Obras da Autora ORLANDA AMARÍLIS

FICÇÃO

~ Caes-do-Sodré té Saiamansa (contos), 1.* ed., 1974 — Ilhéus dos pássaros (contos), 1983 — A casa dos mastros (contos), 1989

LITERATURA INFANTIL

Facécias e peripécias, 1990

ESCOLARES

— Folha a folha. Leituras para o 1.° ano de escolaridade, 1987. (Co-autoria com Maria Alberta Menéres). CAIS-DO-SODRÉ — Folha a folha. Caderno de trabalho. (Co-autoria com Maria Alberta Menéres). TÉ

2.' edição

Ficha Técnica

Titulo —Cais-do-Sodré té Saiamansa Autor—Orlanda Amarílis Capa e arranjo gráfico de Judite Cilia com desenho de Pedro Gregório Colecção —Africana Direcção — Manuel Ferreira Editor—ALAC-(>ífr/'ca, Literatura, Arte e Cultura, Lda.) Av. Dom Pedro V, 11-2." Oto. 2795 LInda-a-Velha Tel. 4192274 Distribuição —Diglivro Rua Ilha do Pico, 3-B —Pontinha —1675 Lisboa 1991 NOTÍCIA BIBLIOGRÁFICA Para ti, Manila, companheiro destes largos anos de luta, e também para o Sérgio e Nano. Orlanda Amarílis, de seu nome completo Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira, natural de Assomada, Santa Catarina (Cabo Verde), filha de Armando Napoleão Roiz Fernandes e de Alice Lopes da Silva Fernandes. Fez os seus estudos primários na cidade do , Ilha de São Vicente, e secundários no Liceu Gil Eanes da mesma cidade, que completaria depois em Goa, cidade de Panguim, capital do então chamado Estado da índia Portuguesa, onde Orlanda Amarílis viveu cerca de seis anos e concluiu os estudos do Magistério Pri• mário. Mais tarde, terminaria o curso de inspectores do ensino básico e já anteriormente havia completado o Curso de Ciênciais Pedagógicas na Faculdade de Letras de Lisboa. Casada com o escritor Manuel Ferreira, no ano de 1945, em Cabo Verde, quando aquele se encontrava no arquipélago inte• grando um batalhão expedicionário do exército português, durante a guerra de 1939-1945, é mãe de Sérgio Manuel Napoleão Ferreira e Hernâni Donaldo Napoleão Ferreira, o primeiro nascido em Cabo Verde e o segundo em Goa. Por laços familiares está ligada a figu• ras de várias gerações literárias, tais como Corsino Lopes da Silva, Baltazar Lopes da Silva, José Lopes da Silva, José Calazans Lopes da Silva, Félix Lopes da Silva, Armando Lopes da Silva, Gabriel Lopes da Silva Mariano, Ivone Ramos, Yolanda Morazzo Lopes da Silva, sendo ainda de registar o facto de Armando Napoleão Fer• nandes, seu pai, ter sido o primeiro a elaborar, sistematicamente, e durante muitos anos, um dicionário crioulo-português, ora publicado. Acompanhando o mar^ido em deslocações de natureza profis• sional ou especificamente cultural ou, então, a convite a ambos dirigido, visitou a Nigéria, o Canadá, Estados Unidos da América, a União Indiana e, particularmente Goa, e ainda Moçambique e Angola, chegando a conhecer o Sudão e o Egipto, tendo feito intervenções culturais públicas em Goa, Estados Unidos da Amé• rica, Itália, Canadá, Holanda, Espanha (Galiza) e inclusive Cabo

7 Verde, aquando da sua participação no Encontro sobre Cultura e Literatura Caboverdianas, realizado em 1986, sob a égide das Comemorações do 50." Aniversário da fundação da revista 'Claridade. Pertence ao Movimento Português Contra o Apartheid, ao Movimento Português para a Paz, e é membro da Associação Por• tuguesa de Escritores e do Pen Club, tendo pertencido aos corpos gerentes de ambos organismos. Iniciou a sua carreira literária colaborando na Certeza (1944), revista que, depois da Claridade, marcou um momento extrema• mente significativo da vida cultural caboverdiana. Posteriormente colaborou como ficcionista em várias revistas, tais como COLÓ- QUIO/Letras, África, Loreto 13, da Associação Portuguesa de Escri• tores e está representada em várias antologias: Escrita e Combate CAIS-DO-SODRÉ (1976); Contos —O Campo da Palavra (1985); Fantástico no Femi• nino (1985); e ainda em Afecto às Letras —Obra Colectiva de Homenagem da Literatura Contemporânea a Jacinto do Prado Coe• lho (1984), bem como na antologia em língua alemã de contistas africanos: Frauen in der Dritten Weit, RFA (1986) e na antologia de escritores caboverdianos, em língua inglesa: Across the Atlantic: An Anthology of Cape Verdean Literature, Estados Unidos da América (1988). Contos seus foram ainda traduzidos para o russo, o hún• garo, holandês e italiano, Orlanda Amarílis, publicando agora esta 2." edição da colecção de contos do seu livro de estreia, Cais-do Sodré té Saiamansa per• segue um caminho de ficcionista de grande dignidade e qualidade literária, cujo talento tem sido reconhecido por críticos portugueses como Jacinto do Prado Coelho, Duarte Faria, Fernando Assis Pacheco, Casimiro de Brito, Pires Laranjeira, Elsa Rodrigues, Isabel Ramos, Alberto Carvalho, Armando Ventura Ferreira, Ramiro Tei• xeira, e brasileiros, como Maria Lúcia Lepecki, Fernando Mendonça, Maria Aparecida Santilli; ou americanos como Mc Nab e Russel Hamilton. Por nós, e correndo todos os riscos de alguma suspeição, não receamos minimamente que seja em afirmar que, pela obra publi• cada, incluindo no âmbito da literatura infanto-juvenil, Orlanda Amarílis continua a inscrever o seu nome no grupo dos melhores ficclonistas caboverdianos.

M. F. J

«É devera, não estava a reconhecê-la.» Andresa rebusca na memória a família da cara parada na sua frente. Parece daquela gente de nhô Teofe, um de S. Nicolau a quem os estudantes tinham alcunhado de Benjamim Franl

11 «Bem, se não fosse a doença do Papá, eu estava agora aqui? «Não se lembra de meu pai, pois não?» Ah mô, não. Fazer o quê.» «Não», confessa Andresa. «Na verdade não me lembro muito Andresa pisca os olhos e surpreende-se a responder. És tu bem dele. Sabe, já lá vão quinze anos eu vim da nossa terra.» mesma, Andresa, és tu a dar sequência a esta conversa insípida. «Pois é, pois é.» Poderias tê-la evitado, mas as conversas são assim. Têm um fio, um E compondo outro tom. caminho a percorrer. Não te admires pois por te teres arriscado. «Meu pai era Simão Filili do Alto de Celarine.» «Ah! Seu pai está doente?» «Ah! O seu pai era nhô Simão Filili? Eu julgava (estava a mentir) «Papá morreu.» que a senhora fosse sobrinha dele.» A voz morreu também num sopro. «Éramos eu e a minha irmã Zinha que Deus-haja. Eu sou a «Desculpe, eu não sabia», lastimou Andresa. Tanha. Raparigas éramos só as duas.» A senhora procurou um lenço na carteira e assoou-se. Guar- «Recordo-me muito bem da Zinha. Estava toda certa vocês dou-o, fechou a carteira e pôs-se a olhar para a biqueira dos sapatos. eram primas (outra mentirinha para acabar de compor o ramo). Era «Ele não queria embarcar nem dado de pau na cabeça. Quando bonitinha.» Dr. Santos aconselhou-o a ser visto por um especialista e alvitrou «Era, coitada.» para apanharmos o primeiro barco, ele fez um escarcéu, nhor Deus! Agora sim, Andresa conseguiu mais ou menos os cordéis e Não vinha, não vinha! Por fim, tomou um ar arregaçado e fez uma sente-se à vontade. Quem poderia esquecer o homem pequenino e guerra lá em casa. Falou, falou. Bateu com o punho fechado em chupado daquela casa vermelha ali no Alto de Celarine? Só quem cima da mesa e avisou-nos a todos: Ninguém mandava nele, era nunca tivesse ouvido contar histórias de gongon, histórias de cor• ainda homem da sua cabeça. Foi um caso sério convencê-lo. Disse rentes arrastadas na estrada da Pontinha, em noites de ventania, por mais coisas. Brigou, brigou, até ficar a nhongor na cadeira de lona. artes de xuxo, ou das trupidas de cavalos a atravessarem a morada Estou mesmo a vê-lo, cabeça descaída sobre a queixada, mãos por volta da madrugada. O povo só se lhes referia ao barulho fra- abandonadas no regaço. De vez em quando despertava, levantava a goroso das patas raspando o empedrado. Andavam a pregar a cabeça e abria os olhos para os fechar logo e continuar a nhongor. tumba de nhô Rei Vendido, dizia-se. Nha Xenxa, viúva do nhô João Para continuar na pesca da moreia. Coitado! Estava a adivinhar.» Sena, contava, e a voz velava-se-lhe de medo, ter ouvido certa oca• Respirou pausadamente. «Costumava dizer: Se eu der uma saltada sião uma voz de entre o galopear troador. Ela bem a tinha reco• até Lisboa, vou à Estufa Fria, vou ao Coliseu, e depois, vou de lon- nhecido. Era nhô Simão Filili a mandar: Aperta a brida da alimária gada até ao Minho.» de meu pai. Minhas esporas, minhas esporinhas, minha cilha, minha Esta pequena história já vem sendo repetida inúmeras vezes, cilhinha! Eram más horas e nha Xenxa foi tomada de um pesadelo, A senhora sente necessidade de a recontar, por desabafo, para se senhores! Só se acalmou porque a filha, acordada pelos gemidos aliviar: da mãe, lhe aplicara um bom par de bofetadas, Andresa repara no luto carregado da patrícia, Andresa analisa a patrícia a seu lado. Tem um aspecto tão «Ele não resistiu à viagem. Dois dias depois de chegarmos, apagado. Passará por esta vida sem se dar por ela. Olha, curiosa, morreu no Hospital do Ultramar.» para a face lisa da Tanha, ensombrada por olheiras escuras, mais «Coitado», disse Andresa por dizer, como se a conversa não escuras que o amulatado da sua face e lhe emprestam aos olhos devesse ficar por aí. uma melancolia saudosa. Que idade terá a Tanha? Uns trinta? Dis• «É verdade. Pouca sorte,» parate, deve ser uma quarentona bem entrada. Com certeza. Andava Tira o lenço da mala e chega-o outra vez ao nariz. ela no liceu e lembra-se da Tanha, já rapariga feita, a namorar da «É verdade.» Era ainda a senhora a desabafar. «Toda a vida a janela do sobrado com um moço de Santo Antão, filho de nhô pensar em vir até Lisboa, toda a vida a pensar nesta viagem para Pedro de nha Mari Barba. Por sinal, era um bêbedo incorrigível. afinal.» Apanhava cada fusca de se lhe tirar o chapéu. Fuscas de descom• De olhos descidos, Andresa arranja a saia. Tinha subido, dei- por toda a gente. Começava a covar, mãe deste é tal e tal, e pai xando-lhe a descoberto os joelhos ossudos. daquele é assim e assado, bô é filha de solteira, aquele não casou

12 13 com tua mãe. Oh nha mãe! Quem pass3sse por ele nesses momen• Em passo calmo entrou no bar e pediu um café. Teria de espe• tos apanhava o seu chá. Bô também é trivide de pé-descalço. Senta rar meia hora por novo comboio. Sorveu o líquido quente. Soube- num cabo, senta. As pessoas riam mas fugiam daquele moço de -Ihe bem. Santo Antão. Moço desaforado devera! Bô sabe. Santo Antão tem Outra vez na gare, acendeu um cigarro e ocupou no banco o muito grogue e esses moços habituam-se a tomar e depois é essa lugar de há pouco. pouca-vergonha de covar cada cristão sossegado no seu caminho. Estava-se na Primavera, mas as tardes continuavam cinzentas e Movida não sabe por que curiosidade, indagou: com ar ensonado. A gare vazia de comboios parecia mais clara, no entanto. «A senhora está cá sozinha?» Não chega a"compreender porque se constrangia a acompanhar Tanha levantou os olhos, virou a cara para Andresa e teve um a Tanha. Estar à espera do marido estava, mas não havia problema. sorriso de convívio, um sorriso das pessoas daquelas terras se Podia ir com a Tanha pela linha adiante e matar saudades, a ouvir encontram pessoas conhecidas, patrícios, amigos antigos. a fala descansada e sabe de Soncente, fala de conversa de novidades. «Bem, eu tenho cá o meu irmão Júlio. Júlio já é médico, mas O cigarro esquecido entre os dedos ganha um morrão com• está casado. Casou com uma rapariga daqui. Com uma mondronga.» prido e cinzento. Andresa estranhou: De há algum tempo para cá acontece-lhe isto. Vê um patrício, «O seu irmão já está formado? Não sabia.» sente necessidade de lhe falar, de estabelecer uma ponte para lhe «Oh, sim», e Tanha sorriu satisfeita. «Acabou o curso há uns recordar a sua gente, a sua terra. Entretanto, feito o contacto, o desencanto começa a apoderar-se dela. Qualquer coisa bem no quatro anos. Eu podia ter ficado em casa de meu irmão, mas preferi íntimo lho faz sentir. Não há afinidades nenhumas com as pessoas ficar com as minhas primas em Oeiras.» de há quinze anos para trás. Nem são as mesmas. Topa-os aqui e Baixando a voz, confidenciou: ali, no Rossio, na Estrela, espalhados por Lisboa, no Camões aos «As mondrongas são atrevidas e em casa das minhas primas domingos de manhã, no Conde Barão, no Cais do Sodré. estou mais à vontade.» Nhô Simão Filili vivo, por certo continuaria a ser a mesma Andresa sorriu. Continuou a sorrir e a olhar a gare vazia. Era a figura lendária e de meter respeito. Era de uma raça! Toda a gente uma dessas horas mortas da tarde quando os comboios levam meia conhecia Nhô Simão Filili. Nhô Simão Escochóde, segredavam os dúzia de passageiros. Espalham-se pelas carruagens e aguardam, meninos. pacientes, o momento da partida. Uma inglesa ruiva, de bengala, senta-se a seu lado. Um comboio entrou na gare e veio parar junto delas. Tanha Andresa atira para longe o cigarro e cruza as pernas. levantou-se e passou a mão pela saia. Segurava com ar desajeitado Conhecera Nhô Simão num dia de mormaço. as luvas e a mala. Tinha ido na tarde calorenta entregar um volume de As Farpas «Deve ser este.» emprestado pelo pai e encontrara-o sentado num banco, à porta de «Deve ser», confirmou Andresa. «Mas não deve partir antes de casa, com um manduco a escavar e a fazer riscos no chão. dez minutos.» Mirrado, possivelmente devido à muita nhongra e fominha, «Sim, mas vou andando. Fico mais descansada.» fjossuía contudo um falar alterado. Assarapantava quem nunca o Sorria outra vez. Os cabelos negros, bem puxados e seguros tivesse ouvido. As palavras enrolavam-se-lhe na boca como casca• com molas, emprestavann-lhe um ar esfíngico. lhos arrastados até à praia por ondas bravias. Saíam, ao cabo, sol• Andresa acompanhou-a por momentos. tas, desconsertadas, e sempre intencionais. Falava assim por ser «Sabe, eu podia ir consigo. Moro em Caxias. Mas estou à maçónico, dizia-se. Era da maçonaria, confirmava o povo, fazia artes espera do meu marido.» como as feiticeiras. Só lhe faltava o rabo escondido por baixo das Calou-se, No fundo, irritada consigo mesma. Lá estive eu com saias compridas das bruxas de Tchada Além, o rabo como o dos explicações. Levo a vida nisso. Ora, não vou com ela porque não sanchos da Travessa do Monte. Nha Chica Maçaroca, a bruxa da estou mesmo nada interessada. Para conversa já chega. Achada, quase se lhe via a ponta do rabo a arrastar pelo pó da

14 15 estrada. E as criadas embalavam os meninos: Nha Chica Maçaroca e o povo murmurava. Doença assim não podia ter outra origem ta buli ta bai, ta buli ta bem. senão mal-feitiço feito pela amante preta de Bissau. Vocês não Bia Antónia, a velha criada da casa, era quem contava estas e sabiam? Gente da Guiné fazia mal-feitiço por tudo e por nada. outras patranhas à Andresa. Depois do jantar, Bia Antónia sentava-se Também não era novidade: Qualquer rapaz solteiro costumava num caixote, perto da escada, na varanda sobranceira ao quintal. arranjar a sua rapariga e, muitas vezes, um ou dois filhos antes de Entre duas fumaças do canhoto sempre dependurado no canto da casar com outra. Quanto à Zinha, mal-feitiço ou não, a verdade era ela estar doente. Mal-feitiço ou não, muita gente nova em Soncente boca, a serva desfiava um ror de histórias. Andresa, debruçada à morria tuberculosa e, se crianças ainda, morriam de febre tifóide, e varanda, ouvia-a distraída. se meninos de mama, morriam com desinteria. Então, pâ mode quê Bia Antónia discorria, convicta. tanta tolice de boca para fora? «A primeira prova para um homem ser maçonco é atravessar descalço um mar de alfinetes. Dezide, menina, nhô Simão Filili fez Murmurava-se à boca pequena, e um dia a notícia correu as esta prova como nenhum outro, la a atravessar o mar de alfinetes, ruas de cima a baixo não se sabe como. Zinha enviara um tele• ouviu uma trupida. Pareciam cavalos de. gente-gentio, catrapau, grama ao noivo a romper o compromisso. Ninguém comentou o catrapau. Dente cerrado, não voltou a cara para trás, e os cavalos caso, todavia, a cidade aprovou. Sim, senhora. Era a única saída catrapau, catrapau. Nhô Simão, desorientado, roupa rachada, baba para acabar com o mal-feitiço sobre a doente. Isso não obstou, no a escorrer, mãos picadas, nunca voltou a cara para trás.» entanto, de a Zinha vir a falecer pouco tempo depois, numa Bia Antónia chupava mão-fechado a arder lento no canhoto madrugada, ainda o galo não havia cantado duas vezes. esquecido ao canto da boca. Tanha andara aflita com ataques de espuma na boca e gritos «E depois?», perguntava Andresa. para a vizinhança ouvir, o pai não consentira na vinda de nhô padre A velha serva levantava os olhos papudos para Andresa e res• para dar à irmã os últimos sacramentos e, entretanto, já se falava pondia: na morada. O enterro ia ser religioso. «Agora, falado ele comanda todas as noites um vapor de guerra Andresa relembra estes sucedimentos e afigura-se-lhe nunca ali na Pontinha.» terem acontecido, tanto mais, mal assistira a eles. Ainda uma vez, «Que casta de conversa é esta, Bia Antónia?» Bia Antónia, à noite, sentada como de costume, no caixote ao pé «Sim senhora, é devera. Por artes de maçonaria ele costuma da escada de acesso ao quintal, desfia o resto desta história de gongom. fazer aparecer um vapor de guerra ao bater da meia-noite. Gentes já o têm visto, todo fardado de branco. Nha Xenxa mora mesmo por «Oiça menina —e a criada chupa duas vezes pelo pipo do seu cima da Pontinha e sente-o toda a santa noite. É um arrastar de canhoto meio apagado—, oiça, quando nhô Padre chegou à porta ferros e é nhô Simão a gritar a noite inteira para a marinhagem.» de nhô Simão Filili não foi capaz de entrar.» «Mas nha Xenxa viu-o?», tornava Andresa incrédula. Andresa haveria de continuar a olhar os ramos da tamareira, «Não senhora, nha Xenxa é mulher cristã. Ela benze-se e reza longos, caídos, varrendo, com o ventinho tépido da noite, a roldana responsos, uái, maçoncos têm pacto com o xuxo.» presa com cordas de carrapato a três toros entrançados sobre a Andresa gostava de ouvir estas histórias espalhadas pela boca boca do poço. do povo. E o povo acreditava tanto nelas a ponto de nhô Simão Filili «Aquela casa está assombrada, menina.» tornar-se temido e respeitado de ponta a ponta da ilha. O maior brado fora no dia da morte da Zinha. Ninguém o Bia Antónia coça a cabeça por debaixo do lenço para depois esqueceu. O acontecimento preenchera tardes e serões das casas continuar no mesmo tom: da morada por muitos e muitos dias e daí todos ficarem convenci• «Nhô Simão Filili mandou forrar a sala onde estava o caixão e dos. Ele era mação de verdade. E o círculo de lendas à volta de também a porta da entrada, tudo com folhas de palmeira, e esperou nhô Simão Filili mais se avolumou ainda. nhô Padre. Ah, também pôs um ramo grande sobre o peito e cruzou Zinha andava doente há longos meses de uma doença esqui• os braços bem cruzados sobre ele.» sita. A pele virara-se-lhe baça e de cor suja. O noivo lá para a Guiné

16 17 o vento assobiava mais rijo e Bia Antónia aconcliega-se meltior no mandrião de riscado. Andresa deixara escorrer um cuspiniio aguado sobre as pedras do quintal. «Quando nhô Padre lá chegou viu tamanho aparato de maço• naria, voltou as costas e não passou da entrada da porta. Casa excomungada! Dezide menina Tanha está farta de chorar. Sabe, o enterro passou por detrás da igreja. Oh, mas na sua companha foram dois violões e um violino a tocarem mornas até ao cemitério. Poisa as mãos sobre os joelhos e, com esforço, levanta-se do caixote onde se tinha sentado. Levou as mãos à ilharga onde as descansou num laivo de espreguiçar, levantando-se nos bicos dos pés descalços. Momentos depois, acrescentou: NINA «Toda a gente na sua companha chorou bem chorado. Foi muito chorada ela.» Andresa relembra tudo isto com tanta minúcia como se se nunca se tivesse despegado da Mãe-Terra e tivesse continuado as pegadas de nhô Simão Filili, de nhô Faia, de Antoninho Ligório, do Pitra. A seu lado, a inglesa ruiva continua sua companheira de banco. Na gare vazia descobre o comboio. Levanta-se e começa a andar. Junto à segunda carruagem espreita. Tanha, olhar descansado, a face serena, num canto do assento como se devessem caber aí mais umas cinco pessoas ainda no mesmo banco, sorri para Andresa. Coitada de Tanha! Vou com ela até Caxias.

•18 «Nina! Oh Nina!» A rapariga de olhos azuis caminha e não ouve. Ou finge não ouvir, «Nina! Parabéns!» O rapaz acaba de descer os vidros da janela do comboio. Nina andou dois ou mais metros além, na gare, pára e volta-se. Levanta o queixo com ar reservado em direcção da voz. «Nina, nunca mais te vi.» Ela reconhece-o e a boca é um sorriso. Morre pelo caminho e torna-se distante e incolor. «Ah!» «Nunca mais te vi.» E o companheiro, debruçado pelas axilas, mostra na face escu• recida pela barba a efusão. Quere-a comunicar à Nina, Do calcetado de pedrinhas brancas e chatas da gare, a figura de Nina sobressai, linear e abstracta. Ela aguarda, parada, indecisa, glacial. Ele surpreende-se inseguro. Não consegue divisar as feições familiares durante tanto tempo. Ter-se-á enganado? Apetece-lhe afundar-se no assento azul da carruagem de primeira classe. Um apito soa-lhe a saxofone, depois esvai-se sem chegar ao ifundo da gare. É o comboio das trinta e cinco a partir. A silhueta ida possível Nina recorta-se, brusca, no vazio deixado pelo comboio, v; Passageiros entram e sentam-se, uns pesados, outros displi- vpentes. Os assentos chiam com macieza. São pneus e esvaziarem- -se, lentamente. Pela porta aberta, uma lufada de ar faz corrente com a outra ao 'imundo da carruagem. Um arrepio percorre-o, e, retirando o braço igíom dificuldade da janela onde se debruçou, leva a mão ao bolso. ;9 lenço atalha um espirro fugidio. O momento desenrola-se como iti,ma certeza: o espirro e o lenço nas suas mãos. Tremem por segundos e são firmes agora. Firmes e serenas como o seu espírito. É Nina, é. Conlnece-a tão bem. Fora iióspede da tia de Nina, preci• Alisa, de novo, o cabelo sobre a fronte curta, num costume dis• traído. samente quando viera para se matricular em agronomia. Nesse tempo era uma pirralha de tranças. Entrava-lhe pelo quarto para Na verdade, não foi com a Nina com quem falou. Não foi com comerem juntos as pequenas guloseimas recebidas todos os meses a companheira das pândegas. Let me see my love! O disco soluça. e acondicionadas em caixas num canto do quarto. Assim se torna• O histerismo da voz empolga-os. Voz bêbada e angustiada. Batem ram amigos e ele a conquistara ensinando-lhe a comer daquelas as mãos, acompanham o ritmo de aquecer. As coxas meneiam, as comidas: cuscuz torrado com mel, doce de papaia, farinha de pau. pernas gingam, nervosas. Hé... hé... hé. Tronco para trás. Assim. Nina crescera e, não sem surpresa, verificara com certa piada: Hé... hé... Let me see my love! Para a frente. Ui, ui. As mãos esta• tinha-se feito-uma rapariga com personalidade, além de camaradona lam, o suor empasta-os e suas bocas fendem-se em riso por entre a formidável. Os bailes na Casa dos Estudantes cimentaram, de vez, respiração entrecortada. Cansados, encostam-se ao gira-discos. a amizade. Levara-a lá uma tarde para um chá-dançante, e desde Continuam a marcar o compasso. A voz do disco comanda. Cigar• esse domingo sentiram-se compinchas para as futuras farras. E ainda ros pisados com o pé e os outros continuam o mesmo balancear vieram a ser muitas. Sorri. doido, doido. Gargalhadas enovelam-se no ar, na quentura das noi• tes calmosas da época. Eram muitos e iam em corrida tonta. Estoril, O comboio dá o sinal de partida. Nina ou a sósia de Nina Guincho, sabe-se lá. Frases só deles, do grupo. reprime um ar impaciente. «Estupidez absoluta.» «Nunca mais te vi.» «É pá, falaste ou cuspiste?» As mãos do rapaz estendem-se com entusiasmo. «Ai perdi o Tó. Isto é uma soda. Já sabes a dos gorilas?» «Casaste? Parabéns!» «Tá quieto, daí não me levas.» Nina fustiga a cabeça. Sustém um penteado moderno. Res• Escorrega no assento, deixa pender a cabeça e estica o lábio ponde desinteressada, estranha. inferior num jeito peculiar. «Ah! Vais neste comboio?» Nina pusera-o knock-out, pensa, revendo a cena da gare. Não A voz cai sobre as pedrinhas e chega sem calor até ele. lhe permitira a aproximação, sequer, do mundo diferente a que ela Ó rapaz confirma, desconcertado. Nina começa a andar pela pertencia agora. Arredara-o com a segurança sempre usada quando gare, depois, sem se voltar, faz um gesto com a mão. era preciso escolher. O comboio, desanda, vagaroso, e ele afunda-se no lugar. Assobia baixinho, derivado. O sol corre os vidros e poisa, em rectângulo, no espaldar do Tinham mantido um flirt por longo tempo. Uns beijos, umas último assento, brincando com os tons quentes. Forram a carrua• coisas sem importância, no entanto, nunca tomadas a sério. Sempre gem, aqui e ali. pensara terminar o curso e voltar para Cabo Verde, onde casaria Por detrás dos vidros, são agora dois, porque estão descidos, com uma crioula sabe-de-mundo, vê ainda Nina. Segue direita, calma e inconfundível. Houve um dia, ela entrou-lhe pelo quarto para lhe pedir uma Passa as mãos pelos cabelos e comprime-os sobre a testa esferográfica. Ele levantara-se de onde estava e fora postar-se atrás curta. A senhora ao lado olha-o e sorri. Ele irrita-se e franze a testa. da porta, tendo o cuidado de a fechar. Nina ainda inclinada sobre a Sente-a importuna dentro deste momento que se arrepende de ter mesa à procura da esferográfica volta-se, brusca, mostrando uma acontecido. expressão dura, aliás já conhecida de outras ocasiões. Santos, Alcântara, Algés. Ele dera uma gargalhada indo sentar-se. O comboio enche-se pelo caminho, as carruagens tornam-se Fincou os cotovelos sobre a mesa, descansou o queixo nas pequenas e o ambiente é abafado. As coxias vão-se enchendo mãos e olhara-a trocista. também. Uma'sensação incomodativa e viscosa escorrega por ele «És parva, tinha-lhe dito.» abaixo até parar nos seus pés húmidos. Uma ruga vinca-se-lhe entre Nina não lhe respondeu. Todavia, faz-lhe sentir daí a dias. as sobrancelhas cerradas, enquanto olha, de spsiaio, para a senhora Nunca casaria com ele. Aborrecia-a a ideia de vir a ter filhos de cor. a mastigar, linha por linha, a página do livro entre as mãos. Estamos quites, pensa ele enquanto a mede dos pés à cabeça.

22 23 Continuaram amigos como se nada se tivesse passado. No entanto, o namorico ficou por aí. Encollie os ombros. «Ain, Nina, tás com a mosca da nova vida. Há-de te passar!» O comboio entra com deslocação rápida de ar no túnel de Caxias. Roda gingão sobre os trilhos para parar, amolengado, na gare. As portas assobiam como lixa, afastando-se para receber uma onda de back-stick no ar. É uma presença enjoativa. «Olha quem ele é!» O comboio despega com um arranco. Tem vontade de voltar a ROLANDO DE NHA cabeça para ver os novos companheiros. Riem e falam alto atrás dele. Todavia, conserva-se olhando em frente. CONCHA Chatos. A conversa atabafa-lhe os pensamentos. «Olha quem ele é!» Volta a cabeça e enruga o sobrolho. «Queres ir connosco?» Levanta-se e aproxima-se deles. O baixinho aspira o fumo e engasga-se. Ela explica e mastiga. «Vamos prà li. Vamos estar um bocado ao ar livre.» Os dedos apontam na direcção do vidro descido, para além dele. A bola beije passa de um para o outro maxilar e ela comprime-a entre os dentes fortes. Ela mastiga e arma um sorriso. Os dedos puxam a pastilha elástica segura entre os dentes da frente. «Os outros estão à nossa espera. Levam sandes e dry gin.^> Foi a loura quem falou agora. Uns olhos azuis, azuis como os de Nina, fitam-no, frios e alheios, porém. Nina? Qual Nina? A Nina das pândegas, das gargalhadas intempestivas, a dos cigarros fumados a meias, ou aquela, a tal da gare, senhoril, de riso incolor e distante? Tão distante como tudo a separá-los já um do outro. O baixinho dissimula um arroto, agarra o saco e põe-no a tira• colo. A loira e a outra ainda a mastigar, roçam-no e seguem corre• dor fora, deixando atrás de si o mesmo odor enjoativo a back-stick. Ainda a mastigar, a bola beije a desandar na boca, a tentá-lo: «Se quiseres, estamos ali.» E faz um gesto de pedir boleia a indicar o sítio para onde vão com os outros. Esperam-nas para além do vidro, para além do sol sobre as casas. Levam sandes e dry gin.

24 Ah, o alarido por essas ruas fora. Gente acorria de todos os ;|ados, tocada pelo mesmo vento que a arrebanhava e impelia, jun- 'tava-a, levava-a em magote, sempre a correr e a gritar. Vieram do Lombo, do Monte Sossego, da Chã do Alecrim, de Fonte Cónego, as mulheres segurando o lenço com a mão espal- siipada no alto da cabeça, deixando uma guisa comprida no seu casto. Bia Tuda, Djô, Toi Pirico, Mari Delaide, Dchilinha, Guida de hô Totone e'vocês todos desencantados de Fonte Filipe, de Ribeira iBote, de todos os cantos da morada, para quê tanta desorientação? •4 Garotos entusiasmados com a corrida seguiam as pegadas ,©s mais velhos. A cidade era pequena, sim senhor, longa de atra• vessar porém. ,*i Janelas foram-se abrindo e caras assomadiças indagavam na jiia mudez qual a razão de tanto alvoroço a perturbar a quietude .'amanhã. Tinham atravessado a Praça Nova, a Rua da Papa Fria, outros j^sceram a Rua de Serra para se lhes juntar no largo do Palácio, •'tios enfim no Alto do Pelourinho. Ninguém falava. Só gritavam e batiam os pés descalços na cal• cada fresca das ruas. Debruçados nas varandas ou detrás das per- !nas meio abertas, os moradores acompanhavam o som cavo da !pida como milho a ser moído para a papa de rolão do meio-dia. No largo da Câmara associou-se mais povo àquele povoléu, ^eguiram ainda por uma rua estreita e suja de pó de carvão, a íisembocar no largo da Salina. A praça de terra avermelhada, arrematada nos lados por clubes. Ir algumas casas de primeiro andar e por coqueiros abanando-se íguiçosos por detrás de um muro encardido, recebeu serena os nus a pisarem-na na corrida. Nem mais um grito se ouviu. O silêncio cobriu a praça, alon- do-se, espraiando-se sobre o cascalho miúdo, abrasados agora, iem passo mole alcançaram o rabo-de-Salina.

27 No começo da subida do monte espraiam o olhar para além Recompôs-se irada, mal refeita de pasmo. Quedou-se por deles próprios. Os pés fincaram-se na terra seca e vermelha, momentos e atirou-se de chofre à cabeça de Djula. Era quem estava semeada de seixos minúsculos. mais próximo. Segurou-a pelo braço e, arrancando-lhe o lenço gar• Como se arremetera a camioneta do nhô Mané Virgil, daquela rido da cabeça, arremessou-o ao chão com desaforo. «Bô é que empurrá-me,» Tentava agora não deixar escapar a mecha de cabelo maneira assim, para dentro dessa casa duma gente que aí morava cuscuz de Djula. Nunca crescia o cabelo cuscuz de Djula e Candi• dias-há? nha segurava-o com raiva entre os dedos ásperos. A sua pele de Dezenas de pares de olhos pousaram sobre a camioneta meio tâmara passada ganhou brilho. Djula abriu os olhos de espanto e emborcada. Um pouco além, moscas zumbiam, descontraídas, não perdeu a compostura. longe de um corpo mal coberto por uma toalha. Os pés alongavam-se Uns moços começaram a rir, encolheram os ombros e volta- tensos nas sandálias, sujos de sangue já seco. ram-lhes as costas. Num abraço mudo e enrodilhadas, rebolaram «Ele morreu?», perguntou Toi Pirico, espreitando sob o pano no chão enliadas uma na outra. Ninguém quis saber das doidas onde se escondia a cara ensanguentada de Rolando. desaforadas. Mais pareciam cadelas no cio. Um moço, até aí sentado numa pedra, levantou-se e, de mãos «Quem vai levar esse coitado para o hospital?» nas ilhargas, respondeu: «Estão a ver isso? Eh, suas doidas, como é então!» «Deus não há-de querer.» Djula levantou-se com sangue a escorrer pelo canto da boca. Olhara para o mar de cabeças. Esticaram os pescoços e Aproximou-se e, por detrás do ajuntamento, cuspiu e espreitou. aguardaram, A testa ocre da terra, as maçãs do rosto sujas também, outra vez O moço então explicou: passou a mão pela cara, Nha Guida viera do seu botequim perto de «Dr. Monteiro já mandou ordens para o levarem ao hospital.» Nhô Mocho ali mesmo no Monte Sossego, e ia-a analisando, repro- Foram-se aproximando, juntando-se acabando por se empurra• vativa, Invectivou-a ao cabo: rem uns aos outros na ânsia de quererem ver o corpo mutilado «Menina, tu és disparatenta deveras. Por esta hora da manhã, coberto com a toalha feita de saco de farinha Gold Meai. quando uma pessoa ainda não desjujuou, onde é que foste arranjar Gold Meai é uma farinha tão branquinha e tão fina, gente. força para tanta voluntareza?» Mandam-na da América. Também mandam farinha de milho. Com Virou-se para o lado e falou para as mais chegadas. farinha de milho fazemos fongos assados na brasa quente, fazemos «Essas meninas de agora não têm propósito. Vocês estão a ver brinholas amassadas com banana madura, banana platcha apa• este pouco-respeito?» nhada no pelourinho na loja de nha Carlota e noutros lugares mais Djula pareceu de repente ser tomada de fúria porque começou onde se vende fruta. Nós só apanhamos a fruta muito madura, é a gritar de mãos na cintura. preciso compreender. Nós não' roubamos, não senhor. Só a apa• «Você não tem nada com isso, nha Guida. Está a chamar-me nhamos, só a chocamos. É pecado chocar uma banana para aparar desproposenta? O que é que quer? Quer ir buscar o lato para me a fraqueza do nosso estômago? Ah! Também nos mandam leite em bater? Quer? Quem manda em mim é nha pai e nha mãe. Que é pó banha roupa. Olá, Jóna, não te mandaram um fato de banho que você quer então? Quer ir buscar o lato? Quer? Vá depressa, para dares uns mergulhos na Matiota? -então. Vá, vá!» Todos queriam ver e Candinha acabaria por ser empurrada, até Por momentos o grupo esqueceu Rolando de nha Concha se estirar contra uma carroça de monturo da Câmara. Mesmo assim ,'eolhido em hora minguada pela camioneta de nhô Mané Virgil. estava ainda a espreitar e a empurrar também —parecia uma festa—, «Menina, tu estás alterada deveras. E mal assistida». e quando deu por si, encontrava-se de costas sem defesa, numa Nha Guida levantava e descia o dedo apontando para a Djula e impudícia de coxas à mostra, mas bem à mostra. prosseguiu em voz pausada: «Moço, que é isto?» «Se eu fosse tua mãe ia buscar o lato, sim senhora. Mas como Quem a teria empurrado assim, dessa maneira? Brutos, mal• 'hão sou tua mãe —cruzou os braços e voltou-lhe as costas—, fica ''eom as tuas malcriadezas.» criados. Oh que raiva!

28 29 A arfar, Djula segredou para Djôzinha: tentes, plantadas ao longo dela, eram manchas sem graça, mirradas «Pus-lhe knock-out, moço.» e mal crescidas por falta de água. A terra em redor, de rija, parecia Djôzinha voltou-se, abriu os braços e olhou-a severo. chão batido. «Vocês são doidas», cuspinhou-lhe. «Vocês não têm respeito Nas escadas do hospital pararam, Subiram-nas com morosidade por nada. Com uma desgraça assim e vocês neste pouco-respeito» e depuseram a carga no mosaico fresco da entrada. — os braços meio estendidos, as palmas voltadas para cima, com O povo preparou-se para acompanhar os serventes, ocupados um aceno indicou os pés sujos do ferido. agora em mudar Rolando para uma maca. No sítio de onde o tira• Dois homens levantaram com cautela o corpo de Rolando de ram uma grande nódoa vermelha tingia o pano. Senhor António, o enfermeiro de serviço, barrou-lhes a passagem, nha Concha, colocando-o numa padiola. «Ele vinha ao lado do chofer, n'é devera?» «Home, porquê? A gente não pode passar?» Senhor António não lhes respondeu. De mãos atrás das costas, «Deve ter sido cuspido quando o camião se desencabrestou na continuou a vigiar o trabalho dos serventes. descida do monte.» Rolando foi levado para o Banco e ali o deixaram até chegar o «Oh, sim. Também-, descer um sítio tão inclinado sem corrente médico. Doutor Monteiro pouco depois, apressado, passou no meio nem nada nas rodas.» do povo, subiu os degraus da entrada em três pernadas e seguiu Djôzinha voltou-se para o Toi. corredor fora. No Banco, acabou de abotoar a bata, destapou a cara «Dá-me um cigarro. Não tens um cigarro? Oh que graça de dar de Rolando, abriu-lhe as pálpebras descidas. Abanou a cabeça. uma fumaça. Ouve, e o chofer? Dezide ele fugiu a gritar. Que ia «Eu não sinto nada, nada, senhor Doutor. Porquê tanto ala• cair no mar. É devera?» rido, an?» «Como, ninguém foi atrás dele?» O médico não lhe respondeu e Rolando estranhou. Então dou• Toi Pirico apalpou o bolso de trás. «Tomara eu um cigart^o Fal• tor Monteiro não lhe ligava nenhuma! O doutor era visita lá de casa cão que fosse. Eu tinha uns dois cigarritos», continuando a vistoria e tomava uma atitude como se ele fosse pé-descalço? no bolso da camisa. «Mas Mamãe gosta também da sua fumaça e «Estou bem, doutor Monteiro. Eu posso ir para casa por meu quando não tem mão-fechóde para pôr no canhoto abafa-me os pé. Só uma impressão aqui me faz este nó na garganta.» cigarros todos». O médico virou-se para os serventes e fez-lhes um sinal com O povo seguiu em cortejo acompanhando os homens que leva• a cabeça. vam a padiola. Vergaram-se, seguraram a maca e pouco depois empurraram-na «Ah mô, ninguém foi atrás dele?», lembrou-se o Toi, passado para um corredor. um bocado. Rolando quereria poder desapertar a camisa. Por certo haveria «De quem? Ah, do chofer de nhô Mané Virgil?» de se sentir mais aliviado. Como diabo vim eu aqui parar? Já não Djô ia apertando o cinto e analisa os furos com atenção. tenho tanto calor. Estou leve, leve. Esqueceu a pergunta porque respondeu: Atravessavam nesse momento a varanda interior do Hospital. «Oh, moço, hoje vai estar um calor!» Tem graça, nunca tinha reparado bem nestes eucaliptos. O sol levantara-se. O dia prometia canícula e nhô Totone lim• Rolando via-os tocados pelo vento brando da manhã; as folhas pava o suor. Escorria-lhe pela fronte e junto às orelhas. A padiola meio crestadas pelo suão roçavam umas nas outras, difundindo uma pesava e os homens arrastavam os pés com embaraço. melodia de que nunca se apercebera até então. «Já morreu?», indagou Toi Pirico outra vez, na altura de ajudar Em menino vinha muitas vezes brincar no jardim do hospital. os outros. Jardim era aquele canteiro comprido com meia dúzia de lírios. Das «Ele tem peso de defunto. Sabes, ele perdeu os sentidos», res- hastes desprendiam-se flores roxas e brancas. Havia, ainda três ou pondeu-lhe Djô enquanto metia o lenço entre o ombro dorido e o quatro eucaliptos com ramos a brincarem sobre o telhado da pau de apoio à improvisada maca. varanda. Muitas vezes ia pelas traseiras do hospital apanhar tâmaras A avenida do hospital mostrava-se lá ao fundo, ladeada por um mur30 o baixo caiado de oca amarela. As arvorezitas de folhas persis- 31 caídas, doces como mel. Um dia nha Tuda, a criada do hospital, ' ocasião como esta. Um frémito trespassou-o. Inchava, inchava. Uá, ralhou-lhe: que graça de rir! Ah, nha mãe, estouro de riso. Ai, ai, não posso rir, «Vocês são porcos. Não sabem que a gente despeja a água dos é fazer pouco dessa gente. O que é que o Toi me parece? Espiou, tratamentos para. os lados destas plantas?» malandro, para ele. Outra vez aquela gana parva de rir. Rir dos dois Nha Tuda sempre gostara de falar no plural. vincos fundos que cavavam as faces de Toi e desciam-lhe do nariz Rolando cuspira enojado e nunca mais comera tâmaras caídas, até ao queixo, do seu beiço grosso, caído, dos seus olhos raiados doces como mel, apanhadas por detrás do hospital. de linhas vermelhas. «Eh, Toi, tu gostas da tua pinga, an?» A aragem afagava-o e o seu corpo balouçava sobre a maca. Das Experimentou levar as mãos à testa, não o conseguindo porém. rodas soltava-se um chiar ferrugento a subir no ar para se diluir Sentiu-as presas. Adê, então um homem não pode ser senhor das pelas portas abertas ao longo da varanda. suas mãos? A toada das mulheres ora se levantava, ora escorria, O povo aguardava à entrada. O sol levantara-se de vez e o dia comprida e saltitante, pelas gargantas afinadas. ia aquecer. Toi Pirico e Djô desceram as escadinhas do lado do Levaram-no. Adivinhava bem por onde iam passando. Via tudo Lombo e foram beber,um grogue no botequim do Leia. Mãos claro, nítido, tal qual se fosse em passeio despreocupado, como lhe enfiadas nos bolsos das calças, ombros encolhidos sobre o colari• acontecia, vezes sem conto, pela fresca da manhã. Passeios coroa• dos quase sempre com umas boas braçadas na praia da Matiota, ali nho aberto, passaram por um cavouco, contornaram a casa de Djula perto da Lajinha. No retorno, à entrada da rua Machado, esperava-o e, colados ao muro da quintalona de nhô Chico, andados meia a voz de nha Chica, seca e esganiçada, uma travessa mais adiante: dúzia de passos, entraram no botequim por um degrau de madeira «Ó li leitel Leite para pôr no café! Ó li leite!» Quantas coisas esque• à entrada da porta. cidas até então surgiam à tona nem ele sabia porquê. Antes de sair, Djô comprou mancarra. «É para abafar o grogue», disse para Toi Pirico. Na pracinha do liceu depuseram a padiola para descansar. A can• Este não tirara ainda o motorista da ideia. tilena das mulheres cessou para dar lugar a um ciciar arrastado, pouco a pouco transformado em zumbido incomodativo. «Mas ninguém, ninguém foi atrás dele?», perguntou mais uma vez, «Depois de um grooguinho uma pessoa fica mais consertada, O corpo de Rolando continuava hirto e nem o sol nem o calor o incomodavam. não é? E com este calor, uma pinga refresca sempre. Não sei nada dessa coisa do chofer», lembrou-se o Djô de repente. Uma ténue tristeza toldou-o. A fachada vermelha do liceu feriu, Tinham acabado de regressar e encostaram-se a um arbusto de por instantes, os seus olhos turvos. Vou chorar. Porquê senhores? Por ser o último ano no liceu? Ora, outros viriam e melhores. Já folhas cordiformes e amarelecidas. Djô acendia o cigarro quando em Julho abalaria para o Continente. Oh, tão bom embarcar, sair, os vultos de bata escura surgiram curvados sobre a maca e nha soltar-se da prisão da ilha onde sempre vivera. Fugir daquele so| Chica rompeu num grito agudo. crã. Esse sol crestava a grama solta pelas achadas áridas e averme• As mulheres galgaram os degraus que as separavam da porta lhava mais ainda o descampado de Chã de Alecrim, da Chã de de largos batentes e mãos estenderam-se para retirar o lençol. Por Cemitério. Esse sol secava os poços de água salobra e tornara cor baixo escondia-se o corpo de Rolando de nha Concha. Os serven• de café torrado a sua tez de mestiço. Ah, embarcar, evadir-se para tes pararam e puseram-se à frente, impedindo-as de se aproximarem. além do elo que torneava e sufocava a ilha agreste. «Não, isso não. Tenham paciência, mas isso não.» Sentiu-se levado de novo, A cantilena recomeçou, baixinha e Toi Pirico, nhô Totone e mais dois tomaram a dianteira e levan• cadenciada. Os pés descalços dos homens e das mulheres levanta- taram o corpo de Rolando para o colocarem, de novo, na padiola, .vam-se e pousavam no calcetado. Esse ruído monótono começou a onde o sangue se colara e ganhara película. Um lamento, ao mesmo incomodá-lo. Afigurava-se-lhe ouvir cochir milho. tempo dorido e maguado, soltou-se do peito de nha Guida, logo Para se entreter voltou a face dorida para nhô Totone. seguido do coro dolente e cadenciado de quantas mulheres faziam «Você parece cansado, nhô Totone.» parte da companha. A frase caiu arrastada. Teve a sensação de não a ter pronun• Rolando espreitou as caras compungidas de Toi e de nhô ciado sequer. Nhô Totone continuou a olhar em frente, arfando Totone. Deu-lhe vontade de rir, mas conteve-se. Não devo rir numa

32 33 levemente para controlar o cansaço. Com as duas mãos amparava os braços junto ao corpo. Uma sensação de serenidade e frescura o pau de laranjeira onde se prendia o pano enxovalhado da padiola. bafejou-o. Não lhe apetecia falar, apenas desejava estar assim, de Um estridor agudo sobressaltou-o. A padiola oscilou, houve um olhos fechados para ninguém o importunar. ligeiro reboliço e o mesmo estridor varreu-o todo. Alguém agarrara-o «Junta-lhe melhor as pernas», disse nhô Totone num sussurro. pelos ombros e apertava-o com desvario, com ânsia e desespero. Nhô Totone está amável hoje. Ná, esse feijão deve ter toucinho. Um sopro quente abafou-o. Nhô Totone era chefe dos contínuos do liceu. Bom homem, «Assim não, nha Concha, assim não», ouviu ele, mesmo junto todavia muito rabujento. Ameaçava-o de vez em quando com a Rei• ao ouvido. toria se o apanhava no corredor a falar com a Celina, Rolando des- forrava-se fazendo-lhe um gesto malcriado mal ele voltava as cos• As mulheres falavam ao mesmo tempo. Lágrimas quentes rega- tas. ram-lhe o rosto. Sabia-o sujo porque nha Concha estava a limpar- -Iho com o lenço que tirara do seio. Limpava-o e soluçava. A mesma toada de há bocado, de havia tantas horas, eièvou-se no ar" parado. «Não chores, mamã. Isto não é nada. Então, mamã?» Era um homem maduro a falar. Sentia o âmago da vida como A mãe continuava a passar-lhe a mão pela testa e a murmurar em surdina. se dela tivesse colhido toda a experiência, Sentia-se capaz de deitar Uma espécie de calma quebrantou-o de novo. um discurso, gente. Na casa, iam e vinham afadigados. As portas encostavam-se Uma apreensão súbita de perigo desviou-o das suas divagações. «É melhor levá-lo para a cama.» com religiosidade e os pés descalços mal afloravam o soalho esfregado com folhas de carrapato. Uma confusão de vozes, de odens desencontradas, entorpe- Um ranger repetido de sapatos alertou-o, Pareceu-lhe navio em ceu-o a pouco e pouco. calmaria, a dar de um lado a dar de outro. Deve ser nhô Jom San• Ainda bem, já estou em casa. Nem me tinha apercebido. Foi tão tos. Vou fingir que estou a dormir, rápida a caminhada. Dantes tornava-se-me cansativo o caminho de Nha Concha desatou numa guisa sentida, casa. A rua sempre a subir, sempre a subir, sem nenhum horizonte «Credo, mamã, pára com esta coisa. Preciso de sossego e vocês a não ser o seu términos abrupto no pé-de-rocha, desde sempre me não me deixam. Isto é uma afronta, mamã.» trouxe a sensação de inutilidade, de não valer a pena. Hoje, porém, Nha Concha continuou a chorar abraçada a nhô Jom Santos. foi um ápice. Também fui trazido. Tem graça, tive a sensação de Nhô Totone, postado atrás de nhô Jom Santos, tocou leve• ter vindo sempre atrás de mim mesmo. Por acaso diverti-me um mente no braço de nha Concha: bocado. Aquele Liminha, nunca mais acabava o quinto ano!, viera «Comadre, agora a comadre vai tomar um caldinho.» todo o caminho a segredar disparates à Juju. Ela devia estar a gos• Nha Concha abanou a cabeça com esforço. tar porque nem virava a cara quando ele se chegava mais para ela «Não, comadre Concha, a comadre não pode ficar assim com o e lhe roçava os seios com o cotovelo. E Rosarinha nossa criada estômago vazio.» dias-há e agora menina-de-vida? Rosarinha fora toda a vida uma A criada, atrás de nhô Jom Santos, tinha-se chegado para junto disparatenta. Disparatenta e voluntária. Tão entretida vinha a desfiar da cama e começara a desfiar, entretida: histórias de marinheiros e de estrangeiros, passadas no seu quarto «Dona Morgada mandou um prato de bolachinhas e duas gar• lá do Lombo, das fuscas desbragadas apanhadas com eles, duns rafas de vinho do Porto, dona Nené mandou uma terrina de canja, xelins tirados das calças de um inglês depois de o pôr a dormir com dona Daluz mandou canja também.» meia garafa de grogue. Por pouco não derrubara nhô Totone «Credo, menina —gemeu nha Concha—, credo, fecha essa boca.». quando o cortejo parou para descansarem um pouco. Até se me A carpir compungidamente, as duas mãos juntas sobre a afigurou que ela vinha para cima de mim, senhores. jCabeça, cara para um lado, cara para outro, nha Concha abalou do Limparam-lhe a cara com uma toalha húmida, vestiram-lhe outra quarto. A criada acompanhou-a e o ranger dos sapatos de nhô Jom roupa e deitaram-no, ?antos foi-se diluindo no silêncio que, abruptamente, se fizera no Nha Concha sentou-se numa cadeira junto à cama. As mulheres ;aposento. de volta dele ajeitavam-no. Estenderam-lhe as pernas, chegaram-lhe 34 35 Sozinho, sabia-se lá há quanto tempo. Rolando ganhou cora• «Oh senhor! Oh senhor!», balbuciou num soluço gem para dar uma voltinha pela casa. Em poucos segundos alcan• A cena desenrolava-se à sua frente e absorvia quantos a pre• çou a sala de jantar. Muita gente se encontrava nessa dependência. senciavam certos de não se lhes escapar o mínimo deste final de Falavam baixo. Descobriu Liminha num canto, numa cadeira, muito peça para depois a poderem narrar à volta da mesa depois do jantar encostado à Juju. Ela descansava as mãos de dedos compridos, enquanto Dinha cabecearia de sono com o rosário entre as mãos sobrepostas sobre o regaço, e devia estar a analisar as unhas tam• descansadas no regaço. bém compridas e arranjadas. Liminha beliscava-lhe as orelhas, dis• traído. r.nT° 1°*°"^ ^ "''^ "^""^ «bafados pelos gritos de nha Ninguém deu fé dele. Concha, deixaram cair as abas do caixão sobre o corpo hirto de Rolando, sobre o seu próprio corpo, senhoresi Joana, ao pé da porta, chupava o canhoto apagado. Na cozinha E a surpresa mal refeita de Rolando aderiu ao desespero de nha a criada falava para alguém. Concha e ambos gritavam: «Eh, menina, despacha-te, muda este vestido.» «Não, não, não!» Ao fundo, sentada num banco baixo, junto a uma celha de água, Candinha, apressada, retirava flores e ia-as armando. Um pequeno burburinho fê-lo estremecer. Toda a gente levan• tara-se e correra para a porta. De onde estava, procurou adivinhar a causa dessa mutação de cenário. Um silêncio pardo abafou o ambiente de ceras distorcidas no fundo dos castiçais. Um sininho tremeu, distante, em badalar dolente e forçado. «Com licença», pediu ele ansioso. Tão ansioso a ponto de lhe parecer que não podia respirar, não respirava mesmo. Um aulido como de mãe no momento angustiante do parto, abalou-o. «Com licença, deixem-me passar», implorou quase com agonia. Todo ele tremia, tomado de mal-estar. As pessoas compri- miam-se, queriam ver. Ninguém o atendia. Senhor! Alcançou a porta do quarto, com quanto esforço!, e o medo paralisou-o. Outro grito fendeu o alvoroço espectante. Num assomo de coragem transpôs a porta, deu dois passos decididos e parou atrás da mãe. Quando era pequeno acontecia tudo da mesma maneira como agora. Depois de alguma diabrura ia charutinho sentar-se ao pé da mãe, na esteira, junto à cadeira de balanço onde ela descansava. Ela levantava os olhos do livro e perguntava-lhê: «Fizeste alguma mofineza. Rolando?» Ele baixava a cabeça e metia os dedos por entre as cordas da esteira. «Mamã! Mamã!» Duas pessoas seguravam-na. Levantou-se nos bicos dos pés, espreitou, e não compreendeu o que se estava a passar. Algo de insólito sacudiu-o e teve a sensação de ter sido castigado na nuca.

36 37 DESENCANTO Puxa a porta e desce lesta. As vizinhas já a conhecem pelo' pisar rápido e nervoso. Um piso um patamar volta à direita outra vez à direita, voa agora apressada. «Bom dia. Passou bem?» O padeiro afasta-se para a deixar passar. Tão bom o cheiro a pão fresco. O aroma evola-se através do pano. Só se vêem as ver• gas dó cesto. Outro patamar volta à direita outra vez à direita e os degraus fogem sob os sapatos de salto raso. Alcança a rua em quatro passadas e aspira o ar frio da manhã nevoenta. De expressão sorridente atravessa-a e dá alguns passos no passeio do outro lado. «Bom dia. Passou bem?» Na paragem a senhora do casaco claro. Franze a testa a senhora do casaco claro e pinta os cabelos. O eléctrico amarelão e ronceiro avança barulhento e pregui• çoso. TIam tiam ri o eléctrico vestido de quarentena. «Com licença.» A bicha nunca mais finda e o eléctrico ronca de papo-cheio. A aprendiza de cabeleireiro levanta os olhos do livro de todas as manhãs. A mulherzinha da alcofa empurra, tem pressa. «Bom dia. Passou bem?» Um sorriso aflora às faces descoradas da escriturária de segunda classe. Sorri e enruga o canto dos olhos. A escriturária de segunda,classe veste-se bem. Um arremedo de vestir bem. Tudo impecável sem uma nódoa sem uma ruga. A escriturária de segunda classe não usa cinta. Sob o casaco —não é de inverno nem de verão — não se conhecem as suas formas opulentas de trintona fanada. Sempre as mesmas caras todas as manhãs. Sempre as mesmas. Mas nada têm de comum com.tudo para trás com tudo da vida de nómada levada desde que abandonou os estudos. Desde aquele dia soalheiro mas de uma incerteza tão grande e tão dorida de como

41 poderia continuar a ver o mundo com os olhos dos outros. Pensara um escorregar constante. É como se fosse uma casca de banana em voltar. A madrinha bem a aconselhara. Não. Não podia ser. Ter grudada sob os pés. Adivinha o epílogo. Acabará por estatelar-se de se adaptar de novo começar tudo de princípio. Como se fosse sem apoio. possível uma coisa assim. Voltar para quê? Para vegetar atrás das Corrida de empregos de sujeições tem sido o seu rosário atra• persianas da cidade parada e espreitar as mulheres trazendo a'água vés destes anos todos. Até já lhes perdeu a conta. do em latas à cabeça ou os homens puxando as zorras Sai apressada do eléctrico. Atravessa a praça não sem voltar a com os sacos para a casa Morais? cabeça para se defender do vento. Vento nordeste forte com fre• Não não sempre não. quência de não com rajadas fortes na frequência de na frequência de. Numa casa estrangeira começara encantada uma nova vida. Ena tanta gente atrás de mim! Nada de pontos nem chamadas escritas nem de lições preparadas Corre e arqueja um pouco. O comboio está a chegar à estação. com pouca vontade. Apenas lhe exigem boa apresentação e umas Não o pode perder. Não pode. Quem aturaria o chefe? Ter de ouvir arranhadelas de francês e de inglês. a mesma conversa todos os dias. Tudo lhe correu bem durante algum tempo. No entanto acabou Afoga-se num mar de suor. Esbraceja num último esforço. por desistir. Desistir estupidamente sem razão aparente. Os colegas Enfim. Foi por um triz. com quem tomava café depois do almoço pareciam camaradas de «Bom dia. Passou bem?» verdade. Às vezes almoçavam juntos numa casita ali perto da Rua Cansada, Com a respiração opressa encosta-se à porta que só da Conceição. Até aprendera com eles um vocabulário novo adqui• se abre à chegada das estações. rido no contacto permanente com o público um vocabulário exci• Mas este é rápido. Desliza e apita nas estações onde não pára tante pela novidade e pelo sabor nele encontrado. hoje e todos os dias. É verdade. Acabara por se cansar ela a rapariga decidida. Can- Procura lugar com os olhos. Os outros vêem-na indiferentes. sou-se de todos: do patrão dos colegas dos próprios clientes nem O cavalheiro magrinho da frente lê concentrado o jornal da manhã. sempre os mesmos. Voltara as costas ao emprego precisamente O senhor magrinho volta a página e ela atrás. De pé, continua quando já estava a adaptar-se à vida de pau mandado. Adaptar-se a ler os títulos em tetras gordas. é um modo de dizer. Gostaria mais de não fazer nada. Apenas falar «O jogo de Alvalade foi um autêntico festival». com este com aquele rir com uns bons amigos. Nunca conseguiu Fotografias. Ampliações dos heróis da véspera. enfrentar os clientes sabidos e desnudaram-na com os olhos lasci• Não será ela também uma heroína de todos os dias neste ciclo vos. Quando isso acontecia corava e tremia. Nem sabia já para onde de etapas cronometradas de onde não pode fugir? se voltar. Lança um olhar ao relógio de contrabando escondido sob o Porque razão tremia? E um arrepio percorre-a. Por certo no punho da camisola. Tudo corre bem como todos os dias. mais recôndito do seu eu escondia-se uma ponta de prazer. E se se A porta abre-se. Cais do Sodré. mostrasse tal como era? E daí nenhum mal viria ao mundo. De uma Empurrada pelos outros atravessa a gare. Um autómato de vez um rapaz bastante simpático quis acompanhá-la. E dizia coisas passos certos. Alcança a porta envidraçada da saída e desce as tão engraçadas. E porque não haveria de ter ido ao cinema com o escadas. colega com quem estivera a beber cerveja na esplanada? Esse era «Bom dia. Passou bem?» fresco. Bem, Tinha sido um encontro de tigela rasa. Ninguém tem Mora há tão pouco tempo na linha e já conhece tanta gente. culpa de ser como é. Pena era as pessoas não entenderem a Iha- Atravessa a rua num rufo e caminha distraída. Chega o cache• nesa que ela e as patrícias punham no trato e daí uma série de col para mais perto do nariz e atira a ponta sobre os ombros. quiproquós comprometedores e acabando por as deixar mal vistas. Junto ao cordame da amurada o rio quebra-se no limo verde A elas pelo menos tem sido a sua sina. Saía de uma para se meter das correntes que seguram a ponte à margem onde as águas chei• noutra. ram a lodo. Por estas e por outras e apesar de toda a dignidade que pro• O barquinho das mil e uma noites vomita uma mole de gente e cura manter sente bem isso. A sua vida desde esse tempo tem sido engole-a por sua vez para a levar à outra banda.

42 43 «Bom dia. Passou bem?» Um sorriso espalhou-se em todos os rostos. O da cara com• A senliora das peles ajeita-se na cadeira de verga. prida levanta-se e segura a pasta. O caixeiro-viajante de nariz de Ai o nevoeiro! Ai o nevoeiro! judeu dá dois passos para a escada. Enfim. Chegámos. Chegaram. «Bom dia. Passou bem?» Chegaram ao porto de salvamento. As peixeiras em baixo são Precisa fazer uma visita à madrinha. Nunca mais lá foi. Também gralhas teimosas. teria de estar a contar tudo tintim por tintim. Remexer naquele Ela resvala por entre as gentes, estranha solitária no seu casaco de quadrados. monte de. acontecimentos. Contar para nada ser agora remediado. O homem do chapéu preto está junto dela. Pressente-o pelo A professora de luvas azuis continua de pé a perscrutar o faro que já tem dessas aproximações. Um sussurro fá-la estar atenta. nevoeiro cerrado. «Estás bom, pá?» Ela, a das corridas de todas as manhãs, aconchega-se melhor «Malandro, estás a fazer-te prà mulata.» no seu casaco de quadrados. Rienzi baixo e esse riso é uma afronta. Fixa os olhos no alcatrão ao longo das junturas das tábuas. «Bom dia. Passou bem?» O barco geme nas ilhargas e avança seguro no nevoeiro. Desce trémula, pisando os degraus com atenção. Daqui a pouco com mais um esticão será outra etapa outra Encruzilhada pela qual tem de escolher. Sempre a fugir de corrida para o escritório sobranceiro à praça larga suja de papéis e andar com os patrícios de cor para não a confundirem e afinal é folhas secas. um branco que lhe vem lembrar a sua condição de mestiça. «Bom dia. Passou bem?» Oh céus! É uma cigana errante, sem amigos, sem afeições, O motorista levará a mão à pala e sentar-se-á pronto a arrancar. desgarrada entre tanta cara conhecida. Ela alisa as farripas ásperas e negras soltas do lenço. Por onde andará ele? A memória remexe teimosamente nas lembranças de esquecer. Fora a menina da tabacaria quem a avi• sara. Ela já o adivinhara aliás e afastara a ideia com repulsa. O traste. A menina da tabacaria chamara-lhe Bufo. O Bufo era casado. Vejam lá. Ligada a um homem casado e ainda por cima Bufo. Até dá vontade de rir. Se pudesse limpar da cara a sensação das caricias que ele lhe fazia. Costumava passar-lhe a mão pela face e perscrutar-lhe bem fundo nos olhos à espera de não sei de quê. Malandro. Sempre gostava de saber o que é que ele queria. Enrola com calma o bilhete entre os dedos. O barco geme e nina-se. A professora de casaco azul e luvas azuis comprime a testa contra os vidros. Tem medo! Tem medo do nevoeiro! E o barco das mil e uma noites desliza pachorrento por entre a opacidade densa. Desvia a cara do homem de chapéu preto. Olha-a com insis• tência. Não é a primeira vez. Viúvo? Casado? Uma ruga vinca-se-lhe entre as sobrancelhas. Seja como for não pode' de maneira nenhuma pensar em recomeçar. Não pode. E seus olhos procuram, dissimulados, os olhos do homem de chapéu preto. Ele agora examina, interessado, as pernas da vamp magrinha sentada ao fundo, à direita.

44 45 ESMOLA DE MERCA ESMOLA DE MERCA Titina acordou e estava a gozar a sabura da cama. Virou-se para a parede. As maçanetas tremeram e Titina enroscou-se meihor j^sobre si mesma. Branca, a camita de ferro, tanto à cabeceira como nos pés era rematada com um rendilhado —pareciam as lerias da titia—, tendo -ao centro, também em ferro, um desgracioso ramo de folhas pen- á^ntes em leque, pintado a esmalte verde. Nunca tivera leito próprio e já era menina-feita e nem à madri- Snha nem à tia se lhes ocorrera ser tempo de lhe arranjar uma cama. "•^ormira sempre com elas num colchão largo, com a cabeça para onde punham os pés. Fora sempre assim até um dia, depois de um arnaval de bailes e assaltos sem conta, quando regressara numa loca-da-noite, tomada de tremuras e dores de cabeça. Passou "sim algumas noites, de cabeça virada para os pés das duas IJhotas, cheia de febre e quebranto. De manhã, a madrinha ria-se ara ele e dizia: «Ficaste dogada com o carnaval, hé Titina?!» kevantava as pálpebras e não respondia porque o formigueiro ^yoava-lhe a cabeça e toldava-lhe as ideias, í Numa dessas manhãs, a madrinha ergueu-se muito cedo para •/ o passeio do costume até à igreja nova e antes de sair do jarto chalaceou para Titina. Não abriu os olhos ou se mexeu, armada, a madrinha debruçou-se ansiosa sobre a sua cabeça jde os cabelos emaranhados se lhe colavam empapados pelo suor. iQUve reboliço no sobrado. Lulu fora a correr chamar o doutor .^pstinho e, na mesma manhã, resolveram comprar-lhe aquela ipa de ferro porque a febre tifóide era demorada de curar. ; Titina acomodou-se e puxou o lençol para cobrir a cabeça. ^ As moscas nunca a deixavam dormir de manhã. Zumbiam-lhe ;^ ouvidos, pousavam-lhe nas faces, maçavam-na e estragavam- è o começo do dia. A origem de tal enxamear era o botequim de a Luzia, cujas traseiras ficavam mesmo ali ao lado. Nesse quintal '^Jlgoso nha Luzia fritava olho-largo e pastéis de alvacora em

49 fogareiros feitos de latas de petróleo, despejava a água da lavagem conversa. No Grémio, à hora da canasta, já tinham falado nisso. das louças e amontoava a um canto o lixo que os fregueses faziam Mimi Costa na loja de nhô Afonso até tinha afirmado: ia arranjar no botequim. Bem, esse lixo costumava ficar esquecido por muitos um fato de banho no meio daquela esmola de Merca. Nhô Afonso e muitos dias, ganhando camadas, chegando a encarrapatar-se no ficara a ver muito sério para ela, e de boca aberta, porque Mimi chão térreo, como acontecia às cascas de manga, pegajosas como Costa não tinha precisão de esmola de Merca. grude. Tinham sempre de chamar nha Tuda para as vir raspar com «Adê, como! Nossos patrícios mandaram esmola de Merca para um arco de barril e as remover. o nosso povo. Não sabias?» Nha Luzia era uma mulherona de cabelo Inchado. Só se penteava Alisou os cabelos com as duas mãos. com pente de pau de laranjeira para lhe acalmar as dores de cabeça «Julinha disse são caixotes e caixotes de roupa», continuou de que sofria desde menina. Haveria de dizer isso mesmo no pátio entusiasmada. «Também mandaram farinha, banha. Vai ser um dia da Administração, quando, também nesse dia, de mistura com as grande.» outras, fosse receber a sua parte de esmola vinda da América. A voz enchera-se-lhe de quentura e Titina espiava-a divertida. Sempre suja, passava os dias a chamar pelos filhos que lhe Tanto se lhe dava a esmola dos patrícios da América como não. trocavam as voltas e em galhofa com os fregueses. Por vezes, até Isto não vem remediar nada, pensou olhando para além da ao sobrado onde dormia a Titina chegava o seu riso tremido. madrinha. Titina ouvia o zumbido por cima do lençol puxado sobre a sua Esta continuava encostada à cama, os cotovelos apoiados ainda cabeça e, inconscientemente, irritava-se contra nha Luzia, contra o sobre o rebordo de ferro. seu desmazelo e porcaria, contra aquelas moscas nojentas. Todos Nem chega a ser um remendo, pensou ainda. Os patrícios de os dias estragavam-lhe o acordar da pela-manhã. Lisboa também mandam roupas usadas, calçado, pão seco. Senho• Um arrastar de sapatos pô-la alerta. Soava baço e aproximava-se res, até mandam pão seco para a nossa gente amojecer em água e do quarto. Aguardou até ouvir a voz descansada da madrinha: enganar a fome. «Titina, hé Titina.» «E onde é a distribuição?» acrescentou por desfastio. Mexeu-se na cama para se deixar ficar de novo. «Julinha disseera na Administração. O administrador pediu-lhe Uma réstia de luz estirava-se da clarabóia de juntas mal unidas para arranjar umas companheiras para a ajudarem e ela lembrou-se de ti.» e poisava, num traço, sobre o baú forrado de pele de cabra da Boa- -Vista. Passou de novo as mãos pelos cabelos, alisando-os, e continuou": «Eh Titina, estás acordada?» «Foi avisar a Bia Sena também. Pediu para ires ter com ela na Entrou, aproximou-se sempre a arrastar os pés e descansou os Administração.» Titina ficoU entusiasmada mas não o deu a perce• cotovelos no rebordo da cabeceira da cama. As maçanetas brilha• ber à madrinha. Aquele administrador era um bom ponto. Mon• ram na penumbra do quarto. drongo, tinha a mania de impor os bons costumes. De portas a «Titina, acorda.» Tocou-a duas vezes tacteando as formas deli• dentro, porém, mantinha aventuras bastantes dúbias. Costumava neadas sob o lençol. «Olá, Julinha veio perguntar agorinha-assim detê-la quando voltava do liceu, para largas conversas no passeio. se queres ajudá-la na distribuição de umas esmolas que mandaram De umá vez ela escrevera um artigo sobre a emancipação da mulher de Merca.» para o jornal dos rapazes do liceu. Topou-a na esquina da Adminis• Titina esticou as pernas, pondo-se de costas, e descobriu a tração e avisou-a de dedo no ar: cara. Fitando a madrinha, sentou-se na cama, dobrou os joelhos e «Já lhe cortei o artigo. Não me venha prà aqui com espertezas.» descaiu sobre eles o queixo. Indiferente, respondeu: Titina rira com gosto e chamara-lhe maluco. «Que esmola, Dinha?» Desde esse dia ficaram amigos, como se o facto, forte motivo Esta arregalou os olhos espantados para a afilhada. Adê, Titina! para os afastar, os tivesse aproximado ainda mais um do outro. Falado agora, não sabes de nada. Toda a gente no meio da cidade sabia. O vapor havia de chegar mais dia menos dia. No pelourinho, Saltou da cama e abriu a clarabóia. O sol jorrou dentro do na Praça Nova, na igreja, nos passeios da noitinha, não havia outra quarto. Retirou os lençóis, sacudiu-os e bateu o colchão. Minúscu-

50 51 los pontos, milhares deles voltearam no facho da luz vertida da cla• os apanham. Os gregos são maus e nunca ninguém soube o destino rabóia sobre o soalho vermelho de terra seno. Acabou de fazer a do marido de nha Quinha.» Descansou a fala por momentos. — «Se cama passando a mão várias vezes sobre o cobertor. puderes arranjar alguma roupa pâ nha Chica de nhô Antoninho, A poeira continuou a girar no rectângulo de sol. A madrinha também era bom», completou, não fosse esquecer-se. encaminhou-se para a porta. Parou entretanto e voltou-se para a Titina começou a resmungar, enfiando o vestido com malcriação. Titina. Começara a lavar-se, debruçada sobre o lavatório. «Eu não estou para vir com embrulhos debaixo do braço. Não «Se puderes, arranja uma saia e mais qualquer coisa pâ nha sou criada de ninguém.» Quinha, Ela está muito precisada. Eles costumam mandar boas «Estás a sair fora da linha, Titina», ralhou a madrinha com voz roupas de Merca. Tu podias arranjar uma coisinha boa para ela», um bocadinho alterada. «Hei-de te acabar com essa trublação que disse num fôlego. trazes no corpo. Não se pode dizer-te nada que não venhas com Titina esfregava os braços espalhando a espuma com atenção. esses modos de voluntária. Menina de não-sei-que-diga!» As mãos na água, voltou-se para a madrinha, a cara e os braços A madrinha enervara-se deveras, mas a menina de não-sei-que- ainda cheios de espuma perfumada de sabonete inglês. -diga já não a ouvia. No corredor deu uma esticadela no vestido e «Se ela fosse lá, seria melhor. Sempre podia escolher mais à apertou o cinto. vontade.» Um pouco magrizela, escanzelada mesmo, apesar de tudo pos• A madrinha olhou para ela com ar reprovativo como se ela suía certo sal e fazia atrair sobre si a atenção dos rapazes. Era o tivesse dito um despropósito. Deu alguns passos até ao meio do verdadeiro tipo de fausse-maigre, diziam-lhe ao verem-na em fato de banho na Baía das Gatas. Aliás não o ignorava, visto comerem-na quarto. sempre com os olhos quando por eles passava. Os colegas chama- «Ir para a fila?» censurou-a. «Meter-se no meio do povo?» vam-lhe morena cor de bronze. Os dentes ligeiramente saídos pisa• Tinha acabado de se sentar no baú onde guardava as colchas, vam o lábio inferior, desfeiando-a um pouco. Esse pormenor não a da casa. Colchas feitas de quadrados de crochet em ponto fechado preocupava porém. Possuía outros trunfos, consolava-se. e baixo, rematadas com inúmeras borlas, colchas de calabedoche, colchas de damasco em tons quentes, coberturas de mesa em Ao chegar à Administração encontrou a Julinha no quintal a veludo carmesim, debruadas nas ourelas com entrançados feitos, remexer nas roupas e a separá-las. Bia Sena sorriu para ela e abra- pacientemente, nas tardes mansas da cidade batida pelo vento. çou-a peia cintura. «Nha Quinha nunca foi mulher de pedir de porta em porta. Ela «Estás muito bonita, Titina. Quem é que te fez este vestido?» foi dona da sua casa com tudo-em-quanto era preciso. Era criadas, E afastara os braços para a ver melhor. era roupas penduradas no guarda-fato, era coisas boas no guarda- «Foi Nina Costureira.» -comida, era tudo, tudo», admoestou-a a madrinha. «O marido «Nina Costureira trabalha muito bem. Tem umas mãos!» embarcou e nunca ninguém soube dele.» A voz tornou-se-lhe Bia Sena sorria ainda para ela e seus olhos de boneca piscavam melancólica. «Ele fugiu desta nossa terra madrasta num vapor amiúde. grego. Era um vapor de carvão, um vapor de dois canudos, grande. «Ei, vocês não estejam com conversas. Vamos ter muito que Ainda não tinha passado o canal quando foram dar com ele escon• fazer», falou-lhes a Julinha abaixada sobre as roupas. Começara a dido não sei onde. Assim que o encontraram, foram-no arrastando, escolher e a separar. arrastando. Havia mais dois moços. Tinham fugido com ele. Quando O povo fora-se juntando do lado de fora. Aguardava. Não fora eles viram a maneira como os gregos estavam a maltratar o marido preciso avisá-lo. Ainda o vapor não havia alcançado o ilhéu Raso e de nha Quinha ficaram afrontados. Desataram numa carreira, já ele sabia: a esmola dos patrícios vinha pela baía dentro. Na sua escada acima, escada abaixo, com aqueles gregos todos atrás deles, maioria eram mulheres velhas, andrajosas, de olhos encovados e até encontrarem maneira de cair no mar. Bons nadadores, aqueles cabelo engasgado pelo pó e falta de pente, escondido debaixo do moços! Vieram dar na ponta de João Ribeiro, cansados mas con• lenço vincado de tanto uso. Parte delas viera arrimada ao seu pau tentes. Aquela encrenca a bordo não tinha sido para brincadeira. de laranjeira, desde a Ribeira Bota, a arrastar os pés descalços e Miguel Santos até disse eles costumam metê-los na caldeira quando gretados até ao meio da morada. Uma parte espalhara-se pelo pas-

52 53 seio da Administração, outras sentadas no patim das portas laterais, Manelinho, no meio de um grupo, dançava a tonguinha. Manelinho outras aguardavam de cócoras nos passeios. Penderam o queixo era muito engraçado. Pequenininho, mas esperto, gente! Manelinho sobre os joelhos unidos e abraçavam as próprias pernas, com a saia com nove anos dançava a tonguinha falava com os estrangeiros e de pano esfiapado na bainha puxada de modo a cobrir os pés. mergulhava-se lá fora no mar para apanhar moedas. Mam Zabêl encostara-se à parede e descansava um dos punhos A velhota virou-se para Mam Zabêl e tocou-lhe o braço. em cima do pau grosso seguro com a outra mão. A seu lado, uma «Agô, tresanteontem uma senhora deu-me uma batata doce. velhota como ela, tronco abaulado sob a cabeça a tremular, levava, Devia ser batata de . Foi aquela senhora que mora por continuamente, as costas da mão ao nariz e fungava. detrás do Madeiral. Não sabe quem é? Ela tem uma horta no Monte «Você está constipada, an comadre?», perguntou-lhe Mam Zabêl Verde.» ao fim de algum tempo. Mam Zabêl continuava encostada à parede. «Dias-há ando com pingo no nariz não sei porquê.» Estava esperançada. Bia Sena havia-lhe prometido um casaco «Aan.» de Merca, quente, um casaco para a resguardar do frio da cambota. Mam Zabêl arrimou-se no pau e ficou a olhar para o vácuo da O frio passado dormia de noite enrodilhada na saia preta que lhe sua vida sem história. A velhota chegou-se para Mam Zabêl e falou tinha dado Nha Elvira de Nhô Jul Sousa. Oh tanto frio ela passou como se fosse em prosseguimento de uma conversa interrompida. na cambota, Nhor Deus. As pedras eram duras e o Vento do Laza• — «Banha de Merca faz engrossar a cachupa. Cachupa fica reto furava a pele e trespassava uma criatura de Deus. Os mocinhos sabe, sabe, com banha de Merca.» de ponta-de-praia tinham mais sorte. Dormiam debaixo do coreto, Mam Zabêl, sem olhar, observou mais para si, a dar balanço às na Praça Nova. Mas ela era gente velha, tinha compostura, não ia dormir debaixo do coreto, não senhora. suas necessidades de momento: «Estou precisada de um casaco de Merca. Lá na cambota tem A cabeça tremia-lhe ensombrada nos pensamentos. A velha ao lado levou as costas da mão ao nariz e fungou, continuando a lenga• muito frio. De um casaco de Merca é que eu estou precisada.» lenga: Encostou-se à parede e, num regougo, repetia: «Na cambota «Quando eu era criada de Dr. Henrique, senhora mandava pôr tem muito frio.» mandioca na cachupa.» A outra não deu mostras de a ter ouvido, porque continuou: Repousou a fala e prosseguiu: «Djódja disse esta banha de Merca tem mistura —encolheu os «Eu fazia um refogado por volta das seis horas, na hora de sol ombros e ganhou ardência na voz—, mas dá bom gosto na cambar e só depois, passado um bocado grande, eu metia-lhe cachupa. Cachupa fica apurada deveras com esta banha de Merca.» mandioca dentro. Ficava sabe, sabe.» Coçava-se por debaixo do mandrião de pano preto, salpicado A algazarra do povo começou a aumentar. Estavam impacientes de flores miudinhas, brancas. Precisamente no cálice, apresenta- nem sabiam porquê. Impacientes e contentes, la ser uma boa vam-se delidas, formando um rendilhado por todo o mandrião, semana. como se fora de propósito. Continuou a coçar-se e a divagar. Da janela do primeiro andar. Senhor Amadeu da Fazenda e seu «Cachupa também fica sabe se a gente lhe põe favona. Daquela compadre Gouveia apreciavam, divertidos, o povinho. Nesse mo• favona da Praia. Incha muito e faz uma cachupa sabe, sabe.» mento estendia a mão e falava para o compadre, apontando com o Os olhos brilhavam-lhe e a boca, rala de dentes, comprimia-se- queixo a massa de gente acamada no passeio, na rua, como um -Ihe à procura do gosto daquela cachupa tão boa. tapete rugoso de cor neutra. Mam Zabêl levantou a cabeça e, ins• «Nô Senhor me perdoe, quase me esqueci do gosto da cachupa tintivamente, compôs o lenço puxando-o sobre a testa. Abriu a boca — disse baixinho e riu. Atemorizada porém fez o sinal da cruz. num esgar. Senhor Amadeu, sacudido de riso, debruçado ainda à — Dias-há no mundo eu não tenho comido cachupa. Nem cachupa janela, voltou a cara para o compadre. Este fitava-o, meio sério, nem nenhuma comida de caldeira. Só parentem, às vezes. Mas eu meio risonho, ' > - não tenho dentes, você sabe, e custa-me comer parentem.» Breve Mam Zabêl esqueceu o senhor Amadeu què^julgou ter-se Ficou a ver a rua cheiinha de gente pobre como ela. Muitos rido para ela e voltou-se para a companheira: estavam calados, à espera. Mas também havia risos, conversas.

54 55 «Você quem é, an comadre?» «Olá, menina, eu conheci tua mãe ela ainda fazia chichi na Uma das portas abriu-se e Julinha apareceu. A massa de gente cama. Tua Nhanha foi menina do meu tempo. Arranja-me um começou a movimentar-se e a aproximar-se. Primeiro mansamente, casaco de Merca. Lá na cambota tem muito frio. De esmola!» a seguir com certa presteza, com manha, a ver quem ficaria à frente. Um chorinho manso não a deixou continuar. De cócoras, o As velhas empurravam com os paus a defenderem-se na sua fra• queixo sobre os joelhos tapados com a saia, o choro de Mam Zabêl, queza. entrecortado de lamentos ininteligíveis, vazava em répia monocórdica. Julinha abriu os braços. A manhã ia avançada. Bia Sena suava e sentia os braços mor• tiços de tanto vestir e despir os coitados da sua terra, Julinha ia-a «Não é preciso empurrar», alteou a voz — «tem comida e roupa ajudando. Com o pé afastava roupas porque não serviam ou tinham pâ toda a gente.» sido recusadas. Nem a ouviram porque os primeiros entraram de roldão. Impe• «Já não posso mais», balbuciou Bia Sena num sopro. «Mas lidos pela onda de trapos e fome que irrompera ululando. Mam quem teve essa lembrança? Cada um podia podia levar a sua roupa Zabêl sentiu-se ir na leva e, meio sufocada, foi atirada para junto e vesti-la em casa». de uma caixa aberta, atafulhada de embrulhos. «Q Administrador disse para não as deixarmos sair sem a tro• Julinha protestava ainda: carem primeiro». «Adê, o que é isto?! Assim não, assim não!» Bia Sena escarranchou as mãos na cintura e fez um gesto O burburinho abrandou somente quando o quintal se encheu e voluntarioso. nem mais uma criatura de Deus podia lá entrar sem ficar lapadinha «Agora o Administrador é abusado deveras. Ele gosta da fita, an?» a outra. Julinha olhava-a, de ar parado, com um vestido pendurado no braço. Bia Sena foi encaminhando as mulheres para uma casota onde «Isso, afinal, é fazer pouco. Já reparaste, Julinha, já reparaste as despia. Era uma operação lenta, dolorosa para a vista, penosa na figura desta gente dentro destas roupas para que não foi para quem a fazia. Ao cabo, saíam transformadas nos fatos novos, talhada? Olá, olá», e esticava os braços em direcção da porta, envergando vestidos de seda, farfalhudos, em chifon ondulante com «parece um desfile de carnaval.» alastrados estampados azuis, vermelhos. Algumas reapareciam com Julinha abaixou-se para apanhar uma fita e levantou os olhos chapéus de praia, descaídos, capelines de crina, realçadas de flores para a Bia Sena. e tule, feltros enterrados sobre as orelhas encardidas. «Sabes, ele disse é para evitar que elas vendam a roupa», obtemperou-lhe. Nha Joninha fez uma aparição imponente. Acaçapada num belo casaco castanho que quase lhe cobria os tornozelos, com duas Já não ouviu a resposta da Bia Sena porque os seus olhos descobriram a figura do administrador, projectada, longa e desigual, raposas a acariciarem-lhe o pescoço e as orelhas, trazia a balançar nos degraus de cimento, pelo sol tórrido da manhã alta. numa das mãos uma carteira de palhinha entrançada. Um rumor Observava, curioso, a cena que se desenrolava no quintal. admirativo acolheu-a. Mam Zabêl sentiu um frémito ao vê-la. Quase Tomada de emoção inesperada, Julinha sentiu o bater acelerado do correu. Furou onde podia, esquecendo-se do bordão, onde se coração. A presença daquele mondrongo alto, forte, toldava-lhe a amparava. Tropeçou, entretanto, e caiu de bruços, mesmo junto à razão. Ele viu-a e seus olhares cruzaram-se. Desviando a cara, casota. Um grito elevou-se da pequena multidão e duas mulheres amornada, abaixou-se a juntar peças de roupa, dobrando-as maqui• ajudaram-na a sentar-se. nalmente. Pressentia a vista dele sobre si, a fitá-la e as mãos tre- Um fiozinho de sangue na boca, conseguiu desenvencilhar-se mlam-lhe sem explicação. Agarrou uma tampa de papelão caído a delas e, a rastejar, aproximou-se. De joelhos, agarrou a saia de Bia Sena: um canto e começou a abanar-se. «Arranja-me um casaco de Merca, um casaco como esse de «Credo, Bia! Oh que calor.» Joninha.» Abanava-se com frenesi. Perturbada. Via-se a ser olhada por Bia acalmou-a: aquele homem tão atraente, tão bonito. Ele gosta de mim. Sei isso «Tem esmola pâ toda a gente.» dias-há. Vejo no seu grão-de-olho. Ele gosta de mim. Eu sei. Desde

56 57 aquele baile no liceu quando me apertou as mãos tanto, com uma Quando voltou deu com a Mam Zabêl a dormitar no mesmo força! lugar, de boca aberta. Aproximou-se, curvou-se e bateu-lhe no Saiu para fora da casinha, a abanar-se sempre. Deu alguns ombro. Mam Zabêl não deu sinal de si. passos pelo quintal e parou junto à escada. Bia Sena olhou para a Titina. Titina retirava de um caixote embrulhos de banha e saquítos de «É melhor não a acordar», disse. farinha, depois ia-os dando às mulheres conforme se aproximavam. Nesse instante um baque cavo fez-lhe dar um salto. Assustada Estava carrancuda. Descobrira nha Luzia no meio daquela balbúr• reparou em Mam Zabêl. Enrodilhada sobre si mesma, tinha batido dia. O quê, nha Luzia também vem buscar esmola?, interrogava-se com a cabeça contra o cimento. Parecia um novelo escuro e sujo estupefacta. Nha Luzia tem negócio, tem botequim nas traseiras do atirado para ali. Bia Sena deu um gritinho e agarrou-se à Titina. meu quarto, vende alvacora frita e grogue e sucrinha e mancarra. «Uá, deu uma coisa à Mam Zabêl.» Aturdida, estendeu os embrulhos para nha Luzia, majestosa na Titina desprendeu-se e aproximou-se. De pé, perscrutou por saia rodada de cocktail, a sua parte de esmola de Merca. Recebeu-os instantes, Rodou para a Bia, assustada. de olhos baixos e sem-vergonha na cara. «Traz água, depressa.» Julinha ergueu a vista para o cimo das escadas. Ele já lá não Estendeu as mãos e deu com os olhos em Julinha. Vinha a descer as escadas. De semblante deslavado, desceu os últimos estava. degraus e aproximou-se delas com ar comprometido. Por momen• Nha Luzia escapuliu-se, comprometida e descarada, através das tos Bia Sena e Titina esqueceram Mam Zabêl. Olhavam pasmadas pedintes de braços descarnados. Julinha olhou de novo para a para Julinha. Esta parou junto do corpo caído da velhota e enfiou Titina que ia entregando os embrulhos e, de mansinho, esgueirou-se os dedos pelos cabelos à laia de pente. para detrás de um caixote por abrir. De princípio, trémula e, deci• dida por fim, subiu as escadas sem se voltar, só parando ao cimo, . «Fui fazer um chichi apertado», disse para elas à guisa de explicação. na varanda, junto à porta envidraçada da casa do administrador. O quintal parecia um forno. O desfile das cores berrantes dos «Em casa do administrador, Julinha?», perguntou-lhe Titina, vestidos continuava. Recebiam os embrulhos, envolviam-nos na incrédula. «Oh, que vergonha!», concluiu passados segundos. Virou roupa velha e tomavam o rumo da saída. As exclamações de entu• a cara para o lado e comprimiu as faces com as mãos nervosas. siasmo para os primeiros contemplados tinham esmorecido. Bia Sena dava palmadinhas na cara de Mam Zabêl. Aproximava-se o meio-dia, momento de o estômago começar a «Temos de chamar gente.» E descaiu os braços ao longo do dar horas. Mam Zabêl, acocorada perto da casinha, parara de cho• corpo, «Isso deve ser da fraqueza.» rar e pegara no sono. O queixo descaído, a boca aberta, da gar• Olhava no vazio sem tomar qualquer iniciativa. ganta subia-lhe e descia um gorgolejo seguido. Bia Sena saiu para Um cheiro empestado desfazia-se no ambiente. Dobrada sobre o quintal e avisou: uma pilha de caixotes por abrir, a cabeça inclinada, os punhos «Vocês agora vão e voltam logo. Logo continuamos com a fechados, Titina gemeu alto: esmola.» «Não posso mais. Vou vomitar.» As mulheres deixaram-se estar. Dois hornens, talvez envergo• Julinha tinha-se encaminhado para a saída a dizer que ia cha• nhados pelo seu número reduzido entre aquele mulherio, rumaram mar alguém para as ajudar. a caminho da porta. Vergada pela cintura, Titina meditava no que acabava de acon• Virando-se para as mulheres, Bia Sena insistiu: tecer. Sim senhora, Julinha saira-lhe uma refinada desavergonhada. Desavergonhada, pois. Estivera metida com aquele nhambabo lá em «Vão, vão.» cima. Aos beijos, com certeza. Pois claro. Ela não trazia nem som• Vencendo a birra que ainda as mantinha no mesmo sítio, con• bra de pó-de-arroz nem de bãton. seguiu demovê-las, impelindo umas com firmeza, outras conven- Passou a mão pela fronte, continuando de cabeça baixa. Bia cendo-as com a conversa. Sena, de braços cruzados, olhava, ora para ela ora para Mam Zabêl,

58 59 toda enovelada sobre o cimento. Longe de tudo, Titina levantou os olhos para a amiga e desfechou-lhe: «Ouve, Bia, o administrador não é casado, não tem a mulher em Lisboa?» «Deve ser. Ele usa aliança. Porquê?» Titina não lhe respondeu e começou a ajeitar o vestido. Bia Sena espreitou de lado para a velha. Tinha recuperado os sentidos e tentava levantar-se. A rapariga procurou ajudá-la, enca- minhando-a para a casinha. As pernas ainda caranguejadas, a velhota parou e encostou-se à porta. «É melhor você levar já a sua esmola, an Mam Zabêl?» e Bia espraiou os olhos pelo exíguo espaço, a ver se descobria algo para PÔR-DE-SOL esconder os farrapos da velha. Enquanto a vestia, riu-se para ela: «Você teve um chilique, não se aguentou nas canelas. Que casta de mulher você é?» A outra permaneceu muda, atenta às roupas. Bia Sena, gene• rosamente, ia-a vestindo. Um vestido azul com muitos botõezinhos, duas blusas, uma sobre a outra; uma boina basca, luvas de moto• rista e umas polainas de senhora, em camurça, abotoadas desde o tornozelo até meio da perna. No quintal viam-se roupas espalhadas, cintos, soutiens, fatos de banho, vestuário posto de lado porque ninguém o quisera. Com a biqueira do samatá Titina amontoou algumas peças, distraidamente. Deu-lhe vontade de rir ao ver sair da casota uma outra Mam Zabêl, inchada de roupas. Lembrou-lhe um fantoche de cores, um desgraçado palhaço de um circo sem nome. Resoluta, atravessou o quintal e abriu a porta. O vento morno afagou-a. Parada, espiou a rua deserta descendo direita até ao mar lá ao fundo, cortada, no entanto, pelo muro da companhia de carvão. O sol a pino queimava. O mesmo cheiro pestilento de há bocado incomodou-a. Transpôs o batente, puxando a porta de seguida. Hoje não serei capaz de almoçar, pensou, enojada de tudo quanto lhe ficara para trás naquele quintal fedorento. Caminhou pela rua fora, apressada, desejosa de alcançar o sobrado e estender-se na cama de ferro, comprada pela madrinha quando tivera a febre tifóide.

60 Os jornais amontoavam-se sobre um banco baixo, desses onde se sentam os meninos nas escolas particulares de mestras curiosas. Damata lê com pachorra sem pressas. Enfronhado na leitura não se apercebe da cantoria das criadas na cozinha nem da barulheira dos meninos a brincarem à reianata. A cadeira de lona faz um ruído de amarras a rangerem todas as vezes que se soergue para agarrar outro jornal. O ruído incomoda-o quase até à ponta dos nervos. Estava farto de dizer à Bia para mandar arranjar a cadeira e ela, invariavelmente, respondia: Home, essa cadeira está boa, Damata. Teimosa! Viviam há muitos anos, tinham uns poucos de meninos — mas, assim mesmo, a teimosia dela vinha sendo um entrave ao seu casamento. No entanto, as casas do Mindelo recebiam-na com consideração porque Nhô Damata era homem direito e tinha dado nome aos filhos. Do bolso do colete tirou a tabaqueira com rebordo de prata e com um bater seco na palma da mão fez chegar o tabaco à boca da tabaqueira de onde retirou a pitada, entre o polegar e o indicador. Bom cancam esse. Aspirou o tabaco e sentiu as narinas aque• cidas pelo odor forte da folha torrada e moída. Estirado na cadeira, preparou-se para passar um bocado bom da tarde. Sorveu nova pitada e segurou o canto superior da página. Jor• nais vindos da metrópole com notícias frescas lidas com interesse de quem vive tão distante dos acontecimentos. Um golpe de vento fez vibrar as folhas, deixando-as outra vez com estavam. Agarrou uma folha caída no chão e novo fio de ar fê-lo levantar a cabeça e alongar a vista até à porta. ' Nesse momento a mulher assomou a cabeça, espreitou e aca• bou por entrar. «Estás aí? Ah, ainda bem. Sabes uma coisa? la a sair da igreja quando vi gente a correr para os lados da rua da Estação», disse e encostou-se à mesa da máquina de costura. Eu admirei-me porque...

63 «Foste à igreja, Bia?», cortou o marido olhando-a por cima dos Dois moços de camisa aberta nos colarinhos passaram por ele óculos, com o jornal poisado nos joelhos. e gracejaram: «Bih, Damata, eu tinha-te dito que ia à ladainha», respondeu a «Qualquer dia temos canja, Nhô Damata.» mulher com estranheza. Foi andando pela rua fora. À esquina parou, olhou um pouco além das casas baixas pintadas de amarelo, detendo a vista no «Senta-te, Bia. Vens cansada. O que é que tem a manivela da segundo andar cor de chocolate a contornar a outra esquina, e máquina?» Olhava agora para a máquina de mão cuja manivela se rodopiou o chicote num jeito muito seu. destravara. O carro de Nhô Lelona, azul e barulhento, surdiu aos pulos na «Guida engomadeira ia a passar e eu perguntei-lhe se havia calçada, vindo dos lados do pé-de-rocha. A roncar, só parou mais novidade. Não tem nada, está destravada.» Prendeu a nn.anivela com adiante com alarde de matraca. Nhô Lelona voltou-se no assento e um estalido. «Ela riu-se e disse-me se eu não sabia que o Candinho fez-lhe um sinal. e o senhor Muntel tinham acabado de desembarcar.» «Espera, homem. —De mão no ar o Damata apressou o passo — Inclinou-se para o banco e agarrou num jornal para se abanar. Tenho um calo na dedona do pé. Não me deixa dar dois passos «O quê, já foram soltos?» O marido quase deu um salto na seguidos.» cadeira. Esta rangeu dolentemente. À porta do carro debruçou-se: «Caramba, é preciso chamar Nhô Cirilo para consertar este raio. «Vais ver o Candinho? Soube a novidade agorinha-assim pela Esta chiadeira dá-me cabo dos nervos, Bia.» Bia. Foi à ladainha e apareceu-me em casa com a nova.» «Quando cheguei perto da Estação ouvi uns foguetes, uns atrás «Claro, rapaz. Falado desembarcaram por volta das quatro dos outros. Pareceu-me deveras ser para os lados do Candinho.» horas. Já deve ter a casa cheia de gente. Entra, ainda vamos a Damata esqueceu o chiar da cadeira para interpelar a mulher. tempo.» «Quem disse que eles desembarcaram?» Fixou-a e insistiu: «Mas O carro arrancou com um safanão e alguns estalos, deixando tens a certeza de terem sido soltos, Bia? Ah, tenho de ir dar um atrás de si uma fumarada recendendo a gasolina. Damata segurou abraço ao. Candinho.» o chapéu. Nhô Lelona mantinha o carro sempre sem capota toda a Pôs-se de pé e agarrou o casaco dependurado num dos lados roda. do ano. O vento fustiga-lhe o cabelo ralo e ele fala alto e con• da cadeira de lona. versa por entre a barulheira do motor. «Eu não ia inventar uma coisa dessas. Adá, vais sair sem comer, «Eu nem sei por que carga de água o Chinhabonga resolveu Damata?», acrescentou passado um momento ao vê-lo a pôr o pô-los cá fora. Envia um telegrama para os prenderem, embarcam- -nos sem mais nem menos e, de repente, manda-os embora sem chapéu. processo nem nada. Macacos me mordam se percebo alguma coisa O marido acabou de abotoar o casaco e agarrou o chicote de disto. Eles tinham escondido os sacos de milho, toda a gente o cavalo-marinho guardado em cima dos cabides do bengaleiro. sabia!» «Damata, é melhor tomares o teu caldo de cachupa antes de «Tens a certeza que eles fizeram isso?», objectou-lhe o Damata. saires. Já sabes como são estas coisas. Começam com vivas e dis• «Sei lá, homem. Olha, no dia em que o sargento Silva os foi cursos e mais esta conversa e mais aquela. Não, vou chamar a Ade• buscar, por acaso estava eu à porta a gozar o fresco da pela-manhã laide para trazer o caldo de cachupa.» Caminhou para a porta e quando eles passaram a caminho do cais. Senhor Muntel até me chamou. acenou quando atravessou a rua, mas Candinho —e aqui Nhô «O que é que tu queres, Bia? Eu volto já. É só dar um abraço Lelona levantou o dedo no ar —devia ter culpa no cartório. Trazia ao Candinho.» os olhos fincados nos pés e as costas tão lombudas, rapaz. Fazes A compáhheira continuou a chamar e o Damata esgueirou-se lá ideia do que ele me pareceu». para o fundo do corredor, passou para o quintal, atravessou-o e «Bem, senhor Muntel é judeu e basta. Não têm vergonha na saiu para a rua. Bateu o portão e segurou-o ao mesmo tempo. cara. Têm-na forrada de lata. Mas que raio de calçadas estas. Estes A lingueta caiu certa sobre o ferro recurvo onde ficou presa. Os solavancos dão cabo dos rins dum cristão, Lelona.» pombos do muro acima da sua cabeça voaram ficando a saltitar na rua deserta àquela hora da tarde. 64 65 «Ainda no outro dia faiei neste assunto ao presidente da Candinho poderia ser pai deles. Resolvidos, porém, subiram, encur• Câmara. Em vez de estar a gastar dintieiro em rede para os tuba• tando os passos atrás de Nhô Damata e de Nhô Lelona. rões na Matiota, era mais acertado mandar arranjar estas calçadas. No cimo da escada a desdobrar-se numa ampla varanda de Eu disse-lhe assim mesmo.» traseiras, Candinho ia recebendo os amigos que o abraçavam, O carro atravessou rumoroso e aos abanões a rua de Lisboa. dando-lhes grandes palmadas nas costas. Espalhavam-se ao acaso; «Nós temos boa pedra para calcetar, Lelona», gritava o amigo encostados ao balaustre uns, outros nas cadeiras de verga em por entre a restolhada do motor. abonançado recostar. Por vezes ia de um sítio para outro, a cumprir «Boa também para partir a cabeça do presidente e da sua seita. os deveres de dono da casa. Qs dentes postiços subiam-lhe e des• Do Julinho, do João Silva e do resto da cambada.» ciam-lhe com a animação da conversa. As perguntas iam surgindo, «É verdade, Julinho vai como administrador da Boa Vista. Já esparsas, e ele procurava as respostas com gozo. sabias? Caramba, Lelona, o teu carro tem bicho-carpinteiro no «O quê? Eu trabalhar de picareta? Nunca!» corpo.» O peito inchava-se-lhe com a ênfase da réplica. «Já sabia. Quem tem uma boa pedreira é a Nha Hortênsia. Tra• «O que me engoneou —continuou pouco depois —foi aquela balho feito com aquelas pedras fica obra de se ver. Com um rastilho farda de caqui com número nas costas, como se fôssemos cadas• de dinamite, aquilo é uma mina. Eram aí umas calçadas. Um mimol» trados, vejam lá vocês.» «Falado eia vendeu a pedreira ao senhor Muntel.» Derramava-se em pormenores, acrescentando umas coisinhas, ' pondo de lado outras também. «É capaz. Esses judeus têm faro. Bem, agora deve voltar com mais juízo. O doutor Moreira contou-me. Chinhabonga espremeu-os, «Mas fiz-lhes uma boa partida». Os dentes sobem e descem. «No dia seguinte vestia-a do avesso.» rapaz, foi um consolo. Por fim, transferiu-os para o galinheiro onde passaram oito dias. Aqui entre nós —Nhô Lelona deixou descair um O grupo achou graça. O senhor Sequeira, homem de negócios sorriso sabido com muitos risquinhos junto aos olhos transformados como o Candinho, bate as pernas com um tique nervoso. Dias antes em dois traços —foi só para lhes servir de lição. Chinhabonga está-se ficara abalado quando lhe chegou à loja a notícia da prisão do amigo. Soube-a, o rebocador passara já o canal e mareava a cami• nas tintas para tudo isto.» nho de Sotavento. Ainda pensara ir ao cais. Desistira, entretanto, Q velho Ford despojava-se de grossa fita de fumo, rente ao voltando afogueado à loja onde, num rodopio com os dois empre• chão, que se ia espalhando ao longo da subida do Pelourinho com gados, arrumara os sacos de milho, de feijão-pedra e favona bem à o cheiro característico da gasolina queimada. vista. Pô-los junto à saca de açúcar, abrira-lhes bem as bocas enro- «Ó Lelona, se eles esconderam o milho foi muito mal feito, lando-as para fora e enfiara num deles uma medida de litro em concordo,» Damata levanta o sobrolho e a testa vira-se-lhe pauta madeira. Posto isto, abalara, temeroso e vendido, a colher mais de música, «No entanto, essa de se enxovalharem pessoas respei• pormenores. À esquina do Marçal encontrou um grupo junto ao táveis como o Candinho e o senhor Muntel, parece-me uma falta candeeiro. Aliás, pouco mais adiantaram. Pareceu-lhes estarem de consideração. Que diabo, desta maneira aonde iremos nós todos entupidos e com medo de falarem no caso. Deixou-os e, de parar?» mãos nos bolsos, pela rua adiante a remoer, encontrou-se na Q carro parou com uma sacudidela brusca e Lelona soltou uma esplanada, rente ao pedestal onde poisa a águia de Gago Coutinho. praga. Debruçou-se na amurada. Duas mulheres e um garoto rocegavam o «Estás muito malcriado, rapaz. Andas a aprender com a rapa• carvão. O mar quebrava-se na pequena praia em ondas baixas e ziada nova?» brincalhonas. Elas enfiavam os balaios deitados, de boca virada Descontraídos, atravessaram a rua e foram-se aproximando do para a terra, e aguardavam. As ondas passavam sobre eles e que- prédio amarelo onde morava o Candinho. bravam-se mais à frente, retrocedendo feitas num lençol de água. Nos balaios ficava meia dúzia de pedras de carvão, O garoto agar• À porta deste ia um movimento desusado. A notícia da sua rava um dos balaios e ia a correr despejá-lo no saco encostado a chegada, feita sem alardes, percorrera lesta a cidade. Alguns rapa• um canto da praia, perto da amurada, onde estava o carvão a zes do liceu rondavam por ali, um pouco tímidos. Pois claro, Nhô

66 67 escorrer. Uma das mulheres agarrava no outro balaio e seguia atrás «Olha, Damata, parece-te que eu seria capaz de esconder a do garoto. Tornavam a colocá-los deitados na praia, a aguardarem comida para deixar de encher a barriga do nosso povo? Parece-te? as ondas e, com elas, carvão caído do cais da companhia. Tu sabes bem, Damata, e não o podes negar. Eu pago melhor do O senhor Sequeira descansara a vista nos pés franzidos das que os outros quando há descargas e eu, e eu, sim, eu —a voz tor• duas mulheres de estarem enfiados na água. Podia vir a estar nou-se-lhe firme —todos os sábados dou esmola à minha porta a metido numa alhada de mil demónios. «Se se lembrarem de men• mais de trinta pobres». cionar o meu nome, vai ser uma boa encrenca.» Atirara o cigarro Olhou-os a todos, procurou outra vez o lenço e passou-o pela com enfado. O miúdo dera uma corrida, agarrara na beata, acabou fronte húmida. de a apagar e guardara-a no bolso dos calções. O sol sumia-se com Uma criada a segurar uma bandeja com taças aytavessou a um halo rubro entre o Monte da Cara e a ponta de Santo Antão, no varanda e desapareceu pela porta da casa de jantar. mar calmo do horizonte. Senhor Sequeira continuara debruçado na «Bem, vamos beber qualquer coisa», convidou Candinho. amurada da esplanada aspirando o olor da maresia. Os deveres de dono da casa amorteceram nele, por instantes, o E agora, encostado ao pilar da varanda do Candinho, conversa calor da discussão. com Nhô Adalberto da Alfândega, repousado e liberto de escrúpu• Encaminhou os amigos para a grande casa de jantar. No bufete los. Vozes desencontradas afluíam das casas interiores. havia aperitivos e acepipes salgados. Nha Rosa tinha acabado de «Vamos ver se descobrimos uma bebida forte lá dentro.» pôr no meio da mesa uma terrina —devia ser canja —com um chei• Tomou Nhô Adalberto pelo braço e entraram na sala de jantar. rinho a convidar para a destaparem. O grupo onde se encontrava o Candinho continuava animado, Candinho volveu à varanda a dar uma espiadela. Encostado ao a trocar impressões à roda do grande acontecimento. Damata varal, de mão em pilão a segurar o queixo, pensativo, foi assim que cofiava o bigode. Aprumado, o queixo encolhido, a outra mão atrás ele deparou com o Damata. das costas a segurar o chicotinho de cavalo-marinho trazido do Sul Aproximou-se, passou-lhe o braço e desabafou antes de se nas suas andanças de funcionário público, companheiro de todas arrepender: as horas, acrescente-se, em dado momento interpelou o amigo «Ó rapaz, se eu não fosse teu amigo e tu meu amigo, ainda numa espécie de censura: agora, por causa dessa coisa que tu disseste quase me deu vontade «Porque vocês esconderam os sacos de mantimentos sabendo de te ter dado duas taponas». a falta que havia cá fora?» Damata soltou o braço. Colhido de chofre, Candinho quase gritou: «Hom'essa, Candinho!» «Isso é mentira. Nem Chinhabonga acreditou numa coisa dessas. «Sim, senhor, duas taponas bem puxadas. O que é que tu julgas Intrigas, tudo intrigas desse biltre do Julinho». de mim?» Relanceou a vista pelos pés a fazerem roda à sua volta, tirou o Os seus olhos claros espiam Damata com meia raiva. Este, irri• lenço e limpou o suor da fronte. tado, pelo insólito da circunstância, ripostou-lhe: «Você comece por aí a barafustar e qualquer dia você está de «Vai passear, Candinho. Eu sou um homem sério. Se perguntei novo no xadrez», grunhiu o Fanha. por que escondeste os mantimentos foi por querer saber a razão Candinho não fez caso da intromissão porque continuou. por que o fizeste. Ora essa!» «Vocês não adivinham porque ele fez isso, pois não?» Este saiu fora de si. Nada via na sua frente a não ser uma névoa Esperou antes de prosseguir. Lelona veio lá de dentro e, ainda não atinava de onde. a alDotoar os fundilhos, juntou-se ao grupo. «Já disse. Eu não escondi nada. Já disse.» Candinho sentia a raiva a subir-lhe à garganta. Exasperado sim senhor, ergueu os punhos fechados. O lábio «Quer guindar-se à custa dos outros. Foi uma maneira de lam• inferior tremeu-lhe por instantes e a baba humedeceu-lhe em toda ber as solas de Chinhabonga.» a superfície. Um dos punhos sempre fechado, torceu-o para limpar Excitado, deu dois passos pela varanda e, virando-se brusca• a boca. Um resto de baba escorreu-lhe, incerta, para o queixo mal recortado. mente para o Damata, pôs-lhe a mão sobre o ombro:

68 69 «Se eu apanho aquele biltre do Julinho —barafusta ainda—, Senhor Muntel limpava os óculos e os olhos piscos seguiam juro que o afogo. Biltrel Velhaco! Isso tudo foi para conseguir o com atenção os círculos que a mão ia descrevendo nas lentes, lugar de administrador, eu sei. Mas afogo-o.« seguras com o lenço, entre o polegar e o indicador. «Então Candinho?» Acenderam-se as luzes na rua e, através das vidraças, filtrava-se Os amigos tinham tornado à varanda e tentavam apaziguá-lo. o reflexo das lâmpadas que iluminavam mal a cidade. Candinho deu Já sabiam. Ele fervia em pouca água, mas a ira deixava-o tão volta ao comutador e a claridade engoliu as sombras espalhadas depressa como surgia. pelos cantos. Fanha suspende uma garrafa. Desrolhou-a com habi• «Então nada. Damata quer armar-se, não é mais nada». —Virou-se lidade de conhecedor. O champanhe espumou nas taças, várias para ele: «Sempre foste um bocado engoniado, ouviste?» rolhas saltaram é a festa animou-se. «Num dia destes! Francamente.» Os estudantes, deslocados ao pé daquela gente mais velha, «Moços, vocês não estão direitos da cabeça?» pensam em retirar-se. Afinal o senhor Muntel não lhes chegara a contar nada. Era um enrascado. Chaleira de rabo! «Ei Candinho, parece foste buscar ideias subversivas ao gali• nheiro. Vamos mas é mandar-te para lá outra vez», chalaceou o O velho judeu dizia-lhes nesse momento: senhor Sequeira. «Foi uma brrincadeirra parra mim. Minha mulher quando che- O riso deslaçou-os por momentos. garr da Alemanha vai rirr desta aventura». «Deus nos livre! Voltava de lá industriado e então, e então! Fanha acercou-se deles. Bonito! O nosso Candinho virado cabecilha de revolução. Bonito!» «Sua mulher vai rir como cachorro, n'é, senhor Muntel?» — piscou o olho e riu com os outros. O judeu mal percebe o crioulo de Fanha. Fanha já se tinha vol• «Deixa. Acabava a miséria e a pouca-vergonha de os negocian• tado para os rapazes. tes esconderem o milho todas as vezes que a chuva escasseia» — «Ei, moços, vocês não bebem? Tragam copos para esses moços soprou a voz grossa de Fanha meio fusco com dois groguinhos do liceu, para os nossos futuros doutores e poetas.» porventura já bebidos no botequim da Nininha. O champanhe das garrafas desrolhadas com aparato espirrava Fanha fez o aparte para os mais chegados. No entanto, a sua sobre o encerado. voz pausada varreu o grupo e chegou ao fundo da varanda. Candinho enchia os copos aos amigos. Nhô Adalberto, encos• tado ao guarda-prata, saboreava um cálice de grogue. Voltado para Os amigos levaram o Candinho para a sala onde os estudantes ele, o senhor Sequeira lembrou-se: rodeavam o senhor Muntel. Também se associara à festa. Um «Já sabes? O Julinho foi nomeado administrador do concelho homem sem familia, sozinho, nalgum lado terá de festejar a sua da Boa Vista», liberdade, não é verdade? Fez muito bem em aparecer em casa de «Cala-te com esta conversa. Ainda estragas a festa ao Candi• nhô Candinho, sim senhor. Sabe-se lá quando viria a família da nho», retrucou-lhe Nhô Adalberto mostrando os dentes acavalados Alemanha. O senhor Muntel fez muito bem cá vir, claro. Oh, senhor uns sobre os outros. Bebeu de um trago o resto da bebida para Muntel, qual é melhor, o campo de concentração ou o galinheiro? logo continuar. Malandros os rapazes! «Este grogue deve ser das propriedades do Candinho. O pai «Uma porrcarria, rapazes, uma porrcarria.» possuía boas terras de regadio em Santo Antão. Repara, tchê, Limita-se a responder. As palavras saem-lhe morosas, contudo repara na fusca do Fanha.» os estudantes espicaçam-no. Querem saber. Como tinham sido tra• Fanha é pé-descalço, contrabandista, carteirista e um bêbedo tados, se o Chinhabonga lhes dera alguma explicação, enfim, um de primeira. Mas tem acesso às festas de confraternização. São fes• ror de perguntas. tas sem convite e Fanha nunca falta. Quando o Silva voltou de Lis• A sala encheu-se com as vozes dos homens. Fanha acercou-se boa por ter concluído a formatura lá estava ele também. Desafo• das garrafas envolvidas em gelo e serradura, dentro de um caixote rado, deportado várias vezes para o Sal, ninguém lhe estranha a a um canto da sala. presença.

70 71 «É um estado já crónico nele. Começa logo pela manhã ao sair Risonho ainda, disposto a repetir a façanha, Fanha apontou o de casa. Ele mora no Lombo-de-Trás. É uma fita pegada. Pelo gargalo da garrafa em direcção da cabeça dele. caminho vai entrando em todos os botequins por onde passa, até «Você também é capaz de ter milho escondido», concluiu já chegar na Morada». mais sério e compondo um ar brigão. Pigarreou grosso. Alguém puxou pela manga do comerciante. Deixou-se levar, «O Candinho agora tem de tomar cuidado com o contrabando limpando sempre a cabeça e a testa. de grogue. Tem de dar tudo ao manifesto porque senão. Oh rapaz, «Esse Fanha quando bebe é insuportável.» e a fita que ele fez na varanda?» «As suas fuscas dão sempre nisto. É verdade, quando bebe «Quem, o Candinho?» mais um bocadinho ninguém o atura.» «Quem havia de ser». «Dias-há não o vejo fusco.» Olharam um para o outro e começaram a rir com vontade. «As vezes é pegajoso e chato. Quando apanha uma pessoa não «Partes gagas», rematou o senhor Sequeira. é capaz de a largar.» Uma pausa preguiçosa caiu entre eles e nhô Adalberto aprovei- As vozes misturavam-se, subiam no ar, e amortecidas acabaram tou-a para alcançar uma garrafa junto ao espelho do aparador. por ficar para trás do Candinho, do Nhô Adalberto e do senhor Encheu o cálice com atenção. O líquido branco desapareceu de Sequeira. uma golada e ele encheu-o de novo. «Não tem importância —senhor Sequeira ia sacudindo os pin• «Lelona disse-me agorinha-assim que a nha Hortênsia vendeu gos de bebida que lhe tinham borrifado o fato de linho branco — , a a pedreira ao senhor Muntel. Devia estar bem atrapalhada para fazer gente já sabe, ele é casca grossa.» uma tolice assim.» Parou junto do bengaleiro e compôs o chapéu na cabeça. «Os judeus são espertos como o diabo.» «Candinho, ei Candinho —Nhô Adalberto segurou-o pelo Senhor Sequeira remói invejoso da oportunidade perdida de um braço—, parece-me Damata foi-se embora.» bom negócio. «É verdade, as pedreiras nem precisam de chuva para Senhor Sequeira ia já no fundo do corredor mas ainda ouviu o medrarem». Calou-se e a pausa foi cortada pelos gritos guturais de Candinho responder: Fanha, requentado pelas bebidas e pelo calor da noite-fechada. «E nós «Damata? Mas porquê?» aqui com pena da viúva, para não lhe tirar o sustento, para não lhe Duas rugas fundas cavam-lhe e base do nariz até ao queixo. estragar a vida è aparece um grão-de-bico dum judeu». O rosto do Candinho, porém, é jovem e bem conservado para a sua idade de homem maduro. «Ouve uma coisa —atalhou Nhô Adalberto — , o Damata foi-se Passou a mão pela testa, elevou-a fronte acima pelo cabelo embora?» adiante, até à nuca suarenta. «É deveras, o Damata não está por aqui.» «Mas porquê?», repetiu. «Alguém lhe fez algum mal?» Relanceou o olhar pela sala. Fanha, em cima de uma cadeira, Na sala falava-se da saída do Damata, ofendido com o Candinho. fusco como uma tentação, dava pequenos gritos, de braços esten• Bastante toldado pela bebida, Fanha badalou com despropósito: didos, segurando uma garrafa com uma mão e a taça na outra. Mal «Vamos procurar nhô Damata.» se aguentava na cadeira e a botelha inclinada vertia o líquido onde Ninguém lhe respondeu. O entusiasmo quebrara-se. Senhor calhava. Muntel, em passinho indeciso, num andar de Charlot, virava-se para Senhor Sequeira resolveu ir buscar o chapéu para se ir embora. um lado e para outro a dizer adeus com as mãos gorduchas. Atrás, Deslizava no meio da confusão de vozes. Alegre, Fanha despejou- mestre Fanha imitava-o, exagerando os pés para os lados e batendo -Ihe um resto de bebida na calva quando ele passou ao pé. os braços como asas: «Deixa-te de estupidez.» «Quá, quá, quá!» O velho comerciante parou e levou a mão espalmada à cabeça. A hilaridade tomou conta de todos. Parecia um palhaço. Sen- Fanha ria, ria, empoleirado na cadeira. tindo-se espiado porém, rematou a façanhice com um gesto feio, «Estupidez o quê?» feiíssimo, para as costas do judeu.

72 73 «É um desaforado. O que lhe vale é que ninguém o toma a sério.» Encostado à porta, Lelona assoava-se e ria com gosto. Picado de ideia súbita entretanto, Fanha deu meia volta e tor• nou para a casa de jantar. Os amigos foram-se despedindo. A moleza da noite contami- nava-os e deixavam-se ir porque também se fazia tarde. Nhô Adal• berto procurava a bengala. No limiar da casa de jantar esbarrou com o Fanha, Não se conteve e agarrou-o pelo braço, seu velho hábito. «Hé, moço quando acabas de ser estouvado? las-me atirando SALAMANSA ao chão.» Os dentes brancos, muito certinhos, o braço sobre os ombros do velhote, Fanha cuspiu num soluço: «Vou-me escoar por aí.» E olhava para a escada. Levantou a barbela e esticando os lábios, o dedo a apontar para o Candinho: «Está no mato sem cachorro.» Candinho estava no mato sem cachorro, sim senhor. O casaco atirado ao acaso, arregaçou os punhos, pensativo. Depois, escolheu uma cadeira onde se deixou cair, desencantado. A festa não tirara de cima de si o enxovalho de toda aquela história de ter sido preso. Homem de posição na terra, respeitado, qual o interesse de Chi• nhabonga em ter-lhe feito aquela partida? Porquê, gente? Sempre foi uso os comerciantes esconderem o milho nos anos de carestia. Vagueou a vista pelas taças espalhadas nas mesinhas e afagou o queixo. O cão no quintal sacudiu a corrente e ladrou. O vento levantou-se desabrido para a noite. Arrepiado, vestiu o casaco e foi debruçar-se nas grades da varanda. O latido do cão fez-se ouvir mais uma vez na noite fresca.

74 Baltasar entretem-sepela casa, passeando de uma sala para outra, parando tempo sem conta à porta da sala aberta para o jar• dim, esfregando as mãos ou mantendo-as atrás das costas, pen• sando, devaneando. O jasmineiro florido traz até ele um aroma cheio de reminis• cências. E o pato que ele e os colegas roubaram à dona Chica num carnaval de há tantos anos e depois tinham ido guardar no quintal da irmã? Nessa noite de luar cru, aberto sobre as casas baixas da cidade, o ar recendia aos jasmins cujas pétalas se tinham soltado durante a tarde. De uma vez safara-se por essa mesma porta para ir ter com a Linda. Sim, Linda, uma da rua do Cavoquinho. Pusera um jasmim na lapela e, fechando o portão de mansinho, ei-lo na rua batida pelo vento que varria a cidade. Linda era menina da rua do Cavoquinho, é certo. Enchera-lhe, porém, as suas noites de rapazinho a despontar para a vida de gente crescida. Quando lá ia, normalmente, estava acompanhada. Eram o Júlio do cinema, o Humberto e mais dois ou três, e também algumas colegas dela, companheiras dessa vida de estar com uns e com outros, marinheiros, rapazes do liceu, desembarcados de terra-longe. Linda já tinha tido um homem casado. Esse pagava-lhe a renda do quarto e trazia amigos para as patuscadas. Comiam arroz de atum com malagueta ou caldo de peixe com farinha de pau ou ainda linguiça frita. Comiam, riam, bebiam grogue. Essas pândegas, muitas vezes, iam terminar em Saiamansa, praia sabe-de-mundo lá na outra ponta da ilha. Jantavam à luz da lua e deitavam-se na areia a contemplar a noite serena. Era uma das coisas a moerem-no cá por dentro: não ter tomado parte nas farras de Saiamansa. Linda também tocava violão e cantava. Oh, se cantava! La, la, la, menina deixa de disparate, la, la, la. Já não se lembra. Eram tan-

77 tas as mornas e sambas cantadas naquele quarto fumarento da «Deixa-te disso.» lamparina de petróleo poisada sempre sobre uma lata vazia de Sentindo-se forte com a súplica, o desejo tomara-o como se já cigarros capstain. A luz frouxa esticava-se numa língua de fumo e fosse homem experimentado. Respirou fundo e possuiu-a como a desviava-se, incerta, de um lado para outro, enfarruscando as gar• uma flor se receia venha a desfolhar-se entre as nossas mãos. Linda rafas vazias, Alinhavam-se arrumadas sobre a mesa, ao longo da bateu as pálpebras por momentos e desceu-as, ensombrando com parede mal rebocada. os cílios caídos a face serena e ardente. Ela acabara por deixar o homem casado. Baltasar continuou a contar os jasmins já abertos. «Sabes —dissera-lhe, um dia, enquanto ele, de costas sobre a Que teria sido feito de Linda? cama de ferro, os braços sob a nuca, contava as vigas do tecto—, De uma vez sovara-a. Encaminhàva-se para lá depois do jantar sabes, deixei-o porque ele gostava de fazer porcarias.» e viu sair do quarto dela uns moços da ponta-de-cais, desses do Em combinação, sentada ao fundo da cama, coçava a cabeça, contrabando no meio da baía. Roçou por eles e, entrando no quar- continuando no mesmo tom. tito térreo, deparou com a Linda sentada no pilão, de cotovelos fin• «Eu gosto de fazer essas coisas como deve ser. Porcarias não cados na mesa. O queixo apoiava-se sobre as costas da mão, em ar são comigo.» de modorra. Acompanhara a frase com um virar significativo de olhos. Uma vela colocada na boca de uma garrafa, melo consumida, Baltasar sentiu-se recompensado. Ele, ao menos, era decente. alumiava a mesa e os copos espalhados. Recompensado e orgulhoso por Linda desabafar com ele. Sentara-se Viu-o entrar, agarrou a garrafa com um resto de bebida, arras- na cama e puxara-a a si. A cabeça dela roçara-lhe o ventre, coce- tou-a ao longo da mesa com lentidão e, mesmo sentada, escondeu-a gando-o. Baltasar jamais esqueceu aquele dia. Essa boca-da-noite, atrás do pilão, junto à parede, rente à perna da mesa. aliás, marcou a sério o início das relações mantidas com Linda anos Baltasar percebera. Os moços tinham trazido grogue e Linda a fio e, para precisar bem, ainda alguns meses depois de ter casado. apanhara uma fusca alentada. Aqueles olhos não o enganavam. A princípio procurava-a por mero prazer; depois por necessi• Avançou para ela, raivoso e ciumento, e deu-lhe uma valente bofe• dade de a possuir, de sentir o seu corpo morno e esguio, de des• tada. Ela não reagiu, mas quando tentou secundar o gesto, levan• cansar com a cabeça aconchegada entre os seus seios rijos. Por tou-se irada e, de mãos na cintura, chamou-lhe muitos nomes, vezes, ele sentia nas orelhas, nas faces, a humidade do suor que acabando por lhe dizer: «Ainda cheiras a chichi!» A cambalear, lhe aflorava à sua pele de crioula e lhe escorria ao longo do vinco empurrou-o para a porta. Não conseguindo pô-lo na rua, estacou dos seios. de repente e voltou-lhe as costas. Subindo a roupa até à cintura, Pouco a pouco, verificara uma coisa curiosa, la-se tornando curvou-se, mostrando a polpa cheia e, batendo repetidas vezes nas senhor do corpo de Linda, Namorava a que viria a ser sua mulher, nádegas com a mão espalmada, desatou em berraria. mas o desejo impelia-o para Linda. Toda a cidade murmurava, mas «Aqui, aqui, aqui é que mandas em mim.» ele que havia de fazer? Descontrolado, só se lembra ainda agora de a ter cobrido de Nessa boca-da-noite Linda roçara-lhe os lábios pelo umbigo e pontapés e fugir, enfim, cansado e vencido. levantara o queixo, mostrando os dentes por entre a boca meio Nem o vento já na rua a fustigar-lhe o rosto conseguira apagar cerrada. Ele só podia enxergar bem, bem, as suas pernas longas e a raiva de que se viu possuído então. lisas. Com o esforço deixara-se cair de costas sobre a cama. Ali Recorda-se destes factos e afigura-se-lhe desejar o corpo de procurou alento para a puxar. Linda como há vinte anos. Nunca mais soubera dela. Lembra-se de, nessa ocasião, uma aranha correr célere para a Deixou a sala, caminhou pelo corredor e alcançou o quintal. Só ponta da teia, segura numa das vigas do tecto. A teia tremera, os parou junto à cisterna. A criada, junto à porta da cozinha, olhou-o olhos baixaram e pararam nas alças da combinação de seda japo• surpresa. Como se não o tivesse visto, enfiou-se para o fundo da nesa comprada de graça na loja do Arã. cozinha e dali continuou a espreitá-lo. Resoluto, entrou atrás dela. Pronto, conseguira pô-la em posição indefesa. Ela tinha-lhe «Antoninha, lembras-te da Linda?» pedido: «Qual Linda, senhor doutor?»

78 79 «Linda, uma que morava na rua do Cavoquinlio.» dia havia duas épocas, o povo começara a debandada para S. Tomé, Antoninlia riu, um riso curcutido. O riso feriu-llie os ouvidos. as pessoas do seu tempo ou tinham emigrado para a América ou «Adá, porque pergunta isso, senlior doutor?» tinham-se deixado ficar naquela modorra do Mindelo, impotentes Um pouco desconcertado, não atinava aonde Antoninlia queria para lutarem contra o vento endiabrado que empurrava as águas cliegar. para outras pontas. O que o prendia ali? Nada, nada. «Quer saber mesmo de Linda da rua do Cavoquinho?» «Tenho de voltar para minha casa em S. Paulo, ali mesmo per• Baltasar ficou calado. Ninguém ignorava quem eram aquelas tinho do Cais do Sodré.» meninas da rua do Cavoquinho. Eram meninas de mau porte. Pelo O lamento escapa-se-lhe inconscientemente. menos, eram-no no seu tempo de rapazinho. Meninas de todas as Antoninha, de cócoras, guarda o balaio debaixo do fogão alto quintas-feiras irem ao hospital para a vistoria. Entre uma e outra feito de pedra e concreto. Espreita para dentro da fornalha uma examinação preenchiam os dias, se dias se pudessem chamar às batata que pusera lá a assar, sob a cinza quente. Sempre de cóco• noitadas de patuscadas com os empregados da Shell, do Telégrafo, ras, torceu o busto e admirou-se: ou ao saracoteio da coladeira a qualquer hora para os estrangeiros. «Adá, senhor doutor, senhor doutor está a falar sozinho?» Estes deixavam alguns xelins mas não davam para nada. O vento entrava por revoadas no quintal, enrodilhava a poeira, «Linda era irmã de meu pai que Deus tem.» afunilando-a como as covas de catumbembê. «Como, vocês são parentes?» Porque se lembrara de Linda? Tantos anos já passaram sobre «Somos. Ela era irmã c_odê^de papai. Ela é minha tia», acres• essa ligação deitada para trás das costas, depois dalgumas cenas centou após um curto silêncio. com a mulher. Acabou com ela de vez ao embarcar para o conti• «E que foi feito dela?» nente. Tantos anos! Formara-se, tinha os filhos criados, tornara-se «Da minha tia Linda? Ela foi pâ S. Tomé.» um bom chefe de família e não querem lá ver? Era capaz de fazer Antoninha remexe na fornalha do fogão com um ferro. alguma tolice se encontrasse a Linda de novo. «Eu também qualquer dia vou pâ S. Tomé.» Linda andava descalça, o calcanhar muito liso, sempre esfre• Ele já não a escutava. gado com pedrinha do mar. Não os tinha rachados como muitas Essa gente de S. Vicente ia toda para S. Tomé. Para quê, se mulheres de pé-descalço, isso não. E funnava com uma elegância, iam para lá levar vida de mulheres parideiras de filhos de contrata• senhores. De perna traçada, recostava-se à mesa escalavrada do dos angolanos, e, ainda por cima, tinham de aturar aqueles filhos quarto onde recebia os amigos, onde comia e onde ia para a cama da mãe dos capatazes lá das roças? com ele e com outros, atirando o fumo com o mesmo à vontade «Porque é que queres ir para S. Tomé?», surpreendeu-se a que mais tarde veio a encontrar nas frequentadoras das salas de perguntar à criada. «Não estás bem aqui na tua terra, Antoninha?» chá aí ao subir do Chiado. Desconcertara-o por vezes, com um «Bem, eu estou, senhor doutor. Mas eu tenho meu filho e eu certo ar masculinizado adoptado nos últimos tempos. Saía para a quero dar-lhe duas letras. Sabe, esta nossa terra está nhanhida.» rua de cigarro na boca e calcorreva-as, sempre de cigarro na boca, Antoninha desfia as suas preocupações num arrastar mono• a escandalizar a cidade toda, os pés bem esfregados com pedrinha córdico de palavras. do mar, o lenço cor-de-rosa apertado com um laço no alto da «O pai de meu filho deixou-me. Meu filho passa os dias na cabeça, o vestido de seda do Japão a desenhar-lhe o corpo onde ponta-de-praia e no rabo-de-salina, a vadiar, a polir as calçadas. Ele era preciso. não respeita a mamãe. De resto ela já está velha não pode com ele. «Deixa amar — dizia ela—, deixa gozar.» Tenho de ir pâ S. Tomé para poder dar duas letras ao meu filho.» E rematava a frase com um levantar arrogante de cabeça. Enxota com o pé uma galinha que, de cabeça levantada e Baltasar caminhou por entre os cavacos espalhados no quintal atenta, entrara, atrevida, na cozinha. e parou junto à cisterna. Baltasar, à porta, abrange o amplo quintal onde elas debicam Do fundo da cozinha um cantarolar baixo vai crescendo em pelos cantos. Viera passar uns tempos a S. Vicente, todavia estava ritmo, A coladera escorre da boca de Antoninha e invade-o como desejoso de voltar. A irmã passava os dias a lamentar a chuva arre- uma carícia, depois afaga-o, entontece-o —ah! como a nossa terra

80 81 é sabe deveras! — transportando-o às areias de Saiamansa onde irá rebolar-se e beijar a espuma salgada do mar. Antoninha, esquecida das suas preocupações, garganteia com sabura: 'm bá pâ Saiamansa Oh, sô sabe... 'm bá rolá na areia Oh, sô sabe Oh menina colá na mi pá 'm pode brinca ma bô... ÍNDICE

Oh, Saiamansa, praia de ondas soltas e barulhentas como meninas intentadas em dia de S. João. Oh, Saiamansa, de peixe Cais-do-Sodré 7 frito nos pratos cobertos no fundo dos balaios e canecas de milho ilhado portitia em caldeiras com areia quente. Areia de Saiamansa, Linda a rolar na areia. Nina 17 Deixa o quintal, passa pelo quartinho de trás e some-se nas salas da casa grande. >^ Rolando de nha Concha 23

Desencanto 37

Esmola de Merca 45

Pôr-de-sol 59

Saiamansa ; 73

82 83