflexão autoritária bem concreta”. (PADRÓS, 2005: p. 271). As MPS se tornaram, durante o governo de Areco, imprescindíveis para a construção de uma política econômica fortemente prejudicial às classes trabalhadoras, em que o congelamento dos salários, decretado em 28 de junho de 1968, se colocava como uma peça chave. Em 28 de junho de 1968, foi declarado o congelamento dos salários e dos preços em todo o país, impedindo, assim, o aumento salarial que era esperado para o dia 1º de julho4.

Areco também intensificou a repressão às organizações de esquerda. Em decreto promulgado em 12 de dezembro de 1967, ele ordenou a dissolução do Partido Socialista, da Federación Arnaquista Uruguaya e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria, além de fechar os periódicos Época e El Sol, que eram ligados à esquerda. (PANIZZA, 1990: p. 57)

Essa escalada autoritária, que fechou o cerco das esquerdas e comprometeu as políticas sociais e a vida dos trabalhadores, também foi responsável por identificar e estigmatizar o MLN como sendo o principal inimigo da sociedade uruguaia. Areco, dentre outras medidas, promoveu campanhas nos principais jornais do país que visavam a difamação do movimento revolucionário. O trecho do jornal La Mañana, de 16 de janeiro de 1969, que trata dos Tupamaros:

4 O congelamento impediu um aumento salarial que havia sido previsto para 1º de julho de 1968. CF: FERREIRA, André Lopes. A unidade política das esquerdas no Uruguai: das primeiras experiências à Frente Ampla (1958-1973). 430 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2011. pp. 185 - 186 JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 194

Sea de izquierda o de derecha, el Movimiento de los Tupamaros es sin duda terrorista y de negación. La acción desarrollada por los grupos que lo integran y la fragmentaria exposición de principios a la que puede llegarse luego de conocidos los documentos que sus mismos integrantes han creído oportuno dar a conocer, permiten afirmar en efecto, que no se busca sino el caos por el caos mismo, sin nada que deba sucederlo, ni una sola afirmación sobre el orden a venir una vez logrado el objetivo (DOCUMENTO 4, 1969: S/P).

Diante dessa escalada autoritária, voltada sensivelmente contra os Tupas que a organização iniciou o processo de contato com as massas. E isso ocorreu de uma maneira mais organizada e como uma estratégia central para o processo revolucionário, sendo uma parte central do mecanismo de ação da organização:

Jugar la carta de las masas, ser un foco del tamaño que se plantea, no es ‘”moco de pavo”. Es casi la revolución, o el VIETNAM que pidió Guevara cuando lo logremos. Esta etapa pues, será más dura que la anterior, porque tiene objetivos superiores. Hasta enero 69, peleamos por crear la ORGANIZACION; ahora la pelea es por el PUEBLO”. (BALANCE 69, 1970: S/P)

Lutar pelo povo, na concepção política da organização, significava estabelecer uma tática que se permite a aproximação e o diálogo com as massas uruguaias para que as mesmas fossem angariadas ao projeto revolucionário. A formulação dessa estratégia pode ser interpretada a partir da escalada autoritária durante o governo de Pacheco Areco e que começou a gerar entre os militantes o medo de se isolarem politicamente e com isso acabassem sendo derrotados. A cultura política uruguaia, estabelecida dentro das instituições democráticas e com ampla participação da sociedade impediu que os militantes aceitassem esse isolamento e para isso empreenderam essa nova etapa de jugar la carta de las masas, que na prática se constituiu em uma política de massas ampla e sistemática.

E essa prática de frente de massas escapava ao modelo radical de revolução, que pregava o pressuposto da ação como vanguarda. Nessa ideia vanguardista, a relação com as massas não seria feita através do diálogo, mas sim do exemplo da ação e do uso da luta armada, sem precisar do uso de propaganda ou discussão, visto como algo imobilista e relacionado as práticas partidárias. Mas como é possível perceber nesse documento de concepção política, o grupo colocou como tarefa essencial disputar o povo. E para fazer isso, utilizaram diversas táticas de frente de massas. Uma das mais emblemáticas, foi a criação de um periódico próprio. O Boletim Tupamaro. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 195

A Política de Massas e os Boletins Tupamaros.

A partir dessa necessidade de estreitar as relações com as massas, os Tupamaros passaram a elaborar canais de comunicação com a população. Isso se verifica claramente no documento datado de 1970, chamado de Manifiesto a la opinión pública. Foi um texto que visava um público amplo e que não estava inserido em grupos da esquerda. Até o ano de 1969, não foi localizado nenhum tipo de documento feito pelos Tupamaros que visasse um público alvo que não fossem os próprios militantes.

O Manifiesto a la Opinión Pública, é um panfleto em formato de livreto, com quatro páginas. O cabeçalho traz o título do documento, datando a publicação – 7 de setembro de 1970 – e o nome do grupo, MLN-Tupamaros. Na primeira parte o texto desmentia as supostas afirmações ditas à população por parte do governo uruguaio:

Mientras el gobierno le decía al pueblo que “no estaba dispuesto a negociar con delincuentes”, entablaba bajo cuerda negociaciones con nosotros, no poniéndose de acuerdo unas veces, abandonándolas otras. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

O trecho aborda as negociações com os Tupas para mostrar à população que o governo mentiu. Na sequência, o documento aborda quais seriam as supostas negociações que foram ocultadas pelo governo:

Se le ocultó, por ejemplo, que el jefe de policía Coronel Rivero, le impidió al señor Juez Dr. Díaz Romeu que le propusiera a una comisión mediadora la iniciativa de una prórroga del plazo por 72 horas para seguir tratativas de Mitrione y Días Gomide en vísperas de vencer el plazo. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

Eles relatam sequestro de Dan Mitrione, agente norte-americano que estaca encarregado de ensinar práticas de tortura no Uruguai, e de Días Gomide, diplomata brasileiro, em missão oficial no país. Ambos foram raptados pelos Tupamaros durante o ano de 1970. O governo tentou esconder da população que havia entrado em negociação com a organização guerrilheira, para tentar impedir que os dois sequestrados fossem mortos. Ao relatar isso para a população, os Tupamaros procuram construir uma ideia de que possuíam uma posição de poder perante as forças de governo. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 196

Após confrontar as supostas mentiras do governo, o documento segue os defendendo:

La vida y seguridad personal de nuestros prisioneros no se ha arriesgado en defensa de ningún principio como han dicho, sino a consecuencia de un infame y miserable “pichuleo”. Esa ha sido la conducta “principista”; eso es lo que se ha dicho al pueblo. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

Aqui, observa-se a tentativa do grupo de desconstruir a imagem de que eram “criminosos que não possuíam respeito pela vida dos sequestrados, podendo matá-los a qualquer momento”. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

O texto não fala diretamente para nenhum setor, e pelo seu caráter explicativo e a ausência do uso de expressões típicas de militantes de esquerda, tem a intenção de atingir a população que não está inserida em grupos da esquerda. E ao criticar as diversas ações repressivas propagadas pelo governo de Pacheco Areco, o texto coloca o povo também como vítima da repressão.

Entre tanto lanzaron contra nuestra Organización y el pueblo, una ofensiva represiva sin precedentes, pusieron al país en pie de guerra, sacaron las tropas a la calle, allanaron miles de domicilios a cualquier hora, invadieron hospitales, centros de enseñanza, clubes deportivos, iglesias. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

O intuito aqui é forjar a imagem das forças da repressão como sendo inimigas da população. Com isso, as massas deveriam apoiar os Tupamaros. Essa ideia foi defendida pelo grupo no Documento 4, quando os mesmos afirmam a necessidade de fazer com que a luta do grupo fosse a própria luta do povo. (DOCUMENTO 4, 1969: S/P)

Em outro trecho, na sequência do manifesto, aparece de maneira ainda mais direta a acusação já feita:

Todo esto -por supuesto- lo han hecho en nombre y en defensa de un orden y un estilo de vida que no es más que SU orden y SU estilo de vida. El orden de una minoría que se ha adueñado del país y que explota a la mayoría de sus habitantes. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

Já na segunda parte do documento, no trecho que se inicia na página 3, a organização guerrilheira passa a caracterizar a si própria, e mais uma vez se coloca junto das grandes massas da população. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 197

El MLN no es ni más ni menos que la organización política armada de los estudiantes, los obreros, los asalariados rurales, los intelectuales, los desocupados, en fin, de todos los sectores sociales explotados y marginados por vuestro orden de injusticias. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

O grupo declara que luta por todos os excluídos e marginalizados pelos que estão no poder, e por isso, estão do lado do povo. E para ressaltar essa ideia de que lutam pelo povo, eles se legitimam perante a população por meio da figura de Artigas:

Y nuestro programa es el de los sectores y el de esa tradición histórica. Pensamos que los problemas del país serán solucionados cuando la tierra esté al servicio de la sociedad y /no/ de un puñado de privilegiados; cuando produzca las riquezas que debe producir, y esas riquezas pasen a servir las necesidades del pueblo; cuando la tierra sea y esté al servicio de los más infelices como quiso Artigas hace ya más de 150 años. (MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA, 1970: S/P).

Definindo-se como seguidores de Artigas, os Tupamaros não se restringiam a uma ideologia apenas ligada à esquerda, mas buscavam se universalizar e atingir a maior parcela da população de seu país. Assim, o grupo evitaria a rejeição criada pelo contexto de guerra-fria, em que a esquerda era intensamente criticada e perseguida por todo o continente e mesmo internamente, com o grupo sendo alvo de inúmeras matérias jornalísticas, que os criticavam e os acusavam de serem apenas “delinquentes comunistas”. (ALDRIGHI, 2001: p. 42).

A partir de 1969, os Tupamaros iniciaram uma nova fase na sua guerrilha, anunciada como sendo o momento de enfrentamento. Para eles, havia se cumprido a etapa de preparação e naquele momento eles representavam a maior força contra o governo autoritário de Pacheco Areco. A despeito dos enfrentamentos diretos entre o MLN e as forças militares terem sido uma característica do período compreendido entre 1969 e 1972, esses anos não foram marcados apenas por tais operações militares. Alfonso Lessa afirma que:

La interacción entre el Estado y el MLN se fue procesando como una auténtica guerra: directa, en el plano represivo, indirecta, a través de los medios de comunicación. (LESSA, 2002: p. 123)

Essa guerra através dos meios de comunicação era fomentada pelas diversas matérias publicadas principalmente no El País, jornal de maior circulação no Uruguai e que recorrentemente divulgava matérias caracterizando o grupo como “terrorista” e JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 198

responsável por disseminar o caos. A tais ataques, os Tupamaros respondiam com a divulgação de manifestos em suas ações revolucionárias, com a preocupação de explicar à sociedade qual era o sentido daquelas ações. Essa disputa através dos meios de comunicação pode ser observada de modo recorrente quando começaram a ser publicados os boletins Tupamaros, a partir de 1969. Ao se preocuparem em criar um veículo de comunicação voltado exclusivamente para quem não era militante, os Tupas pretendiam estabelecer um diálogo com a sociedade uruguaia no sentido de angariar seu apoio. Esse diálogo foi efetivado no ano de1969, quando foram criados os Boletins Tupamaros. (REY TRISTÁN, 2006, p. 180).

Ao todo, foram localizados sete boletins distintos. O primeiro deles data de julho de 1969 e o último encontrado é de agosto de 1971. Desses, os quatro primeiros - da segunda metade de 1969 – são distintos dos três últimos, publicados entre junho e agosto de 19715. Os boletins de 1969 se diferem no que diz respeito ao formato e temas. Nesse sentido, será feita uma abordagem geral dessas fontes, apresentando-as em conjunto, de acordo com essa divisão dentre essas datas.

Analisando esses documentos, percebe-se que eles se constituem basicamente como uma espécie de boletim informativo da organização, voltado para o público externo à militância política de esquerda. As quatro edições do ano de 1969 possuem seis páginas cada; exceção feita ao número 4, que data de dezembro desse ano, e que conta com doze páginas. Apesar de não existir sessões internas, há uma certa similaridade na diagramação do texto. Cada edição traz diferentes tópicos voltados para a explicação da conjuntura do país. Em meio a tais explicações são divulgadas as ações realizadas pelos Tupamaros. Os textos apresentam os problemas vivenciados pela sociedade uruguaia como consequência do autoritarismo do governo, que estaria voltado exclusivamente aos interesses das oligarquias nacionais e do capital estrangeiro.

Há uma recorrência na tentativa de legitimação das ações violentas feitas pelo MLN. Os assassinatos cometidos pelos Tupas são apresentados como consequência da repressão:

5 Um dos boletins encontrados não possuí data. Pelo seu título ser “Correo Tupamaro Nº 1”, e outro boletim no JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 199

Los Tupamaros somos responsables de nuestras acciones. Fue un comando del MLN el que hizo fuego contra el agente Germán Garay. Nuestro objetivo era su arma. Y no su vida. Pero estamos embarcados en una lucha y en ella hemos puesto nuestra propia vida. Y la jugamos. Como la jugó Carlos A. Flores, quien cayó en una operación de Comandos el 22 de Diciembre de 1966. Tenía 22 años y 3 hijos. (BOLETIM Nº 1, 1969: p. 3)

Eles se defendem da ação violenta através de duas formas. A primeira é explicando que o objetivo do grupo era roubar as armas do inimigo e não matar. A segunda é demonstrando que a luta travada colocava também suas vidas em risco. E assim eles apresentam um militante que havia sido morto pelas forças de repressão, ressaltando que ele tinha três filhos, no esforço de humanizá-lo.

O uso da violência também era justificado pelo histórico do inimigo assassinado, como se observa no trecho do Boletim Nº 3:

Gaetano Pellegrini fue elegido por nosotros por ser miembro conspicuo de una patronal enfrentada agudamente en estos momentos a los trabajadores. Pero nuestra acci6n se enmarca en una lucha de fondo que no es sólo contra la patronal bancaria ni sólo en representación de los trabajadores de ese gremio. Nuestra lucha es contra las 600 familias dueñas de la tierra, la industria y también la banca. En representación de todo el pueblo trabajador. (BOLETIM N.º 3, 1969: p. 4)

A vítima representaria as oligarquias uruguaias, apresentadas pelos Tupamaros como os inimigos do povo trabalhador, por quem eles estavam lutando. Mas mesmo justificando o sequestro, eles se apressam em garantir o bem-estar de seu prisioneiro.

Informamos y reiteramos: El Sr Gaetano Pellegrini se encuentra en perfecto estado de salud. Su vida correrá peligro si la policía o quien sea llega al lugar donde se encuentra. (BOLETIM Nº 3, 1969: p. 4)

Os boletins também foram utilizados para que o grupo pedisse apoio desses setores para a sua luta, inclusive indicando como eles poderiam apoiá-los:

Si cree haber detectado a un militante del MLN no lo comente con nadie, ni aún con la gente más cercana. Por el contrario, si tiene alguna información sobre las fuerzas represivas, hágala circular en su gremio, en su fábrica, en su oficina, entre sus compañeros de más confianza. Su información llegará al MLN. Son formas, nada espectaculares, pero sí efectivas, de apoyar la lucha revolucionaria. Miles de aportes de este tipo son los que construyen el triunfo. (BOLETIM Nº 2, 1969: p. 2) mesmo formato com o título de “Correo Tupamaro Nº 2” ser datado de julho de 1971, é possível que esse documento sem data seja de junho ou, ao menos, que seja do ano de 1971. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 200

Esse apoio em ações cotidianas, porém, deixa implícito que esses interlocutores não seriam incorporados às fileiras de militantes. Desse modo, os boletins cumpriram as funções de explicar o uso da violência e de angariar apoio daqueles setores externos ao movimento.

Entrementes, os boletins também expressam como os Tupamaros se legitimaram como continuadores da luta empreendida por José Artigas. Nessa narrativa, a luta por libertação nacional teria começado no século XIX, com a independência do país e seguia até aquele momento. Com os Tupamaros como continuadores desse projeto.

No Boletim Nº 1, de 1971, o grupo apresenta logo no topo da primeira página: “Los Tupamaros de ayer. Los Tupamaros de hoy. La prensa de entonces. La de ahora”. Logo em seguida, o jornal traz uma colagem de uma reportagem do jornal La Gaceta de Montevideo, de 10 de março de 1812. Antes da reportagem, há a seguinte definição daquele periódico: “abuela tutelar de tanto diario que hoy anda por ahí”. Logo em seguida revelam a notícia:

Pocos habrá que ignoren que Artigas obra como un facineroso y su tropel es un ejército de ladrones, de homicidas y de delincuentes detestables que han cometido y cometen los horrores más tremendos en los parajes que han tenido la desgracia de sufrirlos. (BOLETIM Nº1, 1971 s/p)

Essa primeira parte do boletim, colocada logo no início, revela aspectos fundamentais da ideologia dos Tupamaros. Eles afirmam serem continuadores da luta de Artigas, fazendo uso de um expediente fortemente nacionalista e mostrando, ainda, como o mesmo também teve sua imagem difamada pela mídia de sua época. Implicitamente mostram como um dos grandes símbolos nacionais também sofreu com acusações.

É possível concluir que por meio do Correo Tupamaro o MLN travou com seus inimigos uma disputa de narrativa. De um lado, o governo construía a imagem dos Tupamaros como delinquentes terroristas e sem propósito. Do outro o grupo legitimava sua luta como os continuadores de Artigas, justificando o uso da violência e afirmando que combatiam pelo povo e para o povo. Essa recorrência da justificativa do uso da violência diz muito sobre a importância que as instituições democráticas tinham dentro do Uruguai. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 201

Conclusão

Compreende-se que a experiência guerrilheira do MLN Tupamaros foi pautada por uma série de incidências da cultura política institucional do Uruguai. Essa Cultura Política, enraizada naquele país desde o começo do século XX, foi responsável por criar uma condição peculiar na atuação do grupo guerrilheiro mais importante do país. Os Tupamaros se constituíram como um ator político antissistema, que concebeu sua atuação fora das regras democráticas formais do jogo político. Mesmo assim, toda a sua atuação foi permeada por uma série de usos dos princípios estabelecidos nos jogos tradicionais. E mesmo se estabelecendo como um fator antissistema, o grupo não quis atuar como um ator isolado e buscou se aproximar das massas como um mecanismo fundamental para viabilizar seu projeto revolucionário. Além disso, ao se aproximar das massas, construiu alguns argumentos pautados na cultura política uruguaia, de violência reduzida e de apreço às instituições.

Essa análise revelou duas conclusões sobre a trajetória do MLN. Em primeiro lugar, revelou a força dessas tradições políticas como sendo estruturantes da organização de um projeto revolucionário, ainda que utilizando novos mecanismos para a transformação social.

Por outro lado, também foi responsável por demonstrar como o furacão revolucionário cubano se colocou apenas como imperativo de ação, mas não foi responsável por criar um novo modelo político, como está presente na ideia de nova esquerda. As tradições, as concepções e mesmo as táticas permaneceram dentro daquelas já existentes nas culturas políticas locais.

FONTES

BALANCE 69. 1970. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

BOLETIM Nº 1. 1969. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

BOLETIM Nº 2. 1969. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo. JUGAR LA CARTA DE LAS MASAS: A POLÍTICA DE MASSAS DO MLN-TUPAMAROS E A GUERRILHA SIMBÓLICA (1968 – 1972) CARLOS EDUARDO MALAGUTI CAMACHO 202

BOLETIM Nº 3. 1969. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

DOCUMENTO 4. 1967. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

DOCUMENTO I. 1967. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

MANIFIESTO A LA OPINIÓN PUBLICA. 1970. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

PROYECTO DE DOCUMENTO N.º 5. Textos de Documentos. Archivo David Cámpora. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Comunicación, Universidad de la Republica, Montevideo.

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Diplomatas, estancieiros e o espaço provincial rio-grandense: interconexões entre a busca brasileira pelo equilíbrio de poder e a formação dos Estados no subsistema do Prata (1828-1852)

DANIEL REI CORONATO Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP); docente e pesquisador da Universidade Católica de Santos; e-mail: [email protected].

Introdução

O período entre os anos de 1828-1852 foi marcado por sucessivas mudanças no quadro das relações internacionais na região do Prata. Nesse intervalo, compreendido por intensos conflitos e indefinições, operou-se nas diversas unidades políticas da região tentativas e experimentações de organização nacional e consolidação dos respectivos territórios, com grandes repercussões nas dimensões sistêmicas. Herdeiros do tortuoso ciclo de independências, os novos Estados encontraram grandes dificuldades em determinar suas fronteiras e simultaneamente garantir a pacificação doméstica, resultando em um ambiente externo singular e de contornos pré-nacionais.

Os estudos que se debruçam sobre esse período, especialmente aqueles com objetos de pesquisa definidos durante esse, têm buscado investigar com maior atenção os elementos até então negligenciados ou apenas considerados de maneira periférica. O alcance e a natureza da participação de outros atores, agentes e unidades políticas não estatais vêm sendo investigados de maneira consistente, adicionando novas camadas de compressão. DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 205

Na porção meridional do Império do Brasil essas questões se apresentaram de maneira especialmente intensa, em especial pela grande precariedade dos aparelhos de coerção, debilidade fiscal e os tortuosos elos de dependência e complementariedade entre os oligarcas rio-grandenses e o núcleo central do governo imperial. Esses fatores se somavam as constantes transformações na distribuição de poder regional, influenciadas pela dinâmica singular da região, abrindo espaço para novos entendimentos.

Apresentamos então um debate sobre os nexos de relação entre as disputas no espaço provincial rio-grandense e a diplomacia imperial durante a formação dos Estados platinos. A exposição é um resultado da tese defendida Diplomatas e estancieiros: o Brasil e a busca pelo equilíbrio de poder no Prata (1828-1852)’, defendida no programa San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) no ano de 2017.

O subsistema platino

Os estudos das relações internacionais do Brasil no contexto platino ocupam uma posição privilegiada. O objeto atraiu o interesse de gerações de pesquisadores preocupados em desvendar os meandros da política regional, especialmente no entendimento da natureza das interconexões historicamente estabelecidas naquele espaço. Dessa forma, estabeleceu-se ao longo do tempo diversos embates acerca dessa esfera, considerada como fundamental para entendimento da gênese e consolidação do Estado nacional brasileiro.

A natureza e singularidade desse palco de interações e embates constantes produziu um ambiente externo de característica própria, portanto, configurou-se desde as gêneses nacionais como um sistema próprio de poder – o subsistema platino. Conforme Raymond Aron (2002, p.494-96), subsistemas emergem quando em um determinado espaço, um conjunto de unidades políticas passam a manter relações regulares de tal intensidade, que passam a estabelecer uma diferença entre o que acontece dentro e fora daquela região, produzindo nexos e vínculos profundos com seus vizinhos. Dessa forma, os atores do subsistema passam a compartilhar de um convívio intenso, uma estrutura e distribuição de poder própria, sendo suscetíveis a entrar em uma guerra geral entre eles.

Durante a primeira metade do século XIX, esse subsistema reunia os territórios dos atuais Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, contudo, a fragilidade dos arranjos estatais DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 206

durante aquelas décadas criou uma miríade de relações que ultrapassavam as redes de contato entre governos e autoridades oficiais e diplomáticas. Em um ambiente de difícil conformação de limites, e baixa capacidade dos Estados em estabelecer consensos que resultassem na conquista do monopólio da violência legítima em todo o território, as interações se estreitavam também entre espaços provinciais como os de Buenos Aires, Córdoba, Corrientes, Entre Ríos e Santa Fe, além da província meridional brasileira de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Dessa forma, a trajetória de formação nacional será experimentada por uma lógica de interpenetração e internacionalização de conflitos. Esse ambiente será pautado por querelas partidárias, ingerência estrangeira e intensa disputa geopolítica. Essa realidade condicionou as relações no subsistema, produzindo um padrão histórico que interagiu de maneira sui generis em cada uma das unidades políticas e provinciais.

Destarte, a delimitação territorial era insatisfatória, produzindo instabilidades e conflitos, mesmo nas porções em que tratados internacionais as definissem bem. Além disso, a estrutura econômica nas regiões fronteiriças incentivava encontros violentos e soluções armadas, intensificando um cenário político confuso, em que as autoridades centrais se estendiam para essas zonas lindeiras apenas de maneira tímida e impotente. Dessa forma, a própria sobrevivência das unidades políticas dependia de organizações militares locais, usualmente atuando nos espaços de fronteira, revelando a debilidade dos aparelhos de coerção nacionais. (WHIGHAM, 2010, p.25-26)

Desta maneira, a característica essencial do subsistema platina era a existência de uma interconexão complexa entre as unidades políticas e seus respectivos processos domésticos, presenciando sistematicamente a internacionalização de disputas internas, que se confundiam com as questões geopolíticas entre os diversos Estados em formação. Como resultado, a região se convertia em um espaço de disputas sem que os mecanismos nacionais estivessem devidamente consolidados, ou seja, conforme apresentado por Charles Tilly (1996), a inexistência do binômio capital e coerção concentradas em somas suficientes para que as unidades ultrapassem a realidade pré-nacional.

Essas duas esferas seriam fundamentais, uma vez que juntas foram determinantes para a criação do Estado nacional. Na Europa, elas ganharam força após séries de DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 207

mudanças que alteraram a lógica da organização das sociedades naquele continente. Combinando cooptação dos proprietários de terras e dos comerciantes, criaram exércitos e marinhas permanentes após a Paz de Vestfália (1648), além de burocracias centrais, aumentando o crédito e as bases de tributação (TILLY, 1996, p.118). O resultado foi uma expansão intensa da atividade econômica, além do aumento da capacidade do Estado em financiar mecanismos de coerção que paulatinamente passaram a neutralizar os poderes locais, favorecendo a centralização e a organização em bases nacionais.

Esse modelo logo ultrapassou os limites territoriais europeus à medida que os impérios ultramarinos construídos pelas potências daquele continente passaram a expandir seus domínios, impondo seu padrão de organização. Esse movimento ajudou a fórmula nacional a alcançar um predomínio quase absoluto, em que a primazia de Estados dotados de altas concentrações de capital e coerção passou a se sobressair sobre outras estruturas políticas existentes.

Todavia, a dificuldade na construção de arranjos estatais que concentrassem essas duas esferas na região platina resultou, durante toda a primeira metade do século XIX, em um cenário de completa inviabilidade na construção de estruturas nacionais, soberanas e viáveis. Os novos Estados permaneciam presos em condições precárias no âmbito político doméstico, buscando alcançar, ainda que de maneira laboriosa, a mesma fórmula consagrada pelas grandes potências europeias. A principal consequência desse ambiente era a incapacidade dos Estados centrais em fazerem a guerra, produzir alianças e construir consensos regionais, sem que tivessem que rivalizar com outras forças internas que disputavam o monopólio do poder, em especial nas regiões de contato mais intenso, ou seja, nas zonas fronteiriças.

Em decorrência dessa condição sistêmica, nasceu na região uma imensa dificuldade de se alcançar um equilíbrio de poder entre os Estados platinos, intensificando a natureza conflituosa do subsistema. Como defende Kissinger (2007, p.14), situações de equilíbrio dependeriam de conjunturas em que a insatisfação dos atores estivesse abaixo da vontade destes em tentar alterar a ordem por meio da força e/ou da formação de coalizações capazes de subverter a lógica vigente. Para isso, os Estados deveriam se organizar para impedir que o acúmulo de poder de alguma das unidades políticas/alianças estabelecesse um domínio que poderia colocar em risco a soberania dos outros atores regionais, DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 208

protegendo o sistema contra quaisquer arranjos políticos que pretendessem se converter no próprio sistema. A construção de alianças e coalizações, assim como a criação de um sistema de pesos e contrapesos, seria essencial nesse intento.

A prevalência dessa lógica na realidade platina divide opiniões. Demétrio Magnoli (1997, p.133-134), por exemplo, defende que durante o século XIX o continente americano consistiria em um conjunto disperso de subsistemas regionais, cada um deles relativamente autônomo e funcionando dentro das regras do equilíbrio de poder. No caso platino, a região seria orientada pela rivalidade entre Argentina e Brasil, sendo Paraguai e Uruguai interlocutores e focos de instabilidade para a manutenção da balança de poder.

Por outro lado, a premissa da existência de um equilíbrio nos moldes consagrados esbarra nos limites históricos daquela conjuntura. Para que a dinâmica funcionasse de maneira completa, seria obrigatória a existência de Estados nacionais organizados, centralizados, com fronteiras relativamente definidas, capazes de fazer a guerra e gerir sua política externa de maneira autônoma, sem que rivalizassem com outras esferas de poder no nível doméstico. Presos as dinâmicas internas, na maioria dessas unidades políticas não havia o monopólio dos aparelhos de coerção, como revelado pelas intermináveis perturbações, conflitos, revoltas e tomadas de poder nos diversos países da região, impedindo que os governos centrais fossem capazes de reunir capacidades para formar alianças, coalizações, e se necessário, organizar uma guerra geral dentro do sistema.

Assim, a busca por um equilíbrio de poder esbarrava em impeditivos originados na precariedade dos aparelhos de capital e coerção, especialmente na região fronteiriça, caracterizada pela imprecisão em termos geográficos, sem definições consensuais de soberania, permitindo um ambiente de interações próprios. Colaboraram para essas circunstâncias as semelhanças nos processos de produção e o trânsito intenso entre essas regiões, favorecidos por lados de aproximação, amizade, camaradagem e parentescos entre as populações da região, especialmente entre os oligarcas platinos. Essas interconexões condicionaram o processo de formação dos Estados nacionais da região, estabelecendo zonas de limite e contato, congregando nelas esferas de conflito, integração e instabilidade (FLORES, 2012, p.304). DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 209

Diplomatas, estancieiros e o espaço provincial

Para o Império do Brasil, a lógica regional impunha sérios desafios. Interligada com a realidade platina por meio da província do Rio Grande do Sul, - apesar do imenso território se conectar com aquele contexto apenas na sua porção meridional - participava ativamente dos assuntos da região. A sua posição de posto avançado na defesa do território, além de funcionar como ponto de apoio para quaisquer intentos brasileiros em participar ativamente da distribuição de poder regional, tornava o espaço rio-grandense em um elemento singular e fundamental para subsistema platino.

Assim como em outras unidades políticas da região, o governo central brasileiro tinha imensas dificuldades em garantir aparelhos de coerção que garantissem a ordem, a vigilância das fronteiras e atuassem como instrumentos dos objetivos geopolíticos da corte do Rio de Janeiro, dependendo majoritariamente dos oligarcas provinciais para garantir que essas finalidades fossem atendidas. Amparados em um sistema de estâncias, na facilidade de recrutamento de homens para atividades militares, essa categoria de ‘soldados-estancieiros’ (LEITMAN, 1979, p. 79), ou “empresários-guerreiros” como prefere Décio Freitas (1997, p.115-116), se tornou protagonista da vida política, social e econômica do Brasil meridional, estabelecendo entre eles e o governo central uma relação de interdependência, conflito e proximidade, a depender da conjuntura e dos interesses em jogo.

Dessa forma, os instrumentos de ação brasileiros assumiram uma natureza essencialmente semiprivada, em que os limites da atuação do governo central se misturavam de maneira intensa com o conjunto de interesses dos oligarcas fronteiriços. Essa situação de debilidade enfraquecia simultaneamente a posição do Império no contexto platino, e a política doméstica, uma vez que quaisquer entrechoques entre a agenda desse grupo oligárquico e a doutrina em voga pela diplomacia imperial poderiam resultar em um cenário de desagregação profundo. Essa disposição chegou a situações limites, como aquelas experimentadas durante a Guerra Civil Farroupilha (1835-1845), que consumiu a província durante quase dez anos, resultando na criação de uma República independente, e posteriormente esforços hercúleos para a pacificação. (FERREIRA, 2006, p.74-75)

Conhecendo sua importância e poder na defesa do território imperial, os estanceiros usavam de seu peso para garantir que seus interesses fossem atendidos. Sua ação era DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 210

indispensável dadas a soma de poder econômico, político e militar que reuniam, realizando atividades que iram desde o policiamento de fronteiras até garantir somas importantes de renda para o Império. Essa posição obrigou os artífices da política externa brasileira a usualmente consideraram sua posição e poder, além de frequentemente usarem de seus serviços, em troca garantindo que seus objetivos fossem atendidos, em especial aqueles ligados com vantagens comerciais, proteção das propriedades de brasileiros na região de fronteira (principalmente no território oriental), e apoio na contenção e recaptura de escravos para outros países.

Essa pressão, portanto, só podia ser exercida pela própria condição anômala em que a fronteira se encontrava durante aquele período. O poder e prestígio desses grupos dependiam da função de guardiões do território, e nos momentos de crise como braços militares na região, garantindo uma relevância proporcional aos desafios do contexto. A habilidade dos grupos oligárquicos em manejar essas condicionantes mantinha essa correlação, particularmente ao potencializar suas somas consideráveis de recursos proporcionadas pela estrutura social e produtiva sulina – intensificadas após o abandono das práticas predatórias de apresamento de gado e a criação do sistema de estâncias (LUVIZOTTO, 2009, p.17-18). Assim, dirigindo seus esforços para garantir sua agenda que invariavelmente se conectava ou opunha às clivagens partidárias platinas, ou entre frações dessa mesma oligarquia, a lógica no Brasil meridional adquiria contornos singulares e desafios constantes.

Essa disposição na província condicionava a formulação e execução da política externa brasileira no Prata aos interesses dos oligarcas rio-grandenses, já que necessitavam do apoio daqueles elementos para que fossem conquistados os objetivos geopolíticos brasileiros na região. Assim, para que pautas como a garantia da liberdade de navegação da região platina, a consolidação de fronteiras, e a pacificação política dos países do estuário fossem conquistadas, era necessário lidar simultaneamente com as pressões da órbita provincial, que impunham à diplomacia imperial diversos constrangimentos. Essa pressão foi um dos elementos fundamentais para a atuação brasileira no Prata, inclusive nos contextos de participação direta nos conflitos da região, em particular na Guerra Civil Uruguaia (ou ‘Guerra Grande’, entre 1839-1851), na coalização contra Juan Manuel de Rosas, governador de Buenos Aires, em 1851, e depois na Guerra do Paraguai (ou da Tríplice Aliança).

Dessa forma, a diplomacia brasileira para a região platina não poderia ser avaliada DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 211

desprezando a dinâmica provincial, entendida aqui como uma variável interveniente e fundamental. Diplomatas e estancieiros representariam então os dois arquétipos dessa condição dual de dependência e complementariedade entre o governo imperial e os oligarcas rio-grandenses durante parte importante dos eventos que marcaram o século XIX.

Essa lógica se reforçava na impossibilidade de um deles ser capaz de reunir isoladamente forças para garantir seus interesses isoladamente, ou adquirir capacidade de impor seus interesses ao outro. Nesse complexo cenário doméstico, cravado em meio a um labiríntico sistema de poder regional, marcado pelas fragilidades estatais, decidiu-se os destinos da fronteira meridional, além de condicionar o modelo de inserção internacional que o Brasil iria experimentar no contexto platino durante parte considerável do século XIX.

Apontamentos finais

O entendimento da política externa brasileira e da formação das fronteiras meridionais brasileiras perpassam um conjunto de elementos de natureza social, econômica, política e militar. De maneira geral, entendimentos nesse campo procuram reunir variáveis dispersas, buscando interconexões entre elas. Nesse intento, o interprete busca ressaltar alguma dimensão em detrimento de outras, reforçando assim a capacidade explicativa.

No caso dessa iniciativa, buscamos demonstrar como a natureza singular do subsistema platino resultou em um ambiente internacional singular, com regras e condicionantes próprios. O tortuoso processo de construção das nacionalidades platinas foi acompanhado de uma debilidade disseminada entre as diversas unidades políticas da região, que buscavam organizar a vida doméstica em meio a conflitos e disputas entre diversos grupos e esferas de poder. Os governos centrais se ressentiam de somas consideráveis de capital e coerção, dependendo e rivalizando com outras autoridades locais, regionais e/ou provinciais.

Essa profusão de variáveis estabelecia uma dinâmica de difícil resolução, impedindo a conquista de um equilíbrio regional duradouro. A indefinição de fronteiras, a permanência de uma lógica de instabilidade política e militar, além do difícil exercício da soberania, produziam um ambiente frágil de relações e frequentemente mutável. Dessa maneira, mecanismos de formação de alianças e coalizões se tornavam atividades árduas e laboriosas, uma vez que dependeriam de autoridades nos países da região. DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 212

Do contrário quaisquer dispositivos desse tipo teriam autoridade, legitimidade e eficácia vacilantes e questionáveis, sendo impossível reproduzir uma dinâmica de equilíbrio de poder que garantisse a estabilidade regional.

No caso brasileiro a questão se tornava especialmente sensível, já que a agenda do governo central se misturava e/ou contrastava com os interesses dos oligarcas rio- grandenses. Entre essas duas dimensões se estabeleceu uma relação de dependência e complementaridade, uma vez que ambas as partes dependiam mutualmente entre si para alcançar seus objetivos e garantir a manutenção de seu poder. O entrechoque entre eles ajudou a definir as fronteiras brasileiras, assim como os contornos da atuação brasileira no Prata, além de estabelecer os limites dessa mesma atuação.

Essa conexão foi marcada por uma dinâmica de conflito e aproximação, a depender da conjuntura e dos interesses em disputa, quase sempre produzindo distensões de ambos os lados. Os grupos oligárquicos rio-grandenses não eram homogêneos, se subdividindo em outros grupos menores, com suas pautas e interesses próprios. Por outro lado, o governo brasileiro também possuía correntes divergentes quanto aos meios e procedimentos que o governo imperial deveria prosseguir na relação com esses grupos, criando um emaranhamento de posições nas duas dimensões.

Quando as conexões e distensões se convertiam em rupturas, o campo da violência e a sublevação emergia, colocando o espaço provincial em uma posição abertamente contrária ao Rio de Janeiro. Além da Guerra Civil Farroupilha (1835-1845), diversos outros momentos foram marcados por levantamentos militares e criação de exércitos particulares, desafiando a autoridade imperial e colocando a diplomacia brasileira em posição delicada. Usando das conexões com outros grupos oligárquicos platinos, os estancieiros rio-grandense conseguiam impor derrotas e aumentar ainda mais a pressão sobre o governo central, obrigando ao corpo político imperial assumir em diversas ocasiões o caráter especial da província e de seus habitantes.

Dessa forma, o espaço provincial rio-grandense é uma dimensão fundamental e prioritária para um melhor entendimento da história diplomática brasileira, platina e das fronteiras regionais meridionais. Nesse contexto, diplomatas e estanceiros dividiam um mesmo palco de interações, e apesar das posições distintas na estrutura do Império, DIPLOMATAS, ESTANCIEIROS E O ESPAÇO PROVINCIAL RIO-GRANDENSE: INTERCONEXÕES ENTRE A BUSCA BRASILEI- RA PELO EQUILÍBRIO DE PODER E A FORMAÇÃO DOS ESTADOS NO SUBSISTEMA DO PRATA (1828-1852) DANIEL REI CORONATO 213

atuavam como agentes singulares na política externa brasileira. A correlação entre esses dois elementos condicionou diversos padrões de comportamento no Prata, ajudando a definir a participação brasileira em momentos-chave para a região platina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WHIGHAM, T. La Guerra de la Triple Alianza. Volumen I. Causas e inicios del mayor conflicto de América del Sur. Asunción: Taurus Historia, 2010. 214

Entre chegadas, partidas e enfrentamentos: Trabalhadores em Marechal Cândido Rondon-PR

DANIELA MELO RODRIGUES Mestranda pelo programa de Pós-Graduação: História, Poder e Práticas Sociais, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. O presente trabalho foi realizado com apoio da

Os caminhos traçados por trabalhadores ao chegarem à Marechal Cândido Rondon, localizada no Oeste paranaense, fazem parte de minha investigação. Compartilho algumas experiências com esses trabalhadores, na medida que também ponderei como uma possibilidade o morar na cidade, devido aos estudos, assim conheci e me aproximei de sujeitos que compartilhavam o enfrentar dificuldades do experienciar uma cidade diferente (que abordarei no decorrer do texto). Nesse sentido, analisarei as motivações para a construção dessa alternativa, que é permeada por pressões e limites, juntamente como esses trabalhadores avaliam sua condição de classe para permanecer ou mudar novamente.

Vejo a experiência desses trabalhadores como uma chave de acesso para refletir acerca do morar, do estudar, do trabalhar, igualmente sobre as relações de sociabilidades construídas e as relações de poder. Assim, trato como esses trabalhadores lidaram com diversos enfrentamentos (imbricados nas dimensões citadas anteriormente), no decorrer do final do século XX e início do XXI, e como por vezes a experiência de pobreza se faz presente, abrindo caminhos para se pensar a condição de classe desses sujeitos na cidade.

Trabalhadores como Seu José, que no momento da entrevista estava há seis anos em Rondon, durante nossa conversa uma pergunta me pareceu necessária para entender as motivações do trabalhador ao encarar o mudar de país...

Você gostava de lá? ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 215

José: Paraguai? É. José: Sí! Tenho minha casa lá, só que aqui, se você... um trabalhador humilde, tem mais formas de vida. Se respeita o horário de trabalho, tem lei que te protege se você fica doente, tem saúde. Tem muita gente que se queixa, mas isso... são quem não faz nada, né? Vive só pra enganar a gente. E se você é honesto você... acha que... não sei... eu só tenho que agradecer a Deus, porque aqui eu sempre fui bien... amizade, sempre fui bem respeitado, porque eu não... facilito nada, sempre vou no lugar certo, primeiro foi quando voltei de lá, e estoy com mi hija [filha] terceiro ano de Agronomia. Eu tô feliz, feliz, porque vem do Paraguai, outro idioma e começou na Cereta [escola pública da cidade], perdeu um ano de estudo né? Para que normalize né? Depois assim, tudo passou... (grifos meus)1.

O mesmo possuía 58 anos e havia chego do Paraguai com mulher e filha. Durante a entrevista, principalmente após a leitura da transcrição, pareceu-me claro o incômodo de Seu José em mostrar que é um “paraguaio honesto”, demonstrando assim a ponderação do mesmo acerca da imagem construída na cidade sobre aqueles que vêm do Paraguai. Diferenciando-se como “um trabalhador humilde”, e avaliando a necessidade de mostrar que não é preguiçoso para uma estudante brasileira, sendo essa uma avaliação produzida frequentemente até mesmo em demais entrevistas que produzi e que abordarei com mais profundidade no decorrer do texto.

Recordo-me da análise produzida por Coutinho (1997) sempre que leio minhas transcrições e, principalmente no momento da entrevista, “esse diálogo é sempre assimétrico; isso só pode ser compensado, na minha opinião, de uma forma correta, incluindo essa assimetria relativa no produto que você faz.” (p. 166). A preocupação de Coutinho está ligada à produção de documentários, mas as dificuldades encontradas por ele nessa prática são semelhantes à dos historiadores em conversar com sujeitos que nos avaliam o tempo todo em busca de respostas sobre o porquê estamos ali.

A assimetria, que prefiro chamar de desigualdade é clara na conversa com Seu José, mas para além de esse ser um entrave, pode ser uma possibilidade em entender quais são as pautas colocadas por esses trabalhadores. De que forma Seu José lidou com essas imagens do “ser paraguaio” como algo precário? Seu modo de falar, na mistura do português com sua língua de origem trouxe tensões em suas relações na cidade?

As dificuldades aparecem, mesmo que o trabalhador diga que sempre foi “respeitado”,

1 José (pseudônimo). Entrevista realizada pela autora, com participação de Ernesto da Silva Junior. A gravação foi realizada na residência do entrevistado, no dia 22 de setembro de 2015, com a duração de 1:04:56h. Marechal Cândido Rondon-PR. ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 216

afinal a escolarização da filha que foi uma das motivações de Seu José para vir ao Brasil, fez com que precisassem lidar com as documentações e burocracias demoradas que acarretaram a sua filha ficar um ano sem estudar. O momento em que me contava sobre sua experiência o fez construir uma memória calcada no orgulho que sente ao ver a filha na graduação em uma universidade federal, a memória nada fácil de ser produzida e interpretada frente a um gravador e que não deixa de dizer que foi “bem respeitado, porque eu não... facilito nada”.

Após pesquisar esses trabalhadores na cidade, é possível ver os paraguaios que estiveram na construção de Rondon em meados do século XX, seja na derrubada de mata, como parteiras, trabalhando nas lavouras... Em um artigo produzido com base em aulas ministradas com alunos na terceira idade, pelo programa Universidade Aberta à Terceira Idade – Unati, Freitas e Santos (2014) investigam as durezas da desigualdade na cidade. Ao longo do artigo, alguns trechos das falas dos estudantes acerca de sua experiência na constituição de Rondon aparecem os trabalhadores paraguaios, expressando “[...] a crueza das imagens do encontro entre desiguais: ‘dava a impressão de que eles não eram gente, sabe?’. Esse parece o termo da condescendência classista, parece ser esse o ápice da automoralidade patronal.” (p. 23).

A imagem de que “não eram gente” perpetua no universo atual desses trabalhadores, e mais do que ser “o ápice da automoralidade patronal” é possível encontrar sujeitos com experiências de classe compartilhadas com a de Seu José e que possuem a mesma ponderação a respeito de alguns trabalhadores que chegam à cidade. Nesse sentindo é que o “não facilito nada” de Seu José é fortemente marcado por disputas frequentes, até mesmo com aqueles trabalhadores que compartilham dos mesmos problemas, desde o chegar à cidade, as dificuldades de moradia...

Dona Violeta chegou em Rondon na década de 1990, vindo também do Paraguai, porém, a trabalhadora não era de lá, mudou-se aos 14 anos junto com seu ex-marido, pois os pais não autorizavam o namoro. Quando questionada sobre a diferença do que se ganhava em dinheiro do Paraguai para o Brasil, avaliou...

E o povo de lá queria que a gente fosse pra lá sabe, assim pra ... trabalhar lá assim. A gente não conhecia ninguém. Porque os paraguaio de origem, os paraguaio mesmo, eles não fazem nada, eles não plantam nada, eles não trabalham, eles só plantam uns pezinho de mandioca na frente da casa, assim no pátio2

2 Violeta (pseudônimo). Entrevista realizada por Sheille Soares de Freitas e a autora. A gravação ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 217

Dona Violeta e Seu José me parecem representativos no que tange a complexidade das experiências dos trabalhadores em Rondon, ambos chegaram e possuíram diversos enfrentamentos, como o morar. Seu José precisou dividir o apartamento com a cunhada, o marido e o filho desta, residindo em seis pessoas. Já Dona Violeta morava em uma casa própria, porém, segundo ela, estava praticamente sem móveis e com problemas de estrutura. Trabalhadores que compartilham experiências, mas não necessariamente identificam-se em todos os sentidos, já que para a trabalhadora os paraguaios “não fazem nada”. Assim, concordo com os autores que analisam como “a avaliação desse processo aponta que essas formulações e pressões às relações classistas não se limitaram às primeiras décadas de constituição da cidade.” (FREITAS; SANTOS. 2014, p. 24), na medida em que alguns sujeitos avaliam os paraguaios de maneira pejorativa, essa desigualdade perpassa algumas das relações estabelecidas por esses sujeitos na cidade.

Pensar a relação desses trabalhadores na América3 é também refletir sobre o que significou não poder facilitar nada para Seu José, para que esse pudesse trabalhar com uma carteira assinada, mesmo que isso não seja sinônimo de segurança, já que precisava trabalhar nos finais de semana servindo chopp, ou de segurança da choperia próxima à sua casa para complementar a renda mensal. Vendo assim como os trabalhadores que estão em Rondon se aproximam do que se trata por História das Américas, no sentido de olhar como esses traçam caminhos avaliando (com as pressões e limites) o que fazer em seus percursos e de que maneira alcançar ou não suas expectativas, e nisso está incluso o sair ou ficar no país. Ponderando sobre as condições e possibilidades do mesmo, assim como as imagens que esses lugares possuem e como podem recolocar forças mediante a essa – no dizer “ser certinho”, mesmo que em alguns momentos não deixa de falar das estratégias construídas, como o trabalhar de segurança durante a noite e dormir no local...

Danusa Silva (2010) procurou produzir uma análise em torno de trabalhadores como Dona Violeta, refletindo a relação entre os brasileiros que vão para o Paraguai e retornam para o Brasil (na década de 1990) ou que planejavam fazê-lo. O termo de “brasiguaios” usado por ela evoca uma certa interpretação condizendo com a do jornal muito circulado na cidade e região (O Presente) ao se referir a esses trabalhadores e sua presença em foi realizada na residência da entrevistada, no dia 05 de março de 2015, com a duração de 1:35:42h. Marechal Cândido Rondon-PR. Agradeço o auxílio de Freitas para a realização da entrevista.

3 Aqui me refiro principalmente a América do Sul, por abranger os trabalhadores dessa pesquisa. ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 218

Rondon, reforçando uma imagem pejorativa dos mesmos.

Em grande medida esse voltar ao Brasil, ou morar no Paraguai e trabalhar em terras brasileiras se dá pela proximidade de Rondon com Porto Adela-PY através de Porto Mendes, um dos distritos da cidade rondonense, que permite a travessia do rio para chegar ao país vizinho, rota essa usada diariamente por muitos trabalhadores por meio da balsa que trafega entre os limites dos dois países.

Entretanto, não pretendo focar nessa discussão, mas entender as motivações desses trabalhadores em suas chegadas e partidas. Nesse sentido, ao ler a dissertação da historiadora me deparei com uma parte da entrevista realizada com Seu João Fernandes.

A gente trabalha, vai fazendo empreitada. Mas isso é um preço toda vida meio baixo, não compensa. Pra ir trabalhar por dia também não compensa, se comparar com o Brasil em que a gente trabalha em real. Aqui o guarani caiu, não tá valendo quase nada. Ó, a diária aí hoje, oito horas por dia, está na faixa de quarenta, trinta e cinco mil [guaranis]. Isso é pra roçar, carpir, qualquer coisa aí, soja, qualquer coisa que vai fazer, a diária é essa. Só que enquanto no Brasil é pago vinte e cinco real, aqui a gente ganha nessa faixa. Veja bem quanto vale contra vinte e cinco real.4

Tendo como hipótese inicial a ideia de que os brasileiros pretendem sair do Paraguai, a pesquisadora provocou uma ponderação do trabalhador que nos traz suas angústias e dificuldades sobre pensar em ir embora e quais as implicações dessa decisão. Afinal, 40 mil guaranis eram na época 20 reais (gerando o que seria 400 reais, caso trabalhasse 20 dias no mês, em 2007 – no qual o salário mínimo era de 380 reais5), 5 reais de diferença comparado com o real. A conversa me parece com um teor de denúncia sobre as durezas, a dificuldade em precisar lidar com o sol, o carpir, no trabalho de diarista e depois se compensava mudar por 5 reais, pensando as despesas que teria nessa mudança. “Veja bem quanto vale contra vinte e cinco real”, é avaliar a reflexão acima também de forma inversa, pois esses 5 reais valem o que no Paraguai? O valor permite, possivelmente, comprar utensílios, alimentos, auxiliar nas contas no país... sendo esse o ganho que “compense” o ficar.

4 João Fernandes Gonçalves. Entrevista concedida a Danusa de Lourdes Guimarães da Silva. Carapã, 24 de janeiro de 2007 apud SILVA, 2010, p.55.

5 Disponível em:http://buscajus.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2319&catid=8. Acesso em: 19/07/2018 ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 219

Avaliações carregadas de pressões sobre o que fazer e que não estão estritamente ligadas ao trabalho, mas que podem ser alternativas produzidas frente à separação conjugal, como Dona Violeta, ou aos estudos da filha como Seu José. Dessa maneira, trazendo as relações construídas socialmente e que traçam a complexidade de certos valores e práticas (de trabalhadores que chegam na cidade em momentos e com motivações variados), juntamente como essas por ora disputam com visões de projetos de cidade6.

Atualmente, ao andar pelas ruas da cidade, com suas faixas de rua bem pintadas pelo centro, as flores nos canteiros centrais das avenidas que cortam os extremos de Rondon, é possível ver esses trabalhadores? Acredito que se estivermos dispostos a isso, é possível. Trabalhadores como Kassia7, que mora no bairro Centro. Em 2011, a trabalhadora havia chego na cidade a cinco meses (no cadastro não consta a cidade de onde veio) e com 24 anos de idade, da qual consegui ter acesso a alguns elementos de sua trajetória através dos Cadastros de Referência e Assistência Social – CRAS de Rondon8.

O órgão governamental é onde muitos trabalhadores vão buscar/conquistar alguns de seus direitos, ou o que entendem como seus direitos, como Cestas Básicas, acesso aos Programas Governamentais – como Bolsa Família, ou mesmo outros encaminhamentos – para atendimento médico e hospitalar, material escolar para os filhos(as), vagas em creches, vagas de trabalho, etc. Os cadastros são formulados principalmente por assistentes sociais, tornando-se desafiadores na análise sobre a visão e relação construída com os trabalhadores9.

Passado o entendimento do que é o CRAS, voltemos a Kassia. Segundo seu cadastro ela mora com sete pessoas (sendo seu esposo, dois filhos, uma colega com seu esposo e

6 Entendo aqui por projetos de cidade a maneira como esses trabalhadores se fazem presentes em Rondon, a movimentação desses sujeitos como fulcral para olhar a cidade em sua integralidade para além das “obras germânicas” que buscam trazer a “origem alemã” de seus “primeiros moradores”. “Primeiros moradores” somente com descendência alemã? Pelo contrário, muito da construção da cidade contou com aqueles que eram vistos como “nem parece gente”.

7 CRAS [cadastro e anotação]. Kassia (pseudônimo)/Ficha Cadastral no Centro de Referência de Assistência Social. Marechal Cândido Rondon, 31/03/2011, Bairro Centro.

8 Esse material foi consultado e gravado pela Profª. Drª. Sheille Soares de Freitas no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS no ano de 2011. As fichas foram transcritas por mim entre os anos de 2014 e 2015. O processo de transcrição fez parte das atividades vinculadas ao Projeto PIC-V “Trabalhadores em Marechal Cândido Rondon: trajetórias e percursos frente às relações de poder no início do séc. XXI” e ao Projeto de Extensão “Em Evidências: produção e uso de fontes”, com bolsa PROEX/ARAUCÁRIA.

9 Dos 154 cadastros que possuo: 125 são de trabalhadores que não nasceram na cidade; 15 com naturalidade não informada; 8 nasceram na cidade. Desses 125 que não são da cidade, 11 vieram do ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 220

mais dois filhos) em uma casa alugada. Semelhante a Seu José, Kassia e muitos outros trabalhadores moram junto com parentes, amigos, colegas, ou desconhecidos para dividir as despesas mensais. Ambos os esposos, conforme consta no cadastro, são “catadores de papelão”, um trabalho comum na cidade, onde, caso queiramos ver, esses sujeitos passam empurrando com seus carrinhos amontoados de papelão, latinhas, plástico... Sempre devagar devido ao peso, ou então alguns colocam um cesto de feira na garupa da bicicleta. Kassia e sua colega trabalham em casa cuidando dos filhos.

A trabalhadora permite analisar a solidariedade e também identificação de classe na medida em que encontrou mais uma família para morar na cidade, os quais provavelmente nasceram nela, ao menos o marido de sua colega, cujo apelido é “Alemão”.10 Esses trabalhadores passam por dificuldades no morar e trabalhar, todos são adultos por volta dos 30 a 40 anos e encaram o que é chegar nessa idade e precisar ainda dividir as despesas com colegas para conseguir sustentar a si e aos filhos, escrevo ainda, caro leitor, pois é evidente as pressões de nossa sociedade sobre o padrão ideal de conquistar uma casa, carro, filhos e cachorros...

Recordo-me da reflexão produzida por Laverdi (2005) que possuía como intenção pesquisar acerca das “vidas entrelaçadas” daqueles trabalhadores que chegam a Marechal Cândido Rondon no século XX.

Não se trata, pois, de traçar prioridades ou hierarquias entre as diversas formas do estranhamento experimentadas pelos sujeitos, além de dialogar com as suas expressões lembradas, valorizadas ou silenciadas. [...] A gama de possibilidades interpretativas articula-se justamente na possibilidade de discutir as tensões vividas, tanto quanto as suas experiências e trajetórias entrelaçadas entre os tempos e as bagagens culturais distintos.” (p. 156)

Paraguai, 10 desses haviam chegado em menos de 10 anos e 1 não informando a data de chegada.

10 A dinâmica da presença da solidariedade na memória dos trabalhadores evidencia a identificação desses sujeitos e como possuem condições compartilhadas ou até mesmo laços familiares e de amizade. A complexidade da solidariedade como parte do universo de relações estabelecidas entre os trabalhadores está também no que Khoury (2009) indica nas discussões sobre o Mundo dos Trabalhadores, na qual sugere “A escolha de passar do mundo do trabalho para o mundo do trabalhador expressa a ampliação da noção de classe com a qual fomos e vimos trabalhando, pela incorporação de outras categorias de trabalhadores das cidades e dos campos, dando visibilidade a outras lutas além das que constituem nas fábricas e nos sindicatos.” (p. 124). Ao buscar tanger uma preocupação acerca das imagens que produzo desses trabalhadores, procuro alcançar essa “ampliação da noção de classe”. Nesse sentido, a solidariedade ajuda a chegar nas outras dimensões das lutas dos trabalhadores que compõem forças perante seus enfretamentos diários e pressões de classe. ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 221

Mais do que debater sobre “estranhamentos” do chegar como fez o autor em sua obra, a ideia é investigar a complexidade da experiência desses sujeitos em sua luta por sobrevivência. Afinal, como é precisar dividir as despesas? Ou fazer contas frequentemente sobre a variação do Guarani? Até mesmo como e por que avaliar a condição dos paraguaios como uma forma de lidar com a vida pejorativa, mas já tendo enfrentado condições semelhantes a esses?

Escrevo sobre a experiência compartilhada pois Dona Violeta em nossa conversa traçou sua interpretação sempre reforçando sobre o trabalhar, seja em Rondon ou Paraguai, e nesse sentido as “bagagens culturais” citadas por Laverdi (2005) se fazem presentes. As culturas entram em confronto, pois a trabalhadora construiu aquela memória em relação à sua condição atual, baseada em uma experiência que contratava paraguaios como diaristas no momento em que morava no país vizinho e era proprietária de terras.

Entretanto, ao separar-se do marido, que a agredia frequentemente, e decidir se mudar para Rondon, sentiu a perda da estabilidade financeira. Após alguns dias, seu ex- marido pediu a reconciliação dizendo para ela que voltaria, melhoraria e que poderiam vir para Rondon com os filhos, que ele venderia as terras e eles teriam condições de aqui residir. Ao chegar na cidade, seu ex-marido comprou uma casa no bairro Rainha (no qual já havia, segundo Dona Violeta, bastantes casas), e voltou para o Paraguai e para a mulher com quem traía a trabalhadora.

É preciso entender sua trajetória, a perca da condição de pequena proprietária e o precisar trabalhar de diarista em Rondon, e que mesmo ao solidarizar-se com os paraguaios, doando-lhes roupas, possuindo um genro paraguaio, não quer se identificar sempre com esses sujeitos, pois esses a lembram de sua condição e todos os percalços que passou. Assim, culpar o modo de viver de alguns sujeitos foi a válvula de escape de Dona Violeta para poder dizer que ela trabalhou e conseguiu criar os filhos mesmo sem o marido. Era preciso uma contraposição para que pudesse mostrar suas durezas.

Mais importante que definir o certo ou o errado nessas interpretações é trazer as semelhanças e dissidências entre esses trabalhadores ao chegarem na cidade e se movimentarem nela, já que, com essas evidências, é possível sair da fórmula: mudar-se de cidade é igual a problemas com o trabalho. Dona Violeta chegou na cidade porque seu filho ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 222

queria alistar-se na marinha, localizada em Guaíra e que fica cerca de uma hora de distância com carro, (sendo essa uma das motivações que aparece na entrevista), dessa forma chegou a Rondon, e nela precisou encarar muitas dificuldades em “ser mulher” e precisar cuidar dos filhos sozinha e sem auxílio de família e amigos que havia deixado pra trás.

Nesse sentindo, recordo-me do cadastro de Kassia, que foi um dos mais impactantes que encontrei e que possui em si a polêmica das durezas da vida de muitos sujeitos de nossa sociedade.

31/03/2011: Foi realizado cadastro. Está residindo a 5 meses no município. Faz 5 meses que perdeu um filho de 4 anos, que foi assassinado pelo pai que não aceitava o filho por ser deficiente. Está gestante de 2 meses, de gêmeos, gravidez de risco. Foi encaminhada para o grupo de gestantes e acompanhamento psicológico, por ser nervosa. Ficou combinado de realizarmos visita domiciliar11

Há cinco meses estava na cidade e, em grande medida, é possível supor que veio após o assassinato do filho. Não se sabe se o esposo atual é o mesmo que retirou a vida da criança, se sua colega com quem foi residir era uma amiga de longa data disposta a auxiliar... Após ler as anotações das assistentes, diversas são as perguntas em aberto e assim permanecerão. Entretanto, interessa aqui analisar as angústias desses trabalhadores ao precisar cuidar dos filhos, arrumar trabalho, moradia (e aqui incluo Seu José), o lidar com avaliações de “ser nervosa” em meio ao chegar em um novo lugar, o precisar lidar com o “ser mulher” na sociedade atual e encarar algumas dificuldades, principalmente no que tange os filhos que são, muitas vezes, responsabilidades atribuídas apenas às mulheres.

O trecho da análise de Thompson (1988), que mesmo sendo referente aos trabalhadores do século XIX, se faz presente ao olhar para os trabalhadores que estão entre chegadas, partidas e enfrentamentos na cidade de Marechal Cândido Rondon. “Do padrão de vida, passamos ao modo de vida (...) O povo pode consumir mais mercadorias e sentir-se menos feliz ou livre ao mesmo tempo” (p.37). Afinal, mesmo Seu José já estando com sua filha cursando Agronomia, com um trabalho estável, vizinhos que se

11 CRAS [cadastro e anotação]. Kassia (pseudônimo)/Ficha Cadastral no Centro de Referência ENTRE CHEGADAS, PARTIDAS E ENFRENTAMENTOS: TRABALHADORES EM MARECHAL CÂNDIDO RONDON-PR DANIELA MELO RODRIGUES 223

solidarizam e compartilham condimentos do supermercado, ainda é preciso analisar o que foi para ele dizer que “não facilita nada”, as durezas em precisar ser “honesto” e ser assim com quem avalia que valha o esforço... São trabalhadores, que lidam frequentemente com diversidades compartilhadas à sua maneira e que a partir dessas é possível olhar para a cidade como um lugar carregado de subjetividades, tensões, culturas, enfim... Modos de viver que fizeram e fazem nossa sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível a alteridade. Projeto História. São Paulo, n.15, p.165-191, abr.1997

FREITAS, Sheille Soares; SANTOS, Carlos M. de Sousa. Encontros entre trabalhadores: a Universidade Aberta à Terceira Idade como espaço para confrontação de memórias. Interagir: pensando a extensão, Rio de Janeiro, n. 17/18/19, p. 19-27, 2014.

KHOURY, Yara Aun. Do mundo do trabalho ao mundo dos trabalhadores: história e historiografia. In.: VARUSSA, Rinaldo José (Org.). Mundo dos trabalhadores, lutas e projetos: temas e perspectivas de investigação na historiografia contemporânea. Cascavel: Edunioeste - Série Tempos Históricos, 2009, p.124-140.

LAVERDI, Robson. Memórias dos estranhamentos. In.:______. Tempos diversos, vidas entrelaçadas: trajetórias itinerantes de trabalhadores no extremo oeste do Paraná. Curitiba: 2005, p.153-234.

SILVA, Danusa L. G. “Um pé aqui outro lá”: experiências transfronteiriças e viveres urbanos de brasiguaios (Marechal Cândido Rondon/PR – 1990-2010). Dissertação (mestrado em História) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2010

THOMPSON, E.P. Exploração. In:______. Formação da Classe Operária Inglesa. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.11-38 (V. 2 – A Maldição de Adão).

de Assistência Social. Marechal Cândido Rondon, 31/03/2011, Bairro Centro. 224

O indigenismo brasileiro na revista América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano (1941-1945)

DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista de Mestrado CAPES. E-mail: [email protected]

Introdução

A pesquisa aqui apresentada busca analisar a presença do indigenismo brasileiro em América Indígena, órgão oficial do Instituto Indigenista Interamericano (I.I.I.), através dos artigos de intelectuais brasileiros que foram publicados desde o início da revista, em 1941 até o fim do Estado Novo brasileiro, em 1945.

A definição de indigenismo é bem ampla. Pode significar tanto produções intelectuais favoráveis aos indígenas, sendo um pensamento ou “consciência indigenista” (VILLORO, 1995), quanto uma ação ou “política indigenista”, sendo essa uma “política aplicada às populações indígenas pelos não índios.” (AGUIRRE BELTRÁN, apud DEL VALL; ZOLLA, 2014. p. 13) A política indigenista também é chamada às vezes de “indigenismo de Estado”, pois é uma ação feita por este. (DEL VALL; ZOLLA, 2014)

Mas o indigenismo de Estado se relaciona com o pensamento indigenista dos intelectuais, pois são eles que analisam a realidade indígena e propõe políticas públicas. Então pensamento e ação indigenista se unem. Isso fica evidente quando o indigenismo se estrutura em instituições, como é o caso que pretendemos pesquisar.

Através da análise dos artigos de brasileiros publicados em América Indígena, buscaremos compreender como se deu o diálogo do indigenismo brasileiro, representado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), com o indigenismo continental, representado O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 225

pelo Instituto Indigenista Interamericano. Já observamos na leitura inicial das fontes que a maioria dos intelectuais brasileiros que publicaram na revista do I.I.I. eram ligados ao SPI, inclusive o seu diretor na época, o Tenente-Coronel Vicente de Paula Teixeira Fonseca Vasconcelos e também Amílcar Botelho de Magalhães, que tinha sido chefe do escritório da Comissão Rondon e era considerado uma “sombra de Rondon.”1 quem mais publicou artigos, somente esse autor publicou 7 dos 13 artigos totais sobre o Brasil na revista.

A metodologia na qual se baseia a pesquisa é a da História Intelectual, por tomar como fonte principal uma revista produzida por intelectuais. América Indígena era uma revista na qual publicavam intelectuais de todo o continente identificados ao tema do indigenismo. Para analisar a atuação dos intelectuais, utilizamos as propostas de Jean- François Sirinelli (2003) de que todo grupo de intelectuais se organiza em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum.

No caso que estudamos, o indigenismo representava essa sensibilidade ideológica comum entre os intelectuais relacionados ao I.I.I., foi essa sensibilidade ideológica comum em relação à questão indígena que levou ao diálogo entre intelectuais brasileiros e de outras partes do continente através do I.I.I.

Nesse sentido, a análise da revista América Indígena é fundamental para a análise do movimento de ideias entre esses intelectuais, enquanto “um lugar de fermentação intelectual”, como propõe Sirinelli (2003, p. 249).

Objetivos

Este trabalho tem como objetivo analisar os artigos de brasileiros publicados em América Indígena para compreender como se deu o diálogo do indigenismo brasileiro com o indigenismo continental do I.I.I. Visando mais especificamente:

• Entender o pensamento indigenista brasileiro e a política do SPI desde fundação, 1910, até o fim do Estado Novo.

1 Segundo MENDONZA (2005), Darcy Ribeiro descreveu Amílcar Botelho da seguinte forma: “O coronel Amílcar era a sombra de Rondon. Acompanhou-o por toda parte a vida inteira, no sertão, na mata, no Rio, onde estivesse. Foi seu biógrafo informado e veraz em vários livros.” (RIBEIRO, 1998, apud MENDONZA, 2005, p. 54) O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 226

• Compreender a produção intelectual dos indigenistas brasileiros ligados às políticas oficiais do governo Vargas e perceber quais foram as relações que os intelectuais indigenistas brasileiros buscaram estabelecer com o indigenismo continental.

• Compreender as relações internacionais do Brasil com a América Latina durante o Estado Novo.

• Entender como os intelectuais indigenistas brasileiros se posicionaram em relação ao que consideraram como “o problema do índio”.

• Testar a hipótese de o Brasil ter utilizado a revista América Indígena principalmente como meio para propaganda internacional do indigenismo oficial brasileiro.

Apresentamos abaixo uma tabela com os artigos que serão nossas fontes na pesquisa, sou seja, os artigos de brasileiros publicados na revista América Indígena de 1941 a 1945:

Artigos sobre o Brasil em América Indígena (1941-1945) Nº Título Autor Edição/pág. 1 A obra de proteção ao índio Vicente P. T. Fonse- 1941, nº 1, p. 21-28 no Brasil ca Vasconcelos

2 The Kaingang Indians Santa Jules Henry 1942, nº 1 (jan.), p. 75-79 Catarina, Brasil 3 General Cândido Mariano da Vicenzo Petrullo 1942, nº 1 (jan.), p. 81-83 Silva Rondón, “sertanista” and indianist 4 O problema de civilização dos Amílcar Botelho de 1943, nº 2, (abr.), p. 153- índios no brasil Magalhães 160 5 A alimentação de nossos ín- Angyone Costa 1943, nº 3 (jul.), p. 221- dios 226 6 O problema de civilização dos Amílcar Botelho de 1943, nº4 (out), p. 329- índios no brasil Magalhães 335 7 O problema de civilização dos Herbert Baldus 1944, nº 1 (jan.), p. 9-18 índios no brasil O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 227

8 O problema de civilização dos Amílcar Botelho de 1944, nº 1 (jan.), p. 9-18, índios no brasil Magalhães p. 55-63. 9 O problema de civilização dos Amílcar Botelho de 1944, nº2 (bar), p. 133- índios no brasil Magalhães 142 10 O problema de civilização dos Amílcar Botelho de 1944, nº 3 (jul.), p. 233- índios no brasil Magalhães 236 11 O problema de civilização dos Amílcar Botelho de 1944, nº 4 (out), p. 323- índios no brasil Magalhães 333 12 Áreas alimentares do Brasil Josué de Castro 1945, nº 3 (jul.), p. 191- 205 13 Índios do Brasil Amílcar Botelho de 1945, nº 4 (out), p. 309- Magalhães 315

Resultados

O Brasil participou ativamente do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado em 1940 no México, que culminou na criação do Instituto Indigenista Interamericano (I.I.I.). Teve como representante oficial do país no evento o antropólogo Roquette Pinto, que passou a fazer parte do Comitê Executivo Provisório, que foi constituído para organizar o Instituto (GIRAUDO, 2011).

Observamos uma presença significativa de intelectuais brasileiros publicando artigos em América Indígena. No período do nosso recorte de pesquisa foram publicados 13 artigos sobre o Brasil. Mas existe uma contradição na participação do Brasil no indigenismo continental, a qual pretendemos compreender durante a pesquisa. Apesar desse relacionamento do país com o I.I.I., o Brasil foi um dos últimos países a aderir oficialmente ao Instituto Indigenista Interamericano, o que ocorreu somente em 1953.2 Por outro lado, foi um dos primeiros a abraçar a iniciativa do I.I.I. de criação oficial de um “Dia do Índio”, proposta no Congresso Indigenista de 1940. O governo Vargas integrou a data ao calendário oficial de comemorações nacionais a partir de 1944. (MENDOZA, 2005, p. 69)

2 BRASIL. Congresso Nacional, Decreto Legislativo n° 55 de 1953. Disponível em: http://www2.camara. leg.br/legin/fed/decleg/1950-1959/decretolegislativo-55-17-julho-1953-367148-publicacaooriginal-1-pl. html (Acesso em 04/05/2018) O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 228

Dentro do contexto continental, a criação de um instituto de caráter interamericano para tratar da questão indígena foi fruto de um projeto que vinculava o indigenismo herdeiro da Revolução Mexicana de 1910 à proposta estadunidense da Política de Vizinhança. O projeto do I.I.I., financiado pelos governos de México e Estados Unidos, foi pensado principalmente pelo indigenista mexicano Moisés Sáenz e o estadunidense John Collier, um grande admirador do indigenismo mexicano que foi nomeado Comissário de Assuntos Indígenas no seu país, durante o governo de Franklin D. Roosevelt (1933- 1945). (GIRAUDO, 2011, p. 34; AHLSTEDT, 2015)

Então, não foi por acaso que o Congresso que deu origem à instituição foi realizado no México, cidade de Pátzcuaro. Além disso, o país também se tornou a sede do I.I.I. e o antropólogo mexicano Manuel Gamio foi o seu diretor de 1941 até sua morte, em 1960. O indigenista estadunidense John Collier integrou o conselho executivo do I.I.I. Além dele, outros representantes de outros países que participaram do Congresso Indigenista em 1940, que deu origem ao Instituto, como o brasileiro Roquette Pinto.

A participação do Brasil no Congresso Indigenista de 1940 e no Comitê Executivo do I.I.I. mostra uma aproximação nas relações internacionais com a América Latina. Como mostra Capelato (2000), historicamente as relações do Brasil no continente apresentavam um distanciamento da América Latina e uma proximidade com os EUA.

Durante o império, o governo [brasileiro] não se identificou com nenhum projeto de unidade, proposto por representantes de nações hispânicas, no século XIX. Não se fez presente nos congressos e não participou dos tratados que resultaram em interações econômicas entre países sul-americanos. Permaneceu de costas para seus vizinhos do Sul. (CAPELATO, 2000, p. 290.)

Porém, isso muda um pouco depois da Crise de 29. Como afirma Capelato (2000), “as insatisfações aumentaram, agravadas pela crise econômica que provocou distanciamento dos EUA. Diante da conjuntura internacional da década de 30, o governo Vargas buscou aproximação com a América Latina”. (CAPELATO, 2000, p. 299). Portanto, no período estudado o Brasil aproximou-se um pouco mais dos países latino-americanos e a participação no I.I.I. é um exemplo disso.

Mas a existência de um indigenismo oficial no Brasil republicano teve como marco principal a fundação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), instituição criada pelo O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 229

decreto n° 8072, de 20 de julho de 1910, sendo fruto, em grande parte, dos ideais e ações do marechal Cândido Mariano Rondon, que foi seu primeiro diretor. Na primeira edição da revista, América Indígena, em 1941, já encontramos um artigo do próprio diretor do SPI, Vicente de Paulo Teixeira da Fonseca Vasconcelos, que faz um elogio explícito da ação da instituição: “A obra de proteção ao índio no Brasil”. O artigo expõe a política indigenista do Brasil, desde 1928, e destaca o trabalho “pacífico” do SPI, exaltando a figura do general Rondon. Podemos observar que esse tom de exaltação do SPI está presente em outros artigos de brasileiros publicados em América Indígena, como por exemplo no artigo de Amílcar A. Botelho de Magalhães intitulado “O problema da civilização dos índios no Brasil”, publicado na edição nº 3 de 1944. O artigo relata o massacre que alguns indígenas botocudos teriam cometido contra fazendeiros e empregados do SPI no Posto do Rincão do Tigre.

Ao descrever o acontecimento, Botelho de Magalhães relata a atitude e bravura do encarregado Fioravante Esperança, que trabalhava para o SPI e morreu durante o ataque indígena. Botelho de Magalhães enaltece a lealdade do mesmo ao órgão indigenista, ressaltando a conhecida divisa de Rondon: “Morrer se necessário for, matar nunca”. (América Indígena, 1944, vol. 3, p. 235)

Portanto, uma hipótese que vamos usar na pesquisa é de que o Brasil usou a revista do Instituto continental como um espaço internacional para fazer propaganda do indigenismo oficial brasileiro e, por consequência, do Estado Novo.

A questão indigenista brasileira no período se inseria, portanto, na lógica de consolidar o projeto nacionalista, passando-se uma imagem bondosa do Estado e do Serviço de Proteção ao Índio, que nunca iriam matar os nativos. O SPI era basicamente apresentado no discurso oficial de forma paternalista, como a “empresa de salvação” dos povos indígenas no território brasileiro, sendo sua função amparar e proteger os nativos, sempre visando a sua assimilação na sociedade nacional.

No entanto, não havia um questionamento sobre a questão da cultura indígena. Como afirma Garfield (2000), “o abraço simbólico do índio pelo Estado Novo acabou por sufocá-lo. Esmagados pela retórica do governo, os índios teriam de lutar para expressar seus próprios pontos de vista em relação a sua terra, comunidade, cultura e história.” (GARFIELD, 2000, p. 24) O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 230

Durante o Estado Novo, um certo caminho indigenista foi tomado dentro do projeto de nação de Vargas, que visava construir um Brasil novo, com base em uma política nacionalista, a fim de consolidar o poder para redefinir o território nacional pormeio de uma política de integração. A preocupação dos funcionários do Estado voltava-se para a unificação nacional, defesa territorial e configuração racial. Assim, sustentou- se culturalmente a ideia do índio como um dos ícones da nacionalidade, que trouxe contribuições significativas à formação histórica e cultural brasileira. (Idem)

Para o autoritário e nacionalista Estado Novo os povos indígenas detinham de um forte simbolismo como primeiros cidadãos e marcos de uma singularidade nacional. No entanto ao mesmo tempo que como patrimônios culturais, os indígenas representam um trunfo na construção do projeto de nação, enquanto “rebeldes” e “selvagens” significavam um empecilho. Em outras palavras Garfield destaca que:

“Os índios eram, assim, classificados como matéria-prima, não como produtos acabados: nobres selvagens e/ou deficientes mentais que necessitavam de “proteção” e remodelagem pelo Estado; seres socialmente isolados que se fundiriam biológica e culturalmente a outros brasileiros. (GARFIELD, 2011, p. 18)

Vargas, portanto, procurou “proteger” e “remodelar” os indígenas demonstrando afeição por eles a fim de torná-los cidadãos produtivos e mostrar-lhes a necessidade do trabalho. Assim, lhes prometeu terra e melhorias nos serviços públicos tais como transporte, saúde e educação. Este fim de melhoria da vida cotidiana dos indígenas deveria ser alcançado através do órgão federal SPI. Porém, não se tratava de preservar a cultura dos indígenas, o destino final buscado pelo governo era a integração e assimilação dos mesmos a uma cultura nacional brasileira. Como mostra o historiador Seth Garfield (2000):

O governo, afinal, deu uma grande tarefa aos índios: tornar o interior produtivo, impedir as tramas imperialistas e garantir a “formação étnica” do Brasil. Para assistir os índios, o Estado iria ampliar para o sertão a rede de transporte, a saúde pública e educação para o sertão. Outros “problemas” tais como nomadismo, falta de disciplina no trabalho e a ausência de sentimento cívico seriam também remediados pelo governo”. (GARFIELD, 2000, p. 24.)

Pode-se perceber que existia uma preocupação com a sobrevivência física dos indígenas, pois, acreditava-se que, se eles fossem “civilizados”, poderiam contribuir para o progresso da nação. Essa “civilização” passava pela destruição da cultura e tradição das O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 231

populações nativas. De acordo com o projeto político oficial, era necessário incorporá-los definitivamente como trabalhadores para a glória nacional. Os índios eram considerados como seres incompletos, incapazes. O Código Civil de 1916 definia os índios como “relativamente incapazes” em relação às questões civis e, em 1928, os índios foram colocados sob um sistema de tutela federal, administrado pelo SPI. (Ibidem)

Sob o pretexto de fornecer proteção legal, o sistema de tutela estigmatizava os indígenas como incompetentes e imaturos, bem como pronunciamentos do governo durante o Estado Novo também reforçavam o suposto infantilismo dos indígenas. Conforme é possível observar no pronunciamento do SPI em 1939:

O índio, dado o seu estado mental, é como uma grande criança que precisa ser educada, muito sensível a conselhos, elogios, presentes e outros estímulos, para viver e praticar o bem e modificar hábitos nocivos. Como em geral eles têm bom-senso e são muito razoáveis com as pessoas em quem confiam, é quase sempre possível convencê-los e aperfeiçoá-los. (SPI, Relatório, 1939, apud GARFIELD 2011, p. 64)

Portanto, definir os povos indígenas como crianças indolentes foi mais um mecanismo de dominação, pois pressupondo seu infantilismo e preguiça justificou-se a apropriação de seus territórios, e a exigência de supervisão. Pois para o governo os indígenas somente alcançariam a plena maturidade por meio da instrução cívica e vocacional e adaptação à civilização nacional. (GARFIELD, 2011)

O que podemos perceber é que, durante o Estado Novo brasileiro, a política indigenista era ambiciosa e ambígua , pois embora houvesse uma exaltação simbólica do índio como formador da história nacional, a existência de indígenas reais, presentes na sociedade, era percebida como um “problema” para a integração nacional, um problema que precisava ser solucionado para a efetivação do projeto político nacionalista de Vargas.

Observamos que quase todos os artigos publicados por intelectuais brasileiros em América Indígena no período estudado apresentam a palavra “problema” em seu título, como “O problema da civilização dos índios no Brasil” e “Problemas indigenistas no Brasil”. Buscaremos entender ao longo da pesquisa como esses intelectuais se posicionaram em relação ao que consideraram como “problemas”. O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 232

Estudar o indigenismo brasileiro passa muito por entender o papel que o SPI desempenhou e também o papel do próprio Rondon. Sobre o projeto do Marechal encarnado na proposta de atuação do SPI, Luiza Vieira Sá (2009) afirma, que se tratava de

realizar os objetivos imediatos de garantir aos índios a posse das terras por eles ocupadas; de controlar suas relações com [os] civilizados a fim de impedir que fossem oprimidos ou explorados, e de promover a punição dos crimes cometidos contra os índios [...]. O que se impunha era, pois, uma obra de proteção aos índios, de ação puramente social, destinada a ampará-los em suas necessidades, defendê-los do extermínio e resguardá-los contra a opressão. (SÁ, 2009, p. 171.)

Assim, impedir o desaparecimento físico dos indígenas era objetivo final do o SPI: “Não queremos que o índio permaneça índio. Nosso trabalho tem por destino sua incorporação à nacionalidade brasileira, tão íntima e completa quanto possível.” (SPI, 1940, apud GARFIELD,2011, p.62).

Percebemos algumas semelhanças da visão de Rondon e do SPI sobre o papel do indigenismo, como uma ação estatal oficial cujo fim último seria a incorporação indígena necessária para a formação de uma identidade nacional – com o indigenismo de Manuel Gamio, diretor do I.I.I. Na visão do antropólogo mexicano, a “incorporação indígena” era um ponto primordial para se “forjar a pátria”, título de sua obra mais famosa.3

Considerações finais

Em suma, na pesquisa estudamos principalmente o indigenismo oficial brasileiro, representado pelo SPI, em seu diálogo com o indigenismo oficial interamericano, representado pelo I.I.I. e sua revista América Indígena. Portanto, se trata do indigenismo não apenas como um discurso social, mas como uma prática política institucional, exercida através desses órgãos indigenistas, o SPI e o I.I.I.

Assim, é possível perceber que no período em questão a concepção indigenista oficial presente no Brasil e no México, e por extensão no indigenismo continental do I.I.I., já que Gamio era o seu principal nome, se inseria na lógica de consolidar os projetos nacionalistas dos Estados do continente. No caso do Brasil, isso passava por transmitir

3 GAMIO, Manuel. Forjando patria: pro nacionalismo. México: Labrería de Porrúa Hermanos, 1916. O INDIGENISMO BRASILEIRO NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERAMERICANO (1941-1945) DANIELLE THAIS VITAL GONÇALVES LONGO 233

uma imagem bondosa do governo e do SPI e seus representantes indigenistas. Como já destacamos, vários artigos de intelectuais brasileiros publicados em América Indígena apresentam esse viés de propaganda. No entanto ao longo da pesquisa busco entender se esse era o único objetivo da participação brasileira no I.I.I. e em sua revista, ou se ocorreu um diálogo maior do indigenismo brasileiro com o continental.

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El poder invisible: uma análise do “testemunho jornalístico” de Alfonso Baella Tuesta sobre os primeiros mil dias do governo do general Velasco Alvarado

ÊÇA PEREIRA DA SILVA Doutora em História Social pela FFLCH/USP, Professora da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Mail: [email protected]

Introdução

Este trabalho analisa a obra El poder invisible (1976), de Alfonso Baella Tuesta como uma memória deste jornalista liberal acerca do governo de Velasco Alvarado (1968-1975). Para tanto, segue-se uma breve apresentação de nosso autor-testemunha, a discussão de alguns conceitos utilizados e a análise da obra e, ao final, algumas reflexões sobre a fonte.

Alfonso Baella Tuesta (1932-2017) formou-se em direito pela Universidad San Marcos, mas sua principal atuação profissional foi como jornalista político. Em 1949 fundou o semanário El Popular, fechado pela ditadura do Gal. Odría (1948-1956); entre 1959 e 1974 dirigiu a seção política do diário El Comercio1, em 1975 fundou e dirigiu periódico El Tiempo, nestes dois periódicos sofreu repressão dos governos militares. Na década de 1980, com o fim do regime militar, dedicou-se ao jornalismo televisivo. Nos anos 1990 foi eleito congressista pela lista Cambio 90 (mesma de Alberto Fujimori), em 1996 renunciou a este grupo e adotou uma posição independente. Publicou três livros sobre as últimas ditaduras militares do Peru: El poder invisible (1976), El Miserable (1977) e El Secuestro (1978)2.

1 Periódico peruano fundado em 1839. Comprado por José Antonio Miró Quesada em 1873 e desde então dirigido pela família Miró Quesada. Segundo Baella Tuesta, esse periódico envolveu-se em várias campanhas defendendo causas nacionalistas, a liberdade de imprensa e a partir de 1935 combatendo o APRA, quando Antonio Miró Quesada de La Guerra, diretor de El Comercio, foi assassinado junto com sua esposa por um militante aprista. (BAELLA TUESTA, 1976:229).

2 https://andina.pe/AGENCIA/noticia-fallecio-periodista-alfonso-baella-tuesta-656037.aspx acessado 16 de julho de 2018, 8h56. EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 236

A obra que abordaremos aqui, El poder invisible, segundo seu autor, Alfonso Baella Tuesta, consiste num:

testimonio periodístico de la actuación, junto al Presidente Velasco, del Poder Invisible, de esa mezcla del bien y del mal, que perturbo su Gobierno e hizo indispensable su relevo el 28 de agosto de 1975. (BAELLA TUESTA, 1976:16)

O próprio autor caracteriza sua obra como um “testemunho jornalístico.” Segundo o historiador François Hartog, a utilização do testemunho para a produção de história foi alavancada pelas histórias eclesiásticas, onde os evangelhos consistem basicamente em testemunhos dos feitos do Messias por seus seguidores. Portanto, a ideia do testemunho implica, em certa medida, em atribuir autoridade – veracidade à palavra daqueles que teriam visto/ ouvido algo. Hartog lembra que as tragédias e genocídios do século XX atribuíram novo peso às testemunhas, que foram principalmente as vítimas destes acontecimentos, fontes destacadas da história do tempo presente.

No entanto, Hartog diferencia o trabalho do historiador da mera compilação de testemunhos: cabe ao histor a elaboração de questões, a análise da memória-fonte; desde modo a particularidade do conhecimento histórico não está no documento em si, mas no trabalho intelectual que o historiador constrói a partir dele. Assim, o testemunho de Baella Tuesta, não é a “expressão do que realmente foi” o governo de Velasco, mas sim uma voz entre outras, que nos interessa aqui analisar e compreender aquele momento.

O livro El poder invisible pode ser também ser considerado como uma obra jornalística, do tipo crônica política sobre os anos em que o General Velasco Alvarado e seu grupo ocuparam o Palácio Pizarro. Segundo Paula Cristina Lopes3, a crônica é um estilo jornalístico e literário, onde o estilo como se conta a “trama jornalística” é muito importante para a qualidade o aspecto literário do texto.

O conceito mais destacado pelo autor para explicar o motivo das transformações levadas a cabo por seus personagens enquanto ocuparam o poder é o ressentimento Segundo Pierre Ansart, o ressentimento seria causado por experiências de humilhação e medo, que diante da impotência de expressão, acumulados resultariam em rancor,

3 EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 237

inveja, ciúme, e o desejo de vingança. Assim, os momentos de conflito entre diferentes grupos sociais submetidos e outros, até então, dominadores, seriam propícios à expressão desses ressentimentos represados. Em diversas passagens de sua obra, Baella Tuesta atribuiu as medidas sociais e econômicas tomadas pelo governo de Velasco Alvarado como expressões de ressentimento de grupos minoritários contra o grupo governante, ou mesmo pessoas “bem-nascidas” com sobrenomes tradicionais.

A obra

O livro está organizado em duas partes que contém 21 e 20 curtos capítulos respectivamente. Em cada capítulo há muitas fotografias dos personagens citados; conta também com a reprodução de documentos, cartas e reportagens mencionadas, claramente visando comprovar a veracidade das afirmações feitas ao longo do livro. As fontes utilizadas por Baella Tuesta estão indicadas em notas ao final de cada capítulo e consistem principalmente em reportagens de periódicos da época como Caretas, El Comercio, El Tiempo, entre outros. Há uma diferença entre os capítulos das duas partes: na segunda todos os capítulos são abertos com notícias da segunda fase da Revolução (governo de Morales Bermúdez 1975-1980) criticando ou desfazendo atos da primeira fase (governo de Velasco Alvarado 1968-1975). Tal estrutura visa fortalecer a ideia presente em todo o texto de que o grupo velasquista não representava a maioria das forças armadas, e assim, quando foram derrubados em 1974, aqueles que representariam as “verdadeiras” forças armadas estariam desfazendo as medidas da revolução.

A introdução da obra consiste numa descrição dos últimos momentos do governo do Gal. Juan Velasco Alvarado. Depois seguem os capítulos da primeira parte, onde são apresentados os motivos que culminaram no golpe de 1968 e nas primeiras medidas do governo: o escândalo do contrabando, a crise da nacionalização da International Petrolium Company (IPC), a formação do grupo militar apoiador de Velasco (chamado de Terremoto), a relação com a Igreja, aproximação dos membros civis do governo e a formação do que Baella Tuesta chamou de poder invisível. Na segunda parte concentra- se em descrever a luta dos proprietários de empresas e jornalistas contra o estatuto da imprensa e os interesses por trás desta lei, e as consequências da criação das cooperativas de fábricas e camponesas, da planificação e do Sistema Nacional de Mobilización Social EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 238

(SINAMOS). O livro termina apontado o fracasso destas medidas para explicar a golpe de Morales Bermúdez contra Velasco.

Em vários momentos da narrativa o autor deixa entrever que a “revolução” levada a cabo pelo General Velasco Alvarado, consistiu na tomada de poder por um grupo de ressentidos contra uma elite que, mesmo passível de críticas, governava o país de forma legítima. E, além do ressentimento, havia ao autoritarismo dos grupos comunistas e a influência cubana visando acelerar a ruptura do Peru com o “Ocidente democrático”.

Os personagens

A ideia de uma “revolução dos ressentidos” fica muito clara na apresentação que Baella Tuesta fez dos personagens do governo Velasco em sua memória. Os componentes do governo - Velasco, militares do grupo Terremoto, os civis (chamados de delfins pelo autor) e o poder invisível; das forças armadas - que o autor faz questão de descolar do governo e, por fim a oposição, caracterizada como “democrática e liberal”, formada principalmente pela imprensa e setores empresariais e agrícolas.

O Gal. Velasco Alvarado foi caracterizado na obra como um homem cuja infância pobre teria marcado indelevelmente contra a elite do país. Ao descrever a presença de Velasco na posse do presidente Belaúnde Terry em 1963, mal consegue esconder seu elitismo:

¡No podía ser un conspirador, como se decía en las calles plazas! Hubiese sido un error llamar a Velasco, hombre sin curriculum, nada elegante sin cultura a formar parte de un Gobierno... (BAELLA TUESTA, 1976:21)

No capítulo dedicado à trajetória de Velasco, o autor reproduz certo determinismo geográfico ao atribuir características de personalidade aos habitantes da costa (sensuais, alegres, maliciosos) e das montanhas (reservados, duros, solenes) ao descrever Piura, norte do Peru, região de origem do general. Chama atenção o uso do negrito para descrever a pobreza de seu personagem. Utilizando como fonte o diário Correo de 29 de setembro de 1974, o autor relatou diversas dificuldades enfrentadas por Velasco, que teriam forjado seu ressentimento: sua luta diária para estudar, sua tristeza, os exames para ingressar na escola militar, onde teria entrado na fila errada e ingressado como EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 239

soldado raso, as dificuldades ali enfrentadas para chegar de soldado raso a oficial (Baella Tuesta, 1976: 93-98). Contudo nenhuma dessas dificuldades detalhadas por Baella Tuesta teriam forjado valores nobres: o autor atribui a Velasco o abafamento, inclusive com a desaparição de uma testemunha, de uma investigação sobre um container contendo mercadorias contrabandeadas endereçadas ao exército (Baella Tuesta, 1976: 55-67).

Outros componentes do governo seriam os militares do chamado grupo Terremoto, formado majoritariamente por ingressos na Escola Militar de Chorrillos em 1940 - ano que um grande abalo sísmico destruiu boa parte do país - e se formaram em 1943. A definição de Terremoto:

ser terremoto, fue sinónimo de revolucionario de Del Gran Chaparral (...) era el revolucionario dispuesto a destruir el orden tradicional con la misma rapidez y fuerza con que hace un movimiento sísmico, un cataclismo.” (BAELLA TUESTA, 1976: 70)

O autor esclareceu que tal denominação era dada pelo próprio grupo próximo a Velasco, cujos membros pertenciam a diferentes promoções. Havia, porém, militares mais distantes do núcleo duro do governo e que, ou não eram informados das medidas, ou mantidos distantes. Segundo a narrativa de Baella Tuesta, estes últimos eram os legítimos representantes das forças armadas enquanto instituição. Os três principais generais deste grupo “legítimo” eram Morales Bermúdez, Montagne e Benavides.

Morales Bermúdez era ministro da Fazenda desde o governo Belaúnde Terry (1963- 1968) que, segundo o autor, pressionou por uma investigação séria a respeito do envolvimento de militares no escândalo do contrabando (Baella Tuesta, 1976:55-61), e cujas declarações sobre a crise provocada pela diminuição dos investimentos após a planificação econômica do governo revolucionário eram desmentidas por Velasco como “instrumentos contrarrevolucionários” (Baella Tuesta,1976:289-290).

O general Montagne tinha ascendência francesa e seu pai também fora militar e chegou a candidatar-se à presidência com o apoio do APRA. Este “berço” lhe gabaritava para substituir Velasco quando este passasse para a reserva em fevereiro de 1969. Contudo a disputa pelo poder exigia uma postura contrária às “normas cavalheirescas” que estava habituado, o que lhe impediu de alçar à presidência da República (Baella Tuesta, 1976: 109). EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 240

Por fim o Gal. José Benavides, cujo pai presidiu o Peru de 1914-15 e de 1933-39 e que segundo o autor teria sido mais aplaudido que Velasco quando tomou posse na pasta do ministério da Agricultura. Baella Tuesta afirmou que havia um consenso nacional quanto à necessidade de uma reforma agrária, e que o Gal. Benavides se empenhava numa lei que de fato resolvesse este problema. No entanto, o caráter persecutório de Velasco, que via conspirações em toda parte, o fez desconfiar de Benavides devido às suas “boas relações” com a oligarquia. Deste modo, Velasco teria nomeado um gabinete paralelo para elaborar a lei de reforma agrária. Assim que, soube de tal gabinete, Benavides entregou o cargo, no que foi prontamente substituído pelo Gal. Leonidas Rodríguez, membro do grupo Terremoto. As credenciais de Rodríguez para o cargo, segundo o autor, eram ser de uma família camponesa, falar quéchua e ser frustrado por não ter cursado odontologia (Baella Tuesta, 1976:208). As descrições das atuações destes três generais durante o período Velasco demonstram, mais que o ressentimento do grupo Terremoto, o elitismo do autor.

Os civis que participaram do governo Revolucionário foram divididos pelo autor entre os “quatro delfins” e o “poder invisível”. Os delfins eram: Alfonso Benavides Correa, Cornejo Chávez (Democracia Cristã), Edgardo Seoane Corrales (Acción Popular) e Alberto Ruiz Eldredge. Os traços apresentados como comum a todos são: a formação em direito, a posição nacionalista frente temas dos minérios, não serem comunistas (mas apesar disso eram próximos a ex-guerrilheiros) e a dificuldade em se projetarem politicamente em partidos de massas. Por estas razões, teriam visto no governo instalado pelo golpe de 1968 uma oportunidade de imporem seus planos ao país sem passarem pelo crivo das urnas. Ademais, seriam uma ponte entre Velasco e os militares Terremotos e setores da sociedade civil (Baella Tuesta, 1976:155-162).

Contudo o mais importante civil do governo Velasco, a quem o autor atribuiu em grande medida o “poder invisível” foi o jornalista Augusto Zimmermann Zavala, merecedor de um capítulo à parte na obra. Durante o governo Velasco, Zimmermann ocupou o cargo de chefe da Oficina Nacional de Información, responsável pela comunicação das ações do Estado junto à sociedade; para tanto contou com rádios, um canal de TV e um jornal oficial, além dos que foram expropriados pelo governo. O autor descreveu a trajetória de Zimmermann desde o início de sua carreira no jornalismo até seu afastamento do jornal El Comercio (onde fora subordinado ao autor) sempre enfatizado características como a subserviência e o oportunismo. Seu ressentimento contra os proprietários de El EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 241

Comercio, paladinos da imprensa “livre”, segundo Baella Tuesta, teria começado quando tentou alçar a presidência da Associação Nacional de Jornalistas e não contou com o apoio da família Miró Quesada. Depois disso, teria tentando colocar o jornal da família a serviço da Revolução de Velasco – razão que teria dado para se aproximar do presidente, mas fracassou (BAELLA TUESTA, 1976: 147-152).

No entanto, o mais grave para Baella Tuesta seria o fato de Zimmermann exercer o papel de “agente” ou “lobbista” de interesses diversos junto ao general Velasco. Sendo os interesses mais criticados os dos governos “comunistas” de Cuba e do Chile (durante o governo Allende). O autor publicou uma carta que Fidel teria como destinatário Zimmermann devotando solidariedade revolucionária ao Peru. Contudo para um liberal dos anos 1970, em plena Guerra Fria, tal carta era uma prova irrefutável de que o país estava à beira de uma revolução comunista (BAELLA TUESTA, 1976: 262-63). Zimmermann foi, segundo o jornalista–testemunha, o autor do Plan Inca – plano de governo e principal texto de intenções do governo revolucionário. Segundo a versão oficial, este documento estava pronto desde meados de 1968, mas segundo Baella Tuesta, tal documento foi escrito em Cuba em 1974, portanto era posterior a tomada de poder por Velasco e seu grupo, de modo que estes não teriam originalmente plano de governo algum (BAELLA TUESTA, 1976: 416-417).

Ao final da obra, Baella Tuesta elencou os que aderiram ao governo deVelasco Alvarado segundo as seguintes categorias: grupo terremoto, os delfins, comunistas, sem vergonhas, oportunistas, os parentes, amigos, burocratas, padres e os ressentidos. (BAELLA TUESTA, 1976:428-430). Cabe apenas esclarecer melhor as duas últimas categorias, dado que as anteriores são autoexplicativas.

Os padres mencionados por Baella Tuesta seriam os adeptos da Teologia da Libertação, que no contexto peruano, teriam influenciado parte dos militares a transferirem a culpa da guerra contra as guerrilhas levada a cabo em 1965 para o imperialismo norte-americano, IPC, empresas peruanas e as oligarquias. Assim, para o autor, a ação profissional do exército em combater guerrilheiros que visavam destruir a democracia e impor o comunismo estrangeiro foi transformada em “luta fratricida contra os oprimidos”, por um grupo de padres marxistas. (Baella Tuesta, 1976: 77-85).

Quanto aos ressentidos, apesar de longa, a citação é valorosa: EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 242

Em el Perú no luchan a muerte, como generalmente se sostiene, los que tienen contra los que no tienen; los civiles contra los militares o vice versa; los costeños contra los serranos; los blancos contra los negros; o los índios contra quienes no lo son. La división simplista que hacen los comunistas de los proletarios contra los burgueses, resulta inexacta. (...) Somos el país, talvez el único en el mundo, donde más del 50 por ciento de los niños que nacen, no tienen hogar. Pero no es ésta la razón por la cual abunden los que buscan el mal ajeno, el infortunio de los demás, que se alegran no porque hayan ganado algo sino porque otro perdió lo que tenía. Son los psicólogos los que dirán porque el pariente odia al pariente, el empresario al empresario, el trabajador al trabajador. Aquí no hay odio de clases, hay odio em el interior de las clases. Y a los odiosos rodearon a Juan, al Revolucionario sin par, a Juan Sin Miedo, al Chino Velasco. Fueron ellos los que aplaudieron la Reforma Agraria, porque por fin, alguien había quitado las tierras a quienes la tenían; aplaudieron la Comunidad Industrial, porque gozaron viendo los apuros de quienes hasta el momento tuvieron éxito em la producción; y fueron, por último, los que dijeron que estaba bien que los niños estudiaran quechua em lugar de inglés; que pidieron que a los escolares les uniformaran de gris, con telas color panza de burro, de tristeza, em lugar de algún vestido de color alegre, son ellos, nada más que ellos, que aplaudieron a Juan porque Juan hizo aquello que ellos anhelaron toda su vida: hacer sufrir a los demás. (BAELLA TUESTA, 1976:430-431)

Apesar de longa a citação é importante por evidenciar o sentido do ressentimento para o autor. Apesar de reconhecer a brutalidade do abismo social que perpassava o país, este não seria o motivo real do ressentimento, mas sim a incapacidade de lidar com a realização alheia.

As medidas da “revolução”:

As medidas mais impactantes da revolução para o autor foram: a nacionalização do petróleo, a reforma agrária, a reforma laboral, planificação econômica, a criação do SINAMOS e o estatuto da imprensa. Em todos os setores reformados reconheceu que havia problemas a serem corrigidos, contudo, o sentido das reformas, que segundo ele, encaminhariam o país ao comunismo, sem que o governo declarasse oficialmente tal intenção, seria prova das influencias comunistas.

O novo modelo de propriedade que o governo se esforçava para implantar no Peru teria sido inspirado no Leste Europeu, em especial na Iugoslávia do Marechal Tito. A aproximação do Peru com países socialistas e a nas reformas levadas a cabo por Velasco foram criticadas e ironizadas pelo autor em diversas passagens.

A nacionalização da International Petrolium Company (IPC) foi a primeira medida da chamada Revolução Peruana de Velasco Alvarado e a principal justificativa para o EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 243

golpe de estado que a instaurou em 03 de outubro de 1968. Chamada pelo jornalista Alfonso Baella Tuesta de “gol de meia cancha” foi uma medida aprovada pelo autor e pela empresa de jornalismo que trabalhava à época, El Comercio. A medida era reivindicada por grupos nacionalistas devido aos altíssimos lucros que a empresa obtinha explorando recursos minerais do país, especialmente o petróleo em Brea y Parinãs, sem benefícios significativos ao país, inclusive devendo muito ao Estado. Todavia a empresa, parte do grupo Rockefeller, acionou o Estado peruano em instâncias internacionais contra a expropriação, conseguindo tempo e apoio para transferir seus investimentos e funcionários para o exterior. Tal operação deixou o Estado peruano sem sequer ter a quem cobrar a dívida da empresa. (BAELLA TUESTA, 1976: 125-134)

A reforma agrária era unanimemente reconhecida como necessária, segundo o autor. Contudo, segundo Baella Tuesta a lei era tão mal escrita e confusa que teve que ser reformada no dia seguinte à sua publicação. Ademais, desarticulou as áreas produtivas colocou todas as propriedades, inclusive as pequenas, em risco; e acabou por diminuir a produção de alimentos ao ponto de tornar-se o Peru um importador de milho, cereal base da alimentação de grande parte da população (BAELLA TUESTA, 1976:348).

A criação da comunidade laboral foi a reforma mais controvertida segundo o autor, pois interveio diretamente na propriedade privada, pilar do capitalismo. Consistia na formação de cooperativas de funcionários que teriam direito à compra de ações das empresas, tornando os trabalhadores sócios dos empreendimentos. A ideia seria aumentar a produtividade uma vez que, como sócios os trabalhadores também ganhassem com os lucros. Contudo, para Baella Tuesta, a reforma foi o meio encontrado por comunistas de implantar seus projetos no Peru, que não teriam chance fazê-lo pela via democrática, e tampouco pela via armada, uma vez que foram derrotados pelas forças armadas em 1965. Restava então infiltrar-se nos meios nacionalistas e colocar suas pautas, sem declarar suas reais intenções, apoiando-se nos setores ressentidos das Forças Armadas, ou seja, o grupo Terremoto. A infiltração comunista teria levado segundo os dados apresentados por Baella Tuesta a uma explosão de greves que visavam à intervenção e a expropriação das empresas, derrubando a produção e a produtividade do trabalho, por consequência os investimentos aumentados o índice de desemprego. (BAELLA TUESTA, 1976:336-383). EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 244

No entanto, segundo o jornalista - testemunha, apesar das reformas a população não demonstrava apoio ao regime, de modo que o governo decidiu atacar em duas frentes: criar a SINAMOS e intervir na imprensa “livre”. O Sistema Nacional de Mobilización Social (SINAMOS) foi criado por meio de decreto em 2 de julho de 1971, seu objetivo era forjar o “homem novo peruano” e sentar as bases para uma nova sociedade. A ideia era organizar a sociedade de acordo com critério “funcional” (camponeses, trabalhadores de diversas categorias, educadores, profissionais liberais, etc.) e piramidal (bairros, município, província e nacional). O SINAMOS foi chefiado pelo general Leonidas Rodriguez Figueroa, mas sua idealização teria sido obra do sociólogo Carlos Delgado, secundado pelo ex-guerrilheiro Héctor Bejar. Esta instituição, apelidada de “aplainadora” teria alcançando a onipresença em todo território nacional, pressionando os trabalhadores a se posicionarem (dividirem) em favoráveis ou contrários ao governo. Esta instituição foi criticada tanto pela oposição – acusada de autoritarismo e manipulação – quanto por partidos que apoiavam o governo – que almejavam ser “herdeiros do legado” da revolução quando houvesse eleições. (BAELLA TUESTA, 1976: 371-380)

Devido à própria profissão do autor, jornalista, a reforma a qual dedicou mais páginas foi a que ficou conhecida por estatuto da imprensa. Tal estatuto foi lançando poucos dias após a destituição da Suprema Corte e a nomeação de novos juízes, em 29 de dezembro de 1969, em meio aos festejos de fim de ano. Tal estatuto garantia a liberdade de expressão como os seguintes limites:

(...) el respeto a ley, la verdad, la moral, las exigencias de la seguridad Integral Del Estado y la Defensa Nacional, así como la salvaguarda de la intimidad del honor personal y familiar. (BAELLA TUESTA, 1976: 235)

As penas para aqueles que excedessem tais limites, muito subjetivos, poderiam ir desde elevadas multas até a prisão. Além disso, previa punições também aqueles que ofendessem o funcionalismo público, além de obrigar os meios de comunicação a abrirem espaços de expressão para suas cooperativas de funcionários. Obviamente tal estatuto foi duramente combatido pelos empresários dos meios de comunicação, pois viam claramente o estabelecimento de mecanismos para censura da imprensa. No entanto, o autor, na lógica de uma testemunha que apenas “narra os fatos”, também reconheceu os “pontos positivos da lei” que continha disposições claras contra as publicações clandestinas, a regulamentação EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 245

de publicações dirigida às crianças e quanto à manutenção das empresas de comunicação em mãos de peruanos. Para o autor, a principal motivação desta lei era silenciar a oposição e distanciar a “opinião pública” do Peru do anticomunismo do continente e aproximá-la de Cuba. (BAELLA TUESTA, 1976:235-239) Cabe lembrar que, no início da década de 1970, a maior parte dos países do continente era governada por ditaduras militares.

A luta judicial e midiática do autor e de seus companheiros da imprensa contra esta lei foi narrada em terceira pessoa, enfocado a falta de argumentos e de apoio popular dos advogados do governo. Baella Tuesta atribuiu autoria do estatuto de imprensa a Augusto Zimmermann, chefe da Oficina Nacional de Información.Este jornalista ressentido também seria o responsável pela transformação de um simples almoço de confraternização entre jornalistas não comunistas num complô contra o governo, que teria inclusive o próprio Baella Tuesta como partícipe, servindo de conexão com o governo brasileiro, à época do tal almoço (fevereiro de 1973) chefiado pelo ditador Ernesto Geisel. Para a construção e difusão desta trama Zimmermann utilizou o jornal Expreso que anos antes fora expropriado pelo governo. A criação deste complô teria amplificado fissuras internas nas forças armadas uma vez que envolveu um país vizinho e, somado à crise econômica que assolava o país levou Morales Bermudez a derrubar Velasco Alvarado (BAELLA TUESTA, 1976: 393-442).

É claro que a situação social e econômica do Peru se agravava a cada dia, especialmente depois do segundo choque do Petróleo (1973); e que, possivelmente, o almoço de jornalistas liberais vinculados aos grandes órgãos de imprensa tivesse um teor de articulação de oposição contra o governo, o que é diferente de um complô. Contudo, o que parece menos provável na trama que teria sido construída por Zimmermann é o envolvimento do governo do ditador Geisel no suposto complô, pois, naquele momento, a diplomacia brasileira estabelecia uma política externa mais independente de Washington, chegando até mesmo a ser o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola comunista dois anos depois do tal almoço (1975). Ademais, o Peru era governado por regime militar, e no limite, uma articulação externa, de um país vizinho para derrubá- lo, poderia ter uma guerra como consequência mais grave.

Ao fazer um balanço final de acerca da “revolução peruana”, o autor se esforça para equilibrar seu testemunho, provavelmente para que seu engajamento em favor das “liberdades democráticas” não se confundisse com uma militância conservadora. Optou EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 246

então por pontuar os acertos e os erros governo de Velasco. As “boas ações” do governo elencadas pelo autor foram: eliminação do paternalismo privado no agro, empresas e atividades profissionais; não ter provocado grande violência (devido ao apoio das FA); nacionalização da IPC, política externa independente (apesar de criticar o “terceiro mundismo”), desmistificou o comunismo (mesmo sem querer); desmistificou a constituição peruana e, por fim, acabou com a crença em triunfalismos messiânicos. (BAELLA TUESTA, 1976:431-437) Ao julgar pelos que o autor chamou de “realizações positivas” do governo, muito provavelmente acreditou no “fim da História” com a “vitória” do liberalismo econômico no fim dos anos 1980 e não julgou a eleição do então outsider Alberto Fujimori um “triunfalismo messiânico”, uma vez que estava inscrito na mesma chapa.

Considerações Finais

Ao findar seu relato, Alfonso Baella Tuesta indicou como o único objetivo cumprido da Revolução imprimir ao governo sentido nacionalista e independente. E como objetivos frustrados: tornar a estrutura do estado mais eficiente, melhorar os níveis de vida da população, moralizar o país e promover a união e a concórdia entre os peruanos. Se por um lado houve um esforço do jornalista liberal em reconhecer que o abismo social era um problema para o país e valorizar as políticas nacionalistas do governo. Por outro, mais que o liberalismo, seu elitismo, demonstrado a partir da condescendência com que apenas pessoas de “berço” deveriam exercer o poder (como era o caso dos generais Montagne, Benavides ou Morález Bermúdez) acaba, de certa forma, explicando as razões daqueles que chamou de ressentidos se esforçarem tanto para destruir a velha ordem.

O conceito de ressentimento até pode ser aplicado a grupos que exerceram o poder durante a presidência de Velasco Alvarado, o que talvez explique parte de seus equívocos e de suas motivações. No entanto, isso não diminui o elitismo e a lógica de grupo daqueles que se diziam liberais, mas nunca reconheceram a meritocracia de fato como um valor, apelando sempre que podiam à lógica da tradição familiar.

O relato-testemunho de Baella Tuesta, mostra que o testemunho – como toda e qualquer fonte – é produto de um processo de disputas múltiplas e, cabe ao historiador analisar e situar os interesses presentes na produção de suas fontes. EL PODER INVISIBLE: UMA ANÁLISE DO “TESTEMUNHO JORNALÍSTICO” DE ALFONSO BAELLA TUESTA SOBRE OS PRIMEIROS MIL DIAS DO GOVERNO DO GENERAL VELASCO ALVARADO ÊÇA PEREIRA DA SILVA 247

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAELLA TUESTA, Alfonso. El poder invisible – los primeros mil dias de Velasco. Lima: Editorial Andina, 1976 https://andina.pe/AGENCIA/noticia-fallecio-periodista-alfonso- baella-tuesta-656037.aspx acessado 16 de julho de 2018 8h56.

HARTOG, François. A testemunha e o historiador. IN ______A evidência da história – o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. P203-228 trad. Guilherme João de Freitas Teixeira.

LOPES, Paula Cristina. A crônica (nos jornais): o que foi? O que é? Repositório Institucional Camões da Universidade Autônoma de Lisboa. http://bocc.ubi.pt/pag/ bocc-cronica-lopes.pdf acessado 12 de agosto de 2018. 248

Nação, soberania e federalismo: a construção do Estado argentino no século XIX

ELION DE SOUZA CAMPOS Doutorando em História Social pelo PPGHIS/UFRJ, bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

O “mito da nacionalidade” e a Revolución de Mayo de 1810

O tratamento de questões referentes a construção do Estado argentino no século XIX demanda a resolução de alguns problemas de definição. Um deles remete ao o chamado “mito da nacionalidade”, gerado por uma historiografia nacionalista argentina fortemente influenciada pela geração romântica do exílio de 1837. Esse mito pressupõe a existência de uma nacionalidade argentina desde a Revolução de maio de 1810, apontando o processo de unificação e construção do Estado como sua consequência. Segundo essa interpretação, os eventos que marcaram o rompimento com o Império Espanhol teriam sido responsáveis por criar um sentimento nacional, ou mesmo, por despertar uma nacionalidade oprimida pelo jugo colonial. De qualquer maneira, esta corrente enxerga laços nacionais, tais como como pertencimento a uma cultura, língua e religião preexistentes à Revolução ou desencadeados pela mesma. Ou seja, a Revolução de Maio de 1810 seria vista como marco fundacional da nação argentina. Conforme buscaremos apontar, esse mito se associa a distorções de sentido no conceito de federalismo, que se interpretado segundo os parâmetros políticos contemporâneos não reflete o pensamento dos atores históricos, incidindo em anacronismo.

A origem desse mito, segundo Wasserman (2001, p. 57-59, 2010, p. 35-36), seria a publicação das primeiras obras consideradas como “verdades históricas” no último terço do século XIX, de Vicente Fidel López e Bartolomé Mitre. Ambos consideraram a NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 249

Revolução como um momento de tomada de consciência de uma nacionalidade que teria sido gestada desde os tempos coloniais. Além disso, o período de fins do século XIX e inícios do XX, seria o da consolidação daquilo que se considera a “Argentina moderna”, marcada pelo fortalecimento do Estado nacional, pelo desenvolvimento de uma economia capitalista integrada ao mercado internacional e pela imigração em massa, a partir do que se gerou uma nova sociedade. Portanto, o mito que remete a construção da nacionalidade à Revolução de Maio atenderia a demandas do novo contexto social.

A consideração da nacionalidade como já presente em 1810 deve-se a uma inquietação que predominou na vida política da segunda metade do século XIX, que se refere à percepção da debilidade da nacionalidade argentina. Por esse motivo, produziu- se uma distorção histórica sobre a política argentina da primeira metade do século A nacionalidade argentina não seria a fonte, mas um resultado gestado a partir dos eventos que eclodiram em de maio de 1810. Este mito seria impulsionado pela preocupação em fortalecer o sentimento nacional, apoiado num princípio das nacionalidades estranho aos contemporâneos da Revolução.

A emergência das soberanias

A história política argentina na primeira metade de século XIX esteve constantemente associada à traição efetuada por novos atores políticos: os caudilhos, que teriam assumido a condução dos negócios públicos das localidades, ocasionando o fracionamento territorial e o personalismo da governança. A esta visão simplificadora, a historiografia sobrepõe uma análise das rupturas entre centro e periferia. Primeiro, entre a metrópole e as colônias e, depois, entre a antiga capital e as províncias. Dessa forma, a crise do Império Espanhol, seguida de sua extinção, gerou uma redefinição das soberanias, com o surgimento de novos poderes baseados nas comunidades políticas: “los Pueblos”.

Malogradas as tentativas de se estabelecer um Estado unificado na primeira década do século XIX, perdurou um estado de “provisionalidad permanente”, onde a soberania das cidades coexistia com governos provisórios rio-platenses constantemente desacatados (CHIARAMONTE, 1993, p. 159). Entre a Revolução de 1810 e o Pacto Federativo de 1831 sucederam quatro tentativas de Assembleias Constituintes (1813, 1816-1819, 1824-1826 e 1828), das quais apenas duas produziram de fato textos constitucionais (1819 e 1826), NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 250

ambos descartados pelas províncias, devido ao teor unitário do Estado que esboçavam. Os governos centrais estabelecidos em Buenos Aires, nesse período, foram soluções provisórias, criadas para durar até que se promulgasse uma Constituição e acabaram por ter vida maior que os prazos que eles mesmos estabeleceram. Atuavam seguindo normas estabelecidas no Império, especialmente las Ordenanzas de Intendentes acrescidas de soluções pragmáticas e, posteriormente a 1817, passaram a seguir um instrumento pré-constitucional, el Reglamento Provisorio. A lentidão na formação das assembleias e o fracasso das Constituições acabaram por prolongar a provisoriedade da situação. A persistência da vigência do direito espanhol ancorava-se naquilo que se conhecia como “la antigua Constitución”. Esta conviveu com legislações posteriores, sofrendo apenas algumas modificações. Tratava-se de uma “Constituição material” segundo os parâmetros do jusnaturalismo, não escrita, que regulava a organização política e as relações entre los pueblos do Rio da Prata (CHIARAMONTE, 1997, p. 159-164).

Entre as bases estabelecidas por essa Antiga Constituição estava o princípio de la retroversión de la soberanía a los pueblos. Desde o século XVI, os monarcas espanhóis buscaram a modificação do direito consuetudinário no sentido da consolidação do absolutismo, intento que fora apenas parcialmente alcançado, visto que elementos das normas medievais, notadamente do direito natural sobreviveram à modernidade. O princípio do Estado misto resistira não apenas às investidas absolutistas dos Habsburgo, mas também às Reformas Bourbônicas, se convertendo em elemento orgânico do contratualismo espanhol. O Estado misto pressupunha a soberania repartida entre o monarca e os reinos. Segundo Annino (2003, p. 154), esse princípio foi fundamental para a monarquia católica garantir a lealdade de uma diversidade heterogênea de territórios, notadamente das colônias americanas. Graças ao desenvolvimento de amplas autonomias territoriais e corporativas, os criollos teriam interpretado essa característica como um reconhecimento de que o exercício da justiça se dava de acordo com os códigos de costumes locais. Guerra (1994, p. 203) parece concordar com essa noção, ao apontar a concepção de pluralidade da monarquia hispânica que sobrevivera na América a despeito das reformas Bourbonicas. Destarte, permanecera, na América a concepção de uma monarquia formada por um pilar europeu e outro americano.

A Antiga Constituição foi mobilizada diante da situação totalmente inédita da crise do Império. A abdicação de Carlos IV em favor Fernando VII, seguida da transferência NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 251

da coroa para José Bonaparte após a invasão francesa da metrópole, fez reforçar a tendência jusnaturalista e insuflar o autonomismo. Criou-se a situação de vacatio regis, percebida tanto na metrópole quanto nas colônias, cuja resposta foi a criação de juntas governativas, a princípio para governar em nome do monarca cativo. Embora a Junta de Governo Central do Reino houvesse reconhecido o direito a participação dos espanhóis americanos e convocado suas representações, a doutrina da retroversão da soberania não previa uma sujeição dos Pueblos à organismos metropolitanos. Antes, o jusnaturalismo estabelecia o vínculo direto com o monarca e, portanto, a vacatio regis criou oportunidade para os diferentes reinos americanos exercerem sua soberania de forma independente da Espanha, ainda que em nome do Rei. Neste sentido, o Reglamento de la división de poderes (1811) introduz as deliberações da Junta de Buenos Aires:

Después que por la ausencia y prisión de Fernando VII, quedó el estado en una orfandad [sic] política, reasumieron los pueblos el poder soberano. Aunque es cierto que la nación había transmitido en los reyes ese poder, pero siempre fue con la calidad de reversible, no sólo en el caso de una deficiencia total, sino también en el de una momentánea y parcial (RAVIGNANI, 1937, p. 600).

Embora a inspiração para a criação das Juntas de Governo no Rio da Prata e na América espanhola, como um todo, fosse a Junta Central, a retroversão da soberania foi interpretada no sentido da autonomia em relação aos organismos metropolitanos. O corolário da igualdade entre espanhóis peninsulares e americanos foi associado à doutrina da monarquia plural. Se a governança de Cádiz foi rechaçada pelos americanos, tampouco a Junta de Buenos Aires predominou sobre as províncias do interior do Rio da Prata. Esse período pode ser caracterizado ainda pelo conflito político e pela sobreposição de soberanias entre novas províncias e a pretensa capital do Estado rio-platense. Sobretudo, foi um período de emergência de soberanias locais que amiúde conflitavam com intentos centralistas, modernizantes e liberais procedentes da elite político-intelectual de Buenos Aires. No entanto, associar diretamente a conjuntura que prevaleceu entre 1810 e 1831 (e mesmo entre 1831 e 1852) com um sistema federalista ou a um estágio precursor deste é incorrer em anacronismo. Mais correto é relacionar o período com a multiplicação de soberanias assimétricas em conflito.

Caso a divisão política do território no período imperial fosse mantida, as províncias rio-platenses seriam: Buenos Aires, Córdoba, Salta, Potosí, Paraguai, Cochabamba, NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 252

Chuquisaca, Charcas e La Paz. No entanto, desde muito cedo esse território viria a se fragmentar. Entre as regiões remotas, as mais rentáveis eram, sem dúvida, as do Alto Peru onde desde 1809 houve tentativas de estabelecimento de junta. Todas elas, no entanto, foram sobrepujadas pelas tropas do Peru, cujo vice-rei mantivera-se leal a Espanha. Duas campanhas militares (1810 e 1813) organizadas por Buenos Aires fracassaram na reconquista do Alto Peru. O território só seria conquistado por Simon Bolívar (1820) após José de San Martin subjugar Lima (1817), no entanto, jamais voltaria a integrar-se novamente à antiga capital. O Paraguai não reconhecera a autoridade da Junta de Buenos Aires e resistira às investidas chefiadas por Manuel Belgrano, vindo a constituir sua própria Junta em 1811 e seguindo, a partir daí, uma trajetória política isolada (BUSHNELL, 2009, p. 144-155).

O caso de separação mais emblemático foi o de Montevidéu. A princípio, o cabildo da cidade reconheceu a junta de Buenos Aires, no entanto, sob a liderança de Gervasio Artigas, insurgiu um movimento em 1811 que propunha a autonomia da provincial na forma de uma confederação de laços pouco estreitos. A confederação proposta por Artigas levantou a bandeira da soberania particular dos Pueblos contra o centralismo bonaerense. Propunha relações interprovinciais baseadas em pactos estabelecido pelas províncias umas com as outras (FREGA, 2013, p. 1-12). As instruções firmadas por Artigas, para os deputados que representariam a Banda Oriental na assembleia do ano XIII atestam a exigência intransigente de independência e de implantação de uma confederação:

Primera.te pedirá la declaración de la independencia absoluta de estas Colonias, que ellas están absueltas de toda obligación de fidelidad a la Corona de España y familia de los Borbones y que toda conexión política entre ellas y el Estado de España es y debe ser total.te disuelta. Art. 2º. No admitirá otro sistema que el de confederación para el pacto reciproco con las Provincias que formen nuestro Estado (C.N.A.A., 1974, p.103).

O artiguismo implicou na condenação do federalismo, em paralelo à demonização do caudilho oriental, pela elite política de Buenos Aires. Devido à indissociação entre os sistemas federalista e confederalista, o federalismo foi associado intimamente à anarquia e ao mandonismo. A imprensa portenha associava o federalismo ao rancor dos povos rio-platenses contra o “capitalismo” da cidade. NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 253

Se asegura por muchos que convendría que todas las provincias se llamasen a si solas y que dispusieran de su destino con absoluta independencia de cualesquiera otras. Los hijos de Buenos Aires o juzgan descaminados estos sentimientos, y entonces son llamados porteñistas, capitalistas &ª o se avienen a uniformar su opinión y su conducta con las de los demás pueblos, y entonces cuesta trabajo entender lo que significa el espíritu de provincia. ¿Qué nos resta pues que elegir? Hablemos sin pasión. Todos conocen la necesidad de unirnos para salvarnos, y que todos los pueblos de las provincias del río de la plata, sea cual fuese su capital, compongan una sola familia animada de unos mismos sentimientos, que tengan unos mismos intereses y que participen de unas mismas ventajas, de un mismo poder, y de una misma gloria (Gazeta de Buenos-Ayres, 1816, p.3).

Mesmo entre as províncias que reconheceram a autoridade da Junta de Buenos Aires, a concordância com o centralismo esteve longe de ser total. O primeiro embate se deu por conta da questão do estabelecimento das juntas Provinciais. O Reglamento de 10 de fevereiro de 1811 visava manter a estrutura herdada da Ordenança dos Intendentes do Vice-Reino. esta, as províncias seriam organizadas de acordo com as cidades cabeceiras de Intendências que, por sua vez, centralizariam a administração provincial e estariam diretamente subordinadas à Capital. A primeira cidade a protestar foi Jujuy, que pediu sua autonomia em relação à Salta, a quem estava subordinada segundo as Ordenanças. A proposta do Cabildo de Jujuy incluía 18 artigos que versavam sobre a autonomia do povoado, sua auto identificação como uma pequena república e sua sujeição unicamente à Junta de Buenos Aires:

1º Que en el nuevo Sistema de Gobierno esta Ciudad con el recinto de su jurisdicción restituyéndosele la recién formada subdelegación de la Rinconada, debe ser reputada como una pequeña república que se gobierna a sí misma […]. 4º Por consiguiente debe abolirse la dependencia de los Intendentes de Salta, y en su lugar crearse un Pretor que en esta ciudad tenga las mismas facultades, o por mejor decir, corra con todos los ramos que están encargados a los Intendentes (Apud CHIARAMONTE, 1997, p. 372).

As cidades de Mendoza, Tucumán e Tarija seguiram imediatamente o exemplo de Jujuy e peticionaram suas autonomias, que seriam materializadas no direito de estabelecer uma junta própria. Assim, as três províncias originais, cujos territórios formariam aquilo que hoje constitui o território argentino, Buenos Aires, Córdoba e Salta, se fragmentariam em 14 províncias diferentes. Tal fragmentação evidencia a identificação dosPueblos com as cidades que abrigavam os Cabildos e o seu zelo pela soberania local.

A princípio, a reivindicação de soberania dessas cidades não indicava uma adesão ao confederalismo, ou mesmo à Liga dos Povos Livres. Antes, como dá a entender o presbítero Juan Ignácio de Gorriti, deputado da cidade de Jujuy, se tratava da petição NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 254

para que se reconhecesse a autonomia das cidades e para que estas se relacionassem diretamente com o poder central estabelecido na capital, independentemente das cabeceiras de intendência.

No veo, repito, un solo inconveniente para que cada ciudad se entienda directamente con el gobierno supremo. Santa Fe, Corrientes, Luján, toda la Banda Oriental, se entienden directamente con esta Junta superior, sin que necesiten una mano intermedia: y así sus asuntos circulan con rapidez y experimentan las ventajas de él actual sistema. ¿Por qué no lograrán igual suerte todas las demás Ciudades, si todas tienen iguales derechos? Se podrá objetar que vamos a tocar en el Sistema federaticio: pero yo repongo que vamos a estrechar y fortificar la unión de todo el Cuerpo del estado con el gobierno supremo constituido por los mismos pueblos. Este queda hecho el centro de la unidad: el punto único a donde van a terminar todas las relaciones de cada pueblo (Apud CHIARAMONTE, 1997, p. 379).

Com a acefalia provocada pela crise monárquica, os novos depositários da soberania, que progressivamente vão se impor às tentativas de centralização, são os Pueblos, identificados imediatamente às cidades. Estas se estabeleceram um arranjo político onde coexistiam três formas de autonomia: a soberania total, caso do Paraguai; uma, que não descartava a concessão de parte da autonomia ao órgão de governo central, de forma confederalista; e a sujeição ao Executivo centralizado. Essas três maneiras de soberania se sucederam e coexistiram, sem que nenhuma delas pudesse se estabilizar, fosse num sistema de união ou de confederação (CHIARAMONTE, 1997, p. 159-165).

A entidade real por detrás da soberania de los Pueblos foi a cidade, cujo governo era exercido pelos Cabildos que, por sua vez, se converteram em representantes do soberano enquanto este encontrava-se cativo. Entretanto, em paralelo a essa primeira forma de poder constituída pela cidade, formou-se um governo de pretensões centralizadoras, que aspirava a um novo tipo de autoridade, estabelecer um Estado sobre o antigo território do Vice-Reinado do Rio da Prata. Contudo, a nova soberania necessitaria ser legitimada pela primeira. Essa legitimação dar-se-ia pelo envio de representantes, deputados para atuar na Junta Central de Buenos Aires. Portanto, esse pretenso novo Estado rio-platense apenas poderia existir enquanto referendado pelas cidades. A primeira metade do século XIX foi marcada pela busca infecunda por consolidação do novo Estado, enquanto a soberania das cidades apenas tenderia a crescer. O surgimento das cidades subalternas e a ampliação da zona rural subordinada às cidades originais propiciou uma transformação na soberania dos Pueblos, que passará a se configurar em província (CHIARAMONTE, 2016, p. 1339-1469). NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 255

Segundo Saguir (2007, p. 91-121), os interesses econômicos que diferenciavam Buenos Aires, as províncias do interior e as províncias do litoral do Rio da Prata, são fundamentais para se compreender as dificuldades institucionais do período. Nesse sentido, o intento portenho seria a manutenção dos privilégios econômicos de capital, adquiridos desde a formação do Vice-Reino no século XVIII. O choque se deu notadamente entre os liberais de Buenos Aires e os conservadores das províncias do interior, enquanto os primeiros mobilizaram na assembleia um contratualismo inspirado nas Revoluções Francesa e Americana, os segundos atuavam a partir da Antiga Constituição. Isso fica evidente no conflito pela representação política, que se fará presente desde a Revolução de Maio até 1828, tendo seus pontos de maior tensão nas Constituintes. As províncias concebiam a representação na Assembleia segundo parâmetros do “mandato imperativo”, em que o deputado era um apoderado del Pueblo e como tal, deveria seguir estritamente as instruções que portava. No entanto, a elite política bonaerense defendia um mandato inspirado no contratualismo rousseuniano, conforme expresso no periódico O Censor de Buenos Aires:

Si el diputado es enviado por una nación a otra, a un congreso o asamblea de diferentes naciones, semejante diputado está bajo la protección del derecho de gentes, y debe considerarse como ministro público, siempre que su comitente sea reconocido. Pero los diputados que las provincias, ciudades, condados, o corporaciones mandan a un congreso, cortes, o asamblea general, no son ministros públicos: son solamente personas públicas, que no gozan la protección del derecho de gentes, sino del derecho público del país: sin exceptuar las provincias que se dicen unidas en una soberanía, por la misma calidad de estar comprometidas a las condiciones de la unión. A tales diputados les es imprescindible la inviolabilidad que sea garante de la libertad de sus funciones (El Censor, 1816, p. 1).

Os liberais portenhos, centralistas, combateram ferrenhamente o mandato imperativo, defendendo um conceito de representação livre, onde os representantes eram considerados diputados de la nación e não das províncias que os apoderavam. A estratégia centralista se evidencia quando se tem em mente as limitações das províncias para enviar seus representantes. Muitas delas não tinham condições financeiras para custear o translado e a estadia dos deputados ou, ainda, não contavam em sua população com um número de cidadãos preparados para a tarefa. Isso levou algumas a buscarem indivíduos abastados que tinham condições de arcar com o custeio da a própria viagem e houve ainda a situação em que províncias do interior buscaram homens de Buenos Aires para os representar (SAGUIR, 2007, p. 134). Os centralistas, em maioria lograram que a Assembleia declarasse que os representantes eram deputados da nação, situação que se NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 256

repetiria no Congresso de 1816, tornando a questão da representação um emblema da divisão entre centralistas e autonomistas e, futuramente, entre Unitários e Federalistas.

Em grande medida, o esforço de organização estatal foi atrapalhado pelas guerras que ocorriam em paralelo aos Congressos. Além da guerra de independência contra as forças lealistas espanholas, a guerra civil entre Buenos Aires e províncias insubordinadas, da Liga dos Povos livres consumiu recursos humanos e materiais, além de contribuir com o retardo das decisões políticas. As perdas dos territórios do Alto Peru, do Paraguai e da Banda Oriental, além do custo para manter as províncias do Litoral e do Interior sob o seu domínio foram um fator de desordem na política do Rio da Prata e contribuíram para a precariedade do Estado. Com a perda do comércio da prata alto-peruana, o esforço de guerra passou a depender exclusivamente das rendas aduaneiras e a liberação comercial foi uma medida que visava justamente garantir os recursos necessários para a manutenção da guerra. Como consequências econômicas, a manufatura e o comércio do interior foram profundamente abaladas pela concorrência com os produtos estrangeiros. Os produtos pecuários tiveram os preços inflacionados, as cidades do litoral protestavam contra o monopólio aduaneiro da capital e as importações superavam as exportações (SAGUIR, 2007, p. 83-91). Particularmente para o Interior e para o Litoral, as consequências das guerras foram desastrosas, indo muito além das perdas econômicas. A violência e a destruição afetaram profundamente suas estruturas e fizeram crescer a desconfiança em relação às elites de Buenos Aires.

Durante o segundo congresso constituinte (1816-1819), Buenos Aires viu surgir no seio de sua própria elite um movimento confederalista. O “federalismo portenho” nasceu a partir da percepção da hostilidade das demais províncias contra a capital, somada ao cálculo de que seria muito mais proveitoso abandonar o projeto de dominação política sobre as demais províncias, mantendo-se os privilégios econômicos relacionados ao porto. Essa proposta visava tornar Buenos Aires uma província autônoma como qualquer outra dentro de um desenho de confederação. Em carta, um grupo de cidadãos bonaerenses se dirigia ao Congresso em 6 de julho de 1816:

El pueblo, o más bien, algunos individuos del pueblo de Buenos-Ayres, representan al soberano Congreso que aquella capital renunciaba expresamente con la mayor generosidad la gloria de presidir, como tal, a las otras provincias, y quería reducirse a una de las varias que forman la Unión, NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 257

gobernándose, y arreglando por sí misma su administración interior, ofreciendo contribuir con toda clase de auxilios relativos a la defensa común, ordinarios y extraordinarios, que quepan en sus esfuerzos, y protestando la adopción de esta medida como un remedio a los desórdenes nacidos de las continuas quejas y querellas de los pueblos contra la capital, acusándola de despotismo, confundiendo el de los gobiernos con el de la cuidad donde residen (RAVIGNANI, 1937, p. 232-233).

Na imprensa, os Unitários rechaçavam o “federalismo portenho”:

Entre la multitud de maquinaciones con que se pretende extraviar el espíritu público, la más artificiosa es el proyecto de una federación, bajo que quieren constituir desde luego los Pueblos Unidos, alterando así la forma presente con la cual son administrados, y tentando una variación de que esperan el logro de sus pretensiones privadas (El Independiente, 1815, p.6).

La Gazeta de Buenos Aires, órgão oficial do governo, repercutia o antifederalismo defendendo o sistema de governo centralizado.

Hemos llamado con este nombre, a una asociación de gobiernos, que, conservando su independencia mutua, solo permanecen unidos por vínculos políticos exteriores. Semejante constitución, es singularmente viciosa en sí, y pésima para el estado actual de las provincias. Los Estados federados reclaman, por una parte, sobre los individuos de su territorio, o sobre sus municipalidades una jurisdicción, que no debieran tener al mismo tiempo, que pretenden conservar, respecto del poder central una independencia que no debe existir. Así, el federalismo viene a ser compatible con el despotismo en lo interior y con la anarquía en lo exterior. Los ejemplos de esta verdad están tan inmediatos, y son tan sensibles especialmente en ese país que excuso añadir una sola palabra sobre esto (Gazeta de Buenos-Ayres, 1816, p.4).

Apesar da oposição dentro e fora de Buenos Aires, a Constituição ficara pronta em 1819, apresentando uma estrutura absolutamente centralista, que basicamente mantinha o desenho herdado do Vice-Reino do Rio da Prata, conservava os privilégios econômicos da Capital e fazia poucas concessões às províncias. A ausência de representantes do Litoral na comissão que redigiu a Constituição e o predomínio de deputados da Capital facilitou o acordo entre Buenos Aires e o Interior em torno de um projeto de organização do país. O desenho constitucional de 1819 foi identificado pelas províncias do litoral como muito semelhante àquele do Diretório, que regeu o governo durante os anos anteriores (1814-1819). O descompasso de interesses levou as províncias a considerarem a secessão como uma alternativa.

O centralismo da Constituição de 1819 fez com que a Carta fosse rechaçada pelas Províncias que, a partir de então, passaram a organizar-se de maneira independente, como NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 258

Estados soberanos de fato. Uma usual interpretação do caudilhismo rio-platense caracteriza o surgimento desses Estados provinciais como uma faixada para o predomínio do poder privado local. O caudilho emergiria dentro de uma situação de baixo desenvolvimento social como uma liderança baseada no domínio das riquezas locais e do controle militar privado, sem maiores projeções no âmbito do direito. No entanto, uma análise simplista do fenômeno do caudilhismo pode deixar de lado o alto grau de organização estatal e de desenvolvimento político e jurídico das províncias que afirmam sua independência a partir de 1819 (CHIARAMONTE, 2016, p. 1539-1552).

Emergência e consolidação do confederalismo

O longo período entre 1819 e 1852 foi caracterizado pelo estabelecimento do confederalismo como sistema político. Entre o rechaço da Constituição de 1819 e o pacto federativo de 1831, prevaleceu a autonomia política das províncias que mantiveram entre si frágeis laços bilaterais. Nesse período houve duas novas tentativas fracassadas de se estabelecer uma Constituição (1824-1826 e 1828). Ambas se deram sob a liderança de Buenos Aires e foram frustradas pela negativa das elites provinciais em abrir mão de parte do seu poder em nome do Estado.

Na segunda década pós-revolucionária as tentativas de organização constitucionais foram lideradas pela facção política autodenominada “Unitários”, cujo principal expoente foi Bernardino Rivadavia. Este político bonaerense foi elevado a ministro pelo governador militar de Buenos Aires Martín Rodríguez em 1821 e logrou executar uma série de reformas liberais de cunho modernizador. Entre elas a supressão do Cabildo, uma espécie de depositório da Antiga Constituição. Rivadavia declarou em discurso:

Que un Gobierno Monárquico absoluto en el que la Soberanía Nacional estaba personificada al individuo que la ejercía por título de sucesión, era indispensable reservarse un resto de autoridad para los Pueblos deponiéndola en manos de los que en aquel orden obtenían su representación; pero que este establecimiento era incompatible con un Gobierno Representativo en que esa autoridad suprema ha retrovertido a la sociedad, y se ejerce con toda la plenitud de un sistema liberal por medio de, aquellas autoridades que tienen la viva representación de los Pueblos con funciones reales que les ha circunscrito la naturaleza del Gobierno actual y los pactos sociales: que en este estado aparecen los Cabildos sin una atribución real, y útil al Publico (Apud CHIARAMONTE, 1997, p. 437). NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 259

A oposição ao projeto rivadaviano surgiu da facção federalista da Província de Buenos Aires, cuja liderança recaiu sobre Manuel Dorrego e Manuel Moreno. O federalismo emergiu com força singular a partir do momento em que o governo de Buenos Aires convidou as demais províncias para uma nova Assembleia Constituinte a se realizar a partir de 1824. Neste momento, o sucesso das reformas em Buenos Aires levara outras províncias a espelhar suas instituições, motivo pelo qual elites intelectuais e políticas do interior passaram a apoiar o novo esforço constituinte. Além disso, havia a necessidade de organização de um corpo diplomático acreditado para negociar o reconhecimento da independência pela Espanha, o que abriria as portas para o reconhecimento das demais potências do conserto internacional. (ZUBIZARRETA, 2014, p. 28-34).

Meses antes do início dos trabalhos da Assembleia, terminara o mandato de Martín Rodríguez e a Sala de los Representantes elegera o general Gregório Las Heras. Dom Bernardino, ressentido por não ter sido eleito rejeitou permanecer no cargo como ministro e retirou-se em missão diplomática alegando apoio a renovação política. No entanto, o que se verificou posteriormente na foi um rompimento entre rivadavianos e ministeriais na questão mais polêmica que entrou em discussão: a da Banda Oriental. Forças orientais lideradas por Manoel Oribe se levantaram em 1825 contra a dominação brasileira, declarando-se favoráveis a uma união com as demais províncias do Rio da Prata. Diante da negativa do governo portenho em entrar em guerra com o Brasil, tanto unitários rivadavianos quanto federalistas se opuseram ao governo. A estratégia dos unitários era utilizar a guerra e o seu apelo para agilizar o processo de formação do Estado. Com a predominância dos unitários, a Assembleia decidiu em 1826 pela reincorporação da Banda Oriental com a declaração de guerra ao Império do Brasil e, em seguida, pela nomeação de Rivadavia como presidente (ZUBIZARRETA, 2014, p. 54-61). No Brasil, o órgão oficial do Império caracterizava o governo estabelecido em Buenos Aires como:

Hum Governo ainda convulso sobre as bases da sua política a; hum Povo sem unidade moral, em oposição consigo mesmo, dividido em facções; hum tesouro enxague; paisanos em lugar de Soldados; hum Porto descoberto por falta de meios de defesa; tudo nos fez ver que o Império devia encarar o orgulho de Buenos Ayres, com desprezo que merecia sua louca temeridade. Julgava talvez essa Republica, que só com os princípios de seu Systema, ajudados pela propagação de seus escriptos incendiários, chamaria ao seu partido a família dispersa dos Democratas, e poria em comoção o Collosso Imperial (Diário Fluminense, 1826). NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 260

Zubizarreta (2014, p. 61) salienta que as principais diferenças entre Unitários e Federais representaram contradições presentes na política rio-platense desde a Revolução de Maio de 1810. Para além da controvérsia sobre a forma de governo, centralizado ou confedederalista, a minoria federalista reclamava que o Congresso assumia funções legislativas, questionava o poder do Executivo na deliberação de ordens antes mesmo que a Constituição fosse promulgada e questionava a legitimidade de os representantes votarem de acordo com as suas próprias convicções quando estas diferiam das posturas de suas províncias de origem. Essa última em especial remontava sobre se o deputado era um representante da província ou da nação.

A presidência de Bernardino Rivadavia, bem como a autoridade da Assembleia para legislar foram legitimadas pela guerra contra o Império do Brasil. Aprovaram-se diversas propostas unitárias a despeito da minoria Federalista Sem dúvida, a lei mais polêmica foi a de nacionalização da Cidade de Buenos Aires, que na prática acabava com a Província homônima, na medida em que nacionalizava sua cidade Capital e criava duas províncias em seu território. O mais importante da medida era que as rendas do Porto seriam nacionalizadas, facilitando sua distribuição entre as demais províncias, por isso desagradava a uma parte significativa da elite provincial portenha. Se para Buenos Aires a promulgação de uma Constituição unitária já atraia olhares desconfiados das demais províncias, com a capitalização, a oposição federalista intraprovincial se acirrava ao ponto da militarização do conflito. (ZUBIZARRETA, 2014, p. 61-67). Se para os rivadavianos era necessário um sistema centralizado para conduzir uma reforma liberal, para as elites políticas acaudilhadas das províncias a perda da soberania era inadmissível.

Para que a Constituição de 1826 entrasse em vigor, era necessário que uma maioria de províncias a acatasse. Para isso, o Executivo central comissionou notáveis para levar a versão final da carta e justificar a mesma nas províncias, no entanto, diversas a rejeitaram antes mesmo de ser lida. Alguns caudilhos imediatamente levantaram-se em armas. A desconfiança em relação ao unitarismo se acentuou durante a guerra com o Brasil devido aos recrutamentos forçados. Alguns governos provinciais recusavam-se ao envio de homens temendo que essas tropas se voltassem contra eles no futuro. As populações provinciais repudiavam o recrutamento, que fazia aumentar o descrédito já grande pelos Unitários, devido às suas investidas contra a Igreja. Enquanto as províncias suportavam o peso dos recrutamentos, a capital arcava com grande parte dos custos da guerra. O bloqueio do NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 261

Porto pelos brasileiros levou o governo a emitir uma farta quantidade de moeda para tentar superar a falta de entradas, o que gerou uma enorme inflação. A gota d’água foi a crise política gerada pela desobediência do ministro encarregado das negociações diplomáticas com o Império Brasileiro, que abriu mão do direito sobre a Banda Oriental. Rivadavia renunciou ao cargo em junho de 1827 (ZUBIZARRETA, 2014, p. 67-72).

O período que se seguiu a 1827 representou na política a violência e a militarização que a sociedade rio-platense vivia desde o momento em que se declarou guerra contra o Brasil e estouraram as guerras civis pelo interior das províncias. O partido unitário, anteriormente liderado pelos liberais ilustrados terá em substituição, homens de armas, líderes de tropas e caudilhos. Isso reflete justamente cultura de violência e crueldade da sociedade, que acirrou de geração em geração o descompasso entre os projetos políticos. A região se tornou uma das mais violentas do seu tempo. Tentou-se estabelecer o unitarismo pela força e a reação de seus antagonistas era, de igual modo, feita pelas armas.

“Federalismo” e “confederalismo” no Río de la Plata (1819-1853)

Fracassados os intentos de se estabelecer constitucionalmente um Estado nacional, em moldes unitários nos anos 1820, seguir-se-iam longos anos em que as províncias rio-platenses experimentariam um sistema político caracterizado por um frágil pacto confederalista. A terminologia utilizada nos escritos da época não ajuda na compreensão desse processo. Pelo contrário, a utilização pelos atores políticos do termo “federalismo” apenas sedimenta ideias errôneas sobre a política rio-platense entre 1819 e 1853. De fato, o que os atores desse período entendiam como federalismo era um sistema onde estados independentes ligavam- se por pactos bilaterais, resguardando a sua soberania, conforme propunha Montesquieu, ou nos moldes da Confederação Helvética (CHIARAMONTE, 2016, p. 1785-1851).

O conceito de federalismo passou por uma renovação semântica a partir da Constituição da Filadélfia, elaborada em 1787 e ratificada em 1788. Nela, se inaugura uma solução política completamente nova, onde soberanias justapostas convivem em uma relação assimétrica, criando-se um ente novo: o Estado Federal. No caso norte-americano, o Estado Federal surge para substituir justamente os “Artigos da Confederação e União Perpétua”, de 1781, por sua ineficácia em organizar a nação. Portanto, a Constituição dos Estados Unidos teria intenção muito mais de estabelecer a união do que de manter NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 262

a separação entre Estados. Seria um anacronismo considerar que os atores políticos do Rio da Prata, no início do XIX estivessem querendo designar um Estado federal quando utilizaram o termo federalismo. De modo geral, todas as tendências autônomas das províncias argentinas foram interpretadas pelos atores políticos como federalismo. Por isso, a utilização irrefletida do conceito pela historiografia argentina levou muitas vezes a um deslocamento de sentido, no qual foi frequentemente entendido como dissociação, enquanto seu sentido jurídico-político atual indica a união. O federalismo conforme foi gestado nos Estados Unidos apenas seria referenciado pela Geração Romântica de 1837, que no exílio, apropriou-se de ideias unitárias justapondo-as ao liberalismo, ao romantismo, ao nacionalismo, ao socialismo utópico e à interpretação da experiencia norte-americana (KATRA, 1988, p. 525-549; MYERS, 1998, p. 383-443).

Entre os intelectuais dessa geração, dois deles dão testemunhos significativos para a compreensão do conceito de Federalismo. Domingo Faustino Sarmiento parece indicar uma compreensão de federalismo como união e não separação entre Estados independentes. Conhecedor de obras como O Federalista e as de Alexis Tocqueville, o autor san-juanino apresenta uma noção bem mais aproximada da tradição norte-americana que os seus antecessores. Sarmiento refuta a ideia de que o Estado argentino desenhado pela Constituição de 1853 seria uma “Confederação”, conforme expresso em seu título. Em sua interpretação, a incompreensão do sistema federativo estaria justamente na raiz do fracasso do federalismo argentino.

Queda, pues, establecido, a nuestro juicio, que la palabra Confederación usada en la Constitución Argentina es simplemente una denominación introducida por el uso oficial de la época que precedió a la Constitución, y conservada por consideraciones de hecho, pero sin darle el sentido político que ella envuelve. Es designación de un país Confederación Argentina, correspondiente a Estados Unidos; siendo digno de notarse esta contraposición, llamándose unidos, estados que no lo estaban antes entre sí, sino por convenios puramente federativos, y Confederación. la reunión de las provincias en que se subdividía una demarcación gubernativa que no conoció nunca otro gobierno que el de la centralización en un solo cuerpo político (SARMIENTO, 1853, p. 67-68).

Esta distorção tampouco passava desapercebida a Juan Bautista Alberdi. O intelectual tucumano aponta uma dupla origem para o Estado argentino, federal e unitária. Ao mesmo tempo em que: “durante la revolución en que se apeló al pueblo de las Provincias, para la creación de una soberanía independiente y americana, los antecedentes del centralismo monárquico y pasado ejercieron un influjo invencible en la política moderna” (ALBERDI, NAÇÃO SOBERANIA E FEDERALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO NO SÉCULO XIX ELION DE SOUZA CAMPOS 263

1915, p. 115); havia também antecedentes de caráter localistas que: “hacen imposible por ahora la unidad indivisible del gobierno interior argentino, y que obligarán a todo sistema de gobierno central, a dividir y conciliar su acción con las soberanías provinciales” (ALBERDI, 1915, p. 116). Diante dessa percepção, Alberdi propõe um sistema de governo capaz de aglutinar a dupla origem do Estado argentino:

El poder respectivo de esos hechos anteriores, tanto unitarios como federativos, conduce la opinión pública de aquella República al abandono de todo sistema exclusivo y al alejamiento de las dos tendencias o principios, que habiendo aspirado en vano al gobierno exclusivo del país, durante una lucha estéril alimentada por largos años, buscan hoy una fusión parlamentaria en el seno de un sistema mixto, que abrace y concilie las libertades de cada Provincia y las prerrogativas de toda la Nación: solución inevitable y única, que resulta de la aplicación a los dos grandes términos del problema argentino, - la Nación y la Provincia-, de la fórmula llamada hoy a presidir la política moderna, que consiste en la combinación armónica de la individualidad con la generalidad del localismo con la nación, o bien de la libertad con la asociación; ley natural de todo cuerpo orgánico, sea colectivo o sea individual, llámese Estado o llámese hombre (ALBERDI, 1915, p. 117-118).

O testemunho de Alberdi chama a atenção para a questão de que as províncias do Rio da Prata eram, de fato Estados. A confusão terminológica em torno do vocábulo província associa-se diretamente à questão conceitual do federalismo. Na medida em que que as soberanias confederadas eram chamadas províncias surge a indefinição sobre a condição político-jurídica das mesmas. A peculiaridade aqui se dá pela manutenção da terminologia utilizada pelo império hispânico e, posteriormente, os primeiros governos centrais unitários conservaram seu uso de forma proposital. Ao fim da primeira década revolucionária, as cidades soberanas passaram a exercer seu controle sobre uma área muito maior, fazendo surgir verdadeiros Estados nomeados como províncias. Com o malogro dos intentos centralistas esses Estados provinciais passaram a constituir soberanias independentes, daí a anomalia de haver uma confederação formada por províncias.

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José Carlos Mariátegui e os tempos históricos na educação Latino-Americana

ELISA MARIA DOS ANJOS Doutora em Memória Social; Professora Adjunta do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA; email [email protected].

Diversos pensadores latino americanos buscaram pensar a noção de Estado, cidadania, nação e política. Entretanto, José Carlos Mariátegui representa um rol, muito restrito, de pensadores que estabelecem uma interface entre projeto político de nação, a concepção de povo e educação.

Ainda que o mote do seu trabalho abrangesse uma análise mais ampla sobre as diversas estruturas que constituem uma sociedade republicana, para o propósito da presente reflexão, esses pontos de contato são representativos para ilustrar a relevância à referência a este autor.

Refletir acerca dos pontos de contato entre o Brasil e os demais países com o qual compartilhamos existência na América Latina é importante, porém hoje, um imperativo. A presente reflexão é fruto dessa consciência sobre esta necessidade de discutirmos mais reiteradamente o pensamento social latino-americano, e foi gestada, de forma mais concreta, a partir de alguns diálogos travados com colegas também docentes atuante, neste momento e que comungam entendimentos semelhantes.

Estamos vivendo um momento político muito expressivo no Brasil, o que só ratifica essa necessidade, uma vez que podemos perceber como a América Latina parece expressar um rol de golpes no século XXI1, ratificados por discursos, muitos dos quais,

1 Somente para citar alguns dos eventos que resultaram em deposição ou tentativas de deposição de governos democraticamente eleitos, temos o de Fernando Lugo no Paraguai (BRIEGER, 2012); Jean-Bertrand Aristide no Haiti (RODRIGUES et all, 2007); Hugo Chávez na Venezuela (PEREIRA, 2014). JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 267

de caráter protofascista, que justificam a “novidade” que representaria, nesse contexto, esse conjunto de transformações.

Uma questão, que exige aprofundamento na discussão hodierna, é o entendimento de que não se trata de evitar ou mesmo, acabar com o discurso conservador em nossa sociedade. Sua presença e existência não se constitui necessariamente, como um problema. A história, nesse aspecto, nos fornece um “mapa” seguro e concreto uma vez que, o contraditório é de fato, benéfico, pois os conflitos que os diversos pontos de vista fazem emergir estabelece os nossos limites: seja na experiência empírica de nossas ações na cotidianidade, seja no bojo de nossas crenças acerca de nossos posicionamentos. O conflito, assim, tem uma função social. Entretanto, o conflito referenciado aqui, deve ser aquele cujo embate utiliza como “arena” o campo das ideias.

A realidade, contudo, expressa em atos, ofensas, assédios, e mesmo violência nesse momento de nossa historiografia é a experiência do convívio impossível de diferentes formas de intolerância extrema. E a intolerância, sabemos, não acolhe, em seu bojo, a possibilidade de não estar de posse da razão única e absoluta sobre os fenômenos, pois os fatos não têm importância, nesse contexto.

Uma das formas de intolerância que os brasileiros cultivam há muito tempo no senso comum é o entendimento de uma suposta superioridade com relação aos nossos companheiros na América Latina. Tradicionalmente, essa intolerância tem sido “açucarada” através da jocosidade, das brincadeiras, que tem a pretensão de tornar esse tipo de imaginário e de ações com um caráter quase folclórico.

Por isso também, a importância desse e outros eventos que possam somar às discussões sobre o pensamento social latino-americano uma vez que as memórias, especialmente as que não possuem condições democráticas ou sociais de emergirem naturalmente na sociedade “ prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados” (POLLAK, p. 4, 1989).

Vale ressaltar o outro significado de memória, esse bem pouco explorado: memorar com, não permitir o esquecimento, nesse momento de memórias tão tênues, em que se cogita a existência de fatos que a historiografia já reconhece. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 268

É nessa perspectiva, de “apagamento”, até mesmo, de fatos históricos via discurso repetidos à exaustão por diferentes canais midiáticos, em que a própria noção de “real” é discutida, não do ponto de vista filosófico, mas histórico, que a premissa apontada por Pollak, acerca da memória subterrânea expressaria duas vertentes: uma ação racional que a mantém nesse estado, ocultada de todos, e uma outra perspectiva, esta, de caráter subjetivo, que justamente, a impele “para fora”. Essa imagem criada pela autor nos produz uma percepção de enclausuramento e são as portas desse “cárcere”, que devemos agora escancarar nos moldes da metáfora de Eduardo Galeano2, expondo nossas mazelas, que expressam contínuos pontos de contato, propositadamente invisibilizados, com o intuito, talvez, de permanecermos com uma concepção de isolamento em relação aos demais companheiros da América Latina, mesmo agora, neste nosso contexto de golpe de Estado em curso em nosso território, somando-se aos demais que já ocorreram ou estão ocorrendo em nosso continente, e que constituem-se em exemplos expressivos desses elementos análogos de construção de um tecido social, e uma herança colonial, de um passado que insiste não passar. Tais são os pontos de contato que gostaria aqui de realçar.

Assim, escolhi como foco a educação para esse exercício intelectual e, a partir desse ângulo, um autor: José Carlos Mariátegui para me auxiliar nesse roteiro estabelecendo algumas coincidências entre a experiência da educação relatada por Mariátegui e o processo de construção educacional do Brasil, no que tange ao acesso e às estruturas que integram a mesma na realidade brasileira

Mariátegui discutia em sua mais famosa obra, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana que sem o índio, sem o indivíduo do povo, aquele que consubstancia a materialidade do estado-nação que se deseja construir não há “peruanidade” (p. 87, 2010), portanto, tal escolha neste momento, tampouco constitui-se como aleatória uma vez que, um projeto de controle de nossa soberania está em curso. Nesse projeto, a necessidade de tornar banal todas as estruturas, que estão sendo cooptadas, acontece via supressão das humanidades. Estes conteúdos, de uma forma geral, estão sendo colocados em xeque, nesta etapa tão característica do atual governo.

Uma das mais expressivas ações, acerca da educação em nosso território, talvez seja a

2 A referência aqui, é ao título expressivo da sua obra “As veias abertas da América Latina”. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 269

viés existente através da proposta da atual BNCC3 que claramente, vai contribuir para uma precarização do ensino, uma vez que, o modelo de currículo proposto determina limites específicos com um objetivo perfil classista que em médio e longo prazo também vão produzir efeitos nas universidades ao impactar o público que vai acessá-la seja na compreensão do rol que constituem as ciências sociais e humanas, que reitero, estão sob ataque frontal, neste momento de nossa história, seja pela classe social dos indivíduos que lograrão tal acesso.

Progressão do projeto de Educação

A nossa história, a partir da colonização europeia é marcada por uma oferta de educação em que a exclusão dos componentes das humanidades é uma realidade factual. Em um primeiro momento tal exclusão se efetivou através da supressão dos conteúdos de história e filosofia, bem como da sociologia a posteriori, para os poucos representantes das classes menos favorecidas e da pequena burguesia, já na virada do XIX para o XX (ROMANELLI, 1991). Evidentemente, que tais conteúdos eram oferecidos em nosso território, entretanto, seu acesso pleno era outorgado a um contingente, específico, que denominaremos aqui de elite, genericamente, mas que expressam elementos específicos, como por exemplo: os filhos dos colonizadores europeus (WEHLING, 1999) e, em períodos posteriores os filhos dos indivíduos que se tornaram grandes proprietários de terras, que se constituíram na grande burguesia e que podemos definir como a elite econômica local.

A exclusão educacional imposta foi expressiva e possui duas frentes: por um lado uma oferta diferenciada no rol dos temas e qualidade mesma da educação e, por outro, mecanismos diversos como inexistência de escolas, por exemplo, que inviabilizava a possibilidade de acesso à educação. A consciência acerca dessa exclusão fica ilustrado de forma inequívoca através de um dado censitário que evidenciou o número de analfabetos no Brasil na primeira década do século XX (BOMENY, 2003). A existência de um quantitativo de analfabetos chegando quase a 84% da população, que no período constituía o estado brasileiro, como nos relata Helena Bomeny, (2003) não deixa dúvidas sobre a exclusão educacional. Esta pesquisadora, inclusive, chama a atenção para o fato de que é importante destacar que se trata de indivíduos que jamais haviam frequentado, em qualquer tempo os bancos escolares.

3 BNCC refere-se à Base Nacional Comum Curricular. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 270

As tentativas de inclusão de conteúdos das humanidades, em nosso território, sempre gozaram do privilégio terrível da alternância ― e agora em 2018 estamos vivendo mais um desses momentos com a exclusão da obrigatoriedade da oferta dos conteúdos da Sociologia, da Filosofia e das Artes, por exemplo, na educação básica ― contribuindo para justificar no imaginário coletivo, a não legitimidade das humanidades para o processo de formação do entendimento e da educação humana.

Esse dado censitário foi um dos elementos que segundo Bomeny (2003) intensificou a proposição de investimentos em educação com o objetivo de transformar a realidade brasileira, respondendo aos anseios de grande parte da nossa elite intelectual e fazendo eco às palavras de Alberto Torres em seu livro “O problema nacional brasileiro” (1978) sobre a necessidade de transformar um amontoado de pessoas em um povo. Tal desejo da nossa intelectualidade não é arbitrário, nem ingênuo. A palavra povo, nesse contexto, expressa a noção que no Brasil foi discutido pela filósofa Marilena Chauí (2007), que envolve uma concepção jurídico-política da organização coletiva de pessoas em um dado território.

Os movimentos desencadeados por essa elite intelectual também tinha por mote, uma resposta sobre o nosso futuro, enquanto nação, uma vez que grande parte dos pesquisadores nas metrópoles europeias propunham, nesse período teorias, muitas das quais, degenerativas acerca do processo de desenvolvimento das populações uma vez que “as imagens que detratam o novo mundo se intensificaram sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII simetricamente correspondentes .ao maior conhecimento e colonização desses novos territórios” (SCHWARCZ, p. 45-46, 1993).

E como se poderia construir um Estado Nacional? Segundo o entendimento de vários intelectuais na virada do XIX para o XX: através da educação.

Com o intuito de criar as condições materiais de transformar as pessoas em um “povo” é que tem início intenções que se materializam no “Manifesto da Educação Nova” (2007) de uma escola laica, gratuita, que oferecesse um ensino pautado na qualidade do corpo docente e que fosse a mesma em todo o território nacional. Entretanto, divergências, particularmente de ordem econômica, pois o ensino de qualidade já era oferecido pelas instituições confessionais católicas que não desejavam perder o monopólio desse empreendimento. Nesse sentido, os religiosos encabeçaram um movimento, cujo principal JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 271

representante foi Alceu Amoroso Lima revigorando antigas alianças e construindo novas na burocracia estatal que o governo Vargas está alavancando dentro de sua proposta de projeto político de nação.

A proposta dos Pioneiros da Educação Nova, é superada e, nesse processo, é construído os arcabouços para o primeiro Ministério da Educação e Saúde, que não por acaso acumula dos campos de conhecimento nesse binômio que explicita a intencionalidade de “sanear” as mazelas físicas de nossa herança biológica e assim, corrigir nossos problemas sociais: estão lançadas as bases da proposta eugênica no Brasil, que foi identificada através do eufemismo da higiene.

Assim, é notório que o modelo instaurado não abarcava os pressupostos da emancipação via educação, mas que estava mais próximo de instrumentalizar os indivíduos para as necessidades do capital (HERSCHMANN, 1996).

O cerne da proposta educacional emancipatória.

No contexto das transformações impostas pelo projeto de um pan-americanismo que não chegou a se efetivar, em termos políticos, as elites criollas estabeleceram alianças locais com Simon Bolívar metamorfoseando a guerra de libertação nacional em uma estratégia de emancipação colonial, mas dentro de um arquétipo em que uma elite vai ser substituída por outra, nesse caso, as elites coloniais pelas elites criollas que não conseguiam sustentar isoladamente uma guerra contra o exército espanhol.

Com a efetivação do afrouxamento e posterior impedimento do domínio espanhol nas antigas colônias, uma das medidas de Simón Bolívar, para a construção de uma consciência de cidadania e pertencimento é a implantação de um projeto educacional que forneça o alicerce para as bases da nova nação erigida agora sob as bases do republicanismo. Para tanto, designa para tal tarefa, seu antigo preceptor Simón Rodrigues para construir o primeiro plano educacional no contexto do processo de independência. Tal projeto pressupunha inaugurar e instituir uma premissa pautada na perspectiva do direito à igualdade no acesso ao processo educacional.

Sabemos que apesar de a independência no Peru ter sido declarada desde 1821 JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 272

ainda havia tropas espanholas em vários territórios. Por isso os proprietários mais proeminentes, que representavam a elite local vai pedir ajuda a Simon Bolívar no sentido de expulsar tais tropas.

Mas quando, junto com a ação militar Bolívar nomeia Rodrigues que elabora um plano de educação, plano esse que previa acesso irrestrito às crianças no projeto educacional. Além disso, Rodrigues considera cidadão todo aquele que pertence ao território e não somente o indivíduo que é alfabetizado e detentor de posses (PEREIRA, 2014).

A elite criolla, contudo, após a transição do processo de expulsão do exército espanhol de seu território, rompe, particularmente com o projeto de Simón Rodrigues, cujos valores republicanistas era considerado excessivo (PERRONE-MOISÉS, 2006), uma vez que este, entendia que a cidadania e a igualdade de uma forma, considerada ainda mais “radical” que a de seu antigo pupilo e essas premissas tornam, na visão desses grupos, essa ação incompatível com seus pressupostos de classe.

Rodrigues, dentro desse contexto, é acusado, por um lado, de tentar destruir a Igreja e a religião e, por outro, de corrupção ao usar dinheiro público com ladrões e prostitutas. Isso por conta de um projeto que transformou muitos espaços já erigidos como mosteiros e conventos e principalmente orfanatos em escolas.

É dentro de perspectivas desse jaez que o projeto de educação de Simon Rodrigues — uma vez que a ameaça militar espanhola foi afastada — foi substituído, por exemplo, por modelos de educação nos moldes da concepção lancasteriana que dispensava os professores em benefício de um sistema de tutoria. Essa proposta, que dialoga fortemente com os pressupostos do filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham tinha como norte a supressão da preguiça e o controle do indivíduo.

Em termos pedagógicos podemos dizer que se promove a substituição da autoridade, que é uma dimensão que se conquista, por autoritarismo que tem por principal bandeira a manutenção da ordem.

Mas, talvez, um dos motivos mais relevantes seja o fato de que tal projeto demandaria muito menos recurso do que pagar os professores. Assim a precariedade da educação em termos conteudistas anda pari passu com a precariedade da remuneração dos docentes. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 273

José Carlos Mariátegui, no Peru é um dos pensadores que corrobora com essa assertiva de uma oferta educacional de caráter universalizado e defende mesmo a necessidade de uma ação objetiva que garanta os projetos populares enfatizando o elo entre a teoria e as lutas, ao dizer que “combato, logo existo” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 54). A perspectiva da luta, nesse contexto, é a proposição da resistência à assunção irrestrita de realidades que não traduzem sentido em relação às práticas cotidianas dos indivíduos.

Esse autor vai refletir que em seu país a educação não possuía um espírito nacional, mas expressava uma perspectiva colonial e de colonizador. Mariátegui inferia que a Espanha havia legado aos peruanos um sentido aristocrático — no sentido lato do termo: governo dos melhores. Dessa forma, o governo e os postos de poder e prestígio não era destinado para todos. Mariátegui afirma que o povo não tinha direito à instrução e que a revolução de independência que aconteceu no Peru, ainda que orientada e sustentada pelos ideais jacobinos, apenas provocou por um pequeno período de tempo a assunção de princípios igualitários mais que os mesmos estavam mais presentes nos discursos do que nas ações.

A semelhança com a historiografia brasileira é muito relevante. A propósito da construção da noção de cidadania em nosso território — e isso é muito relevante uma vez que o ensino básico tem como um de seus principais pressupostos a construção da noção de cidadania — é percebida como multifacetada. Para a reflexão aqui, vou me basear na abordagem realizada por Teresa Pires dos Rios Caldeira (2000) que discute o fato de no Brasil, os direitos políticos possuírem um protagonismo mais expressivo que os direitos civis e sociais. Esse fenômeno desencadearia um modelo de cidadania em que existe, já de saída, um descompasso entre as três modalidades de direitos: civis, sociais e políticos, e resultaria em uma cidadania disjuntiva (CALDEIRA, 2010).

Mariátegui, por sua vez, percebendo em relação à realidade peruana, como a assunção de elementos culturais podem ser reguladores e mesmo, destruidores, do que pode ser uma experiência original, busca promover uma “fusão entre os aspectos mais avançados da cultura europeia e as tradições milenares da comunidade indígena” (MARIÁTEGUI, 2010).

Mariátegui foi se peruanizando, em contato com pensamento indigenista e certas práticas indígenas, no contexto do desenvolvimento das ideias e lutas sociais dessa época. Esse jovem pensador, que nos deixou de forma tão prematura, como tantos JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 274

intelectuais de sua época, se aprofundou nos estudos de Karl Marx. Entretanto, onde outros se propuseram a aprofundar mais e mais nas filigranas que a sofisticação que o pensamento marxiano oferece, Mariátegui, talvez com o ímpeto da sua juventude, mas sobretudo, com a potência do seu intelecto, se propôs a amalgamar tais teorias à realidade latino-americana. Tarefa difícil, pois, como o próprio Mariátegui coloca os peruanos não são “um povo que assimila as ideias e os homens de outras nacionalidades, mas são [...] um povo no qual convivem sem se fundir ainda, sem se entender, indígenas e conquistadores” (p. 116, 2010).

Quando se propõe a discutir a educação em seu país, Mariátegui aponta a influência do pensamento espanhol universalizado em função da imposição linguística, e também a presença da influência francesa e norte-americana como alguns dos elementos constituidores da cultura letrada peruana. Essa é uma semelhança de origem colonial que muitos de nós, latino americanos guardamos todos. Também aqui, no Brasil, temos uma “herança”, reproduzindo a expressão utilizada por Mariátegui, em nossa cultura letrada na língua portuguesa.

Possuímos igualmente a influência, em termos estruturais, da cultura francesa, retratada por Nicolau Sevcenko no texto “a inserção do Brasil na belle époque” e presente no positivismo da nossa educação que identificava a cultura francesa como o objetivo mais ambicionado que um estado pode ter no tocante à ilustração de seu povo.

Da mesma forma, o que poderíamos identificar como um segundo momento, ou outra influência, o pragmatismo americano, particularmente nas propostas de John Dewey que, no Brasil, foram colocadas em prática por Anísio Teixeira, cuja intenção expressa, acerca dessa contribuição era evitar que perdurasse a exclusão que ocorria desde a base “mesmo no ensino primário vamos encontrar nossa tendência visceral para considerar a educação um processo de preparo de alguns4 indivíduos” (TEIXEIRA, p. 54, 2007) Assim, primeiro na Bahia, quando assumiu o cargo de secretário de educação deste estado e depois na pasta ministerial onde patrocinou relevantes projetos como a criação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, o fomento à criação da Universidade do Brasil, depois encampada pela UFRJ, a metodologia da pedagogia

4 Grifo do autor. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 275

de projetos, hoje revisada em outro formato como pedagogia de trabalho, entre outras contribuições, demonstra a perenidade dessas influências que ainda produzem reflexos na educação até a atualidade (GADOTTI, 2007).

A partir dessas reflexões, podemos perceber como, nesse aspecto, as heranças e influências que impactam na produção de conhecimento tanto aqui no Brasil como no Peru de Mariátegui através desse modus operandi de origem, era análogo. Apesar da língua diferente o espanhol e o português, ambas desempenharam o mesmo papel no processo de uniformização da colonização. Agrega-se a isso as mesmas influências externas francesa e estadunidense.

Mariátegui vai fazer referência ao fato de que a República no Peru “se sente e até se confessa solidária ao vice-reinado. Como o vice-reinado a República é o Peru dos colonizadores mais do que dos nativos” (MARIÁTEGUI, p. 116, 2010). Percebemos então os pontos de contato com a característica presente em nosso próprio processo republicano em meio à proclamação encabeçada por Deodoro da Fonseca e imortalizadas nas palavras do cronista Aristides Lobo “e o povo assistiu a tudo bestializado” (CARVALHO, p. 48, 1996).

Ainda sobre a questão colocada por Mariátegui sobre a República peruana não ser a república dos índios vale pensar que, como na proclamação da nossa República, nos dois estados, no Peru e no Brasil o que presenciamos efetivamente, foi a substituição de uma elite econômica e cultural por outra com um certo distanciamento — ainda que não possamos tecnicamente falar em inexistência — dos pressupostos que fundamentam a noção de república, particularmente a ideia de acesso aos direitos pautados por isonomia e equidade.

A lei, entretanto, demanda uma reflexão mais aprofundada acerca de seus pressupostos e mais ainda acerca de sua operacionalidade. É importante perceber que existe um hiato significativo entre a letra da Lei e o exercício da Lei, entre o direito objetivo e o direito subjetivo que é a possibilidade que essa norma dá ao indivíduo de exercer determinada conduta (SANTOS, 1979). Esse foi um dos aspectos que chama a atenção no pensamento de Mariátegui pois esse autor vai dizer que no Peru “o igualitarismo verbal”, (2010) do discurso, da letra da lei só tinha em vista, realmente, o criollo, ou seja, a elite local e não o povo como um todo. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 276

Essa mesma lógica também se aplica a realidade brasileira de outrora e de agora. Estamos voltando ao modelo de educação proposto nos anos 20-30, do século XX, de escolhas dicotomizadas e que se está constituindo em um formato que reduz a experiência da construção de conhecimento muito menos centrada na produção, discussão e problematização dos conteúdos e muito mais na centralização e controle voltados a um condicionamento para o mundo do trabalho reduzindo assim, à questão entre quem pode ter acesso ao ensino superior e está “destinado” a comandar, e quem é encaminhado para o ensino profissionalizante e é “limitado” a ser comandado.

Vivemos um passado que insiste em não passar ou melhor, a não deixar que passem e nisso, também percebemos pontos de contato interessantes entre a trajetória educacional brasileira e a descrita por Mariátegui no Peru. Ele vai dizer que “o governo de 1831, que decretou a gratuidade do ensino [uma medida que sequer chegou a ser aplicada] vai fundamentar tal medida na decadência das fortunas5 que tinha reduzido as possibilidades de famílias de prestígio fornecer a seus filhos uma educação ilustrada”. (p. 65, 2010). Ou seja, não havia uma preocupação republicana — a coisa pública do latim original — a preocupação, como aponta Mariátegui era resolver o problema econômico das famílias que perderam a fortuna.

Mariátegui vai discutir como no Peru a “herança espanhola não era exclusivamente uma herança psicológica e intelectual. Era, antes de tudo — e esta é uma questão relevante — uma herança econômica e social” (ibidem) que mantinham os privilégios de riqueza.

No que diz respeito ao Brasil, temos na atualidade a mesma controvérsia: a questão da herança psicológica tem sido amplamente discutida a partir das críticas que Jessé Souza fez em seu livro “A elite do atraso: da escravidão à lava jato” (2017), entre outras questões à percepção dessa herança psicológica com atributos quase biologizantes (SCHWARCZ, 1993) sobre o chamado “jeitinho brasileiro”, a “malandragem”, a relação entre o público e o privado, atribuída por Roberto da Matta, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, entre outros representantes do pensamento social brasileiro, como se isso fosse um atributo genético dos brasileiros por conta de nossa herança colonial.

A “malandragem”, nesses moldes referenciados, não está, como o senso comum apregoa, no DNA do brasileiro ou de qualquer outro povo. Corroboro com Mariátegui, que

5 Grifo nosso. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 277

o que herdamos dos europeus, enquanto personagens do nosso processo de colonização, foi sua herança social e econômica.

Mariátegui vai discutir que da primeira à segunda década do século XX a influência francesa, no Peru ainda não está excluída do imaginário da sociedade que passa também a sofrer também a influência do pensamento estadunidense em uma progressiva adoção desse modelo.

Tal modelo era inspirado na possibilidade de se construir um espírito capitalista para proporcionar ao Estado um pleno desenvolvimento industrial. Entretanto, e essa é também tanto uma questão tanto dele, na realidade peruana, quanto nossa, na brasileira: nossas elites econômicas produziam e produzem, na atualidade, um discurso que se propõe liberal e ilustrado, mas estes se reduzem aos impressos e não nas obrigatoriedades legais e sociais que essas prerrogativas expressam. Assim percebemos que as liberdades presentes nos discursos, se identificam muito mais com o mundo dos negócios do que com o dos cidadãos (FREIRE; GUIMARÃES, 1987).

Considerações Finais

Percebemos que existe um descompasso muito grande entre a letra da lei e o exercício da lei impactando diretamente nas relações que se estabelecem na sociedade, no exercício das estruturas de poder e nas tentativas de transformação dessa realidade. Esta experiência não é restrita à realidade brasileira, mas, compartilhada em vários aspectos assemelhados por uma herança das relações específicas e constituintes do processo de colonização ocorrido no território da América Latina.

A experiência comum à colonização também se reproduz nas estruturas que gestaram e geriram a instituição da educação e a formação da intelectualidade em seu interior. Tais premissas, ao longo de nossa história tem implicado, na prática, em um Estado máximo para a elites econômicas e em um Estado mínimo para as classes não detentoras dos meios de produção. JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS TEMPOS HISTÓRICOS NA EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA ELISA MARIA DOS ANJOS 278

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Três estudos de caso da atuação indígena na primeira fase da conquista do México (1519-21)

EVANDRO NOBRE PELEGRINI O autor é licenciado em História pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais (2015), e servidor da Funai - Fundação Nacional do Índio, como indigenista especializado. E-mail de contato: [email protected] .

A imagem corrente que se faz das conquistas espanholas na América é, com a licença da expressão, a de uma grande chacina, por meio da qual os europeus teriam imposto a ferro e fogo a dominação colonial que perdurou três séculos. Em parte, tal imagem provém da denúncia perplexa de frades que testemunharam as violências e atrocidades dos conquistadores e encomenderos, a exemplo de António de Montesinos (c. 1475-1540) e Bartolomeu de Las Casas (c. 1484-1566), assim como da Leyenda Negra que se formou a partir de seus escritos.

Por outro lado, essa noção de invasão devastadora se deve também à baixa resistência imunológica das populações indígenas frente aos agentes patogênicos do Velho Mundo. A incrível derrocada populacional sofrida pelos ameríndios, de 90 a 95%, em média, em questão de duas gerações a partir do contato, corrobora a ideia que se formou dos povos nativos como incapazes e indefesos ou, pelo menos, inferiores à civilização Figura 1: “Colapso europeia. Pode-se ter uma ideia da catástrofe populacional no demográfica que representou esse encontro México”, fonte: ACUNA- biológico através da Figura 1, que representa SOTO, 2012, p. 360. estimativas da população do México no séc. XVI e as TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 281

quedas abruptas causadas por três principais epidemias, entre elas a de varíola de 1520. Na Mesoamérica, no entanto, assim como nos Andes, os espanhóis depararam grandes cidades, civilizações milenares e sofisticadas, impérios e populações tão ou mais densas quanto na Europa, Índia ou China na mesma época. As estimativas clássicas da escola de Berkeley apontam a existência, apenas no México central, de mais de 20 milhões de pessoas na virada do século XVI – quantia novamente atingida apenas em meados do séc. XX (CHAUNU, 1984, pp. 405-7; BORAH; COOK, 1963; ACUNA-SOTO, 2012). Diante desse quadro, coloca-se a pergunta que sempre intrigou aqueles que se debruçaram sobre a conquista: Como foi possível a um “bando de aventureiros”, nunca mais que dois mil homens, pôr abaixo uma potência militar local em apenas dois anos e, com isto, se apoderar do controle sobre vastas populações? (CLENDINNEN, 1991)

Para essa questão, existem muitas linhas explicativas, desde as epidemias até divergências culturais, ou mesmo a ação de deus ou do diabo, até chegar em uma noção de superioridade mental e cultural do conquistador que se mostra hoje inaceitável (RESTALL, 2006, pp. 221-44). O presente trabalho debruça-se sobre uma dessas linhas explicativas: a atuação de grupos indígenas que, por seus próprios interesses, se aliaram aos espanhóis e contribuíram decisivamente para as mudanças radicais que se sucederam. Tal abordagem implica, afinal, que a tradicional pergunta formulada acima apenas faz sentido numa perspectiva eurocêntrica pois, à medida em que se compreende, ou vislumbra, a complexidade geopolítica e histórica do mundo mesoamericano, bem como as diversas formas de percepção dos forasteiros, sua relevância desvanece.

O reconhecimento da importância essencial das alianças indígenas não é novidade. O próprio Hernán Cortés (1485-1547), capitão da expedição espanhola, afirma – na terceira carta de relación a Carlos V – que 150 mil guerreiros nativos lutaram a seu lado no cerco final a Tenochtitlán, o qual foi praticamente uma batalha contínua de quatro meses, de abril a agosto de 1521 (CORTÉS, 1971). No entanto, a historiografia atual tem se dedicado a esmiuçar a atuação dos grupos indígenas de acordo com sua própria perspectiva, como sujeitos históricos que eram (RESTALL, 2012, e MATTHEW; OUDIJK, 2007). Assim, a cultura ímpar de diplomacia e guerra da Mesoamérica, a complexa geopolítica e a profusão de povos, cidades e identidades, são alguns dos fatores que ilustram as atitudes daqueles que, pode-se dizer, serviram-se dos espanhóis para executar suas próprias agendas. Acontece que as infaustas consequências dessa cooperação eram, naquele momento, totalmente imprevisíveis. TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 282

Aqui, farei uma breve exposição de três casos em que se pode identificar a autonomia indígena nos dois anos entre a chegada da expedição espanhola e a derrubada do império asteca. Em todos esses casos, a iniciativa de se aliar com os espanhóis partiu dos próprios indígenas – cujas expectativas, malogradas ou não, vou tentar discernir um pouco.

Os Totonacas da costa do Golfo

O primeiro povo nativo a perceber a utilidade de uma aliança com os estrangeiros foram os totonacas, da região costeira. Eles tinham sido conquistados pelos mexica em fins do séc. XV e se viam, desde então, sujeitos ao pagamento de tributos; mas as rebeliões ali eram frequentes, assim como as fortificações astecas para reprimi-las. Ver-se-á que, durante o primeiro contato dos europeus com os povos do México central, estava em questão a própria natureza dos estrangeiros: se humanos, divinos, ou mesmo enviados dos deuses.

Ao aportarem na região de Veracruz, território totonaca, os espanhóis receberam emissários de Montezuma que lhes ofertaram presentes como se destinados às principais divindades mexicanas (SAHAGÚN, livro 12, caps. II-IV, apud SCHWARTZ; SEIJAS, 2018, pp. 73-6). Eles requisitaram também, num possível gesto de experimentação dos forasteiros, que os espanhóis deslocassem seu acampamento alguns quilômetros costa abaixo (HASSIG, 2006, p. 68). Diante da recusa de Cortés, as cidades e povoados do entorno, submetidos à confederação asteca, interromperam as relações de troca e a oferta de suprimentos.

Lembremos que a expedição espanhola, em sua pretensão de alcançar o rico império do interior do qual tinha algumas informações, era totalmente dependente do auxílio e mantimentos dos aliados que conseguisse fazer. Dessa forma, os espanhóis, confrontados pelo poder hegemônico local, podiam se ver obrigados a abandonar a campanha e voltar para Cuba, caso não obtivessem apoio nativo.

Mas, três dias após a partida dos emissários de Montezuma, os espanhóis receberam enviados de uma das principais cidades totonacas, Cempoala, cujo governante era o chamado cacique gordo. Aqui cabe notar que, no padrão de dominação asteca, eram exigidos das cidades-estados submetidas tributos e cooperação militar, mas elas normalmente conservavam o autogoverno e as lideranças locais; de modo que o cacique gordo era uma autoridade totonaca legítima, tendente a defender os interesses de seu TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 283

povo (CLENDINNEN, 1991, pp. 77-8, 97; OUDIJK, 2012).

Bernal Díaz del Castillo (1492-1584), integrante da expedição espanhola que redigiu um dos mais importantes relatos da conquista, registra o contentamento ocasionado pela compreensão de que havia dissensões e resistência no interior do império asteca, as quais podiam ser, como foram, habilmente manipuladas por Cortés para se inserir no jogo político regional e garantir a viabilidade da campanha. Os emissários de Cempoala trariam a seguinte mensagem:

[...] y dijeron luego en la lengua mexicana que somos bien venidos, e que su señor les enviaba a saber quién éramos, y que se holgaba servir a hombres tan esforzados, porque parece ser ya sabían lo de Tabasco y lo de Potonchan; y más dijeron, que ya hubieran venido a vernos, si no fuera por temor de los de Culúa, que debían estar allí con nosotros; y Culúa entiéndase por mexicanos, que es como si dijésemos cordobeses o sevillanos; e que supieron que había tres días que se habían ido huyendo a sus tierras; y de plática en plática supo Cortés cómo tenía Montezuma enemigos y contrarios, de lo cual se holgó; y con dádivas y halagos que les hizo, despidió aquellos cinco mensajeros, y les dijo que dijesen a su señor que él los iría a ver muy presto (DÍAZ DEL CASTILLO, 2017, cap. XLI, p. 116, grifos meus).

Poucos dias depois, os espanhóis partem rumo a Cempoala e deparam, no caminho, doze homens enviados pelo cacique gordo para conduzi-los. Bernal Díaz relata a fome, as dificuldades em conseguir alimento e o abrigo bem-vindo proporcionado pelos guias em pequenos povoados – muitas vezes recém-abandonados e onde sempre se encontravam vestígios de sacrifícios humanos, que tanto impressionavam os espanhóis. Díaz nota ainda a existência de “muitos livros de seu papel, costurados em dobras à maneira dos panos de Castela” (DÍAZ DEL CASTILLO, 2017, cap. XLIV, p. 123).

O grupo alcança, enfim, e é acolhido em Cempoala, possivelmente a “cabeceira” de cerca de trinta grandes altepeme totonacas, responsável, segundo Santos, pela concentração e remessa dos tributos da região à cidade do México (SANTOS, 2014, p. 222). Ali ocorre o primeiro diálogo entre Cortés e o cacique gordo, que ficara sabendo do sucesso espanhol nas pequenas batalhas travadas ao longo do Golfo do México (em Tabasco e Potonchan, citadas por Bernal Díaz acima). O governante, então, demonstrou a Cortés sua insatisfação com a exploração dos astecas e seu propósito de libertação. Diante do pequeno efetivo espanhol, esse propósito não era mais do que uma aposta, reforçada, porém, pelo caráter potencialmente divino dos adventícios. O cacique ofereceu os presentes que podia, acusando a condição de pobreza a que estava submetido, e o capitão os teria recebido nesses termos: TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 284

Y Cortés le dijo con doña Marina e Aguilar [os dois intérpretes da expedição] que él se lo pagaría en buenas obras, e que lo que hubiese menester, que se lo dijese, que lo haría por ellos; porque somos vasallos de un tan gran señor, que es el emperador don Carlos, que manda muchos reynos y señoríos, que nos envía para deshacer agravios y castigar a los malos, y mandar que no sacrificasen más ánimas; y se les dio a entender otras muchas cosas tocantes a nuestra santa fe. Y luego como aquello oyó el cacique gordo, dando suspiros, se quejó reciamente del gran Montezuma y de sus gobernadores, diciendo que de poco tiempo acá le había sojuzgado, y que le había llevado todas sus joyas de oro, y les tiene tan apremiados, que no osan hacer sino lo que les manda, porque es señor de grandes ciudades, tierras, e vasallos y ejércitos de guerra. Y como Cortés entendió que, de aquellas quejas que daban, al presente no podían entender en ello, les dijo que él haría de manera que fuesen desagraviados… (DÍAZ DEL CASTILLO, 2017, cap. XLV, pp. 125-126).

No dia seguinte, os espanhóis dirigem-se à cidade costeira de Quiahuiztlan, importante centro que fora avistado pelos navegantes, e a encontram quase deserta, até que deparam as chefias locais na praça central. Estas os acolhem e alimentam, desculpando-se pela ausência dos habitantes, atribuída ao medo que inspiravam os desconhecidos e seus cavalos, e informam que logo seria repovoada a cidade. Enquanto isso, chega a notícia de que o cacique gordo se aproximava, junto a “muitos índios principais” (DÍAZ DEL CASTILLO, 2017, cap. XLVI, p. 127) e carregado numa liteira.

Seguem-se, então, prédicas semelhantes à do dia anterior, em que os totonacas se queixavam do domínio mexica e Cortés fazia promessas algo vagas, quando sobrevêm cinco arrecadadores astecas, acompanhados de outros chefes totonacas. Diante desse repentino aparecimento, os líderes que debatiam com os espanhóis se intimidam e prontamente os abandonam, pondo-se a adular os representantes mexicanos. Estes desprezam a expedição espanhola e, apenas depois de se satisfazerem, deliberam com os governantes, repreendendo-os e ameaçando:

(...) y pasaron con tanta continencia y presunción, que sin hablar a Cortés ni a ninguno de nosotros se fueron y pasaron delante [...]. Y después que hubieron comido mandaron llamar al cacique gordo e a los demás principales, y les dijeron muchas amenazas y les riñeron que por qué nos habían hospedado en sus pueblos, y les dijeron que qué tenían ahora que hablar y ver con nosotros. E que su señor Montezuma no era servido de aquello, porque sin su licencia y mandado no nos habían de recoger en su pueblo ni dar joyas de oro (DÍAZ DEL CASTILLO, 2017, cap. XLVI, p. 128).

Admirando a reação e reverência dos totonacas frente às autoridades mexicanas, Cortés entendeu o que se passava através de Doña Marina. Então, num discurso oportunista, assegurou aos líderes que “o rei nosso senhor o enviara para castigar os malfeitores e não TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 285

tolerar sacrifícios nem roubos” (Idem, cap. XLVII, p. 129) (referindo-se às imposições mexicanas de vítimas e tributos) – e insistiu que fossem aprisionados os arrecadadores. Bernal Díaz descreve a resistência que tal sugestão provocou e o absurdo que ela continha: “cuando los caciques lo oyeron estaban espantados de tal osadía, mandar que los mensajeros del gran Montezuma fuesen maltratados, y temían y no osaban hacerlo” (Ibidem).

Porém, diante da incitação dos forasteiros, os caciques extravasaram e ordenaram a prisão dos mexicanos, com direito a bastonadas a quem resistiu, numa demonstração de como o tenso equilíbrio imperial mantido pelos mexica foi gradativamente solapado pela chegada de adventícios que, percebidos como homens ou seres divinos, tornaram-se também atores políticos cujo potencial desestabilizador não foi, ou parece não ter sido, plenamente compreendido pelos astecas:

(...) e uno dellos porque no se dejaba atar le dieron de palos; y demás desto, mandó Cortés a todos los caciques que no les diesen más tributo, ni obediencia a Montezuma, e que así lo publicasen en todos los pueblos aliados y amigos. E que, si otros recaudadores hubiese en otros pueblos como aquellos, que se lo hiciesen saber, que él enviaría por ellos. Y como aquella nueva se supo en toda aquella provincia, porque luego envió mensajeros el cacique gordo haciéndoselo saber, y también lo publicaron los principales que habían traído en su compañía aquellos recaudadores, que como los vieron presos, luego se descargaron y fueron cada uno a su pueblo a dar mandado y a contar lo acaecido. E viendo cosas tan maravillosas e de tanto peso para ellos, dijeron que no osaran hacer aquello hombres humanos, sino teules, que así llaman a sus ídolos en que adoraban; e a esta causa desde allí adelante nos llamaron teules, que es, como he dicho, o dioses o demonios … (DÍAZ DEL CASTILLO, 2017, cap. XLVII, pp. 129-130, grifos meus).

Ao cabo, o cacique gordo e Cortés chegaram a um acordo em que os espanhóis ofereciam proteção militar, e os totonacas garantiam suprimentos, carregadores e alguns guerreiros, bem como o apoio logístico que permitiu à expedição adentrar no continente.

I - Tlaxcala

A confederação de Tlaxcala, terra adentro, foi certamente a aliança mais proveitosa da expedição espanhola. Seu apoio foi fundamental tanto nos diversos momentos da campanha no México central, de 1519 a 21, quanto nas décadas seguintes à queda de Tenochtitlán, quando a dominação hispânica se expandiu gradualmente a norte e sul, seguindo as rotas pré-existentes de comércio e expansão imperial. O reconhecimento da importância de Tlaxcala, embora tenha sido maior entre os participantes – tanto conquistadores como frades –, fez-se sentir também pela TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 286

Coroa, que lhe concedeu certos privilégios, como títulos, isenção de impostos e prerrogativas nas colonizações posteriores. Um reconhecimento, no entanto, que se enfraqueceu gradualmente.

É importante notar que a iniciativa dessa aliança partiu dos tlaxcaltecas. Tlaxcala encontrava-se numa situação difícil antes do contato com os forasteiros. Inimigos encarniçados dos astecas, a expansão imperial desses últimos no século anterior os havia deixado ilhados. E, mesmo estando próximos do Vale do México, os astecas pareciam não se dispor a confrontá-los realmente, preferindo desgastá-los em batalhas periódicas em que podiam experimentar seus guerreiros.

Isolada em meio à hegemonia asteca, Tlaxcala havia perdido, pouco antes, até mesmo aliados tradicionais, como a cidade vizinha de Cholula. Nesta conjuntura, era de se esperar que Tlaxcala buscasse alternativas intensamente, ou estaria fadada ao desastre. Sua primeira reação aos espanhóis, porém, foi de hostilidade e guerra. Encontrando-se quase a meio caminho da rota de Cortés para o Vale do México, e vendo os espanhóis acompanhados de súditos astecas, como eram os Totonacas, Tlaxcala resistiu fortemente à penetração hispânica em seu território. Além da oposição armada, usaram da tática de “terra arrasada”, de maneira a enfraquecê-los pelo atrito e suprimi-los de abastecimento. Dessa forma, puderam também apreciar as tecnologias e estratégia militar dos estrangeiros, e reconhecer o valor indiscutível do metal, dos cavalos, canhões e bestas.

Esta percepção da capacidade bélica espanhola, bem como de sua crítica situação geopolítica, levou Tlaxcala a reconsiderar sua abordagem. Após disputas políticas no seu interior, prevaleceram os partidários da aliança com os forasteiros, e Tlaxcala ofereceu, de moto próprio, um pacto com Cortés (RESTALL, 2006, p. 99-101). Os espanhóis, por sua vez, sob o risco de serem aniquilados, já haviam feito diversas propostas de paz, até o momento não correspondidas. Como afirma Ross Hassig:

Embora Cortés tenha levado o crédito, a aliança foi na verdade proposta pelos tlaxcaltecas em vista de sua situação geopolítica (...). O que os motivou a se aliar com os espanhóis foi o reconhecimento da superioridade das armas, que poderia levar a um deslocamento no balanço de poder (regional) (HASSIG, 2006, p. 87).

A partir daí os novos aliados se tornaram inseparáveis no processo de conquista do México central. Nessa relação, ambos os lados se entendiam como o partido dominante e, TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 287

ainda que os cronistas espanhóis, principalmente Cortés, se coloquem como protagonistas em seus textos, a contribuição estratégica dos tlaxcaltecas foi essencial.

Em outro episódio ainda, imediatamente posterior ao pacto, fica igualmente visível a agência, ou autonomia, de Tlaxcala: trata-se do famigerado massacre de Cholula, quando os espanhóis, por meio de um artifício, trucidaram a elite dirigente da cidade e estenderam a matança à população desavisada. O pretexto alegado pelos conquistadores foi uma conspiração supostamente arquitetada pelos astecas. Segundo autores antigos e modernos, no entanto, há indícios de que esta tenha sido uma ação política deliberada, projetada por Tlaxcala. Primeiramente, porque os espanhóis haviam ido até ali por insistência dos tlaxcaltecas, se desviando para isso do caminho mais direto ao Vale do México. Além disso, como mencionado, Cholula fora aliada de Tlaxcala até poucos anos antes, e migrou-se para o bloco mexicano em virtude de mudanças na linhagem governante da cidade. Mesmo assim, o espectro político local tinha ficado dividido, com a facção pró-Tlaxcala perdendo proeminência. Por fim, muitos dos elementos alegados pelos espanhóis para justificar a tese da conspiração não se sustentam ou são contraditórios, consistindo antes numa busca de legitimação do massacre frente à lei hispânica; de modo que se mostra razoável a tese de que Tlaxcala se aproveitou de uma oportunidade para realizar uma “limpeza política” e retomar a união com Cholula, fortalecendo assim sua posição regional (HASSIG, 2006, pp. 94-98; RESTALL, 2006).

Dois documentos corroboram, ainda, essa interpretação. Um é o relato veiculado na monumental obra do Frei Bernardino de Sahagún (c. 1499-1590), Historia general de las cosas de Nueva España, também chamada Códex Florentino. De caráter enciclopédico e fruto de décadas de investigação, esse trabalho reuniu depoimentos de informantes nativos de Tlatelolco – cidade vizinha e rival de Tenochtitlán –, sendo, portanto, dependente da memória oral e da competição tradicional entre os altepeme. Tal rivalidade era central na conformação das narrativas históricas predominantes em cada cidade (NAVARRETE LINARES, 2011) e, no trecho abaixo, que descreve os eventos em Cholula, fica bastante perceptível. Note-se, no entanto, o protagonismo atribuído aos tlaxcaltecas no planejamento da ação:

Los tlaxcaltecas y cholultecas no eran amigos, tenían entre sí discordia, y como los querían mal dijeron mal de ellos a los Españoles para que los maltrataran: dijéronlos que eran sus enemigos y amigos TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 288

de los mexicanos, y valientes como ellos. Los Españoles oídas estas nuevas de Cholula propusieron de tratarlos mal como lo hicieron; partieron de Tlaxcala todos ellos y con muchos cempoaltecas y tlaxcaltecas que los acompañaron todos con sus armas de guerra: llegando todos a Cholula, los cholultecas no hicieron cuenta de nada, ni los recibieron de guerra ni de paz, estuviéronse quedos en sus casas. De esto tomaron mala opinión de ellos los Españoles, y conjeturaron alguna traición, y comenzaron luego a dar voces a los principales y señores, y toda la otra gente para que viniesen donde estaban los Españoles, y ellos todos se juntaron en el patio del gran Cú de Quetzalcoatl. Estando allí juntos los Españoles afrentados de la poca cuenta que habían hecho de ellos entraron a caballo, habiendo tomado todas las entradas del patio, y comenzaron a lancearlos y mataron todos cuantos pudieron, y los amigos indios de creer es que mataron muchos más. Los cholultecas ni llevaron armas ofensivas ni defensivas, sino fuéronse desarmados pensando que no se haría lo que se hizo… (SAHAGÚN, 1829, tomo 3, livro 12, cap. XI, p. 18).

Tal protagonismo é discernível também numa imagem do célebre Lienzo de Tlaxcala, que retrata o massacre em Cholula (Figura 2). Nela pode-se ver, à esquerda, soldados espanhóis e indígenas assaltando o Templo de Quetzalcoatl, ao passo que dois nobres tlaxcaltecas são representados ao centro, “aparentemente orquestrando os eventos” (SCHWARTZ; SEIJAS, 2018, pp. 106-107), e a Malintzin (ou Doña Marina, à direita) aparece também dirigindo os ataques, talvez por sua condição de intérprete.

Figura 2: Lienzo de Tlaxcala, reconstrução, cena 9. Liza Bakewell and Byron E. Hamann, “Mesolore: Exploring Mesoamerican Culture”. Prolarti Enterprise, LLC and Brown University. Disponível em: http:// www.mesolore.org/ tutorials/learn/19/ Introduction-to-the- Lienzo-de-Tlaxcala .

TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 289

Don Gonzalo Mazatzin Moctezuma, Señor de Tepexi de la Seda 1

O terceiro caso que gostaria de comentar é o de Don Gonzalo Mazatzin Moctezuma, que era governante de uma confederação de cidades ao sul de Cholula, no atual estado de Puebla. Em 1520, Don Mazatzin teria efetuado conquistas em benefício do rei de Espanha de forma inteiramente independente. Conhecemos sua história em função de um documento recém-exumado (OUDIJK, 2013, p. 49), uma espécie de probanza de méritos de fins do séc. XVI, em que seu sucessor e neto requisitava da Coroa privilégios e reconhecimento pela atuação do avô. Embora este pedido tenha sido atendido, o que indica a veracidade dos eventos narrados, houve uma possível artimanha desse conquistador indígena, que torna a história ainda mais interessante.

Os autos do processo movido por Don Joaquín, neto de Mazatzin, são compostos de dois expedientes. Juntos, eles contêm os relatos de 45 testemunhas. O primeiro expediente, com menos depoimentos, são relatos livres, enquanto as entrevistas do segundo são orientadas por nove perguntas que condicionam o conteúdo transmitido pelos depoentes. Pode-se dizer que tais testemunhos, por sua multiplicidade e concordância, certificam o exemplo de “versão da Conquista desde o ponto de vista indígena” (OUDIJK, 2013, p. 49) que o caso de Mazatzin representa.

Os testemunhos relatam que, quando Cortés estava em Tlaxcala, Mazatzin lhe enviou uma embaixada com ricos presentes em ouro e uma oferta de aliança. Num segundo momento, após a expulsão dos espanhóis da cidade do México – quando já estavam em campanha para comprometer as bases do império asteca e conseguir aliados para investir contra Tenochtitlán –, Mazatzin foi pessoalmente a Tepeaca, onde aqueles se encontravam. Desta vez, Cortés aceitou a oferta, deu-lhe uma espada e uma lança e o nomeou capitão em nome do rei de Espanha. Mazatzin, de seu lado, se dispôs a conquistar a “província dos Mixteca e Oaxaca” (OUDIJK; RESTALL, 2007, p. 35). Com o acordo feito, então, ele tomou para a Coroa hispânica cerca de 20 cidades numa região estratégica de extração de recursos naturais e antigas rotas de comércio para Oaxaca, Yucatán e Guatemala, as quais foram largamente utilizadas nas conquistas posteriores da Nova Espanha.

1 Esta seção é baseada em OUDIJK; RESTALL, 2007, e OUDIJK, 2013. TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 290

O truque que mencionei, ou artimanha, está em que as cidades conquistadas, supostamente pela força, já eram parte do domínio de Mazatzin, o qual, por sua vez, era subordinado a Montezuma (Idem, p. 18). Consta que, durante a expansão asteca pela região de Tepexi de la Seda (em direção a Oaxaca), o pai de Don Gonzalo, governante daquela cidade, havia cooperado nas campanhas mexicanas e realizado um acordo em que se tornava “súdito” e tributário dos astecas, recebendo o direito de recolher os tributos das cidades próximas. E, como forma de celebrar e fixar essa aliança, casou-se com uma filha de Montezuma I,2 que veio a ser a mãe de Don Gonzalo e lhe transmitiu o nome Mazatzin.

Mas, naturalmente, a maior parte dessa arrecadação era remetida para a cidade do México. Então, com este artifício Mazatzin teria “conquistado” (entre aspas) as próprias cidades sobre as quais tinha jurisdição – transferindo, porém, a autoridade a quem prestava contas dos astecas para os espanhóis. Nessa transferência, que foi adaptação à realidade da Nova Espanha que se formava, ele parece ter tido êxito, pois garantiu a permanência de seu reinado, recebeu o título de capitão espanhol e ainda assegurou privilégios a sua posteridade.

OBRAS CITADAS

ACUNA-SOTO, R. et alii. “Megadrought and Megadeath in 16th Century Mexico”. In: Emerging Infectious Diseases, vol. 8, n. 4 (April 2002), pp. 360–362.

CHAUNU, Pierre. Conquista e exploração dos novos mundos (século XVI). São Paulo: Pioneira/ Edusp, 1984.

CLENDINNEN, Inga. “Fierce and unnatural cruelty: Cortés and the conquest of Mexico”. In: Representations 33, winter 1991, University of California, pp. 65-100.

CORTÉS, Hernán. Letters from Mexico [1519-26]. Anthony R. Pagden (ed. e trad.). New York: Grossman Publishers, 1971.

DÍAZ DEL CASTILLO, Bernal. Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España [1568]. Barcelona: Austral/Planeta, 2017.

2 Moctezuma Ilhuicamina, também chamado “el Viejo”, governou entre os astecas de 1440 a 1469. Era bisavô de Moctezuma Xocoyotzin, ou Montezuma II (reinado 1502-1520), a quem me refiro nas outras partes como Montezuma, apenas. TRÊS ESTUDOS DE CASO DA ATUAÇÃO INDÍGENA NA PRIMEIRA FASE DA CONQUISTA DO MÉXICO (1519-21) EVANDRO NOBRE PELEGRINI 291

HASSIG, Ross. Mexico and the Spanish Conquest. Norman: University of Oklahoma Press, 2ª ed., 2006.

MATTHEW, Laura E.; OUDIJK, Michel R. (eds.). Indian Conquistadors: Indigenous Allies in the Conquest of Mesoamerica. Norman: University of Oklahoma Press, 2007.

NAVARRETE LINARES, Federico. Los Orígenes de los Pueblos Indígenas del Valle de México: los Altépetl y sus Historias. México: UNAM, Instituto de Investigaciones Históricas, 2011. Disponível em: http://www.historicas.unam.mx/publicaciones/ catalogo/ficha?id=539 .

OUDIJK, Michel R. “The Conquest of Mexico”. In: NICHOLS, Deborah L. e POOL, Christopher A. (eds.). The Oxford Handbook of Mesoamerican Archaeology. New York: Oxford University Press, 2012, cap. 32, pp. 459-67.

OUDIJK, Michel R. “Don Gonzalo Mazatzin Moctezuma: Señor de Tepexi de la Seda”. In: OUDIJK, M. R.; RESTALL, M. Conquistas de Buenas Palabras y de Guerra: Una Visión Indígena de la Conquista. México: UNAM, 2013.

OUDIJK, M. R.; RESTALL, M. “Mesoamerican Conquistadors in the Sixteenth Century”. In: MATTHEW, Laura E. e OUDIJK, Michel R. (eds.). Indian Conquistadors: Indigenous Allies in the Conquest of Mesoamerica. Norman: University of Oklahoma Press, 2007, pp. 28-64.

RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RESTALL, Matthew. “The New Conquest History”. In: History Compass 10, no. 2 (February 2012), pp. 151-60.

SAHAGÚN, Frei Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España [1547- 79] (ed. Carlos María de Bustamante). México: Imprenta del ciudadano Alejandro Valdés, 1829-1830, 3 vols. Disponível em: https://www.wdl.org/pt/item/10623/ .

SANTOS, Eduardo Natalino dos. “As conquistas de México-Tenochtitlán e da Nova Espanha. Guerras e alianças entre castelhanos, mexicas e tlaxcaltecas”. In: História Unisinos, v. 18, n. 2, 2014, pp. 218-32.

SCHWARTZ, Stuart B.; SEIJAS, Tatiana. Victors and Vanquished: Spanish and Nahua Views of the Fall of the Mexica Empire - A brief history with documents. Boston, New York: Bedford/St. Martin’s, 2ª ed., 2018. 292

“¿Qué hacés aquí?”: a narração do retorno (em La convaleciente de Pedro Orgambide)

FERNANDA PALO PRADO Doutoranda em História Social, FFLCH/USP, [email protected]

“Contar a história de um exílio (...) é narrar muitas histórias” Denise Rollemberg (2007, p. 3)

La enfermedad ha terminado – me dije – y, con ella la fiebre de nuestra juventud. Lo que importa es recomenzar, seguir viviendo. ¿Pero cómo?” Caminaba por la ciudad, como si fuera una extranjera. Era una simulación inocente, al fin y al cabo: ésta era mi ciudad. La reconocía, claro que sí. Pero algo mío había muerto en ella en el momento de partir. Y yo buscaba ese algo diez años después, cuando la ciudad y yo no éramos las mismas. Soy una convaleciente – pensé –. Y no puedo explicar a todo el mundo que mi enfermedad no es contagiosa”. Desde hacía varias semanas, desde mi regreso, advertí que, para no irritar, lo mejor era dejar que los otros tomaran la iniciativa, ya que los que regresábamos de algún modo interrumpíamos una rutina, cierta continuidad (...) y éramos como enfermos que regresan de un inmenso hospital y se instalaran, sin pedir permiso, en medio de la vida que había seguido sin nosotros, a pesar de nosotros. (...) Nuestra sola presencia les recordaba esos años que ellos querían olvidar. “Porque ustedes – decían – estaban lejos y no sabían qué ocurría aquí. O lo sabían, pero no tenían miedo a que alguien golpeara la puerta. Estaban lejos, en cualquier parte del mundo. Y -nosotros aquí, con nuestro miedo” (ORGAMBIDE, 1987, p. 7-8)

Esta é a passagem inicial do romance La convaleciente, de Pedro Orgambide1, publicado em 1987, em Buenos Aires (é um testemunho ficcional que imbrica memória, experiência e reflexão sobre o exílio. Trata-se de um relato que corresponde auma

1 Pedro Orgambide (1929/2003), escritor argentino profícuo, foi exilado no período da última ditadura militar argentina e viveu nove anos no México. Durante esse tempo, entre outras obras, escreveu uma trilogia intitulada “de la memoria”: um conjunto de romances em que ficcionalizou suas experiências, propondo uma versão da história, da memória coletiva, argentina, por meio de uma narrativa num espaço e num tempo reconhecíveis. No retorno a Buenos Aires, em 1983, publicou a trilogia: um volume por ano (o primeiro em 1983, o segundo, em 1984 e o terceiro em 1985) e, na sequência, em 1987, publicou o romance em questão. Em todas as obras há uma reflexão sobre temáticas históricas, com referências a memórias e a experiências, este é o único que conta com a presença de uma narradora, em primeira pessoa. “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 293

experiência significativa da biografia do autor, a volta do exílio). O título, como se pode perceber pelo excerto acima, já é explicado desde as primeiras linhas da narrativa. Trata- se da história de um retorno. Uma mulher, treintañera, volta a sua cidade natal depois de dez anos de exílio e encontra aquele mesmo bairro, aquelas mesmas ruas de que, aos poucos, relembra os nomes. Na busca por retornar a um cotidiano prosaico, num processo de “desexilio”2, depara-se com conhecidos – queridos ou temidos, que se foram ou que ficaram na Argentina – e, com o desenvolvimento da leitura, esse cotidiano vai tomando forma; ela vai, aos poucos, lidando com as tensões da partida e da chegada, com as experiências e as memórias do desenraizamento.

O exílio, como já se percebe pelo título, é tratado como uma doença. Uma doença social – individual e coletiva (ROLLEMBERG, 2007, p. 3), uma “fratura incurável”3.. A convalescente, nesse caso, é uma mulher sem nome que narra, como um diário, o processo – doloroso – de voltar à pátria. Nele, memórias e experiências da tortura e do estranhamento estão imbricadas na tessitura da narrativa com as reflexões sobre o exílio, sobre o cotidiano, sobre as relações entre as pessoas. A presença deste tema do exílio na literatura abre espaço para reflexões sobre a experiência, aproximando relatos e narrativas na construção dosaber histórico de um período de crise – da Argentina dos últimos governos ditatoriais dos anos de 1976 a 19834. Sabe-se que a sombra do regime ditatorial de 1976, extremamente violento, espalhou-se sobre toda a população argentina e todos foram obrigados a (con)viver com seu impacto e suas consequências, mesmo aqueles que não estavam mais lá [ou aqueles que não tomavam partido ou não se manifestavam]. Dessa forma, a presença da temática do exílio na literatura contribui para as reflexões históricas (PINTO, 2017, p. 384), tratando-se de um processo dinâmico e dialético:

2 Termo cunhado pela narradora sobre o processo que enfrenta ao voltar e encarar as ruas do bairro depois de um tempo ausente, as conversas de bairro, a proximidade do carrasco que anda livremente pela cidade. Se houve um tempo anterior de adaptação à distância da terra natal, a experiência do estrangeiro, o mesmo ocorre com a volta, durante o retorno.

3 Expressão utilizada por Edward Said em seu ensaio sobre o tema. Cf. SAID, 2003, p. 46-60.

4 “O “Processo de Reorganização Nacional” – como os próprios militares chamaram o golpe de março de 1976 – também visava, dentre outros objetivos, aniquilar o peronismo, ainda mais depois da morte, em julho de 1974, do líder Perón. A junta militar que assumiu o governo acreditava na necessidade do controle da sociedade, primeiramente por causa da instabilidade econômica, do clima de violência e das tensões políticas que, aos olhos dos militares e civis, configuravam uma espécie de “anarquia”; em seguida, por afirmar que a população estava acostumada à submissão e à dominação (...) (SUSANI, 2014, p. 125). Eles pretendiam remodelar as concepções políticas e sociais da população a partir da ordem e da hierarquia, destruindo o peronismo e o “perigo vermelho”, grande monstro da Guerra Fria, representando uma coalisão conservadora, auto definida como nacionalista e clerical.” (PRADO, 2017, p 85) “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 294

(...) vazios, gestos vagos, errância, exílios. Por mais distintas que soem, elas remetem à mesma questão, narram o mesmo caso, e esse relato é contundente: é o diálogo ininterrupto da história com a ficção, das margens porosas que separam, com precariedade, uma da outra, que permitem que elas se visitem e revisitem, que se contaminem reciprocamente. (PINTO, 2017, p. 384)

É dessa contaminação mútua que parte essa proposta de leitura sobre a narrativa do retorno no romance La convalesciente, de Pedro Orgambide. (I) Como o exílio é tratado? (II) Como aquele ser, doente, se adapta novamente – a [su]a cidade, a [su]as memórias, a [su]a experiência de exílio? Se é que se pode afirmar ser crível uma adaptação, já que a moléstia do título paira e percorre todo o romance.

Antes de entrar nessas questões, faz-se importante ressaltar que esse eu feminino, que narra, se distancia da voz do autor, masculina; dela, no entanto, se aproxima quando é possível pensar numa obliteração dos limites relacionados à autobiografia, por ser esse um tempo e essa uma experiência que são significativos na biografia do autor. Coincidem também o tempo da escrita da obra e o da escrita do diário ficcional, que se deu em 1986 (é mencionada no romance apenas uma passagem que referencia esse tempo, que estaria por acontecer, dessa vez, a copa de futebol no México – lugar que recebeu o escritor durante seu tempo de exilado). Pode-se, talvez, considerar esse romance como uma reelaboração estética e ficcional dessa experiência vivida.

I

Trata-se de um relato em primeira pessoa em que se [re]constrói uma autobiografia que é apresentada de maneira fragmentária, repetitiva e, ainda que se trate de um diário, com uma narração que pretende uma certa evolução linear do tempo, desdobrando um certo presente que remete a esse processo de adaptação com uma sequência clara dos acontecimentos. Mas, há também e constantemente uma troca de tempos narrados, em que a respectiva noção [de tempo cronológico] perde sua nitidez, confundindo os contornos entre o passado e o presente, no trabalho da memória. Ou seja, num só tempo, a narradora avança e retarda a narrativa, valorizando essas lembranças. Essa relação entre memória e esquecimento, entre narrar o presente e o passado – por meio das lembranças – fica ainda mais intensa conforme se aproxima o momento chave da trama, que é o testemunho da protagonista no tribunal contra os crimes cometidos “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 295

durante essa ditadura. Ela, que queria se esquecer, seguir, [re]adaptar-se, passar essa página (do diário, da história), tem que recordar, relembrar: narrar.

A protagonista feminina não tem nome. Essa supressão de uma forma direta de identificação representa uma despersonalização, uma maneira de generalizar até mesmo essa experiência tão íntima contida em um diário que pode pertencer a quase qualquer mulher. “A partir de ese sujeto cuyos límites porosos permite la entrada de una realidad que lo desborda, la escritura de lo real despedazado posibilita pensar una forma de experiencia diferente” (GARRAMUÑO, 2009, p.38). Essa experiência é a do exílio, é também a da volta, ambas repletas de tensões como as apresentadas – como se relacionar com os que ficaram ou como lidar com as memórias e as expectativas repletas de pretensões democráticas, por exemplo.

No primeiro trecho citado já estão as imagens de doença e de sanatório. Fora ela, a protagonista, há outro personagem marcado pela história, pelo desterro, pela violência, pelo exílio, pela imigração: o tio Simón:

Mi tío Simón, el hermano de mi padre, dice que siempre fue así: que regresar no es fácil. Cuando él volvió de la guerra, cuando escapó del campo de concentración “necesitaba una casa – cuenta – pero encontré un barco. Y vine aquí y comencé otra vida. Es una manera de decir – aclara – porque la vida es la misma en todas partes; sólo que cuando uno pierde las palabras, la de su gente, comienza a ser extranjero”. (...) “(...) Y esa es la enfermedad de los destierros: encerrarse en uno (...)” (...) “Siempre pensé en regresar adonde había nacido. Aunque allí, lo sé, también sería un extranjero. Los países como la gente, no son los mismo después de tantos años”. (ORGAMBIDE, 1987, p. 58-59)

O exílio, esse deslocamento territorial – físico e emocional – é, portanto, o tema central desse romance e assim ele é chamado ao longo da narrativa por diversas vezes [como doença]. Junto com ele, aparecem também a experiência da repressão, o processo de exclusão social e o rompimento com esse passado no processo – não livre de tensões – do retorno. Há mais de um exílio: o dela, o do tio, o de uma companheira de luta que também retornou, o de um amante que não voltou... Há mais de um retorno e, assim, mais de um processo de adaptação. Há, ainda, fatores que ressaltam que, apesar de coletiva, trata-se, também, de uma experiência pessoal única, sobre a qual não caberiam julgamentos ou regras de condutas generalizadoras ou generalizantes: “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 296

¿Sería verdad que nos habían condenado a ser parias para siempre? No recordaba quien decía eso. Algún compatriota del exilio, alguien que no podía o no quería regresar. Otra vez estábamos divididos: los que regresaban; los que se quedaban. Y cada uno armaba su convicción como mejor podía. ¿Quién iba a juzgarlos o juzgarnos? No había leyes ni códigos para eso, no existían artículos ni incisos para el extrañamiento o el fracaso o la condena a transformarse en parias y vagar por el mundo recordando los nombres de las calles o la letra de un tango. (ORGAMBIDE, 1987, p. 140)

II

Com os trechos já utilizados, ficam claros a solidão e os traços de incomunicabilidade, provenientes de uma distância intransponível, entre a narradora e seu entorno, havendo apenas, a princípio, uma proximidade com o tio, sobrevivente de outra guerra, de outro exílio. Ela se fecha em si, conforme afirma em seus escritos, mesmo diante da possibilidade de um novo relacionamento amoroso. Pressente-se esse distanciamento entre ela e o mundo como consequência da crise e do desencantamento causado pela situação histórica e política específica da sombra da última ditadura argentina.

Há, na trama, essa relação paradoxal com a impossibilidade de narrar, de compartilhar o vivido, por conta da experiência dramática da violência institucional de perseguições, de torturas infringidas na carne da narradora e de assassinatos de entes próximos e queridos por essa força institucionalizada, com a partida para exílios, internos e externos.

Esa ilusión tenía algo de perversa: nos hacía creer, a los sobrevivientes, que era posible recomenzar sin que se notaran nuestras cicatrices. Y no, no era así. Cada uno llevaba en la cara la ansiedad, la impaciencia por integrarse al mundo que había abandonado. Y también el miedo. Miedo a que no nos quisieran, a ser apartados como los leprosos medievales, que tocaban sus campanas por las aldeas. La nuestra era una peste sin úlceras ni llagas, hechas de recuerdos molestos para quienes, como Alicia, habían vivido de puertas adentro. (ORGAMBIDE, 1987, p. 53)

De um lado do balcão de atendimento, estava Alicia, uma de suas amigas de infância que ficou, que quase não sentiu a presença da ditadura, que era uma bancária que construiu, no subúrbio, “em ordem”, sua família. Do outro lado, estava ela, que voltava, que buscava reconstruir suas raízes na cidade deixada [estranhada], que tentava superar os medos e as memórias e que havia recebido um cheque. O ato de descontá-lo no banco representava a volta a uma certa normalidade, a um certo compromisso com a cidade, sinal de um trabalho, de um emprego – uma forma de recomeçar: “en la Argentina, “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 297

trabajando otra vez” (ORGAMBIDE, 1987, p. 50). Ambos os lados, ao longo do romance, aparecem e tentam uma conciliação, entre silêncios e discussões. Nesse excerto lê-se o mal-estar, o esforço em de se adaptar, novamente, apesar das cicatrizes visíveis de um tempo violento e cruel que amedrontou, que perseguiu, que assassinou.

Há, ainda, nesse excerto a sensação de abandono causado pelo exílio – perda de um passado, de um lar, de uma terra – e, com a volta, há essa promessa de retomada, de dar cabo àquela vida que esteve em suspenso em razão do tempo vivido entre parêntesis e que, aparentemente, pode facilmente ser retomada. Essa era a ilusão. Assim, retomando, como afirma a protagonista quando nas primeiras linhas reflete sobre sua cidade: “esta era mi ciudad. La reconocía, claro que sí. Pero algo mío había muerto en ella en el momento de partir. Y yo buscaba ese algo diez años después, cuando la ciudad y yo no éramos las mismas.” (ORGAMBIDE, 1987, p. 7)

Além da experiência de estranhamento, há presentes, como um flashback inoportuno, as memórias da repressão e da violência física:

Miré las manos de Alberto, tan cuidadas, como siempre. Imaginé sus manos en las manos de la manicura. Sentí entonces el dolor insoportable de una uña arrancada en el tormento. Pero fue sólo un instante. Siempre ocurría así: en el momento menos esperado, en medio de la conversación más banal, reaparecían algunas imágenes del tiempo atroz. Pero desaparecían rápidamente también. (ORGAMBIDE, 1987, p.11)

Mergulhada na distração das mãos, aquelas que outrora se buscavam, ela reconheceu a permanência daquele cuidado com elas e, subitamente, a memória da dor física. Há outras cenas onde a lembrança da repressão chacoalha a ordem da narrativa: quando ela encontra com seu “carrasco” na rua; quando seus sonhos são interrompidos bruscamente por batidas [fortes e secas] à porta; quando recebe a proposta e o convite para lembrar, para narrar, para testemunhar...

A partir dessas reflexões, pode-se pensar que os princípios fundamentais que mobilizam essa obra são a memória do exílio, como experiência humana, individual e coletiva, igualmente como uma experiência histórica, e uma consciência de um tempo em mudanças, em transformação, um momento de tentativa de conciliação entre os que se foram e os que ficaram na retomada de um projeto democrático na Argentina, nesse “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 298

caso, ressaltando a grande questão do retorno, que é uma das temáticas que impactou a literatura do pós primeira grande guerra, com seu caráter de fragmentação, esfacelamento e desintegração do ser e da experiência. Com a capacidade industrial de destruição, a primeira guerra fragmentou o indivíduo e a experiência, impossibilitando a narração (como já o afirmou Walter Benjamin). Houve uma ruptura tremenda com o tempo pregresso que trouxe à tona a desintegração, a visão pessimista no sentido de que o novo só seria possível a partir de uma montagem [como a cinematográfica] dessas ruínas e desses fragmentos. Dessa forma, como narrar o mundo se não se o sabe o todo, mas, sim em pedaços dispersos? Não há a possibilidade de acumular experiências narráveis...

Nesse romance de Orgambide, parte-se da tensão presente no retorno do exílio, apresentando em seu enredo as consequências desse deslocamento, desse trauma, que representa mais um rompimento com o passado, tanto o passado de luta que motivou o exílio, como o próprio tempo do desterro. Com isso, o texto promove uma possível circularidade entre a realidade histórica – fim do período ditatorial, retomada da democracia, restabelecimento dos direitos individuais – e a realidade ficcional, imaginada, dessa mulher que volta e tem que enfrentar seus medos, suas angústias e suas memórias. Ou seja, de forma paradoxal, é uma obra que está às voltas com a sua própria incapacidade de narrar, de conferir uma ordem a essa trajetória que, embora individual, representa aquele momento social, coletivo.

Por isso, devido aos acontecimentos históricos, do compromisso político e do exílio ao seu retorno, a narradora, que volta, retoma e repete temas como um processo intermitente da memória. O exílio, apresentado como doença, é uma constante. O estranhamento e os encontros e desencontros pelas ruas da cidade também são permanentes. Os cacos da realidade entram nas cenas, como eventos lembrados, como “aquele dia em Ezeiza”, de 1973, da volta de Perón a Argentina.5 Essa passagem no romance é repleta de emoção de uma militante que viveu aquele momento conturbado da volta do líder, Perón. Ela estava no carro com o ex-namorado Alberto e sua esposa, Moira. Ele dirigia para irem, todos, passar o domingo no campo e, conforme a conversa progredia, Alberto guiava mais agressivamente até quase provocar um acidente e o trecho termina em suspenso:

5 Momento referente à volta de Perón à Argentina (desenvolver) também presente em outra obra do mesmo autor: Buenos Aires, la novela. “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 299

Fue sólo un momento, una visión demasiado rápida como para describirla con precisión. Vi, en el parabrisas, el camión sobre el que el auto parecía abalanzarse. Tuve miedo de morir así, de esa manera estúpida, justamente ahora, en que había regresado. Fue sólo un momento y quizá no llegué a pensar en nada, aunque me vi en el suelo, como en esa tarde en Ezeiza, en 1973, cuando sonaron los disparos y la gente echó a correr, cuando El Viejo no acudió a la cita sino los tipos metralleta y anteojos oscuros que disparaban contra la gente, con los músicos del Colón echados en el palco y las voces, los gritos, la cara de un chico ensangrentado y... (ORGAMBIDE, 1987, p. 19)

Afirmando o paradoxo da impossibilidade de narrar e a exigência da narração, com a angústia cada vez maior desse processo de retorno e com o medo constante de enlouquecer, a protagonista e narradora vai a um terapeuta que a aconselha a começar o diário que ela escreve e que resulta no romance que lemos:

(...) un día antes de la audiencia, comencé a escribir esta historia. Como una forma de catarsis, probablemente. Como pequeños fragmentos de la realidad que se me escapaban de las manos y que llevaba al consultorio de Marcelo. Como buena alumna, pensé. O como la enferma que, antes de regresar al mundo necesita que alguien le ayude a encontrar la puerta de salida. (ORGAMBIDE, 1987, p. 149)

Além disso, ela se restabelece como tradutora e seus primeiros trabalhos de volta à pátria são os de traduzir romances de sexo e violência, atividade essa que se torna um ‘lugar’ onde ela se refugia, na ficção, na imaginação, quando quer esquecer. Como no trecho abaixo, em que ela relata sentir falta de Daniel, o namorado que a levou para a militância, com quem fugiu, mas que, ao contrário dela, não sobreviveu: “(...) ahora, su ausencia me pertubaba. Traté de no pensar en él. Abrí el libro policial, con la muchacha muerta en la tapa. “Pude ser yo”, me dije. Pero no era yo. (...) En el subte, comencé a leer el libro y me olvidé de mí” (ORGAMBIDE, 1987, p. 53).

A estratégia encontrada, então, para narrar o inenarrável, o silenciando, é a partir do ato solitário e pessoal do diário, como afirma o próprio autor, Pedro Orgambide, no prólogo de seu diário: “Cierto día descubrí a una de mis tías escribiendo su diário íntimo. Se enojó mucho, me reprendió y me dijo que había cosas que se escriben sólo para uno y que no deben leer los demás. Un diario – deduje – tenía algo de secreto y de prohibido” (ORGAMBIDE, 2002, p. 9). Escrever foi a solução sugerida pelo terapeuta para que ela lidasse melhor com essa volta, com esse processo de [re]adaptação.

E a forma de se ajustar a esse retorno foi encarar, por um lado, as páginas em branco para descrever as tensões, transcrever as memórias, relatar os encontros fortuitos pelas “¿QUÉ HACÉS AQUÍ?”: A NARRAÇÃO DO RETORNO (EM LA CONVALECIENTE DE PEDRO ORGAMBIDE) FERNANDA PALO PRADO 300

ruas; e, por outro, o próprio julgamento. Apesar de ser um momento-chave, essa cena não está no romance, apenas seu final: ela se perde pelos corredores, à procura da luz da rua:

“¿Qué me pasa?” – me pregunté como si fuera otra, una chica tonta que se perdía en la oscuridad. Fui a mirar los letreros con flechas indicadoras. (...) Seguramente iba salir; ya no era cautiva en La Casa y menos en ese Palacio donde se archivaban las culpas y las desgracias y los contratiempos de los hombres. Era otro tiempo (...). (...) Otro espacio, que ya no era el de la enfermedad, pero tampoco el de la salud perdida. Leí los indicadores. Seguí el camino de la flecha. (...) Al fin del pasillo, vi a unos ordenanzas que comentaban un partido de fútbol. Y más atrás la puerta y la luz de la calle. (ORGAMBIDE, 1987, p. 151)

Por fim, a resposta dada pela protagonista à pergunta, de um antigo namorado que a encontrou pelas ruas de Buenos Aires, presente no título deste ensaio foi: “– Volvi – le dije, como si me disculpara” (ORGGAMBIDE, 1987, p.11). E ao final, depois de ter participado no julgamento – com seu testemunho, em cena que não é apresentada aos leitores, apenas a confusão na saída, motivada pela sensação de se perder pelos labirintos daquele palácio –, de ter escrito o diário como outra forma de narrar, ainda assim, não se sente curada: sabe dos desafios que ainda restam para sentir-se saudável novamente. Há, na singularidade de sua narrativa, a discussão relevante de um momento histórico social coletivo de enorme interesse.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Da modernidade à guerra Hispano- Americana: a representação de Cuba nas películas estadunidenses entre 1898 e 1901

GABRIEL CARNEIRO NUNES Licenciado em História e Mestrando em História e Sociedade pela FCL UNESP Assis, com pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

As representações visuais da América Latina realizadas pelos Estados Unidos se configuraram ao longo da história como uma artimanha estética de dominação ideológica para legitimar as atividades imperialistas praticadas aos seus vizinhos. As representações das populações indígenas, que ocupam seu território por direito, trazem sempre aspectos caricatos indicando a “selvageria” e a “periculosidade” das diversas etnias que habitam o país. Também são perceptíveis as representações específicas dos vizinhos latinos, representados em periódicos, filmes, caricaturas e em praticamente todas as formas visuais de comunicações modernas.

Esse tipo de expressão aparece nos meios audiovisuais estadunidenses em larga escala durante o século XX, principalmente durante períodos marcados por guerras ou conflitos políticos, tendo como uma arma ideológica a representação e o retrato do que acontecia. Um exemplo bem marcante encontra-se nas produções cinematográficas produzidas pela divisão de informação e educação das forças armadas onde vários documentários foram dirigidos por grandes diretores, como Frank Capra, a fim de categorizar seus inimigos durante a segunda guerra mundial.

Pensando na trajetória tomada pelo cinema durante o século XX, é de extrema importância retomarmos ao primeiro conflito retratado pela imagem em movimento, a Guerra Hispano-Americana. O seguinte trabalho apresenta a modernidade e a sua demanda pelo movimento e pelo visual no final do século XIX, onde encontramos a DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 303

nação estadunidense debruçada no avanço imperialista pelo continente americano, cruzando interesses de um capitalismo industrial bélico e do desenvolvimento e difusão das produções cinematográficas por todo o país.

A fonte utilizada para o desenvolvimento desta pesquisa estreita-se na coleção digital Spanish-American War in Motion Pictures que faz parte do acervo American Memory, este disponibilizado a livre acesso pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, onde podemos encontrar um extenso conteúdo de películas, artigos, documentos e ensaios baseados na descoberta de registros fílmicos em rolos. A criação deste material teve como utilidade principal a proteção autoral diante da inexistência de leis de patentes para as películas em nitrato. A chamada paper print collection foi encontrada em 1940 armazenada em um cofre lacrado na Biblioteca do Congresso, nele foi encontrado cerca de cinco mil rolos de papeis onde as companhias cinematográficas se utilizaram para registrar emcopyright fotogramas individuais de seus filmes durante os anos de 1894 até 1912, buscando assim um amparo legal para suas criações e evitando a pirataria. Diante destes rolos de papeis encontrou-se uma coleção de filmes sobre a Guerra Hispano-Americana que nos fornece sessenta e oito filmes produzidos pela Edison Manufacturing Company e pela American Mutoscope & Biograph Company durante os anos de 1898 e 1901.

As películas se referem a encenações, recriações e registros diretos e indiretos dos processos bélicos de marchas comemorativas e de todos os elementos possíveis à filmagem em 1898 que retratassem a temática voltada à guerra Hispano-Americana ocorrida entre Cuba, Estados Unidos, Espanha, Porto Rico e Filipinas. O interesse que surge frente a essas películas, nasce diante da relação entre espectador moderno norte- americano, urbanizado e industrializado, perante a necessidade crescente do visual como demanda desta sociedade tecnocrata. Além das demandas financeiras que motivaram as duas empresas a gravarem tamanha quantidade de material fílmico, despertam-se as dúvidas entre a relação sobre o que é de interesse visual moderno e o conflito político que marca o início da era imperialista dos Estados Unidos diante a América Latina.

A guerra Hispano-Americana se insere historiograficamente ao “moderno”, conceito determinado por um estado de alteração temporal ocorrido nas sociedades que politicamente se engajaram no abandono das práticas de governabilidades vindas através de uma herança medieval, se desafiando a aventuras diante das novas ideias e formas DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 304

de regimento social desenvolvidos pela sociologia moderna. As passagens históricas marcam uma destas transformações na sociedade ocidental diante do que Nicolau Sevcenko chamou de revolução técnico-científico (SEVCENKO, 2001, p 15) - mudanças arraigais que transcenderam os limites do ambiente urbano adentrando nos corpos e nas percepções dos indivíduos. O orgânico se confunde com o mecânico, as novas tecnologias estendem os limites corporais do homem, o bonde e o trem diminuem as distâncias e criam no indivíduo uma velocidade nunca vista até então. As percepções espaciais se (des)dobram com as novas temporalidades de locomoção, as luzes da cidade fazem da noite um momento de vivências e experiências, diferente do período em que a falta de energia elétrica permitia a escuridão silenciar a vida social boêmia, a industrialização transformou os ritmos e as condições de vida dos indivíduos.

As relações entre o início do cinema nos Estados Unidos, crescente potência em alto ritmo modernizador, e as alterações sociais no meio urbano caminham paralelas em um período histórico onde se inaugura uma era de predominância das imagens (COSTA, 2005, p.5.) trazendo no seio destas relações a linguagem cinematográfica como a mais influente entre as formas de comunicação em massa desenvolvidas no final do século XIX. Através deste diálogo encontramos o florescimento das imagens em movimento como demanda de uma sociedade tecnocrata, industrial, metropolitana e imperialista. Fazendo desta invenção uma forma variada de modalidades de espetáculos que se manifestavam culturalmente entre os imigrantes, economicamente entre os produtores e industriais e politicamente no formato de nova comunicação em massa (SKLAR, 1975, p.23). Com caráter de espetáculo dependente de outras formas de entretenimento, os primeiros filmes, em suas inúmeras faces, se embaralhavam a diversas estruturas de diversões exibidas nas casas de shows variados comumente chamadas de Vaudevilles. As películas acompanhavam os espetáculos de lanterna mágica, dos teatros populares, de danças, dos malabares, das apresentações com animais, dos burlescos show de horrores, dos gigantescos circos de curiosidades entre outras formas de apresentações.

As películas podem se dividir em inúmeras temáticas a partir do seu conteúdo: filmes que apresentam paradas militares, embarques e desembarques de soldados em encouraçados, reproduções de batalhas, acampamentos militares, personagens históricos entre outros. A diversidade de assuntos trabalhados pelos filmes se torna um empasse no decorrer da pesquisa devido a abrangência de temas capazes de serem DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 305

trabalhados pelo viés historiográfico, partindo deste pressuposto, podemos pensar em 2 exemplos a serem analisados. O primeiro que demonstra a utilização de películas como ferramenta de enaltecimento da cavalaria voluntária chamada de Rough Riders, iniciadas pelo já influente Theodore Roosevelt e amplamente retratadas e registradas dentro do acervo. A utilização de recriações encenadas é bastante presente dentro da retratação dos Rough Riders, cenas de batalhas ensaiadas ou registros da tropa podem nos mostrar a influência e a utilização dos registros fílmicos como um aspecto fundamental para a aproximação entre política e cinema durante o século XX. O próprio presidente dos Estados Unidos, durante o conflito, William McKinley foi o primeiro candidato presidencial dos EUA a ser filmado, aparecendo na tela menos de seis meses depois que as primeiras imagens em movimento projetadas foram exibidas comercialmente nos Estados Unidos. O acervo que também retrata amplamente McKinley, inaugura uma longa intimidade entre política e cinema na América do século XX que culminaria com a presidência do ator Ronald Reagan. William McKinley é também o primeiro presidente dos Estados Unidos cujo funeral aparece no cinema, tendo sido assassinado de forma pública espetacular na Exposição Pan-Americana de 1901 por um atirador anarquista.

Esta relação é apresentada de forma ingênua, com reproduções altamete dramatizadas ou registros que durante as exibições nos Vaudevilles se mistruarariam com outras películas e dariam liberdade ao exibidor do espetáculo reproduzir as principais manchetes publicadas sobre o conflito ou até mesmo criar narrativas fantasiosas sobre o mesmo. Para demonstrar essa atividade podemos pensar na película Skirmish of Rough Riders, reencenada em junho de 1899 em Nova Jersey. O filme nos apresenta uma hipotética situação onde em uma encruzilhada o pelotão de Roosevelt se encontra tentando avançar na batalha, o inimigo não está em cena, apenas um cavalo deitado sendo utilizado como barricada por soldados já tombados. Após alguns disparos os soldados marcham a diante para confrontar seus inimigos espanhois. Esté é um exemplo de uma película recostituida onde a carencia de narrativa cinematográfica permitia uma manipulação da história dentro dos teatros de variedades. DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 306

Título: “Skirmish of Rough Riders”. Fonte: BRANCO, 1899.

Outra película, Roosevelt Rough Riders, filmada em Abril de 1898, mostra a cavalaria em treinamento para as batalhas, a camera recebe duas ondas de pelotões, a primeira delas vindo de frente a camera como se estivessem a confronta-la, fazendo uma curva bem diante do cameraman. A segunda que entra em cena logo em seguida marcha de forma a demonstrar a força e o poderio bélico da unidade.

Título: “Roosevelt Rough Riders”

Fonte: American Mutoscope e Biograph Company., 1898.

Podemos imaginar a junção das duas películas sob o comando de um narrador- apresentador durante as exibições, onde inspirado pelas principais manchetes dos periódicos mais circulados durante o período, como é o caso do New York Journal de Willian Hearst que se aproveitou das situações da guerra para sensacionalizar as DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 307

informações e duplicar suas vendas diárias. Neste caso, a junção das películas pode criar uma situação parecida com as notícias de desembarques e de batalhas publicadas diariamente e encontramos nos filmes uma capacidade de dar movimento e dinamica ao que antes era somente lido ou visto em representações estáticas dentro dos periódicos. Trazendo uma solução para os anseios do indivíduo moderno, que vivia o movimento de alta urbanização, de alta industrialização e necessitava cada vez mais do dinámico, de ver com os próprios olhos o que era só visto em litografia.

Ao publicar sobre as atrocidades espanholas em Cuba, o New York Journal tinha em suas vendas um aumento estrondoso, em Nova Iorque a circulação do jornal de Hearst subiu de 30.000 em 1895, para 400.000 em 1897 (SCHOULTZ, 2000, p. 158), apenas retratando conflitos entre mercantes americanos e espanhóis e conflitos e abusos em cima da população cubana. Após o naufrágio polêmico do encouraçado americano Maine, no porto de Havana (estopim dos conflitos), o Journal dedicou uma média diária de oito páginas ao evento durante uma semana, fazendo com que se tornasse o primeiro jornal a vender um milhão de cópias em apenas um dia. Enquanto as atrocidades eram lidas, as películas também reproduziam os fatos muitas vezes de forma exagerada e encenada, reproduzindo os eventos no gênero intitulado Atualidades Recriadas.

Um segundo exemplo se baseia na película Shooting Captured Insurgents, de 1898, encenada possivelmente no próprio solo norte americano, recria um ambiente tropical cubano com plano de fundo uma construção abandonada, nela soldados espanhóis colocam cubanos enfileirados e aniquilam os “insurgentes” que lutavam pela independência da ilha. A atuação é nítida e a repetição do cenário na película Cuban Ambush (1898) demonstram a característica de recriação, trazendo também a representação de como eram tratados os cubanos revoltosos contrários ao reino espanhol. Cuba, segue sendo representada como uma ilha indefesa perante ao cenário imperialista presente nos países capitalistas industriais, tendo sempre sua representação voltada a uma imagem desesperada e que necessita de ajuda em seu processo de independência, incapaz de auto governar-se. DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 308

Título: Shooting Captured Insurgents

Fonte: BRANCO, 1898.

A figura publicada pela Puck Magazine em 04 de maio de 1898, representa a necessidade da intervenção norte americana a Cuba, que é ilustrada como uma frágil donzela mestiça que se esconde da tirania espanhola no poderio bélico norte-americana figurado pelo Tio Sam. A incapacidade de autodefesa e de autogestão de Cuba é uma ideia criada através destas imagens que apelam para o sensacionalismo visual, enquadrando a narrativa as demandas modernas de informação. A produção das ilustrações em litografia possuem uma participação importante na formação da opinião pública, o visual parte de uma importante proposta e demanda do início da modernidade, ela compõem um dos pilares relacionados a propaganda nacionalista da década de 1890, trazendo consigo a linguagem mais escarnada sobre os interesses imperialistas norte- americanos juntamente com uma trágica presença de sua supremacia racial com fundamentos eugênicos que consolidam e justificam suas ações bélicas.

Título: “The duty of the hour; - to save her not only from Spain, but from a worse fate”

Fonte: DALRYMPLE, 1898 DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 309

As litografias do cartunista Louis Darlrymple, formado pela Academia das Belas Artes da Pensilvânia, podem demonstrar paralelos entre as narrativas cinematográficas produzidas durante o conflito e as imagens impressas em periódicos impressos. Quando analisadas juntamente aos filmes nota-se os preceitos políticos e ideológicos que a linguagem visual foi capaz de promover diante da modernidade. O cartunista que se tornou o principal retratista cômico da guerra ao representar os preceitos políticos da guerra em revistas de grande circulação no período, deixa em seus desenhos claras propostas imperialistas e nacionalistas expressas em sátiras. A produção de ilustrações em litografia possuiu uma participação na construção da opinião pública estadunidense, pois foi através do visual que se desenvolveu uma importante proposta e também refletiu a enorme demanda pelas linguagens visuais na comunicação presente no período da modernidade. Os impressos em imagens compõem um dos pilares relacionados a propaganda nacionalista da década de 1890, trazendo através do escarnio os interesses imperialistas norte-americanos juntamente com uma trágica participação de supremacia racial, com fundamentos eugênicos que visaram a consolidação de suas ações bélicas aos países latinos.

As informações cinematográficas aderiram as narrativas complexas de uma modernidade urbana em crescimento. A forma dos primeiros filmes trazia ideologicamente uma postura ligada as litografias publicadas em revistas semanais, as informações sensacionalistas dos jornais e a um espectro nacionalista e imperialista suprematista que dava início a era de dominação imperial e cultural norte-americana para além de suas fronteiras. A guerra Hispano-Americana apresenta-se como o primeiro conflito filmado sobre ótica, muitas vezes intencional, do período nacionalista que apresenta novas formas de linguagem na década de 1890. A compreensão de uma modernidade norte- americana juntamente a criação de uma nova tecnologia capaz de reproduzir imagens em movimento altamente difundidas em teatros de variedades e a apresentação de uma linguagem burlesca e nacionalista nos impulsionam a crer que os elementos visuais iniciaram seus usos imperialistas a partir de uma ótica modernista perante ao imagético.

As produções cinematográficas concluídas entre os anos de 1898 e 1901, apresentavam uma união a outras linguagens intricadas ao visual, que apareceram na sociedade moderna em fase de desenvolvimento industrial e bélico, trazendo com isso uma primeira forma fílmica correspondente a seus objetivos de apresentar uma postura ligada a um “repertório de referências culturais amplas – compartilhado por DA MODERNIDADE À GUERRA HISPANO-AMERICANA: A REPRESENTAÇÃO DE CUBA NAS PELÍCULAS ESTADUNIDENSES ENTRE 1898 E 1901 GABRIEL CARNEIRO NUNES 310

mídias como os jornais, as revistas ilustradas, os folhetins, o teatro, o circo, o museu de cera, a feira e a própria fotografia - dramatizando o real de maneira espetacular” (CESARINO, 2008: 203). Encontra-se também, a presença de um sensacionalismo das notícias ligadas à guerra, trazendo o nacionalismo e o imperialismo que dava início a era de dominação estadunidense para além de suas fronteiras já estabelecidas. A guerra Hispano-Americana apresentou-se como o primeiro conflito onde a câmera o representou e o recriou, já apresentando novas formas de linguagem visual presentes na década de 1890. A abrangência do desenvolvimento de uma modernidade norte-americana ao lado da criação de uma recém desenvolvida tecnologia que demonstrou-se capaz de reproduzir imagens em movimento com alta capacidade de difusão entre a camada da população estadunidense, soma-se a nova formulação de uma narrativa burlesca que de forma ingênua nos levam a propor que os rudimentos visuais iniciaram seus usos imperialistas a partir de uma ótica modernista perante ao imaginário, difundindo-se ao público e se descobrindo como um elemento com grande capacidade de transmissão de preceitos políticos e ideológicos.

BIBLIOGRAFIA

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IMAGENS

DALRYMPLE, Louis. Puck Magazine. Nova Iorque, 1, 05, 1898. The duty of the hour; - to save her not only from Spain, but from a worse fate. Vol. 43, No 1105. < Disponível em [https://www.loc.gov/item/2012647469/] Acesso em: [15/07/2018] 312

Campesinato na América Latina e o ensino de História da América

GERSON LUIZ BUCZENKO Doutor em Educação; Docente no Colégio Cenecista Presidente Kennedy e na Faculdade CNEC, Campo Largo/PR. E-mail: [email protected]

Introdução

O presente artigo buscar conhecer a realidade campesina na América Latina relacionando-a com o Ensino de História da América, em função da importância desta temática para a formação dos movimentos sociais que defendem a luta pela terra, presentes em todo o território Latino-Americano. Dessa forma, os objetivos específicos foram assim definidos: analisar a realidade campesina na América Latina em seus objetivos e lutas; analisar a luta pela terra no Brasil, com base nos princípios do MST; relacionar a atualidade dos movimentos campesinos e o ensino de História da América. A indagação de pesquisa foi estabelecida da seguinte forma: a luta campesina está presente no ensino de História da América?

Segundo Rosset (2016) os movimentos sociais rurais constituídos por populações camponesas, indígenas e outras populações rurais defendem ativamente os espaços rurais, contestando-os com os agronegócios nacionais e transnacionais, bem como com outros atores do setor privado e seus aliados nos governos. Nesta defesa, eles se organizaram cada vez mais em alianças de movimentos e organizações transnacionais. Constituindo-se, assim, uma temática atual para o debate histórico sobre a realidade latino-americana.

No entanto, verifica-se que o tema campesinato ainda é pouco explorado nos livros de História da Educação Básica e Ensino Médio no Brasil, geralmente a abordagem ocorre por meio da dicotomia entre campo e cidade, ou rural e urbano, seja para definir os movimentos históricos de rebeldia ou resistência, seja para explorar as relações de poder CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 313

advindos do latifúndio que marcam a trajetória histórica, da colonização até os dias atuais, principalmente, em relação ao Brasil.

1. A Realidade “Campesina” no Brasil e a luta pela terra

A análise da realidade campesina no Brasil, passa obrigatoriamente por um intercâmbio de diferentes visões, em função do próprio processo de colonização que impactou de forma diferenciada o continente. Assim, inicialmente procura-se caracterizar o campesinato brasileiro, tarefa da qual vários autores de debruçaram e se posicionaram como é o caso de Caio Prado Junior em sua obra intitulada “A questão agrária” (1979), que em nota prévia de sua obra afirma que

trata-se do enquadramento, ou antes, tentativa teórica de enquadramento da reforma agrária brasileira num suposto processo socioeconômico que significaria, assim se predestina, a transição de “restos feudais” ou “pré-capitalistas”, para uma nova etapa capitalista e progressista. Ora, essa concepção que se apresenta, além de muito confusa e vacilante, em diferentes variantes, tem levado à conclusões, às vezes simplesmente utópicas e irrealizáveis decalcadas em modelos europeus de passados séculos, como seria sumária a distribuição de terras entre camponeses – note-se bem, camponeses na acepção daqueles modelos que não o caso da maior parte dos trabalhadores rurais brasileiros; outras vezes, posições em que se subestimam as medidas voltadas para a regulamentação legal das relações de trabalho rural (legislação rural-trabalhista); ou então se confunde a reforma agrária com circunstâncias que dizem respeito a questões tecnológicas e de aperfeiçoamento da exploração agrária brasileira (PRADO JUNIOR, 1979, p. 9-10).

Outros autores, respeitando o posicionamento anteriores, como Cunha (2012, p. 01), por exemplo, defendem o campesinato como uma categoria política, sendo o “camponês compreendido como uma classe que não expressa inteiramente a realidade rural do país em seus processos históricos de formação e de organização social”.

Para Marques (2002, p. 145), o campesinato é

(...) um conjunto de práticas e valores que remetem a uma ordem moral que tem como valores nucleantes a família, o trabalho e a terra. Trata-se de um modo de vida tradicional, constituído a partir de relações pessoais e imediatas, estruturadas em torno da família e de vínculos de solidariedade, informados pela linguagem de parentesco, tendo como unidade social básica a comunidade.

CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 314

No Brasil, segundo Wanderley (2014, p.30) a referência ao campesinato assume dupla conotação.

Por um lado, o campesinato corresponderia, para muitos, às formas mais tradicionais da agricultura, realizadas em pequena escala, dispondo de parcos recursos produtivos, pouco integrado ao mercado e à vida urbana e frequentemente identificado à incivilidade e ao atraso econômico e social. Neste sentido, ele se distinguiria da agricultura familiar, a qual, apesar de ter também condições de produção restritas, estaria mais integrada às cidades e aos mercados. Por outro lado, a palavra “camponês” carrega um forte conteúdo político, pois ela é frequentemente associada ao movimento camponês, que foi duramente perseguido, como “subversivo” pelos governos militares, que dirigiram o Brasil de 1964 a 1985. A busca de uma expressão politicamente mais “neutra” levou, nesse período, a que fossem adotadas, oficialmente, denominações como “pequenos produtores”, “agricultores de subsistência”, “produtores de baixa renda” que, além de imprecisas, carregavam um forte conteúdo depreciativo.

Segundo a Organização das Nações Unidades para a Agricultura e Alimentação (FAO), em texto intitulado “Participación Campesina para una Agricultura Sostenible en Países de América Latina”, (FAO, 1994), as organizações campesinas

también llamadas organizaciones locales, comunitarias, rurales o populares son agrupaciones de base, formales o informales, voluntarias, democráticas, cuyo fin primario es promover los objetivos económicos o sociales de sus miembros. Independientemente de su situación jurídica o grado de formalización se caracterizan por ser grupos de personas que tienen por lo menos un objetivo común. Actúan conjuntamente ante las autoridades locales asociadas a la idea del desarrollo “de abajo hacia arriba” y constituyen mecanismos para la obtención de créditos, insumos, capacitación y otros servicios promoviendo el bienestar de sus miembros. Los pequeños agricultores, trabajadores rurales, campesinos sin tierra, y otros grupos desventajados de la población rural no tienen poder de negociación suficiente para lograr que sus pedidos sean atendidos. De ahí la importancia de agruparse y aunar esfuerzos para formular ante las autoridades demandas que representen los intereses de la totalidad de sus miembros (FAO, 1994).

Verifica-se, assim, que o conceito “camponês” ou “campesinato”, assume uma forte conotação política e social, ressaltando o vínculo entre família, terra e trabalho. Agregado a este vínculo está a resistência ao domínio do latifúndio e a luta pelo direito à terra, principalmente por parte do pequeno produtor dedicado à agricultura familiar, que além da subsistência, comercializa quando possível seus pequenos excedentes. Em defesa deste modo de pensar, em função de todo um quadro histórico de retrocesso e repressão no Brasil, principalmente, durante a Ditadura Militar, germinaram focos de resistência que culminam na fundação, em 1984, do CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 315

Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST1). Por sua vez, o Movimento Sindical Rural, que existia desde o início dos anos 1960, se fortalece, então, sob a liderança da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag2). São estes movimentos, cada um a seu modo, que reinscrevem no debate da sociedade, a atualidade da questão fundiária e a pertinência das lutas pela terra pelos camponeses expropriados ou com pouca terra (WANDERLEY, 2014, p. 29).

Neste contexto de lutas e resistência fortalecido pela presença dos movimentos sociais, presentes na atualidade no cenário brasileiro, se consolida o conceito do campesinato como se vê nas palavras de Oliveira,

(...) a luta pela terra desenvolvida pelos camponeses no Brasil é uma luta específica, moderna, característica particular do século XX. Entendo que o século passado foi, por excelência, uma época de formação e consolidação do campesinato brasileiro enquanto classe social. Assim, esses camponeses não são entraves ao desenvolvimento das forças produtivas, impedindo o desenvolvimento do capitalismo no campo; ao contrário, eles praticamente nunca tiveram acesso à terra, sendo, pois, desterrados, “sem-terra”, que lutam para conseguir o acesso à terra. É no interior destas contradições que têm surgido os movimentos sociais de luta pela terra, e com ela os conflitos, a violência(OLIVEIRA, 2001, p. 189)3.

Em relação ao movimento campesino, conceito então consolidado em seu caráter social e político, tem como principal suporte na atualidade o contexto dos movimentos sociais e, entre estes, o MST. Entre os objetivos do MST estão apontados lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por uma sociedade mais justa. Estes objetivos

estão manifestos nos documentos que orientam a ação política do MST, definidos em nossos Congressos Nacionais e no Programa de Reforma Agrária. Além disso, lutar por uma sociedade mais justa e fraterna significa que os trabalhadores e trabalhadores Sem Terra apoiam e se envolvem nas iniciativas que buscam solucionar os graves problemas estruturais do nosso país, como a

1 Contexto histórico do MST. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2018.

2 Em março de 1963, o governo de João Goulart promulgou o Estatuto do Trabalhador Rural, que garantia aos trabalhadores e trabalhadoras rurais os direitos sindicais, trabalhistas e previdenciários já assegurados aos trabalhadores(as) urbanos. Nesta época, o país vivia um momento de forte atuação política e sindical. Existiam 475 Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais no Brasil, dos quais 220 eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Finalmente, em 22 de dezembro de 1963, trabalhadores(as) rurais de 18 estados, distribuídos em 29 federações, decidiram pela criação da CONTAG, que foi reconhecida em 31 de janeiro de 1964. Então, a CONTAG torna-se a primeira entidade sindical do campo de caráter nacional, reconhecida legalmente. Disponível em:

. Acesso em: 06 jul. 2018.

3 Entre 1985 e 2017 a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou um total de 47 massacres, que vitimaram 237 pessoas em dez estados brasileiros. Disponível em: . Acesso em 06 jul. 2018. CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 316

desigualdade social e de renda, a discriminação de etnia e gênero, a concentração da comunicação, a exploração do trabalhador urbano, etc. Sabemos que a solução para estes problemas só será possível por meio de um Projeto Popular para o Brasil - fruto da organização e mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras. E confiamos que a realização da Reforma Agrária, democratizando o acesso à terra e produzindo alimentos, é nossa contribuição mais efetiva para a realização de um Projeto Popular. Por isso, o MST participa também de articulações e organizações que buscam transformar a realidade e garantir estes direitos sociais. Nacionalmente, participamos do Fórum Nacional da Reforma Agrária, da Coordenação dos Movimentos Sociais e de campanhas permanentes ou conjunturais. Internacionalmente, somos parte da Via Campesina, que congrega os movimentos sociais do campo dos cinco continentes.

Entre os princípios estabelecidos pelo MST, pode-se citar também: ocupar, produzir e resistir. Demonstra-se, assim que é um movimento que vai além das reivindicações, agindo de forma pontual, contrariando muitas vezes as orientações governamentais, e exigindo o reassentamento das famílias dos acampamentos. Uma ação que, por vezes, é vista com contrariedade pelo aparato legalista, porém, que vem produzindo inúmeros resultados positivos nas últimas décadas, apesar do quadro de violência no campo e as tentativas legislativas de criminalizar as ações dos movimentos sociais4.

Como destaca Oliveira (2001, p.196)

Quem quiser conhecer e entender o MST terá de entender este processo de luta calcado nos acampamentos, portanto, nas ocupações e na luta nos assentamentos. Assim, o MST é um movimento que articula simultaneamente a espacialização da luta, combinando-a contraditoriamente com a territorialização deste próprio movimento nos assentamentos. Possui e dá importância à sua estrutura organizativa democrática, de base, efetivamente de massa. Estrutura organizativa que respeita as diferenças desses movimentos em várias partes do país, e que tem um coletivo nacional representante das diferentes regiões onde o movimento atua. É um movimento diferenciado, pois respeita as decisões tomadas coletivamente. É um dos poucos lugares deste país onde a discordância se dá na discussão de uma determinada concepção ou na tomada de uma decisão. Mas, uma vez vencida uma proposta, ela é abraçada por todos e levada à prática por todos. Esta prática, infelizmente, não ocorre nos partidos políticos, não ocorre em setores do movimento sindical (OLIVEIRA, 2001, p.196).

Assim, neste quadro de antagonismos fortalece-se politicamente a defesa da agricultura familiar e do pequeno produtor, dos extrativistas, dos pescadores artesanais, dos ribeirinhos, dos assentados e acampados da reforma agrária, dos trabalhadores assalariados rurais, dos quilombolas, dos caiçaras, dos povos da floresta, dos caboclos

4 Para maiores informações ver “Avança na Câmara Projeto de Lei que criminaliza movimento sociais”. Disponível em: . Acesso em: 07 jul. 2018. CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 317

e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural5. Constitui-se, assim, um tipo diferenciado de campesinato, diverso como é a principal característica do Brasil, mas que está presente politicamente, agindo e exigindo o devido reconhecimento social, mesmo diante da opressão imposta pela lógica de uma sociedade capitalista, que impõe um modelo hegemônico de agricultura por meio do agronegócio, desconsiderando a base social do campesinato brasileiro fundado na família, terra e trabalho.

2. O Campesinato na América Latina

Em relação ao movimento campesino nos demais países da América Latina e do restante do globo é figura marcante a Via Campesina (2018), atualmente com 182 organizações e presente em 81 países

La Vía Campesina es un movimiento internacional que reúne a millones de campesinos, agricultores pequeños y medianos, sin tierra, jóvenes y mujeres rurales, indígenas, migrantes y trabajadores agrícolas de todo el mundo. Construido sobre un fuerte sentido de unidad, la solidaridad entre estos grupos, que defiende la agricultura campesina por la soberanía alimentaria como una forma de promover la justicia social y dignidad y se opone fuertemente a los agronegocios que destruyen las relaciones sociales y la naturaliza (LA VIA CAMPESINA, 2018).

A Via Campesina ainda estabelece como frentes de luta: a defesa da agroecologia e sementes nativas; dos direitos de campesinos e campesinas; pela justiça climática e do meio ambiente; da soberania alimentar; pelos direitos dos trabalhadores emigrantes e assalariados; pela solidariedade internacional; pela terra água e territórios. A organização percebe ainda como enfrentamentos necessários: atuar contra o capitalismo internacional e o livre comércio; lutar contra o patriarcado; enfrentar as transnacionais e o agronegócio. Assim, a Via Campesina se faz presente no âmbito internacional, atuando em reforço aos enfrentamentos regionais e locais em diversos locais do globo6.

5 Ver o Decreto Federal nº 7.352, de 4 de Novembro de 2010, que dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, que em seu Art. 1º, parágrafo 1º, conceitua populações do campo.

Disponível em: . Acesso em: 07 jul. 2018.

6 Como exemplo da atuação e acompanhamento dos eventos que ocorrem em diversos países ver “Boletín Electrónico Mayo 2018”. CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 318

Em relação à América latina Vega (2017, p. 17), defende uma relação direta entre as fases do capitalismo vivenciado no continente e os movimentos campesinos e indígenas. Segundo a autora entre 1940 e 1980, com o clima de pós-guerra houve o incremento de substituição de importações e o meio rural passou a ser altamente rentável com estímulo às exportações de produtos primários.

Esta situación trajo consigo que la disputa rural fundamental recayera en la lucha por la tierra. El movimiento campesino em Brasil comandado por las Ligas Camponesas bajo la dirección de Francisco Juliao, que tuvo su centro principal en el nordeste del país; la Unión de Ligas Campesinas Formoseñas en Argentina; el movimiento dirigido por Hugo Blanco en Perú; la Federación Campesina de Venezuela que impulsó la toma de tierras en 1958 y llevó a la promulgación de la Reforma Agraria; el movimiento de José Rojas durante el gobierno de Paz Estenssoro en Bolivia y el gran movimiento campesino por la tierra desarrollado en México em los años 1970, bajo la dirección de la Coordinadora Nacional Plan de Ayala, son solo algunos botones de muestra de la lucha por la tierra que imperó en la posguerra. (VEGA, 2017, p. 17).

A autora prossegue afirmando que durante os anos 80, com a crise do modelo de substituição de importações, levou-se a exclusão dos camponeses do processo de produção dos alimentos básicos, e a luta pela terra passou a simbolizar também a permanência do campesino no ciclo produtivo. Com a consolidação do neoliberalismo nos anos 90, ocorreu a substituição da produção camponesa pela produção de importados em grande escala, somando-se a este quadro a demanda pela privatização das empresas estatais que resultou no corte de gastos em investimentos, que impactou diretamente nas populações mais pobres e entre estas, os campesinos. Nos anos 2000, com a ampliação das monoculturas voltadas para exportação, somado ao processo de intensa liberação e aumento incipiente de preços dos produtos agrícolas, o movimento indigenista começou a se unir ao campesino (VEGA, 2017, p. 18).

Vega (2017), argumenta ainda sobre a fase de transição capitalista a partir de 2003, com o aumento paulatino de preços do petróleo e seus derivados, levou ao declínio do regime de acumulação. Importante salientar ainda a crise econômica dos EUA que vem a impactar diretamente o continente. Segundo a autora de 2008 a 2013, com a crise ainda do capital se instala também uma crise alimentar, dada a condição dos Estados com grande dificuldade de recuperação, por outro lado, há o avanço das Transnacionais do

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agronegócio, da mineração e dos agro combustíveis, impactando ainda mais a condição dos campesinos na América Latina.

A diferencia del anterior ciclo, en el que predominó el movimiento de productores medianos y pequeños; en este ciclo cobra fuerza la lucha de los indígenas por la defensa de los territorios y los recursos naturales. Se observa, por tanto, una “indianización” del movimiento campesino. Otro rasgo particular del nuevo ciclo del movimiento lo constituye la lucha generada por la crisis alimentaria. En un conjunto de países se registra un movimiento en contra de la carestía de los alimentos, por aumento del precio de los productos, por la creación de una reserva alimentaria, y en contra de los acuerdos comerciales y la dependencia alimentaria. Este movimiento ha tomado como bandera de lucha la soberanía alimentaria (VEGA, 2017, p. 23).

Nestes embates a organização campesina se fortalece na América Latina, mesmo a contragosto de muitos governos que se alinham ao perfil neoliberal, com cortes vertiginosos em investimentos sociais, bem como ao mais conservadores, que ainda beneficiam às oligarquias do latifúndio e se colocam na condição de reféns das empresas transnacionais. Neste sentido, o caso do Brasil é exemplar e segundo Leite e Sauer

o volume de aplicações estrangeiras em terras brasileiras tem sido objeto de manifestações contrárias, inclusive, de segmentos representativos do chamado “agronegócio” brasileiro, bem como de editoriais da grande imprensa. É interessante notar que mesmo nesses setores que advogam uma perspectiva “pró-mercado”, há claramente uma posição de alerta com a quantidade de terras sendo adquiridas por estrangeiros, distanciando-se, portanto, das recomendações do estudo do Banco Mundial, mais voltado a explorar as janelas de oportunidades dessas novas áreas por meio do que vem sendo denominado de “investimentos responsáveis” (LEITE E SAUER, 2014, p. 228)7.

Em relação à América Latina de uma forma geral Almeyra relata que a mundialização

condujo, por outra parte, a um fenómeno nuevo. Los grandes grupos capitalistas mexicanos asó como las compañías transnacionales (sobre todo estadounidenses y canadienses) ocupan el 26% del territorio mexicano compitiendo por el agua con las poblaciones y la agricultura. Además, apenas pagan impuestos, pues entre 2005-2010 obtuvieron 552 mil millones de pesos de ganancias y sólo pagaran 6000, cerca del uno por ciento. El mismo fenómeno se observa en otros países latino-americanos, como Bolivia o Perú y em la región andina argentina. Durante el gobierno de Felipe Calderón em México, el número de concesiones mineras concedidas aumentó em un 224% con respecto al gobierno anterior. Em Argentina el gobierno de Cristina Fernández de Kirchner hizo exactamente lo mismo y llegó a inaugurar una compañía estatal de producción de carbón para una usina de carbón situada junto a los glaciares el mismo día en que los países del mundo resolvían reducir las emisiones carboníferas. (ALMEYRA, 2017, p.156)

7 Importante citar também o Artigo intitulado “Monopólios, desnacionalização e violência: a questão agrária no Brasil hoje”, de autoria de Luiz Bernardo Pericás, que vem a reforçar este pensamento. CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 320

Segundo ainda Rosset (2016) em um mundo cambiante, os últimos vinte anos de luta agrária, passaram por uma evolução do pensamento e da visão dos movimentos sociais como é caso de La Via Campesina, estando assim mais comprometidos com a luta pela terra e território. Com sucessos e fracassos o movimento “campesino”, principalmente, na América Latina se faz presente em todos os momentos em que o debate pelos recursos naturais e a vida humana estão em jogo.

Assim, se faz necessário reconhecer este movimento, o campesinato, como um elemento aglutinador da resistência ante aos novos ataques do capitalismo, em suas novas roupagens e modelos. Um movimento que sempre se manifestou na História da América Latina, embora sufocado pelas oligarquias rurais e regimes ditatoriais que ocorreram e deixaram um forte legado de conservadorismo, que se manifesta ainda na conformação dos Estados na atualidade e na própria cultura dos povos que geralmente, além de desconhecer a realidade campesina de seus países, carregam uma visão hegemônica de preconceito em relação aos povos do campo.

3. Os movimentos campesinos e o ensino de História da América

O ensino de História da América na Educação básica brasileira, ainda ocorre por formatos previamente estabelecidos, diante do predomínio de Livros Didáticos, que seguem, por sua vez, os determinantes das grandes editoras que dominam este cenário na atualidade8. Assim, a abordagem dos conteúdos da História da América permanece muito ligada aos principais fatos políticos e dos atos dos governantes. Um dos fatores agravantes, no caso brasileiro é a exigência destes conteúdos nos exames vestibulares, para o acesso a uma vaga na Universidade pública, condição que impossibilita, por vezes, o aprofundamento em conteúdos que possam propiciar um estudo diferenciado das realidades históricas vividas na América, principalmente, quando da atuação do povo, seja no formato de reivindicações, seja na resistência aos ditames estabelecidos.

Assim, ao consultar algumas obras que se dedicaram ao estudo sobre a História da América verifica-se que a abordagem em relação aos povos originários e do campo, que venha a caracterizar o campesinato, ocorre de forma tradicional, como é o caso das obras de:

8 Para maiores informações acessar o Guia Digital do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) 2018, optando pela Disciplina de História. Assim é possível acessar uma resenha de cada obra ofertada pelo Governo. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2018. CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 321

- DONGHI, Túlio Halperin. História da América Latina. 4. ed. 2. Imp. São Paulo: Paz e Terra, 1975 (391p): seu sumário é bastante simples, não havendo elementos que indiquem uma preocupação do autor em relação a atuação dos povos originários ou do campo; o autor apresenta uma abordagem mais detalhada dos cenários políticos e das revoltas/revoluções, porém sem dar oportunidade para que outros sujeitos históricos sejam evidenciados;

- CHAUNU, Pierre. História da América Latina. 3.ed. São Paulo: Difel, 1976 (126p): em seu sumário não há nenhum elemento que indique uma abordagem diferenciada para os povos tradicionais ou do campo; apresenta uma História muito ligada aos fatos considerados como mais importantes, porém existe em seus capítulos finais uma crítica pontual à liberdade na América Latina;

- CAMPOS, Raymundo. História da América. São Paulo: Atual, 1982 (234p): em seu sumário também não há nenhum indicativo sobre um tratamento diferenciado sobre os povos originários ou camponeses; ocorre uma abordagem tradicional e pontual em relação aos fatos históricos mais importantes;

- BARBEIRO, Heródoto. Curso de História da América. São Paulo: Harbra, 1986 (221p): no mesmo formato que a obra anterior apresenta-se ainda mais resumido em suas abordagens, pontuando as datas mais importantes em cada capítulo; em seu sumário também não privilegia qualquer aprofundamento sobre os povos originários ou camponeses na História da América.

Existem outras obras, mais atuais, que merecem o devido destaque como “História da América: Cinco séculos”, coordenada por Claudia Wasserman (UFRGS, 2010) que procura também relatar as relações entre colonizador e colonizados com detalhes pouco explorados em outras obras. Também é importante destacar a obra organizada por Leslie Bethell, dividida em oito volumes9, densa de informações e conteúdos sobre a História da América, porém ainda pouco conhecida e raramente disponível para uso dos Professores da Educação Básica no Brasil.

9 Para maiores detalhes dos volumes sobre “História da América Latina” ver site da Editora EDUSP. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2018. CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 322

Um destaque entre as obras que foram muito utilizadas como formação complementar para a Educação Básica, e inclusive para a formação de Professores, foi a obra elaborada pela Professora Maria Lígia Prado, intitulada “A formação das nações latino-americanas”, que foi publicada pela primeira vez em 1986, atingindo mais de dez edições. Esta obra se destaca em dar voz em ao elemento intitulado “povo” e suas lutas sociais na América.

Em suma, procurei mostrar que a questão da formação dos Estados Nacionais na América Latina só pode ser entendida à luz da análise de situações históricas específicas, com ênfase na questão das lutas sociais e dos conflitos políticos que a envolve. Se buscarmos explicações a partir das conceituações genéricas, como a dependência ou herança colonial, estaremos presos a esquemas pré-construídos, que nos darão a priori respostas que buscamos (PRADO, 1994, p. 81).

Na mesma esteira a Autora, juntamente com Gabriela Pellegrino, publicaram em 2014 a obra intitulada “História da América Latina”, ampliando ainda mais o debate sobre a participação de homens e mulheres no processo de construção da História da América Latina, como se vê no capítulo intitulado “Novos atores em cena: inquietações na política e na cultura” ou ainda no capítulo intitulado “Educação e cidadania nos mundos rural e urbano”.

Assim, percebe-se que a construção da História da América Latina, apesar das permanências já consolidadas por meio do olhar de uma História tradicional, que privilegiou grandes nomes de governantes e políticas implantadas, apresenta lacunas que podem e devem ser complementadas por outros sujeitos históricos que passam, aos poucos, a ter vida e voz na História da América Latina.

Considerações finais

Ao termino do presente trabalho, verifica-se que os objetivos inicialmente propostos foram alcançados no sentido de analisar a realidade campesina na América Latina em seus objetivos e lutas, bem como, de analisar a luta pela terra no Brasil, com base nos princípios do MST, e ainda, de relacionar a atualidade dos movimentos campesinos e o ensino de História da América.

Verifica-se, assim, que a figura do campesinato além de sujeito histórico se consolida também, como uma categoria política neste início de século no cenário da América Latina, principalmente, no território brasileiro. Dessa forma, há que se valorizar CAMPESINATO NA AMÉRICA LATINA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMÉRICA GERSON LUIZ BUCZENKO 323

no ensino de História da América a atuação dos extrativistas, dos pescadores artesanais, dos ribeirinhos, dos assentados e acampados da reforma agrária, dos trabalhadores assalariados rurais, dos quilombolas, dos caiçaras, dos povos da floresta, dos caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural, e dos movimentos sociais que os representam na atualidade. Constituindo uma forma de resistência aos ditames majoritários do latifúndio, das oligarquias, dos ditadores, do conservadorismo de classes dirigentes e de governos, dos ímpetos do agronegócio e das transnacionais.

Esta resistência, este formato de ser e estar no território, não pode ser mais invisibilizado pela História, principalmente, em um continente que carrega em sua trajetória histórica, o peso de um processo colonizador marcado pelo genocídio dos povos originários da América e a exploração exacerbada dos recursos naturais.

REFERÊNCIAS

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John Collier e o Indigenismo Interamericano através da revista América Indígena (1941– 1968)

GUILHERME GOMES DOS SANTOS Mestrando do programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) – e-mail: [email protected].

Introdução

O presente artigo possui a finalidade de expor uma pesquisa recentemente apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM), pesquisa esta que consiste na produção de uma análise historiográfica acerca da trajetória indigenista do estadunidense John Collier (1884-1968) e sua relação com o indigenismo intercontinental, representado pelo Instituto Indigenista Interamericano (III).

O recorte temporal da pesquisa vai de 1941, ano de surgimento da publicação oficial do III, que será nossa fonte histórica prioritária, a revista América Indígena, até 1968, data de falecimento de Collier. Em virtude de a pesquisa estar em seu quadro inicial discorremos, no presente artigo, acerca de algumas considerações sobre o objeto de pesquisa acima descrito, destacando, também, algumas hipóteses que buscaremos constatar no desenvolvimento da pesquisa.

Buscamos, portanto, apresentar a figura do indigenista estadunidense John Collier, que foi Comissário dos Assuntos indígenas dos Estados Unidos durante o governo de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Almejamos evidenciar como a atuação desse indigenista estadunidense em defesa dos direitos dos povos indígenas dos EUA consistiu em um momento singular dentro do histórico quadro segregacionista ou de assimilação forçada que nortearam as políticas públicas voltadas aos nativos norte-americanos. Para tanto, realizamos um breve levantamento acerca do desenvolvimento da questão JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 326

indígena nos Estados Unidos, analisando como se deram, em parte, as relações entre brancos e indígenas nos EUA.

Destacaremos, também, a relação e o papel desempenhado por Collier dentro da iniciativa de criação de um indigenismo intercontinental, da qual surgiu o Instituto Indigenista Interamericano (III); buscamos analisar como a participação ativa desse indigenista estadunidense, que consistiu em uma figura oficial do governo dos EUA, no Instituto Indigenista Interamericano, que foi fundado em 1940 com sede no México, do qual Collier, juntamente com o indigenista mexicano Moises Sáenz (188-1941), foi um dos principais idealizadores, representa uma quebra no histórico paradigma de superioridade dos Estados Unidos sobre a América Latina, pelo menos no que tange os assuntos indígenas no continente.

Por fim, analisaremos como John Collier pode ser entendido como um intelectual representativo da questão indígena dos EUA, dentro da proposta de Edward Said, do intelectual como um não criador de consensos, mas sim alguém que destina todo o seu senso crítico na defesa de um grupo, ou seja, o intelectual como um ator do espaço público. (SAID, 2005)

A questão indígena nos EUA

A relação entre os brancos, no início os colonizadores, e os indígenas nos Estados Unidos (EUA) foram muito diferentes da América Latina. Por isso a história do indigenismo estadunidense também é específica. Ele não surge no período colonial como na América Latina (VILLORO, 1995), mas bem depois.

Nos EUA uma “questão indígena” emergiu somente após Independência (1776), quando a expansão da população branca sobre as terras habitadas por nativos foi mais incisiva. Foi principalmente no século XIX que as questões em torno dos indígenas deram origem a reflexões intelectuais e práticas políticas. A criação do Bureau of Indian Affairs (BIA), em 1824, foi um marco desse contexto. O BIA surgiu vinculado ao Departamento da Guerra, o que já mostra o tipo de política seguida pela instituição. (ROBERTS Jr., 2010)

Nesse contexto, muitas “soluções” para o “problema indígena” foram levantadas, como propostas que defendiam desde a destruição física dos nativos até a sua assimilação JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 327

pela sociedade estadunidense, passando por projetos de proteção das terras indígenas ancestrais. Porém, a proposta colocada em prática pelo BIA, foi a chamada “política de remoção”, que retirava os indígenas de suas terras originárias e os levava à força para áreas que podiam ser extremamente distantes, de acordo com os interesses da sociedade branca. (ROBERTS Jr., 2010, p. 3)

Essa política de migração forçada ocorreu durante todo o século XIX. A “lógica por trás” dessas ações era a de “um confronto inevitável” entre os dois mundos, sendo os indígenas considerados enquanto uma alteridade absoluta, como “inimigos dentro das fronteiras [do país]”. (Idem, p. 3-16)

Apesar de parecer paradoxal, a prática da remoção, que aparentemente culminava na separação entre as duas sociedades, recebeu apoio tanto de racistas anti-indígenas quanto de muitos que assumiam posturas pró-indígenas, pois estes últimos consideravam o afastamento, que culminou na segregação dos nativos como uma forma de preservação das culturas indígenas. (Idem, p. 4)

Muito dessa ideia ainda permanece na visão comum sobre as políticas estadunidenses em relação aos indígenas. Em geral, se pensa que as práticas de remoção e assentamentos dos indígenas em reservas significaram a ausência de um projeto assimilacionista por parte do Estado nacional e, por consequência, uma maior possibilidade de preservação das sociedades nativas. Mas o “confinamento e controle dos indígenas em reservas” (JUNQUEIRA, 2001, p. 47) não excluiu políticas assimilacionistas que visavam a aculturação das sociedades nativas.

Essas políticas foram oficializadas pelo Ato de Loteamento (Allotment Act), de 1887, que dividia as terras indígenas, dentro das reservas, em lotes individuais, destruindo os antigos sistemas de posse e produção coletiva das sociedades nativas, dificultando suas condições de subsistência. Em um estudo que apresenta um panorama das políticas estadunidenses em relação aos índios, o historiador Preston Roberts Jr. (2010) explica que o Ato de Loteamento foi uma “política sistemática de erradicação” das formas de organização social indígena, uma política que “condenou os nativos à vida de dependência” em relação às “rações” estatais, situação que foi usada como “arma” por parte do BIA, que negava a ajuda governamental para os índios que se recusassem a abandonar sua cultura. (ROBERTS Jr., 2010, p. 8) JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 328

Essa “política de erradicação” das culturas indígenas buscou banir tudo o que fosse considerado como “costume indígena” e se empenhou para a promoção da cultura ocidental entre as crianças indígenas, antes que elas aprendessem as línguas nativas, através de sistemas de educação compulsória, fora das reservas. Nessas escolas, que geralmente tinham caráter religioso, todo e qualquer elemento que remetesse às culturas indígenas eram condenados e as desobediências punidas, inclusive por meio de castigos físicos. (Idem, p. 8-9)

Foi contra todo esse panorama, que durou até as primeiras décadas do século XX, que podemos compreender o surgimento do chamado “indigenismo estadunidense”, que ganhou maior força política a partir dos anos 30, durante o governo de Franklin D. Roosevelt (1933-45), com a nomeação de John Collier (1884-1968), um dos mais combativos indigenistas do país, como Commissioner of Indian Affairs.

John Collier e o Indigenismo interamericano

John Collier nasceu em 1884 na Geórgia, estudou Literatura e Biologia na Universidade de Columbia, antes de migrar para uma carreira de atividades de cunho de assistência social, a exemplo de seu trabalho no People’s Institute, uma instituição sem fins lucrativos que visava melhorar a condição de vida dos trabalhadores e imigrantes da cidade de Nova York, em 1910. Collier tornou-se um membro do comitê executivo da organização e buscou expandir as atividades do instituto por meio de projetos que visavam beneficiar a educação de crianças carentes. De 1919 a 1922, Collier se mudou para o estado da Califórnia, onde ajudou a desenvolver um projeto de educação para adultos. A partir do início dos anos 20 se tornou intensamente engajado com a defesa dos direitos dos povos indígenas. (NEILSEN, 2006, p. 309)

Ao ponto de que na década de 1930 Collier já despontava como um dos mais destacados indigenistas dos EUA, sendo inclusive nomeado Comissário dos Assuntos indígenas, pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, em 1933.

Em oposição ao histórico quadro de assimilação forçada que norteou as políticas públicas dos EUA voltadas aos povos indígenas, Collier, enquanto Comissário dos Assuntos Indígenas defendeu que os povos nativos não deveriam ser assimilados de forma subordinada à civilização branca e sim integrados à mesma. As particularidades JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 329

de suas culturas deveriam ser mantidas nesse processo, uma vez que o indigenista estadunidense acreditava que a civilização ocidental estava em crise e os indígenas teriam muito a contribuir para o “resgate da paixão e da reverência pela personalidade humana”, que ele considerava perdido na civilização ocidental, mas ainda presente nas civilizações indígenas. Sobre isso, ele escreveu, anos depois, após deixar o comissariado, em 1947:

O que, em nosso mundo humano, é o poder para viver? É a antiga reverência perdida e paixão pela personalidade humana, unida a antiga, e perdida reverência e paixão pela terra e sua teia da vida [...] A verdade é que a causa da profunda agonia de nosso mundo é que perdemos a paixão e reverência pela personalidade humana e pela teia da vida e pela terra, algo que índios americanos mantém como um fogo sagrado desde a idade da pedra. Nossa esperança é restaurarmos esse fogo sagrado em nós. Essa é nossa única esperança. (COLLIER, 1947, p. 7-8)1

Ao dirigir o BIA, de 1933 até 1945, Collier direcionou as políticas da instituição dentro de uma lógica marcada pelas concepções de “governo indireto”,2 que buscava dar autonomia às comunidades indígenas, procurando que “as estruturas sócio-políticas nativas fossem reforçadas” e possibilitando a formação de governos tribais. (BLANCHETTE, 2006, p. 328)

Com base no conceito de governo indireto, Collier enviou em 1934, um conjunto de propostas de lei ao congresso estadunidense, que foram aprovadas, ficando conhecidas como Indian Reorganization Act (IRA). Refletindo sobre o objetivo central de tais leis, Collier as enumerou em seis partes principais, em The Indian Administration as Laboratory in Ethnic Affairs, texto publicado em 1945, logo após ter deixado o cargo de Comissário dos Assuntos Indígenas:

1. As sociedades indígenas deveriam ser reconhecidas, empoderadas e orientadas a empreender o autogoverno político, administrativo e econômico. 2. Disponibilização de auxílio para treinamento indígena em administração, profissões e outras vocações. 3. O sistema de lotes (implantados pelo ato de loteamento) deveria ser suspenso, e o acesso dos povos indígenas a terra deveria ser provida. 4. Um sistema de crédito Agrícola e industrial deveria ser implantado e os fundos necessários autorizados. 5. A aplicação da lei civil e criminal, abaixo do nível atingido pela jurisdição do tribunal federal, deveria ser estabelecida segundo um sistema de tribunais que operasse com procedimentos simplificados e, em última instância, responsável perante as tribos. 6. A consolidação de terras alocadas e fracionadas,

1 Todas as traduções em língua estrangeira foram realizadas pelo autor deste artigo.

2 De acordo com Wilbert Terry Ahlstedt (2015), a noção de governo indireto de Collier remontava ao governo colonial espanhol, que havia mantido, em grande parte, as comunidades indígenas tradicionais. Ele acreditava ter sido esse um sistema bem sucedido e que tinha continuidades nos tempos modernos, como no caso do sistema britânico de governo indireto, em Fiji, Gana e outras partes da África e da Ásia. (AHLSTEDT, 2015, p. 188) JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 330

e a entrega de lotes de volta à propriedade tribal, deveria ser fornecida sob condições que protegessem todos os direitos a propriedade e as liberdades individuais. (COLLIER, 1945, p. 276-77)

Durante a gestão de Collier à frente do BIA, ao longo de todo o governo de Franklin D. Roosevelt (1933-45), a questão indígena estadunidense foi pensada a partir de um diálogo continental, inserida na lógica da Política de Boa Vizinhança, que oficialmente caracterizava as relações dos Estados Unidos com a América Latina.

John Collier tinha uma admiração pelo indigenismo surgido na Revolução Mexicana e manteve contato com vários indigenistas mexicanos, particularmente com o educador e indigenista Moisés Sáenz (1888-1941) e o antropólogo Manuel Gamio (1883-1960). Como mostra o historiador Wilbert Terry Ahlstedt (2015), Collier elogiava o indigenismo mexicano e buscou toma-lo como modelo:

O Comissário dos EUA, John Collier, exibindo seu entusiasmo pelas políticas mexicanas, declarou que “O México tem lições para ensinar aos Estados Unidos no que diz respeito às escolas e a administração indígena que são revolucionárias e que podem marcar época”. (...) John Collier estudou os resultados da Revolução de 1910, analisando tais resultados sobre a população indígena do país, tentando reproduzi-los nos EUA (...) Em outras palavras, John Collier foi influenciado pelo México em seus esforços para reformar as políticas indígenas dos EUA. (AHLSTEDT, 2015, p. 3)

Foram esses os pressupostos, inspirados no indigenismo mexicano e apoiados pelos EUA, na figura do comissário John Collier, que culminaram na fundação do Instituto Indigenista Interamericano, criado em 1940 justamente no México, por meio do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, do qual Collier, juntamente com Sáenz, foi um dos articuladores. (GIRAUDO, 2011) Desde o início o Instituto foi sediado no México e teve um mexicano como seu diretor, como o antropólogo Manuel Gamio, que assumiu em 1942 e permaneceu no cargo até sua morte, em 1960.

Já a partir de 1941 o Instituto Indigenista Interamericano passou a editar a revista América Indígena como seu órgão oficial e Collier atuou como um dos membros do Comitê Executivo do Instituto e da revista. (Idem, 2011)

Por tudo que discorremos acima acreditamos que resgatar a trajetória indigenista de John Collier possibilita também o resgate de elementos de um importante momento na história norte-americana, no qual predominou, pelo menos em relação à questão indígena, JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 331

uma postura real de diálogo (ao contrário da histórica pressuposição de superioridade)3 em relação à América Latina.

Como tem sido destacado por trabalhos historiográficos recentes, produzidos nos Estados Unidos, durante a gestão de Collier à frente do Departamento de Assuntos Indígenas, a grande inspiração para as políticas públicas estadunidenses foi o indigenismo mexicano, herdeiro da Revolução de 1910:

Collier estava especialmente interessado no indigenismo mexicano, em sua busca de uma maior inclusão política e social para os povos indígenas e esforço para proteger seus interesses e garantir que recebam os mesmos direitos que todos os outros cidadãos. Reagindo contra as políticas anteriores dos Estados Unidos, que tentavam destruir a cultura indígena enquanto salientavam a garantia da propriedade privada, Collier, inspirado pelo programa indigenista mexicano, procurou reformular a educação dos indígenas nos Estados Unidos, restaurar o autogoverno indígena e levar as terras indígenas de volta para a estrutura tradicional de posse comunal. [...] Enquanto muitos nos Estados Unidos continuaram a possuir pontos de vista racistas em relação ao México, o período de 1920 a 1945 seria uma época em que muitos americanos viram o México como um país com lições a oferecer. (AHLSTEDT, 2015, p. 1-3)

Nesse sentido, a pesquisa proposta, ao enfatizar as zonas de contato, os diálogos e conexões entre a história estadunidense e a latino-americana, procura dialogar com uma importante perspectiva historiográfica estadunidense, que vem ganhando terreno há alguns anos, cujo objetivo principal é ultrapassar a grande narrativa do “excepcionalismo”, na qual se basearam por mais de um século os tradicionais relatos triunfalistas da história dos Estados Unidos.4 Como afirmou o historiador Thomas Bender, exatamente em um artigo sobre as possibilidades de se pensar “uma história não nacionalista” ou, mais exatamente, a “desestadunização” da história dos Estados Unidos, “uma das próximas fronteiras a serem vencidas pela historiografia [estadunidense]” estaria justamente no “reconhecimento das conexões, comparações e relações entre o Norte e o Sul.” (TENORIO-TRILLO; BENDER; THELEN, 2001, p. 22) Nosso trabalho pretende avançar nessa “fronteira”.

3 Sobre a construção histórica de uma autoimagem de superioridade dos Estados Unidos em relação à América Latina e sua implicação na política externa estadunidense no continente, cf. FERES JÚNIOR, 2005.

4 Sobre a centralidade desse tipo de relato na historiografia estadunidense, cf. MOURA, 1995. Um panorama das perspectivas recentes de desconstrução dos relatos em torno do “excepcionalismo” norte- americano pode ser encontrado em TENORIO-TRILLO et alli, 2001, p. 9-30. JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 332

Como nossa temática é o indigenismo, um tema comum, que apesar das diferenças locais perpassa a história dos Estados Unidos e da América Latina, isso nos permite enfatizar as conexões norte/sul. Essa proposta se identifica à abordagem transnacional, como é entendida pela historiadora estadunidense Barbara Weinstein (2013), “uma abordagem que complexifica – não desloca – a história nacional”. (WEINSTEIN, 2012, p. 13)

Acreditamos que o enfoque transnacional é imprescindível para recuperar a trajetória indigenista de John Collier, tendo em vista que, como já mostrado acima, ele recebeu fortes influências de intelectuais latino-americanos, sobretudo mexicanos.

Parte da trajetória indigenista de John Collier pode ser recuperada através de sua participação na publicação oficial do III, a revistaAmérica Indígena, na qual ele publicou alguns artigos e, principalmente pelo fato de ter sido parte do seu Comitê Executivo.

John Collier – um Intelectual representativo da questão indígena

Acreditamos que a atuação indigenista de Collier se enquadra bem na ideia de Edward Said (2005) dos intelectuais e sua “vocação” para representar, sua habilidade para “dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público”. (SAID, 2005, p. 25)5 O intelectual é entendido, portanto, como um ator do espaço público, independentemente do ofício desempenhado:

Meu argumento é que os intelectuais são indivíduos com vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo na televisão. E essa vocação é importante na medida em que é reconhecível publicamente e envolve, ao mesmo tempo, compromisso e risco, ousadia e vulnerabilidade [...] No fundo, o intelectual, no sentido que dou à palavra, não é nem um pacificador nem um criador de consensos, mas alguém que empenha todo o seu ser no senso crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou confirmações afáveis, sempre tão conciliadoras

5 Edward Waid Said (1935-2003) foi importante intelectual palestino, nasceu em Jerusalém em 1935. Aos dezesseis anos imigrou aos Estados Unidos, em virtude da ocupação e desapropriação das terras palestinas para a criação do estado de Israel. Nos EUA, Said cursou seu bacharelado na Universidade de Princeton (1957), e Mestrado (1960) e Doutorado (1964) na Universidade de Harvard, instituição onde se especializou em Literatura Inglesa. Em 1967 assumiu o cargo de professor assistente na área da Teoria Literária e Literatura Comparada, na Universidade de Columbia, em Nova York. (AIBE, 2014, p. 4) No decorrer de sua vida acadêmica, Edward Said publicou mais de vinte livros. Cujas temáticas iam da crítica literária à política no Oriente médio. (Idem, 2014, p.6) Além dos estudos no âmbito cultural, Said conquistou influência no meio acadêmico, ficando conhecido internacionalmente como um dos mais destacados intelectuais e ativistas políticos da causa palestina. (Idem, 2014, p. 1) JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 333

sobre o que os poderosos ou convencionais têm a dizer e sobre o que fazem. (SAID, 2005, p. 25-36) 6

Defendemos a hipótese de que o intelectual John Collier pode ser entendido como uma figura representativa do indigenismo nos EUA, segundo a proposta de Said. Namesma linha apontada por esse autor, sobre o intelectual como um não criador de consensos ou pacificador, mas um crítico por natureza; acreditamos que a trajetória indigenista de Collier se encaixa nesse modelo. Sua atuação, marcada pela defesa dos direitos sociais e culturais das populações indígenas, representa um aspecto marginal dentro da história da intelectualidade estadunidense, em que a questão indígena historicamente nunca foi um tema central.7

Dessa forma, Collier, mesmo quando exerceu um cargo oficial como comissário de Assuntos Indígenas, figurou como uma espécie de outsider do Mainstream da intelectualidade estadunidense, ao fazer da questão indígena o aspecto central de seu engajamento intelectual e político. O lugar “marginal” do pensamento indigenista no cenário estadunidense pode ser percebido pelo fato de Collier, em sua atuação como Comissário dos Assuntos Indígenas, ter sido incompreendido por uma parcela significativa de seus contemporâneos, muitos dos quais chegaram a taxar sua ação em defesa dos direitos indígenas de comunista. (AHLSTEDT, 2015, p. 84)

Considerações Finais

Buscamos, no presente artigo, apresentar a figura do indigenista estadunidense John Collier, destacando os principais aspectos de sua atuação enquanto um intelectual representativo da questão indígena nos Estados Unidos. Destacando como a atuação indigenista de Collier a frente do Bureau of Indians Affairs consiste em uma quebra de paradigma dentro do histórico quadro segregacionista ou de assimilação forçada, que durante muito tempo nortearam as políticas públicas dos EUA voltadas aos povos indígenas.

6 A obra mais completa para compreendermos o papel do intelectual na visão de Edward Said se chama Representações do intelectual, obra derivada das conferências Reith de 1993, concedidas à BBC de Londres.

7 Em comparação com o caso da América Latina, a pouca importância dada historicamente pela intelectualidade estadunidense para a questão indígena pode ser explicada, até certo ponto, pela relativamente pequena presença indígena no país, onde os chamados “povos originários” representam apenas 1% da população. Além disso, historicamente, desde o período colonial, a relação entre indígenas e não-indígenas foi marcada mais por um afastamento físico do que pelo contato intercultural, ao contrário do que predominou nos países latino-americanos. Sobre as relações de indígenas e não-indígenas nos Estados Unidos desde a colonização, consultar: DIVINE, 1992; KARNAL, Leandro, 2005; JUNQUEIRA, 2001. JOHN COLLIER E O INDIGENISMO INTERAMERICANO ATRAVÉS DA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA (1941– 1968) GUILHERME GOMES DOS SANTOS 334

Destacamos, também, como a John Collier consiste em figura destoante dentro da intelectualidade estadunidense, algo se faz evidente, inclusive, em sua admiração pelo México e pelo indigenismo mexicano, algo que representa uma importante mudança no histórico pressuposto de superioridade dos EUA sob o entorno latino-americano, nesse sentido o fato de Collier ter ocupado um cargo oficial do governo dos EUA enriquece ainda mais nossa análise.

Faz-se necessário, no entanto, enfatizarmos a hipótese da qual partimos, que a atuação indigenista de John Collier só pode ser recuperada e compreendida por meio de uma análise historiográfica que seja pautada pela transnacionalidade, uma vez que Collier recebeu forte influência de indigenistas mexicanos e tomou as políticas indigenistas mexicanas como modelo.

Buscamos, portanto, partindo de uma perspectiva transnacional, analisar a trajetória indigenista de John Collier e sua relação com o indigenismo continental, representado pelo Instituto Indigenista Interamericano (III), através da participação de Collier na revista América Indígena, órgão oficial do (III), uma fonte prioritária para percebermos a relação de Collier com o indigenismo de tipo continental.

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O “quarto exército” a serviço do inimigo: representações dos blogueiros dissidentes como “cibermercenários” no discurso oficial da Revolução Cubana (2010-2018)

GILIARD DA SILVA PRADO Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB). Docente do Curso de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: .

Para compreender a história da Revolução Cubana é fundamental que se leve em consideração a longa trajetória de divergências e lutas político-ideológicas entre o governo revolucionário e os seus antagonistas, tanto externos quanto internos. Quando se empreende uma história da memória da Revolução Cubana, constata-se que o tratamento discursivo dado pelo regime cubano aos seus antagonistas tem ocupado, ao longo de sucessivas décadas, um lugar central nas estratégias de legitimação simbólica da experiência revolucionária cubana.

No decorrer dessa trajetória de antagonismos, que já se estende por mais de meio século, ficam evidenciadas algumas continuidades nas representações construídas acerca daqueles que têm sido apontados como “inimigos” da Revolução. No entanto, mais do que simplesmente apontar algumas dessas continuidades da produção discursiva do governo cubano, o propósito principal deste trabalho é discutir uma importante ruptura ou descontinuidade no tipo de enfrentamento realizado pelo regime revolucionário contra as vozes discordantes, notadamente a partir desta última década, em um contexto marcado pelo desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação e pela emergência de uma nova esfera pública em Cuba: o ciberespaço. Para tanto, este trabalho analisará, a partir do discurso veiculado na imprensa oficial cubana no período compreendido entre 2010 e 2018, o processo de construção da imagem dos blogueiros dissidentes como “cibermercenáros”, problematizando a estratégia de vincular O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 337

os opositores internos a uma nação estrangeira, bem como os usos do conceito de ciberguerra pelo governo revolucionário.

Uma das características marcantes do discurso oficial da Revolução Cubana tem sido o amplo uso de palavras oriundas do campo lexical do militarismo – tais como: batalhas, lutas, combates, estratégias, táticas, trincheiras e inimigos – para tratar de questões do universo político, evidenciando a concepção militarista que guia a atuação do governo revolucionário a partir de seu entendimento da política como um campo de guerra. Os abusos desse vocabulário bélico são indicativos da existência de um “campo lexical da luta” no imaginário social e político cubano, de modo que o “sentido da luta” tem sido amplamente utilizado não apenas pelo governo na legitimação da Revolução, mas também pela dissidência política cubana e por diversos segmentos da sociedade no enfrentamento das dificuldades cotidianas (BLOCH, 2009).

O emprego dessa terminologia bélica nos discursos oficiais da Revolução Cubana evidencia que as posições políticas daqueles que lhe são favoráveis ou contrários não são pensadas a partir da relação aliados/adversários, sendo concebidas, com base em uma perspectiva antagônica mais extrema, a partir da relação amigos/inimigos. Presente tanto nos discursos – entendidos aqui também como uma prática – quanto em outras práticas políticas do governo cubano, essa tendência a tratar os opositores como inimigos é representativa do entendimento de que a essência da política é o seu caráter antagonístico, o qual se expressa por meio dos enfrentamentos que opõem amigos a inimigos (SCHMITT, 1998). Essa diferenciação entre amigos e inimigos marca o extremo grau de intensidade com que se estabelecem os antagonismos decorrentes da adesão ou oposição a um determinado projeto político.

Não é difícil compreender, portanto, as inúmeras referências a “amigos” e “inimigos” na abordagem dos antagonismos políticos pelo discurso oficial da Revolução Cubana quando se considera, por um lado, que essas categorias se prestam a diferentes usos por movimentos e regimes políticos de diferentes tendências e, por outro lado, quando são levadas em conta algumas características apresentadas pelo regime cubano, como, por exemplo, a propensão para o conflito dual, que foi uma marca de diversos regimes políticos nos tempos da Guerra Fria, mas que, em alguns casos, não se restringiu a esse período. O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 338

Pouco tempo depois do triunfo revolucionário cubano, que se deu em um contexto marcado pela polarização ideológica da Guerra Fria, começaram a surgir as primeiras referências a “inimigos” e a “amigos” nos discursos proferidos pelo comandante em chefe da Revolução. Logo, os Estados Unidos se converteram no principal inimigo de Cuba, ao passo que, internamente, grupos dissidentes foram também apontados como inimigos e traidores da pátria. Estabeleceram-se, pois, relações de inimizade cuja duração – sobretudo no que diz respeito à gestão da inimizade para fins de legitimação do poder – praticamente se confunde com a da experiência revolucionária cubana, estendendo-se, ainda que tenham conhecido transformações no decorrer desse período, até os dias atuais.

Uma dessas principais transformações ocorreu há pouco mais de uma década com o advento de uma blogosfera cubana independente que fez com que, em um ritmo bastante acelerado, o ciberespaço se convertesse em uma nova esfera pública, constituindo-se em um importante local de mediação das relações entre a sociedade civil e o Estado, mais precisamente em um espaço de argumentação e de debates em torno de temas políticos – no sentido amplo de assuntos públicos – pelos cidadãos (HABERMAS, 2003). Ainda que a blogosfera cubana independente não se constitua exatamente em uma esfera capaz de exercer controle sobre o poder estatal e que os indivíduos que a integram não participem de processos de tomada de decisões políticas pelo Estado, é inegável que, em alguma medida, esses blogueiros dissidentes acabam pautando determinados debates da política cubana, de modo a impulsionar estratégias de legitimação do governo revolucionário diante das ações comunicativas daqueles que lhe são críticos.

Esse advento do ciberespaço representou a irrupção de algo inteiramente novo na cena política cubana, constituindo-se em um importante ponto de inflexão na longa trajetória de imposição do silêncio pelo governo revolucionário cubano aos grupos opositores. Cabe destacar, no entanto, que a ruptura não diz respeito ao fim das tentativas de imposição da censura, mas à dificuldade encontrada pelo governo para lutar contra as vozes discordantes, ou seja, para impedir que os testemunhos dos dissidentes cubanos fossem veiculados na blogosfera e que, progressivamente, alcançassem a opinião pública internacional.

Ao contrário do fenômeno da blogosfera, a oposição, tanto interna quanto externa, ao regime revolucionário cubano não é algo recente. Desde o triunfo dos revolucionários, no ano de 1959, surgiram opositores ao governo recém-instaurado, tendo lugar as primeiras O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 339

críticas e dissensos que marcaram a trajetória de uma multifacetada dissidência cubana, que tem atuado no decorrer de quase seis décadas de experiência revolucionária. Mas, quem são, afinal, os dissidentes?

A resposta a essa pergunta não deve ser buscada senão sob o signo da pluralidade. Diferentemente do que faz o discurso oficial – que os homogeneíza, que os apresenta indistintamente, definindo-os através de termos pejorativos: “traidores da pátria” e “mercenários a serviço do imperialismo ianque” –, os dissidentes devem ser vistos a partir de sua heterogeneidade constitutiva, que se manifesta por meio de diferenças geracionais, étnicas, de gênero, religiosas, ideológicas e políticas. Há, assim, entre os dissidentes: liberais, socialdemocratas, democratas cristãos, marxistas, martianos, esquerdistas, centristas, direitistas, socialistas, capitalistas, militantes cristãos, praticantes da Santería, residentes em Cuba, residentes no exterior, opositores de longa data, ex-defensores do regime que retiraram seu apoio à Revolução, e até mesmo indivíduos que, embora não tenham deixado de ser favoráveis ao governo revolucionário, foram apontados como obstáculos ou ameaças a seu poder e considerados como contrarrevolucionários e traidores da pátria.

Em virtude de sua heterogeneidade constitutiva, os dissidentes integram grupos que apresentam diferentes pensamentos políticos, opiniões e aspirações sociais, havendo entre eles desde ativistas políticos até mesmo aqueles que são simplesmente críticos das políticas de governo, de suas reformas ou da ausência destas. Ser dissidente não significa, pois, possuir um projeto de poder político, querer ocupar uma posição no governo ou se colocar inevitavelmente no front anticastrista – para empregar aqui uma terminologia bélica própria do discurso oficial do governo cubano –, ainda que haja alguns opositores que se enquadrem nesses quesitos. O termo dissidente também não se aplica apenas ao indivíduo que fazia parte de agremiações políticas ou organizações sociais e que delas se separou, formando, quase sempre, organizações similares.

A partir de que critérios, então, podem ser definidos os indivíduos que constituem a dissidência da Revolução Cubana? O primeiro critério é o emprego do termo dissidente com um sentido amplo, referindo-se a todos aqueles que possuem divergências em relação à ideologia oficial e às políticas de governo, que tecem diferentes críticas ao regime. O segundo critério, importante para circunscrever a abrangência do primeiro, consiste em não considerar como dissidentes quaisquer críticos do regime, mas apenas, O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 340

ainda que isso pareça óbvio, aqueles que são cubanos, não importando se residem em Cuba ou em um dos países para onde emigraram os exilados.

Ao longo da experiência revolucionária cubana, várias foram as práticas oposicionistas ou simplesmente as manifestações de divergências em relação à política oficial do governo. Já nos primeiros anos da Revolução, impôs-se o cerceamento à liberdade de expressão e a produções artísticas e culturais que destoavam da ideologia revolucionária. Logo, diferentes órgãos da imprensa – jornais, revistas, suplementos culturais, editoras – sofreram a censura do governo cubano, que, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, intensificou uma política cultural cada vez mais caracterizada pela intensificação do dirigismo estatal (MISKULIN, 2003; 2009). Para além do controle sobre a imprensa, esse dirigismo da política oficial, que foi intensificado a partir dos anos 1970 com a sovietização da experiência revolucionária cubana, prolongou-se pelas décadas seguintes e atingiu as mais diversas produções intelectuais, literárias e artísticas, das quais se pode citar como exemplo a produção cinematográfica cubana (VILLAÇA, 2010). Esse controle da produção cultural fez com que importantes artistas e intelectuais que, a princípio, entusiasmaram- se com a Revolução Cubana e contribuíram para o seu enaltecimento, manifestassem posteriormente seu desencanto e, em distintos momentos da experiência revolucionária, retirassem seu apoio à Revolução em face das medidas repressivas que adotadas pelo governo cubano contra a liberdade de expressão (COSTA, 2013; ROJAS, 2007).

Por meio da censura e da repressão, o governo cubano limitou significativamente as condições de expressão de ideias divergentes e de críticas políticas, promovendo um progressivo fechamento da esfera pública aos opositores residentes na ilha. Ainda que esse fechamento não tenha sido total e que os dissidentes cubanos sempre tenham desenvolvido estratégias de contestação política diante das tentativas do governo cubano de impor o silêncio, o advento do ciberespaço como uma nova esfera pública possibilitou uma liberdade de expressão que estava ausente em Cuba desde que o governo começou a controlar os meios de comunicação, ainda nos primeiros anos da experiência revolucionária.

A formação de uma blogosfera cubana – constituída por blogs escritos tanto por cubanos residentes na ilha quanto por aqueles que integram a comunidade diaspórica cubana, notadamente nos Estados Unidos e na Espanha – criou práticas e redes comunicativas que se constituíram em uma alternativa à imprensa oficial e, mais do O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 341

que isso, em um movimento de debate político e de contestação ao poder autoritário do Estado cubano. Ainda que não se pretenda aqui diminuir a importância dos blogs produzidos a partir dos países nos quais vivem os exilados cubanos, vale destacar o papel fundamental que os blogs independentes produzidos em Cuba desempenharam na criação de canais alternativos de expressão em um país em que os meios de comunicação – emissoras de TV e rádio, jornais, revistas, etc. – precisam estar em estrita consonância com a ideologia oficial do governo revolucionário. O papel dos blogs produzidos em Cuba é tanto mais importante quando se considera que enquanto nos países em que vivem os exilados cubanos existem meios de comunicação cujas linhas editoriais permitem e até estimulam a veiculação de críticas ao governo revolucionário, em Cuba o uso das redes sociais da web 2.0, especialmente dos blogs e do Twitter, foi imprescindível para romper com o monopólio da informação exercido pelo Estado.

Essa blogosfera independente produzida em Cuba existe há pouco mais de uma década. Seu surgimento remonta ao ano de 2007, mais precisamente ao mês de abril, quando começou a ser produzido o blog Generación Y, escrito por Yoani Sánchez. A motivação para a criação do blog teria sido decorrente de uma polêmica intelectual que se iniciou em janeiro daquele ano a partir de uma entrevista realizada no Impronta, um programa da TV cubana, com Luís Pavón Tamayo, que havia dirigido o Conselho Nacional de Cultura entre os anos de 1971 e 1975, período que ficou conhecido com “quinquênio gris” e que se caracterizou pelo estabelecimento de parâmetros rígidos para as áreas da educação e da cultura e pela intensificação da censura e de uma política de expurgos dirigidas contra intelectuais e artistas cujas produções não estavam em consonância com a nova política cultural da Revolução. A ausência nesse programa de entrevistas a qualquer referência sobre a censura e a repressão que caracterizaram o período reacendeu o debate público que, por meio de mensagens eletrônicas, foi realizado por diversos intelectuais sobre a liberdade de expressão e a política cultural do governo no século XXI. Ocorre, porém, que a amplitude da discussão foi restringida quando só uma parte dos polemistas foi convidada para um fórum de debates promovido pela União de Escritos e Artistas de Cuba (UNEAC) acerca da temática. Os que não possuíam as carteirinhas da UNEAC, órgão subordinado ao Estado, não puderam participar dos debates, uma vez que O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 342

Yoani e outros foram impedidos de entrar na Sala Che Guevara da Casa das Américas, onde os convidados se reuniam com Abel Prieto [Ministro da Cultura] que, nas palavras da blogueira, ‘repetiu a ideia de que num lugar sitiado, dissentir é trair’. Do gosto amargo daquela experiência nasceu Generación Y (MAGNOLI, 2009, p. 204).

Do incômodo de Yoani Sánchez com o número restrito de pessoas autorizadas a participar não apenas daquele debate promovido pela UNEAC, mas, de modo mais amplo, dos debates públicos em Cuba teria surgido o blog Generación Y, que, segundo a blogueira, foi pensado como um “espaço de exorcismo”, um lugar para praticar “um exercício pessoal de covardia”, para “dizer na rede” tudo aquilo que ela não se atrevia “a expressar na vida real” e, desse modo, romper com a “inércia” e o silêncio adotados por aqueles que, assim como ela, entendiam que na sociedade cubana “pronunciar-se” era o “caminho mais curto para atrair problemas” (SÁNCHEZ, 2009, p. 12-14).

Pouco tempo após o seu surgimento, o blog Generación Y atraiu a atenção de milhares de leitores ao redor do mundo. Os posts publicados por Yoani Sánchez não continham diatribes contra o governo cubano e sequer tratavam diretamente de política no sentido estrito do termo. Em textos curtos de enorme qualidade literária, ao melhor estilo de crônicas, a autora escrevia sobre diferentes aspectos da vida cotidiana em Cuba, revelando aos leitores facetas até então pouco conhecidas da realidade cubana, visto que destoavam das imagens de Cuba veiculadas na propaganda oficial do governo. A ironia fina, as análises equilibradas e o tom moderado da linguagem – que destoavam dos estilos agressivos tanto do discurso oficial cubano quanto do discurso do setor mais reacionário da extrema direita exilada em Miami – contribuíram para que os testemunhos e notícias veiculadas no blog alcançassem rapidamente grande notoriedade, a qual veio acompanhada de reconhecimentos e prêmios pela qualidade de seu trabalho, de que são exemplos: a sua inclusão na lista da revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2007 e, no ano seguinte, a obtenção do prêmio Ortega Y Gasset de jornalismo digital.

Na esteira do sucesso do blog Generación Y, mas também de um trabalho de estímulo ao surgimento de novos blogs a partir de iniciativas – como a Academia Blogger, uma oficina de uso das redes sociais, e o prêmio Isla Virtual – que foram postas em prática por Yoani Sanchez, pelo jornalista Reinaldo Escobar e por um pequeno grupo de blogueiros, logo se constituiu uma blogosfera independente em Cuba. Portais como Desde Cuba e, mais tarde, Voces Cubanas foram criados para hospedar os novos blogs que, a cada ano, iam surgindo. O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 343

No ano de 2011, já havia 40 blogs vinculados ao portal Voces Cubanas (HENKEN, 2011), que abrigava apenas uma parte dos blogs escritos em Cuba. Paralelamente, também crescia o número dos blogs produzidos por cubanos exilados, o que contribuiu para ampliar os canais de diálogo e as redes de comunicação e cooperação entre os cubanos residentes na ilha e a comunidade da diáspora cubana, contribuindo para unir aqueles que viveram e os que ainda vivem as imposições do autoritarismo do Estado cubano.

O importante papel desempenhado por Generación Y e, mais amplamente, por toda a blogosfera cubana no desenvolvimento do jornalismo digital independente, na discussão de importantes temas políticos da atualidade cubana, na veiculação de testemunhos sobre as mais diversas experiências dissidentes sob a Revolução e nos debates acerca de uma possível transição democrática em Cuba não deve encorajar a interpretação de que esse processo de constituição de redes virtuais de contestação ao poder estabelecido (CASTELLS, 2009) tenha transcorrido sem tensões ou conflitos. Ao contrário, foi alvo das tentativas de censura e repressão do Estado cubano. Ainda que se leve em consideração os imprevisíveis resultados que seriam alcançados por Generación Y e, mais amplamente, pelo fenômeno representado pela blogosfera cubana independente, o governo revolucionário parece não ter contado com o poder, o alcance e a eficácia deste uso das redes sociais em Cuba (HENKEN, 2011, p. 98), talvez por se tratar de um blog escrito por uma mulher, até então desconhecida, que passava a narrar as agruras da vida cotidiana em Cuba. O poder e a eficácia dessas práticas comunicativas chamaram primeiro a atenção da comunidade internacional para, só depois, despertar preocupações no governo cubano.

Uma das dificuldades enfrentadas no processo de criação dos blogs escritos por dissidentes a partir de Cuba diz respeito às limitações do acesso à internet no país. Em instituições de ensino, empresas estatais e órgãos oficiais do governo é possível ter acesso à rede, mas sob rigoroso controle do Estado. À esmagadora maioria dos cidadãos comuns, no entanto, não é possível ter uma conexão com a internet em casa. A esses cidadãos restam poucas alternativas: acessar a internet a custos bastante elevados a partir de hotéis e cibercafés destinados aos turistas ou, o que é ainda mais restrito, contar com a colaboração de alguma embaixada que franqueie o acesso a cubanos. Há ainda aqueles que adquirem uma conta de internet ilegal no mercado negro. O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 344

Com os limites existentes para o acesso à internet, postar ou ler o texto em um blog requer dos dissidentes que vivem em Cuba muito empenho, inventividade e, principalmente, redes de cooperação. Nesse sentido, muitos blogueiros relatam os percalços enfrentados para postar textos em seus próprios blogs. Para isso, precisam salvar os textos e imagens em dispositivos portáteis de armazenamento e, em seguida, ter acesso a um cibercafé ou hotel para enviar os arquivos a serem postados para que um amigo, um parente ou outro blogueiro residente no exterior possa fazer a publicação. Os dispositivos portáteis de armazenamento também são, em muitos casos, os instrumentos utilizados para fazer com que os textos circulem e sejam lidos entre os dissidentes que vivem em Cuba, uma vez que estes não têm como acessar o conteúdo dos blogs por meio da internet. Desse modo, muitos blogueiros residentes em Cuba tiveram que lidar com a insólita situação de publicarem seus posts “às cegas”, ou seja, de não poderem ver o próprio post publicado. Essas redes de cooperação existentes vão, no entanto, muito além do simples recebimento e postagem de matérias nos blogs, pois, em alguns casos, tal como acontece com Generación Y e com alguns outros blogs, os textos são traduzidos para diversos idiomas, ampliando consideravelmente o alcance e o público leitor da blogosfera cubana.

Às limitações relativas ao restrito acesso à internet, logo se somaram as atividades dos censores do governo que passaram a bloquear alguns blogs para que eles não fossem lidos em Cuba. Aproximadamente um ano depois de seu surgimento, o blog Generación Y, por exemplo, começou a enfrentar os primeiros bloqueios impostos pelas autoridades cubanas. Ocorre, porém, que as redes sociais estão, em grande medida, fora do alcance das regulamentações dos estados nacionais e, não bastasse isso, ainda é preciso levar em consideração que as tentativas do governo cubano de impedir o acesso aos blogs esbarravam na inventividade dos blogueiros cubanos que, inseridos em redes de cooperação, conseguiam fazer circular o conteúdo de suas publicações. Além disso, ao tentar proibir o acesso aos blogs, o governo cubano ajudava a despertar ainda mais interesse pelo fenômeno da blogosfera cubana, que, por sua vez, contribuía para alimentar a esperança de que a internet, ao contornar os limites da censura e possibilitar o acesso à informação, poderia fortalecer a cidadania e a democracia ao mesmo tempo em que enfraquecia o autoritarismo do poder estatal (LEVY, 2002).

Diante da impossibilidade de censurar de modo eficaz os blogs, o governo cubano passou a desenvolver outras estratégias para combater a blogosfera cubana O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 345

independente: primeiro mobilizou grupos da oficialidade governamental para acessar os blogs e postar comentários voltados a desacreditar e lançar ofensas contra os blogueiros independentes e, em seguida, criou uma blogosfera oficial destinada a enfrentar as “mentiras” oposicionistas a partir da veiculação das “verdades” do governo cubano. O tempo que foi necessário ao governo revolucionário para a adoção dessas medidas e, principalmente, a impossibilidade de silenciar as vozes discordantes na blogosfera evidenciam que a emergência do ciberespaço como uma nova esfera pública marcou uma ruptura significativa na capacidade do Estado cubano de reprimir e controlar os dissidentes. Ao contrário da tradicional repressão exercida pelas “brigadas de resposta rápida” – grupos formados por integrantes de diferentes organizações de massa da Revolução que ocupam ruas, praças e outros espaços públicos do país para impedir que manifestações dissidentes ocorram, gritando lemas revolucionários, lançando insultos, disseminando o medo e praticando atos de violência psicológica e, em alguns casos, até física contra os opositores do regime –, no ciberespaço não tem sido possível silenciar os dissidentes, ainda que o Estado cubano tenha formado o que passou a denominar como seus “guerreiros ciberespaciais”.

Se, por um lado, a revolução da internet marcou um ponto de inflexão na eficácia das ações voltadas a silenciar os dissidentes, por outro lado, algumas continuidades são bastante evidentes na relação do regime cubano com seus opositores, como a concepção da política como um campo de guerra e o abuso da terminologia bélica. Quando se analisa o discurso oficial cubano nestes últimos anos, percebe-se que houve apenas uma adaptação do vocabulário bélico ao espaço cibernético, acrescentando-se ao radical das palavras, no seu processo de formação, o prefixo “ciber”. Desse modo, são cada vez mais frequentes em periódicos oficias cubanos expressões como: “cibercomando”, “ciberseguridad”, “ciberguerra”, “cibermercenarios”, “ciberproimperiales” “ciberterrorismo” “ciberdisidencia”, “cibermentiras”, etc. Também são comuns as adequações de vocábulos oriundos do campo lexical do militarismo ao universo da internet. É isso que acontece, por exemplo, com a expressão “quarto exército”, que consta no título do presente trabalho. Ela é empregada pela imprensa cubana ao se referir ao ciberespaço como “el nuevo campo de batalla del siglo XXI” e abordar, mais especificamente, a ideia de uma “ciberguerra” praticada pelos Estados Unidos contra Cuba. Nessa nova modalidade de guerra já não mais atuariam tropas regulares constituídas pelas três forças tradicionais O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 346

– ar, mar e terra –, havendo, em vez disso, a formação de um “‘cuarto ejército’, cuyas armas discurren en el escenario virtual de la informática” (MEXIDOR, 2011).

O tratamento dado pela imprensa cubana ao conceito de “ciberguerra” não enfatiza a dimensão tecnológica habitualmente associada a esse conceito, ou seja, os ataques provocados por vírus destinados, por exemplo, a interceptar dados secretos ou a comprometer sistemas computacionais. A ênfase no discurso oficial cubano recai sobre a dimensão ideológica, salientando-se “una variante de la ciberguerra: el fomento de una blogosfera que, aunque se pretende tildar de ‘independiente’, es subordinada de manera total al mandato e intereses de Washington”. A partir desse tratamento ideológico dado ao conceito de ciberguerra, desdobra-se a estratégia de construir a imagem dos blogueiros dissidentes como “cibermercenarios”, que seriam financiados pelos Estados Unidos para “calumniar a la Revolución” (MEXIDOR, 2011). Vinculados unicamente a interesses externos, esses blogueiros são apresentados como os “nuevos mercenários” que, encarregados de fazer “propaganda contrarrevolucionaria”, atentariam contra a soberania cubana (LAGARDE, 2010). Em uma perspectiva semelhante, a ciberguerra contra Cuba é apresentada em outro texto como “el capítulo internet” de uma longa história de planos de subversão contra Cuba financiados pelos Estados Unidos e que agora são instrumentalizados por uma “ciberdisidencia” formada por indivíduos que “solamente andan detrás del dinero” e que foram “fabricados por el gobierno norteamericano” (DEL VALLE, 2011).

A partir dessa linha argumentativa, cujo teor se repete à exaustão em vários textos veiculados na imprensa oficial cubana no decorrer do período aqui analisado, percebe- se que outra importante permanência ou continuidade no discurso oficial da Revolução Cubana diz respeito à estratégia de vincular os dissidentes cubanos ao principal “inimigo” da nação, buscando negar assim a existência de uma autônoma oposição interna em Cuba. Duas outras importantes estratégias de legitimação do governo revolucionário relacionadas à gestão da inimizade com os Estados Unidos continuam sendo bastante utilizadas pelo discurso oficial cubano para tratar do tema da blogosfera. Uma delas diz respeito ao onipresente argumento em torno do bloqueio econômico, tradicionalmente evocado para justificar todas as debilidades econômicas da Revolução, mas que, neste caso, foi utilizado como explicação para o baixo grau de desenvolvimento tecnológico, de modo a justificar o limitado número de pessoas com acesso à internet no país. A outra estratégia chega a ser surpreendente, pois, mesmo tratando da ideia de ciberguerra, cujo O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 347

conflito se dá no ciberespaço, o discurso oficial continua não descartando “una eventual agresión militar” a ser praticada pelo inimigo externo (MEXIDOR, 2011), argumento utilizado para justificar, em nome da segurança nacional, o tratamento de guerra dado à política, bem como a repressão contra os opositores internos.

Ao apontar os blogueiros dissidentes como contrarrevolucionários, traidores da pátria e mercenários a serviço do imperialismo estadunidense, o governo cubano nega-lhes não apenas a capacidade de ação autônoma e de defesa de ideias próprias, mas também a cubanidade. Essa tentativa de negação da cubanidade aos dissidentes é feita a partir de uma produção discursiva que habilmente busca tratar como sinônimos termos como “governo”, “pátria”, “nação”, “revolução” (PRADO, 2018). Desse modo, as críticas ao autoritarismo político do governo convertem-se em propaganda “anticubana”, posturas “contrarrevolucionárias” e traição à “pátria”. A longa trajetória de desqualificação dos dissidentes pelo governo cubano – que busca construir a insustentável imagem de uma nação coesa, homogênea e sem dissensos – tem sido caracterizada pelos usos do argumento do mercenarismo. Em torno desse argumento, por um lado, careceria de razoabilidade negar a existência, fartamente documentada, do auxílio prestado pelos Estados Unidos para viabilizar canais de expressão – por exemplo, com ajuda para transmissão de sinais de TV, rádio e, mais recentemente, internet – para que os dissidentes cubanos possam expressar suas críticas ao governo revolucionário, de modo a favorecer uma transição democrática no país. Por outro lado, careceria ainda mais de razoabilidade e seria até cínico interpretar a atuação da dissidência cubana com base no argumento do mercenarismo. Nessa mesma linha de raciocínio, seria igualmente cínico e reducionista explorar o fato de que Cuba recebia “entre 300 e 600 milhões de dólares anuais” (MAGNOLI, 2009, p. 188) para explicar com base no argumento do mercenarismo a missão internacionalista revolucionária de Cuba na guerra civil angolana.

Em meio a tantas polêmicas, é inegável que a blogosfera cubana, apesar de ser um fenômeno relativamente recente, tem desempenhado um papel importante para tornar mais plural o cenário político do país. Nos inúmeros blogs que constituem a blogosfera independente não apenas são discutidas questões políticas do tempo presente, como também são debatidas perspectivas de futuro e veiculados testemunhos que cobrem mais de cinco décadas de história sob a vigência da experiência revolucionária cubana. O “QUARTO EXÉRCITO” A SERVIÇO DO INIMIGO: REPRESENTAÇÕES DOS BLOGUEIROS DISSIDENTES COMO “CIBER- MERCENÁRIOS” NO DISCURSO OFICIAL DA REVOLUÇÃO CUBANA (2010-2018) GILIARD DA SILVA PRADO 348

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Stokely Carmichael e a conformação de um programa político para o Movimento Black Power nos Estados Unidos (1966-1967)

HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e bolsista de Mestrado da FAPESP. E-mail: [email protected].

Introdução

Stokely Carmichael (1941-1998) foi um ativista prolífico tanto em propor novas ações para a militância negra quanto na diversidade das arenas políticas às quais se apresentava. Durante sua formação universitária, destacou-se como um ativista do front sulista do Movimento pelos Direitos Civis que mobilizou o país no início dos anos de 1960. Em seguida, na segunda metade daquela década, foi um dos propositores e referência central do Black Power, movimento que defendia a autodeterminação política e o orgulho racial entre os negros norte-americanos. Por último, já em finais de 1968, Carmichael rompeu com o contexto político norte-americano e reinventou-se como um revolucionário pan-africanista sediado na Guiné. Portanto, trata-se de uma trajetória transnacional pelo espaço cultural e político que o sociólogo Paul Gilroy denominou de Atlântico Negro1: isto é, entre as Américas, a Europa e a África (GILROY, 2003).

Não obstante tenha se notabilizado nos Estados Unidos por sua marcante trajetória de ativismo durante os anos sessenta, Stokely foi, também, um intelectual diretamente envolvido com o intenso debate público antirracista que tomou conta do país à época. Naquele contexto, Carmichael discutia suas propostas para o ativismo negro através de

1 Conceito formulado pelo sociólogo Paul Gilroy, o Atlântico Negro diz respeito a um espaço transnacional de circulação de ideias e intelectuais negros pelo Atlântico. Para o autor, tais dinâmicas dão origem a formações negras interculturais (híbridas) e identitárias que extrapolam os espaços territoriais da nação. Pensar Stokely Carmichael nesta perspectiva auxilia, portanto, a compreender as transformações intelectuais e identitárias por ele vivenciadas em sua trajetória transnacional pelo Caribe, Estados Unidos e África. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 351

publicações e discursos realizados para audiências norte-americanas e internacionais. Exemplo disto, o livro Black Power: The Politics of Liberation, obra publicada em 1967 pelo militante, representa um momento central de sua trajetória no qual militância e produção intelectual combinaram-se para redefinir as perspectivas políticas do ativista (CARMICHAEL; HAMILTON, 1992).2

Focando nesta publicação, o presente trabalho discute a atividade política – o projeto político – e intelectual de Carmichael entre os anos de 1966 e 1967, momento em que ele rompeu com o Movimento pelos Direitos Civis e se dedicou à promoção da agenda do Black Power. Neste contexto, analisaremos Carmichael como um intelectual representante de uma militância negra norte-americana que se radicalizava em meados da década de 1960.

Para tanto, em um primeiro momento, percorreremos a trajetória de engajamento do ativista na cena pública na qual cabia a ele representar e mediar – traduzir, tornar acessível para determinadas audiências – uma postura crítica de combate ao racismo institucional nos Estados Unidos. Principalmente após a proposição do Movimento Black Power em 1966, o intelectual se apresentava como um outsider, um sujeito que afirma sua independência através da análise e do pensamento críticos exercidos à margem dos (e contra os) poderes sociais constituídos naquele país (SAID, 2005, p. 15; 25-27). Tais aspectos são particularmente importantes para identificar Carmichael como propositor de um projeto político radical, alternativo às perspectivas liberais3 das lideranças do Movimento pelos Direitos Civis.

A este respeito, é importante, também, compreender as transformações identitárias atravessadas pelo militante no período abordado. Em especial, discutiremos as formas pelas quais o militante expressava as identidades nacional e negra ao conceber o seu projeto político. Neste sentido, na esteira do que propõe Stuart Hall acerca das identidades pós-modernas, as conformações identitárias expressas por Carmichael são compreendidas como processos fragmentários e instáveis – em constante mutação – que

2 Para além do livro mencionado, cabe destacar que Carmichael foi autor, também, de duas outras obras: a coletânea de artigos e discursos Stokely Speaks: From Black Power to Pan-Africanism publicada em 1971 pela editora Random House e a autobiografiaReady for the Revolution: The Life and Struggles of Stokely Carmichael lançada postumamente pela editora Scribner em 2003 (CARMICHAEL, 2007 e CARMICHAEL; THELWELL, 2003).

3 O termo liberal diz respeito, no contexto dos Direitos Civis norte-americanos, ao projeto reformista das lideranças negras daquele movimento que reivindicavam do Estado a realização de transformações institucionais e legais a fim de assegurar o fim da segregação racial e promover a integração do negro na sociedade. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 352

assumem formas distintas de acordo com o contexto vivenciado pelo ativista (HALL, 2015, p. 15-16). Neste ponto, argumentamos que as transformações políticas atravessadas por Stokely em seu percurso nos Movimentos pelos Direitos Civis e Black Power correspondem a distintas apropriações das identidades nacional e negra realizadas pelo militante.

Em um primeiro momento, partindo das origens de Stokely Carmichael no Caribe inglês, contextualizaremos seu ativismo no âmbito do Movimento pelos Direitos Civis até o Black Power. Posteriormente, discutiremos o projeto político de Carmichael para este último movimento contido no livro de sua autoria destacando a tensão entre os vínculos reformistas da obra e as perspectivas revolucionárias subjacentes às suas reivindicações por orgulho racial e autodeterminação negra. Por último, retomaremos tais questões com o intuito de elucidar o contexto da obra (1966-1967) como um momento importante de reinvenção do ativista no qual ele passava a mobilizar uma agenda político-identitária transnacional: o pan-africanismo.

Origens diaspóricas e ingresso no Movimento pelos Direitos Civis (1960-1965)

De origem caribenha, Carmichael nasceu na cidade de Porto de Espanha (Trindade e Tobago) em 1941, à época uma colônia da Coroa Britânica. Sua família, oriunda de distintos pontos do Caribe inglês, foi marcada pelos frequentes fluxos populacionais – forçados ou não – característicos da diáspora negra nas Américas. Sua mãe era originária da Zona do Canal do Panamá (território norte-americano) e seu pai da pequena ilha de Barbados. Os avós, por sua vez, vinham de Montserrat e Antigua (CARMICHAEL; THELWELL, 2003, p. 14-16).

Aos 11 anos, em 1952, Carmichael mudou-se para Nova York onde teve contato com um cenário político e intelectual efervescente – inclusive com tradições do nacionalismo negro e pan-africanismo4 muito presentes no Harlem desde os tempos de Marcus Garvey.

4 No princípio, o pan-africanismo constituía um movimento político e cultural que comportava a ideia de um “destino comum” compartilhado pelos africanos e pelos negros da diáspora. Centrado no continente africano, o movimento objetivava “regenerar” e unificar a África, promovendo a solidariedade entre os povos negros do mundo. Posteriormente, em meados do século XX, o pan-africanismo passou a tratar, também, da luta pela “integração continental e [pela]a unidade política, econômica e cultural, tornando-se assim, um amplo movimento de libertação da África” do colonialismo (PARADA et al, 2013, p. 55-56). STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 353

Lá, durante o ensino médio, ele se envolveu com a cena intelectual de esquerda quando conheceu Bayard Rustin, ex-socialista e então mentor de Martin Luther King na filosofia da desobediência civil. Rustin figurou como uma referência intelectual central para Stokely (e para a sua geração) até este conhecer Malcolm X (JOSEPH, 2014, p. 8-14).

Neste ponto, é importante salientar que a inserção de Carmichael na sociedade norte-americana diferia tanto daquela de X quanto da de King. Este era sulista e pastor da Igreja Batista negra enquanto aquele era marcado por vida nos guetos urbanos, prisões, desagregação familiar e conversão político-religiosa à Nação do Islã, a organização negra radical mais influente do período. Desde a sua fundação em Detroit na década de 1930, a Nação do Islã divulgava uma mensagem de austeridade e orgulho racial que atraía o público urbano negro marginalizado através da promessa de redenção pessoal pela via da unidade racial e religiosa. Na segunda metade dos anos 1950, a popularidade da organização cresceu vertiginosamente graças ao carisma de seu principal pregador, Malcolm X, e à influente publicação do Muhammad Speaks, periódico que divulgava a “palavra” de Elijah Muhammad, o líder espiritual da Nação do Islã. O nacionalismo negro esposado por Malcolm – isto é, a ideia de que os negros formavam uma nação, uma comunidade cultural, política e economicamente autônoma em relação aos brancos – foi uma influência determinante para o Movimento Black Power da segunda metade dos anos 1960 (OGBAR, 2004, p. 11-35).

Por sua vez, Carmichael, diferentemente dos líderes mencionados, era caribenho, pertencia a um estrato médio negro, com vivência universitária vinculada à Nova Esquerda estudantil (New Left) dos anos 1960. Formou-se em filosofia na Howard University, uma universidade proeminente e historicamente negra situada na capital de Washington D.C. e reconhecida como a “Meca” intelectual dos afro-americanos (WILLIAMS, 2009, p. 18). Foi a partir de lá que ele ingressou no Movimento. Dessa forma, a inserção de Carmichael nos Direitos Civis – e, posteriormente, no Black Power – se deu pelo engajamento junto a organizações que atuavam no Sul, em especial o SNCC (Student Nonviolent Coordinating Committee – Comitê Estudantil de Coordenação Não-Violenta), grupo do qual fez parte.

Surgido das mobilizações estudantis negras dos primeiros anos da década de 1960, o SNCC foi fundado a partir da perspectiva de desobediência civil não-violenta inspirada em Mahatma Gandhi e calcada nos valores cristãos da Igreja Batista Negra no Sul do STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 354

Estados Unidos. A fundação do grupo foi profundamente influenciada pelos esforços e pelas perspectivas políticas de Ella Baker, a ativista veterana da SCLC – Southern Christian Leadership Conference, organização de Martin Luther King – que, em abril de 1960, sediou os estudantes negros em uma conferência na cidade de Raleigh, Carolina do Norte. Buscando garantir a autonomia dos jovens manifestantes, Baker contribuiu decisivamente para consolidar os princípios que orientaram a atuação do SNCC em seus primeiros anos: a defesa da autonomia de pensamento e ação do grupo, o apreço pela democracia participativa e pela tomada de decisões coletivas e horizontais (CARSON, 1981, p. 19-20 e RANSBY, 2003, p. 4-6).5

Buscando, à época, a expansão do “Sonho Americano” (American Dream) aos afro- americanos, o Movimento pelos Direitos Civis mobilizava a retórica, os mitos e os valores fundacionais – a narrativa (JUNQUEIRA, 2018, p. 13-16) – da nação norte-americana em prol do combate à segregação racial. Dessa forma, no período entre 1960-64, Carmichael atuou dentro do escopo liberal que pautava o ativismo negro dos Direitos Civis. Em outras palavras, Stokely e a maioria dos ativistas do período eram reformistas – alguns mais militantes e outros menos – que aprovavam o caminho trilhado pelo movimento negro nas lutas contra a segregação racial, manifestando-se contra o ritmo lento – o gradualismo – das mudanças até então obtidas por organizações mais tradicionais da luta negra, mas não contra a direção em que seguiam (MARABLE, 2007, p. 63).

No caso específico do SNCC, no entanto, havia uma particularidade. Visto como “as tropas de choque” da luta contra a segregação racial no Sul, o grupo buscava organizar e conscientizar lideranças comunitárias negras para que articulassem as demandas locais aos objetivos políticos mais amplos do Movimento – dentre eles, o direito à representação política dos afro-americanos e a integração de espaços e serviços públicos segregados no Sul. Para tanto, adotando uma posição mais combativa que outras organizações do movimento (como a citada SCLC e a histórica NAACP – National Association for the Advancement of Colored People, por exemplo), a militância estudantil da qual Carmichael

5 Cabe destacar, contudo, que a despeito de partilharem os princípios fundacionais mencionados, a militância do SNCC também era atravessada por distintas inclinações/correntes políticas. Neste sentido, diferentemente de boa parte de seus colegas (muitos deles batistas, de origem sulista e diretamente ligados à fundação do grupo), Carmichael via a não-violência esposada pelo grupo de uma maneira mais secular, entendendo-a não tanto do ponto de vista religioso e moral, mas principalmente como uma estratégica de ação política (CARMICHAEL; THELWELL, 2003, p. 165-168). Esta importante diferenciação entre os membros se acentuaria à medida que, em meados da década, parte do SNCC se radicalizaria em direção ao Black Power. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 355

fazia parte recorria ao repertório político da ação direta: sit-ins6, freedom rides7, boicotes, além, é claro, de campanhas para o registro eleitoral da população negra sulista privada do direito ao voto pelos segregacionistas. Estavam, portanto, na linha de frente da resistência antirracista do período (CARSON, 1981, p. 11-18; 31; 45-46).

Em linhas gerais, Stokely Carmichael atuaria assim até 1964. Naquele ano, após uma tentativa frustrada de substituir os delegados racistas do Mississippi na Convenção Nacional do Partido Democrata em Atlantic City (New Jersey), militantes do SNCC, dentre eles Carmichael, desiludiram-se com o modus operandi liberal do Movimento pelos Direitos Civis. A partir de então, revoltados com os acordos e concessões espúrias realizados entre a liderança Democrata para conter o protesto dos ativistas na Convenção, boa parte da militância do SNCC voltou-se a uma política negra independente, não-alinhada ao Partido Democrata, dedicada à organização e “empoderamento” político dos afro-americanos a nível local (GERSTLE, 2017, p. 289-295).

Evento marcante, a experiência na Convenção foi fundamental para radicalizar a militância em direção ao Black Power, agenda política do SNCC anunciada por Carmichael pela primeira vez em junho de 1966, durante uma marcha organizada pelas lideranças negras dos Direitos Civis no interior do Mississippi. Na ocasião, valendo-se de mais um incidente de violência policial contra os ativistas do grupo, Carmichael – então presidente do SNCC – subiu no palanque e eletrizou a plateia negra com aquele que se tornou, provavelmente, o seu mais conhecido pronunciamento: “Esta é a vigésima sétima vez que fui preso. Eu não vou mais para a cadeia. A única maneira de fazermos com que os homens brancos parem de arrebentar conosco é tomar o controle. O que vamos começar a dizer agora é Black Power!” (JOSEPH, 2007, p. 142).8

6 Sit-ins foram estratégias de manifestação que questionavam a segregação racial, especialmente sulista, nos espaços urbanos de convívio entre negros e brancos – lanchonetes, pontos de ônibus, estações de trens, dentre outros. Basicamente, consistia no ato de ocupar (sentar, do verbo em inglês sit) assentos, balcões e demais espaços destinados unicamente ao público branco. Em pouco tempo, variações dessa estratégia foram criadas pelos manifestantes que ajoelhavam-se nos espaços segregados (kneel-in), entregavam-se à prisão durante protestos (jail-in), rezavam em igrejas segregadas (pray-in) e nadavam em praias e piscinas destinadas aos brancos (wade-ins).

7 Idealizadas originalmente pelo CORE nos anos 1940, as freedom rides consistiam em viagens interestaduais de ônibus realizadas por grupos interraciais de ativistas que percorriam o Sul dos Estados Unidos. Valendo-se do recurso à ação direta não-violenta, os viajantes buscavam testar a aplicação das determinações da Suprema Corte no caso de Boynton vs. Virginia (1960) que proibiam a discriminação racial em ônibus e terminais de transportes públicos sulistas.

8 Tradução própria. Segue trecho original em inglês: “This is the twenty-seventh time that I’ve been arrested. I ain’t going to jail no more. The only way we gonna stop them white men from whuppin’ us is to take over. What we gonna start sayin’ now is Black Power!”. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 356

Stokely Carmichael e a agenda política do Movimento Black Power (1966-1967)

Ainda que, a princípio, o Black Power figurasse como um “slogan”, uma “palavra de ordem” lançada pela militância do SNCC no Mississippi, o termo imediatamente atingiu grande repercussão nos Estados Unidos. Estava claro para o governo, imprensa, FBI, diversas instituições norte-americanas e os veteranos dos Direitos Civis que parte dos negros da geração mais jovem se radicalizava. Após a marcha no Mississippi, a atenção nacional voltou-se ainda mais intensamente às atividades de Stokely Carmichael e do SNCC e, nos meses subsequentes ao episódio, o novo “slogan” adotado pelo SNCC foi amplamente comentado, produzindo um intenso debate público acerca dos seus significados que se estendia da imprensa, passando por políticos de grande expressão até representantes nacionais das principais organizações do movimento negro.

Neste contexto, é importante pontuar que, em parte, o Black Power surge como um fenômeno geracional (SIRINELLI, 2003, p. 255) resultante da frustração destes ativistas – particularmente entre estudantes e jovens negros ligados ao SNCC – com o establishment político liberal do Partido Democrata. Entretanto, o movimento também era fruto da percepção cada vez mais difundida entre os afro-americanos (como um todo) de que a opressão racial constituía um fenômeno de caráter estrutural, fundante, no país. Após anos de lutas do movimento negro no âmbito dos Direitos Civis, o desemprego e a privação econômica, a violência policial, a conivência nacional com a segregação urbana que impunha condições precárias de saúde, educação e habitação nos guetos das grandes cidades mantinham-se amplamente intocadas país afora. A lentidão das reformas sociais e a insuficiência dos programas assistencialistas do Governo Lyndon Johnson tornavam- se evidentes. Neste cenário o Black Power surgia, portanto, como uma revolta contra os “valores e instituições” norte-americanos que, mesmo após o fim formal (i.e., legal) da segregação racial, continuavam a sustentar a exclusão – econômica, política e cultural – dos negros (VAN DEBURG, 1993, p. 41-45).

Recusando a pauta integracionista dos Direitos Civis como suficiente para livrar o país do racismo, a militância negra que se radicalizava clamava por autoafirmação identitária e autodeterminação política como forma de resistência à hegemonia da “América Branca”. Inspirados pelo nacionalismo negro de Malcolm X e da Nação do Islã, STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 357

estes ativistas conformaram um movimento multifacetado com ramificações culturais, políticas, identitárias, acadêmicas duradouras. Nacionalmente, a agenda política do Black Power capitaneada, a princípio, por Carmichael e pelo SNCC repercutiu enormemente na imprensa – branca e negra – , inaugurando um intenso debate público em torno do futuro e dos objetivos do movimento negro que se estenderia pelo restante da década e desempenharia um importante papel na radicalização de grupos da Nova Esquerda como, por exemplo, o SDS – Students for a Democratic Society, além de influenciar o recém- criado Partido dos Panteras Negras para a Autodefesa (SOUSA, 2009, p. 86 e BLOOM; MARTIN JR., 2016, p. 12).9

Neste ambiente político efervescente, Carmichael, inicialmente o principal porta-voz do Black Power, buscou sintetizar sua posição – e a do SNCC do qual era então presidente – na sua principal obra, Black Power: The Politics of Liberation, lançada em novembro de 1967.

O livro Black Power: The Politics of Liberation

Concebido entre setembro de 1966 e maio de 1967 – e, portanto, devedor do debate que circundava a militância negra do período – o livro Black Power é resultado de uma parceria intelectual e política entre Stokely Carmichael e Charles Vernon Hamilton (1929 –), cientista político afro-americano da Lincoln University e coautor do trabalho. A obra foi editada por Toni Morrison, premiada romancista negra que foi professora de Stokely Carmichael na Howard University, e publicada sob o selo da Random House.10 Escrito a quatro mãos, Black Power alterna entre a eloquência e a crítica social marcantes da oratória do ativista caribenho e a linguagem mais contida e analítica (mas também engajada) característica do lugar acadêmico ocupado por Hamilton.

9 A Nova Esquerda surgiu em meados da década de 1950 e consolidou-se nos anos 1960 como uma amálgama muito diversa de movimentos sociais – marcadamente estudantis – que buscavam uma interpretação mais humanista do marxismo, alternativa à ortodoxia stalinista da dita “Velha Esquerda” e à ênfase desta na organização do operariado industrial como forma privilegiada de transformação social. Nos Estados Unidos, a conformação da Nova Esquerda estudantil foi profundamente influenciada pela mobilização política trazida à tona pelos movimento dos Direitos Civis e Black Power (SOUSA, 2009, p. 16-19).

10 À época, a Random House era uma grande editora nos Estados Unidos que, atualmente, após uma fusão em 2013 com o grupo Penguin, compõe um dos maiores conglomerados editoriais em língua inglesa do mundo. Neste sentido, podemos afirmar que o livro Black Power – ainda hoje utilizado em muitos cursos de graduação e pós-graduação nos EUA – teve uma tiragem e venda expressivas. Segundo estimativas de Charles V. Hamilton, durante um ano e meio após a sua publicação, a obra vendeu cerca de 5,000 exemplares semanais (HAMILTON; HARRIS, 2017, p. 25). STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 358

Este, um destacado professor negro com passagens pela Roosevelt University (Chicago), Loyola University, Tuskegee Institute, Chicago University e, eventualmente, Columbia University (Nova York) onde tornou-se um dos primeiros afro-americanos catedráticos de uma universidade da Ivy League11; era um intelectual progressista, politicamente ativo e familiarizado com o ativismo negro. Nos anos 1950 e 1960, além de apoiar a mobilização desobediência civil encabeçada por Martin Luther King, Hamilton também se engajou nos projetos do SNCC nos estados do Mississippi e do Alabama onde conheceu Stokely Carmichael (RICH, 2004 e HAMILTON; HARRIS, 2017, p. 21-27).

Na obra, os autores buscam esclarecer a ruptura estabelecida pelo novo movimento frente à profusão de críticas e ataques recebidos de antigos aliados liberais dentro e fora do Movimento pelos Direitos Civis. Neste sentido, Carmichael e Hamilton definem o Black Power como uma ferramenta de mobilização (um framework) político-identitária voltada à reivindicação por autodeterminação, orgulho racial e solidariedade entre os negros nos Estados Unidos:

“[O Black Power] É um chamado para os negros neste país se unirem, reconhecerem suas heranças, construírem um senso de comunidade. É um chamado para os negros começarem a definir seus próprios objetivos, liderar suas próprias organizações e apoiar essas organizações. É um chamado para rejeitar as instituições e valores racistas dessa sociedade” (CARMICHAEL; HAMILTON, p. 44).12

Informados pelas reflexões anticoloniais do intelectual e revolucionário da Martinica Frantz Fanon – e, em particular pela principal obra deste, Os Condenados da Terra (FANON, 1968) – os autores associam a luta negra nos Estados Unidos às revoluções e processos de libertação em voga no então chamado “Terceiro Mundo”: África, América Latina e Ásia. Em uma leitura muito difundida entre a militância do Black Power, Carmichael e Hamilton entendiam a opressão racial a qual a população afro-americana estava sujeita como uma forma de dominação colonial institucionalizada. Confinados aos guetos urbanos do país, os negros constituíam “colônias internas”, sujeitas à exploração econômica e dominação

11 A Ivy League designa um grupo composto por oito das mais reconhecidas e prestigiosas universidades privadas norte-americanas – Brown University, Columbia University, Cornell University, Dartmouth College, Harvard University, University of Pennsylvania, Princeton University e Yale University – frequentadas, até então, quase exclusivamente pelas elites políticas e econômicas (brancas) do país.

12 “It is a call for black people in this country to unite, to recognize their heritage, to build a sense of community. It is a call for black people to begin to define their own goals, to lead their own organizations and to support those organizations. It is a call to reject the racist institutions and values of this society”. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 359

política por forças “externas” às suas comunidades análogas àquelas enviadas pelas metrópoles europeias aos povos africanos e asiáticos: empresas e comerciantes, agentes financeiros e imobiliários, educadores, polícia, agências governamentais, dentre outros.

“[...] Os negros neste país formam uma colônia, e não é do interesse do poder colonial libertá-los. Os negros são cidadãos legais dos Estados Unidos com, de maneira geral, os mesmos direitos legais dos outros cidadãos. No entanto, eles figuram como sujeitos coloniais em relação à sociedade branca. Assim, o racismo institucional tem outro nome: colonialismo” (CARMICHAEL; HAMILTON, 1992, p. 5).13

Segundo os autores, romper com esta condição “colonial” demandava que a militância colocasse em questão o modus operandi dos Direitos Civis e seus pressupostos conciliatórios – a integração racial, a não-violência, as alianças com setores políticos liberais e brancos – para construir bases autônomas de poder político negro. Para Carmichael e Hamilton, era preciso, primeiro, que os negros “cerrassem suas fileiras” (close ranks) e se afirmassem enquanto grupo – cultural, política e economicamente – coeso para somente então “ingressar” na sociedade mais ampla em condições de barganhar com os demais segmentos:

“O conceito de Black Power baseia-se em uma premissa fundamental: antes que um grupo possa ingressar na sociedade mais ampla, ele deve primeiro cerrar suas fileiras. Com isso queremos dizer que a solidariedade de grupo é necessária antes que um grupo possa operar efetivamente em uma sociedade plural a partir de uma posição de força” (CARMICHAEL; HAMILTON, 1992, p. 44).14

Os defensores do Black Power buscavam, nas palavras do historiador Gary Gerstle, libertar a “consciência” e as “comunidades” afro-americanas da opressão racista (GERSTLE, 2017, p. 295). Neste sentido, de um lado, Carmichael e Hamilton defendiam a autoafirmação identitária – isto é, a “consciência negra”, o orgulho em torno das heranças e manifestações culturais, históricas e estéticas distintivas dos negros – como caminho necessário à solidariedade e ação política entre os afro-americanos.

13 “[...] Black people in this country form a colony, and it is not in the interest of the colonial power to liberate them. Black people are legal citizens of the United States with, for the most part, the same legal rights as other citizens. Yet they stand as colonial subjects in relation to the white society. Thus, institutional racism has another name: colonialism”.

14 “The concept of black power rests on a fundamental premise: Before a group can enter the open society, it must first close ranks. By this we mean that group solidarity is necessary before a group can operate effectively from a position of strength in a pluralistic society”. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 360

Segundo os autores, à época, este processo de “auto definição” já estava em andamento na busca da comunidade afro-americana pela construção de uma “autoimagem” positiva e assertiva evidenciada pelo emprego cada vez mais recorrente dos termos African- American, Afro-American ou black em detrimento da palavra em inglês Negro, expressão que, nos Estados Unidos, era historicamente atribuída pelos brancos aos negros de maneira derrogatória. Assim, argumenta, partindo da redefinição da “própria imagem”, os afro- americanos colocariam fim aos estereótipos – as mentiras – a seu respeito criados pela “América Branca”, contribuindo, também, à construção de um senso de comunidade, de coesão e solidariedade de grupo (togetherness): “[...] a partir de agora, nós nos veremos como afro-americanos e como um povo negro que é de fato enérgico, determinado, inteligente, belo e pacífico” (CARMICHAEL; HAMILTON, 1992, p. 37-38).15

De outro lado, os autores reivindicavam a já citada necessidade de autodeterminação política, isto é, o “poder de grupo”, que garantisse à população negra força e autonomia de decisão em relação aos demais setores da sociedade. Com isto, reforçavam que a eliminação do racismo estrutural e da exploração econômica nos EUA não ocorreria, como queria o Movimento pelos Direitos Civis, através da manutenção dos valores e instituições vigentes no país. Em realidade, isto somente seria possível através da realização de profundas reformas políticas, institucionais e econômicas voltadas à redistribuição de recursos e de poder em benefício dos afro-americanos e das demais minorias sociais no país – hispânicos, indígenas, asiáticos. Tratava-se, em última instância, de reconstruir a sociedade norte-americana sobre eixos efetivamente democráticos – novas instituições, novos valores, um “sistema” político inteiramente novo. Como expresso pelo ativista em setembro de 1966: “Para que o racismo morra, uma América totalmente diferente deve nascer” (CARMICHAEL, 2007, p. 23).

Para tanto, Carmichael e Hamilton delineiam uma agenda política negra independente como um caminho programático para o Movimento Black Power. Segundo defendiam os autores, os negros deveriam “tomar o controle” das suas comunidades e guetos, dos serviços e instituições ali presentes – comércio, polícia, conselhos escolares, comissões de planejamento urbano, dentre outros – e fazê-los agir de acordo com as suas necessidades e reivindicações. Toda ênfase deveria ser dada, portanto, ao fortalecimento do poder

15 “From now on, we shall view ourselves as African-Americans and as black people who are in fact energetic, determined, intelligent, beautiful and peace-loving”. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 361

político coletivo dos afro-americanos e das suas bases comunitárias nos guetos:

“Assim nós vemos o potencial poder político dos guetos [no Norte e Oeste]. Em um sentido real, é semelhante ao que está ocorrendo no Sul [do país]: o movimento em direção à política independente – e, a partir daí o movimento em direção ao desenvolvimento de instituições políticas totalmente novas. Se estas propostas parecem impraticáveis, utópicas, perguntamos: quais outras alternativas reais existem? Não há nenhuma; a escolha está entre uma abordagem genuinamente nova e a manutenção da vida desumanizante, destrutiva e violenta dos guetos como eles existem hoje. Do ponto de vista dos negros, isso não é uma escolha” (CARMICHAEL; HAMILTON, 1992, p. 177).16

É interessante observar que havia, aqui, uma tensão no projeto político do livro: ao passo que lançava uma crítica social e racial de fundo revolucionário à nação norte- americana, seus valores e instituições excludentes, os autores apontavam, como solução, uma agenda programática ainda marcada por alguns vínculos reformistas. Ao que tudo indica, Carmichael a princípio ainda concebia alguma possibilidade de encontrar um lugar para os negros nos Estados Unidos – o que, é necessário frisar, duraria muito pouco.

Alertando para um conflito racial iminente, Carmichael e Hamilton informavam-se pelos numerosos levantes presenciados desde meados da década nos grandes centros urbanos do país. Seja nos bairros negros do Harlem, em Nova York (1964), ou de Watts, em Los Angeles (1965), ou nas cidades de Newark, New Jersey, e Detroit, Michigan, (ambos em 1967) as rebeliões contra o racismo institucionalizado e a expropriação econômica dos afro-americanos pareciam, para muitos observadores e participantes da época, indicar uma radicalização das camadas pobres dos guetos em direção à revolução (GERSTLE, 2017, p. 301). Neste cenário crítico, alertam os autores na epígrafe do livro, a política do Black Power surgia como um caminho incontornável à construção de uma sociedade minimamente “viável”; “a última oportunidade razoável para esta sociedade resolver seus problemas raciais a fim de evitar uma longa e destrutiva guerra de guerrilhas. Que tal guerra violenta talvez seja inevitável não é aqui negado” (CARMICHAEL; HAMILTON, 1992, n.p.).

16 “We see this as the potential power of the ghettos. In a real sense, it is similar to what is taking place in the South: the move in the direction of independent politics – and, from there, the move toward the development of wholly new political institutions. If these proposals sound impractical, utopian, then we ask: what other real alternatives exist? There are none; the choice lies between a genuinely new approach and maintaining the brutalizing, destructive, violence-breeding life of the ghettos as they exist today. From the viewpoint of black people, that is no choice”. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 362

Conclusão: pan-africanismo, a agenda política-identitária transnacional de Carmichael

A ambivalência expressa por Carmichael no livro Black Power: The Politics of Liberation logo daria lugar à defesa de uma agenda abertamente revolucionária. A partir da proposição do Black Power em 1966, o projeto político de Carmichael se radicalizava e passava por intensas transformações. Como exemplificado pela sua identificação da luta negra nos Estados Unidos às revoluções no chamado “Terceiro Mundo”, Stokely orientava-se por um viés político (e identitário) cada vez mais transnacional.

Neste sentido, em 1967, pouco após sair da presidência do SNCC, o ativista embarcou em um longo tour internacional. Até então, nos Estados Unidos, suas constantes viagens levaram-no aos mais variados campi universitários do país onde procurou engajar grupos locais com base nos princípios do Black Power. Desta vez, as atividades do ativista seguiram os passos dados anos antes por Malcolm X, sua principal referência política naquele momento. Visitas realizadas em Londres, Cuba, Vietnã, Argélia, Oriente Médio e Guiné permitiram-no consolidar uma imagem pública internacional e entrar em contato com diversos revolucionários como Fidel Castro (Cuba), Ho Chi Min (Vietnã), membros da Frente de Libertação Nacional (FLN – Argélia), o presidente Ahmed Sékou Touré (Guiné), Kwame Nkrumah (Gana), dentre outros (JOSEPH, 2014).

Em particular, a visita à Guiné foi decisiva para a atuação e o pensamento políticos de Stokely Carmichael em finais da década. Em Conacri, capital do país, o ativista conheceu Kwame Nkrumah, líder da independência de Gana e expoente do pan- africanismo no continente. Profundamente impactado por Nkrumah, o ativista deixou o país já com planos de retornar. A partir daquele momento, Carmichael cada vez mais endossava perspectivas afrocêntricas e formulava uma identidade negra diaspórica que se contrapunha à linha assumida, por exemplo, pelos Panteras Negras, grupo ao qual esteve associado e do qual se afastaria por divergências ideológicas. A este respeito, já em finais de 1968, Stokely afirmaria:

“Nós somos africanos. Estamos espalhados por todo o Hemisfério Ocidental. Os negros podem ser encontrados da África do Sul à Nova Escócia. Cinquenta por cento da população brasileira: negra. No Panamá, na Guatemala, na República Dominicana, nas Índias Ocidentais, nos Estados Unidos, no STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 363

Canadá – estamos em todos os lugares. E nós somos um mesmo povo” (CARMICHAEL, 2007, p. 152).17

De maneira geral, os eventos do conturbado ano de 1968 imprimiram sua marca na trajetória do ativista. Expulso do SNCC após uma rusga com parte da liderança, vigiado de perto pelo FBI e em desacordo com a orientação marxista-leninista dos Panteras, Stokely acelerou sua busca por novas bases sobre as quais dar continuidade à sua militância. Assim, pouco mais de um ano após a publicação do seu principal livro, o ativista deixava os Estados Unidos e voltava para a Guiné, na África, desta vez em definitivo.

Neste curto, porém emblemático, intervalo de tempo – marcado, nos Estados Unidos, pela repercussão da ofensiva Tet no Vietnã, o assassinato de Martin Luther King, a condenação do Pantera Negra Huey Newton por homicídio, a eleição do Republicano Richard Nixon à presidência do país e o recrudescimento da repressão governamental à militância negra radical – Stokely reinventou-se como ativista da causa pan-africanista, defendendo as lutas de descolonização no continente e a sua unificação sob um mesmo governo socialista. Atuando no AAPRP – All-African People’s Revolutionary Party, organização fundada por Kwame Nkrumah em 1968, Carmichael reivindicaria o lugar da vanguarda revolucionária na luta que ultimamente levaria o “socialismo científico” a toda a África (JOSEPH, 2014, p. 279-280).

Àquela altura, a ruptura com os Estados Unidos concluía a transição das perspectivas políticas e identitárias do militante iniciada nos seus primeiros anos à frente do Movimento Black Power (1966-1967). Nestes, ao clamar por autodeterminação e orgulho negros, o ativista sobrepunha uma identidade negra à norte-americana sem romper, ainda, com o contexto nacional no qual esta última se assentava. No entanto, pouco tempo depois, isto mudou. Radicado na África, Stokely distanciou-se da cena norte-americana em prol de um projeto político e de uma identidade negra transnacionais e mudou seu nome para Kwame Ture em homenagem aos seus mentores pan-africanistas, Sékou Touré e Kwame Nkrumah. A estas perspectivas Carmichael agarrou-se pelo resto da vida.

17 “We are Africans. We are scattered all over the Western Hemisphere; black people can be found from South Africa to Nova Scotia. Fifty per cent of the population in Brazil: black. In Panama, in Guatemala, in the Dominican Republic, in the West Indies, in the United States, In Canada – we’re all over. And we are the same people”. STOKELY CARMICHAEL E A CONFORMAÇÃO DE UM PROGRAMA POLÍTICO PARA O MOVIMENTO BLACK POWER NOS ESTADOS UNIDOS (1966-1967) HENRIQUE RODRIGUES DE PAULA GOULART 364

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O quadro Los mulatos de Esmeraldas e a dominação espanhola na América do século XVI

ISABELA CANDELORO CAMPOI Professora adjunta do curso de Licenciatura em História da UNESPAR, campus de Paranavaí, atuando também no Programa de Pós-Graduação em Ensino Formação Docente Interdisciplinar (PPIFOR) da mesma instituição. E-mail: [email protected]. Colabora nesta pesquisa o bolsista Felipe Henrique Caires do Programa de Iniciação Científica da Fundação Araucária, agência de fomento do estado do Paraná (PIC-FA).

“Nas províncias de Quito foi descoberta pelo capitão Benalcázar terra muito povoada e muito rica em ouro e prata e especiarias e encontrado e descoberto o rio onde nascem as esmeraldas.” (Carta de Gaspar de Espinosa ao rei Carlos V escrita do Panamá em 06/11/1535, Cf. REIMERS, 1978, p. 06, tradução nossa)

O texto ora apresentado traz os resultados parciais da pesquisa cujo foco foi o quadro Los mulatos de Esmeraldas (1599) pintado por Andrés Gallque Sanchéz1, artista de origem indígena inserido na chamada Escola de Quito, vinculada ao colégio de San Andrés de Quito que se tornou um importante centro de educação franciscana e de produção artística. Através da contextualização do quadro, problematizamos o processo de conquista da América, afinal, a produção desta pintura representou a pacificação da chamada República de Zambos2, reflexo da miscigenação étnica racial proporcionada pelo comércio de escravos africanos no Novo Mundo.

Como parte da nova economia atlântica, tal atividade era exercida desde o século XV por portugueses, espanhóis e mais tarde britânicos. A população de Zambos formou- se a partir do aparecimento dos palenques3, comunidades americanas de resistência

1 O nome do pintor mestiço aparece grafado de diversas formas, tais como: Andrés Sánchez Galque, Andrés Sánchez Gallque e Andrés Sanchez Galque.

2 O termo zambo é parte da vasta nomenclatura que designava as chamadas castas, formadas a partir da miscigenação étnica ocorrida nas Américas. Neste caso, a mistura de nativo indígena com negro africano, pessoas desta etnia podem ser designadas também como cambujos e lobos. Sobre tal aspecto, ver ROMANO, 2007, p. 39.

3 Nas Américas Latina e Caribenha, existem inúmeras formas de se denominar sujeitos inseridos em organizações sociais desvinculadas de suas origens através do trafico de escravos. Um exemplo seriam os quilombos (Brasil), palenques e cumbes (Colômbia, Cuba e Venezuela), Maroons (Haiti, Jamaica e outras ilhas caribenhas), etc. (SILVA, 2012, p. 131). 367

afro indígena. Uma delas, formada a partir de 1553, quando um barco que transportava numerosa quantidade de escravos africanos do Panamá para o vice-reino do Peru, naufragou, levando os sobreviventes a se estabelecerem no noroeste do atual Equador, mesclando-se com a população indígena. Esta rica região despertou intenso interesse de conquistadores e colonizadores desde os primórdios do contato, dada a presença de pedras e metais preciosos.

Assim, no processo que levou à pacificação com a população de Esmeraldas, o quadro Los mulatos de Esmeraldas teve um significado simbólico e não menos importante na frágil aliança selada entre os zambos de Esmeraldas e a Coroa Espanhola, então, naquela conjuntura, unificada à Portugal através da União Ibérica. Deste modo, a produção do quadro reflete o processo de dominação espanhola no norte da América do Sul, em um caso de resistência e relativa assimilação.

Os retratados da República de Zambos, cujo poder estava dividido em dois cacicazgos em que seus líderes eram provenientes de duas linhagens de afrodescendentes, impuseram- se sob as demais comunidades cimarrones4 da região de Esmeraldas naquele final de século.

A pintura foi enviada ao rei simbolizando tal aliança. Na imagem são representados um dos líderes e seus dois filhos principales portando rica indumentária em que se mesclam adereços americanos, africanos e europeus, num caso emblemático de aculturação. Os ornamentos de ouro, a bata ao estilo inca, o chapéu e a lança, além do posicionamento dos adornos e das figuras representadas na pintura, designam a subordinação política e religiosa ao domínio ibérico. Assim, através da análise iconográfica, a pesquisa contextualizou a produção do quadro no processo de dominação espanhola na América no século XVI.

Metodologia

Para a realização de um estudo iconográfico, os métodos de análise ligados à teoria da imagem e à história social da Arte são fundamentais. Partindo do princípio de que tudo pode ser manipulado na iconografia, debruçar-se nos estudos da Arte, além do entendimento de seus conceitos básicos, é preciso contextualizar a época em que determinada obra foi produzida, compreender o tema representado, e assim identificar,

4 Negros rebeldes e fugitivos dentro do um sistema colonial que se abrigavam em terras indígenas. Sobre este aspecto, ver: MORELLI, 2015, p.12. 368

por exemplo, os exageros contidos na imagem, além dos detalhes, que podem funcionar como signos, possuidores de uma carga de significado.

Conforme afirma Roland Barthes na obra “Elementos de Semiologia”: “O signo é, pois, composto de um significante e um significado. O plano dos significantes constitui o plano de expressão e o dos significados oplano de conteúdo” (2012, p.51).

Assim, a iconografia sendo um estudo sobre os temas representados nas imagens, e a iconologia, uma especificidade sobre o significado de uma obra em si, nos trazem um campo de pesquisa inserido na arte, ou melhor, na teoria da arte, já que a análise iconográfica objetiva extrair informações das imagens, ilustrar e complementar as informações com a documentação escrita.

Esta vem a ser uma base fundamental para se aprofundar na iconografia, pois não basta apenas olhar uma obra de arte e simplesmente dizer o que compreende, existe um campo mais complexo de estudo e que dita uma análise profunda, pois nunca se sabe qual o motivo por trás de uma pintura, já que “muitas pessoas gostam de ver em quadros o que também lhes agradaria ver na realidade. Isso é uma preferência muito natural.” (GOMBRICH, 1993, p.05). Deste modo, muitos estão distantes de saber “ver”.

A faceta semiótica introduziu no modelo de leitura da imagem as noções de denotação e conotação. A denotação refere-se ao significado entendido “objetivamente”, ou seja, o que se vê na imagem “objetivamente”, a descrição das situações, figuras, pessoas e ou ações em um espaço e tempo determinados. A conotação refere-se às apreciações do intérprete, aquilo que a imagem sugere e/ou faz pensar o leitor (SARDELICH, 2006, p.456).

Assim, ao analisar uma obra de arte devemos considerar vários aspectos, tais como: a visão do pintor diante do que foi produzido, o que ele quis transmitir, as maneiras possíveis de interpretação, além do lugar de transmissão, do gênero (sátira, charge, quadro, pintura histórica etc.), da técnica (pintura à óleo, guache, grafite, gravura, aquarela etc.), até mesmo o modo como ele simula a luz tem um sentido a ser considerado.

Ulpiano Bezerra de Meneses no capítulo “História e Imagem: iconografia/iconologia e além” do livro “Novos Domínios da História” faz uma retrospectiva do uso das imagens como fonte para os estudos históricos, os pressupostos teórico-metodológicos e as abordagens 369

interdisciplinares – tais como a semiótica – para este tipo de investigação. Entre os historiadores, para a análise das “imagens visuais” a abordagem iconográfica, inspirada em Erwin Panofsky, é a mais recorrente. O estudo da iconografia e o desmembramento do termo para iconologia, este último surgido antes de iconografia, “[...] suporia um papel descritivo, capaz de aumentar classificações, comparações, tradições, circulação, etc.” (MENESES, 1997, p. 244). Assim pode-se elaborar um parâmetro descritivo que vai além da obra tendo como meta principal, desvendar seus significados ocultos.

A princípio a análise iconográfica pode ser dividida em três momentos, de acordo com a teoria de Erwin Panofsky citada por Meneses. O pré iconográfico, quando se analisa as formas em sua concretude, como, por exemplo, seres humanos, animais, objetos, etc. que atuaram na construção do evento em um primeiro nível; o segundo momento seria a análise iconográfica propriamente dita, que analisa os motivos secundários, inspirações artísticas, composição de cores, temas, conceitos e comparações com outros trabalhos de outros artistas. O último momento se apresenta como o mais complexo sobre o qual se tenta identificar “uma espécie de ‘mentalidade de base’”. Esta “interpretação iconológica” se fundamenta na filosofia das “formas simbólicas” desenvolvidas por Ernst Cassirer, conforme afirma Meneses, “[...] isto é, tais formas funcionam como ‘sintomas’, uma vez que são partes separadas de uma mesma realidade que pode ser recomposta” (MENESES, 1997, p. 245).

Conforme aponta Maria Emília Sardelich, “Ler uma imagem historicamente é mais do que apreciar o seu esqueleto aparente, pois ela é construção histórica em determinado momento e lugar, e quase sempre foi pensada e planejada” (2006, p.457). Pois “na medida em que a imagem passa a ser compreendida como signo que incorpora diversos códigos, sua leitura requer o conhecimento e a compreensão desses códigos” (SARDELICH, 2006, p. 453).

Para o que nos interessa aqui, a imagem funciona como artefato, como documento e por isso requer pesquisa de sua vida pregressa. “Portanto, para utilizar a imagem como documento, deve-se retratar, procurando pistas diversas, os caminhos que ela percorreu, antes de ser diagnosticada e aposentada e receber o status de documento” (MENESES, 1997, p. 254). Assim, devemos questionar: antes de ser levado à Madri e pendurado na parede de uma sala de exposições do rico acervo oriundo das Índias no Museo de America, quais foram as motivações de existência do quadro Los mulatos de Esmeraldas? 370

A conquista da América foi um processo longo que teve início nas ilhas do Caribe, ainda no século XV, e se estendeu nos séculos seguintes e de forma irregular no continente. Conforme aponta o historiador Ronaldo Vainfas, enquanto “[...] o México e o Peru foram, por suas potencialidades econômicas e densidades demográficas, as áreas privilegiadas pela conquista,” inúmeras outras regiões, seja pela maior resistência dos nativos, seja pelos menores atrativos econômicos, “[...] foram mal conquistadas ou permaneceram à margem da colonização. O processo de aculturação apresentou, portanto, diversidades notáveis” (VAINFAS, 1984, p.43). Como é o caso da chamada República de Zambos, reflexo de resistência, inicialmente, e assimilação no norte da América do sul.

Desde meados do século XVI o Panamá tornou-se uma importante rota “(...) passagem obrigatória para qualquer relação comercial entre a Europa, a metrópole e as novas terras descobertas nos mares do sul” (SALAZAR, 1989, p.05, tradução nossa). Entre as transações mercantis mais intensas da região que abrangia Panamá, Nombre de Dios e Portobelo, estava o tráfico negreiro que abastecia o Peru e demais localidades do Pacífico. Porto Belo era o principal porto de desembarque escravo e, na chamada negraria, local de muralhas altas e fechadas, mantinham-se os negros escravos a serem vendidos aos colonos da América do sul.

Devido às condições climáticas, diversos cronistas informaram que o trânsito marítimo era perigoso, já que sujeito às tormentas: as frotas naufragavam frequentemente próximas à costa da província de Esmeraldas (SALAZAR, 1989, P. 14-15).

Foi através do mar que o primeiro contato entre espanhóis e autóctones se estabeleceu naquela região. Os habitantes nativos usavam jangadas para transporte e locomoção em geral, era gente do mar: pescadores, grandes mergulhadores e navegantes, de modo que suas articulações sociais e políticas se davam através do oceano (GLAVE, 2014, p. 11).

A notícia da presença de índios pescadores, grandes nadadores e mergulhadores que sobreviviam da pesca e do mar foi bastante difundida pelos primeiros observadores, provocando a configuração de um novo espaço de poder na medida em que se criava a estrutura colonial, que naquela região estava ligada à circulação naval espanhola no Pacífico, de modo que os nativos foram rapidamente incorporados como parte desta nova estrutura. 371

Paulatinamente, eles passaram a ajudar as embarcações em trânsito marítimo com o intuito de receber recompensas em troca de seus serviços. Segundo Luiz Miguel Glave, os povos locais ajudavam as embarcações de passagem, suprindo-as de água e mantimentos (toucinhos, pernil, carneiros, galinhas, pescados e milho), bem como lenha, sebo e velas, além disso, os navegantes indígenas se encarregavam de fazer chegar avisos e comunicações aos tripulantes dos navios 5 (GLAVE, 2014, p.11-12).

O talento dos nativos serviu para ajudar os combatentes da Coroa a abrirem caminhos em territórios cuja conquista era mais dificultosa. Além de auxiliarem nas expedições, estes homens do mar, também sabiam da localização de riquezas como esmeraldas e ouro, aumentando ainda mais a cobiça espanhola.

Como é o caso do território conhecido como Esmeraldas: a fama de sua riqueza foi expressa em cartas e relatórios de cronistas e funcionários reais desde meados de 1535. Após a fundação de Quito ou Guayaquil eram dessas localidades que saíam as expedições (REIMERS, 1978, p.06-11). Desde muito cedo a dominação da área foi um desafio, e provocou a ambição por parte de muitos aspirantes ao poder e à riqueza, afinal, esmeraldas e ouro em poder das primeiras populações contatadas fez surgir tal cobiça.

No que se refere às primeiras expedições espanholas enviadas à terra de Esmeraldas, um desfecho trágico teve os exploradores comandados por Francisco Pizarro, afinal conforme Salazar (1989, p. 09) na região da baia de Buenaventura e Ancón de Sardinas, ocorreram muitas mortes devido às adversidades da região e às doenças. O referido autor afirma, valendo-se do relato de cronistas, que estes aventureiros, apesar de acostumados a explorar novas terras sobre o lombo de cavalos e usando trajes pesadíssimos, foram vencidos pelas características geográficas da região. Deram-se conta rapidamente de que seus adereços se tornaram uma carga inútil, pois se depararam com mangues, desembocaduras pantanosas, chuvas frequentes e uma vegetação desconhecida, condições que fizeram os exploradores chamarem a região de “terra infernal” (SALAZAR, 1989, p.09).

Assim, a junção do paulatino aumento do tráfico de escravos, com as dificuldades

5 O caso de Pedro Cama, um nobre indígena do pueblo de Manta, próximo de Guayaquil, é emblemático. Por volta de 1580 ele reclamava recompensas à Coroa por abastecer com suas balsas os galeões espanhóis. Da mesma forma auxiliou os espanhóis em perigo na zona das esmeraldas. Pelo insucesso de seu pedido junto às autoridades locais, apresentou-se pessoalmente na corte em Madri. (GLAVE, 2014, p.14) 372

de navegação por conta dos aspectos climáticos que provocavam naufrágios, tornou-se propensa à formação de palenques, onde se refugiavam os chamados cimarrones. Estes locais geralmente ficavam em regiões de difícil acesso, abrigando escravos fugitivos que compartilhavam espaço com os indígenas:

(...) nos palenques, adotavam na maioria dos casos uma organização política e social que contemplava o uso de formas próprias do modelo hispânico, como a nomeações de capitães, chefes políticos e alcaides como autoridades dentro do palenque. (MORELLI, 2015, p.13 tradução nossa).

Estes refúgios, socialmente organizados em um contexto de diáspora africana, multiplicaram-se pelas Américas Latina e Caribenha, tornando-se um símbolo de liberdade (SILVA, 2012, p.131).

Um dos primeiros grupos cimarrones a se formar na costa de Esmeraldas e que posteriormente comporia o que seria chamada de República de Zambos, deu-se a partir de 1541. Segundo o cronista estudado por Juan García Salazar, Miguel Cabello de Balboa6, uma embarcação proveniente da Nicarágua atracou na bahia de San Mateo para repouso, reabastecimento de água e mantimentos necessários para continuar a viagem até o Peru. Em meio a uma busca por alimentos no litoral, Andrés, escravo negro, acompanhado de sua mulher indígena, conseguiram fugir terra adentro onde se encontraram com os nativos que os acolheram em sua aldeia. Embora não se tenha dados da história do negro Andrés, sua fuga ficou marcada e registrada pelos cronistas como o primeiro caso de cimarronagem da história de Esmeraldas (SALAZAR, 1989, p. 19-20).

Em meio aos nativos, o ex-escravo seria chamado de Andrés Mangache ou Maganche o qual organizaria um grupo com outros negros fugidos e se colocaria à margem das ordens e das leis oficiais (SALAZAR, 1989, p.20). De início, esse pequeno grupo de zambos não causou alardes, pois suas proporções não representavam uma ameaça concreta aos espanhóis que já sabiam de sua existência. Porém, o aumento populacional e o estabelecimento de relações com os nativos e outros palenques, exigiram o uso da violência, forma de sobrevivência fundamental aos que vivam à margem das leis espanholas.

6 A obra Descripción de la provincia de las Esmeraldas, en la bahía de San Mateo de 1583, é a principal fonte de pesquisa sobre a região. Seu autor foi o religioso enviado para explorar, pacificar e cristianizar a região de Esmeraldas. 373

Com o passar do tempo Andrés teria vários filhos, dentre os quais os dois mais velhos Juan e Francisco, tornaram-se principales. O sucessor de Andrés foi seu filho Francisco, alcunhado com o sobrenome de Arobe (SALAZAR, 1989, p.21). Deste modo, herdeiro do poder de Andrés Mangache, Francisco de Arobe tornou-se líder e chegou, junto com seu irmão, a ser nomeado capitão das autoridades da Real Audiência de Quito. No final do século XVI liderou as negociações de pacificação entre os representantes da Coroa e outros líderes cimarrones hostis: eram os zambos de Esmeraldas protagonizando essa história de resistência e aculturação.

Como parte da República de Zambos, o principal grupo cimarron de resistência ao domínio espanhol em Esmeraldas formou-se a partir do naufrágio do navio do comerciante de Sevilha, Alonso Illescas, o qual transportava numerosa quantidade de escravos africanos do Panamá para Calao, vice-reino do Peru (1553). Esse contato interétnico se deu em uma zona de fronteira onde se encontravam duas etnias indígenas: os nigua e os campace (NOVOA, 2010, p. 41). Valendo-se de armas de fogo provenientes do navio, o grupo estabeleceu aliança com os nigua quando iniciaram ações conjuntas contra os campace, em um movimento de expansão e conquista das áreas limítrofes. Apesar da escassez das fontes:

O que se conhece com mais certeza é que em 1587 sob a direção de um novo líder, o negro Alonso Illescas, o controle do território e a ampliação das fronteiras da sociedade zambo-negra cimarrona, que vinha se estruturando pela via ilegítima ante as autoridades coloniais, obedeceu às ações efetivas de Illescas (...) (NOVOA, 2010, p. 42, tradução nossa)

Ele havia sido um escravo ladino – conhecedor do mundo hispânico, recebeu o nome de seu amo – adquiriu destreza na arte da guerra ao conviver com Antón, o primeiro líder do grupo, além de usar de recursos altamente eficazes para expandir sua zona de influência, tais como aprender a língua dos nativos e estabelecer relações de parentesco, elemento fortemente arraigado na cultura aborígene, o que o levou a iniciar relações por afinidade via matrimônio com as filhas dos caciques, prática que o permitiu estabelecer a paz após a guerra, selando pactos com grupos locais dispersos (NOVOA, 2010, p. 43).

A resistência através do uso da violência, o valor e a astúcia de Allonso Illescas fazia estremecer de terror as cidades ainda incipientes. A força adquirida pelos zambos 374

de Esmeraldas teve tal dimensão, que as expedições em busca das afamadas minas de esmeraldas tornaram-se muito mais escassas após os anos 1550 (REIMERS, 1978, p.12).

Após a morte de Allonso de Illescas, seu filho mais velho, Sebastián, tornou-se o líder, o qual, após o movimento paulatino de aproximação dos representantes eclesiásticos, rendeu-se ao batismo, o que significou uma sujeição ao poderio colonial espanhol. As diversas expedições enviadas na tentativa de selar a paz, por fim, surtiram efeito. Francisco de Arobe e sua esposa índia, Juana, receberam o batismo em 1578.

Naquele contexto os representantes dos Illescas e dos Arobe, os principais representantes da República de Zambos, começam a frequentar Quito. A pintura Los mulatos de esmeraldas reflete o resultado do longo processo de mestiçagem, resistência e aculturação.

De modo geral, a chamada cimarronaje significou luta e resistência, e no caso dos zambos de Esmeraldas, expressou sobrevivência e superação. O quadro analisado evidencia o reconhecimento destes descendentes de escravos e indígenas como governantes de uma extensa região e sua submissão à Coroa espanhola.

Do lado dos espanhóis, o ouvidor Juan Del Barrio Sepúlveda foi enviado à Real Audiência de Quito em 1596 em um contexto de revoltas e instabilidade social. Como estratégia para a pacificação e o controle da região de Esmeraldas, esse representante, diante da inexistência de recursos para um controle direto da região, optou pelo estabelecimento de alianças e estratégias de controle indireto utilizando agentes ‘locais’ indígenas (USILLO, 2012, p.14) Na ocasião da chegada dos Arobe em Quito, quando da pintura do quadro para dar paz e obediência ao rei, o contato com Sepúlveda foi feito por intermédio do frei Jerônimo de Escobar.

Assim, é importante contextualizar a produção do quadro, rica representação pictórica produzida por um artista mestiço pertencente à chamada escola de Quito, vinculada ao colégio de San Andrés de Quito que se tornou importante centro de educação franciscana e de produção artística na região (LEPAGE, 2007).

O colégio de San Andrés de Quito originou-se a partir de uma escola fundada por volta de 1550, estabelecimento de ensino criado pelos franciscanos na real audiência de Quito. Desde o início da missão franciscana na cidade de São Francisco de Quito 375

(1535), esses missionários, o que era de se esperar, estabeleceram laços estreitos com a administração do vice-reino do Peru (LEPAGE, 2007, p. 46-47).

Apesar da instituição ter adotado o modelo do colégio franciscano estabelecido em Texcoco, na Nova Espanha, que tinha como público principal os filhos dos caciques, no colégio de San Andrés, por outro lado, “o corpo estudantil estava formado por indígenas, mestiços, espanhóis pobres e crioulos que recebiam lições de cristianismo e bons costumes” (LEPAGE, 2007, p.48 tradução nossa).

Os colégios de San Andrés (Quito) e San José de los Naturales (Texcoco) destacaram- se das outras instituições do mesmo período por iniciar seus alunos, logo após o batismo, nas oficinas artesanais (LEPAGE, 2007, p. 50-51). Na concepção dos europeus, os nativos eram “ociosos”, o que significava que podiam ter inclinação para a “embriaguês, má conduta sexual, para jogos e apostas e vícios em geral” (LEPAGE, 2007 p. 55, tradução nossa). O método de ensino dos franciscanos trabalhava os ensinamentos cristãos junto com as oficinas artísticas, tendo como efeito colateral a adequação dos alunos aos bons costumes, ao temor à Deus e à obediência ao rei.

Adequados à regra de São Francisco de Assis, que prescrevia o trabalho como melhor forma para combater os vícios e a ociosidade, os franciscanos podiam, então, na lógica eurocêntrica, combater a ociosidade dos nativos. “Aprenda um comércio”, dizia São Francisco de Assis, mas neste caso, o “aprenda um oficio” era o mais adequado. Através de um processo doutrinal e apostólico, os nativos eram catequizados e obrigados a renegarem suas antigas crenças, cujo objetivo era formar discípulos que pudessem disseminar o catolicismo e converter um número maior de pessoas. Em alguns casos, os alunos que já demonstravam afinidade com o espanhol, colocavam seu aprendizado em prática para ensinar os índios que ainda não conheciam a doutrina religiosa fora e dentro do colégio, suprindo também o problema do número reduzido de missionários enviados pela Coroa Espanhola para San Andrés. (LEPAGE, 2007, p. 50).

O colégio tinha um sistema pedagógico que articulava a palavra sagrada junto com as instruções musicais, oficinas mecânicas, aulas de linguagem, entre outros aspectos da educação no Vice-Reino do Peru, com a intenção de doutrinar e formar discípulos. O treinamento artístico “nunca foi uma meta educacional principal dos franciscanos 376

(LEPAGE, 2007, p.56, tradução nossa), mas aos olhos de muitos especialistas, o colégio de San Andrés de Quito se tornou famoso graças à arte e seus trabalhos manuais, tanto que em 1950 o historiador Gento Sanz definiu San Andrés de Quito como um colégio de Belas Artes, uma visão moderna que valorizava o “entretenimento artístico sobre a educação religiosa” (LEPAGE, 2007, p.55, tradução nossa). Aos poucos, San Andrés perderia sua aparência religiosa e se tornaria um polo de bons profissionais e a principal referência artística equatoriana.

Um dos primeiros professores de arte no colégio foi Pedro Gocial, e a partir dele muitos alunos acabaram sendo contratados como professores, passaram a receber um salário e a fazer parte de um núcleo composto, em sua maioria, por indígenas, os quais foram responsáveis por perpetuar o legado de San Andrés de Quito. Assim, por volta de 1588 um grupo de homens educados no Colégio ingressou no ramo indígena da Confraria do Rosário do convento de Santo Domingo, declarando-se pintores e dentre estes estava Andrés Sánchez Galque (LEPAGE, 2007, p.65).

Andrés Sánchez Galque foi o mais conhecido dos alunos que estudaram em San Andrés. Filho de Sebastián de Benalcázar7 importante conquistador espanhol, viveu do próprio ofício de pintor. Devido ao aumento da demanda por objetos de arte, crescia a proporção de artistas, e o objetivo central do colégio em questão foi corresponder a essa demanda, já que, conforme observa Andrea Lepage, “(...) artistas e comerciantes indígenas participaram ativamente na produção e patrocínio das artes por razões de fé e também para estabelecer e exteriorizar seu prestigio.” (2007, p. 66, tradução nossa)

Por conta disso, os benefícios monetários e o prestígio fortaleceram a tensão entre a arte e a religião, pois a posição da filosofia franciscana era de que a religião deveria prevalecer sobre qualquer aspecto de caráter prático ou material, conforme instaurava o método de ensino franciscano.

Ao sair do colégio de San Andrés, o mestiço André Sánchez Galque se associou à Confraria do Rosário dos Dominicanos, onde foi instruído pelo frade dominicano Pedro

7 Belalcázar tornou-se renomado conquistador espanhol. Segundo alguns cronistas espanhóis, grande parte de seu exército era formado pelos Yanaconas, nativos originalmente descendentes dos próprios incas, que, na ilusão de aquisição de terras próprias, auxiliaram na conquista da região onde hoje se encontra o Equador. Suzana Matallana PELÁEZ, 2013: p.27 377

Bedón em 1588, o qual proporcionou aos pintores “índios” reunir-se e exercitar sua arte a serviço das causas religiosas.

Um exemplo da inserção do artista André Sánchez Galque neste mercado de arte religiosa foi o contrato firmado em 1592 com Don Diego Pilamunga, um indígena de origem nobre, para a criação de um retábulo para a igreja de Santiago de Chimbo, pueblo do qual era o cacique principal (LAPAGE, 2007, p.66).

Nos anos que se seguiram ao contrato com Don Pilamunga, Andrés Sánchez se tornou um artista de renome e certamente o mais famoso deste período, visto que há mais informações sobre ele e seus trabalhos do que qualquer outro artista naquele período. “Até o presente, a pintura Los tres mulatos (1599) de sua autoria, é talvez a obra mais antiga datada e assinada que conhecemos na América do Sul” (LEPEGE, 2007, p. 68, tradução nossa).

A obra Los mulatos de Esmeraldas é uma pintura à óleo de 92cm por 175cm e está exposta atualmente no Museo de América em Madri. O quadro foi enviado ao novo rei, Felipe III juntamente com um detalhado informe sobe a pacificação de Esmeraldas. É considerada por estudiosos como Andrés G. Usillo uma obra excepcional:

(...) não apenas por sua enorme qualidade estética e artística, mas sobretudo por sua história, na qual se pôde documentar os detalhes do contexto, o motivo e circunstâncias de sua realização. Mas também destaca seu significado artístico, já que se trata de uma das escassas mostras de pintura renascentista ou maneirista americana que se conservam, sobressaindo entre aquelas outras americanas mais habituais, de temática religiosa e estilo barroco (...) (USILLO, 2012, p.08, tradução nossa).

Segundo a própria descrição contida na obra, a tela retrata Dom Francisco de Arobe, então aos 56 anos e seus dois filhos mais velhos, Dom Pedro e Dom Domingo, de 22 e 18 anos respectivamente. Apesar de designados como mulatos (descendentes de brancos com negros), tratam-se de zambos. Andrés Usillo chama a atenção para os diferentes inventários feitos sobre tal obra desde o século XVII, os quais a apresentam como “três negros com suas lanças”, “três negros índios” e mesmo “três índios bozales”. Em todos os casos há o reconhecimento da procedência mista, africana e indígena, de seus personagens (USILLO, 2012, p.08, tradução nossa). 378

No centro da pintura, o pai no primeiro plano é ladeado pelos dois filhos, os quais têm os rostos voltados à figura paterna, enfatizando a importância da figura central. No retrato, dois novos súditos do rei aparecem com seus chapéus nas mãos representando simbolicamente submissão e respeito, ou seja, vassalagem ao rei; um dos chapéus é mostrado com o interior voltado ao expectador, um gesto que sugere que seu dono não oculta intenções duplas.

As mantas ao estilo indígena foram feitas com tecidos finos importados, cujas ordenanças reais só permitiam o uso pelas classes abastadas, uma maneira de ostentar elevada posição social. O uso de joias de ouro no nariz, orelhas e lábios era prática entre os nativos principales americanos, também entre os esmeraldenhos, indicava alta hierarquia.

Por baixo da manta, sobre a roupa, os três personagens usam largos colares de peças brancas e regulares presas em fios de ouro. São provavelmente de madrepérola ou de alguma concha similar, não de dentes, como algumas fontes da época indicaram, segundo Usillo (2012, p. 34) O adereço mais exótico em relação ao que seria a influência dos zambos, é a gola em rufo, adereço usado pelas classes abastadas europeias no período.

As armas portadas pelos Arobe são lanças de pontas de ferro, assimilação indígena. Apesar do título de capitão dado à Francisco de Arobe, o que lhe permitiria o uso de espadas, diversas leis proibiam o uso desta arma por indígenas e negros, livres ou escravos, de modo que se explica o uso da lança ao estilo nativo.

Para além dos aspectos da obra e seu conteúdo em si, o que é fonte riquíssima de pesquisa, o significado político que deu ao quadro sua própria existência, reflete a riqueza de possibilidades de abordagem.

Considerações finais

A formação da República de Zambos reflete a miscigenação étnica racial proporcionada pelo comércio de escravos africanos. O contato com as Américas provocou uma “guinada no tráfico de escravos” o que exigiu sua considerável ampliação. (RESTALL, 2006, p. 110)

Nas zonas de sociedades organizadas sob os impérios asteca e inca, por exemplo, prevalecia a mão-de-obra indígena, que era mais abundante e dela a colonização dependia. 379

Desse modo, os escravos negros dos colonos espanhóis tendiam a trabalhar mais como auxiliares pessoais – na qualidade de servos domésticos, assistentes em empreendimentos comerciais, símbolos de status social –, assim como, na Conquista, eram auxiliares pessoais de determinados conquistadores espanhóis. (RESTALL, 2006, p. 111)

A partir dos postos como os descritos acima, o empenho pessoal (e também em circunstâncias diversas e favoráveis), dos negros oriundos da África, trazidos de forma forçada assim como os náufragos estabelecidos em Esmeraldas, ocuparam postos nas expedições de conquista, na incipiente burocracia colonial e até se tornaram encomienderos. Consequentemente as etapas do tráfico negreiro na América no decorrer do século XVI, resultara na fuga destes escravos que logo mais se estabeleceriam por várias partes do continente e que posteriormente seriam vistos como ameaças para a Coroa.

No caso dos cimarrones Illescas e Arobe de Esmeraldas, como lideranças políticas e militares desenvolveram uma lógica própria de vassalagem: entre resistência e assimilação, suas linhagens se afirmaram e exigiram empenho das lideranças coloniais que se empenhavam na imposição do poder espanhol. A partir de seus próprios espaços de habitação, valendo-se dos cacicazgos, padrão de organização político social dos indígenas da região, os chefes foram se impondo e tinham sob seu mando uma população composta por negros, índios e mulatos em um território cobiçado pelos peninsulares.

O resultado é uma sociedade multiétnica peculiar que se construiu mediante a resistência ao poder colonial, com seu próprio projeto político e social e regido por princípios de autonomia, autoridades étnicas e com seus territórios desde onde reproduzem suas próprias formas de vida (NOVOA, 2010, p. 78, tradução nossa).

Assim, a produção do quadro e a própria representação imagética, são indicativos dos conflitos, das resistências e das negociações com as populações nativas americanas mescladas com os africanos no contexto da conquista e colonização da América pelos espanhóis. Entretanto, nesta lógica própria de vassalagem, a realização do retrato, seu envio ao rei e a presunção de pacificação da região não garantiu o fim dos conflitos. Afinal, conforme aponta Usillo (2012, p.22), entre 1605 e 1607 agitações sangrentas voltaram a acontecer entre os zambos e seus aliados e os yumbo, grupo indígena das encostas da cordilheira dos Andes que convulsionaram toda província. 380

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“Por Ti, América”: Luta Armada, Internacionalismo e Latino- Americanismo na Trajetória das Esquerdas Sul-Americanas Este artigo é parte do livro homônimo, lançado no XIII Encontro Internacional da ANPHLAC em 2018, fruto da minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense em 2016.

IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); professora de História da América na Universidade Castelo Branco (UCB) e professora de História da América (modalidade EAD) na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Contato: [email protected]

A la estrategia internacional del imperialismo corresponde la estrategia continental de los revolucionarios. Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR)

Em 1977, o cineasta francês Chris Marker lançou o documentário Le fonde de l’air est rouge (O fundo do ar é vermelho).1 O título do filme exprimia a atmosfera das décadas de 1960 e 1970, marcadas pela ascensão de intensos movimentos sociais que, em várias partes do mundo, levaram milhares de pessoas às ruas – em especial suas camadas mais jovens – manifestando-se contra a ordem vigente, questionando as estruturas e valores conservadores capitalistas e socialistas, sem poupar fronteiras, regimes ou sistemas políticos. Na América Latina, em especial, as propostas de revolução política, e também econômica, cultural, pessoal, enfim, em todos os sentidos e com os significados mais variados, marcaram profundamente os anos 1960 e 1970. Em nome da revolução, muitos se dispuseram a matar e a morrer.

1 Neste documentário, dividido em duas partes, o cineasta faz um balanço de dez anos de lutas revolucionárias no mundo, passando pela Primavera de Praga e os movimentos estudantis e operários franceses. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 383

Mas nem todos eram vermelhos e revolucionários naquelas décadas. Ao contrário, amplos setores conservadores, militares e civis, propuseram uma coloração bem diferente em boa parte do continente americano. Assim sendo, aqueles anos rebeldes – como ficaram consagrados no senso comum e na memória coletiva – também foram marcados na América Latina, em especial na região do Cone Sul, pela emergência de governos autoritários que possuíam uma característica em especial: a presença de militares no poder. Contando com o apoio de amplos setores civis, estes militares implantaram e sustentaram longas ditaduras.

Assim sendo, o cenário político da América do Sul foi marcado, ao longo das décadas de 1960 e 1970, pela emergência de ditaduras civil-militares e pela ascensão de diversas organizações revolucionárias, que se caracterizaram por uma forte desconfiança em relação às formas tradicionais de atuação e representação política, pela valorização da ação e pela defesa da luta armada. Neste contexto, essas organizações revolucionárias, além do papel de resistência2 às ditaduras civil-militares, sobressaíram-se também e, sobretudo, pela perspectiva ofensiva e pela elaboração de projetos revolucionários que visavam à construção de uma nova sociedade.

Essas organizações da esquerda armada sul-americana, apesar de suas especificidades, também possuíam similitudes teóricas e práticas e, além disso, procuraram estabelecer articulações guerrilheiras, esboçando tentativas de efetivar um internacionalismo revolucionário na região. O presente artigo tem por objetivo elucidar uma dessas experiências internacionalistas revolucionárias na América do Sul, através da análise da trajetória da Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR), organização que reuniu quatro dos grupos guerrilheiros mais significativos denuestra América.

A criação da Junta de Coordinación Revolucionaria representava uma tentativa de resgatar o projeto internacionalista encarnado na figura do líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara, que foi o maior símbolo da revolução sem fronteiras, do guerrilheiro cuja pátria era a América Latina. Guevara incentivou a criação de “dois, três, muitos Vietnãs”

2 Apesar de seu papel no combate às ditaduras, algumas organizações das esquerdas armadas sul- americanas – inseridas em conjunturas nacionais radicalizadas e influenciadas pelas experiências internacionais da Revolução Cubana, da Revolução Chinesa, da Guerra do Vietnã e das guerras anticoloniais travadas na África – surgiram antes mesmo do estabelecimento das ditaduras civil-militares na América do Sul, ainda em períodos democráticos, levantando a bandeira do socialismo e do combate ao capitalismo, às desigualdades sociais e ao imperialismo estadunidense. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 384

e conclamou os grupos armados da América Latina a “formar uma espécie de junta de coordenação para tornar mais difícil a tarefa repressiva do imperialismo ianque e facilitar a própria causa” (GUEVARA, 2006, p. 305).

O ponto de partida para a formação de uma “junta de coordenação” entre grupos da esquerda sul-americana foi o contato com os sobreviventes cubanos Ejército de Liberación Nacional da Bolívia (ELN), que, após o fracasso da guerrilha guevarista, que culminou no assassinato de dezenas de guerrilheiros, incluindo o próprio Guevara, conseguiram chegar (clandestinamente) ao Chile, depois de caminhar mais de 1000 km em condições subumanas. Os sobreviventes foram detidos, mas receberam todo o apoio dos principais grupos da esquerda chilena, em especial do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR).

Desde então, os militantes do ELN mantiveram contatos sistemáticos os miristas chilenos. A partir de 1970, quando Salvador Allende assumiu a presidência da República, o Chile, além de um lugar de refúgio3, sobretudo em vista das várias ditaduras militares que já se espalhavam pela América do Sul, tornou-se um espaço fundamental de trocas políticas para os militantes da esquerda armada sul-americana. Guerrilheiros do ELN boliviano, uruguaios do Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T) e argentinos do Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP) conviviam, debatiam, confirmavam afinidades políticas e aproximavam-se dos militantes do MIR chileno, entre outras organizações.

No final de 1972, a sintonia entre estas organizações, que já se consideravam “hermanas”, começou a ganhar contornos de formalização. Em novembro daquele ano, reuniram-se em Santiago as lideranças do MIR, do MLN-Tupamaros e do ERP. Como representantes do MIR, estiveram presentes Miguel Enríquez (Secretário-Geral da organização chilena), Andrés Pascal Allende e Nelson Gutiérrez; do ERP, compareceram Mario Roberto Santucho (Secretário-Geral do Partido Revolucionário de los Trabajadores e Comandante do ERP), Domingo Menna e Enrique Gorriarán Merlo; os Tupamaros, cujas principais lideranças estavam presas no Uruguai, foram representados por Efraín Martínez Platero e William Whitelaw. Foi então criada a Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR), que deveria ser a concretização da visão estratégica de “Che” Guevara.

3 O governo Allende promoveu uma ampla política de solidariedade para os refugiados latino-americanos, o que provocou constantes conflitos com as direitas chilenas, que não viam com bons olhos a entrada no paísdesses refugiados, sobretudo os guerrilheiros. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 385

Em uma segunda reunião realizada em junho de 1973, desta vez na cidade argentina de Rosário, o ELN da Bolívia – que até então só mantinha conversas bilaterais com as outras três organizações, mas contava com grande prestígio e força simbólica por ser representante da guerrilha iniciada pelo próprio Guevara – foi formalmente integrado à recém-fundada organização (MARCHESI, 2009). Assim sendo, a JCR era integrada por quatro dos mais significativos grupos da esquerda armada sul-americana: oMovimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T do Uruguai); o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR do Chile); o Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP da Argentina) e o Ejército de Liberación Nacional (ELN da Bolívia).

No dia 13 de fevereiro de 1974, a Junta de Coordinación Revolucionaria anunciou publicamente sua criação, através da distribuição do comunicado A los pueblos de América Latina, onde assim apresentavam-se:

El Movimiento de Liberación Nacional (Tuparnaros) de Uruguay, el Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) de Chile, el Ejército de Liberación Nacional (ELN) de Bolivia y el Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP) de Argentina, firman la presente declaración para hacer conocer a los obreros, a los campesinos pobres, a los pobres de la ciudad, a los estudiantes e intelectuales, a los aborígenes, a los millones de trabajadores explotados de nuestra sufrida patria latinoamericana, su decisión de unirse en una Junta de Coordinación Revolucionaria. Este importante paso es producto de una sentida necesidad, de la necesidad de cohesionar a nuestros pueblos en el terreno de la organización, de unificar las fuerzas revolucionarias frente al enemigo imperialista, de librar con mayor eficacia la lucha política e ideológica contra el nacionalismo burgués y el reformismo (JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA, 1974, p. 3).

Na declaração constitutiva da JCR, divulgada por ocasião do anúncio oficial da formação da Junta em 1974, os quatro grupos-membro reforçavam que a criação da organização representava a institucionalização de laços fraternais, trocas de experiências e afinidades ideológicas que já se desenhavam entre os guerrilheiros do Cone Sul. E, na concepção destes revolucionários, somente a partir da prática internacionalista seria possível combater o imperialismo estadunidense – encarado como o inimigo em comum aos povos latino-americanos – e caminhar rumo ao socialismo.

Vinculados por la similitud de nuestras luchas y nuestras líneas, las cuatro organizaciones hemos establecido primero vínculos fraternales, y en un proceso hemos pasado a un intercambio de experiencias, a la mutua colaboración cada vez más activa, hasta dar hoy este paso decisivo que acelera la coordinación y colaboración que sin ninguna duda redundará en tina mayor efectividad “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 386

práctica en la encarnizada lucha que nuestros pueblos libran contra el feroz enemigo común. El mayor desarrollo de nuestras organizaciones, el fortalecimiento de su concepción y práctica internacionalistas, permitirá un mayor aprovechamiento de las potencialidades de nuestros pueblos hasta erigir una poderosa fuerza revolucionaria capaz de derrotar definitivamente a la reacción imperialista capitalista, aniquilar a los ejércitos contrarrevolucionarios, expulsar al imperialismo yanqui y europeo del suelo latinoamericano, país por país, e iniciar la construcción del socialismo en cada uno de nuestros países, para llegar día de mañana a la más completa unidad latinoamericana (JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA, 1974, p. 4).

Nessa perspectiva, a Junta de Coordinación Revolucionaria – como outras organizações revolucionárias sul-americanas fortemente influenciadas pela Revolução Cubana – defendia que a revolução na América Latina deveria ter, concomitantemente, um caráter socialista, continental e anti-imperialista.

La revolución latinoamericana es un proceso radical de transformaciones antiimperialistas y anticapitalistas, democráticas e populares, de liberación nacional y socialistas. Ello equivale a decir que, como lo demostró la Revolución Cubana, el proceso revolucionario en nuestro continente integra, en una misma dinámica, la expropiación de los monopolios y la liquidación de la explotación del hombre por el hombre, la reforma agraria y la democratización más radical de la sociedad, las reivindicaciones nacionales y la construcción de una sociedad socialista (JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA, 1975a, p. 11)

Enfrentar o imperialismo, derrubar as forças contrarrevolucionárias, promover a construção do socialismo e unir a América Latina. Eram grandes os sonhos e perspectivas dos revolucionários que fundaram a JCR – queriam “tomar o céu de assalto”, para usar a expressão cunhada por Karl Marx.

O historiador argentino Pablo Pozzi sustenta que a JCR “era más un embrión de partido internacional que una mera coordinación guerrillera” (POZZI, 2001, p. 24). Daniel de Santis, ex-militante do PRT-ERP da Argentina, corrobora essa visão: “La Junta de Coordinación Revolucionaria no era una coordinación para hacer tareas. No, tenía el objetivo de acuerdos políticos-ideológicos, además de realizar y de compartir la logística, un partido internacional” (SANTIS, 2014). No entanto, os Estatutos Provisórios da JCR afirmam que a organização não pretendia formar uma direção supranacional que não levasse em conta as especificidades de cada país e de cada organização:

La JCR no pretende constituirse em una dirección supranacional que determine la dinámica de los partidos em cada país, sino más bien, partiendo de la interdependencia de las luchas de clases entre “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 387

los distintos países latinoamericanos, busca desarrollar una coordinación que tome en cuenta el factor nacional, continental e internacional, a partir de la dinámica nacional. El programa, la estrategia y la práctica que define es una línea política general que cada partido deberá implementar de acuerdo a la realidad concreta de cada país (JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA, s/d, p.1).

Portanto, na medida em que estava garantida a independência de cada país e de cada organização4 e não se intentava construir um partido internacional centralizado, concordamos com o sociólogo Eduardo Weisz que afirmou que a JCR “más que actuar como una organización centralizada, en la que secciones nacionales se subordinan a una política internacional, fue a nuestro entender una coordinación entre organizaciones guerrilleras” (WEISZ, 2006, p. 21). Contudo, como ressaltou John Dinges, a JCR não era

(...) uma simples aliança, nem a reunião das organizações separadas. A proposta (...) era que nenhum movimento revolucionário de um país ficasse subordinado ao outro. Cada grupo lutaria com a sua agenda e seus métodos. (...) Cada organização-membro escolheria como e quando pegar em armas. Mas juntas elas criariam uma infra-estrutura, um aparelho internacional que propiciaria apoio logístico, financeiro e militar mútuo (DINGES, 2005, p. 87-88).

Nos primeiros anos da Junta de Coordinación Revolucionaria, o Chile exerceu um papel fundamental, afinal tinha sido o “anfitrião” das outras três organizações que, juntamente com os miristas chilenos, dariam origem à JCR. No entanto, com o golpe de Estado perpetrado pelo general Augusto Pinochet, em setembro de 1973, a violência repressiva que se seguiu alterou radicalmente o cenário chileno. Até meados de 1975, a maioria dos militantes do MIR estava presa ou desaparecida. Com o avanço repressivo, os chilenos foram perdendo sua centralidade dentro da JCR. Após o golpe no Chile em 1973 – antecedido, entre outros, pelo golpe na Bolívia em 1971 e no Uruguai em junho de 1973 – a Argentina, que então vivia um momento democrático, tornou-se um porto para os refugiados políticos e as organizações revolucionárias (embora este período também tenha sido marcado na Argentina pela repressão à esquerda armada).5

Nesse contexto, apesar da conjuntura repressiva interna, a Argentina, em vista das ditaduras que já se espalhavam pela América do Sul, tornou-se o locus privilegiado

4 Isso não significava, na prática, que uma determinada organização não tivesse maior poder de influência em relação às demais.

5 A repressão à esquerda armada recrudesceu na Argentina após a criação, em 1974, da Aliança Anticomunista Argentina, mais conhecida como Triple A, uma organização de extrema-direita, que liderou uma série de perseguições e assassinatos políticos e atuou particularmente no governo de “Isabel” Perón (1974-1976). “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 388

para as organizações revolucionárias e, em especial, para a Junta de Coordinación Revolucionaria. O golpe no Chile parecia reforçar a radicalização política das organizações que integravam a Junta, que fortaleceram sua concepção sobre a necessidade da luta armada e intensificaram as atividades para consolidar e expandir a JCR. Era grande o otimismo revolucionário: “Imaginávamos uma espécie de Vietnã embrionário em toda a América Latina. Íamos levar a ideia da JCR ao Brasil, Peru, México, Caracas. Para nós, a revolução estava prestes a se iniciar em toda a América Latina”, relembra Luís Mattini, uma das lideranças do ERP (MATTINI apud DINGES, 2005, p. 91).

Entre 1973 e 1976, a JCR concentrou suas atividades no território argentino. Neste período, a organização logrou desenvolver uma infra-estrutura militar e logística, concomitantemente às atividades de propaganda revolucionária. Em relação a esse último aspecto, a Junta de Coordinación Revolucionaria criou seu órgão de divulgação internacional – uma revista significativamente intituladaChe Guevara. 6 No que tange às atividades militares e logísticas, a JCR foi beneficiada por uma infra-estrutura já existente na Argentina e que fora elaborada pelo PRT-ERP. As “escolas de quadros” da organização argentina foram colocadas à disposição da JCR, que promovia cursos e atividades de formação política e militar com a participação de militantes bolivianos, uruguaios, chilenos, argentinos, entre outros (MATTINI, 2014).

Além das escolas de quadros, a Argentina abrigava uma equipe permanente da JCR, formada, entre outros, por Rubén Sánchez (ELN), Edgardo Enríquez (MIR), Mario Roberto Santucho (ERP) e representantes do MLN-Tupamaros (SANTUCHO, 2014). Como os próprios órgãos de inteligência e repressão do Cone Sul constataram, os anos de 1974 e 1975 representaram “el auge de la JCR en el Río de la Plata” (ARCHIVO DE LA DIRECCIÓN NACIONAL DE INFORMACIÓN E INTELIGENCIA, 1974).

As ações militares da JCR – que incluíram a instalação de uma fábrica clandestina de armas – estiveram intrinsecamente ligadas às do ERP. Uma das principais modalidades eram as capturas de altos executivos de empresas multinacionais. Foram realizadas três capturas, todas na Argentina, lideradas por militantes do ERP e com participação

6 A Revista Che Guevara teve apenas três números – traduzidos do espanhol para o português e o francês – publicados de forma irregular em novembro de 1974, fevereiro de 1975 e outubro de 1977, respectivamente. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 389

de militantes das demais organizações-membro da JCR, sobretudo os Tupamaros.7 Em troca da liberação dos capturados, eram solicitados alguns bens de utilidade pública (como ambulâncias e equipamentos odontológicos para vilarejos pobres) e também uma quantia em dinheiro. O montante solicitado como resgate nas ações de captura tornou- se o principal financiamento das atividades de propaganda, das ações armadas eda construção de uma infra-estrutura da JCR.

Com a intensificação da repressão na Argentina, que era o principal palco de atuação da JCR, as possibilidades de atuação ficavam cada vez mais restritas no Cone Sul. Assim sendo, a JCR decidiu intensificar suas atividades voltadas para outras partes do mundo. Aliás, a política exterior e as alianças internacionais representaram, desde o início, uma das prioridades da organização. Ainda em 1973, o tupamaro Efraín Martinez Platero foi escolhido como representante internacional da JCR. A partir de então, Platero realizou diversas viagens visando conquistar apoio para a Junta. Seu primeiro destino foi Cuba – a ilha era considerada pelas quatro organizações que formavam a JCR a vanguarda revolucionária da América Latina.

Nuestras organizaciones, unidas em la Junta de Coordinación Revolucionaria, saludan la Revolución Cubana como inicio de nuestra segunda independencia y de la Revolución Latinoamericana. (...) Los pueblos latinoamericanos festejaron como suyos los primeros logros de la Revolución Cubana. (...) América Latina veía en su proprio solo, el camino revolucionario de su liberación. (...) Ya desde el primer momento Cuba fue reconocida como vanguardia y guía de la Revolución Latinoamericana (JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA, 1975b, p. 15).

Contudo, apesar das expectativas positivas dos guerrilheiros, a ideia de uma junta revolucionária latino-americana não foi bem recebida pelos comunistas cubanos. Ainda que Platero tenha invocado a memória de “Che” Guevara como inspiração para a JCR, o líder Fidel Castro não aprovava os planos da Junta.

A desaprovação do Estado cubano à experiência da JCR estava relacionada ao fato de Fidel Castro ser contrário aos planos do ERP de deflagrar uma guerrilha nas montanhas de Tucumán na Argentina, pois o governo argentino abrira relações comerciais com Cuba e o apoio ao ERP poderia prejudicar o desenvolvimento destas relações. Ademais, a aproximação do governo cubano com a União Soviética – ainda que não representasse o

7 Nas três ações, foram capturados executivos das empresas Esso, Firestone e Swissair. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 390

fim do apoio de Cuba à esquerda armada latino-americana – significou um estreitamento das relações com os partidos comunistas latino-americanos, nos quais, de uma maneira geral, predominava a linha soviética, que, nesse momento, se opunha às tentativas de desencadeamento da revolução na América Latina.8

Segundo o depoimento de Enrique Gorriarán Merlo, um dos principais dirigentes do ERP, Fidel Castro não era contra uma coordenação revolucionária em si, mas contra o fato de torná-la pública, o que, em sua ótica, poderia contribuir para a união dos governos repressivos do Cone Sul (MERLO, 2005). Além disso, Fidel Castro poderia imaginar que o desenvolvimento de uma coordenação revolucionária na América Latina, como propunha a JCR, significaria uma disputa de hegemonia – até então exercida por Cuba – dentro dos movimentos revolucionários latino-americanos (MARCHESI, 2013, p. 307). Assim sendo, Cuba continuou mantendo laços bilaterais com as organizações revolucionárias sul-americanas, mas não oficializou seu apoio à JCR.

Apesar da resistência de Cuba, a Junta de Coordinación Revolucionaria prosseguiu sua busca por contatos e apoio no exterior. Em maio de 1975, a direção da Junta de Coordinación Revolucionaria decidiu enviar dois emissários em uma viagem pela América Latina a fim de espalhar a estratégia revolucionária da JCR pela região:

Era tanto uma incursão como uma viagem de informação para realizar um levantamento do nível de determinação (voluntad) dos revolucionários latino-americanos. Era como uma sondagem preliminar. Mais tarde eles deviam entregar um relatório e então sair de novo para cimentar alianças ou membros na JCR (MATTINI apud DINGES, 2005, p. 139)

Os escolhidos para desempenhar esta missão foram Amílcar Santucho (irmão mais velho de Mario Roberto Santucho, principal líder do ERP) e Jorge Fuentes (um dos principais representantes do MIR em Buenos Aires). A primeira parada dos emissários foi o Paraguai, então sob uma ditadura liderada por Alfredo Stroessner. A jornalista argentina María Seoane afirma que a viagem dos dois militantes ao Paraguai “intentaba averiguar

8 Na segunda metade da década de 1950, os partidos comunistas latino-americanos, de maneira geral, mantiveram- se alinhados à União Soviética e defenderam a teoria da revolução por etapas. Esta teoria sustentava a ideia que nos países onde o capitalismo convivia com relações “feudais ou semifeudais” – como se julgava ser o caso da América Latina – era necessário, antes de atingir a meta final do socialismo, atravessar uma etapa prévia caracterizada por uma transformação nacional-democrática (“antiimperialista e antifeudal”), para a qual era primordial uma política de alianças, que incluísse a burguesia nacional. Nessa ótica, a construção do socialismo no continente estava relegada a uma etapa futura (CARNOVALE, 2011, p. 27-28). “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 391

en Asunción sobre el destino de miristas chilenos miembros de la JCR, secuestrados por la policía del regimen de Alfredo Stroessner” (SEOANE, 2003, p. 262). Contudo, a missão tornou-se o alvo de uma ação combinada entre as forças de segurança da Argentina, Chile e Paraguai, que contaram com o apoio do Federal Bureau of Investigation (FBI) dos Estados Unidos. Amílcar Santucho e Jorge Fuentes foram presos pouco depois de ingressarem no Paraguai em maio de 1975. Junto com eles foram apreendidos documentos e listas de endereços e de contatos da JCR.

Os oficiais dos Serviços de Inteligência do Chile e da Argentina participaram dos interrogatórios de Fuentes e Santucho na capital paraguaia. O tratamento dado pelas agências de inteligência na América do Sul a estes prisioneiros já apontava para uma nova tática das forças repressivas dos países do Cone Sul, que superavam suas longas histórias de rivalidade e animosidade, substituindo-as por um nível sem precedentes de colaboração e compartilhamento de informações. Essa nova realidade daria origem à chamada Operação ou Plano Condor, uma aliança secreta entre os governos militares de Uruguai, Paraguai, Bolívia, Argentina e Brasil, que contou com o apoio dos Estados Unidos.

Para além da repressão sem fronteiras desencadeada pela Operação Condor, a Junta de Coordinación Revolucionaria sofreu um novo e duro baque em março de 1976, após o golpe de Estado deflagrado na Argentina, que iniciou a última e mais sangrenta ditadura militar no país. A partir de então, a repressão sem limites dos militares argentinos – planejada e executada pelas Forças Armadas – incluiu sequestros, detenções, torturas, execuções e “desaparecimentos”, deixando um saldo de cerca de trinta mil mortos e/ou desaparecidos na Argentina.

Com o golpe, toda e qualquer margem de atuação da JCR na Argentina foi duramente cortada. O cerco estava se fechando na América do Sul. Assim sendo, diante da intensificação da repressão – cada vez mais internacionalizada, a partir da crescente ação coordenada dos órgãos de inteligência e repressão na América do Sul – os remanescentes da JCR partiram para o exílio, espalhando-se pela Europa, México e Cuba, muitas vezes usando o Brasil como rota de saída. Atuar fora da América do Sul representou para essas organizações, de um lado, uma tentativa de sobrevivência física e sobrevivência política de projetos coletivos, e de outro, um momento-chave para autocríticas e redefinições de rumos (SILVA, 2018). “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 392

As tentativas de reorganização da Junta de Coordinación Revolucionaria no exílio fracassaram, entre outros fatores, porque esbarraram nas fragmentações políticas das próprias organizações que integravam a JCR. Contudo, não foram somente os conflitosdentro destas organizações que se configuraram como fatores preponderantes para o fracasso da experiência internacionalista da JCR. O discurso e prática internacionalistas das organizações armadas do Cone Sul não foram capazes de superar as divergências presentes entre elas, sobretudo em um contexto em que a repressão internacionalizada fechava o cerco. E seria no exílio fora da América do Sul que essas significativas discordâncias exacerbaram-se, contribuindo para o fracasso da experiência internacionalista da Junta de Coordinación Revolucionaria. A viagem forçada para fora do Cone Sul da América acabou significando, para estes grupos, a desagregação, a dissolução, o afastamento, o fim (SILVA, 2018).

A trajetória da JCR foi atravessada pelo controle e repressão das ditaduras que se espalharam pelo Cone Sul da América a partir da década de 1950. Na realidade, o momento de criação da Junta correspondeu ao período mais limitado para a institucionalização deste internacionalismo através da fundação de uma organização que defendia a revolução para além das fronteiras nacionais. De qualquer maneira, em que pese o fracasso de sua experiência, a Junta de Coordinación Revolucionaria representou o auge do internacionalismo revolucionário na América Latina na segunda metade do século XX.

Inspirada na Revolução Cubana e nos caminhos trilhados por “Che” Guevara, a JCR defendia, sobretudo, a perspectiva do internacionalismo revolucionário em nuestra America:

La Revolución Cubana plateó con fuerza la actualidad de la revolución en Latinoamérica. (…) La revolución latinoamericana es continental, como producto de nuestras raíces históricas de continente sometido al mismo destino por las potencias coloniales e imperialistas, dominada hoy por la misma potencia imperial, con los mismos métodos y objetivos, explotado por el mismo enemigo de los pueblos. (…) Por ello, los revolucionarios latinoamericanos son combatientes internacionalistas, que sienten como suyas las injusticias que se cometen en cualquier de este continente y de otros lugares del mundo (JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA, 1975a, p. 9-12).

As propostas e práticas internacionalistas das organizações revolucionárias sul-americanas nas décadas de 1960 e 1970, em especial as defendidas pela Junta de Coordinación Revolucionaria, inspiravam-se na experiência da Revolução Cubana, que desencadeou um processo de internacionalização da mobilização e “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 393

da ação revolucionária, na medida em que impulsionou a ascensão das esquerdas revolucionárias latino-americanas.

Contudo, ressaltamos que se podemos considerar a Revolução Cubana um marco na circulação das ideias internacionalistas e latino-americanistas, isso não significa que a vitória dos revolucionários em Cuba representou o marco-zero do internacionalismo das esquerdas. Ao contrário, o internacionalismo protagonizado pela Revolução Cubana não só é crítico em relação às tradições internacionalistas já existentes, como pretendia romper com essas tradicionais propostas internacionalistas. Assim sendo, podemos afirmar que o internacionalismo abraçado por significativas organizações revolucionárias sul-americanas ao longo das décadas de 1960 e 1970 possui um longo histórico, que se estende para além das Américas (SILVA, 2018).

A Revolução Cubana reascendeu a chama do internacionalismo na América Latina. Seus líderes defendiam a experiência cubana como um modelo a ser seguido e propunham um novo caminho a ser trilhado pelas esquerdas latino-americanas. Os primeiros discursos de Fidel Castro, após a vitória em 1959, destacavam as possibilidades continentais da Revolução: “Como os povos do nosso continente necessitam de uma Revolução como a que foi feita em Cuba!” (CASTRO apud GOTT, 2006, p. 246). Como assinalou Richard Gott, posteriormente Fidel Castro defenderia que “os Andes poderiam se transformar na Sierra Maestra da revolução latino-americana” (GOTT, 2006, p. 246).

Se a Revolução Cubana reacendeu a chama do internacionalismo, as esquerdas revolucionárias surgidas em nuestra América na segunda metade do século XX – inspiradas no pensamento e na trajetória de vida de Ernesto Guevara e na experiência da Revolução Cubana – conferiram ao internacionalismo uma nova roupagem, com novas características, especialmente associadas à noção de latino-americanismo, que, por sua vez, estava intrinsecamente relacionado à noção de terceiro-mundismo.9 Em um contexto marcado pela bipolaridade e pelos movimentos de independência das colônias europeias na África e na Ásia, as teses terceiro-mundistas reivindicavam a independência em

9 O termo “Terceiro Mundo” surgiu no período da Guerra Fria para designar os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, que apresentavam sérios problemas econômicos e profundas desigualdades sociais. A expressão foi oficialmente adotada em 1955 por ocasião da realização da Conferência de Bandung, na Indonésia, que reuniu países africanos e asiáticos. Nesta terminologia, o “Primeiro Mundo” seria formado pelos países desenvolvidos capitalistas e o “Segundo Mundo” pelos países socialistas industrializados. Desde o fim da União Soviética, estes termos vêm gradativamente caindo em desuso. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 394

relação aos Estados Unidos e à União Soviética e valorizavam o potencial revolucionário dos países do Terceiro Mundo, na medida em que as contradições do capitalismo seriam mais agudas nestas regiões. Ao mesmo tempo em que buscava construir uma identidade para estes países periféricos, o terceiro-mundismo também representou uma bandeira libertária e revolucionária para estes povos.

Desta forma, as noções de internacionalismo, anti-imperialismo, latino-americanismo e terceiro-mundismo se amalgamavam nos discursos e nas práticas revolucionárias das esquerdas armadas do Cone Sul, em especial nas organizações que integravam a Junta de Coordinación Revolucionaria.

Os projetos abraçados por essas esquerdas armadas estavam intrinsecamente vinculados às novas concepções revolucionárias defendidas por uma nova geração política. Nessa perspectiva, utilizamos o conceito de geração, proposto por Jean-François Sirinelli, que parte da definição de Jean Luchaire, para o qual “uma geração éuma reunião de homens marcados por um grande evento ou uma série de grandes eventos” (LUCHAIRE apud SIRINELLI, 1996, p. 255). Desta vivência comum, são gestados o que Sirinelli chama de “efeitos da idade”, capazes de produzir os “fenômenos de geração” (SIRINELLI, 2002, p. 131-137). Para o autor, um “estrato demográfico só se torna uma geração quando adquire uma existência autônoma e uma identidade – ambas geralmente determinadas por um acontecimento inaugurador” (SIRINELLI, 2002, p. 133). O “evento fundador”, por sua forte amplitude, atinge toda uma sociedade, sendo, ao mesmo tempo, responsável pelo surgimento de uma classe de idade nova.

No que tange às esquerdas latino-americanas, podemos falar de uma “nova geração” política, cujo “evento fundador” seria a Revolução Cubana. Em sua maioria, esta nova geração – que, de maneira geral, adotou uma linha castrista-guevarista – afastou-se dos partidos comunistas tradicionais ou rachou com eles, consolidando um novo campo de “novas”10 esquerdas – dissidentes, alternativas, radicais, revolucionárias.

Essas esquerdas revolucionárias compartilhavam um conjunto de postulados teóricos e práticos em comum, que fortalecia uma identidade guerrilheira entre seus militantes:

10 Ressaltamos que a expressão “nova” significa, neste contexto, diferente e alternativa, ou seja, não temos a intenção de caracterizar as forças políticas das esquerdas existentes até então como “velhas”, no sentido pejorativo, ou ultrapassadas. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 395

o internacionalismo; o latino-americanismo; o anti-imperialismo; o resgate da figura dos libertadores da América e a atualização de sua luta (defendendo uma segunda independência na América Latina); a adoção da luta armada, encarada como o único caminho que conduziria à derrocada do imperialismo e do capitalismo; e a defesa do caráter imediatamente socialista e continental da revolução, vinculado aos movimentos de libertação do então chamado Terceiro Mundo, inserida em uma luta global dos povos contra a opressão imperialista. Nesse sentido, defendemos que os pressupostos teóricos e a prática revolucionária dessas organizações sul-americanas evidenciavam a existência de uma cultura política guerrilheira latino-americana (SILVA, 2018).

Ao recuperar os caminhos e descaminhos da esquerda armada no Cone Sul, e mais especificamente daJunta de Coordinación Revolucionaria, procuramos não só resgatar uma parte importante da história recente da América do Sul, mas também interpretar a dinâmica interna dos grupos da esquerda armada que atuaram ao longo das décadas de 1960 e 1970, buscando reconstruir as propostas, discussões e motivações que nortearam a ação destas organizações e compreender como as perspectivas internacionalistas e latino-americanistas pautaram a atuação de importantes organizações revolucionárias sul-americanas.

Nos últimos anos, muitos pesquisadores têm se dedicado a analisar os intercâmbios entre os governos militares e os órgãos de repressão do Cone Sul. No entanto, o mesmo não acontece referente à integração dos grupos da esquerda armada da região. Ainda que exista uma bibliografia abundante acerca da trajetória das organizações da esquerda armada na conjuntura nacional de cada país da América do Sul, estas pesquisas têm demonstrado pouco interesse em analisar as similaridades e a coordenação das ações destas organizações num contexto mais amplo. Ao privilegiar os cenários nacionais, esta bibliografia ofusca os intercâmbios internacionais e acaba por menosprezar os projetos revolucionários que transcenderam fronteiras. Assim sendo, acreditamos que nossa pesquisa contribuirá para a análise do internacionalismo revolucionário e do latino-americanismo, que coloriram o horizonte das esquerdas revolucionárias de nuestra América. “POR TI, AMÉRICA”: LUTA ARMADA, INTERNACIONALISMO E LATINO-AMERICANISMO NA TRAJETÓRIA DAS ESQUER- DAS SUL-AMERICANAS IZABEL PRISCILA PIMENTEL DA SILVA 396

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Urbanização, gênero, classe e raça em Boston: Um ancoradouro das mudanças na Primeira República (1810 – 1830)

JAQUELINE STAFANI ANDRADE Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social, DH/ FFLCH – USP, orientada pelo Prof. Dr. Robert Sean Purdy. Bolsista FAPESP, processo nº. 2018/05395-7. E-mail: [email protected]

Introdução

O presente trabalho, prévia da primeira parte da dissertação The Female Marine: Classe, gênero e raça na literatura da Primeira República Norte Americana (1810-1830), tem por objetivo apresentar e discutir como as mudanças sociais, econômicas e políticas ocorridas em Boston entre os anos de 1810 a 1830 foram retratadas pelas perspectivas religiosa e administrativa da cidade. Para tanto, serão utilizadas como fontes: os dados dos censos de 1810 e 1820, as correspondências de 1817-1818 da Boston Female Society for Missionary Purposes, sociedade religiosa voltada ao auxílio de mulheres e relatórios administrativos presentes em A municipal history of the town and city of Boston, during two centuries. From September 17, 1630, to September 17, 1830, uma coletânea de documentos que versam sobre segurança e administração públicas, dentre outros assuntos pertinentes à pesquisa. Dessa forma, buscar-se-á demonstrar como tais visões, advindas de uma classe média branca reformista, difundiram e confirmaram modelos morais e sociais, principalmente no que concerne ao comportamento feminino, e corroboraram para a formação de padrões de segregação por critérios de classe, gênero e raça no ambiente portuário e urbano de Boston.

O início do XIX norte Americano

No início do século XIX, os Estados Unidos da América era novo; um recém independente país, cujos projetos políticos e territoriais definiam-se a olhos vistos. No entanto, na perspectiva daqueles que o construíam, o Estado Nacional que se firmava no URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 399

pós-independência era soberano, capitaneado por homens comuns, herdeiros daqueles que no passado colonial venceram as adversidades e agora contribuíam para a expansão das fronteiras, consolidação da democracia e estabilização da economia. A despeito desse mito fundador de identidade e unidade nacional, ao longo de sua consolidação, os norte- americanos nem sempre buscaram saídas unitárias. Pelo contrário, para construir sua democracia os homens da nação “dizimaram índios, segregaram negros e excluíram grande parte dos imigrantes. Nessa perspectiva vencedora, os responsáveis pelo sucesso eram os homens brancos, anglo-saxões e protestantes” (JUNQUEIRA, 2001, p. 13); um tipo de modelo social que erigiu consigo padrões de segregação por critérios de classe, gênero e raça e que perduraram por toda República, principalmente nas cidades portuárias.

Nas décadas iniciais do pós-independência, a República norte-americana era sobretudo rural. Em 1790, os índices populacionais registram que 94% do território povoado compunha-se de fazendas e vilarejos rurais, e os 6% restantes distribuíam-se entre as vinte e quatro cidades com população superior a 2500 habitantes. Em 1810, Boston ocupava o quarto lugar dentre as cinco maiores cidades com população superior a 10.000 habitantes: “Todas as cinco cidades eram portos – testemunhas do papel fundamental do comércio internacional na economia da Primeira República” (JOHNSON, 2007, p. 61)1. Nos anos subsequentes, com a guerra entre Inglaterra e França, as demandas além-mar por gêneros alimentícios cresceriam consideravelmente. Além das matérias primas e insumos comumente comercializados, as potências europeias passaram também a necessitar de transporte marítimo seguro no Atlântico Norte, principalmente para os produtos de suas colônias no Caribe e Antilhas, o que reforçou a construção naval e a marinha mercante norte- americana, ligando progressivamente a independente República ao comércio internacional.

Enquanto cidades portuárias, Filadélfia, Nova York, Boston, Charleston e Baltimore experimentaram diretamente os altos e baixos econômicos ligados aos eventos Atlânticos. Com o acirramento do conflito europeu, os Estados Unidos se viu impelido a assumir uma posição. Ao assumir o governo 1809, o presidente James Madison teve de lidar diplomaticamente com as pressões políticas inglesas, sobretudo no que concerne ao comércio estabelecido com a França. A fim de evitar uma possível guerra, o presidente acabou por decretar um embargo econômico com quaisquer das nações em conflito. Com

1 Tradução livre para: “All five were seaports – testimony to the key role of international commerce in the economy of the early republic”. URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 400

o aprisionamento dos navios norte-americanos por ingleses, em junho de 1812 a guerra foi declarada. Durante o conflito, as regiões portuárias sofreram baixas econômicas e tiveram que se readaptar até ao menos 1814, quando o tratado de Ghent pois fim à guerra.

A instabilidade geopolítica das marés nas regiões portuárias, no entanto, não impediu que essas localidades continuassem a crescer; ou, em outros termos, inchar. Enquanto a população de Nova York triplicou, o número de pessoas oficialmente designadas como “pobres urbanos” cresceu mais rapidamente do que a população geral em Boston. Segundo Ruth W. Herndon, entre 1790 e 1820, as admissões em asilos, conhecidos como Almshouses, mais do que quadruplicaram, enquanto a população geral de Boston mal dobrou. Nas palavras de Herndon “Claramente, os pobres foram percebidos como um problema sério por alguns e enviá-los para o asilo tornou-se uma responsabilidade primária dos superintendentes dos pobres” (HERNDON, 2012, p. 367).2

A necessidade de se prover asilos foi levantada em diversos documentos, administrativos e religiosos entre 1817 e 1823. Uma necessidade que crescia devido a chegada de forasteiros: vindos de áreas rurais, além-mar ou de outros estados, os migrantes e imigrantes começaram a se deslocar para cidades mais urbanizadas em busca de emprego. A expansão econômica nos primeiros anos do XIX impulsionou um movimento maciço da população rural para as áreas consideradas urbanas. Junto ao êxodo, os negros libertos e imigrantes estrangeiros, competiam ferozmente por trabalho e moradias em espaços urbanos sem planejamento.

Segundo Jack Tager, o aumento da população causou condições caóticas nas periferias das cidades, empurrando pobres urbanos para habitações mais baratas resultando em bairros de segregação e especialização. Nesse período, surgiram problemas que eram endêmicos para o novo ambiente urbano - favelas, falta de saneamento, falta de policiamento e controle de fogo, surgimento de gangues, uso irrestrito de álcool e prostituição. Um contexto de evidente miséria das classes pobres e um retrato portuário comum no XIX, não somente norte-americano. Como ressalta Tager, apesar das

2 Tradução livre do original: “Clearly, ‘the poor’ were perceived as a serious problem by some and sending them into the Almshouse became a primary responsibility of the overseers of the poor.” URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 401

novas oportunidades econômicas e do consenso de que esta era a era do ‘homem comum’ nos Estados Unidos, a desigualdade de riqueza teve um aumento acentuado. Assim, o número absoluto de pobres urbanos cresceu constantemente, apesar das oportunidades que a economia americana prometeu (TAGER, 2001, p. 78)3.

É nesse contexto que a cidade de Boston passa a ter sua geografia urbana desenhada e, conjuntamente aos centros em desenvolvimento, inúmeros bairros com precárias condições de saneamento e moradia começaram a surgir, como é o caso do bairro West Boston que será pormenorizado mais adiante. É importante ressaltar que os recenseamentos populacionais que atestam esses contornos sofreram modificações nos anos de 1790 e 1820, passando a detalhar mais categorias e dados populacionais ao longo do XIX. Em 1800, por exemplo, o censo listava apenas o nome dos estados, cidades e suas respectivas populações, sem maiores detalhes sobre bairros ou subdivisões societárias dentro das cidades. Na tabulação, o recenseamento era computado em quatro categorias: Free white males, Free white females, All others free persons except Indians not taxed e Slaves.

Já em 1820, o censo passou a incorporar novos quesitos populacionais e modificou também algumas das classificações relativas as idades, passando a adicionar categorias como Foreigners not naturalized e o engajamento econômico das localidades (agricultura, comércio e manufatura). Além disso, o censo de 1820 passou a discriminar o sexo dos escravos (para os estados em que a escravidão era vigente) e adicionava a categoria Free colored persons, separada entre homens e mulheres com suas subdivisões por idade. Também as cidades passaram a ser mais detalhadas internamente. Boston, por exemplo, contava nesse período com doze subdivisões administravas numeradas, além de outras três localidades.

De acordo com os dados de 1820, de todas as subdivisões de Boston, a região Oeste de Boston, nº. 6 era a mais populosa, cerca de 5.853 habitantes. Das três atividades oficiais descritas no censo – agricultura, comércio e manufatura, o bairro possuía uma taxa ínfima de engajamento que, se somadas as três categorias, não chegaria a 1% da população, apenas 0,83% ou 49 habitantes. Dessa forma, dentro

3 Tradução livre do original: “Despite the availability of land in the West, new economic opportunities, and the consensus that this was the age of the ‘common man’, inequality of wealth rose sharply. ‘Thus, the absolute numbers of urban poor constantly expanded in spite of opportunities that the American economy promised.” URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 402

das categorias oficiais, o bairro era enquadrado como uma região pobre, cujas rendas de seus habitantes não eram obtidas a partir de atividades legalmente formalizadas4.

Destes habitantes, cerca de 53,80% eram mulheres, entre brancas, imigrantes e negras. Conhecido como West Boston, o bairro era aquele que mais possuía crianças até 14 anos: 1.243, cerca de 21,23% da população local total, uma porcentagem alta, considerando as quedas nas taxas de fecundidade a partir do 1800 nos Estados Unidos. Em relação a cor da pele de seus habitantes, West Boston destacava-se como a região que mais possuía afro-americanos em Boston e, por isso, era referida na literatura da época pela alcunha de Negro Hill. Contudo, a despeito ser considerada elevada, a população afro-americana em West Boston somava apenas 15% da população total do bairro, e desses 15% a grande maioria, 58,7%, eram mulheres negras entre 25 e 45 anos.

No período descrito a escravidão era vigente somente nos estados do Sul e em Massachusetts havia sido encerrada como prática legal a partir dos casos judiciais de Elizabeth Freeman (Mumbet) e Quock Walker durante os anos de 1781 e 1783. Todavia, a abolição em Massachusetts não impediu que a escravidão fosse reformulada em outras práticas de servidão análogas, e que os empregos de libertos e/ou filhos de libertos fossem pouco ou não remunerados nas cidades e, principalmente, que sua segregação em bairros cuja miséria era evidente ocorresse (JOHNSON, 2007, p. 127).

Além de Massachusetts, todos os outros estados do Norte já haviam abolido a escravidão. No entanto, as diferenças em suas legislações quanto a emancipação variava muito. Segundo aponta Herbert S. Klein, no século XIX, apenas alguns estados pertencentes ao norte permitiam o voto de libertos5, alguns proibiam o casamento entre libertos e brancos e dissolviam qualquer tipo de união que porventura surgisse6, como é o caso de Massachusetts até 1705 (KLEIN, 2011, p. 96 - 97). Nesse sentido, em termos de segregação, é importante lembrar que

4 Para consulta aos dados do censo de 1820: United States Census Bureau. Disponível em: https://www.census.gov/ library/publications/1821/dec/1820a.html. Acesso em 27 de agosto de 2018.

5 Sendo os que proibiam incluíam os estados de Delaware em 1787; Kentucky, 1799, Maryland,1809; Louisiana, 1812; Mississipi, 1817; Alabama, 1819, Nova Jersey, 1820, Missouri, 1820; Tennessee, 1834; Pennsylvania, 1838; Virginia, 1849; District of Columbia, 1851; Oregon, 1859; Indiana, 1851.

6 Massachusetts, 1705; Delaware, 1807; Indiana, 1817; Maine, 1821; Tennessee, 1822; Illinois, 1829; Carolina do Norte, 1830; Florida, 1832; Minnesota, 1849-50; Califórnia, 1850; Kansas, 1855; Washington territory, 1855; Novo México, 1859. URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 403

todos os estados adotaram a regra de um quarto de sangue – se um dos avós fosse negro ou mulato, a pessoa seria mulata –, e todos os mulatos eram tratados da mesma forma que os negros. Libertos (mulatos ou negros) não podiam atuar como testemunhas em processos judiciais envolvendo brancos, eram severamente punidos por atacar brancos, e em diversos tipos de crimes eram tratados como escravos e podiam até ser chicoteados. (...) Muitos estados exigiam a saída de escravos recém- libertos dos seus territórios, e a maior parte do sul e alguns estados do norte proibiam sua migração de outros estados. Alguns proibiram, ainda, o retorno de quaisquer libertos neles nascidos se os tivessem deixado por qualquer motivo. (Idem, p. 97).

É nesse contexto que serão registradas tensões entre o poder municipal, à época representado pelo prefeito Josiah Quincy, a população local e missionários protestantes que, para erradicar as “problemáticas” do bairro, investiam em formas de enquadrar e combater as condutas desviantes. Tal contexto, imprime as contradições impostas pelo processo de modernização, que carregava consigo assimetrias ligadas tanto a questões de classe, quanto raça e gênero e que em Boston tinham o endereço fixado no “vicioso” bairro, segundo as representações de observadores externos.

De acordo com os relatórios da história municipal da cidade, em 1823, tem-se a inauguração de uma Casa de Correção, instituição que, diferentemente das cadeias, possuía o intuito não só de prender e retirar de circulação os indivíduos indesejáveis, mas também fornecer-lhes uma ocupação, que à época era a de “martelar pedras e materiais semelhantes”. Na inauguração da Casa os seguintes dizeres foram registrados em A municipal history of the town and city of Boston:

Aquela classe de população viciosa inevitável em uma cidade era, na época, em Boston, densamente concentrada em um distrito, West Boston. Doze de catorze casas de caráter infame foram abertamente mantidas, sem ocultação e sem vergonha. O ex-chefe da polícia disse ao prefeito, logo após sua inauguração (da casa de correção): “Há danças lá quase todas as noites. A rua inteira reflete as chamas de suas janelas. Para colocá-las a baixo, sem força militar, parece impossível, a vida de um homem que tentar fazê-lo não será assegurada. A companhia local se compõe de vadios, ladrões conhecidos e criminosos com mulheres da pior descrição7 (QUINCY, 1852, p. 102)

Além de casas de correção, prisões e asilos, de acordo com Barbara Meil Hobson,

7 Tradução livre do original: “That class of vicious population unavoidable in a city was, at that time, in Boston, thickly concentrated in a district at West Boston. Twelve or fourteen houses of infamous character were openly kept, without concealment and without shame. The chief officer of the former police said to the Mayor, soon after his inauguration: “ There are dances there almost every night. The whole street is in a blaze of light from their windows. To put them down, without a military force, seems impossible. A man’s life would not be safe who should attempt it. The company consists of highbinders, jail-birds, known thieves, and miscreants, with women of the worst description”. URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 404

durante os anos de 1820 a 1830, o bairro de West Boston registrou diversas queixas ligadas a prostituição e venda de bebidas e, para seu controle, diversas batidas policiais foram organizadas pelo poder municipal de Josiah Quincy e voluntários, sobretudo com a finalidade de acabar com bares e casas noturnas na região. Em 1823 Quincy alegou vinte e três violações de licença para o consumo de bebidas na localidade, fechando estabelecimentos e prendendo seus donos; dentre eles, principalmente prostitutas. Segundo Hobson, a política administrativa da cidade não estava centrada precisamente na repreensão ao comércio ilegal de bebidas, mas principalmente no fechamento de lugares abertos por “prostitutas, apostadores e vagabundos”. A invasão marcou o início de uma política de detenções em massa de prostitutas que continuaria durante o outono de 1823 (HOBSON, 1990, p. 11).

Não somente o poder administrativo demonstrou preocupações com o bairro e seus habitantes. Por volta de setembro de 1817 o reverendo Mr. James Davis missionário da Boston Female Society for Missionary Purposes descreveu, em uma de suas correspondências, os auxílios religiosos que havia prestado na cidade e o que havia encontrado nas redondezas. Segundo ele:

Na rua Southark, West Boston, as pessoas estão espantosamente destituídas dos meios de instrução religiosa e aparentam não temer diante dos olhos de deus (…) Ali terríveis impiedades prevalecem e todas as abominações concebíveis são praticadas; Ali a depravação do coração humano é agitada e deste antro do pecado, as sementes da corrupção são espalhadas por todas as partes da cidade. (COHEN, 1997, p. 171).8

A sociedade missionária de Mr. Davis foi criada em Boston no ano de 1800 a partir da junção das comunidades reformistas Congregacional e Batista. Como o próprio nome da Sociedade sugere, seu principal público eram as mulheres, nomeadamente aquelas “(...) pobres e infelizes moças que vagaram pelos caminhos do vício e da loucura (...)” (Idem, p.168)9 e que necessitavam de intervenção religiosa para reintegração na sociedade, já que nas palavras de Mr. Davis:

8 Tradução livre do original: “In Southark street, West Boston, the people are astonishingly destitute of the means of religious instruction, and appear not to have the fear of God before their eyes. (…) There awful impieties prevail; and all conceivable abominations are practiced; there the depravity of the human heart is acted out; and from this sink of sin, the seeds of corruption are conveyed into every part of the town.

9 Tradução livre do original: “(…) those poor and unhappy females, who have wandered into the paths of vice and folly (…)”. URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 405

pessoas respeitáveis sentiriam que não seria seguro levá-las às suas famílias; e seus parentes (se tiverem algum) provavelmente teriam pouca confiança em sua reforma para recebê-las em suas casas. E para permanecer onde estão, os expõe não só a sofrimentos, mas a responsabilidade da queda ao pecado (Idem, p. 168).10

Além das supracitadas correspondências, a preocupação da Sociedade missionária com West Boston e principalmente com as mulheres que lá residiam é demonstrada em doze correspondências e relatórios dos reverendos Davis e Rosseter entre os anos de 1817 e 1818. Em uma delas, na qual a necessidade de um abrigo é levantada, é evidenciado o quanto a causa era não só religiosa, mas também pública e política; uma preocupação que se destaca na conjuntura da cidade e que foi demarcada em diversos discursos:

Podemos, portanto, concluir que os amigos da religião e da virtude em outros lugares contribuiriam alegremente para uma empresa como essa; particularmente quando é considerado, que uma pequena proporção dessas criaturas infelizes são nativas desse lugar. Elas são coletadas de quase todas as partes do país, e algumas até de climas estrangeiros. A calamidade é uma calamidade pública; A causa da virtude é uma causa pública, e se o bem for feito, será sentido pela comunidade (Idem, p. 169).11

West Boston era, portanto, um bairro pobre, que separava das regiões centrais da cidade as populações desprovidas, obedecendo a critérios de classe, raça e também gênero. Como aponta Mary P. Ryan, no século XIX norte americano, as mulheres passaram a representar uma crescente fileira dos pobres urbanos. Dentre eles, as mães solteiras e viúvas eram “uma evidência arrepiante da desigualdade de gênero que acompanhou os avanços da economia de mercado”12 (RYAN, 2006 p. 86). Consideradas como drenos dos recursos comunitários” (Idem, p. 86) essas mulheres, recém-libertas, filhas de ex- escravas/os, imigrantes e pobres, sem garantia de emprego e acolhimento nas regiões centrais, tendiam a fixar residência em bairros afastados para conseguir, por meio de trabalhos informais, prover a si e a seus filhos. Tais mulheres, aos olhos normativos,

10 Tradução livre do original: “respectable persons would feel it unsafe to take them into their families; and their connections (if they have any) probably would have too little confidence in their reformation to receive them to their homes. To remain where they are, would expose them not only to sufferings, but to a liability of relapsing into sin”.

11 Tradução livre do original: We may therefore conclude that the friends of religion and virtue in other places would cheerfully contribute to an undertaking like this; particularly when it is considered, that but a small proportion of these unhappy creatures are natives of this place. They are collected from almost all parts of the country, and some even from foreign climes. The calamity is a public calamity; the cause of virtue is a public cause, and if good is done it will be felt by the community (…)”

12 Tradução livre do original: The concentration of women, especially unwed mothers and widows, among the urban poor is chilling evidence of the gender inequality that accompanied the advances of the market economy”. URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 406

acabavam por se tornar um problema social, administrativo e religioso, de acordo com Mary Ryan “as mulheres entrariam na nova nação não se vangloriando de seus direitos, mas com dos riscos de sua biologia reprodutiva” 13 (Idem, p. 88).

Os anos de 1830 a 1850 foram decisivos na transformação do papel feminino, operando uma mudança na concepção de comportamento adequado às mulheres: de esposas republicanas, filhas independentes e donas de casa economicamente produtivas, elas passaram a ser enxergadas como ícones da maternidade, santuários da domesticidade feminina cujo símbolo era a torta de maçã. Uma cultura de gênero que teria sido elaborada nos espaços de culto de Nova Inglaterra que passou a ser transmitida na cultura impressa, bem como dentro da privacidade familiar.

As religiões protestantes tiveram um importante papel de formação e difusão dessa cultura. O surgimento das sociedades femininas de ajuda religiosa, capitaneadas por pastores reformadores e com participação de algumas mulheres, desenvolviam trabalhos sociais e faziam publicações que traziam prescrições de domesticidade e manuais de instrução sobre maternidade que circulavam nos estados do Norte, Nordeste e em algumas comunidades religiosas do Sul, principalmente a partir da década de 1830 a 1840. No entanto, ainda em 1820, período em que o discurso protestante se voltava a luta contra os males sociais, principalmente nos centros urbanos, a família também era vista como uma possível saída para os caminhos do vício. Em 1818 a Gazeta de Boston registrava essa preocupação:

A questão agora se apresenta com força; O que pode ser feito? Permita que os pais tenham plena consciência da exposição de seus amados filhos, e que eles não permaneçam inativos por muito tempo, eles intercederão com os pais da cidade, para adotar e perseverantemente executar, algumas medidas adequadas para corrigir e prevenir essas enormidades, (que, em breve, deve atrair a justa indignação do Céu.) e assim dar evidência ao mundo, que tal conduta vergonhosa não será sofrida com impunidade, na metrópole de Massachusetts. (COHEN, 1997, p. 185)14.

13 Tradução livre do original: “Women would enter the new nation not boasting of their rights but bearing the risks of their reproductive biology.”

14 Tradução livre do original: “The question now forcibly presents itself; what can be done? Let parents be fully aware of the exposure of their beloved offspring, and they cannot long remain inactive, they will intercede with the fathers of the town, to adopt, and perseveringly execute, some suitable measures to correct, and prevent those enormities, (which, ere long, must draw down the righteous indignation of Heaven.) and thereby give an evidence to the world, that such disgraceful conduct shall not be suffered with impunity, in the metropolis of Massachusetts’” URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 407

Assim, as formas de cuidado materno centradas na domesticidade feminina que era propagada por uma classe média branca protestante ao longo do XIX, se espraiou para a cultura popular norte americana como um padrão social, que acabou por excluir e julgar àqueles que não correspondiam a ele. Esses padrões desviantes eram, no período abordado, mulheres afro-americanas livres, imigrantes, que em sua maioria também residiam em bairros afastados (como é o caso de irlandeses que iniciaram uma imigração paulatina a partir de 1820) e também uma porção bastante crescente de mulheres brancas empobrecidas que, dentre outros motivos, por serem mães solteiras ou viúvas, tinham que trabalhar para prover sua família fora da redoma de seu próprio lar.

Em 1818, outro relatório da Sociedade Missionária, narrando a trajetória de uma mãe que se muda com sua família para a casa de uma senhora em West Boston, registra a percepção religiosa da configuração familiar:

Uma mulher, passando o meridiano da vida, residindo sob o mesmo teto, usava linguagem profana e pronunciava blasfêmias em uma parte distante da casa durante a época do culto; e várias vezes depois perturbaram as reuniões por enormidades semelhantes; mas foi eventualmente obrigada a solicitar uma reunião em seu próprio quarto. Uma família decente, embora em circunstâncias baixas, se mudou para esta casa, ignorando o caráter de seus ocupantes. A filha mais velha, uma garota de cerca de 14 ou 15 anos de idade, que parecia discreta, foi em alguns dias seduzida e atraída pelo mais vil dos vis; logo ela se tornou terrivelmente profana em sua linguagem e imodesta em sua conduta; deixou a família da qual era membro, rejeitou a restrição, recusou a submissão a seus pais e parecia estar à beira da ruína. Estando presente no tempo do culto religioso solene, ela foi vista manifestando um grande grau de depravação e uma determinação de se elevar acima de todo o medo de Deus e as consequências de sua ousada impiedade. Ela era excessiva em suas risadas e em seus gracejos banais; repetidamente conversada e reprovada. Sua situação era representada por sua mãe, que estava constrangida a chorar por ela. As queixas foram reiteradas, e os meios utilizados abundantemente para recuperá-la. Parece que o laço está quebrado, e a jovem imortal escapou. Pense, pensem vocês, mães carinhosas, como seus corações se torcerão de angústia, e seus olhos correrão com lágrimas, em vista de suas amáveis ​​filhas, os objetos de sua mais delicada solicitude, enredadas pelas artimanhas dos ímpios e caindo vítimas para os desejos vis de brutos em forma humana (COHEN, 1997, pp. 172 - 173). 15

15 Tradução livre do original: “A woman, past the meridian of life, residing under the same roof, used profane language and uttered blasphemies in a distant part of the house during the season of worship; and a number of times afterwards disturbed the meetings by similar enormities; but was eventually constrained to request a meeting in her own room. A decent family, though in low circumstances, moved into this house, being ignorant of the character of its occupants. The eldest daughter, a girl about fourteen or fifteen years of age, who appeared discreet, was in a few days enticed and drawn away by the vilest of the vile; she soon became awfully profane in her language, and immodest in her conduct; she left the family of which she was a member, cast off all restraint, refused submission to her parents, and appeared to be on the brink of ruin. Being present in the time of solemn religious worship, she was seen to manifest a great degree of depravity, and a determination to rise above all fear of God, and the consequences of her daring impiety. She was excessive in her laughter and trifling; she was repeatedly conversed with and reproved. Her situation was represented to her mother, who was constrained to weep over her. Expostulations were reiterated, and URBANIZAÇÃO, GÊNERO, CLASSE E RAÇA EM BOSTON: UM ANCORADOURO DAS MUDANÇAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1810 – 1830) JAQUELINE STAFANI ANDRADE 408

O clamor final do relatório demonstra o quanto a maternidade era uma preocupação que não se limitava ao privado, as problemáticas missionárias ou a esfera familiar. Pelo contrário, funcionava como um apelo, um relato que expressava comoção e buscava atingir mais do que aquele núcleo, e sim todas as “mães afetuosas” que deveriam exercer a maternidade tomando conta de seu próprio lar e de sua esfera doméstica. Dentro de um bairro em que maioria da população era feminina, de classe baixa e possuía filhos, prover a renda familiar ou ajudar a provê-la incluía trabalhos fora da esfera doméstica, que poderiam ser desde trabalhos reprodutivos fora de seu lar, como domésticas, lavadeiras ou babás ou, dentro do próprio bairro, com o comércio ilegal de bebidas, além é claro da prostituição apontada em outras cartas e relatórios da Sociedade Missionária e documentos administrativos da cidade de Boston. Para os padrões do século XIX, em que a domesticidade exaltada, para mães solteiras responsáveis por sua renda, que vagavam desacompanhadas pelas cidades sem nenhuma referência de parentesco ou emprego em algum estabelecimento moralmente aprovável o símbolo da torta de maçã poderia ter um gosto amargo e ainda mais amargo se essas mulheres fossem moradoras de West Boston.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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90 anos dos Sete Ensaios da Interpretação da Realidade Peruana e a Questão Nacional e Agrária em José Carlos Mariátegui

JOHN KENNEDY FERREIRA John Kennedy Ferreira, Doutor em História Econômica/USP Professor de Sociologia/DESOC/UFMA.

Os sete ensaios e a questão nacional

Utilizamos para compreender a questão camponesa e nacional em Mariátegui, centralmente, os três primeiros capítulos de seu principal livro “Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana”, seu livro é uma obra em aberto como deixa claro: “nenhum destes ensaios está acabado: não o estarão enquanto eu viver ou pensar acrescentar àquilo que eu escrevi, vivi e pensei” (Mariátegui, 1975: p.XXII). Os textos foram originalmente produzidos e publicados na revista Amauta e Mundial, e seus ensaios sofreram poucas alterações na edição em livro (Escorsin,2006: p.214) Nesta obra apresenta sua leitura da realidade, os meios e as classes sociais para transformá-la. Sua leitura da sociedade peruana e, em certa medida, latino-americana, parte do pressuposto que a sociedade peruana é uma construção histórica, onde coexistem três economias: a comunista, a feudal e a capitalista, articuladas entre si e ocupando espaços geográficos distintos.

No primeiro ensaio estuda o processo de transição do feudalismo para o capitalismo, através das distintas etapas da história peruana. Constata que na serra, sobrevive em pequenas aldeias e vilarejos, elementos culturais da economia comunista incaica, na baixa serra a economia feudal. E na costa, floresce obstruída pelo feudalismo, uma economia burguesa capitalista. Ao seu modo de ver persiste a matriz colonial da economia, o que dá forma e um caráter dependente e subordinado ao imperialismo, primeiro o inglês depois o americano. 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 411

A Conquista desarticulou a economia comunista incaica, foi um retrocesso social, já que “os conquistadores espanhóis destruíram naturalmente sem conseguir substituir, esta formidável máquina de produção” e o modelo feudal adotado foi incapaz de dinamizar o trabalho e garantir a reprodução da população, gerando vazios populacionais e produtivos que foram compensados pelo trabalho escravo negro. Somente os jesuítas foram capazes de desenvolver essa vocação coletiva ao trabalho dos indígenas. (Mariátegui, idem: p 3,4 e.5)

Os conquistadores tinham como lógica a aventura e se preocuparam somente com a riqueza fácil que poderiam alcançar com a exploração do ouro e da prata e não com o estabelecimento e alicerces de uma sociedade. Daí resulta o desenvolvimento histórico posterior do Peru. A segunda etapa da história peruana inicia-se com a Revolução da Independência e a construção da República, onde o desenvolvimento capitalista peruano sempre ficou retardado pela herança feudal e pela posição geográfica, longe dos países europeus, o que gerou um isolamento econômico do país. Só a partir da independência e depois com a extração do guano e salitre é que o Peru pode se articular de forma tosca com o capitalismo ocidental, em especial a Inglaterra. O custo disso foi um profundo endividamento do Estado, agravado pela derrota na Guerra do Pacifico. Em seguida, o próprio desenvolvimento e diversificação de produtos de exportação somados a inauguração do Canal do Panamá, possibilitou a integração do país ao mercado internacional. Porém, o Peru é um país agrícola que é visto inclusive pelos países centrais dessa forma. Da agricultura vivem 80% da população, que mantém as práticas e culturas comunistas incaicas submetidos por regras espartanas do gamonalismo feudal, a seu ver, a superação do problema indígena estaria não no reconhecimento da nacionalidade ou na educação, mas sim, na solução da propriedade da terra. (Escárzaga, 1994: p.25)

Mariátegui, em consonância com os organismos da III Internacional, em especial no II, IV e VI Congressos da IC, compreendeu que a formação socioeconômica peruana e latino-americana, se deu desde o primeiro momento da conquista, com as colônias sendo organizadas como empresas predatórias e comerciais a serviço dos interesses mercantilistas da Metrópole, e que seu desenvolvimento posterior, com a independência e consolidação de uma burguesia local, ocorreram inspirados de um lado nas ideias liberais e de outro, na afirmação de uma oligarquia subordinada à ordem burguesa internacional, (Mariátegui, idem: p.7). 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 412

Assim, para Mariátegui, a ordem social burguesa foi se firmando como um processo condicionado e definido para fora, ao mesmo tempo em que é bloqueado emseu desenvolvimento capitalista interno pelos resíduos de feudalismo, ou seja, as construções de um mercado e de uma cidadania burguesa estiveram desde sempre marcadas pelo passado colonial e pelas relações estrangeiras.

A guerra de conquista e a colonização espanhola significou a desarticulação e destruição dos elementos centrais da economia comunista dos Incas, a forma de produzir, viver e transmitir sua cultura e as instituições sociais e políticas foram vitimados pela ação violenta da pilhagem que objetivaram aniquilar um modo de vida. Mas não conseguiram destruir totalmente. Comparando-a com o modo de produção dos Incas, a economia feudal implantada pelos espanhóis, significou um retrocesso em termos de racionalidade, pois não foi capaz de garantir a reprodução natural e o crescimento da população. A economia feudal levou a um despovoamento das costas litorâneas ao forçar os índios fugirem para a serra, e a solução de substituir a mão de obra indígena pela mão de obra escrava dos africanos criou imensos vazios e desequilíbrios populacionais.

Por isso, no Peru, a independência e a República foram marcadas por indefinições políticas; no plano ideológico: a constituição federal aponta para liberdades formais expressadas por ideais de inspiração jacobinas e liberais, enquanto, no plano prático, as relações de produção favorecem o fortalecimento dos caudilhos e gamonalismo feudal. (Mariátegui, idem: p.10).

Para Mariátegui, duas foram as causas principais da independência das colônias espanholas: o conflito de interesses entre a população crioula e espanhola com a coroa por um lado e por outro, em plano mundial as necessidades de desenvolvimento do capitalismo. Isso ficou patente com o financiamento dado pela Inglaterra para formação de novas repúblicas, respondendo aos interesses existentes entre o desenvolvimento do capitalismo mundial e a dos grupos dominantes nas colônias. Com a independência, teve se o primeiro impulso ao desenvolvimento do capitalismo na região, cresceu o comércio entre a América Latina e Europa, entraram capitais, imigrantes e se estabeleceu a democracia burguesa liberal, ao menos formalmente.

Por sua vez, o Peru encontrava-se em profunda desvantagem com respeito a outros 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 413

países da região, primeiro pelos resíduos coloniais em sua economia, depois com a falta de produtos atrativos para oferecer ao mercado mundial e por último pela longa distância que o separava da Europa. Dessa maneira consolidou-se no Peru, como nos demais países da América, um processo de independência que apenas beneficiou as antigas classes proprietárias agrárias. De igual sorte, que a passagem de uma economia iminentemente agrária para a economia burguesa, processou-se pelo alto, de maneira passiva, sem envolver grandes transformações na ordem estrutural, deu-se uma metamorfose dentro da classe oligárquica, com setores dessa vinculando-se ao comércio e às finanças, a participação popular foi, por princípio, evitada ou condicionada pela oligarquia. Por intermédio dos chefes caudilhos, a burguesia foi se solidificando, isso se deu através do comércio exterior que foi beneficiado pela exploração estrangeira do guano e salitre, produtos rudes que tinha serventia para a indústria moderna que se consolidava na Inglaterra. O guano e o salitre fizeram com que a ação econômica organizada, no princípio colonial, na procura de metais preciosos na serra, se deslocasse para o litoral, onde passou a fortalecer as modernas relações de produção burguesas. (Mariátegui, idem: p.11)

A fácil exploração dos fertilizantes gerada pelo guano não exigia grande esforço e nem grande técnica, o que significou que as relações de produção feudal permaneceram praticamente intactas. As reservas de guano e o salitre foram nacionalizadas no Peru em 1870, o que aumentou o apetite de grandes potências e das grandes empresas inglesas que predominavam na extração desses produtos no Chile. Desencadeou-se Guerra do Pacífico (1879 a 1883) entre Chile, Bolívia e Peru. A derrota do Peru levou a perda dos territórios do sul que eram a origem das fontes desses produtos, como igualmente fez com que as ferrovias fossem entregues aos “banqueiros ingleses que até o momento financiavam a República” (Mariátegui, idem: p.12)

Com o fim do conflito ocorre uma reorganização econômica dinamizada pela diversificação agrícola e pela exploração de novas jazidas minerais, o que engendra no desenvolvimento no litoral do capitalismo urbano, com o estabelecimento de fábricas, usinas, transportes. Também ocorre o aparecimento de bancos nacionais e estrangeiros “que financiam diversas empresas industriais e comerciais, mas que se movimentam num âmbito estreito, enfeudados ao interesses do capital estrangeiro e da grande propriedade agrária” (Mariátegui, idem: p.12). 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 414

É também nesse instante que o volume de negócios e também de empréstimos realizados com os Estados Unidos começa a superar os realizados com a Inglaterra. A partir deste momento, a constatação de Mariátegui é de que o Peru é um país capitalista, onde ocorre à articulação de três modos de produção, hegemonizados, na economia e na política, pelos interesses vinculados aos capitais das grandes potências. De igual maneira, as capacidades para o pleno desenvolvimento econômico peruano veem sendo bloqueadas no plano interno pela ação dos grandes grupos de capitais privados estrangeiros. Sua conclusão é que o desenvolvimento peruano só poderia alcançar um estágio de otimização com ruptura com o padrão agrário de acumulação, portanto, com a acumulação capitalista. Na visão de Quijano, Mariátegui teve uma percepção aguçada das relações imperialistas e da composição da dependência política e econômica das classes dominantes nos países subalternos. (Quijano,1991: p.43)

Questão agrária

Portanto a preocupação dos Sete ensaios é interpretar para transformar: “contribuir para a criação do socialismo peruano”. E seus destinatários são os proletários, camponeses indígenas e intelectuais que compartilham este mesmo objetivo (Aricó, idem: p.XXII).

Para Mariátegui, sendo o Peru um país capitalista, as condições de luta para a revolução socialista estão dadas, assim como a classe operária é o principal sujeito dessa ação. Sendo assim, a sua preocupação é como promover a base leniniana para aliança entre o proletariado e o campesinato, Em seu entender o Peru é um país que “conserva apesar do incremento da mineração seu caráter de país agrícola. O cultivo da terra ocupa a grande maioria da população nacional. O índio que representa oitenta por cento desta população, é habitualmente e tradicionalmente, agricultor” (Mariátegui, idem: p.14)

A situação camponesa-indígena está condicionada pelas fazendas, que se dividem em formas diferentes de exploração e organização social. Mariátegui observa nuances entre as diferentes formas de exploração agrária: o consumo interno tem origem nas fazendas dos vales e planícies da serra, enquanto nas fazendas do litoral, as culturas do algodão e do açúcar são destinadas ao mercado externo. O bloqueio ao desenvolvimento burguês realizado pelas fazendas é tão impressionante que chega mesmo a anemizar e a sufocar as cidades. Enquanto havia fazendas que viviam isoladas e auto regradas, produzindo 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 415

toneladas de produtos ao mercado externo, as municipalidades são condicionadas por regras e leis que as controlam. (Mariátegui, idem: p.15).

Por sua vez, o latifúndio desenvolve seus negócios com apoio e créditos captados no Estado e no mercado capitalista externo que o condiciona e o determina, sendo possível observar inclusive a entrada de empresas estrangeiras que passam a dominar os antigos latifúndios crioulos, hegemonizando não só por conta de seus capitais, mas principalmente, por que tais empresas têm uma racionalidade capitalista, voltada à disputa do mercado enquanto em determinado tipo de feudo (Mariátegui, idem: p. 18).

Se nos países europeus a dissolução do feudo levou a criação da propriedade capitalista, eminentemente urbana, no caso peruano “o sentido da emancipação republicana encomendou-se ao espírito do feudo – antítese e negação do espírito do burgo – a criação de uma economia capitalista” (Mariátegui, idem: p.19).

Para Mariátegui, numa passagem que lembra a contribuição de Weber na ética protestante, faltou ao Peru a formação e organização de uma racionalidade capitalista que desenvolvesse uma ética, indicando uma ruptura definitiva com as formações sociais anteriores. Salienta em sua comparação a colonização nos Estados Unidos, onde o colono desenvolveu um projeto de ocupação que visava domesticar o território e o espaço, constituindo assim uma cultura e um modo de vida.

Já o conquistador peruano, aparece como uma razão aventureira, homens em busca de presas fáceis, soldados da fortuna, cujo escopo limita-se ao enriquecimento rápido. Algumas das práticas do gamonalismo determinam que as medidas de caráter assistencial, pedagógico ou clerical sejam impotentes aos limites estabelecidos pela fazenda. Nesta, a lei que, em tese, protege o índio não tem valor prático. O trabalho gratuito e forçado ocorre à revelia da legislação. E esse poder é extensivo a outras áreas do território circunvizinho, sendo que o juiz, prefeito ou delegado é subordinado a este poder. (Mariátegui, idem: p.36).

O gamonalismo e a hegemonia dos grandes proprietários sobre a política e o aparato do Estado, são na verdade apenas os vernizes políticos dos interesses associados. O atraso no desenvolvimento do capitalismo deve-se a sobrevivência do feudalismo 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 416

que determinava o regime administrativo e político em todo Peru. Não é possível o desenvolvimento de instituições democráticas e liberais, tendo a hegemonia da nação oligárquica e a propriedade feudal. O Estado não garante os direitos civis a toda população que trabalha e vive no latifúndio, e mesmo que a aristocracia não tenha legalmente seus direitos feudais escritos, sua condição de propriedade lhes permite exercer um poder absoluto. (Mariátegui, idem: p.61)

A organização feudal se impôs como uma economia externa, estrangeira, que só poderia dar certo se adaptasse ou se modificasse a relação econômica no território ocupado. O colono espanhol foi incapaz de realizar a organização de um regime tipicamente feudal, pois ao mesmo tempo em que desenvolvia uma lógica mágica a respeito dos minerais, tinha uma visão deprimida sobre o trabalho e a organização racional da produção. A base política econômica feudal que foi implantada pelo vice-reinado, era a de “um regime medieval e estrangeiro, a República é, formalmente, um regime peruano e liberal”. (Mariátegui, idem: p.29).

Na sua visão, a república poderia reunir condições para realizar tarefas e medidas que emancipassem os indígenas, porém manteve inalteradas as condições estruturais nascidas ou formadas a partir da conquista. A liquidação do feudalismo que “deveria ter sido realizada pelo regime demo-burguês estabelecido pela revolução da independência. Mas, no Peru em cem anos de República não tivemos uma verdadeira classe burguesa. A antiga classe feudal – camuflada ou disfarçada de burguesia republicana conservou suas posições” (Mariátegui, idem: p.34) igualmente o desenvolvimento de técnicas novas na região costeira dinamizou a economia ganhando um caráter capitalista, envolvendo a entrada inclusive de empresas estrangeiras diretamente no controle das fazendas, mas igualmente observa que medidas radicais liberais como as pensadas por técnicos e intelectuais burgueses, com o desenvolvimento de propriedades individuais esbarram na mentalidade do latifúndio e das classes dominantes. (Mariátegui, idem: p.34).

Da mesma forma, salienta que os elementos feudais se fortaleciam na serra. A solução para o problema camponês e indígena seria outra, . Para Mariátegui, o problema indígena não está apenas limitado à problemática nacional ao qual, medidas técnicas, como educação, trabalho, filantropias, seriam capazes de solucionar. A questão indígena é relacionada ao modo de produção. Sem enfrentar a situação de como é organizado o 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 417

sistema produtivo, o debate político perde sua consistência e finalidade. Dessa maneira, vê como central a questão da terra, o que significa o acesso do camponês indígena a ela. Isso passa pela destruição do latifúndio e do feudalismo, tarefa que corresponderia historicamente à burguesia, que pelo seu desenvolvimento associado ao imperialismo, tornou-se incapaz de realizá-la.

Assim, Mariátegui observa que a revolução gerou a independência e a república, mas não produziu uma classe burguesa capaz de estabelecer o regime burguês clássico condizente para suas tarefas históricas se a revolução tivesse sido um movimento das massas indígenas ou tivesse representado suas reivindicações, teria necessariamente uma fisionomia agrária. (Mariátegui, idem: p.45).

Por sua vez, enquanto existir o latifúndio e a classe gamonal a solução não poderia ser vista como um debate técnico administrativo, moral ou pedagógico, pois essas não tocariam na raiz do problema e acabaria por fortalecer o próprio latifúndio. A solução exigiria medidas radicais de caráter econômico e político, sendo central romper com a lógica que impõe ao índio a subordinação ao latifúndio. Essa recusa parte de uma visão socialista e desse ponto de vista cabe superar as diversas ilusões filantrópicas e determinar que o primeiro esforço “visa estabelecer seu caráter de problema fundamentalmente econômico”. (Mariátegui, idem: p.33).

Por esse caminho, Mariátegui julga que existem duas possibilidades: a feita pelo alto através das classes dominantes ou por baixo através dos indígenas. Compreende, na conjuntura em que vivia que a vereda liberal estaria inviabilizada ou só seria possível com uma Refundação da República e a redefinição de uma nova estrutura econômica e de classes. Anos depois, já na década de sessenta, o governo nacionalista General Velasco Alvarado mostrou a possibilidade dessa linha política conservadora e a assertiva de Amauta. A abordagem das transformações possíveis de serem realizadas pela burguesia peruana não é descartada por Mariátegui. Este concebia a possibilidade de uma mudança pelo alto e da continuidade da marca histórica peruana de antecipação às pressões das massas.. (Mariátegui, idem: p.34/35).

Em contrapartida, a posição de José Carlos Mariátegui é categórica: “a solução para o problema indígena deve partir da ação dos próprios índios, superando a atomização de 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 418

suas radicais manifestações locais e somando seus esforços num projeto de disputas dos rumos da nação.” (Mariátegui, idem: p.31).

O elemento de construção dessa unidade passaria pela organização política enquanto identidade e pela concordância com a propaganda socialista. Nos anos sessenta houve tentativas de organizar essa trama, a partir do incentivo a ação direta dos camponeses, movimentos políticos que reclamavam a herança do Amauta, orquestraram ações como as ocupações e desapropriações de fazendas realizadas pela Frente de Esquerda liderados por Hugo Blanco, os movimentos guerrilheiros Tupac Amaru, Sendero Luminoso, o Partido Unificado Mariateguista (Guzmán, 1968; Blanco, 2007; Escorsim, 2006: p.41).

Dessa maneira a cultura e as manifestações indígenas demonstram a vocação e as características de um comunismo incaico, em função da propriedade coletiva da terra, das águas, pastos e bosques pela marca da nação incaica, onde estas eram cultivadas por meio da ayllú, as famílias eram todas aparentadas e, apesar de os lotes serem divididos individualmente, eram intransferíveis, predominando a cooperação comum no trabalho e a apropriação conforme a necessidade individual.(Mariátegui, idem: p.57)

Mas também se pode observar que a origem dessa obra não se limita apenas ao período em que Mariátegui torna-se atuante comunista e marxista peruano, entre 1923 e 1930 (ano de seu falecimento), mas que é também parte de uma produção coletiva que foi amadurecendo ao longo dos anos, tendo como origem as manifestações iniciadas pelo escritor anarquista Manuel González Prada, passando depois pelo debate no A.P.R.A , pelo estudo das resoluções da IC, pela produção de Lênin e de Bukharin que focavam a questão camponesa e o imperialismo com especial atenção. E também do já mencionada influência da conceituação do mito de Georges Sorel, onde segue o caminho de buscar o passado como afirmação futura.

A saída para os povos indígenas não estaria nas portas da civilização ocidental, que por sua vez continuaria a destruí-la, mas na afirmação de um outro projeto sistêmico. “O mito de Sorel, isto é - agiria através – de uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação de fantasia concreta, que age sobre o povo disperso e pulverizado para nele suscitar e organizar a vontade coletiva” (Gramsci, 1980: p.148). 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 419

Na visão do Amauta, era esta vontade coletiva que deveria ser trabalhada como o mito da revolução socialista. Dessa maneira, em Mariátegui a problemática indígena pode ser vista como a afirmação da orientação dos congressos da Internacional Comunista para a realização da aliança operário-camponês, (Löwy,1999: p.21; Quijano, idem: p.197),

Mas também, e até com mais densidade, na observação de que as manifestações indígenas eram afirmações de uma cultura reprimida e a percepção de que a religião comunista incaica represava uma vocação prática e mística, que concorria para a modernização do Peru e para o futuro socialista. (Melis apud Löwy,2005: p.110).

Antonio Melis chama atenção para o fato de que antes mesmo de converter-se em marxista, Mariátegui já demonstrava especial e apaixonada atenção aos levantes indígenas realizados por Ruminaqui (Melis, 1996: p.7).

É possível afirmar que as raízes desta abordagem têm seu encontro com a visão da Terceira Internacional mas igualmente têm sua autonomia na formulação demarcada na origem da própria história e luta de classes, no Peru e América do Sul, e na herança pradista reivindicada por Amauta..(Escorsim, 2006: p.236),

É importante observar que as classes dominantes peruanas foram constituídas às margens da realidade indígena, vista tanto como sub-raça felahista ou como elemento a ser banido da história e do território peruano “O dado demográfico é, a este respeito o mais convincente e decisivo (...) quando chegaram ao Peru os conquistadores, [a população indígena] estava por volta dos dez milhões e que, em três séculos de domínio espanhol, baixou para um milhão” (Mariátegui, idem: p.37) de igual sorte, a intelectualidade daí nascida, representou um distanciamento e a ignorância da realidade indígena, tamanho o temor que este universo causava junto as classes dominantes.

As lembranças dramáticas do levante no Peru colonial, capitaneado por Tupac Amaru, (1780 – 1781) que propôs reorganizar o Império Inca (Tahuantinsuyo) e que alcançou em poucos dias as quatro partes constitutivas do antigo território do império, com levantes contra o invasor que foram da região do Prata até a costa da atual Colômbia, foram sempre recordadas. O que impôs como modelo, como explica Bonilha y Spalding “la reducida acción de los movimientos con participación indígena revela más que la vacilante repuesta 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 420

de los grupos más bajos de la sociedad, el temor a una revuelta social y la repulsión de los miembros de la sociedad criolla” (Bonilha y Spalding apud Aricó, ídem: p.XLIII).

Esta história foi sempre motivo de um medo corrente na população crioula. Outros diversos levantes como o de Huaraz em 1885 e já na década de 1910 , de Ruminaqui, eram motivos de apreensão e temor. (Arico, idem: p. XLIV) . A constante movimentação ou estado latente de revolta indígena, serviu para homogeneizar a sociedade conservadora num acordo repressivo a qualquer movimentação indígena. Em resposta, os levantes indígenas, como o de 1885, colocavam claramente como objetivos “tierra para los índios y la eliminación de la población blanca” (Paris apud Aricó, idem: p.317).

Ou seja, a situação indígena era por demais explosiva, fazendo com que as medidas pensadas fossem as mais variadas possíveis, mas todas elas tentaram evitar que fosse mantido o foco na questão socioeconômica levantada por Gonzáles Prada. (Melis apud Aricó, idem: p.203).

Mariátegui não apenas manterá o enfoque econômico, como inovará o debate em dois aspectos centrais: o primeiro, ao colocar o problema indígena como sendo relacionado ao modo de produção, ou seja; a questão indígena era também a questão camponesa e só poderia ser desbaratada com a organização indígena enquanto movimento camponês nacional. O segundo, a solução para o problema, passava pela revolução socialista. Um não poderia ocorrer sem o outro, se apresentando imbricados, indigenismo e socialismo. Mariategui também viu na questão religiosa um dos fatores fundamentais da ideologia socialista dos índios, “a religião indígena é algo que reforça a ideias coletivas, a religião dos quéchuas era mais um corpo moral do que uma concepção metafísica, a ideia central era de que o indivíduo se submetia a sociedade”. (Mariátegui idem: p. 114 e 127)

Assim parte da defesa da comunidade como sendo o lócus privilegiado para organização do movimento coletivo e cooperativo e lembra que há uma vocação para o cooperativismo que pode ser organizado enquanto resposta produtiva e material. Quando “(Mariátegui, idem: p.59) Da mesma forma, salienta que quando comparadas as potencialidades de desenvolvimento econômico entre a comunidade e o latifúndio, a vantagem é para a primeira. . Os dados empíricos servem para reforçar a sua tese acerca da capacidade produtiva do trabalho socialista e da alavanca revolucionária dos camponeses indígenas (Mariátegui, idem: p.60). 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 421

A abordagem sobre a aliança operaria camponesa

A questão indo-camponesa formulado por José Carlos Mariátegui estabelece um fio condutor com o pensamento de Lênin e de Gramsci. Observando Lênin, entendemos que este começou a formular o seu ponto de vista sobre a questão agrária, através do debate com os Narodiniks (Partido Vontade do Povo). Extraindo desse debate que os Narodniks representaram uma profunda evolução no pensamento iluminista russo, ao introduzirem na sociedade, preocupações sociais no campo e propostas socialistas. A iminência da revolução democrática burguesa, implicava de um lado, uma disputa pela condução do processo. A burguesia preferiria evitar o risco da via revolucionária, das emoções das ruas e da “marca plebeia” à revolução democrática, objetivava as transformações por cima, conservando e reformando as antigas instituições monárquicas.

Para o proletariado o objetivo seria a vitória completa contra o czarismo, o que significa que significa que, o trabalho a ser realizado pela socialdemocracia russaera conquistar o campesinato para uma aliança com o proletariado, visando constituir uma alternativa por baixo, a via tzarista, e ampliar ao máximo as conquistas proletárias na revolução burguesa (Lênin, 1983: p.409).

Naquele momento os socialistas russos dirigiriam suas atenções para a questão agrária como: a partilha das terras, colocar as terras sob o controle das antigas instituições comunais e a municipalização. Era fundamental definir o grau das alianças e profundidade da ação política. Lênin observava que a produção capitalista crescia e o desenvolvimento de técnicas e métodos burgueses nos grandes latifúndios ia a cada dia se expandindo, ganhando terreno, substituindo os métodos e técnicas pré-capitalistas.

Este movimento paulatino potencializava a metamorfose do latifúndio feudal, principal base social da estrutura do estado tzarista, e assim a potencializava a transformação burguesa da sociedade através de uma via reformista, por cima, seguindo o modelo prussiano implementado nas unificações alemã e italiana. De outro lado, havia um amplo movimento produtivo dos camponeses que desenvolviam economicamente e socialmente uma produção organizada potencialmente em pequenas propriedades ou em arrendatários do estado. 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 422

Sendo os camponeses opositores a estrutura fundiária tzarista, e base social para a destruição do latifúndio, e consequentemente do tzarismo. Lenin igualmente imaginava que este seria a base para uma república radical burguesa de granjeiros aos moldes da Nova Zelândia e Estados Unidos. Assim a questão estratégica era colocar o proletariado no centro da realidade e na disputa do processo em curso, o que significava garantir igualmente a sua autonomia.

O proletariado deveria participar da revolução burguesa de maneira autônoma, apoiando o setor mais radical da burguesia e tendo garantida a independência de voltar- se contra a burguesia a partir do instante em que essa se voltasse contra o proletariado. (Lenin, idem. 422)

Na visão de Aricó, o esforço de Mariátegui seguia o mesmo caminho: o de criar uma via original para a ação do proletariado em aliança com o campesinato. Dessa forma, a obra de Mariátegui é vista como um desenho tático-estratégico que envolve o Peru e outros países andinos, pois há na percepção de Mariátegui, como também houve na Itália com Gramsci; a compreensão de que as mudanças produtivas surgidas com o fim da I Guerra e a alteração do centro gravitacional do imperialismo da Inglaterra para os Estados Unidos da América, desencadearam um processo de revolução passiva, a qual o Peru e outros países da América do Sul estariam sendo envolvidos em mudanças na esfera produtiva que bloqueavam o desenvolvimento da revolução socialista. (Aricó, idem: p. XIV e XLI)

O esforço de Mariátegui teria como rumo articular, uma política alternativa de aliança e a conformação de um bloco histórico voltado para superação do bloqueio imposto. Isto seria feito através de uma investida ampla, tendo como centro trazer parte dos intelectuais vinculados a causa indígena, somando a vanguarda do proletariado urbano e rural. A vinculação do Mariátegui com Castro Pozo, Uriel Garcia, Luiz E. Valcárcel deu ao marxista o conhecimento do mundo rural peruano, e com a publicação da revista Amauta, abriu a possibilidade de estabelecer um nexo orgânico entre la intelectualidade costeira e o movimento dos trabalhadores urbanos, a cultura europeia e o marxismo (Aricó, idem: p. XLIX).

A interpretação de Mariátegui da realidade peruana, expressava a necessidade da construção de um grande movimento político que almejava ter um país integrado e 90 ANOS DOS SETE ENSAIOS DA INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE PERUANA E A QUESTÃO NACIONAL E AGRÁRIA EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI JOHN KENNEDY FERREIRA 423

desenvolvido. Sendo que, a integração e a construção nacional plena seriam impossíveis de realizar-se pelas forças burguesas e das oligarquias. Trabalho que só seria possível através da aliança proletariado com o campesinato que pelas próprias condições peculiares do Peru ganhava forma de aliança indígena (Aricó, idem: p. LI)

Isto era colocado como fator primordial para Mariátegui, que compreendia igualmente, que outros movimentos como o do Grupo indigenista de Cuzco, Ressurgimento, caminhavam numa possível confluência com a ação da classe operária, possibilitando grandes transformações no Peru. Para Aricó, a movimentação realizada por Mariátegui explicita a emergência de uma ação a ser concretizada pelas classes subalternas, sendo que o socialismo e o marxismo deveriam tornar-se a expressão natural desse movimento, o local para a busca da independência política enquanto classe e de referência teórica e prática para a luta de todos os oprimidos, a ideia de partido comunista e revolucionário aparece como um resultado das lutas e não como seu pressuposto. (Aricó, idem: p. LIII)

José Carlos Mariátegui e o grupo da revista Amauta, se insere num dos momentos mais importantes das formulações intelectuais dos últimos tempos “Pode-se falar em propriedade de uma verdadeira “redescoberta da América” ​​em um processo premente de busca de identidade nacional e continental, com base na compreensão e adesão às lutas populares de classe.” (Arico, idem:p. XLIII) .

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Identidade nacional e projetos de civilização para a Patagônia nas crônicas de La Austrália argentina, de Roberto Payró

JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA Bacharel e licenciado em História pela Universidade de São Paulo. Mestrando em História Social pela mesma instituição, com bolsa FAPESP processo nº 2018/02958-0 para o projeto de pesquisa “Itinerários da nação: identidade nacional e projetos de civilização nos escritos de viagem de Euclides da Cunha sobre a Amazônia brasileira e de Roberto Payró sobre a Patagônia argentina”. Contato: [email protected]. Agradeço os comentários e as sugestões feitas por expositores e ouvintes da Mesa Redonda nº 58 – “Relatos de viagem e circulação de ideias na América Latina no século XIX”, em que uma primeira versão do presente trabalho foi apresentada.

Introdução

Em 1898, o jornalista e escritor argentino Roberto Jorge Payró (1867-1928) escreveu, para o jornal bonaerense La Nación, uma série de crônicas – publicadas como folhetins – sobre a Patagônia, a partir de viagem que fizera pelo litoral da região no mesmo ano, a bordo do Transporte Nacional Villarino. As crônicas patagônicas de Payró, ainda em 1898, em função de seu grande sucesso comercial (SARLO, 1984), vieram a ser reunidas sob a forma de livro, intitulado La Austrália argentina, impresso pela gráfica do jornal.

O presente texto buscará discutir La Austrália à luz dos debates políticos e intelectuais argentinos e hispano-americanos vigentes no fim de século. Mais especificamente, procuraremos contemplar três objetivos.

São eles: a) em primeiro lugar, localizar o relato de viagem de Payró no contexto de consolidação do Estado argentino na segunda metade do século XIX; b) em seguida, analisar o diagnóstico político que Payró faz da realidade social patagônica, seus principais problemas e o modelo político que o autor propõe para saná-los; c) e, por fim, situar o livro nos cenários intelectuais hispano-americano – em meio à querela entre latinismo e anglicismo no fim do século – e argentino – em relação à Geração de 1837. IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 427

A Patagônia no pós-Conquista do Deserto

Com a vitória do projeto político unitário na década de 1860, iniciou-se na Argentina um processo de consolidação do território e das instituições nacionais. Nesse cenário, as zonas austrais, incluídas partes dos Pampas e a Patagônia, apareceram como uma fronteira interna a ser superada, no propósito de ocupá-las e explorá-las economicamente (HALPERÍN DONGHI, 2005; PASSETTI, 2012).

Assim, de 1879 a 1885, se assistiu à Conquista do Deserto, série de ofensivas militares, sob as presidências de Nicolás Avellaneda (1874-1880) e Júlio Argentino Roca (1880-1886), em partes dos Pampas e no extremo sul argentino. Mediante o extermínio, dispersão e desmantelamento das sociedades indígenas, mestiças e gauchas locais, o Estado nacional logrou incorporar a Patagônia e a Terra do Fogo.

Anos depois, no final da década de 1890, a Patagônia recobrava sua importância em função do reaquecimento dos litígios fronteiriços com o Chile pela região. Era a mensagem que La Nación – o maior e mais moderno jornal argentino da época (MONTALDO, 2014), representante da poderosa corrente política do Mitrismo – passava ao enviar Payró à Patagônia.

Durante a Conquista do Deserto, a Patagônia foi tema de uma vasta “literatura de fronteira” (SERVELLI, 2010) escrita por militares, geógrafos e cientistas. Literatura técnica e diretamente compromissada com a ocupação da região, cujo maior exemplo foi La conquista de quince mil leguas, do jurista e publicista Estanislao Severo Zeballos (1854-1923), de 1878. A obra de Zeballos (2008), encomendada por Roca (POMPEU, 2012), desempenhou um importante papel na Conquista do Deserto. Tanto, em um primeiro momento, por ajudar a convencer o Legislativo a financiar essa empreitada, como, em segundo momento, por fornecer informações e dados estratégicos para o êxito dos avanços militares. La conquista contribuiu, portanto, para um grande prestígio político de Zeballos, que na década de 1880 construiria uma sólida carreira parlamentar e chegaria ao posto de Ministro das Relações Exteriores.

Payró, em contraposição, tinha um perfil consideravelmente distinto. Além de não ter vínculo direto com o Estado argentino, era um jornalista moderno e profissional dos IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 428

anos 1890 (LAERA, 2008), com diversas experiências editoriais na bagagem1. Dessa forma, escreveu seu relato patagônico em outro tom e com outras preocupações.

Num momento em que os jornais se tornavam empresas e passavam a se reportar não apenas às elites, mas a amplas camadas urbanas, surgia a necessidade de captar um grande público-leitor. A linguagem jornalística se tornava, então, um trunfo editorial. É o caso de Payró, que apresenta a Patagônia – tradicionalmente vista como um desierto, longínquo e inóspito – no formato de crônica, o que permitia a narração de anedotas e chistes. Esse ar descontraído contrastava com a aridez dos antigos relatos patagônicos.

Mas, La Austrália não se resume ao humor. Payró envolve em uma narração literária amena descrições e análises detalhadas da realidade política e econômica local. Temas que a direção do La Nación que desejava que fossem abordados pelo relato do repórter, uma vez que eram relevantes para a opinião pública, em face do recrudescimento das disputas fronteiriças com o Chile pela Patagônia, a partir de 1896 (POMPEU, 2012).

Cumprindo com essa expectativa editorial, o autor apresenta uma série de dados sobre o clima, a geografia, o comércio e a administração da região. Não se furta a analisá- los pormenorizadamente e a emitir juízos políticos e econômicos sobre eles. Essa postura atendia, também, a um ideal ensaístico prezado por amplas partes da intelectualidade da época. Na Belle Époque hispano-americana, muitos relatos de viagem – tipo de texto por si só propenso ao hibridismo, de difícil circunscrição a um gênero literário específico (JUNQUEIRA, 2011) – se mesclaram com o ensaísmo e gozaram de grande prestígio nos círculos literários e jornalísticos, como já mostrou Beatriz Colombi (2004). Atribuía-se, pois, grande autoridade discursiva à figura do viajante-intelectual, na qual Payró procurou se encaixar.

Escrevendo em um momento posterior à Conquista do Deserto, Payró não estava mais a serviço da conquista da Patagônia pelas mãos do Estado argentino. Preocupava-se em avaliar as medidas governamentais para a região, uma vez que esta já fora ocupada. Numa perspectiva bourdieusiana (BOURDIEU, 1968), pode-se dizer que a legitimidade da obra de Payró, diferentemente da de Zeballos, não adviria mais da chancela estatal. Mas, de uma recepção exitosa dentro do campo jornalístico (Ibidem, idem) que então

1 O autor havia passado pela redação de vários periódicos em Buenos Aires na década anterior e sido proprietário do La Tribuna, diário de Bahía Blanca que circulou de 1889 a 1892 (PASTORMELO, 2009). IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 429

se formava na Argentina, o que implicava a aprovação tanto de seus chefes, seus pares jornalistas e intelectuais como também do público-leitor do La Nación.

A Patagônia de Payró: um far south inexplorado e preterido

Conquistada, mas ainda imensamente desconhecida e subexplorada. Tal era o status da Patagônia para a sociedade argentina na década de 1890. Ainda prevaleciam as palavras de Zeballos: “¿A qué distancia está la Patagonia (...) de Júpiter o de París?” (ZEBALLOS apud TORRE, 2007, p. 4). De tão afastada, a região ainda representava uma gigantesca alteridade para os leitores metropolitanos de Buenos Aires, que tinham dificuldade em imaginar (ANDERSON, 2008) essa extensa área ao extremo sul como parte integrante da nação argentina.

Em que pese o fato de diversas passagens ressoarem de alguma forma esse imaginário2, La Austrália Argentina busca problematizar tais percepções. Payró procura desvincular a Patagônia do antigo rótulo de terra estéril, vazia e maldita, conforme apresentada pelo relato do biólogo Charles Darwin (1809-1882) (DARWIN, 1909) na viagem do Beagle – que passou pela região em 1833 – e por inúmeros textos posteriores, como o da viajante inglesa Florence Dixie (1855-1905):

¡Patagonia, por fin!Bastante desolada y triste se veía, una sucesión de planicies desnudas, ni un árbol ni un arbusto visible en ninguna parte; tal paisaje, de hecho, como el que uno esperaría encontrar en otro planeta (DIXIE, 1880, p. 29, apud CHIUMINATTO; DEL RÍO, 2016, p. 79; grifos nossos).

O repórter procura dissociar, também, a área da imagem de desierto, associada desde Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) à ideia de barbárie. Pelo contrário, o jornalista, num determinismo geográfico, vê na Patagônia um imenso potencial econômico e civilizacional. Potencial que estaria sendo francamente desperdiçado pelo governo central argentino, dada a sua omissão e estratégia política contraproducente para a região. O Estado estaria “barrando o futuro” na Patagônia (PAYRÓ, 1898, p. 443), nos termos de Payró.

2 Deve-se frisar que todo relato de viagem opera uma retórica da alteridade (HARTOG, 1999). Isto é, um conjunto de procedimentos discursivos pelos quais um sujeito histórico, em se deparando com determinadas sociedades, as compreende e caracteriza como diferentes da sua sociedade de origem. No caso do relato de viagem de Payró, a caracterização da Patagônia como alteridade perpassa pela descrição da fauna, da flora e do clima locais, bem como pela narração de algumas anedotas colhidas junto a habitantes locais, a respeito de situações de luta pela sobrevivência contra as condições ambientais adversas na região. IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 430

Logo, o autor vê a região como vítima dos vícios da política criolla. Esse era um tema que estava em sintonia com os posicionamentos políticos de Payró. Nos anos 1890, o jornalista aderia ao Partido Socialista argentino – que então tinha uma linha reformista e gradualista, conforme preconizado por Juan B. Justo (1865-1928) – e também apoiava os setores mais radicais da Unión Cívica, num firme antirroquismo (BUONUOME, 2017). Em várias reportagens para o La Nación, Payró criticava a corrupção e o arcaísmo das elites políticas, sobretudo, as das províncias (Ibidem, idem). O autor desenvolveria esses temas no romance satírico Divertidas Aventuras de un nieto de Juan Moreira, de 1910. Ridiculariza-se, na obra, Mauricio Gómez Herrera, personagem alegórica da arbitrariedade e do despreparo intelectual dos mandatários políticos interioranos argentinos, bem como o clientelismo que praticavam.

Voltando a La Austrália, nesse livro Payró decreta que a Patagônia “más que geográficamente, está alejada del resto de la república por la indiferencia” (PAYRÓ, 1984, p. 346). Em outra passagem, qualifica metaforicamente a região como “enteada” ou “afilhada” que, descuidada, precisaria de atenção e ajuda (Ibidem, p. 111). As principais causas para esse estado de abandono seriam a gestão por demais centralizada da região e sua desconexão com o resto do país.

Uma das críticas mais recorrentes na obra – vocalizada por habitantes locais e respaldada por Payró – se direcionava contra a precariedade dos transportes marítimos: “Los transportes – ¡siempre los transportes! – han dejado de visitar a [Puerto] Deseado con la relativa frecuencia con que visitan a algunos otros puertos del sur, y han abandonado los colonos a su propia suerte” (PAYRÓ, 1898, p. 51).

Como mostra o trecho, as linhas de navios entre a capital e a Patagônia não passavam por todos os principais portos da região. Eram, ademais, parcas, tinham intervalos longos e ofereciam pouca segurança e higiene, acarretando risco de perdas comerciais. Em acréscimo, o sistema de sinalização náutica por faróis estava ao deus-dará na Costa Sul (Ibidem, pp. 336-339, p. 418).

A essa frágil infraestrutura, somava-se uma extrema centralização política, que se fazia sentir com uma série de medidas proibitivas e prejudiciais à vida dos colonos. Por exemplo, a proibição da mineração e da caça de lobos na Terra do Fogo bem como IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 431

a dificuldade para comprar terrenos nessa ilha. Embora os preços fossem baixos, era preciso fazer a operação diretamente no Ministério do Interior em Buenos Aires e arcar com todos os gastos da tramitação burocrática (Ibidem, p. 286).

Isso levava a uma grande concentração fundiária. Payró afirma que, estando a terra em poder de companhias especuladoras, as autoridades das Gobernaciones patagônicas – nomeadas diretamente por Buenos Aires – se submetiam a esses latifundiários. As consequências desse fenômeno seriam politicamente funestas:

La tierra (...) está en poder de compañías especuladoras y avaras (...). La seguridad de nuestras campañas ha sido y es un mito, pues las autoridades encargadas de velar por ella, se nombran con miras inconfesables de dominio político y con el mismo fin se les dejanfacultades tiránicas de que todavía abusan. La justicia es (...) tarda, tortuosa, cara, terrible para quien acude á ella, por más que tenga razón (PAYRÓ, 1898, pp. 444-445; itálico do autor, grifos nossos).

Sobressai no trecho a proximidade com o diagnóstico político de Facundo (SARMIENTO, 1997). De fato, Payró identifica na Patagônia muitos traços da arbitrariedade e da “barbárie” criollas, temas longamente abordados no clássico de 1845. Porém, acreditamos que à diferença de Sarmiento, o autor diagnostica a origem de tais males não nas áreas interioranas em si, mas nas condições políticas e sociais que lhe foram impostas pelo Estado nacional.

Tal percepção lastreava o modelo político defendido por Payró para a região. O autor acreditava que ali, o estabelecimento da civilização deveria seguir o exemplo das regiões “semi-virgens” do mundo anglo-saxão, como o Oeste estadunidense, a África do Sul e a Austrália. Regiões vistas como modelos de rápida modernização econômica e social, naquele fim de século XIX. O títuloLa Australia argentina, portanto, foi escolhido a dedo pelo jornalista: não se referia só à localização extremo austral da Patagônia em relação a Buenos Aires. Também expressava uma grande simpatia pelos anglo-saxões e suas instituições políticas e econômicas, que deveriam servir de exemplo para a Argentina, na visão do autor.

Num rompante de otimismo, ao fim do capítulo derradeiro deLa Australia argentina, Payró comenta a escolha do título: IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 432

¡La Australia Argentina! ¿No habré estado en error al apellidar así a esas tierras australes, geográfica y topográficamente tan próximas parientas con el mundo novísimo? ¿Podrá decirse un día que predicción lo que hoy es presunción tan solo? (PAYRÓ, 1898, p. 448)

Payró considerava os territórios de fronteira, tal como a Austrália e a Patagônia, áreas privilegiadas para o desenvolvimento material e aprimoramento moral, tópica consagrada pelo historiador estadunidense Frederick Jackson Turner (1861-1932) (TURNER, 1994) em conferência de 1893, sobre a História do Oeste de seu país. A Patagônia não estaria seguindo essa senda de prosperidade justamente por não desfrutar das amplas liberdades gozadas pelo Oeste estadunidense. No far south argentino, os pioneiros, mesmo depois da proeza de terem cultivado campos pobres, sofriam com inúmeras travas impostas pelas autoridades, num afã intervencionista. Por exemplo, as pesadas tarifas alfandegárias nos portos patagônicos. Em vez de protegerem o comércio local – que, segundo Payró, era tão débil e insuficiente que nem precisaria ser protegido –, esses impostos apenas reforçavam a precariedade material e o isolamento da região.

Em contraponto, na mesma Patagônia, só que do lado chileno, Punta Arenas é descrita como exemplo de prosperidade, justamente em função de seu porto livre. Payró qualifica a cidade como “joia” e como plenamente civilizada, dada sua vida urbana e o vasto transporte marítimo que estabelecia com o resto do Chile, a Califórnia e a Europa. Além de fornecer infraestrutura, o Estado chileno teria estabelecido lá uma legislação de grande liberalidade. Isso, supostamente, permitia que criminosos, desertores e piratas se tornassem self-made men e se regenerassem moralmente, como no Oeste dos Estados Unidos da América.

A percepção positiva acerca de Punta Arenas por parte de Payró é especialmente significativa, na medida em que o Estreito de Magalhães foi tradicionalmente descrito na literatura de viagens como área melancólica e pouco atrativa: “Nunca he visto una perspectiva más infeliz; los bosques umbrosos, manchados de nieve, podían únicamente ser vistos confusamente, a través de una lluviosa y brumosa atmósfera” sentenciou Darwin (1909, p. 238, apud CHIUMINATTO; DEL RÍO, 2016, p. 78) acerca de sua passagem pelo Estreito. Logo, ao exaltar o sucesso do porto chileno, Payró sublinha o engenho humano como responsável pelos avanços materiais ali conseguidos. IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 433

Em que pesem inúmeros óbices políticos e institucionais, Payró tinha uma inabalável crença teleológica3 no futuro da Patagônia, bem expressa nas palavras finais do livro La Australia argentina:

Sí, Patagonia hará su camino, más lenta, más rápidamente, según la sabia o desacertada dirección que le impriman gobiernos. Pero lo hará. En aquellas inmensas soledades (...) el mundo de mañana, asilo de la libertad y escenario del progreso (PAYRÓ, 1898, p. 448).

Para o jornalista, mesmo que o governo não fornecesse a infraestrutura e as liberdades necessárias, a área estaria fadada a se desenvolver e a formar uma nova sociedade, com valores distintos dos criollos, herdados da colonização espanhola. O inexplorado meio patagônico estimularia uma civilização pretensamente mais afeita os princípios burgueses da pequena propriedade e da valorização do trabalho – tese similar à apresentada por Turner (1994) em relação ao Oeste dos Estados Unidos. Valores que forjariam uma política supostamente mais democrática e que imprimiriam uma “rotina civilizadora” (ANDERMANN, 2000) naqueles rincões.

Muito contribuiria para isso o povoamento da região, por meio da imigração europeia. Em Los italianos en Argentina (PAYRÓ, 1895), série de reportagens para o La Nación em 1895, Payró já havia elogiado as contribuições dos imigrantes italianos na Argentina, aos quais atribui ditas virtudes de laboriosidade e ordem. Muitos intelectuais socialistas argentinos, como José Ingenieros, se entusiasmaram com a chegada de maciças ondas migratórias europeias no país, no chamado “período aluvional”, de 1870 a 19144. A imigração europeia era vista como fator capaz de modernizar e “civilizar” a Argentina, minorando o peso de indígenas, negros e mestiços na composição da sociedade (GREJO, 2009).

A defesa da imigração europeia pode ser notada em uma curiosa anedota de La Australia. Ao narrar uma conversa entre uma moça britânica e um rapaz portenho no navio em que estava a bordo, Payró se põe a sonhar com um matrimônio dos dois jovens. A união seria símbolo da forja de uma nova “raça” para a Patagônia, supostamente mais

3 Essa percepção evoca o considerável papel do pensamento evolucionista – e em especial, o determinismo geográfico – em La Australia argentina. Juan B. Justo e Alfredo Palácios – importantes socialistas argentinos finisseculares, como Payró – foram especialmente inspirados pelo evolucionismo do antropólogo estadunidense Lewis Morgan (1818-1881) (BARRERA, 2011).

4 De acordo com Maria Inés Barbero e Fernando Devoto (BARBERO; DEVOTO, 1983) entre 1880 e 1914 chegaram na Argentina mais de 4 milhões de imigrantes, especialmente italianos e espanhóis. IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 434

bem adaptada ao meio e também mais apta para a modernidade, repetindo o melting pot estadunidense. Nessa miscigenação, o sangue britânico, nas palavras do jornalista, “corrigiria” os defeitos dos “latinos de américa”, aperfeiçoando-os.

A admiração do autor pelos britânicos também é vista no elogio que tece às Malvinas, onde, apesar do ambiente pobre “sem uma única árvore” (PAYRÓ, 1898, p. 447), já se viveria folgadamente, com abundante comércio. Assim, Payró associa as ideias de progresso e boa administração aos anglo-saxões em geral5.

1898: a anglofilia de Payró diante da decadência espanhola

Essa manifesta anglofilia de Payró pode ser relacionada ao contexto da Guerra Hispano-Americana, que se desenrolou entre maio e agosto de 1898. Payró, vindo da Patagônia, retornou a Buenos Aires em maio do mesmo ano.

Suas crônicas foram publicadas no La Nación entre esse mês e setembro, portanto foram escritas sob o impacto do conflito. Ainda que haja só uma referência direta à guerra em toda a obra, as teses do livro estão intimamente ligadas à percepção de decadência espanhola, ratificada pelo conflito:

Em 1898 os Estados Unidos emergiram como grande potência, e um século depois ainda se mantinham como tal, alcançando uma hegemonia unipolar. Seu primeiro feito de destaque foi a derrubada dos últimos bastiões espanhóis na América (Cuba e Porto Rico) e na Ásia (Filipinas). Mas 98 não representou unicamente uma grande vitória da nova potência imperialista — os EUA —, mas o fim do decadente colonialismo espanhol (CAPELATO, 2003, p. 36)

À diferença de outros finisseculares, Payró não aderiu à celebração do passado espanhol, nem à defesa da aproximação identitária dos países hispano-americanos em torno da tradição cultural latina. Essas bandeiras foram levantadas como uma forma de afirmação e reação das nações hispano-americanas em face da emergência norte-

5 Ainda que reconheça fatores econômicos, históricos e geopolíticos para o êxito britânico nas Malvinas, Payró procura extrair desse caso ensinamentos para a melhor administração da Patagônia argentina: “¡Ah! se dirá; pero Inglaterra cuenta con elementos que no poseemos nosotros; es la nación colonizadora por excelência; sus capitales son enormes; su fuerza expansiva colosal... Bien: pero de esos elementos el primero y principal está a nuestro alcance: es el orden, es el método, es la lógica (...)” (PAYRÓ, 1898, p. 447).

IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 435

americana, um fenômeno percebido como negativo tanto no plano geopolítico como no cultural. Tais teses foram veiculadas já em maio de 1898 pelo intelectual franco- argentino Paul Groussac (1848-1929) (GROUSSAC, 1898) em ato organizado pelo Club Español de Buenos Aires no Teatro de la Victoria, para repudiar a intervenção dos Estados Unidos em favor da Independência Cubana.

O poeta nicaraguense Rubén Darío (1867-1916), ícone do Modernismo hispano- americano, também lamentou a vitória estadunidense. A 20 de maio do mesmo ano, no jornal portenho El tiempo, Darío repudiou o caráter materialista da cultura dessa nação, classificada como

un país de ciclopes, comedores de carne cruda, herreros bestiales, habitadores de casas de mastodontes. Colorados, pesados, groseros, van por sus calles empujándose rozándose animalmente, a la caza del dollar. El ideal de esos calibanes esta circunscrito a la bolsa y a la fábrica. Comen, comen, calculan, beben whisky y hacen millones. Cantan iHome, sweet home! y su hogar es una cuenta corriente, un banjo, un negro y una pipa. Enemigos de toda idealidad, son en su progreso apoplético, perpetuos espejos de aumento (DARÍO, 1998, p. 451; itálicos do autor)

Visão semelhante seria encampada pelo escritor uruguaio José Enrique Rodó (1871- 1917), em Ariel (RODÓ, 1993), de 1900. Nessa obra, Rodó aprofundou a tese de contraposição entre anglo-saxões e latinos. Pata o autor, os Estados Unidos simbolizavam a ascensão do mais inescrupuloso utilitarismo, que negava quaisquer valores espirituais e morais (CAPELATO, op. cit., p. 49). Assim, os latinos deveriam rejeitar essa cultura altamente mercantilizada e a preservar as tradições culturais da Europa latina, sobretudo, as da França.

Payró, por outro lado, não aderiu a essas perspectivas latinistas, críticas aos estadunidenses. O autor preocupava-se justamente com a criação de um futuro modernizador e economicamente próspero para a Patagônia, superando as mazelas da velha política criolla. Assim, não se incomodava com a cultura materialista dos Estados Unidos nem com a derrocada espanhola. O jornalista tomava claro partido dos anglo- saxões, haja vista a ascensão estadunidense e o consolidado poderio britânico.

Payró não foi o único. Na Belle Époque, vários autores procuraram identificar as causas da alegada decadência política, econômica e cultural dos países ibero-americanos IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 436

e indicar remédios para essa dita “enfermidade”, em chave evolucionista6.

Um deles foi o mexicano Francisco Bulnes (1847-1924), que – apenas um ano após La Australia – escreveu El Porvenir de las naciones hispano americanas (BULNES, 1899), obra com o sugestivo subtítulo ante las conquistas recientes de Europa y Estados Unidos. El Porvenir sustentava que nos países anglo-saxões o exercício da cidadania seria vigoroso, pois as nações atenderiam aos interesses dos cidadãos e estes se identificariam com ela. Ao passo que nos países latinos, a pátria representaria apenas instituições alheias ao povo, como o Estado, a Religião e a Aristocracia, de maneira que os cidadãos não se identificariam com suas nações (BULNES, 1899; SANTOS JÚNIOR, 2013).

O diálogo de Payró com a tradição intelectual oitocentista argentina

O texto de Payró, porém, não se limita a dialogar com outros autores da década de 1890. No âmbito intelectual argentino, Payró estabelece estreita interlocução com a Geração de 1837. Em particular, com dois de seus maiores expoentes, Juan Bautista Alberdi (1810-1884) e Sarmiento e as ideias de ambos os autores em relação à imigração e à ocupação do território nacional.

Basta lembrar que Alberdi foi célebre pela máxima “governar é povoar”, que pode ser desdobrada em “povoar é civilizar”, de acordo com Fernando Devoto (DEVOTO, 2000, p. 35), premissas que se coadunam perfeitamente com a pauta de povoamento da Patagônia por Payró. Ademais, Alberdi também defendia a imigração –sobretudo, a norte-europeia, tal como o jornalista do La Nación – para o aperfeiçoamento cultural e formação de uma nova identidade nacional argentina. (Ibidem, idem). Em Alberdi, essa tese ecoava, como em Payró, uma recusa dos costumes políticos criollos e uma admiração ao princípio burguês da valorização do trabalho individual (MERQUIOR, 2014, p. 154).

Com Sarmiento, o diálogo de Payró é igualmente denso. Sarmiento também defendeu o povoamento e aproveitamento dos vazios geográficos argentinos, em seu discurso sobre a colônia agrícola de Chivilcoy nos anos 1860. Tal como Payró, Sarmiento

6 Entre tais autores e suas obras, podem ser apontados: Manoel Bomfim (1868-1932), América Latina: males de origen (1903); Agustín Álvarez (1857-1914), Manual de Patología política (1899); César Zumeta (1860-1955), El Continente enfermo (1899); Manuel Ugarte (1875-1951), Enfermedades sociales (1905); Alcides Arguedas (1879- 1946), Pueblo enfermo (1909); e Salvador Mendieta (1879-1958), La Enfermedad de Centro-América (1912). IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 437

ambicionou “llenar un vacío7 (...) poblar el desierto americano con las estructuras de la modernidad” (RAMOS, 1989, p. 20), embora não tivesse em mente a Patagônia, mas os Pampas, em um cenário pré-Conquista do Deserto.

Porém, embora não esconda os problemas da Patagônia, Payró não usa a retórica depreciativa de Facundo contra os desiertos para caracterizar a região. As dificuldades patagônicas decorreriam mais da política de Buenos Aires que de suas características ambientais intrínsecas. Dessa forma, com políticas adequadas, tratar-se-ia de um fértil terreno para a civilização.

Civilização que, na visão de Payró, seria de caracteres étnicos, culturais e institucionais próprios, distintos dos de Buenos Aires e dos criollos. Assim, o projeto de Payró para a Patagônia, diferentemente do Sarmiento de 1845, não promove uma valorização da capital e uma depreciação do interior – no caso, o patagônico –, não identificando a primeira com a civilização e nem o segundo com a barbárie.

Por outro lado, há maior proximidade de Payró em relação ao Sarmiento pós-Facundo, como o do discurso sobre Chivilcoy. Um Sarmiento que

descobrindo a pobreza urbana e a riqueza rural na Europa industrial, (...) suavizou sua dicotomia cidade-campo e embarcou numa descoberta tocquevilliana da América do Norte (...) À moda de Tocqueville, Sarmiento queria injetar virtude cívica na república moderna (MERQUIOR, 2014, p. 151)

Nos anos 1880, a eleição dos Estados Unidos como um modelo de civilização para a Argentina já estava consolidada no pensamento do intelectual de San Juan. Como antigo entusiasta da imigração europeia, Sarmiento, na mesma década de 1880, procurou especificar o perfil do imigrante que aspirava para a Argentina. Nesse momento, Sarmiento, assim como Payró no decênio seguinte, demonstrou uma predileção pela imigração anglo-saxã, em função de uma rejeição à parte da colônia italiana já estabelecida no país platino, que se mantinha apartada da vida política argentina e não aderia ao Castelhano.

Em contraponto, Sarmiento fazia uma apologia às virtudes cívicas da vida política dos anglo-saxões, especialmente algumas das principais características que ele enxergava na

7 Em carta-prólogo ao livro de Payró (1898, p. v), Bartolomé Mitre também usa a expressão “preencher um vazio”, ao se referir à originalidade de La Australia argentina e ao ver a Patagônia como um território inexplorado. IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 438

sociedade estadunidense, como o associativismo8 e o nivelamento social9. Na visão do autor, esses aspectos sociais contribuiriam para o suposto caráter democrático dessa sociedade.

Analogamente, Payró também identifica um potencial democratizante no mundo anglo-saxão, particularmente em suas regiões de fronteira. Nessas regiões “semi-virgens”, haveria um estímulo ao trabalho e ao pragmatismo (PAYRÓ, 1898, p. 451), o que poderia facilitar a ascensão social, na medida em que a prosperidade material seria mais facilmente alcançada. Dessa forma, as disparidades econômicas poderiam ser mitigadas.

Considerações finais

A título de síntese, pode-se dizer que La Australia Argentina está inserido num contexto pós-Conquista do Deserto em que a Patagônia ainda estava subaproveitada e desintegrada da Argentina. Payró diagnosticou a postura centralizadora do Estado argentino como principal causa para esse cenário. Como receituário para resolver esse problema, indicou o modelo do Oeste dos Estados Unidos – que prezava a autonomia política e econômica para os territórios recém-apropriados pelo Estado nacional, caso da Patagônia – e a imigração, prioritariamente a anglo-saxã. Esses eram fatores que, no seu entendimento, contribuiriam para o estabelecimento da civilização na região.

Essa admiração pelos estadunidenses – postura intelectual que viria a ser duramente criticada e chamada de “nordomanía” por Rodó (1993) em Ariel –, naquele fim de século, ecoava não só as ideias de Sarmiento e Alberdi. Remetia, também, à rejeição à decadência espanhola e ao alegado atraso ibero-americano, temas postos em evidência pela Guerra Hispano-Americana.

8 Segundo Richard Morse, no período de sua presidência (1868-1874), Sarmiento “definia a civilização como uma cultura política baseada no princípio igualitário e uma capacidade multiforme de associação privada” (MORSE, 1995, p. 87)

9 O pretenso nivelamento social estadunidense é um tema recorrente em relatos de viagem de hispano- americanos por esse país. Sarmiento associava esse traço social “aos meios de transporte coletivos, ressaltando que nos trens não havia, como na Europa, diferença entre os vagões de acordo com poder aquisitivo. Para Sarmiento, um dos aspectos fundantes do país era a democracia, sem classes privilegiadas, sem mandonismo e servidão”. (FRANCO, 2017, p. 49) IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO PARA A PATAGÔNIA NAS CRÔNICAS DE LA AUSTRÁLIA ARGENTI- NA, DE ROBERTO PAYRÓ JOSÉ BENTO DE OLIVEIRA CAMASSA 439

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Os discursos diplomáticos entre Brasil, Argentina e Chile: A imprensa e a imagem positiva dos regimes militares (1973)

JOSIANE DE PAULA NUNES Doutoranda em História Social, Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]

Os golpes civis-militares no Brasil (1964), na Argentina (1966 e 1976) e no Chile (1973) fortaleceram um discurso de aproximação ideológica entre eles, mas, principalmente, um interesse do governo brasileiro no fortalecimento de uma imagem aprazível e positiva do país e dos regimes vizinhos. Com os golpes, as direitas no poder preocupavam-se em conter qualquer adaptação ou renovação das esquerdas, entendidas como uma ameaça às imagens dos regimes. Os fortes diálogos de aproximação e trocas de informações diplomáticas estavam atentas às presenças da subversão nos países.

Em documentações direcionadas ao Ministério da Justiça pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre o recrudescimento “da propaganda adversa” dentro do Brasil após o golpe no Chile, e, também, em documentos diplomáticos sobre estudantes brasileiros em Córdoba, o entendimento do perigo e da ameaça foram acompanhados da busca pela legalização dos mecanismos de repressão, mas também no receio dos espaços encontrados pelos opositores das ditaduras na imprensa brasileira.

Para além das aproximações com os contextos atuais, mas sem perdê-los do campo de visão, as direitas dirigentes do poder buscavam fortalecer um discurso convincente da ameaça da subversão e, principalmente, da atuação de grupos que ameaçassem a segurança nacional. No âmbito da diplomacia, é visível como tais discursos fortaleciam- se e alimentavam-se reciprocamente nas trocas de correspondências e relatórios. A ameaça iminente aparecia nos relatórios como uma teoria bem elaborada e adaptada das OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 443

esquerdas para destruir a segurança dos homens sérios e defensores da nação, inclusive um discurso bem atual.

A ascensão das direitas com os golpes civis-militares aproximaram a realidade política- ideológica entre os países e fortaleceram um discurso anticomunista que mobilizaram institucionalmente os regimes. Em 1966, com a o afastamento do governo de Arturo Illia, define-se a presença militar no governo com a ascensão do General Onganía. No Chile, a ascensão do General Pinochet, em 1973, o aproxima ideologicamente da política brasileira e das pretensões econômicas do General Emílio Garrastazu Médici. Através da análise de alguns relatórios e correspondências diplomáticas entre os países, abriu-se precedente para compreender quais as representações organizadas pelas das direitas, tendo como consequência a montagem de um aparato de repressão corroborado institucionalmente. A necessidade de “conter o inimigo”, nesse caso, comum aos países, justificava na cultura política desse grupo a elaboração de um aparelho de segurança que conseguisse identificar as adaptações das esquerdas no momento em que os regimes foram se estabelecendo na América do Sul. E, além disso, mostrava como as divulgações da imprensa brasileira, muitas vezes, foi utilizada como pretexto pelos militares que coordenavam as decisões institucionais.

Presentes na documentações diplomáticas, percebe-se que havia uma grande preocupação entre os países em relação à circulação de ideias entre as esquerdas, principalmente em relação aos espaços ocupados pelos opositores dos regimes nos jornais. As propagandas tomadas como adversas aos direcionamentos políticos brasileiros e os regimes ideologicamente parceiros na Argentina e no Chile, contribui para a produção de informes do SNI e o fortalecimento entre nações sul-americanas do discurso anticomunista.

Imprensa e Política

Nas últimas décadas as produções historiográficas estão sendo enriquecidas pelas análises da importância de sujeitos da sociedade civil para a compreensão do longo período de duração da ditadura civil-militar no Brasil e em alguns países da América Latina (Rodríguez, 2015). No aspecto teórico e metodológico a História do Tempo Presente, com fortes diálogos entre Nova História Política (Ferreira, 1992) e a Ciência Política (Rosanvallon, 1995), tem fundamentado, ao menos direcionado, novas possibilidades de OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 444

pesquisa e estudos sobre o golpe em 1964, como estudos sobre os atores envolvidos, os posicionamentos de setores da sociedade civil ao golpe e durante a ditadura, entre outros aspectos institucionais do período. Além de ter contribuído para significativas análises sobre os diálogos e aproximações entre os regimes sul-americanos e, mesmo, da circulação das ideias e da produção intelectual dos exilados brasileiros nesses países (Napolitano, 2014).

De acordo com Marcelo Ridenti (2014), entre acomodações e resistências alguns sujeitos da sociedade civil inseriram-se nas ações políticas, culturais e sociais durante o período da ditadura, muitas vezes, se acomodando dentro das prerrogativas do regime e legitimando suas orientações. Nesse sentido, destaca-se que o Estado autoritário não se fez somente pela repressão e cooptação, embora essa atitudes não tenham sido poucas, contudo, muitos sujeitos foram incorporados no aparato institucional ou acabaram contribuindo de alguma forma para a continuidade do regime.

Na perspectiva de Daniel Aarão Reis (2014) é importante destacar a “responsabilidade ampliada” na construção da ditadura civil-militar brasileira. Nesse sentido, entende-se a importância de compreender como setores da sociedade civil, principalmente as relações entre imprensa escrita e o governo, considerando que os periódicos foram importantes na formulação de consensos e contribuíram para a legitimidade de discursos e representações políticas, embora as tendências políticas tenham variado bastante nesse período.

Entendemos as representações políticas como o espaço do político, ou seja, um quadro geral de ações e discursos de uma sociedade ou grupo, dotado de sentido e, muitas vezes, um espaço de elaboração de regras e conflitos, que envolvem a imprensa, o Estado e outros grupos, com a política. Na perspectiva de Pierre Rosanvallon (1995), o campo e o trabalho com o político envolve a modalidade de existência de vida comum; a ação coletiva; o poder da lei e do Estado; processos conflituosos e ‘vacilantes’ entre grupos da sociedade e o Estado. Dessa forma, as representações políticas constituem matéria estruturante da experiência social.

Em relação as documentações diplomáticas analisadas foi possível perceber que, muitas vezes, as publicações nos jornais estavam sempre mencionadas nas trocas de correspondências entre os regimes e nos relatórios produzidos, preocupados com a OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 445

divulgação de notícias sobre as ações do governo, mas, também, na atuação de sujeitos da esquerda e uma possível ação além das fronteiras dos “agentes subversivos”, subsidiada no fortalecimento de suas ideias na imprensa brasileira.

Para o caso dos jornais à época, é importante destacar que no período que antecede o golpe em 1964, a imprensa escrita e o rádio eram os principais órgãos de publicidade dos noticiários políticos, tendo um órgão em potencial que caminhava ainda a passos comedidos, a televisão (Barbosa, 2010). Em relação ao contexto golpista no Brasil, vários foram os jornais que apoiaram deliberadamente a intervenção militar em 1964 (Aquino, 2000). O discurso anticomunista presente na maioria dos periódicos buscavam legitimar o fim do governo de João Goulart, principalmente através da ligação de sua imagem à ameaça comunista (Motta, 2006). Mas, logo depois de estabelecido o governo e com o desenrolar de ações de empastelamento dos jornais, alguns começaram a mudar de opinião, principalmente por parte daqueles que apoiaram o golpe, os quais também sentiram a presença repressora do Estado (Lima, 2006).

Sobre a grande imprensa, jornais de grande tiragem no período (Capelato, 2014), vale destacar que os anos cinquenta e sessenta haviam sido inaugurais para os discursos da reforma e modernização do setor. Sob a influência da modernização da imprensa norteamericana, os jornais brasileiros incorporaram mudanças na disposição das matérias, formulando, a seu modo, a busca pela concretização de um noticiário imparcial e objetivo, conhecido como o mito da objetividade, muito presente nas memórias dos jornalistas da época (Ribeiro, 2007). Entretanto, o que pode-se ver é que, muito além do mito da objetividade e imparcialidade, os jornais da grande imprensa brasileira continuaram a tornar público seu posicionamento sobre a política nacional. E, a partir das documentações diplomáticas entre os países, os periódicos eram fator importante de observações e considerações por parte do regime.

Nesse sentido, o aumento das produções e direcionamentos teórico-metodológicos tornaram possíveis, a partir da década de setenta, a utilização dos jornais como fonte e objetos de estudo, principalmente no que diz respeito a compreensão das representações políticas sobre a ditadura civil-militar (Capelato, 2014) e das ações burocratizadas do Estado em relação às possíveis ameaças. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 446

O alargamento das fontes, dentro da perspectiva da produção historiográfica, embora deva ser inserido nos debates das disputas de memórias, podem contribuir para a compreensão de quais consensos eram pretendidos criar, fosse pela direita ou da(s) esquerda(s) da época, e ainda nos dias atuais. Mas sobretudo, nessa abordagem, podem auxiliar na compreensão de quais imagens e representações políticas se pretendiam legitimar e tornar pública, tanto em âmbito nacional quanto internacional.

Dessa forma, como os jornais de grande tiragem eram os meios de comunicação de maior abrangência no período, entendemos que seu papel político, herança do século XIX que não se perdeu (Ribeiro, 2007), para além do delineamento da profissão dos jornalistas e da construção de suas imagens como detentores da veracidade do que era impresso, buscavam na construção dos discursos e representações políticas, muitas vezes retóricas, ganhar credibilidade diante da sociedade (Ribeiro, 2007), contribuindo para a formação da opinião pública com garantias de legitimidade política (Aarão, 2014).

Com isso, a grande imprensa seria um importante meio de construção e divulgação de tal legitimidade, assim como em outros momentos, devido a própria dimensão dada pelos atores envolvidos na institucionalização da repressão, os jornais eram vistos como um perigo da divulgação e panfletagem produzidos pelos subversivos à ordem, discurso presente nas abordagens do SNI.

Cabe salientar que entendemos os jornais da imprensa como meios de divulgação e construção de representações políticas sobre a ditadura, não é o caso considerá-los no aspecto de manipuladores da informação ou algo próximo disso, mas sim espaço para a construção de representações verbais e visuais que alcançavam um número significativo da população, causando um incômodo no Estado quando as publicações não eram positivas na visão do mesmo.

A opinião veiculada pelos periódicos da grande imprensa, além de circularem em vários grupos sociais com mais intensidade, construíam e, muitas vezes, delimitavam, o entendimento sobre a ditadura e seus supostos adversários, consolidando discursos sobre a legitimidade democrática e o direcionamento da política econômica do Estado. Enfim, um conjunto de fatores identificados como características gerais da ditadura civil-militar, mas que veiculados pelos órgãos da grande imprensa seriam mais abrangentes social e politicamente. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 447

Embora neste artigo não nos deteremos na análise propriamente dos periódicos e suas abordagens sobre a ditadura, sabendo da abrangência, complexidade e variações entre apoio irrestrito ao golpe, quanto os recuos e continuidades estabelecidos após o mesmo, buscaremos analisar como a opinião pública e as representações políticas consolidadas pelos noticiários sobre os governos, incomodavam desde os membros da Ministério das Relações Internacionais até os membros do Conselho de Segurança Nacional e do Serviço Nacional de Informações.

Obviamente as posições que podiam ameaçar a construção da imagem positiva que se buscava divulgar estavam associadas a comunização dos periódicos e a atuação do comunismo internacional, principalmente sobre a influência da atuação dos exilados, como veremos nas referências mencionadas pelo General Carlos Alberto da Fontoura, à época a frente do SNI. Mas isso também ocorria com brasileiros que estivessem fora do Brasil, sem estarem necessariamente exilados. Nesse sentido, estar fora das fronteiras nacionais, não significou uma desconsideração jurídica e institucional do regime. Estar em outro país ou em regiões consideradas como pulverizadoras de ideais considerados comunistas já era motivo de preocupação do governo brasileiro, principalmente se fossem estudantes ou professores.

Nessa perspectiva, mesmo que a censura e a autocensura operassem como um mecanismo de controle do Estado dentro dos periódicos (Kushnir, 2004 ), principalmente diante do recrudescimento estatal- com o Ato Institucional nº 5, em 1968, a lei de imprensa de 1967 e o Decreto-lei número 1.077/70, que limitavam a atuação dos jornais -, pretendemos analisar como o cerceamento de liberdade na imprensa e nos meios de comunicação, as tensões políticas, as percepções e os espaços de opiniões sobre os regimes civis-militares, continuavam cumprindo um viés político nos noticiários dos periódicos, principalmente devido às preocupações na manutenção da vigilância das informações em circulação.

Ainda que essa análise, tenha suas limitações iniciais, afinal mais fontes precisam ser cotejadas, sugerimos a possibilidade de uma reflexão e debate sobre a compreensão que os atores envolvidos com a montagem da “máquina do Estado” (Kushnir, 2004), possuíam em relação a importância das representações políticas construídas sobre a ditadura civil-militar nos jornais no Brasil e no exterior, tendo como referência a montagem das estruturas institucionais da repressão. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 448

Com isso, de certa forma, poderemos levantar hipóteses de como a circulação de ideias no contexto das ditaduras latino-americanas, partindo principalmente do número de exilados brasileiros nos países vizinhos, muitos partindo em direção à Europa, com o golpe de 1973, no Chile (Hildebrando, 2001; Mönckeberg, 2011), ocorriam e preocupavam os órgãos responsáveis pela Segurança Nacional, sugerindo a abertura de precedentes para as aproximações estratégicas entre os países, caso específico para estudo entre Brasil e Argentina e Chile, o que pretendemos aprofundar em um outro momento.

Os órgãos da censura para além das fronteiras nacionais

Dentro de suas áreas de atuação, o SNI esteve vinculado ao Conselho de Segurança Nacional (CSN), criado em 1937, durante o Estado Novo. O SNI, um órgão institucionalizado e garantido dentro das normativas da lei, pois fora corroborado pelo congresso, atuaria para a manutenção da Segurança Nacional. O órgão foi fundamental no monitoramento dos noticiários e matérias publicadas relativas aos governos militares, das informações divulgadas pela imprensa internacional e na centralização e redirecionamento das ações do CSN, principalmente na busca de informações que contrariassem os direcionamentos da nova ordem política.

O CSN recrudesceu ainda mais o papel institucional e a sistematização da atuação do órgão, a partir de 1968, ampliando às responsabilidades da manutenção da Segurança Nacional às Divisões de Segurança e Informações (DSI), vinculadas aos Ministérios Civis, como colaboradoras com o CSN e com o SNI, prestando informações e realizando estudos de interesse da Segurança Nacional.

As Divisões de Segurança e Informações haviam sido criadas em decreto de 1967, e foram sendo aperfeiçoadas ao longo do recrudescimento do aparato do Estado, como por exemplo com o decreto de maio 1970, deixando claro as competências dos Ministros de Estado dos Ministérios Civis e sua participação nas DSI. O que pretendemos destacar que é as normatizações e institucionalizações acabaram dando legitimidade jurídica e política a atuação dos órgãos da repressão, criando condições para uma suposta legalidade para as atuações em prol da Segurança Nacional, mesmo que tais medidas ultrapassassem as fronteiras nacionais. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 449

Cabe destacar, ainda, que a atuação do Conselho de Segurança Nacional, a partir de 1968, começou a deliberar sobre assuntos estratégicos de planejamento, desde a hipótese de guerra até a apreciação de problemas na conjuntura internacional.

II - A conduta da Política de Segurança Nacional, com a apreciação dos problemas que lhe forem propostos no quadro da conjuntura nacional e internacional, em especial os referentes a: a) Segurança interna; b) Segurança externa; c) Negociações e assinaturas e acordos e convênios com países e entidades estrangeiras sobre limites, atividades nas zonas indispensáveis à defesa do país e assistência recíproca; (grifo nosso) d) Programas de cooperação internacional. (grifo nosso). (Decreto-Lei nº 348, de 4 de Janeiro de 1968)

As políticas de repressão em relação ao anticomunismo aumentaram à medida que o aparelho de Estado se aperfeiçoava, o recrudescimento dos órgãos de vigilância, a visão do perigo comunista e da possível circulação da imagem negativa do Brasil, nacional e a nível internacional, continuavam entre os setores institucionais do governo. É nesse sentido que, em 1973, seguem as conclusões do Relatório do Grupo Interministerial sobre as relações entre Brasil e Chile.

O golpe no Chile, acabou abrindo espaço para uma diálogo mais próximo entre os países, afinal, o fim do governo Allende foi visto com olhares positivos pelo governo brasileiro. O que era previsível pelo apoio dado pelo Brasil no contexto do golpe e nas inseguranças brasileiras em relação ao governo de Salvador Allende, posteriormente superadas com a ascensão de August Pinochet.

É relevante, o envolvimento do governo do General Emílio Garrastazu Médici na conspiração que derrubou Allende (Ávila, 2014) – ressalta-se, por exemplo, que o regime autoritário brasileiro foi o primeiro do mundo a declarar oficialmente a continuidade nas relações diplomáticas bilaterais (Moniz Bandeira, 2008). Após o movimento golpista, as relações entre Brasil e Chile se estreitaram ainda mais, o governo brasileiro enviou assistência humanitária, 20 toneladas de alimentos e remédios, ofereceu linhas de crédito emergenciais, cooperou nas tarefas de repressão, com assessores militares e policiais diretamente em locais de tortura e execução no país andino, transferiu material de emprego militar, além de oferecer apoio diplomático para melhorar a imagem da Junta Militar em outros países (Cervo, 2001). OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 450

Em fevereiro de 1973, foi constituído um grupo Interministerial para estudar o quadro das perspectivas econômicas entre o Brasil e o Chile. O relatório do grupo chegou a conclusões precisas sobre a insegurança estabelecida no país vizinho, principalmente com a “política socializante” do Governo de Allende. Ao passo que, na perspectiva do grupo do governo, tal insegurança vinha sendo minimizada pela presença de militares no controle de setores econômicos (Relatório do Grupo Interministerial, 1973).

Além disso, o relatório busca ressaltar as tensões causadas no Chile, centralizadas nas ações do governo de Allende, destacando que a Unidade Popular estaria estabelecendo uma situação de “guerra civil” no país, afirmando que o governo tentava garantir sua base de apoio no fortalecimento da divisão de dois grandes grupos sociais “irreconciliáveis”: “a classe média (englobando conservadores) e o proletariado, em benefício do qual, teoricamente, convergiria toda a ação das autoridades públicas” (Relatório do Grupo Interministerial, 1973). O desenrolar do relatório, com pareceres secretos e confidenciais, se estendem até outubro de 1973, momento em que as relações entre os países já estão mais asseguradas pela presença das Forças Armadas no poder, desde setembro do mesmo ano, após o golpe no país.

As divergências ideológicas com Allende são reforçadas em vários momentos do relatório, principalmente no espaço que tange a manutenção de alguns financiamentos e exportações. De acordo com as conclusões dos relatores, o Brasil precisava manter suas relações econômicas, entretanto: “A concessão de financiamentos ao Chile não deve ser encarada como uma posição paternalista de ajuda, a qual, logicamente, não se justificaria por suas diferenças ideológicas” (Relatório do Grupo Interministerial, 1973). Além disso, destacava a presença do “progresso brasileiro”, o modelo político bem sucedido executado aqui, na contramão das políticas internas chilenas. A necessidade do Chile dos investimentos brasileiros foram apontadas no relatório como uma barganha entre o governo brasileiro e a necessidade de coibir qualquer atividade de elementos contrários ao Brasil, com vistas a perder a colaboração financeira brasileira.

Com a preocupação com a imagem do governo brasileiro tornada pública pelos jornais chilenos, o relatório conclui pelo silenciamento dos “jornais de esquerda”, após a participação do Brasil na Feira Internacional de Santiago (FISA). OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 451

Com certeza, o discurso da imagem positiva do Brasil satisfazia muito mais o governo brasileiro em suas demandas para o fortalecimento de uma política econômica eficiente e uma imagem positiva do governo, do que propriamente a realidade. Como destacado no próprio relatório, os jornais classificados pelos relatores como “esquerdistas” haviam imputado várias críticas à apresentação brasileira.

Entretanto, após setembro de 1973, os entendimentos entre os governos foram estabelecidos a nível político e econômico, na última resposta da Secretaria Geral do Brasil, em 30 de outubro de 1973, João Batista de Oliveira Figueiredo, Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional, se dirige ao Ministro das Relações Exteriores no Chile, Mario Gibson Alves Barboza, com segurança e tranquilidade, destacando o momento das condições favoráveis entre os países:

Tendo em vista a evolução do quadro político chileno (grifo nosso), esta Secretaria-Geral, ao tempo em que aprofundava estudos em torno do assunto, solicitou do Ministério das Relações Exteriores parecer quanto aos possíveis reflexos da queda do Governo socialista sobre as medidas anteriormente propostas. (Relatório Interministerial, 1973)

Contudo, a aproximação ideológica não fez cessar as preocupações com os quadros e agendas da subversão, principalmente sua estruturação “panfletária” em jornais da imprensa brasileira e internacional.

Em documento de dezembro de 1973, o General Carlos Alberto Fontoura explicita suas preocupações com o aprimoramento “requintado” da propaganda subversiva, principalmente após o golpe no Chile. Aponta o comunismo internacional como o articulador das influências e infiltrações nos diversos setores da comunicação social, particularmente nos jornais. O general destaca que embora tenha havido um esforço do governo, a propaganda ostensiva de inspiração comunista infiltra seus “quadros” na imprensa brasileira, fazendo divulgar “falsas informações e meias verdades” sobre o governo.

Com raras exceções, a Imprensa brasileira vem sofrendo uma ação clandestina, visando a destruição dos elementos de projeção no cenário político nacional, através da divulgação de falsas informações e meias verdades, que tumultuam a opinião pública, gerando, no seio do povo, uma crescente onda seio do povo, uma crescente onda de críticas e restrições ao Governo. (Documento De Informações Nº 683/16/Ac/73, De 18 Dez 73 (A Propaganda Adversa). OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 452

Nesse sentido, as representações políticas impressas nas páginas dos jornais de maior tiragem também implicavam o incômodo dos dirigentes militares. Para esse caso, vale lembrar o Editorial do Jornal do Brasil após o golpe no Chile.1 Em entrevista do jornalista Alberto Dines, o mesmo destaca a censura imposta por “ordens superiores” para que não problematizasse as questões sobre a ascensão dos militares no Chile (Franco, 1997). Entretanto, mesmo após a ordem, as matérias da edição sobre a morte de Salvador Allende e a tomada de poder pelos militares foram mantidas e o que tornou a situação ainda mais complicada foi que Alberto Dines cuidou de organizar a primeira página especificamente para noticiar o caso de Allende, nenhum título em destaque, nenhuma fotografia ou fontes em alto relevo, mas o corpo da matéria ocupava toda a página inicial.

No documento do SNI, além da preocupação de ordem interna, o General destaca a campanha da imprensa internacional contra o Brasil, para o qual associa a presença dos exilados no exterior.

Teve prosseguimento a campanha dirigida contra o BRASIL, por parte da Imprensa estrangeira, integrada por subversivos brasileiros asilados e foragidos no exterior. Merecem destaque, nesse particular, alguns órgãos da Imprensa belga, que veicularam manifestações contrárias a “BRASIL EXPORT 73”. (Documento De Informações Nº 683/16/Ac/73, De 18 Dez 73 (A Propaganda Adversa).

Nesse trecho, a preocupação foi direcionada às críticas veiculadas por jornais belgas, principalmente após a apresentação do “Brasil Export 73”, realizado em Bruxelas. Hermílio Bello de Carvalho foi convidado para montar o espetáculo que divulgaria os produtos brasileiros no mercado europeu na Bélgica, além da divulgação do crescimento econômico durante o governo Médici. A apresentação foi fortemente criticada nos jornais da Europa, o que acabou levando a manifestação da insatisfação do SNI.

Além disso, as preocupações com o fortalecimento da propaganda subversiva no Chile também estavam presentes no documento. De acordo com o General, o recrudescimento da propaganda subversiva estava alinhadas às prerrogativas da filosofia marxista, incentivada pelo “clero progressista” no país vizinho. Interessante notar, que o discurso tenta minimizar a atuação das vanguardas, possivelmente tentando fortalecer a eficiência no órgão na repressão

1 Vale destacar que o Jornal do Brasil foi um dos principais periódicos da grande imprensa no apoio ao golpe de 1964, no Brasil. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 453

aos grupos associados às guerrilhas, e, por outro lado, fortalecer a imagem de setores da igreja que subvertiam a ordem ao se aproximarem da filosofia marxista, provavelmente tendo como referência as tensões entre setores da igreja no Brasil e as críticas à ditadura, além das possíveis vinculações às guerrilhas, desencadeando o que ficou denominado como “católicos vermelhos”, com ações do Estado que iam da eliminação de financiamentos às obras assistenciais da Igreja e, no limite, a prisão, a tortura e o extermínio (Serbin, 2001).

Ainda nesse sentido, as publicações da grande imprensa brasileira motivaram a preocupação do Ministério das Relações Exteriores e dos contatos e informações direcionadas pelo mesmo ao Conselho de Segurança Nacional em relação a aproximação de estudantes brasileiros residentes na Argentina dos ideais comunistas durante os anos setenta.

Em informativos do Conselho de Segurança Nacional, o receio da presença de estudantes brasileiros nas Universidades Argentinas tornaram-se mais presentes, principalmente a partir de 1969. O movimento popular ocorrido neste ano, o Cordobazo, mobilizou estudantes e operários nas regiões de Córdoba e Tucumã. A insatisfação com o governo e General Onganía era latente, alguns planos monetários foram executados para que as condições econômicas se estabilizassem. Contudo, as propostas não satisfaziam nem mesmo grande parte dos setores que haviam apoiado o processo golpista. As primeiras vozes dissonantes surgem em 1969, entre elas a de Arturo Frondizi, de grupos da CGT e algumas organizações empresariais.

Em maio de 1969, estudantes e operários se organizaram na cidade de Córdoba em uma sequência de manifestações populares. No Brasil, o Jornal do Brasil tornava público os noticiários sobre a crise Argentina, principalmente com notícias que divulgavam a morte de estudantes em Córdoba. Considerando a abrangência desse jornal da grande imprensa, mesmo que tenha apoiado o golpe em 1964, uma vez que tornava público os movimentos estudantis e operários no país vizinho, poderia atingir um público muito além daqueles que supostamente ainda apoiavam o regime brasileiro, enfim, ainda que isso tenha seus limites, o periódico era um formador de opinião pública em um momento de questionamento da continuidade dos governos militares no Brasil após maio de 1968. Divulgar a mobilização na Argentina e a presença de estudantes brasileiros nessas regiões, aparece nos informativos como elemento motivador para que os membros do CSN buscassem um levantamento detalhado desses estudantes e de suas atuações no país. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 454

Em maio de 1969, o Jornal Última Hora na coluna Jornal do Mundo, a seção sobre os conflitos apontavam que “a crise estudantil adquiria aspectos dramáticos”, fazendo referência aos estudantes presos e aos estudantes mortos nos conflitos. No UH, as matérias eram mais agressivas sobre a relação entre militares, estudantes e operários. O periódico deixava clara as repressões em relação às mobilizações de 1969, inclusive iniciando a discussão sobre o retorno da pena de morte no país e fazendo menções às mobilizações do ponto de vista do governo na Argentina. Em uma nota sobre o posicionamento do General Onganía, destaca-se a fala do militar em relação a mobilização grevista no país como “planos subversivos organizados” (Última Hora, 1969).

Nesse sentido, pretende-se destacar o quanto os órgãos vinculados a Segurança Nacional estavam direcionados aos levantamentos que a imprensa escrita fazia sobre a ditadura. Não exime-se da complexidade dessas relações entre imprensa, Estado, burocratização e repressão, contudo, busca-se aprofundar um levantamento em relação ao recrudescimento da máquina de Estado e os programas para a Segurança Nacional, e a forma como interpretavam às ações na imprensa dos grupos por eles considerados de esquerda e opositores do regime.

Na imprensa internacional, nos quadros da imprensa brasileira, ou mesmo no clero progressista no Chile, e sobre as divulgações das mobilizações grevistas na Argentina, as divulgações na imprensa brasileira e internacional foram recebidas como uma ameaça de Estado e uma necessidade no monitoramento e aperfeiçoamento, de um lado, para a divulgação da imagem positiva do Brasil e, de outro, da elaboração de estratégias comuns entre os países para conter as “ameaças subversivas”, em seus termos.

Nos documentos mencionados, a imprensa escrita aparece como um importante elemento na formação de consensos e consolidação de representações políticas sobre o Estado. Embora seja preciso analisar com mais cautela as relações entre monitoramento e levantamento dos noticiários e a execução, de fato, da censura nos periódicos brasileiros, é possível analisar como o Estado e sua burocratização, direcionada ao cerceamento das liberdades políticas, atuavam articulados entre si e se aperfeiçoavam em direção ao recrudescimento do aparato estatal para além das fronteiras nacionais. OS DISCURSOS DIPLOMÁTICOS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E CHILE: A IMPRENSA E A IMAGEM POSITIVA DOS REGI- MES MILITARES (1973) JOSIANE DE PAULA NUNES 455

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Em defesa das Luzes: a formação de redes político-educacionais nas independências da ibero-América (1815- 1834)

LAÍS OLIVATO Doutoranda no Programa de História Social do Departamento da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Pesquisa financiada pelo CNPq. E-mail para contato: [email protected]

Na Introdução do Plan de enseñanza para las escuelas de primeras letras, redigido pelo francês Alexandre Louis Joseph de Laborde, em 1815, e traduzido para o espanhol pela Imprenta de los Expósitos, de Buenos Aires, em 1823, há uma breve reflexão sobre as possíveis origens do método de ensino mútuo. Laborde recorreu a Plutarco para discorrer sobre a genealogia deste que seria o mais difundido método de ensino no período. Segundo o pensador da Antiguidade, na Grécia Antiga, Licurgo mandou que todas as crianças de sete anos de idade fossem ensinadas num mesmo lugar e se sujeitassem às mesmas regras. Dividiu os meninos em várias classes lideradas pelos alunos mais hábeis e adiantados. Todos os outros deveriam se inspirar neles, obedecer a suas ordens e sofrer com resignação o castigo que se lhes impusessem. (LABORDE, 1823, 2)

Adotado em muitas escolas protestantes francesas e inglesas durante o primeiro quarto do século XIX, esse modelo de ensino, que contava com monitores para auxiliar o trabalho dos professores, foi difundido na forma de textos em periódicos e manuais de ensino na América do Sul e na Europa como uma condição para a melhoria da educação nesses países. Essa passagem, extraída do Plano Educacional para escolas protestantes do francês, do Conde de Laborde, circulou em inúmeros periódicos e impressos da América do Sul nesse mesmo período. O manual de Laborde defendia veementemente a difusão de um sistema educacional de baixo custo no período das independências, denominado método mútuo de ensino. Nele, os alunos mais adiantados se tornavam monitores dos alunos menos adiantados e, tentavam, em muitos casos, substituir o papel do professor, mão-de-obra escassa nesse período. EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 458

Tentando dar profundidade ao método de ensino mútuo, ao qual o inglês e quackre Joseph Lancaster reivindicava a autoria naqueles anos, o francês, Conde de Laborte, apostava na indicação da cultura Clássica. A partir de passagens de Plutarco com menções não apenas a Licurgo, mas também a Sêneca e a Cícero o autor francês buscava legitimar moralmente o sistema de monitoria que barateava o ensino naqueles anos.

Criticado por seus contemporâneos, o método de ensino mútuo era constantemente reavaliado pela imprensa e pelos homens de letras que procuravam dar sentido a um método educacional difundido por protestantes em todo o mundo. Na América, por exemplo, o método mútuo encontrou muita resistência, como, nas críticas de Simón Rodríguez, tutor de Bolívar. Segundo ele,

con pocos maestros, continuaba, i algunos principios vagos se instruyen en ellas muchachos a millares, casi de balde, i salen sabiendo mucho, así como con algunas marmitas de Papin i algunos huesos engordan millares de pobres sin comer carne. (AMUNATEGUI, 1854, 249)

Mas, ao mesmo tempo, era apoiado por figuras como Bernardino Rivadavia que associava o método de ensino mútuo ao desenvolvimento da moral da população portenha nos anos iniciais de construção do processo de independência. Em suas palavras,

el nuevo método de enseñanza mutua, que felizmente se há adoptado en el país, reúne á la ventaja de la brevedad y economía, la de infundir en la juventud ese espíritu de dignidad y emulación que tanto contribuyes á la mejora de conocimientos y de la moral (QUIGNON, 1823, 5).

Rivadavia publicou esse texto em 1823 num Manual de ensino mútuo para a educação de meninas em Buenos Aires. Vale mencionar que, neste texto, o autor a palavra “Luzes” é mencionada 123 vezes em 20 páginas, sempre relacionada à defesa ao ensino mútuo.

Na tentativa de esboçar um panorama de como circularam essas ideias desse e do outro lado do Atlântico, dividirei minha apresentação em duas partes. Em primeiro lugar, analisarei a produção de materiais relacionados a divulgar as ideias do ensino mútuo na América do Sul. Em seguida, analisarei o discurso de alguns desses materiais que buscaram combinar um discurso educacional ilustrado aos ideários liberais sul-americanos difundidos no período das independências. EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 459

Antes, vale destacar que essa apresentação é fruto da pesquisa de doutorado que venho desenvolvendo desde 2015, sob a orientação da Professora Gabriela Pellegrino Soares, no programa de História Social da USP, e financiamento do CNPq. Com o título de “Projetos educacionais conectados: o ensino mútuo na América do Sul”, a formulação de minha tese passa pela análise de ideias político-educacionais que circularam durante os processos de independências sul-americanas no primeiro terço do século XIX.

Após essa breve introdução, passo agora à primeira parte de minha fala. A tradução do texto do francês, Alexandre Louis Joseph Laborde, conhecido como Conde de Laborde para o espanhol, foi organizada pela Imprenta de los Expósitos de Buenos Aires, em 1823. Compilando o texto do Plan de enseñanza para las escuelas de primeras letras de Conde de Laborde ao Manual práctico del Método de mútua ensenãnza, publicado en Cádiz, en 1818, por la Sociedade económica de Amigos del pais de aquella Provincia, a Imprensa obteve apoio financeiro do então Ministro de Governo Bernardino Rivadavia. Vale destacar aqui que a Imprenta de los Expósitos era uma antiga imprensa da cidade, que funcionava desde 1780 a serviço do Vice-Rei e, no início do século XIX, passou a atender as demandas do governo independente.

Além da publicação desses dois manuais de ensino mútuo, em 1823, o governo portenho encomendou também a tradução para o espanhol do Manual de ensino mútuo para meninas, redigido na França pela diretora de escolas femininas Mme. Quignon.

Como é possível observar neste organograma, o governo de Buenos Aires não foi o único a encomendar traduções de materiais de ensino mútuo que eram produzidos na Europa. Em toda a América do Sul circularam textos propagandísticos desse método de ensino ao longo do primeiro terço do século XIX. Muitos deles eram patrocinados pelas Sociedades filantrópicas que foram criadas em Londres e Paris com essa finalidade. A British and Foreign School Society, por exemplo, enviou além dos manuais, tabelas de ensino, modelos de registro para o professor e materiais pedagógicos como cartazes de alfabetização, lousas de ardósia e instrumentos científicos para as escolas incipientes da América. A própria associação se encarregou muitas vezes da tradução desses materiais para o espanhol e encomendou traduções para o português que, ao que indica a documentação, nunca foram enviadas. A parceria da School Society com a Bible Society, em Londres, garantiu também o envio de traduções da Bíblia para o espanhol, aymoré EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 460

e quéchua para a hispano-América. Essas associações pretendiam que a Bíblia fosse utilizada como livro-texto de leitura nas escolas que aqui se fundavam.

Já a Societè pour l´instruction élémentaire, dirigida por um grupo de filantropos que rodeavam a figura do Conde de Laborde, investiu principalmente no debate sobre o ensino mútuo por meio dos periódicos. Enfrentando resistências das escolas lassalistas católicas francesas, l´école des frères, esse grupo de protestantes encontrou na imprensa francesa e internacional espaço para difundir os avanços quantitativos do ensino mútuo em toda a Europa. A Societè fundou um periódico próprio, o Journal d´éducation, um dos primeiros encarregados apenas de discussões político-pedagógicos, que recebia informes sobre o estado de difusão das escolas mútuas em todo o mundo. Por meio desse material, é possível mapear um pouco o processo denominado de mundialização do método mútuo no primeiro terço do XIX. (CARUSO, 2011)

Ademais, embora não faça parte diretamente de minha apresentação de hoje, é válido destacar que ambas as Associações enviaram e prepararam professores que cuidaram da difusão do método de ensino mútuo em escala planetária. O caso mais conhecido na América hispânica é do escocês James Thomson que durante os anos de 1818 a 1822 esteve ao lado dos principais atores dos movimentos de independência do Rio da Prata e do Vice-Reino do Peru, colaborando para construir um projeto político educacional para os países que se emancipavam. (ROLDAN VERA, 2007)

Voltando para os materiais impressos, na América do Sul, os periódicos locais cuidaram da tradução dos materiais que chegavam além-mar das Sociedades filantrópicas europeias. A Gaceta de Buenos Aires disponibilizava informes trimestrais sobre o andamento das atividades descritas no Journal d´éducation. Relatava aos portenhos inúmeros dados que pareciam distantes do cotidiano das escolas de Buenos Aires como, por exemplo, que a criminalidade na Escócia havia se reduzido após a adoção do método de ensino mútuo. Detalhava o funcionamento das escolas francesas que educavam cerca de 1000 alunos de uma só vez utilizando apenas um professor com a garantia do aprendizado e da manutenção da disciplina. Ademais, noticiava que as escolas mútuas já haviam chegado ao continente africano, levando a civilização a áreas nunca dantes imaginadas. Contudo, ao redigir sobre a promoção do método mútuo na cidade de Buenos Aires, os editores se lamentavam do grau de abandono e descaso que se encontrava a educação (GACETA DE BUENOS AIRES, 1820). EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 461

As tentativas de organização de reuniões para a formação de uma Sociedade de defesa da instrução pública em Buenos Aires com características filantrópicas fracassaram. O jornal noticiava a participação e envolvimento de poucas figuras políticas nessa empreitada. Talvez por isso, em 1821, o editor tenha publicado uma série de artigos em defesa da educação pública. Infelizmente, não sabemos a autoria desse material, já que muitos textos eram publicados anonimamente. Cito um fragmento deste texto:

Que es un buen ciudadano? Es un hombre que posee las virtudes necesarias para el órden, y conservación de la sociedad, en que vive. Es el que sabe ser buen padre de familias, buen hijo, buen esposo, buen amigo, y llenar honradamente los deberes, que le imponen las leyes de su patria. El que escandalosamente quebranta estas obligaciones sociales es un mal ciudadano, y será irremediablemente un mal ciudadano el que ha pasado su infancia en la ociosidad, su juventud en la disipación. La educación pública es la que únicamente puede precaver este género de males, que son el origen fecundo de nuestras desgracias. La educación pública es el objeto más digno del zelo de un gobierno sábio, liberal, y justo. La educación pública está ligada con la suerte de la patria. (GACETA DE BUENOS AIRES, 1821)

Vale destacar nesse excerto, o vínculo direto que o editor do jornal portenho estabelece entre cidadania e educação. Embora frequente em discussões sobre políticas educacionais ao longo do século XX, no início do século XIX, essa relação não era tão clara. Os textos sobre ensino mútuo que circulavam na Europa nesse mesmo período não dimensionavam o potencial político da educação, mas elevavam apenas seus valores morais e religiosos. Aqui, embora a cidadania seja qualificada e esteja associada ao comportamento moral do bom cidadão, a educação aparece associada à pátria, à lei da pátria, às obrigações que são sociais e garantidas por um governo sábio, liberal e justo. Logo, o discurso propagandístico do método de ensino mútuo era explicado pelo editor da Gazeta por meio da defesa de uma educação pública que levasse a formação de cidadãos para a nova pátria que se formava. Mas, por que utilizar o ensino mútuo para este fim?

Como mencionado anteriormente, o método de ensino mútuo encontrava muito apoiadores na Europa e na América pela suposta eficiência comprovada pelos relatórios do Conde de Laborde no Journal d´éducation. Eficaz, barato, disciplinador e extremamente técnico, esse método de ensino propunha uma metodologia pedagógica facilmente moldável a diferentes contextos e crianças. Trazia na ideia de “método”, uma fórmula que se encaixava nas demandas por mais educação que advinham dos discursos ilustrados e civilizatórios. EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 462

Contudo, sua origem e propagação protestantes causavam desconfiança em países católicos. Nem mesmo na Inglaterra, o método compilado por um filho de operários da seita quackre encontrou unanimidade em sua aceitação.

No caso de Buenos Aires, a divergência sobre o ensino mútuo nos textos portenhos e europeus pode ser percebida numa discussão que o tradutor do Manual de Conde de Laborde, mencionado no início dessa apresentação, propõe na nota de rodapé da tradução do manual francês. O conflito mais explícito na tradução do manual do ensino se deu entre a utilização da moral religiosa protestante e a possível construção de uma social na educação aparece na tradução argentina do manual de Conde de Laborde. Nesse texto, a censura do editor a assuntos protestantes é justificada. Ao deixar de traduzir e ocultar longos trechos em francês em que Laborde discorreu sobre a importância da Bíblia na formação moral do indivíduo, o editor alegou que tais valores não eram úteis para a formação das crianças portenhas.

Leio aqui o fragmento completo:

Nota (1) El original y el traductor dicen: ´la moral está en el libro de la Sagrada Escritura...... ´Pero las palabras sustituidas valen por todo el capítulo cuan largo lo trae el Sr. Laborde, y cuan reducido su traductor. ¿Quién ha de estudiar la moral en la Sagrada Escritura? ¿La gente vulgar? No; pues nunca sabrá separar el grano de la paja. ¿La gente instruida? Tampoco; pues cuanto más se empeñe en separarle más le confundirá. ¿ Para qué sirven hoy los gruesos y numerosos volúmenes en que se explicaron ese libro un Calmet y un Alápide? Todo el mundo lo sabe ya: para envoltorios de drogas, y otros usos...... Cuando la Iglesia católica ha prohibido constantemente la versión de la Biblia en idioma vulgar, ha procedido con mucha sabiduría: penetraba muy bien que la moral no está en ella, ó al menos no se encuentra, tan pura ni tan clara como supone el Sr. Laborde. ¿Y el ruido que ha causado la del célebre padre Scio? Pasó, dejando por fruto y modelo de instrucción bíblica la de su discípulo privilegiado el príncipe de Asturias, hoy Fernando VII. Bien compensado está el gusto y el zelo de tan buen maestro por la ignorancia y descrédito que acompañaran a este personaje hasta la tumba. Dejemos pues a los protestantes con sus bibliomanías, y busquemos la moral en el fondo del corazón del hombre social. Ahí la buscó Cicerón cuando compuso su libro de los Oficios para instrucción de su hijo Marco, quien sin duda fue joven más aprovechado que Fernando VII. (El editor) (LABORDE, 1823, 43)

Observamos que para contrastar com essa moral protestante, o editor defende, então, a formação das crianças conforme uma “moral social” instituída por valores da antiguidade. Mais adiante no texto, o editor aponta que “Nenhum povo pode se lisonjear de sua civilização, enquanto a ilustração não se generalize em todas as classes.” Apesar de não aprofundar o seu entendimento por classe, no contexto da obra fica claro que o EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 463

autor se referia à educação dos mais pobres, pois as escolas lancasterianas da província de Buenos Aires, nesse período, foram implantadas principalmente em orfanatos, em bairros pobres e na área rural.

Embora o editor portenho não abordasse diretamente em seu prólogo ou em suas notas de quais elementos era constituída essa moral social, ou por quais mecanismos ela seria ensinada às crianças, depreende-se que seu diálogo se dava com os textos de seu próprio tempo. Bernardino Rivadavia, ao assinar a autoria do prólogo da tradução do já mencionado Manual para meninas da Mme. Quignon, indicava que o objetivo do ensino mútuo também era a educação para a moral social.

Mas de onde vem essa moral social? Por que vinculá-la a um método de ensino protestante que gerava tanta desconfiança em sua época?

Segundo Rivadavia, a moral social era uma primeira etapa dentro do processo educacional do povo. Para ele, em primeiro lugar as “qualidades morais” eram o objetivo da educação que pretendia a moralização dos cidadãos de Buenos Aires. Depois disso, viriam as “qualidades intelectuais”. A combinação de ambas propiciaria as “qualidades industriais.”. Em suas palabras,

En un país como el nuestro, en que la población es tan diminuta, y en que por lo mismo es tan necesaria la industria, fácilmente se calcula cuanto importa el que la educación prepare las personas á rendir todo el servicio que reclama la prosperidad de ellas mismas y el engrandecimiento de nuestra patria (QUIGNON, 1823, 5).

A ênfase dada às finalidades práticas que adviriam da formulação dessa moral social por meio da educação deveria ocorrer numa Argentina em que as Luzes já haviam triunfado. Para o ministro, o Iluminismo era um projeto vitorioso e agora os países civilizados cuidavam da educação pública. Era esse o modelo que devia ser seguido para o então triunfo da pátria por meio de seus cidadãos.

Nota-se, portanto, que a leitura feita pelo ministro Rivadavia, os editores da Imprenta de los Expósitos e da Gaceta de Buenos Aires colocava o ensino mútuo como um meio para se atingir a outro projeto político educacional, que diferia daquele difundido pelas Sociedades filantrópicas e protestantes europeias. Ao menos em âmbito discursivo, a EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 464

educação mútua em Buenos Aires se aproximava de um projeto político de governo encabeçado por Rivadavia que buscava balizar novos valores para a fundação da Pátria. Aqui, embora a retórica das Luzes e expressões como “defesa do pensamento ilustrado” tome um grande espaço em seus textos, é notável a aproximação do discurso educacional com as novas necessidades que surgiam durante a tentativa de consolidação do processo de independência. Tratava-se de desenvolver a indústria do país, moralizar os cidadãos para, enfim, arregimentar um território soberano. Nesse sentido, a apologia da religião protestante presente no ensino mútuo era mecanicamente descartada na formação de um novo projeto político-pedagógico.

Mas, será que o mesmo processo ocorreu em outros territórios americanos que passavam pelo processo de independência?

Em suas cartas que descrevem uma intensa travessia pela América do Sul, James Thomson, o enviado da British and Foreign School Society e da Bible Society, não deixa de notar como sua recepção em círculos políticos e católicas era bem vinda quando discutia o projeto de ensino mútuo e apenas tolerada quando tentava vender Bíblias para sua missão. Em Santiago, teve sua bagagem apreendida e vistoriada por carregar centenas de Bíblias em espanhol. Apenas com a intervenção de seus contatos que o associava a O´Higgins e San Martin, foi solto e passou a ocupar a Diretoria de Educação. Em Lima, embora recebido pelo Frei Francisco Navarrete, San Martin limitou suas atividades também à gestão de uma escola experimental de ensino mútuo, que não utilizava a Bíblia com livro-texto. (THOMSON, 1827)

Já no Brasil, o processo de difusão de ensino mútuo ocorreu de forma diferente. Os materiais pedagógicos que chegaram à hispano-américa nunca foram traduzidos para o português pelas sociedades europeias. Em escassos contatos com o ensino mútuo em Portugal e na Cisplatina, o governo passou a financiar algumas “aulas” no Rio de Janeiro a partir de 1817. Mas, foi por meio de políticas públicas do Império, em 1827, o ensino mútuo passou a ser o método oficial de ensino nas escolas públicas (BASTOS, 1999).

As discussões envoltas na aprovação dessa lei associava esse método de ensino à filosofia utilitária de Jeremy Bentham, autor de “O Panóptico”. Correspondente também de Rivadavia em Buenos Aires, Bentham foi uma figura importante que fomentou o EM DEFESA DAS LUZES: A FORMAÇÃO DE REDES POLÍTICO-EDUCACIONAIS NAS INDEPENDÊNCIAS DA IBERO- AMÉRICA (1815-1834) LAÍS OLIVATO 465

crescimento das ideias liberais na América na primeira metade do século XIX. Embora tivesse um projeto próprio de educação que se aproximava a uma concepção do humanismo clássico de ensino, Bentham atuou como defensor do ensino mútuo como uma forma de educação para o povo. Inspirado diretamente no ideal utilitário, o projeto político-educacional brasileiro tinha um tom de disciplinarização e manutenção da ordem mais acentuado que seus vizinhos. Mas, o que nos interessa aqui, é ressaltar que no Brasil, também houve a rejeição do ideário protestante que o método de ensino mútuo europeu carregava. (OLIVATO, 2017)

Por fim, já encerrando minha fala, observo que os textos que difundiram as ideias do ensino mútuo na América do Sul tentavam construir a ideia de uma política educacional que fosse continuadora de um projeto Ilustrado de sociedade. Contudo, as referências e imagens de educação arregimentadas nesse texto não eram propriamente relacionados àqueles presentes nos Iluministas do século XVIII. As representações político-pedagógicos presentes nesses discursos reformularam as discussões europeias sobre educação e ensino mútuo do primeiro terço do XIX para buscar correspondência a novos ideais que eram formulados junto às diferentes formas de se pensar liberalismo e pátria nesse período.

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Imagens Do “Índio” Na Revista América Indígena: Órgano Trimestral del Instituto Indigenista Interamericano (1941-1960)

LARISSA FOSS SOCHODOLHAK Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá e estudante de disciplinas de pós-graduação - e-mail [email protected].

Introdução

A questão indígena está presente em toda a história do continente americano. A partir do final do século XV, com a chegada europeia, os nativos americanos passaram a ser enfrentados como “problemas” a serem resolvidos.

Apesar de as discussões indigenistas em diversos países americanos remontarem ao período colonial – como, por exemplo, no caso do México (VILLORO, 1996) –, somente no século XX podemos identificar a formação de uma instituição de caráter continental voltada para a reflexão e formulação de propostas políticas de cunho indigenista: o Instituto Indigenista Interamericano (III), criado em 1940.

Esse órgão deveria cumprir várias funções a respeito da questão indígena na América, e como o próprio nome sugere, a preocupação com o teor da discussão continental. A partir do surgimento do III foi sendo construído o que a historiadora Laura Giraudo (2011) chama de “um campo indigenista quase profissional”, sendo que o Instituto converteu- se na principal referência associativa e institucional de várias redes de intelectuais de diversos países identificados ao tema indigenista e tornou-se o centro a partir do qual foram sendo definidas as características dos especialistas indigenistas e suas relações com os aparatos estatais de vários países. (GIRAUDO, 2011, p. 22) IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 469

Além de discussões, ideias e propostas de um indigenismo continental, um importante fruto desse Instituto foi à criação da revista América Indígena. O objetivo da revista era compartilhar informações científicas e promover uma política cultural de caráter indigenista, além de ser um mecanismo de discussão e difusão das ideias defendidas pelos indigenistas que faziam parte do III e de sua publicação oficial, que também recebia artigos de colaboradores.

Essa revista passou a ser fonte de pesquisas científicas, das quais minhas pretensões se concentraram nas imagens, em especial as fotografias dos chamados “índios”.

As imagens dentro das publicações do periódico cumprem um papel importante. No caso específico de fotografias de indígenas, tratando-se de imagens publicadas em uma revista produzida por intelectuais, a questão norteadora é a análise das relações entre esse discurso visual e o discurso verbal da publicação (principalmente as legendas que acompanham as fotos, mas também os editoriais da revista), entendendo que ambos, configuravam um único discurso sobre o “índio” que era difundido por meio da revista.

Em todas as imagens analisadas observarmos uma perspectiva pautada na exterioridade, como sendo uma descrição do “outro”. Isso fica muito claro nas descrições das legendas. Há casos em que essas pessoas chegaram a ser apresentadas como “tipos” ou “exemplares”, expressões que conferem uma conotação semelhante a descrições de plantas ou animais típicos de uma determinada região. Nesse caso, trata-se menos de regiões do que das etnias a que pertenciam os indígenas, para tanto, são identificadas como fotografias etnográficas.

Inicialmente, os anos que delinearam a pesquisa foram de 1941 a 1945, da fundação da revista, em 1941, até o fim da política da Boa Vizinhança, que entendemos como a fase de consolidação do Instituto.

Esse artigo busca reunir algumas conclusões sob a metodologia da História Visual e Intelectual, e também apresentar uma pesquisa que está em andamento, estendendo para todo o período em que o antropólogo Manuel Gamio (1883-1960) esteve na diretoria do Instituto Indigenista Interamericano e também do periódico, portanto, entre os anos de 1941 a 1960. IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 470

América Indígena: do contexto indigenista à publicação

A questão indígena tem sido discutida desde a chegada de Cristóvão Colombo na América, no fim do século XV, observando que o termo “índio” é formado nesse momento para descrever de forma genérica os nativos americanos, indistintamente.

O linguista Tzevetan Todorov (1996) destaca em sua obra A conquista da América: a questão do outro, a semelhança com que Colombo descreve a natureza e os nativos, como se estes se imiscuíssem na paisagem e simplesmente fizessem parte do cenário. Nesse momento houve uma pequena busca pela compreensão da linguagem das pessoas dessas novas terras e abordou-se o fato de terem seus próprios costumes, leis e regras, mas a relação predominante foi a de imposição dos valores dos europeus sobre o “outro”, os chamados “índios”. Como ressalta Todorov (1996, p. 47) “Colombo descobriu a América, mas não os americanos. Toda a história da descoberta da América é marcada por essa ambiguidade: a alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada.”

Desde então, pode-se dizer que para os grupos sociais dominantes no continente americano os “índios” são encarados como um “problema” prático ou conceitual. Como observa o historiador Emilio Kourí (2010) “a suposta alteridade histórica do indígena, postulada como a base de sua perene subjugação”, torna-se um elemento que exige “explicação, justificação, remédio ou solução”. Nessa análise, cada época e cada sociedade têm suas próprias respostas e condicionamentos sobre o assunto, mas é a todo esse conjunto heterogêneo de “conceitos, reflexões, análises, políticas e exortações a respeito do índio e de sua história” que se atribui o nome “indigenismo”. (KOURÍ, 2010, p. 419)

No México, no início do século XX, discussões indigenistas emergem de maneira efervescente a partir da Revolução Mexicana de 1910.

O “indigenismo da Revolução Mexicana” segundo Emilio Kourí (2010) é aquele que se desenvolveu no México a partir da Revolução de 1910, quando camponeses/ indígenas pegam em armas em busca de melhores condições políticas e sociais. Foi o grande divisor de águas em relação ao indigenismo, que colocou em cena os milhares de indígenas/ camponeses do país e seus problemas sociais. A partir da Revolução, passaram a primeiro plano a busca por melhorias sociais e pela formação de uma identidade integradora da IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 471

nação. O passado pré-hispânico passou a ser valorizado, mas os remanescentes indígenas contemporâneos se tornaram um problema para a construção de um país “civilizado e progressista”. (KOURÍ, p. 421) Como explica Emilio Kourí (2010), “no era factible [...] repudiar la herencia indígena, pero tampoco era posible transitar hacia la modernidad con los indios del presente a cuestas.” (Idem, p. 422)

Depois desse movimento, que chamou a atenção de toda a sociedade mexicana para os setores sociais subjugados, principalmente no campo, é que foram desenvolvidas políticas estatais voltadas especificamente para a população indígena. E foi esse o contexto responsável em grande parte pela articulação de um instituto que defendesse as causas indígenas e que tivesse proporções continentais.

O projeto do Instituto Indigenista Interamericano se inicia em 1940, na cidade mexicana de Pátzcuaro, sob convocação do presidente Lázaro Cárdenas e dos indigenistas ligados ao seu projeto estatal, liderados por Moisés Saénz, onde é organizado o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, com o objetivo de encontro e troca de ideias de indigenistas do continente. Como destacado pela historiadora Laura Giraudo,

Pátzcuaro fue un espacio de discusión y representación de un amplio abanico de perspectivas sobre la cuestión indígena [...] iban desde la idea de la necesaria transformación y ‘mejora’ de la vida de los indígenas hasta la defensa del mantenimiento o revitalización de sus costumbres e instituciones, del pluralismo cultural o, incluso, de la autodeterminación política. (2011, p. 21)

Esse Congresso teve importantes resultados. Com ele se chegou a um acordo sobre o significado e os objetivos do indigenismo no continente, ao ponto de se criarum organismo “intergovernamental especializado”, o já citado III. Esse órgão deveria cumprir várias funções, “a coleta e difusão de informações a respeito dos indígenas, o trabalho científico, reuniões periódicas, coordenação de políticas indigenistas e a promoção de filiais nos países”. Assim, apesar das dificuldades, surge o que Giraudo chama de “um campo quase profissional”, já que há uma associação institucional que passa a envolver vários intelectuais ligados ao indigenismo discutindo as características e a legitimidade de um órgão indigenista de atuação continental. (GIRAUDO, 2011, p. 22)

Dentre os primeiros frutos do III está a revista América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, periódico cuja primeira edição foi publicada em IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 472

1941. O objetivo da revista era compartilhar informações científicas e promover uma política cultural de caráter indigenista além de ser um mecanismo de discussão e difusão das ideias defendidas pelos indigenistas que faziam parte do III e de sua publicação oficial, que também recebia artigos de colaboradores.

A revista passou a ser publicada em outubro daquele ano, sendo sequenciada em janeiro, abril, julho e outubro. Além dos já citados artigos de caráter científico e político, o periódico contava com uma gama de imagens como pinturas, gravuras e fotografias. Como destaca Carlos Alberto Sampaio Barbosa (2003), existe uma grande variedade de imagens e todas elas podem ser tomadas como fontes históricas: “pinturas, vitrais, gravuras, esculturas, fotografias, filmes, história em quadrinhos, propaganda”, entre várias outras. (BARBOSA, 2003, p. 27).

As imagens fotográficas se mostraram as mais presentes, sendo a fonte fundamental de nossa pesquisa que busca evidenciar qual visão do “índio” elas revelam. Acreditamos que dentro de uma revista de cunho indigenista, as imagens juntamente com os discursos escritos (principalmente as legendas), podem revelar o discurso visual predominante entre os intelectuais produtores da revista sobre os nativos americanos.

América Indígena: discurso visual fotográfico sobre o “índio”

Desde o surgimento da fotografia, acreditou-se que ela seria a maneira mais científica de mostrar o real, sem um cunho subjetivo, por isso a sua utilização em pesquisas científicas, principalmente as antropológicas. O uso da fotografia pela Antropologia remonta aos trabalhos de Malinowski, um dos pais fundadores dessa ciência. O historiador e antropólogo Christopher Pinney (1996) estudou o que chamou de “história ‘paralela’ da Antropologia e da fotografia” e mostrou que, quando a fotografia estava em seus inícios, a Antropologia ainda engatinhava enquanto ciência e viu nesse novo veículo um recurso útil em sua busca pela cientificidade. Quando as pesquisas de campo se tornaram imprescindíveis para o trabalho antropológico, surgiu como paradigma que os antropólogos deveriam fazer registros, escritos e, se possível, também visuais, dos grupos humanos que eram objeto de seu trabalho científico. Deste modo, o uso da fotografia ganhou espaço na Antropologia como forma de mostrar algo “verdadeiro”. (PINNEY, 1996) IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 473

Mas atualmente, no campo da História, entendemos que a fonte visual fotográfica, assim como qualquer outra fonte, está sujeita aos juízos de valor e objetivos buscados por seus produtores. E se esses sentidos de produção têm relação com quem está fotografando e seu objeto, também existem sentidos envolvidos no processo de seleção de imagens para publicação em uma revista de cunho intelectual, como é o caso das fotografias de indígenas publicadas emAmérica Indígena.

As imagens publicadas na revista não foram produzidas pelos editores da publicação, mas sim selecionadas por eles para compor o discurso da revista. As fotos ali publicadas na maior parte das vezes provinham de trabalhos científicos, antropológicos, e, em alguns casos, de órgãos de turismo de países do continente.

Sobre o uso dessas fotografias como parte do discurso de uma revista produzida por intelectuais, devemos ter em mente, como esclarece Beatriz Sarlo (1992), que dentro da “sintaxe” de uma revista, ou seja, o sentido de seu discurso político-intelectual, “as imagens podem ser tão programáticas quanto os textos”. (SARLO, 1992, p. 12) E mais, como destaca a autora, as revistas intelectuais possuem um discurso que se inscreve no nível da conjuntura, o seu tempo é o presente. Normalmente essas publicações não trazem apenas discussões teóricas ou estéticas, mas um discurso político, na medida em que surgem com a intenção de imprimirem mudanças na conjuntura. Seu surgimento se liga a uma vontade de interferir em um determinado momento, em um espaço ou dimensão da sociedade para modificá-la.

No caso da revista América Indígena, a problemática social que esses intelectuais pretendiam solucionar era a questão do indígena no continente.

Lembramos que, apesar de ser uma revista com aspirações pró-indígenas, América Indígena não era produzida por estes, mas sim por intelectuais indigenistas, ou seja, intelectuais que se identificavam à necessidade de melhorar a situação vivida pelos nativos americanos. Assim, toda a organização da revista, inclusive a seleção de fotos que seriam publicadas, estava sujeita à visão de seus idealizadores (os indigenistas), incluindo a organização de sua estrutura interna, a estética, os textos, etc. IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 474

A revista contava com uma gama de elementos discursivos formada por textos escritos e visuais, como gravuras, desenhos e fotografias. Mas é perceptível, ao se folhear as edições de América Indígena, que as fotografias e principalmente as fotografias de indígenas foram a principal forma de discurso visual da revista. Todas as edições catalogadas dos anos de 1941 a 1945 apresentaram em geral uma média de uma fotografia a cada dez páginas. Essas imagens priorizam a figura humana e estão dispostas na revista separadas dos textos escritos, são somente as fotografias (uma ou mais por página), e suas legendas. Estas são bem específicas em questões de nomear o “outro”, geralmente aparecem as etnias e o local de origem dessas pessoas denominadas pelos editores da revista como “índio”/“índia” ou “indígena”, quando não “nativos” ou “tipos”.

Dessa forma, consideramos que a maioria das imagens de indígenas publicadas no periódico configuram um discurso que é um “escrito com o olho”, conforme a expressão do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (2004). Ou seja, a predominância do visual e sua quase completa independência em relação ao textual fazem dessas imagens, juntamente com as legendas que as acompanham (ver imagem 1), um “discurso visual por si só”, que implica numa leitura “que é para ser vista, antes de lida.” (2004, p. 28) Nesse sentido, acreditamos que as imagens, junto com as legendas, constituem um discurso visual sobre “o índio”.

Imagem 1

Fonte: América Indígena. México, abr. de 1945, p. 152 IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 475

Outra característica importante constatada no decorrer da pesquisa é a multiplicidade de países dos quais se originam essas fotografias. Como publicação de um instituto continental, a revista procurou mostrar indígenas de vários países, como podemos perceber na tabela:

TABELA QUANTITATIVA DE CLASSIFICAÇÃO POR PAÍSES AMERICANOS DE PRODUÇÃO

PAÍSES N.º DE FOTOGRAFIAS México 24 Peru 14 Estados Unidos (incluindo territórios do Alasca) 13 Bolívia 9 Brasil 8 Equador 7 Guatemala 4 Panamá 4 Canadá 3 Argentina 3 Chile 1 Paraguai 1 Colômbia 1

Fonte: Desenvolvido pela autora

Ao fazermos uma análise quantitativa das fotografias, percebemos que elas não representam proporcionalmente a quantidade de indígenas presentes nos países. Por exemplo, os Estados Unidos é um dos países com maior quantidade de fotografias, enquanto Bolívia e Guatemala, que possuem um enorme contingente indígena, não possuem tantas fotografias na revista.

No topo da classificação encontramos o México com 24 fotografias, acompanhado pelo Peru com 14 e Estados Unidos com 13. Os demais países tiveram de 1 a 9 fotografias. IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 476

A análise quantitativa mostra muito mais uma relação entre o número de fotografias e a predominância dos países no Instituto, principalmente no caso do México e dos Estados Unidos. Ambos foram os países que articularam a fundação do Instituto Indigenista Interamericano e aparecem com o maior contingente de fotografias.

A próxima constatação se deu em relação à descrição. Em todas as imagens analisadas observamos uma perspectiva pautada na exterioridade, como sendo uma descrição do “outro” (ver imagem 2). Isso fica muito perceptível no detalhamento das legendas. Há casos em que essas pessoas chegaram a ser apresentadas como “tipos” ou “exemplares”, expressões que conferem uma conotação semelhante a descrições de plantas ou animais típicos de uma determinada região. Nesse caso, trata-se menos de regiões do que das etnias a que pertenciam os indígenas. Algumas fotos chegam a enfatizar caracteres físicos atípicos e inclusive anômalos entre os nativos, o que servia como material de estudo científico, lembrando que esses cientistas eram denominados de indigenistas, aqueles que estavam buscando soluções a partir de pesquisas, para a causa científica, e seriam capazes de apontar o que deveria permanecer ou ser excluído para a inserção desses nativos na chamada modernidade.

Imagem 2

Fonte: América Indígena. México, jan. de 1942, sem pág. IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 477

Estamos abordando, portanto, formas de representar e nomear o outro enquanto padrões e valores de seus idealizadores, que não são os indígenas, mas um grupo específico intitulados indigenistas. Assim sendo, podemos dizer que na revista América indígena se forma um discurso visual sobre “o índio”.

De uma forma geral, as fotos juntamente com suas legendas (que apenas diziam que se tratavam de “tipos” ou “espécies” típicas de tal etnia), acabavam passando a ideia de que se tratavam de seres desligados de uma organização social, como se não fizessem parte de uma cultura e uma sociedade inscritas no presente. Essa visão dos “índios” levava a percebê-los mais como uma sobrevivência do passado do que como parte ativa da história, necessitando de ajuda externa para modificarem seu modo de vida e se integrarem na sociedade moderna.

A fotografia etnográfica

Para identificar o que podemos chamar de uma tipologia dessas imagens (as fotografias dentro do discurso visual da revista), utilizo o conceito de “fotografia etnográfica”.

O que define uma fotografia como etnográfica segundo os estudiosos em comunicação e especialistas em fotografias Paulo César Boni e Maria Moreschi (2007), é quando ela é utilizada como “instrumento principal na realização de um trabalho etnográfico”. (2007, p. 138) Essa fotografia pode ser inserida em uma variedade de lugares, como exposições, pesquisas, publicações como o caso da revista América Indígena, ou meras ilustrações.

Essas imagens fotográficas de indígenas podem ser classificadas como etnográficas, independentemente se foram ou não tiradas por antropólogos ou etnólogos. Como apontam os autores, o que define esse tipo de fotografia não é somente o responsável pelo fecho de luz inicial, o fotógrafo, mas sim o que ela pretende mostrar. Ou seja, são fotos etnográficas as fotografias que pretendem mostrar caracteres étnicos de um grupo ou indivíduo, o que é apontado pela revista estudada. IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 478

Manuel Gamio: atuações no Instituto Indigenista Interamericano (1942-1960)

O antropólogo e arqueólogo mexicano, Manuel Gamio nasceu na Cidade do México em 1883. Parte de sua formação acadêmica ocorreu na Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia, criada ainda antes da Revolução de 1910 e que teve por diretores o filólogo, etno-historiador e arqueólogo alemão Eduard Seler e o antropólogo teuto-americano Franz Boas, este último considerado o fundador da Antropologia culturalista. Gamio estudou com ambos no México e depois fez o doutorado nos Estados Unidos, onde foi aluno de Boas e acabou sendo muito influenciado por sua Antropologia culturalista1. Ao retornar ao México, Gamio adquiriu visualidade acadêmica, intelectual e política, sendo nomeado Diretor de estudos antropológicos da Secretaria de Agricultura y Fomento. (KOURÍ, 2010)

Gamio estudou Arqueologia e Antropologia e sempre se preocupou em seus estudos com as características necessárias para se “forjar” uma nação, ou uma “pátria”, aspecto este visível já no título de sua obra mais famosa, o conjunto de ensaios Forjando pátria: pro nacionalismo, de 1916. Por meio de vários estudos e escritos, chega à conclusão de que o problema indígena não era a inferioridade, ou seja, uma questão racial, mas sim o atraso, algo que poderia ter solução. Para isso era preciso compreender com rigor científico (antropológico) o estado evolutivo das diversas culturas indígenas, o que seria possível graças ao desenvolvimento de uma “Antropologia aplicada” (Kourí, 2010). Em um estudo sobre a compreensão antropológica de Gamio, o também antropólogo Gonzalo Aguirre Beltrán (1990) explica qual era sua compreensão sobre a evolução cultural. Gamio defende uma posição que pretende conciliar mudanças e permanências nas culturas indígenas. De acordo com Aguirre Beltrán

La formación arqueológica de Gamio le lleva a dividir la cultura en dos partes separadas, el material y la intelectual, y a sustentar la tesis de que el cambio afecta de modo independiente a cada una de las partes. [...] concluye que el cambio puede ser inducido en el aspecto material o en el intelectual según lo que requieran las metas de los programas de acción. Congruente con este esquema mecanicista de la cultura, sus rasgos constitutivos pueden ser substituidos sin mayor preocupación por rasgos de otra cultura cuando esto sea deseable para operar el cambio.(BELTRÁN, 1990, p. 155)

1 Para Boas as sociedades devem “ser consideradas em si e para si mesmas, cada uma dentre elas adquire o estatuto de uma totalidade autônoma.” E ainda, para compreender o lugar ocupado por esse costume, o antropólogo deve ir a campo, sendo ele mesmo o “teórico e o observador”, para dar conta cientificamente da sociedade estudada. Para maiores informações, ler: LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 58-60. IMAGENS DO “ÍNDIO” NA REVISTA AMÉRICA INDÍGENA: ÓRGANO TRIMESTRAL DEL INSTITUTO INDIGENISTA INTERA- MERICANO (1941-1960) LARISSA FOSS SOCHODOLHAK 479

Para Gamio, portanto, há uma centralidade da cultura material. Em um artigo de sua autoria, publicado em América Indígena, na edição de julho de 1942, ele propõe que no estudo das características culturais dos povos indígenas seja dada ênfase a estes aspectos, propondo que sejam identificados níveis de classificação de desenvolvimento com base em objetos da cultura material. (América Indígena, 1942, vol. 3, p. 15- 18)

Considerações finais

Em 1942, Gamio assume a diretoria do III e traz consigo toda experiência científica e intelectual anterior. Segundo Giraudo (2010) a direção de Gamio culminou na consolidação do indigenismo enquanto um “campo” profissionalizado, dotado de uma “lógica específica” (a científica).

Diante do que foi exposto, podemos pensar que o teor científico, antropológico, e a visão de cultura e evolução cultural de Gamio, juntamente com seu ideal de formação nacional se imiscuíram em seu trabalho de quase vinte anos na direção do III. Logo, podemos questionar: até que ponto essa visão afetou ou embasou o indigenismo do Instituto Indigenista Interamericano e o discurso da sua revista, incluindo seu discurso visual? Proposta esta que está sendo abarcada em meus projetos de pesquisa e que serão discutidos e aprofundados.

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A Aliança para o Progresso e intervenção política em Pernambuco (1961-1964)

LEONARDO LAGUNA BETFUER Mestrando em História Econômica junto ao Departamento de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), com apoio da Coordenação de Amparo à Pesquisa (CAPES), [email protected].

Os anos que se seguiram à Revolução Cubana (1959) foram os mais significativos para as relações entre os Estados Unidos e a América Latina no contexto da Guerra Fria. No imediato pós-2ª guerra, o governo norte-americano interpretou que a América Latina estaria segura da influência comunista. Em comparação à Europa e à Ásia, a região parecia ser um problema menor. O sucesso de Fidel Castro e a adoção do comunismo em Cuba, porém, afetou profundamente a política externa norte-americana para o continente. Isso porque a ilha não era o único lugar na região onde camponeses pobres eram explorados e reprimidos por seus governos. Sob esse aspecto, na visão do recém-empossado governo John F. Kennedy (1961-1963), todo o hemisfério poderia explodir em revoluções do tipo comunista (LEACOCK, 1990, 6-12; TAFFET, 2007, 7).

Dentro desse contexto, em março de 1961, o Presidente Kennedy lançou o maior programa de ajuda econômica para a América Latina da história. Batizado de Aliança para o Progresso, tal programa previa investimentos que chegariam a US$ 20 bilhões em uma década. A Aliança pretendia promover crescimento econômico e reforma política na América Latina. Oferecia apoio a regimes que respeitassem instituições democráticas, promovessem políticas de incremento do padrão de vida da população e apoiassem reformas sociais, como reformas tributária e agrária. Reforma democrática e desenvolvimento econômico com equidade social, portanto, eram os principais pontos da estratégia da Aliança para o Progresso contra a subversão comunista (TAFFET, 2007, 5; LOUREIRO, 2014, 323-327). A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 482

Este artigo analisa editoriais referentes a Aliança para o Progresso publicados pelo jornal Diário de Pernambuco, selecionados durante nossa pesquisa de mestrado, e conclui que o Diário de Pernambuco, em geral, defendeu a Aliança para o Progresso e os acordos diretos entre governadores estaduais brasileiros e os Estados Unidos. Afirma-se também que a Aliança foi usada pelo jornal para criticar o Presidente João Goulart e o governador Miguel Arraes, em consonância com as posições do consulado norte-americano no Recife e da embaixada no Rio de Janeiro.

O Brasil era visto como um país chave para o sucesso da Aliança na América Latina. Primeiro, pela posição geográfica estratégica, em virtude de sua proporção continental. Segundo, pela sua população, em torno de 70 milhões em 1960. Perder Cuba com uma população de 6 milhões já era ruim o bastante; a possibilidade de perder o Brasil para o campo comunista era considerado um desastre para os Estados Unidos (LEACOCK, 1990, 13-33). Além disso o Brasil era tradicionalmente visto como um aliado na região, devido às tradicionais relações “especiais” que os dois países tinham. Esta relação fortaleceu-se no começo do século XX por aquilo que estudiosos denominaram como uma “Aliança não escrita”, tendo seu ápice na participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados.1

A região Nordeste do Brasil, em especial, era motivo de grande preocupação para o governo norte-americano. O Nordeste era uma região extremamente subdesenvolvida no início dos anos 1960 – muito mais do que atualmente. Indicadores socioeconômicos regionais eram compatíveis com os de alguns dos países mais pobres da África e da Ásia. Relatos de jornalistas e políticos estadunidenses que visitaram o Nordeste, sobretudo as reportagens do jornalista do New York Times Tad Szulc em 1961, mexeram com a opinião pública nos Estados Unidos e levavam Washington a crer que a região estaria à beira de uma violenta insurreição. Nesse sentido, entende-se o porquê de o Presidente Kennedy ter feito do Nordeste o alvo de máxima prioridade para a Aliança (PAGE, 1972, 11-29; RABE, 1999, 170-71).

Apesar das expectativas e do notório interesse dos Estados Unidos com relação ao sucesso da Aliança no Brasil, e principalmente na região Nordeste, estudiosos enfatizam que os fundos da Aliança teriam sido usados como uma ferramenta para desestabilizar

1 Durante a Primeira República, as relações EUA-Brasil seguiram o modelo de uma aliança informal, ou como caracterizada por Bradford Burns, de uma “aliança não escrita”. Sobre a “Aliança não escrita” ver: BURNS, Bradford. The Unwritten Alliance. Rio Branco and Brazilian-American Relations. London, New York: Columbia University Press, 1966. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 483

o governo Goulart, particularmente quando se tratava de transferir recursos para governadores estaduais que se opunham ao presidente por meio de uma política conhecida como Ilhas de Sanidade. Essa campanha política contribuiu para o golpe que inaugurou a ditadura militar no Brasil em março de 1964.

Para Ruth Leacock (1990, 9), o projeto da Aliança foi modificado em resposta às pressões do Congresso e dos grupos de empresários norte-americanos. Especialmente no caso brasileiro, as empresas americanas desempenharam um papel importante na alteração de diretrizes de políticas e desempenharam um papel crucial na oposição dos Estados Unidos ao governo brasileiro. As políticas estatais e nacionalistas perseguidas pelo Brasil - como a expropriação de empresas norte-americanas e a possibilidade de aprovação de uma lei restritiva à remessa de lucros por empresas estrangeiras - desgastaram as relações entre o governo norte-americano e o Presidente Goulart. O programa da Aliança para o Progresso então, passou a ser utilizado para desestabilizar o governo Jango, através do financiamento direto de governadores anti-Goulart. O golpe de março de 1964 garantiu o Brasil como uma zona para investimentos corporativos norte-americanos e o isolou da influência de Fidel Castro.

Michael Weis (2001, 341) destaca que o governo Kennedy viu suas intenções frustradas pelas posições nacionalistas da Política Externa Independente (PEI)2 do governo brasileiro. Este, por sua vez, via na obsessão dos EUA com a Guerra Fria e com o liberalismo econômico um obstáculo ao desenvolvimento econômico do Brasil. Para o autor, a PEI comprometeu as chances da administração Kennedy de usar a Aliança como arma na Guerra Fria no hemisfério; além disso, ao frustrar a administração Kennedy, levou-a a se afastar dos políticos reformadores da América Latina e a se aproximarem dos militares para ajudar no isolamento de Fidel Castro.

Para Jeffrey Taffet (2007, 5), em vez de comprometer os recursos da Aliança com projetos humanitários, os Estados Unidos canalizaram seu dinheiro para projetos explicitamente políticos. Isso ocorreu, no caso do Brasil, através da política das Ilhas de Sanidade, que teriam surgido a partir de meados de 1963, à medida que o governo norte- americano comprometeu-se com uma posição cada vez mais anti-Goulart. Conforme

2 A PEI estabelecia princípios como o incremento das exportações brasileiras para todos os países, inclusive os socialistas, a autodeterminação dos povos e a não intervenção nos assuntos de outros países, aplicados inclusive em relação a Cuba. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 484

Taffet, o embaixador Lincoln Gordon assumiu a liderança no desenvolvimento dessa abordagem hostil, justificando sua oposição ao governo federal brasileiro ao sugerir, baseado em poucos indícios, que Goulart desejava criar uma ditadura no Brasil. Para Gordon, a solução teria sido promover e fortalecer os governadores anti-comunistas que poderiam desafiar o governo nacional.

Felipe Loureiro (2017, 12) afirma que as Ilhas de Sanidade tiveram três objetivos principais. Primeiro, constranger politicamente o governo Goulart. Segundo, fomentar candidaturas presidenciais favoráveis aos Estados Unidos nas eleições previstas para 1965. Terceiro, a partir de meados de 1963, usar os estados governados por políticos amigáveis como arma de defesa contra movimentos ilegais de Goulart e ao mesmo tempo como meio de desestabilizar seu governo.

Até hoje, porém, representantes do governo norte-americano não reconhecem que recursos da Aliança para o Progresso teriam sido utilizados para interferir na política doméstica brasileira. O embaixador norte-americano, Lincoln Gordon (2001, 102-111), por exemplo, afirmou que as Ilhas de Sanidade foram uma forma de evitar ao máximo a interrupção da ajuda econômica da Aliança para o Progresso ao Brasil. Segundo Gordon as Ilhas de Sanidade eram constituídas pelos estados mais bem administrados e tecnicamente melhor preparados para receber recursos, sem que, supostamente, critérios políticos tivessem sido envolvidos na alocação da ajuda econômica da Aliança. “Contrariamente a muitas das alegações que já foram publicadas, o governo americano não procurou debilitar o governo Goulart colocando-o sob pressão econômica”. Em vez de aplicar pressões econômicas destinadas a enfraquecer o governo Goulart, a política teria sido “manter a assistência econômica onde ela poderia ser eficaz” (GORDON, 2001,105-106).

Nesse sentido, a origem da assistência bilateral direta no Brasil e na região Nordeste estava no estado de Pernambuco, que era considerado absolutamente crucial por Washington, em razão de sua importância econômica, populacional e estratégica na região. O estado foi o primeiro a assinar um acordo com o governo dos Estados Unidos no âmbito da Aliança para o Progresso em junho de 1962.

Dois trabalhos se destacam ao analisar a Aliança para o Progresso em Pernambuco, “The Politics of Foreign Aid” de Riordan Roett e “The Revolution that Never Was” de Joseph A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 485

Page. Para Roett (1972, 10), o conservadorismo foi a marca do programa de ajuda externa no Nordeste brasileiro. Os Estados Unidos permitiram que a Aliança para o Progresso fosse utilizada para manter e fortalecer a ordem tradicional dominante. Incapazes de ajudar a suprir a necessidade básica de mudança e modernização, os Estados Unidos escolheram uma política no Nordeste de cooperação com as elites regionais e justificaram a política em termos de uma ameaça comunista.

Page (1972, 11) afirma que a Aliança se encontrou dividida entre seus objetivos publicamente declarados, humanitários e reformistas, e as considerações sobre a segurança dos Estados Unidos, tendo a última prevalecido. A Aliança para o Progresso buscou primeiro preservar o status quo e manter a ordem estabelecida. Os recursos da Aliança para o Progresso foram, em Pernambuco, utilizados para conter o crescimento político do governador Miguel Arraes e, do ponto de vista político, a Aliança obteve seus objetivos de manter o “status quo” na região Nordeste, que não se tornou “outra Cuba”.

Para além das questões relativas ao fracasso da Aliança, já amplamente discutidas pela historiografia, a utilização política da Aliança por grupos políticos e econômicos brasileiros foi muito pouco estudada. Sob esse aspecto, o jornal Diário de Pernambuco, além de fonte primária, pode ser também objeto de pesquisa, na medida que representa em suas páginas os interesses de grupos políticos e econômicos ligados aos setores sociais conservadores do status quo em Pernambuco. Tomado como objeto de estudo, o jornal é interpretado fundamentalmente como um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social. O Diário de Pernambuco apresentava a visão de mundo dos industriais e latifundiários, os quais eram mais próximos dos funcionários do consulado norte-americano (CAPELATO, 1988; PORFÍRIO, 2008).3

A análise da conjuntura dos eventos ligados a Aliança para o Progresso representados pelo jornal pode lançar luz a questões ligadas ao seu uso político por grupos políticos e econômicos nacionais. Para tanto, faz-se necessário primeiramente uma análise histórica do jornal, da sua organização interna, seus principais colaboradores e sua circulação.

3 Sobre o uso de jornais como fontes históricas ver: CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Alfa e Ômega, 1988 e LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 486

Fundado ainda nos tempos do Império, em 7 de novembro de 1825, o Diário de Pernambuco é o jornal mais antigo em circulação na América Latina. Durante a maior parte da primeira República o jornal assumiu a posição de órgão oficial do governo pernambucano, publicando atos de governo, notas fúnebres e anúncios. Em 1931, foi comprado pelo grupo Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand. O jornal foi crítico aos rumos da Revolução de 1930 e demonstrou simpatia pela Revolução Constitucionalista de 1932. Manteve-se na oposição a Getúlio Vargas e ao interventor estadual Carlos Lima Cavalcanti (ABREU, FERREIRA e BEZERRA, 2010).

Durante a ditadura do Estado Novo o jornal reduziu o noticiário político a publicação de atos oficiais e discursos laudatórios de autoridades. Em 1945, combateu o Queremismo. No mesmo ano foi fechado e Aníbal Fernandes, redator-chefe na época, preso. Nos anos 1950, o jornal ficou marcado pelo Anti-getulismo e fez oposição ao governo de Agamenon Magalhães, do Partido Social Democrata (PSD), no estado de Pernambuco (ABREU, FERREIRA e BEZERRA, 2010).

Em 1952, após a morte de Agamenon o jornal apoiou o governo de Etelvino Lins, União Democrática Nacional (UDN), apoiado pelo PSD, e desde então identificou-se com as posições da UDN. Em 1954, nas eleições para governador do estado apoiou o candidato derrotado João Cleofas (UDN). O jornal então passou a fazer oposição ao governo de Cordeiro Farias (PSD). Em 1958, apoiou a chapa Oposições Unidas que lançou a candidatura de Cid Sampaio (UDN). O jornal manteve o apoio a chapa quando a mesma lançou Miguel Arraes a prefeitura do Recife, mas passou a criticar o prefeito quando esse se aproximou das esquerdas. O jornal manteve o apoio a Cid Sampaio durante todo seu governo. Na esfera federal, apesar de ter apoiado a candidatura de Juarez Távora (UDN), não se opôs ao governo Juscelino Kubitscheck (PSD). Em 1960, apoiou a candidatura de Jânio Quadros (UDN) à presidência da República (ABREU, FERREIRA e BEZERRA, 2010).

Nos anos 1960, o jornal era líder do Nordeste e do Norte brasileiro (NASCIMENTO, 1963, 179). José Andrade de Almeida Castro era o diretor do jornal, qual contava com uma longa lista de colaboradores, dentre os quais se destacam Barreto Leite Filho, Murilo Marroquim, Eugênio Gudin, Geraldo Banas, Austregésilo de Ataíde, Aníbal Fernandes, Teophilo Andrade, João Domingues da Fonseca, Adelmar da Costa Carvalho, Mario Aurélio A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 487

Alcântara, Gilberto Freyre e Assis Chateaubriand.4 Durante os dias da semana as edições traziam dois cadernos, geralmente contendo entre 16 e 18 páginas. A edição de domingo possuía quatro cadernos e circulava com mais de 40 páginas.

O primeiro caderno da edição semanal trazia na capa a notícia principal na parte superior, centralizada, acompanhada de uma imagem. A segunda página trazia as notícias internacionais e uma coluna assinada por Aníbal Fernandes chamada “Momento Internacional”. A terceira página trazia o noticiário nacional. A quarta trazia dois editorias e as colunas com artigos de opinião dos principais colaboradores do jornal. Ao alto, com título em quatro colunas aparecia o artigo de Assis Chateaubriand. A página cinco continha as notícias da região e a coluna “Ontem, no Palácio”, relacionada aos atos do governador. A sexta página trazia duas colunas, “Vida Escolar” e “Diário Social”. A sétima página era dedicada à seção policial e as páginas oito e nove traziam as conclusões de outras seções. As páginas dez e onze dedicavam-se ao noticiário esportivo. O caderno dois trazia basicamente anúncios, tirinhas, colunas de artes e cinema, e também relacionadas a cidades da região e outros estados, como era o caso de “de Olinda” e “Rio grande do Norte”. A última página trazia colunas intituladas “Periscópio”, “Câmara Municipal” e “Na assembleia Legislativa” com notícias relacionadas ao legislativo estadual e municipal.

A consulta ao Diário de Pernambuco foi feita por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Através de seu mecanismo de busca por palavras chave foram encontradas e analisadas 515 matérias a respeito da Aliança para o Progresso no período entre janeiro de 1960 e maio de 1964. Foi constituída uma longa série de pesquisa entre artigos, editoriais e notícias. Assim foi possível reconstruir a conjuntura apresentada pelo jornal a respeito da Aliança para o Progresso.

A seguir apresentam-se quatro editoriais selecionados entre os anos de 1961 e 1964 onde se permite concluir que o Diário de Pernambuco usou seus editoriais para defender a Aliança para o Progresso contra o Presidente Goulart e o governador Miguel Arraes.

O termo Aliança para o Progresso apareceu pela primeira vez no Diário de Pernambuco em 19 de outubro de 1960. Sob o título de “Kennedy: Estados Unidos sofrerão derrotas

4 Os colaboradores do jornal apresentavam um perfil conservador. A título de exemplo, Assis Chateaubriand e seus jornais eram antigetulistas e viam em Goulart o herdeiro de Vargas. Gilberto Freyre era talvez a personalidade mais ilustre do Recife e apoiou o golpe militar de 1964. Eugênio Gudin era economista de linha liberal e foi ministro da fazenda no governo Café Filho. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 488

desastrosas na América Latina”, o jornal reproduziu trechos do discurso do candidato Democrata à presidência dos Estados Unidos. Nele, Kennedy responsabilizou seu adversário Richard Nixon pelo fracasso da política externa dos Estados Unidos para a América Latina e apresentou aquela que seria sua nova política para o continente, uma Aliança para o Progresso. “Uma aliança de nações com o interesse comum na liberdade e no progresso econômico” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 19 de outubro de 1960).

Durante 1961, a administração Kennedy aproximou-se do Nordeste brasileiro por meio da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Em fevereiro esteve na região uma missão do programa Food for Peace, e, em outubro, outra missão comandada pelo embaixador Merwin Bohan, cujo objetivo foi a formulação de um plano de desenvolvimento regional. Ainda em 1961, reuniram-se em Washington o Superintendente da SUDENE, Celso Furtado, e o Presidente Kennedy para discutir a participação norte-americana no Plano Diretor da SUDENE (ROETT, 1972).

A Aliança para o Progresso voltou a aparecer nas páginas do jornal em 14 março de 1961, em decorrência do lançamento do programa para o Corpo Diplomático Latino- Americano, na Casa Branca. A referida matéria apareceu na parte inferior da capa, ao lado da manchete “Julião importa Fidel Castro”, sob o título “Kennedy: substancial ajuda à América Latina”. Desde então, a Aliança apareceu quase que diariamente nas páginas do Diário durante o ano de 1961, e foi tratada sistematicamente como a “Aliança do Presidente Kennedy”. O que transmitia a ideia de que a Aliança era uma iniciativa apenas dos Estados Unidos, sem qualquer ativismo da América Latina (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 14 de março de 1961).

O ano de 1962 foi fundamental para o desenvolvimento das ações norte-americanas através da Aliança para o Progresso no Nordeste. A segunda reunião de Punta del Este, realizada em janeiro, deixou claro ao Presidente Kennedy que seria impossível utilizar a Organização dos Estados Americanos (OEA) como instrumento conjunto para isolar Cuba do restante do hemisfério. A posição brasileira de neutralidade, adotada por outros países importantes, como Argentina, México e Chile, frustraram a ambição do governo Kennedy de obter um consenso quanto a expulsão de Cuba da OEA. Ainda que Cuba tenha sido expulsa da OEA, a neutralidade de países importantes, como o Brasil, reduziu a legitimidade da ação perante a opinião pública. Além disso, a renúncia de Jânio Quadros A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 489

em agosto de 1961 e a subsequente administração Goulart preocupavam Washington devido as bases trabalhistas desta, consideradas muito à esquerda por políticos norte- americanos. A encampação de empresas norte-americanas (quais?) e a possibilidade de aprovação de uma lei de restrição da remessa de lucros de empresas privadas ao exterior despertaram a oposição de empresários norte-americanos. Estes, para defender seus interesses no Brasil, pressionaram o governo Kennedy para suspender a ajuda financeira a países que desapropriassem empresas norte-americanas sem a imediata e justa indenização. Como resultado dessa pressão foi aprovada a emenda Hickenlooper (LEACOCK, 1999; WEIS, 2001).5

A partir do fim de janeiro de 1962, o Diário de Pernambuco passou a usar a Aliança para o Progresso para atacar a política externa do Presidente Goulart. Nesse contexto, de desconfiança por parte de Washington em relação a administração de João Goulart, o Diário de Pernambuco publicou, em março, o editorial “Razões de Desconfiança”. O editorial defendeu a posição do Senado norte-americano de desconfiança quanto a Goulart, argumentando que essa era também a opinião dos brasileiros sensatos, no entanto o editorial defendeu a manutenção da ajuda econômica através da Aliança, além de exaltar a disposição de ajudar do governo norte-americano, como pode ser observado no trecho destacado abaixo:

Em seu editorial, (...), o grande matutino de Nova York, refere-se a fraqueza da posição do presidente João Goulart e a ineficiência do Congresso para agir com seriedade e rapidez, no sentido de aparelhar o Brasil das leis indispensáveis as profundas reformas que, aqui como lá fora, são reclamadas com urgência. (...) Os receios do New York Times são amplamente partilhados pela opinião sensata do Brasil. Apenas achamos que as nossas dificuldades e os perigos a que estamos sujeitos não se tornarão menores se, em vez de ajuda, encontrarmos da parte de nossos amigos americanos apenas recriminações que, embora parcialmente justificadas, não tem forças para mudar a natureza dos graves problemas que teremos de resolver (DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Razões de Desconfiança. 1962, 3/mar.)

No plano estadual, desde 1961, o consulado norte-americano, em Pernambuco, mostrou-se preocupado com a candidatura de Miguel Arraes para governador do estado. Em 31 de março de 1962, encontraram-se o Cônsul Geral dos Estados Unidos no Nordeste

5 A emenda Hickenlooper determinava a suspensão de qualquer ajuda financeira a países que desapropriassem bens norte-americanos sem indenização imediata, adequada e efetiva. No Brasil, Leonel Brizola, enquanto governador do Rio Grande do Sul, havia desapropriado duas subsidiárias norteamericanas, a ITT e a AMFORP e por isso a ajuda ao governo federal foi suspensa. Para mais ver: LEACOCK, Ruth. Requiem for Revolution: The United States and Brazil, 1961–1969. Kent and London: Kent State University Press, 1990. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 490

Delgado Árias, o Secretário de Estado de Pernambuco, Manuel Brotherhood, e o Chefe da Casa Civil, Jordão Emerenciano, para tratar da possibilidade de vitória de Miguel Arraes. Foi dito ao cônsul que o governador Cid Sampaio apoiaria João Cleofas, indicado pela UDN. Ao passo que o cônsul afirmou ser necessário uma aliança capaz de derrotar Arraes.6

Nesse sentido, os Estados Unidos assinaram um acordo abrangente com o estado de Pernambuco que, entre outros, previa a construção de salas de aula, treinamento de professores, programas de alfabetização para 150 mil adultos e fornecimento de livros didáticos. No dia 05 de junho de 1962 foi assinado o Pernambuco Aliance for Progress Elementary and Basic Education. Na época, o então governador Cid Sampaio celebrou contratos compreendendo as seguintes áreas: educação, saúde, habitação popular e colonização (BARROS, 2017).

O Diário de Pernambuco saiu em defesa dos acordos entre o governador Cid Sampaio e o governo dos Estados Unidos em editorial intitulado “Patriotismo e sectarismo”. O editorial usa da ironia para descreditar os críticos da ajuda norte-americana, associando essa opinião a uma “esquerda-comunista”. É interessante notar no editorial reproduzido abaixo que a cooperação norte-americana é tratada como “amiga” e os críticos da ajuda como “sectaristas ideológicos”, cuja opinião não passa de “histericismo”.

Os acordos firmados pelo Embaixador Lincoln Gordon com o governo pernambucano de certo irão servir para as conhecidas distorções dos falsos patriotas que, enchendo a boca dos velhos slogans de uma tática sectarista, se comprazem em amesquinhar os objetivos da Aliança para o Progresso. Muito conhecida a estratégia destes fabulosos salvadores da pátria e defensores dos interesses do povo: se os Estados Unidos demoram ou dificultam uma ajuda, um plano de assistência, uma política voltada aos interesses da região, é porque interessa ao capitalismo do Tio Sam manter o Brasil nessa situação de atraso e de miséria, campo fértil a proliferação de “trusts”, a exploração do capital estrangeiros, ao dissoramento das energias vitais do país. Se, porém, carreia para o Brasil recursos monetários e técnicos, então é o caso de temer estes “presentes de grego”, pois na verdade o que o ianque desalmado deseja é enraizar, no meio pobre, os tentáculos de polvo de sua dominação agressiva e sem entranhas. Mas acima dessas explosões retumbantes do sectarismo ideológico impenitente, pairam os fatos concretos e objetivos: na hora em que o Brasil se dispuser a dar à ajuda americana uma destinação severa, eficiente e útil, não nos faltará a cooperação amiga dos Estados Unidos, seja nas soluções de governo

6 Documento gentilmente cedido pelo nosso orientador Professor Doutor Felipe Loureiro, obtido em pesquisa de campo realizada no ano de 2014. Telegram n° 273, Recife to Department of State and Rio de Janeiro and Brasília, Apr 04, 1962, CSEF, folder “Elections 1962 - Pernambuco”, Box 3, RG 84, NARA. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 491

a governo, seja de entidades privadas, como o Binter e o Bid, cuja boa-vontade se acha positivada em dezenas e dezenas de empréstimos para fins reprodutivos. Cerca de 800 milhões é quanto Pernambuco vai receber por força dos acordos firmados entre o sr. Cid Sampaio e o Embaixador Gordon. E apenas é de lamentar a estreiteza do partidarismo odiento, mesquinho e negativista, haja emperrado o empréstimo que o governo estadual tentou contrair para levar a cabo o plano rodoviário do DER. [...] A propaganda esquerda-comunizante irá, estamos certos, amesquinhar, distorcer deturpar o sentido desta ajuda, mas a opinião tem olhos para ver e a sensibilidade para medir onde é que estão os verdadeiros defensores da Nação. Contra palavras e histericismos ocos, a Aliança exibe fatos. E isto Basta (DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Patriotismo e Sectarismo. 1962, 12/jun.).

Em relatório de 18 de junho de 1962, o economista Roberto de Jesus Toro ao Coordenador da Aliança para o Progresso, Teodoro Moscoso, sugeriu algumas diretrizes à Aliança para o Progresso em relação a lideranças e governadores brasileiros:7

Deve-se estabelecer uma política de cooperação ativa e rápida para líderes amigáveis ​​construtivos, conceder o tratamento da burocracia para os líderes demagógicos neutros e o tratamento “frio” para nossos inimigos. Na prática, isso significaria que os pedidos financeiros de grupos, comoo COPEG (Companhia Progresso do Estado da Guanabara) deveriam ter aprovação quase instantânea, com o menor tempo de análise. A mesma política seria válida para os homens como o Governador Juraci Magalhães da Bahia, o Governador Cid Sampaio de Pernambuco e outros. A maioria desses líderes está impaciente com o que o ex-ministro das Finanças, Clemente Mariani, chamou de “... burocracia excessiva na Embaixada dos EUA”. O tratamento “frio” seria reservado para homens como o Governador Leonel Brizola e o Prefeito Miguel Arrais de Recife.8

A mensagem traduz perfeitamente o comportamento que seria adotado pelos agentes públicos norte-americanos nas suas relações com governadores e políticos brasileiros. Cada vez mais, a Aliança para o Progresso seria utilizada como instrumento político pelo governo norte-americano. Fica claro a intenção de favorecer Cid Sampaio, quem seria concedido tratamento amigável, e conter Miguel Arraes, a quem seria dado um tratamento “frio”. Ainda assim, Miguel Arraes foi eleito governador de Pernambuco.

Empossado em 1963, Miguel Arraes foi hostil à Aliança para o Progresso. Nomeou uma comissão de governo para investigar os acordos realizados entre a administração Sampaio e os Estados Unidos. Em maio, os acordos foram denunciados por ilegalidade;

7 Roberto Jesus Toro era porto-riquenho e economista pela Universidade da Pensilvânia. Serviu as forças armadas norte-americana durante a 2ª Guerra. Na época, era presidente do Banco de Ponce. Teodoro Moscoso também era porto-riquenho e antes de ser nomeado coordenador da Aliança para o Progresso, serviu o governo Kennedy como embaixador na Venezuela.

8 Documento obtido por meio da iniciativa Open Archives da Universidade de Brown com a Universidade Estadual de Maringá. Memorandum, Roberto de Jesus Toro to Teodoro Moscoso, Jun 18, 1962. Jesus Toro, Roberto de, 1918-2008, “Report on Brazil” (1962). Opening the Archives: Documenting U.S.-Brazil Relations, 1960s-80s. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://repository.library.brown.edu/studio/ item/bdr:671842/ Acesso em: 29/11/17. A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 492

por sua vez, o governo norte-americano trabalhou ativamente contra Arraes, desde o pleito para governador. Os recursos da Aliança para o estado foram bloqueados e o pouco que o estado recebeu foi devido aos acordos assinados pela administração Sampaio. Nenhum novo acordo foi assinado com o governo de Pernambuco. Os Estados Unidos decidiram enfraquecer o governo Arraes através do fortalecimento de outras lideranças no Nordeste, notadamente o governador do Rio Grande do Norte, Aluísio Alves. No plano federal, os Estados Unidos procuraram fortalecer com recursos a administração de Carlos Lacerda, na Guanabara. Isso foi feito através da Aliança e da aplicação de recurso em estados considerados Ilhas de Sanidade (PAGE, 1972).

Em julho de 1963, o Ministro da Justiça, Abelardo Juremá, proibiu que os estados da federação celebrassem acordos diretamente com qualquer entidade estrangeira. Enquanto Miguel Arraes aplaudiu o decreto do Ministro da Justiça, Ildo Meneghetti, governador do Rio Grande do Sul, Carlos Lacerda, governador da Guanabara, e Aluísio Alves, governador do Rio Grande do Norte, e Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, ameaçaram renunciar aos seus respectivos cargos caso o decreto não fosse revogado. Notadamente os governadores estavam entre os estados considerados Ilhas de Sanidade. O Diário de Pernambuco saiu em defesa da Aliança e dos governadores beneficiados, contra o Ministro da Justiça e o governador Miguel Arraes, através de um editorial publicado no dia 9 de julho, “Apoio à ilegalidade”:

Não causou surpresa o telegrama que o sr. Miguel Arraes enviou ao Presidente da República, João Goulart, congratulando-se pela proibição das negociações financeiras dos Estados com entidades internacionais. As entidades internacionais ou potências estrangeiras contra as quais o chefe do executivo pernambucano se colocou em luta se resumem nos Estados Unidos, cujo programa Aliança para o Progresso se propõe a elevar os níveis de educação, combater a miséria e proporcionar bem- estar aos povos do hemisfério. Esses objetivos, se trazidos ao nordeste com ajuda norte-americana, não poderiam agradar a ideologia, de todo mundo conhecida, do sr. Miguel Arraes. Foi ele quem iniciou aqui o duplo combate a Aliança e ao Estado da Guanabara. Disse que através do programa norte-americano, que sua marchinha chama de “Aliança para o Regresso”, o Estado vinha negociando diretamente com “potência estrangeira” e isso era ilegal. Na mesma ordem de ideias – para atingir a Guanabara, onde o sr. Carlos Lacerda faz uma das maiores administrações do país – acusou a Aliança de discriminar na distribuição de suas verbas. O que parece contraditório nessa campanha – acusar o Estado por negociar diretamente e acusar a Aliança por fornecer maior ajuda a Guanabara – uniu-se no propósito único do governador, que é desacreditar o programa de ajuda influindo nesse sentido, o governo da República. O sr. João Goulart apressou-se em atender aos caprichos do governador pernambucano e imediatamente após a recomposição do Ministério ordenou a sr. Abelardo Juremá que enviasse circular a todos os Estados, determinando que quaisquer negociações com países estrangeiros passassem a ser feitas A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 493

pelo Itamarati. O que seu antecessor deve ter feito, o sr. Juremá não se deu ao mínimo trabalho de fazer: examinar a legalidade dessa providência que não encontra amparo na Constituição Federal, cujo artigo 63, inciso II, diz que “compete privativamente ao senado autorizar os empréstimos externos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Desse modo, o Ministro da Justiça atenta contra a Carta Magna e a soberania do senado, baixando uma determinação que flagrantemente conflita com a autonomia dos Estados. E esse atentado foi imediatamente repelido a altura pelos governos da Guanabara, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, que vêm protestando energicamente contra a invasão de suas atribuições. Já o sr. Miguel Arraes, inspirador da ilegalidade, sozinho exalta com a circular, não se importando com violações da Constituição, nem com a autonomia do Estado. Para ele o que vale é combater os Estados Unidos, que querem ajudar na erradicação da miséria e se a circular pode ser uma barreira a essa ajuda, tudo está bem. O resto é paisagem (DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Apoio a ilegalidade. 1963, 9/jul.).

O editorial acusa Miguel Arraes de apoiar a ilegalidade, enquanto o governador acusava os acordos firmados com o estado de serem inconstitucionais. Ainda, acusou o governador de ter por interesse combater os Estados Unidos e insinuou que Arraes fosse adepto do comunismo ao referir-se a “ideologia de todos conhecida do governador”. Por fim, o jornal elogia a administração de Carlos Lacerda na Guanabara e o cita como o principal prejudicado pela proibição. No dia 12 de julho, sob o título de “Ajuda ao Exterior”, outro editorial referiu-se novamente a ajuda estrangeira direta aos estados. Mais uma vez o jornal saiu em defesa da Aliança. Segundo o editorial, a proibição tinha dois objetivos: sabotar a Aliança para o Progresso e prejudicar o governador Carlos Lacerda, notadamente o principal opositor de Goulart e principal receptor de recursos da Aliança no Brasil (DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Ajuda Externa. 1963, 12/jul.).

Conclusão

Pode-se concluir, em virtude das reflexões acerca dos editoriais apresentados, que há sólidas evidências para afirmar que o Diário de Pernambuco defendeu a Aliança para o Progresso e os acordos diretos entre os governadores e os Estados Unidos. Isso fica evidente no editorial publicado no dia 12 de junho, no qual o jornal saiu em defesa dos acordos entre o governador Cid Sampaio e os Estados Unidos. Naquele momento o consulado norte-americano no Recife e o Diário de Pernambuco estavam empenhados em impedir a vitória de Miguel Arraes nas eleições para o governo do estado.

Também pode-se verificar que a Aliança foi usada pelo jornal para criticar o Presidente João Goulart e o governador Miguel Arraes, em consonância com as posições A ALIANÇA PARA O PROGRESSO E INTERVENÇÃO POLÍTICA EM PERNAMBUCO (1961-1964) LEONARDO LAGUNA BETFUER 494

do consulado norte-americano no Recife e da embaixada no Rio de Janeiro. O Diário de Pernambuco tratou a tentativa de impedir a interferência norte-americana nos assuntos políticos do país, por meio da Aliança, como um ato que visava principalmente prejudicar a administração do governador da Guanabara Carlos Lacerda, sendo que este era a principal aposta do governo norte-americano nas eleições para presidente que ocorreriam em 1965. O Diário de Pernambuco se manteve fiel as posições políticas da UDN e do governo norte-americano durante todo o período analisado por este trabalho.

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Arqueologia e História da Mineração no Velho e no Novo Mundo: contribuições interdisciplinares aos contextos coloniais americanos e metropolitanos

LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI Doutora em Antropologia, com ênfase em Arqueologia (UFMG), Mestra em História Social da Cultura (UFMG), Licenciada em História (UFMG), cofundadora e coordenadora de projetos do Instituto de Inovação Social e Diversidade Cultural (INSOD). E-mail: [email protected].

Introdução

Esta comunicação pretende discutir questões relacionadas às primeiras incursões de mineração do ferro nas Minas Gerais, com seus posteriores desdobramentos na siderurgia, que promoveram o que poderia se chamar de “a revolução industrial brasileira”. Serão especialmente abordadas questões relacionadas à história da mineração do ferro no contexto das Minas Gerais, bem como as técnicas e tecnologias relacionadas às localizações privilegiadas da atividade mineradora dos séculos XVIII e XIX cujas jazidas, posteriormente, foram retomadas por grandes projetos minerários ao longo dos séculos XX e XXI que, atualmente promovem situações de agravados conflitos ambientais. Além disso, serão propostas discussões sobre as possibilidades de abordagens no tocante à arqueologia da mineração e da siderurgia no Brasil e nas Américas, por meio do estudo de caso do distrito de Miguel Burnier, em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil, fundamentalmente pelo Sítio Arqueológico da Fazenda dos Caldeirões.

Os contextos de conflito ambiental

O contexto de expansão da atividade mineradora em grande escala na região do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero em Minas Gerais vivido nas últimas décadas e seus desdobramentos relacionados aos impactos ambientais de grande envergadura tem provocado inúmeras situações de conflito. Tais enfrentamentos se situam não somente ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 497

na instância econômica, mas se refletem nas bruscas alterações dos modos de vida locais, nas disputas territoriais, nas modificações do meio-ambiente, na destruição do patrimônio cultural, nos conflitos de direitos à memória. Esse contexto de disputas de lógicas diferenciadas e contrastantes da noção de desenvolvimento e da apropriação do ambiente provoca confrontos e refletem práticas de desigualdades e violências epistêmicas, em grande medida resultado de um conjunto de normas que construídas e pactuadas em níveis nacional e internacional que privilegiam a manutenção de interesses hegemônicos, associados à distorção dos mecanismos de participação política que começaram a ser instituídos no período pós-ditatorial (MALERBA, 2014).

As relações assimétricas estabelecidas entre as partes envolvidas com os processos de licenciamento ambiental acabam por definir o direito à vida ou à morte do patrimônio cultural. As ressignificações dos sujeitos, de suas histórias, de suas memórias e de seu patrimônio são chanceladas por referências que geralmente não são as mesmas da comunidade impactada pelo empreendimento, ao passo que o Estado estabelece marcos regulatórios da exploração ambiental que podem ser comparados às táticas de guerra por contabilizar, destrinchar, esquadrinhar, (in)visibilizar e controlar o território, o que estabiliza as diferenças e legitima as desigualdades ao mobilizar a cultura para fins tão instrumentalizados.

O patrimônio cultural e, especialmente no contexto estudado o patrimônio arqueológico, mostra-se um empecilho ao desenvolvimento econômico em regiões de mineração de ferro em Minas Gerais. E os estudos técnicos de viabilidade ambiental dos licenciamentos ambientais tendem a desqualificar tais referências culturais, de modo a promover diversas maneiras de apaziguamento de sua importância para a memória e história locais, regionais e nacional. Há vínculos comerciais diretos entre as consultorias e as empresas contratantes, cujas contradições dessa prática influenciam diretamente as formas de conhecimento, interpretação, apropriação, divulgação e proteção do patrimônio cultural.

As múltiplas temporalidades do que identifica enquanto patrimônio cultural e, fundamentalmente dos bens arqueológicos, dialogam e se contrastam de forma cabal com as variáveis configurações do território. Ao fim e ao cabo, vislumbra-se a quebra da cumplicidade existente na consagração de uma determinada hegemonia do conhecimento do patrimônio cultural – um específico savoir-faire que promove violências epistêmicas e a deliberada destruição de referências culturais – nos estudos dos licenciamentos ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 498

ambientais de grandes empreendimentos filiados à mineração de ferro no estado de Minas Gerais, como é o caso de Miguel Burnier.

São muito variadas as possibilidades e formas de se invisibilizar, e a violência epistêmica, segundo Spivak (2010), constitui-se uma forma de se exercer o poder simbólico. Spivak argumenta em seu texto que o subalterno não pode falar e, quando tenta fazê-lo, não encontra meios para se fazer ouvir. São tortuosos, complexos, incompreensíveis, obscuros, obtusos os procedimentos existentes nos licenciamentos ambientais no Brasil. Há diversos diplomas legais que concedem o ordenamento jurídico ao patrimônio ambiental nacional, ao qual o patrimônio cultural se inscreve e que inclui, nesse último, os bens arqueológicos.

Os estudos de impacto ambiental são peças chaves para a verificação da viabilidade ambiental da possível instalação de um empreendimento, bem como para se estabelecer medidas mitigadoras e compensatórias em casos específicos, de forma a tentar compatibilizar o exercício das atividades econômicas com a preservação do meio ambiente, o que inclui o patrimônio cultural. O ordenamento jurídico brasileiro, por força do princípio da prevenção ou da cautela, exige a elaboração de estudo prévio de impacto ao meio ambiente (EPIA) para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental.1

Levando-se em consideração as características, peculiaridades e possíveis impactos da atividade ou da natureza do empreendimento, podem ser estabelecidos procedimentos para o licenciamento ambiental mais simplificados – como o Relatório de Ausência de Impacto Ambiental Significativo (RAIAS) ou o Relatório Ambiental Preliminar (RAP) – ou mais complexos – a exemplo do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).2

A proteção do meio ambiente é de competência concorrente da União e dos Estados, cabendo à União o estabelecimento de normas gerais. Seja qual for a modalidade e a complexidade dos estudos técnicos, estes são peças indispensáveis ao subsídio prévio para a análise da concessão ou não do ato autorizativo requerido de instalação, operação

1 As normas federais que disciplinam o estudo de impacto ambiental são fundamentalmente: Art. 225, § 1º, IV da CF/88; Lei 6.938/81; Decreto 99.274/90; Resolução CONAMA 001/1986.

2 Resolução CONAMA 01/86; Resolução CONAMA 10/88; Resolução CONAMA 13/90; CONAMA 237/97. Resolução CONAMA 347/04. ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 499

ou ampliação de uma atividade ou empreendimento.3 Mas, nos casos em que a legislação federal prevê a exigência do processo de licenciamento ambiental completo, não pode ser isento ou passível de processo menos rigoroso o licenciamento por ordenamento jurídico específico dos Estados e dos municípios, correndo o risco de pôr em xeque o princípio de legalidade e o princípio da obrigatoriedade, que preveem que não se podem desviar da lei ou dos princípios especiais que regem a matéria casos excepcionais.

Em se tratando de empreendimentos dedicados especificamente à extração e beneficiamento de minério de ferro, considerada “uma das mais impactantes atividades minerárias em curso em Minas Gerais e que vem degradando enormemente nosso patrimônio ambiental”, há a exigência do licenciamento ambiental clássico, ou seja, um estudo mais complexo (MPMG, 2010, p.07). Tal questão se desdobra em áreas de ocorrência de minério de ferro que são também de alto potencial de ocorrência de patrimônio espeleológico e arqueológico, cujos impactos negativos estão diretamente associados às atividades de perfuração de rochas, desmonte por explosivos, tráfego de caminhões e equipamentos de lavra. São vários os agentes e agências em diversos âmbitos que atuam em foco nas questões específicas relacionadas ao patrimônio arqueológico no contexto do licenciamento ambiental.

Nesse jogo de luz e sombras, a quem interessa preservar o patrimônio cultural brasileiro? E, a quem interessa ainda mais promover a sua morte? As relações assimétricas estabelecidas entre as partes envolvidas com os processos de licenciamento ambiental acabam por definir o direito à vida ou à morte do patrimônio cultural. Não é menos relevante relembrarmos aquelas já muito estudadas relações entre a preservação da história, memória e, portanto, do patrimônio cultural e do território, como bases norteadoras das identidades. Balizas temporais e espaciais conformam a noção de identidade, mas e quando não as temos? Ou quando não podemos acessá-las? Ou quando estão fragilizadas, postas em xeque?

É relevante sublinhar que Appadurai (1997) destaca ainda que a territorialidade, essa dimensão da nação moderna, é relevante para a análise no contexto pós-colonial, haja

3 Nos termos do art. 1º, I, da Res. CONAMA 237/97, Licenciamento Ambiental é o procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso. ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 500

vista a implosão das referências territoriais na visão pós-moderna – o que o autor trata de translocalidades – que tornam as referências culturais nacionais frágeis e, portanto, redefinem as relevâncias geográficas nos contextos pós-nacionais. A violência epistêmica, como dito, é uma forma de invisibilizar o outro, expropriando a sua possibilidade de autodeterminação, por meio de processos de emenda, edição, apagamento e até o anulamento dos sistemas de representação, que incluem o registro e a memória da experiência, solapando os mecanismos de comunicação e de visibilização das diferentes concepções de mundo, modos de ser e de fazer territorializados.

Então, quem tem permissão de narrar e de forma narrar a crônica história de Miguel Burnier?

Figura 1 - Geolocalização do distrito de Miguel Burnier em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.

Elaboração: Samuel A. Akinruli, 2018

Os arruinamentos e suas formas de resistência

Miguel Burnier padece de uma afluência de arruinamentos sucessivos e repentinos, ao passo que a proteção de seus bens não segue na mesma velocidade. Realidade que, entre outros aspectos, está ligada à situação de conflito ambiental vivido pela comunidade que se iniciou com o fechamento da Barra Mansa no ano de 1996, em um continuum já (pré)definido para a instalação da mineração Gerdau S. A. É complexo definir, identificar, registrar os vestígios arqueológicos nesse contexto, em que o ambiente construído, juntamente com seu universo simbólico, é atacado por violentas estratégias de aniquilamento, seja na liquidez da alteração da rotina de uso de imóveis, em usos ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 501

e desusos abruptos, e na ocupação dos locais de sociabilidade da coletividade, seja na estratégia de terra arrasada quando não sobra pedra sobre pedra. Ademais, as diversas estratigrafias que constituem os palimpsestos da memória em Miguel Burnier confundem, mixam e misturam as temporalidades, promovendo uma descontinuidade histórica e, portanto, uma atemporalidade das marcas da paisagem.

No panorama da arqueologia pós-colonial, o entendimento destes contextos sociais e interpretativos é pauta para (re)definições de métodos e técnicas, mas, para além, para (re) definições de epistemologias e agendas. Os arqueólogos George Nicholas e Julie Hollowell ao se perguntarem “why archaelogy is not yet postcolonial”, afora diversas questões apontadas em seu texto, eles indicam que historicamente a “archaelogy has served the needs of the nation-state and those in positions of power and privilege” e que, frequentemente, “work as technicians of the state, unser a system of ‘governmentality’ (...) implicit presumption of privilege justified by appeals to intellectual and scientific authority” (NICHOLAS & HOLLOWELL, 2007, p.60). Justaposta a estas realidades do campo da arqueologia, tem-se a dinâmica de pouca acessibilidade das informações produzidas pelos arqueólogos, cujas limitações contribuem para a ideia de uma autoridade irrefutável e, portanto, uma especialização que reflete um conhecimento acima de qualquer suspeita e questionamento.

A leitura sobre a paisagem de Miguel Burnier marca prioritariamente um cenário de expressão manifesta da mineração, motivo determinante da ocupação colonial, quando aqueles arrabaldes passaram a ser conhecidos por São Julião. Em suas diversas estratigrafias, o terreno registrou a presença desde os colonos portugueses quese estabeleceram em terras inicialmente ocupadas por populações indígenas, até os mais recentes aventureiros dedicados às atividades neoextrativistas do tempo presente, que se estabelecem em terras ocupadas pelos habitantes de Miguel Burnier. E é também tentando entender a complexidade da paisagem cultural que se abre ao entendimento de sua leitura integrada, na qual os assentamentos humanos associavam mineração e produção alimentar, com demandas de abastecimento de água e de energia, que exigiam a abertura de caminhos que permitissem a comunicação, passagem e comércio, que implicavam em locais de sociabilização, devoção e lazer.

Na região, certamente a Fazenda dos Caldeirões foi a que ficou mais famosa certamente pelo seu relacionamento com a história da Inconfidência Mineira. Com sua capela dedicada ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 502

à São Julião, aquelas vastidões à leste de Chiqueiro passaram também a receber a alcunha de São Julião ao longo dos tempos. É interessante que, ao passo que o termo caldeirões pode significar o termo geológico para denominar uma depressão das rochas que retém água e onde se podem encontrar peixes, pedras preciosas ou minério; caldeirões também permite a interpretação da presença de crateras arredondadas e cheias de cascalhos minerários em alguns lugares também chamados de piçarra (última parte das catas).

A Itatiaia foi o dique separador, o divortium aquarum dos dous disctrictos proto-historicos das Minas [Sabará e Ouro Preto]. As massas diluvianas, e o vertice das correntezas, que se abateram precipitadas, deixaram nos logares fundos os sedimentos da riqueza desaggregada e das serras deluidas, formando os caldeirões famosos na primeira epocha, e que tantos ainda ha que esperam o exame dos mineralogistas. Os cascalhos da região das Congonhas até hoje são o que de mais rico se pode conceber. (SENNA, 1906, p.270)

Foi por meio da sesmaria doada ao Capitão-Mor José Álvares Maciel entre 1757-1758, que se iniciou a fundação da Fazenda dos Caldeirões que tinha a grandiosíssima área superficial de 11.106.300 2m . Pelas condições litigiosas que foram adquiridas, é possível que logo tenham tratado de marcar as divisas de propriedade com os valões e muros de pedra identificados em campo. Ao que tudo indica, após o degredo dos inconfidentes Álvares Maciel e do Tenente-Coronel Francisco de Paula em fins do século XVIII, a Fazenda dos Caldeirões caiu em irremediável ostracismo, tendo os patriarcas idade avançada e visto que a família foi dilacerada com os castigos dos degredos. Por meio do cruzamento das fontes, contata-se que a Fazenda dos Caldeirões não foi confiscada pela Coroa na situação dos embargos do patrimônio como ocorreu com os demais participantes da conjuração, tendo essa propriedade ficado sob o domínio da família Maciel até a morte da irmã caçula do inconfidente, situação em que consta uma escritura de compra e venda da Fazenda dos Caldeirões com data de 1852. É possível que a partir daquele momento, alguma gleba da Fazenda dos Caldeirões tenha sido comprada pelo Capitão Miguel da Silva Brandão, terrenos detentores da Capela de São Julião na “estrada do Capitão José Alves Maciel”. Certo é que em princípios do século XIX, a sede da Fazenda dos Caldeirões já estava arruinada. A propriedade estava implantada em uma altitude de 1.120 m e próximo a um moinho no Córrego do Calastróis.4

4 Arquivo Público Mineiro (APM), Acervo Gerdau Açominas S. A. (GER), GER-00009 (03). ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 503

Desconhece-se o fim do material das pesquisas que José Álvares Maciel desenvolveu nas Minas Gerais que foi confiscado quando de sua prisão pelo envolvimento na Inconfidência Mineira, e cujas indicações levam a crer na instituição de uma usina de ferro nas terras da Fazenda dos Caldeirões. Tais estudos juntamente com a troca de informações realizada entre Maciel e a Coroa durante o seu degredo em África, certamente levaram à promoção da fundação da Usina Patriótica no ano de 1811, em região limítrofe à da Fazenda dos Caldeirões.5 O nome escolhido – Fábrica de Ferro do Prata ou Usina Patriótica – reforça nesse léxico a função dos que defendem a manutenção da colônia em oposição àqueles que lutaram pela conjuração.

À frente da Usina e no lugar que teria sido ocupado por Maciel esteve Barão de Eschwege, em expressa advertência à luz da experiência da fracassada Fábrica de Ferro de Oieras em Angola que se arruinou porque, segundo Maciel, teria apenas faltado “hum Homem, que soubesse fundir o ferro, para tirar aquela Fabrica, talvez dentro de hum anno, tudo quanto tinha custado”. E Maciel indicava mais: seria necessário a criação de uma “Sociedade Mercantil” amparada pela Real Fazenda, com vista à organização análoga às “Sociedades de Economia Mista” como o meio fácil de se estabelecer uma usina (LOPES, 1958, p.29 e p.31). Para além do seu conhecimento de química, metalurgia e geologia, Álvares Maciel entendia de negócios e de política, cujo exemplo foi aplicado em África e retornado ao Brasil com a fundação da Usina Patriótica.

A Fazenda dos Caldeirões era uma propriedade rural composta por edificações de usos diversos, benfeitorias que associavam mineração e produção alimentar, além da rede de caminhos fomentadas pela sua fundação. No entorno do vale do Córrego do Calastróis são diversos os vestígios relacionados à mineração colonial. É possível que incialmente as lavras de ouro tivessem sido exploradas pela técnica de aluvião, com extração do ouro feita nos leitos dos rios. Nessa técnica, tratava-se em desviar o curso natural das águas para um canal escavado ao longo de uma das margens, de modo que estando o leito liberado, seu fundo era revolvido para que o sedimento com minérios (ouro, diamante) fosse posteriormente apurado com o uso de carumbés. Os desvios poderiam ser feitos com bicames ou canais que usavam madeira e pedras em sua construção, de modo a direcionarem a água para barragens de represamento. Todos os elementos relacionados à

5 Sabe-se que mesmo no degredo, já em 1798, foi construído um forno experimental e em 1800, Álvares Maciel fundou a Fábrica do Trombeta em Ilamba, Angola (GOMES, 1983, p.45). ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 504

exploração de ouro de aluvião tomavam determinadas proporções em razão da dimensão dos investimentos e dos lucros obtidos naquela lavra.

Outra opção de mineração de ouro em tempos coloniais era a técnica de grupiara, no qual se desenvolvia a exploração dos depósitos auríferos encontrados nas encostas por meio de catas (escavações para mineração). Para isso, era necessário se efetivar o desmonte do morro por meio de um sofisticado sistema de canais – calçados ou não – que corriam contornando as serras aproveitando a topografia do terreno. Ali na cava formada pelo desmonte do morro, a lama escorria para tanques de decantação chamados de mundéus construídos nas serras. A terra aurífera se concentrava no fundo dessas estruturas, ficando presa em tábuas dispostas nas bases dos mundéus. Quando o reservatório estava cheio de água, as tábuas eram retiradas e a lama aurífera escorria por um rego em aclive que possuía uma grelha para separar os blocos maiores. Por fim, canoas de madeira recolhiam o material com ouro mais concentrado que passava, por fim, pela pele de animais onde o ouro se fixava.

O que interliga qualquer uma dessas técnicas de mineração de ouro, desde a extração até a apuração final, é o recurso hídrico que se mostra essencial à atividade. A escolha de um local adequado de mineração do ouro, nessas condições, dependia não somente da existência do mineral, como também da abundante disponibilidade de água no entorno imediato da área de lavra. As melhores e mais valorizadas terras eram, portanto, aquelas que associavam volume e qualidade das águas e das minas (GUIMARÃES, s/d)

Próximo ao Córrego dos Calastróis, a presença de cítricos como o limão, de algumas ervas e plantas domésticas como a guiné, e um extenso bambuzal, retomam a presença das atividades de abastecimento alimentar da Fazenda dos Caldeirões para além da exclusividade da mineração. Tais culturas estão no entorno de uma área na qual existem alicerces de pedras de tamanho semelhante ao dos muros. Tais estruturas aparecem aproximadamente a cada 50 m de distância uma das outras, o que pode indicar que servissem de vértices de uma edificação. O tamanho do material construtivo pode indicar, ainda, que se tratasse de uma construção mais efêmera. Não há vestígios de telhas de possíveis coberturas. Seu posicionamento localizado na encosta, mas não longe de uma das ramificações do Córrego dos Calastróis e das estruturas de mineração identificadas, atesta ser esta uma área produtiva. Ressalta-se que a Fazenda dos Caldeirões foi descrita ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 505

em fins do século XVIII como sendo uma propriedade de lavras de ouro, composta por 92 escravos e 50 bois, com senzala coberta de capim. Segundo dados da comunidade, aquele local de pesquisa se chamava Barracão do Mato “coisa antiga, onde colocavam os escravos, ali no fundo onde se tirou muito ouro”.

As informações da documentação histórica remetem a uma grande unidade produtiva diversificada (agricultura/pecuária/mineração), com razoável plantel de escravos, tendo inclusive um cativo com a especialidade de ferreiro, o que retoma a vocação à mineração do ferro naquelas paragens. A concepção de que o desenvolvimento da agricultura ocorre com a crise da atividade minerária, e que o processamento do ferro só se tornou importante na transição do período colonial, pode ser contraposta à outra perspectiva. A agricultura foi uma atividade desenvolvida nas Minas Gerais desde o início do denominado Ciclo do Ouro e enquanto suporte de produção alimentar que permitiu que a mineração do ouro tivesse ocorrido. E isto foi percebido pela Coroa Portuguesa ao implementar a distribuição de sesmarias e o desenvolvimento das atividades agrícolas.

A paisagem de São Julião revela, pois, as necessidades específicas da mineração e da siderurgia: tanto o extrativismo vegetal quanto as lavras de minério de ferro exigem uma leitura contextual de suas estratigrafias. Apesar de serem atividades altamente impactantes para o meio ambiente, mensura-se que a intervenção do homem associada a equipamentos cada vez mais robustos, porquanto mais produtivos, causam uma extensão ainda maior a degradação ambiental. Comparativamente, além da retirada da vegetação nativa para se tornar combustível nos altos-fornos da siderurgia, o que efetivamente impacta na recarga hídrica, posteriormente foram plantadas mudas de eucaliptos naqueles campos. Segmentos de estradas de rodagem nas áreas próximas a terrenos limpos por trator onde velhos eucaliptos ainda testemunhavam a presença dos vestígios de fornos de produção de carvão, apontam para o período de ampliação da mineração do ferro e siderurgia pela SBM na década de 1970.

Ao longo dos séculos, outros assentamentos humanos também foram se estabelecendo em São Julião. Em posição mais próxima à Igreja de Calastróis, cerca de 50 m desta, está o alicerce da Fazenda do [O]rório em uma área bastante plana, no qual se vê o alicerce de pedra na mesma linha do chão. Fragmentos de telhas e escórias de mineração de ferro se misturam. As piteiras plantadas para decoração “do caminho para a Igreja” ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 506

também tinham sua função de produzir cordas de sisal. Sabe-se que já em princípios do século XX, tal edificação já estava arruinada.

Há, ainda, uma imensa cava de mineração antiga, cujo início está a cerca de 100 m de distância da Igreja Calastróis. Esta cava de mineração se estende até a área da Vila Operária Wigg e chega nas imediações da Usina Barra Mansa (alto forno nº 02). Em seu interior existem segmentos de canais, montes de rejeitos e arrimos provenientes de atividades minerárias. Certamente esta cava seja remanescente da lavra de ouro de José Álvares Maciel (pai) pelas proporções, posicionamento na paisagem e formas erosivas que tomou. Cabe ainda o registro que, ao longo do tempo, esta cava sofreu diferentes tipos de impactos como: reflorestamento de eucalipto, construção de estradas de ferro e uso como área de despejo da escória da Usina Barra Mansa. E mesmo nas áreas mais baixas e planas onde a implantação da ferrovia provocou impactos destrutivos, os vestígios arqueológicos estão evidentes.

As minas e os gerais: à guisa de algumas conclusões

O Sítio Arqueológico da Fazenda dos Caldeirões expõe de maneira tácita as diversas estratigrafias relacionadas à mineração em Minas Gerais, com seus revérberos na indústria siderúrgica. Não se restringindo somente aos tempos coloniais, nem tão pouco exclusivamente à extração de ouro, reflete técnicas e processos minerários também distintos cronologicamente. Atesta para o consórcio de várias atividades às antigas unidades produtivas das Minas coloniais, com dedicação à mineração juntamente com a agricultura e a pecuária. Expõe os principais recursos necessários à mineração, seja em relação à localização das jazidas, ao uso da água ou em relação à produção de carvão, bem como foi se dando a ampliação do impacto ambiental pelas atividades extrativistas. O contexto de transição do Escravismo para o Capitalismo, no qual estão presentes a siderurgia e a ferrovia, também foi destaque no processo histórico local e regional visualizado no sítio arqueológico. Explicita como os estudos de licenciamento ambiental dedicados fundamentalmente à arqueologia, notoriamente se pronunciam na ADA, de modo que a maioria dos vestígios identificados já foram destruídos pela implantação do empreendimento. E que, apesar dos rios, das serras e das estradas servirem como guias para a pesquisa de campo e o trabalho de georreferenciamento, o conflito se manifesta de forma implacável na destruição ambiental. ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 507

Recuperar esta dinâmica complexa leva à compreensão e ao esclarecimento dos aspectos ligados aos movimentos da população entre os diferentes núcleos, além de contribuir para o entendimento dos deslocamentos de produtos, matéria-prima, etc. Daí a importância do estudo e preservação do conjunto arqueológico formado pelo sítio, não tomando seus vestígios de forma isolada como ocorrências descontextualizadas, o que implica ampliar tanto o escopo interpretativo quanto o (re)conhecimento daquele espaço, além da assertividade de se fazer pesquisa com os nativos. O que também reflete como o conhecimento do território é processual e relacional, cujos topônimos que eram apenas referências de memórias se materializam em vestígios arqueológicos, (re) orientando também as organizações territoriais outras, e as temporalidades que mesmo sobrepostas, permitem entender suas estratigrafias.

Figura 2 - Uma área do Sítio Arqueológico da Fazenda dos Caldeirões.

Elaboração: Samuel A. Akinruli, 2018 ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DA MINERAÇÃO NO VELHO E NO NOVO MUNDO: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES AOS CONTEXTOS COLONIAIS AMERICANOS E METROPOLITANOS LUANA CARLA MARTINS CAMPOS AKINRULI 508

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Um intelectual na defesa do New Deal nos Estados Unidos: O projeto político de Thurman Arnold (1935-1937)

LUCAS MAIA FELIPPE BACAS Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo, bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Endereço eletrônico: [email protected]

Introdução

A seguinte comunicação pretende abordar o projeto político, com enfoque nos diagnósticos sobre a Grande Depressão, de Thurman Arnold, um intelectual, propositor de políticas públicas ligado ao New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt (1933- 1945). Arnold foi professor universitário em Yale durante os anos 1930 e era ligado a um grupo de intelectuais chamados New Dealers, defensores de projetos reformistas que de modo geral advogavam um novo papel para o Estado na economia do país. Arnold eventualmente se juntou a eles na defesa das políticas de Roosevelt. Eles eram sujeitos do meio acadêmico, críticos do liberalismo econômico clássico e propunham que o governo adquirisse maior influência sobre as instituições norte-americanas.

Portanto, iniciaremos com um breve panorama sobre o New Deal e esses intelectuais reformistas, abordando algumas de suas principais ideias, de forma a inserir Arnold no contexto de debates em que escreve suas principais obras, The Symbols of Government e The Folklore of Capitalism.1 Com o advento da Grande Depressão, representado pela quebra da bolsa de valores em 1929, os liberais norte-americanos passaram a ganhar espaço na arena política norte-americana e assim Arnold e outros colegas acadêmicos foram se aglutinando em torno de Roosevelt e do Partido Democrata.2 Trataremos também

1 A partir de agora referidas como Symbols e Folklore.

2 O termo “liberal” é aqui utilizado no sentido empregado nos Estados Unidos: de defensores de projetos reformistas UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 511

da trajetória pessoal de Thurman, rapidamente levantando algumas de suas convicções políticas através dos anos até a sua entrada na Divisão Antitruste do Departamento de Justiça do governo em 1938.

Finalmente, abordaremos o projeto político de Thurman Arnold através dos diagnósticos do autor sobre a Grande Depressão em Symbols e Folklore, analisando passagens de suas obras, propondo não somente um novo projeto de Estado norte- americano, mas denunciando o liberalismo econômico clássico e a influência dos grandes negócios no rumo do país.

Os Intelectuais e o New Deal

Desde sua campanha para as eleições de 1932, Franklin Roosevelt buscou auxílio de acadêmicos liberais a quem se referia como seu Brain Trust, nomes ligados a Universidade de Columbia como Raymond Moley, Adolf Berle Jr. e Rexford Tugwell. Eles auxiliaram o presidente na elaboração de seus discursos eleitorais e no desenvolvimento de um novo plano econômico para o país. O Brain Trust buscou de diversas formas uma saída para a crise, inclusive nos modelos econômicos de nações autoritárias, como a Itália fascista, a Alemanha nazista e a União Soviética. Identificadas como modelos de superação para a Depressão, a intenção desses sujeitos era buscar uma alternativa de política econômica para os Estados Unidos, porém preservando seu ideal de democracia (PATEL, 2016, p. 248; BRINKLEY, 2000, p. 13; KATZNELSON, 2013, p.236). Eles defendiam uma proposta de cooperação entre os negócios, o trabalho e o governo, cujo papel seria de grande planejador, como forma de estabilização da economia (BRINKLEY, 2000, p. 13-15).

Em um período de cem dias, influenciado por essas ideias, desenvolveu-se uma série de medidas emergenciais, entre elas o Emergency Banking Act, que decretou um “feriado bancário” como forma de recuperar a confiança da população nos bancos, o Agricultural Adjustment Act (AAA), cuja função era resolver os problemas econômicos agrícolas, o Federal Emergency Relief Act (FERA), responsável por fornecer subsídios para agências de alívio estaduais e principalmente o National Industrial Recovery Act

por parte do Estado, como os propostos pelos depois conhecidos social democratas, cujas ideias eram dirigidas em favor de políticas sociais e, dependendo do governo, de reformas em maior ou menor grau do âmbito econômico. Ver: BOBBIO; MATEUCCI; PASQUINO, 2010 e FRASER; GERSTLE, 1989. UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 512

(NIRA), que simbolizava o grande ideal de cooperação entre negócios, trabalho e governo para a recuperação da indústria norte-americana (KATZNELSON, 2013, p.120-124; LEUCHTENBURG, 2009, p. 61).

Contudo, essas medidas se mostraram ineficientes na resolução dos problemas econômicos da nação. A partir da declaração de inconstitucionalidade da NIRA em 1935, iniciou-se uma segunda fase do New Deal onde outros grupos de intelectuais passaram a ter maior espaço para propor novas soluções para a crise.

Entre eles estavam os chamados “atomistas”, grupo formado por indivíduos do direito, cuja principal referência era o juiz da Suprema Corte Louis Brandeis, ligado ao movimento progressivista e árduo defensor da utilização das leis antitruste como forma de preservação do capitalismo competitivo e diminuição da influência das grandes corporações (LEUCHTENBURG, 2009, p. 148).3 Os atomistas defendiam uma economia mais descentralizada, inclusive em relação ao Estado, cujo papel principal era a aplicação das leis antitruste; eles eram representados no círculo de assessores de Roosevelt por Benjamin Cohen e Thomas Corcoran, homens do Direito influentes no círculo do presidente (BRINKLEY, 2000, p. 24-25).

Outro importante grupo era o dos “pluralistas industriais”, que advogavam em favor do Estado como mediador de acordos coletivos entre trabalhadores, através de sindicatos, e os empregadores das diversas indústrias. Eles enxergavam como solução para os conflitos industriais, um processo de negociação entre vários grupos de interesse; eram também influenciados pelo progressivismo. O grupo era formado por economistas de origem no Meio-Oeste do país, liderados por John R. Commons, importante progressivista, e atacavam “conceitos e leis atemporais” defendidos por economistas conservadores e representados nas ideias do liberalismo clássico. Edwin Witte e William Leiserson, importantes sujeitos ligados ao New Deal e antigos alunos de Commons, representavam os pluralistas no círculo de Roosevelt (ERNST, 1993, p. 61-64).

Para eles não cabia aos intelectuais o planejamento do Estado, mas sim aos movimentos sindicais que possuíam melhor conhecimento sobre os problemas dos

3 O movimento progressivista, surgido entre o final do século XIX e o início do século XX, abrangia uma ampla agenda política com questões como controle dos grandes negócios, diminuição da pobreza dos trabalhadores, melhoria nas relações entre gêneros, a regeneração do lar (ambiente familiar), a disciplina do lazer e do prazer e finalmente uma defesa da segregação racial. Ver: MCGERR, 2003. UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 513

trabalhadores nas indústrias, limitando ao governo o papel de promotor das negociações entre operários e indústrias, pois para eles o tamanho e o poder das corporações estavam em segundo plano (Idem, p. 67-69).

Um terceiro importante grupo era o dos “realistas legais”, formado majoritariamente por intelectuais do Direito, entre eles Thurman Arnold, que atacavam o que chamavam de “ortodoxia universalista”, representada nas relações legais nos Estados Unidos e que representavam “premissas abstratas”, em torno de conceitos que eram aceitos como “verdades” na sociedade norte-americana. Em seu “manifesto”, eles criticavam o que chamavam de valores absolutos da Lei Comum, refletidos em crenças muitas vezes abstratas que não representavam a realidade das instituições.

Os realistas se aproximavam da visão do progressivista Herbert Croly que acreditava no Estado como responsável por reorganizar a sociedade norte-americana, redistribuindo renda e riqueza, além de combater o “individualismo caótico”, mas também eram influenciados pelo economista Thorstein Veblen que observava as instituições como produtos de estímulos sociais. Na visão realista a resolução da crise passava pela ampliação do Estado nas relações industriais, estando mais próximos da visão de Rexford Tugwell do que dos pluralistas ou dos atomistas (Idem, p. 69-75).

A partir desse breve levantamento das ideias e discussões sobre novas possibilidades para a atuação estatal na economia e na solução para a depressão que assolava o país, faremos agora uma breve exposição da trajetória intelectual de Thurman Arnold, para melhor situarmos suas ideias em meio aos debates dos anos de crise e trazendo algumas de suas influências.

Trajetória Intelectual de Thurman Arnold

Thurman Arnold nasceu em 2 de junho de 1891 em Laramie, Wyoming, pequena cidade do Meio-Oeste norte-americano onde se localizava a Universidade do Wyoming e consequentemente bibliotecas, o que influenciou na aproximação das primeiras famílias locais em torno de atividades sociais como discussões literárias e a própria família de Arnold fazia parte desse meio, frequentando esferas intelectualizadas, seguindo a religião protestante e possuindo laços ativos com o Partido Democrata (AYER, 1971, p. 1052-1053). UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 514

Crescer em meio ainda bastante rural, fez com que adquirisse hábitos muito particulares da sua região, o que lhe rendeu certa dificuldade em se aproximar do cosmopolita mundo do Leste do país, onde realizou sua formação superior. Arnold passou por Princeton, onde teve dificuldades de convivência, e formou-se em Direito por Harvard, tendo seguido uma breve carreira de advogado, interrompida pela Primeira Guerra Mundial, de onde voltou para Laramie (ARNOLD, 1965, p. 3-20). De volta para sua cidade natal, envolveu- se com a política local onde foi eleito o único Democrata para a Câmara do Wyoming; seu período inicial na política era caracterizado por fortes tendências progressivistas e em sua autobiografia afirmou ter sido um “ardente proibicionista”.4

Sua plataforma, pautada por esses ideais de combate à prostituição, jogos de azar e bebidas, lhe rendeu a o cargo de prefeito de Laramie em 1922, em meio a uma eleição em que fez acusações infundadas contra seu adversário Republicano, envolvido com a refinaria local da Standard Oil. Arnold afirmava que seu oponente estava a “serviço da exploração do Leste”; seu governo se notabilizou por um programa que Douglas Ayer classifica como “a tradução do progressivismo em seu estado mais puro”, caracterizado por um ataque às grandes corporações do Leste, a quem acusa de estarem “colonizando” sua região, além de seguir seu programa proibicionista (AYER, 1971, p. 1054-1055).

Ao fim de seu mandato, perdeu a eleição para o cargo de promotor dejustiça do condado, fracasso político que o fez desistir temporariamente da vida pública e resultou em sua mudança para o meio acadêmico. Passou a trabalhar como professor em West Virginia onde defendeu uma reformulação dos procedimentos judiciais, os quais considerava antiquados, como forma de tornar as cortes locais mais eficientes. Ficou em West Virginia entre 1926 e 1930, quando foi chamado por Charles Clark, decano da Yale Law School, para ser professor visitante, tendo ficado até 1937, quando foi trabalhar para o governo Roosevelt. Em Yale, Arnold conviveu com influentesliberais como William O. Douglas, Wesley Sturges, Walton Hamilton, Arthur Corbin e Underhill Moore, além de ter entrado em contato com o realismo legal, que acabou por colocá-lo em debates que posteriormente chamaram a atenção de Roosevelt e seu círculo de intelectuais reformistas (GRESSLEY, 1979, p. 29; AYER, 1971, p. 1064).

4 A Proibição, 18ª Emenda, representou um ideal progressivista visando o fim da produção e venda de bebidas alcóolicas. Sua origem estava na ideia de eliminar os vícios dos norte-americanos, compreendida pelo esforço da preservação do lar e da unidade familiar. UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 515

Antes mesmo de ir trabalhar na Divisão Antitruste do Departamento de Justiça, Arnold foi chamado pelo Departamento de Agricultura para advogar em defesa do AAA em um processo em 1933, além de ter passado um tempo nas Filipinas como conselheiro do governo durante o ano de 1934. Em 1935 e 1936 trabalhou juntamente com a Securities and Exchange Commission, capitaneada por William O. Douglas, que compreendia um esforço do governo para regular os mercados de ações financeiras, com fins de evitar instabilidades no mercado a partir de abusos em especulações e fraudes (BRINKLEY, 2000, p. 24-25).

Finalmente, em 1937, Arnold atuou em seis casos ante a Suprema Corte defendendo a Divisão de Taxas do Departamento de Justiça, quando entrou em contato com figuras centrais no New Deal, como Benjamin Cohen, Thomas Corcoran, Rexford Tugwell e Harold Ickes; posteriormente sendo chamado em 1938 para o cargo de procurador- geral assistente na Divisão Antitruste. Segundo Gene Gressley, o fato do governo buscar se ligar cada vez mais a um “clero” de professores universitários e o fato de Arnold apresentar “ideias seguras” sobre o governo em seus escritos teriam sido razões para sua nomeação (GRESSLEY, 1979, p. 38). A partir disso, seguimos com os diagnósticos do autor sobre a Grande Depressão e a atuação do New Deal nas obras Symbols e Folklore.

Diagnósticos da Grande Depressão

Em Symbols, sua primeira grande contribuição à defesa do New Deal, o autor buscou termos, na forma do que chamou de “símbolos”, para explicar ao leitor as crenças, costumes, convicções e juízos enraizados na sociedade norte-americana, os quais considerava responsáveis por comportamentos impulsivos e posturas contrárias às reformas de Roosevelt. No prefácio de sua obra Arnold (1935, p. XIV) explica sua escolha pela palavra:

Por símbolos do governo, nos referimos tanto a cerimônias como teorias das instituições sociais. Geralmente, essas cerimônias e teorias são reunidas e estudadas, não como símbolos, mas como princípios fundamentais das ciências separadas da lei, economia, teoria política, ética e teologia.5

Arnold percebia a convicção no individualismo norte-americano como um costume capaz de gerar grande oposição às propostas de fortalecimento do Estado por parte

5 Os trechos de Arnold foram traduzidos pelo autor e se encontram em original nas obras. UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 516

do New Deal, pois a visão de um Estado forte e centralizador tendia a incidir sobre a crença na liberdade individual, principalmente a dos homens de negócios, mas também pequenos comerciantes e agricultores. Para explicar esse diagnóstico, ele resgatou críticas de conservadores sobre a Tennessee Valley Authority (TVA), grande construção de barragens e geração de energia elétrica no Vale do Tennessee, que simbolizava uma tentativa de planejamento econômico estatal para uma região inteira, além, de impactar drasticamente na vida da população local (PATEL, 2016, p. 97-99).

Ainda que a TVA fosse responsável por levar eletricidade, infraestrutura e construção de novas cidades na região, foi encarada por companhias privadas de eletricidade como uma forma de “competição desleal” com a entrada do governo no negócio de geração de energia. Além disso, a população local percebeu o empreendimento como uma invasão do governo nos assuntos e propriedades privadas da região. Arnold identificou nessa postura a recusa dos fazendeiros em obter melhorias pessoais, por se tratar de uma ação estatal, mas desconsiderou o impacto na vida dos moradores do vale, incluindo a realocação forçada de suas terras.

O ideal do individualismo e a não interferência do governo eram para o autor fundamentais não somente para explicar críticas à TVA, mas para explicar hábitos e valores norte-americanos. O ataque que essa e outras políticas do New Deal realizavam aos “ideais” dos habitantes locais tinha relação com a desconfiança no governo, capaz de ameaçar a liberdade das pessoas segundo o autor:

Parece ser o eterno paradoxo da mente humana de que princípios e crenças que são essenciais para o conforto humano na organização e transmissão de ideias ordenadas, são ao mesmo tempo, o maior obstáculo para a descoberta (ARNOLD, 1935, p. 24).

Nesse trecho ele defende que as crenças da época atrapalhavam o desenvolvimento das políticas reformistas, as quais ele compreendia como “experimentos” do New Deal capazes de encontrar uma “saída” para a Depressão. Princípios arraigados como o do individualismo contrário ao Estado, interferiam na formação de opinião e nas atitudes das pessoas. Compreender esse aspecto do pensamento social poderia convencer oponentes, principalmente intelectuais de perfil “moderado” ou mais conservador. UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 517

Arnold identificava uma falta de leis que legitimassem o uso de recursos públicos para trazer alívio para a população, em função da convicção de que os gastos governamentais impediam o equilíbrio fiscal do governo, postura defendida pelos economistas conservadores. O autor argumentou que em um momento de grande aflição para o povo norte-americano, as leis eram percebidas como imutáveis, dotadas de princípios quase religiosos que impediam o sucesso de empreendimentos reformistas, pois segundo ele ,

A ideia recorrente na maioria dos sistemas de jurisprudência ocidentais é a de que existe uma constituição acima da lei ordinária que é igualada somente pela ideia definitiva de que existe uma lei ou conjunto de princípios acima até de Deus. Pois, nem mesmo Deus poderia mudar a lei que requer que o homem seja punido por seus pecados. Portanto, o perdão dos pecados deve ser alcançado por um sentido indireto muito elaborado, através de uma instituição ilógica [a igreja] juntamente com uma lógica [o judiciário] e a reconciliação de ambas logicamente. Existe uma constituição e um plano acima de Deus, que é o único plano que Deus pode ter feito (...) É o melhor plano que já foi firmado por qualquer religião, assim como nossa Constituição é o maior documento já firmado por mente ou caneta de um homem. (ARNOLD, 1935, p. 69)

Nesse trecho o autor não critica o peso simbólico da Constituição dos Estados Unidos para os norte-americanos, mas sim a ideia de que o documento é composto por princípios imutáveis e que deve ser interpretado de forma literal, assim como suas emendas. O problema estava na forma como as teorias legais e a Constituição eram percebidas nos anos 1930, influenciado diretamente na maneira como as instituições funcionavam no país. Isso estava fortemente ligado à forma como editoriais e publicações, principalmente em tempos de crise, influenciavam nas ideias da população:

“Todos se tornam reformistas; todos se tornam planejadores sociais. Lei Constitucional e economia são arrastadas para além de publicações técnicas, que ninguém lê, para aparecer toda manhã no jornal local e toda noite no rádio. Jornais populares explicam a Constituição. Teorias econômicas consistentes e leis fundamentais são explicadas por todos para todos os outros. A separação entre política e economia é rompida e assuntos como equilíbrio fiscal, obras públicas, inflação, negócios estrangeiros e praticamente todas as teorias da economia atual são submetidas às pessoas por convenções políticas. (...) Portanto, em tempos assim, oponentes políticos aparecem como personagens perigosos e subversivos, atacando as fundações do governo ao substituí-lo por comunismo, fascismo e coisas assim” (ARNOLD, 1935, p. 105)

Além disso, as decisões da Suprema Corte contrárias ao New Deal e suas políticas, principalmente no caso da NIRA, empreendimento que até mesmo Arnold considerava inadequado, representavam grande perigo para as reformas percebidas como necessárias, UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 518

pois a corte era vista como uma instituição de grande respeitabilidade pelos norte- americanos, uma espécie de “Oráculo de Delfos”, nas palavras do autor (Idem, p.117).

Ele contestou a conduta da corte em relação ao NIRA, argumentando que ela havia esperado um momento favorável no qual a opinião pública passou a ter dúvidas sobre a legislação. Segundo o autor:

Quando isso ocorreu a Suprema Corte atacou e atacou duro, destruindo não somente todos os absurdos cristalizados em torno da legislação, mas também a grande máquina administrativa que poderia ter iniciado alguma forma de controle social preenchendo as lacunas onde o controle era necessário (ARNOLD, 1935, pp. 117-118) .

Aqui percebemos a esperança que o autor possuía em relação a propostas do New Deal resultarem em “alguma forma de controle social unificado”, através da atuação das agências e legislação do New Deal, capaz de preencher o “vazio” nas relações econômicas a quem Arnold acusava serem responsáveis os grandes negócios. A postura da Suprema Corte, na sua opinião, favorecia argumentos de que as iniciativas reformistas iriam piorar a situação do país:

A ação da Suprema Corte enfatizou um novo conjunto de símbolos; dramatizou o medo de que um governo que assumiu responsabilidade por vazios, deixados pelas falhas de um feudalismo industrial, estava sendo gradualmente levado à uma cultura russa ou alemã. As palavras-símbolo para essa ideia – arregimentação, burocracia, fascismo e comunismo – era o que era creditado à corte para nos salvar (ARNOLD, 1935, p. 118)

Aqui o autor denuncia a forma como a imprensa se utilizaria das decisões da Suprema Corte, ligando as reformas a tentativas de ampliação da burocracia e estabelecimento de políticas fascistas e até mesmo comunistas. Arnold julgava ter bons argumentos para se preocupar com as ações da Suprema Corte, pois ela teria sido elogiada por indivíduos de diferentes ideologias, como o influente empresário William Randolph Hearst, o advogado progressivista Clarence Darrow, o “demagogo” Huey Long e o Republicano William Borah, todos críticos da NRA e que haviam “agradecido a Deus pela atuação da Suprema Corte” nas palavras do autor.

A unanimidade de pessoas tão diversas foi a unanimidade dos que acreditam em diferentes utopias, todos que condenaram uma organização prática que não se conformou a uma utopia. A NRA conseguiu um entusiasmo na nação inteira quando possuía uma pequena utopia própria. Ela perdeu aquele UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 519

entusiasmo quando seus sonhos estavam desaparecendo e estava começando sob a pressão da forte necessidade de construir uma organização administrativa prática (ARNOLD, 1935, p. 118)

Arnold era bastante crítico do liberalismo clássico e dos grandes negócios, além de defender que as teorias econômicas da época tinham a função de:

justificar a luta desordenada da classe comercial que insistia em respeitabilidade e prestígio. Essa filosofia era necessária para justificar a luta egoísta por dinheiro e poder por uma classe que recusava a se submeter à regulação em termos de ideais éticos. Portanto, a filosofia da economia foi criada para mostrar como o egoísmo sem restrições, em parte desses grupos competidores, foi produto de um bem maior em longa duração. As leis fundamentais da economia foram inventadas para provar que o maior bem do mundo vem de atividades competitivas de não impedimento e de cobiça esclarecida. Um homem que trabalharia somente pelo lucro era postulado como ser humano típico e uma complicada teoria foi meticulosamente criada mostrando como esse egoísmo era a causa real de todas as nossas bênçãos temporais. Essa teoria hoje suplementa a lei como um dos nossos mais importantes símbolos de governo (ARNOLD, 1935, pp. 73-74)

Nessa passagem o autor defende que o liberalismo econômico clássico privilegiava a competição entre homens de negócios em detrimento de uma melhor distribuição de renda e que esses princípios eram difundidos como “éticos”. Ele considerava que as teorias legitimavam um processo de “cobiça esclarecida”, ou, acúmulo de riquezas através da competição entre indivíduos. Arnold via na defesa de um mercado com mínima intervenção estatal e a noção do lucro como grande ideal norte-americano fatores que dificultavam o processo de recuperação do país através de reformas.

De fato, segundo a historiadora Kim Philipps-Fein (2010, p. 3-5) para homens como Irénée Du Pont, legislações como a SEC (Securities and Exchange Commission) representavam uma maneira de “regular os mercados financeiros”, uma tentativa de “mudar a natureza humana, interrompendo os riscos inevitáveis no coração da vida”. “Homens são especuladores por natureza, e a Natureza aplica a necessidade de especulação em todos nós” segundo Du Pont.

Arnold repudiava completamente esse tipo de ideia, para eles os ideais econômicos de então era responsáveis pelo que chamou de “anarquia industrial”, afirmando que a classe empresarial era incapaz de se organizar pelo bem dos setores produtivos. Em sua tentativa de denunciar a falha na tentativa de cooperação entre empresários e o governo, Arnold se utiliza de uma retórica que não necessariamente condiz com a verdade, dada a UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 520

existência de grupos dos grandes negócios como a American Liberty League e a National Association of Manufactures (Idem, p. 10-15).

Para defender seu ponto de vista o autor se utiliza do ex-colega e professor em Yale Walton Hamilton, vinculado ao realismo legal, sobre as relações na indústria do carvão betuminoso, a partir de uma analogia que Hamilton fez de um homem oriundo do planeta Netuno que visitava a Terra:

Ele [o extraterrestre] vê um confronto de interesses em que operadores, trabalhadores das minas, assim como consumidores, se recusam a render as vantagens correntes para as grandes promessas de um futuro nebuloso. (...) Ele vê a impressionante ignorância da situação geral e uma confusa abundância de mal informados conselhos. Ele vê uma inércia que rejeita o novo pela razão de que é novo e se agarra cegamente ao velho porque é costumeiro (ARNOLD, 1935, p. 74-76).

O argumento de Hamilton, segundo o autor, sustentava a ideia de “caos industrial” legitimado pelas tendências econômicas norte-americanas na época. Esse pensamento servia como barreira para uma agenda mais intervencionista por parte do Estado, o que é indicado por ele ao afirmar que “a lei pode guiar e conduzir, mas não pode distorcer”. Ou seja, a lei deveria assegurar a “natureza” da economia (liberal).

Arnold enxergava uma tendência dos economistas na época em repudiar políticas assistencialistas do governo e endossar a crença na autorregulação do mercado e principalmente no equilíbrio orçamental como soluções para o fim da Depressão. Além disso, para os conservadores os projetos reformistas eram vistos como de cunho socialista, uma espécie de retórica que visava atacar o New Deal afastando-o das tradições norte- americanas, caracterizando suas ações como “estrangeiras” e antidemocráticas.6

Arnold considerava que esse cenário privilegiava os homens de negócios, que eram pouco questionados pela sociedade em geral e até o momento da Grande Depressão gozavam de grande influência no geral, dificultando as propostas reformistas do New Deal. O autor culpa o prestígio desses “barões industriais” e de seu “feudalismo industrial” pelos obstáculos que a administração Roosevelt enfrentava.

6 Sobre as discussões do New Deal como dotado de uma agenda reformista “estrangeira” e a influência de países como a Suécia nas ideais dosNew Dealers, ver: PATEL, 2016, p.218-233. UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 521

Em Folklore, ele prosseguiu com sua crítica sobre a liberdade de atuação das organizações industriais, dessa vez, também questionando um ideal da época em que as grandes corporações representavam interesses individuais e não coletivos:

É óbvio hoje que a propriedade privada desapareceu. O autor, por exemplo, possui alguns móveis que ele pode usar sem a assistência de alguma grande organização, ainda que não à extensão do que seus pais poderiam, porque ele é incapaz de repará-los como seu pai era. Para transporte ele tem um automóvel, mas ele não sabe o que está acontecendo sob o capô e não pode usá-lo sem uma grande organização para ajudá-lo. (...) Riqueza hoje consiste em nada que um indivíduo possa usar. Os padrões de riqueza são simples expectativas correntes de como o indivíduo se posiciona em relação aos soberanos de baronias industriais, juntamente com a suposição sob a força desses principados (ARNOLD, 1937, p. 121).

No trecho acima, Arnold tornava explicita a noção de que as relações sociais do início do século XX passavam por grandes mudanças, a ponto de que a “riqueza” estava atrelada a capacidade de produção individual, ou no caso dos homens de negócios, às suas indústrias. E esses mesmos sujeitos estavam, segundo o autor, cometendo abusos contra os consumidores de forma impune, pois a convicção da época que garantia às indústrias a condição de indivíduo, colocava as práticas sob perspectiva de relação entre dois indivíduos.

Em cada campo de atividade industrial, grandes organizações haviam se consolidado em similares posições de poder. Elas haviam feito isso sob a mitologia da propriedade privada que prevenia aqueles que eram explorados de observar o que estava acontecendo. O público viu uma grande série de eventos como uma série de trocas de cavalos por indivíduos independentes. Essa mitologia havia se tornado tão completamente enganadora que homens não poderiam diagnosticar o que estava errado quando esses principados corporativos falharam em funcionar, ou porque eles machucaram tantas pessoas. (...) Eles operavam dentro do folclore que considerava o instinto comercial como a salvação do país. Negociantes eram necessariamente homens durões. As éticas do comercial eram uma série de contradições éticas. Portanto, quando todas as outras pessoas largaram as rédeas do poder, esse pequeno grupo estava em posição para toma-las” ((ARNOLD, 1937, pp. 124-126).

Isso ocorria pela crença da época de que as grandes corporações possuíam “direitos e prerrogativas” de “indivíduos livres”, invocando o ideal da época que atacava a intromissão do governo nos interesses individuais da população, respingando nos ataques das cortes, principalmente da Suprema Corte contra o New Deal:

Uma das noções essenciais e centrais que dão ao nosso feudalismo industrial uma simetria lógica é a personificação de um grande empreendimento industrial. O ideal que uma grande corporação é UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 522

dotada com direitos e prerrogativas de um indivíduo livre é essencial para aceitar a regra corporativa nos assuntos temporais assim como o ideal do direito divino de reis em tempos passados. Sua exemplificação, como no caso de todos os ideais vitais, foi alcançada por cerimônia. Como tem sido um ideal central para nosso governo industrial, nossas instituições judiciais têm estado particularmente preocupadas com essa celebração. Cortes, sob o manto da Constituição, tem feito uma coisa real de toda essa ficção. Homens passaram a acreditar que suas próprias liberdades futuras e dignidade estavam atrelados à liberdade de grandes organizações industriais de moderação, da mesma forma que eles pensaram em sua salvação no futuro como dependente de sua reverência e apoio às grandes organizações eclesiásticas na Idade Média. Esse ideal explica vários de nossos hábitos sociais, rituais e instituições, e é necessário examiná-lo detalhadamente. A origem dessa forma de pensar sobre organização é o resultado de uma civilização pioneira em que o ideal prevalecente era o de liberdade e dignidade do indivíduo engajado na acumulação de riqueza. A independência do homem livre da autoridade central foi o slogan pelo qual homens lutaram e morreram. Esse homem livre era o negociante que esteve à frente através da acumulação de dinheiro” (ARNOLD, 1937, p. 185).

Além disso, em Folklore ele segue seu diagnóstico sobre a importância do equilíbrio fiscal para os conservadores da época, que era justificado muitas vezes pela incapacidade de o governo agir conforme as organizações privadas, “fazendo dinheiro”, ou seja, buscando o lucro:

Portanto, nós não podemos “suportar” ter o governo mantendo nosso estoque de trabalhadores especializados durante a depressão ou preservar nossos recursos, porque o governo não “possui” os trabalhadores ou os recursos. Por essa razão ele não poderia “gastar dinheiro” em tais coisas sem ir à bancarrota – assim como um indivíduo não poderia gastar dinheiro na propriedade de seu vizinho sem ir à bancarrota.

Assim como em Symbols, o autor buscou convencer seus leitores, principalmente aqueles que optamos por chamar de “moderados”, que ainda defendiam ideias econômicas ortodoxas, além da crença de que somente os grandes negócios seriam capazes de tirar os Estados Unidos da Grande Depressão, de que as posições antagônicas ao Estado na economia pertenciam a um período diferente.

Através de seus diagnósticos, percebemos a tentativa de demonstrar que a forma de pensar ligada à ortodoxia econômica do liberalismo clássico não seria capaz de recuperar o país e parte disso se dava pela noção de que a complexa sociedade industrial do século XX dependia de um novo tipo de pensamento econômico, o qual o autor acreditava estar representando no New Deal, ainda que fizesse essa defesa a partir da perspectiva de um intelectual ligado ao empreendimento.

UM INTELECTUAL NA DEFESA DO NEW DEAL NOS ESTADOS UNIDOS: O PROJETO POLÍTICO DE THURMAN ARNOLD (1935-1937) LUCAS MAIA FELIPPE BACAS 523

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Solano López: a construção do mito

LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS Doutor em História Social (USP). Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E mail: [email protected]

Introdução

A última imagem que se tem do marechal e presidente paraguaio Francisco Solano López Carrillo é uma fotografia tirada em 1870, na frente de batalha, pouco antes da sua morte em Cerro Corá, região inóspita no interior do Paraguai. Na foto, ele aparece envergando uma casaca negra, com o peito repleto de botões dourados. Era o sétimo ano do seu mandato presidencial. A guerra havia entrado no seu quinto e derradeiro ano.

No dia 24 de julho do ano anterior, Solano López completara 42 anos de idade. Sua vasta e escura barba não consegue esconder o rosto redondo e o corpo roliço, que beira a obesidade. No retrato, o marechal tem um olhar direto, penetrante e desafiador de quem estar acostumado a mandar e ser obedecido nas mínimas vontades.

A postura altiva e intransigente de Solano López, nos derradeiros momentos da longa Guerra do Paraguai, demonstrara uma força inquebrantável de quem estava disposto a matar e morrer, sacrificando todo um país para não se render. E assim o fez. Até o seu violento e trágico fim.

Depois de uma caçada implacável pelo interior do país, finalmente as tropas brasileiras localizaram o marechal López e seu séquito. Ele estava acompanhado apenas por quatro centenas de soldados e civis. Todos estavam maltrapilhos, esquálidos e famélicos. A força que lhe restara era apenas uma mera sombra do poderoso exército que comandara ao longo do conflito, constituído por mais de 65 mil homens.

Mesmo sendo pego de surpresa por uma força muito superior, Solano López não se entregou. Ele lutou desesperadamente por sua vida e manutenção do poder. Seu filho SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 525

Panchito, com apenas 14 anos, também morreu na última batalha. Só após a sua morte, ocorrida em 1º de março de 1870, é que foi decretado oficialmente o término da guerra.

A Guerra do Paraguai foi o conflito mais sangrento de toda a história da América Latina. Entre 1865 e 1870, Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança e guerrearam contra o Paraguai. A república guarani havia atacado primeiro, invadindo as províncias de Mato Grosso e Rio Grande do Sul no Brasil e Corrientes na Argentina. Esse conflito ceifou a vida de mais de 300 mil soldados e civis e deixou outros milhares com sequelas físicas e psicológicas irreparáveis.

Ao longo do conflito, o Paraguai foi cenário macabro de mortes, mutilações, fome, doenças, epidemias, saques, estupros, corrupção, deserções, traições, degolamentos, covardias e fuzilamentos. Também fizeram parte da rotina dos combatentes o heroísmo, a solidariedade, a integridade, a camaradagem e a abnegação.

Para ampliar a tragédia que se abateu sobre a região, milhares de civis paraguaios, argentinos, brasileiros e uruguaios sofreram em consequência dos problemas econômicos e sociais decorrentes dos horrores da guerra.

O conflito foi de tal magnitude que os presidentes Bartolomé Mitre da Argentina, Venancio Flores do Uruguai e Solano López do Paraguai saíram dos seus confortáveis palácios e passaram a comandar, pessoalmente, suas respectivas tropas nos sangrentos campos de batalha.

Solano López: civilização ou barbárie?

Antes e durante a guerra, o marechal Solano López ocupou o centro dos acontecimentos políticos no Paraguai. Sucessor do seu pai, o presidente Carlos Antonio López, Solano López foi nomeado general aos 19 anos e Ministro Plenipotenciário do país aos 26. Com a morte de Carlos López, ocorrida em 10 de setembro de 1862, Solano López foi eleito, pela Assembleia Nacional paraguaia, presidente do país para um mandato de 10 anos.

No seu governo, o presidente Solano López modernizou o Paraguai, contratou centenas de técnicos, engenheiros, médicos e militares estrangeiros, organizou e treinou o maior SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 526

exército da América Latina e preparou-se para a guerra. Sob o pretexto de defender a soberania do seu país contra o expansionismo do império brasileiro, deu início ao conflito.

Solano López, ainda em vida, teve sua trajetória mitificada pela imprensa oficial do seu país. Como não era permitida a manifestação de oposicionistas ao governo, pois aqueles que eram contra a família López amargavam a prisão ou o exílio, a imprensa governamental, única a existir no país, propagava seus feitos guerreiros e diplomáticos, reais ou imaginários.

Em consequência da sistemática campanha propagandística, paulatinamente o marechal Solano López foi adquirindo uma aura de defensor do povo paraguaio e herói invencível contra seus adversários, internos e externos.

Com o início da guerra, a campanha nacionalista desencadeada por ele alcançou dimensões épicas. Para vencer os adversários do Paraguai, afirmava os documentos governamentais e a imprensa estatal, só um homem poderia proteger a pátria e destruir seus inimigos: o marechal Francisco Solano López.

Mesmo antes do término oficial da guerra, a imagem de Solano López sofreu a primeira reviravolta. O governo provisório, instalado em Assunção pelo império brasileiro, em agosto de 1869, decretou a deposição do presidente Solano López e começou a denunciá-lo como um bandido foragido da justiça “(...) y para siempre arrojado del suelo paraguayo, como asesino de su pátria y enemigo del género humano.” (OSTRIA, 2011, p. 462).

De herói consagrado quando estava no poder, o marechal Solano López passou a ser considerado traidor da nação e inimigo do povo paraguaio. Nos anos posteriores, a imagem de Solano López foi sendo refeita ao sabor das conjunturas políticas.

Para a historiografia da América Latina, Solano López ainda permanece uma incógnita. As múltiplas e conflitantes interpretações, construídas em mais de um século e meio desde a sua morte, mais confundem do que esclarecem. Muitas das versões sobre sua vida e atuação na guerra surgiram a partir de concepções ideológicas que estavam vinculadas a projetos políticos específicos. SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 527

Mais do que elucidar, essas versões ajudaram a reforçar a aura mítica em torno do presidente paraguaio. Elas dificultaram a compreensão do processo histórico em que ele estava inserido, seu protagonismo no conflito, como também sua relação conflituosa com parte da oligarquia paraguaia.

Desde a deflagração da Guerra do Paraguai, foram publicados centenas de livros e artigos em português, espanhol, italiano, francês e inglês que tratam do tema. Mesmo com a profusão de documentos, obras analíticas e memorialistas vindas à tona, muitas questões sobre o conflito e o papel desempenhado por Solano López ainda permanecem obscuros.

Como pode ser verificado através da análise da vasta produção historiográfica e ensaística, Solano López é apresentado de múltiplas formas, muitas vezes contraditórias e até opostas. Ora ele surge como um tirano ensandecido e imperialista, ora como um líder patriota e nacionalista.

As versões contraditórias continuam. Para muitos escritores, Solano López é um ferrenho opositor do imperialismo britânico, um autêntico redentor do Paraguai. Para outros, é retratado como um megalomaníaco, opressor do povo guarani. Em síntese: na maioria das interpretações, Francisco Solano López é apresentado como herói civilizador ou um bárbaro sanguinário.

As análises não conseguem superar o dilema intelectual Civilização versus Barbárie, tão presente nas interpretações sobre a América Latina. Esse debate, recorrente nas análises dos processos políticos, culturais e sociais do continente latino-americano, surgiu no decorrer do processo de consolidação das independências nacionais, ocorrido na primeira metade do século XIX.

A antinomia entre civilização e barbárie foi sintetizada na obra Facundo: Civilização e Barbárie, do escritor argentino Domingo Faustino Sarmiento, publicado em 1845. Esse livro teve profunda influência na intelectualidade do continente nos séculos XIX e XX e serviu como balizador das discursões acadêmicas e políticas.1

Para Sarmiento, o homem branco, descendente do europeu, cristão, modernizador

1 Sobre Civilização E Barbárie, ver: PRADO, , 1999. SARMIENTO, 1991. GUAZZELLI, 2011. MEDEIROS, 2013. FREITAS NETO, 2009. MÄDER, 2008. NUNES, s/d. SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 528

e partidário do ideário liberal seria o portador da civilização. Enquanto o negro, o índio e o mestiço, seguidores do misticismo e sincretismo religioso, encarnariam a barbárie.

Além das características raciais que diferenciam o “civilizado do bárbaro”, existe a questão territorial. Para Sarmiento e seus seguidores, a cidade seria o espaço privilegiado das letras, da cultura, da riqueza, da civilização, do progresso, da modernidade. Ao mesmo tempo o campo seria o reduto da ignorância, da tradição, da pobreza, da violência e do atraso.

Os partidários de Solano López, contemporâneos do presidente e os seus simpatizantes posteriores, defendem que o marechal paraguaio seria representante da civilização. Seus detratores o consideram o guardião da barbárie. Mas a história tem demonstrado que a dicotomia entre civilização e barbárie é um falso dilema.

As decisões políticas, as tramas diplomáticas, as ações bélicas e as atrocidades cometidas por todos os exércitos e seus respectivos comandantes envolvidos na Guerra do Paraguai demonstraram, na prática, que não há fronteira impermeável entre civilização e barbárie. Qualquer tentativa de estabelecer uma nítida separação entre elas resulta num rotundo fracasso.

Sendo assim, o objetivo desse artigo é lançar um pouco de luz sobre o personagem histórico Solano López e analisar como o mito político em torno dele foi sendo construído pelo próprio marechal, antes e durante a Guerra do Paraguai.

O Mito do Herói

A bibliografia sobre o conceito de mito político é vasta e inconclusiva. Otermo mito político já faz parte do cotidiano analítico de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, historiadores e jornalistas. Consequentemente, a sua utilização para analisar personagens que alcançaram destaque, seja na contemporaneidade ou em períodos mais remotos, é empregado de maneira generalizada (BALANDIER, 1976; BARTHES, 1989; ELIADE, 1986; GIRARDET, 1987; BOURDIEU, s/d).

Para o pensador romeno Mircea Eliade o “(...) mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir. Seja uma realidade total, o SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 529

cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.” (ELIADE, 1972, p, 11). Sendo assim, para a análise de uma sociedade, permeada de subjetividade mítica, é necessário a compreensão dos elementos míticos que influenciaram a sua formação.

Dessa forma, tentar separar a “verdade” do “mito”, além de ser um esforço inócuo, é um exercício intelectual que não dará conta de uma totalidade histórica, muito menos de um acontecimento social. Sendo assim, podemos deduzir que, por analogia, os fenômenos políticos também estão impregnados de elementos míticos.

O culto ao herói é uma das partes mais significativas da mitologia política ocidental. Em muitas sociedades são encontrados relatos de personagens que, através de atos heroicos, conseguiram superar obstáculos, vencer os inimigos, protegeram suas comunidades e edificaram uma nova ordem. A Europa do século XIX, palco do surgimento e ramificação do movimento denominado romantismo teve, em Napoleão Bonaparte, seu ícone principal.

Para o filósofo alemão Ernest Cassirer, na sua obra O Mito do Estado, publicado em 1945, foi o pensador irlandês Thomas Carlyle quem primeiro propôs o reconhecimento da importância do culto ao herói para que uma nação alcançasse a sua estabilidade.

Em uma série de conferências proferidas em Londres, a partir de 22 de maio de 1840, Carlyle lançou as bases intelectuais para a formulação do mito político do herói redentor. Cassirer afirma que, para Carlyle “o culto do herói era mais antigo e mais sólido elemento da vida social e cultural do homem.” (CASSIRER, 1976, pp, 207-208.)

Segundo Carlyle, a história é resultado da ação dos grandes homens, com seus feitos grandiosos. Ainda de acordo com Carlyle, sem esses magníficos personagens, a história seria a estagnação, fadada a morrer. As façanhas de homens especiais, que lideram seu povo em momentos trágicos da história, fazem com que a sociedade exista (CARLYLE, s/d).

Carlyle, na busca do herói perfeito, o aproxima do divino, afirmando que: “Aquele que deve ser o meu chefe, cuja vontade terá de ser mais alta do que a minha, foi escolhido pra mim no Céu. Não se pode conceber outra liberdade que não seja a de obedecer ao escolhido do Céu.” (CASSIRER, 1976, pp. 207-208.) SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 530

O historiador francês Raoul Girardet, na sua obra Mitos e Mitologias Políticas, retoma a importância da análise dos mitos políticos para a compreensão do processo histórico a partir do estudo do que ele denominou imaginário político.

De acordo com Girardet, existem quatro importantes narrativas míticas que formularam o imaginário político ocidental nos séculos XIX e XX: A Conspiração Maléfica, imagens de uma Idade do Ouro, a Revolução Redentora e o apelo ao Chefe Salvador. Para a análise da construção do mito Solano López, a conceituação sobre o Chefe Salvador é a que nos interessa mais de perto.

Para Raoul Girardet:

O tema do salvador, do chefe providencial, aparecerá sempre associado a símbolos de purificação: o herói redentor é aquele que liberta, corta grilhões, aniquila monstros, faz recuar as forças más. Sempre associado também a imagem de luz – ouro, o sol ascendente, o brilho no olhar – e a imagens de verticalidade – o gládio, o cetro, a árvore centenária, a montanha sagrada. (GIRARDET, 1987, p. 10)

Segundo Girardet, existem quatro modelos arquétipos do herói salvador. O primeiro é o de um homem velho, extremamente sábio, que tem um passado de glória em tempos de paz e guerra. Após uma vida dedicada à comunidade, quando ocupou importantes cargos, ele havia se recolhido. Mas, em momento de crise, é chamado para salvar a sociedade (Ibidem, p. 73).

O segundo modelo refere-se ao salvador jovem e impetuoso. Seu poder não reside no passado e sim num presente de pura ação construtora. Com sua espada em riste, o salvador conduz seu povo para um futuro de fausto e glória.

O terceiro arquétipo é a imagem do homem providencial. Ele é ponderado e se apresenta como o legislador que traçará as leis para reger a nova sociedade. Geralmente vem em seguida ao herói guerreiro e conquistador.

O quarto e último modelo apresentado por Girardet consiste numa espécie de profeta visionário. É um salvador com forte conotação religiosa que anuncia um novo tempo que virá, desde que o povo o acompanhe nessa cruzada. Ele é portador de uma realidade sagrada, só revelada pela sua sabedoria. SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 531

Ainda de acordo com o historiador Girardet, o mito político, principalmente o mito do herói, assim como os demais mitos sagrados, também é fundamentalmente polimorfo. Ele pode oferecer múltiplas e variadas interpretações, muitas vezes até contraditórias. O exemplo maior no século XIX é Napoleão Bonaparte (GIRARDET, 1987, p. 16).

Para muitos, Bonaparte surge como o herói redentor, responsável pela consolidação dos ideais da Revolução Francesa em luta contra o absolutismo. Para outros, Napoleão emerge como um general arrivista e sanguinário, dotado de personalidade autocrática e ambição imperialista. As duas versões, contraditórias entre si, tratam do mesmo personagem histórico.

Sendo assim, e seguindo a interpretação de Raoul Girardet, podemos deduzir que o mito Solano López, marechal e presidente do Paraguai, foi construído e é reconstruído permanentemente, de acordo com as conjunturas históricas, concepções ideológicas e interesses políticos do momento.

Como Napoleão Bonaparte, que tinha consciência da importância do culto ao herói para mobilização da nação em torno dos seus projetos e interesses, Solano López foi o primeiro a erigir a própria imagem com uma aura heroica, como veremos a seguir.

Com o objetivo de consolidar-se no poder e transformar o Paraguai numa potência regional, Solano López foi apresentado à sociedade paraguaia como um extraordinário diplomata, excepcional presidente e exímio estrategista militar, antes e durante a guerra.

Outro aspecto relevante relacionado ao fenômeno do mito político é a liturgia política. Muitos mitos políticos se fortalecem através dos ritos que são desenvolvidos para dar unidade, identidade e segurança ao grupo social que ele representa.

Sendo assim, o mito político se propaga através de cerimônias cívicas, desfiles militares, paradas comemorativas, rituais de posse, feriados e outras liturgias, muitas delas inspiradas na religião, para se fortalecer e consolidar-se perante a sociedade.

Solano López sabia da importância do mito político e reconhecia a força dos rituais cívicos. Nas datas alusivas a seu aniversário e posse na presidência do Paraguai, todos as cidades e acampamentos militares realizavam missas, desfiles de soldados e bailes SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 532

populares. Essas comemorações serviam para projetar sua imagem de líder inconteste da nação e promover a unidade do país em torno do seu nome.

Solano López Presidente

Quando Solano López foi eleito presidente do Paraguai, em 16 de outubro de 1862, ele sabia que precisava convencer a população de que deveria permanecer no poder, motivando os paraguaios a aceitarem suas decisões, sem questionamentos.

Para que esse entendimento fosse difundido amplamente no país, o presidente mandou reeditar o livreto Catecismo de San Alberto, com algumas adaptações. O texto se desenvolvia em forma de diálogo. Nele, o poder do presidente era comparado ao de um rei que, por sua vez, encontrava respaldo nos desígnios divinos.

O Catecismo de San Alberto foi publicado pela primeira vez em Madrid, capital do império espanhol, em 1786. Seu autor foi o prelado de Córdoba del Tucumán, José Antonio de San Alberto Campos y Julián, mais conhecido como bispo San Alberto.

Para o conde de Floridablanca, ministro do rei espanhol Carlos III, o bispo havia justificado a necessidade da publicação da seguinte forma: o catecismo serviria para se contrapor aos princípios subversivos que haviam influenciado a rebelião camponesa liderada de Tupac Amaru, que ocorrera na região do Peru em 1780. De acordo com o bispo San Alberto, “(...) un rey dentro de su reino no reconoce otro superior que Dios y no está sujeto al pueblo.” (ESTRAGÓ, 2008-2009. p. 65.)

O presidente Solano López encontrou no Catecismo de San Alberto um importante instrumento de doutrinação política e legitimação do seu poder. Com a sua adaptação à realidade paraguaia e ampla distribuição de milhares exemplares entre os alunos do país, ele pretendia infundir na população o total respeito e absoluta submissão política à autoridade presidencial.

O Catecismo de San Alberto passou a ser utilizado nas escolas como livro de ensino no período em que o presidente esteve no poder. Sua difusão entre os paraguaios reforçou a mitificação da figura de Solano López, pois realizava a junção de elementos religiosos SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 533

e políticos na defesa da autoridade do presidente.

A lição número dois do Catecismo sintetiza o objetivo da sua reedição. “El hombre puede llegar a ser rey por adopción, por compra, por permuta, por sucesión hereditaria y por elección. Este último modo es el que admite y usa la República del Paraguay para colocar legalmente a un ciudadano en el Magisterio Supremo.” (ESTRAGÓ, 2008-2009, p. 65). O regime político que o presidente López espelhava-se era, inegavelmente, o II Império, implantado na França por Napoleão III, em 1852.

Para ter apoio na sociedade, Solano López não ficou apenas no âmbito da doutrinação política. Também adotou várias medidas econômicas de cunho popular. O presidente aprovou prêmios em dinheiro para os camponeses de alta produtividade e liberou empréstimos para que os pequenos comerciantes ampliassem seus negócios. Ele deu continuidade ao programa iniciado por seu pai de enviar jovens talentosos para estudarem na Europa.

No governo do presidente Solano López, houve a implantação de um eficiente sistema de vacinação contra a varíola, controlado pelos militares e desenvolvido nos quartéis. Com essa medida, ocorreu uma melhora significativa nas condições de saúde da população paraguaia.

Nas datas cívicas e religiosas, principalmente no dia do seu aniversário (24 de julho) e posse na presidência (16 de outubro), o presidente determinava a realização de festas populares que se estendiam até a madrugada. Com opositores encarcerados e geração de empregos com as obras públicas, além da militarização da sociedade, o Paraguai entrou num período de estabilidade política, econômica e social.

Para vigiar os paraguaios e prevenir possível ação de opositores, Solano López herdou e ampliou o sistema de espionagem que atuava no país e no exterior desde o governo de Gaspar de Francia. Seus agentes obtinham informações em Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro. A oligarquia paraguaia, possível foco de contestação, vivia sob constante monitoramento.

Apelidados de pyragués, que em guarani significa pés de pluma, essa rede de acaguetes formava um exército silencioso e difundia um grande medo na sociedade. Uma simples acusação de conspiração poderia levar a pessoa para o cárcere e, misteriosamente, SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 534

desaparecer para sempre. Empregados domésticos, cocheiros, soldados e servidores públicos eram recrutados permanentemente para delatarem seus patrões, oficiais superiores e chefes burocráticos.

Como não era permitida a existência de opositores, a imprensa oficial, única a existir no país, exaltava os feitos do presidente Solano López, reais ou imaginários. Paulatinamente, López foi adquirindo uma aura de defensor do povo guarani e herói invencível contra os inimigos.

Com o início da guerra, a campanha nacionalista desencadeada no país alcançou dimensões épicas. Para vencer os inimigos internos e externos do Paraguai, afirmava os pronunciamentos governamentais e a imprensa estatal, só haveria um homem em condições ideais: o marechal Francisco Solano López.

Paraguai: potência regional

Aos 36 de idade, o general, ministro da Guerra e comandante do exército e da marinha Francisco Solano López tornara-se o mandatário maior do Paraguai. De acordo com relatos de estrangeiros, ele era imperioso, altivo e dotado de uma personalidade dominante (MASTERMAN, 1870, p. 40). Solano López era, também, profundamente religioso. Sua leitura preferida durante a campanha militar foi o livro Gênio do Cristianismo, do filósofo católico François-René de Chateaubriand (1768-1848).

Solano López havia entrado em contato com os escritos de Chateaubriand quando esteve na Europa, no começo da década de 1850. Ele ficara impressionado com a força literária e as propostas políticas do pensador francês. Nele encontrou base religiosa, justificativa intelectual e respaldo político para seu projeto de poder (ALCALÁ, 2005, pp. 65-80).

Segundo Guido Alcalá, os escritos de Solano López estão influenciados pelo romantismo desenvolvido por René de Chateaubriand, embebido no conservadorismo político, no nacionalismo e no cristianismo antirrevolucionário.

Movido por um romantismo nacionalista em vigor no século XIX, Solano López acreditava poder fazer do Paraguai uma importante potência regional, que enfrentasse em SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 535

pé de igualdade a Argentina e o Brasil nas disputas fronteiriças e que, consequentemente, seu país fosse respeitado pelas demais nações em sua autonomia.

Admirador de Napoleão Bonaparte, Solano López deu, nos três anos seguintes à sua eleição, continuidade na estruturação de um forte exército, o transformando no maior da América Latina. Seu objetivo era se contrapor ao expansionismo brasileiro e ao centralismo de Buenos Aires. O exército paraguaio, formado em sua maioria pela população pobre e camponesa de origem guarani, irá lutar bravamente na longa guerra que se avizinhava.

Os recursos arrecadados pelo estado paraguaio eram crescentes. Com a Guerra de Secessão norte-americana, iniciada em 1861, os preços do algodão e do tabaco dispararam no comércio internacional. Esses produtos, controlados pelo governo, passaram a ser cobiçados e disputados nos mercados europeus.

Além disso, a erva-mate, principal produto de exportação do Paraguai e também monopólio do governo, passou a ser consumido em larga escala, concorrendo com o café. A estabilidade política interna e os crescentes recursos fizeram do Paraguai uma forte economia na América Latina.

O presidente Solano López ambicionava transformar o Paraguai em uma potência econômica e militar regional, mas enfrentava uma dura realidade geográfica limitadora. Seu país era o único do continente que não era banhado pelo mar. Todo comércio paraguaio se dava através dos rios Paraguai e Paraná, passando por território argentino e terminando no porto de Buenos Aires, onde era obrigado a pagar vultosas taxas aduaneiras.

De acordo com a estratégia geopolítica de Solano López, seria imprescindível que o Paraguai tivesse livre acesso ao oceano Atlântico, sem intermediários. Dessa maneira, poderia ampliar seu comércio com outros países da América Latina, Estados Unidos e Europa.

Em consequência, as províncias argentinas de Corrientes e Entre Ríos e o Uruguai, cuja capital Montevidéu possuía excelente porto marítimo, se tornaram objeto de uma possível aliança com o governo paraguaio. Além disso, Corrientes tinha uma profunda afinidade cultural com os paraguaios, pois a maioria da sua população falava a língua guarani, a mesma praticada no Paraguai. SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 536

No projeto em transformar o Paraguai numa potência regional, a modernização das forças armadas ocupava papel central. O presidente paraguaio acreditava que, para se prevenir dos possíveis ataques do Brasil e Argentina e, ao mesmo tempo, ser respeitado na região, precisava organizar um exército profissional, treinado, disciplinado e muito bem armado.

Por isso, assim que assumiu o Ministério da Guerra, ainda no governo de Carlos López, o general Solano López aprovou a Lei de Conscrição Militar, que obrigava a todos os paraguaios, entre 16 e 50 anos, a prestarem o serviço militar. Com essa medida, conseguiu organizar e treinar o maior exército da América Latina, alcançando o total de 65 mil homens no decorrer da década de 1860.

Propaganda política

Solano López tinha consciência de que a guerra não é ganha apenas nos campos de batalha. Para vencer um conflito também é preciso a mobilização permanente da população civil através de intensa propaganda patriótica. Ao mesmo tempo, se faz necessário desmoralizar o inimigo com uma campanha difamatória mediante a publicação de jornais, panfletos e charges que ridicularizassem os adversários.

Logo no início da guerra, começou a circular no Paraguai várias publicações que objetivavam difundir o nacionalismo e solapar a moral dos aliados. Entre os jornais paraguaios ganhou destaque o semanário humorístico El Cacique Lambaré, voltado para achincalhar os países que formavam a Tríplice Aliança. Também se notabilizaram os periódicos El Centinela, editado em Assunção, e o Cabichuí, publicado pelo itinerante quartel-general de Solano López (SILVEIRA, 2009, pp. 56-64).

O marechal López sabia que tinha que minar o moral do exército aliado de todas as formas. Para ridicularizar os soldados adversários e animar seus soldados, determinou ao oficial Juan Crisóstomo Centurion a confecção de um jornal satírico, voltado principalmente para os soldados paraguaios.

O periódico seria publicado em espanhol e guarani. Nele deveriam constar caricaturas que menosprezassem os inimigos e exaltassem os feitos, reais ou imaginários, do exército guarani, sob o comando do marechal. Mesmo com o posicionamento contrário de Benigno SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 537

López, irmão de Solano, a ideia foi colocada em prática (CENTURION, 1894, p. 322).

Após três dias de intensas discussões, foi escolhido o nome e o desenho que iriam ilustrar a capa do jornal. O periódico satírico seria chamado de Cabichuí, nome de uma feroz vespa existente no Paraguai. O desenho escolhido foi de um negro, representando o soldado brasileiro, sendo atacado por um enxame dessas abelhas.

O desenhista do Cabichuí era o sargento Godoy. Os gravadores escolhidos foram os soldados J. Aquino, B. Acosta, G. Cáceres, F. Bargas e Francisco Velascos. Todos eles eram carpinteiros de ofício. Para gravarem as caricaturas nas pequenas peças de madeira, utilizavam afiadas facas num árduo trabalho que exigia dedicação, perícia e arte.

O primeiro número do jornal Cabichuí foi publicado em 13 de maio de 1867. O periódico era produzido pelos próprios soldados guaranis e circulava nas trincheiras. Nas charges publicadas, os brasileiros eram sempre retratados como macacos, geralmente em posturas covardes, comandados por oficiais autoritários.

Seu sucesso foi tanto entre os soldados paraguaios que passou a circular quase que diariamente. Alguns números eram deixados na floresta intencionalmente, no intuito de serem encontrados pelos inimigos e assim causar transtorno nas fileiras aliadas.

Ao mesmo tempo em que almejavam elevar o moral dos guaranis, essas publicações visavam minar a resistência dos soldados da Tríplice Aliança. Sendo assim, os jornais foram empregados como armas de guerra psicológica, pois eram enviadas às tropas inimigas. Por isso contavam com o total apoio de Solano López.

A confecção do papel para as publicações era estratégico na política de propaganda do governo paraguaio. Para manter em circulação os quatro jornais oficiais (El Semanario, El Centinela, Lambaré e Cabuchuy), foi montada uma fábrica de papel em Assunção, sob a supervisão do germânico Richard Von Fischer (CENTURION, 1894, p. 320).

Para manter acessa a chama patriótica, Solano López determinara que em todas as datas cívicas fossem realizados bailes comemorativos. Essas festividades ganhavam maior relevo no dia 24 de julho, aniversário do presidente, e 16 de outubro, data da sua eleição para presidente. Nesses dias, eram realizadas festas em todos os acampamentos SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 538

e fortificações situados no quadrilátero defensivo. Nas festividades, eram distribuídas aguardente, cerveja e vinho de laranja para todos os soldados e oficiais.

Nas datas comemorativas, Solano López sempre recebia suntuosos presentes. Em 16 de outubro de 1866, por exemplo, ele ganhou uma bandeira paraguaia bordada a ouro, cravejada de diamantes e rubis, confeccionadas pelas mulheres da alta sociedade de Assunção.

No ano seguinte, em 24 de julho de 1867, data em que completou 40 anos, Solano López foi agraciado com um álbum encadernado em ouro e pedras preciosas. O álbum era guardado dentro de uma caixa de ouro maciço, ornamentada com uma estátua equestre também de ouro. Em meio às necessidades da guerra, o fausto ainda prevalecia (THOMPSON, 1968, pp. 162-163).

Conclusão

Para a historiografia, Solano López permanece uma incógnita. As múltiplas interpretações míticas, elaboradas ao longo de um século e meio, mais confundiram do que esclareceram sua influência no conflito.

Muitas das interpretações sobre sua vida e atuação na guerra surgiram a partir de concepções ideológicas que estavam vinculadas a projetos políticos específicos. Mais do que elucidar, elas ajudaram a reforçar a aura mítica em torno do presidente paraguaio e assim dificultaram a compreensão do processo histórico em que ele estava inserido. Como também seu papel de protagonista na contenta.

Passados mais de 148 anos da trajetória política de Francisco Solano López, seu espectro ainda continua rondando a América Latina. Para uns, ele foi um herói libertador, nacionalista e corajoso, que resistiu ao expansionismo do império brasileiro e a hegemonia argentina, países supostamente tutelados pelo imperialismo britânico. Para outros, Solano López foi um tirano tresloucado e megalomaníaco que mergulhou o continente numa guerra absurda e sangrenta.

O seu julgamento em definitivo pela história ainda continua em aberto. SOLANO LÓPEZ: A CONSTRUÇÃO DO MITO LÚCIO FLÁVIO VASCONCELOS 539

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Thomas Jefferson: Direito e a Constituição dos EUA

MARCOS SORRILHA PINHEIRO Professor Assistente Doutor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Unesp – Franca, [email protected] .

Esta comunicação segue por um itinerário já apresentado em outras oportunidades por mim, qual seja: o de discutir o impacto da formação jurídica de Thomas Jefferson em seu pensamento (PINHEIRO, 2017). Em minha hipótese, a fama internacional que lhe foi concedida pela Declaração de Independência, principalmente por conta de seu poderoso preâmbulo1, acabou por consagra-lo como uma espécie de filósofo humanista ou como um defensor clássico do jus naturalismo. No entanto, segundo venho tentando demonstrar, Jefferson não foi apenas um tipo de político extremamente pragmático, como alguém que norteou sua prática política por uma visão jus positivista do Direito e, por consequência, de mundo2. De acordo com tal premissa, o ser humano ainda que dotado de direitos naturalmente constituídos, apenas conseguiria assegurar tais prerrogativas por meio de leis positivadas que nascessem do consenso popular, afinal somente assim seria possível defender suas liberdades individuais dos temperamentos inconstantes de reis tiranos e da livre e imprevisível interpretação de juízes.

Este modo de enxergar as relações humanas e, por consequência a política, adviria

1 Refiro-me a este trecho da declaração: “Quando, no curso dos acontecimentos humanos, setorna necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno para com as opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”.

2 Esta hipótese está em consonância com uma célebre frase atribuída a Jefferson em que diz: “I was bred to the law; that gave me a view of the dark side of humanity. Then I read poetry to qualify it with a gaze on the bright side” (Apud WILSON, 1985, p. 442). THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 542

de sua formação jurídica: dos anos como estudante da Faculdade de Direito em William & Mary, da prática advocatícia e, sobretudo, como um brilhante estudioso das leis, fato reconhecido por seus pares na época em que ele ganhava a vida defendendo clientes nas cortes da Virgínia (DEWEY, 1987). Além disso, a própria experiência adquirida no processo de Independência, quando os apelos dos colonos não foram capazes de comover a consciência do Rei George III em prol de sua causa, serviram-lhe de ensinamento para que ele visse apenas na lei positivada um instrumento capaz de assegurar aos homens os seus direitos. Esta amarga lição, aprendida naqueles eventos, acabaria por ser verificável também em outros momentos de sua vida, sendo um dos mais emblemáticos a Constituição de 1787.

No entanto, a primeira advertência a se fazer é por demais óbvia: Jefferson não estava nos Estados Unidos na data de confecção da Constituição, afinal, desde 1784, havia se mudado para Paris, onde figurava como Ministro dos Estados Unidos na França. Sendo assim, como é possível liga-lo a tal evento?

Tal vínculo se dá por meio de sua relação estabelecida com James Madison através de cartas no período em que viveu em solo europeu e, mais especificamente, no período em que se promoveu o encontro do Congresso Constituinte, em 1787, na Filadélfia. Ainda em 1786, quando avisado de que um comitê se reuniria para revisar os Artigos da Constituição da Confederação e que Madison figurava como um dos principais proponentes de reformas ao documento, Jefferson encaminhou ao amigo virginiano um pacote de livros contendo, entre outros autores, o filósofo inglês David Hume (ELLIS, 1998, p. 116). Esta é uma informação importante, pois será por meio dessa leitura que Madison fundamentará seu argumento contrário ao espírito de facção promovido pela democracia participativa direta, aquilo que ele chamaria de a tirania que emerge das massas. Como bem observou David Richards

o vício da democracia direta é, para Madison, sua indulgência ingênua a um vício moral mais amplo da natureza humana quando em grupos, ou seja, a patologia da psicologia de grupo (a prática de oprimir estranhos), a qual, inspirada em Hume, ele chama de facção. (RICHARDS, 1993, p. 29)

Talvez essa tenha sido a única influência direta de Jefferson na Constituição e, ao contrário do que ele poderia prever, com a qual estaria em pleno desacordo3. A verdade

3 Este é um dos pontos de divergência histórica entre os dois virginianos. Naquele momento Jefferson defendia THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 543

é que Jefferson não teve controle sobre os juízos de Madison e tampouco sobre a forma como ele interpretou suas indicações de leitura. Além disso, durante o período que se estendeu de maio a setembro de 17874, Jefferson atuou apenas como um observador daquilo que era discutido na Filadélfia, emitindo comentários por meio de cartas, com o prejuízo de estar sempre atrasado no tempo, uma vez que as notícias tardavam a chegar ao velho mundo. Outro fator o deixava ainda mais isolado, a imprecisão de Madison a respeito de seus posicionamentos nos debates travados junto aos demais congressistas naquele pleito. Dumas Malone (1951), um dos principais biógrafos de Jefferson, entende que, justamente por conhecer as opiniões de seu amigo, Madison se esquivava de confronta-lo com suas ideias, algo que se manifestaria, inclusive, na demora ao enviar uma cópia da Constituição. Malone destaca que foi somente após quase quarenta dias da aprovação do texto constitucional que Madison finalmente o faria. Em suas palavras:

talvez ele estivesse esperando até que dispusesse de tempo para escrever calmamente; talvez ele temesse a reação de Jefferson. Jefferson pode ter suspeitado de que não gozava da plena confiança de Madison, embora ele nunca tenha dito isso, e as circunstâncias precisas não certas (MALONE, 1951, p. 170).

Na realidade Jefferson teve acesso ao documento muito antes disso, por meio de um congressista de Massachusetts chamado Elbridge Gerry. Provavelmente, a demora no recebimento da correspondência tenha sido positiva para a manutenção da amizade entre eles, uma vez que as considerações enviadas por Jefferson diretamente à Madison foram bem menos ácidas do que aquelas que ele havia feito a outros interlocutores, como John Adams, William Stephens Smith, Edward Carrington, entre outros.

Desta feita, quando enfim recebeu a correspondência enviada por Madison em 24 de outubro, Jefferson, encarregou-se de emitir suas opiniões sobre o texto constitucional, incluindo suas críticas que podem ser divididas em dois pontos básicos ou, como ele mesmo descreveu, “duas pílulas de descontentamento” (JEFFERSON, 1787, carta 1): 1) A ausência de uma “declaração de direitos” e; 2) a ausência de prazos determinados de mandatos, principalmente no caso do Presidente.

estratégias de representação mais democráticas e menos centralistas. Enquanto Madison, advogava pela necessidade de uma democracia representativa consagradas pela organização de um Congresso central.

4 Período em que o Congresso Constituinte esteve reunido na Filadélfia. THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 544

Começarei pelo segundo ponto. Com o passar dos meses em que a Constituição esteve no processo de ratificação entre os Estados da Nação, Jefferson seria informado por alguns de seus interlocutores que se opor a isto era uma causa perdida, tendo em vista que todos imaginavam que George Washington seria o primeiro Presidente eleito após a aprovação da nova Constituição e, ainda segundo o desejo da maioria, governaria por longos e ininterruptos anos. O interessante é que não foi exatamente isso o que ocorreu. Washington ficou na presidência por dois mandatos apenas, acabando por estabelecer uma tradição entre os presidentes, fazendo de seu exemplo uma espécie de regra não escrita. Apenas em 1947 os termos da presidência se converteriam em uma emenda à Constituição ratificada quatro anos depois5.

De qualquer maneira, de volta ao primeiro ponto, a necessidade de uma Declaração de Direitos foi algo que Jefferson defendeu não apenas em cartas, como chegou a propagandeá- la junto a outros políticos americanos sobre a necessidade de que os estados colocassem a Declaração de Direitos como condição sine qua non para a ratificação da Constituição em 1788. Esta foi uma medida tomada por Massachusetts e que contou com a sua aprovação (JEFFERSON, 1788, carta 2). No entanto, o que me chama a atenção não é exatamente a defesa do Bill of Rights, mas as razões pelas quais ele o fez. Afinal, Jefferson era bastante taxativo quanto a necessidade de se promover na Constituição um conjunto de leis que protegessem alguns Direitos Naturais de maneira clara e direta, conforme se vê a seguir:

a omissão de uma declaração de direitos que preveja estritamente, e sem espaço para a livre interpretação, a liberdade religiosa, a liberdade de imprensa, a proteção contra exércitos permanentes, a restrição contra monopólios, a força permanente e incessante da lei de habeas corpus, bem como julgamentos por júri em todas as matérias passíveis de análise pelas leis locais e não pelo direito nacional (JEFFERSON, 1787, carta 3).

Nesta carta, chamou-me a atenção o fato de Jefferson expressar o desejo de que o texto da lei não devesse permitir margens para a interpretação, algo que ocorria em alguns tribunais de Equidade e que o irritavam profundamente, conforme deixou expresso em uma carta endereçada a seu colega italiano Philip Mazzei, dois anos antes, em 17856.

5 Conforme se sabe, essa tradição seria quebrada por Franklin Delano Roosevelt que se elegeria por quatro vezes consecutivas. A conversão dessa prática em uma emenda à Constituição não deixa de ser irônico quando relacionado ao assunto central dessa comunicação: a defesa das leis positivadas sobre a livre interpretação.

6 Nesta carta, explicando ao interlocutor a natureza dos tribunais de equidade, Jefferson afirmou que tal instância do judiciário deixava o Direito “mais incerto, sob pretexto de torná-lo mais razoável”; sendo que esta característica ia THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 545

Outro fato que também me chamou a atenção foi a sua insistência sobre o uso do júri como um direito a ser garantido a todos os americanos, obrigando aos demais estados a adota-lo, mesmo que esta não fosse uma prática recorrente a todos. O uso do júri parece ser uma forma de devolver a soberania do julgamento ao povo e não ao jurista7.

Sem dúvida alguma, a reivindicação pela elaboração de uma “declaração de direitos” é o ponto mais contundente da missiva. Não por menos, na resposta enviada a Madison, ele ainda usaria um novo argumento: “Deixe-me acrescentar que uma declaração de direitos é aquilo que o povo possui contra todos os governos da terra, gerais ou particulares, e o que nenhum governo justo deve recusar, ou descansar na simples dedução” (JEFFERSON, 1787, carta 3). Reitero a leitura que faço dessa passagem: para Jefferson seria preciso que os direitos estivessem garantidos por uma declaração estrita de maneira que, por meio dela, os cidadãos se protegessem contra seus próprios governantes. E mais, imagino que esta argumentação tenha lhe surgido a partir da memória dos tempos revolucionários, quando a ausência de supostos direitos naturais dos colonos junto às leis britânicas tornou mais difícil a defesa dos interesses dos mesmos. De qualquer maneira, esta frase é bastante emblemática, até mesmo porque ele recorreria a ela novamente em outra missiva enviada a Madison, escrita em 31 de julho de 1788. Leia-se: “Espero, portanto, que seja formada uma declaração de direitos para proteger o povo contra o governo federal, já que eles já estão protegidos contra seus governos estaduais, na maioria dos casos” (JEFFERSON, 1788, carta 5).

Nesta segunda passagem existe uma pequena variação que não pode passar despercebida. Enquanto naquela primeira o Bill of Rights se configurava em um instrumento de defesa do povo contra os governos, nesta segunda, a “declaração de direitos” seria aquela responsável por proteger o povo do governo federal. Trata-se de uma sutil alteração na compreensão de qual deveria ser a relação entre o povo e o direito, que deixa de ser ativa e se torna passiva, cabendo ao arcabouço legal a função de proteção, e não mais a função de armas a serem usadas contra os soberanos. Em outros termos, deixa de ser uma espada e passa a ser um escudo.

contra os objetivos dos antigos juízes, de “tornar a lei cada vez mais precisa”. Ver: JEFFERSON, 1785, carta 4.

7 Mathew Crow (2010, 2015) tem uma interessante tese sobre isso. Segundo o autor defende, a ideia de Jefferson era a de resignificar o sentido do tribunal de Equidade e não a de acabar com o mesmo. Desta forma, Jefferson entenderia a necessidade de que tribunais dessa natureza existissem para a correção de possíveis injustiças. No entanto, não mais caberia ao Chanceler decidir sobre isso. Na ausência de um Rei, ao qual a consciência fosse solicitada, o veredito seria produzido pela soberania popular (nova fonte de poder), consagrada no júri ou em assembleias populares. THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 546

Tal mudança, tem duas possibilidades de interpretação. A primeira é justamente a questão do tempo que as separa. A afirmação feita na primeira carta, em 1787, guarda um tom de ameaça, como quem advertisse a respeito do equívoco ao qual o colega estava se submetendo e apontasse para os possíveis resultados do mesmo: uma sublevação popular. A segunda carta, por sua vez, já era portadora da notícia de que as emendas à Constituição estavam sendo debatidas e, portanto, a frase funciona como uma espécie de endosso, ratificando a boa escolha dos congressistas. A segunda possibilidade é justamente esta interpretação ao qual Jefferson possuía (penso eu) de que, uma vez que os direitos estivessem incorporados à Constituição, o governo obediente a ela ganharia legitimidade suficiente para gerir seus governados, da mesma forma como ele havia escrito no preâmbulo da Declaração de Independência.

É importante que se recorde ainda de uma outra questão de aspecto conjuntural: a elaboração da Constituição e os argumentos apresentados por Jefferson também guardam íntimas relações com os eventos que se produziram tanto no continente americano quanto na França, daquele contexto. Como se sabe, o Congresso Constituinte teve seus trabalhos apressados por conta de uma rebelião deflagrada no estado de Massachusetts entre 1786 e 1787, conhecida por Shays’ Rebellion. Este foi um levante organizado por alguns fazendeiros e liderado por um veterano da guerra de independência, Daniel Shays, que denunciavam a existência de algumas injustiças ocorridas no campo econômico e na violação de seus direitos civis (TAYLOR, 2016).

Sem me ater ao evento especificamente, apenas destaco que ele teve grande repercussão nos debates constitucionalistas, causando comoção e preocupação entre os principais líderes da revolução americana. Entretanto, quando a notícia chegou a Jefferson, ele foi um dos únicos, senão o único, a recebe-la com bons olhos, conforme escreveu em uma carta à Abigail Adams em 22 de fevereiro de 1787 (carta 6),

O espírito de resistência ao governo é tão valioso em certas ocasiões, que desejo que ele seja sempre mantido vivo. Muitas vezes será exercido inoportunamente, mas melhor do que não ser exercido. Eu gosto de uma pequena rebelião de vez em quando. É como uma tempestade na atmosfera. (JEFFERSON, 1787) THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 547

Para Michael Hardt, filósofo americano e um dos novos interpretes de Jefferson, o virginiano possuía simpatia por rebeliões, pois acreditava que elas mantinham viva a capacidade dos cidadãos de se voltarem contra seus soberanos, resguardando o espírito revolucionário de 1776. Segundo entende o autor,

[Para Jefferson] a rebelião não é apenas uma questão de corrigir erros cometidos pelo governo e, nesse sentido, valiosa somente na medida em que sua causa for justa; a rebelião tem um valor intrínseco, a despeito da justeza de suas queixas e objetivos. Rebeliões periódicas são necessárias para garantir a saúde da sociedade e preservar a liberdade das pessoas (HARDT, 2009, p. 17).

De qualquer maneira, parece que a Shays’ Rebellion despertou em Jefferson a capacidade de pensar como o governo dos revolucionários, do qual ele fazia parte, poderia também se converter no próprio algoz de seu povo8. Esta reflexão está plenamente vinculada às experiências que Jefferson presenciava na França daqueles dias, e o combate ao despotismo do Rei que degringolariam na Revolução de 1789. Por conta disso, Jefferson se pôs a pensar em instrumentos que impedissem que a tirania se desenvolvesse entre as repúblicas democráticas. Dentre tais mecanismos, a Bill of Rights possuía um papel de destaque.

Foi justamente pensando nos desafios da Revolução na França, no despotismo dos Reis europeus e na necessidade de se construir instrumentos que impedissem a transmissão hereditária de poder nos EUA que Jefferson, em sua última carta antes de deixar Paris em regresso aos Estados Unidos, em 6 de setembro de 1789, exporia uma interessante ideia a Madison e que fundamentarei dentro da linha de leitura que propus nesta comunicação.

Nesta carta, após uma longa divagação em torno dos problemas políticos da França e a necessidade de se abolir leis de hereditariedade uma vez que a “terra pertence aos vivos”, Jefferson afirmou: “toda constituição, então, e toda lei, naturalmente expira no final de 19 anos. Se for aplicada por mais tempo, é um ato de força, e não de direito” (JEFFERSON, 1789, carta 8). A prerrogativa dos dezenove anos para o tempo de validade de uma lei estava diretamente ligada à maioridade civil de um cidadão. É interessante

8 Sobre essa preocupação é bastante emblemático este comentário emitido por Jefferson a Edward Carrington em 16 de janeiro de 1787 (carta 7): “a base de nossos governos é a opinião do povo, o primeiro objetivo deve ser o de manter esse direito; e se me fosse permitido decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não hesitaria nem por um momento em preferir pelo último”. THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 548

que se note que esta mesma ideia havia surgido dois anos antes (JEFFERSON, 1787, carta 9), em meio às discussões sobre a Constituição e, por isso, recorri a ela.

Aqui, o argumento central era o de que as leis deveriam ser feitas por aqueles que estavam diretamente submetidas a ela, uma vez que as mesmas demandavam o consentimento dos governados para serem válidas. Desta feita, as leis elaboradas por uma geração anterior quando aplicadas sobre uma nova geração já não se configurariam como um direito, mas como ato de força. Seria o mesmo que pedir para um “sujeito adulto vestir o casaco de quando ele era apenas um garoto”, como afirmaria o próprio Jefferson em outra carta que seria escrita no futuro, destinada a Henry Tompkinson, em 12 de julho de 1816 (carta 10)9.

A pergunta que eu lanço sobre esta proposição elaborada por Jefferson à Madison é a seguinte: se os direitos são auto evidentes e naturalmente constituídos, por que eles devem ser ratificados a cada 19 anos por um grupo novo de pessoas?

A resposta que consigo produzir após as leituras que fiz e os argumentos que apresentei até aqui é a seguinte: para Jefferson, a soberania popular tinha a prerrogativa de criar as normas positivas que regulariam a sociedade em que elas se insiram, mesmo que essas provoquem a não observância dos direitos naturais. Por isso para ele o processo de ratificação da Constituição era tão importante, uma vez que daria àquele documento o consentimento do povo para ser governado. É evidente que, quanto mais próximo dos direitos naturais o documento estivesse, melhor, mas isso não era exatamente uma condição sine qua non. É neste princípio em que nasce a defesa do Bill of Rights; a defesa do uso amplo do júri popular; e a positivação de leis que não deixassem espaço para a livre interpretação.

9 A data é bem distante desta que tratamos em relação a Madison. No entanto, o tema era o mesmo. Disponibilizo a citação complete e original para que compreendam a semelhança dos assuntos: “Some men look at Constitutions with sanctimonious reverence, & deem them, like the ark of the covenant, too sacred to be touched. they ascribe to the men of the preceding age a wisdom more than human, and suppose what they did to be beyond amendment. I knew that age well: I belonged to it, and labored with it. it deserved well of its country. it was very like the present, but without the experience of the present: and 40. years of experience in government is worth a century of book-reading: and this they would say themselves, were they to rise from the dead. I am certainly not an advocate for frequent & untried changes in laws and constitutions. I think moderate imperfections had better be borne with; because when once known, we accommodate ourselves to them, and find practical means of correcting their ill effects. but I know also that laws and institutions must go hand in hand with the progress of the human mind. as that becomes more developed, more enlightened, as new discoveries are made, new truths disclosed, and manners and opinions change with the change of circumstances, institutions must advance also, and keep pace with the times. we might as well require a man to wear still the coat which fitted him when a boy, as civilized society to remain ever under the regimen of their barbarous ancestors”. THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 549

Em um cenário mais amplo da política norte americana daquele momento, como resultado de toda a discussão levantada pela ausência de direitos naturais na Constituição, o Bill of Rights surgiu no ano de 1789 e selou a paz entre os Federalistas e seus principais críticos. As lições aprendidas durante a independência pareciam absorvidas, os direitos naturais como a liberdade de expressão, imprensa, entre outros, passaram a figurar como emendas à Constituição, cabendo à Nona e penúltima delas, afirmar que o fato de alguns direitos estarem ali destacados, não significava que outros direitos próprios dos cidadãos estivessem revogados. Mais uma vez se recorreu à força da lei para lembrar aos futuros juristas de sempre observarem a natureza das reivindicações de seu povo quando esse estiver em busca de justiça. Trata-se de uma lei positiva para garantir que os direitos não positivados sejam guardados.

FONTES

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Carta 2: “From Thomas Jefferson to Edward Carrington, 27 May 1788,” Founders Online, National Archives, last modified June 13, 2018,http://founders.archives.gov/ documents/Jefferson/01-13-02-0120

Carta 3: “From Thomas Jefferson to James Madison, 20 December 1787,” Founders Online, National Archives, http://founders.archives.gov/documents/ Jefferson/01-12-02-0454.

Carta 4: “From Thomas Jefferson to Philip Mazzei, November 1785,”Founders Online, National Archives, http://founders.archives.gov/documents/Jefferson/01-09-02-0056

Carta 5: “From Thomas Jefferson to James Madison, 31 July 1788,”Founders Online, National Archives, http://founders.archives.gov/documents/Jefferson/01-13-02-0335.

Carta 6: “From Thomas Jefferson to Abigail Adams, 22 February 1787,”Founders Online, National Archives, http://founders.archives.gov/documents/Adams/04-07-02-0187.

Carta 7: “From Thomas Jefferson to Edward Carrington, 16 January 1787,” Founders Online, National Archives, last modified June 13, 2018,http://founders.archives.gov/ documents/Jefferson/01-11-02-0047. THOMAS JEFFERSON: DIREITO E A CONSTITUIÇÃO DOS EUA MARCOS SORRILHA PINHEIRO 550

Carta 8: “From Thomas Jefferson to James Madison, 6 September 1789,” Founders Online, National Archives, last modified March 30, 2017, http://founders.archives. gov/documents/Jefferson/01-15-02-0375-0003.

Carta 9: “From Thomas Jefferson to William Stephens Smith, 13 November 1787,” Founders Online, National Archives, last modified June 13, 2018, http:// founders.archives.gov/documents/Jefferson/01-12-02-0348

Carta 10: “Proposals to Revise the Virginia Constitution: I. Thomas Jefferson to “Henry Tompkinson” (Samuel Kercheval), 12 July 1816,” Founders Online, National Archives, http://founders.archives.gov/documents/Jefferson/03-10-02-0128-0002.

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Una red intelectual en el campo del Trabajo Social: la revista del Centro Latinoamericano de Trabajo Social (1976-1983).

MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN Argentina. Lic. en Trabajo Social (FTS-UNLP). Maestrando en Historia y Memoria (FaHCE- UNLP). Becaria del Instituto de Estudios en Trabajo Social y Sociedad (IETSyS-UNLP). Correo electrónico: [email protected]

Introducción

La presente ponencia pretende contribuir, en general, al estudio de la historia de los intelectuales latinoamericanos y específicamente a la historia de los intelectuales del campo profesional del Trabajo Social. A partir de las herramientas que brinda la historia intelectual, analizaremos la actividad editorial desplegada por los trabajadores sociales del Centro Latinoamericano de Trabajo Social (en adelante CELATS) desde mediados de la década del setenta.1

Este nuevo Centro internacional, organizado desde Perú, concita el apoyo de diversas organizaciones profesionales que por aquella época confluyen en la Asociación Latinoamericana de Escuelas de Servicio Social (en adelante ALAESS).2 Dicho Centro emerge como punto de convergencia de los trabajadores sociales radicalizados, que siendo parte del proceso de reformulación del Trabajo Social a escala latinoamericana – la llamada Reconceptualización-, se vieron, en su mayoría, forzados al exilio ante las sangrientas dictaduras militares extendidas por el continente.

1 Este trabajo presenta los avances preliminares de una línea de investigación que forma parte del Proyecto de Investigación y Desarrollo Tecnológico I+D: “Para una historia de los intelectuales argentinos y latinoamericanos del siglo XX. Un estudio de las revistas y publicaciones editadas por agrupamientos culturales, universitarios y políticos (1917-1990)”. Proyecto financiado por la Universidad Nacional de la Plata y dirigido por el Prof. Adrián Celentano.

2 Esta organización cambiará su nombre en 1977 por el de Asociación Latinoamericana de Escuelas de Trabajo Social (ALAETS), como muestra de una diferenciación con la vieja “asistencia” social En este trabajo utilizaremos indistintamente la sigla ALAESS para referirnos tanto a los inicios de la Asociación como al cambio de su denominación en 1977. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 552

Desde 1974, bajo el peculiar contexto político peruano y siguiendo los planteos precursores del Movimiento de Reconceptualización, los trabajadores sociales del CELATS, entre ellos los brasileños Leila Lima do Santos, Walter Tesch y Vicente de Paula Faleiros, los chilenos Diego Palma, Luis Araneda y Teresa Quiroz y las peruanas Norma Rottier, Dina Soldevilla, Margarita Rozas y Antonieta Manrique; propician debates y reflexiones acerca de los problemas metodológicos de la disciplina, el perfil profesional, su relación con los aparatos del Estado y su compromiso en la intervención con los sectores populares. Cabe destacar que buena parte de los integrantes del Centro comparten diversas condiciones: ser investigadores, haber realizado estudios de posgrado en países europeos, formar parte de las corrientes de la nueva izquierda intelectual en los diversos países latinoamericanos y varios de ellos la condición de exiliados.

En las páginas siguientes, presentaremos un análisis del proceso de conformación del CELATS, su posterior afianzamiento a nivel latinoamericano a partir de la producción de su aparato editorial y la circulación que estos materiales tuvieron más allá de la escala nacional. El aparato editorial del Centro despliega su producción en numerosos folletos, libros y revistas, aquí nos detendremos específicamente en la revista Acción Crítica, órgano de prensa de este centro académico, que le permitió tejer diversas redes con otros grupos editoriales del continente que producían revistas especializadas de Trabajo Social, como el grupo ECRO en Argentina y el grupo Cortez en Brasil.

Será el estudio del proceso de producción, circulación, consumo y recepción de las ideas del CELATS, lo que nos permitirá identificar la conformación de una red intelectual latinoamericana dentro del campo profesional del Trabajo Social, así como sus formas de desarrollo y funcionamiento.

Antecedentes para la conformación de un centro académico de Trabajo Social a nivel latinoamericano

Para avanzar en el análisis de la conformación del CELATS, debemos remitirnos a sus experiencias antecesoras para identificar cuáles son los elementos renovadores que confluyen al interior del Trabajo Social desde 1965, procurando nuevas alternativas de acción para los profesionales de este campo. En efecto, el curso que desemboca en la fundación del CELATS es producto de intensos cambios tanto en los estudios sobre las UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 553

realidades latinoamericanas como en las perspectivas de los trabajadores sociales sobre sus intervenciones. Las dos principales perspectivas que, en la disciplina, alcanzaron escala latinoamericana fueron la conocida como Desarrollo de la Comunidad y la del llamado Movimiento de Reconceptualización.

Los programas de Desarrollo de la Comunidad fueron implementados en la primera posguerra por la administración colonial británica como estrategias de dominación y control estatal de las contradicciones sociales en los países africanos y asiáticos. Estos programas se tecnificaron y complejizaron, revistiendo un carácter modernizador en los años cuarenta. Durante los cincuenta aparece en los Estados Unidos el método conocido como Organización de la Comunidad que implementa técnicas y conceptos afines a la corriente británica y que con la etiqueta de Desarrollo de la Comunidad alcanza difusión a escala latinoamericana (Bonfiglio, 1982). Ambas corrientes comparten el concepto de “comunidad”, entendida desde el prisma estructural funcionalista; además de utilizar técnicas estadísticas, demográficas y de psicología social, dinámica de grupos y el estudio de “caso” individual. Emerge así el conocido modelo “caso, grupo, comunidad”. A principios de los sesenta, bajo el influjo del Desarrollismo, las instituciones profesionales latinoamericanas implementaron aquellas técnicas, métodos y conceptos del Desarrollo de la Comunidad en múltiples programas. Estos programas enfocaron a las poblaciones conceptualizándolas como comunidades “tradicionales” inmersas en relaciones “atrasadas” frente a la aceleración de los cambios derivados de la urbanización y la industrialización.3 El Desarrollismo puso en marcha sus ideas a partir de políticas sociales estatales que buscaron lograr las “condiciones previas” a un progreso y modernización que no tardarían en llegar. Lo rural y lo urbano-marginal fueron entonces, escenarios privilegiados para la intervención de los nuevos métodos desarrollistas. La intervención en lo social estuvo marcada por una pedagogía que supone que en la “ignorancia” está la causa de la pobreza (Grassi, 1989).

A fines de la década de sesenta, surgió entre los asistentes sociales múltiples objeciones a los procedimientos y a la dirección de la intervención profesional instalados bajo la orientación norteamericana. A partir de estas objeciones, nació el ferviente

3 Destacamos en este contexto, la importancia que adquieren organismos internacionales de desarrollo, ente ellos la Organización de Estados Americanos (OEA) y la Organización de las Naciones Unidas (ONU), como promotores e impulsores de la utilización de ambas corrientes en América Latina. A principios de los sesenta la perspectiva de Desarrollo de la Comunidad es adoptada por la Alianza para el Progreso impulsada por los Estados Unidos para contener la influencia de la revolución cubana, que se proclamó “marxista-leninista” en 1961. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 554

movimiento conocido como de Reconceptualización, que tendió a cuestionar la noción de asistencia social y a postular la de Trabajo Social. En la clásica descripción propuesta por el trabajador social argentino Gustavo Parra (2002), se reconoce el inicio de este movimiento en el año 1965, fundamentalmente en Argentina, Brasil y Uruguay a partir de desarrollo de tres acontecimientos: la realización del I Seminario Regional Latinoamericano de Servicio Social, en Porto Alegre; la modificación del plan de estudios de la carrera en la Universidad de la República, en Montevideo y la creación de la revista Hoy en el Servicio Social del Grupo ECRO, en Buenos Aires.4

En los años posteriores a la formación de este movimiento, el trabajador social chileno Diego Palma (1977), explica en un libro publicado en un convenio entre la editorial ECRO y la editorial del CELATS, cómo el Trabajo Social bajo la Reconceptualización, se traslada de los problemas comunitarios, grupales e individuales hacia los problemas estructurales de la sociedad. Las expectativas en alcanzar un cambio concreto del orden social permitieron una crítica a los métodos tradicionales de la profesión, a la ideología que la sustentaba y a su inadecuación para la comprensión de la realidad latinoamericana. La Reconceptualización entendió a la profesión como una institución superestructural destinada a reproducir y legitimar las relaciones sociales de producción, pero esta característica señala Palma (1977), no se constituye en un determinismo, abriendo dos opciones donde cada trabajador social debe realizar su elección: por el mantenimiento de la dominación y la dependencia o por la acción de ruptura y liberación.

Así los trabajadores sociales involucrados en estas experiencias reconceptualizadoras, que acompañaban movimientos populares en el campo y en la ciudad promovieron además desde sus cátedras universitarias profundos cambios en los currículos académicos, entre ellos podemos incluir a Luis María Früm en la Escuela de Trabajo Social de la Universidad Nacional de San Luís; a Hernan Kruse en la carrera de Servicio Social de la Universidad de Montevideo; a Vicente de Paula Faleiros, Teresa Quirós y Juan de la Cruz Mojica Martínez en

4 Grupo editor argentino que adopta el nombre de “Esquema, Conceptual, Referencial y Operativo” ideado por el psicólogo social Enrique Pichon Rivière. Este grupo contaba con una amplia experiencia y funcionaba como un canal de divulgación de la Reconceptualización a nivel continental. Desde 1964, ECRO edita la revista Hoy en el Servicio Social; que en 1971 cambiará su nombre por el de Hoy en el Trabajo Social, considerando al Trabajo Social como la superación del asistencialismo. De publicación trimestral, esta revista tendrá tiradas por todo el país a través de la distribuidora Tres Américas. El Comité Editorial se compone reconocidos trabajadores sociales: Alberto Dufour, Norberto Alayón, Juan Barreix y Luis Fernández. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 555

la Escuela de Trabajo Social de la Universidad Católica de Valparaíso y a Leila Lima Santos en la Escuela de Servicio Social de la Universidad de Belo Horizonte impulsando el conocido Método Belo Horizonte (Método BH).5 Simultáneamente, estos profesionales se alinearon con las organizaciones políticas de la “nueva izquierda” argentina, uruguaya, chilena y brasileña: Montoneros y el Partido Revolucionario de los Trabajadores y su orientación marxista, el Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP), en Argentina, los Tupamaros, en Uruguay, el Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), en Chile y Acción Popular, en Brasil.

La nueva izquierda, en la que estos intelectuales cumplieron un rol central de elaboración ideológica, reunió un complejo haz de tendencias guevaristas, cristianas, maoístas, nacionalistas de izquierda que polemizaban sobre las vías para la revolución o el cambio social, para los cuales muchos incluían el paso a la lucha armada (Tortti, 2014). Frente a esta contestación generalizada al orden capitalista, las clases dominantes latinoamericanas desencadenaron una sucesión de golpes de Estado que derrotaron sangrientamente a aquellas tendencias revolucionarias y aun a las reformistas y al mismo tiempo, empujaron al exilio a sus militantes, entre ellos numerosos trabajadores sociales, como es el caso de los chilenos Luis Araneda y Omar Ruz, el venezolano Boris Alexis Lima y los brasileños Vicente de Paula Faleiros y Leila Lima Santos.

5 Früm fue docente de las Escuelas de General Roca y Neuquén, director de esta última en 1973. Más tarde se desempeñó como docente y Director de la Escuela de Trabajo Social de la Universidad Nacional de San Luis, durante la presidencia de Héctor José Cámpora. También fue trabajador social en el Departamento de Bienestar Social de la Policía Nacional y miembro del grupo ECRO, donde publicó varios artículos en la revista Hoy en el Trabajo Social. Kruse fue un destacado precursor de las ideas de la Reconceptualización. Participante del Grupo ECRO, tuvo numerosas colaboraciones en la Revista Hoy en el Servicio Social. En 1966 fue Presidente del II Seminario Regional Latinoamericano de Servicio Social desarrollado en Montevideo. En los años siguientes participará de los Seminarios Internacionales dictados por el Instituto de Solidaridad Internacional (ISI) dependiente de la Fundación Konrad Adenauer (FKA). Mientras que Faleiros en 1966, finalizará sus estudios en la Escuela de Servicio Social de la Universidad Ribeirão Preto de Minas Gerais. Luego realizará estudios de Posgrado en París, de regreso a Brasil participará como militante en la Juventud Universitaria Católica y de la organización Acción Popular. Ante la dictadura brasileña deberá exiliarse en Chile donde se desempeñará como profesor, investigador y jefe del Departamento de la Escuela de Servicio Social de la Universidad Católica de Valparaíso, hasta su nuevo exilio en Perú cuando el régimen pinochetista llegue a Chile. En Perú participó activamente del CELATS publicando numerosos artículos. La chilena Quirós se desempeñó entre 1972 y 1973 como Directora de la Escuela de Trabajo Social de la Universidad Católica de Valparaíso, durante el gobierno de Pinochet se verá obligada a exiliarse y allí participará del CELATS siendo parte del Comité Editorial de Acción Crítica, donde se convertirá en una ferviente difusora de la metodología de la sistematización. Mojica Martínez luego de graduarse de trabajador social en Colombia, residirá en Chile siendo docente –junto a Faleiros y Quiróz- de la Escuela de Trabajo Social de la Universidad de Valparaíso, hasta la dictadura pinochetista donde también se exiliará en Lima, formando parte de la fuerza de trabajo del CELATS, pasando por tomar a cargo su dirección en 1976. Años más tarde será el Director de la primera Maestría Latinoamericana de Trabajo Social, dictada en Honduras a través de un convenio entre la Universidad Autónoma de Honduras y el CELATS. Luego de graduarse, Lima Santos viajará en 1966 a París donde realizó un estudio de posgrado en Sociología del Trabajo en la Universidad de Paris, regresando en 1969 a Brasil, donde se desempeñó como Directora de la Escuela de Servicio Social de la Universidad de Belo Horizonte. Años más tarde, Lima Santos exiliada en Perú será parte del CELATS, participe activa del área de comunicaciones y miembro del Consejo de Redacción de Acción crítica. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 556

La experiencia exiliar contribuye a la reflexión sobre las prácticas renovadoras buscando capitalizarlas para continuar con la renovación teórico-práctica al interior del campo profesional. Como parte de esa búsqueda renovadora, el CELATS emerge como organismo transnacional que permite canalizar iniciativas acordes a las necesidades históricas del continente. Además de las experiencias registradas, debemos tener en cuenta la incidencia de algunos elementos internacionales que son parte de los antecedentes de conformación del Centro.

En efecto, antes de su aparición, se instala en Lima el Instituto de Solidaridad Internacional (en adelante ISI), quien tendrá una indiscutible influencia tanto en la formación del CELATS como en su posterior financiamiento económico. El ISI es un organismo dependiente de la Fundación demócrata cristiana Konrad Adenauer (en adelante FKA), organización autónoma y privada, reconocida por el gobierno social demócrata alemán y que brinda durante una década su apoyo directo al “Proyecto de Trabajo Social en América Latina” (en adelante PTS- ISI).6 Las actividades emprendidas por este proyecto concuerdan con los planteamientos de la Reconceptualización y nuclean a los sectores más renovadores de la profesión.7 No obstante, sus ideas respecto al cambio social representan un riesgo político para la organización alemana que financia tales actividades razón por la cual, en 1974, se plantea que las mismas estén a cargo no ya del instituto alemán, sino de una nueva organización que residiera en América Latina. La entidad promotora del PTS-ISI y contraparte del ISI será ALAESS.

Los primeros pasos del CELATS y sus áreas programáticas

En julio de 1974 en San José de Costa Rica, durante una reunión extraordinaria que prosiguió a la asamblea de ALAESS, un grupo de profesionales mocionó la fundación de un

6 Además del financiamiento de la FKA, a partir de 1980 el CELATS obtiene los aportes y colaboración del Centro Internazionale Rocevia y de Solidarité Unión Coopération (SUCO), una institución canadiense que ofrece aportes fundamentalmente para operar en las experiencias en salud comunitaria.

7 Lima Santos (1984) distinguen tres períodos en el desarrollo del PTS-ISI: en el periodo inicial (1965-1969) se realizaron tres cursos en la República Federal Alemana con el objetivo de conocer la programación, metas y desarrollo de las instituciones de Bienestar Social que funcionaban en dicho país. En el período de reconceptualización (1969- 1973) ya no se trata de apoyar al Trabajo Social en general sino de impulsar un nuevo movimiento en particular y los seminarios destinados a docentes se dictan en América Latina. A partir de 1970, el PTS-ISI instala una oficina especial en Lima, a cargo del trabajador social alemán Klaus Oehler y la asistente social peruana Ruth Graciela Madueña, a la vez que se firma un convenio con la editorial ECRO de Argentina, denominado “Serie ISI-ECRO”. El tercer período del PTS-ISI es el de concretización (1973-1975) en el que opera un cambio de orientación hacia los problemas de la intervención profesional y surge un original programa llamado “Capacitación Continuada”. Durante esta fase la dirección del proyecto pasa a manos del alemán Willi Erl y se incorpora Consuelo Quirós. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 557

centro de investigaciones que sería el CELATS.8 Uno de los puntos fuertemente discutidos en dicho encuentro giró alrededor de cuál sería el país en donde funcionaría la sede del Centro, dados los contextos dictatoriales consolidados en Sudamérica. Los requisitos acordados fueron: a) que el país sede posea una situación política favorable que ofrezca garantía de estabilidad, apertura y apoyo de las actividades del Centro; b) que puedan ser aprovechados sus recursos institucionales y su infraestructura; c) que la situación geográfica sea adecuada en términos de distancia y desplazamiento a otros países; d) que existan experiencias significativas de un trabajo social renovado (Lima Santos, 1984). Siguiendo estos ítems, optaron por Perú, país en el que desde 1970 operaba el PTS-ISI, lo que nos permite visualizar la centralidad que adquirió la sede limeña.

Constituido el Centro y elegido su sede, el CELATS pasa a depender jurídica y formalmente de ALAESS, constituyéndose una comisión organizadora formada por representantes del grupo invitado al encuentro en Costa Rica: Beatriz de la Vega, Luis Araneda, Omar Ruz y Lima Santos.9 Basta observar que tres de estos cuatro integrantes eran conocidos profesionales e intelectuales de la nueva izquierda: Ruz era un chileno exiliado desde 1973, Araneda había sido secuestrado y torturado por el régimen pinochetista. Ambos habían trabajado en la Escuela de Trabajo Social de la Universidad de Concepción, institución donde tuvo gran influencia el MIR, donde militaron numerosos docentes, estudiantes y graduados, que serían asesinados entre 1973 y 1975. Mientras Lima Santos era otra exiliada brasileña, discípula althusseriana, ligada a la corriente maoísta denominada Acción Popular.

En el encuentro de Costa Rica se consolida el estatuto que da origen al CELATS, siendo sus funciones específicas:

promover proyectos de investigación y acción conducentes a impulsar la producción y divulgación del conocimiento científico de la realidad en su relevancia en Trabajo Social; reconocer y analizar las necesidades de los diversos sectores populares de nuestro continente, para orientar los cursos de acción

8 En dicha reunión participan Luis Araneda y Margarita de Armijos por Ecuador; Omar Ruz, Alicia Fortes de Valverde y Carmen Salinero por Chile, Florisabel Ramírez de Delgado por Costa Rica; Carmen de Castro por El Salvador, Beatriz de la Vega por México y María Angélica Peña por Argentina. Por el ISI asistieron Willi Erl, Consuelo Quiroga y Heribert Scharrenbroich; además de un grupo de invitados ligados a esa experiencia: Leila Lima Santos y María das Dores de Brasil, Diego Palma y Teresa Quirós de Chile, Juan Mojica de Colombia y Miryam Gamboa de Bolivia.

9 Esa comisión organizadora ejercerá su función hasta julio de 1977, cuando la sustituya el primer Consejo Directivo electo en una asamblea de ALAESS reunida en Dominicana. Dicho consejo será presidido por el brasileño Seno Antonio Cornely, secundado por el chileno Luis Araneda y la colombiana María Cecilia Tobón, además de la asesoría del alemán Willi Erl. Por entonces la asamblea sesiona en Dominicana, pero la sede ejecutiva reside en Porto Alegre, Brasil. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 558

a la intervención del Trabajo Social; preparar y proponer acciones para la superación de esas necesidades y sus causas generadoras; desarrollar acciones y prácticas para colaborar en la orientación de las políticas sociales; colaborar e implementar las políticas generales de ALAESS (LIMA SANTOS, 1984, 14)

Nótese que junto a la planificación del trabajo docente aparece por un lado la promoción de acciones populares y por otro la colaboración con las políticas sociales impulsadas por los aparatos estatales. Bajo estos objetivos, se da inicio a la programación trienal del Centro (1975-1977), bajo la dirección de la trabajadora social brasileña Consuelo Quiroga Aramayo.10 A partir de 1976, es sucedida por Juan Mojica Martínez, quien se desempeñó en dicho cargo hasta mayo de 1978. Durante esos años, el CELATS funcionó bajo cuatro áreas programáticas: Capacitación Continuada, Investigación, Investigación- Acción y Comunicaciones (Lima Santos, 1984).

El área de Capacitación Continuada aparece como una etapa posterior a la formación profesional cuyo objetivo es profundizar el conocimiento científico en el campo de la investigación social. Sobre la base de experiencias previas del PTS-ISI desenvolvió proyectos de capacitación docente en República Dominicana, Honduras, México, Ecuador, Bolivia y Brasil.

El área de Investigación impulsó el modelo “investigación-acción” de modo bianual desde 1975.11 Primero aplicado a las herramientas teóricas de la profesión como el estudio de metodologías para trabajar junto a los sectores populares, el análisis de las políticas públicas y de los marcos institucionales donde opera el Trabajo Social y desde 1976, al estudio histórico de la problemática profesional y al desarrollo de las asociaciones profesionales, y a partir de 1979, realizó Planes de Investigación a Mediano Plazo (PIMP) orientados al estudio de procesos de urbanización, de industrialización y políticas sociales.

Mientras que el área de Investigación-Acción pretende concretar los postulados teóricos de la Reconceptualización a través de experiencias junto a los sectores populares realizadas con el “Programa de Modelos Prácticos”, dirigido a investigaciones sobre la problemática obrera y la problemática rural-indígena.

10 Quiroga Aramayo fue anteriormente Directora del PTS-ISI. En 1968 egresó de la facultad de Servicio Social de la Pontificia Universidad Católica de Minas Gerais y en 1982 se graduó de la maestría en Educación de la Universidad Federal de Minas Gerais.

11 Entre las diversas investigaciones en curso, la revista del CELATS señala: estudios con campesinos, obreros e indígenas. Al mismo tiempo se busca recoger las elaboraciones teóricas del Trabajo Social reconceptualizado, acompañado del análisis sobre la formación que se imparte en el Trabajo Social latinoamericano y las diversas agrupaciones profesionales que nuclea. Ver: Acción Crítica, 1, 1976, pp.50-53. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 559

Finalmente, el Área de Comunicaciones se aboca a la divulgación de los conocimientos generados en las otras áreas a partir de la producción editorial. Durante la etapa inicial del CELATS, dicha área se dedicó exclusivamente a la recuperación editorial de la investigación y capacitación, acercando a los trabajadores sociales latinoamericanos los resultados de la implementación de sus diversos programas. Es en esta área donde identificamos un proceso de producción y circulación ideológica que se extendió por todo el continente. Será este aparato institucional formado alrededor del Centro y desplegado en sus áreas programáticas, lo que nos permitirá identificar la conformación de una red intelectual latinoamericana en el campo del Trabajo Social.

Siguiendo a Eduardo Devés Valdés (2007), podemos caracterizar a una red intelectual como un conjunto de personas ocupadas en la misma producción y difusión del conocimiento, que se comunican en razón de su actividad profesional. Los vínculos entre quienes constituyen una red pueden ser variados y es necesario para desentrañarlos, el análisis de sus formas de comunicación, promoción de libros, revistas y editoriales; la correspondencia y las traducciones; la participación en centros de estudios, foros y congresos y las polémicas entre los intelectuales.

Un novedoso aparato editorial que publica libros, cuadernos y revistas

Para analizar el aparato editorial del CELATS debemos sortear una dificultad: con frecuencia la mirada latinoamericana sobre la historia del libro y la edición puede devenir en una sumatoria de panoramas nacionales. Sin embargo, es posible comprobar que “editores migrantes, intelectuales y escritores nómades, dictaduras que alejan a sus hombres quienes, a la vez, contaminan los países hermanos” (De Diego, 2015, 25) conforman las relaciones históricas que son atravesadas por una misma realidad latinoamericana. En este sentido, estudiamos el dispositivo editorial desplegado por el CELATS, para reconstruir la política editorial internacional que impulsó, sus relaciones de intercambio con otras redes editoriales del continente y con diversos tipos de lectores; analizando las formas materiales que reúnen y difunden sus intervenciones, mediante las cuales elaboró una mirada latinoamericana específica que hizo huella en la historia del Trabajo Social cuando este se agitó entre las dictaduras militares, la revolución nicaragüense y la transición a las nuevas democracias en los años ochenta. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 560

En la actividad editorial desplegada por el CELATS es posible identificar un proceso global de producción y circulación ideológico en el cual, siguiendo a Horacio Tarcus (2007), podemos distinguir analíticamente cuatro momentos: el de producción de una teoría por intelectuales, el de difusión de un cuerpo de ideas a través de su edición en libros, folletos, periódicos, revistas, conferencias, etc.; edición llevada a cabo por los mismos intelectuales o agentes especializados como editoriales, traductores, publicistas y propagandistas; el de la recepción, donde el cuerpo de ideas es difundido en un campo de producción diverso al original y el de la apropiación, donde el cuerpo de ideas es consumido por un lector final.

La intensa actividad editorial desarrollada por el CELATS en Perú, a través del Área de Comunicaciones, se materializa en la serie de Libros CELATS, Los Cuadernos CELATS, el Informativo CELATS y la Revista Acción Crítica. También tendrán sede en Lima: el taller de impresiones, el almacén dedicado a la venta de producciones y al acopio del stock de las futuras distribuciones, la biblioteca y el centro de documentación, con una importante cantidad de materiales apropiados mayoritariamente por un público estudiantil.

A continuación, describiremos brevemente estos formatos materiales, para abocarnos específicamente en este trabajo, a la edición de la revistaAcción Crítica.

El inicio de las publicaciones del Centro acordó un convenio con la editorial ECRO de Argentina. A partir de 1976 aparece el primer volumen de la serie de Libros CELATS titulado Trabajo Social con campesinos de los trabajadores sociales Roberto Rodríguez y Jorge Valenzuela. Un año después se publica La Reconceptualización, una búsqueda en América Latina del chileno Diego Palma. El tercer número de esta serie entra en circulación solamente bajo el auspicio del CELATS, dando por finalizado el convenio con ECRO. Cada libro tuvo una tirada de tres mil ejemplares y estas iniciativas editoriales fueron saludadas mediante numerosos anuncios, artículos y reseñas por la revista Hoy en el Trabajo Social.

A fines de la década del setenta, el CELATS también inicia otro convenio con la editorial argentina Humanitas y publica la colección bautizada Libros Humanitas-CELATS.12 Entre

12 Esta editorial es creada por el Prof. Aníbal Villaverde y su esposa Sela Sierra de Villaverde, comenzando sus actividades en la década del cincuenta. Inicialmente se dedica a publicaciones vinculadas con el área educativa y de pedagogía, en el año 1963 se aboca al servicio social a partir de la publicación de la serie de Cuadernos de Asistencia Social bajo la supervisión de Sela Sierra, quien fue además autora del primer Cuaderno titulado Introducción a la Asistencia Social. En marzo de 1968 Humanitas edita el primer número de la revista Selecciones de Social Work, bajo la dirección de A. Villaverde. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 561

otros títulos destacamos el libro publicado en 1978 por Walter Tesch y Roberto Rodríguez, titulado Capacitación en el área laboral.13

Finalmente, hacia 1982 el Centro firmará otro convenio, esta vez con la editorial brasileña Cortez, sello ligado a la cultura de izquierdas de ese país. El contexto donde se produce dicho convenio es el punto de llegada de dos procesos brasileños: por un lado, la trasformación del campo del Trabajo Social marcado por las luchas en busca del reconocimiento estatal de las categorías profesionales y la construcción de la sindicalización unificada de los profesionales. Por otro, la intensa participación delos trabajadores sociales en la oposición a la dictadura que impulsaba la salida democrática, aliados al novo sindicalismo articulado desde 1979 en la Central Única de Trabajadores (CUT) y que dará origen al Partido de los Trabajadores (PT). El convenio con Cortez permitirá la circulación y divulgación de numerosas obras del CELATS en portugués.

El haz de problemas que se discuten en la serie de Libros CELATS, afectan a los otros formatos materiales de las publicaciones del Centro, entre ellos, los Cuadernos CELATS. Distribuidos desde 1976, los cuadernos son de producción artesanal siendo mimeografiados por el personal de planta en Lima. Cada entrega tiene un centenar de páginas, con tiradas de aproximadamente quinientos ejemplares, que se duplica hacia 1979. Este material aparece publicitado en la revista Hoy en el Trabajo Social, tanto en la sección informaciones como en el apartado bibliográficas.14

Los Cuadernos CELATS se publican bajo cuatro modalidades: los Cuadernos CELATS que recogen y sistematizan información y análisis derivados de los diferentes programas del Centro a nivel local y latinoamericano; los Cuadernos Estudiantiles dedicados a divulgar tesis elaboradas por los estudiantes; los Cuadernos de Investigación-Acción que divulgan las sistematizaciones teóricas derivadas de las experiencias de intervención social y los Cuadernos de Circulación Restringida, dedicados a la programación anual de la institución y a su funcionamiento interno.

Otro componente que encontramos en el dispositivo editorial del Centro es el Informativo CELATS. De publicación bimensual, es una herramienta de difusión para los

13 Este libro se desprende de un acuerdo entre el CELATS y la empresa pesquera del Estado peruano “PESCA-PERÚ”, donde el Centro presta colaboración, a pedido de la empresa, en un curso de actualización de conocimientos sobre servicio social.

14 Ver revista Hoy en el Trabajo Social, 34, diciembre 1977, pp. 48-63. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 562

trabajadores sociales acerca de los principales eventos organizados en América Latina. Este material es editado en Lima por el Comité Ejecutivo del CELATS, con aproximadamente un total de 2000 ejemplares, distribuidos de forma gratuita prioritariamente entre las Escuelas, gremios y grupos organizados de trabajadores sociales del continente. En 1976, la revista argentina Hoy en el Trabajo Social glosa el primer boletín informativo.15

La revista del CELATS y sus vínculos con otros proyectos editoriales de América Latina

Desde diciembre de 1976, otra importante publicación de alcance transnacional que tuvo el aparato editorial del CELATS fue la revista Acción Crítica. La misma se publicó en colaboración con ALAESS, de edición bianual y con una tirada de 3000 ejemplares. Su tapa es fácilmente distinguible porque se fabrica a color y con un papel de textura más gruesa que el resto de sus páginas, incluye cuadros y varias imágenes. Número a número este órgano de prensa se volvió más extensivo, cuestión reflejada en el incremento de la cantidad de páginas, artículos y anuncios que se incluyen. Para poder acceder a este material fuera del Perú, se podía solicitar una suscripción anual, a través del envió de una planilla completa con datos personales y con el pago de la suscripción en un cheque por código postal. Esta planilla se encontraba en una de las páginas al interior de la revista.

El Consejo Editorial fue conformado en sus inicios por Luis Araneda Alfaro (Ecuador), Margarita de Armijos (Ecuador), María Atilano (México), Magdalena Barón de Carmona (Colombia), Carmen Castro (El Salvador), Florisabel de Delgado (Costa Rica), Lille de Fábrega (Panamá), Omar Ruz (México) y Beatriz de la Vega (México). Mientras que formaron parte del Consejo de Redacción Juan Mojica Martínez (Colombia), Boris Alexis Lima (Venezuela), Leila Lima Santos (Brasil) y Willi Erl (Alemania) y el Comité Editorial estuvo compuesto por Teresa Quiroz (Chile), Alejandrino Maguiña (Perú), Diego Palma (Chile), Norma Rottier, Dina Soldevilla, Carlos Urrutia, Margarita Rozas y Antonieta Manrique (Perú).

Acción Crítica incluye diversas secciones que se replican con regularidad: nota editorial, ensayos, entrevistas, investigación-acción y libros. Estas secciones incluyen diversos artículos, entrevistas y experiencias de viajes, reflejan las estadías de algunos

15 Ver revista Hoy en el Trabajo Social, 31, noviembre 1976, pp. 45-49. UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 563

enviados especiales del Centro a otros países, recupera trabajos y ponencias presentados en diversos eventos, información sobre los congresos y conferencias realizadas en el campo del Trabajo Social latinoamericano y una detallada revisión bibliográfica de las obras y títulos que se editan cotidianamente sobre Trabajo Social.

Entre los temas abordados por los intelectuales del CELATS, durante los inicios de la revista, registramos una notable relevancia sobre la temática indígena y campesina, marcada por la presencia de la sociedad peruana; sociedad en la que el Centro desarrolló sus principales actividades e instaló el taller de impresiones de su órgano editor. Esta centralidad podemos advertirla desde la tapa del primer número de Acción Crítica, donde es posible identificar la imagen de un hombre y una mujer indígena, con vestiduras típicas de la zona andina. Es posible hallar, número a número, un incremento en la variedad de temáticas introducidas: vivienda, hábitat popular, salud, educación, género, las políticas sociales, los movimientos sociales y su relación con el Estado, la sindicalización y otras formas de organización. Temáticas que se encuentran íntimamente relacionadas con la intervención profesional de los trabajadores sociales. Sin embargo, cabe destacar que la revista no se restringe al abordaje de las especificidades del campo del Trabajo Social, sino que se extiende al resto de las Ciencias Sociales, ya sea por quienes escriben allí, los lectores a los que se dirige, así como las temáticas presentadas.

Al mismo tiempo, identificamos el abordaje de algunos temas que introducen puntos de tensión reflejados en las publicaciones de la revista. Por un lado, el quehacer profesional con los sectores populares, fundamentalmente en lo que hace al trabajo junto a los pobladores de la zona, donde se plantea la idea de una intervención dialéctica de la realidad en oposición al método de “caso, grupo, comunidad”. Por otro, tanto las dictaduras implementadas en el Cono Sur, como las experiencias revolucionarias de Cuba y Nicaragua, son constantemente referenciadas en las publicaciones que promueve la revista, por ejemplo, se denuncian el asesinato de trabajadores sociales en manos de militares y aparecen ensayos que analizan los cambios del Trabajo Social en una sociedad no capitalista.

Nos interesa destacar también otras revistas especializadas del continente que aparecen publicitadas en la revista del CELATS, entre ellas, Testimonio, Hoy en el Trabajo Social y Selecciones del Servicio Social, de Argentina; Servicio Social & Sociedad y Planeamiento Urbano, de Brasil; Apuntes para el Trabajo Social, de Chile; Procesos y UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 564

Políticas Sociales de Colombia, Historia y Sociedad, de México. También son promocionadas varias editoriales de América Latina: Retama Editorial, de Perú, Editorial Cortez & Morales LTDA, de Brasil, Editorial ECRO y Editorial Humanitas, de Argentina.

Una especial mención despierta el vínculo establecido entre CELATS y el grupo editor brasileño Cortez. Esta reconocida editorial, que publica títulos sobre Servicio Social y Educación, fue fundada en 1980 por José Xavier Cortez, bajo el sello de “Cortez & Morales”. Desde sus inicios, este grupo editor entabló lazos con el CELATS, lo que posibilitó al Centro reproducir sus obras originales en portugués, publicar libros a través de diversos convenios y viajar a São Paulo para intercambiar experiencias. El grupo brasileño lanzó la revista Servicio Social & Sociedad, con la que Acción Crítica mantuvo un estable vinculo, impulsando ambas una renovación teórica al interior del campo profesional. En el órgano de prensa del Centro es posible identificar diversas entrevistas a miembros del sello editorial, la publicidad de los títulos que ésta lanza periódicamente, así como el balance de algunos viajes acontecidos a Sao Paulo. Cabe notar, que los lazos que la red intelectual del CELATS estableció con los agentes de esta editorial, permitió que incluso varias décadas después – y hasta la actualidad- Cortez siga reeditando los materiales del Centro en portugués.

El vínculo con la corriente brasileña de Servicio Social también puede visualizarse en las relaciones que el CELATS mantuvo con la Asociación Brasileña de Escuelas de Servicio Social (ABESS) en su preocupación por las formas de organización sindical que comienzan a desarrollarse en este país. El Centro fue una de las fuentes de financiamientos que permitieron a esta organización desplegar encuentros, jornadas y el dictado de diversos seminarios.16

Consideraciones finales

Hemos intentado a lo largo de este trabajo, destacar la intensa actividad editorial desarrollada en la década de setenta por los intelectuales que conforman el CELATS, a partir del despliegue de su aparato editorial con los Libros CELATS, los Cuadernos CELATS, el Informativo CELATS y la revista Acción Crítica. El estudio de las formas de funcionamiento de este aparato nos permite visualizar el alcance internacional que tuvo

16 Para un interesante estudio sobre la relación entre el CELATS y las estructuras sindicales de la profesión en Brasil ver Abramides y Reis Cabral (1995). UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 565

el Centro y cómo se produjo la circulación y consumo de sus ideas más allá de la escala nacional, mediante el vínculo con otras editoriales como ECRO, Humanitas y Cortez.

A través del análisis de la actividad editorial es posible identificar los núcleos ideológicos que acordaban los integrantes del CELATS y los formatos editoriales que desarrollaron. Es importante destacar que estos materiales circulaban a partir de las actividades de formación continua, de las reuniones de trabajo, especialmente en Lima, pero que pronto se desplegaron por Brasil, Argentina, México, Costa rica y Honduras. A esas actividades docentes debe sumarse el proceso de deliberación: reuniones de la Comisión Directiva, asambleas, conferencias y seminarios dictados por el Centro. Toda la actividad desplegada tenía en su centro la circulación de los libros, cuadernos, informativos y la revista, producidos a partir del uso de herramientas como la correspondencia y los viajes, las becas, investigaciones y estadías de los enviados especiales.

De esta manera, las temáticas que identificamos en la primera etapa de producción editorial deben ser entendidas como el punto de llegada de las discusiones emprendidas por el CELATS. Si bien los trabajadores sociales siempre practicaron la elaboración de informes y el análisis crítico de diversos temas, nos interesa enfatizar que estos materiales, esa deliberación y las comunicaciones articularon un novedoso perfil de trabajo intelectual caracterizado por la actualización bibliográfica, la investigación-acción y la sistematización de las investigaciones.

Podemos visualizar además como la experiencia exiliar de los trabajadores sociales radicalizados, contribuyó a la formación de un centro académico latinoamericano que permitió capitalizar las vivencias de llamada Reconceptualización y que dejó una huella en el campo profesional del Trabajo Social, sentando posicionamiento en la convulsionada realidad latinoamericana -marcada por dictaduras y revoluciones- acerca de diversas problemáticas como el indigenismo, el mundo rural, el hábitat popular, la educación y la salud y las organizaciones profesionales y gremiales del Trabajo Social.

Por último, consideramos que en la actualidad ante el retorno de los partidos de derecha a los sistemas políticos de los países latinoamericanos y las exigencias estatales a los trabajadores sociales de una intervención inmediata y descontextualizada, recuperar las experiencias promovidas por la red intelectual del CELATS, puede resultar de gran UNA RED INTELECTUAL EN EL CAMPO DEL TRABAJO SOCIAL: LA REVISTA DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE TRABA- JO SOCIAL (1976-1983). MARÍA JOSEFINA LAMAISÓN 566

insumo a la hora de repensar el quehacer profesional, ya que estos intelectuales realizaron un interesante aporte sobre la relación con los sectores populares, el Estado y las políticas sociales desde una perspectiva de renovación teórico crítica.

REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA

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TORTTI, M. C. (Dir.). (2014). La nueva izquierda argentina (1955-1976). Socialismo, peronismo y revolución. Rosario: Prohistoria. 567

Iluminações II: “Fundamos, pues, la Revista de América, órgano de nuestra naciente revolución intelectual” - Experiências estéticas modernistas nas páginas da entusiástica tentativa literária do nicaraguense Rubén Darío e do boliviano Ricardo Jaimes Freyre na Buenos Aires finissecular

MARIANA ALBUQUERQUE GOMES Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com bolsa CAPES. [email protected]

Apresentação da proposta do conjunto de comunicações ou As Iluminações

O trabalho aqui apresentado se constitui como um exercício inicial de reflexões acerca da Modernidade em que se propõe um alargamento do foco da análise sobre o tema para além da habitual aproximação entre as experiências estéticas da cena finissecular carioca e da parisiense. Em nossa proposta de ampliação desse cotejo, buscaremos contemplar mais dois centros urbanos latino-americanos – as cidades de Buenos e Cidade do México –, analisando suas experiências finisseculares e algumas de suas elaborações intelectuais e artísticas. Para tal, examinaremos, sobretudo, impressos literários dessas quatro cidades: em Paris, a revista simbolista La Vogue (1886-1889); em Buenos Aires, a modernista Revista de America (1894); na Cidade do México, a modernista Revista Azul (1894-1896); e no Rio de Janeiro, a revista simbolista Rosa-Cruz (1901/1904).

As quatro comunicações que compõem esse projeto contemplam, cada uma delas, uma revista selecionada. Nossa primeira “Iluminações” recairá sobre a revista simbolista La Vogue – uma revista pequena, mas de grande importância no cenário finissecular ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 568 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES parisiense, tendo nela, inclusive, aparecido pela primeira vez as Iluminações, de Arthur Rimbaud. Enquanto a terceira e a quarta “Iluminações” trarão, respectivamente, análises acerca da revista modernista mexicana Revista Azul e da revista simbolista carioca Rosa-Cruz. A comunicação de hoje, Iluminações II, buscará, então, iluminar aspectos significativos da revista modernista portenhaRevista de América.

Aspectos simbólicos do título

O título dessa comunicação traz, não apenas palavras de um dos diretores da revista em questão, como também, de saída, já nos aponta aspectos relevantes da experiência estética modernista na cena finissecular portenha. “Fundamos, pues, la Revista de América, órgano de nuestra naciente revolución intelectual” (DARÍO, 2003: 52), escreve o poeta nicaraguense Rúben Darío (1867-1916) em sua autobiografia, ao se referir sobre a, também em suas palavras, “entusiástica tentativa literária” de criação da Revista de América junto com o escritor boliviano Ricardo Jaimes Freyres (1866-1933).

A Revista de América é a primeira tertúlia modernista na Argentina. Apesar de localizada na cidade portenha, o impresso literário se fez tão cosmopolita como seus diretores, chegando a reunir produções intelectuais – entre contos, poemas, críticas e informativos literários – de 25 escritores, em sua maioria (dezesseis), intelectuais latino- americanos, como o uruguaio Victor Arreguine (1863-1924), o guatemalteco Enrique Gómez Carrillo (1873-1927) e o argentino Leopoldo Díaz (1862-1947).

A Revista foi bem recebida no meio jornalístico de Buenos Aires, com repercussão nos impressos mais importantes da época, como os jornais La Prensa, fundado por José C. Paz, e La Nación, fundado por Bartolomé Mitre, tendo também aparecido em outros de menor vulto, como L’Operario Italiano e Le Courrier de la Plata. Não obstante, – portanto, “entusiástica tentativa”, – o projeto literário da nascente revolução intelectual modernista teve duração efêmera, contando apenas com a publicação de três números.

Atualmente, a Revista de América está disponível em edição fac-símile, editada por Boyd Carter e publicada em 1967, em comemoração ao centenário de nascimento de Rubén Darío. Também há um exemplar disponível na Biblioteca Daniel Cosio Villegas, no Colégio de México (COLMEX). ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 569 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

Mas qual era o cenário em que esses escritores empreenderam tal projeto literário? Como era a Buenos Aires de fins do século XIX?

Modernidade, modernismo e a cidade de Buenos Aires

Ao falarmos sobre as experiências estéticas modernistas, ocorridas no fim do século XIX e início do século XX, não podemos nos abster de uma das personagens primordiais da Modernidade: a cidade. Segundo Robert Pechman e Eliana Kuster, foi no século XIX que cidade e a rua desempenharam o papel cardinal de palco do espetáculo urbano (KUSTER; PECHMAN, 2014), tornando-se um dos quadros essenciais da vida urbana. Não à toa, a ação das narrativas de diversos literatos vai ganhar corpo nas ruas das cidades com suas multidões e transformações urbanas, como podemos ver nos “Tableaux parisiens”, do poeta Charles Baudelaire, publicado na obra Les Fleurs du Mal (1857) e também nas crônicas rubendarianas.1

Conforme Pechman e Kuster, nesse período as grandes cidades experimentaram uma radicalidade daquilo que se denomina vida urbana, sobretudo, em função da ruptura desta nova cidade – que vai surgindo e impondo reformas urbanas – com o seu passado. Nessa lógica, a cidade real, retratada sob o signo do vício e do perigo, ganha maior expressão com a modernização, pois em contraposição a ela é apresentado um projeto urbanístico pensado, de acordo com Beatriz Sarlo (2010), como purificação da cidade, que é considerado necessário ao desenvolvimento estético e projetual do estilo moderno, em resposta aos desenvolvimentos babélicos da cidade inscritos na sua história urbana. É preciso, então, mudar, apagando a tradição colonial – urbana e mental – para que se erga uma cidade moderna, em sua plenitude, uma cidade da ordem e do progresso, cidade civilizada. Como ressalta Sarlo, nesse momento, a cidade é apreendida como condensação simbólica e material da mudança.

Nesse ponto, vale ressaltar uma peculiaridade da cidade de Buenos Aires e seu processo de modernização. Segundo Viviane da Silva de Araújo (2013), somente depois

1 As crônicas de Rúben Darío foram reunidas por Graciela Montaldo no livro Viajes de um cosmopolita extremo, publicado pela Fondo de Cultura Económica, em 2013. Em um ensaio ainda não publicado, de título “As Cidades rubendarianas. Modernidades pelo olhar de um cosmopolita extremo e sua escrita em trânsito”, proponho uma articulação entre algumas crônicas dessa coletânea, que Darío escreve em suas viagens por inúmeras cidades, e a dimensão heterogênea da Modernidade. ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 570 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES de décadas de tentativas de capitalização de Buenos Aires, margeadas por conflitos entre governo federal e provincial pelo domínio da cidade, que o projeto urbano de reformas ganhou corpo na década de 1880, quando do apaziguamento dos conflitos com a construção da cidade de La Plata como capital da província e a instituição de Buenos Aires como capital federal. A partir desse momento, a cidade portenha passou por uma série de implementações industriais e reformas urbanas com vistas a promover sua modernização, sobretudo no período do governo municipal de Torcuarto de Alvear, que teve duração de dois mandatos (1863-1887).

As reformas urbanísticas realizadas em Buenos Aires com vistas à modernização da cidade foram desenhadas aos moldes da reforma empreendida por Haussmann em Paris (1852-1870), com a construção de novos grandes bulevares que ocuparam o lugar de antigas estreitas ruas. A abertura da Avenida de Mayo, em 1894, primeira avenida da República Argentina e de toda América do Sul, com seus novos prédios de arquitetura Art Nouveau, constituiu marco emblemático dos processos de modernização pelos quais passavam as cidades latino-americanas.

Como assinala Júlio Ramos (1989), a geração finissecular dessas cidades experimentava o início uma industrialização e de expressivo crescimento populacional que acompanhariam uma série de reformas urbanas de forte impacto. E Buenos Aires está à frente desses processos, tendo, inclusive, em meados da década de 1980, se tornado a cidade mais populosa da Argentina e da América Latina, ultrapassando o Rio de Janeiro e a Cidade do México (GUTMAN; HARDOY, 1992). O que os diretores da revista de América deixaram transparecer ao se referirem à cidade portenha como “la ciudad más grande y práctica de la América latina” (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: II).

A essa dimensão física, de transformações materiais, é preciso reiterar a dimensão simbólica que esses processos de modernização apresentavam. Com vistas a projetar uma imagem moderna e civilizada da cidade – para além das reformas de portos, construções de avenidas, ampliação das redes de iluminação e transporte –, foram implementadas uma série de normas acerca das condições de higiene, das moradias coletivas, da distribuição e venda de alimentos e das medidas sanitárias, como a vacinação obrigatória por lei. ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 571 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

Essas reformas de âmbito simbólico, junto às reformas sobre a estrutura física da cidade, alteravam a experiência e as memórias da – e na – cidade. Em meio a esses processos, a cidade possibilita, então, uma série de experiências novas, vividas sob uma velocidade sem precedentes, na qual os rápidos deslocamentos, por exemplo, não provocam consequências apenas funcionais – que afetam o cotidiano – mas também, como sublinha Sarlo (1996), consequências sociais, culturais e políticas, afetando inclusive, linguagem e práticas culturais.

Em sua reflexão sobre os efeitos dessa modernização nas cidades latino-americanas, Ángel Rama (1998) ressalta que os ritmos acelerados, as sucessivas demolições e reconstruções e uma série de mutações introduzidas por novos costumes, contribuíram para uma instabilidade que gerava o estranhamento como parte decisiva da experiência cotidiana da cidade modernizada. Segundo Irving Wohlfarth (2012), a Modernidade vai ser marcada pelas demolições de traços de memória, da experiência, de hábitos, do ato de habitar, de formas de construção, da narração, dentre outros. O apagamento desses traços seria, então, um “imperativo histórico- mundial”, conforme Wohlfarth (2012: 204), incorporado ao capitalismo.

Alinhado a esse aspecto, o século XIX portenho foi marcado pela ciência, que penetrava os discursos intelectuais como produção e prática. A Argentina finissecular consumia os modelos evolucionistas de Darwin e de Spencer e as teorias de Comté, Taine e Lombroso, difundindo uma ideia de progresso apoiado nas inovações científicas. Essa “cultura científica” configurou, de acordo com Paula Bruno (2012), uma hegemonia da ciência como organizadora da realidade e de leituras da sociedade.

Em meio a esse cenário e todas as experiências e transformações que sua construção apresentou, vem à cena a maneira de ver e entender de alguns literatos, que viviam essa nova realidade e suas novas formas de sensibilidade catalisadoras de novas experiências estéticas. Assim, se fazia presente, a proposição literária modernista: como resistência a uma leitura da modernidade realizada por um país comprometido com a ideia positivista de progresso, amplamente difundida, que acompanhava o modo de pensar cientificista da geração finissecular.

Em suas múltiplas configurações, as experiências estéticas modernistas apresentavam uma visão autocrítica sobre a dimensão utilitarista e mecanicista do mundo moderno e a tematização do lugar/papel do artista nele. Pois o que o mundo do progresso ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 572 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES material, dominado pela mercadoria, oferecia não correspondia ao pensamento estético desses artistas, reunidos entorno de uma mesma ética: um pensamento crítico que se opunha ao mundo do capital-industrial e que marcava sua arte pela recusa ao progresso “fantasmagórico”2 da modernidade.

Nas experiências da modernidade, práticas culturais e modos de pensar foram intensamente afetados e se transmutaram (SARLO, 2010: 53-54). Frente às transformações que alteravam relações culturais, sociais e econômicas – bem como perfis urbanos, topografias naturais, planos e perspectivas da paisagem – a cultura elaborava estratégias simbólicas de representação, nas quais o cotidiano, os modos de vida e a própria cidade se inseriam como objetos do debate estético.

As ideias/imagens acerca da modernidade, do progresso material, da civilização modernizada, e suas consequências, estavam presentes em crônicas, contos, caricaturas, romances, ensaios, estudos literários e, sobretudo, nas revistas literárias, uma vez que elas condensavam essa diversidade discursiva. Assim, as revistas literárias do fim do século, como a Revista de América, convertem-se, para nós, em lugar privilegiado para observar as ideias estéticas que reagiam ao pragmatismo liberal e sua defesa do funcional, do utilitário e do produtivismo.

A Revista de America

A Revista de América, de periodicidade quinzenal, teve duração efêmera, com apenas três números publicados entre os meses de agosto e outubro de 1894. Sob a direção do poeta nicaraguense Rubén Darío e do boliviano Ricardo Jaimes Freyre, a Revista de América tinha como sede de publicação a cidade de Buenos Aires, na rua Tucuman, sob a gerência administrativa de José Galdo. Os valores de assinatura eram: 1 peso, 3 pesos, 5 pesos, 10 pesos ou 0.50 centavos, referentes à um mês, um trimestre, um semestre ou a números avulsos, respectivamente, com um acréscimo de 20% para o interior. E as livrarias de Espiasse, de Moen e de Joly, dentre algumas outras, eram os pontos de subscrição da Revista, em Buenos Aires. Seus três números, de tamanho 18 por 24 centímetros e formato in-quarto, contam com a participação de vinte e cinco escritores.

2 Recorrente na obra de Walter Benjamin, a fantasmagoria é uma noção que relaciona aspectos de fenômenos da cultura e da sociedade às novas tecnologias da indústria e do capital a fim de iluminar as experiências da vida moderna. ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 573 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

Além das contribuições dos dezesseis escritores latino-americanos – dentre nicaraguense, venezuelano, cubano, panamenho, guatemalteco, uruguaios, bolivianos e argentinos –, ainda contou com a participação dos espanhóis Salvador Rueda e Carlos Matagarriga, dos franceses Daniel Cothereau, Alfred Ébelot e Edouard Reyer, do suíço Theodor Allemann e do italiano Ettore Mosca – que em sua maioria, moravam em Buenos Aires, sendo eles diretores ou correspondentes de outros periódicos.

A iniciativa literária em terras portenhas por dois poetas estrangeiros e a diversidade de seus colaboradores, indica não só a circulação de ideias e de intelectuais na América Latina, como também ilustra a percepção que se tinha de Buenos Aires como cidade cosmopolita, a primeira cidade latino-americana a empreender sua modernização urbana e a segunda maior capital em termos populacionais nas Américas.

Apesar de sua breve existência, podemos entrever em sua criação a finalidade de contribuir para a difusão do modernismo na – e para além da – América, como já enunciavam seus editores no primeiro número publicado, numa espécie de programa da revista, no artigo intitulado “Nuestros propósitos”:

Ser el órgano de la generación nueva que en America profesa el culto del Arte puro, y desea y busca la perfección ideal; Ser el vínculo que haga una y fuerte la idea americana en la universal comunión artística [...] Levantar oficialmente la bandera de la peregrinación estética que hoy hace con visible esfuerzo la juventud de America Latina, a los Santos Lugares del Arte y a los desconocidos orientes del ensueño [...]. (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: II)

O que acreditamos ser o programa da Revista aparece como um manifesto que sintetiza pontos do conjunto de princípios e conceitos recorrentes nos discursos modernistas, como “Arte puro” e “Beleza divina”, com as letras “a” e “b” maiúsculas, pois era recorrente a utilização de letras maiúsculas como personalização das palavras. A autodenominação “generación nueva”, também era comum entre os literatos simbolistas e modernistas. Tal dimensão é destacada por Rúben Darío no artigo “Un esteta italiano. Gabriel D’Annunzio”, publicado também no primeiro número da Revista de América, sobre o poeta Gabriel D’Annunzio, a quem ele se refere como “jefe del movimiento nuevo em Italia” (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: XII).

As palavras e expressões que remetem ao imaginário dessas estéticas, por exemplo, o Oriente, o Sonho e a ideia de uma universalidade estética, presente no “programa” ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 574 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES da revista em “desconocidos Orientes del ensueño” e “universal comunión artística”, são retomadas em outros textos e em outros números da Revista. Na segunda parte do artigo sobre D’Annunzio, “Gabriel D’Annunzio. I. El poeta”, publicado no segundo número, Darío aborda esses aspectos: “(...) la obra de los Nuevos tiene su campo principal en la región de las ideas puras, en el Ensueño y en el Misterio. (...) Han buscado por todas partes las manifestaciones profundas del alma universal; han visto en el Oriente un mundo de extrañas iniciaciones (...)” (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: XXXIX).

As estéticas modernistas se apresentavam, sobretudo, de modo semelhante ao simbolismo na França e no Brasil, em uma forma de expressão vaga que tinha como princípio a primazia dada à sensibilidade e a interiorização do “eu” frente ao mundo moderno, através do uso do símbolo, da musicalidade, da expressão indireta dos estados de espírito e das correspondências para expressar as complexas intuições de uma realidade que não se fazia visível. Darío, inclusive, na primeira parte do artigo sobre D’Annunzio, em um movimento metalinguístico, se vale dessa linguagem para falar da linguagem na obra do poeta italiano:

El amor tiene en esas páginas un lenguaje de íntima delicia. Hay en las conversaciones de los enamorados palabras rosas, palabras lírios, palabras violetas. Y un ruiseñor invisible desgrana sus mágicos collares de celestes perlas melodiosas (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: XII).

Ainda no primeiro número publicado da Revista de América, o guatemalteco Enrique Gómez Carrillo, no artigo “Los poetas jóvenes de Francia”, que continuará até o terceiro número, apresenta, através de um exemplo de Jules Tellier, o que significava simbolizar para esses poetas:

(...) simbolizar consiste em buscar una imagen que exprese un estado de alma y em no enunciar sino la imagen que lo materializa. Cuando yo he comparado mi esperanza á un navío, no digo: “Navío de mi esperanza, ¿te hás perdido para siempre entre la indiferencia?”, sino que exclamo: “Querida galera.... te hás perdido para siempre entre la nieve del polo?”. (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: VIII)

Em sua forma de expressão vaga e aberta, modernistas e simbolistas impeliam aos seus versos um estatuto de símbolo de realidades ocultas, transcendentais e suprassensíveis que não podiam ser apreendidas e percebidas objetivamente. Assim, seu fazer poético implicava em – através dos símbolos – aludir, sugerir e não mostrar ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 575 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES os objetos diretamente. Na terceira parte do artigo sobre os jovens poetas franceses, publicado no terceiro número da Revista de América, Gómez Carrillo, ao teatralizar uma conversa que o poeta moderno deveria ter consigo mesmo antes de pôr-se a trabalhar, retoma o aspecto proeminente da sugestão, no fazer poético:

El poeta, en resumen, tiene que hablar consigo mismo de la manera siguiente, antes de emprender trabajo ninguno: [...] – cuál sería la mejor obra humana? – La que fuese una evocación de todos los siglos, de todas las religiones, de todas las artes, de todos los sentimientos, de todas las ideas y de todos los genios. – Y cuál es el arte que puede realizar tal obra? – La poesía, que pinta, que esculpe, que edifica, que medita y que vibra á um tiempo mismo. – Entonces..... – Entonces es necesario trabajar. – Pero y cómo? – Con las ideas y con las palabras. – Y las palabras bastan acaso para expresarlo todo em um mismo libro? – No, pero bastan para sugerirlo todo. – Según eso, la poesía debe ser ante todo sugestiva. – Si, sugestiva ante todo.... (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: LV-LVI)

Essa dimensão sugestiva das obras simbolistas e modernistas ia de encontro com a ideia de uma comum estética universal, como Gómez Carrillo sublinha também na terceira parte de seu artigo: “Universal, en efecto, el poema debe serlo tanto por el fondo como por la forma” (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: LV).

Não obstante, aspecto fundamental – e diferenciador – da experiência modernista, era o duplo movimento das inovações dessas experimentações estéticas em simultaneidade à manutenção das tradições hispano-americanas, como Darío e Jaimes Freyre apresentam em suas propostas para a Revista de América: “trabajar por el brillo de la lengua castellana en América, y, al par que por el tesoro de sus riquezas antiguas, por el engrandecimiento de esas mismas riquezas em vocabulário, rítmica, plasticidad y matiz” (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: II). Darío, em sua autobiografia, também ressalta a importância da tradição hispano- americana para as experiências estéticas modernistas da Revista de América:

Con Ricardo nos entrábamos por simbolismos y decadencias francesas, por cosas d’annunzianas, por prerrafaelismos ingleses y otras novedades de entonces, sin olvidar nuestros ancestrales Hitas y Berceos, y demás castizos autores. (DARÍO, 2003: 52) ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 576 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

Críticos ao estabelecimento da nova ordem do mundo da mercadoria, que se expande e corrompe os âmbitos da vida social, inclusive as artes; é na contracorrente, assumindo uma postura de resistência, que os literatos modernistas constroem sua subjetividade em meio a um mundo que se quer cada vez mais guiar pelo utilitarismo e a imediaticidade. Como destacam os diretores da Revista, um dos principais propósitos dessa geração de artistas, da qual faziam parte, era “Combatir contra los fetichistas y [...] Luchar porque prevalezca el amor a la divina belleza, tan combatido hoy por invasoras tendencias utilitárias [...]” (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: II).

Ao mesmo tempo em que a lógica mercadológica, bem como a ideologia do progresso pautada em uma razão técnico-científica, ganhava espaço e colocava as artes em lugar subalterno à ciência técnica e subserviente ao mercado, esses artistas e suas experimentações se inteiravam em uma reação que propunha como alternativa – melhor, como resistência – pensar a realidade do homem moderno em sua complexidade, pela autoconsciência e imaginação. Como podemos ler em um pequeno ensaio do músico espanhol Eduardo L. Chavarri sobre o que seria o modernismo, publicado em 1902:

El modernismo [...] no es precisamente uma reacción contra el naturalismo, sino contra el espíritu utilitario de la época, contra la brutal indiferencia de la vulgaridad. Salir de un mundo en que todo ló absorbe el culto del vientre, buscar la emoción de arte que vivifique nuestros espíritus fatigados em la violenta lucha por la vida, restituir al sentimiento lo que le roba la ralea de egoístas que domina em todas partes... eso representa el espíritu del modernismo. [...] nuestro espíritu encuéntrase agarrotado por un progreso que atendió al instinto antes que al sentimiento; adormecióse la imaginación y huyó la poesía; desaparecen las leyendas misteriosas profundamente humanas en su íntimo significado; el canto popular libre, impregnado de naturaleza, va enmudeciendo; en las ciudades, las casas de seis pisos impiden ver el centello de las estrellas, y los alambres del teléfono no dejan a la morada perderse en la profundidad azul; el piano callejero mata la musa popular: estamos en pleno industrialismo! En medio de este ambiente, vemos infiltrarse cada vez más en el alma de las gentes la “afectación de trivialidad”, especie de lepra que todo ló infecciona y ló degrada [...]. El siglo XIX nos he legado por herencia la fiebre de los inventos; no tuve tiempo para más; ni el vapor ni la electricidad nos han traído su arte; se construye un puente de hierro com sus líneas escuetas y se aprovechan para postes las barras de acero de la vía; es lo útil, ló inmediato tan solo. [...] Así, pues, en el fondo del modernismo germina el deseo de obtener las nuevas formas de arte no encontradas todavía por nuestra civilización, demasiado “mercantil”. (CHAVARRI apud LITVAK, 1981: 21-23) ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 577 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

Os artistas modernistas ofereciam, então, uma possibilidade de crítica reflexiva3 sobre essa modernidade, progressista e utilitária, reinserindo a imaginação livre no fazer artístico e notabilizando, assim, a capacidade criadora do artista. Tal é a dimensão imaginativa/criadora fundamental ao artista que se quer moderno.

Gómez Carrillo, no artigo sobre os jovens poetas da França, observa esse aspecto. Para ele, a “Arte” não deveria ser concebida como imitação da Natureza, mas como imitação da Arte (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: VII). Rúben Darío, na primeira parte do artigo sobre D’Annunzio, deixa entrever a relação entre arte e natureza, mostrando como o poeta italiano recorre à segunda para realizar sua reprodução inteligente e espiritual, que é difundida pelos sentidos do poeta:

El maravilloso sensitivo toma de todo lo que en la naturaleza hay de simbólico y de poético, los matices de sus expresiones; y em sus sensaciones flota com um vuelo suave y acariciador el alma misteriosa de las cosas. [...] Et tout le reste est literature. (Grifos do autor) (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: XII-XIII)

Essa nova estética, que também se fazia ética, já fora enunciada em Baudelaire, de quem simbolistas e modernistas eram leitores e o tinham como referencial de poeta moderno. Como observa Laura Moutinho Nery: “o artista moderno não era mais um copiador da natureza [...] a nova agenda do que Baudelaire definira como Modernidade exigia o comprometimento ético e estético do artista na experiência atual e concreta” (NERY, 2014: 67).

Reflexivos em sua autocrítica sobre o que o mundo moderno estava a oferecer sob a égide do progresso como devir, modernistas voltaram sua escrita para o universo interior e os aspectos não racionais e não lógicos da vida. Suas experiências apresentavam a possibilidade de uma leitura – de resistência – da Modernidade que se dava pelo Sonho, no Pensamento como reflexão, pela Imaginação produtiva de uma crítica criadora.

E como sublinha Didi-Huberman – de quem nos valemos para reforçar a relação intrínseca das dimensões estéticas e políticas dessas experiências –, há fundamentalmente no modo de imaginar uma condição para o modo de fazer política, pois a “imaginação é

3 Conforme Vera Lins, a crítica radical propõe a reversão da ordem das coisas, é a possibilidade de uma contraposição ao otimismo progressista da modernização. “Vê-se o mundo como aparência, ilusão, e se pretende virá-lo do avesso, o que se traduz na busca da poesia, uma outra linguagem. O conhecimento é limitado; a verdade, enigma; o pensamento é imaginação e a imaginação é livre e possibilita ultrapassar o sensível” (LINS, 2009: 45). ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 578 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES política [...] [e] reciprocamente, a política [...] se acompanha da faculdade de imaginar” (DIDI-HUBERMAN, 2011: 60-61). Essa dimensão político-estética aparece em uma nota de página de Gómez Carrillo, na terceira parte de seu artigo sobre os poetas franceses, ao trazer aspectos filosóficos do pensamento do poeta Remy de Gourmont que liga o Simbolismo à Liberdade:

Si: Libertad em arte cosa tan asombrosa que durante muchos años no será comprendida. Todas las revoluciones que han triunfado en literatura, se contentaron con cambiar las cadenas del cautivo y generalmente con ponerle cadenas más pesadas que las anteriores. [...] el simbolismo puede y debe ser considerado como libre y personalísimo desarrollo del individuo estético en la serie estética [...] es necesario que el simbolismo, arte libre, adquiera en la opinión general um respecto que hasta hoy se le há negado: es necesario que el público tolere, junto á las formas conocidas, formas desconocidas; es necesario que no se arrojen fuera de los invernaderos literários las plantas que nascen de semillas ignoradas. Pero al mismo tiempo es preciso no hacer ninguna concesión para conseguir el triunfo: los que deben mejorar para acercársenos son ellos, ellos que ganarán cambiando: nosotros sigamos quietos. (REVISTA DE AMÉRICA, 1967: LIV)

Os escritores da entusiástica tertúlia modernista portenha seguiram com seu projeto literário, como conta Darío em sua autobiografia, apesar da vida precária da revista pela escassez de fundos e falta de assinaturas, até seu terceiro número, quando um administrador italiano fugiu com todo pouco dinheiro que esses modernistas haviam podido recolher... “Y así acabó nuestra entusiástica tentativa” (DARÍO, 2003: 52).

FONTES

Fontes primárias

REVISTA DE AMÉRICA, Buenos Aires, agosto-octubre, 1894. (3 números). In: CARTER, Boyd (ed.). La ‘Revista de América’ de Rubén Darío y Ricardo Jaimes Freyre. Edición facsimilar. Managua: Ediciones del Centenario de Rubén Darío, 1967.

Fontes secundárias

DARÍO, Rúben. Viajes de um cosmopolita extremo. (Org. Graciela Montaldo). 1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: FCE, 2013. (Tierra Firme). ILUMINAÇÕES II: “FUNDAMOS, PUES, LA REVISTA DE AMÉRICA, ÓRGANO DE NUESTRA NACIENTE REVOLUCIÓN INTELECTUAL” - EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS MODERNISTAS NAS PÁGINAS DA ENTUSIÁSTICA TENTATIVA LITERÁRIA DO NICARAGUENSE RUBÉN DARÍO E DO BOLIVIANO RICARDO JAIMES FREYRE NA BUENOS AIRES FINISSECULAR 579 MARIANA ALBUQUERQUE GOMES

DARÍO, Rúben. La vida de Rúben Darío escrita por él mismo. Biblioteca Virtual Universal, Governo de Nicarágua, 2003. Disponível em: https://www.poderjudicial. gob.ni/centenario-dario/pdf/autobiografia.pdf

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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BRUNO, Paula. Vida intelectual de la Argentina de fines del siglo XIX y comienzos del XX. Un balance historiográfico. PolHis, Buenos Aires, año 5, número 9, p. 69-91, primer semestre 2012.

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RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina: literatura y política en siglo XIX. México: FCE, 1989.

SARLO, Beatriz. Modernidad y mezcla cultural. In: VÁZQUEZ-RIAL, Horacio. Buenos Aires, 1880-1913: La Capital de un Imperio Imaginario. Madrid: Alianza Editoral, 1996.

WOHLFARTH, Irving. “Apagar os vestígios”, sobre a dialética de um lema. In. SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (orgs.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. 580

O testemunho voluntário e as marcas das ditaduras do cone sul a partir dos documentários Diário de uma busca e Os dias com ele

MARILUCI CARDOSO DE VARGAS Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), [email protected]

O presente texto é parte da tese defendida em agosto de 2018, no Programa de Pós- Graduação em História da UFRGS, intitulada “O testemunho e suas formas: historiografia, literatura, documentário (Brasil, 1964-2017)”. Naquela pesquisa me dispus a observar o testemunho da ditadura civil-militar brasileira inscrito em lugares variados, com especial atenção voltada para as declarações de filhas/os de ex-perseguidos políticos. Para tanto, selecionei dois longas-metragens Diário de uma busca [2010], de Flávia Castro, filha de Sandra Macedo e Celso Castro, já falecido, e Os dias com ele [2013], de Maria Clara Escobar, filha de Vera Terra e Carlos Henrique Escobar sobre os quais realizei análises baseadas em aspectos teóricos-metodológicos condizentes com as narrativas que englobam o oral e o visual. A partir do testemunho disposto nos documentários cotejei os relatos com documentos de arquivos, entrevistas fornecidas pelas cineastas, além de bibliografia pertinente.

Nesse texto serão apresentados alguns fragmentos do testemunho oral em Diário de uma busca e Os dias com ele, com destaque para duas cenas em que as filhas retratam as sensações e sentimentos narrados por seus pais em relação a prisão, a tortura, o exílio e o refúgio tomando a palavra e o visual como condutores narrativos. A linguagem cinematográfica exige, por sua vez, a decodificação dos sentidos das imagens (ROSSINI, 2006; NAPOLITANO, 2006), as quais indicam possibilidades de representação da história.

Assim, na primeira parte do texto abordarei a noção de testemunho e os lugares em que esses registros estão inscritos no que diz respeito à ditadura civil-militar brasileira. 581

Uma vez que considero o testemunho fornecido pelos filmes como um relato que se dá em condição voluntária serão apresentadas as demais situações em que o testemunho foi e é demandado no Brasil, enfatizando que realizo essa distinção de forma relacional. Na sequência, apontarei aspectos que aproximam e distanciam Diário de uma busca e Os dias com ele os quais me levaram a selecioná-los como amostra para a observação do uso do testemunho e os desdobramentos para a linguagem cinematográfica. Por fim, discorrerei sobre as cenas desses documentários sublinhando aspectos inscritos nas lembranças individuais dos que vivenciaram diretamente a experiência, as quais foram rearranjadas pelas filhas de ex-perseguidos políticos.

A latência do testemunho da ditadura e seus formatos

O testemunho contemporâneo, como sobrevivente e vítima, inegavelmente, encontra referência na Shoah e a compreensão do seu fenômeno possui como porta de entrada a difusão do ato testemunhal nos Estados Unidos, a partir do final da década de 1970 (WIEVIORKA, 1998; HARTOG, 2013). No entanto, o espaço tomado por essa figura que, de modo geral, se tornou mais central se sobrepondo a figura dos réus, exigiu a atenção das/os historiadoras/es para a maneira como as declarações foram apropriadas pela historiografia. O testemunho das catástrofes, em meados dos anos 1980, passou por um processo de reconhecimento instituído pelo direito internacional dos direitos humanos na sua condição de vítima, a qual se estende, inclusive, aos familiares e próximos do indivíduo submetido a graves violações e crimes contra a humanidade não havendo questionamentos sobre a legitimidade desse fato. Contudo, a partir dos anos 1990, o testemunho como sobrevivente e vítima passou a ser associado ao peso do presente no nosso tempo, reforçado pela categoria de traumatismo (HARTOG, 2017, p. 175). Essa, por sua vez, midiatizada com base no apelo emocional como vestígio único de uma causa tende a instaurar empatia e levar ao culto do testemunho, com a sacralização da memória e a banalização da história (FERREIRA, 2006). Para a epistemologia da história, François Hartog adverte quanto aos riscos de tomar a palavra do testemunho contemporâneo como uma apreensão do real, e, além do mais, confundir as suas dimensões como testis e superstes estendendo-as à figura do testemunho delegado, isto é, do testemunho do testemunho (HARTOG, 2017).1

1 A etimologia da palavra testemunho remonta ao latim o testis, como um terceiro, o superstes, como o sobrevivente, em grego, o martus, aquele que testemunha até a morte a sua crença. 582

“Eu estava lá, vi e ouvi”, e “digo o que vi e ouvi”: estas são as características essenciais do testemunho, os termos do contrato que o fundam e a autoridade que lhe decorre. O “e” é fundamental. De fato, o que leva ou obriga essa passagem do ver ao dizer, que é o ato constitutivo do ser da testemunha? (HARTOG, 2017, p. 169. Tradução da autora).

No Brasil, o testemunho sobrevivente da ditadura civil-militar marcou presença em variados lugares, os quais associo aos vetores da lembrança/vecteurs du souvenir (ROUSSO, 1987, p. 233), os quais configuram uma memória pública sobre o tema. Nesse sentido, busquei caracterizar as condições em que o testemunho foi demandado e distinguir os seus modos de expressão, no entendimento de que a situação a que a pessoa é motivada a relatar incide de maneira direta ou indireta no conteúdo de suas declarações (JELIN, 2002, p. 85). Assim, proponho uma delimitação para o testemunho da ditadura civil-militar brasileira em quatro eixos: o voluntário, o obrigado ou convocado, o motivado ao dever de justiça e o depoente convocado no Estado de direito. De maneira relacional, apresento o plano geral para cada condição e modos de expressão:

1) Testemunho em condição voluntária: é requerido por uma necessidade de compartilhar as lembranças, se constitui de maneira voluntária, espontânea ou quando estimulado por terceiros que registram suas declarações em formato de entrevistas ou assemelhados. Esses relatos de experiência estão inscritos na literatura, no cinema, na música ou nas artes em geral, em trabalhos para a televisão ou em vestígios de caráter mais íntimo como diários, cartas, entrevistas e gravações audiovisuais particulares etc. Para os relatos de sobreviventes em condição voluntária destaco que suas declarações podem ligar-se a noção de memórias subterrâneas na medida em que buscam romper com as memórias organizadas e enquadradas como aquelas que preponderam na sociedade (POLLAK, 1989);

2) Testemunho em condições de obrigação ou convocação: foi demandado por um dever à justiça, ainda nos anos ditatoriais, em interrogatórios coordenados pelos órgãos da repressão ou em juízo, quando os indiciados pela justiça eram intimados a se apresentar em audiências. A documentação que exemplifica essas condições, preservada pelo Projeto Brasil: Nunca Mais, modificou a dimensão 583

daqueles documentos, antes à serviço de instituições que obrigaram ou convocaram os denunciados em um dever à justiça, analisando-os e gerando um efeito contrário, na perspectiva de que o Estado possui um dever de justiça (VARGAS, 2018; BAUER, 2011, p. 368);

3) Testemunho motivado ao dever de justiça: estimulados pelas políticas de memória e reparação implementadas pela federação brasileira ou por Estados. As declarações induzidas a reforçarem o dever de justiça estatal buscaram atender às atribuições das legislações que deram as diretrizes para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a Comissão de Anistia do Ministérios da Justiça (CA/MJ) e a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e as regulamentadas no âmbito dos Estados.

4) Depoente convocado no contexto do Estado de direito: Intimados pela Comissão Nacional da Verdade, militares e civis foram requisitados a prestarem declarações, posto que a CNV foi a única das comissões a possuir autoridade para exigir o comparecimento de agentes estatais suspeitos de possuírem alguma informação acerca dos casos de graves violações de direitos humanos ocorridos durante o regime ditatorial. Importante salientar que o ato testemunhal de agentes que ocuparam cargos em estabelecimentos repressores também encontra lugar em uma condição voluntária com publicações de suas memórias, participações em documentários etc. Contudo, esses relatos não devem ser considerados na chave do dever de justiça estatal, uma vez que a maioria das narrativas militares sustentam o esquecimento e entendem que a reconciliação nacional foi consolidada com a Lei de Anistia de 1979 (CARDOSO, 1996; MARTINS, 2002; SANTOS, 2014). Além disso, pondero que também se afastam do direito à memória, noção originada nos grupos de sobreviventes e familiares de mortos e desaparecidos que foram cerceados de partilharem socialmente suas memórias durante os anos de censura e terrorismo estatal.

Se as condições em que o testemunho da ditadura civil-militar brasileira se manifesta geram diferentes conteúdos e incidem nas formas como são expressas, então procurarei verificar como isso é explorado pelos filmes selecionados. Para fins de análise, vale salientar que o testemunho fornecido por meio de entrevistas requer uma negociação e a constituição de uma relação (ALBERTI, 2012), diferentemente dos documentos de 584

escritas de si (GOMES, 2004), como diários e cartas. Contudo, ambos podem expressar a evocação da literalidade e indicar imagens no exercício de rememoração, foco de interesse dessa proposta. Para tanto, dentre esses lugares de inscrição do testemunho, o cinema, pelo fato de dispor de recursos mais amplos, procura, em alguns casos, realizar uma confluência entre o oral e o visual. Como postulado por Michael Pollak:

Ainda que tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças em objetos de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização, e, portanto, no enquadramento da memória. Ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções. (POLLAK, 1989, p. 11). Nesse sentido, Marcos Napolitano afirma que:

O cinema é um dos mais poderosos instrumentos contemporâneos de monumentalização do passado, na medida em que pode fazer dele um espetáculo em si mesmo, com eventos, personagens e processos encenados de maneira valoritativa, laudatória e melodramática. Normalmente, o processo de monumentalização do passado visa diluir as tensões, polêmicas e incertezas que cercam determinado momento histórico, legando uma memória para as gerações posteriores carregadas de modelos de ação. Por outro lado, o cinema também foi inúmeras vezes o veículo de desconstrução de mitos e versões oficiais e autorizadas da história, visando propor novas leituras não apenas sobre o evento encenado, mas também intervindo nos debates contemporâneos ao filme. (NAPOLITANO, 2006, p. 276-277)

Como abordado pelas referências acima buscarei compreender como o testemunho voluntário é mobilizado por Diário de uma busca e Os dias com ele, considerando a intencionalidade dos projetos fílmicos configurados em discursos convergentes ou divergentes tanto no âmbito familiar como em diálogo com uma memória pública. Além disso, serão observadas as maneiras como as narrativas reiteram as perspectivas dos testemunhos da geração dos pais ou inovam possibilidades de apresentação daqueles passados.

Diário de uma busca e Os dias com ele: aproximações e afastamentos

Diário de uma busca e Os dias com ele foram dirigidos por duas filhas de ex-perseguidos pela ditadura civil-militar por motivação política. Além desse ponto em comum, os filmes indicam outro aspectos que os aproxima, como: i) a temática relacionada com as memórias, silêncios e esquecimentos acerca da ditadura civil-militar com base no testemunho; ii) o envolvimento entre quem roteiriza e dirige o documentário com o “objeto” a ser dissolvido, já que tratam da história familiar que remete, em parte, à trajetória política 585

de seus pais; iii) a desconexão das filhas de uma militância sistemática na pauta política pela verdade, memória e justiça e o anonimato político no circuito nacional de seus pais como lideranças de um grupo ou de uma ideologia; iv) a dissociação dos documentários de organizações políticas-partidárias ou governamentais nas suas produções; v) os anos de seus lançamentos, quando os projetos estatais de memória e reparação estavam em atividade e por serem ampliados; vi) a opção em negar uma exaltação ou heroicização com relação aos personagens centrais, seus pais.

Como referido, a presença do testemunho é uma das características comuns aos dois documentários, contudo esses recursos são operados de formas distintas. Em Diário de uma busca, Flávia Castro, por volta dos seus 40 anos, narra as experiências passadas de sua infância e adolescência, utiliza, por vezes, a técnica da voz em off e intercala escritos de Celso Castro em vida, lidos por João Paulo Macedo Castro, irmão da realizadora do filme e chamado por ela de Joca. Com esse recurso, embora Celso Castro não esteja fisicamente no filme, Flávia Castro dá seguimento ao seu testemunho, partindo da sua própria experiência, já que ela “estava lá” em momentos excepcionais para o Brasil e para os países golpeados naqueles anos. O documentário apresenta partes das entrevistas realizadas pela cineasta com familiares e militantes que conviveram com o pai já falecido e com jornalistas, peritos e policiais que atenderam a ocorrência em 04 de outubro de 1984. A filha explora o seu “museu íntimo” (LABAKI, 2011) e percorre as capitais do Brasil, Chile e França para retratar os deslocamentos provocados na vida familiar devido ao engajamento político de seus pais nos grupos de esquerda, bem como os efeitos dessa militância em suas trajetórias.

Maria Clara Escobar, diferentemente de Flávia Castro, tinha menos de 25 anos quando filmou seu pai que estava com quase 80 anos. Para entrevista-lo ela se fixou por alguns meses em Aveiro, local em que realizou as gravações. A montagem de Os dias com ele, manipulada com a participação ativa de Maria Clara, deixou explícita as negociações que a filha teve com o pai. Carlos Escobar ora se mostra disposto a partilhar alguns acontecimentos com a cineasta e sua câmera, ora resistiu à exposição de sua trajetória. O entrevistado, em muitas oportunidades, retoma a sua posição de professor. Assim, ele realiza digressões teóricas sobre filosofia política e a própria dramaturgia, provoca a filha e, logo, os espectadores, com diálogos que demonstram sua tentativa de colocar em segundo plano a sua identidade de ex-preso político. Maria Clara quase não aparece, 586

sua voz está presente nas conversas com o pai. Apenas em uma cena ela fica de frente para a câmera, quando ela ocupa o espaço do enquadramento para ler um documento.

As tramas cinematográficas apresentam uma parte das trajetórias de vida de dois homens engajados na resistência à ditadura, ainda que com diferenças significativas em suas atividades e em seus percursos. As filhas inscrevem na filmografia brasileira a imagem de dois militantes de esquerda anônimos para o Brasil, já que não foram dirigentes dos grupos políticos nos quais estiveram vinculados nos anos sessenta e setenta e nem estiveram na linha de frente após 1979, quando os partidos foram refundados para a redemocratização. A fim de realizarem os documentários, as cineastas reuniram os fragmentos das experiências políticas de seus pais, seus escritos, entrevistas e cartas. Além disso, se voltaram para as suas próprias lembranças ou do que seus familiares lhes haviam contado. Logo, os filmes são produtos dessa confluência de memórias e documentos, a qual resulta da interação delas com o acúmulo de referências angariado ao longo das suas trajetórias já que “a memória de segunda geração deve ser pensada não apenas no sentido de um legado que vem do passado, mas também de um resgate pleno de atualidade” (FERNANDES, 2015, p. 138). Diante dessas observações, cabe verificar se os testemunhos utilizados pelas cineastas visam (re)afirmar determinados discursos históricos propostos pelos seus projetos cinematográficos, convenientes aos seus pais ou a grupos que pertencem ou inovam questões, propondo alternativas aos problemas de natureza equivalente ou desviante.

Um dos caminhos para verificar o conjunto de referências das cineastas, e como o oral e o visual foram articulados nos filmes, está em identificar se as imagens foram tomadas no âmbito do projeto ou previamente aos documentários, como aquelas retiradas de arquivos públicos ou privados, condições que lhes caracteriza (MAUAD, 2010).

No filme Diário de uma busca, é possível classificar as imagens como híbridas, provenientes tanto de uma pesquisa de campo elaborada para atender o roteiro estabelecido pelo filme (pessoas entrevistadas, imagens internas e externas de lugares por onde Flávia Castro e família viveram no exílio), quanto de arquivos privados (fotografias e documentos de família) e públicos (imagens de jornais e fotografias processuais/ periciais). As imagens de arquivo utilizadas são referidas nos créditos do filme, assim como as músicas que compõem o documentário. 587

As transposições desses lugares de memória para a linguagem cinematográfica, cujas imagens são complementadas por sons, configuram ambiguidades e oposições. Elas remetem à solidão, mas também à reunião (familiar ou de militância), ao silêncio ou ao barulho, ao riso ou ao choro, os quais recebem a interferência de lembranças que, por ora, desviam-se dessa dualidade e valorizam a dimensão complexa da trajetória de um sujeito, uma família ou um grupo social mais amplo. O percurso do documentário é um trajeto sobre os lugares e os tempos, o passado e o presente, pautados pelas percepções da cineasta Flávia Castro. Essa, por sua vez, ainda que tenha buscado o seu olhar infanto- juvenil, narra e transmite seu testemunho após seu acúmulo de experiências nos anos 2000, vinte anos após o retorno ao Brasil. Os vários “cenários” percorridos parecem autenticar as imagens de uma viagem, cuja referência é o passado, a partir dos resíduos de lembranças explorado no presente. Em Diário de uma busca, ainda que a narrativa seja em primeira pessoa e que as questões tenham origem familiar e íntima, as memórias partilhadas não são estritamente daquele núcleo, pois pertencem ao exterior, ao público, convergem e dialogam com parte da sociedade dos anos 1960, 1970 e 1980. O fio condutor do filme, do nascimento à morte de Celso Castro, é constantemente interpelado e modulado pela presença do presente que (re)arranja a perspectiva da narrativa sobre o passado. Em síntese, Flávia Castro em um projeto voluntário de organização de suas lembranças, permeado por interesses pertinentes ao filme, roteirizou, produziu, dirigiu, narrou e montou o seu diário de compartilhamento coletivo em formato cinematográfico.

Já no filme Os dias com ele a seleção e variedade das imagens é menos diversa. O filme intercala as entrevistas realizadas com Carlos Henrique Escobar na sua residência com as cenas em silêncio ou com leituras na voz da diretora. Durante essas últimas, vídeos caseiros, provenientes de arquivos familiares, portanto privados, tornam-se parte da narrativa. Nos créditos finais do documentário é possível verificar o agradecimento de Maria Clara Escobar pela autorização do uso desses vídeos, cedidos por pessoas que não fazem parte da família. Ainda que não façam parte das imagens exploradas no filme, a pesquisa com documentos de arquivos também é mencionada nos créditos ao final do documentário. Além desses elementos que compõe o filme, três cenas são construídas a partir da leitura de documentos elaborados previamente ao filme: trechos de uma carta escrita pelo pai, Carlos Henrique Escobar para a filha Maria Clara Escobar, na qual nega o pedido para que seja filmado por ela; fragmentos da peçaMatei minha mulher (a 588

paixão do marxismo: Louis Althusser); documento elaborado pelo I Exército, decretando a prisão de Carlos Henrique Escobar. A única música parte do filme é Fita Amarela, de Noel Rosa, interpretada por Francisco Alves e Mario Reis.

O embate sobre a palavra e o silêncio, as lembranças e os esquecimentos, o conhecido e o inexplorado, o familiar e o alheio, o próximo e o distante em torno do tema da ditadura civil-militar são metaforizados pela diretora por meio de imagens acompanhadas pela fala ou quietude. De um lado, a câmera percorre ou se fixa em cenas do cotidiano de uma casa e imagens de objetos íntimos, como uma poltrona, os bibelôs e porta-retratos com fotos de família, a biblioteca carregada de livros e papeis, o gato em uma mesa olhando pela janela, a cadeira vazia, todas elas no interior da casa de Carlos Henrique Escobar. De outro lado, os vídeos que intercalam as cenas, imagens de arquivos familiares, filmadas em Super-8, exploradas sem áudio, gravações caseiras de adultos com crianças nos parques, na praia, nas praças, em uma piscina de plástico, crianças anônimas em momentos de lazer. As conversas/entrevistas não se fixam em uma cronologia e os fragmentos selecionados por Maria Clara Escobar não são, invariavelmente, do testemunho de Carlos Henrique Escobar. A montagem do documentário permite perceber um percurso pelas lembranças do personagem que, ora e outra, acusa a dinâmica de vigia ou dormência. A inclusão das cenas do cotidiano pela montagem, sugere ao espectador as etapas de constituição de uma relação, entre cineasta e seu entrevistado, entre a filha que busca desvendar o universo íntimo do pai, que cede, por fim, a sua presença com sua câmera insistente.

Algumas marcas das ditaduras do cone sul no testemunho sobrevivente e nas narrativas fílmicas de perspectiva filial

O testemunho sobrevivente da ditadura civil-militar é aquele que escapou de situações excepcionais e extremas e preservou a saúde, física e psíquica, apesar das consequências das experiências passadas. O testemunho voluntário que tratarei nesse item diz respeito aos que sobreviveram à condição de prisão, tortura, fuga e exílio. As lembranças dos protagonistas de Diário de uma busca e Os dias com ele, apesar de íntimas, não correspondem apenas a esses indivíduos, mas dialogam com parte da sociedade que esteve no alvo dos Estados ditatoriais daqueles anos. Os resíduos do terrorismo estatal se manifestam nas narrativas por meio de relatos que englobam medo, insegurança, revolta, 589

derrota, impotência e angústia. Os filmes, com base nas palavras dessas declarações, representam o passado fazendo recortes e selecionando imagens a fim de ligar a história das pessoas excluídas socialmente pelo Estado de exceção à história do país. Assim sendo, abordarei duas cenas exemplares desses documentários sublinhando aspectos inscritos nas lembranças individuais dos que vivenciaram diretamente a experiência (res) significadas por suas filhas.

O reencontro de Flávia Castro com a anistia política proporcionado pelo filme realizado por ela, por exemplo, pode ser evidenciado em uma das cenas em que a narradora ao traçar os sentimentos do pai, expõe às suas próprias impressões. Ao tratar do retorno dos exilados a partir de 1979, Diário de uma busca remete a imagens de arquivos, fotografias de abraços e sorrisos em salas de desembarque de aeroportos, acompanhados da voz Mercedes Sosa, interpretando a Canción de las simples cosas. Contudo, apesar do apelo emocional gerado pelo conteúdo visual e sonoro, a narradora sobrepõe um fragmento frustrado do seu diário da época contrapondo a alegria nos aeroportos como consenso absoluto dos que retornaram. Ela diz:

Pronto! Teve anistia, isso quer dizer que a gente pode voltar para o Brasil. Todo mundo parece contente, mas eles nem fizeram a revolução? E agora mesmo sem a polícia atrás da gente vamos voltar correndo, eu vou ter que largar tudo, meus amigos, minhas aulas de desenho, minha vida. Tô furiosa, não entendo mais nada! (Flávia Castro em Diário de uma busca, 2010)

As palavras de Flávia Castro anotadas em seu diário em 1979, e reproduzidas no filme trinta anos depois, denotam seu testemunho voluntário e revelam seu sentimento de insatisfação em relação à anistia. O retorno para o Brasil para parte dos que se refugiaram no exterior representou o (re)começo do exílio (ROLLEMBERG, 1999, p. 274). A montagem do filme sugere que o retorno não impactou apenas a adolescente, mas abalou seu pai, Celso Castro. Mesmo ele, que se mostrava abalado nas cartas endereçadas à família durante o tempo que passou no exterior, devido à distância e as implicações de viver impedido de voltar para o Brasil, não ficou imune às consequências geradas pela (re)inserção parcial, já que os militares seguiam no poder.

A fim de alcançar o que foi manifestado pelos escritos de Celso Castro, sua filha, em outra cena, explora a imagem captada pela sua câmera, que do lado de dentro do 590

aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, se fixa em frente a uma porta que abre e fecha. O enquadramento permite que o espectador acompanhe os movimentos de quem passa para o lado de dentro e de fora da porta. O olhar daquela perspectiva sugere uma condição estagnada, apenas de contemplação do entorno. Nessa passagem, um texto de Celso Castro é lido pelo seu filho Joca. A decepção com a volta para o Brasil pode ser observada a partir das palavras escritas pelo seu pai:

Sábado fui a uma festa do Comitê de Anistia, a maioria de retornados, uma festa surrealista, uma alegria que me pareceu chocante, um entusiasmo indecente e um toque de nostalgia melodramática. As pessoas fazem comparações absurdas entre a vitória sandinista e a volta dos exilados. Parece que ninguém se dá conta e o que é pior: ninguém quer entender que voltamos derrotados, que houve uma concessão da ditadura. E que se nos permitiram voltar, é porque nos derrotaram e se houve uma abertura é porque eles foram os vitoriosos. (Celso Castro em Diário de uma busca, 2010)

A disposição da câmera faz com que o espectador tenha a impressão de olhar a porta do aeroporto como que pelos olhos de Celso, imóvel, fora do lugar de onde ele vê a porta do país abrir e fechar sem estar certo se conseguirá atravessá-la ou se fixar nele.2 Celso Castro e Sandra Macedo estiveram entre os brasileiros que não hesitaram em retornar ao Brasil. Conquanto o retorno tenha se dado em meio à euforia da aproximação entre ex- exilados, ex-presos, familiares e grupos de solidariedade, não havia garantias de quando ocorreria uma transição democrática e a vida de milhares de pessoas não escaparia de um processo de readaptação em um país que já não era mais o mesmo. O Brasil havia se modificado para os que ficaram e para os que viveram no exterior, o tempo, em vista disso, passou não apenas para os indivíduos, mas para o país. O exílio dos brasileiros foi vivido em alguns casos como luto e em outros como uma oportunidade para a ampliação de horizontes. O retorno para o país de origem, cujo governo havia eliminado os projetos pessoais e públicos das esquerdas, foi pleno de significados (ROLLEMBERG, 1999).

A cineasta procurou mostrar em Diário de uma busca que a partida de Paris foi contra a sua vontade. Além disso, a partir do texto de Celso Castro, ela expôs o choque sentido pelo pai ao rever alguns ex-exilados e ex-presos políticos iludidos com a conjuntura, enquanto ele se via ocupando o lugar dos derrotados. Julgo pertinente destacar que ao

2 Como observado também por Feldman, “pela primeira vez no filme não há movimento de câmera durante a leitura de uma carta de Celso. No lugar dos travellings, que acompanhavam anteriormente o movimento de suas ideias e de seu âmago, agora ele está paralisado – e ainda dentro do aeroporto -, como quem olha para a porta de vidro fechada”. FELDMAN, 2017, p. 223. 591

abordar esses relatos no filme, Flávia Castro realiza uma lembrança em retrospectiva, consciente de que seu pai não havia encontrado seu lugar até a sua morte em 1984. Todavia, Celso Castro não foi o único a se sentir impotente diante da porta do país (ROLLEMBERG, 1999, p. 277).

Ao chamar atenção para este assunto, Flávia Castro pauta o drama vivido por aqueles que sobreviveram às ditaduras do Cone Sul, inclusive o dela ao voltar contrariada. Dessa maneira, a cineasta opta por reiterar as suas sensações quanto ao retorno, ao mesmo passo, que se filia às impressões do pai. Cabe ressaltar que essa interpretação sobre a anistia e o retorno não é consensual, considerando, como já dito, que parte dos retornados retomaram suas vidas, apesar da ditadura vigente. Considero, entretanto, que a inovação esteja justamente no aspecto visual selecionado: o aeroporto como lugar em que o testemunho é realocado, não para vibrar pela anistia política, mas como um espaço de desencaixe, de estagnação e não de movimento. Cabe notar que na filmografia brasileira, o aeroporto como lugar de manifestação do testemunho acerca do exílio encontra referência no curta-metragem Leucemia [1978], de Noilton Nunes, cujo subtítulo, não sem razão, chama “O filme da anistia”, devido ao seu conteúdo confluir com aquele momento político brasileiro em que a demanda pela anistia política que resultou na Lei de 1979 efervescia.3

Já em Os dias com ele, a demanda do testemunho voluntário do pai de Maria Clara Escobar explicita maior tensão, na medida em que o entrevistado, por vezes, procura orientar o trabalho da cineasta. Carlos Escobar como testemunha do que viu, ouviu e sentiu ora parece se esforçar para descrever o que viveu ora parece desviar pela literalidade. Essa, por sua vez, permite o uso da ficção para apresentar eventos que, à primeira vista, são irrepresentáveis. O entrevistado fornece pistas de sua convicção nos elementos estéticos como um caminho possível para preencher a narrativa cinematográfica quando, em certo diálogo mostrado no filme, sugere a Maria Clara Escobar que extrapole o documento escrito como base da sua narrativa e explore recursos visuais e orais. A partir desses indícios é possível captar que diferentemente do testemunho obrigado, convocado ou motivado por um dever de justiça estatal, o testemunho voluntário permite variadas expressões e manifestações não contempladas pela esfera jurídica.

3 Para maiores detalhes analíticos sobre o testemunho nesse documentário, ver: VARGAS, 2018. 592

Cabe observar, entretanto, que embora o testemunho voluntário esteja nas declarações de Carlos Escobar o protagonismo de Maria Clara em Os dias com ele deve ser notado em um trabalho coletivo de edição e montagem. Dessa forma, considero que o testemunho voluntário disposto no filme passou por um filtro inerente à intencionalidade de quem o produziu. Assim, o resultado é um conjunto de expressões de lembranças, subjetividades e desejos de comunicação e transmissão de ambos, filha e pai.

A fim de resolver a montagem de seu filme Maria Clara (res)significa orelato testemunhal do pai utilizando parte dos escritos dele, anteriores ao filme, articulando-o com imagens de arquivos de terceiros, como comentado anteriormente. Em uma das cenas, Carlos Escobar está sentado em uma cadeira de balanço, cercado por livros, em uma sala que parece ser a sua biblioteca, quando é interpelado por uma pergunta sobre a tortura. Ele faz uma digressão em suas respostas acerca da compreensão que tem em relação ao ato de testemunhar, o qual deve ser problematizado, na sua opinião, sem perder de vista os limites e a intransmissibilidade da experiência tal qual ocorrida.

Como uma tentativa para que Carlos Escobar fale sobre o tema, a cineasta pergunta, em tom de afirmação, se uma das cenas descritas por ele na peçaMatei minha mulher (a paixão do marxismo: Louis Althusser), corresponde a sua experiência durante a prisão em 1973.4 Ele reage com uma postura de dúvida sobre a afirmação dela. A cena apresenta um corte de edição, mas segue com ele na mesma poltrona com o livro nas mãos, como se dispusesse a testemunhar a partir da sua própria obra literária. Sem afirmar que estivesse relacionado com a sua experiência pessoal, ele explica a ela como deveria ser a cena teatral para esse caso e inicia a leitura do texto, que em determinado momento é seguida pela narração da filha.

Carlos Escobar lê o fragmento da peça que relata os sentimentos de um homem que experimenta a tortura em uma prisão. O escritor está sentado em sua biblioteca, onde interpreta o texto com tom de voz e uma das mãos que bate o braço da poltrona a cada frase até que um dos seus gatos se aproxima e ele o afaga (com um gesto tranquilo e carinhoso que parece compensar, um tanto, a violência infligida). Na sequência, o texto passa a ser narrado pela voz de Maria Clara e a imagem é modificada. Ao som de

4 A peça na íntegra foi publicada em 1983. Ver: ESCOBAR, Carlos Henrique. Matei minha mulher (a paixão do marxismo: Louis Althusser). Rio de Janeiro, Edições Achiamé Ltda., 1983. 593

pássaros, filmada pelas costas, uma criança caminha de mãos dadas com uma mulher à beira de um canal sob a luz de um sol ao entardecer. A câmera aparece voltada para um barco que vem em direção ao cais e se dirige, desfocada, para a mesma criança que olha para os movimentos da água e do barco, e dirige seu olhar para quem filma. A criança aparece sozinha na orla do canal, parada encara a câmera e, por fim, com o sol se pondo ao fundo, faz gestos aleatórios, momento em que a cena é encerrada.

Os elementos do texto me levam a supor que Carlos Escobar, um defensor entusiasta do marxismo althusseriano, fez usos do passado dramático do intelectual francês, Louis Althusser, que foi prisioneiro durante a Segunda Guerra, para falar de suas próprias experiências da tortura, dos tímpanos estourados, do frio, da solidão. O texto discorre sobre a resistência enfrentada por uma criança às situações intoleráveis e metaforiza que a desordem e o descontrole desencadeados pela tortura resultaram no cristal do seu interior que se partiu. O fragmento menciona os efeitos da insegurança e da falta dos pais em uma situação de risco, do gosto de salto mortal, sentido em algumas situações e de um isolamento e estranheza indecifrável acerca do que é público e político.

Desse modo, penso, que mesmo recorrendo à dramaturgia Carlos Escobar aderiu à provocação da filha e respondeu com outra referência a sua pergunta sobre o que o encontro com a tortura pode causar para o sujeito político. Ainda que não seja possível consolidar uma imagem do que a tortura tenha gerado nele, a cena é exemplar sobre o uso da literatura e do ficcional para explorar o que é tido como irrepresentável. A figura do menino em um passeio, totalmente despreocupado, já que conta com a companhia e proteção de adultos, utilizado por Maria Clara Escobar na montagem inova a imagem descrita pela peça de Carlos Escobar, uma vez que a força tomada pelas palavras não exige necessariamente uma imagem explicativa das circunstâncias da situação de pavor. Assim sendo, pai e filha criam um laço discursivo, não reduzindo a narrativa a um documento escrito, mas explorando-o e extrapolando o testemunho oral para uma possibilidade visual, via condicionada por esse modo específico de expressão do testemunho voluntário. Dessa maneira, o excerto da peça publicada pelo pai em 1983, passou a ser (re)arranjada pela filha três décadas depois. 594

Considerações finais

Os testemunhos voluntários extraídos dos protagonistas de Diário de uma busca e Os dias com ele indicam que as particularidades (re)arranjadas pelas cineastas se articulam mais ao lado da dimensão superstes, ou seja, como sobrevivente, e não como testis, buscando acusar autores das graves violações de direitos humanos ocorridos durante as ditaduras do cone sul.

Os filmes deixam evidentes aspectos que visam despertar a escuta dos espectadores, bem como a comoção, empatia, uma vez que humanizam seus pais como sujeitos de escolhas frente a uma determinada conjuntura política. No entanto, embora deixem pistas de que o direito à memória está implicado na intencionalidade de suas produções o fato de serem descendentes diretas desses agentes políticos não condicionou as suas escolhas. Dessa maneira, as diretoras optaram por não reforçar a militância de esquerda ou a luta armada como bandeira; não reduzir a identidade dos seus protagonistas a uma só face, como vítimas ou ex-perseguidos políticos, incluindo a multiplicidade de papeis que assumiram ao longo da vida; não definiram suas trajetórias como bem sucedidas ou fracassadas, ainda que tenham deixado expostos os enfrentamentos pessoais de cada uma após as experiências provocadas pelas ditaduras.

Embora as narrativas fílmicas, quase 50 anos após o golpe de 1964, não deixam de relatar a barbárie estatal e o sofrimento desdobrado em parte da sociedade, a linguagem cinematográfica analisada inova ao articular a oralidade em imagens de lugares, pessoas, objetos e estado de natureza para retratar o tema. Nessas abordagens encontram-se algumas marcas e indícios do que está inscrito nas lembranças dos pais e que passou a ser apropriado pelas filhas/os que correspondem a um grupo mais amplo pois, correspondem não apenas a parte das experiências de seus pais, mas de parte da sociedade brasileira.

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James Ellroy e a leitura da obsessão

MICHELLY CRISTINA DA SILVA Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). [email protected]

A obsessão como traço dentro de obras ficcionais é uma questão que suscitou relativamente poucos trabalhos. Apesar de ser um tema explorado com recorrência por novelistas nos séculos de existência do gênero romanesco, de Herman Melville a Vladimir Nabokov, são ainda poucas e recentes as pesquisas que se dedicaram a analisar personagens, trama, escritores e leitores obsessivos. Andrew Brink, em Obsession and Culture: a study of sexual obsession in modern fiction, trabalho de 1996 e um dos pioneiros no assunto, tentou um mapeamento da obsessão em romances, embora sua definição de comportamento obsessivo estivesse intrinsecamente atrelada ao comportamento e desejo sexual do obsessivo. Lennard Davis, em Obsession, de 2008, analisou diferentes perfis de pessoas obsessivas e em diferentes aspectos da vida: amor, alimentação, sexo, jogos, etc. Mais recentemente, Patricia Friedrich, em The Literary and Linguistic Construction of Obsessive-Compulsive Disorder, de 2015, traçou um histórico da presença de personagens compulsivo-obsessivos dentro de ficções de língua inglesa, começando com Shakespeare e terminando em títulos contemporâneos como Notes on a Scandal, de Zöe Heller, de 2006.

No presente texto, escolhemos abordar a obsessão em romances policiais modernos, subdivididos por sua vez no gênero novo noir e temporalmente situados a partir da segunda metade do século XX. Este recorte se dá pela pesquisa de doutoramento da autora concentrar-se nas relações entre História e Literatura tomando como fonte a obra de um dos autores mais conhecidos do gênero policial, o norte-americano James Ellroy. 598

Como falaremos ao longo do texto, Ellroy explorou e aprofundou a obsessão em seus romances, conferindo a seus personagens principais complexidade e profundidade.

Podemos situar que foi na segunda parte do século passado que na literatura policial começaram a surgir protagonistas mais complexos, falhos e obsessivos com seu caso e com seu assassino. Estes detetives protagonizaram histórias de autores tais como Ross MacDonald, Joseph Wambaugh e. décadas depois, Patricia Cornwell, Thomas Harris e Michael Conelly, entre outros. Era a renúncia ao detetive idealizado por Raymond Chandler, um dos autores precursores do hard-boiled, em seu ensaio de 1944, “A Simples Arte de Matar”. Neste texto, Chandler defendeu que o detetive das histórias policiais deveria ser retratado de forma mais realista, como assim o fazia seu contemporâneo Dashiell Hammett. No texto de Chandler em questão, Hammett era visto como a nova força do romance policial, por escrever tramas mais realistas pois próximas à realidade e à experiência norte-americana XX. A imagem do detetive ideal de Chandler não passou, no entanto, de ser vista de certa forma romantizada também, porque o autor, ao idealizar este personagem, dizia: “Ele é o herói, ele é tudo. Ele deve ser um homem completo, um homem comum, mas ao mesmo tempo um homem incomum. (...) Ele deve ser o melhor homem nesse mundo e um homem bom o suficiente para qualquer mundo”. (CHANDLER, 2009: 359)

Aqui mais especificamente veremos a obsessão em livros do escritor de romances policiais James Ellroy, natural de Los Angeles e nascido em 1948. Para Ana Maria Flügge, que dedicou sua tese à obsessão na obra de James Ellroy, o autor seria o mais complexo entre aqueles que trabalharam com a obsessão em seus romances dada a recorrência do tema e à forma como é explorado. (FLÜGGE, 2010: 10). Neste texto, resultado de sua pesquisa de doutoramento, a autora defende que a criação de um gênero “romance de obsessão”, dada a ocorrência com que o tema apareceu e tem aparecido em novelas ficcionais.

Neste texto tentaremos abordar a questão da obsessão de diferentes vieses, isto é: A - pelo processo de criação e escrita desse autor, ela própria obsessiva segundo nossa avaliação, B - pela forma como os personagens obsessivos são retratados nos romances aqui selecionados e C - pela forma com que os leitores se apropriam de sua obra. O objeto de nossa análise serão os livros que compõem a série Quarteto de Los Angeles, publicada entre 1987 e 1992. 599

A estreia de Ellroy na cena literária deu-se em 1981 com o romance Brown’s Requiem, mas foi com o Quarteto que Ellroy ganhou reconhecimento internacional. Os quatro livros foram considerados sucesso de público e crítica, com destaque para Dália Negra, o primeiro da série, e Los Angeles – Cidade Proibida, terceiro. Estes títulos também foram adaptados ao cinema em 1996 (Los Angeles – Cidade Proibida, dirigido por Curtis Hanson) e em 2006 (Dália Negra, dirigido por Brian de Palma).

Prolíficos, longos, abarcando uma linha temporal de quase vinte anos – entre 1943 até o final dos anos 1950 – e misturando personagens fictícios e reais da história da maior cidade da Califórnia, os quatro romances já foram analisados sob diversas perspectivas: seja sob o aspecto histórico da obra; seja sob a ênfase do autor à violência e ao grotesco; seja sob à continuidade e às rupturas que esta tetralogia apresenta ao gênero policial norte-americano; a partir da linguagem e dos pontos de vista adotados pelos policiais e detetives, conservadora no mínimo para não se dizer reacionária e preconceituosa em algumas passagens; seja sob a importância da cidade e sua geografia para a composição da obra, entre outros enfoques.

A obsessão muitas vezes suscita também o voyeurismo, o prazer de olhar, um tema também presente no Quarteto; e, da mesma forma que a obsessão, o voyeurismo na obra de Ellroy não é um traço caro aos assassinos ou criminosos: são traços também dos detetives da série, em especial o policial Danny Upshaw de O Grande Deserto e o tenente Dave Klein, de Jazz Branco, que espiam e perseguem seus objetos de desejo. O voyeurismo, não apenas no Quarteto, mas em quase toda a sua obra, foi o tema da pesquisa de Nathan Ashman, James Ellroy and the voyeur fiction.

Originalmente, o termo obsessão remete a uma doença mental. Segundo Frost e Steketee, na definição de “Disordem Obsessivo-Compulsiva”, na Encyclopedia of Mental Health, a obsessão pode ser caracterizada como “a presença de pensamentos, imagens ou impulsos repetitivos, indesejados, inapropriados e intrusivos, que causam stress e fixação”. Nos romances de Ellroy o fator patológico está presente, mas o traço vai além da doença e da debilidade por ela causada. A obsessão em Ellroy é antes de tudo uma ideia que os personagens têm, bem como um propósito, que condiciona suas vidas, fazendo com que sacrifiquem tudo em seu nome. A obsessão, assim, não se confina a seus elementos clínicos. Como defende sobretudo Flügge, ela pode ser até mesmo 600

uma característica positiva das personagens, porque muitas vezes é esse pensamento centrado e único que vai ajudá-los a alcançarem seus objetivos e, no caso da ficção policial de Ellroy, chegar a uma resolução dos casos que investigam.

Como já previamente mencionado, o objetivo do trabalho de Anna Maria Flügge é demonstrar que a ocorrência do que ela chama “romances obsessivos” é tamanha dentro da literatura, sobretudo norte-americana, que se poderia pensar no gênero “romance de obsessão”. Segundo ela, a obsessão começa a ganhar considerável espaço na ficção ainda no século XIX, com personagens obsessivos em obras de Nathaniel Hawthorne, como os contos The Birthmark, de 1843 e Rappaccini’s Daughter, de 1944, de Edgar Allan Poe, nos contos William Wilson (1839), A Queda da Casa de Usher (1839) e o Gato Preto (1843) e a obra mais conhecida de Herman Melville, Moby Dick, de 1853. Outros exemplos do gênero seriam títulos tais como O Grande Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald; Miss Corações Solitários (1933), de Nathaniel West; Lolita (1955), de Vladimir Nabokov; Ruído Branco (1985), de Don DeLillo, entre outros. De forma geral, seu argumento é de que o tema ainda não recebeu atenção suficiente dos críticos literários ou que, quando feito, como no já citado, Obsession and Culture de Andrew Brink, a obsessão tenha sido analisada atrelada necessariamente a fatores sexuais. É preciso notar que para essa classificação Flügge está considerando “paixão” e “loucura” como sentimentos semelhantes à obsessão e com isso, obras que têm personagens acometidos por um desses sentimentos, como em Lolita, também entram para o gênero.

Construída a categoria, Flugge avança para analisar a obsessão dentro da obra de James Ellroy. Falando do campo da crítica literária, a autora dá preferência por analisar o elemento obsessivo nos romances, deixando de lado, salvo em trechos introdutórios de seu livro, como o citado acima, aspectos da vida do autor que poderiam, a nossa vista, auxiliar na compreensão do elemento obsessivo dos personagens.

Ellroy é confessamente um homem obsessivo e um voyeur. Em sua primeira biografia, Meus Lugares Escuros, publicada em 1996, o autor relembra os episódios na adolescência e começo da vida adulta quando invadia casas e espiava mulheres pelas janelas. Seu voyeurismo e obsessão, contudo, remetem a um episódio traumático de sua infância: o assassinato da mãe, Geneva “Jean” Hilliker, quando Ellroy tinha 10 anos. Geneva foi violentada e estrangulada. O corpo foi abandonado num terreno baldio de El Monte, 601

subúrbio de Los Angeles onde ela e Ellroy viviam após o divórcio do pai de Ellroy, Armand. O assassinato nunca foi solucionado. Em Meus Lugares Escuros, Ellroy comenta a relação difícil e tumultuada que tinha com a mãe e a culpa que lhe depositava por morarem no subúrbio de Los Angeles e longe do pai, que havia permanecido em Los Angeles.

Eu a odiava. Odiava El Monte. Algum assassino desconhecido acabava de me proporcionar uma vida linda, novinha em folha. Ela era uma interiorana de Tunnel City, Wisconsin. Eu gostava dela unicamente pela ligação que teve com meu pai. Quando ela deu fim ao casamento, me tornou filho dele, única e exclusivamente. Comecei a odiá-la como prova do amor que tenho pelo meu pai. Eu tinha medo de aceitar a vontade e a coragem irascíveis daquela mulher. (ELLROY, 2012: 161-162).

Após o crime, Ellroy voltou a morar em Los Angeles com o pai. Junto com a dificuldade de lidar com a morte da mãe, Ellroy começou a ler a exaustão romances policiais, sobretudo os publicados em revistas pulp. Em seu aniversário de 11 anos seu pai lhe deu uma cópia do popular livro The Badge, de Jack Webb, espécie de compilado dos crimes mais famosos da cidade. Entre os mais escabrosos casos comentados no livro havia o de Elizabeth Short, uma jovem de 23 anos, que em 1947 havia sido torturada e assassinada. Ambos os crimes, o de Short e o de sua mãe, guardavam semelhanças: o corpo das duas mulheres havia sido abandonado em um terreno baldio e seus assassinos ainda não haviam sido pegos pela polícia. É nesta leitura precoce que começa a obsessão do autor por Elizabeth Short, apelida de “Dália Negra” pela imprensa da época e cuja história romanceada pelo autor, décadas depois, dar-lhe-ia fama.

Eu li a história da Dália centenas de vezes. Li o resto do The Badge e estudei as fotos. (...) Betty Short tornou-se minha obsessão. E minha substituta simbiótica para Geneva Hilliker Ellroy. Betty tinha fugido e procurado abrigo. Minha mãe tinha fugido para El Monte e lá forjado uma vida secreta de fim de semana. Betty e minha mãe foram vítimas de desova. Jack Webb dizia que Betty era uma garota dissoluta. Meu pai dizia que minha mãe era uma bêbada e uma puta. Minha obsessão pela Dália era explicitamente pornográfica. Minha imaginação supria os detalhes omitidos por Jack. (...) Sua não-solução era para mim uma muralha que eu tentava pôr abaixo com curiosidade infantil. (ELLROY, 2012: 201)

A falta de resolução do caso Short motivou o adolescente a fantasiar com o caso, em sua imaginação dando justiça à moça brutalmente assassinada cuja história lembrava-lhe o destino da mãe. Dessa forma, o caso da “Dália Negra” acabou se transformando na forma como Ellroy lidava com sua própria experiência traumática. Elizabeth e Geneva se transmutaram em sua imaginação. 602

Nos anos 1990, já um escritor estabelecido e tendo publicado a série que o alçaria à fama literária, Ellroy decidiu investigar por conta o assassinato de sua mãe. Com o auxílio de um detetive particular e de um dos policiais que havia sido responsável pelo caso, trabalhou por dois anos nas provas existentes, vasculhando os arquivos policiais de El Monte e entrevistando as poucas pessoas ligadas ao caso que ainda estavam vivas. Apesar do esforço e de parcas e desencontradas pistas, não conseguiram chegar a um novo suspeito. A empreitada foi em parte contada em sua biografia e no conto “O Assassino de Minha Mãe”, publicado em Onda de Crimes, seu livro de 2001.

As menções ao assassinato da mãe são recorrentes em textos e entrevistas do autor. Justamente por isso, é preciso trazer as referências a este episódio, de certo traumático e abominável, com reservas, porque acabaram por contribuir para a formação de sua persona e de uma “validade” enquanto autor de obras policiais a partir do trauma e da violência. Além disso, ao longo dos anos, Ellroy tem conscientemente construído dita persona, resultado de comentários bombásticos e reacionários. Em seu livro James Ellroy: Demon Dog of Crime Fiction, Steven Powell argumenta que reconhecer a história e influência da imagem do “cão demoníaco” é vital para ler, interpretar e analisar Ellroy enquanto escritor.

No romance Dália Negra, a busca pelos responsáveis pelo brutal assassinato da jovem Elizabeth Short transforma a vida de ambos os protagonistas do romance, os policiais Lee Blanchard e Dwight “Bucky” Bleichert. Escalados para compor a equipe responsável pelo caso, noticiado de forma incessante pela imprensa, os dois vão pouco a pouco tornando a busca pelo assassino como uma questão pessoal. Blanchard começa a associar o terror infligido a Short com o que pode ter acontecido à sua irmã desaparecida aos nove anos. Em uma sessão no Departamento de Polícia onde a equipe de investigação vê o filme pornô em que Short havia participado, Blanchard fica fora de si, quebra o filme e parte da sala e desaparece. Bleichert, seguindo uma pista de que Blanchard teria ido ao México – onde o filme adulto de Short fora gravado – encontra o parceiro morto, o corpo enterrado em uma enseada. Impactado com a descoberta e na vontade de vingar tanto Blanchard quanto Short, Bleichert “herda” a obsessão do amigo e começa uma investigação paralela e doentia pelo assassino. A obsessão de Bleichert, no entanto, não se restringe em desvendar quem seriam os assassinos de Short, mas, de forma mais macabra, com o próprio corpo e a figura da Dália. Bleichert contrata uma prostituta e a leva ao quarto de hotel onde ele mantém as provas ocultadas da polícia para que lá 603

possam transar com ela usando roupas e uma peruca preta que imitassem as usadas por Short e seu cabelo. Mais tarde, ele começa a se envolver emocional e fisicamente com Madeleine Sprague, uma rica herdeira que tenta imitar a Dália Negra, arrumando- se exatamente como ela e frequentando os bares e locais onde ela costumava ir. Para Nathan Ashman, a incapacidade de Bleichert de possuir o corpo de Elizabeth Short é refletida tanto no tratamento dado ao passado no romance – intangível e indecifrável – quanto na falta de um fim para a narrativa, já que por uma série de motivos a história de Short não pode ser revelada e o personagem de Bleichert acaba sendo o único a sabê- la. O romance, dessa forma, acaba sendo um diário de memórias que Bleichert tentará reconstruir. (ASHMAN, 2018: 27)

Blanchard e Bleichert não são os únicos personagens obsessivos de Dália Negra. De fato, o romance parece ser aquele em que isso se vê mais extrapolado. Madeleine Sprague é obcecada por Elizabeth Short a ponto de passar-se por ela após sua morte. Seu padrasto e amante, Emmett Sprague, é obcecado por ela. George Tilden, um dos assassinos de Short, tem uma perversa obsessão por partes de corpo, mantendo diversos potes cheios dos mesmos em sua casa. O romance, como é de se imaginar, é um dos mais sombrios e inquietantes do autor, contendo violências visuais tais como corpos desmembrados e em decomposição, necrofilia, roubo de túmulos, incesto e estupro.

Este é um mundo ficcional de identidades mutáveis e o livre arbítrio sob aguda dúvida, com Bucky [Bleichert] motivado por forças que ele não entende e sujeito a eventos cujos significados reais o escapam. É também um romance em que os opostos que normalmente estruturam a ficção policial se dissolvem. (...) A grande crítica do romance à sociedade e ideologia norte-americanas – uma crítica que poderia ser aplicada em vários degraus tanto ao passado quanto ao período contemporâneo – pode ser encontrada no conjunto de temas ao redor da própria Dália (e seu corpo retaliado), a família, Hollywood, propriedade, poder. Betty é uma vítima da aparente prosperidade norte-americana. (MESSENT, 2012: 195-196)

O primeiro aspecto da obra de Ellroy que Flügge analisa como obsessivo são os protagonistas. Flugge destaca sobretudo o aspecto irreversível da obsessão. Os personagens nascem obsessivos (Lee Blanchard em Dália Negra), tornam-se assim por conta do caso que investigam ou até mesmo “herdam” a obsessão dos companheiros de 604

investigação que acabam sucumbindo (a dupla Mal Considine e Buzz Meeks após a morte de Danny Uphshaw em O Grande Deserto). No entanto, para viver em uma sociedade que condena a obsessão e, como policiais, para não demonstrarem que os casos que investigam estão de alguma forma afetando-os, todos os personagens obsessivos de Ellroy precisam esconder-se por trás de uma fachada.

Além dos personagens, a obsessão se manifesta nos romances de Ellroy através da linguagem dos personagens e da narração. Embora em Dália Negra a obsessão de Bucky Bleichert se transmute em esquizofrenia, a linguagem deste romance não contém tantos experimentalismos. Já em Jazz Branco, o último romance, a obsessão do protagonista Dave Klein aparece nas sentenças curtas que marcam a narração também em primeira pessoa, nas frases aparentemente desconexas e nas inúmeras onomatopeias. O estilo chega a ser um contraste com a escrita de Ellroy em seus primeiros romances, Brown’s Requiem (1981) e Clandestine (1982), uma maneira de escrever que Peter Wolfe comparou com a Hammett e Chandler, “muito mais elástico e barroco do que minimalista e econômico”. No prólogo de Clandestine, o segundo romance de Ellroy, lê-se:

Durante o sombrio e frio inverno de 1951, trabalhei na patrulha da divisão Wilshire, joguei muito golfe e procurei a companhia de mulheres solitárias para encontros de uma noite. (...) Os anos 1950 não foram anos mais inocentes. A escuridão que governa nossa vida hoje já estava presente naquele tempo, a diferença é que ela era mais difícil de descobrir. Era por isso que eu era um policial e por isso que eu ia atrás de mulheres. (ELLROY, 1982: 1)

De fato, a narração em primeira pessoa muito mais se assemelha ao estilo “clássico” ou conhecido dos primeiros autores do hard-boiled, uma característica da qual Ellroy iria se afastar nas obras seguintes. Em Killer on the Road, de 1986, Ellroy começou a usar sentenças mais curtas, às vezes apenas palavras, muitas vezes em caixa alta. Quando o narrador e serial killer Martin Plunkett está a ponto de fazer outra vítima, anuncia o crime com um “TIQUE-TAQUE” repetido.

É a partir do Quarteto, no entanto, que a linguagem se transforma de vez como canal para a obsessão. Como argumenta Peter Wolfe, ela é também instrumento para demonstrar a vida em frenesi em uma metrópole em constante transformação como Los Angeles: “Nossa vida nos nega constância – especialmente na Los Angeles do Quarteto, onde pessoas são constantemente pressionadas, vidas tiradas ou mudadas para diferentes 605

direções. (...) Audacioso e livre, Jazz [Branco] subverte as auto-impostas estruturas de [Brown’s] Requiem. (WOLFE, 2005: 196)”

Em Dália Negra, romance aqui escolhido para exemplificar a obsessão, há estratégias de escrita que tentam enfatizar esse sentimento de alguns personagens. O primeiro quarto do romance é narrado de forma densa, com Bleichert como narrador das “memórias” de Short ainda no controle dos meandros da história. À medida que o romance avança, a atenção da polícia ao caso de Short diminui, até restarem apenas Bleichert e Ross Millard, seu colega policial, no caso. Sem seu parceiro, assassinado no México, Bleichert então passa a investigar o caso de maneira obsessiva – sentimento aumentando quando este se envolve com a doppelgänger da Dália Negra, Madeleine Sprague. A linguagem assim tenta dar conta da deterioração do estado mental do narrador-protagonista, consumido pelo caso que investiga. No auge de sua obsessão, as falas de Bleichert muitas vezes perdem a racionalidade; por exemplo, essa é a promessa que ele faz à memória de Elizabeth Short de que encontrará seu assassino: “Eu vou pegá-lo para você, ele não vai lhe machucar mais, eu vou lhe fazer justiça, oh, Bety, Jesus, caralho, eu prometo que vou” (Dália Negra, 313).

A obsessão de Bleichert em Dália Negra passa para o desconforto e instabilidade de Danny Uphsaw, um dos personagens de Grande Deserto – o segundo do Quarteto – com sua homossexualidade. Obsessivo e voyeur, Upshaw traduz em ódio sua sexualidade: “Danny, obcecado com o ângulo ‘homo’ que seu caso estava tomando, quer gritar “BICHA, FRUTINHA, HOMO, PEDERASTA, CHUPADOR” (O Grande Deserto, 265). As letras capitais são recurso frequente na história, indicando a guerra que o personagem trava contra si e sua frustração em não controlar o que chama de “impulsos”.

Em Jazz Branco, o último romance do Quarteto, um estilo quase telegráfico havia substituído a prosa já quase considerada “tradicional” dos primeiros romances do escritor. Eles refletem pontos no romance de alta tensão, becos sem saída, faltas de perspectiva. Também mostram uma escalada na loucura do personagem principal, Dave Klein.

Fazia sentido, mas: Ligações de cabines telefônicas para Lynwood = ???? Exaustão-frito. 606

Merda. Mãos atadas – dedos cruzados. Manchas de suor, pupilas dilatadas. (...) Apague-os – tttraga, tttraga justiça – pegue o telefone. Termine o serviço. (Jazz Branco, 222)

As categorias de análise de Flügge para a obsessão na obra de Ellroy, que levam em consideração os protagonistas e a linguagem do autor, acabam por serem um tanto restritas. Enquanto analisa os personagens obsessivos, por exemplo, Flugge se atém apenas aos protagonistas, sem considerar as psicoses e neuroses que levam os assassinos a cometerem os crimes grotescos ali retratados. Nem mesmo Dudley Smith, o grande antagonista de toda a série, o policial que personifica a corrupção do Departamento de Policial de Los Angeles é estudado em detalhes. E Dudley é também uma das personificações do obcecado – em seu caso em se tornar o chefe do crime na região sul de Los Angeles – e do voyeur. O voyeurismo em Ellroy é sobre o que se atenta Nathan Ashman, um voyeurismo que parte do próprio autor, que o impeliu no início da vida adulta a cometer atos ilícitos como espiar mulheres e invadir casas; está presente em personagens tão antagônicos como Danny Upshaw e Dudley Smith e que acaba também incitando a obsessão e o voyeurismo de seu público leitor. O leitor é voyeur porque pode se deliciar com a trama sanguinolenta, tornando-se um voyeur do mundo do crime com a proteção do muro criado pela ficção.

Por fim, como podemos falar dessa impressão de obsessão aos leitores? Quais seriam as estratégias de Ellroy para deixar seus leitores obcecados? Uma possibilidade de explicação é se nos voltarmos para o texto-manifesto de “A Simples Arte de Matar”, de Chandler. O autor compreendeu que o sórdido, violento e real, ou como assim queria retratá-lo, atraia e despertava fascínio. Como comenta Júlio Pimentel, em A Pista e a Razão, “O submundo oferece aventura, risco, possibilidade de uma vida mais ativa do que a rotina da classe média, nossa rotina classe-mediana. Ele guarda, sobretudo, um universo de prazeres mais ou menos ilícitos, porém sempre fáceis e empolgantes, adequados a homens viris e decididos. A vulgaridade das relações também fascina, pois sugere liberação das convenções sociais e comportamentais que os ‘cidadãos dignos’ são forçados a respeitar.”(PINTO, 2010: 160)

Em documentário de 1993, Ellroy comentou que “Los Angeles é a cidade dos pesadelos, dos meus principalmente, e de outras pessoas magnificados através dos meus olhos. Nesse ponto da minha carreira, meu trabalho tem sido tornar esses pesadelos... 607

explícitos”. (James Ellroy: Demon Dog of American Crime Fiction. Fischer Film, 1993. 27 min.) Aproveitando o mesmo fascínio mencionado por Pimentel, Ellroy explora e magnifica a violência, a própria obsessão e a entrega dos personagens, deixando a trama assim irresistível aos leitores. Há, contudo, uma diferença entre o fascínio do hard-boiled e a ficção policial de Ellroy do final do século XX. Quase uma inversão da impressão de real proposta por Chandler. Acreditamos que a chave esteja no termo “pesadelos magnificados”. Os leitores de Chandler e Hammett pareciam estar sedentos por essa impressão de realidade que o hard-boiled vinha trazer; Ellroy, por sua vez, conta com a extrapolação da violência, do grotesco e do irreal não para repetir a formula de Chandler e Hammett que dera certo no auge do hard-boiled, mas para afastar-se dela, trazendo algo de novo, sua contribuição, ao romance policial norte-americano.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ASHMAN, Nathan. James Ellroy and Voyeur Fiction. Lanham: Lexington Books, 2018.

BRINK, Andrew. Obsession and Culture: a study of sexual obsession in modern fiction. Madison: Fairleigh Dickinson University Press; London: Associated University Presses, 1996.

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FLÜGGE, Anna Maria. James Ellroy and the Novel of Obsession. Trier: WVT Wissenschaftlicher Verlag Trier, 2010. 608

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PINTO, Júlio Pimentel. A zona indeterminada do real: Ricardo Piglia, o policial duro & a crítica social. In: A pista e a razão. Leituras da ficção policial na história. 2010. 309f. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

POWELL, Steven. James Ellroy: Demon Dog of Crime Fiction. London: Palgrave, 2015.

WOLFE, Peter. Like Hot Knives to the Brain: James Ellroy’s search for himself. Lanham: Lexington Books, 2005. 609

A intelectualidade de esquerda e a questão feminina: o lugar da mulher na revista La Quinta Rueda (1972-1973)

NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE Doutora em História pela FCHS-UNESP, Pós-Doutoranda no IFCH-UNICAMP, bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected].

Não obstante os avanços significativos ocorridos nas últimas duas décadas nos estudos sobre o governo da Unidade Popular (UP)1, em especial no que se refere à ampliação temática2, chama atenção a pouca atenção dedicada a questões de gênero. Na própria bibliografia, predominam autores homens e a grande maioria dos personagens estudados também são homens.

No que se refere ao primeiro ponto, a coletânea “Memoria a 40 años”, coordenada por Pedro Milos e publicada em quatro volumes em 2013, é representativa. A coleção é resultado de um projeto iniciado em 2010 – o seminário Chile 1970¸ realizado pelo Departamento de História da Universidad Alberto Hurtado – e levado adiante nos anos seguintes. Os participantes – majoritariamente pessoas que viveram o período em questão – foram convidados pelos organizadores do evento e tiveram suas comunicações

1 A UP foi uma coalizão criada em 1969, reunindo as seguintes organizações políticas: Partido Comunista (PC), Partido Socialista (PS), Partido Radical (PR), Partido Social Demócrata (PSD), Acción Popular Independiente (API) e Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU). Em 1971, o Partido de Izquierda Radical e o Movimento de Izquierda Cristiana se incorporaram à coalizão, mas o primeiro desligou-se dela em 1972. A UP se propôs a instaurar o socialismo no Chile pela via “não armada”, respeitando a institucionalidade democrática. Seu candidato, o socialista Salvador Allende, venceu as eleições presidenciais de 1970 e governou até 11 de setembro de 1973, quando foi deposto pelo golpe que instaurou a ditadura do general Augusto Pinochet.

2 Em um estudo publicado em 2004, os historiadores Mario Garcés e Sebastián Leiva constataram que a historiografia sobre a UP se deteve por muito tempo nos atores políticos formais. Este quadro começou a mudar no contexto do trigésimo aniversário do golpe militar (2003), quando vários novos trabalhos sobre a UP foram publicados, destacando-se as coletâneas La Unidad Popular treinta años después (2003), editada por Rodrigo Baño; e Cuando hicimos historia (2005), organizada por Julio Pinto Vallejos. Nos anos seguintes, os enfoques foram se diversificando, como demonstram o novo livro editado por Pinto Vallejos no quadragésimo aniversário do fim do governo, intitulado Fiesta y drama (2014); e a coleção “Memoria a 40 años”, coordenada por Pedro Milos (2013). A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 610

transcritas nos livros. Do total de sessenta participantes que tiveram textos publicados na coleção, apenas três são mulheres: a historiadora Isabel Torres, a psicóloga Carmen Gloria Aguayo (designada Ministra da Família por Salvador Allende) e Sofía Prats (filha do general Carlos Prats, Comandante em Chefe das Forças Armadas chilenas entre 1970 e 1973).

Quanto aos atores tradicionalmente estudados, há uma ênfase nos partidos políticos e nas organizações trabalhistas. No plano individual, predominam como objeto intelectuais e políticos do sexo masculino – como Salvador Allende, Pablo Neruda, Tomás Moulian e Víctor Jara. No que tange a questões de gênero, há alguns estudos específicos sobre a participação de mulheres identificadas com a direita política (POWER, 2002) e sobre o discurso homofóbico na imprensa (ACEVEDO; ELGUETA, 2009). Além disso, os estudos sobre movimentos sociais ou artísticos geralmente abrangem personagens femininas, como é o caso da cantora e compositora Isabel Parra, expoente da Nova Canção Chilena, mas sem destacar sua condição de mulheres.

Conforme aponta a historiadora norte-americana Margaret Power, no Chile de início dos anos 1970, as ideias sobre gênero eram ao mesmo tempo onipresentes e invisíveis. Ou seja, permeavam e definiam diversos aspectos das relações sociais, mas permaneceram, em grande parte, ignoradas ou pressupostas. Apesar da profunda polarização política que marcou a virada da década – e se expressou inclusive dentro do governo –, havia um alto grau de consenso no que se refere ao que significava ser homem ou ser mulher. Em geral, esta era identificada com a figura de esposa e mãe, abnegada e disposta a se sacrificar pela família. Sua esfera fundamental de atuação era o lar ou, no máximo, a vizinhança. Ainda segundo Power, em 1970, apenas 20% das mulheres chilenas trabalhavam fora de casa, geralmente como empregadas domésticas ou profissionais de classe média (não operárias), e 15% eram filiadas a partidos políticos – ou seja, prevalecia a noção da política como uma atividade masculina (POWER, 1997, p. 251-252).

Historicamente, observa-se nos discursos da esquerda chilena uma tendência a definir o homem trabalhador como protagonista central. Inserindo-se nesta tradição, o governo da UP concentrou seus esforços em organizar os trabalhadores e melhorar sua condição de vida. Dado que a força de trabalho era predominantemente masculina e que as mulheres da classe trabalhadora eram prioritariamente donas de casa, depreende-se A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 611

que elas não foram nem os sujeitos, nem as principais beneficiárias dos programas da UP (POWER, 1997; BORGES, 2011, p. 22-23; RODRÍGUEZ AEDO, 2011, p. 47).

Ainda que Allende tenha manifestado em diversos discursos que a inclusão da mulher no processo da Via chilena ao socialismo era importante para as mudanças que o país viveria, o governo da UP a manteve em um lugar secundário. Publicado em dezembro de 1969, o Programa basico de gobierno de la Unidad Popular é “assinado” pelos dirigentes das organizações políticas que, naquele momento, integravam a coalizão: Luís Corvalán (Partido Comunista), Aniceto Rodríguez (Partido Socialista), Carlos Morales (Partido Radical), Jacques Chonchol (Movimiento de Acción Popular Unitaria), Esteban Leiton (Partido Social Demócrata) e Alfonso David Lebon (Acción Popular Independiente) – todos homens. No texto, há diversas passagens que apontam como objetivo central dar poder político e econômico ao “homem trabalhador”. Por exemplo: “Indiscutivelmente, a candidatura do povo representará, assim, para a opinião pública a única e verdadeira solução popular para os problemas do homem de trabalho e para o progresso geral do país”3 (p. 46).

Em grande medida, o programa da UP se voltava a viabilizar que o homem da classe trabalhadora dirigisse o país e sustentasse satisfatoriamente sua família. Ou seja, que ele realizasse mais plenamente sua masculinidade (POWER, 1997, p. 255). Autoras como Power (1997, 2002) e Judith Astelarra (1978) vêm chamando atenção para as consequências políticas desse desinteresse da esquerda pelas mulheres, que acabaram sendo cooptadas pela direita e desempenharam um papel importante na derrocada do governo. Vale mencionar que, a partir de 1958, a esquerda foi derrotada nas eleições presidenciais precisamente pelos votos femininos4 e, em 1970, apesar de sair vitoriosa, a UP obteve uma cifra consideravelmente maior de votos masculinos.

Em dezembro de 1971, as mulheres de oposição encabeçaram a “Marcha das panelas vazias”, que reuniu mais de 5 mil manifestantes para protestar contra o desabastecimento e pedir a renúncia de Allende. O ato, realizado durante a visita de Fidel Castro ao Chile e considerada pelo historiador Alberto Aggio “o auge da ofensiva de massas da oposição”, desdobrou-se em enfrentamentos de rua que se prolongaram por uma semana, gerando

3 Nas citações presentes no decorrer desta comunicação, a tradução para o português de todos os textos originalmente em língua estrangeira é de minha autoria.

4 O voto feminino foi efetivamente conquistado no Chile em 1949. A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 612

uma situação aberta de confrontação civil que levou o governo a decretar estado de emergência em Santiago (AGGIO, 2002, p. 125).

Os cartazes oficiais e as canções gravadas no período por músicos da Nova Canção Chilena – movimento fortemente identificado com a UP – explicitam a distância existente entre a esquerda política e as mulheres chilenas. Em muitos deles, há uma exaltação da virilidade e do protagonismo do homem trabalhador, enquanto a figura feminina, quando presente, permanece em segundo plano, obediente e associada com a maternidade.5 Assim, o governo e seus apoiadores não romperam com as representações tradicionais de gênero.

A centralidade do masculino no meio intelectual governista também se manifesta na revista cultural La Quinta Rueda (LQR)6, publicada mensalmente entre outubro de 1972 e agosto de 1973 pela Editora Nacional Quimantú, nacionalizada no início de 1971. A intenção de publicar uma revista para fazer política cultural aparece ressaltada desde sua primeira edição, evidenciando um propósito central: constituir um fórum de discussões sobre o cenário artístico e educacional chileno, apontando caminhos para a renovação do campo cultural e cobrando uma participação mais ativa do governo na realização deste objetivo. Daí seu título irônico, que visava protestar contra a falta de compromisso estatal com o campo da cultura, como se esta fosse a “quinta roda do carro”. As principais questões abordadas na revista eram: a necessidade de criação de organismos culturais mais eficientes; perguntas pelo lugar dos escritores e artistas no processo revolucionário e pelo tipo de cultura a ser incentivado pelo governo; e a divulgação de projetos culturais que vinham sendo realizados com ou sem apoio estatal.

Em um texto publicado na segunda edição, os editores afirmam que a intenção deLQR não era expressar o posicionamento de um grupo, mas constituir um espaço de debate aberto a todos que tivessem algo para aportar ao diagnóstico e ao desenvolvimento da realidade cultural nacional. Esta abertura a diferentes posicionamentos se expressou na própria equipe editorial, dirigida pelo jornalista e crítico de cinema Hans Ehrmann e integrada inicialmente por Carlos Maldonado (crítico de teatro e membro do PC); Mario Salazar (sociólogo, cantor, produtor musical e teatral, filiado ao PS); e Antonio Skármeta

5 Sobre o assunto, ver POWER, 2002; KARMY, 2011; e RODRÍGUEZ AEDO, 2011.

6 Analisei esta revista anteriormente em SCHMIEDECKE, 2014, enfocando o espaço dedicado à música em suas páginas. A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 613

(escritor e diretor teatral, membro do MAPU). Após cinco edições, Salazar foi substituído pelo socialista Alfonso Calderón, escritor e crítico literário.

Observa-se que, assim como em outras áreas vinculadas ao governo, LQR assumiu a política de cotas, que previa a distribuição equitativa de vagas e cargos diretivos entre os principais partidos integrantes da UP (BIANCHI, 1999, p. 474). A composição da equipe editorial também informa sobre os pressupostos e o conteúdo da publicação. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo que apoiava o governo e estava ligado a ele, de modo que suas críticas às iniciativas oficiais tinham a intenção de serem construtivas. Em segundo lugar, a heterogeneidade da atuação profissional dos editores é representativa da variedade de temas abarcados pela revista, que incluía matérias sobre literatura, cinema, música, teatro, artes plásticas e educação, entre outros.

Se diferentes perspectivas políticas e áreas artísticas estavam representadas na revista, não se observa o mesmo em termos de gênero. Em primeiro lugar, a equipe editorial estava formada apenas por homens. No que se refere às outras formas de participação na revista, realizei um levantamento de todas as pessoas que assinaram matérias; que concederam entrevistas; que tiveram textos de sua autoria transcritos; e que foram objeto de análise. Em todos os quesitos, as mulheres respondem por um número baixíssimo. De um total de 103 artigos escritos para a revista, por 70 autores diferentes, apenas 6 são assinados por mulheres; de 35 pessoas entrevistadas, 4 são mulheres; dos 13 textos originalmente publicados em outros espaços e transcritos em LQR, 2 correspondem a mulheres (ambos em coautoria com homens); e das 26 personalidades tematizadas nas matérias, somente 4 são mulheres. Portanto, dentro desses critérios, a presença feminina na revista varia entre 5% e 11%.

Destacada esta desproporção, passo a analisar o material correspondente às mulheres. Para os fins desta comunicação, centrar-me-ei em cinco documentos: os artigos de María Elena Claro (LQR n. 1) e Pia Sjöbladh Alberts (n. 3); a entrevista com Ximena Rodríguez e Nancy Gewölb, assinada por Carlos Olivarez (n. 3); e a homenagem a Violeta Parra (n. 4).

Publicado na primeira edição de LQR, o texto da então estudante de Literatura María Elena Claro narra os motivos que a levaram a mudar de tema em sua pesquisa de conclusão de curso, passando da escritora chilena María Luisa Bombal, cujas obras A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 614

enfocam questões íntimas do universo feminino, para o padre e poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, participante ativo da Revolução Sandinista. Segundo a autora, a mudança foi motivada pela percepção de que ela não se sentia motivada a trabalhar com o tema que havia escolhido originalmente. Em determinado momento, Claro compreendeu que isso se devia ao fato de que o mundo que até então reconhecia como arte aparecia como “alienação” no contexto que o Chile estava vivenciando. Isso teria sido apontado por seus próprios alunos, que lhe diziam sobre Bombal: “essa mulher merece morrer por ser estúpida”; “esta mulher vive na névoa, porque não se atreve a viver no que é luminoso”. Ainda de acordo com a autora, durante a visita de Cardenal ao Chile, em 1971, ela se fascinou por sua figura e concluiu que ele era uma referência muito mais importante para o processo chileno, na medida em que seu trabalho como revolucionário, padre e poeta era indivisível (CLARO, 1972).

Três números depois, LQR homenageou a cantora, compositora, folclorista e artista plástica chilena Violeta Parra. A edição corresponde aos meses de janeiro e fevereiro de 1973, quando o suicídio da artista, ocorrido em 5 de fevereiro de 1967, completou seis anos. Violeta aparece na capa e em duas matérias que, juntas, ocupam seis páginas – quantidade expressiva para uma revista de 24 páginas. O primeiro texto é a reprodução de parte de um trabalho ainda não concluído, desenvolvido pelos estudantes de Jornalismo Patricia Bravo, Patricia Standbook e Jaime Lodoña. O trecho selecionado abarca a vida de Violeta entre 1934 e 1953 e contém depoimentos de pessoas que a conheceram: alguns parentes (irmãos, primeiro marido, tia, prima), o dono de um bar onde ela se apresentava quando jovem e o folclorista Héctor Pavez. A questão de fundo é como Violeta foi construindo sua personalidade artística e os temas abordados são sua chegada a Santiago, as atividades que exerceu ali, os lugares onde morou, seus primeiros poemas e canções, sua relação com a família, suas atividades junto ao Partido Comunista, sua forma atípica de portar- se e vestir-se, entre outros. O texto se encerra com um depoimento da folclorista Hilda Parra, que comenta a luta de sua irmã para difundir o folclore e conseguir que ele fosse respeitado (BRAVO; STANDBOOK; LODOÑA, 1973).

Na sequência, aparece o conto “El entierro de Violeta”, de Miguel Cabezas, escrito em 1967, logo após a morte da artista. O conto aborda de forma fantasiosa seu enterro, destacando que ela era alegre e querida entre os pobres; além de postular que Violeta deixou como herança sua canção, que desejava ver proliferar-se (CABEZAS, 1973). A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 615

A terceira edição de LQR inclui os dois últimos textos que me propus a comentar. Em “La mujer realmente femenina”, Pia Sjöbladh Alberts aborda, em tom bastante crítico, as representações do feminino difundidas pela revista Eva. Publicada no Chile entre 1942 e 1974, Eva tinha como slogan “La revista moderna de la mujer”. Alberts analisa seis números e reconhece os seguintes elementos no discurso da revista: maternidade como meta suprema; “ser feminina” como preocupação permanente; identificação entre felicidade e casamento; necessidade de ser bonita, investindo o tempo e o dinheiro necessários; mulher como objeto sexual. A autora destaca que, nesta visão, o papel feminino implicaria alienação e dominação e que este seria o ideal de mulher perseguido pela direita política.

Para sustentar o argumento de que as mulheres de direita que ocupavam cargos políticos eram “as primeiras” a reforçar o fechamento das mulheres nesse “mini mundo”, Alberts cita como exemplo a seguinte fala da presidente nacional das Mulheres Democrata- Cristãs, Terezita de Maza: “Como mulher e como chilena, rechaço instintivamente o marxismo” em favor “do nosso valor pessoal, de nossos filhos e netos, de nossos maridos”. A autora coloca a seguinte questão:

“Até quando vamos aceitar ser consideradas cidadãs de segunda categoria, de um corpo bonito [...], um útero para parir [...]?”; e termina o artigo citando uma líder (não identificada) do movimento feminista norte-americano que afirma não ter como objetivo a igualdade em relação aos homens, pois estes “tampouco são livres” (ALBERTS, 1972).

Se “La mujer realmente femenina” aparece no final da revista (p. 19), encontramos no outro extremo (p. 6) um artigo do escritor Carlos Olivarez intitulado “Los pasadizos del sexo”. Com um total de sete textos, Olivarez foi um dos autores que mais publicaram em LQR, o que sugere seu alinhamento com a equipe editorial. No artigo em questão, ele escreve em terceira pessoa, narrando como um fotógrafo se sentiu ao conversar com as artistas plásticas Ximena Rodríguez e Nancy Gewölb. Ambas trabalhavam com representações de órgãos sexuais: a primeira fazia esculturas de pênis e a segunda pintava o órgão feminino, explorando suas formas, cores, texturas e, também, seus sentidos culturais. Duas obras – uma de cada artista – ilustram a matéria.

É perceptível que o “fotógrafo” se sente extremamente desconfortável e não compreende o valor artístico das obras, nem as motivações das artistas. Enquanto A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 616

Rodríguez e Gewölb insistem que a nudez, para elas, era algo natural e que deveria ser encarado como tal, o “fotógrafo” faz perguntas como: “mas não pensa que isso pode ser catalogado como pornográfico?”; “a estilização [do pênis] é intencional ou simples falta de conhecimento[?]”; “O que pensará seu companheiro[?]”; e por que pintar tantas vezes a mesma coisa? Sobre esta última questão, Gewölb responde que há muito de subjetivo no que faz e que acredita estar passando por uma fase de transição artística. O “fotógrafo” retruca perguntando se, no fundo, o objetivo não seria chocar a burguesia e ela reitera que “Não, na verdade me estranha muito que as pessoas se choquem porque é algo que me sai muito naturalmente” (OLIVAREZ, 1972).Conforme a análise feita pela historiadora da arte Stella Salinero:

A escassa informação que entrega a revista pode nos dar pistas de como se recepcionava o trabalho de uma artista frente a um tema tabu como a sexualidade nos anos 70. No texto observamos como se ia solapando o fato de ser artista e mulher, logo os preconceitos sobre o conteúdo de sua obra e a obra que poderia ser de uma mulher ou feminina, somado ao lugar da “mulher” como objeto de desejo em nossa cultura. Por isso quando o autor diz que Nancy Gewölb – uma moça loira, bonita, de calça boca de sino e olhos azuis – “pelo menos está pintando o sexo feminino”, ali algo nos é revelado. Talvez seja o incômodo que causa quando uma mulher fala de sexo e não só de seu sexo, senão do masculino, a representação do pênis quando não se tem pênis e daí as perguntas jocosas sobre o sexo, o duplo sentido das frases, a pouca atenção às problemáticas das quais falam as artistas sobre as motivações de suas obras, entre outras coisas. Embora sejam os anos da “libertação sexual” (...) parece que esta libertação nunca chegou realmente para as mulheres ou pelo menos não chegou ao seus corpos tão diretamente, o que é demonstrado no fato tão simples da perplexidade que suscita para o autor do texto as obras que está contemplando (...) (SALINERO, 2013)

Considerações Finais

Esta breve análise de LQR permite refletir sobre o lugar da mulher no projeto de uma “nova cultura” para o “novo Chile” que estava sendo projetado e construído pela esquerda no contexto da UP. Sua pequena presença na revista pode ser associada ao fato de a mulher não ser vista como protagonista da almejada revolução. Mais do que isso, o desinteresse pelas opiniões e pela produção intelectual de escritoras e artistas aponta para a tendência da esquerda do período de reiterar as representações de gênero tradicionais, que concebiam a política e o desenvolvimento cultural da nação como incumbências masculinas.

Também foi possível perceber que a revista tendeu a minimizar a importância das A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA E A QUESTÃO FEMININA: O LUGAR DA MULHER NA REVISTA LA QUINTA RUEDA (1972-1973) NATÁLIA AYO SCHMIEDECKE 617

questões envolvendo a intimidade feminina. Isso aparece com clareza no texto de Claro, que opõe Ernesto Cardenal e María Luisa Bombal. E mesmo as duas únicas matérias que abordam diretamente o lugar da mulher na sociedade não o fazem de modo a incentivar a libertação sexual. No caso do artigo de Alberts, há uma leitura classista da “questão feminina” ao enfocar a relação entre as representações promovidas pela revista Eva e os interesses da direita política, silenciando sobre a esquerda. No da entrevista com as artistas plásticas Ximena Rodríguez e Nancy Gewölb, dando a voz para um observador masculino que demonstra incompreensão e perplexidade diante de suas obras.

É importante mencionar que outras publicações de esquerda – como as revistas Ramona e Punto Final – publicaram matérias no período problematizando as representações tradicionais de gênero (POWER, 1997, p. 252 e 254). Mas, no geral, prevaleceu a tendência a desconsiderar a “questão feminina” ou a concebê-la como algo que seria resolvido automaticamente acabando-se com a exploração da classe trabalhadora.

A problemática abordada na presente comunicação apareceu recentemente nos meus estudos, de modo que as conclusões aqui apresentadas são bastante incipientes. Longe de oferecer uma análise aprofundada, meu objetivo foi chamar atenção para a relevância do tema, que, como mencionei, ainda foi pouco levado em conta pela historiografia sobre a UP. Historiografia esta que, ao ser em grande parte produzida pelos intelectuais do período – ou melhor, pelos que se consagraram como tais –, vem reproduzindo o predomínio masculino.

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A visita de Annemarie Heinrich ao Foto Cine Clube Bandeirante. A circulação latino-americana da fotografia subjetiva, 1950

PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO Doutora em História pela UNESP – Assis; professora das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO; [email protected]

Panorama da fotografia do Foto Cine Clube Bandeirante nas décadas de 1940 e 1950

Já anunciada com antecedência na “Nota do Mês” do Boletim Foto Cine 1, de fevereiro de 1951, a exposição de Annemarie Heinrich aconteceu logo no mês seguinte, e foi apresentada por dois artigos no BFC, um sem assinatura, e outro assinado por Jacob Polacow 2. A exposição, realizada no espaço da Galeria do Masp e financiada pelo Foto Cine Clube Bandeirante, contou com 100 trabalhos da autora, que não apenas enviou as obras, mas veio pessoalmente acompanhar os preparativos da exposição e visitar a cidade de São Paulo com seu marido, Álvaro Sol, escritor e crítico de cinema.

A organização da exposição da fotógrafa argentina fez parte de um conjunto de exposições promovidas pelo Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB) durante a década de 1950 em parceria com o recém-criado Museu de Arte de São Paulo – MASP 3. Outra

1 Boletim Foto Cine – BFC -, foi a publicação mensal do Foto Cine Clube Bandeirante – FCCB -, responsável pela divulgação das atividades do clube, assim como de artigos sobre processos fotográficos, fotógrafos e salões de fotografia produzidos pelos próprios sócios ou traduzidos de outros boletins de outros clubes do mundo. Começou a ser publicado em 1946 e sofreu grandes modificações ao longo dos anos, deixando de ser publicado em 1982 (GRECCO, 2016, p. 90 - 105).

2 Jacob Polacow foi associado do Foto Cine Clube Bandeirante, bastante ativo em publicações do BFC nas décadas de 1940 e 1950.

3 Sobre as exposições individuais de fotógrafos do FCCB em parceria com museus na década de 1950, temos as seguintes, destacadas por Heloisa Espada Rodrigues Lima: “No início dos anos 1950, após as mostras de Farkas [Tomaz Farkas, MAM, 1949] e Barros [Geraldo de Barros, Masp, 1950], foram realizadas, com patrocínio da associação, as seguintes exposições de clubistas: German Lorca (MAM, 1952), Francisco Albuquerque (Masp, 1952) e Ademar A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 621

exposição realizada através dessa parceria, que tem importância direta para a proposta desse artigo, foi a de Otto Steinert e seus alunos, de 1955, representantes da Fotografia Subjetiva, uma forma de fotografia experimental surgida na Europa do pós Segunda Guerra Mundial. No caso dessas duas exposições, de Annemarie Heinrich e Otto Steinert, tanto suas divulgações quanto os artigos críticos sobre os trabalhos que apresentaram foram publicadas no BFC, criando um circuito para esses eventos composto de divulgação – exposição – crítica, uma estratégia que vinha sendo utilizada com frequência nos eventos organizados pelo clube e intensificada durante a década de 19504 .

O FCCB, que começou suas atividades no ano de 1939 defendendo a produção artística da fotografia através da prática do pictorialismo, durante a década de1950, foi o responsável pela renovação do léxico fotográfico no país que se configurou como fotografia moderna. As experiências inovadoras com a fotografia começaram, num primeiro momento através de pesquisas individuais, para depois se expandirem ao ponto de ser a tônica da produção do FCCB, quando este começou a ser conhecido pela crítica como Escola Paulista de Fotografia, na década de 1950. As primeiras experiências foram realizadas por Thomaz Farkas, José Yalenti, German Lorca e Geraldo de Barros, chamados por Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva no livro A fotografia moderna no Brasil, de “os pioneiros” (COSTA; SILVA, 2004, p. 33 – 47).

Cada um desses fotógrafos, através de suas experimentações, contribuiu para a criação de uma sensibilidade moderna fotográfica que teve lugar no uso das especificidades do meio fotográfico para a criação das imagens. O pensamento novo sobre a construção da imagem fotográfica teve consequências também nas escolhas temáticas das fotografias (COSTA; SILVA, 2004, p. 39). De maneira geral, essas mudanças apontam para fotografias que buscavam a geometrização das formas, acentuada pelo

Manarini (MAM, 1954). Além disso, o FCCB participou da II Bienal de São Paulo, em 1953” (LIMA, 2006, p. 124).

4 Ressaltarmos aqui que inserimos as exposições de fotografia promovidas através da parceria do FCCB com o Masp como parte de uma movimentação cultural maior, com vistas a difusão da arte moderna, que vinha tomando forma desde a década de 1930 com os grupos de arte moderna, como a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e o Clube dos Artistas Modernos (CAM), além das três edições dos Salões de Maio, a Família Paulista e o Sindicato dos Artistas Plásticos, que foram iniciadores de um processo de criação de um campo de atuação para exposições/público/crítica para a arte moderna. Se chegamos na década de 1950 com as discussões das artes girando em torno da crítica ao figurativo e aproximação ao abstrato, a grande circulação das artes plásticas abstratas que gerou essa discussão aconteceu nos espaços dos museus recém-criados. Nesse sentido, o FCCB, dentro da lógica de funcionamento dos fotoclubes, veio ao longo dos anos, intensificando suas ações expositivas através dos salões, procurando sempre a inserção da fotografia nos espaços das belas artes, o que acontece na década de 1950 (GRECCO, 2016, p.133). A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 622

uso da iluminação em contrastes e ângulos inusitados para as tomadas, a criação de uma movimentação, de um ritmo propiciado pelos jogos muitas vezes formais de composição, além do uso de técnicas como os fotogramas, solarizações, múltiplas exposições. Os temas que deixavam transparecer essa nova visualidade são voltados ao cotidiano, tanto em sua vida na cidade, suas ruas, prédios, atividades, como através de objetos que passaram a ser abordados em seu aspecto formal, como xícaras, garrafas, cadeiras, guarda-chuvas, etc. (COSTA; SILVA, 2004, p. 39); (FABRIS, 2013, p. 312 – 348).

Esse novo léxico fotográfico adotado pelos fotógrafos do FCCB, segundo Costa e Silva (2004), assim como Annateresa Fabris (2013), vinha principalmente de correntes fotográficas europeias e norte-americanas, mas destacadamente da Nova Visão eda Nova Objetividade. Segundo os autores, essa nova sensibilidade se pautava nessas duas vertentes da fotografia moderna, que exploravam ao máximo as potencialidades específicas da fotografia enquanto uma imagem artística produzida através dos procedimentos que são próprios ao uso da máquina, criando uma novo léxico visual moderno: “A arte fotográfica modernista fundamenta-se na aceitação positiva da aliança entre a máquina e as coisas do mundo próprio da fotografia” (ROUILLÉ, 2009, p. 263).

Aspectos principalmente na Nova Visão podem ser percebidos nas produções dos “pioneiros” do FCCB, como em Yalenti, em que vemos o uso das formas geométricas e linhas como determinantes da composição; em Farkas a ênfase nos ritmos e sequências, nas texturas, uso dos ângulos inferior e superior e jogos de luz de sombras; em Lorca a preocupação com o assunto através da consciência plástica de arranjos de objetos e captação da vida cotidiana de forma a criar uma cena inusitada, assim como o uso do corte em suas fotografias conjuntamente com a ideia de flagrante; em Barros o interesse pelos experimentos com imagem o levam em várias direções, culminando na abstração de sua série Fotoformas (FABRIS, 2013, p. 312 – 348). Algumas das características apresentadas por esse fotógrafos, se expandiram para a produção do clube durante a década de 1950, caracterizando assim uma produção coletiva da experiência moderna que distingue essa produção das produções dos demais clubes brasileiros, tornando-se característica da modernidade fotográfica do FCCB, chamado então de Escola Paulista de Fotografia (COSTA; SILVA, 2004, p. 48 – 70).

Apesar da novidade das experiências modernas sendo destacadas nesse momento no FCCB, nem todos os seus associados tornaram-se adeptos dessa nova linguagem, mantendo- A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 623

se ainda a prática da fotografia acadêmica, pictorialista. Dessa forma, a década de 1950, em que é estabelecida a Escola Paulista, é também o momento em que o clube, com a intensão de não segregar nenhuma forma do fazer fotográfico, e ainda de sair do que a crítica vinha chamando de “estagnação em que se encontrava o Bandeirante no final da década de 1940” (GRECCO, 2016, p. 146), assumiu sua produção como sendo uma produção “eclética”, termo que marcou os artigos do BFC, assim como os catálogos dos Salões Internacionais e dos seminários internos (COSTA; SILVA, 2004, p. 57-58); (GRECCO, 2016, p. 144 – 150).

Durante esse processo de deslocamento, o FCCB procurou a aproximação com clubes fotográficos que apresentavam novas propostas estéticas, que evidenciassem em suas imagens e em seus discursos a subjetividade do fotógrafo. O C. S. (Combined Society) de Londres, o Grupo dos XV da França, o Bússola da Itália, o Fotoform da Alemanha e na América Latina o La Ventana, no México, o La Carpeta de los Diez, da Argentina, fazem parte das conexões importantes nesse momento de renovação, justamente por trazerem propostas estéticas que se alinhavam aos movimentos modernistas, apresentando projetos para uma nova fotografia, “inteligente, atuante e contemporâneo às aspirações revolucionárias da arte moderna” (COSTA & SILVA, 2004, p. 28). Diante de uma produção tão variada como a dos integrantes desses novos grupos (que vão do figurativo ao abstrato e construtivista), a proposta estética capaz de agrupar e legitimar todos foi a subjetiva, da forma como foi exposta e divulgada pelo Fotoform de Otto Steinert e seus alunos.

A presença da Fotografia Subjetiva de Otto Steinert no FCCB e também noLa Carpeta de los Diez, tomando em consideração as diferenças das trajetórias do dois clubes latino-americanos, mostra a importância que essa vertente da fotografia moderna desempenhou no processo de mudança do pensamento clubista da fotografia pictórica para a moderna, com suas dissidências, suas permanências e todo o processo social que existia em torno da criação e manutenção de um clube de fotografia.

A fotografia fotoclubista na argentina: Correo Fotográfico Sudamericano e La Carpeta de los Diez e a fotografia subjetiva

Uma referência latino-americana recorrente e incontornável no BFC quando focamos nossa análise na América Latina, é a revista Correo Fotográfico Sudamericano, publicação que começou independente e depois se vinculou ao Foto-Club Buenos Aires, A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 624

e seu presidente, Alejandro Del Conte. No primeiro número do boletim do FCB aparece a primeira referência ao intercâmbio travado entre a revista argentina e o Bandeirante. Na seção chamada “O ‘Bandeirante’ no exterior”, encontramos a transcrição de um trecho de artigo escrito por Del Conte sobre a presença do FCCB no Salão Interamericano, promovido pelo Foto-Club Buenos Aires:

La impresión que hemos recogido al ocuparnos números atrás del Salón Uruguayo sobre el aporte brasileño, podemos repetirla en esa ocasión. Cada vez se superan en sus conjuntos y se ve un progreso muy halagador en autores que, por su continuada presentación, ya son bien conocidos. Farkas con “Futurismo” y “Detalhes” aborda la composición con características propias valiéndose del juego de líneas que busca en los temas, y aunque no logra por completo traducir una idea definida, da notas visualmente muy agradables. Muniz tiene en “Hermida” un cuadro donde el misticismo estético introducido valoriza el motivo básico. Yalenti, Salvatore, Laurent, Gaudi y Mendes, son autores que se destacan por sus intenciones, algunas de ellas como “Fragilidad” de gran delicadeza de concepción (O BANDEIRANTE NO EXTERIOR, 1946, n. 1, p. 5).

Segundo as pesquisadoras Ângela Magalhães e Nadja Peregrino, levar em conta o movimento fotoclubista latino-americano nos ajuda a entender esse movimento como algo que serviu para “alavancar uma aproximação entre Brasil, Argentina e Uruguai, haja vista que, àquela altura, a fotografia amadora já estava com o seu caminho solidamente pavimentado nesses países” (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 176). Sobre a importância do intercâmbio de publicações para o mundo da fotografia amadora, as autoras destacam justamente a relação mantida entre o FCCB e Del Conte:

Em São Paulo, por exemplo, o Foto Cine Clube Bandeirante, surgido em 1939, transformará seu boletim informativo na revista Boletim Foto Cine em 1946, editando-a por várias décadas. Em suas páginas, a colaboração de personalidades destacadas será uma constante; e o intercâmbio com revistas nacionais e estrangeiras, um fator determinante para a difusão de ideias, a exemplo da relação mantida com o editor do Correo Fotográfico Sudamericano em diversos números (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 31).

A revista Correo Fotográfico Sudamericano “ocupa posição sui generis no contexto da América Latina”. Foi uma publicação independente que se manteve ininterrupta por trinta anos, sendo considerada por seus leitores “espalhados pelo mundo – a mais importante revista do gênero” (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 28 - 29). O que mais se destacou nessa publicação, foi a forma com que projetou a fotografia em uma “perspectiva cultual abrangente, na medida em que dava visibilidade às formulações teóricas e estéticas A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 625

manifestadas desde sempre pelo meio associativo fotográfico”. Nessa revista era possível encontrar, não só o material informativo sempre atualizado com as novidades do momento, mas também nela foi “tecida uma rede de discussões e colaborações entre fotógrafos e entusiastas de diversas nacionalidades”. (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 29).

A revista e seu idealizador são saudados ainda como “marco de pan-americanismo” e exemplo de “ética profissional”. Sobre Alejandro Del Conte e sua trajetória como fotógrafo amador sabemos mais através do artigo de duas páginas publicado no BFC por ocasião de seu falecimento, apenas um ano depois de completar os 30 anos de CFS, em 2 março de 1952, aos 54 anos (POLACOW, 1952, n. 71-72, p. 8).

Através da CFS, das imagens que publicou, das discussões que fomentou, podemos observar as correntes da fotografia fotoclubista já difundidas na Europa e nos Estados Unidos, que se tornariam os paradigmas, segundo Magalhães e Peregrino, dessa produção na América Latina: o pictorialismo, fortemente ligado à técnica do bromóleo (chegando a ser realizado em 1945 o 1º Salão Internacional de Bromóleos em Rosário, Argentina) 5, e o modernismo tal como foi adotado pelo FCCB nas décadas de 1940 e 1950 (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 181). O movimento pictorialista mundial, tendo tido seu ápice na década de 1910, entrou em declínio nos anos de 1930. No entanto, no movimento fotoclubista da América Latina encontramos inúmeros aficionados que continuaram a praticá-lo até a década de 1950 (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 179).

Tanto no CFS quanto no BFC é possível encontrarmos ainda na metade do século XX artigos exaltando as qualidades do bromóleo, ao mesmo tempo em que inserem artigos sobre a fotografia moderna. No entanto, se no BFC a questão das novas possibilidades abertas pela fotografia moderna ser desenvolvida e afirmada como um marco na mudança de direção do clube, o que o identificava como Escola Paulista, naCFS o modernismo aparecia, na maioria das vezes, acompanhando as referências ao fotoclube brasileiro, sem deixar de fazer críticas contra as “facilidades” empobrecedoras de certos recursos dessa estética, “bem como a exploração de um ‘angulismo’ como tema e certa restrição a influência dos modelos estrangeiros, especialmente o que era avaliado como modismo” (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 181).

5 Segundo Magalhães & Pelegrino: “Poucas técnicas do século XX despertaram tamanha curiosidade por parte do público e tal disseminação entre os amadores quanto o bromóleo. Por ocasião do 1º Salão Internacional de Bromóleos, realizado pela primeira vez na América Latina (Rosário, Argentina, 1945), o A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 626

No entanto, é importante ressaltar que, se na CFS (assim como no BFC) podemos destacar esses dois momentos expoentes da fotografia fotoclubista, o pictorialismo e o modernismo, não podemos esquecer que na verdade as revistas publicavam e se dispunham a discutir uma gama múltipla de abordagens estéticas que se revelavam no interior dos fotoclubes através das várias experimentações e possibilidades que o próprio enfoque no estudo que o ambiente fotoclubista proporcionava e estimulava. Isso no leva a observar que “nem sempre a formatação de regras orientou as associações fotoclubistas” (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 189). Existiam as regras, os ditames artísticos por parte das associações que utilizavam as regras para a submissão de fotografias à aceitação dos salões (PEREGRINO; MAGALHÃES, 2012, p. 189).

Sara Facio, em seu livro sobre a fotografia argentina, La fotografía en la Argentina: desde 1840 a nuestros días (2009), destaca a importância da revista de Del Conte para a produção fotográfica da argentina, assim como a participação de Annemarie Heinrich como colaboradora assídua da revista:

En 1921, apareció una revista especializada, que podemos calificar como la mejor en su género: Correo Fotográfico Sudamericano. Ésta es la mayor referencia de la fotografía nacional. Sus páginas están cubiertas de avisos que ofrecen servicios de fotógrafos, retocadores, arreglo de cámaras y venta de todo tipo de productos del ramo, junto a noticias profesionales y empresariales. (…) Es también la primera revista que ofrece espacio y lucimiento a los “artistas fotógrafos”, publicando sus obras a toda página, sin distinguir entre extranjeros y nativos, como Xul Solar y Vallmitjana. Dirigida por Alejandro Del Conte, foto aficionado, crítico y teórico, autor de varios libros técnicos, su revista cubre toda una etapa de la vida periodística y fotográfica del país. A partir de 1935, entre sus colaboradores permanentes, se encuentran Annemarie Heinrich, Humberto Zappa, Gonzalo Prado, Hiran Calógero y Anatole Saderman (FACIO, 2009, p. 47-48).

Os intercâmbios com a Argentina, presentes já no primeiro número através do CFS e de Del Conte, se mostraram ainda presentes durante toda a década de 1950, inclusive através de exposições individuais, que chegaram a ser citadas como exemplo de iniciativa, que deveria ser seguida pelos Bandeirantes, pois além de exporem individualmente em seu próprio país, o faziam também no exterior, como era o caso das exposições que aconteceram

editor da revista Alejandro Del Conte (sócio honorário do FCCB e SFF) destacava no título do artigo ‘Un Salón de Bromoleos es una escuela fecunda’ – ilustrado com uma obra do brasileiro Djalma Gáudio (Viejo seminário) – a razão que ainda justificava a permanência, por tanto tempo, de um procedimento cujo domínio técnico não era fácil atingir” (MAGALHÃES & PEREGRINO, 2012, p. 179). A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 627

no espaço do FCCB, de fotoamadores como Juan Pi, Alberto Pozzi, Humberto Zappa 6, e da “consagrada artista argentina Annemarie Heinrich que vem ao Brasil expressamente para esse fim” (NOTA DE MÊS, 1951, n. 58, p. 1), ponto central do presente trabalho.

No ano de 1951, Heinrich já era uma fotógrafa amadora reconhecida mundialmente. Na Argentina suas fotografias eram requisitadas por revistas de grande circulação. Quando da publicação do Primeiro Anuário de Fotografia editado por Grafos na Argentina em 1939, encontramos as fotografias de Heinrich destacadas como das preferidas do grande público: “y los siempre convocados Anatole Saderman, Juan Di Sandro, Annemarie Heinrich y Gustav Thorlichen, que fueron indiscutidamente los fotógrafos preferidos por el público y las grandes empresas periodísticas y culturales (FACIO, 2009, p. 49). Heinrich já havia participado de alguns salões do FCCB, e recentemente havia conquistado o 2º Prêmio no Festival Internacional de Fotografia em Cores de Turim.

Annemarie Heinrich estava sendo “aguardada pelos círculos fotográficos paulistanos com indisfarçável ansiedade” (ANNEMARIE HEINRICH EM SÃO PAULO, n. 59,1951, p. 26), o que podemos notar pela grande divulgação de seu trabalho e de sua visita ao clube. O artigo de Polacow apresenta a trajetória de Annemarie Heinrich de forma a criarmos dela uma imagem física: insiste na descrição da “menina bisonha de quatorze anos”, “adolescente franzina”, imigrante que chega a Buenos Aires ainda sem conhecimento da língua e dos costumes, e que aos poucos, através do trabalhando cotidiano em estúdios fotográficos, que através de trabalhos artesanais de “menos importância”, foi aprendendo a ser fotógrafa, construindo sozinha sua maneira de criar na fotografia:

Espinhosa, sem dúvida, foi a aprendizagem na época em que não existia um curso regular, siquer para os rudimentos de fotografia. Daí a peregrinação pelos estúdios profissionais de Buenos Aires, onde cada migalha de conhecimento útil exigia como paga, dias intermináveis de tarefa enfadonha e rotineira. Quem poderia enxergar naquela adolescente franzina e tímida sinão uma artesã anônima

6 O argentino Humberto Zappa enviou ao boletim um artigo especial sobre o bromóleo, “O bromóleo, os bromoleistas e seus inimigos”, em que defende o uso da técnica, ressaltando que o valor do trabalho artístico estaria não somente na técnica, mas na qualidade da obra. Procurou justificar assim o uso do bromóleo ainda na década de 1950, quando, as técnicas pictóricas estão sendo questionadas e recusadas dentro dos fotoclubes e nos salões. Esse artigo de Zappa pode ser colocado ao lado de outros que foram publicados no Bandeirante no começo da década de 1950, fazendo a defesa da estética pictórica, e com isso ajudando a construir o caráter “eclético” que o clube faz questão de ressaltar nesse momento: (BFC n. 42, 1949, p. 11). Sara Facio, em seu livro La fotografía en Argentina, quando trata do pictorialismo, ressalta os trabalhos estritamente pictóricos de Hiran Calógero, fundador do primeiro fotoclube argentino, na cidade de Santa Fé, os de Pablo Cardarella e de Humberto Zappa “quién llega a exponer en 1951, en Brasil, más de cincuenta bromóleos, obteniendo um crítica excelente “por su poder de sugestión” (FACIO, 2009, p. 47). A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 628

que se consumia em tarefas de menos importância? Quem poderia adivinhar a chama interior que escaldava seu espírito num anseio incontido de aprender para crear? Retoque de negativo, retoque de positivo, técnica de revelação e de ampliação, retratos para carteira de identificação, prática de iluminação, foram os degraus penosamente galgados para formar o alicerce de conhecimentos básicos. Depois, o pequeno laboratório instalado sabe Deus com que sacrifício, constituindo o primeiro passa para a libertação. Estudo, pesquisa, vontade férrea de progredir, persistência inabalável, marcaram os anos de que seguiram. Finalmente a realização (POLACOW, 1951, n 59, p. 7).

Todo o esforço para se tornar fotógrafa serviu para “aguçar o discernimento, para avivar o espírito de análise de penetração, para conhecer e penetrar a alma humana”. Tendo mais tarde participado de fotoclubes, Heinrich teria então atravessado “o profundo valo que separa o profissionalismo convencional do pictorialismo fotográfico”, e finalmente conhecido as grandes possibilidades de expressão da fotografia, segundo Polacow. Através de sua associação a fotoclubes, Heinrich tomou contato com os salões e dessa forma com o Bandeirante. Polacow não nos aponta um fotoclube ao qual pudesse estar vinculada, mas nos diz que Heirinch “entrelaçou de forma indissolúvel a sua carreira, à vida clubística de diversas entidades às quais está filiada como colaboradora militante” (POLACOW, 1951, n 59, p. 7) 7.

Nesse mesmo livro, Sara Facio nos apresenta Annamarie: “Siempre nos sorprende esta mujer menuda, ágil, vital” (FACIO, 1987, p. 4). Na década de 1980, quando Facio entrevista Heinrich, esta é considerada a retratista mais importante da Argentina, contribuindo para que Buenos Aires fosse conhecida como a cidade do retrato fotográfico: “Desde Annemarie Heinrich e Grete Stein, Buenos Aires es conocida como la ciudad del retrato fotográfico” (BILLETER, 2003, p. 52). Heinrich se destaca ainda por ter criado um gênero até então inexistente no país, a fotografia de espetáculo:

(...) Annemarie creó una especialidad inexistente en nuestro país. No la trajo de Europa ni de los Estados Unidos: la fue formando en Buenos Aires; todo lo aprendió aquí de manera autodidacta. Tuvo la inteligencia, la sensibilidad de comprender el entorno en que se movía. (…) Annemarie Heinrich creó la foto del espectáculo en la Argentina (FACIO, 1987, p. 8-9).

7 Em seu livro La fotografía en la Argentina: desde 1840 a nuestros días (2009), Sara Facio afirma a existência de um primeiro fotoclube argentino em 1936, o Foto Club Argentino, presidido por Alberto del Solar Dorrego, e do qual já fazia parte Heinrich, que no primeiro salão de fotografia organizado pela associação em 1958 foi ganhadora da medalha de menção honrosa (FACIO, 2009, p. 55). Em 1945, formado por dissidentes do FCA, surgiu o Foto Club Buenos Aires, dirigido por Roberto Butty, e que será o clube mais prestigioso do país (FACIO, 2009, p. 55). A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 629

Nascida em 9 de janeiro de 1912, Annemarie viveu com seus pais em Berlim até seus 14 anos, imigrando para a Argentina em 1927, quando um acidente acabou por impedir a carreira de pai como violinista, o que havia tornado a vida ainda mais difícil na Europa que já tinha sofrido com uma guerra (FACIO, 1987, p. 5). Seu primeiro contato com a fotografia se deu logo quando chegaram na Argentina, em Villa Larroque em Entre Ríos, onde vivia um tio fotógrafo: “Junto a él vi, por primera vez, como aparecía una imagen sobre el papel: era magia!” (FACIO, 1987, p. 5). Como o pequeno povoado de Villa Larroque não oferecia muitas perspectivas para um músico aposentado, sua mulher e duas filhas, mudaram-se para Buenos Aires, onde Annemarie passou a estudar no período noturno para poder trabalhar de dia, empregando-se em várias lojas alemãs de produtos fotográficos:

Su conocimiento del alemán resultó entonces una ayuda insospechada. Pudo hablar con músicos y cantantes, y conectarse con quienes formarían también parte de su placer estético más profundo: los bailarines (FACIO, 1987, p. 8).

Facio aponta ainda, como uma dificuldade a mais no processo de adaptação e de inserção no meio fotográfico, o fato de Annemarie ser mulher. Assim como a língua a ajudou com uma parcela do meio fotográfico e artístico argentino, também a atrapalhou em outros contextos sociais, onde se apontava seu forte acento alemão, o fato de ser mulher vinha carregado da dificuldade em tratar de negócios, mas ser uma mulher estrangeira amenizava a questão:

Si bien el idioma fue la primera barrera que debió superar, hubo otra no menos grave: ser mujer. No existía la costumbre de tratar negocios, pensar o decidir junto a una mujer. Sólo la aceptaban como “estrella”, nunca en igualdad intelectual. ¿Quién era esa joven que detrás de una cámara ordenaba e imponía sus condiciones? El ser extranjera le valió de mucho. Se le permitieron licencias vedadas a los nativos. La calidad de los trabajos de la Heinrich eran indiscutibles; las necesidades del medio las asumía con total naturalidad y solvencia. Pronto dejó de ser un inconveniente su condición femenina y su marcado acento, y se convirtió en “la alemana”, que, como tal, “sabe manejar las cámaras y cumplir con su deber” (FACIO, 1987, p. 8).

Não demorou para que Annemarie se estabelecesse na capital portenha. Em 1930 abriu seu próprio estúdio, em Villa Balleter, logo se mudando para o centro da cidade, Villa Devoto. Três anos depois começou a colaborar com revistas como Mundo Social, La novela Semanal e Sintonía, e pouco tempo depois, em 1935, para Antena, El Hogar, A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 630

Cinagraf, Cine Argentino e Radilandia. Nessas últimas cinco, Annemarie trabalhou fazendo as fotografias de capa por quarenta anos ininterruptos. Também foi contratada pelo Teatro Colón para fotografar os artistas internacionais que vinham se apresentar ali (FACIO, 1987, p. 62). Dentre as personalidades que fotografou do mundo da dança, da música, do teatro, do cinema, de literatura, encontramos Serge Lifar, Alícia Markowa, Enrique Santos Discépolo, Blanca Podestá, Conchita Montenegro, Eva Perón, Libertad Lamarque, Dolores Del Río, Wilhelm Backhaus, Yhudi Menuhin, Galina Ulanova e Jorge Luís Borges. Segundo a próxima fotógrafa, sua referência para seus retratos foi Hurrell, que publicava na revista Cinemundial as fotografias das atrizes de Hollywood: “caras como de porcelana, lábios húmedos, pestanas espesas, cabellaras brillantes... una maravilla” (FACIO, 2009, p. 87).

Seu amplo interesse passou também pela fotografia dos fotoclubes e grupos fotográficos. Em 1947 foi sócia fundadora do Foto Club Buenos Aires, do qual se desliga para criar, em 1953, o grupo fotográfico La Carpeta de Los Diez, que já no mesmo ano de sua formação, realiza sua primeira exposição. O grupo se manteve em atividade por dez anos, e reunia treze fotógrafos, além de Heinrich: Eduardo Colombo, Juan Di Sandro, Penelídes A. Fusco, George Friedman, Max Jacob, Alex Klein, José Malandrino, Hans Mann, Ilse Meier, Anatole Saderman, Ferd Schiffer, Boleslaw Senderowicz e Augusto Valmitjana8 . Segundo sara Facio, a decisão de sair do Foto Club de Buenos Aires para criar um grupo independente de fotografia vinha da necessidade de se pensar a fotografia longe das regras fotoclubistas, e que o La Carpeta de Los Diez foi o primeiro grupo nesse sentido na Argentina:

Uno de los primeros alertas contra la fotografía “de Club” fue la reunión de conocidos profesionales que crearon un grupo la que llamaron La Carpeta de los Diez. […] La motivación del encuentro fue reunirse para discutir sus propias tomas – como implacables jurados – creando una escuela vital a fin de jerarquizar y modernizar la producción estética que consideraban adormecida. [...] La carpeta se disolvió pero dejó una huella imborrable como metodología de trabajo. También como recuerdo de exposiciones de infrecuente nivel técnico y estético (FACIO, 2009, p. 60).

O grupo foi apresentado aos leitores do FCCB já no mesmo ano de seu surgimento, 1953, no boletim n. 85, voltando a aparecer, também com um texto de apresentação, no

8 De 7 a 30 de julho de 2010, as diretoras da Galeria Vasari de Buenos Aires, Marina Pellegrini e Lauren Bate organizaram uma exposição retrospectiva das obras produzidas pelo La Carpeta de Los Diez, de onde retiramos a informação sobre os nomes dos participantes, assim como as datas e locais das seis exposições que realizaram durante o tempo em que estiveram ativos. Cf. PELLEGRINI, Marina; BATE, Lauren. La Carpeta de Los Diez, Buenos Aires: Galería Vasari, 2010. A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 631

n. 103. Nas duas ocasiões o grupo é apresentado de maneira rápida, afirmando que os fotógrafos ali reunidos já eram bastante conhecidos dos “bandeirantes”, e que desejavam trazer para o Brasil a última exposição que haviam realizado em Buenos Aires, além de algumas fotografias do grupo:

“La Carpeta de Los Diez”. Sob esta denominação reúnem-se alguns dos mais destacados artistas fotógrafos profissionais da Argentina, aliás, já bastante conhecidos dos “bandeirantes”, eque periodicamente expõe seus trabalhos ao público, em mostras de alto valor artístico. O Foto-cine Clube Bandeirante está vivamente interessado em trazer para São Paulo a última exposição, realizada há alguns meses em Buenos Aires, a qual, como as anteriores, obteve os mais lisonjeiros comentários da crítica especializada. Esperamos que os costumeiros entraves impostos pelas alfândegas – já que muitos trabalhos são do tamanho 40x50 e estão montados, possam ser contornados pelas entidades interessadas, a fim de que possamos admirar as obras dos nossos confrades do Prata, algumas das quais reproduzimos nestas páginas (LA CARPETA DE LOS DIEZ, s/d, p. 20).

O interesse em trazer a exposição de La Carpeta de los Diez para São Paulo se realizou em 1959. No ano de 1958 foi criada a Confederação Brasileira de Fotografia, que dentre suas realizações, se encontrava a negociação de trabalhos fotográficos que poderiam ser trazidos ao Brasil e disponibilizados para a organização de exposições, chamadas então de exposições circulantes. Foi notificado no boletim nº 106, de 1959 do Bandeirante que naquele momento já se encontrava à disposição dos clubes duas importantes coleções que poderiam ser requisitadas para a exibição, uma do grupo Fotoform, de Otto Steinert, “criador da fotografia ‘subjetiva’”, e outra do grupo argentino La Carpeta de Los Diez, “que reúne Annemarie Heinrich, Alex Klein, Juan di Sandro, e outros conhecidos artistas fotógrafos argentinos”. Os interessados em levar as exposições para seus clubes teriam que se dirigir ao Diretor de Intercâmbio Internacional, José Oiticica Filho (EXPOSIÇÕES CIRCULANTES, 1959, n. 106, p. 27).

Durante a década de 1950, período de indefinição ou de falta de uma afirmação estética do Bandeirante, encontramos artigos que procuravam inserir e explicar a questão da subjetividade na fotografia, buscando sempre uma comparação com a pintura, com a filosofia, mas sempre apontando para a criatividade e sua capacidade transformadora do real como o componente principal, para qualquer criação. No entanto, foi a propósito da exposição de Otto Steinert 9 e seus alunos no ano de 1955, nos salões do Masp,

9 Vanessa Sobrino Lenzine aponta que três grupos que participaram da exposição organizada em 1951 por Otto Steinert, Subjektive Fotografie, Internationale Ausstellung Moderner Fotografie realizada na Saarbrücken School A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 632

resultado de uma parceria deste com o FCCB, que Rubens Teixeira Scavone escreveu o seu “Diagnóstico do Subjetivo”. Com uma escrita clara, direta, Scavone pontua as qualidades do trabalho de Steinert:

Tomada de posição intencional e definitiva que não só situou em seus limites exatos o conceito da fotografia de nossa época, mas que também teve o mérito de devolver a consciência de si mesma, restituindo-a às suas verdadeiras matrizes. E o dr. Steinert foi mais longe ainda. Rotulou sua tomada de posição, nomeou esse entendimento de fotografia subjetiva, englobando por detrás do nome todas as tendências individuais até então surgidas (SCAVONE, n. 97, 1955, p. 9).

Scavone, escrevendo na esteia de outros artigos que buscavam definir o que era e como se daria o subjetivismo na fotografia, é o único que a relaciona com a própria história da fotografia, quando diz que o Salão de Fotografia Moderna Internacional de 1951, realizado pela Escola de Belas Artes do Sarre, não mostrou ineditismo em técnica em criação, pois já desde pelo menos 1925 a fotografia vinha sendo objeto de experimentações, de estudos. Dentro da concepção de subjetivismo que se propõem a explicar, cabiam desde o intervencionismo de Man Ray e Lazlo Moholy-Nagy, até os caminhos experimentais de Baunnmeister ou Hausmann com a utilização de fotomontagem, abrangendo as duplas exposições, flous, raiogramas, solarizações, inversões do negativo e viragens químicas (SCAVONE, n. 97, 1955, p. 9).

No ano de 1954, um ano após a fundação da La Carpeta de los Diez, Heinrich viajou para a Alemanha onde assistiu a cursos sobre fotografia em cores realizado na Escola Hartz-Höchst-Agfa, em Leverkusen, um curso com Marta Höpfner em Frankfurt, além das aulas de Otto Steinert em Colônia (FACIO, 1987, p. 63). Percebemos que tanto para o clube brasileiro quanto para o clube argentino, a fotografia subjetiva de Otto Steinert of Arts and Crafts, em Sarre na Alemanha, estavam presentes em exposições em São Paulo, nas comemorações do IV Centenário da cidade: o Grupe les XV, o C.S. Association, e o próprio Otto Steiner. A exposição de Steinert na Alemanha reuniu 725 fotografia de diversos países, e foi dividida em seções. Os fotógrafos da Nova Fotografia (entendidos pelos que estavam ativos entre as décadas de 1920 e 1930), inserida nas produções das artes das vanguardas históricas, foram homenageados com uma retrospectiva de László Moholy-Nagy (63 trabalhos), Man Ray (16 trabalhos) e Hebert Bayer (13 trabalhos). Na seção denominada Fotografia Subjetiva foram expostos 197 fotografias de grupos internacionais que representavam os princípios da exposição: “Como o próprio nome indica, a exposição quis reunir uma produção fotográfica internacional que pretendia se identificar como uma tendência moderna, retomando a tradição da vanguarda dos anos 20” (LENZINI, 2008, p. 79). A autora nos informa ainda que o grupo fez mais duas exposições, em 1954 e 1958, circulando pelo Japão, Estados Unidos e outros lugares da Europa, tendo ampla divulgação e a produção de três catálogos e dois livros, em 1952 e 1955 reunindo um grande número de imagens e textos teóricos. Citando Helouise Costa, aponta para a criação de quatro categorias estabelecidas por Steinert para abarcar a produção fotográfica: a reprodução, que seria o documento; a fotografia de representação, que seria o que denominou de “imagem bela”; a criação fotográfica de representação, que seria a própria fotografia subjetiva, e finalmente a fotografia absoluta, que seria a fotografia abstrata (LENZINI, 2008, p. 80-81). A VISITA DE ANNEMARIE HEINRICH AO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE A CIRCULAÇÃO LATINO-AMERICANA DA FOTOGRAFIA SUB- JETIVA, 1950 PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO 633

serviu como um ponto de apoio para o desenvolvimento da modernidade fotográfica, principalmente no âmbito da fotografia amadora. No caso da Argentina e do Brasil, a fotografia subjetiva cumpriu um papel fundamental de aglutinação de experiências amplas com a criação fotográfica, que baixo sua denominação, puderam questionar a estrutura fotoclubista e suas amarras para o entendimento da fotografia como forma de arte, acessando outros espaços artísticos para a produção fotográfica.

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La Tribuna e o caminho para o desenvolvimento econômico no Paraguai

PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR Mestrando em História pela FCL/UNESP-Assis. Bolsista FAPESP (Processo: 2016/13601-0). E-mail: [email protected]

O jornal paraguaio La Tribuna foi fundado em dezembro de 1925 por Eduardo Schaerer e seus aliados do Partido Liberal e, nos primeiros quinze anos de atuação, atendeu aos interesses políticos de seus representantes, defendeu princípios liberal-democráticos – como o respeito às liberdades política e de expressão e a garantia de direitos civis – e assegurou os proveitos de latifundiários e comerciantes. Em fevereiro de 1941, a ditadura de Higinio Morínigo (1940-1947) interveio na administração do diário, utilizando-o como um meio de comunicação para atacar o Partido Liberal e determinadas empresas estrangeiras. Três anos depois, o regime de Morínigo anunciou a devolução do periódico aos herdeiros de Eduardo Schaerer. Com isso, Arturo Schaerer assumiu a direção do veículo e o transformou em uma empresa jornalística independente das agremiações políticas e que se comprometia com os interesses nacionais (BOSIO, 2008, p. 231-235; COLMÁN, 2016, p. 23-43; CRICHGNO, 2016, p. 309-315; ORUÉ POZZO, 2007, p. 234).

Apesar de ter priorizado o noticiário internacional e ignorado o debate político nacional, La Tribuna manteve posicionamentos liberal-democráticos, como a defesa da propriedade privada e das liberdades civil e política, e corroborou com as medidas econômicas da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). Após a aposentadoria de Arturo, o veículo foi vendido – em maio de 1972 – para a sociedade empresarial formada por César Arévalos, Eduardo Codas, Pascual Scavone e Raúl Casabianca (SEGOVIA, 2010, p. 37).

Seis anos depois, o diário foi novamente vendido, dessa vez a Oscar Paciello. Nessa LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 636

gestão, La Tribuna adotou uma linha editorial analítica que criticou o sistema clientelista e defendeu a necessidade de criar planos para o desenvolvimento social e econômico do país. Em virtude de problemas financeiros, o veículo encerrou suas atividades em setembro de 1983. A partir dos aspectos expostos, pretendemos identificar como os responsáveis por La Tribuna discutiram o processo de desenvolvimento econômico no Paraguai, entre 1978 e 1983, e as influências teóricas existentes em seu discurso político, através de editoriais e reportagens publicadas na seção de “economia”. Dessa maneira, trabalhamos com a hipótese de que o jornal dialogava com os referenciais teóricos da CEPAL e com a sociologia da modernização e, também, acreditava que o desenvolvimento apenas seria possível com um planejamento econômico e social.

A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) foi criada em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social nos países latino-americanos e caribenhos. A partir da metodologia histórico-estruturalista, os pensadores alocados na CEPAL elaboraram uma série de políticas econômicas – conhecida posteriormente como “teoria cepalina” –com a intensão de superar a dependência dos países da região – classificados como “periferia” – com os países economicamente mais desenvolvidos – nomeados como “centro” –, através de algumas ações de médio e longo prazo, como a intervenção do Estado no processo desenvolvimentista e a industrialização a partir da substituição de produtos importados. De acordo com essa corrente teórica, o Estado deveria organizar e conduzir o planejamento econômico, com o intuito de dinamizar o desenvolvimento dos países, através da criação de uma equipe técnica responsável por elaborar medidas que auxiliassem esse processo (BIELSCHOWSKY, 1998, p. 19-29; COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA, 1969, p. 13-45; 98-136.)

Em virtude dos desdobramentos da Guerra Civil de 1947 – que assolou política e economicamente o país – e do protagonismo do setor agropecuário nas atividades econômicas, o ideário cepalino demorou para ser introduzido no debate paraguaio. Com a criação da Aliança para o Progresso em 1961, o regime de Stroessner começou a adotar algumas das recomendações desse programa de cooperação multilateral – algumas delas coincidiam com elementos defendidos pela CEPAL –, como a elaboração de políticas para acelerar o crescimento econômico e reduzir os problemas sociais. Como resultado, a Secretaría Técnica de Planificación (STP) foi fundada em 1962, com o objetivo de conduzir o planejamento paraguaio. Entre as décadas de 1960 e 1970 foram lançados LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 637

quatro Planos de Desenvolvimento Econômico e Social – respectivamente equivalente aos biênios 1965-1966 e 1967-1968 e os quinquênios 1971-1975 e 1977-1981 – que traçaram medidas para expandir as atividades econômicas e uma série de estratégias para os setores agropecuário, industrial e energético. A STP era composta pela secretaria executiva, pela secretaria geral, pelas divisões técnicas e administrativas e pela Oficina Nacional de Projetos. Os integrantes da secretaria eram recomendados pelo secretário executivo – Federico Mandelburger – e aprovados por Alfredo Stroessner (2º PLAN BIENAL. PRESENTACIÓN OFICIAL, 1966; 20 AÑOS DE PLANIFICACIÓN EN LA REPÚBLICA DEL PARAGUAY. 1962-1982, 1982; RUIZ DÍAZ, 2010, p. 34-40).

Nos campos jurídico e partidário, a Constituição de 1967 garantiu que Estado deveria estabelecer medidas desenvolvimentistas elaboradas por meio de programas baseados na justiça social. Além disso, os ideários do Partido Colorado – agremiação da ditadura – e do Partido Liberal defenderam a necessidade de uma planificação conduzida pelas forças estatais (CONSTITUCIÓN DE 1967, 1997, p. 151; DECLARACIÓN DE PRINCIPIOS Y PROGRAMA DEL PARTIDO COLORADO, 1980, p. 150; IDEARIO DEL PARTIDO LIBERAL RADICAL, 1980, p. 107).

Dialogando com a conjuntura interna e externa, os responsáveis por La Tribuna defenderam a interferência do Estado na economia paraguaia através de um planejamento capaz de impulsionar o crescimento econômico e solucionar os problemas sociais, como a desigualdade de renda, o subemprego, a ausência de moradias e a falta de eletricidade. A respeito da condução da STP, o jornal apontou a necessidade de capacitar profissionalmente a equipe técnica nacional e ressaltou que, apesar dos avanços no planejamento econômico, os proveitos das elites política e econômica sobressaíam aos interesses da população paraguaia (LA TRIBUNA, 08/04/1979, p. 04). Sobre o primeiro aspecto, destacou que muitos técnicos capacitados haviam deixado seus cargos por conta dos salários baixos e externou os problemas envolvendo a nomeação de funcionários públicos sem experiência por conta das relações familiares ou partidárias (LA TRIBUNA, 12/01/1079, p. 10).

Dessa maneira, os interesses dos grupos que pretendiam se manter no poder através do sistema de prebendas havia interferido no processo de desenvolvimento nacional, sobretudo em relação ao descompromisso com os problemas sociais. Sobre esse ponto, LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 638

os representantes de La Tribuna evidenciaram que a preocupação excessiva dos planos de desenvolvimento com os elementos econômicos havia refletido na ausência de uma política que atendesse efetivamente as necessidades básicas dos setores populares (LA TRIBUNA, 27/11/1078, p. 08). Assim, acreditavam que o pleno desenvolvimento apenas seria atingido com a ampliação da participação de diferentes grupos sociais –camponeses, operários, trabalhadores urbanos e etc. – na estrutura econômica do país (LA TRIBUNA, 31/12/1978, p. 06). Porém, qual a justificativa de cobrar das autoridades nacionais maior atenção a tais problemas? Para o jornal, uma maior participação dos setores populares na estrutura econômica evitaria “tensões” que poderiam ser “perigosas” para a sociedade paraguaia (LA TRIBUNA, 04/01/1979, p. 04). Retornaremos a esse ponto adiante.

La Tribuna também associou a ausência de comprometimento dos funcionários estatais com as dificuldades encontradas na implementação de políticas que sanassem os problemas sociais e destacou que a mudança no sistema administrativo da ditadura ajudaria a melhorar a condução dos planos de desenvolvimento socioeconômico nacional. Em editorial de 22 de janeiro de 1979, o diário destacou que mesmo com uma significativa melhora nos índices macroeconômicos e com a elaboração de medidas para sanar as dificuldades sociais existentes, determinados assuntos importantes – como a distribuição equitativa de renda – não haviam sido tratados prioritariamente. Nesse mesmo texto, denunciou ações corruptas do Poder Executivo e questionou o discurso oficial a respeito da condução dos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento nacional – alegando que estes haviam aumentado as diferenças socioeconômicas – e os métodos sobrepujados de uma administração pública (LA TRIBUNA, 22/01/1979, p. 04). A respeito desse último ponto, o jornal destacou a importância de modernizar o aparelho burocrático do Estado com a intenção de melhorar a condução do planejamento socioeconômico ao sanar os problemas sociais existentes (LA TRIBUNA, 09/04/1979, p. 10; LA TRIBUNA, 14/05/1979, p. 07; LA TRIBUNA, 27/08/1979, p. 10).

Dessa forma, observamos que o discurso político de La Tribuna reconheceu os avanços macroeconômicos resultantes dos planos de desenvolvimento, porém ressaltou que o Paraguai apenas alcançaria um pleno desenvolvimento se solucionasse efetivamente os problemas sociais existentes. Essa postura dialogou com quatro esferas que, de alguma forma, dialogam entre si. No campo teórico-metodológico, a preocupação com aspectos socioeconômicos e a exigência pela modernização do aparelho burocrático do Estado LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 639

aproximavam-se, respectivamente, com o pensamento desenvolvimentista da CEPAL e com a sociologia da modernização. Já no plano conjuntural, o posicionamento do diário relacionou-se às precauções do ideário da Aliança para o Progresso e com os eventos ocorridos no Irã e na Nicarágua no ano de 1979.

Sobre o primeiro referencial teórico, de acordo com La Tribuna, as autoridades estatais deveriam estruturar programas redistributivos que fossem capazes de gerar uma homogeneidade social. Tal medida contribuiria para o robustecimento da modernização do país. A respeito do segundo marco teórico, Gino Germani – um dos expoentes dessa escola sociológica – destacou que o processo de modernização requeria o desenvolvimento econômico e as modernizações social e política (GERMANI, 1974, p. 08-22). Dessa maneira, a transição de uma sociedade “tradicional” se daria em duas etapas: através da “democracia representativa com participação limitada” e por meio da “democracia representativa com participação ampliada”. No primeiro caso, tal fase corresponderia ao fortalecimento das instituições democráticas, à inserção da economia local ao mercado internacional, e à ausência de participação política da população. Já a segunda etapa caracterizar-se-ia com a integração de determinados setores sociais à vida política e econômica, a ampliação do crescimento das atividades industriais e a acentuação dos direitos sociais (GERMANI; SILVERT, 1965, p. 233-235; GERMANI, 1965, p. 211).

La Tribuna acreditava que o desenvolvimento nacional seria possível com a ampliação dos direitos sociais e da participação política e econômica da população paraguaia. Entretanto, essa perspectiva – pautada pelas correntes teóricas apresentadas – não consideraram o lento crescimento industrial no país e o pequeno número de trabalhadores industriais. Tais elementos são importantes, nas perspectivas teóricas mencionadas, para a estruturação de grupos e indivíduos à vida política e econômica de um país. Por último, havia no posicionamento de La Tribuna não apenas uma crítica à conduta dos agentes governamentais, mas o receio de que grupos marginalizados social e economicamente se organizassem para exigir melhores condições de vida, o que poderia comprometer o estado das coisas. Esse posicionamento dialogou com dois aspectos conjunturais: os fatos ocorridos no Irã e na Nicarágua no ano de 1979 e o ideário da Aliança para o Progresso.

Acerca do primeiro ponto, no Irã, a ditadura do xá Mohammad Reza Pahlevi foi derrubada por mulçumanos tradicionalistas que proclamaram a República no país. Já na LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 640

Nicarágua, após anos de luta contra a ditadura de Anastácio Somoza, a Frente Sandinista de Libertação Nacional conseguiu acabar com o regime autoritário de Somoza e ascendeu ao poder. Por sua vez, a Aliança para o Progresso tinha como objetivo barrar o avanço dos movimentos comunistas na América Latina e no Caribe através da introdução – nos países da região – de políticas sociais, como reforma agrária e distribuição equitativa de renda. Segundo La Tribuna, os problemas existentes na condução das políticas sociais e a marginalização da população do sistema político e econômico poderiam criar um movimento de contestações – por influencias de agremiações e grupos políticos – que poderiam distorcer as reivindicações e, consequentemente, alterar o status quo, resultando no truncamento do processo de abertura política e de modernização econômica. Portanto, o receio de que o Paraguai seguisse os casos nicaraguenses e iranianos e as recomendações dos governos estadunidenses para seguirem os princípios da Aliança para o Progresso fizeram com que os responsáveis pelo diário adotassem uma posição moderada em relação às manifestações contestadoras.

Os textos analisados remontam aos primeiros meses da gestão de Oscar Paciello, entre o fim de 1978 e os primeiros meses do ano seguinte. As criticas do jornalao governo e aos funcionários públicos, além da comparação do Paraguai com os episódios na Nicarágua, resultaram na suspensão temporária do veículo entre junho e julho de 1979. Apesar do cuidado de sua equipe jornalística, os problemas referentes à condução dos planos de desenvolvimento paraguaio e às medidas sociais e econômicas foram novamente abordados em editoriais e artigos opinativos entre 1981 e 1982. Com o fim do plano de desenvolvimento 1977-1981, La Tribuna recomendou que as autoridades responsáveis pelo setor econômico deveriam continuar com a vigência do Plano Nacional de Desenvolvimento (LA TRIBUNA, 20/12/1981, p. 05) e que fosse introduzidas medidas para intensificar o crescimento industrial e formas para escoar os produtos manufaturados fabricados nacionalmente (LA TRIBUNA, 31/01/1982, p. 05).

Por conta de tais posicionamentos, os funcionários da STP absorveram as críticas no Plano de Desenvolvimento Econômico e Social para o quinquênio 1985-1989, pois destacaram no documento a importância de se implementar medidas apropriadas para a reativação econômica e para a recuperação da dinâmica do crescimento da década passada. Para os agentes da secretaria técnica, tais atividades deveriam ser levadas a cabo no marco de “justiça social” e de “liberdade política”. Além disso, reconheceram que LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 641

as mudanças na mentalidade da administração pública e da população havia resultado na participação ativa do Estado em áreas estratégias para o desenvolvimento do país e que os principais problemas estruturais que dificultavam o processo desenvolvimentista no país foram de natureza social, como a desigualdade na distribuição de terras, a manutenção do sistema tributário não equitativo e a concentração do capital produtivo nas mãos de um reduzido grupo social (PLAN NACIONAL DE DESARROLLO ECONÓMICO Y SOCIAL. 1985-1989, 1985, p. 02-09). A partir de uma autocrítica de suas ações, a STP se disponibilizou a ajustar os problemas – sobretudo os da área social – a partir das críticas recebidas pelos responsáveis por La Tribuna.

Por fim, segundo La Tribuna, o caminho para se atingir o desenvolvimento socioeconômico no Paraguai começaria a ser trilhado a partir da intervenção do Estado no sistema econômico – por meio de incentivos fiscais, redução de impostos, criação de empresas mistas –, o crescimento econômico a partir a exportação de matérias-primas e de produtos manufaturados e a criação de planos de desenvolvimento que focassem aspectos macroeconômicos e, sobretudo, questões sociais, como a distribuição equitativa de renda e o direito ao emprego, à moradia, à educação, à saúde e à eletricidade. Com todos esses elementos estruturados e fortificados – juntamente com a modernização do aparelho burocrático do Estado, o aproveitamento do excedente energético das usinas hidroelétricas binacionais e a mecanização das atividades do setor agropecuário –conseguir-se-ia atingir o pleno desenvolvimento paraguaio. Contudo, em virtude de fatores exógenos – segunda crise internacional de petróleo e crise da dívida externa na América Latina – e endógenos – o avanço da corrupção, o sistema de prebendas, a política econômica estatal contrária ao processo desenvolvimentista e o avanço da industrialização – o Paraguai não havia conseguido avançar pelos caminhos traçados pelos representantes do diário de Oscar Paciello. LA TRIBUNA E O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO PARAGUAI PAULO ALVES PEREIRA JÚNIOR 642

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RAFAEL DIAS SCARELLI Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa com financiamento da FAPESP e CAPES, processo nº: 2017/05623-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES. Contato [email protected].

Introdução

El mármol y el bronce han sido siempre los símbolos de la inmortalidad y de la gloria. Empero, solo el arte tiene el poder de darles su valor simbólico y representativo. (...). Bronce y mármol son sus cifras, sus caracteres; pero sin el nadie sumaria ni dejaría á leer en las generaciones venideras. ¡Bronce y mármol! clamamos al día siguiente del glorioso combate del 2 de Mayo de 1866, palpitante a la conmoción del ánimo (...). Bronce y mármol teníamos con profusión, en las minas de nuestros Andes y en las canteras de nuestros cerros; pero ¿y el arte, el soplo vital, el alma? No existía entonces, no existía todavía entre nosotros, – privilegio es de otros pueblos, – don que nos será concedido después del transcurso de muchos años. Era necesario buscarlos muy lejos, allá donde vive el calor del entusiasmo, de la educación, de las tradiciones, y transfigurado por la inspiración. (El Comercio, 31 de julho de 1874, itálico meu)1

Assim se pronunciou um articulista anônimo nas páginas do jornal limenho El Comercio, publicado em 31 de julho de 1874, por ocasião da inauguração do Monumento al Combate Dos Mayo na capital peruana. Suas palavras expressaram o esforço por justificar a realização da obra escultórica, dedicada a comemorar uma glória nacional – a vitória da aliança americana formada por Peru, Chile, Equador e Bolívia contra a esquadra naval espanhola na Batalha de Callao, em 2 de maio de 1866 – pelas mãos

1 Devo a referência a esta citação ao trabalho pioneiro da historiadora peruana Natalia Majluf. ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 645

de dois franceses, o escultor Louis-León Cugnot e o arquiteto Edmond Guillaume. Como podemos constatar, o autor atribuiu a realização da dita obra por artistas estrangeiros não à carência de matérias-primas no país, mas à ausência de “arte”, “soplo vital” e “alma”.

Na sequência do trecho supramencionado, contudo, afirmou que a obra não era por isso produto alheio à realidade peruana e ao evento homenageado. Havia sido “nacionalizada” graças ao trabalho de um homem, Numa Pompilio Llona, encarregado pelo governo peruano para acompanhar o trabalho dos artistas:

(...) Puesto en el segundo término, tratando de conmemorar un azunto nacional, ¿cómo trasplantar esa inspiración enteramente autóctona? quien podía ser intérprete fiel, entusiasta delicado, ¿sacudido del Perú?(...) Un inspirado y vigoroso poeta echó sobre sus hombros esa pesada tarea de Hércules, y encontró en su numen suficiente potencia, para transfundir a mentes y corazones extraños, toda la fogosa y comunicatiba inspiración que en los suyos ardía (...) El señor Numa Pompilio Llona (no necesitamos decir su nombre, pero no resistimos al deseo de escribirlo) ha sido ese inteligente, hábil, infatigable y celoso delegado, al par de inspirado poeta, de quien tanto debemos. (El Comercio, 31 de julho de 1874)

O caminho argumentativo percorrido pelo escritor de El Comercio condensa os dilemas vivenciados e as estratégias mobilizadas no campo da estatuária urbana de Lima, ao longo do século XIX e princípios da centúria seguinte. Nesse artigo, buscarei resgatar as iniciativas empreendidas pelo Estado Peruano para imprimir aos monumentos públicos do período em tela, realizados no exterior por artistas europeus, os contornos desejados às obras. Nomeando representantes oficiais, encarregados de acompanhar os trabalhos, como Numa Pompilio Llona e Bartolomé Herrera, enviando retratos da personalidade homenageada ao escultor, fazendo publicar e circular panfletos informativos, buscou-se “nacionalizar” os monumentos escultóricos.

Peru: o desafio de “nacionalizar” os monumentos

Ao longo de todo século XIX até a segunda década do século XX, foi predominante a participação de artistas europeus nos projetos escultóricos de Lima, cujas obras foram, não raras vezes, esculpidas e fundidas na Europa, de onde partiram de navio para o Peru. Entre estes artistas, estiveram os italianos Adamo Tadolini, autor do Monumento ao general Simón Bolívar (1859), e Salvatore Revelli, autor do Monumento ao almirante Cristóvão Colombo (1860), os franceses Edmund Guillaume e Louis-Leon Cugnot, autores ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 646

do Monumento Dos de Mayo (1874), e o espanhol Agustín Querol, autor do Monumento ao coronel Francisco Bolognesi (1905).

Para além das fronteiras peruanas, a América se converteu em espaço privilegiado para a atuação de escultores europeus, e seus trabalhos multiplicaram-se pelo continente.2 Para estes artistas, frente a um mercado europeu já bastante competitivo, a participação em projetos no exterior poderia, além de oferecer oportunidades de trabalho, assegurar distinção capaz de lhes reposicionar no próprio mercado europeu.3

Por parte das autoridades de Estado latino-americanas, responsáveis pelo recrutamento dos artistas estrangeiros, devemos considerar, em primeiro lugar, a carência de instituições para formação artística dos escultores na região. No Peru, a Escuela Nacional de Bellas Artes abriu suas primeiras turmas apenas em 1919. Antes, porém, teve papel proeminente na formação de artistas peruanos a Escuela de Artes y Oficios(Villegas Torres, 2010, pp. 211-245). Esta instituição foi efetivamente aberta em 1864, mas fechada durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), sendo reaberta em 1905. Nessa segunda fase, nas duas primeiras décadas do século XX, formou escultores que se tornaram autores de monumentos escultóricos instalados no espaço urbano limenho, como Artemio Ocaña (Majluf, 1994, pp. 26-27; Mejía Ticona, 2013, pp. 19-20).4

Em segundo lugar, cumpre pontuar também a busca por prestígio e visibilidade internacional que a execução dos monumentos por artistas europeus poderia assegurar às futuras obras escultóricas. Vale citar a edificação do Monumento a Dos de Mayo, cujo concurso foi diretamente organizado pelo governo peruano em Paris, contando com a

2 Para permanecer entre os escultores atuantes em Lima, cabe mencionar aqui o profícuo trabalho de Agustín Querol, reputado como “conquistador artístico de América” por seu biógrafo Rodolfo Gil (1910). Além do Monumento a Bolognesi, ele foi autor do Monumento aos Bombeiros no Cemitério Colón em Havana, em fins do século XIX, e enviou diversos projetos para o Monumento a Mitre, em Buenos Aires. Quando morreu, em 1909, numerosos monumentos a ele encomendados na América Latina estavam em plena execução, a exemplo do Monumento ao general Urquiza em Paraná, da coluna da independência de Guayaquil e do Monumento a la Magna Carta em Buenos Aires, doação da colônia espanhola ao Centenário da Independência Argentina, cujas obras sofreram prolongados atrasos (Gil, 1910, p. 15; Alonso Pereira, 1987, p. 48; Gutiérrez Viñuales, 2003, pp. 355-366).

3 Por essa razão, Michelli Monteiro sustenta não ser possível compreender a história da arte europeia na virada dos séculos XIX e XX sem ultrapassar os limites geográficos do continente europeu, e perceber o “mercado de arte dilatado” em que seus artistas estavam inseridos (Monteiro, 2017, p. 22).

4 Entre os primeiros escultores acadêmicos peruanos que contornaram o problema da carência de instituições para formação artística no país, esteve o jovem ayacuchano Gaspar Ricardo Suárez (18??-1903), beneficiado com uma bolsa do governo para desenvolver sua formação na Itália, onde foi discípulo de Rinaldi e permaneceu por uma década, em meados do século XIX (Villegas Torres, 2010, pp. 212-213). Este escultor logrou expor um trabalho escultórico na ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 647

exposição ao público dos projetos participantes no Salão de Honra do Palácio das Indústrias e, posteriormente, com a exibição de um simulacro da obra na Exposição Universal de Paris de 1872, diante da porta principal do palácio, como podemos ler no catálogo desta Exposição:

CUGNOT (Louis-Léon), nascido em Paris, aluno de Duret e de Diébolt. Fora de competição. Boulevard de Grenelle, 67. (...). 1628 – Monumento comemorativo à vitória em Callao, de 2 de maio de 1866, pelos peruanos contra a esquadra espanhola. Seis episódios do combate; – baixo-relevo, bronze. Na face anterior, o coronel Galvez morrendo aos pés do Peru, sua pátria; – estátua, bronze. Nas outras faces, as Repúblicas do Chile, do Equador e da Bolívia; – estátuas, bronze. Na coluna, a República Peruana vitoriosa; – estátua, bronze dourado. (Obtida por concurso.) (Exposta em frente ao Palácio, diante da porta principal.5 (Paris Salon de 1872, 1872/1977, p 249).

Contudo, a condução dos projetos por artistas estrangeiros desde a Europa colocava um sensível problema: como garantir que os escultores europeus, que não conheciam em primeira mão a história latino-americana – os episódios e personagens a serem homenageados – e fariam seus trabalhos à distância – de seu ateliê, na Europa – pudessem representar com verossimilhança, respeitando principalmente a fisionomia dos heróis? Nesta tarefa nem sempre foram bem-sucedidos, como denunciou a nota publicada no jornal El Comercio, na ocasião da exibição dos projetos concorrentes para o Monumento a Bolognesi em abril de 1902:

Es preciso además tener en cuenta que tratándose de obras relativas á America ejecutadas por escultores y arquitectos europeos ese peligro es mayor, y puede decirse incalculable. Notorio es, en efecto, que los artistas más eminentes, y aún geneales de Europa, desconocen sin embargo, de un modo lamentable, la historia, los sucesos, los hombres, las cosas y los casos y las costumbres y hasta los rasgos etnicos de los países de America. (El Comercio, 9 de abril de 1902, itálico nosso)

Diante desse cenário, pudemos identificar duas estratégias principais mobilizadas pelas autoridades de Estado, analisadas detidamente nas próximas unidades deste artigo: a atuação de mediadores e o envio de material de apoio aos artistas, retratos e textos

Exposição Universal de 1867 em Paris, intitulado “Un Défenseur de la patrie” (Exposition Universelle de 1867 a Paris, 1867, p. 207), mas teve uma atuação posterior como escultor limitada em seu país de origem, dedicando-se também à pintura e ao restauro de telas (Villegas Torres, 2010, pp. 213-214).

5 No original: “CUGNOT (Louis-Léon), né à Paris, élève de Duret et de Diébolt. Hors concours. Boulevard de Grenelle, 67. (…). 1628 — Monument commémoratif de la victoire remportée au Callao, le 2 mai 1866, parles Péruviens sur l’escadre espagnole. Six épisodes du combat; —bas-reliefs, bronze. Sur la face antérieure, le colonel Gálvez expirant aux pieds du Pérou, sa patrie; — statue, bronze. Sur les autres faces, les Républiques du Chili, de l’Equateur et de la Bolivie; —statues, bronze. Sur la colonne, la République péruvienne victorieuse; — statue, bronze doré. (Obtenu au concours.) (Exposé en dehors du Palais, devant la porte principale.)” ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 648

biográficos da personagem homenageada. Tais expedientes se fizeram presentes já nos primeiros documentos relacionados à edificação das obras, os decretos que determinaram sua construção e a correspondência epistolar entre os agentes envolvidos.

Mediadores em ação

O principal expediente lançado pelo Estado peruano foi a nomeação de autoridades diplomáticas para intermediar a relação do governo peruano com os artistas na Europa. Estas autoridades foram encarregadas de recrutar os artistas, fornecer-lhes informações sobre os temas e as personagens homenageadas e de facilitar a comunicação entre eles e o governo.

Destacam-se aqui duas personalidades. Em primeiro lugar, o clérigo, escritor e político conservador peruano Bartolomé Herrera (1808-1864). Como Ministro Plenipotenciário do Peru, já se encontrava na Península Itálica para viabilizar uma concordata com o Vaticano (Vifian Lopez, 2014, p. 50), quando lhe foi encarregado encomendar a execução dos primeiros projetos de estatuária urbana para Lima, os monumentos ao general Simón Bolívar (1859) e ao almirante Cristóvão Colombo (1860), além de séries de estátuas ornamentais para a Alameda de los Descalzos.6 Em carta datada de outubro de 1852, o então ministro peruano de Obras Públicas José Manuel Tirado informou a Herrera:

Como verá US. por la resolución del Gobierno que consta de la nota 5 del pte., cuya copia le incluyo, se debe erigir un monumento en la plaza del Congreso a la memoria del Libertador Simón Bolívar. [...] US. debe contratar la construcción para que vaya preparándola el artista. (Barrenechea, 1947, p. 76, itálico nosso)

Coube, posteriormente, ao escritor de origem equatoriana Numa Pompilio Llona (1832-1907) esse papel para a construção do Monumentos Dos de Mayo, quando foi comissionado pelo governo peruano para organizar o concurso do monumento em Paris, divulgar o seu edital e manter comunicação com os artistas eleitos. A intervenção de Llona ficou registrada nas páginas da imprensa local. No ano de 1867, o jornal francês Le Presse, ao divulgar o chamado aos artistas franceses e estrangeiros, informou o endereço do comissionado em Paris para fornecer maiores informações aos candidatos.

6 Vifian Lopez (2014) apresenta estes primeiros projetos escultóricos limenhos, propostos na presidência de José Rufino Echenique (1851-1855) mas concretizados na gestão de Ramón Castilla (1855-1862). ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 649

Os artistas que desejarem podem se dirigir ao comissário do governo designado para esse fim, Llona, ​​à rua Saint Lazare, 103, todos os dias, do meio-dia às quatro horas.7 (La Presse, 28 de abril de 1867, p. 3).

Não raras vezes, porém, foi atribulada a atuação desses agentes, pressionados pelas autoridades de seu país e pelas demandas dos artistas. Foram múltiplas as solicitações do comissionado ao governo peruano que tardaram a ser deliberadas, como a definição da localização do monumento em Lima e das inscrições nos relevos do pedestal da obra (Carta de Pedro Gálvez ao MRE, 16 de julho de 1870). Por seu turno, durante a estadia de Llona na capital francesa ocorreu a Comuna de Paris, por ocasião da qual este necessitou deixar a cidade, solicitando posteriormente – com êxito – uma indenização ao governo peruano pelos gastos que precisou arcar durante o conflito (Carta de Manuel de Santamaría ao MRE, 15 de janeiro de 1872).

Imagens em circulação

Por fim, outro expediente central foi a disponibilização de retratos e textos biográficos e histórico-narrativos aos escultores, a fim de familiarizar os artistas com a fisionomia, a estatura e os trajes do herói, bem como os acontecimentos celebrados. Aqui, novamente os mediadores tiveram um papel destacado, como difusores desse material. Podemos identificá-lo na carta de Tirado a Bartolomé Herrera, a outubro de 1852. Entreas orientações gerais sobre o perfil do futuro Monumento a Bolívar, podemos ler:

En el vapor inmediato se remitirá a US. una copia o retrato fiel de Bolívar para cuidar de la semejanza que es indispensable. Advierto a US. que aunque la estatua está descubierta o sin sombrero, para consultar la conveniencia artística, debe ponérsele el sombrero en la mano derecha en actitud de saludar. (Barrenechea, 1947, p. 76, itálico nosso).

Para o Monumento a Dos de Mayo não foi diferente. Entre os primeiros decretos que definiram a construção da obra, assinado por José María Quimper em 26 de junho de 1866, determinou-se que:

7 No original: “Les artistes qui désireront le faire pourront s’adresser au commissaire du gouvernement nommé à cet effet, Llona, rue Saint Lazare,103, tous les jours, de midi à quatres heures”. ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 650

El Sr. Ministro Plenipotenciario cuidará de repartir á los concurrentes que se inscriban, para que puedan comprender mejor el asunto que van á tratar, el decreto supremo que ordena la erección del monumento, una sucinta relación del combate del 2 de Mayo, el retrato fotográfico del malogrado Coronel Gálvez y las fotografías de las baterías del Callao. (El Peruano, 7 de julho de 1866, itálico nosso)8

Entretanto, a distribuição de retratos e textos informativos nem sempre esteve atrelada à atuação dos mediadores. Em princípios de 1902, ao noticiar a prorrogação do prazo para a entrega dos projetos pelos artistas participantes do concurso para o Monumento a Bolognesi, o jornal espanhol Heraldo de Madrid revelou a estratégia para difundir informações sobre a personagem homenageada:

En la Subsecretaría de este ministerio [de Estado] continúan facilitándose, á quien los pida, ejemplares del número extraordinario de la Liga Nacional, de Lima, en el que se publican las condiciones y demás particulares del concurso, así como un retrato del mencionado coronel. (Heraldo de Madrid, 11 de janeiro de 1902, p. 6, itálico nosso)

Na mesma ocasião, o jornal La Correspondencia de España, a despeito de errar a patente militar e o nome da batalha em que o coronel se consagrou, também mencionou a distribuição de retratos de Bolognesi:

Oportunamente dimos cuenta del concurso abierto por el gobierno del Perú para erigir un monumento al general Bolognesi, defensor de Jacua. (...) El retrato del héroe de Jacua, con todas las condiciones del concurso, serán facilitados en el ministerio de Estado á cuantos lo deseen. (La Correspondencia de España, 5 de janeiro de 1902, p. 3)

A distribuição do número extraordinário da Liga Nacional, que conteria o retrato do coronel Francisco Bolognesi, além de informações úteis sobre este oficial e a Batalha de Arica, foi, portanto, promovida por uma subsecretaria do Ministério de Estado, sem a mediação de uma autoridade em especial.

Por fim, periódicos tiveram um papel importante para difusão do material de apoio aos escultores. Dessa sorte, o jornal francês Le Monde Illustré publicou, a 16 de junho de 1866, uma fotografia do coronel José Gálvez9 acompanhada de um texto biográfico do

8 Decreto publicado no diário oficial peruano em 7 de julho de 1866, porém originalmente datado de 26 de junho de 1866.

9 Secretário de Guerra do governo de Mariano Ignacio Prado, este coronel liderou a resistência peruana contra a Esquadra naval Espanhola durante a Batalha de Callao, em 2 de maio de 1866, quando morreu, durante a explosão da Torre de la Merced. No dia seguinte à Batalha, 3 de maio de 1866, o Congresso peruano determinou a construção ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 651

coronel. O texto não faz menção ao Monumento Dos de Mayo, cujo concurso ainda não havia sido aberto em Paris, apenas homenageia o coronel recém-falecido, cujo irmão, Pedro Gálvez, fora diplomata peruano na França. É possível supor, entretanto, que o periódico buscasse preparar o público francês para a personagem e a futura obra, uma vez que o decreto para construção do monumento já havia sido promulgado no dia posterior ao combate, 3 de maio de 1866. Poucos dias depois da nota publicada em Le Monde Illustré, o decreto assinado por Quimper determinaria que “Se fijará el plazo de un año para el término del concurso, y el lugar de su decision será Paris” (grifo nosso) (El Peruano, 7 de julho de 1866).

Imagem 1: Texto biográfico e retrato de José Gálvez. Le Monde Illustré. Journal Hebdomadaire. Paris, ano 10, nº 479, 16 de junho de 1866, p. 372.

Conclusões

Se por um lado a presença de artistas europeus nos certames e projetos escultóricos limenhos até a segunda década do século XX ensejou um esforço, por parte das autoridades de Estado, no sentido de garantir verossimilhança às personagens e aos episódios celebrados, por outro, trouxe também o esforço por afastar eventuais críticas de que tais obras seriam produções “importadas” e alheias à realidade local.

de um monumento consagrado à sua memória e ao triunfo da Batalha, que viria se tornar o Monumento Dos de Mayo. ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 652

Nesse sentido, o articulista de El Comercio, citado na Introdução deste artigo, buscou atribuir ao comissionado Numa Pompilio Llona a missão exitosa de transferir aos artistas estrangeiros a “inspiración que en los suyos ardia”, sendo evocado já na abertura da matéria do jornal, antes mesmo dos artistas franceses. Llona foi apresentado no mesmo patamar dos franceses autores da obra pelo diário limenho, antes deste narrar a trajetória de edificação do monumento: “Veamos ahora como han cumplido estos tres señores su encargo: el poeta, el arquitecto y el escultor” (El Comercio, 31 de julho de 1874).

Posteriormente, de modo semelhante, no esforço de dar uma cor nacional que afastasse a ideia de uma obra de arte “importada” do exterior, o escritor peruano Luís Fernán Cisneros, em artigo publicado na revista ilustrada Actualidades, afirmou que Agustín Querol não era o único autor do Monumento a Bolognesi merecedor dos louros.

Cegados por el brillo de la fiesta, enardecidos por la algarabía de las músicas, quizá si somos ingratos para con nosotros mismos. ¿Quién dió la voz? ¿Dónde surgió la idea? Quién dió forma á este pensamiento? Quién recogió el óbolo? ¿Dónde están todos ellos, quiénes son? Querol lo hizo, sí; pero alguien llamó á Querol; alguien le pintó la historia del héroe, i le entusiasmó con el relato, i le describió la solemne hecatombe del peñón de Arica. Pues á ese se debe también el esplendor de ese espectáculo. (CISNEROS, novembro de 1905)

Muitas outras mãos – peruanas – o gestaram: desde sua ideia original, nascida entre os estudantes do Liceo Internacional liderados pelo jovem Luís Gálvez, até os trabalhos de colocação da obra, que envolveram o arquiteto Maximiliano Doig, o engenheiro Silgado, os artesãos Emilio Díaz, Victorino Flórez e Gabino Risco. Por último, clamava ao povo peruano para que fizesse justiça a si próprio:

I he aquí cómo i por qué no ha sido Querol el único autor del monumento. I el pueblo, que rememora la acción guerrera de Bolognesi inmortal i piensa que desde su altura olímpica dice con su mirada una lección ejemplar á las generaciones; el pueblo que se descubre con respeto ante la figura broncínea del luchador anciano, no debe olvidar la gestación i la historia de esta fiesta. Repetirla es hacer justicia á los nuestros. (CISNEROS, novembro de 1905)

Contudo, superadas as primeiras décadas do século XX, as críticas à participação de artistas europeus nos projetos escultóricos latino-americanos se avolumaram, amplificadas, por um lado, pela pena de escritores e críticos de arte locais – a exemplo de Teófilo Castillo no Peru (VILLEGAS TORRES, 2010, pp. 211-245) – e, por outro, pela própria ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 653

atuação dos escultores nacionais, que se reivindicavam como legítimos intérpretes da história nacional. Nesse sentido, as comemorações dos centenários das independências nas primeiras décadas do século XX, que favoreceram diversos projetos escultóricos em países do continente, foram ocasião especial para lançar questionamentos à legitimidade da participação de artistas estrangeiros.10

FONTES

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Carta de Manuel de Santamaría ao MRE. Lima, 15 de janeiro de 1872. AMRE, Caixa 205, Carpeta 7, Código 2-0-, Fólio 7.

Carta de Pedro Gálvez ao MRE. Paris, 16 de julho de 1870. AMRE, Caixa 194, Carpeta 2, Código 5-14-, Fólios 111 a 114.

CISNEROS, Luís Fernán. Actualidades: Revista Ilustrada, ano III, número extraordinário. Lima, novembro de 1905. Biblioteca Nacional del Perú.

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El Comercio, “Cronica. El monumento á Bolognesi”, edición de la tarde, nº 25.225. Lima: 9 de abril de 1902. Instituto Riva-Agüero.

El Peruano, Ano 24, Tomo 51, 2º semestre, nº 2. Lima, 7 de julho de 1866. Instituto Riva-Agüero.

Heraldo de Madrid, “Noticias generales”, ano XIII, nº 4.075. Madrid, 11 de janeiro de 1902. Biblioteca Nacional de España.

10 Como exemplo disso, Michelli Monteiro apresenta o rechaço da Sociedade Brasileira de Belas Artes, sediada no Rio de Janeiro, à abertura para participação de artistas estrangeiros no concurso para ereção de um monumento à independência na colina do Ipiranga em São Paulo, por ocasião do Centenário da Independência de 1922 (Monteiro, 2017, p. 93). ¿Y EL ARTE, EL SOPLO VITAL, EL ALMA?: PARTICIPAÇÃO EUROPEIA NA ESTATUÁRIA PÚBLICA DE LIMA E ESTRATÉGIAS PARA “NACIONALIZAR” AS OBRAS ESCULTÓRICAS (1859-1920) RAFAEL DIAS SCARELLI 654

La Correspondencia de España, “Noticias generales”, ano LIII, nº 16.039. Madrid, 05 de janeiro de 1902. Biblioteca Nacional de España.

La Presse, “Avis Divers. Légation du Pérou”, ano 32. Paris, 28 de abril de 1867. Bibliothèque Nationale de France.

Le Monde Illustré. Journal Hebdomadaire. Paris, ano 10, nº 479, 16 de junho de 1866. Bibliothèque Nationale de France.

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Uma perspectiva histórica das relações internacionais no Rio da Prata na Era Vargas: o Uruguai como o fiel da balança

RAFAEL NASCIMENTO GOMES Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade de Brasília (PPGHIS-UnB). Bolsista CAPES e Pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (IRel- UnB). E-mail para contato: [email protected]

Introdução

Ao analisar o caso do Uruguai, percebe-se que não se trata de uma mera adaptação à determinada conjuntura, ainda que a inserção internacional do Uruguai tenha sido pautada e limitada, em grande medida, pelos grandes Estados à sua volta. Isabel Clemente lembra que no pensamento uruguaio “sobre las alternativas abiertas para la inserción internacional de Uruguay un factor determinante fue el reconocimiento de Uruguay como país pequeño y ubicado en el contexto de América Latina.” (CLEMENTE, 2010, p.2) Em outras palavras, apesar de não ter de fato um papel decisivo no cenário internacional, muitas vezes, teve um papel significativo no cenário regional, sobretudo, nas relações Brasil-Argentina.

Brasil e Uruguai não são apenas países fronteiriços. Pode-se dizer que há raízes históricas profundas entre esses estados sul-americanos, e elas merecem mais estudos históricos. O limite brasileiro-uruguaio demarca a primeira fronteira brasileira habitada em ambos os lados. O contato das duas populações, suas afinidades culturais, as relações familiares, políticas, comerciais – estas ao amparo ou ao arrepio da lei – configuram um quadro único, que não pode ser ignorado pelos estudiosos da história das relações diplomáticas dos dois países. (GOMES, 2017, 41). UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 657

O lugar do Uruguai- e da região do Rio da Prata- na historiografia e na história do Brasil

A historiografia brasileira voltada para o Prata é relativamente vasta, principalmente, aquela voltada para as relações entre Brasil e Argentina. Já as relações com o Uruguai ganharam uma maior importância nas últimas décadas. Não seria incorreto afirmar, também, que nos trabalhos de história da política externa brasileira há uma significativa concentração no período que se estende de 1930 até o ocaso do Estado Novo, em 1945. O primeiro período Vargas sempre exerceu certo fascínio sobre os historiadores; o processo de modernização e industrialização e a política externa de crescente influência sobre o contexto continental desenvolvidos nesse período foram, com certeza, grandes motivadores de pesquisas históricas. (SVARTMAN, 1999, p.33)

Dante Turcatti enfatiza que

la política internacional del Uruguay en relación con sus vecinos ha estado desde siempre influída por la particular posición geográfica del país, con sólo 187.000 km² de superficie y con una muy escasa población, que al finalizar la primera década del siglo XX era poco más de un millón de habitantes. (TURCATTI, 1981, p.37)

Turcatti explica, da seguinte forma, o tradicional jogo pendular da política exterior uruguaia:

A pesar de que un movimiento pendular de las relaciones exteriores con Argentina y Brasil, tratando de mantener delicados equilibrios, fue el estilo tradicional de la Cancillería uruguaya, se hizo siempre difícil ocultar las simpatías existentes hacia una u otra nación por parte de las dos grandes colectividades políticas (…) Las fricciones ocurridas, de tanto en tanto, con alguno de los países vecinos, van a romper esa equidistancia, considerada garantía imprescindible de la independencia y soberanía nacionales. (TURCATTI, 1981, p.37)

Com isso, compreende-se “El Uruguay Internacional” de Luiz Alberto de Herrera. Nessa obra clássica, Herrera sintetizou, brilhantemente, a condição histórica do Uruguai: “su inserción en el mundo y en la región forma parte sustantiva de su identidad nacional”. (HERRERA, 1988, p. 30) Apesar de mais de um século da primeira publicação (1912), a obra de Herrera tem uma evidência permanente quanto ao posicionamento do Uruguai no concerto internacional. O nascimento desse Estado, as peripécias de seus primeiros UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 658

anos de independência e seu papel geográfico localizado entre dois grandes vizinhos são comentados pelo autor, um dos principais líderes políticos uruguaios do século XX. Parecia constante no pensamento de Herrera uma preocupação pela independência real de seu país, principalmente com o histórico conflituoso com o seu vizinho da outra margem do Rio da Prata, a Argentina. Apesar da sua visão receosa acerca dos vizinhos Brasil e Argentina, Herrera reconhecia a necessidade de conhecê-los profundamente, até mesmo, por uma questão de segurança nacional. Por isso, El Uruguay Internacional tornou-se um clássico na historiografia uruguaia.

Francisco Doratioto destacou que a presença portuguesa no Rio da Prata foi resultado de uma política claramente definida, desde 1680 com a fundação da Colônia de Sacramento por Manuel Lobo. Nesse ano, Portugal fundou Sacramento, na margem oriental desse estuário, em uma península de fácil defesa militar e que dispunha de um bom porto natural. Este era visto como uma base para o acesso português ao interior da América do Sul, por meio da navegação dos rios Uruguai e Paraná. Além disso, Sacramento poderia desviar de Buenos Aires o contrabando da prata oriunda da Bolívia e de outras mercadorias. Após disputas militares e diplomáticas entre Portugal e Espanha, a Colônia de Sacramento ficou de posse espanhola pelo Tratado de Badajoz (1801). (DORATIOTO, 2014, p.18).

Com isso, observa-se que desde o século XVII, o fator geopolítico foi um dos principais motivadores da colonização da margem oriental do Rio da Prata pelos portugueses. Àquela época, como lembrou Moniz Bandeira, a navegação através do Rio da Prata e seus afluentes já era vital para os portugueses, cujos interesses na região se tornaram mais complexos, à medida em que, ao longo da primeira metade do século XVIII, a ocupação do oeste e a mineração do ouro estenderam as fronteiras do Brasil e impulsionaram a formação do seu mercado interno. O Rio da Prata representava, assim, a chave de acesso ao estuário superior do Paraná, Uruguai e Paraguai, que banhavam terras consideradas das mais ricas e férteis do Brasil. (BANDEIRA, 1998, p.39-40) Tratava-se, portanto, de uma estratégia geopolítica e militar, servindo de barreira norte à expansão da colonização espanhola e garantindo a Portugal o condomínio do Prata.

Em meio à inúmeras disputas entre Brasil e Argentina, em 27 de agosto de 1828, pela UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 659

Convenção Preliminar de Paz, surgiu a República Oriental do Uruguai, como Estado-tampão1, cuja existência foi garantida perpetuamente por Inglaterra, Brasil e Províncias Unidas. O ano de 1828 constituiu, então, um marco básico na formação regional, pois o Estado-nação uruguaio estabeleceu-se, impondo, pelo traço político, a divisão de um espaço que até então fora uniformizado cultural e economicamente. Estavam assim, criadas as condições para o delineamento de um espaço regional, internacional. (RECKZIEGEL, 1999, p.60).

Diante do empate paralisador entre os dois adversários, a solução viria pelas mãos da potência hegemônica na região e no mundo, a Inglaterra, cujo mediador, Ponsonby, assim descreveria o desfecho: “Pusemos um algodão entre dois cristais”. Entretanto, a Província Cisplatina conquistou a independência, mas não a paz. O que se seguiu no novo país foram décadas de grande instabilidade política. Dois partidos dividiam a opinião pública: os “blancos”, agrupação que se formou originalmente em torno de Lavalleja, em geral simpáticos à Argentina, e os “colorados”, mais propensos ao Brasil, cujo chefe inicial foi o primeiro presidente do Uruguai, Fructuoso Rivera.

Nesse processo de consolidação do Estado oriental que os dois primeiros presidentes do Uruguai, caudilhos clássicos da região, Fructuoso Rivera (1830-1834) e Manuel Oribe (1835- 1838), tornaram-se líderes, respectivamente do Partido Colorado e do Partido Nacional, também conhecido como blanco. Esses dois partidos políticos uruguaios, que se tornaram os partidos tradicionais uruguaios até a segunda metade do século XX, tinham projetos de Estado bem diferentes. Os colorados tinham como base social principalmente os comerciantes de Montevidéu e defendiam o livre-comércio e a livre navegação dos rios platinos. Estes eram também princípios defendidos pela política externa brasileira, pois a província do Mato Grosso estava isolada por terra do resto do Brasil e a única forma de o Rio de Janeiro manter contato regular com ela era por meio da navegação fluvial. (DORATIOTO, 2007, p. 257). Já os blancos representavam os grandes proprietários de terra, que tinham afinidades com os pecuaristas da outra margem do rio da Prata, nas províncias argentinas. Essas lutas entre blancos e colorados marcaram violentamente a política uruguaia do século XIX e XX.

Na verdade, essa instabilidade política regional em meio à formação dos respectivos Estados nacionais seria resolvida somente com a Guerra do Paraguai (1864-1870).

1 A independência do Uruguai constitui, ainda hoje, um tema de grande debate histórico e político no Uruguai. UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 660

Em outras palavras, a Guerra do Paraguai foi resultado do processo de construção dos Estados nacionais no Rio da Prata, e ao mesmo tempo, marco nas suas consolidações. (DORATIOTO, 2007, p.282-283).

O Uruguai, a partir de 1870, viveu um período próspero economicamente, muito devido à demanda europeia que importava a lã. Após a Guerra de Secessão (1861-1865) o sul dos Estados Unidos, principal fornecedor de algodão que era a principal fibra têxtil, foi afetado. Logo, a lã ganhou mais atenção e valor do mercado europeu, principalmente britânico. E fez com que o Uruguai se tornasse cada vez mais dependente dos centros mundiais de poder. De toda forma, como destacou José Pedro Barrán, em virtude da lã, o Uruguai conseguiu sair da idade do couro. E isso significava:

romper con la dependencia del cuero y su precio, era avanzar en el largo camino de la independencia económica del país. A partir de la introducción de la lana como otro de sus rubros exportables, el Uruguay comenzó a vivir de 3 productos fundamentales: lana, cueros y tasajo. (BARRÁN, 1987, p.117).

A partir de 1876 esse processo de modernização do Uruguai se fez mais notório e coerente. Os governos militares (1876-1886), respectivamente de Lorenzo Latorre e Máximo Santos, responsabilizaram-se por inserir o Uruguai na órbita capitalista britânica. Não é por acaso que na década de 1890, o presidente Júlio Herrera y Obes declarou que se sentia como “el gerente de una gran estancia, cuyo directorio estaba en Londres”. Já nas primeiras décadas do século XX, após a guerra civil de 1904, blancos x colorados, o Uruguai fortaleceu e consolidou o seu Estado e as suas instituições. José Batlle y Ordoñez2, presidente do Uruguai entre 1903-1907 e 1911-1915, teve um papel importante nesse processo de modernização ao transformar o pequeno país do sul em um “país modelo”.

Justamente por seu caráter reformista com certas características populares, o batllismo atraiu contra si uma tenaz reação de setores político-sociais conservadores do

2 José Pablo Batlle y Ordoñez (1856-1929) foi presidente do Uruguai em dois períodos: 1903-1907 e 1911-1915. Batlle, sem dúvida, marcou a vida política uruguaia do século XX. Filho do presidente e general Lorenzo Batlle, portanto, de família colorada. Fundou o jornal El Día. Em 1904, venceu a guerra civil contra os blancos nacionalistas, liderados por Aparício Saravia. Com a paz estabelecida, Batlle trouxe certa modernização para o seu país. Fez Claudio Williman o seu sucessor para retornar à presidência em 1911. Durante o governo de Williman realizou viagens pela Europa. Nesse período representou seu país na 2º Conferência Internacional de Haia. Em seu retorno ao Uruguai, implementou uma série de reformas sociais. Criou a Universidad de las Mujeres, os liceus de ensino médio em todos os departamentos do Uruguai, o Museu de Belas Artes e de História. Tornou a educação gratuita e pública, além de laica. In: SALDAÑA, José M. Fernandez. Diccionario Uruguayo de Biografías (1810-1940). Montevideo: Editorial Ameríndia; 1945; p. 147- 152. UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 661

Uruguai, notadamente da União Cívica, composta pela elite católica, de segmentos do Partido Nacional e do próprio Partido Colorado. Essa articulação exitosa dos setores conservadores de ambos partidos tradicionais, blancos e colorados, com organizações sociais que resistiam ao impulso batllista, fez com que o batllismo entrasse em “uma política de pactos e compromissos” (NAUM, 1975, p.107-117) que na década de 1920 significou um verdadeiro congelamento, senão retrocesso, do impulso estatista que teve seu ponto culminante entre 1911 e 1915, durante o segundo governo de José Batlle y Ordoñez.

A derrota eleitoral do batllismo em 1916 possibilitou a reação desses setores conservadores, sob a presidência de Feliciano Viera, por meio de várias reformas sociais e econômicas. Iniciava-se, com isso, o momento da “república conservadora” (CAETANO, 1991-1992) como é conhecido na historiografia uruguaia. A modernização política característica dessa república conservadora foi a democratização do sistema político. Entretanto, outro elemento chama muita atenção. Esse processo de modernização não significou, necessariamente, criar algo novo, como observa-se no sistema partidário. Os partidos tradicionais, por exemplo, sobreviveram e apenas modernizaram-se. (YAFFÉ, 2003, p. 335). Paradoxalmente, esse processo político confirmou a “permanência e o fortalecimento do tradicionalismo político”, a sobrevivência reformulada e tonificada nos velhos bandos blanco e colorado.

Em 1929, com a crise econômica de 1929, o Brasil, assim como o Uruguai, teve que buscar uma alternativa de inserção no capitalismo internacional. A depressão econômica, paradoxalmente, conduziu os países capitalistas avançados de regresso ao protecionismo e a soluções nacionalistas e a América Latina a um processo de modernização (CERVO, 2003, p.8), embora tenha sofrido graves consequências econômicas e políticas após o crash da Bolsa de Valores de Nova York. Por um lado, após a morte de José Batlle y Ordoñez e a quebra da bolsa de valores de Nova York, em outubro de 1929, o Uruguai viveu com grande euforia, em 1930, o seu centenário, e comemorou o título de primeiro campeão mundial de futebol. Essa geração do centenário vivia o Uruguai, pelos seus índices de qualidade de vida, como a “Suíça da América”. Por outro lado, assistiu aos movimentos políticos “golpistas” de seus países vizinhos, tanto em 6 de setembro na Argentina, como em 3 de outubro no Brasil. Observa-se, nesse momento, transições de paradigmas políticos: um mundo em crise – declínio do modelo liberal-democrático, que impactou fortemente a realidade uruguaia, dissipando utopias diversas – desde “o país UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 662

modelo” do reformismo radical até o retorno do modelo agroexportador defendido pelas elites rurais. (CURES, 1994, p.8-10).

Em contraste, a turbulência que abalou os alicerces das estruturas econômicas, sociais e políticas ocidentais, da crise de 1929 até irromper a Segunda Guerra Mundial, teve efeitos semelhantemente radicais no Brasil: depressão econômica, revolução política, o crescimento de movimentos sociais organizados em moldes socialistas e fascistas, e competição entre as Grandes Potências para aumentar sua presença no Brasil. Isto quer dizer que a crise econômica de 1929 perturbou o funcionamento do sistema capitalista, tanto no âmbito das economias nacionais quanto no da interação financeira e comercial que alimentava a economia internacional, baseada no princípio geral da divisão de trabalho entre países industrializados e não industrializados. Embora as respostas dadas à crise pelos estados capitalistas não fossem idênticas, elas tinham certas características em comum, em particular uma intervenção estatal mais decisiva na economia nacional, seja na forma de legislação, controle ou até investimento direto. Ao mesmo tempo, na esfera internacional, medidas de proteção econômica foram tomadas de modo a obter ou reter mercados exclusivos, assim rompendo com o padrão vigente de livre comércio. (MOURA, 2012, p.34-35).

Além disso, a crise reforçou convicções autoritárias como os regimes fascista e nazista. Ela parecia demonstrar a falência do capitalismo, ou pelo menos de certo tipo de capitalismo, associado ao livre mercado e à democracia liberal; tanto mais que no caso brasileiro, como dos outros países latino-americanos, a democracia liberal correspondia ao liberalismo oligárquico. (FAUSTO, 1997, p.23) A situação brasileira inseria-se no quadro mais amplo de toda a América Latina, a ocorrência de onze movimentos “revolucionários”3, predominantemente militares, em apenas dois anos, é bastante significativa.

Nesse interregno de 1919-1939, a América Latina se caracterizou por um declínio na influência britânica e um crescimento na influência alemã e estadunidense. Do ponto de vista ideológico, três correntes principais – liberalismo, fascismo e socialismo – lutavam pelos corações e mentes dos povos latino-americanos. Mas do ponto de vista da influência política e econômica, a Grã-Bretanha defendia sua posição, enquanto Estados

3 Argentina (setembro, 1930); Brasil (outubro, 1930); Chile (junho, 1932); Equador (agosto, 1931; outubro, 1931 e agosto, 1932); Peru (agosto, 1930 e fevereiro/março, 1931); Bolívia (junho, 1930); República Dominicana (fevereiro, 1930); Guatemala (dezembro, 1930). In: FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 663

Unidos e Alemanha eram relevantes na medida em que o crescimento de seu sistema de poder os colocava em posições antagônicas perante as nações latino-americanas. Os alemães enfatizavam o autoritarismo antiparlamentar, o protecionismo econômico e o nacionalismo militar, enquanto os estadunidenses enfatizavam a democracia liberal e o internacionalismo de livre comércio. A América Latina era não só palco de uma guerra comercial, mas também de disputa política e ideológica, justamente quando formas autoritárias de governo e o nacionalismo econômico estavam florescendo na parte sul do continente. Embora o nacionalismo dos países da América Latina não pudesse ser confundido com uma adesão ao fascismo ou ao nacional-socialismo, seus oponentes tentavam fazer tal identificação. Em outras palavras, numa época de polarização política radical, afinidades ideológicas ou políticas econômicas semelhantes tendiam a ser vistas como alinhamentos políticos no cenário internacional. (MOURA, 2012, p. 36-37)

No Uruguai, não muito diferente do Brasil, observa-se uma reinserção mais pragmática no contexto internacional. Além disso, pode-se dizer que houve um estímulo maior à aceleração da industrialização e, consequentemente, uma fragilidade progressiva da hegemonia das oligarquias rurais do Uruguai. Tradicionalmente, o setor agroexportador foi a base da economia uruguaia. Esse país, historicamente, abasteceu a Europa com lã, carne e couro; e em consequência disso, o comércio exterior, sempre teve um peso econômico maior. Entretanto, ao longo das primeiras décadas do século XX, esse modelo industrial tinha fracassado, exceto talvez a indústria do leite.

Gabriel Terra e seu ministro da Fazenda, César Charlone, aplicaram a política de ‘comprar de quem nos compra’ buscando reverter a situação econômica, o que alcançou alguns resultados favoráveis. Assim, o tipo de política comercial estimulada pela crise e depressão mundiais – em que barreiras alfandegárias eram combatidas mediante tratados bilaterais com mútuo reconhecimento de cláusulas favorecedoras – tendeu a favorecer a posição britânica, o principal cliente do Uruguai, ainda que os Estados Unidos gradativamente ganhassem espaço na política externa uruguaia. Apesar dessa situação econômica, é notável que o Uruguai se internacionalizou com mais intensidade nesse período, como destacou Juan Antonio Oddone em Uruguay entre la depresión y la guerra (1929–1945). (ODDONE, 1990, p.9). Por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores

Companhia das Letras, 1997; p. 145. UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 664

ampliou as representações diplomáticas e consulares uruguaias nesses anos. E nesse processo maior de “internacionalização”, observa-se que houve uma escolha prévia pela região, pois um país como o Uruguai, localizado entre dois grandes colossos, leva em consideração a sua condição geopolítica. 4

Contudo, apesar dessa intensificação de sua projeção internacional, o Uruguai sofreu efeitos econômicos gerados pela Grande Depressão, tais como obstáculos que os mercados tradicionais puseram ao fluxo exportador do setor agropecuário. Além dessas consequências econômicas, as consequências políticas na política interna uruguaia foram notáveis com a confrontação direta entre comunistas, nazistas e socialdemocratas. Juan Odonne, ao analisar as afinidades ideológicas do governo terrista e o alinhamento internacional do Uruguai, destacou que:

El alineamiento internacional del régimen de Terra guarda relación con las afinidades ideológicas que se atribuyen al mandatario y a su elenco de gobierno. (…) El estrechamiento de las relaciones diplomáticas con Alemania e Italia durante la época de su abierta intervención en España había sucedido a la ruptura con la Unión Soviética, tras de acusar a su legación en Montevideo de constituir un foco de irradiación comunista y de haber secundado el levantamiento de Luis Carlos Prestes en Brasil. Según Gabriel Terra (hijo) ‘data de entonces una conciencia pública contra el comunismo (…). (ODDONE, 1990, p. 160-163).

No Brasil, as transformações políticas, econômicas e sociais a partir da década de 1930 também levaram os detentores do poder a uma nova percepção do interesse nacional. Embora sem abandonar os interesses das exportações tradicionais, a política externa brasileira buscou formas de cooperação e barganhas voltadas para um interesse nacional compreendido de maneira mais abrangente do que o período anterior, pois visava contemplar outros segmentos da sociedade. Amado Cervo defende que isso explica as transformações havidas na política externa brasileira, como o reforço do pragmatismo e do seu sentido de instrumento do projeto de desenvolvimento nacional, que tinha na implantação de uma siderúrgica sua pedra angular. (CERVO,2010, p.234). Decerto, Getúlio Vargas favoreceu a indústria, mas em sua campanha presidencial de 1930 tinha-

4 Segundo o diretor do Archivo Histórico Diplomático de la República Oriental del Uruguay, Álvaro Corbacho, as representações diplomáticas do Uruguai na Argentina e no Brasil foram elevadas à categoría de embaixada em 1º de junho de 1928 pela Lei N. 8.321, promulgada pelo Poder Executivo ( Juan Campisteguy- Presidente da República) e por Rufino T. Dominguez ( Ministro das Relações Exteriores) em 8 de junho de 1928. In: Compilación de Leyes y Decretos 1825 - 1930, Comps.: E. Armán Ugón, J.C. Cerdeiras Alonso, L. Arcos Ferrand y C. Goldaracena. Tomo 56, 1928, Primera Parte, Montevideo, 1930, p. 49. UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 665

se oposto às indústrias “artificiais” (ou seja, as manufaturas). Somente durante sua ditadura do Estado Novo (1937-1945) é que Vargas se interessou pela rápida expansão industrial. (LOVE, 2011, p.170).

A política externa brasileira pré-1930, enquanto reservava uma posição privilegiada aos Estados Unidos, em vista de seu poder de barganha cada vez maior em relação ao Brasil, sempre buscou formas de contrabalançar a influência norte-americana por intermédio da diversificação tanto dos fornecedores de capital e de bens quanto dos mercados para as exportações brasileiras. (ABREU, 1999, p.36). Com a interrupção dos influxos de capital e a queda dos preços do café após 1929-30, o principal problema enfrentado pelos formuladores de política passou a ser como obter divisas suficientes para atender aos compromissos comerciais e financeiros do Brasil. A estocagem do café teria que ser financiada domesticamente; controles de importações teriam que ser impostos e compromissos financeiros que ser reduzidos; cada vez mais, a política econômica teria que contemplar esforços de substituição de importações. (ABREU, 1999, p.31). Por isso que, pelo menos até 1930, um dos princípios básicos da política externa do Brasil era tentar reduzir a vulnerabilidade do país a pressões norte-americanas, criando alternativas que enfraquecessem o significado do poder de barganha dos Estados Unidos.5 De toda forma, o golpe foi uma completa surpresa para os norte-americanos, e também não era esperado pelos britânicos. (ABREU, 1999, p.77). E, como demonstra a documentação pesquisada, nem mesmo pelos seus vizinhos uruguaios.

Nesse contexto, o fortalecimento da posição norte-americana refletiu-se em 1933-34 na negociação de um acordo comercial entre Brasil e Estados Unidos que não era bem-vindo para as autoridades brasileiras. A partir de 1934-35, contudo, os Estados Unidos passaram a enfrentar outro tipo de ameaça à sua posição econômica no Brasil. Tratava-se do notável crescimento do comércio entre Brasil e Alemanha mediante acordos de compensação. (ABREU, 1999, p.37). Apesar das contínuas pressões diplomáticas norte-americanas em 1935-38 para bloquear o próspero comércio Brasil-Alemanha, estas não surtiram efeito. A “independência” de Vargas estava diretamente relacionada à boa vontade dos Estados Unidos, já que, no final da década de trinta, se tornou cada vez mais claro que o sucesso dos planos políticos norte-americanos para combater a influência alemã na América Latina

5 Somente durante a Segunda Guerra Mundial que teve início o longo período de hegemonia política e econômica norte-americana no Brasil. In: ABREU, Marcelo Paiva. Op. Cit.; p. 31-32. UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 666

dependia de alistarem o Brasil e não a Argentina como o aliado-chave na região. No caso do Brasil, se necessário, havia pressões econômicas a exercer, enquanto a Argentina, pelas próprias características de seus vínculos econômicos, poderia desafiar, como de fato fez, qualquer ameaça norte-americana dessa natureza. (ABREU, 1999, p.38).

Logo a crise econômica começou a assumir a sua feição política quando, com os mesmos objetivos de assegurar mercados e fontes de matérias-primas, o Japão deu início à sua expansão imperial no Oriente em 1931. Mais tarde, em 1935, a Itália, sob o regime fascista, invadiu a Abissínia e, no entardecer da década, a Alemanha iniciou a sua expansão territorial europeia através dos acordos de apaziguamento. (SVARTMAN, 1999, p. 46). A América Latina, por seu turno, não ficou à margem desse processo, definido como “disputa interimperialista” (MOURA, 2012, p.52), no qual o sistema internacional sofreu uma completa reordenação. Pelo contrário, foi alvo de rivalidade comercial, política e ideológica das potências que entre si competiam pela hegemonia mundial.

Nesse quadro de disputa pela presença econômica e pela influência política e ideológica na América Latina, os rivais que mais se destacaram, sobretudo no Brasil, foram Alemanha e Estados Unidos. Os primeiros acenavam com importantes trocas comerciais que não pararam de crescer de meados da década de 1930 até a operacionalização do bloqueio naval inglês, no início da guerra. Os acordos de compensação assinados entre Brasil e Alemanha tinham ainda a vantagem de evitar a evasão de divisas de ambos países, o que era estratégico naquela conjuntura. (SVARTMAN, 1999, p.47) Os EUA, por sua vez, que vislumbravam uma conflagração em grande escala não muito distante, acenavam para a América Latina com a política de boa vizinhança e com a solidificação dos laços políticos por meio do pan-americanismo, ou seja, investiam na criação de uma aliança baseada no discurso da igualdade jurídica e da cooperação política, econômica e defensiva, na qual estariam bem definidos os papeis assumidos por cada um dos membros. O Brasil ocupou, nesse contexto, um espaço especial no sistema de poder norte-americano, na medida em que sua posição geográfica representou um objetivo estratégico após a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Por fim, pode-se afirmar que apesar de estudos historiográficos importantes sobre a política externa brasileira e sobre a inserção internacional do Uruguai, as relações diplomáticas entre o Brasil e o Uruguai é um tema ainda pouco explorado. Quanto a UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 667

relações uruguaio-brasileiras, pode-se dizer que o século XIX foi marcado por muitas tensões regionais frente ao processo de formação dos Estados Nacionais. Uruguai viveu um grande período de “anarquia política” até conseguir a consolidação, de fato, de seu Estado. A partir daí, iniciou uma modernização que seria implementada e concluída nas primeiras décadas do século XX, marcadas pelo batllismo. Por sua vez, o Brasil deixou de ser o único Império na América do Sul e transformou-se em mais uma república na região. Mais do que mudanças de regimes políticos, observamos uma mudança significativa no direcionamento da política externa brasileira, sobretudo, naquela voltada para a região platina. Além disso, a crise econômica de 1929 e as tensões políticas que a mesma intensificou influenciaram, decisivamente, a história da América Latina. Vimos aqui os seus efeitos políticos, sociais e econômicos no Brasil e Uruguai, marcados pela ascensão de Getúlio Vargas e Gabriel Terra, respectivamente.

Conclusão

Historicamente, a região do Rio da Prata foi elemento fundamental na política externa brasileira, sobretudo, em seu projeto a nível regional. Pela sua condição fronteiriça e, por conseguinte, a zona cultural existente entre Brasil e Uruguai, o Uruguai desempenhou papel significativo em determinadas conjunturas políticas brasileiras e regionais. Isso pode ser explicado porque a inserção internacional do Uruguai funciona, em grande medida, a partir de sua posição no subsistema platino de Relações Internacionais. Isto é, a política externa uruguaia, entre o Brasil e a Argentina, define o enquadramento estratégico desse país, bem como sua identidade internacional. Destacamos aqui as relações entre Brasil e Uruguai ao longo da década de 1930.

No Brasil, em outubro de 1930, por meio de um golpe político, Getúlio Vargas chegou ao poder. Em 1937, instalava a ditadura do Estado Novo. Já no Uruguai, em novembro de 1930, Gabriel Terra já havia vencido as eleições presidenciais. Em março de 1931, Terra tomou posse como presidente eleito democraticamente. Entretanto, em março de 1933, por meio de um golpe de Estado e com o apoio de setores empresariais, como o riveirismo e o herrerismo, ele tornou-se ditador, e permaneceu como tal até meados de 1938.

Para conduzir a política externa uruguaia, Terra escolheu Juan Carlos Blanco, na época embaixador na Argentina. Blanco permaneceu como chanceler uruguaio de março UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 668

de 1931 até as vésperas do golpe de março de 1933, em fevereiro do mesmo ano, quando foi convocado para a embaixada uruguaia na capital brasileira. Em outras palavras, o presidente do Uruguai confiava, plenamente, em Carlos Blanco para conseguir apoio do governo brasileiro para a ditadura de Terra que logo seria instaurada. Blanco, de toda forma, foi fundamental na execução da política terrista para o Brasil, já que permaneceu na embaixada uruguaia no Rio de Janeiro até meados de 1941.

Inicialmente, a política externa brasileira não sofreu grandes transformações. No Rio da Prata, buscou manter a estabilidade política regional. Enquanto nos foros interamericanos, diferentemente da Argentina, manteve uma política externa próxima a dos Estados Unidos. Com maior estabilidade política, apesar das radicalizações político- ideológicas entre integralistas e comunistas, Vargas passou a valorizar uma política mais ativa na região platina, cuja orientação era ampliar a sua presença política e econômica sobre os seus principais vizinhos.

Podemos constatar a relevância política do Brasil no seio das relações diplomáticas entre Brasil e Uruguai. Em agosto de 1934, por exemplo, o presidente Terra visitou o Brasil, com o objetivo de assinar uma série de convênios e tratados com o Brasil. Portanto, com base na documentação diplomática uruguaia, nota-se que o peso do Brasil foi, de fato, mais político do que econômico. O Uruguai, como país periférico na região, reconheceu no Brasil o papel de um fiel escudeiro frente à rivalidade histórica e econômica com o seu vizinho do outro lado do Prata.

Por isso que, certa vez, o diplomata belga Henry Ketels, comparou o Uruguai ao seu pequeno país da Europa. Ketels apontava como elementos comparativos: “su pequeño tamaño, su ubicación geográfica entre vecinos poderosos, su temor latente por tal hecho y su fuertemente proclamado apego al derecho internacional (pensado como único escudo de los débiles), cierta dosis de vanidad por sus respectivos logros sociales y culturales.” (NAHUM, 1998, p.8). De certa forma, isso explica, em grande medida, a situação peculiar do Uruguai no cenário regional marcada pelos dois grandes países da América do Sul: Brasil e Argentina.

Na ação diplomática na região, o Brasil, por sua vez, explorava a rivalidade histórica entre os vizinhos platinos. Exemplo dessa tradicional rivalidade no Prata entre Argentina e Uruguai foi a ruptura das relações diplomáticas entre os países entre julho e setembro de UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 669

1932. Mais uma vez os países platinos rompiam as relações e mais uma vez por motivos de asilo político para opositores do país vizinho, as chamadas atividades de elementos subversivos no território de um ou outro. Depois de dois meses do rompimento das relações diplomáticas, Juan José de Amézaga foi enviado por Gabriel Terra, como agente confidencial, a Buenos Aires para retomar as relações entre os países vizinhos, e obteve sucesso. Enquanto isso, as relações com o Brasil se intensificaram.

Dessa forma, observamos que, em grande medida, pelo peso histórico da rivalidade do Uruguai com a Argentina, o “fiel da balança” de poder do Rio da Prata tendeu, ao longo do período analisado, para o lado brasileiro. Evidencia-se, então, que as relações com o Brasil de Vargas mereceram especial atenção da diplomacia terrista. Do lado brasileiro, Vargas também se esforçou, à sua maneira, para estreitar as relações com esse vizinho do sul. Como destacou Carlos Roberto Rangel, os discursos antiliberais dos chefes de Estado facilitaram a convergência de interesses entre seus respectivos governos. (RANGEL, 2005, p.22) Um bom exemplo disso foram as medidas tomadas pelo governo brasileiro, em 1935, com o objetivo de anular as forças opositoras, muitas delas no Uruguai.

Para isso o governo de Vargas pressionou o governo terrista para romper as relações diplomáticas com a União Soviética, acusada de financiar movimentos comunistas na América do Sul. Em dezembro daquele mesmo ano, o Uruguai rompeu as relações com a URSS. Outro exemplo da cooperação entre os governos brasileiro e uruguaio foi a atuação de João Batista Luzardo como embaixador no Uruguai, desde meados de 1937, em substituição a Lucílio da Cunha Bueno, acusado de manter contato com Flores da Cunha, opositor do regime de Vargas. Ao aproximar-se de Gabriel Terra, Luzardo conseguiu com que o governo uruguaio determinasse um regime de liberdade vigiada para Flores da Cunha em Montevidéu, e daí, organizou um dispositivo legal para vigiá-lo. Batista Luzardo permaneceu na capital uruguaia até meados de 1945, e foi uma peça fundamental da política varguista para o Uruguai. É nesse sentido que Gabriel Terra e Getúlio Vargas, com suas respectivas identidades políticas, contribuíram para essa aproximação diplomática, política e geoestratégica. UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO RIO DA PRATA NA ERA VARGAS: O URUGUAI COMO O FIEL DA BALANÇA RAFAEL NASCIMENTO GOMES 670

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Breves apontamentos sobre mediação intelectual e política na revista Chile- América

RAPHAEL COELHO NETO Doutorando em História pela UFMG. Órgão financiador: CAPES. E-mail: [email protected].

Neste texto, recortamos como objeto de reflexão e análise a prática política e intelectual, a noção de redes transnacionais e a elaboração e circulação de ideias políticas a partir da revista chilena de exílio Chile-América, criada na Itália no contexto de repressão política da ditadura militar no Chile. Em face do estágio inicial da pesquisa de doutorado que estamos desenvolvendo, propomos um breve e preliminar estudo, que tenha por objetivo analisar as orientações político-editoriais que balizaram a criação de Chile-América, contemplando parte importante da resistência à ditadura chilena no exílio. Pretendemos esboçar a formação de redes transnacionais de intelectuais, políticos e organizações de direitos humanos em torno à Chile-América, identificando alguns nomes, partidos e organizações centrais que atuaram nesse projeto. Apontaremos alguns textos cuja divulgação na revista, em um primeiro momento, pareceu central para seus editores, com destaque para as iniciativas que visavam denunciar, nos primeiros anos de ditadura, a violação dos direitos humanos no Chile.

Resultante do golpe de 11 de setembro de 1973 e da brutal repressão exercida pela Junta Militar1 ao assumir o Estado após a derrubada do governo de Salvador Allende, o massivo exílio chileno foi marcado pela capacidade de mobilização e articulação de intelectuais e políticos vinculados aos partidos de esquerda - como foi o caso daqueles

1 Após o violento golpe de Estado, formou-se uma Junta Militar para governar o país, composta pelo general Augusto Pinochet, Comandante em Chefe do Exército; pelo general Gustavo Leigh, Comandante da Força Aérea; pelo general Cesar Mendonza, Diretor do corpo de Carabineros; e pelo almirante José Toribio Merino, da Armada. Ao longo da década de 1970, Pinochet centralizou e redefiniu de modo personalista e autoritário o processo de institucionalização da ditadura no Chile, amparando-se legalmente por meio da Constituição de 1980. BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 673

que fizeram parte da Unidade Popular (UP) -, bem como aos partidos de centro do país, com destaque para a tradicional Democracia Cristiana (DC).

Resultado das muitas iniciativas que se articulavam de maneira a se opor à ditadura, foi fundada em Roma, no ano de 1974, Chile-América, que nasceu precisamente da necessidade de se promover o debate político sobre a realidade chilena após o golpe, sobretudo no que diz respeito ao rompimento do Estado de Direito e à violência sistemática e institucionalizada. Estiveram à frente da criação da revista Bernardo Leighton e Esteban Tomic, políticos da ala mais à esquerda da DC; José Antonio Viera-Gallo, filiado ao Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU), partido que integrou a UP; e Júlio Silva Solar, ligado originalmente ao MAPU e, depois, à Izquierda Cristiana (IC), partido que se originou deste último como uma dissidência de perspectiva humanista cristã e socialista. Como a vinculação política de seus fundadores e integrantes do Comité Editor indica, essa revista foi “una tribuna abierta para los miembros de la DC chilena e internacional como para miembros de partidos de izquierda que manifestaron su oposición a los militares”.2 Em comum a todos eles, além da atuação política, foi a formação acadêmica/intelectual na área do Direito. Trata-se de uma informação importante para pensarmos no tipo de discussão difundida na revista, notadamente política e voltada para os direitos humanos.

O primeiro número de Chile-América saiu em setembro de 1974, um ano após o golpe militar. Sua publicação foi mensal e, de acordo com Júlio Silva Solar, a revista circulou em 66 países,3 deixando entrever o potencial de circulação desse impresso, sobretudo se pensarmos que suas edições foram publicadas no idioma espanhol, inglês e italiano. Ao analisarmos sua materialidade, observamos um trabalho gráfico simples, sem qualquer ilustração em suas páginas, diagramação marcada por textos densos, por vezes analíticos, e por documentos oficiais publicados ou não na íntegra, conferindo características materiais e de conteúdo que deram certa identidade à fórmula editorial proposta.

Foram editados 89 números até 1983, quando se encerraram suas publicações no exílio. Contudo, o encerramento da edição e publicação da revista na Itália não colocou

2 Acerca de nosotros. Disponível em: http://www.cesoc.cl/nuestra-historia/. Acesso em: 04/12/2017.

3 Para citar alguns países, através de uma breve observação dos números iniciais da revista, pudemos constatar cartas de leitores vindas da Itália, várias cidades do Chile, Brasil, Argentina, Bolívia, México, Estados Unidos, Noruega, Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica, Portugal, Argélia e Austrália. BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 674

fim ao empreendimento editorial, que se refez em Santiago, no Chile, por meiodo Centro de Estudios Sociales (Cesoc), que, a partir desse momento (novembro de 1983), enveredou-se para a edição de livros marcadamente políticos, calcados, de uma maneira geral, na oposição à ditadura de Augusto Pinochet, dando sequência ao projeto editorial de Chile-América. Júlio Silva Solar e José Antonio Viera-Gallo foram os principais diretores do editorial Cesoc. Neste texto, porém, analisaremos apenas algumas edições da revista no exílio, não contemplando a restituição do projeto editorial a partir da editora no Chile.4

Consideramos os quatro principais nomes de criação e direção de Chile-América como intelectuais mediadores, visto que levaram a cabo práticas de mediação cultural e política no exílio ao liderarem essa importante iniciativa editorial que foi a revista. As principias referências teóricas às quais nos reportamos para compreender a categoria de intelectual mediador foram as historiadoras Angela de Castro Gomes e Patricia Santos Hansen (2016). As autoras partem da história cultural e da concepção mais ampla de intelectual para refletir sobre a categoria mais específica de intelectual mediador, entendido como sujeito essencial para a produção, comunicação, atribuição de sentido e circulação de bens culturais. Tais sujeitos históricos exerceriam ativamente a mediação por meio de trocas ou transferências diversas, mais ou menos simétricas, entre círculos intelectuais e políticos de diferentes regiões e países, por exemplo, atuando em um lugar estratégico e privilegiado de redes de sociabilidade que, no nosso caso, possuíram caráter transnacional (GOMES; HANSEN, 2016, p. 13-19). Não por acaso, como apontam as autoras, eles se tornariam responsáveis por edições, coleções, fundação de editoras e revistas. Ao intelectual mediador caberia o empenho em escrever, gerir e organizar livros, revistas, instituições culturais etc, tendo sido, constantemente, ao mesmo tempo criador e mediador (GOMES; HANSEN, 2016, p. 21-22).

Júlio Silva Solar explicou a respeito da criação de Chile-América na Itália. Afirmou que no início de 1974, ele, Bernardo Leighton, Esteban Tomic e José Antonio Viera-Gallo se encontraram no exílio em Roma e que, após longas deliberações, concordaram em criar um centro de documentação que editaria a revista. Revelando a razão principal para a publicação de Chile-América, Silva Solar argumentou da seguinte maneira: “Queríamos [...] revertir en un modesto nivel, la aguda beligerancia que se había

4 A análise do projeto editorial que envolveu Chile-América e o editorial Cesoc é o objetivo central da pesquisa de doutorado que estamos realizando. BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 675

producido entre la Democracia Cristiana y la Unidad Popular, lo que despejó el camino al golpe militar del 11 de setiembre de 1973”.

Essa iniciativa editorial foi resultado, portanto, de uma tentativa de aproximação entre intelectuais e políticos de parte da esquerda chilena que esteve ligada, durante o governo de Salvador Allende, à Unidade Popular, como Júlio Silva Solar e José Antonio Viera-Gallo, e setores mais progressistas da Democracia Cristã, representados por membros de relevo do partido, como Bernardo Leighton e Esteban Tomic, em especial o primeiro. As divergências, sobretudo no âmbito parlamentar/institucional, entre políticos da UP e da DC, durante o governo de Salvador Allende, foram assumidas a partir de um sentimento de culpa por não terem sido capazes de ampliar o diálogo de modo a evitar o movimento golpista e a brutal repressão perpetrada pelos militares, conjuntura de violência que os levou ao exílio e acarretou tragicamente o desaparecimento e morte de muitos chilenos membros ou simpatizantes das esquerdas ou simplesmente opositores do golpe militar.5

O fato de encontrarem-se exilados em Roma não foi um acontecimento casual. Durante boa parte da segunda metade do século XX, a Democracia Cristã italiana (DC) esteve no poder do Estado, tendo se tornado um dos principais e mais influentes partidos políticos da Itália. Especificamente nos anos de 1973 e 1974, quando os quatro integrantes da direção de Chile-América chegaram ao país europeu como exilados, encontravam-se Mariano Rumor na Presidência e Aldo Moro no Ministério de Assuntos Exteriores, duas figuras centrais de correntes mais à esquerda da DC italiana. Naquele momento, a DC italiana governava o país em uma coalização de centro-esquerda que incluía socialistas e, mais tarde, com Aldo Moro, também comunistas. Embora o governo italiano tenha sido criterioso em conceder asilo político a membros e militantes de partidos de esquerda chilenos, como afirmaram Mario Sznajder e Luís Roniger (2013, p. 214), possivelmente as lideranças da DC chilena ou de partidos oriundos de suas fileiras, como foi o MAPU e a IC, tiveram uma complacência um pouco maior por parte das autoridades italianas, em função das próximas relações que as duas formações

5 Setores mais à direita da Direção Nacional da DC, como o ex-presidente Eduardo Frei Montalva e o então presidente do partido Patrício Aylwin, chegaram a apoiar a intervenção militar e a saída de Salvador Allende da presidência, alegando ser o presidente socialista o principal responsável pela instabilidade econômica, política e social vivida pelo Chile naquele momento. Sobre as relações de aproximação e, sobretudo, de tensão e beligerância entre a UP e a DC, ver, em especial, Eugenio Ortega Frei (1992) e Alberto Aggio (2002). BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 676

políticas, a DC italiana e a chilena, tiveram desde os tempos do democrata-cristão Eduardo Frei Montalva na presidência do Chile (1964-1970).6

A aproximação política entre esquerda e democrata-cristãos de centro-esquerda no combate à ditadura foi evidenciada no primeiro número da revista Chile-América. A dimensão transnacional dos contatos estabelecidos a partir do exílio e da revista também podem ser percebidos nos textos iniciais veiculados pelo impresso. Logo na primeira página, foi publicada uma declaração assinada por Bernardo Leighton e Rafael Augustín Gumucio, ambos oriundos da Falange Nacional e fundadores, junto a nomes como Eduardo Frei Montalva, Radomiro Tomic, Manuel Antonio Garretón e Ignacio Palma, da Democracia Cristiana em 1957. Leighton destacou-se como um democrata-cristão de “avanzadas ideas sociales”. Augustín Gumucio, assim como Júlio Silva Solar e Jacques Chonchol, pertenceu à corrente mais progressista da DC que se desmembrou, formando o MAPU, em 1969. Em 1971, descontentes com a linha marxista-leninista adotada por esse partido, os três fundaram a já mencionada Izquierda Cristiana, partido que aderiu também à UP. A referida declaração assinada por Leighton e Augustín Gumucio denominou- se A los cristianos de avanzada de Chile y Latinoamérica, e nela revelou-se a intenção de ambos de levar adiante um pensamento favorável à convivência democrática, aos movimentos dos trabalhadores e às lutas anticapitalistas e anti-imperialistas do continente americano. Os dois condenaram a ilegitimidade da Junta Militar instalada no Chile, “su orientación económica y social injusta y su actuación fascista y reaccionaria”. Trataram os acontecimentos políticos no Chile como um grave retrocesso, e destacaram como tarefa central “la necesidad de concertar, entre los grupos de inspiración cristiana y las formaciones políticas de otras inspiraciones – incluída la marxista – fuertes coordinaciones humanistas y continentales, que aseguren a todos la plena expresión de sus energías creadoras” (LEIGHTON; AUGUSTÍN GUMUCIO, 1974, p. 2-3).

Após esse texto, foram publicados os propósitos de fundação de Chile-América. De maneira central, a revista se prestou a ser uma tribuna de forças democráticas e progressistas que se dispunham à “defensa de los derechos humanos, del nivel de vida de los trabajadores, de la independencia nacional y de las libertades públicas”. No texto

6 Segundo os dois autores, um informe da OEA de outubro de 1974 indicou que a Itália recebeu 228 pessoas vindas do Chile (chilenos e estrangeiros) desde o golpe até meados de 1974, quantidade bem inferior quando comparada a países como França, México e Suécia. Sobre a relação entre a DC chilena e a italiana, ver Raffaele Nocera (2015). BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 677

de fundação, ainda se lê que “Chile-América quiere hacer llegar esta voz unitaria al mayor número de personas, dentro y fuera de Chile, a fin de que no se adormezca la conciencia democrática” (EDITORIAL, 1974, p. 3-4). Em seu número 3, novamente a revista expôs seus propósitos, reforçando que o Comité Editor, formado por dois ex-integrantes da UP e dois democrata-cristãos que condenaram desde o primeiro momento o golpe militar contra Salvador Allende, pretendia esforçar-se na grande missão de resgatar o Chile da ditadura (COMITÉ EDITOR, 1974, p. 3). Mostraram-se claras, portanto, as mensagens de denúncia e resistência política que eles objetivavam passar. Também foi explicitado o público mais amplo que pretendiam alcançar, de chilenos em seu país e no exílio, bem como a comunidade internacional, sobretudo os meios políticos e culturais influentes nos quais as suas ideias pudessem ecoar e ter resultados efetivos no que diz respeito à denúncia à violência do Estado chileno.

Buscando, portanto, ater-se a uma perspectiva transnacional de constituição de redes políticas e intelectuais no exílio, forjadas com base na resistência ao autoritarismo da Junta Militar, Chile-América publicou, em sua segunda edição, uma resolução da Unión Europea Demócrata Cristiana (UEDC) sobre a situação política no país latino-americano, concebida em sessão celebrada em Bonn, na República Federal Alemã, em setembro de 1974. Na resolução, aprovada por unanimidade pelos participantes do encontro, os partidos democrata-cristãos europeus condenaram peremptoriamente a violência política no Chile e a violação dos direitos humanos praticada sistematicamente pela ditadura, apoiando, em contrapartida, a atitude de resistência dos democrata-cristãos chilenos. Defenderam, ainda, que se restabelecesse no país latino-americano um quadro de pluralismo político, de liberdade, de democracia, de progresso social e de justiça para a população chilena (UNIÓN EUROPEA DEMÓCRATA CRISTIANA, 1974, p. 20).

Outra resolução internacional importante de mesmo teor foi comentada pelos editores de Chile-América no número seguinte. Tratou-se da posição oficial das Nações Unidas, na qual foi explicitada a mais profunda preocupação de seus representantes em relação às contínuas evidências de violação aos direitos humanos no Chile, solicitando ao governo da Junta Militar a libertação dos prisioneiros políticos e a abolição de qualquer forma de tratamento desumano, como a tortura (CHILE-AMÉRICA, 1974, p. 18). Similar a esta, outra resolução das Nações Unidas, datada de fevereiro de 1975, foi publicada integralmente na seção Derechos Humanos do número 5 de Chile-América, bem como o Informe Preliminar BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 678

de la Comisión de la Organización Internacional del Trabajo (OIT), com sede em Genebra, na Suíça. Esses organismos internacionais denunciaram o agravamento das condições de pobreza e a degradação dos direitos dos trabalhadores chilenos, assim como a utilização sistemática da violência política no Chile por parte do Estado, o que já havia sido comentado de modo preliminar no editorial dessa quinta edição da revista (EDITORIAL, 1975, p. 7).

Chile-América publicou ainda, na edição dupla 6 e 7 de abril de 1975, uma convocatória emitida de Buenos Aires por organizações de jovens cristãos de esquerda da Argentina, Uruguai e Chile, amparada nas declarações de Bernardo Leighton e Rafael Augustín Gumucio, as quais já mencionamos e que foram publicadas na primeira edição da revista como texto fundacional. Os signatários do documento, nomeado A los jóvenes cristianos de avanzada de Latinoamérica, criticaram o imperialismo estadunidense, defenderam os direitos humanos e a restauração da democracia no Chile e nos demais países latino-americanos afetados por sangrentas “ditaduras gorilas” e reconheceram a atuação humanitária da Igreja Católica chilena, liderada pelo arcebispo metropolitano de Santiago de Chile, cardeal Raúl Silva Henríquez. O documento foi assinado pelas seguintes organizações políticas, demonstrando uma conexão transnacional de formações similares: Juventud Demócrata Cristiana del Uruguay, Juventud Revolucionária Cristiana de la Argentina, Movimiento Argentino de Cristianos por la Liberación e Izquierda Cristiana Chilena (1975, p. 37-38). Como se observa na nota e em muitos textos veiculados em Chile-América, a IC e a DC chilenas parecem ter sido os partidos que, através das posições dos editores da revista e da seleção de publicações que eles fizeram, exerceram maior influência em suas páginas.

Desde seus primeiros números, Chile-América priorizou textos teóricos ou de denúncia à violação dos direitos humanos no Chile após 1973. A partir da edição de número 3, a revista publicou a mencionada seção Derechos Humanos, presente em praticamente todas as edições até a final, de número 89. As seçõesAnálisis e Comentarios foram igualmente importantes, dedicadas a reunir análises políticas de caráter estrutural/ conjuntural antes e, especialmente, depois do golpe, bem como as críticas às políticas e às práticas repressivas implementadas pela ditadura de Augusto Pinochet.

A revista deu espaço a intelectuais e dirigentes políticos diversos (dentro do pensamento político de esquerda ou centro-esquerda), como Carlos Altamirano, Clodomiro BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 679

Almeyda, Jorge Arrate e Pedro Vuskovic´ Bravo, do Partido Socialista; Luís Corvalán e Orlando Millas, do Partido Comunista; Luís Maira, um dos fundadores da Izquierda Cristiana; Radomiro Tomic e Gabriel Valdés Subercaseaux, importantes dirigentes da DC e dois dos principais críticos do apoio aos militares dos setores majoritários do partido no final do governo Allende e nos momentos iniciais da ditadura. A seção Tribuna Abierta, por exemplo, foi bastante receptiva às perspectivas teóricas de esquerda e às ideias político-partidárias, por vezes em formato de entrevistas.

Foram muitos os artigos dos membros do Comité Editor. Um dos críticos mais veementes da ditadura e da posição inicial de apoio da ala à direita da DC chilena aos militares golpistas, além do principal articulador de denúncias transmitidas aos organismos internacionais a respeito do que se passava no Chile, Bernardo Leighton contribuiu ativamente com a revista até sofrer um atentado, juntamente com sua esposa, Anita Fresno, no dia 6 de outubro de 1975. Nos marcos da Operação Condor, ambos foram alvejados por disparos com arma de fogo de neofascistas que quase lhes custaram a vida, ficando gravemente feridos. Fresno perdeu os movimentos e Leighton teve a fala e a memória comprometidas, tendo que se afastar da vida pública em função da fragilidade de sua saúde.7 Após esse grave incidente, Júlio Silva Solar parece ter se destacado no núcleo diretivo da revista. Foi dele uma profunda reflexão sobre a trajetória da DC no artigo La Democracia Cristiana chilena, no qual não poupou críticas ao que ele interpretou como as mudanças de direcionamento político no partido e a ausência de perspectivas revolucionárias para realização de transformações estruturais necessárias para o Chile. Silva Solar acusou a DC chilena de “favorecer el golpe fascista a fin de contener el socialismo” e lamentou que o partido tenderia muito mais ao apoio do que à ruptura com o poder burguês (1976, p. 81). Torna-se evidente, em nossa visão, que, embora Leighton também fosse um radical opositor dos rumos tomados pela DC durante o governo Allende e seu consequente apoio à ruptura democrática pelos militares, seus argumentos não apontaram para uma linguagem que julgamos tributária do marxismo, atrelada a uma formação cristã, como foi o caso de Júlio Silva Solar e do partido ao qual pertencia, a IC. Ainda que de maneira preliminar em nossa análise, esse fator demonstra certa diferença de visões políticas em Chile-América, não obstante seus editores e principais

7 A edição dupla de número 12 e 13, assim como a de número 14 e 15 de Chile-América foram dedicadas a Bernardo Leighton e à Anita Fresno, com uma série de textos em sua homenagem e relatando o atentado e as condições de saúde de ambos. BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 680

colaboradores compartilhassem os principais argumentos apresentados que deram razão e conferiram coesão ao projeto editorial da revista.

Foi muito frequente também no impresso a veiculação de textos de personagens insignes da Igreja Católica latino-americana. O maior destaque foi dado ao cardeal chileno Raúl Silva Henríquez, que seguidamente tinha suas ações e seus documentos críticos à ditadura e em prol dos direitos humanos noticiados e/ou publicados na revista. O arcebispo emérito de Olinda e Recife, o brasileiro Dom Hélder Câmara, notável defensor dos direitos humanos e da Teologia da Libertação, teve, por exemplo, uma mensagem de apreço e respeito à trajetória política de Salvador Allende publicada na edição de número 3. Assim se referiu o arcebispo brasileiro sobre o ex-presidente socialista chileno: “Un día se reconocerá la sinceridad [...] de este hombre que, llegando democráticamente al poder, ha annunciado de modo claro [...] un socialismo humano, imagen de las necesidades y aspiraciones de su pueblo” (CÂMARA, 1974, p. 9).

Percebemos, portanto, que parte dos textos sobre os quais nos debruçamos até o momento consistiu em análises ou comentários dos editores de Chile-América a respeito da atuação, durante a ditadura chilena, da Igreja Católica e de organizações internacionais vinculadas aos direitos humanos ou a partidos como a DC. Outras publicações se preocuparam em descrever e refletir sobre a trajetória da DC chilena e as posições, muitas vezes conflitantes, de suas lideranças a respeito do governo da Junta liderada por Augusto Pinochet. Na maior parte das vezes, verificamos na revista que seus editores cumpriram claramente a função de mediação ao selecionar, publicar (parcial ou integralmente) e comentar as notas e os documentos oficiais de denúncia dos organismos internacionais. O trabalho de mediação cultural por parte do núcleo diretivo da revista se exerceu ao dar a conhecer no exterior a posição crítica das autoridades intelectuais, religiosas e políticas do Chile sobre a ditadura e seu aparato repressivo e, no sentido inverso, ao fazer entrar no país a posição de organizações políticas e de direitos humanos de caráter transnacional, de maneira a pressionar a ditadura. Quanto ao papel dos editores, portanto, devemos observar que eles atuaram decisivamente na mediação cultural, concebendo, como refletiu Roger Chartier acerca do exercício da função editorial, “fórmulas capazes de associar repertório textual e capacidade produtiva” (CHARTIER, 2002, p. 75-76). Para o nosso caso, podemos pensar que a prática editorial por meio da revista teria contribuído para o crescimento BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 681

nacional e internacional de espaços públicos de oposição à ditadura chilena, em uma tentativa inicial de restabelecimento da democracia.

Como afirmamos algumas vezes neste texto, embora com pesquisa e análise ainda preliminares, carecendo, portanto, de mais dados que se agreguem ao pensamento proposto, Chile-América possibilitou a formação de uma rede de intelectuais, religiosos, advogados e políticos, centrada em seu núcleo diretivo, que se identificava com as visões de mundo de esquerda e centro-esquerda de base socialista, humanista e cristã, atuando combativamente contra a ditadura militar e seu aparato repressivo. Dessa forma, além de mediadores culturais, a noção de engajamento8 nos parece também apropriada para pensarmos a respeito dos atores que estiveram envolvidos no exílio com as diretrizes político-editoriais de Chile-América. Com trajetórias marcadamente políticas, condição que se refletiu nas discussões travadas na revista, concluímos de maneira a reforçar nossa questão principal no texto que consistiu em apontar para as atuações de mediação e criação cultural/intelectual de Leighton, Tomic, Viera-Gallo e Silva Solar, por terem sido sujeitos que coordenaram um dos mais importantes impressos de debate e circulação de ideias do exílio chileno.

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS

Documentais

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COMITÉ EDITOR. Chile-América, Roma, n. 3, p. 3, noviembre-diciembre de 1974.

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EDITORIAL. Posición y propósitos. Chile-América, Roma, n. 1, p. 3-4, setiembre de 1974.

8 Jean-François Sirinelli (2003) concebeu duas acepções de natureza sociocultural para o termo intelectual, sendo uma mais extensa, marcada pela noção de mediador cultural, abrangendo escritores, jornalistas, professores secundários, eruditos etc., da qual compartilham Angela de Castro Gomes e Patrícia Hansen, e outra mais restrita, amparada na noção de engajamento na vida social, de compromisso político com causas específicas. BREVES APONTAMENTOS SOBRE MEDIAÇÃO INTELECTUAL E POLÍTICA NA REVISTA CHILE-AMÉRICA RAPHAEL COELHO NETO 682

IZQUIERDA CRISTIANA CHILENA et al. A los jóvenes cristianos de avanzada de Latinoamérica. Chile-América, Roma, n. 6-7, p. 37-38, abril de 1975.

LEIGHTON, Bernardo; AUGUSTÍN GUMUCIO, Rafael. A los cristianos de avanzada de Chile y Latinoamerica. Chile-América, Roma, n. 1, p. 2-3, setiembre de 1974.

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UNIÓN EUROPEA DEMÓCRATA CRISTIANA. La Unión Europea Demócrata Cristiana condena la violación a los derechos humanos en Chile. Chile-América, Roma, n. 2, p. 20, octubre de 1974.

Referência bibliográfica

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CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

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NOCERA, Raffaele. Acuerdos y desacuerdos. La DC italiana y el PDC chileno: 1962- 1973. Santiago de Chile: Fondo de Cultura Económica, 2015.

ORTEGA FREI, Eugenio. Historia de una alianza política: el Partido Socialista de Chile y el Partido Demócrata Cristiano (1973-1988). Santiago: Cesoc, 1992.

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SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 231-269.

SZNAJDER, Mario; RONIGER, Luís. La política del destierro y el exilio en América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 2013.

Páginas da Internet:

http://www.cesoc.cl/nuestra-historia/. 683

Uma leitura do peronismo em Punto de Vista (1978-2008)

RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN Doutor em História Social (USP). Professor Adjunto de História da América na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). E-mail: [email protected]

Revista publicada entre 1978 e 2008 na Argentina, Punto de Vista1 foi um periódico diversificado e complexo. Uma das mais importantes revistas culturais da Argentina no século XX e uma das mais significativas publicações latino-americanas desse tipo na segunda metade do século passado, a revista desenvolveu, durante a sua circulação, um projeto de crítica política da cultura atento à crítica cultural e literária, à produção ensaística e em periódicos, aos saberes e aos debates específicos como os da Psicologia/ Psicanálise e da Arquitetura e aos outros objetos da cultura como as artes plásticas, o cinema, a fotografia, a música, os meios de comunicação e a indústria cultural.2 A crítica desenvolvida pela publicação não se esgotou, contudo, nas avaliações acerca desses objetos sumariamente indicados. Em termos mais precisos, houve outros eixos de atuação do periódico criado em 1978 que merecem destaque e adequada avaliação.

Enquanto resultado de um coletivo de intelectuais reunido nos anos 1970, Punto de Vista foi uma publicação marcada, desde o início, pela preocupação em avaliar e problematizar a atuação em sociedade de indivíduos e de grupos voltados à produção de interpretações em diversas áreas do conhecimento e pela atenção aos sujeitos envolvidos com a crítica ao

1 Optou-se por grafar os títulos dos periódicos em negrito, para diferenciá-los dos títulos dos livros.

2 Uma interpretação do projeto de crítica política da cultura desenvolvido em Punto de Vista bem como de outros aspectos da publicação foi apresentada em Sebrian (2016). UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 684

status quo e com a participação política em sentido mais estrito, aquela efetivada nas ações públicas de intervenção em debates e em causas relevantes. Nesse sentido, não escaparam à revista, como objetos, os intelectuais e as culturas políticas3, especialmente os da Argentina e em alguma medida os da América Latina e de outras regiões.

No que diz respeito especificamente ao peronismo, muito se escreveu, na Argentina e em outros lugares, sobre o tema, que, segundo Beatriz Sarlo, entre 1943 e 1973, não deixou em momento algum de ocupar posição central nos debates, “como o enigma a resolver da política argentina; ou o inimigo a liquidar; ou o aliado que se deve conquistar; ou a ideologia da qual se deve libertar as massas; ou a [ideologia] que se deve absorver e transformar para se aproximar delas [massas].” (SARLO, 2007, p. 16, tradução nossa) Essa centralidade foi transformada nos setenta, oitenta e noventa, mas não desapareceu completamente. Não há a intenção de oferecer, neste texto, uma discussão historiográfica a respeito; simplesmente se intentará indicar, brevemente, de que maneira Punto de Vista, uma publicação formada e dirigida por intelectuais críticos ao peronismo, construiu durante os seus trinta anos de circulação uma crítica específica à cultura política peronista. Nesse sentido, as páginas a seguir trarão reflexões circunscritas, mesmo porque houve revistas peronistas que debateram, desde pelo menos os anos sessenta, as suas leituras dos processos históricos e que discutiram diretamente com Punto de Vista desde a década de 1980, em certas ocasiões.

De qualquer forma, importa destacar provisoriamente que a publicação se ocupou diretamente do peronismo em pelo menos 30 textos, incluindo editoriais. O periódico parece ter mantido, em relação ao peronismo e mais especificamente frente às suas manifestações políticas e da cultura intelectual, o que Carlos Altamirano chamou, em seu livro Peronismo y cultura de izquierda (2011), de “situação revisionista”, ainda que os

3 Cabe esclarecer que se concorda neste estudo com a definição de cultura política oferecida pelo historiador francês Serge Berstein no ensaio “Culturas políticas e historiografia”: “Os historiadores entendem por cultura política um grupo de representações, portadoras de normas e valores, que constituem a identidade das grandes famílias políticas e que vão muito além da noção reducionista de partido político. Pode-se concebê-la como uma visão global do mundo e de sua evolução, do lugar que aí ocupa o homem e, também, da própria natureza dos problemas relativos ao poder, visão que é partilhada por um grupo importante da sociedade num dado país e num dado momento de sua história. Jean- François Sirinelli (1992) propôs considerá-la ‘uma espécie de código e (...) um conjunto de referências, formalizados no seio de um partido ou mais largamente difundidos no seio de uma família ou de uma tradição política’.” (BERSTEIN, 2009, p. 31) Ou seja, neste estudo, quando o peronismo, as esquerdas e a democracia argentinos forem identificados como culturas políticas, o serão em concordância com a definição conceitual aqui reproduzida, mesmo que o próprio Berstein advirta para a eventual necessidade de adequar os fundamentos da definição aos fenômenos analisados, o que, evidentemente, se pretende realizar quando necessário. UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 685

propósitos da crítica não fossem os mesmos daquela realizada pela nova esquerda nos anos 1960. Afinal, dos anos 1970 em diante o “fato peronista” também não foi mais o mesmo, e a revista acompanhou as alterações na cultura política e em suas expressões, principalmente a partir da eleição de Menem, em 1989, bem como no kirchnerismo. Cabe aqui ressaltar que Punto de Vista tratou dos temas/objetos escolhidos para discussão neste texto prioritariamente a partir de preocupações da cultura intelectual e não com atenção à militância ou às memórias individuais e coletivas. Portanto, há um distanciamento específico e um deslocamento de perspectiva em relação a outras revistas argentinas.

Antes de prosseguir, vale mais um destaque. Os editoriais e textos coletivos (não tão abundantes em Punto de Vista quando se compara a revista com outras de perfil parecido ou publicadas com relevância na Argentina e na América Latina) foram destinados de modo expressivo às discussões sobre intelectuais, esquerda e peronismo. Conforme a interpretação que aqui se propõe, tal aspecto assinala uma particularidade do projeto da publicação: nos temas e objetos como esses, “colados” à temporalidade curta, ao presente, aos desdobramentos das polêmicas no cotidiano e nas experiências sociais, políticas, econômicas e culturais (mais distantes do universo da cultura letrada e intelectual), a revista optou diversas vezes por debater seus pontos de vista nos editoriais e nas manifestações coletivas breves, nos textos de síntese e nos manifestos. Em suma, textos sem a possibilidade de concentrar meditações mais detidas, mas, por sua vez, dotados de sintaxe propositalmente contundente e impactante que os artigos e os ensaios mais aprofundados não apresentavam.

Foram veiculados em Punto de Vista aproximadamente 40 editoriais e outros tipos de textos coletivos elaborados pelo Conselho de Direção ou por alguns de seus membros – os editoriais, especificamente, foram 14, com características e objetivos variados, mas com relevância nas edições e com importante ênfase nas discussões políticas.4 Para uma revista que circulou durante trinta anos, o número é pequeno; o uso desse tipo de expediente editorial, contudo, se deu com a finalidade de destacar proposições relevantes para o projeto de crítica do periódico ou de comentar transformações significativas na sociedade argentina. Portanto, ainda que em quantidade restrita, são textos indispensáveis para a compreensão de algumas avaliações e interpretações.

4 Houve, é claro, a publicação de outros textos de autoria coletiva não elaborados pelo Conselho, como manifestos, além de artigos e de debates. UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 686

Punto de Vista se posicionou indiretamente em relação ao peronismo no que diz respeito a certa tradição de crítica da cultura a ele filiada. A revista dialogou com intelectuais, grupos e revistas peronistas alinhados à esquerda desde os anos 1980 (as relações do peronismo com a esquerda inclusive se tornaram um dos objetos de Carlos Altamirano). Contudo, se o peronismo é uma cultura política plural e, nesse sentido, um objeto complexo, a abordagem a respeito do tratamento conferido pelo periódico ao tema também precisa necessariamente abarcar essa complexidade.

Pretende-se, pois, evidenciar a leitura que a revista elaborou sobre o peronismo de um ponto de vista mais especificamente político, procurando demonstrar como é possível notar nessa leitura a prioridade atribuída a dois eixos de articulação: o primeiro deles é composto pelos debates acerca do peronismo e pelas questões eleitorais e o segundo é estruturado pela problematização das relações entre o peronismo e a esquerda. Compreende-se que não houve na revista um projeto de releitura crítica profunda do peronismo como se fez na historiografia nos anos 1980 e 1990, conforme mostrou Marisa Montrucchio (2001). Punto de Vista reconheceu, entretanto, a complexidade da cultura política peronista, pois a publicação dialogou com grupos peronistas nas décadas de oitenta e de noventa, de maneira mais próxima ou mais distante. Parece cabível afirmar, portanto, que a revista se posicionou a partir de uma “situação revisionista”, para usar a expressão de Altamirano.

Desde os primeiros textos dedicados à temática publicados em Punto de Vista, no início do processo de redemocratização, o peronismo foi caracterizado como uma cultura política que não havia conseguido se renovar ou, ao menos, parecer renovada para o eleitorado argentino em 1983, como o lograra o radicalismo. A esquerda e o peronismo, aliás, foram lidos como culturas políticas que precisavam se submeter à autocrítica, ainda que isso seja dito de forma explícita apenas em relação às esquerdas partidárias. Àquela altura, o peronismo ainda estava demasiado vinculado ao seu passado anterior à ditadura e Punto de Vista não enxergava outro caminho a não ser se distanciar da tradição peronista para reformar institucionalmente a sociedade, construir novos sujeitos e resolver as tensões entre justiça social e participação democrática sem dogmatismos, populismos ou controle dos setores populares.

A derrota peronista nas urnas, aliás, provocou em Punto de Vista nos anos subsequentes um movimento de diminuição da atenção às transformações em curso UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 687

no interior da cultura política peronista e do Partido Justicialista. Pouco se mencionou o peronismo diretamente nas páginas da revista a partir de 1984, apesar de o grupo da revista dirigida por Sarlo ter dialogado com setores críticos do peronismo nucleados na revista Unidos. Setores com os quais os intelectuais que compunham o coletivo intelectual de Punto de Vista haviam debatido menos explicitamente quando alguns peronistas faziam parte do grupo exilado responsável pela revista Controversia, no México. Por conta disso, a despeito de menções terem sido feitas no número 29 (de abril de 1987), quando Altamirano resenhou o importante livro Perón o muerte. Los fundamentos discursivos del fenómeno peronista, de Silvia Sigal e de Eliseo Verón, e Luís Alberto Quevedo resenhou El posperonismo, livro de Álvaro Abós, manteve-se a abordagem restritamente política do peronismo nos momentos eleitorais, o que voltou a ocorrer somente no número 34 (de julho-setembro de 1989).

Nesse número de 1989, o objetivo de Punto de Vista foi discutir, em um editorial, a eleição de Carlos Menem. Pode-se dizer que foi o primeiro momento no qual a revista decidiu problematizar efetivamente, em termos políticos, o peronismo e, nesse caso, tratava-se de avaliar um peronismo “em processo”, em formação, ou seja, uma expectativa de governo apenas delineada em suas medidas iniciais (Menem tomou posse antecipadamente em julho de 1989, após a renúncia de Alfonsín). No editorial, importante ademais em virtude de suas afirmações a respeito dos intelectuais eda cultura, a revista expressou seu receio com a eleição de um representante do peronismo distante daqueles setores com quais debateu nos anos anteriores e também, como era costumeiro nos editoriais até aquele momento, apresentou considerações breves sobre aquela circunstância de crise causada pelo fim do governo de Alfonsín.

Concentrado inicialmente nos encaminhamentos econômicos do novo governo, o texto do editorial depois se volta para outra polêmica relevante da ascensão de Menem, a questão dos direitos humanos e dos juízos aos militares, um dos motivos da crise do governo de Alfonsín e que representava as memórias em disputa na sociedade argentina da época e os esforços de alguns grupos para silenciar o “passado que não passa”, como indicaram Lvovich e Bisquert (2008). Por fim, no último trecho do editorial, os argumentos são orientados mais efetivamente para a discussão de como o governo de Menem e o próprio presidente evidenciariam mudanças na cultura política peronista. UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 688

É perceptível como o Conselho de Direção resolveu publicar o editorial “no calor da hora” para demarcar a sua posição diante de um governo cujas medidas iniciais sinalizavam para caminhos muito distantes daqueles considerados adequados pelos membros da revista. Para um coletivo intelectual que naqueles anos discutia modos de conciliar socialismo e democracia, um novo governo disposto a adotar tantas e tão rápidas medidas que causariam retrocessos sociais, políticos, econômicos e culturais precisava ser enfrentado por intelectuais que dispusessem de “instrumentos independentes”, tais como, evidentemente, a própria revista se considerava. O radicalismo não mais oferecia esses espaços e a esquerda, nesse sentido, precisa se reorganizar e buscar ser a alternativa política e cultural ao menemismo, lido, cabe destacar, como “iniciador de uma proposta original de direita populista”, “lugar de síntese dos temas ideológicos da direita com as formas de interpelação política que o fizeram o escolhido dos pobres nas últimas eleições.” (Conselho de Direção, “Editorial”, Punto de Vista, n. 34, jul.-set. 1989, p. 1) O movimento da renovação peronista, do qual participou o grupo de Unidos e que teve seu auge em meados da década anterior (ALTAMIRANO, 2004), perdia espaço no interior do Partido Justicialista, definitivamente, para uma tendência à direita que havia chegado ao poder.

Enquanto no editorial do número 34 se procurou emitir considerações a respeito de medidas então muito recentes, em um artigo publicado no número 39 (de dezembro de 1990), simplesmente intitulado “Menem”, Beatriz Sarlo avaliou retrospectivamente as consequências daquelas ações e ofereceu uma interpretação acerca do projeto político do então presidente argentino e de seu perfil particular no interior da cultura política peronista. No texto, Sarlo se preocupa, pois, em definir as particularidades e, ao mesmo tempo, em assinalar as semelhanças do projeto de Menem em relação às tradições peronistas históricas. Menem capitaneava um projeto que pretendia criar, naqueles anos, uma Nova Argentina, e desenvolvia um peronismo tão particularizado que às vezes parecia ter dissolvido a cultura política histórica em seu interior.

Evidentemente, como parte de um grupo de intelectuais que havia dialogado com o movimento de renovação peronista derrotado por Menem dentro do Partido Justicialista nos anos 1980 e que priorizava a interpretação histórica dos objetos da política, Sarlo – ela mesma uma militante peronista na juventude, como explicou em entrevistas – não poderia considerar que Menem representava todo o peronismo (daí, inclusive, a referência nominal no título do artigo). Ele representava o novo, mesmo sem definir com clareza o UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 689

que isso significava, a não ser enquanto um movimento de alteração da identidade política do peronismo, a ponto de se preferir tratar a plataforma do presidente por um conceito associado ao seu nome. Por conta disso, o artigo prossegue com o arrolamento de uma série de especificidades do pensamento e das ações menemistas, tais como o indulto aos militares e a recusa em discuti-lo, a recorrente estratégia de apresentar as decisões como inevitáveis, a desvalorização dos poderes Legislativo e Judiciário, a interdição dos debates mais amplos com a sociedade, entre outros. Como afirma Sarlo, a autoridade de Menem se resumia a dois enunciados: “estou decidido a fazê-lo” e “a lei me autoriza.” Ou seja, nota-se o profundo desprezo pelos fundamentos da democracia e uma noção instrumental da política. Tratava-se de um presidente que quase nada conservava do peronismo histórico e que acrescentava à cultura política traços autoritários específicos.

Havia, outrossim, consequências culturais para as medidas tomadas por Menem. O presidente tinha vencido “uma batalha de ideias e de políticas” utilizando uma “máscara neutra das decisões”, de modo a provocar a aceitação da inevitabilidade das decisões. Conseguia esvaziar ideologicamente e em termos valorativos as suas ações, diminuindo ou evitando totalmente protestos contra o desprezo da administração pelas necessárias formas deliberativas da democracia, ainda mais em uma sociedade recém-saída de uma ditadura. Liquidava-se, por exemplo, muitas das conquistas da justiça social – e com ela parte da história do próprio peronismo – sob a argumentação da adoção de uma política racional e voltada à otimização do Estado. Sarlo conclui que, em termos de estilo, “as práticas e os discursos menemistas se inscrevem em uma estética do excesso e da acumulação, em que a hipérbole (que não foi alheia ao discurso político argentino) é um procedimento retórico central.” Afinal, “o discurso de Menem se torna independente da construção referencial: diz qualquer coisa que possa servir às necessidades pontuais de uma intervenção, sem preocupações evidentes com a concatenação e contradição das diferentes intervenções em um discurso global.” O perigo? O esvaziamento simbólico: “desconstruídos [...] a narrativa e os mitos do peronismo histórico, esses não foram substituídos a não ser pelo romance burguês da racionalização mercadocrática, matéria bem pobre para substituir a identidade política que o menemismo se propõe a dissolver.” (Beatriz Sarlo, “Menem”, Punto de Vista, n. 39, dez. 1990, p. 3-4, tradução nossa)

Nesse processo para delimitação da leitura do peronismo realizada pela revista, cabe destacar como a produção sobre o peronismo em Punto de Vista evidencia a presença UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 690

expressiva de Carlos Altamirano na revista até meados da década de 1990. Os textos do fundador do periódico a respeito começaram a se concentrar, diferentemente do que acontecia com os editoriais e o artigo de Sarlo, na discussão de alguns dos fundamentos da cultura política peronista e na problematização das relações anteriores e das vinculações futuras possíveis entre o peronismo e a esquerda. Apesar das diferenças nas abordagens, certamente, a causa era a mesma: o menemismo forçava os intérpretes minimamente interessados em ressaltar a complexidade identitária, cultural e política do peronismo a explicitar as características do conjunto de referências que compunham, historicamente, tal cultura política.

Um desses artigos foi publicado no número 43 (de agosto de 1992) e tinha um título sugestivo: “El peronismo verdadero”. Sem a pretensão de que o título se convertesse em um conceito com conteúdo fixo e preciso, o autor se apropriou da noção à época corrente exatamente com o intuito de discutir as possíveis alternativas, no interior do peronismo, ao menemismo. Havia grupos que reivindicavam o “peronismo verdadeiro” ou um “peronismo dissidente” e Altamirano se esforça para desvincular parcialmente os usos desses termos nos anos 1980 e 1990 dos usos entre os anos 1950 e 1970, quando o “peronismo verdadeiro” era aquele proscrito e representado pela figura de Perón. Contudo, mesmo que os “renovadores” ou “dissidentes” dos oitenta e dos noventa defendessem outros projetos, não deixavam de se filiar a essa tradição histórica que, como se disse no comentário ao artigo de Sarlo, havia sido no mínimo obliterada pela ascensão de Menem.

O “peronismo verdadeiro” combinaria, enfim, a intenção do retorno e do resgate, seria uma expectativa por algo que resultaria inatual e que não teria como se consumar naquele presente em que o peronismo empírico menemista se hegemonizava. E então Altamirano argumentou que para defender o “peronismo verdadeiro” naquele presente talvez fosse necessário não pertencer às estruturas políticas formais do peronismo; talvez fosse preciso abandoná-las, como haviam feito alguns indivíduos em meados dos anos 1980. A perspectiva de construção de uma cultura política de esquerda plural, aberta ao diálogo com tradições diversas, comparece no texto não somente para reforçar a postura não dogmática do grupo de Punto de Vista, mas para explicitar a disposição do coletivo intelectual do periódico para o diálogo com os grupos dedicados a renovar o peronismo, o que havia acontecido nos oitenta e voltaria a acontecer nos anos seguintes, com a Frente Grande, a FREPASO e a Alianza. Nessas alianças o “peronismo verdadeiro” compareceu UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 691

exatamente realizando o que Altamirano identificava ser necessário, ou seja, dispôs-se a ir além das fronteiras dentro das quais havia trabalhado historicamente.

Para melhor explicitar a sua compreensão a respeito do tema do “peronismo verdadeiro”, Altamirano realizou, em 20 de novembro de 1992, uma conferência no Club de Cultura Socialista intitulada “Peronismo y verdad”, cuja versão corrigida foi publicada no número 45 (de abril de 1993) da revista. Logo no início de sua exposição o autor esclareceu como o seu artigo do número 43 havia sido uma exploração informal da questão a partir dos usos correntes entre os peronistas da expressão “peronismo verdadeiro”. Destacou que seu propósito não tinha sido definir como ou o que seria “de verdade o peronismo”, mas somente divagar a respeito de “um modo de estar no peronismo e de ser peronista, modo que todos conhecemos e que, talvez, alguns de nós inclusive até praticou.” E complementou: “[...] Esse modo se caracteriza porque distingue no peronismo dois peronismos: um verdadeiro, autêntico, adequado à sua essência, e outro, de nome variável segundo as circunstâncias, que representa o desvio ou diretamente a traição dessa essência.” (tradução nossa)

O que estava em pauta para Altamirano era, como se pode notar, a necessária compreensão da historicidade da cultura política peronista, a qual, naquele momento, havia incorporado outros elementos além daqueles que a haviam tornado bastante diversa e até mesmo internamente paradoxal até os anos 1970. Além disso, evitando definir o peronismo, o autor intentava explorar, na conferência, a relação entre peronismo e verdade.

O artigo apresentou, portanto, mais argumentos para se refletir acerca da tradição peronista sem reduzi-la ao menemismo, como a crítica de esquerda à época, descontente com o governo, eventualmente o fazia. Afinal, o princípio de verdade ao qual se refere Altamirano traria, conforme uma compreensão desenvolvida durante décadas (e que ele investiga no artigo), o entendimento das diferenças entre o “peronismo verdadeiro” e as outras concepções sobre o peronismo. A partir de 1955, teria se configurado um conjunto de leituras nas quais esses problemas se inscreviam direta ou indiretamente, como em textos de Borges, de Martínez Estrada e de Ernesto Sabato ou no número de Contorno dedicado ao peronismo – o qual Altamirano define como parte da interpretação patética sobre o problema. O peronismo teria demandado a formulação de uma hermenêutica própria para a sua compreensão, por conta de sua verdade supostamente cifrada e de seus enigmas, e UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 692

as interpretações comentadas pelo autor em detalhes não teriam oferecido uma avaliação adequada desse dilema acerca da “qualidade” da verdade sobre algo em princípio profundo da sociedade argentina que o peronismo alcançaria. Para Altamirano, evidentemente nos anos noventa quase ninguém pensava que o peronismo seria capaz de evidenciar ou teria revelado a verdade da sociedade argentina, “seja de sua história, seja a de seu futuro.” E por isso era indispensável compreender que a história do peronismo era também a história das representações produzidas sobre ele. (Carlos Altamirano, “Peronismo y verdad”, Punto de Vista, n. 45, abr. 1993, p. 48, tradução nossa)

Enquanto um motivador tão poderoso para que a revista refletisse sobre o presente e o passado da cultura política peronista, Menem foi acompanhado atentamente por Punto de Vista até a sua saída da presidência, analisada no número 65 (de dezembro de 1999). Nesse número, foram assinalados, além das críticas a Menem, os temores a respeito do governo eleito em 1999. Tais temores se converteram, nos anos seguintes, em uma crise de dimensões inimagináveis. Isso, de qualquer maneira, não apagou o forte antimenemismo presente nas eleições de 1999 nem fez com que o peronismo fosse visto novamente como a salvação do país diante do agravamento da crise em 2001. Entretanto, após um período de fragilização intensa das instituições democráticas no ano de 2002 em que houve, também e de forma surpreendente, uma gestão inesperadamente exitosa (sobretudo em termos de recuperação econômica) de Eduardo Duhalde, alguns setores do Partido Justicialista, conforme explicou Marcos Novaro, conseguiram se rearticular e oferecer a candidatura de Néstor Kirchner como possibilidade em 2003, em um cenário no qual o partido não reconheceu oficialmente nenhuma das três candidaturas lançadas em suas disputas internas (a de Menem, a de Kirchner – apoiada por Duhalde – e a de Rodríguez Saá) e transferiu a disputa para as eleições gerais, logrando paradoxalmente ampliar a sua representatividade eleitoral e decompor um sistema de partidos então muito frágil. (NOVARO, 2011, p. 288-291)

Ou seja, quando o peronismo parecia novamente esquecido em Punto de Vista, que havia se voltado desde 2001 à problematização da crise argentina por vias diversas, ele forçosamente reapareceu na revista graças às discussões eleitorais, mais especificamente com as polêmicas político-partidárias de 2002 e a vitória de Néstor Kirchner em 2003. Tratava-se novamente de problematizar o que permitiu uma nova vitória do peronismo mesmo tão enfraquecido após a Nova Argentina menemista. Isso demandava, uma vez UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 693

mais, que a revista se esforçasse para avaliar quais as continuidades e as rupturas entre as propostas defendidas por Kirchner e os fundamentos históricos da cultura política peronista.

O influxo inicial de interpretação a respeito está no artigo “Doble óptica. Un intento (más) de observar el peronismo”, publicado por Beatriz Sarlo no número 80 (de dezembro de 2004). Sem poder contar com a presença de Carlos Altamirano na revista desde o número anterior, a diretora da publicação reocupou a sua posição como intérprete da temática no periódico e isso resultou em um processo no qual ela viria a se tornar uma das mais contumazes críticas daquilo que se tornou o kirchnerismo nos anos seguintes, como mostraram o seu livro La audacia y el cálculo, publicado em 2011, e a sua atuação como colunista de periódicos diversos e como comentarista política na Argentina.

Sarlo, no mencionado artigo de 2004, relembrou como desde a eleição de Alfonsín, em 1983, muitos acreditavam que o peronismo, enquanto “algo que havia dado forma à política argentina”, teria começado a se dissolver. Alfonsín e inúmeras outras forças políticas aliadas, para a autora, enfrentaram dificuldades durante o seu governo – a despeito da redescoberta da democracia pela população, das discussões sobre memória e direitos humanos e de tantas outras conquistas – exatamente porque imaginaram que a vitória eleitoral sobre o peronismo tinha começado a conferir novos fundamentos para a política argentina. Apesar dos sucessos do projeto de refundação da Argentina, sintonizado, como indica Sarlo, tanto às especificidades de uma transição da ditadura à democracia quanto “aos sentimentos que acompanharam a saída dos militares”, e em que pese a acachapante popularidade de Alfonsín durante os momentos finais de sua campanha e por ocasião de sua vitória nas urnas, ignorava-se:

(...) a profundidade das transformações que a Argentina devia encarar e se desconhecia quase por completo que a saída da ditadura caminhava em paralelo à entrada, não solicitada, no mundo globalizado; desconhecia-se o estado e seus recursos; não se previa, enfim, o que se precipitaria gradativamente até meados de 1989. O que se sabia era tudo o que se podia saber: a Argentina devia aproveitar uma oportunidade política sem igual, e o destino não iria ser tão cruel como para acompanhar essa oportunidade com uma crise econômica. (Beatriz Sarlo, “Doble óptica. Un intento (más) de observar el peronismo”, Punto de Vista, n. 80, dez. 2004, p. 2, tradução nossa)

Aquele momento, demonstrou Sarlo, foi de virada não somente para o radicalismo, UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 694

mas também para as fileiras peronistas, mesmo que essas tenham demorado a assimilar a derrota. Do insucesso eleitoral vieram as articulações para a renovação peronista da década de 1980 e, ao contrário da avaliação de muitos (inclusive dos vitoriosos no pleito), os anos subsequentes explicitaram, como afirma a autora, “que a centralidade do partido justicialista era um dado na política local; e deslocá-lo desse centro ou confirmá-lo ali, a mãe de todas as vitórias.” (tradução nossa) E a diretora de Punto de Vista oferece uma síntese a respeito do ocorrido com a cultura política peronista a partir de 1983:

Nos vinte anos que correm entre 1983 e 2003, o peronismo se reorganizou, regressou ao poder com Menem, provocou modificações inauditas assim como profundas e duradouras, tanto no econômico quanto na forma que foram aceitas através de uma transformação ideológica que durante a presidência de Alfonsín pareceu impossível, mudou a estrutura social argentina em um sentido catastrófico, e perdeu, pela segunda vez, eleições nacionais nas quais se impôs a Alianza com sua fórmula De la Rúa-Alvarez, esse oximoro de estilos, culturas, ideologias, que se revelaria indócil e, por último, fatal. Em dezembro de 2001, caiu o governo de Fernando de la Rúa. O peronismo voltava à cena, mas diferente de 1989 não como resultado da alternância democrática e sim como o único partido capaz de atravessar a crise política, governando-a. Dizer que o peronismo era o único partido que podia fazê-lo começou a ser um lugar comum visitado tanto por peronistas quanto por não peronistas. Uma verdade de fato, algo inscrito na ordem das coisas: o reconhecimento de uma falha na democracia argentina, causada pela imolação inevitável e banal do radicalismo; a dissolução da centro-esquerda que havia acompanhado De la Rúa; e, certamente, a habilidade do peronismo, que alguns julgam diabólica, para impedir que outros governem. Como seja, o peronismo governou com Duhalde e esse pôde ser sucedido com uma normalidade surpreendente se se recordam as condições nas quais aceitou a presidência e depois anunciou seu retiro sem ter sucessão estabelecida. Muitos pensamos, por isso, que o presidente surgido das eleições de abril de 2003 seria um governante débil. Não tivemos em conta vários fatores e um par de qualidades. (Beatriz Sarlo, “Doble óptica. Un intento (más) de observar el peronismo”, Punto de Vista, n. 80, dez. 2004, p. 2-3, tradução nossa)

Nota-se, na avaliação de Sarlo, uma espécie de confissão/autocrítica de uma série de leituras limitadas e/ou equivocadas sobre o peronismo produzidas principalmente pela esquerda argentina desde 1983 até 2003, em cuja formulação o grupo de Punto de Vista certamente colaborou. Tal apreciação culminou na identificação, pela autora, de dois elementos indispensáveis para a retomada do poder pelo peronismo em 2003: uma complexa configuração simbólica do peronismo durante o governo de Duhalde, que demandaria a observação em duas óticas, uma das contradições cotidianas e outra das resoluções mais amplas. Isso permitiu que emergissem, de um governo peronista debilitado, forças peronistas significativas, simbolicamente construídas por meio de enfretamentos encenados de paixões políticas controladas; e a manutenção UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 695

dos poderes peronistas regionalizados e vinculados a tradições políticas duradouras em diversas regiões do país, os quais conseguiram diminuir a importância dos meios de comunicação para a definição de preferências políticas e/ou utilizar os meios de maneira articulada a esses poderes.

Atribuindo ao peronismo uma dramaturgia barroca, Sarlo concluiu que esse não seria “inteiramente republicano nem por tradição política, nem por ideologia, nem por concepção do poder (...). O efeito anamórfico do peronismo requer uma correção de foco permanente.” E em mais uma síntese que parecia ecoar uma autocrítica individual e coletiva, afirmou: “Ao longo de cinquenta anos, os intelectuais sofreram, desconheceram ou celebraram a duplicidade da cena peronista em que a variação de foco não seria simplesmente um exercício intelectual, mas uma condição da percepção.” (Beatriz Sarlo, “Doble óptica. Un intento (más) de observar el peronismo”, Punto de Vista, n. 80, dez. 2004, p. 5, tradução nossa) Diante disso, para a autora, a concentração aprofundada como estratégia de crítica ao peronismo provocaria, como na observação do barroco, a sensação de que o olhar detido ao mesmo tempo impediria a percepção mais adequada.

A solução não era simples e a constatação da complexidade da cultura política peronista por Sarlo em 2004 levou a revista a se acercar novamente do tema no número 82 (de agosto de 2005), em um texto coletivo assinado por Punto de Vista – pelos Conselhos, pois – intitulado “El péndulo populista”. Pela primeira vez de forma mais evidente foram indicadas particularidades no projeto de Néstor Kirchner quando comparado à tradição da qual advinha, em uma demonstração de que até aquele momento já era possível, para o coletivo intelectual do periódico, perceber – como se havia feito com Menem anteriormente – que estava em delimitação um kirchnerismo, próximo e afastado das matrizes do peronismo histórico.

Sem dúvida alguma, o aspecto mais interessante desse texto é a identificação de coordenadas específicas no peronismo de Néstor Kirchner, que demonstram como o presidente interpretava, em suas práticas e em seus projetos e alianças, o legado peronista de maneira singular, desvinculando-se, por exemplo, do peronismo anterior à década de 1970, ou seja, distanciando-se do próprio Perón e assumindo uma postura ambígua junto aos setores populares mais pobres. UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 696

Naqueles anos (de 2005 a 2007), artigos de Sarlo na revista evidenciaram o processo de transformação do kirchnerismo em uma força política específica e potencialmente duradoura na Argentina. Tratava-se de um peronismo filiado de maneira ambígua aos anos setenta e que, por isso, ressoava mesmo entre setores da esquerda não representados em outros arranjos políticos a não ser na Frente para la Victoria (FPV), criada em 2003. As apropriações complexas das memórias dos setenta e o reavivamento dos debates e das ações governamentais referentes aos juízos dos militares e às questões do terrorismo de Estado durante o Proceso permitiam a Kirchner ampliar a sua aceitação também entre setores que haviam recusado o apoio a Menem e que tinham se decepcionado com as ações derradeiras de Alfonsín. Enfim, em um projeto claramente refundador, Kirchner conseguiu, até aquele momento – anterior à sua sucessão por sua esposa Cristina –, produzir mais uma variação da cultura política peronista que se somava às tantas outras desenvolvidas ao longo do século XX, inclusive a menemista, à qual o kirchnerismo se opunha em inúmeros aspectos. Apenas uma cultura política complexa teria conseguido eleger dois presidentes em um intervalo de vinte anos em conjunturas tão diversas e com projetos políticos tão diferenciados, mas, ao mesmo tempo, mantendo-os filiados de alguma maneira às matrizes históricas do peronismo.

Diante desse itinerário de leituras sobre o peronismo que abarcaram as discussões relativas às especificidades do menemismo e do kirchnerismo e que problematizaram as continuidades e as rupturas no interior da cultura política peronista nos anos 1980, 1990 e 2000, articuladas aos momentos de ascensão e de declínio eleitoral e político-partidário das forças peronistas, Punto de Vista se aproximava do final da primeira década do século XXI tendo oferecido uma interpretação atenta às particularidades históricas da tradição política fundada por Perón e refundada seguidas vezes nas décadas posteriores. A revista precisaria, ainda, oferecer uma avaliação retrospectiva sobre o peronismo como componente fundamental da história argentina do século XX? O coletivo intelectual compreendeu que sim e dedicou um dos artigos da série “El juicio del siglo” ao tema.

Assinado pelo historiador e cientista político Vicente Palermo, “El siglo peronista” foi publicado no número 89 (de dezembro de 2007) – o penúltimo da revista – e foi, de todos os textos dedicados ao tema veiculados no periódico, o mais propriamente historiográfico. Foi, outrossim, o que mais se concentrou em oferecer uma interpretação do “peronismo de Perón”, reservando apenas a última página para tratar, em termos muito genéricos, do UMA LEITURA DO PERONISMO EM PUNTO DE VISTA (1978-2008) RAPHAEL NUNES NICOLETTI SEBRIAN 697

período pós-1955. Não há como deixar de avaliar esse artigo, escrito de um ponto de vista diferente de todos os anteriores sobre o tema, quase como um desvio de rota vinculado estritamente ao momento de encerramento do periódico. O coletivo intelectual da revista parece ter aberto mão de tratar do tema por meio de um de seus membros – Sarlo seria a escolha mais óbvia – na série “El juicio del siglo”, talvez porque pensasse ter dito o suficiente até aquele momento, ou porque, sem Altamirano no Conselho, os diretores considerassem impossível recuperar adequadamente o projeto de intepretação da cultura política peronista que a revista havia desenvolvido. De qualquer maneira, o artigo de Palermo encerra as leituras a respeito e oferece uma reafirmação de que o peronismo era uma identidade política capaz de se modificar, transformar, atualizar e ressignificar, indicando que não havia porque acreditar em sua extinção futura, ao menos em curto prazo.

FONTES

Revistas

PUNTO DE VISTA. REVISTA DE CULTURA. Colección completa (Números 1 a 90, 1978- 2008). CD-Rom. Buenos Aires, 2009.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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NOVARO, Marcos. Historia de la Argentina: 1955-2010. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.

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SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti. Uma revista da ditadura à democracia: cultura e política em Punto de Vista (1978-2008). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2016. 699

Estratégias discursivas das vitórias eleitorais de Fox (2000) e Lula (2002)

RICARDO NEVES STREICH Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo e bolsista FAPESP (número do processo 2017/17481-2) email: [email protected]

Introdução

A presente comunicação é parte da pesquisa de doutorado provisoriamente intitulada “Estratégias de desenvolvimento em questão: o papel do Estado no Brasil e México (2000-2013)”. Esse trabalho de pesquisa é realizado no âmbito do Programa de Pós- graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo.

Um dos objetivos da pesquisa de doutoramento é tentar analisar as relações entre as decisões no processo de condução política e econômica dos governos de Brasil e México nos anos 2000. A escolha dos países se deu fundamentalmente por três razões, a saber: 1) trata-se das duas maiores economias do continente; 2) a estrutura econômica dos países é relativamente parecida, já que ambos possuem um parque industrial desenvolvido (especialmente no tocante à indústria automotiva), grandes conglomerados de comunicação, empresas petrolíferas importantes, além de serem exportadores de commodities1; 3) o histórico e grave problema de pobreza e desigualdade econômica existente nas duas nações.

1 A fim de qualificar a comparação entre o grau de complexidade atingido por economias de distintos paíseso pesquisador César A Hidalgo criou um índice denominado Índice de Complexidade Econômica (ICE). O ICE busca dar conta “da multiplicidade de conhecimento útil embutida na economia” ao analisar o grau de complexidade do leque de produtos que um país determinado é capaz de produzir (OEC, 2015). Nesse sentido, foi estabelecido um ranking pelo Observatório da Complexidade Econômica (Observatory of economic complexity - OEC em inglês) – ligado ao MIT -, no qual México e Brasil ocupam, respectivamente, as duas primeiras posições do ranking latino-americano.

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Também orientou nossa escolha o fato de que os governantes de Brasil e México, nesse período, possuírem perspectivas ideológicas bastante distintas. Vicente Fox do Partido Acción Nacional (PAN) governou o México entre 2000 e 2006. Sua vitória significou a primeira derrota do Partido Revolucionario Institucional (PRI) em 70 anos. Grosso modo, o governo panista foi marcado por um discurso que preconizava a eficiência estatal para combater a corrupção (tema central do debate eleitoral do ano 2000, como veremos a seguir). É importante frisar que no México o mandato presidencial tem duração de 6 anos e a reeleição não é permitida. Ainda assim, o Partido Acción Nacional foi capaz de eleger – ainda que sob fortes suspeitas de fraude – o sucessor de Fox, Felipe Calderón, em 2006.

Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), por sua vez, governou o Brasil por dois mandatos entre 2003 e 2010. Além disso, foi capaz de eleger sua sucessora Dilma Roussef em 2010 e 2014. Os governos do Partido dos Trabalhadores, em que pesem as particularidades de cada mandato, foram marcados por um discurso de tonalidade desenvolvimentista, segundo o qual o Estado possui um papel fundamental na indução do crescimento econômico e na redução da desigualdade social.

Contudo, é importante observar que a presente não versa sobre essa relação entre economia e política. O esforço aqui repousa sobre a parte das “estratégias” – conceito que nos é central, como indica desde já o título provisório da tese – dos governantes de Brasil e México nos anos 2000. Sendo assim, é importante assinalar que a análise dessas “estratégias discursivas” – parte integrante das “estratégias de desenvolvimento” - não se pretende exaustiva. Nesse sentido, observar semelhanças e diferenças nas campanhas eleitorais de políticos de orientações ideológicas tão distintas - especialmente no que diz respeito ao papel do Estado no processo de desenvolvimento econômico - ajuda a colocar novas luzes ao conturbado período vivido pelo continente latino-americano na transição para o século XXI.

Na democracia liberal, ao menos em tese, as eleições são momentos primordiais, durante os quais a sociedade debate distintos projetos e perspectivas para seu país. A complexidade desse processo de disputa, ainda mais quando nossa análise abrange dois países, impõe a necessidade de recortes. Por isso, para além de análise exaustiva da rotina e dos materiais de campanha, optamos por elencar alguns materiais que sintetizam as discussões presentes nas duas campanhas.

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Por fim, com intuito de prosseguir à análise, apresentaremos de maneira breve os principais dilemas político-econômicos da América Latina da virada do século XXI. Em seguida, passaremos à análise das campanhas propriamente ditas.

A virada para o século XXI na América Latina

O mundo que emergiu após a queda do Muro de Berlim (1989) se tornou cada vez mais conectado. O fenômeno vastamente descrito como “globalização” significou, em linhas gerais, uma maior integração econômica dos países e, consequentemente, uma maior mobilidade do capital financeiro e produtivo.

De modo geral, o discurso e as práticas econômicas dos anos 1990 foram marcados pela necessidade de superação da crise econômica dos anos 1980 (especialmente a inflação). Nesse sentido, formulou-se uma miríade de postulados que preconizavam algumas respostas, tais como austeridade, privatizações, desregulamentação e enxugamento do Estado. A retomada dos princípios liberalizantes do ponto de vista econômico ficou conhecida como “neoliberalismo”.

O compromisso com os indicadores de bom desempenho financeiro – especialmente a inflação – colocou duras limitações às economias latino-americanas que, muitas vezes se viram em crises (provocadas pela necessidade de “ajustes recessivos”). Evidentemente, as dinâmicas de aplicação do receituário neoliberal foram ocorrendo de maneiras particulares nos mais diferentes países (especialmente por conta das resistências). Daí, por exemplo, o fato de algumas das maiores empresas estatais do continente - como a PETROBRAS, a PEMEX e a PDVSA -, não terem sido privatizadas, muito embora tenham sofrido flexibilizações que facilitaram o vínculo com o capital estrangeiro.

Vale traçar, então, um breve histórico das crises econômicas que assolaram a América Latina nos anos 1990. Evidentemente, cada uma dessas crises tem suas razões particulares, mas não deixa de ser interessante observar que muitas dessas crises sequer tiveram origem na América Latina. Afinal, a integração econômica mundial proporcionavam a amplificação das crises, justamente por conta dos processos de desregulamentação financeira que fragilizou muitos países face a mobilidade de capitais especulativos.

Em 1994, ocorreu a chamada “crise do peso mexicano”. A desvalorização da moeda mexicana – em função da incapacidade do governo em manter o câmbio fixo

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– acarretou uma grande fuga de capitais. As dificuldades de financiamento se fizerem sentir no aumento de desemprego e diminuição do PIB. Em tempos de capitalismo cada vez mais globalizado, a desconfiança alcançou outros países latino-americanos, no que ficou conhecido como “Efeito Tequila”.

Algo muito parecido aconteceu na Ásia em 1997. O governo tailandês flexibilizou o câmbio e a grande fuga de capitais desacelerou a economia. A crise logo se espalhou pela região no que foi denominada “crise dos tigres asiáticos”. Posteriormente, em função da importância econômica dos países do sudeste asiático essa crise se tornou a primeira crise de escala global.

No ano seguinte foi a vez da Rússia. Após a desvalorização do rublo, o país decretou moratória em 1998. O roteiro já conhecido incluiu o receio da crise se espalhar pelo mundo. A solução, como em todos os casos anteriores, consistiu na intervenção do Fundo Monetário Internacional com vultosos empréstimos. É importante destacar que para obter esses empréstimos os governantes dos países afetados pelas crises cambiais e financeiras deveriam se comprometer com um austero programa econômico.

Em 1999, o mundo esperava por novas crises. O Brasil era visto potencialmente como a próximo capítulo da série de crises que afetava o mundo globalizado. Logo após a eleição, Fernando Henrique Cardoso (que havia sido reeleito em 1998) resolveu desvalorizar o real, já que o custo de manter o regime de bandas cambiais2 se mostrava insustentável. O Brasil já possuía um acordo com FMI, por conta do receio provocado pela crise russa. As medidas de austeridade tornaram os dois primeiros anos do segundo mandato de Cardoso bastante inexpressivos em termos de crescimento econômico.

No último ano do século XX, um outro tipo de crise econômica apareceu. Se as crises aconteceram em economias emergentes, a chamada “crise das pontocom” ou “bolha da internet” ocorreu no coração do sistema capitalista internacional. Além disso, não se tratava de crise derivada de questões cambiais. A euforia especulativa dos chamados “capitais abutres” criaram uma bolha no ramo das empresas de tecnologia. Desse modo, a bolsa NASDAq – onde se negociam ações de empresas do ramo tecnológico – chegou

2 O regime de bandas cambiais consiste em uma mistura do câmbio fixo e do câmbio flutuante. Nesse regime o Banco Central elege um piso e um teto para o valor do dólar e atua – comprando ou vendendo – para manter a taxa de câmbio dentro do estabelecido.

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a cair 10% no dia 14 de abril de 2000. O mercado financeiro nos Estados Unidos sofreria ainda mais um duro golpe com os ataques de 11 de setembro de 2001. Após uma semana de bolsa fechada, o índice Dow Jones caiu 7,13% no dia de sua reabertura.

Em dezembro de 2001, temos a última das grandes crises até a de 2008. “A crise argentina” também ocorreu pelas dificuldades em manter a conversibilidade do dólar. Em função da saída de capitais, o governo De la Rua impôs o “Corralito” - uma série de restrições bancárias como limitação dos saques semanais. O pagamento da dívida argentina também foi suspenso. As cenas dos protestos em que manifestantes batiam nas panelas em frente à Casa Rosada circularam o mundo. Com o lema “¡Que se vayan todos!” os argentinos derrubaram 5 presidentes em 12 dias.

Paralelamente a toda essa dinâmica de crises econômicas que atingiam o mundo em geral e a América Latina em particular, houve a discussão da criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A proposta foi lançada por Bill Clinton na Cúpula das Américas em 1994 e previa o estabelecimento de uma zona de livre comércio em todo o continente americano. Para além das dificuldades econômicas decorrentes das assimetrias dos países do continente, a proposta enfrentou resistências de movimentos sociais de diversos países até ser abandonada definitivamente na Cúpula das Américas de 2005.

Os debates sobre a ALCA ensejaram uma organização supranacional que questionava a globalização. Com o mote “Um outro mundo é possível”, participaram 15 mil ativistas da primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre no ano de 2001. Nesse espaço, manifestantes trocaram experiências, estratégias e estabeleceram redes de contato. Além disso, se configurou em espaço privilegiado de diálogo entre movimentos da sociedade civil e os partidos de esquerda que durante a primeira década do século XXI foram vencendo as eleições na América Latina.

É importante citar que, especialmente no caso latino-americano, a resistência ao neoliberalismo foi um fenômeno social que percorreu o continente durante toda a década de 1990. Durante a década emergiram manifestações de diversos tipos. Desde revoltas espontâneas como o Caracazo venezuelano em 1989, passando pela insurgência de grupos autonomistas como o Ejercito Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) no México em 1994. Também ocorreram diversas deposições de presidentes que optavam pela condução

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ortodoxa da economia como Carlos Andrés Perez na Venezuela em 1993 e também houve lutas contra privatizações como o caso da Guerra da Água na Bolívia em 2000.

Poderíamos citar inúmeras revoltas e protestos populares que questionaram os pressupostos do Consenso de Washington e seus aplicadores no continente. Contudo, por conta de limitações de espaço, basta assinalar – como fizemos anteriormente - foi justamente por conta dessa dinâmica de resistência que as medidas neoliberais foram implementadas em ritmos e graus diferentes nos países latino-americanos.

Vemos, então, que o contexto da virada para o século XXI se encontrava bastante conturbado. Havia um mal-estar nas democracias latino-americanas que suscitava desejos de transformação política e social3. Evidentemente, esses anseios se fizeram manifestar nas urnas. Foi por isso que México e Brasil, as duas maiores economias do continente, elegeram governantes de oposição nas primeiras eleições dos anos 2000. Sigamos, então, às campanhas eleitorais que no entender do eleitorado dos respectivos países foi capaz de melhor responder a essas turbulências sociais, políticas e econômicas.

As campanhas vitoriosas: o “Gobierno de Cambio” e “Um Brasil Para Todos”

Mencionamos anteriormente que Fox e Lula possuíam perspectivas bastante distintas acerca do papel do Estado no que tange ao desenvolvimento econômico. Apesar disso, é interessante notar que ambos à época das respectivas vitórias eleitorais eram os maiores partidos de oposição em seus países. A vitória da oposição deve ser compreendida nesse contexto justamente como a aspiração à mudança ou então como resposta ao mal-estar que citamos anteriormente. Nesse seção, apresentaremos brevemente os candidatos, um perfil geral de seus governos e a análise dos documentos das respectivas campanhas.

O México do ano 2000 apresentava uma situação econômica peculiar. Após a grave crise de meados dos 1990, a integração econômica com o gigante do norte parecia

3 A expressão “mal-estar na democracia” é de Eliel Machado (2004). Escrever isso em 2018, quando a possibilidade de retrocessos autoritários estão em voga em diversos países do continente pode parecer estranho e insensato. Contudo, é importante observar que àquela altura havia um mal-estar na democracia. Hoje, com a emergência dos chamados populistas de direita, temos um mal-estar da democracia. Esse é um tema que será abordado no desenrolar da pesquisa de doutoramento.

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dar resultados. Em 1999 e 2000, os índices de crescimento econômico foram bastante satisfatórios (respectivamente, 3,7% e 7%) (FMI).

O clima de prosperidade econômica, contudo, não foi suficiente para que o PRI ganhasse a eleição. No primeiro domingo de julho de 2000, dia 2, os mexicanos elegeram Vicente Fox com 42,5% dos votos. A derrota eleitoral do PRI e a promessa de um “Gobierno de Cambio” – lema da campanha de Fox - foram comemoradas nas ruas e, assim, o presidente recém-eleito tomou posse em dezembro daquele ano contando com alto entusiasmo dos mexicanos.

Vicente Fox foi presidente da Coca-Cola na América Latina. Com ascensão meteórica na política, venceu a primeira eleição majoritária de que participou e se tornou governador pelo estado de Guanajuato em 1995. Nesse sentido, podemos dizer que Fox é o primeiro de uma linhagem que anda bastante em voga na América Latina do pós-crise de 2008. Trata-se da figura do “gestor” que busca abordar a política a partir de parâmetros de eficiência. Por isso, o “Cambio” prometido pelo presidente panista ocorreria em função do aumento da eficiência do Estado e da eliminação da corrupção através do combate ao patrimonialismo.

Contudo, em termos políticos o governo de Fox foi marcado por diversas polêmicas e diversas suspeitas e acusações de corrupção. Como escapa aos limites desse trabalho, basta citar que o termo “Foxilandia” é de uso relativamente comum na cultura política mexicana. Além de um documentário de mesmo título, há até mesmo um verbete na Wikipédia que lista diversas polêmicas nas quais Fox estaria envolvido.

Em termos econômicos, a estreita vinculação à economia estadunidense, torna o país muito suscetível às mudanças econômicas do vizinho do norte. Por isso, os reflexos da bolha da internet e a crise de 2001 tornaram os três primeiros anos bastante difíceis (- 0,3%, em 2001; 1% em 2002 e 1,3% em 2003). A segunda metade do mandato de Fox foi mais produtiva, até mesmo porque a economia americana mostrou sinais de recuperação. Assim temos 4,1% de crescimento em 2004; 3% em 2005 e 4,8% em 20006 (FMI).

O regime de política econômica de Fox tinha como pressuposto manter o equilíbrio fiscal e o superávit primário. Assim, em 2000 a Razão Dívida Pública Bruta/PIB no México era de 41,85%, caindo para 37,75% em 2006 (FMI). As tendências nos indicadores econômicos se fizeram sentir

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no campo social, o governo panista logrou reduzir a pobreza em quase 10%, já que em 2000, a taxa de pobreza era de 41%, número que diminuiu para 31,7%, em 2006 (CEPALSTATS).

Essas opções, de certa forma, já se faziam presentes no programa eleitoral. Contudo, cremos que o documento que melhor traduz as intenções políticas de um governante no México é o “Plan Nacional de Desarrollo”. Trata-se de documento que os presidentes mexicanos necessitam apresentar ao Congresso no início de seu mandato, de modo a tornar transparentes para os cidadãos mexicanos suas propostas.

Tomemos, pois, uma citação da apresentação do “Plan Nacional de Desarrollo (2001-2006)”:

La democracia que estamos construyendo tiene como fundamento el reconocimiento de la libertad y de la dignidad humana y, como consecuencia, la aceptación del pluralismo y el respeto a las diferencias, dejar de lado la intransigencia, los monólogos, los dogmas o las verdades absolutas, y cualquier imposición que violente la conciencia individual. El Plan Nacional de Desarrollo refleja el propósito indeclinable de dar forma a una democracia moderna, en la que las decisiones se tomen con la participación colectiva de todos y en la que expresiones diversas sean incluidas. En esta nueva etapa, el ejercicio del poder público por parte del Estado deberá apegarse a la ley. Construiremos juntos una gobernabilidad democrática que tenga como origen y destino al ciudadano (PRESIDENCIA DE LA REPUBLICA DE MÉXICO, 2001).

É interessante observar a estratégia discursiva para o estabelecimento da diferenciação em relação ao período priista. Pela negativa, nota-se que o governo do PRI era a representação do atraso, afinal só agora a democracia “está sendo construída” de maneira “moderna”. O lugar do atraso também o lugar da corrupção, a qual deve ser resolvida a partir de paradigmas “modernos” como a eficiência e a transparência:

Este proceso se acompaña de nuevas formas de estructurar el gobierno. Estamos convencidos de la necesidad de replantear la estructura de la administración pública para imprimirle eficacia, acabar con el burocratismo, terminar con la corrupción y con el dispendio, y de establecer una nueva relación entre el gobierno y la sociedad, una relación cimentada en el respeto, la transparencia y la rendición de cuentas, con servidores públicos resueltos no sólo a atender a los ciudadanos, sino a trabajar con ellos. (PRESIDENCIA DE LA REPUBLICA DE MÉXICO, 2001).

Mais ao fim da apresentação do plano, uma passagem sutil e interessante demonstra a relação entre meios e fins. A construção desse “novo” México, agora transparente e moderno também significaria que:

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Desde el primer día de mi gobierno convoqué a los mexicanos a construir un nuevo México: un México competitivo y con visión global; con conciencia ambiental y oportunidades para todos. Un México con libertad y democracia; con educación y con valores. Para construir este nuevo México necesitamos poner el país al día. Al día en materia económica, en materia de desarrollo social y humano, en materia de orden y respeto, en materia de buen gobierno y finanzas públicas sanas; pero sobre todo, necesitamos poner el país al día en materia educativa. (PRESIDENCIA DE LA REPUBLICA DE MÉXICO, 2001).

Observe-se que o novo México é “competitivo” e tem visão “global”. Não é a toa que é esse o primeiro item que aparece na enumeração e que parece subordinar todos os outros. Vale lembrar que na virada do século XXI – na América Latina, em geral, e no México, em particular, - o tema da integração econômica globalizada era central. Ademais, o tema da desigualdade – o outro lado da moeda do “mal-estar” anteriormente citado – não aparece de maneira explícita. Não é ao acaso que as questões “social” e “humana” aparecem precedidas do substantivo “desenvolvimento”, o que indica uma concepção bastante alinhada às tendências liberais.

Em suma, uma citação do discurso de posse de Vicente Fox é mais clara no que diz respeito às suas concepções acerca das funções do Estado e da sua relação com a Economia:

Sostengo enfáticamente que la justicia social es parte de una economía eficiente, no su adversaria. Es hora de reconocer que ni todo puede ser resuelto por el Estado ni todo puede ser solucionado por el mercado. Dicho de otro modo: ni el Estado todo, ni el individuo solo. Es mi convicción que el voto por la democracia es inseparable del voto por la equidad social (PRESIDENCIA DE LA REPUBLICA DE MÉXICO, 2001).

A citação deixa claro que ele se outorga – através de diversas mediações – como representante da “igualdade social”. Outro ponto interessante a se observar que a justiça social é parte de uma economia eficiente. Isso significa que o Estado deve auxiliar o indivíduo nos problemas que o mercado não pode resolver. O recurso à força do Estado – que fora de contexto poderia ser vista como uma posição de centro-esquerda – pode ser compreendido como uma tentativa de dialogar com os anseios populares daquele período. Nesse sentido, um discurso de tonalidade explicitamente liberal – tendo em conta o mal-estar anteriormente citado – não seria capaz de ganhar as eleições. Contudo, como citamos acima, Fox trabalha com o pressuposto da ideia de “capital humano” e é nesse sentido que o Estado deve atuar para auxiliar os indivíduos, o que – apesar

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da roupagem de protagonismo do Estado em seu discurso - também é sinal de uma perspectiva bastante alinhada aos ditames da tradição liberal.

Em outubro de 2002, foi a vez dos brasileiros elegerem um novo presidente da república. A possibilidade de vitória eleitoral de um governo de centro-esquerda, aflorou os ânimos do mercado e, por isso, o risco-brasil e o dólar atingiram valores recordes. Nesse contexto pré-eleitoral conturbado, Lula lançou o famoso documento A Carta aos Brasileiros, no qual afirmava que seu governo não seria “de ruptura”. O documento assinado por Lula era mais um passo na estratégia de se afastar da imagem de “radical” que havia colaborado nas três derrotas eleitorais anteriores que ele sofreu.

A eleição ocorreu em dois turnos, haja visto que o vencedor não foi capaz de angariar a maioria absoluta dos votos válidos no primeiro turno (46,4%). Assim, no dia 27 de outubro de 2002, Luís Inácio Lula da Silva derrotou José Serra com 61,27% dos votos válidos. A posse presidencial, no Brasil, ocorreu em janeiro do ano subsequente à eleição presidencial. Havia muita expectativa de como seria o “Um Brasil Para Todos” – lema da campanha lulista em 2002.

O primeiro governo de Lula foi marcado pela tentativa de conciliar responsabilidade fiscal e inclusão social, bem nos marcos preconizados pelaCarta aos brasileiros. É verdade que nesse momento prevaleceu a responsabilidade fiscal, ainda mais se comparado aos governos petistas posteriores. Assim, o crescimento econômico não ocorreu a taxas vigorosas. A média do primeiro mandato de Lula foi de 3,7%, com pico de 4% em 2006 (FMI). A condução macroeconômica conservadora pode ser observada na série de superávits primários e na redução da relação entre Dívida Pública/PIB: 73,75%, em 2003, para 65,8% em 2006 (FMI). Por sua vez, o índice de pobreza – preocupação bastante enunciada na campanha eleitoral de Lula – teve uma redução mais tímida do que a mexicana. No Brasil o número caiu de 37,8% em 2002 para 33,4% em 2006 (CEPALSTATS).

Tal qual o presidente mexicano, o governo petista também sofreu com os escândalos de corrupção. Contudo, em função das estratégias do partido – especialmente nos casos da Ação Penal 470 (conhecida popularmente como “mensalão”) – a popularidade de Lula não foi abalada com os escândalos. A “blindagem” de Lula surtiu efeito e, com a economia apresentando índices positivos, ele foi capaz de se reeleger em 2006.

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Em termos de campanha política, o eixo da estratégia das eleições de 2002 foi estabelecer a necessidade de um “novo pacto” social que pudesse substituir o vigente, que seria responsável pela estagnação e dificuldade econômica experimentada pelos brasileiros. Superar o modelo econômico neoliberal, então, só seria possível ao superar as práticas políticas de condução estatal que o restringia a poucos:

A imensa tarefa de criar uma alternativa econômica para enfrentar e vencer o desafio histórico da exclusão social exige a presença ativa e a ação reguladora do Estado sobre o mercado, evitando o comportamento predatório de monopólios e oligopólios. O controle social dará também mais transparência e eficácia ao planejamento e à execução das políticas públicas nas áreas de saúde, educação, previdência social, habitação e nos serviços públicos em geral. A boa experiência do orçamento participativo nos âmbitos municipal e estadual indica que, apesar da complexidade que apresenta sua aplicação no plano da União, ela deverá ser estendida para essa esfera. Em outras palavras, nosso governo vai estimular a ampliação do espaço público, lugar privilegiado da constituição de novos direitos e deveres, o que dará à democracia um caráter dinâmico (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002).

Observe-se que, se comparado a Fox, a citação do programa de governo de Lula possui algum tom de enfrentamento. A redução da desigualdade é tarefa prioritária que tem como protagonista o Estado. Contudo, como dissemos anteriormente, a preocupação de Lula também corria no sentido da estabilidade econômica (e por isso mesmo ele se aliou a José de Alencar, um industrial, como vice). Nesse sentido, o próprio discurso de posse já adiantava que a transição não seria repentina:

Vamos mudar, sim. Mudar com coragem e cuidado, humildade e ousadia, mudar tendo consciência de que a mudança é um processo gradativo e continuado, não um simples ato de vontade, não um arroubo voluntarista. Mudança por meio do diálogo e da negociação, sem atropelos ou precipitações, para que o resultado seja consistente e duradouro (SILVA, 2003).

O caráter negociado e pactuado da mudança indica que a estabilidade seria um fator importante. Evidentemente, a economia seria “parte” disso – parafraseando a citação de Fox que elencamos há pouco – como indica o já citado documento Carta aos brasileiros:

A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores. Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos. Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro.

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A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados (SILVA, 2002).

Por fim, vale assinalar, contudo, que diferentemente do presidente mexicano, o sujeito presente na estratégia discursiva de Lula é plural, ou seja, são classes sociais. Isso ocorre por que, ao menos na esfera da retórica, o presidente brasileira busca escapar dos parâmetros liberais do debate acerca das funções do Estado. Contudo, é importante observar que a utilização desse repertório da tradição política da esquerda não impediu o primeiro governo de Lula de ser marcado por uma condução bastante ortodoxa da economia. Afinal é justamente essa ambiguidade entre menções retóricas ao enfrentamento e condução conservadora da economia (e consequentemente da política, fenômeno conhecido como governabilidade) que caracteriza o que André Singer (2009) denomina de “reformismo fraco”.

Considerações finais

Buscando abarcar as discussões ocorridas na mesa “Debates políticos contemporâneos na América Latina e nos Eua” ocorrida no âmbito XIII Encontro Internacional da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC), modificamos o conteúdo de nossa apresentação.

Buscamos aqui estabelecer o debate sobre o papel do Estado em sua relação com a economia abarcando também as primeiras manifestações oficiais dos presidentes Fox e Lula após suas respectivas vitórias eleitorais.

Em linhas bastante sintéticas, podemos dizer ambos presidentes tentaram conciliar em seus discursos os elementos do mercado (e também estabilidade econômica) e do Estado (no que diz respeito à sua capacidade de operar ações para reduzir a desigualdade social). Evidentemente, cada um dos presidentes se localiza mais proximamente a um dos desses dois polos. Isso não significa, contudo, que a proximidade a um dos polos exclua completamente as proposições do outro polo.

Fox, com sua origem empresarial, raciocina a partir de princípios e ditames liberais. É notável o quanto a categoria “indivíduo” aparece em seu discurso. Lula, por sua vez,

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de origem sindicalista articula seu discurso em função de coletividades. Não apenas “classes”, mas também “brasileiros”, “cidadãos” e etc.

Outra relação interessante a se observar é a relação entre “justiça social” e eficiência econômica. Nesse tópico, a distinção entre meios e fins que diferencia o discurso dos presidentes fica bastante clara. Enquanto para Fox a “justiça social” é parte de uma economia eficiente, para Lula a estabilidade econômica deve servir justamente para que a pobreza seja diminuída.

Por fim, a força econômica dos mecanismos de financiamento internacional – e a força ideológica do neoliberalismo – impuseram a necessidade de todos os problemas serem abordados, mesmo pelos políticos de esquerda, em termos de “eficiência” e “gestão”. Por outro lado, a força política das mobilizações sociais impôs – mesmo para os políticos de direita - a pauta da desigualdade. É nesse cruzamento que as produções discursivas e políticas da virada do século XXI precisam ser analisadas e compreendidas.

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A adaptação da escola italiana de antropologia criminal na obra dos autores latino-americanos Jose Ingenieros e Nina Rodrigues: reflexão sobre raça e crime

RODRIGO MELLO CAMPOS Acadêmico de Licenciatura em História e pesquisador voluntário em Iniciação Científica na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), graduado em Direito pela Faculdade Mater Dei, e-mail [email protected]

Resumo

Jose Ingenieros, italiano radicado na argentina, escreve em 1913 a obra el hombre mediocre enquanto Raimundo Nina Rodrigues, brasileiro considerado o pai da antropologia criminal, escreve diversas obras até seu falecimento em 1906, sendo uma das mais importantes as raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894). Ambos foram médicos e leitores da escola italiana de antropologia criminal representada por Lombroso, Ferri e Garófalo, e dos autores clássicos das teorias raciais. Os dois, também, foram ativistas para a implementação de políticas de acordo com este repertório intelectual. Contudo, o contexto da Antropologia Criminal na Itália, com a conturbada unificação, era muito diferente do contexto latino-americano, em que pese esteja praticamente no mesmo período, sendo que a adaptação das obras dos clássicos europeus encontraram terreno fértil na América Latina de maneira diferenciada. No Brasil, a recente abolição da escravatura e o processo de urbanização procurava embasar a criminalização dos negros, na Argentina, a forte crise do final de 1890, decorrente de uma economia de investimentos externos, ocasionou aumento da criminalidade, além de contar com os resquícios da escravidão e do processo de invisibilidade da sua população negra. Os dois países competiam na atração de imigrantes europeus. Assim, o estudo propõe comparar as obras e entender as diferenças e semelhanças do contexto brasileiro e do argentino, tendo em vista que cada autor atuou de modo a influenciar a política de A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 714

seu país. Para tanto, utiliza-se o método da História Intelectual, História das Ciências e

História das sensibilidades. Palavras-chave: História das Ciências e das Sensibilidades, Criminologia, raça.

Cientistas e Sensibilidades

Os latino-americanos ressignificaram as teorias criminológicos quando das traduções no final do século XIX tendo em vista as demandas de controle social em suas áreas de influência. No presente trabalho tratar-se-á das vicissitudes por meio da reflexão sobre a doutrina da defesa social e seu método de controle sobre indivíduos com análise, tanto do contexto italiano com seus principais expoentes da Escola Italiana de Antropologia Criminal, quanto do latino-americano por meio dos textos do intelectual brasileiro Raimundo Nina Rodrigues e do ítalo-argentino José Ingenieros, além de pesquisa historiográfica.

Utiliza-se como fontes principais os textos de Raimundo Nina Rodrigues e de José Ingenieros, bem como as revistas Criminalogía Moderna (Argentina), de Pietro Gori e Ingenieros, e a Revista Archivos de Psiquiatria y Criminalogia, Año I, 1902, que consta um capítulo escrito por Nina Rodrigues, Progresos de la Medicina Legal em el Brasil em el Siglo XX. Já o recorte temporal é o da publicação de obras consideradas indispensáveis para esse entendimento, o livro de Raimundo Nina Rodrigues, Raças Humanas e Responsabilidade Penal no Brasil (1894) até o da obra El hombre mediocre (1913).

Do ponto de vista teórico e metodológico, este trabalho procura articular um diálogo entre a história social das ciências e a história das sensibilidades, fundamental para compreender os sentidos sociais, políticos e científicos da produção intelectual de um personagens tão complexos e multifacetados como foram Nina Rodrigues e Ingenieros. Utilizou-se a história social das ciências para pensar o lugar social, a militância intelectual e a atuação política de antropólogos e criminologistas envolvidos com as discussões sobre criminalidade, raça e direito. Ao mesmo tempo, permite compreender a publicação de uma obra científica, um texto ou conjunto de ideias como expressão do contexto intelectual e dos interesses sociais e políticos em jogo.

De outro lado, o diálogo com a história das sensibilidades permite-nos pensar as subjetividades, as sensibilidades sociais e a produção de ideias sobre direitos, identidade A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 715

e cidadania. Neste caso, a história das sensibilidades é empregada como uma ferramenta para compreender as construções e representações que culminaram com discussões sobre os direitos e a dignidade de populações marginalizadas (ALONSO, 2015; HUNT, 2009). Sobre a produção dessas “novas sensibilidades”, explana-se que foi inspirada na reflexão desenvolvida por Lynn Hunt (2009, p. 28-29) a respeito da aversão à tortura desenvolvida no século XVIII, com a proliferação das ideias do iluminismo e romantismo, contra a prática da tortura judicial. Neste trabalho, analisou-se as ideias da criminologia como aversão à sensibilidade antes difundida pelo movimento abolicionista, pautando-se na necessidade de defesa e controle social em detrimento dos direitos individuais.

Acredita-se, a priori, que os dois locais buscaram exercer o controle social, cada um à sua maneira, ambos inspirados pela escola italiana. Utilizar-se-á do conceito da campo como “espaço abstrato e representacional, no qual as definições do limite dos campos e suas características são uma construção teórica e histórica” (BOURDIEU apud MONTAGNER, 2010, p. 264), para comparar o campo intelectual italiano de um lado e os latino-americanos de outro e se espera perceber o diálogo entre os campos e os contextos de ressignificação da criminologia nesta parte da América por meio das metodologias aplicadas.

No toada de Darwin

No final do século XIX, conforme a historiografia tem apontado, a medicina eo direito estavam amplamente influenciados por uma corrente internacional de ideias que envolvia as discussões de cunho positivista, com foco no método empírico, busca da razão e da lógica, dando uma grande vantagem à medicina para atuar nas decisões políticas (CORRÊA, 2013; SCHWARCZ, 1993; SKIDMORE, 2012). Como sabemos, esse período foi fortemente marcado pelo imperialismo, pelas teorias raciais e pelo processo de ordenamento urbano e social.

Neste contexto, a busca pelo controle social, pelo estabelecimento de normas e pelo melhoramento biológico do ser humano por meio da ciência foram aspectos que legitimaram o desenvolvimento e a consolidação de teorias e campos científicos, entre eles a antropologia criminal, uma das suas áreas de destaque no processo de ordenamento social. A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 716

Darwin escreveu sobre a seleção natural aplicada à raça humana, sua relação com as prisões e a formulação de teorias para o direito criminal, contribuição decisiva para pensar o evolucionismo social. Em que pese Galton possa ser considerado o mais influente darwinista social, mais do que o próprio Darwin, este não deixa de contribuir diretamente. Para Góes (2016, p. 86) Darwin possui a noção de que para atingir o progresso é necessário regular a procriação dos organismos tidos como inferiores e impedir o casamento dos indivíduos que não se encontram no mesmo estágio de desenvolvimento, com fins de evitar a hereditariedade da degeneração, nem que para isso tivesse que se utilizar de medidas neutralizadoras, como o cárcere, sendo esses inferiores os malfeitores, loucos, doentes mentais, violentos, vadios, pobres, prostitutas, etc.

A defesa social

É importante ressaltar que ao longo dos anos as escolas de antropologia criminal, posteriormente Criminologia, divergiram entre as teorias que entendem a necessidade de punição pelo fato tido como crime, realizado por pessoas capazes, dotadas de livre-arbítrio para decidir, como para Góes (2016, p. 23) é o caso da escola chamada Classicismo, e de outro lado outras escolas que entendem que certos indivíduos são “criminosos natos” ou propensos à criminalidade, quase sempre ligados a fatores naturais, entre eles a herança racial.

Criminologistas como Lombroso, Ferri, Garofalo, Nina Rodrigues e Ingenieros são daquela opinião que entende que há “criminosos natos” e que a política criminal deveria ser voltada ao indivíduo, e não sobre o fato (crime) em si. Eles criticam o livre-arbítrio e capacidade do indivíduo discernir sobre seus atos. O criminologista brasileiro Nina Rodrigues, em sua obra clássica As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, discorre sobre estas questões da seguinte maneira: “o livre arbítrio se afigura como uma incongruência, como um sonho criado pela imaginação para fugir às contingências desta existencia phenomenica” (RODRIGUES, 2011, p. 70).

Para Corrêa (2013, p. 232), no contexto do final do século XIX, um ponto em comum na teoria de vários campos do saber era uma espécie de evolucionismo difuso com defesa da ciência positivista, com fins de chegar à formulação das leis que governavam a natureza e a sociedade, rediscutindo dentro de um quadro determinista das relações naturais e sociais as noções básicas dos juristas (como igualdade e liberdade). Com esse A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 717

contexto científico, há um fenômeno denominado “patologização do crime” (ORTEGA, 2011, p. 222), que, pelas matrizes teóricas da medicina, faz a relação entre crime e doença para aplicar o método da medicina, para tratar doenças, na política criminal, de modo que os intelectuais da medicina tentam influenciar na legislação.

A resposta da ciência voltada para a questão da ordem social e influenciada pelo darwinismo social e o positivismo foi a escola italiana, destacada pelo trabalho de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo. Os três possuem muitos pontos de convergências, mas também divergências, sendo que cada um deles cunhou novos termos e contribuições científicas, de modo que se chama esse grupo de escola porque “estas teorias compartilham da necessidade de produzir um modelo de ciência penal integrado” (BARATTA apud COELHO; MENDONÇA, 2009, p. 595).

Novo velho mundo e novo mundo

A Itália, antes um caldeamento de reinos e etnias, fora unificada no final do século XVIII como um estado-nação. Esse país buscava construir a ideia de nacionalidade aos interesses da burguesia industrial nortista, além de exercer maior poder sobre os meridionais acusados de atrasados e criminosos. Logo, se tornou um campo fértil para as ideias de controle social, criminal, de Lombroso, Ferri e Garófalo, que se apropriavam, também, das teorias de divisão dos seres humanos por raças humanas. Entre os pontos em comum desses autores, a noção de que a medicina e o método positivista poderiam evitar crimes ao identificar pessoas determinadas a realizá-los.

Sobre o contexto da Itália, quando da teorização dessa escola no século XIX, o processo de unificação dos reinos de língua italiana se deu tardiamente em comparação com outros estados europeus, sendo realizado no período de 1815 até 1870, e com a questão dos estados pontifícios se resolvendo apenas no século XX. Por ser a península itálica um conjunto de reinos com culturas muito diferentes, como os povos do norte, ao exemplo de Turim, de características e etnia distintos dos meridionais, tal qual os sicilianos, os teóricos as hierarquizaram - de acordo com Raine (2015). Ele comenta que havia a impressão de mais criminalidade no sul da Itália que era pobre e agrícola, “o que configurava um dos muitos sintomas do ‘problema do sul’ que afligia anação recentemente unificada” (RAINE, 2015, p. 50-66). Assim, reitera-se que o movimento A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 718

nacionalista forjou uma unidade para tornar-se a ideologia dominante que, para Gooch, atendiam aos interesses da burguesia industrial nortista (GOOCH apud GÓES 2015, p. 47).

Sobre desigualdade em si, Gramsci, ao citar Lombroso, define a escola da antropologia criminal italiana como responsáveis pela ideologia da burguesia e que, em vez de entender o capitalismo como um sistema de exclusão, encontraram a resposta da desigualdade na presença de sangue bárbaro (CORRÊA, 2013, p. 69-70). Neste contexto, portanto, ressalta-se que a antropologia criminal buscava comprovar que os humanos possuíam características diferentes de discernimento devido a sua compleição física e psíquica, fruto do entendimento do evolucionismo positivista, que aposta na existência de diferentes etapas do desenvolvimento.

No livro O Homem Delinquente (2016), de Cesare Lombroso (1885-1909), há o uso do conceito de atavismo, uma herança biológica ancestral que se caracteriza por violência, impulsividade e outros traços tidos como “não civilizados”, além de uma classificação repleta de casos “práticos” diferenciando os “criminosos natos” e os “dementes morais”, dissertando sobre suas principais características. Já no primeiro capítulo, Lombroso descreve os delitos e os organismos inferiores (plantas e animais) para compará-los com comportamentos humanos. Nos capítulos seguintes, descreve características físicas de supostos criminosos que estão presentes em larga parcela da população, como lábios grossos, cabelos abundantes e negros, ao mesmo tempo em que apresenta traços de personalidade que dependem de análise extremamente subjetiva como “cretinice”.

Vejamos um trecho do seu livro no capítulo 12, “Inteligência e instrução dos delinqüentes”:

Os delinquentes não desenvolvem sua atividade a não ser por próprias, diretas e imediatas vantagens, mais para o mal que para o bem. Vice-versa, enquanto esses têm pouquíssima lógica, os monomaníacos a têm de sobra. Por isso é mais fácil encontrar alienados de alto saber do que entre os delinquentes. E basta dizer que apenas alguns, como Bacone, Salústio e Sêneca se inclinaram para o crime, mas podemos citar Comte, Ampère, Newton, Pascal, Tasso, Rousseau e tantos outros como mais ou menos melancólicos e monomaníacos. (LOMBROSO, 2016, p. 150).

Percebe-se que ao comparar os delinquentes com os dementes, Lombroso se utiliza de um rol de dementes bem extenso formado por pessoas famosas na história. Ele chega a A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 719

afirmar que Rousseau seria um demente (melancólico ou monomaníaco) e, provavelmente, nas suas moléstias mentais poderiam ser encontradas doenças classificadas como “manias literárias”. Com base nessas impressões, nota-se que as ideias que discordassem de Lombroso, ou de outros integrantes dessa mesma escola, poderiam ser classificadas como demências, tamanha a abrangência dos quesitos naquele contexto.

Enrico Ferri (2004), outro intelectual dessa escola que, para Aquino (2015), faz críticas a Lombroso e amplia os fatores da criminalidade, “Ferri, ao contrário de Lombroso, entendia o crime como a conjugação de fatores antropológicos, físicos e sociais, como um sintoma de periculosidade, não o reduzindo apenas aos critérios físicos”. Ferri permitia uma defesa da sociedade tipificando penalmente modos de vida, em antecipação ao delito, como “estado de perigo sem delito” (BARATA apud COELHO; MENDONÇA, 2009, p. 3-4).

Garofalo, por sua vez, conforme comenta Escobar (apud MAURÍCIO, 2015, p. 66), conceituou sentimentos universais de convivência social, de modo que o delito natural seria aquele que ofendesse tais sentimentos altruístas fundamentais. Percebe-se que Raimundo Nina Rodrigues se utiliza massivamente em suas obras da conclusão de Garofalo para justificar o senso moral como verdade. De acordo com o intelectual brasileiro: “mas a verdade é que, como demonstrou Garofalo, o crime é principalmente função do senso moral, e o desenvolvimento do senso moral precede o da inteligência, posto que esta possa concorrer para depois esclarecê-lo e aperfeiçoá-lo.” (RODRIGUES, 2011, p. 86).

No livro de Garofalo, traduzido ao espanhol por Pedro Dorado Montero, La Criminología, estúdio sobre el delito y sobre la teoria de la represion (Madri, 1916, p. 7-10), mais precisamente no prólogo da segunda edição, fica claro a noção de que o criminoso é formado por fatores internos e externos e de que Garofalo acredita na mudança dos fatores externos do criminoso para uma sociedade mais segura. Essa mudança, contudo, seria impossível aos governos porque comprometeria o “progresso” da civilização, sendo o mais racional a extirpação desses indivíduos. Para Maurício, ele pode ser considerado o mais radical dos autores desta escola porque defendia a “seleção natural social” que se trata da pena de morte aos criminosos incapazes de se adaptar à sociedade (MAURÍCIO, 2015, p. 66).

Neste sentido, a sensibilidade contra a noção de igualdade, e de que nem todos os humanos merecem a liberdade, é uma das características desses três autores fundamentais A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 720

da criminologia, sendo a noção de defesa social e o “progresso” da nação o motivo moral da postura. Esses criminologistas (Lombroso, Ferri e Garofalo) são os principais cânones da escola Italiana, reitera-se, fruto de um contexto de efervescência das ideias científicas oriundas do positivismo, em que se entendia que as ideias evolucionistas de Jean-Baptiste de Lamarck, Mendel e de Charles Darwin, vieram para mudar as ciências em geral, inclusive o Direito.

A apropriação da escola italiana no novo mundo latino

A análise dos contextos argentino e brasileiro é com base nessas obras porque esses intelectuais podem ser considerados cânones da antropologia criminal com base na “tradução” que fizeram de Lombroso, Ferri e Garófalo. Tradução colocada entre aspas porque, reitera-se que se trata de uma ressignificação/apropriação dos escritos ao contexto. Conforme aponta Souza (2017, p. 22), é preciso pensar as apropriações e o uso das ideias de acordo com os projetos, anseios, problemas e preocupações que mobilizavam a sua geração de intelectuais, bem como a agenda política e científica desse período, as ideologias sociais vigentes e a própria realidade nacional. A América Latina, por sua vez, passava por várias transformações, em especial Brasil e Argentina que competiam para receber mais imigrantes.

Ambos os países continham características que eram consideradas problemas para uma nação civilizada pelos padrões do final do XIX e início do XX. No Brasil, não havia como esconder a questão racial da recente abolição da escravatura que incomodava os cientistas racialistas, Já a Argentina que passou por um forte processo de invisibilização da presença das etnias africanas (SCHÁVELZON, 2003) a questão principal foi a loucura (QUINTA, 2017), um meio de controlar os indesejáveis. Contudo, o que era a loucura na Argentina daqueles tempos? Tratar-se de um dos pontos de análise da pesquisa a ser desenvolvida.

Tanto Nina quanto Ingenieros adaptaram as obras da escola italiana de acordo com suas preocupações locais e seu ativismo que gera permanências até a contemporaneidade, como o alto grau de encarceramento das sociedades latino-americanas, o racismo que não foi devidamente enfrentado pela sociedade e o debate público, o mito da democracia racial no Brasil, o mito de que a presença das etnias africanas não fazem mais parte da Argentina (SCHÁVELZON, 2003) porque o fenótipo não está tão aparente no meio pela miscigenação com imigrantes, guerras e doenças a que fora submetida esta população. A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 721

Partindo para análise da realidade latino-americana como margem, como descrito por Góes (2016, p. 143), a relação centro-margem das ideias pode ser percebida nesta carta da filha de Cesare Lombroso, Gina Lombroso, quando da sua visita à penitenciária Nacional de Buenos Aires, que havia sido construída aos moldes da teoria lombrosiana, “penitenciária que não é um ergástulo, nem uma prisão, mas sim uma casa de redenção física, psíquica, intelectual e moral, tal e qual a nova escola” (SOZZO apud GÓES, 2016, p. 143) e cuja principal reclamação de é que seu pai não teve o reconhecimento das suas teorias na Itália, onde militou, sem a criação de qualquer prédio referenciado. Porém na América Latina ela se admirou e se surpreendeu com a penitenciária Argentina de acordo com Sozzo (apud Góes, 2016, p. 143).

Comparando a situação italiana e a da América Latina, Góes (2016, p. 133) destaca que a principal obra de Lombroso, O homem delinquente, passou a sofrer várias críticas na Europa, em especial dos juristas que temiam perder a hegemonia política e histórica sobre questão de criminalidade, uma delas de que a descrição do criminoso nato corresponde mais a um tipo profissional (no tocante a habilidades) que determinações biológicas natas. Tais críticas não afetaram aquela teoria racial nas Américas, apesar de pô-la em descrédito no velho continente.

Schávelzon (2003, p. 23 e 24) dispõe que Ingenieros faz malabarismo com as ideias de Marx, transformando a luta de classes em luta de raças, o que seria considerado ridículo na Europa mas que entre os argentinos teve adeptos e fanáticos. Mais uma comparação de contextos intelectuais e repercussão das ideais.

Podemos ver a apropriação dessas teorias pela revista Criminología Moderna, fundada pelo italiano Gori na Argentina, com coordenação de José Ingenieros, que tem como autor mais citado, seja nominalmente ou pela identificação dos seus conceitos, Cesare Lombroso. Além disso, contava com diversos textos dos cânones italianos como Ferri em colunas.

Quinta (2017, p. 175), dispõe que a preocupação da criminologia argentina era a loucura por casa dos temas ligados à psicologia criminal, vejamos: A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 722

Os temas ligados à Medicina Legal, Loucura e Alienação e Psicologia Criminal representam 13,19% dos artigos publicados na revista. Não por acaso, obviamente, pois o Estado visa o controle e a higienização dos corpos. E a intelectualidade portenha daquele período acredita que estudar o delinquente e o louco-delinquente é uma forma de precaver-se diante da avassaladora criminalidade, ou seja, o que de mais moderno a criminologia tem como fim naquele período – compreender os fatores que envolvem o criminoso, criar mecanismos de análise dessa figura através de uma ação medicamentosa nos delinquentes. Afinal, segundo eles, a criminologia moderna deve funcionar como uma clínica social. (QUINTA, 2017, p. 175)

Pela citação acima, há a noção da revista de que a sociedade era um organismo e o Estado deveria atuar como uma clínica social. Vale ressaltar a questão do alto número de imigrantes, urbanização desorganizada e crise econômica favoreceram a criminalidade.

Da leitura da obra El hombre mediocre de José Ingenieros percebe-se a diferenciação entre os homens que devem governar dos despreparados, de modo que a democracia não selecionaria os melhores, apelidada de mediocracia. Naquela obra, a preocupação sequer é o crime, mas se percebe a influência de Lombroso na classificação dos homens de acordo com sua capacidade (para Ingenieros, logicamente).

Raimundo Nina Rodrigues não fica atrás e propõe na obraResponsabilidade Penal e raças humanas no Brasil divisão das leis do Código Penal brasileiro em aplicação para, ao menos, 3 tipos de pessoas, 1. Brancos e mestiços superiores; 2. negros e indígenas; 3. Demais mestiços (estes com subdivisões de capacidade). Mais uma vez se percebe a influência Lombrosiana. Contudo, em um contexto diferenciado com a maior preocupação pela questão dos negros, indígenas e mulatos. Para Corrêa (2013) Nina Rodrigues discordava da noção de livre-arbítrio que às pessoas sem capacidade seria apenas uma ilusão, as ilusões da liberdade.

Doravante, para Corrêa (2013, p. 59), o contexto intelectual brasileiro daquele período deve ser entendido de maneira diferente do europeu. Na América Latina é diferente pela quase ausência da academia e pela interação da atuação do cientista como político e ativista em projetos institucionais na organização do Estado - o que é sua “principal” função, naquele momento, em que Nina Rodrigues realizou posicionando a autoridade do médico e da elite ilustrada. Acrescenta-se que apesar dos países da América Espanhola terem universidades antes do Brasil, há muitas limitações.

No Brasil, de acordo com Skidmore (2012, p. 102), um dos estudos etnográficos sobre os afro-brasileiros veio, justamente, de Nina Rodrigues. Que em 1890 havia se A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 723

distinguido em etnologia afro-brasileira e etnografia, quando essas ciências estavam nos primeiros passos, galgando maior reconhecimento como campo de pesquisa e auxiliando a consolidar no Brasil os alicerces para essas ciências. Até seu falecimento, em 1906, havia publicado muitos estudos científicos, fundado a Revista Médico-Legal e era membro da Sociedade Médico-Legal de Nova York e da de Paris, mantendo contato próximo com pesquisadores estrangeiros.

Para Nina podemos deduzir a partir da leitura da obra que o problema criminal no Brasil são os negros, indígenas e mestiços, tendo em vista o foco da sua obra na questão raça e degenerescência como diminuidora do livre-arbítrio dessas pessoas. O nexo entre o final da escravidão e as teorias raciais é descrito em Romero (1851-1914) como um esforço dos intelectuais que buscavam transformar os então escravos, utilizando o termo máquinas de trabalho, em uma nova constituição de cidadania, a de negros, objetos da ciência (CORRÊA, 2013, p. 51). Tal questão fica clara na fala de Rodrigues: “a dualidade que, apesar de todas as igualdades políticas e constitucionais, a etnologia estabelece na nossa população”, ou mesmo “foi necessário, ou conivente, emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos” (RODRIGUES apud CORRÊA, 2013, p. 51).

Para Cunha (2002, p. 329), a atribuição da criminologia com vista ao controle social dos negros, tanto por parte do Direito (com Tobias Barreto e Silvio Romero) quanto por parte da medicina, estão ligadas à reformulação das cidades. Para Skidmore (2012, p. 90), o trabalhador negro ou mulato nas cidades brasileiras encontrava poucas oportunidades, porque no sul tinha de competir com os imigrantes – geralmente melhor equipados para sobreviver no capitalismo urbano – enquanto no norte, de economia rudimentar, não havia trabalho para qualquer um. Neste caso, havia uma clara deficiência de ascensão social ao brasileiros de classe baixa, compreendendo a maioria de negros e mulatos.

Evento semelhante ocorre na província de Buenos Aires para Schávelzon (2003), em que a população negra restante foi sendo segregada socialmente, tendo que aceitar os trabalhos considerados menos nobres como preparar morcillas com restos de abatedouro (Schávelzon, 2003, p. 84). Além da segregação das pessoas com fenótipo negro, há o cerceamento das manifestações culturais de identidade africana, em que a arquitetura construída no período e as ações do governo buscavam esconder os locais de concentração e proibir manifestações culturais, como os locais da nações (religiosidade). A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 724

Nas ações dos governo deste país do prata, é preciso relativizar os dados oficiais porque para Schávelzon (2003, p. 67-95), o censo não marcava as divisões de bairros reconhecidas por essas populações prejudicando sua identidade, contava escravizados como peças que poderiam ser um conjunto de pessoas e, ainda, para classifica-los passou a usar termos difíceis de identificar como trigueiros ou morenos (trigueños o morochos) que poderiam ser aplicados tanto para negros, quanto indígenas ou outros de pele escura (Schávelzon, 2003, p. 22-30). Sem contar a invisibilidade da cultura africana altamente perseguida (Schávelzon, 2003, p. 124-126).

No caso brasileiro, essa condição social de libertos confirmava a concepção da elite de que negros e mulatos eram obstáculos ao desenvolvimento nacional, criminalizando atos considerados sua cultura, como religião (Goés, 2015, p. 157-165). Importante reiterar, conforme Alonso (2015) e Azevedo (1987) que anos de segregação não mudariam completamente com uma lei (abolição) que não atentou às necessidades de justiça social como garantia de trabalho tal qual parte os abolicionistas reivindicavam. Por sua vez, para Schávelzon (2003) a negação em tocar no assunto da raça em um país com passado escravocrata (Argentina) e com diversos indivíduos negros segregados fazem concluir que as bases são semelhantes.

Teorias, leituras e ativismo

Para Nina Rodrigues (1935a), os abolicionistas agiam em erro ao acreditar que acabar com a escravidão traria desenvolvimento ao país. No livro “Os Africanos no Brasil”, ele faz um mapa dos costumes dos negros de acordo com seus grupos, diferenciando as diversas etnias africanas, sendo que na introdução disserta sobre o caráter político da obra tecendo críticas ao pensamento dos abolicionistas, da seguinte maneira:

(...) Como a extincção do trafico, a da escravidão precisou revestir a forma toda sentimental de uma questão de honra e pundonor nacionais, afinada aos reclamos dos mais nobres sentimentos humanitários. [...] foi necessário ou conveniente emprestar ao Negro a organização psychica dos povos brancos mais cultos. [...] No entanto, os destinos de um povo não podem estar à mercê das sympathias ou dos odios de uma geração. A sciencia que não conhece estes sentimentos, está no seu pleno direito exercendo livremente a critica e a estendendo com a mesma imparcialidade a todos os elementos ethnicos de um povo. Não o pode deter a confusão pueril entre o valor cultural de uma raça e as virtudes A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 725

privadas de certas e determinadas pessoas. Se conhecemos homens negros ou de côr de indubitável merecimento e credores de estima e respeito, não ha de obstar esse facto o reconhecimento desta verdade – que até hoje não se puderam os Negros constituir em povos civilizados. (RODRIGUES, 1935a, p. 18-20).

Quando ele crítica que os destinos do povo não podem estar à mercê das simpatias e dos ódios de uma geração, ele crítica a geração de 1870, responsável pelo movimento abolicionista, que teria sido ingênua em acreditar na integração do negro e mestiço na sociedade visando o progresso. Essa geração, criticada por Raimundo Nina Rodrigues, é a mesma de parte da Escola do Recife e foi uma das consolidadoras do Classicismo jurídico, influenciada pelas ideias dos abolicionistas estrangeiros e na nova noção de dignidade da pessoa, que fizeram questão de difundir à população por meio de eventos cívicos e campanhas diversas.

Para Cunha (2002, p. 334-336), Nina Rodrigues também se utilizou, das teorias do meio, de origem na escola francesa em crítica à Lombroso, empregando uma visão pragmática que explica parcialmente o ecletismo de sua obra. Com a leitura das revistas criminologia moderna também vemos fortes influências das teorias do meio nos intelectuais argentinos, uma facilidade em escrever sobre um autor após ler as críticas contra ele em outros autores para, no fim, construir seus textos sem incorrer nos mesmos erros.

Rodrigues (2011) explana que é necessário diferenciar: os mestiços superiores, em contato com a civilização, que devem ser julgados perfeitamente equilibrados e plenamente responsáveis; Mestiços degenerados, total ou parcialmente irresponsáveis; e Mestiços comuns, responsabilidade atenuada, assim como índios e negros. Quanto mais próximo o indivíduo do padrão de branco “civilizado”, maior seria sua capacidade de reflexão sobre os crimes e responsabilidade. Essa diferenciação demonstra a divisão por “raças” que a comunidade médica adotava e, provavelmente, a sociedade em geral.

Ingenieros, de que se deve separar delincuente (problema de ordem moral), loco (intelectual) e delincuente loco (ambos)[...], sendo: 1. Individuos arrastrados al delito por una anomalia en su esfera moral; ella puede ser congénita (Delincuentes natos ó locos Morales, de Ferri) ó adquirida (Delincuente habitual). 2. Individuos arrastrados al delito por una anomalia en su esfera intelectual; congénita (delincuentes por locuras congénitas) ó adquirida (delincentes por locuras tóxicas, obsesión política, etc). 3. Individuos arrastrados A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 726

al delito por uma anomalia em su esfera volitiva: congênita (delincuentes impulsivos congénitos) ó adquirida (delincuentes por ocasión) (INGENIEROS in Criminalogía Moderna, ano III, n. 16, 1890, p. 16-17). Essa divisão demonstra separação entre o incapaz de não praticar o crime por questão de ordem moral do de ordem intelectual.

Em que pese Rodrigues não tenha conseguido fazer seu projeto de lei formalizando um apartheid brasileiro (diferente responsabilidade penal da época) com a responsabilidade diferenciada para as várias raças devido à resistência da sociedade (em grande parte, mestiça) contra suas ideias, ele influenciou diretamente a noção de tratamento de alienados com medidas de segurança, deu as bases racistas da criminologia brasileira e a organização das instituições técnicas.

Ingenieros teve sucesso semelhante, mas suas ideias repercutiram mais porque eram mais fácil de se aplicar, bastava considerar o inimigo louco. A questão colocada por Schávelzon (2003, p. 28) é que os argentinos se consideravam brancos, tendo a alta taxa de imigração na região porteña a substituição da mão-de-obra de origem africana que precisou disfarçar suas características para se incluir. Os poucos negros que possam ter caído no crime, podem ser considerados loucos pela peritagem médica.

Durante a pesquisa, percebeu-se que as mudanças na trajetória do pensamento do intelectual podem ser analisadas de acordo com as demandas do meio e a finalidade que esta pessoa pretendia atingir. Tanto os italianos (Lombroso, Ferri e Garofalo) quanto os latino-americanos mudaram seu discurso ao longo da vida e procuraram os melhores locais para difundir as ideias. Ingenieros e os criminólogos argentinos atuaram tanto como pontes aos italianos na Argentina quanto construtores de ideias novas com a influência, encontrando caminhos para melhor atuar nesse sentido. Muitas permanências daquelas ideias mantêm-se vivas, algumas importantes como o empirismo na criminologia com visitas às prisões, outras condenadas, como a segregação pela etnia. A ADAPTAÇÃO DA ESCOLA ITALIANA DE ANTROPOLOGIA CRIMINAL NA OBRA DOS AUTORES LATINO-AMERICANOS JOSE INGENIEROS E NINA RODRIGUES: REFLEXÃO SOBRE RAÇA E CRIME RODRIGO MELLO CAMPOS 727

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Agenda Neoliberal: a modernização da América Latina e os investimentos estrangeiros

SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO Mestranda em Economia pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: sarahpatrocinio@ hotmail.com.

Introdução

Uma nova ordem econômica surgiu na economia mundial após o fim da Segunda Guerra. Ordem esta que também atingiu os países subdesenvolvidos, entre eles os países latino-americanos: o neoliberalismo. Trata-se do avanço do capital mundial, por meio de políticas e ideias liberalizantes, em esferas antes ocupadas apenas pelo Estado.

Na década de 1980, ocorreu um importante consenso de cunho político-econômico, o qual catalisou os anseios e tentativas do capital mundial avançar em uma maior magnitude em busca de lucros, o consenso de Washington. Este é muito citado em textos econômicos, em especial os textos com perspectiva crítica, como símbolo do avanço neoliberal. É sabido, porém, que tal consenso surge no contexto mundial como uma cartilha de recomendações para os países subdesenvolvidos que quisessem continuar como parceiros econômicos das grandes nações.

A respeito disso, nota-se que nas últimas décadas do século XX o processo de liberalização da economia começa a tomar forma, e tira o lugar dos planos de desenvolvimento nacional. Tal processo se insere de uma forma bem conveniente aos governos nacionais, sugerindo que adequassem suas formas de administração pública, cujas prioridades passaram a estar calcadas, primordialmente, no pagamento de dívidas, no controle de inflação e em manter e garantir o livre mercado. AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 731

Em especial para a América Latina, essa cartilha macroeconômica estabeleceu uma agenda um tanto neoliberal, e por este motivo, neste trabalho, será apresentado na sua primeira seção, após esta introdução, um breve contexto histórico-econômico; adiante, na seção seguinte, as premissas e promessas de uma modernização da América Latina; na terceira parte temos o cerne do trabalho, onde é exposta a agenda neoliberal imposta à América Latina pelo Consenso de Washington; na quarta parte é feita uma consideração especial quanto aos investimentos estrangeiros realizados maciçamente na América Latina após a liberalização da economia; e por fim as considerações finais, seguidas das referências bibliográficas.

Um breve contexto histórico-econômico

No século XX, a economia mundial passou por grandes transformações: Avanços tecnológicos, disputas de grandes potências pela hegemonia, período de grande crescimento econômico dos países, mas também de crises em grandes proporções, mudanças nos sistemas monetários, guerras globais. Hobsbawm (1995, p.14) chama esse de o “Breve Século XX”, o qual vai da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), perpassa pela Segunda (1939-1945), e finda no colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Trata-se de um período que mudou de maneira profunda a sociedade humana, mais do que qualquer outro período de brevidade comparável.

Essas mudanças ocorridas no sistema-mundo transformaram as relações internacionais; a principal delas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, está na geopolítica, que teve sua referência econômica deslocada da Europa para os Estados Unidos da América (EUA), o qual se transformou em uma grande potência hegemônica.

Foram acordos celebrados na conferência de Bretton Woods (1944) que colocaram os EUA em uma posição estratégica de direcionamento e reconstrução da economia mundial, com fins de promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras. Tal acordo significou que o dólar passaria a ser a moeda internacional, e, para que isso se sustentasse, “era necessário que este país assumisse a responsabilidade de prover a liquidez internacional adequada e garantisse a confiança com uma baixa taxa de inflação interna, além de assumir o risco do sistema, como o emprestador internacional de última instância” (DATHEIN, 2005, p.53). AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 732

Instituições, a exemplo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), foram criadas nesse encontro realizado na cidade de Bretton Woods, estado de New Hampshire, nos EUA. Essas instituições, no entanto, deram outra denotação a “ajuda e cooperação internacional”: os empréstimos subsidiados; o apoio político e econômico ao avanço tecnológico; as aberturas de mercados e conquistas diplomáticas de países parceiros; essas e outras façanhas maquiavam a estratégia de fortalecimento e consolidação do poderio norte-americano (RODRIGUES, 2016).

Contudo, nas palavras de Belluzzo (2006):

A “crise” de Bretton Woods se anuncia já na segunda metade da década de 1950. Culmina na desvinculação do dólar com o ouro em 1971, no primeiro choque do petróleo e na introdução do regime de taxas de câmbio flutuantes em 1973 (p.27).

Com o fim de Bretton Woods, uma nova ordem econômica se inicia, afinal, há uma grande quantidade de dólares espalhados pelo mundo, operações de empréstimos foram estimuladas, aumentando assim o endividamento externo nos países centrais e até mesmo nos países periféricos, comumente chamados de subdesenvolvidos. Isso aconteceu porque as estratégias americanas de política internacional mudaram:

Abandonaram o regime monetário internacional e adotaram progressivamente o sistema dólar flexível e desmontaram os controles sobre a circulação internacional de capitais privados e optaram pela desregulação completa dos mercados financeiros. [...] Podemos concluir que a crise do dólar estimulou a mobilização financeira e trouxe um aumento significativo das transações especulativas (RODRIGUES, 2016, p.15).

A América Latina, como parte da periferia do sistema econômico mundial, cujo papel específico era produzir alimentos e matérias-primas para os grandes centros industriais, foi atingida com especial virulência (PREBISCH, 2000, p.71). Isso porque, ao mesmo tempo em que, foram “engordadas” pelas taxas de juros elevadas, expandiram-se as dívidas públicas dos Estados Unidos e da Europa. Um exemplo disso é que a dívida externa de países da periferia, como Brasil e Argentina, alcançou no final de 1989, segundo estatísticas da CEPAL1, valores na casa de US$ 115 bilhões e US$ 63,3 bilhões, respectivamente. Trata-se de um aumento de 26% e 40,5%, nesta ordem, em relação ao ano de 1983.

1 CEPAL: Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 733

A modernização da América Latina

A América Latina, segundo Nelly Richard, é uma extremidade geográfica localizada na margem desvalida, não garantida pelos pactos hegemônicos. Nela a modernidade não substitui a tradição, mas mescla-se com ela em uma revolução de signos que juntam atraso e avanço, folclore e indústria, mito e ideologia.

Com a modernidade surgiu um mal-estar latino-americano, fruto da “imagem otimizada” que se tem do processo modernizador europeu, configurado por um alto grau de pureza e homogeneidade. Ora,

[...] a modernidade não foi tampouco na Europa um processo unitário, integrado e coerente, mas hibrido e desigual, que ocorreu no “espaço compreendido entre um passado clássico ainda aproveitado, um presente técnico e ainda indeterminado, e um futuro político ainda imprevisível [...]” (ANDERSON, 1989, p. 105, apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p.24).

Sendo o desenvolvimento a palavra que norteia o projeto de modernização da América Latina nos anos de 1960-1970, é importante se precaver, nas palavras de Prebisch (2000, p. 75), contra as generalizações dogmáticas, haja vista não haver um único modelo de desenvolvimento que deva ser utilizado como referência exclusiva.

Neste sentido, é importante destacar a experiência vivida no pós-guerra, onde houve um grande período de crescimento, sustentado principalmente pelo modelo de desenvolvimento econômico intervencionista inspirado na CEPAL.

A base desse modelo era um Estado altamente regulador, industrialização via substituição de importações entre outras coisas. Apesar de ter gerado alguns desajustes econômicos, como aumento na concentração de renda, o modelo manteve, durante mais de 30 anos, um grande desempenho como nunca visto anteriormente. Segundo os dados da CEPAL o PIB da região cresceu em média 5% ao ano, entre 1960-1981, no mesmo período o crescimento dos países industrializados foi em média 3,8% ao ano (RODRIGUES, 2016, p.20).

Porém, alguns fatores ocorridos na década de 1970, como as duas escaladas do preço do petróleo, fizeram com que a fase de crescimento experimentada pela América Latina cessasse. Desse modo, a busca pelo desenvolvimento guinou por outros caminhos, e as economias latino-americanas precisaram se adequar às exigências do mercado mundial, AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 734

uma vez que a política econômica norte-americana de dólar supervalorizado e enormes déficits orçamentários e nas contas de comércio, colocou a América Latina em uma grave situação em relação a sua dívida pública (BELLUZZO, 2006).

[...] a decisão do FED2 de elevar as taxas de juros influenciou sobremaneira um aumento da dívida da América Latina, pois os empréstimos contraídos por esses países eram em boa parte a juros flutuantes. Já que na década de 1970 grandes projetos de desenvolvimento foram financiados por empréstimos intermediados por bancos europeus e norte-americanos (RODRIGUES, 2016, p.20).

Por esse motivo a década de 1980 foi um período de grande instabilidade para a maioria dos países latino-americanos, de modo que esta década chega a ser considerada por muitos autores como a “década perdida”. Segundo Bresser-Pereira (1991), a crise foi tamanha que: a renda per capita caiu 10%; as taxas de inflação dispararam; os salários reais e os padrões de consumo foram reduzidos; as transferências reais aos países credores tornaram-se altamente positivas; e as poupanças do Estado foram fortemente reduzidas, de modo que este perdeu a “sua capacidade de investir e de promover política de longo prazo de forma a estimular os desenvolvimentos industrial, agrícola e tecnológico” (p.7).

O “fracasso da ideologia desenvolvimentista montou o cenário para o ataque neoliberal, deferido pelos regimes de Thatcher e Reagan”, primeira-ministra britânica (1979-1990) e o presidente americano (1981-1989) da época, respectivamente (WALLERSTEIN, 2009, p.62). Sob a égide dos governos conservadores de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, em 1989, uma mensagem neoliberal ecoou para o mundo: o Consenso de Washington.

Neste consenso, foi imposto o “ajuste estrutural” aos países latino-americanos, uma vez que estes estavam cercados por uma brutal elevação da taxa de juro internacional, que convertia suas elevadas dívidas externas em sugadoras dos seus excedentes econômicos, e, portanto, fadados à estagnação e até mesmo ao retrocesso econômico- social (DOS SANTOS, 2015, p.84).

Para Belluzzo (2006), foi esse ajustamento o que levou os países da periferia a serem, literalmente, capturados pelo processo de globalização, de forma a executar seus programas de estabilização de acordo com as normas dos mercados financeiros

2 FED: Em inglês, Federal Reserve System, mais conhecido como Federal Reserve e, informalmente, como The Fed, é o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos, na tradução literal, Sistema de Reserva Federal. AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 735

liberalizados. “É preciso entender que a regra básica das estabilizações com abertura financeira é a de criação de uma oferta de ativos atraentes que possam ser encampados pelo movimento geral da globalização” (p.32). Isso porque “a política globalizadora e neoliberal redefine as empresas e os países com suas redes internacionais, intranacionais e transnacionais” (CASANOVA, 2006, p.411).

Os órgãos multilaterais foram os grandes disseminadores do receituário neoliberal na América Latina, prestando papel de agentes “cobradores” dos Estados Unidos, fortalecendo e consolidando assim o poderio norte-americano na América. Por exemplo, é possível perceber que, ao longo do tempo, os programas de estabilização propostos pelo FMI estavam sempre acompanhados de reformas que dirigiam a economia para a desregulamentação, para o estado em tamanho mínimo e para o livre comércio. Todavia, a crise da dívida teve um efeito misto sobre o ajustamento da América Latina:

Se, por um lado, a crise tornou as reformas mais dolorosas, ela foi o principal elemento catalisador da mudança. O súbito racionamento de crédito inviabilizou o modelo de crescimento acelerado com endividamento que vinha sendo seguido por muitos países. Os países devedores tiveram que aceitar o tutelamento estrangeiro e implantar reformas neoliberais, em alguns casos por absoluta falta de opção. A influência do modelo de Washington, que já era grande no Cone Sul, espalhou-se por toda a América Latina durante os anos 80. (PORTELLA FILHO, 1994, p. 212)

Essa agenda neoliberal catalisou os anseios do capital mundial de avançar rumo à lucros extraordinários, o que colocou em cheque o modelo de desenvolvimento adotado pelos países latino-americanos até então. Fica no ar a pergunta: Será que a crise evidenciou a exaustão do modelo Cepalino? Essa é uma questão que muitos teóricos buscaram responder no decorrer da década de 1980 (RODRIGUES, 2016).

Segundo Balanco, Pinto e Milani (2003, p. 681) os países latino-americanos ficaram prisioneiros de dois movimentos: a continuidade do pagamento do serviço da dívida e, ao mesmo tempo, a remuneração generosa do capital estrangeiro especulativo. Mais do que isso, é importante destacar o que se constrói a expensas da integração dos povos da América Latina em um mundo globalizado:

Pois a “sociedade de mercado” é colocada como requisito para o ingresso a “sociedade da informação” de maneira que a racionalidade da modernização neoliberal substituiu os projetos de emancipação social pelas AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 736

lógicas de uma competitividade cujas regras não são criadas pelo Estado, mas pelo mercado, convertido em princípio organizador da sociedade em conjunto (MARTÍN-BARBERO, 2006, grifo nosso, p.46).

Agenda neoliberal para a América Latina

A partir da década de 1980 a direção dominante das políticas econômicas se orientou pelo dinamismo continuado do ideário neoliberal. Isso porque o marketing das ideias neoliberais foi tão bem feito que, além da sua identificação com a modernidade, incluiu com naturalidade uma ideia positiva e afirmativa das reformas propostas pelo Consenso de Washington na América Latina.

Sob a invocação de slogans charmosos - globalização, transnacionalização – assume- se na América Latina, no discurso e na ação, postura da dependência externa virtualmente total. Algo que, sem dúvidas, aparenta ser, no mínimo, uma estranha proposta, sobretudo quando apresentada em nome da modernização. Entende-se assim, que as propostas do consenso de Washington deveriam ter sido objeto de repulsa imediata, pelo que significa de agravo ao amor-próprio nacional, uma vez que essas consistiam em: disciplina fiscal, mudanças das prioridades no gasto público, reforma tributária, liberalização financeira, liberalização do comércio, taxa de câmbio de acordo com as leis do mercado, fim das restrições aos investimentos estrangeiros, privatização das empresas estatais, desregulamentação das atividades econômicas, garantia dos direitos de propriedades intelectual (BATISTA, 1994, p. 10 e p. 18).

Segundo Rodrigues (2016), pode-se resumir, de forma prática, três premissas que nortearam as propostas de ajustamento da América Latina:

Primeiro, que os desajustes econômicos originavam-se do excesso de demanda oriunda dos gastos do setor público. Segundo, com o objetivo de incentivar a volta dos empréstimos bancários as dívidas externas deveriam ser completamente pagas e por fim, que aliberalização da economia não levaria a desequilíbrios econômicos e muito menos a aumentar o peso do ajustamento (RODRIGUES, 2016, grifo nosso, p.30).

Aqui vamos nos ater apenas à liberalização da economia, nos seus âmbitos financeiro e comercial. No ponto da agenda relacionado à liberalização financeira, a recomendação é a alteração nas legislações para facilitar o acesso do capital estrangeiro à economia nacional. O objetivo central dessa liberalização é atrair poupança estrangeira através da AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 737

igualação sem restrições entre o capital nacional e capital estrangeiro, sem discriminação aos bancos estrangeiros e sem controle à movimentação de capitais.

Sabe-se que para os formuladores da agenda no Consenso de Washington o Investimento Estrangeiro Direto (IDE) é uma ferramenta importante para complementar a poupança nacional, e por isso deve-se liberalizar os mercados financeiros. Tal consenso partiu da premissa equivocada que os países da América Latina eram hostis ao investimento direto estrangeiro e por isso deram preferência ao capital de empréstimo, o que culminou em graves consequências.

Já no âmbito da liberalização comercial, a recomendação é seguir pela via dos mercados sem barreiras à entrada de mercadorias estrangeiras e a redução das alíquotas de importação, o que estimularia a concorrência entre as nações e uma inserção competitiva no mercado mundial dos países latino americanos. Essa liberalização, entretanto, entra em aberta contradição com o momento atual de intenso neoprotecionismo nos países centrais, uma vez que considera o protecionismo ineficiente, e o tem como um obstáculo para o crescimento e desenvolvimento econômico.

Este modelo de agenda para a América Latina alterou tanto a ordem social interna dos países como a autonomia estatal ante o exterior, pois houve um redesenho institucional muito grande da estratégia do crescimento interno: passou-se a postular as exportações como via de progresso, a estabilidade dos preços e orçamentos preencheu o lugar ocupado anteriormente pelas metas de geração de emprego. Havia uma crença de que no longo prazo os resultados seriam positivos, mas era necessário que, no curto prazo, houvesse uma transição de baixo crescimento, altos índices de desemprego, inflação alta. E com isso foi difundida, nas palavras de Ibarra,

(...) a tese esperançosa de que o jogo livre dos mercados fecharia a brecha do atraso, ao passar não somente pela abertura de fronteiras, como também pela estabilização de preços e contas públicas. Com algum simplismo, postulou-se que o desenvolvimento exportador e de investimento estrangeiro erradicariam a pobreza crônica do subdesenvolvimento (...) (IBARRA, 2011, p.239).

Para Batista (1994, p.10), a elaboração da agenda de políticas de ajustamento do Consenso de Washington foi economicista no seu “diagnóstico”, tanto dos problemas políticos quanto dos sociais. Pois fica implícita a subordinação do âmbito político ao âmbito AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 738

econômico, ainda que tal consenso tenha a democracia e a economia de mercado como objetivos que se complementam. Subordinação essa que deixou de lado questões primordiais para o real desenvolvimento da América Latina, como educação, saúde, distribuição de renda; e isso ocorreu não porque a agenda de Washington entende essas questões de âmbito social como algo a ser trabalhado em uma segunda etapa, mas sim por sustentar que as reformas sociais viriam de uma forma natural com a liberalização da economia.

Portella Filho (1994, p.207) diz haver lacunas graves no diagnóstico feito sobre os problemas latinos americanos, pois foi atribuída pouca importância aos choques econômicos e ao problema das dívidas externas. Essa falha no diagnóstico, na verdade, teve um forte viés ideológico, já que a crise da dívida externa da América Latina ameaçava proporcionar grandes prejuízos aos bancos privados internacionais. Afinal, “os grandes money centers dos Estados Unidos chegariam a emprestar, em média, mais de 60% do respectivo capital ao Brasil, não obstante a existência de teto legal naquele país, para cada banco, de 15% por país tomador” (BATISTA, 1994, p.15).

Sobre isso, dados da CEPAL revelam que, em 1982, o grupo dos maiores bancos norte-americanos havia emprestado à América Latina 179,8% de seu capital, enquanto o restante dos bancos norte-americanos tinha emprestado 85,3%. Diante disso, observa- se o aumento considerável desses fluxos de capitais na América Latina, de forma que, na década de 1990, esse aumento contribuiu para expandir o grau de abertura financeira da América Latina, o que tende a elevar o grau de vulnerabilidade externa, e, por consequência, fortalece a dependência dos mercados externos.

O aumento da vulnerabilidade externa, que reverte às expectativas favoráveis e provoca o refluxo dos capitais, se manifesta na valorização do câmbio real, nos déficits externos, incluindo o crescimento da dívida e de seu serviço, e no superendividamento público (PAINCEIRA; CARCANHOLO, 2002, p.5).

É preciso ressaltar que a dependência do capital externo é uma característica comum dos países da América Latina, apesar da grande heterogeneidade das economias e a compõem. Essa dependência faz com que surtos e choques externos culminem em desequilíbrios, mas, como os países necessitam desse capital externo para saldar os desequilíbrios, esse processo se torna um ciclo vicioso dentro da economia. Além do mais, como já mencionado, os capitais que ingressam nas economias latino-americanas AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 739

são em sua grande maioria de transações especulativas, ou seja, buscam oportunidades de alta rentabilidade em um curto espaço de tempo (RODRIGUES, 2016).

A partir de 1990 surgem muitos questionamentos relacionados aos desdobramentos da agenda neoliberal recomendada pelo Consenso de Washington à América Latina. Questionamentos esses cuja intenção era de avaliar se de fato o modelo econômico recomendado por tal Consenso trouxe um ajustamento real para a economia dos países latino-americanos. Contudo, observa-se que as políticas da agenda de Washington são indicadas como panaceia que serve a todos os países pobres em dificuldade, indistintamente. Não importando se um determinado país tem a economia baseada na exportação de bens agrícolas ou se conta com a forte presença do setor secundário em sua estrutura produtiva. Todos são tratados de forma similar, já que as supostas origens de todos os problemas sempre seriam as mesmas: ”Estado obsoleto”; “falta de competitividade”; “inflação”, etc (PIRES, 2006).

Embora a mensagem do Consenso de Washington tenha sido absolvida por grande parte das elites latino-americanas como sinônimo de modernidade, na prática tal Consenso significou um consenso de conveniência de se prosseguir sem esmorecimento por um caminho já aberto no século passado, tal como um restabelecimento do “pacto colonial”. Ou mesmo semelhante aos tratados de 1810, assinados entre Portugal e Inglaterra em que o primeiro se comprometia a instituir privilégios ao comércio britânico nas áreas coloniais sob seu controle. Essa analogia pode ser feita porque, apesar das políticas neoliberais se mostrarem opostas aos interesses das massas latino-americanas, as elites da América Latina aceitaram as ideias com poucas ressalvas (PIRES, 2006).

O investimento estrangeiro

Conforme explanado nas seções acima, nota-se que nas últimas três décadas do século XX três movimentos centrais e interdependentes promoveram profundas transformações na economia global, todos conducentes ao reforço do poderio econômico americano: a liberalização financeira e comercial; a mudança nos padrões de concorrência; a alteração das regras institucionais do comércio e do investimento (BELLUZZO, 2006). AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 740

A década de 1980 pode ser considerada como uma sequência dos anos 1970 em relação aos fatores microeconômicos. No entanto, em relação aos fatores macroeconômicos, nos anos 1980 houve alterações substanciais, principiando com a mudança da política econômica dos EUA. Pode-se entender estas mudanças, por hipótese, como o fim do keynesianismo e o início da hegemonia de políticas neoliberais. Ao contrário do período de Bretton Woods, nos anos 1980 os EUA passaram a ser grandes absorvedores de recursos financeiros internacionais, dado seu duplo déficit, e o Japão e a Alemanha, os principais supridores, o que funcionou como grande estímulo à globalização financeira. Houve, pode-se dizer, uma financeirização da dívida pública, que serve como lastro último deste processo (DATHEIN, 2005, p. 60).

Ao longo dos anos 90, os mercados financeiros dos países da América Latina atraíram volumosos IDE, os quais assumiram as formas de participações acionárias em intermediários financeiros locais e de instalação de novas sucursais ou mesmo em subsidiárias de controle integral de instituições financeiras estrangeiras. Em termos concretos, o que se tem observado é que esse tipo de investimento em países periféricos, como os da América Latina, é mesmo voltado para aquisições de estatais e para processos de fusões e aquisições, o que, segundo Painceira e Carcanholo,

Tanto um quanto outro, em si, não representam acréscimo significativo de capacidade produtiva, implicando apenas em transferência patrimonial. Em suma, eles não representam acréscimo na capacidade do país em gerar recursos (riqueza) que permitam saldar seus haveres externos, ou seja, o passivo externo do país. (PAINCEIRA; CARCANHOLO, 2002, p. 6)

Esse movimento, de aquisições e fusões, concentra e centraliza os mercados nacionais pelo funcionamento dos dois lados de uma mesma moeda. De um lado,

(...) esse movimento foi estimulado pela nova dinâmica concorrencial das instituições financeiras nos países industrializados, marcada pela eliminação das barreiras entre as atividades dos bancos e das instituições financeiras não-bancárias e daquelas existentes entre as atividades bancárias e de seguro nos países onde já predominava a organização bancária universal (Borio & Filosa, 1995 apud FREITAS; PRATES, 1998, Grifo nosso, p. 185).

E de outro, esse movimento

(...) foi viabilizado pela abolição ou flexibilização das restrições existentes em diversos países à instalação de filiais e de sucursais no mercado doméstico por instituições estrangeiras, à participação de não-residentes no capital social das instituições nacionais e às atividades dos intermediários financeiros estrangeiros nos mercados locais. Essas medidas de liberalização vis-à-vis o tratamento conferido às instituições financeiras estrangeiras foram adotadas tanto pelos países industrializados como pelos países periféricos (Borio & Filosa, 1995 apud FREITAS; PRATES, 1998, p. 185). AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 741

A flexibilização das restrições foram importantes medidas de liberalização financeira para a estabilidade monetária da América Latina, tendo em vista que na década de 1980 e meados de 1990 os países latino-americanos apresentavam altas taxas de inflação. Em contraste com os anos 1980, no final dos anos 90 a taxa anual de inflação se contraiu de três dígitos para um dígito na maioria dos países. Para Salama (2000, p.19) estamos frente a um paradoxo:

(...) por um lado, a liberalização financeira impõe uma relação mais ou menos estável da moeda vis- à-vis ao dólar e a entrada maciça de capitais tende a apreciar a taxa de câmbio real, já bem valorizada pela redução da inflação; por outro lado, a apreciação da taxa de câmbio real em relação ao dólar freia o aumento das exportações e estimula as importações, quanto mais o comércio for diversificado geograficamente (Brasil, Argentina) e o dólar se valoriza em relação às outras divisas-chave.

Sobre as regras institucionais da liberalização financeira, cada país teve seu arcabouço institucional próprio, mas cabe aqui ressaltar três exemplos distintos: Argentina, Brasil e México. Na Argentina, as instituições financeiras encontraram um ambiente mais favorável, pois a legislação argentina adotou o princípio do tratamento nacional para os bancos estrangeiros. O tratamento não discriminatório, conferido ao capital estrangeiro neste país, permitiu recentemente a desnacionalização do sistema financeiro argentino (PRATES E FREITAS, 1998, p.187). No Brasil e México as condições a vigor para o estabelecimento de filiais por instituições não residentes e para a participação no capital social de instituições nacionais locais são mais restritivas. Segundo Rodrigues,

No México, até a década de 1990, prevalecia a mais completa restrição aos bancos estrangeiros no país, pois só era permitida a presença dessas instituições sob a forma de escritórios de representação, apenas depois da promulgação de uma nova lei das instituições de crédito, em julho de 1990, inicia um processo de liberalização nas condições de acesso dessas instituições. No Brasil não era muito diferente, sempre houve regras restritivas, e só a partir de 1995 com pressões e exigências de algumas instituições internacionais, como Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), Mercado Comum do Sul (Mercosul), que as regras começaram a se alterar atraindo o grande volume de instituições financeiras estrangeiras. (RODRIGUES, 2016, p. 49)

Há, porém, uma tendência em comum entre os países latino-americanos: o aumento da taxa de juros, usada para atrair novo influxo de capital que entrava buscando altas oportunidades de lucro, muitas vezes criadas pelo regime cambial adotado. Em geral, essa política de taxas de juros altas é “um freio ao investimento e pesa muito sobre o AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 742

serviço da dívida interna dos Estados, aprofunda rapidamente os déficits orçamentários destes e é fonte de ceticismo crescente quanto à política econômica do governo”. Por isso, essa política é considerada insuficiente para restabelecer a confiança dos mercados, mas ainda assim os países seguem com uma agenda de política de austeridade (SALAMA, 2000, p.24).

Dessa maneira, o regime de acumulação de dominância financeira torna-se progressivamente uma armadilha, do qual é difícil sair sem provocar uma crise. Com isso os IDE implicam em riscos financeiros consideráveis, em especial para os países periféricos, tais como risco de crise bancária e risco de crise cambial. Entretanto, por mais que a liberalização dos mercados facilite as crises nos países periféricos, seria um reducionismo causal afirmar ser a liberalização financeira a grande causa das crises financeiras ocorridas nos países latino-americanos. Essa pode ser considerada um fator agravante, uma vez que a adoção de políticas liberalizantes faz com que a mobilidade do capital internacional provoque oscilações cambiais e financeiras (RODRIGUES, 2016).

Por fim, devemos destacar que qualquer balanço atual do neoliberalismo, com ou mesmo sem dar ênfase ao IDE, só pode ser um balanço provisório, isso porque este é um movimento ainda inacabado. Por hora, pode-se dizer que:

Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje (ANDERSON, 1995, p.23).

Considerações Finais

Modernidade é um enunciado que introduz no debate uma distorção irresistível devido a sua pluralidade. Para pensar a crise da modernidade a partir da América Latina é necessário reconhecer-se na periferia, e quebrar com o projeto de universalidade que insiste homogeneizar a América Latina. Pensar a crise traduz a tarefa de dar conta do nosso particular mal-estar com a modernidade, de um modo descentralizado, separado da inclusão e da apropriação da modernidade. AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 743

Na América Latina, o processo de modernização esteve ligado, em seu início, nos anos 1920-1950, à adequação das economias de seus países às exigências do mercado mundial. O segundo projeto, nos anos 1960-1970, ao desenvolvimento nacional. A partir da década de 1980 o projeto de modernização voltou a seguir as exigências do mercado mundial, mas desta vez ligado às políticas neoliberais.

Havia uma expectativa quanto as políticas neoliberais de abertura comercial e desregulamentação das economias nacionais. Esperava-se que esta fosse a retomada do crescimento, modernização do parque produtivo Latino-Americano, e com isso, viesse uma maior participação na produção mundial. Este modelo de economia, presente no Consenso de Washington, constituiu, na realidade, embora tenha sido apresentado como uma fórmula de modernização, uma receita de regressão a um padrão econômico pré- industrial, caracterizado por empresas de pequeno porte e fornecedores de produtos mais ou menos homogêneos.

O Consenso de Washington, além de contraditório com as práticas dos Estados Unidos e dos países desenvolvidos em geral, contém várias incoerências nos seus próprios termos. Revela-se em especial inadequado quando se tem em conta que sua avaliação e prescrições se aplicam de maneira uniforme a todos os países da região, independentemente das diferenças de tamanho, de estágio de desenvolvimento ou dos problemas que estejam concretamente enfrentando. O diagnóstico e a terapêutica são virtualmente idênticos tanto para um imenso Brasil já substancialmente industrializado quanto para um pequeno Uruguai ou Bolívia ainda na fase pré-industrial.

Além disso, o apresentar suas propostas de “abertura pela abertura” como um fim em si mesmo, a agenda de Washington não menciona o que de fato se pratica no “Primeiro Mundo” que nos aponta como modelo. Isso porque os países desenvolvidos não fazem com o mesmo rigor o modelo que nos receitam tão dogmaticamente, isso quando o praticam. Dessa maneira, pode-se dizer que essa agenda neoliberal representa uma mudança irrealista na maneira de visualizar os problemas de modernização e desenvolvimento das economias latino-americanas.

Assim, os resultados do neoliberalismo na América Latina, apesar dos esforços dos meios de comunicação em só mostrar os aspectos considerados positivos, não podem AGENDA NEOLIBERAL: A MODERNIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SARAH GONÇALVES PATROCÍNIO SARTÓRIO 744

deixar de ser vistos como modestos, limitados que estão à estabilização monetária e ao equilíbrio fiscal; copiosa mesmo é a miséria crescente, as altas taxas de desemprego, e a tensão social, dentre outros graves problemas. O que cresce mesmo é o processo de globalização, que é o que promove a mudança nos sistemas financeiros.

Entretanto, por maior que seja a globalização e sua expansão, sem uma séria política de desenvolvimento, não se moderniza um país. Lê-se política de desenvolvimento como sendo um projeto econômico nacional, que tenha a capacidade de definir, minimamente, o que o país se considera apto a produzir a médio e a longo prazo, com capitais próprios ou estrangeiros, com tecnologia nacional ou importada.

Mas uma coisa é certa: não há modernização e nem desenvolvimento se nos resignarmos a trabalhar sobre a base de “consensos” construídos de fora para dentro, os quais, por esse mesmo motivo, refletem mais os interesses externos do que os nossos. Afinal, “os países, a rigor, não têm amigos, mas sim, interesses” (General De Gaulle).

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Histórias alter-nativas: um mapa da produção de intelectuais indígenas no século XXI

SEBASTIÃO VARGAS Doutor em História, é professor de História da América na UFRN. Este artigo é um dos frutos de duas pesquisas pós-doutorais: “Palavras escritas e faladas: uma análise da produção de intelectuais mapuche no Chile”, desenvolvido no Instituto de Estudios Avanzados (IDEA) de la Universidad de Santiago de Chile (USACH) sob a supervisão de Eduardo Devés-Valdés e financiamento de bolsa concedido pela Capes (2015-2016); e a investigação “Sembrando palabras del color de la tierra: historias de vida, educación y medio ambiente entre intelectuales mayas de Chiapas”, realizada no primeiro semestre de 2018, no Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS-Sureste), em San Cristóbal de las Casas, com a colaboração da antropóloga Araceli Burguete Cal y Mayor e financiamento da Agencia Mexicana de Cooperación Internacional para el Desarrollo (AMEXCID). [email protected]

Divina señora, que estás en el cielo; Divina señora, que estás en la tierra; Dueña del firmamento, Dueña del mundo. Despierta las palabras Solo así podré empezar la nueva siembra Solo así podré imitar la voz de los pájaros Junto mis manos, así como la tierra Así como ellos juntaron sus cantos Y que nazca la voz de lo profundo de mi ombligo El consejo profundo que se junta El consejo profundo que se impregna En las paredes de mi memoria Todo el dolor Todo el seco llanto Todas las señales De mi estirpe, de mi linaje, mi raíz En este barro hundidizo que soy. Manuel Bolom Pale, poeta tsotsil

Essa apresentação é resultado de pesquisas realizadas no Chile e no México, onde tive a oportunidade de analisar várias obras e realizar entrevistas com indígenas intelectuais (no primeiro caso, que gravitam em torno da Comunidad de Historia Mapuche; no segundo, uma rede de sentipensadores mayas - artistas plásticos, poetas, lutador@s HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 747

sociais, sacerdotes, historiadores, antropólogos, cientistas sociais, médicos tradicionais - muito influenciados pelo “horizonte cultural” aberto pela insurreição zapatista de 1994). Foi nosso intento, nessas ocasiões, refletir sobre as inovações conceituais/artísticas; os principais referenciais teórico-metodológicos; as propostas epistemológicas e as temáticas abordadas, contribuindo para a difusão e discussão sobre as expressões do múltiplo e riquíssimo pensamento indígena nuestroamericano que emerge da “periferia da periferia” e que ainda são relativamente pouco conhecidas no Brasil.

As dificuldades e incômodos que parte da intelectualidade latino-americana apresenta ao encarar analiticamente a produção dos estudiosos indianistas provêm precisamente do fato de sua obra denunciar o colonialismo inerente às ciências humanas praticadas na América Latina. Ao descontruir a maneira como os “outros” (intelectuais, indigenistas, historiadores, antropólogos, cronistas e escritores não indígenas) vêm tematizando sobre os indígenas, esses pensadores deslocaram a problemática e, desde a perspectiva crítica da sociologia da dominação (e de sua própria condição sócio-histórica de oprimidos), implementaram um salutar curto-circuito em esquemas longamente preestabelecidos, de quebra, brindando o quadro do pensamento latino-americano com excelente história social crítica.

A recente entrada em cena no mundo acadêmico de intelectuais indígenas enriquece o debate sobre a necessidade de impulsionarmos a pluralidade epistemológica que permita “a emergência de saberes em que a ciência possa dialogar e articular-se com outras formas de saber, evitando a desqualificação mútua e procurando novas configurações de conhecimentos” (Santos et al., 2005, p. 24). O que os pensadores indígenas estão questionando é o caráter monolítico do cânone epistemológico “ocidental” (e da dimensão epistemológica do colonialismo) e afirmando a relevância epistemológica, sociológica, histórica e política da diversidade interna das práticas científicas, dos diferentes modos de fazer ciência e da necessidade de estabelecer relações profícuas entre a chamada “ciência” e outros conhecimentos. Nesse tipo de “ecologia de saberes”,

Las memorias subalternas re-emergen y con esta remergencia, gran parte del edificio antropológico- historiográfico parece tambalear sobre sus bases. Las historicidades, construcciones y usosdel pasado así como las memorias se ubican definitivamente, lo quiera uno o no, al centro de la reflexión de las ciencias sociales de hoy día. La escritura de las historias y etnografías de los indígenas ya no pueden realizarse sin considerar las historias, memorias y epistemologías alter-nativas. Se trata de establecer lo que algunos llamaron un “diálogo colaborativo” (Boccara, 2013, p. 4). HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 748

As potencialidades desses diálogos são extraordinariamente fecundas e nos oferecem todo um novo roteiro de estudos e interrogações. Pensemos, por exemplo, nas “reflexões deslocadas” que frutificaram da colaboração entre o sábio qom Timoteo Francia e a antropóloga argentina Florencia Tola (2011); nas contundentes palavras do ianomâmi David, que Bruce Albert (2002) chamou de “crítica xamânica da economia política da natureza”; nas sofisticadas e inovadoras reflexões do intelectual e músico zapoteco Jaime Martínez Luna (2010) sobre os múltiplos sentidos da “comunalidad”; nas ousadas epistemologias do coração, elaboradas pelo sociólogo maya Juan López Izín (2016), que nos revela termos/conceitos/segredos guardados nas línguas tsental e tsotsil “veredeando por los conocimientos y la trama que ha hilvanado la urdimbre de nuestra vida”: o sentipensar-sentisaber e o rimbaudiano/antropofágico “yosotros”.

O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro formula uma interrogação inquietante: “o que acontece quando se leva a sério o pensamento nativo?” Este é o desafio que os pensadores indígenas lançam para toda a América Latina. Por que isso deve parecer, nas próprias palavras do antropólogo, tão “impossível”? “Levar a sério é, para começar, não neutralizar”, avança Viveiros de Castro (2015, p. 227). Já é mais que tempo do pensamento latino-americano encarar com seriedade e respeito as múltiplas potencialidades desse pensamento indígena tão obliterado, tão neutralizado, tão ignorado. Se queremos multiplicar as possibilidades do nosso mundo (e de outros mundos possíveis) abrindo caminhos para democratizar a democracia, por que não aceitar o desafio lançado por esses indígenas pensadores e experimentar os efeitos que esse pensamento pode produzir no nosso? Se é verdade que não podemos pensar como os indígenas, por que não pensar com eles? Sobretudo e verdadeiramente, aprender com eles?

Diversos autores destacam que um dos fenômenos sociopolíticos e culturais mais relevantes ocorridos na América Latina nos últimos 30 anos pode ser definido como a emergência indígena, isto é, a irrupção e presença de novas identidades e expressões étnicas, demandas e mobilizações dos povos originários no continente. Algo que emerge, supõem esses autores, esteve afundado, submerso de alguma forma. Efetivamente, ao olharmos a história indígena desde essa perspectiva, constatamos longos processos de invisibilização e silenciamento sofridos pelos indígenas, somente quebrados por lapsos de violência, insurreições e mobilizações nas quais o rosto propriamente índio muitas vezes foi escamoteado. Emergência, concordam os autores, também está sob o signo HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 749

da urgência. A situação das massas indígenas na América Latina é uma das maiores urgências políticas e culturais do continente.

Pelo menos desde a década de 1990, diversas temáticas relacionadas aos povos indígenas da América Latina vêm ganhando espaço na reflexão e produção dos estudos históricos latino-americanos, impactando e vitalizando positivamente seu panorama e oferecendo uma imprescindível contribuição para o esforço de autoconsciência latino- americana, consequente com a tarefa de descolonização das paisagens mentais e dos cânones, tanto teóricos e epistemológicos como temáticos.

O protagonismo político e cultural dos movimentos étnicos que irromperam um novo ciclo de protesto social no cenário latino-americano teve alguns pontos culminantes no levante indígena do Equador em 1990, nas “anticomemorações” do V Centenário do Descobrimento da América em 1992 em todo o continente e na insurreição zapatista de Chiapas em 1994. Uma das chaves deste processo é a criação de uma discursividade própria, que tenta colocar um fim na tutela e mediação externa. Era a chegada dooutro indígena que falava sobre si mesmo: sobre e desde sua diferença (Dávalos, 2005). Alguns autores inserem essa emergência num horizonte ideológico denominado indianidade que, no quadro das ideias do continente americano, seria tanto um novo produto do indigenismo como sua superação dialética. Esse novo horizonte ideológico (que apresenta um programa político plasmado pelos ideais de autonomia), apesar de sua relativa juventude, tende a ancorar-se em um longo passado, bebendo em tradições culturais ancestrais (evidentemente não isentas de transformações) dos povos nativos. Como expressão ideológica dos próprios nativos, em vários sentidos em oposição aos antigos representantes do indigenismo, a indianidade tende a se converter em uma corrente de pensamento própria e genuína, tratando de expressar, interpretar e solucionar os anseios das massas indígenas de modo autodeterminado (Berdichewsky, 2005).

O antropólogo chileno José Bengoa, um dos mais destacados estudiosos da emergência indígena, assinala que uma das características principais desse processo complexo é a existência de um novo discurso identitário que deve ser lido sob a dupla chave interpretativa da “reinvenção” e da “crítica”: HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 750

Los indígenas han ido construyendo un complejo discurso que no sólo se refiere a sus propios problemas, sino que aborda los asuntos más profundos de las sociedades latinoamericanas: su identidad, su historia y su futuro. No estamos enfrentados a una mirada tradicionalista y conservadora de la historia. Los indígenas proponen un amplio espacio de utopía, basado en lo que fueron las sociedades indígenas pero reformuladas absolutamente en el contexto de la modernidad (BENGOA, 2016, p. 222).

Esse desafiante e subversivo exercício de (re)leitura, (re)escritura e (re)existência crítica (Porto-Gonçalves, 2006) levado a cabo pelos indígenas estaria contribuindo para uma cultura indígena reinventada (com etnonarrativas ressignificantes da realidade e da história), formulada por diversos atores das sociedades indígenas contemporâneas, entre os quais se destaca um sujeito relativamente novo: o intelectual indígena com formação acadêmica.

La violencia colonial no es solo retórica o invención de los “intelectuales indígenas”: es sangre, sudor y lágrimas a cuestas. Jaime Antimil Caniupan, historiador mapuche

A historiadora chilena Claudia Zapata (2013), numa obra incontornável sobre a temática, afirma que a categoria intelectual indígena é sustentada por duas condições básicas: (1) a identificação com a corrente de pensamento que afirma a existência de “intelectuais situados”, que reconhecem o pertencimento a um setor específico da sociedade (etnia, classe social, setores subalternos ou oprimidos, setores racializados, gênero); (2) a dimensão de compromisso político, para quem assume a identidade étnica e o pertencimento a uma sociedade ou coletividade indígena (um complexo processo que se inicia com o que a autora chama de “apropriação da biografia”), que conforma o lugar específico de enunciação da sua escritura e o próprio eixo de seu labor intelectual. Entre os instigantes aportes trazidos pela autora está o entendimento dos intelectuais indígenas como sujeitos históricos mais que culturalmente diferenciados (se bem que essa dimensão é altamente relevante e foi considerada em suas análises), pertencentes a sociedades das quais herdaram práticas culturais, histórias e memórias, mas também uma posição social e um estigma cuja responsabilidade recai, contemporaneamente, nas sociedades nacionais (colonialismo interno e internalizado). Zapata entende, pois, os intelectuais indígenas (e sua escrita) “como sujetos culturalmente complejos, que se constituyen en la intersección con la sociedad mayor, donde detentan una posición subordinada” (Zapata Silva, 2013, p. 414).

Ao realizar um amplo estudo da produção contemporânea de intelectuais indígenas no Equador, Peru e Chile, Claudia Zapata aborda exaustivamente questões como as HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 751

condições históricas que possibilitaram o surgimento desse novo sujeito indígena, historiando as transformações das sociedades indígenas contemporâneas (temas como migração/urbanização; processos de “reetnização”; acesso à educação superior; papel das organizações étnicas; representações e polêmicas em torno dos termos etnointelectual/ intelectual indígena) e analisa as características, condições de produção e modalidades da escrita desses autores. Zapata nos oferece um mapa da questão, resenhando criticamente a produção indigenista/indianista latino-americana da última metade do século XX, propondo a existência de duas grandes vertentes, posturas e discursos dos e sobre os indígenas que, grosso modo, são denominadas nativistas/essencialistas e historicistas. As posições teóricas de tipo nativista elaboram e promovem uma representação de um mundo indígena articulado e idealizado em contraposição às de tipo historicista, que afirmam a existência de coletivos culturalmente “distintos”, mas, ao mesmo tempo, vinculados e subordinados ao resto de sociedades mais amplas.

En la primera de estas opciones, el mundo indígena posee fronteras culturales claras, sin fisuras ni conflictos, salvo aquellos que provienen del exterior de esos límites pero que no alcanzan a alterar su ethos, el cual puede estar oculto o replegado, pero que subyace como núcleo duro capaz de proveer de identidad a los sujetos que integran el colectivo (por lo tanto, la relación entre cultura e identidad es aquí de correspondencia). Esta descripción constituye el extremo más esencialista de esta opción, mientras que otros autores se desplazan un tanto, especialmente cuando se proponen dar cuenta de la relación con la sociedad mayor en sus distintos niveles – local, regional, nacional y continental – pero la representación que ellos elaboran puede ser calificada como nativista cuando predomina en ella la apelación idealizada a un mundo poco interferido por la cultura occidental (ZAPATA SILVA, 2013, p. 260).

No caso da vertente historicista – como o termo indica – encontramos uma ênfase na mudança e na crítica às formas de tratar o presente e o passado que desconhecem este dinamismo, insistindo em transmitir uma imagem compacta e atemporal do mundo indígena, cujo corolário mais perigoso é a exclusão de setores das sociedades indígenas que não se enquadram nesse retrato que alça a tradição e os saberes ancestrais (ou seja, a comunidade rural) em um lugar de suposta “superioridade”. Entre os expoentes dessa vertente também se fala de um mundo ou cultura indígenas ressaltando, porém, sua diversidade: uma totalidade heterogênea que estaria composta por distintos sujeitos indígenas (como os indígenas urbanos, por exemplo). Como veremos mais adiante, com a análise concreta da produção de historiadores mapuche, tal esquematização não está isenta de contradições. HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 752

Ao analisarmos as características gerais da produção realizada por esses intelectuais (tanto os essencialistas como os historicistas), fica evidente a centralidade da História como ingrediente fundamental para a formação dos seus discursos e pensamentos, quaisquer que sejam as disciplinas onde os distintos autores se domiciliam, tais como a historiografia, antropologia, sociologia, estudos literários, direito, etc. Nossa hipótese, em sintonia com as argumentações de Claudia Zapata, é que a centralidade da História no pensamento indígena provém de um conteúdo praticamente transversal no seu discurso: a afirmação de um vínculo colonial entre as sociedades indígenas e os Estados nacionais latino-americanos, o que os impele a refletir sobre as continuidades e mutações do colonialismo, seus efeitos e as estratégias para sua superação.

O fato de a relação entre indígenas, escritura e produção de conhecimento ter uma antiga trajetória na América Latina, que remonta pelo menos ao período colonial, levou estudiosos a utilizarem o termo intelectuais indígenas “recentes” para se referirem especificamente aos indígenas que foram formados em instituições de ensino superior e cujo labor intelectual assume um compromisso com suas coletividades de origem (Canales Tapia, 2014). Desse modo, a produção acadêmica de pesquisadores indígenas – menos visível, por exemplo, que o “intelectual dirigente” (Zapata Silva, 2007) – não pode ser desvinculada do contexto de mobilizações com o qual se articula, fazendo parte da ação política desses sujeitos.

A criação de instituições e espaços de pesquisa que pudessem impulsionar a autonomia do trabalho intelectual de autores indígenas foi essencial nesse processo emergente. Em meados da década de 1980, surgem espaços similares como o Taller Cultural Causanacunchic (TCC) no Equador, o Taller de Historia Oral Andina (THOA) na Bolívia e o Centro de Estudios y Documentación Mapuche Liwen (CEDM-Liwen) no Chile, cujos eixos ou anseios comuns eram, nos termos dos seus membros, “auto descobrir- nos”, “descolonizar nossa consciência”, “reconstruir nossa autoestima”, “ressemantizar a versão oficial”, “contar nossa própria história com nossa palavra”.

Essa multifacetada escritura e voz indígena, ainda na década de 1990, anunciava que “tinha vindo para ficar”: seu principal timbre era, e ainda é, a crítica e a denúncia social. Reivindicando incansavelmente a interdependência entre ciência e política, revisando e questionando heranças ético-epistemológicas que lhes parecem injustas e colonizadoras, HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 753

os intelectuais indígenas (e entre eles muito particularmente seus historiadores) contribuem para a corrente crítica do pensamento sócio-histórico nuestroamericano de modo radical. Apesar de relativamente incipiente como reflexão teórica no Brasil, esse movimento, que Cristiane Portela e Mônica Nogueira (2016) chamaram de autoria indígena, já possui uma história de diálogos e tensões bastante relevante com as linhas de estudos sobre subalternidade, polemizando não somente com as historiografias “dominantes” e/ou sociologias “tradicionais”, mas também com a vertente pós-colonial latino-americana (Almeida et al., 2013) e até mesmo com figuras de proa do chamado pensamento descolonial (Lander, 2005). A produção de autores indígenas é marcada por tensões e questionamentos – tanto no nível de seus postulados ideológicos e epistemológicos como no nível da linguagem utilizada – resultados de uma interação conflitiva com o conhecimento estabelecido, com o qual discute criticamente suas categorias, periodizações e metodologias. Autores como a socióloga aimará Silvia Rivera Cusicanqui (fundadora do THOA) ilustram bem a maturação dessa vertente crítica do pensamento indígena ao denunciar o que consideram as “agendas ocultas” em discursos/ conceitos influentes na “geopolítica do conhecimento” sobre a América Latina, tais como: indigenismo/indianismo; multiculturalismo; estudos subalternos; epistemologias do sul; colonialidade do saber; identidades nacionais e processos de hibridação cultural. Cusicanqui é veemente na crítica das estruturas hierárquicas e piramidais de poder e capital cultural e simbólico, denunciando o jargão e o aparato conceitual do, segundo a autora, “pequeno império dentro do império” representado por intelectuais como “Mignolo, Quijano, Dussel, Walsh, Sanjinés e Canclini”, que, na sua visão, elaboram um discurso sobre descolonização sem uma práxis efetiva correspondente, acabando por renovar práticas efetivas de colonização e subalternização:

Creo que el multiculturalismo de Mignolo y compañía es neutralizador de las prácticas descolonizantes, al entronizar en la academia el limitado e ilusorio reino de la discusión sobre modernidad y descolonización. Sin prestar atención a las dinámicas internas de los subalternos, las cooptaciones de este tipo neutralizan. Capturan la energía y la disponibilidad de intelectuales indígenas, hermanos y hermanas que pueden ser tentados a reproducir el ventriloquismo y la alambicada conceptualización que los aleja de sus raíces y de sus diálogos con las masas movilizadas (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 64). HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 754

As críticas de Rivera Cusicanqui não são incomuns no campo teórico indianista latino- americano. O historiador mapuche José Luís Cabrera Llancaqueo e o machi1 Augusto Aillapán Paillafil, na introdução da obra conjuntaMachi mongen tani Santiago warria mew (vida de un machi en la ciudad de Santiago), consideram que

(...) tanto el pensamiento indianista como el pensamiento decolonial plantean un cambio civilizatorio; sin embargo, las diferencias se perciben a partir de los sujetos que llevan a cabo dicho cambio. Si bien es cierto que Quijano o Mignolo dan una importancia a los indígenas dentro de su programa, no es posible advertir una liberación de éstos en particular, sino, más bien, de todos los sectores que han vivido los efectos nocivos de la colonialidad eurocéntrica y capitalista en América Latina. A esto se suma que los impulsores del cambio epistémico (Quijano, Mignolo, Dussel, Lander, Walsh, etc.) no son indígenas, por lo que el pensamiento decolonial fácilmente puede ser considerado como una instancia de dominación e indigenismo; es decir, un programa donde los no indígenas pretenden hablar por ellos y fijar su agenda política. Esto es crucial para comprender las diferencias entre un programa y otro, pues el pensamiento indianista surge, precisamente, en contra de las políticas de corte indigenista que los Estados de América Latina implementaron para lograr la asimilación forzosa de los pueblos indígenas a las culturas y sociedades nacionales (CABRERA LLANCAQUEO e AILLAPAN PAILLAFIL, 2013, p. 46).

A obra é um surpreendente amálgama entre duas “vozes” mapuche e se reveste de importância simbólica, como exemplo de uma prática historiográfica produzida pelos próprios pensadores mapuche que tem como objetivo explícito contribuir para a reinterpretação da história e reconstrução identitária da nação mapuche explorando possibilidades epistemológicas abertas pelo diálogo entre o kimün2 histórico mapuche (sabedoria étnica) e o pensamento crítico-reflexivo oriundo da academia (estudos da descolonização). Utilizando metodologias da história oral experimentadas pelo Taller de Historia Oral Andina (THOA) e pelo Centro de Estudios y Documentación Mapuche Liwen (CEDM-Liwen), os autores se ressentem das dificuldades, ainda hoje, em praticar esse tipo de historiografia no Chile e fustigam o que chamam de “história acadêmica” refratária às mudanças epistêmicas que implicam uma reelaboração dos critérios de verdade na disciplina e “encarnan el asalto del pasado de modos menos regulados por el oficio y el método, en función de necesidades del presente, afectivas, morales o políticas” (CABRERA LLANCAQUEO e AILLAPAN PAILLAFIL, 2013, p. 50), ou seja, pelas vivências que experimentam as subjetividades do presente. Entre seus principais referenciais teóricos

1 Autoridade religiosa e espiritual mapuche. Como xamã, detém funções medicinais, de proteção e conselho em benefício da comunidade.

2 Conhecimento e sabedoria mapuche. Proveniente dos ensinamentos dos antepassados, é reconstruído de maneira permanente pelos indivíduos a partir do conhecimento e da prática dos mecanismos e axiomas da cultura. HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 755

estão os escritos da argentina Beatriz Sarlo sobre memória e subjetividade e as reflexões da indiana Gayatri Spivak. Muitos autores mapuche compartilham as ideias da intelectual indiana de que não se pode falar pelo subalterno e que a tarefa do intelectual comprometido com os processos de descolonização deve ser criar espaços e condições por meio dos quais o sujeito subalterno (ou, como preferem os mapuche, “explorado”) possa falar e possa ser ouvido (Spivak, 2010). Os autores definem sua pesquisa como We kuifike (algo como nova história mapuche), inserida numa linhagem que continua e aprofunda os trabalhos iniciados pelo CEDM-Liwen no final da década de 1980, passando pelos textos emblemáticos como os de José Ancan (1994) sobre os mapuche urbanos; a fusão entre oralidade e literatura (oralitura) realizada por Elicura Chihuailaf no seu precioso Recado confidencial a los chilenos (1999); o paradigmático ¡…Escucha, winka…! Cuatro ensayos de Historia Nacional Mapuche y un epílogo sobre el futuro (Marimán Quemenado et al., 2006) e as duas principais obras plasmadas pela Comunidad de Historia Mapuche (CHM), Ta iñ fijke xipa rakizuameluwün. Historia, colonialismo y resistencia desde el país Mapuche (2012) e Awükan ka kuxankan zugu Wajmapu mew. Violencias coloniales en Wajmapu (2015).

Uma outra pesquisa emblemática do cruzamento entre saber tradicional mapuche, antropologia e história oral é o texto Las ‘zonas grises’ de las historias mapuche: colonialismo internalizado, marginalidad y políticas de la memoria do historiador e antropólogo (membro da CHM) Héctor Nahuelpan Moreno (2013). O autor mapuche se refere às “zonas cinzas e indefinidas” das “micro-histórias” mapuche para analisar histórias e experiências cotidianas e contraditórias (contrahistorias, segundo Nahuelpan Moreno) que são formativas das múltiplas identidades mapuche, mas que foram ignoradas, silenciadas ou encobertas pela “prosa historiográfica nacionalista chilena, la mapuchografía indigenista, así como por el discurso histórico nacionalista mapuche” (Nahuelpan Moreno, 2013, p. 273). Ao recuperar a dimensão subjetiva da violência e do sofrimento social alojado nessas “zonas cinzentas” das histórias mapuche que, na perspectiva do autor, são as bases da insurgência atual, Héctor Nahuelpan Moreno se esforça por descentralizar as autorrepresentações mapuche que aparecem como uma totalidade homogênea, essencialista e harmônica (tanto no passado como no presente) e conclama à construção de um novo projeto político que reflita exatamente essas caraterísticas heterogêneas, contraditórias, complexas e xampurriadas3 atualmente experimentadas pelos mapuche.

3 Xampurria indica mescla, mistura. O termo vem ganhando popularidade entre pensadores mapuche principalmente HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 756

A bibliografia utilizada por Nehuelpan Moreno nesse texto – considerado uma referência importante por outros autores mapuche – pode nos servir como quadro ilustrativo do “arsenal” teórico dos intelectuais mapuche atuais. Em primeiro lugar (e novamente), o distanciamento crítico das propostas sobre colonialidade e descolonialidade de autores como Aníbal Quijano e Walter Mignolo, que, segundo ele, tendem a transformar as experiências de dominação colonial de longas lutas sociais dos povos indígenas

(...) en una economía de ideas dentro de mercados transnacionales de conocimiento y que son consumidas en las periferias académicas como modas teóricas. Como ha sostenido Rivera Cusicanqui (2012), las modas teóricas como las propuestas decoloniales pasan, pero el colonialismo queda (NAHUELPAN MORENO, 2013, p. 14).

Além da historiadora aimará, grande parte das referências utilizadas são de autores indígenas como o historiador maya kakchikel Edgar Esquit (2010), que teoriza sobre o conceito de contrahistorias em suas análises do discurso e do imaginário das correntes mayanistas da Guatemala; vários autores mapuche (em sua maior parte vinculados à CHM) e autores organicamente ligados à insurgência zapatista, como a socióloga Xochtil Leyva Solano e Andres Aubry. As referências ao pensamento anticolonial, uma constante na produção dos intelectuais mapuche às obras de pensadores da africanidade como Aimé Cesaire, Franz Fanon e Albert Memmi (importantes por desenvolverem o conceito de colonialismo internalizado). O pensador latino-americano mais utilizado é o mexicano Pablo González Casanova (2015), sobretudo por suas teorizações pioneiras sobre as dimensões do colonialismo interno. Provavelmente, o historiador chileno mais citado seja Jorge Pinto. Pensadores ligados a diversas correntes marxistas, como Gramsci (intelectual orgânico), Eric Wolf (sobre a concepção de “povos sem história”) e David Harvey (mutações e continuidades históricas do imperialismo), e libertários, como James Scott (sobre a arte de resistência), também são presença relativamente constante na bibliografia manejada por esse (e muitos outros) membro da CHM.

Em 2012, com oito anos de maturação de discussões e estudos coletivos, aparece o primeiro volume da CHM Ta iñ fijke xipa rakizuameluwün.4 Historia, colonialismo

depois da crua e libertária obra do escritor, poeta e professor de história e mapudungun Javier Milanca: Xampurria: somos del lof de los que no tienen lof (2015).

4 Literalmente, significa “nossas diferentes formas de nos pensarmos”. HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 757

y resistencia desde el país Mapuche, saudado por estudiosos como o historiador estadunidense Charles R. Hale como uma obra de alta qualidade acadêmica e que apresenta um nível impressionante de diálogo entre os autores. O livro é uma clara demonstração de autonomia da contribuição indígena para repensar a história indígena e um exemplo da robustez da intelectualidade, que, na pertinente expressão do filósofo chileno Eduardo Devés-Valdés, “emerge desde la periferia de la periferia” (Devés-Valdés, 2013). A principal caraterística da obra é a estratégia de deslocamento de certas categorias, ideias e lugares-comuns historiográficos a começar, como escreveu o historiador John Monteiro para a contracapa do livro, “con la própria idea del intelectual indígena”.

Na introdução da obra, os 13 autores firmam um texto-manifesto (escrito primeiramente em mapudungun e traduzido para o espanhol) que reflete sobre a histórica intervenção mapuche na esfera letrada, fazendo questão de “envolver” todos aqueles agentes – que não escreveram ou não escrevem –, mas que tiveram seus conhecimentos “capturados” pelas

(...) maquinarias escriturales de misioneiros, cronistas, historiadores, etnólogos, antropólogos que han gozado y gozan de prestigio como especialistas “sobre” lo Mapuche. Somos parte de esa historia escritural ignorada por la sociedad chilena, subestimada por la arrogancia y tutelaje académico de quiénes se han erigido en especialistas de “la” historia o “la” cultura Mapuche, y lamentablemente desconocida por la mayor parte de los Mapuche “educados” en el dominio wingka de la escuela (CHM, 2012, p. 16).

Sustentam que aqueles que se dedicam ao labor intelectual (rakizuamün) de modo algum devem formar parte de uma elite dentro do povo mapuche e consideram problemático o uso de categorias como “intelectual indígena” ou “cualquier término que pretenda enclaustrar/elitizar nuestro quehacer reflexivo” (CHM, 2012, p. 18). Os autores reconhecem as óbvias influências do “conocimientowigka y las contradicciones que esto genera (y nos genera)”, mas explicitam que a atividade intelectual mapuche busca expressar o chamado “bom conhecimento” ou küme kimüm que se nutre das vivências, pensamentos, sentimentos, atitudes e palavras que cultivam e refletem o mapuchegen (modo de sentir/viver/ser mapuche), mesmo sendo conscientes do quão complexo e problemático é desenvolver plenamente o mapuchegen5 sob o peso do colonialismo, do racismo e da exploração.

5 Mapuchegen também pode ser expresso como Mapuche tañi az mogen, ou “cultura mapuche”: suas formas de ser, fazer e sentir coletivamente. Mogen pode ser interpretado como “vida”, entendendo-se que na cosmovisão tradicional mapuche todos os elementos que constituem o universo são “seres vivos”. HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 758

Es por esto, que ejercer soberanía epistemológica y práctica a través de nuestras autorías, a la vez que generar espacios propios de difusión, resulta preponderante en la batalla contemporánea por recuperar la agencia física, económica y espiritual de nuestro pueblo en la “economía global del conocimiento”. Queremos situarnos allí – con todas, y a pesar de nuestras contradicciones – por medio de la acción colectiva y colaborativa; no bajo el prisma de una intelligentsia de tipo elitista ni del racionalismo de estirpe wigka, sino desde esa comprensión Mapuche en que el trabajo del intelecto, el corazón y el cuerpo están tan entrelazados, como los planos de la vida individual, social y espiritual (CHM, 2012, p. 20).

O exercício de “soberania epistemológica” é outra constante no discurso dos pensadores mapuche e mayas. Está vinculada à denúncia das diversas modalidades de processos históricos ligados à “destruição criadora” constitutiva do sistema capitalista: conquista, colonialismo, imperialismo e neoliberalismo. Segundo o pensador português Boaventura de Sousa Santos, esses processos acarretaram (e continuam a acarretar) a supressão de modalidades de conhecimento “alternativas” e a liquidação ou subalternização dos grupos sociais cujas práticas ancoravam-se em tais conhecimentos, configurando uma longa cadeia de “epistemicídios” (Santos et al., 2005, p. 22).

O texto da antropóloga mapuche Jimena Pichinao Huenchuleo La mercantilización del Mapuche Mapu: hacia la expoliación absoluta, que consta no segundo volume organizado pela CHM, explora exatamente essa dimensão de epistemicídio característico do “continuum del fenómeno colonial, que se encuentra entrelazado con el capitalismo, determinando situaciones generalizadas y progresivas de despojo que han ido acrecentándose en el tempo” (Huenchuleo, 2015, p. 89). Unindo de modo fecundo análise marxista sobre o imperialismo (David Harvey); resenha histórica sobre as especificidades da resistência mapuche; aportes epistêmicos de outros povos de Abya Yala que poderíamos chamar de ecológicos; e uma perspectiva ancorada no ponto de vista da Mapuche Rakizuam (filosofia mapuche) tais como a compreensão das múltiplas vidas/sabedorias que povoam o Mapu (espaço territorial) e aspectos da espiritualidade mapuche ainda vigente como o newen (energia espiritual) e o küme az mogen (vida boa ou bom viver, um conceito semelhante ao sumak kawsay andino), a autora reflete sobre as diversas dimensões dos impactos gerados pela imposição de um modo “mercantil monetario y privado de propiedad e intercambio por sobre el mapuche que responde a una matriz ontológica centrada en la vida y sus interacciones y, por consiguiente, a una socialidad y sociabilidad de relaciones y vínculos humanos y no humanos” (HUENCHULEO, 2015, p. 86). HISTÓRIAS ALTER-NATIVAS: UM MAPA DA PRODUÇÃO DE INTELECTUAIS INDÍGENAS NO SÉCULO XXI SEBASTIÃO VARGAS 759

Na extraordinariamente fecunda obra colegiada Prácticas otras de conocimiento(s): entre crisis, entre guerras a antropóloga mexicana Xochtil Leya Solano (2016) resume:

Las prácticas de conocimientos creadas por los(as) miembros de los movimientos indígenas nos permite traer a colación cinco elementos característicos de esas epistemologías: a. Desarrollan las lenguas indígenas para potencializar la creación de conocimientos a partir de ellas. b. Valoran la diferencia tanto cultural como epistémica. c. Fortalecen la identidad cultural como proceso permanente que enfrenta a la colonización, inclusive mental. d. Interrelacionan los saberes de las culturas originarias con los saberes de las culturas denominadas “universales” [interrelación a la que se ha llamado interculturalidad epistémica]. e. Parten de una visión de conflicto que implica la construcción y valoración de los pueblos indígenas a través de los levantamientos, movilizaciones, diálogos, confrontaciones con el Poder y los levantamientos mediante los cuales han hecho valer sus propuestas.

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Duas revistas latino-americanas de relações internacionais: Revista Brasileira de Política Internacional (Brasil) e Foro Internacional (México)

TEREZA MARIA SPYER DULCI Doutora em História pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta da Universidade Federal da Integração Latino-Americana UNILA), [email protected].

As revistas como objeto de estudo

Este texto versa sobre as duas primeiras revistas dedicadas às relações internacionais na América Latina: Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI), criada no Rio de Janeiro em 1958 pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e a revista Foro Internacional (FI), fundada na Cidade do México em 1960, pelo Centro de Estudios Internacionales (CEI), do El Colegio de México (COLMEX).

Acreditamos que o estudo das revistas latino-americanas dedicadas às relações internacionais são um objeto relevante não apenas para o campo da história, que já vem tratando deste objeto há tempos, em especial a partir dos aportes da história intelectual, mas principalmente para o campo das relações internacionais, uma vez que são poucos os trabalhos relevantes sobre revistas nesta área, ainda mais na nossa região. Uma das explicações possíveis para os poucos estudos sobre as revistas no campo das relações internacionais é que muitas vezes estas publicações são vistas como datadas. As revistas e demais publicações do gênero são percebidas por parte dos pesquisadores como muito conjunturais e perdem seu apelo como objeto em si. O mesmo não acontece com “artigos- chave” de autores renomados de algumas das revistas, que são entendidos como atemporais, pois fundaram discussões importantes no campo. Alguns exemplos são os artigos sobre política externa dos Estados Unidos publicados por Joseph Nye, Robert Keohane e Samuel Huntington na revista Foreign Relations, do Counsil on Foreign Relations (TODD, 2003). DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 763

O historiador Jean-François Sirinelli afirma que nas últimas décadas a história intelectual se transformou num campo autônomo de estudo, pois a partir da II Guerra Mundial fortaleceu-se o papel desempenhado pelos intelectuais em suas respectivas sociedades. O autor declara que nos períodos anteriores a historiografia estava marcada pelo “entusiasmo com as massas”, categoria a qual os intelectuais não pertenciam por conta de seu número reduzido e por fazerem parte das elites. Para o pesquisador francês, os historiadores deixaram de lado, ao longo do tempo, questões importantes tais “como as ideias vêm aos intelectuais? Porque uma ideologia torna-se dominante no meio intelectual numa data dada?” (SIRINELLI, 1986, 1996, 2003). Sirinelli também dedicou uma parte de sua reflexão às “estruturas elementares de sociabilidade dos intelectuais”, e a primeira delas que foi lembrada por ele refere-se às revistas:

As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual por meio de forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as subtendem, as fidelidades que arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas. Ao mesmo tempo em que um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas são um lugar precioso para observação para a análise do movimento das ideias. Em suma, uma revista é antes de tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo um viveiro e espaço de sociabilidade, e pode ser, entre outras abordagens, estudada nessa dupla dimensão (SIRINELLI, 1996, 245).

Outro aporte fundamental para o estudo dos intelectuais e as revistas é o trabalho de Antônio Gramsci ao apontar como cada grupo social em desenvolvimento possibilita o surgimento de novos intelectuais, divididos em duas categorias distintas: o “intelectual tradicional” (que se conserva relativamente autônomo e independente, mesmo tendo desaparecido a classe a que pertencia no passado – professores, clérigos e administradores) e o “intelectual orgânico” (que, em sintonia com a emergência de uma classe social determinante no modo de produção econômico, procura dar coesão e consciência a essa classe, nos planos político e social – indivíduos diretamente vinculados a classes ou empresas). Além disso, as revistas também foram objeto de reflexão de Gramsci, pois para o pensador marxista, estas funcionam ao mesmo tempo como redações e como “círculos de culturas”, que acabam por criar condições para o surgimento de um “grupo homogêneo de intelectuais”. Interessa-nos, principalmente, as reflexões do autor sobre as “revistas tipo”, instrumentos difusores de concepções de mundo e organizadores da cultura (GRAMSCI, 1981, 1999-2002). DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 764

Já Beatriz Sarlo afirma que o tempo das revistas é o presente, pois estas não são planejadas para alcançar o reconhecimento futuro e sim para o momento contemporâneo, em função da sua prática de produção e circulação (o mesmo não se pode dizer sobre os textos incluídos em uma revista, que podem obter eles mesmos a posteridade). Ademais, as revistas são “bancos de prova” de hipóteses e ideias que servem como antenas de observação do presente, legitimando-se não só a partir do que tem para dizer, mas em relação aquilo que tem que contradizer (SARLO, 1992, 2011, 2012). A sintaxe de uma revista também rende tributo ao presente porque seu objetivo primeiro é intervir no tempo atual para modificá-lo, pois os acertos e os erros “dessa aposta saltam literalmente aos olhos a primeira vista: os índices das revistas (como os catálogos de um editorial) são testemunhos frente aos quais o historiador deve precaver-se do prazer do anacronismo”.

Assim, a sintaxe de uma revista, que surge da conjuntura, informa não só as problemáticas que definiram aquele presente, mas também as suas metas de ação. Para a ensaísta: “se as revistas perdem sua aura quando se convertem em passado, conservam as provas de como se pensava o futuro desde o presente” (SARLO, 1992, 161). Sarlo alerta, ainda, para o fato de que o discurso das revistas elege políticas textuais e gráficas que seguem certas hierarquias de valor (“sistemas de autoridades”), pois estas são “instrumento de batalha cultural” que se definem pelos problemas que foram escolhidos para ser o centro do periódico e também por aqueles que foram excluídos (“passaram em silêncio”). O mesmo cuidado cabe aos editoriais, que apresentam discursos programáticos que nem sempre alcançam as metas propostas nos textos (especialmente os artigos) das revistas (SARLO, 2011). Assim, este “espaço de laboratório de ideias” se interroga permanentemente sobre como conectar-se com o tempo presente:

[As revistas] São uma fonte privilegiada para o que hoje se denomina história intelectual. Instituições dirigidas habitualmente por um coletivo, informam sobre os costumes intelectuais de um período, sobre as relações de força, poder e prestígio. (...) são um lugar e uma organização de discursos diferentes, um mapa das relações intelectuais, com suas clivagens de idade e ideologia, [e] uma rede de comunicação entre a dimensão cultural e política (SARLO, 1992, 15).

Por sua vez, Annick Louis afirma que “longe de refletir apenas um período, as revistas constituem agentes ativos de sua geração e sua caracterização, sem os quais

1 As traduções do espanhol e do inglês para o português são de nossa autoria. DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 765

se torna impossível apreender o meio cultural e a identidade de uma época” (LOUIS, 2014, 1). A autora destaca que não existe somente o contexto da revista, mas que na realidade são quatro contextos: de publicação, de edição, de produção e de leitura. Além disso, Louis ressalta a diferença entre as figuras de diretor e de colaborador desse tipo de meio, uma vez que a figura do diretor tende a pautar as revistas e a de colaborador pode ser esporádica e periférica. Ademais, destaca a importância de se estudar as redes de revistas, principalmente as especializadas (como é o caso das revistas dedicadas as relações internacionais), com vistas a pensar a especificidade deste tipo de publicação, uma vez que a identidade da rede de revistas de uma época marca seu perfil, em especial a partir das relações que os impressos estabelecem entre si, pois “O conjunto de revistas dá um perfil particular a organização cultural de uma época, e constitui uma instância de poder e de consagração; a rede de revistas arma e determina circuitos de publicação e de reconhecimento (...)” (LOUIS, 2014, 13).

Os think tanks e as revistas dedicadas às relações internacionais

Algumas das principais revistas dedicadas às relações internacionais atualmente fazem parte de estruturas de poder muito influentes, pois estão vinculadas ao Estado e as instâncias de representação internacional, sendo muitas vezes veículos de think tanks – instituições privadas, oficialmente nao-governamentais e independentes de partidos políticos, que tem por finalidade produzir pensamento próprio com perspectivas de pautar as políticas públicas. As pesquisas formuladas neste ambiente e publicadas por seus principais veículos de comunicação são voltadas para a ação, com vistas a orientar as agendas políticas das conjunturas em que são publicadas (TEIXEIRA, 2007).

Um dos primeiros think tanks dedicado exclusivamente às relações internacionais foi a Carnegie Endowment for International Peace, fundada em 1910 para investigar as “causas dos conflitos bélicos e ajudar a promover acordos pacíficos de disputas entre as nações”. Deste período vale destacar também outros dois importantes think tanks, porém não exclusivamente voltados para as relações internacionais: Russel Sage Foundation (1907) e National Bureau of Economic Research (1920). Essas instituições que serviam de “laboratório de ideias”, procuravam criar “uma ponte de ligação entre o mundo das ideias e da ação” (HAASS, 2002, 11). DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 766

Boa parte dos think tanks dedicado às relações internacionais mantém como carro- chefe de sua linha editorial revistas destinadas a formular e pautar a política externa dos seus respectivos países, como a revista inglesa International Affairs (do Chatham House), a já mencionada Foreign Affairs (do Council on Foreign Relations) e a francesa Politique Étrangère (do Centre d’Études de Politique Étrangère).

As think tanks em geral, e as dedicadas às relações internacionais em particular, embora se afirmem instituições apolíticas, buscam influenciar os governos e pautar as ações no campo da política externa baseadas em pressupostos ideológicos muito precisos. Um caso que vale a pena ser mencionado é o de Joseph Nye, cientista político estadunidense, cofundador com Robert Keohane da teoria da interdependência nas relações internacionais, pioneiro da teoria do soft power e smart power, ambas levadas a cabo nas administrações Clinton e Obama. Professor da Universidade de Harvard, Nye atuou nos principais think tanks liberais de seu país, tendo sido membro destacado do Council on Foreign Relations, do Foreign Affairs Policy Board e do Defense Policy Board (NYE, 2005).

Segundo a organização Think Tanks and Civil Societies Program (TTCSP), dos 6846 think tanks existentes em 2015: 28,2% estão na América do Norte; 25,9% na Europa; 18,4% na Ásia, 11,3% na América Central e do Sul; 9% na África Subsaariana; 5,8% no Oriente Médio e Norte da África e 1,4% na Oceania. Destas 6846 instituições, 2675 estão na América, sendo 1931 na América do Norte e 744 na América Central e do Sul. No contexto específico do nosso continente, percebemos que os think tanks dos Estados Unidos e Canadá possuem uma presença maior se comparados com os dos países latino-americanos e caribenhos. Entre os 25 países com o maior número de think tanks, no que diz respeito aos países do continente americano, temos: EUA (1835-1º lugar); Argentina (138-7º lugar); Canadá (99-10º lugar); Brasil (89-12º lugar); México (61-17º lugar) e Bolívia (59-19º lugar) (McGANN, 2015, 30).

A primeira revista sobre relações internacionais fundada na região foi a estadunidense Foreign Affairs, criada em 1922 pelo Counsil on Foreign Relations. Esta publicação cumpriu um importante papel ao defender o internacionalismo e expansionismo em contraposição as políticas isolacionistas dos EUA e, durante o período da Guerra Fria, ajudou a formular a “doutrina da contenção” à União Soviética, base da política externa estadunidense que foi incorporada pela Doutrina Truman e depois adotada pelos presidentes Eisenhower e Johnson (RAUCHER, 1978; SANTORO, 1992; SCHULZINGER, 1984; WALA, 1994). DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 767

Já no cenário latino-americano e caribenho, as primeiras revistas dedicadas a temática das relações internacionais sugiram na segunda metade do século XX, respectivamente no Brasil e no México – diferente dos Estados Unidos e da Europa cujas fundações de revistas se concentram entre a I e II Guerras Mundiais.

A Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) foi fundada em 1958 pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) por diplomatas, acadêmicos, juristas, etc., tais como Cleantho de Paiva Leite, Hélio Jaguaribe, José Honório Rodrigues e Oswaldo Trigueiro, com fundos da Carnegie Endowment for International Peace. Vale destacar que embora atualmente o IBRI não apareça no ranking dos principais think tanks do Brasil (McGANN, 2015, 57-58), acreditamos que antes do instituto se vincular a Universidade de Brasília (UnB), o que ocorreu em 1992, ele poderia ser incluído na lista dos think tanks mais importantes do país, em especial nas décadas de 1950 e 1960, entre o Segundo Governo Vargas e o período que antecede a ditadura civil-militar, nos governos Quadros e Goulart, auge da Política Externa Independente levada a cabo especialmente por Santiago Dantas (DULCI, 2013).

Por sua vez, a revista Foro Internacional (FI) foi fundada no México em 1960 por intelectuais que participaram do Centro de Estudios Internacionales (CEI), do El Colégio de México (COLMEX). Atualmente o COLMEX aparece entre os principais think tanks do México e do Canadá, ocupando o 8º lugar no ranking (McGANN, 2015, 56). A Foro Internacional foi criada por um grupo coordenado por Daniel Cosío Villegas (presidente do COLMEX de 1957-1963), com fundos da Fundação Rockefeller, tendo entre seus principais atores diplomatas e acadêmicos, tais como: Francisco Cuevas Cancino, Mario Ojeda Gómez, Roque Gonzáles Salazar, Rafael Segovia Canosa e Lorenzo Francisco Meyer Cosío (ORTEGA ORTIZ, 2010).

Posteriormente, foram surgindo publicações semelhantes nos demais países da região, com maior concentração de revistas advindas da Argentina, Brasil, Colômbia e México. De forma panorâmica destacamos algumas: Estudios Internacionales (Chile: 1967-Presente); Cuadernos del CLAEH (Uruguay: 1968-1976); Nueva Sociedad (Argentina: 1972-Presente); Anuario de Estudios Centroamericanos (Costa Rica: 1974-Presente); Quehacer (Perú: 1979-Presente); Revista Cubana de Ciencias Sociales (Cuba: 1983-Presente); Colombia Internacional (Colombia: 1988-2012); Revista de Ciencias Sociales y Humanidades (Ecuador: 1988-Presente); DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 768

Comentario Internacional: Revista Venezolana de Estudios Internacionales (Venezuela: 1999- 2006); Revista del Centro Andino de Estudios Internacionales (Ecuador: CAEI 2001-2013) e Novapolis (Paraguay: 2002-Presente).

As revistas, os intelectuais e o poder

As duas revistas, RBPI e FI, foram fundadas no Brasil e no México, no final da década de 50 e início da década de 60 do século XX, por intelectuais ligados as estruturas de poder vigentes. Segundo nos alerta Norberto Bobbio, essa relação é bastante complicada porque diz respeito a situação histórica do papel dos intelectuais, suas ilusões e formas de auto representação, bem como a dimensão ética da problemática intelectual e a responsabilidade desses atores sociais, pontos chave na infindável “batalha das ideias”.

Para pensar a RBPI e a FI, torna-se bastante válida a categoria de “poder ideológico” desenvolvida por Bobbio, ao afirmar que este poder é exercido (diferente do poder político e econômico) “sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra” (BOBBIO, 1997, 11). Ao estudar o protagonismo dos intelectuais e sua relação com o poder, o autor também dedicou-se à questão das revistas, em especial quando faz um balanço das relações entre intelectuais e a vida política na Itália, destacando as influências das revistas sobre a opinião pública e a política (BOBBIO, 1999).

No caso brasileiro, fundaram a RBPI diplomatas, professores, funcionários públicos, acadêmicos, militares e etc., ligados a Vargas e Kubitschek e a instituições como o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Esta intelligentsia forjada nos anos 50, permaneceu no núcleo central do instituto e da revista nas décadas seguintes, mesmo diante dos desafios enfrentados durante a ditadura civil-militar e o período de redemocratização. Além disso, vale destacar que os diplomatas tiveram participação importante no instituto e na revista, bem como os militares, em especial após 1964, tratando especialmente de temas relativos à inserção internacional do Brasil, desenvolvimento e as questões de segurança estratégica e defesa, além de questões diretamente relacionados com os assuntos mais relevantes da agenda internacional do período da Guerra Fria (DULCI, 2013). DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 769

A fundação do IBRI se deu em janeiro de 1954, no quadro problemático dos últimos meses do governo Vargas e está relacionada ao grande debate que ocorria em âmbito nacional em torno do desenvolvimento e das formas de inserção internacional do Brasil. Nesse contexto, havia, pois, o interesse por parte da intelligentsia nacional – formada por profissionais liberais, acadêmicos, diplomatas, militares, empresários, entre outros – em participar da formulação e a implementação da política externa, combinando análises de situação com propostas de políticas para o Brasil. Segundo Cleantho de Paiva Leite, um dos diretores do instituto, o IBRI se inspirou nas principais instituições dedicadas às relações internacionais que existiam no período de sua inauguração, cuja finalidade era produzir pesquisa, formar quadros e influenciar o processo decisório nacional e internacional de seus respectivos países:

A ideia do IBRI surgiu em fins de 1953 e me foi inspirada pela existência na Inglaterra (Chatham House), nos Estados Unidos (Counsil on Foreign Relations), na França (Centre d’Études de Politique Étrangère) e os institutos de relações internacionais do Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia, etc. Essa rede de instituições foi criada logo depois da Primeira Guerra, por iniciativa dos funcionários dos países aliados que se reuniram e estabeleceram laços de amizade na Conferência de Versailles. Durante o período em que estudei em Londres (1945-1946) e quando trabalhei na ONU em Nova York (1946-1951), me familiarizei com estas instituições, suas publicações, etc. e em Nova York o meu antigo colega da ONU Lawrence Finkesltein trabalhava no Carnegie Endowement for International Peace, que estimulava e financiava as pesquisas de algumas dessas instituições (LEITE, 1989).

Seu estatuto foi assinado no Palácio do Itamaraty, na “Sala dos Índios”. Além disso, o IBRI manteve estreitas relações com o governo Vargas, uma vez que seu chefe de gabinete, Lourival Fontes, foi um dos fundadores do Instituto, juntamente com outros nomes do círculo do presidente como, por exemplo, José Jobim (chefe do cerimonial da presidência), José Sette Câmara Filho (secretário de Lourival Fontes), San Tiago Dantas (assessor de Vargas) e Rosalina Coelho Lisboa Larragoiti (amiga pessoal do presidente). Quanto ao local da sede do IBRI, no período de 1958-1992, esta funcionou nas dependências da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro, que cedeu ao Instituto duas salas. Outrossim, o primeiro endereço próprio deu-se no centro da cidade e o segundo, a partir de 1968, na zona sul. Posteriormente, em 1992, o IBRI e a RBPI passaram aos cuidados da Universidade de Brasília (UnB) (DULCI, 2013).

A RBPI foi criada durante a gestão de Juscelino Kubitschek, marcada pela ampliação do papel do Estado e o desenvolvimento, em especial, das áreas de infraestrutura e de DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 770

indústria de base, o que acabou por expandir as metas da agenda internacional do Brasil. Nesse período, o governo lançou a “Operação Pan-Americana” – proposta de Kubitschek baseada em um programa multilateral de desenvolvimento econômico se que constituiria em uma estratégia de defesa do continente. Começaram a serem traçadas, enfim, as primeiras linhas da “Política Externa Independente”, um dos eixos fundamentais da política internacional brasileira no final da década de 1950 e início dos anos 1960, nos governos de Quadros e de Goulart.

Os fundadores da RBPI acreditavam que esta preencheria uma grande lacuna não apenas no cenário nacional, mas principalmente no contexto latino-americano, uma vez que, no Brasil e nos demais países da região, existiam poucos periódicos especializados em política externa. Assim, a revista se propunha a difundir os debates sobre os problemas nacionais, bem como tratar de assuntos internacionais vistos a partir da ótica dos intelectuais, tanto brasileiros quanto estrangeiros (DULCI, 2013).

Entre os principais temas tratados na revista temos: desenvolvimento econômico; economia internacional, de modo geral e brasileira, de modo particular; comércio; finanças; investimentos; modernização tecnológica; política nuclear; desarmamento; mar territorial; recursos naturais; produtos de base; industrialização; patentes; integração regional e nacional; cooperação técnica; recursos humanos e questões de segurança estratégica. No entanto, apesar dessa variedade de assuntos, o tema do “desenvolvimento” foi seu eixo privilegiado, marcando fortemente o itinerário intelectual da revista e servindo de base para a abordagem de quase todos os demais temas. Ademais, observa-se na publicação que a lógica política do desenvolvimentismo pautou também as discussões sobre a integração nacional brasileira e a sua inserção nas Américas. Vale destacar que a partir do segundo governo Vargas, o tema do “desenvolvimento” havia adquirido centralidade no cenário nacional e internacional, destaque que permanece nas décadas seguintes. Nesse período, a política externa é caracterizada por uma “diplomacia do desenvolvimento”, sobretudo pela sua ênfase nas políticas para o desenvolvimento econômico e social (DULCI, 2013).

Por último, a RBPI também acompanhou de perto, passo a passo, os avanços e entraves dos processos de integração nas Américas e de integração nacional, como podemos perceber pela publicação de dezesseis edições especiais/temáticas que trataram DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 771

desses assuntos: “Conferência Latino-americana sobre Tensões no Hemisfério Ocidental”; “Encampação das concessionárias estrangeiras I”; “Encampação das concessionárias estrangeiras II”; “Acordo de Garantia de Investimentos entre Brasil e Estados Unidos I”; “Acordo de Garantia de Investimentos entre Brasil e Estados Unidos II”; “Política Nuclear Brasileira”; “Amazônia”; “II UNCTAD”; “Bacia do Prata”; “Direito do Mar”; “Produtos de Base”; “III UNCTAD”(1972); “A crise energética Mundial”; “Relação entre o Brasil e a Argentina na Década de 80”; “Brasil-Argentina” e “Número especial de 30 anos”.

Já no caso mexicano, a história da revista Foro Internacional está vinculada aos exilados da Guerra Civil espanhola no México, que contribuíram ativamente para fundar a Casa de España, instituição que viria a ser chamada de El Colegio de México (COLMEX). A política de exílios criada pelo presidente Lázaro Cárdenas abriu as portas do México para milhares de espanhóis nas décadas de 30 e 40 do século XX. A chamada “Doutrina de Entrada” foi formulada pelo chanceler Genaro Estrada no início dos anos 30, o que levou o México, e por conseguinte também o COLMEX, a acolher inúmeros intelectuais exilados, não só da Guerra Civil Espanhola, mas também das ditaduras europeias e latino-americanas, tornando o México um dos principais destinos de exílio da intelligentsia latino-americana no século XX (HOYOS, 2014).

A Casa de España foi criada em 1938, por gestões do economista e historiador Daniel Cosío Villegas e iniciativa do presidente Cárdenas, com o fim de acolher destacados cientistas, acadêmicos e artistas ameaçados pela Guerra Civil Espanhola e posteriormente pelo Franquismo, transformando esta numa instituição de Altos Estudos (VALERO PIE, 2015). Em 1939 Cárdenas nomeou o embaixador Alfonso Reyes (famoso literato mexicano) presidente da Casa de España e do seu Patronato, que estava formado por Eduardo Villaseñor, Vice Ministro da Fazenda, representante do Partido Revolucionário Institucional (PRI), Gustavo Baz, Reitor da Universidad Nacional Autonoma de México (UNAM), Enrique Arreguín, do Ministério da Educação Pública e Daniel Cosío Villegas, como Secretário do Patronato da Casa. Com estes fundadores foi construído o cimento que a partir de 1940 se denominaria El Colegio de México e que nas décadas seguintes continuou a ter um Patronato composto por figuras do alto escalão (ORTEGA ORTIZ, 2010).

Os primeiros anos do COLMEX foram modestos, tendo a instituição funcionado na sede da Editora Fondo de Cultura Económica (dirigida por Cosío Villegas de 1934 a 1948). DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 772

Posteriormente, no ano de 1976, o Colegio se muda para a sua bela sede atual, no bairro do Ajusco. Ao ser nomeado por Cárdenas em 1939, Alfonso Reyes presidiu o COLMEX durante os primeiros 20 anos da instituição, com o forte apoio de Daniel Cosío Villegas, cuja influência no Colegio se intensificou quando se tornou seu diretor (1958- 1960). Após a morte de Reyes em 1960, Cosío Villegas passou a ser presidente até 1963. Foi sob sua presidência que se fundou o Centro de Estudios Internacionales (CEI) e a revista Foro Internacional, ambos no ano de 1960.

Nas palavras de Cosío Villegas o CEI “prepararia um grupo reduzido e seleto de estudantes mexicanos e latino-americanos para conhecer e entender as questões internacionais, tanto em seus aspectos político e jurídico, como econômico e social” (APUD GARZA; VEGA, 2014, 17). Ademais, para ele, o COLMEX, graças ao CEI, teve uma nova orientação que privilegiou a ideia de que o México deveria ter um papel importante no cenário internacional, além de ter reafirmado a convicção de que era impossível entender o México sem vê-lo em relação aos outros países, em especial as nações do continente Americano.

O CEI tem, desde sua fundação, como tarefas principais, a pesquisa e a docência centrados nos temas que compreendem as áreas de Relações Internacionais, Ciência Política, Administração Pública, o sistema político e a política exterior do México, assim como estudos regionais sobre América do Norte e a América Latina. É por isso que desde 1940, com forte apoio financeiro do governo e de instituições mexicanas e internacionais, o COLMEX se converteu e tem se mantido como um dos centros de pesquisa e docência mais destacados na América Latina.

A revista Foro Internacional foi criada por um grupo coordenado por Daniel Cosío Villegas com financiamento da Fundação Rockefeller, que perdurou por décadas. O objetivo principal da revista, quando de sua fundação, era “preencher o vazio” de publicações no México sobre a temática internacional. Pela análise dos sumários da revista vemos que além de diplomatas de carreira, chanceleres e ministros, foram colaboradores da publicação acadêmicos das principais universidades mexicanas e estrangeiras. Esse grupo de colaboradores atuou na formação e na discussão da política exterior quer fosse, por exemplo, num campo mais nacionalista, quer na defesa de um internacionalismo liberal. DUAS REVISTAS LATINO-AMERICANAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNA- CIONAL (BRASIL) E FORO INTERNACIONAL (MÉXICO) TEREZA MARIA SPYER DULCI 773

Vemos que houve na Foro Internacional uma diversidade de opiniões e embates de projetos sobre as melhores estratégias e táticas da política exterior do México para com os demais países, em especial os Estados Unidos, que ultrapassaram as barreiras dos partidos políticos e, inclusive, dos diferentes governos. De forma panorâmica, os principais temas dos artigos da Foro Internacional desde sua fundação até o presente tem sido a análise da política exterior mexicana, as relações do México com os Estados Unidos e do México com os demais países latino-americanos, o problema da migração, as mudanças na política econômica e os projetos de integração.

Além disso, a revista também se dedicou a temas vinculados a ciência política e a administração pública, com ênfase nas análises sobre o Estado, o nacionalismo e os estudos político-eleitorais, bem como as transições para a democracia no México e nos demais países do continente. Para se ter uma ideia da divisão temática, segundo Reynaldo Ortega, em artigo comemorativo do aniversário de 50 anos da publicação: “de 1960 a 2009 [a revista] publicou 1269 artigos; 52.7% se referem a temas de relações internacionais, 19,4% de assuntos de política econômica, 12,1% a ensaios de política comparada, 9% à história política, 3,5% à administração pública e 3% à teoria política”. Ademais, destacam-se vários números especiais (temáticos) que se dedicaram a analisar a política interna e externa de cada sexênio presidencial (ORTEGA ORTIZ, 2010,15).

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