Bernardo Antônio Beledeli Perin

AS VOZES DA ESPOSA DO MUNDO: TRADUÇÃO COMENTADA DE THE WORLD’S WIFE, DE

Dissertação submetido(a) ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Estudos da Tradução. Orientador: Prof. Dr. Sergio Luiz Rodrigues Medeiros

Florianópolis 2018

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Bernardo Antônio Beledeli Perin

AS VOZES DA ESPOSA DO MUNDO: TRADUÇÃO COMENTADA DE THE WORLD’S WIFE, DE CAROL ANN DUFFY

Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de “Mestre” e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós- Graduação em Estudos da Tradução

Florianópolis, 10 de agosto de 2018.

______Prof.ª Dr.ª Dirce Waltrick do Amarante Coordenador do Curso

Banca Examinadora:

______Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros Orientador Universidade Federal de Santa Catarina

______Prof. Dr. André Cechinel Universidade do Extremo Sul Catarinense

______Profª. Drª. Clélia Maria Lima de Mello e Campigotto Universidade Federal de Santa Catarina

______Prof. Dr. Gilles Jean Abes Universidade Federal de Santa Catarina

Para minha mãe Itamara – minha Deméter particular

AGRADECIMENTOS

Dizem que a poesia é palavra do solitário. E é solitário escrever uma dissertação, mas sempre se encontra alguma companhia. Para agradecer a quem esteve do meu lado durante essa caminhada, deixo aqui alguns versos de Carol Ann Duffy herself:

À minha mãe Itamara, meu referencial primeiro e maior de mulher: pelo amor, por manter-se perto mesmo quando estamos longe, por todo o esforço sem o qual eu não seria possível como pessoa e tampouco minha formação. Shadows / blurred into one huge darkness, / but the stars were her mother’s eyes. (“The Cord”, 2002) Aos professores e professoras com quem me encontrei nesta trajetória, por tudo aquilo que me ensinaram. À banca da qualificação e da defesa – professoras Maria Lúcia Milléo Martins e Clélia Maria Lima de Mello e Campigotto, professores André Cechinel e Gilles Jean Abes – , por aceitarem o convite e pelas sugestões valiosas ao trabalho; à professora Luci Collin, por ter acreditado na minha possibilidade enquanto tradutor de poesia durante à graduação; ao professor Sérgio Medeiros, meu orientador, pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa e paciência com seus percalços; à Rosângela, minha primeira professora de inglês, que me incutiu o amor pela língua inglesa. I squash a fly against the window with my thumb. / We did that at school. Shakespeare. It was in / another language and now the fly is in another language. (“Education for leisure”, 1985) A todas as minhas amigas e todos os meus amigos por serem companheiros incríveis nessa viagem que é a vida, na figura das minhas bruxas PGETianas – Fran, Sheila, Jaque e Bea – que ajudaram a transformar a experiência da pós e da cidade nova em algo mais leve; da Monique, pelo empréstimo constante dos ouvidos; da Alessandra, pela onipresença; e da Livia, responsável por causar meu encontro com a obra da Duffy. If you think of the dark / as a black park / and the moon as a bounced ball, / then there’s nothing to be frightened of / at all. / (Except for aliens…) (“The Dark”, 2009) À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela bolsa concedida durante o período do Mestrado. Ao lobo que encontrei quando cheguei ao fundo da floresta – out of the forest I come with my flowers, singing, all alone. (“Little Red-Cap”, 1999)

“Now she was loud.

Before, she'd been easily led, one of the crowd, joined in with the national wshoop for the winning goal, the boos for the bent MP, the cheer for the royal kiss on the balcony. Not any more. Now she could roar.”

— Carol Ann Duffy, Loud

“Last year I abstained this year I devour

without guilt which is also an art.”

— Margaret Atwood, Circe/Mud Poems

RESUMO

O objetivo deste trabalho é propor uma tradução comentada do volume de poesia The World’s Wife, publicado em 1999 pela escritora britânica Carol Ann Duffy, ambas inéditas em português e virtualmente desconhecidas pelo público brasileiro. Nos trinta poemas que integram o livro, Duffy propõe novas interpretações para narrativas históricas, ficcionais e mitológicas ao reescrevê-las a partir dos pontos de vista de mulheres que delas foram tradicionalmente apagadas. Esta dissertação divide-se em três capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se Carol Ann Duffy e sua biobibliografia; discute-se sua contribuição para a poesia de língua inglesa contemporânea e as características definidoras de sua voz poética; contextualiza-se a obra escolhida como corpus, então analisada à luz do conceito de revisionist mythmaking (OSTRIKER, 1982), a reescrita de narrativas prévias, da ordem da mitologia ou da fábula, que excluem a figura e a perspectiva de mulheres por uma escritora de modo que passe a incluí-las e representá-las. O segundo capítulo trata dos referenciais, teóricos e práticos, acerca da poesia e da tradução que norteiam o projeto tradutório desenvolvido, tomando-se como argumento basilar a ideia de que a tradução poética é um modo de escrever poesia (BRITTO, 2016) e enfatizando-se o papel do tradutor durante o processo. No terceiro capítulo, apresenta-se os comentários da tradução, intitulada A Esposa do Mundo, apontando-se aproximações e distanciamentos entre texto-fonte e texto traduzido e entre texto-fonte e as narrativas mobilizadas pela escritora.

Palavras-chave: Carol Ann Duffy. The World’s Wife. Tradução de poesia. Tradução comentada.

ABSTRACT

This dissertation aims to present a commented translation of the 1999 poetry collection The World’s Wife, by British writer Carol Ann Duffy, both unpublished in Portuguese and virtually unknown to the Brazilian public. In the thirty poems that comprise the book, Duffy proposes new interpretations to historical, fictional, and mythological narratives by rewriting them from the viewpoints of the women who have traditionally been erased from them. This dissertation is divided in three chapters. The first chapter introduces Carol Ann Duffy and her bio-bibliography; discusses her contributions to contemporary English-language poetry and the characteristics that define her poetic diction; contextualizes the book chosen as corpus, then analysed in light of the concept of revisionist mythmaking (OSTRIKER, 1982) – the rewriting of previous narratives, hailing from myth and fables, that exclude the figure and perspective of women by a female writer so that they are now included and represented. Chapter two deals with theoretical and practical frameworks regarding poetry and translation, taking the idea of poetic translation as a means of writing poetry (BRITTO, 2016) as its main argument, and emphasizing the role played by the translator during this process. The third chapter presents the translation commentary and points of convergence and divergence between the source-texts and the translated texts, and between the source-texts and the narratives mobilized by the writer as well.

Keywords: Carol Ann Duffy. The World’s Wife. Poetic translation. Commented translation.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Carol Ann Duffy ...... 27 Figura 2: Capa de The World's Wife (Faber & Faber, 1999) ...... 38 Figura 3: Capa de The World's Wife (Picador Classic, 2000) ..... 38 Figura 4: Capa de The World's Wife (Picador, 1999) ...... 39 Figura 5: Capa de The World's Wife (Picador, 2017) ...... 39

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...... 21 2. CAROL ANN DUFFY E THE WORLD’S WIFE ...... 27 2.1. “THEN, DEEPER, GAZE INTO MY EYES”: BIOBIBLIOGRAFIA DA AUTORA ...... 27 2.2. “WORDS WERE TRULY ALIVE ON THE TONGUE”: A POÉTICA DE CAROL ANN DUFFY ...... 29 2.3. “LADIES, FOR ARGUMENT’S SAKE...”: A ALGARAVIA DA ESPOSA DO MUNDO ...... 37 3. POESIA E TRADUÇÃO ...... 53 3.1. “CHOOSING TOUGH WORDS, GRANITE, FLINT”: A TRADUÇÃO POÉTICA ...... 53 3.2. “(I’D DONE ALL THE TYPING MYSELF, I SHOULD KNOW)”: METODOLOGIA ...... 64 4. A ESPOSA DO MUNDO ...... 69 4.1. CHAPEUZINHO VERMELHO ...... 69 4.2. TÉTIS ...... 70 4.3. RAINHA HERODES ...... 71 4.4. SRA MIDAS ...... 73 4.5. de SRA TIRÉSIAS ...... 74 4.6. A ESPOSA DE PILATOS ...... 76 4.7. SRA ESOPO ...... 77 4.8. SRA DARWIN ...... 78 4.9. SRA SÍSIFO ...... 79 4.10. SRA FAUSTO...... 80 4.11. DALILA ...... 82 4.12. ...... 83 4.13. QUEEN KONG ...... 84 4.14. SRA QUASÍMODO ...... 85

4.15. MEDUSA ...... 87 4.16. A ESPOSA DO DIABO ...... 88 4.17. CIRCE ...... 90 4.18. SRA LÁZARO ...... 91 4.19. A NOIVA DE PIGMALEÃO ...... 92 4.20. SRA RIP VAN WINKLE ...... 93 4.21 SRA ÍCARO ...... 94 4.22. FRAU FREUD ...... 95 4.23. SALOMÉ ...... 96 4.24. EURÍDICE ...... 97 4.25. AS IRMÃS KRAY ...... 99 4.26. A GÊMEA DO ELVIS ...... 100 4.27. PAPISA JOANA ...... 101 4.28. PENÉLOPE ...... 102 4.29. SRA FERA...... 103 4.30. DEMÉTER ...... 104 5. COMENTÁRIOS DA TRADUÇÃO ...... 105 5.1. CHAPEUZINHO VERMELHO (LITTLE RED-CAP) ...... 105 5.2. TÉTIS (THETIS) ...... 107 5.3. RAINHA HERODES (QUEEN HEROD) ...... 108 5.4. SRA MIDAS (MRS MIDAS) ...... 110 5.5. DE SRA TIRÉSIAS (FROM MRS TIRESIAS) ...... 113 5.6. A ESPOSA DE PILATOS (PILATE’S WIFE)...... 116 5.7. SRA ESOPO (MRS AESOP) ...... 117 5.8. SRA DARWIN (MRS DARWIN) ...... 120 5.9. SRA SÍSIFO (MRS SISYPHUS) ...... 121 5.10. SRA FAUSTO (MRS FAUST) ...... 122 5.11. DALILA (DELILAH) ...... 125

5.12. ANNE HATHAWAY (ANNE HATHAWAY) ...... 126 5.13. QUEEN KONG (QUEEN KONG) ...... 127 5.14. SRA QUASÍMODO (MRS QUASIMODO) ...... 129 5.15. MEDUSA (MEDUSA) ...... 131 5.16. A ESPOSA DO DIABO (THE DEVIL’S WIFE) ...... 132 5.17. CIRCE (CIRCE) ...... 134 5.18. SRA LÁZARO (MRS LAZARUS) ...... 136 5.19. A NOIVA DE PIGMALEÃO (PYGMALION’S BRIDE) ...... 137 5.20. SRA RIP VAN WINKLE (MRS RIP VAN WINKLE) ...... 138 5.21. SRA ÍCARO (MRS ICARUS) ...... 139 5.22. FRAU FREUD (FRAU FREUD) ...... 140 5.23. SALOMÉ (SALOME) ...... 142 5.24. EURÍDICE (EURYDICE) ...... 143 5.25. AS IRMÃS KRAY (THE KRAY SISTERS) ...... 146 5.26. A GÊMEA DO ELVIS (ELVIS’S TWIN SISTER) ...... 147 5.27. PAPISA JOANA (POPE JOAN) ...... 149 5.28. PENÉLOPE (PENELOPE) ...... 150 5.29. SRA FERA (MRS BEAST) ...... 151 5.30. DEMÉTER (DEMETER) ...... 152 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 155 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 157

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1. INTRODUÇÃO

“Você conhece essa mulher?” A pergunta foi feita por uma amiga e colega do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná há alguns anos e acompanhava um poema de Carol Ann Duffy intitulado “Valentine”1, numa das muitas trocas de poemas e leituras conjuntas que gostávamos de fazer. Até então, a autora me era desconhecida. Naquele momento, muito da resistência em relação à poesia herdada dos tempos de escola já tinha se dissipado, e eu começava a traduzir a escritora estadunidense Anne Sexton como projeto de iniciação científica. Percebi alguns pontos de convergência entre a poesia de Duffy e a de Sexton, como a imagética forte, a linguagem coloquial, o tom honesto e conversacional permeado frequentemente por ironia, que me fascinaram e me convidavam ao texto. Encerrei meu trabalho com Anne Sexton na monografia, quando me dediquei à tradução de poemas de Transformations (1971), livro no qual a escritora revisa e atualiza narrativas dos contos dos irmãos Grimm. Durante a discussão de defesa da pesquisa, a professora Luci Collin, integrante da banca e sabendo do meu interesse pela obra de Duffy, apontou-me que esta também tinha se aventurado pelo processo de reescrita de narrativas fantásticas e mitológicas. Cheguei desta forma à leitura do volume The World’s Wife (1999), e meu fascínio inicial pela produção da poeta intensificou-se, pois encontrei ali, além das características já mencionadas, um humor mordaz, uma leitura prazerosa e o trato com questões que muito me interessavam: o deslocamento de figuras socialmente marginalizadas, neste caso vozes femininas, para uma posição de evidência. Identifiquei no livro ecos significativos da minha própria experiência identitária e afetiva. Subjacente ao arrebatamento proporcionado pelo encontro com o texto de Carol Ann Duffy, havia a vontade de seguir traduzindo poesia produzida por mulheres e que se concentrasse nestas diferentes vivências dos sujeitos à margem. Esse debate parece-me relevante academicamente: embora este eixo de trabalho tenha ganhado força em anos recentes, ele subsiste num contexto ainda restrito. O aprofundamento no estudo da obra da escritora, bem como a ampliação da minha compreensão do lugar que ela ocupa dentro da literatura de língua inglesa contemporânea, sugeriam limitações colocadas por uma tradição literária majoritariamente

1 De Mean Time, 1993. 22 masculina, que a pouca atenção dispensada não apenas à poeta mas a outras escritoras desse sistema no contexto brasileiro corroborava. A gênese do trabalho aqui apresentado deu-se a partir da percepção da necessidade de atualizar (ou, minimamente, provocar) este cânone consolidado e intenta trazer à tona discussões postas pela obra de Duffy tanto quanto salientar aspectos pertinentes para a análise e tradução de sua poesia, constituindo o que entendo como um passo seguinte coerente na minha trajetória pós-Sexton. O objetivo geral deste trabalho é propor uma tradução comentada do volume The World’s Wife, de Carol Ann Duffy, a partir de uma leitura teórico-crítica multifacetada que considere suas relações com o contexto histórico e literário da obra da escritora e com questões acerca da representação feminina na literatura. Como objetivos específicos, propõe- se a Demarcar o lugar de Duffy dentro do cânone da literatura em língua inglesa e caracterizar a dicção poética “Duffyesca”; . Entender como a poética de Duffy manifesta-se em The World’s Wife, ressaltando o papel do mito na trama do livro; . Pensar a tradução de poesia como um movimento de leitura crítica do texto, explicitando um diálogo realizado com o poema, a crítica, o cânone e as teorias de tradução; . Delinear o percurso de um projeto tradutório ancorado na prática demarcando uma poética tradutória pessoal que privilegie o espaço do tradutor; . Construir um aparato peritextual que contribua para a reflexão e a recepção do volume no contexto brasileiro. Como justificativa a esta pesquisa, para além de minha relação pessoal com a poesia de Carol Ann Duffy, destaca-se o reconhecimento dedicado à produção da escritora em seu contexto de origem, onde recebeu inúmeras distinções literárias importantes como o Whitbread Awards, o T S Eliot Prize e o PEN/Pinter Prize, e foi alçada ao cargo de do Reino Unido na primeira ocasião em que a escolha para o posto tradicional aceitou sugestões do público. O interesse suscitado pela obra da poeta motivou um grande número de estudos críticos e

23 teóricos (DOWSON, 2016; MICHELIS & ROWLAND, 2003; GREGSON, 1996; entre outros) e é atestado pelos números expressivos que a colocam no rol dos poetas contemporâneos best-sellers (FLOOD, 2009a), sua inclusão em antologias escolares, tabloides, revistas, fóruns online (DOWSON, 2016, p. 2) e no repertório daqueles que não são leitores usuais de poesia (COOKE, 2009). A produção de Duffy constitui um caso raro de transposição das fronteiras entre o apreço da crítica e o sucesso comercial. A escritora, portanto, conquistou um espaço dentro do cânone de expressão anglófona; permanece, no entanto, uma virtual desconhecida no contexto brasileiro, não tendo sido traduzida integralmente nenhuma de suas obras. A pouca atenção que lhe foi conferida por aqui surge dos esforços de tradutores que ocupam ambientes acadêmicos especializados. No momento em que escrevo estas considerações iniciais, contabilizam- se oito poemas de Carol Ann Duffy em tradução para nossa língua. Quatro são de autoria da tradutora Telma Franco Diniz (“Deméter”, 2010; “Fim”, “Você”, 2011a; “Mensagem de Texto”, 2011b) e quatro são minhas (“Aprendizado para o Ócio”, “Dois Pequenos Poemas de Desejo”, “Namorados”, PERIN, 2015; “Frau Freud”, PERIN, 2016). A pesquisa no banco de teses e dissertações da CAPES não retornou resultados de outros trabalhos, nem mesmo concentrados nas áreas dos Estudos Literários ou Anglófonos, que tratassem da poética de Duffy ou de quaisquer outros aspectos de sua produção literária. No caso do português europeu, há uma antologia de dezessete poemas colhidos da obra da poeta e traduzidos por Ana Filipa Oliveira em sua dissertação de mestrado junto à Universidade de Lisboa (OLIVEIRA, 2009); sua circulação é extremamente específica e responde a demandas distintas daquelas colocadas pelo português brasileiro. Assim, ressalta-se a possibilidade de trazer uma poeta pouco estudada para dentro do âmbito do sistema literário brasileiro e de reforçar a discussão a respeito dos textos em verso produzidos por mulheres no Ocidente. O trabalho com a obra da escritora permite ainda abordar aspectos da tradução da poesia de mulheres e em língua inglesa contemporânea com base em um referencial crítico e teórico desenvolvido no Brasil, expandindo-o e fortalecendo sua disseminação. A escolha pelo livro The World’s Wife emerge de uma confluência de fatores que subscrevem-se às justificativas apresentadas acima. Os poemas representam uma discussão relevante acerca da representação da mulher em narrativas canônicas e do seu lugar na cultura e na literatura ocidentais, tanto como autora quanto como personagem. É um volume de 24 poética madura e forte tônica questionadora no âmbito da obra de Duffy, que concentra e dá relevo a aspectos de sua dicção poética pela primeira vez. Possui apelo para o grande público, e Alison Flood (2009a) nota uma massificação da atenção dispensada à escritora no contexto britânico decorrendo da sua publicação. Sua popularidade parece conservar-se, tendo sido recentemente adaptado como uma ópera pelo compositor Tom Green, com estreia em outubro de 2017 em Cardiff2. Parte da exploração de histórias familiares para delimitar uma outra leitura de mundo possível, que rompe com o status quo e coloca supostos do cânone literário em questionamento pela via do humor sagaz, da ironia e da satirização. Ao posicionar o poder de representação nas mãos destas mulheres marginalizadas pelo cânone, reescreve o mundo: (re)traduz a própria História. O estudo aqui apresentado orienta-se por uma visão teórico-crítica multifacetada. The World's Wife configura-se como representante de uma poética democrática, em que o emprego da imagética expressiva, uma linguagem "demótica" e ritmos "conversacionais"3 produzem a abertura do texto ao leitor (MICHELIS & ROWLAND, 2003, p. 1). A clareza de expressão da escritora enfatiza o espaço da poesia como evento tão diário e ordinário quanto a fala que a origina (WINTERSON, 2015). Concomitantemente, a obra estabelece um diálogo com uma tradição – de raízes também orais, no caso do mito; cultural, literária, científica e sustentada pelo conhecimento canônico, no caso das políticas de gênero e identidade – e coloca em debate questões da vida contemporânea, o que torna as dimensões poética e política inseparáveis no trabalho da escritora. As especificidades do texto de Duffy permitem inscrevê-la no âmbito de uma leitura crítica de viés feminista (como DOWSON, 2016 e DIMARCO, 1998). Reflete-se sobre o volume a partir da discussão proposta por Alicia Ostriker (1982) acerca da revisão e atualização das narrativas mitológicas realizadas por mulheres escritoras a partir da metade do século 20, dentro do que a autora chama de "revisionist mythmaking". Entendendo a possibilidade da poesia de revelar este mundo e criar um outro, como argumenta Octavio Paz (1986, p. 15), este trabalho procura reiterar a poética de Duffy como uma caracterizada por

2 Informação extraída da página da Welsh National Opera. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018. 3 “Her demotic, and conversational, poetics are key aspects of her populism”. No caso das citações diretas em tradução própria, o texto de origem será dado nas notas de rodapé.

25 deslocamentos e, como ventríloqua, derivar força persuasiva de sua capacidade de utilizar os efeitos dialógicos produzidos no texto para simultaneamente retratar e condenar modos de representação a que sujeitos fora das narrativas canônicas são submetidos (GREGSON, 1996, p. 106). A ideia central que norteia a tradução desenvolvida para o livro The World’s Wife é a de que, como argumenta Paulo Henriques Britto, “traduzir poesia é uma maneira de escrever poesia” (2016, p. 25). Em função do caráter de estudo da obra de Carol Ann Duffy e da literatura de língua inglesa que orienta o projeto, busca-se construir uma prática tradutória que opere em sentido centrípeto (BRITTO, 2012, p. 35), de aproximação com as características do texto de origem, partindo da análise de seus componentes formais e temáticos para identificar os aspectos de sentido mais significativos mobilizados na trama de cada poema, a serem trabalhados no texto traduzido (BRITTO, 2012, p. 54; FALEIROS, 2006, p. 1). Essa aproximação é motivada pela compreensão do poema enquanto obra, produto de uma intervenção humana criativa sobre o poético em estado amorfo (PAZ, 2012, p. 22), intentando “re- correr o percurso configurador da função poética, reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o, enquanto dispositivo de engendramento textual, na língua do poema traduzido”, como proposto por Haroldo de Campos (2008, p. 181), permitindo que o próprio texto coloque em jogo os parâmetros para sua tradução. Entendendo, no entanto, a tradução como um construto tão humano quanto o poema, fruto da leitura de um sujeito com particularidades e limitações, ancora-se ainda na concepção geral de que ela constitui um movimento de transferência interpretativa (STEINER, 1975, p. 28), e ressalta o papel desempenhado pelo tradutor durante o processo, subscrevendo-se à perspectiva sintetizada belamente por Augusto de Campos na introdução de Verso, reverso, controverso:

Tradução para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que minto. Ou que minto que sinto [...] (CAMPOS, 2009, p. 7)

O primeiro capítulo, intitulado “Carol Ann Duffy e The World's Wife” (item 2), concentra-se na vida e obra da escritora e no volume que constitui o objeto da tradução comentada aqui proposta. A primeira seção 26 introduz uma breve biobibliografia da autora, enfatizando suas publicações, eventos formadores de sua vida e distinções literárias que recebeu, a fim de apresentá-la ao contexto de recepção brasileiro. Em seguida, discute questões estilísticas e gerais de sua produção em verso, buscando uma imersão na obra de Duffy como um conjunto, para além do nível do poema, e aprofundando-se na visão construída sobre ela pela crítica. Na terceira seção, mergulha nas especificidades do volume The World's Wife e discute questões colocadas por ele, enfatizando a importância do mito em sua tessitura. No capítulo seguinte, “Poesia e Tradução” (item 3), este trabalho debruça-se sobre os pormenores da tradução poética. Começa com uma retomada do pensamento de Octavio Paz (2012), acerca da poesia e do poema, que baliza a prática tradutória desta pesquisa. A seguir, contempla a tradução de The World's Wife a partir das perspectivas de pensadores da tradução brasileiros que a privilegiem enquanto atividade crítica e centrada no fazer do texto traduzido, e reflete sobre a questão do intraduzível e o lugar do tradutor. Por fim, aprofunda a metodologia de trabalho apresentada nestas Considerações Iniciais para delinear uma poética pessoal de tradução e caracterizar sua adoção no trato com a obra. O terceiro capítulo intitulado, sucintamente, “A Esposa do Mundo” (item 4), traz os poemas do volume The World’s Wife em sua tradução para a língua portuguesa, acompanhadas do texto em inglês para facilitar a leitura comparativa. A fim de privilegiar a tradução, esta será dada no lado esquerdo (páginas ímpares) com os poemas de Duffy seguindo nas páginas pares, verso a verso4. No capítulo final, “Comentários da Tradução” (item 5), a tradução dos poemas será abordada individualmente, argumentando-se sobre as escolhas tradutórias mais relevantes e aspectos da análise dos elementos poéticos e da teia de significados por eles mobilizados.

4 Em razão de sua propriedade intelectual, nesta versão os poemas em inglês foram suprimidos, e serão apresentados excertos da tradução.

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2. CAROL ANN DUFFY E THE WORLD’S WIFE

2.1. “THEN, DEEPER, GAZE INTO MY EYES”: BIOBIBLIOGRAFIA DA AUTORA5

Figura 1: Carol Ann Duffy

Fonte: The Times (2011).

Poeta, dramaturga e escritora freelance, Carol Ann Duffy nasce em Glasgow, na Escócia, em 23 de dezembro de 1955. É a mais velha e única mulher dos cinco filhos de um casal da classe trabalhadora, descendente de escoceses e de irlandeses. A família deixa Gorbals, vizinhança pobre de Glasgow em que residia, e muda-se para Stafford, Inglaterra, quando Carol Ann tem seis anos de idade. Duffy completa sua formação escolar em instituições católicas e públicas de Stafford (Saint Austin’s RC Primary School, 1962-1967; St. Joseph’s Convent School, 1967-1970; Stafford Girls’ High School, 1970- 1974). Leitora apaixonada desde criança, escreve sua primeira história

5 Os títulos das subseções deste trabalho são baseados em excertos de The World’s Wife, a serem explicitados nas notas de rodapé. Neste caso: versos 4-5 de “Mrs Beast”. Discutido no item 5.29 deste trabalho 28 após terminar de ler Alice no País das Maravilhas. Seu primeiro poema viria um pouco mais tarde, entre os onze ou doze anos. Seu talento é encorajado por seus professores de inglês nas escolas secundárias; com catorze anos de idade, escolhe seguir a carreira de poeta e começa a ter seus poemas publicados em revistas literárias. Na adolescência, Carol Ann entra em contato com a poesia transgressora do Grupo de Liverpool e conhece Adrian Henri, poeta com quem mantém um relacionamento afetivo até 1982. É desta época que data a publicação de seu primeiro pamphlet em verso: Fleshweathercock and Other Poems (1973). Entre 1974 e 1977, conclui o curso de Filosofia na Universidade de Liverpool. Publica em seguida outros dois pamphlets (Beauty and the Beast, com Henri, 1977; Fifth Last Song, 1982) e tem duas peças de teatro que escreveu produzidas em Liverpool (Take My Husband, 1982; Cavern of Dreams, 1984). Em 1983, torna-se editora da revista Ambit; entre 1988 e 1989, escreve para o jornal The Guardian na posição de crítica literária. Seu objeto, em ambas as funções, é a poesia. No ano de 1985 vem a público o primeiro volume integral de poemas da escritora, Standing Female Nude. A ele seguem-se as coleções de poesia Selling Manhattan (1987), The Other Country (1990), Mean Time (1993), The World’s Wife (1999), Feminine Gospels (2002), Rapture (2005), Love Poems (2010) e The Bees (2011). Entre os anos de 1991 e 2003, Carol Ann Duffy vive, abertamente, uma longa relação com a poeta escocesa Jackie Kay. Em 1995, nasce Ella, sua filha com o escritor Peter Benson. Torna-se professora de poesia da Manchester Metropolitan University em 1996; posteriormente, assume também a função de diretora do Centro de Escrita Criativa nesta mesma instituição, cargos em que permanece até hoje. Prêmios literários com que Duffy teve seu trabalho reconhecido incluem o primeiro lugar da “National Poetry Competition” (1983), o “Scottish Arts Council Book Award” (por Standing Female Nude, The Other Country e Mean Time), o “Dylan Thomas Prize” (1989), o “Whitbread Awards” (por Mean Time), o “T S Eliot Prize” (por Rapture), o “Costa Poetry Awards” (por The Bees) e o “Signal Prize for Children’s Verse” (1999), entre outros alocados não somente no Reino Unido mas também na América do Norte. Torna-se “Officer of the Order of the British Empire” (OBE) em 1995, “Commander of the Order of the British Empire” (CBE) em 2002 e “Dame Commander of the Order of the British Empire” (DBE) em 2015, recebendo então o título de “Dama”. Em 1999, foi escolhida para integrar a Royal Society of Literature.

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Carol Ann Duffy torna-se a primeira mulher, a primeira escocesa e a primeira pessoa abertamente LGBT a ocupar o posto de poet laureate do Reino Unido, nos mais de 400 anos de sua instituição, no ano de 2009. Tem se valido da posição para estimular a produção de novos escritores, especialmente mulheres. Nos anos mais recentes, Duffy tem se dedicado também a escrever livros para crianças, em prosa e em verso, como Queen Munch and Queen Nibble (2002), The Hat (2007), The Tear Thief (2007), The Christmas Truce (2010), Faery Tales (2014) e The Wren-Boys (2015). Teve ainda peças de teatro produzidas para o rádio e organizou e editou antologias, como I wouldn’t thank you for a valentine (1992), Out of fashion: An anthology of poems (2004) e Answering back: Living poets reply to the poetry of the past (2007). Através de sua obra vasta e diversificada, acumulada ao longo de uma carreira de mais de quarenta anos, Carol Ann Duffy se estabeleceu como uma voz proeminente e popular da literatura em língua inglesa contemporânea. No Brasil, obras integrais permanecem inéditas, mesmo depois de sua passagem como escritora convidada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2011.

2.2. “WORDS WERE TRULY ALIVE ON THE TONGUE”: A POÉTICA DE CAROL ANN DUFFY6

A obra produzida por Carol Ann Duffy desde a juventude alçou-a ao posto de escritora proeminente da literatura em língua inglesa contemporânea, cuja influência pode ser atestada tanto pela valorização recebida da crítica literária quanto por sua popularidade e sucesso comercial. De acordo com Ana Oliveira (2009, p. 10), “na base da sua poética parecem estar, pelo menos, dois conceitos: ‘identidade’ (construção da identidade, de identidade sexual, cultural e construção do gênero) e ‘linguagem’ (uso da linguagem, suas potencialidades e limitações, e representação da realidade)”. Esta seção ocupa-se da caracterização da voz poética da autora a partir de um diálogo com a fortuna crítica construída a seu respeito, explorando aspectos significativos de sua dicção – seu uso de linguagem, formas de versificação favorecidas, temáticas abordadas – para situá-la em relação

6 Verso 29 de “Little Red-Cap”. Discutido no item 5.1 deste trabalho. 30 aos seus contextos literário e cultural e procurando delimitar o adjetivo “Duffyesque” que lhe foi atribuído. A poesia de Carol Ann é perpassada por e expressa uma marcante tendência democrática, como salientado pela crítica que também identifica em sua produção um estilo de escrita “demótico” (MICHELIS & ROWLAND, 2003, p. 1), palavra que em língua inglesa denota o caráter popular, comum ou simplificado de algo. A linguagem coloquial, o slang britânico, as palavras da vida cotidiana e urbana que podem ser reconhecidas por todos: estas são os tijolos com que ela erige seus poemas. Duffy afirma não se interessar, “enquanto poeta, por palavras como ‘plash’ – as palavras de , palavras interessantes. Gosto de usar palavras simples mas de forma complicada”7 (DUFFY:FORBES, 2002). Isso se deve, em grande medida, por filiar-se a uma concepção de que “a poesia é do povo e para nossa enunciação” (DUFFY:WROE, 2007), que a autora justifica por vir de um contexto simples e lhe parecer ridículo que a poesia, “mesmo a melhor poesia”, não esteja ao alcance do seu espaço de origem8 (ibid.). Jeanette Winterson (2005) nota que o texto poético é discutido por Duffy, frequentemente, como ocorrência cotidiana em vez de “ocasião especial”, uma a que deve permitir-se ser tão diária quanto fala porque, analisa, a poesia é falar: ela é tão antiga quanto a fala e antecede, igualmente, a escrita. As palavras, afirma Winterson, começam na boca antes de gravarem-se na página; ao declamar-se o poema, sente-se se “peso e o gosto [...] e o fluxo dos versos9” (ibid.), salientando a importância da verbalização do texto e também da dimensão sonora no verso de Carol Ann. A poeta demarca escrever de tal forma em razão de seu interesse pelos ritmos da voz e de como falamos (DUFFY:WROE, 2007) e que os ritmos de sua poesia são ditados por seu “ouvido interno” (DUFFY:DOWSON, 2016, p. 35). Duffy posiciona-se contra um certo senso percebido em sua juventude, de que “se a poesia não tivesse sido escrita por homens já

7 “I'm not interested, as a poet, in words like 'plash' - Seamus Heaney words, interesting words. I like to use simple words but in a complicated way.” 8 “I've always been of the view that poetry is of the people and of our utterance. I'm from a very ordinary background and it seemed ridiculous to me that poetry, even the very best poetry, shouldn't be accessible to where I came from.” 9 “Poems are best spoken to get the full weight and taste of the words and the run of the lines.”

31 mortos, então de alguma forma deveria ser difícil e possuir segredos” 10 (DUFFY:WROE, 2007). Para ela, a poesia “não é algo descolado da vida; ela está no centro da vida”, algo para que nos voltamos em busca de ajuda para “entender ou lidar com nossas experiências mais intensas11” (DUFFY:WINTERSON, 2009). Para Jane Dowson (2016, p. 27), a posição de Carol Ann no cânone pode ser descrita a partir de um diálogo com o trabalho de outros poetas e uma tradição distintamente inglesa que são elementos configuradores de sua dicção e que, simultaneamente, lhe confere caráter algo vanguardista por colocá-los em disputa e os ultrapassar, inserindo-se nos novos cânones literários que emergem ao final do século 20 e que contestam a exclusão de mulheres e de outras nações que caracterizaria esta literatura até então. Oliveira vai argumentar que a escritora “revela, nos seus poemas, ser herdeira de uma concepção poética anglo-saxônica” (2009, p. 9), uma de raiz popular e verve romântica como aquela de em “Preface To The Lyrical Ballads”, de 1798 (ibid.). Sua visada alinha- se também ao fazer poético do grupo de Liverpool, com o qual teve contato durante a adolescência, reconhecível no emprego da linguagem direta para tratar de questões e experiências de sujeitos urbanos; nos modos como trabalha ritmo, humor e imagética; na incorporação de elementos de performance do verso; nas suas perspectivas alinhadas à Esquerda (DOWSON, 2016, p. 7). Nota-se ainda a impessoalidade como influência marcante, tanto por ter absorvido a lírica de T.S. Eliot como parte de seu DNA poético (DUFFY:WOOD, 2005) como por sua utilização da forma do monologo dramático12; neste segundo caso, entretanto, Duffy estabelece uma tensão em relação à dicotomia convencional entre self e outro usualmente presente, pois utiliza a forma para explorar a natureza ambígua da noção de selfhood e fala através de vozes narradoras em vez de em lugar delas, no que aproxima-se da poesia de , grande representante do monólogo dramático em língua inglesa (TAYLOR, 2015, p. 70). Neil Roberts assinala uma recusa implícita da identificação entre poeta e persona que impede o leitor de Duffy de desenvolver um interesse voyeurístico e o faz engajar-se com o próprio texto (2003, p. 5). A

10 “When I was young, there was a sense that if poetry wasn't written by dead men, then it had to be somehow difficult and have secrets.” 11 “Poetry isn’t something outside of life; it is at the centre of life. We turn to poetry to help us understand or cope with our most intense experiences.” 12 As características específicas do monólogo dramático serão abordadas na próxima seção deste trabalho (item 2.3). 32 estratégia empregada pela escritora difere radicalmente do que acontece, por exemplo, no modo confessional de poesia, consolidado no mesmo período de ascensão dos poetas de Liverpool que a influenciaram, onde a confusão das fronteiras entre escritor e persona é parte do jogo textual. Trata-se de uma poética de ventriloquia: nela é possível encontrar uma miríade de vozes, como se a poeta, num jogo divertido, trocasse de máscaras repetidamente. Em seu centro estão as línguas e as perspectivas de grupos marginais – mulheres, homossexuais, sujeitos da classe trabalhadora – (DOWSON, 2016, p. 26) e, em sua dicção, a ideia de outsidedness, estar fora da norma, é a própria norma de constituição das vozes líricas (MICHELIS & ROWLAND, 2003, p. 18). Este “estar fora” não se restringe aos sujeitos líricos; na poesia de Carol Ann Duffy vislumbra-se a preocupação com os “espaços em branco nos quais as palavras não deixam marcas” (O’DRISCOLL, 1990, p. 65), com os limites da linguagem. Dennis O’Driscoll percebe nela, por toda a ênfase que coloca na verdade emocional a orientar seu texto, a consciência da dificuldade de combinar-se linguagem e sentimento e da frequência com que as palavras tornam velados os seus significados13. Para Carol Ann, o poema se afasta do momento de vulnerabilidade emocional que o motiva através do trabalho por ele requerido, “coisa feita”, “escrita manufaturada em vez de um excerto de diário ou uma carta14” (DUFFY:VINER, 1999). Afirma ela: “A poesia é um jeito de estar perto de algo. O poema amoroso é na realidade a respeito da pessoa que o escreve, mas ‘a respeito’ e ‘pessoa’ transformam-se no poema, de modo que é o leitor quem pode aproximar-se do sentimento15” (DUFFY:WINTERSON, 2009). Do modo como vê, o poema é um “momento” de sentimento intenso: a obrigação do(a) poeta não é explicá-

13 “Duffy’s poetry concerns itself, too, with the limits of language, with the white spaces on which words leave no imprint. She is aware of how often words veil what they signify, how difficult it can be to match language to feeling.” 14 “I don't think you do feel exposed in poetry, because it's a made thing. It's a crafted piece of writing, rather than a diary extract or letter. All the work that goes into a poem pushes it away from your own vulnerable moment. I feel quite hard- hearted towards a poem when I've finished it.” 15 “Poetry is a way of being near something. The love poem is really about the person writing it, but ‘about’ and ‘person’ are transformed in the poem, so that it is the reader who can get close to the feeling.”

33 lo ou expor o que acontece em seguida, apenas capturá-lo16 (DUFFY:WOOD, 2005). Carol Ann revela uma capacidade de introduzir verdade emocional na trama de formas literárias construídas por ela a partir de padrões de fala coloquial, sintaxe disruptora, símbolos que causam estranhamento e efeitos sonoros cativantes, todas características que, para Dowson (2016, p. 26), constituem uma independência poética que justifica o aparecimento do adjetivo “Duffyesque” – aqui traduzido como Duffyesco – para circunscrever a dicção da autora. Dowson nota que o termo cunhado em 2002 por Peter Forbes, crítico de poesia do jornal The Guardian, é algo indefinido desde a sua concepção mas carrega fortes conotações generificadas e urbanas (ibid.). A poética Duffyesca é multifacetada e feita de deslocamentos e tensões entre formas tanto mais convencionais que ela subverte e o conteúdo altamente politizado, geralmente alinhado às temáticas pós-modernistas, centrando-se muitas vezes nas experiências de mulheres – explicitamente no caso das coleções The World`s Wife (1999), Standing Female Nude (1985) e Feminine Gospels (2002), mas também em muitos de seus outros poemas. No que concerne a utilização da linguagem na dicção da poeta, talvez sejam os jogos sonoros a sua característica mais distintiva: os efeitos de aliteração, assonância e consonância e, em especial, aqueles provocados pelas diversas formas de rima trabalhadas por ela. Rimas em final de verso, rimas internas, rimas encadeadas, meias-rimas, quase- rimas perdidas por pouco: Winterson (2015) considera a poesia de Duffy como comprovação prática de um uso expressivo, flexível e propositado desta ferramenta poética. Delas resulta que o ritmo Duffyesco tem um jeito de curvar-se para dentro de si mesmo, em um movimento constante de vai-e-vem provocado pelos efeitos não-verbais que ela tão frequentemente adota e que tornam o fluxo de sua escrita bastante sinuoso. As listagens de palavras são outro recurso de que ela lança mão: o acúmulo destes componentes linguísticos contribui para a força de sua imagética e confere ao poema grande carga semântica. A esse respeito, Duffy afirma pensar nas palavras como uma multidão cujos integrantes trombam-se e depois vão embora, estabelecendo breves relacionamentos entre si – amigáveis ou hostis, ou agrupando-se antes de seguirem seus próprios caminho (DUFFY:WOOD, 2005)17. A dimensão visual do

16 “Poems are just moments, so the poet isn’t obliged to say what happens next, she obliged to catch the moment, of intense feeling.” 17 “And I suppose I think of words as a sort of big crowd, just bumping into each other and meeting and then going away and having little relationships with words 34 poema também interessa a Carol Ann – apesar da irregularidade a que tendem seus esquemas rímicos e da métrica que atua de forma fantasma, muitos de seus textos possuem estruturas de fácil visualização, rapidamente registradas pelo olhar. É claro que, em se tratando da recepção desta poética “democrática” pela crítica e pelo público, há quem que não a considere sob uma luz particularmente positiva. Simon Brittan é um destes casos, atacando o que considera uma linguagem simplista, uma imagética exagerada e o que vê como insistência de escrever-se prosa como se fosse poesia (1994, p. 59). A resistência maior parece se concentrar sobre a “acessibilidade” do verso chamado de Duffyesco. Embora o texto de Carol Ann, via de regra, construa-se de modo mais aberto à leitura, esse recurso serve a uma lógica que desafia o leitor a pensar criticamente discursos integrados ao pensamento hegemônico, através dessa mesma linguagem simples e de seu tom humorado. Nesse sentido, cabe recuperar uma distinção proposta por David Constantine em “Aspects of the Contemporary: What good does it do?”:

A poesia é uma arte intrinsecamente democrática porque sua matéria, aquilo do que ela trata, é comum – comum em um duplo sentido: por ocorrer com frequência, e comum à humanidade. [...] A poesia tenta dizer como é ser humano em um tempo e um lugar particulares. [...] A linguagem da poesia, os meios pelos quais sua matéria comum é realizada, não é comum. A linguagem da poesia, por vezes, distanciou-se amplamente da fala comum; no presente, com maior frequência, elas se aproximam. Mas ela nunca foi e nunca será fala comum. Ela é outra, e tem de ser.18 (CONSTANTINE, 2004)

themselves, and friendships or hostilities, and they gang up together and then go away.” 18 “Poetry is an intrinsically democratic art because the stuff of it, what it is about, is common – common in a dual sense: occurring frequently, and common to humankind. People love, hate, do good, do ill, they rejoice, they grieve, they die. […] Poetry tries to say what it is like being human in particular time and place. There is great diversity on a lasting common ground. […] The language of poetry, the means by which its common stuff is realized, is not common. At times the language of poetry has been very far removed from common speech; at present,

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Na visão de Constantine, quando se diz que uma poética é democrática, isso não é sinônimo de uma reprovável “acessibilidade”, mas significa que a matéria comum da experiência humana é fixada com uma linguagem renovada. Ele ressalta que a estranheza da linguagem poética se mantém, refletindo

[…] a necessária alteridade da linguagem do poema. Isto – seus ritmos, sua imagética, suas formas e gestos – é o sinal de que algo está sendo requerido de nós que não o é por muito dos discursos em que normalmente nos engajamos ou a que nos submetemos.19 (ibid.)

Esta abordagem pode muito bem acomodar a escrita Duffyesca, representando as maneiras através das quais ela interpela sua audiência e lhe propõe perguntas, em vez de advogar respostas fixadas. Isso se dá na medida em que essa poesia aprofunda-se em experiências humanas partilhadas, muitas vezes do âmbito do tabu e do extremo, que não estão restritas pelo tempo, pelo espaço ou pela individualidade de quem a lê (DOWSON, 2016, p. 26). A poeta estabelece um jogo em que temas espinhosos são tratados em sua relação com a parafernália e o cotidiano urbanos. Vernon Scannell credita à inteligência e à engenhosidade verbal de Duffy tratar de forma não-deprimente do ressentimento, medo, pobreza, violência e frustração que obscurecem, em maior ou menor grau, o mundo principalmente urbano explorado por Carol Ann em Selling Manhattan (apud DOWSON, 2016, p. 9), afirmação que pode ser estendida de modo geral à produção da autora. Jane Dowson avalia que Duffy encabeça tendências agora dominantes na poesia inglesa, distendendo seus limites linguísticos e criativos (ibid., p. 26). No seu repertório temático, figuram os amantes alienados pelo cenário dos grandes centros urbanos; o exame das maneiras pelas quais o amor moderno nos molda enquanto seres humanos, com ênfase no amor homossexual, particularmente o lésbico; as vozes e as políticas de identidade de sujeitos à margem das normas most often, it may approximate to it. But it never was and never will be common speech. It is other, and has to be.” 19 “[…] the necessary otherness of the poem’s language. That – its rhythms, its imagery, its shape and gesture – is the signal that something is being required of us that is not required of us by most of the discourse we ordinarily engage in or submit to.” 36 sociais, de construção de gênero e as formas de opressão a que eles(as) estão sujeitos(as), com interesse especial nas feminilidades – mas também abordando as masculinidades –, sempre por uma perspectiva feminista; certo alheamento da terra natal e um senso de si como “forasteiro(a)” (outsider) (MICHELIS & ROWLAND, 2003). A maternidade numa ótica positiva também é uma experiência definidora para a escrita de Duffy, bem como questões relativas à tradução e à criação dos mitos e dos contos de fada (ibid.). Que abra-se aqui um parágrafo para abordar a revisão das narrativas mitológicas e folclóricas pela qual Carol Ann mostra-se interessada, pois ela constitui um dos modos de estabelecimento da intertextualidade na poética Duffyesca – um diálogo com narrativas formadoras no contexto ocidental; há que se delimitar o trabalho de Duffy dentro de um framework eurocentrado. Dentro de um recorte feminista convidado pela obra da autora – e ela também afirma-se como tal a nível pessoal (DUFFY:WOOD, 2005) –, isso pode ser pensado a partir da discussão colocada pela escritora Adrienne Rich sobre o que chama de “re-vision”, re-visão, como “o ato de olhar para trás, de ver com novos olhos, de adentrar um texto antigo a partir de uma nova direção crítica” 20 (1972, p. 18). No caso das mulheres (mas expandindo-se para o caso dos indivíduos que estão igualmente fora da norma), esta prática representa um ato de sobrevivência, muito além de mero capítulo na história cultural e de uma busca por identidade, mas antes um processo necessário de autoconhecimento e de conhecimento do passado, de forma distinta da sua versão hegemônica, “não para continuar uma tradição mas para romper seu domínio sobre nós”21 (ibid, p. 18-19). E, de fato, em Duffy esse movimento de fazer-se sentido do “velho” a partir do olhar do presente serve ao propósito de partir o controle do velho sobre o mesmo presente: através da mudança de perspectiva engendrada pela autora, estas histórias retém muito de sua sólida e prévia identidade mas são tornadas novas no que consiste em um movimento de amplificação das verdades nelas contidas (DUFFY:WOOD, 2005). Nesse sentido, a poética de Carol Ann Duffy pode ser compreendida como um tipo de poética aplicada (“applied poetics”), conforme definido por Fred Wah:

20 “Re-vision – the act of looking back, of seeing with fresh eyes, of entering an old text from a new critical direction […]” 21 “We need to know the writing of the past, and know it differently than we have ever known it; not to pass on a tradition but to break its hold ov9er us.”

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[…] no seu sentido prático e aplicado, como as ferramentas desenvolvidas ou localizadas por escritores e artistas para iniciar movimento e mudança. [...] O(a) escritor(a) culturalmente marginalizado(a) engendrará abordagens de linguagem e forma que permitam que um resíduo particular (genético, cultural, biográfico) torne-se cinético e valorizado.22 (2000, p. 51)

Utilizando, então, de elementos estéticos já disponíveis “para criar um espaço mais satisfatório onde investigar suas realidades particulares”23 (ibid.). Essas estratégias são particularmente importantes para todas aquelas que Wah chama de “poéticas de oposição”, como são as feministas, sexuais e raciais (“poetics of opposition”, p. 90), e também para a discussão do volume The World’s Wife, obra que constitui o objeto primeiro deste trabalho, a ser discutido na seção seguinte. Deste modo, Carol Ann Duffy e sua produção em verso podem ser compreendidas dentro do escopo de uma poesia política, uma que ocupa- se, igual e diretamente, tanto de questões contemporâneas como de questões atemporais. Os modos com que consegue alternar vozes, visões e pontos de vista distintos lhe permitem empunhar este que parece um paradoxo, de forma simultânea, como a uma lâmina, uma máscara e um convite. “Tomamos o que quisermos dos poemas de Duffy: mergulhamos neles o quanto considerarmos adequado. Mas todos levamos algo deles”24 (DOWSON, 2016, p. 15-16).

2.3. “LADIES, FOR ARGUMENT’S SAKE...”: A ALGARAVIA DA ESPOSA DO MUNDO25

22 “‘poetics’ […] in its practical and applied sense, as the tools designed or located by writers and artists to initiate movement and change. […] The culturally marginalized writer will engineer approaches to language and form that enable a particular residue (genetic, cultural, biographical) to become kinetic and valorized.” 23 “[...] most of the available public aesthetics in order to create a more satisfying space within which to investigate their particular realities.” 24 “We take what we want from Duffy’s poems: we plunge as far into them as we deem fit. But we all take something.” 25 Verso 1 de “Frau Freud”. Discutido no item 5.22 deste trabalho. 38

Esta seção examina The World’s Wife como volume temático, estabelecendo um diálogo com a fortuna crítica existente sobre a obra de Carol Ann Duffy para revelar relações de ordem literária e política em jogo neste livro em específico. Tenciona expandir as discussões acerca das características constitutivas de cada poema a serem exploradas na seção de comentários de tradução do presente trabalho, propondo uma leitura a partir de características comuns identificadas durante os processos de leitura e de tradução.

Figura 2: Capa de The World's Wife Figura 3: Capa de The World's Wife (Faber & Faber, 1999) (Picador Classic, 2000)

Fonte: Acervo do autor. Fonte: Reprodução.

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Figura 4: Capa de The World's Wife Figura 5: Capa de The World's Wife (Picador, 1999) (Picador, 2017)

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Questões de gênero e identidade, de representação e relativas à construção da feminilidade, especialmente, estão entranhadas na poética de Carol Ann Duffy desde os primórdios de sua obra; longe de lhes ser avessa, a poeta as explora, como notam Michelis & Rowland (2003, p. 25), de modo frequente e diverso. Em The World’s Wife, no entanto, estas questões emergem do estado algo latente, de ênfase menos pronunciada ou explícita, que ocuparam nos seus primeiros livros para assumirem a posição de centralidade, apresentando-se de maneira insistente e carregada. Esta é a primeira de suas coleções de poesia que Duffy estrutura integralmente em torno de vozes demarcadas como femininas. 40

As vozes de mulheres tornam-se aqui tanto fio condutor como também eixo temático26. A expressão “the world and his wife” (“o mundo e sua esposa”, em tradução livre) pertence ao repertório da variante britânica da língua inglesa, sendo empregada para designar, de acordo com o dicionário Cambridge, uma grande aglomeração de pessoas, especialmente quando reunidas em um lugar particular a um momento específico. Outro dicionário, o Oxford, marca também a relação sinonímica da expressão com "everybody", "todos" ou "todo mundo", como na sentença "now all the world and his wife seems to have heard of them" (“agora, o mundo mais a esposa parecem saber quem eles são”). Duffy, cuja dicção poética é caracterizada por deslocamentos e tensões, alude à uma expressão popular e tradicional ao mesmo tempo em que realiza nela uma operação de subversão linguística. O que lhe interessa neste volume não é seu significado canônico, mas antes “the World’s Wife”, a Esposa do Mundo, a mulher à sombra desta outra personagem, depreende-se, masculina. Essa relação é mais difusa na língua inglesa, onde não acontece marcação de gênero nos substantivos, mas ela pode ser inferida pelo contexto, em se tratando de uma relação por default heterossexual como o matrimônio. A capitalização das iniciais sugere que estes sejam substantivos próprios, o que intensifica o grau da relação de personalização que já ocorre em “the world and his wife”; a referência da poeta, portanto, diz respeito a um sujeito determinado e concreto. Mas quem é a “Esposa do Mundo”? No título de sua antologia, Carol Ann Duffy joga com outra carga semântica contida na expressão de maneira menos óbvia: a ideia de uma mulher inominada e definida apenas por sua posição em relação a um homem. A inversão sintática operada sobre “the world and his wife” é significativa porque neste deslocamento fundamenta-se o projeto realizado pela escritora nos poemas do volume: de modo análogo, as mulheres que compõem as personae da obra são, como identifica Jeanette Winterson (2015), “mulheres nos bastidores,

26 Neste trabalho, por vezes farei referência a The World’s Wife como uma “antologia”. Embora não seja uma compilação de textos canônicos, em sentido amplo é possível pensar o volume como tal porque há nele um critério de seleção implicado e que leva a modificações no cânone literário já estabelecido, elementos que, de acordo com Mujica (1997) caracterizam a acepção moderna do termo “antologia”.

41 mulheres por trás do trono, mulheres por trás da história”27, figuras que foram relegadas ao plano de fundo das histórias que as encerram. A intertextualidade é um componente importante da produção de Duffy, que frequentemente dialoga com a tradição literária que a antecede. O repertório mobilizado pela escritora em The World’s Wife inclui narrativas folclóricas (fábulas, contos de fadas), o imaginário religioso católico e os mitos gregos clássicos (como aqueles registrados nas Metamorfoses de Ovídio), assim como personagens conhecidos na contemporaneidade (inclusive pela disseminação da cultura pop) e referências do cânone literário ocidental. São as mulheres – esposas, amantes, mães, irmãs – de Lázaro, Pilates e do Diabo; de , Charles Darwin e Sigmund Freud; de Quasímodo, Fausto e da Fera. Os poemas – trinta, no total – são compostos como monólogos dramáticos em primeira pessoa. Meyer Abrams (2012, p. 94-95) descreve o monólogo dramático como uma forma de poema lírico aperfeiçoada por (autor com o qual a produção de Duffy é frequentemente relacionada pela crítica) que seria definida pelas seguintes características: o poema é construído inteiramente como fala enunciada por uma única pessoa, distinta do ou da poeta, em um momento crítico de uma situação específica; esta pessoa dirige-se a um(a) ou mais ouvintes, cuja presença e comportamento são desconhecidos à parte de pistas localizadas no discurso do(a) único(a) locutor(a); o princípio que rege o ou a poeta na formulação da fala do locutor é revelar o temperamento e o caráter deste ao leitor ou leitora. Este formato resulta na produção de um efeito dialógico – o monólogo como um diálogo (GREGSON, 1996, p. 97) – através do qual Carol Ann Duffy revela sua capacidade de incorporar as vozes de Outros(as) ausentes (DIMARCO, 1998, p. 26). Duffy afirma que The World’s Wife representa um esforço para lançar um novo olhar em direção à herança cultural que a forma enquanto escritora. Ao mesmo tempo em que deseja celebrar estes “contos de fadas, mitos, narrativas da História, do cinema e da música pop [...], narrativas de heróis”28 (DUFFY:WOOD, 2005), procura por verdades que neles estão ocultas, perdidas ou não ditas, recusando as “verdades” que lhes são

27 “Women behind the scenes, women behind the throne, women behind history, are the women figured in The World’s Wife.” 28 “What I wanted to do in the book was to look at all the stories—fairy tales, myths, stories from history, film and pop music or whatever, stories of heroes which had informed me as a writer, part of my cultural ancestry.” 42 tradicionalmente atribuídas. Sua posição de questionamento é motivada pelo desejo de amplificar estas relações que passam despercebidas (DUFFY:VINER, 1999). O “novo olhar” proposto pela escritora se constitui à medida que as mulheres do livro, tal qual a “Esposa do Mundo” referenciada pelo título, são deslocadas de sua posição canônica enquanto objeto construído e condicionado pelo olhar masculino, tiradas de seu espaço algo acessório aos homens e reinseridas firmemente na posição de sujeitos de sua própria narrativa. A questão fundamental no cerne de The World’s Wife pode ser articulada da seguinte maneira: se fosse dado a estas mulheres esquecidas ou apagadas pela tradição a possibilidade de falar, o que teriam a dizer? De que maneira escolheriam apresentar-se e relacionar-se com o Mundo, tanto enquanto realidade material como enquanto representação e construção de um masculino? Na visão de Duffy, o sucesso do projeto é determinado ao passo que ele não parte de uma mera revisão de uma lista de contos favoritos, mas sim do estabelecimento de uma relação particular, pessoalmente honesta, com a matéria contida nas narrativas: um encontro com algo “de duro e de verdadeiro”29 na história (DUFFY:VINER, 1999). Na poética de Duffy, o elemento autobiográfico é ponto de partida não para provocar a identificação entre self e voz lírica, mas para encontrar uma verdade emocional ou intelectual que reverbere em seu leitor. A escritora explicita que:

o modo pelo qual eu quis fazer isso foi encontrar uma perspectiva feminina sobre as personagens, [...] então embora esteja vestindo a máscara de Queen Herod ou Mrs Beast eu não perco de vista meu próprio lugar, minha própria vida. Pode ser que seja autobiográfico no sentido de que pode ser verdadeiro em relação à minha vida criativa ou minha vida emocional mas não necessariamente verdadeiro em relação aos detalhes factuais da minha vida.30 (DUFFY:WOOD, 2005)

29 “You had to find something hard and truthful in the story.” […] Each poem had to be personally honest, and have some kind of autobiographical element in it, whether it had happened to me or whether it was an emotional or intellectual truth.” 30 “And the way I wanted to do that was to find a female perspective on the character, […] so that although I’m wearing the mask of Queen Herod or Mrs Beast I’m not lost in my own place, my own life. It might be that it is

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Esta perspectiva se manifesta nos poemas da antologia de diferentes maneiras. Por vezes, Duffy explora as narrativas através da transformação das personagens consagradas em mulheres. É o caso em jogo, por exemplo, em “Elvis’s Twin Sister” (DUFFY, 1999, p. 66), no qual a escritora reimagina o irmão gêmeo (natimorto) de Elvis Presley como uma freira adulta, e de “The Kray Sisters” (ibid., p. 63), em que os gêmeos Ronnie e Reggie Kray, líderes do crime organizado do East End londrino nas décadas de 1950-1960, tornam-se duas irmãs. “The Kray Sisters” é singular entre os textos de The World’s Wife por apresentar duas vozes em uníssono em vez de uma voz feminina individual. Em outros casos, a contestação das verdades canônicas acontece através da inserção de práticas e objetos contemporâneos, procedimento que arranca estas narrativas de seus momentos históricos e permite que a autora as reconstrua em um cenário moderno (e frequentemente urbano): aqui temos Chapeuzinho Vermelho libertando-se da inocência infantil e procurando ativamente pelo lobo-poeta nos confins de Stafford (ibid., p. 3) ; a esposa de Fausto, que gasta a fortuna conquistada pelo marido ao vender sua alma colocando implantes de silicone, fazendo liftings faciais e entregando-se a um estilo de vida hedonista (ibid., p. 23); a Salomé que acorda de uma noitada sentindo os efeitos da ressaca para encontrar um parceiro de nome já esquecido a seu lado na cama (ibid., p. 56). Mais constante, porém, é que a subversão seja construída no próprio discurso da personagem que fala em cada monólogo dramático: “Frau Freud” (ibid., p. 55) refuta a teoria freudiana da “inveja do pênis” substituindo-a pelo sentimento de comiseração ou pena; em “Mrs Darwin” (ibid., p. 20) a gênese da teoria de evolução das espécies é uma sugestão da esposa de Darwin, que o compara a um chimpanzé, e da qual ele se apropria; a Rainha Herodes reage ao alerta premonitório de que sua filha sofrerá uma decepção amorosa ordenando o assassinato de todas as crianças do sexo masculino para protegê-la, fundindo o imaginário cristão com o conto de fadas (ibid., p. 7). Jeffrey Wainwright (2003, p. 48), retomando o pensamento de Jean-Paul Sartre, situa o repertório mobilizado pela poeta em relação à possibilidade de um exame dos mitos levar ao encontro de histórias tão sublimadas que acabaram por tornar-se reconhecíveis universalmente, ainda que o acesso às suas minúcias esteja interdito. Em seu processo de revisão e reescrita das narrativas fantásticas, Duffy explora o sentimento autobiographical in that it might be true to my imaginative life or my emotional life but not necessarily true to the actual details of my life.” 44 de familiaridade evocado por elas com grande efeito a partir de diversas frentes, e a procura pelas já mencionadas verdades ocultas e novos modos de olhar velhas histórias cria um diálogo com questões familiares à existência humana como o amor, os relacionamentos e as inquietações que emergem dos desencontros provocados pela linguagem. Wainwright também chama a atenção para o espaço ocupado pelas fontes das quais a escritora bebe em The World’s Wife “at childhood’s end”, no final da infância (verso inicial do poema que abre a antologia, “Little Red-Cap”), um espaço “traiçoeiro, incerto, obscuro e transformador”31 (2003, p. 48, grifo do autor) onde se dá a percepção de que o processo de transição de criança à fase adulta não resolve definitivamente as inquietações a respeito de gênero e sexualidade. As questões apontadas por Wainwright são estruturais no contexto do volume e manifestam-se ao longo de seu desenvolvimento. A “Esposa do Mundo” percorre um caminho que se inicia ao findar da infância em “Little Red-Cap” (DUFFY, 1999, p. 3) e encerra-se na experiência libertadora da maternidade do poema final, “Demeter” (ibid., p. 76). Entre as posições de filha e de mãe, há trajetória: um percurso de amadurecimento, especialmente pela via afetiva, de onde ela emerge não de todo incólume. A rota trilhada revela algo de cíclico: a Chapeuzinho Vermelho que encontra os ossos da avó na barriga do lobo-poeta e emerge da floresta carregando flores é ecoada pela imagem da filha que, em seu retorno ao lar até então estéril de Deméter, traz com ela a primavera. Há descoberta: de si e de certa continuidade e diálogo das experiências de tornar-se mulher. Um movimento gradual, que Avril Horner discute como sendo passagem “da escuta à fala; do silêncio à eloquência; da fraqueza à força; da margem ao centro; da passividade à ação”32 (2003, p. 112), e que incorre na interrupção na visada canônica (e masculina) sobre elas. Essa leitura torna-se mais forte ao examinar-se o monólogo “Mrs Beast” (DUFFY, 1999, p. 72): afirmando a si mesma fora dos arquétipos femininos convencionais, a persona também identifica uma repetição de padrões nas narrativas mitológicas consagradas; os mitos vagam em círculos, mas ela tem o poder de contá-los direito (“These myths going round, I’ll put them straight”). Anseios e olhares de mulheres, somente, é que condicionam essa trajetória da “Esposa do Mundo”.

31 “‘At childhood’s end’ […] is a treacherous, uncertain, obscure and transforming place and time.” 32 “[…] movement from listening to speaking; from silence to eloquence; from weakness to strength; from marginal to central; from passivity to action.”

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Mais do que resgatar estas figuras femininas do ostracismo em que são colocadas por força de uma tradição hegemônica que as relega ao plano de fundo, o projeto empreendido por Carol Ann Duffy acaba por subverter o cânone já cristalizado e revelar nele um outro, traçando o que pode ser pensada como uma linhagem de mulheres dispersadas pelo curso da História e da literatura. Ao escolher “responder a um olhar com uma voz em vez de outro olhar”33, (GREGSON, 1996, p. 101), Duffy constrói uma verdadeira algaravia de vozes que emerge de sujeitos distintos e diversos, que possuem agência e refutam o apagamento, a exclusão e as representações a que foram submetidas até então. A gorila gigante de “Queen Kong” (DUFFY, 1999, p. 31) conquista a afeição do cinegrafista em vez de se conformar à posição de mulher seduzida. A redenção é possível para algumas dessas personagens: a monstruosidade de Medusa é o que o amor frustrado por Perseu fez dela, não uma condição prévia (ibid., p. 40); o corte dos cabelos de Sansão não é uma traição, mas um ato de amor com o qual Dalila lhe humaniza (ibid., p. 28). Outras narrativas se tornam possíveis: ao reimaginar o caso da serial killer Myra Hindley em “The Devil’s Wife” (ibid., p. 42), até mesmo a perpetração da maldade é reivindicada como espaço feminino. Ao revisar as narrativas sobre mulheres em seus sentidos literário e social a partir da mobilização de uma miríade de perspectivas femininas, The World’s Wife é uma antologia que se reveste de forte tônica feminista. Michelis & Rowland (2003, p. 16-17) a aproximam de uma definição de feminismo como aquela proposta por Adrienne Rich, uma de renúncia à obediência aos pais e de reconhecimento do mundo como algo maior que o que foi descrito por eles. A obra se compromete com o empoderamento feminino, que nela é possível não por uma redução a realismo literário, como argumenta Jane Dowson (2016, p. 34), mas sim pela criação de um espaço onde ele pode acontecer entre o reconhecível e o fantástico. Se “os homens detêm o monopólio da interpretação das coisas humanas, e estabelecem seu poder ao mesmo tempo que o legitimam com fundamentos mitológicos, religiosos, ideológicos, filosóficos ou científicos” (COLLING, 2004, p. 19), as vozes em The World’s Wife mexem com o próprio eixo de sustentação desse sistema e colocam em questionamento a naturalização da hierarquização de gênero. Nesse sentido, o volume de Duffy vai além de recuperar uma linhagem de mulheres oculta no interior do cânone. Ele também pode ser pensado dentro da produção de uma “linhagem” de mulheres escritoras

33 “It is possible for a writer like Duffy to answer a gaze with a voice rather than another gaze.” 46 que se subscreve ao que Alicia Ostriker caracteriza como “revisionist mythmaking”. A revisão das narrativas mitológicas não é necessariamente uma novidade; em seu ensaio “The Thieves of Language: Women Poets and Revisionist Mythmaking” (1982, p. 71-73), Ostriker nota que o Romantismo inglês (séculos 18-19) já se apropriava delas para desafiar o racionalismo e o materialismo da cultura em que estava inscrito, no que foi seguido por escritores do começo do Modernismo como Ezra Pound e W. B. Yeats. O que lhe interessa particularmente abordar, no entanto, são obras que emergem a partir da década de 1960 em que uma tradição feminina “subterrânea” de exploração e projeção de si, argumenta ela, pesa ao menos tanto quanto o modo de construção do sistema dos românticos e dos modernistas. Rejeitando a divisão tradicional entre mito e subjetividade feminina, escritoras como Anne Sexton, Adrienne Rich e Margaret Atwood reclamam a mitologia como espaço poético, ainda que em primeira análise ela possa lhes parecer um terreno inóspito, responsável pelo surgimento e manutenção da dicotomia da figura feminina como “anjo ou monstro”. Ostriker discute que:

[e]m todos estes casos a poeta simultaneamente desconstrói um “mito” ou “história” prévios e constrói um novo que a inclui, em vez de excluí-la. [...] Sempre que uma poeta emprega uma figura ou narrativa previamente aceita e definida por uma cultura, a poeta está usando o mito, e o potencial de que esse uso será revisionista está sempre presente: ou seja, a figura ou narrativa será apropriada para fins alterados, o frasco antigo preenchido com vinho novo, satisfazendo inicialmente a sede da poeta enquanto indivíduo mas em última análise tornando a mudança cultural possível. [...] Estes poemas assumem genericamente o status literário elevado conferido pelo mito e que frequentemente foi negado a mulheres escritoras porque elas escrevem de modo “pessoal” ou “confessional”. Mas neles as velhas narrativas são transformadas, transformadas completamente, pelo conhecimento feminino da experiência feminina, e assim não podem mais se colocar como fundações da fantasia masculina coletiva. Em vez disso [...] elas são correções; elas são representações do que mulheres encontram de divino e de demoníaco nelas

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mesmas; elas são imagens recuperadas do que as mulheres sofreram coletiva e historicamente; em alguns casos elas são instruções de sobrevivência.34 (1982, p. 72-73)

Com The World’s Wife, portanto, Carol Ann Duffy insere-se dentro desta perspectiva revisionista do fazer do mito apontada por Ostriker. O deslocamento operado por ela no título da antologia sinaliza a “correção” que será postulada nos poemas do volume, manifestada como reivindicação do espaço narrativo não apenas para as mulheres que ela mobiliza como personae em cada um deles, mas também para as mulheres enquanto uma categoria social. O projeto de Duffy trabalha, fundamentalmente, a partir do desmanche de uma estratégia de poder pela qual “os homens definem-se e constroem a mulher como o Outro, a partir deles mesmos” (COLLING, 2004, p. 24-25) situando-se como Um pretensamente neutro. No contexto do volume, intensificando os outros deslocamentos discutidos até aqui, o sentido dessa relação sofre um processo de inversão: a poeta liberta a voz da “Esposa do Mundo” de sua posição enquanto Outra e lhe permite situar-se na posição de Uma; disto decorre a realocação dos homens para a posição de “Outro”, uma transição que não necessariamente vai apresentá-los sob uma ótica positiva porque responde a questões de opressão e normatização que historicamente pesam sobre as mulheres. Os homens de The World’s Wife são, então, péssimos poetas (o Orfeu de “Eurydice”, p. 58); sexualmente impotentes (“Mrs Rip Van Winkle”, p. 53); adúlteros, bígamos, ratos (“Queen Herod”, p. 7); porcos (“Circe”, p.

34 “In all these cases the poet simultaneously deconstructs a prior ‘myth’ or ‘story’ and constructs a new one which includes, instead of excluding, herself. […] Whenever a poet employs a figure or story previously accepted and defined by a culture, the poet is using myth, and the potential is always present that the use will be revisionist: that is, the figure or tale will be appropriated for altered ends, the old vessel filled with new wine, initially satisfying the thirst of the individual poet but ultimately making cultural change possible. […] These poems generically assume the high literary status that myth confers and that women writers have often been denied because they write ‘personally’ or ‘confessionally’. But in them the old stories are changed, changed utterly, by female knowledge of female experience, so that they can no longer stand as foundations of collective male fantasy. Instead […] they are corrections; they are representations of what women find divine and demonic in themselves; they are retrieved images of what women have collectively and historically suffered; in some cases they are instructions for survival.” 48

47); feras sob o controle feminino (“Mrs Beast”, p. 72). Mas nisso Michelis & Rowland (2003) avaliam que o movimento em jogo na obra permite à escritora, simultaneamente, demonstrar como discursos e narrativas tornam-se canônicos a partir do silenciamento de outros. Para eles, Duffy acaba por iluminar o inconsciente dos textos e explorar a poesia como força perturbadora de axiomas socialmente aceitos, o que é produtivo a níveis criativos e políticos. Assim, em relação ao uso revisionista do mito, é possível pensar The World’s Wife numa posição análoga àquela que Danette Dimarco explora em relação ao poema “Standing Female Nude”35: as personae estão localizadas ou mediadas por discursos sociais; os argumentos ideológicos que as permeiam passam por um processo de codificação e desconstrução; a escritora remodela noções sobre self destas mulheres e denuncia a naturalização de margens algo indeterminadas que podem ser perigosas para os sujeitos situados permanentemente na “periferia” (1998, p. 33-34); o ato de representar-se constitui uma tomada de poder que não resulta necessariamente em um “final feliz”, mas que lhes dá o poder de controlar os meios narrativos em vez de fazê-las sucumbir às narrativas e imagens de outros; o monólogo dramático torna-se uma plataforma estratégica para a subversão de visadas canônicas (ibid., p. 38). Expandindo ainda a relação de deslocamento estabelecida pelo volume, há uma outra dimensão a ser explorada. Quando fala-se em uma revisão da mitologia em The World’s Wife, faz-se necessário compreender a aplicação desse conceito em sentido amplo para referir-se a estas narrativas fantásticas e algo familiares; afinal, a rigor, nem todas as fontes com as quais a escritora trabalha são “mitos” per se. Entre elas encontram- se histórias que evoluíram a partir de uma tradição oral, narrativas científicas, literárias e até mesmo jornalísticas, no caso dos poemas que tratam de exemplos contemporâneos. O processo a que Duffy sujeita todas elas possui uma identificação muito mais próxima daquele que acontece com as narrativas folclóricas que a antologia também engloba. Como discutido por Alan Dundes (1989, p. 193), a variação é um conceito chave para se pensar as narrativas folclóricas porque em parte as distingue da “alta cultura” e da “cultura de massa”; ainda que as percepções e leituras deles mudem com o passar do tempo, estes textos estão fixados por encontrarem-se impressos (ou registrados em outras mídias). O folclore, em contraste, está em um estado de fluxo perene em razão de sua múltipla existência, que permite às narrativas se adaptarem aos grupos ou

35 De Standing Female Nude, 1985.

49 indivíduos entre os quais circulam: ele “não deixa de ser, em vez disso continuando seu [...] caminho de contador a contador, de geração a geração”36 (ibid.). No projeto de The World’s Wife, as fronteiras entre arte elevada e cultura popular resultam borradas e dá-se uma espécie de devolução da poesia ao povo, movimento que está frequentemente em jogo na produção de Duffy como um todo. Isto se realiza pelo emprego do monólogo dramático, que produz poemas que devem ser pensados como vozes (neste caso, dissonantes), e pelo uso de um registro de linguagem acessível ao leitor que é característico da própria dicção poética da escritora, mas também se constitui como algo inerente ao projeto do livro. A relação com as narrativas mitológicas em The World’s Wife, portanto, é complexa. Winterson argumenta que a subversão estabelecida pelo título do livro e desenvolvida em seus poemas é “tanto um entendimento tácito de que o mundo (ainda) é um mundo de homens, e uma piada com a dedicatória mais popular do mundo – Para Minha Esposa”37 (2015). Esta leitura permite retomar os pontos mais importantes da análise desenvolvida até aqui e aponta para desdobramentos seguintes. Mesmo que o volume concentre-se em experiências de mulheres, elas não são desenvolvidas a partir do descolamento em relação às personagens masculinas que inspiraram estas revisões, perspectiva corroborada pela escolha da escritora por intitular muitos dos textos em acordo com a maneira tradicional de referir-se à mulher pelo nome de seu marido (“Mrs Quasimodo”, p. 34; “Pygmalion’s Bride”, p. 51; “The Devil’s Wife”, p. 42). Embora o matrimônio não tenha sido, ao longo da história, uma instituição baseada necessariamente em sentimentos de afeto mútuo, a própria Duffy defende que o amor, e o amor por homens, desempenha um papel fundamental no volume, ainda que muitos dos poemas o abordem com o desgosto resultante do fim de uma relação por motivos egoístas (DUFFY:WOOD, 2005). Para a poeta, não se trata de uma tentativa direta de ataque ao masculino; ela reconhece, entretanto, que isso emerge do fazer da obra. Mas talvez, justamente pela natureza amorosa e íntima destas relações, é que as personae sejam capazes de reconhecer o que estes homens têm de patético e de ridículo e encarar o fato com certa

36 “Folklore once recorded from oral tradition does not cease to be, but rather continues on its often merry way from raconteur to raconteur, from generation to generation.” 37 “[...] the title itself both a tacit understanding that it’s (still) a man’s world, and a joke on the world’s most popular dedication – To My Wife.” 50 picardia; note-se por exemplo o caso de “from Mrs Tiresias” (DUFFY, 1999, p. 14), no qual apesar da transformação de Tirésias em mulher ele permanece irremediavelmente um homem, fato que sua esposa obviamente nota ao recontar as tribulações dele com idiossincrasias do corpo feminino. Nisso, The World’s Wife acaba por constituir-se uma obra de tom satírico, interrompendo um binário convencionalmente inquestionado (que Dimarco identifica na análise de “Standing Female Nude” que neste trabalho já foi apropriada) entre olhar (“gaze”) e visão (“look”), entre alto (“high”) e baixo (“low”), a partir de uma estratégia que tem na risada sua força de ruptura (1998, p. 37). O objeto dessa satirização são as masculinidades, exceto a masculinidade feminina (MICHELIS & ROWLAND, 2003, p. 27), e a cultura hegemônica enquanto um domínio masculino. O humor é um traço significativo na constituição deste volume específico da poeta, e é através da fusão entre ele e a temática das políticas de gênero e identidade, em seus contextos doméstico e social, que frequentemente acontecem a provocação e a reinterpretação da estrutura do mito. Assim, por maior que seja o status conferido aos homens enquanto personagens históricos ou ficcionais, pela cultura literária ou pop ou científica, eles não conseguem escapar da língua ferina da “Esposa do Mundo” (Shakespeare talvez seja o único que escape relativamente ileso em “Anne Hathaway”, p. 30, que explora a “segunda melhor cama” deixada pelo escritor para a esposa em seu testamento como um lugar de amor e poesia); dentro de uma tradição anglo-saxã na qual a poesia de Carol Ann Duffy está inserida, pode-se pensar uma aproximação entre estas mulheres e a debochada esposa de Bath chauceriana. Nesse sentido, as estratégias empregadas por Duffy são variadas. Tipicamente, ela explora metáforas e imagens a partir de uma variedade de perspectivas, e serve-se frequentemente de punch lines e jogos de palavras próprios da língua inglesa, explorando os limites deste vocabulário. “Mrs Icarus” (DUFFY, 1999, p. 54), por exemplo, é um poema breve que ancora-se na rima entre “hillock” (colina) e “pillock” (idiota). “Circe” (ibid., p. 47) inclui uma receita para preparar “pig’s cheek” (bochecha de porco) que também leva “tongue in cheek” (ironia). “Mrs Midas” (ibid., p. 11) joga com dois sentidos da expressão “granted” (“Look, we all have wishes; granted. / But who has wishes granted?”). Aspectos formais do poema como a sonoridade das rimas são empregados para impulsionar o humor dos versos: em “Mrs Sisyphus” (ibid., p. 21) a repetição da tarefa de Sísifo é ecoada pelas palavras terminadas em [-irk], [-erk] e [-ark] que ocorrem em toda a sua extensão. Duffy ainda converte formas poéticas como o

51 soneto inglês, canonicamente usado como forma de lírica amorosa, em uma lista de palavras de uso popular sinônimas com “pênis” (“Frau Freud”, ibid., p. 55). A fronteira entre sério e jocoso é um constante espaço de negociação, e coloca questões importantes para o trabalho tradutório da antologia que serão endereçadas nos comentários da tradução trazidos por este trabalho. Assim, consideradas as características globais da obra e a forma com que constrói-se como volume temático, é possível identificar, enfim, uma dimensão tradutória no gesto de revisão das narrativas sobre mulheres operado por Duffy, considerado tanto em seu sentido de reescrita e manipulação de textos consagrados como enquanto crítica em relação às maneiras com que mulheres e suas experiências foram tradicionalmente traduzidas a partir de um olhar masculino. Dela vai resultar num processo de reescritura do próprio mundo ocidental e de suas narrativas fundadoras. O sentido construído no conjunto dos poemas e no diálogo identificado entre os textos ilumina os desdobramentos práticos deste trabalho, que irá voltar-se para cada um deles individualmente e apreciá-los em seu funcionamento como obras autônomas e independentes. A análise aqui desenvolvida, entretanto, constitui um passo importante e necessário para a leitura crítica que esta tradução comentada pretende ser, porque The World’s Wife encerra dentro de si, como muito da produção da escritora, a afirmação de uma realidade contemporânea em que essas políticas de gênero e identidade e questões de representação ainda importam, e é por isso que, tal qual sua Deméter, Duffy escolhe palavras duras (MICHELIS & ROWLAND, 2003, p. 28). Palavras de granito e sílex com as quais o gelo metafórico da tradição hegemônica pode ser quebrado38.

38 “Where I lived – winter and hard earth. I sat in my cold stone room choosing tough words, granite, flint, to break the ice.” (DUFFY, 1999, p. 76) 52

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3. POESIA E TRADUÇÃO

3.1. “CHOOSING TOUGH WORDS, GRANITE, FLINT”: A TRADUÇÃO POÉTICA39

Nessa seção serão discutidas abordagens referentes à poesia e à tradução poética que orientam o projeto tradutório desenvolvido para o livro The World’s Wife. Procura-se estabelecer um diálogo entre referenciais da crítica literária e dos Estudos da Tradução, recuperando delimitações acerca do poético e do poema, a fim de caracterizar condições postas à tradução interlínguas pelo gênero em si. O olhar do tradutor engajado com o texto em diversos níveis serve como posição de referência para a construção da reflexão aqui apresentada, compreendendo a práxis como espaço válido de identificação para se pensar a tradução. Ao levar-se a cabo o projeto tradutório proposto para o livro de Carol Ann Duffy, um princípio que colocou-se insistentemente em jogo é aquele sumarizado por Paulo Henriques Britto em “O tradutor como antologista”, apresentado na asseveração de que “traduzir poesia é uma maneira de escrever poesia” (2016, p. 25). Enfatiza-se a relevância dessa perspectiva a partir da percepção do gênero poético como “território onde todas as fronteiras, da natureza que forem, se fazem mais difusas e por vezes invisíveis40” (MARÍAS, 2007, p. 338), e que convida à revisão de uma marca comum, explícita ou implícita, que Javier Marías identifica em muitas das abordagens tradutórias desenvolvidas no decorrer do último século, por mais distintos que tenham sido seus contextos e suas formulações: uma convicção de “que a tradução existe como atividade concreta, precisa, delimitada, inequívoca e, obviamente, distinta da criação41” (ibid.). Em primeiro lugar, pese-se que encerrar a discussão a respeito do ser da poesia em uma definição precisa e inequívoca, apesar de constituir um valioso exercício reflexivo, não é uma tarefa simples – tampouco factível, arrisca-se dizer. Como ilustra o teórico Octavio Paz já no primeiro parágrafo de seu O Arco e a Lira, o poético representa um objeto

39 Verso 3 de “Demeter”. Discutido no item 5.30 deste trabalho. 40 "[...] la poesia es el território donde todas las fronteras, de la índole que sean, se hacen más difusas y en ocasiones invisibles." 41 "A saber: que la traducción existe como actividad concreta, precisa, delimitada, inequívoca y, desde luego, distinta de la creación." 54 vasto e diversificado que assume, no mínimo, tantas formas quanto possam existir poemas no mundo:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio todos os conflitos objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do . Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos mas há quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana! (2012, p. 21)

Compreendida nesses termos, pode-se argumentar talvez que a poesia é uma forma de expressão da sensibilidade humana, uma

55 experiência do mundo e da existência, dotada da capacidade de justificar as muitas formulações a ela atribuídas – e onde seria possível entrever os(as) poetas que lhes encarnam e sopram vida – ao mesmo tempo em que as transcenderia infinitamente. Octavio afirma que a poesia pode estar presente em paisagens, em pessoas, em fatos: o poético teria um jeito de dar-se “como condensação do acaso ou [...] cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta” (ibid., p. 22). Nesse sentido, apreender a unidade da poesia requereria um trato de forma “despida” com a manifestação dela na unidade constituída pelo poema. Em contrapartida, neste teríamos uma obra, onde o poético é erigido de um estado amorfo e transformado pela atividade humana, seja de maneira ativa ou passiva, intencional ou inconsciente, em um produto humano (ibid.). De acordo com a discussão de Paz, o poema se estabelece como um “organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia” (ibid., grifo nosso), no qual podemos encontrá-la e que abre o caminho para pensar a ambos de maneira concreta. Numa analogia, se poderia dizer que o poema é o conduíte da corrente elétrica constituída pela poesia. Mais objetivamente, o poema é tessitura, uma trama de sentidos estabelecida pelo entrelaçamento das suas características de forma e de conteúdo. Os signos contidos em seu interior existem em estado condensado, permanecendo os elementos significantes e significados em perene interação. O poema é uma realidade construída linguisticamente que transcende sua própria existência enquanto forma: torna-se algo além, onde “forma e substância são a mesma coisa” (ibid.). Assim sendo, no âmbito de uma reflexão sobre a tradução poética, a abordagem desenvolvida neste trabalho toma o texto como unidade de análise por ser ele a configurar os sentidos mobilizados, de forma consciente ou inconsciente, por quem quer que lhe tenha escrito. O projeto tradutório procura responder às demandas do texto sem separar aquilo que, como assevera Marco Lucchesi, não se pode jamais separar: “conteúdo e forma, verbo e silêncio, valor e sentido” (2017, p. 99). Os processos de significação que são incorporados pela retórica poética distinguem-se daqueles que ocorrem com a linguagem veicular que ela “contradiz, explode, pluraliza e, portanto, ultrapassa infinitamente”, como argumenta Mário Laranjeira (2003, p. 26), no que colocam desafios específicos para quem a traduz. Ivan Junqueira cita, entre eles, “os do ritmo, da estrutura sintático-verbal, dos esquemas métricos e rímicos, da linguagem metalógica, do jogo de imagens e metáforas” (2012, p. 9). Somam-se a estas outras dimensões que complicam ainda o jogo da tradução de poesia. De modo distinto ao que 56 acontece com as narrativas de origem folclórica, o registro em algum tipo de suporte – o livro impresso, por exemplo – circunscreve o poema no tempo; leituras e percepções tendem a alterarem-se e a evoluírem, mas o texto segue fixado (DUNDES, 1989). Por empregar mecanismos próprios do repertório linguístico do idioma em que foi composto, o poema circunscreve seu espaço, inseparável da sua expressão verbal, e assim o processo da tradução poética acaba por evidenciar os desencontros entre as diferentes línguas, entre diferentes maneiras de pensar-se e expressar- se o mundo. A incumbência do(a) tradutor(a) da poesia, portanto, é uma travessia entre duas línguas, por ele(a) realizada enquanto “animal bifronte, exilado de uma terceira, marcado pelo não-lugar” (LUCCHESI, 2017, p. 93). A nível prático, subentende-se que em princípio um projeto de tradução parte “da identificação dos elementos centrais no processo de construção de sentido do texto de partida”, adotando-se uma postura interpretativa que implica reescrevê-lo “com o intuito de reconfigurar esses aspectos considerados primordiais para o modo de significar do texto” (FALEIROS, 2006, p. 1). Ao percorrer novamente o trajeto de configuração da função poética, o(a) tradutor(a) o reconhece no texto a ser traduzido e o reinscreve, então, “enquanto dispositivo de engendramento textual” na sua própria língua (CAMPOS, 2008, p. 181). Conforme discutido por Marías, se entendemos o processo de criação poética como “cristalização de uma experiência”, na acepção mais abrangente do termo, em que esta pode representar “um sentimento, uma vivência, um pensamento, uma visão, um impulso, um instante, uma leitura, o próprio fazer do poema ou qualquer outra coisa42” (2007, p. 342) e no que não distingue-se em mais do que fundação do texto, é igualmente válido que uma experiência – nesse caso, literária –, fazendo-se reconhecível, seja tomada como “motivo, inspiração, fonte, causa, impulso ou lembrança43” (ibid.) para o ato de traduzir um poema. Nesse sentido, torna-se necessário revisar a noção da identidade do(a) tradutor(a) enclausurá-lo(a) à posição de um(a) “operador neutro,

42 “La creación de un poema es, por decirlo de alguna manera, la cristalización de una experiencia, en el sentido más amplio de esta palabra. Esa experiencia puede ser un sentimiento, vivencia, una idea, un pensamiento, una visión, un impulso, un instante, una lectura, el hacerse mismo del poema o cualquier otra cosa, sin que las tales se diferencien esencialmente entre sí en tanto que origen del poema.” 43 “[...] la traducción de un poema es un acto de creación que toma como motivo, inspiración, fuente, causa, impulso o recuerdo una experiencia literaria que hace reconocible.”

57 movendo maciços blocos semânticos e sintáticos” (LUCCHESI, 2017, p. 72), cuja competência seria de ordem unicamente linguística, e encerrasse a tradução literária numa dinâmica de natureza exclusivamente semântica, “da língua 1 para a língua 2, do texto de partida para o de chegada” (ibid.). Ao passo que “cada criação poética é uma unidade autossuficiente” e todo poema “único, irredutível e inigualável” (PAZ, 2012, p. 23), a concepção de tradução interlingual que ancora o projeto tradutório de The World’s Wife a compreende como uma operação de transferência de caráter interpretativo, onde a trama significadora do poema consiga erguer-se daquele espaço de diferença óbvia entre um par de línguas e que as caracteriza como tal através de uma transformação (STEINER, 1975). Essa operação se constitui, em base, a partir de um movimento de leitura aprofundada e contextualizada do poema, um que incorpora a análise literária como “vivência interior do mundo e da técnica do traduzido”, sujeitando o texto a um processo de “vivissecção implacável” enquanto o traz “novamente à luz num corpo linguístico diverso” (CAMPOS, 2013, p. 14), que correlaciona a tradução a um ato de crítica textual; é nesse movimento que revelam-se os parâmetros de configuração do texto que orientarão, depois, o fazer do texto traduzido. Nesse sentido, a tradução afirma-se como “práxis, não um protocolo preexistente ao texto” (LUCCHESI, 2017, p. 99) condicionada pelo tradutor enquanto presença na trajetória de leitura e interpretação do texto. Ultrapassando a compreensão de si como mero depósito de um significado estanque, o poema, ainda que seja inexplicável, não é jamais ininteligível (PAZ, 2012); o tradutor, portanto, é sujeito que soma nessa equação as limitações e particularidades do seu próprio repertório formador e formador da tradução que ele é capaz de produzir, não proprietário da língua ou seu inquilino, mas “antes um leitor à procura de uma voz” (LUCCHESI, 2017, p. 95) que se torna agente do e no texto. No texto, porque a reescrita realizada na tradução nele o inscreve, as palavras “espelhos que o refletem, em mil pedaços” (ibid.); do texto, por ser, como o ato por ele empreendido, capaz de “projetar a imagem de um autor e/ou uma (série de) obra(s) em outra cultura, alçando o autor e/ou as obras para além dos limites de sua cultura originária44” (LEFEVERE, 1992, p. 9).

44 “Since translation is the most obviously recognizable form of rewriting, and since it is potentially the most influential because it is able to project the image 58

Procura-se, dessa forma, responder ao desafio posto pela revisão do papel desempenhado pela sensibilidade e pela imaginação na tradução e dela mesma, como sumarizado por Lucchesi em uma das máximas tradutórias que coloca, de modo que

[o] aspecto mais forte, do ponto de vista metodológico, consiste em realizar um percurso heterodoxo, em que a aproximação entre culturas já não atenda a um maquinismo vazio, limitado ao dicionário e a uma logica fuzzy, mas a um gesto cultural, impregnado de rumores, estranhamentos e fortes desvios normativos. (2017, p. 76)

Em uma dimensão adjacente, ainda que entenda-se que o propósito do poema, por assim dizer, seja o próprio poema, a poesia, como discute o escritor T.S. Eliot, pode servir de modo deliberado e consciente – e “absolutamente claro” para o autor nas suas formas mais primitivas (como hinos de motivação religiosa, cantos com propósitos “mágicos” práticos, épicos e sagas enquanto registros históricos “antes de se tornar[em] apenas uma diversão comunitária”) – a uma função de natureza social (1991, p. 26). A leitura conduzida sobre The World’s Wife sugere que no livro de Carol Ann Duffy essa função manifesta-se como força de perturbação de axiomas sociais convencionais, no que diz respeito à narrativa generificada e excludente construída sobre a categoria “mulher”. Na visão de Eliot, contudo, a atribuição principal da poesia e elemento onde reside a condição de sua existência seria causar prazer – de um tipo que, para ele, é evidente ser apenas ela capaz de causar – e produzir, nesse movimento, uma diferença significativa, seja ao comunicar uma nova experiência, renovar uma compreensão do familiar ou exprimir algo que não se tem outra maneira de expressar, que torna nossa sensibilidade mais aflorada, levando então à ampliação de nossa consciência (ibid., p. 26-27). Abordagens contemporâneas, como a da crítica Jeanette Winterson, revelam ecos dessa concepção e a expande:

A poesia é prazer. Há vezes em que me perguntam, “por que eu deveria ler um poema?” Há uma pletora de of an author and/or a (series of) work(s) in another culture, lifting that author and/or those works beyond the boundaries of their culture of origin […]”

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respostas, das profundas – o poema é um meio de comunicação tão antigo que parece ter constituído uma necessidade evolutiva – às práticas; o poema é como uma xícara de expresso – a maneira mais rápida de conseguir-se uma dose de energia mental e espiritual. Poderíamos falar da poesia como uma corda salva- vidas numa tempestade. Poesia como um mantra contínuo para o bem-estar mental. Poesia como a maior e mais antiga oficina do mundo a respeito do amor. Poesia como uma conversa através do tempo. Poesia como uma lavagem a ácido do clichê. Poderíamos dizer que o poema é um detector de mentiras. Que o poema é uma maneira de pensar sem abrir-se mão do sentimento. Que o poema é uma maneira de sentir sem se deixar dominar pelo sentimento a ponto de deixar-se de pensar direito. [...] Que o poema “mantém o coração desperto para a verdade e a beleza” (Coleridge [...]) Que o poema é uma intervenção: “A capacidade de provocar mudança em condições existentes” (Muriel Rukeyser). Que a poesia, disse Seamus Heaney, é “forte o suficiente para ajudar”. E prazer.45 (WINTERSON, 2015)

No projeto tradutório aqui desenvolvido, entende-se que esse papel desempenhado pelo poema no seu contexto de origem também será

45 “Poetry is pleasure. Sometimes people say to me, “why should I read a poem?” There are plenty of answers, from the profound – a poem is such an ancient means of communication that it feels like an evolutionary necessity – to the practical; a poem is like a shot of espresso – the fastest way to get a hit of mental and spiritual energy. We could talk about poetry as a rope in a storm. Poetry as one continuous mantra of mental health. Poetry as the world’s biggest, longest-running workshop on how to love. Poetry as a conversation across time. Poetry as the acid-scrub of cliche. We could say that the poem is a lie detector. That the poem is a way of thinking without losing the feeling. That a poem is a way of feeling without being too overwhelmed by feeling to think straight. [...] That the poem ‘keeps the heart awake to truth and beauty’ (Coleridge […]). That the poem is an intervention: ‘The capacity to make change in existing conditions’ (Muriel Rukeyser). That poetry, said Seamus Heaney, is ‘strong enough to help’. And pleasure.” 60 desempenhado por ele na cultura de chegada, de modo análogo e, ao mesmo tempo, respondendo – e produzindo – um referencial completamente distinto, nascido da realização pelo tradutor-sujeito. Cabe perceber, portanto, o chamado “original” ele mesmo como uma possibilidade do texto (NODARI, 2017), não como corpo linguístico soberano ao texto traduzido mas sim como especificidade da relação com ele estabelecida, que pressupõe sua existência em uma forma que lhe é anterior. Compreendendo-se que “cada língua e cada nação geram a poesia que o momento e seu gênio particular lhe ditam” (PAZ, 2012, p. 24) que, de acordo com Eliot (1991), representa o impulso de um povo pelo uso literário de sua língua, dizendo fundamentalmente a respeito da expressão do sentimento e da emoção – particulares, em oposição ao pensamento, que seria de ordem geral –, a tradução de The World’s Wife nasce não da ideia de que a língua portuguesa e a cultura brasileira têm necessidade daquele conhecimento mas, antes, da apreensão que esse processo produz significado e uma diferença enriquecedora. Seguindo nessa argumentação, contudo, Eliot, ao intrincar à poesia o caráter de mais “visceralmente nacional” das artes (ibid., p. 30), afirma nela dessa forma a condição de intraduzível. Faça-se aqui um à parte para contextualizar-se o ensaio do autor, produzido na primeira metade do século 20 e anterior ao boom ocorrido nos Estudos da Tradução em meados da década de 1970, a partir do qual as teorizações da área expandem-se e ramificam-se imensamente. Não obstante, o encontro com o estatuto de intraduzibilidade poética é uma ocorrência contumaz para aqueles(as) tradutores(as) inseridos(as) em um contexto acadêmico. A sombra espinhosa da noção da tradução da poesia não apenas como desafiadora – o que, justiça seja feita, ela é – mas desafiadora por ser inalcançável ou inacessível, no sentido de ser isso a definir o caráter poético de algum texto, parece ainda pairar sobre nós, mesmo que muito da produção específica a respeito do fazer do poema traduzido se concentre em desmontá-la e rechaçá-la. Vale ressaltar, nesse sentido, que o paradigma tradutório tradicionalmente se ancora em binários – original versus tradução, fiel versus infiel, forma versus conteúdo, entre outros – e, no trajeto de se compreender a tradução enquanto práxis, torna-se inevitável confrontá- los quando da busca por um traduzir que esteja dentro do espectro do possível. Neste trabalho, o olhar concentra-se mais profundamente no par traduzível versus intraduzível – na máxima infame de Robert Frost, “poesia é o que se perde em tradução” – por ter sido ele, por muito tempo (e ainda em alguns círculos), a delimitar a valorização de nossa atividade.

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O absoluto da intraduzibilidade sustenta-se do senso comum e em construções teóricas com que dialogamos, mas talvez deva ser pensado fora dessa concepção que, sob olhar crítico, mostra-se estreita e engessada no que diz respeito aos papeis da tradução e do(a) tradutor(a), fomentando uma busca infrutífera por alcançar-se um ideal irrealista de perfeição no texto traduzido. Em essência, lançar esse olhar para o poema traduzido serve a arremessá-lo para a posição de cópia febril do texto não-traduzido. Todavia, ainda que a percepção do intraduzível, conforme aborda Laranjeira, nasça do indizível, “o intraduzível intralinguístico, a impossibilidade ou a capacidade de significar (traduzir em signos) linguisticamente uma realidade, um conceito, um sentimento, uma emoção” (2003, p. 23), contraponha-se que a definição inviável do intraduzível implica recebê-lo numa orientação teórica tal que, de modo rudimentar e apressado, na visada de Marías, ela seja

uma operação que consiste em transladar um dado significado de certos significantes a outros sem que o primeiro se perca ou mude, ou o faça no menor grau possível: de modo que, em qualquer caso, esse significado original ou inicial, após a fabulosa modificação que supõe sua passagem de uma língua a outra, siga sendo, ainda e paradoxalmente, o mesmo; continue sendo, diga-se assim, reconhecível.46 (2007, p. 340)

Do texto literário traduzido pede-se, dessa forma, “‘apenas’ que diga a ‘mesma coisa’ que o original, mas também que diga ‘a mesma coisa’ da ‘mesma maneira’” (BRITTO, 2016, p. 24). Um dos desdobramentos do ato tradutório, porém, é criar uma obra e criar um autor a partir do recorte que coloca em jogo (ibid.), e “o modo como é feita a tradução pode incluir estreitamentos, ampliações ou dissoluções de limites e fronteiras” (LUCCHESI, 2017, p. 75); assim, novos limites tendem a estabelecer-se na relação específica que é construída, na e pela

46 “Una definición posible de la traducción, rudimentaria y apresurada, [...] sería la de una operación consistente en trasladar un significado dado de unos significantes a otros sin que lo primero se pierda o cambie, o lo haga en el grado menor posible: de tal manera, en cualquier caso, que ese significado original o inicial, tras la fabulosa modificación que supone su paso de uma lengua a otra, siga siendo, empero y paradójicamente, el mismo; siga siendo, por expresarlo así, reconocible.” 62 tradução, entre os dois textos, mais ainda quando sua atribuição é recriar a materialidade do significante poético operando dispositivos linguísticos claramente distintos. É nesse sentido que Britto assevera que a tradução é um modo de realização da escrita poética (2016): uma vez que a reescrita do texto se dá a partir do trabalho análogo de se movimentar estruturas que o(a) poeta, fazendo uso de sua língua específica, emprega com vistas ao poético, e estas estruturas constituem-se distintamente nas línguas de partida e de tradução, não existindo entre elas equivalência objetiva a ser encontrada, o(a) tradutor(a), num gesto que cria em vez disso correspondências, desempenha ali o trabalho de poeta. Para Lucchesi, são dois os quesitos a que o(a) tradutor(a), no ato tradutório, têm de responder: “a ética do deslocamento e a potência verossímil na ligação entre conjuntos, que não serão jamais biunívocos” (2017, p. 96); essa operação, por sua natureza, igualmente não será conduzida por eles(as) de forma unívoca. A abordagem desenvolvida por Britto, crucial para este trabalho, procura estabelecer critérios de avaliação e tradução mais objetivos e nos posicionar de forma estratégica ao longo dessa trajetória, de posse de recursos para administrar conflitos que invariavelmente surgirão, tanto por sua competência individual de leitura e enfrentamento do texto como pelas distinções que existem entre os repertórios de cada língua. Nesse modelo,

[...] o tradutor literário deve ter consciência de que o seu objetivo – produzir um texto que reproduza, na língua-meta, todos os aspectos da literariedade do texto original – é, em última análise, inatingível. Sua tarefa, portanto, [...] é determinar quais as características do original são as mais importantes e quais são passíveis de reconstrução na língua- meta, e tentar redigir um texto que contenha essas características. É importante colocar os elementos do original em uma escala hierárquica, e concentrar-se naqueles itens que ocupam o topo da hierarquia. (BRITTO, 2012, p. 54)

Em última análise, tal posição crítica objetiva deslocar a impossibilidade tradicionalmente postulada sobre a tradução da poesia para um espaço em que ela possa ser vivida no texto como valor relativo. Ao tramarem-se dos componentes linguísticos, formais e temáticos, específicos do conjunto da língua em um poema, por certo uma intraduzibilidade em dimensão estrita, ainda que condicionada pela visão

63 que se adota do ato de traduzir para uma língua que diz e significa o mundo por estruturas distintas, pode ser encontrada; há uma diferença, entretanto, entre assinalar a existência dessa interpretação e tornar absoluto, em razão dela, que toda poesia é intraduzível. Há, como afirma Marcos Siscar, que se diferenciar a definição “em negativo” da poesia e o intraduzível como força-motriz da tradução, que “nasce daquilo que lhe resiste” (2011, p. 62) e, potência criativa, gera uma energia cinética no(a) tradutor(a). Para dizer-se de outra forma: se algo aqui me resiste, como posso lhe responder? Abordado nesse sentido, se poderia ressaltar o papel de quem traduz numa perspectiva como sintetiza Augusto de Campos na introdução de Verso, reverso, controverso:

Tradução para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que minto. Ou que minto que sinto [...] (2009, p. 7)

Quando defronta-se com sua tarefa, o(a) tradutor(a), na discussão de Marías (2007), sente o texto de partida como ausência; não tendo da experiência única constituída por ele mais do que a lembrança no estado desfeito e fragmentário próprio da memória e do esquecimento, criará na sua língua algo que, em sua cabeça, encontra-se em outra língua, contando para o trabalho a carência que percebe daquilo enquanto potencial do texto. Lhe dá, então, forma particular que somente ele(a), a nível pessoal, tem a capacidade de forjar, por entendê-la necessária e necessariamente aquela, plenamente independente da origem da lembrança concreta poder ser comum a uma quantidade indefinida de tradutores. Essa compreensão estabelece-se na medida em que, nas palavras de Octavio Paz,

[c]ada texto é único e, simultaneamente, é a tradução de outro texto. Nenhum texto é inteiramente original, porque a própria linguagem em sua essência já é uma tradução: primeiro, do mundo não-verbal e, depois, porque cada signo e cada frase é a tradução de outro signo e de outra frase. (2009, p. 13-15)

Procura-se, assim, reafirmar o caráter intrinsecamente humano da tradução, contra “o gume afiado da asserção geral de que nenhuma língua 64 pode ser traduzida sem perdas fundamentais47” (STEINER, 1975, p. 292) que permeia os ataques à tradução de poesia, aferindo, como na máxima de Lucchesi, que “uma tradução desprovida de perdas lembra o crânio de Helena apontado por Hermes: despojado da antiga beleza que o revestiu, sem memória nem futuro” (LUCCHESI, 2017, p. 101). No percurso teórico aqui construído, intentou-se demarcar as múltiplas dimensões do fazer tradutório: como experiência literária, tão diversa como a poesia que lhe serve aqui de objeto específico; como leitura aprofundada do poema; como jogo de regras apresentadas pelo próprio texto; como diálogo no qual as culturas, de partida e de chegada, são enriquecidas com algo novo, mesmo que uma leitura específica daquele texto que parte do(a) tradutor(a) sujeito e agente; como memória; e, se poderia acrescentar, como um ato afetivo desenvolvido sobre uma criação poética. Cada uma das traduções produzidas dos poemas de The World’s Wife é, por si própria, um trajeto, uma jornada que reflete esta outra; em seu próprio direito, uma modalidade da tradução comentada escolhida como gênero da presente pesquisa pela centralidade e ênfase que permite ao(à) tradutor(a) e no que procura se constituir como uma glosa, anterior e concomitante ao processo tradutório de acordo com a discussão de Marie-Hélène Torres (2017), onde se “explica e teoriza de forma clara e explícita o processo de tradução, os modelos de tradução e as escolhas e decisões feitas pelos tradutores” (ibid., p. 15). O mistério do traduzir, como marca Marías (2007) por fim, está entranhado na afirmação aparentemente óbvia do Nabokov tradutor de que, da maneira como entendera um poema de dada língua, de dado autor, de dado período, também assim o exprimiria em uma língua outra, e que pretende-se aqui trazer à superfície.

3.2. “(I’D DONE ALL THE TYPING MYSELF, I SHOULD KNOW)”: METODOLOGIA48

Este segmento da dissertação concentra-se em explicitar decisões tomadas no percurso prático englobado pelo presente trabalho, consideradas, mais especificamente, em relação ao volume de Carol Ann Duffy enquanto unidade. Trata de exprimir orientações de cunho geral

47“Attacks on the translation of poetry are simply the barbed edge of the general assertion that no language can be translated without fundamental loss.” 48 Versos 45-46 de “Eurydice”. Discutido no item 5.24 deste trabalho.

65 nas posições adotadas diante de cada poema, cujas particularidades serão discutidas com maior profundidade na próxima parte do texto, a partir da percepção do(a) tradutor(a) de poesia como um(a) escritor(a) de poesia nesse específico da relação da tradução. “A Esposa do Mundo” nasce do desejo do tradutor por uma imersão crítica na obra da escritora, bem como sua introdução de forma mais ampla no sistema literário brasileiro e da literatura em língua portuguesa. Argumentando-se em favor da tradução fundar-se por um movimento de leitura aprofundada e contextualizada dos poemas e do próprio livro The World’s Wife, realizada de modo crítico e autocrítico, e sujeita às particularidades de quem traduz, não se pode, desta forma, separar do processo tradutório sua dimensão enquanto estudo da produção de uma escritora de língua estrangeira; preferiu-se, por esse motivo, orientá-lo em sentido centrípeto (BRITTO, 2012, p. 35), ou seja, buscando uma aproximação entre texto traduzido e poema de origem em vez de um afastamento. Nesse sentido, há a implicação de uma dimensão ética na opção por este caminho, ainda que ela possa ser, em âmbito geral, questão presente no fazer da tradução, mas que toma relevância ao se refletir sobre a tentativa de levar adiante uma obra de forte tônica feminista, revestida de questões políticas como a representação feminina e a reescrita de um cânone que se constitui, majoritariamente, da escrita de homens brancos e heterossexuais. Em The World’s Wife, o que está em jogo não se trata de pensar uma literatura “feminina”, como se houvesse nela algum tipo de essência passível de ser capturada, mas sim a representação de vozes de mulheres que discorrem sobre experiências de mulheres. Criatura marcada como sou pelas categorias sociais que ora ocupo, busco construir essa tradução em direção centrípeta porque, em seu fazer, tenho de me tornar verdadeiramente um fingidor, como sintetiza Augusto de Campos (2009), para transcorrer mais uma vez a configuração daquela criação literária que se debruça sobre experiências que só posso acessar de forma externa à mim. Entende-se que essa dimensão ética decorre da própria voz poética de Carol Ann Duffy, comprometida como está em retratar e condenar os modos de representação dos sujeitos marginais, compelindo- me à uma postura marcada principalmente pela escuta e pelo não- apagamento do ser de um Outro – uma Outra, nesse caso – interdito a mim enquanto homem. Entretanto, ao inscrever-me no texto enquanto tradutor e como indivíduo pelo que é do ato tradutório em si, de modo análogo à escrita da poeta, sou motivado por certa “verdade emocional” (DUFFY:WOOD, 2005), ecos de minha própria experiência afetiva 66 homossexual que podem ser ouvidos nos poemas do livro e que permitem minha inserção. Converso com o poema através de uma experiência compartilhada entre nós, aquela do amor por um alguém masculino. Essa relação é significativa porque às vozes dos sujeitos ausentes das narrativas hegemônicas trazidas à baila por Duffy somo mais outra, a minha, tanto por ser fator de condicionamento da leitura que empreendo do texto como pelo particular de ser agente no e do texto, que também me liberta. Ao abordarem-se os processos de construção da materialidade do significante poético empregados pela escritora, com vistas à identificação dos dispositivos de engendramento textual tramados no poema que direcionariam a tarefa de traduzi-los, considerou-se a dimensão sonora como uma das especificidades caracterizadoras desse texto. Embora a métrica tenda a variar com bastante frequência, ainda que manifeste certa regularidade principalmente na disposição das tônicas e, em diversas instâncias, subvertida pelo deslocamento inesperado, a marca maior de The World’s Wife parece-me depender menos dela e mais dos encadeamentos de rimas e repetição de sons, priorizando-se então a recriação desse aspecto na tradução. Em se tratando do conjunto de dispositivos linguísticos distintos do idioma inglês e do idioma português, eles não estão ligados por uma lógica de equivalência, pelo específico de uma relação enquanto códigos “iguais” de se olhar o mundo, e o trabalho de quem traduz é atribuir sentido e gerar correspondências, se afirma o caráter pessoal da tradução, recortado por minhas possibilidades enquanto tradutor-leitor-sujeito. Considero-me mais forte com linguagem coloquial, com imagens e, agora treinado na práxis de traduzir Duffy, também com a reconstrução da cadeia sonora, e menos proficiente com metrificação regular. Assim, ainda que se preste atenção ao encadeamento das tônicas e procure-se, em alguma medida, representá-lo no texto traduzido, já que é fator constitutivo do ritmo do poema – tenta-se manter, mais frouxamente, a quantidade de acentos por verso e uma disposição análoga – mas condicionado por aquela ferramenta do tradutor que mostrou-se de maior valia: meu próprio ouvido. Numa resposta gerada da minha sensibilidade frente ao poema – e sustentada em razão da opção que Carol Ann faz pelo monólogo dramático, onde uma personagem poética dirige-se a uma audiência –, a realização dele pela declamação em voz alta é percebida como dimensão imperativa para sua leitura e de consequente primazia no fazer da tradução. Da contemplação dos efeitos concretos produzidos no ato de “falar” aquelas criações poéticas, aferiu-se como necessária a construção do texto traduzido como representação de uma fala contínua,

67 menos estruturada por sua espontaneidade, por sua vez emulada em um construto literário dessa enunciação. Artifício, a serviço da cadência e da fluidez do texto literário; ancorado na percepção do poema como força autônoma, cujo propósito último é ser a si mesmo, realizado de maneira também independente no poema traduzido; marcado, nesse caso, pelo efeito de vai-e-vem dos sons replicados, reconfigurado na interpretação que supõe sua expressão em outra língua e outra cultura que não a sua anterior. Acho que cabe falar, então, da tradução de The World’s Wife e sua consolidação na forma de A Esposa do Mundo como tratando de recriar os poemas em português como um discurso formalmente delimitado, como uma maneira de dizer do/o livro, a partir de uma reverberação, especializada no âmbito da minha formação nos Estudos da Tradução, mas também afetiva e sujeita à mim enquanto indivíduo, não enquanto operador mecânico, vinda da particularidade da minha sensibilidade e do meu apreço pelo quê esse livro faz. Ao ser encarado como manifestação do potencial do texto, não como limitação do texto traduzido, o texto de partida é uma abertura em leitura e uma leitura em aberto da sua letra; a tradução, que lhe expande valores, constrói relações e dissolve limites, é uma produção de significado sobre essa possibilidade. Assim, ainda que aconteçam “perdas” objetivas de acordo com uma certa abordagem, na tradução há um movimento que poderia ser entendido como compensatório na soma da experiência literária sobre uma experiência literária do tradutor a esta segunda. Outra dimensão característica desse discurso encarnado pelas personae mobilizadas pela autora é o próprio tom com que o proferem. A nível vocabular, utilizar palavras corriqueiras e simples de forma complicada é uma questão da dicção de Duffy; como eu, num idioma como o português, posso responder a ela, se pretendo reconstruir um percurso poético de outra pessoa, outra língua, outra cultura, de acordo com os parâmetros que ele mesmo bota à mesa? Pese-se que entre as distinções de um idioma como a língua inglesa em relação ao português estão um repertório bastante extenso de palavras monossilábicas a que a escritora é afeita – a métrica do poema é a primeira a ser bagunçada quando vertemos esse texto, uma das razões do descolamento desse aspecto nas minhas traduções –; uma gramática mais enxuta e que possibilita grau maior de flexibilização das categorias sintáticas – Carol Ann jamais negligencia o efeito disso, principalmente ao estabelecer seus padrões de rima, aliteração, assonância, consonância –; um sistema próprio de contagem silábica na poesia, e formas poéticas tradicionais nos 68 contextos do idioma que não se consolidaram aqui (e vice-versa) – exploradas pela autora; modos de dizer e expressar o mundo e a existência que são só seus. Levando-se ainda em conta que na poesia não se poderia separar forma e conteúdo (LUCCHESI, 2017; PAZ, 2012), a solução encontrada, no que diz do vocabulário simples de maneira complicada, foi mesclar palavras de registro mais coloquial com outras, de registros mais eruditos, ao longo do desenvolvimento da tradução, sem vinculá-lo tão profundamente a esses segundos a ponto de descaracterizar o convite ao texto por meio de uma suposta facilidade que é caro à obra de Duffy. Procurou-se, a partir da investigação aprofundada do que cada uma das personae revela de si no poema que lhe circunscreve, afunilar os modos coerentes de lhes expressar em português. Por vezes, decisões tradutórias a esse respeito foram tomadas com base na percepção do ouvido, avaliando-se a sonoridade, ou a manutenção de algum esquema formal colocado pela poeta; noutras, deu-se primazia ao sentido global construído pelo texto, ou no verso; julgando de acordo com as necessidades e desafios apresentados por cada um dos poemas, a reação instintiva, quase sensorial, a algum conceito ou efeito compreendido como poético evocado por certa palavra foi sentido como cabível e responsável por fazê-la presente. O capítulo de comentários específicos da tradução discorre sobre essas instancias, parte da dimensão dela como movimento de criação de um poema em português de modo que ele venha a funcionar como tal, por conta própria. Marcas culturais que estabelecem o contexto (setting) do poema – exemplos incluem variedades de tecido e itens de vestuário, nomes de veículos jornalísticos reconhecidos, referencias geográficos –, de modo geral, permaneceram na tradução, já que a ideia não é a de assimilação do conteúdo do texto em inglês, mas sim a produção de uma diferença enriquecedora em múltiplos níveis. Expressões culturais relativas à experiência humana – citam-se os provérbios –, em contrapartida, tenderam à uma adaptação maior à cultura receptora, no que refere ao potencial da poesia em exprimir o específico de um povo de modo particular em cada língua.

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4. A ESPOSA DO MUNDO

4.1. CHAPEUZINHO VERMELHO

[...]

De pé numa clareira, com voz alta a declamar no seu lupino rosnar, um livro na pata peluda, manchas de vinho na mandíbula barbuda. Que orelhas grandes ele tinha! Que olhões! Que dentes! Nesse ínterim me assegurei de que ele olhasse para mim, dezesseis aninhos, órfã, querubim, e me pagasse um drink, meu primeiro. Podem perguntar por quê. Eu digo. Poesia. O lobo, eu sabia, me guiaria até o fundo da floresta, longe de casa, para um lugar tortuoso, escuro, espinhoso iluminado por olhos de coruja. Me arrastei na sua esteira, meias em farrapos, retalhos de vermelho do meu blazer presos em ramo e galho, provas do crime. Perdi os dois sapatos mas cheguei lá, a toca do lobo, melhor me cuidar. Lição primeira, hálito de lobo na minha orelha, era o poema de amor.

[...] 70

4.2. TÉTIS

Primeiro encolhi ao tamanho duma ave pequenina numa palma masculina. Suave, suave era a cançãozinha que eu assobiava, até sentir a mão dele me apertar.

[...]

Saí então às compras de um molde eficiente. Esguio, sinuoso. Serpente. Um erro, somente. Enroscada no colo do encantador, senti o aperto do seu toque estrangulador na minha nuca.

[...]

Daí minha língua virou chama e meus beijos queimavam, mas o noivo vestia amianto. Então isso me ensinou, me mudou, do avesso me virou – ou foi assim que pareceu quando a criança rebentou.

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4.3. RAINHA HERODES

Gelo nas árvores. Três Rainhas às portas do Palácio, em trajes de pele, com sotaques; suas bestas de carga suadas, arfantes com o peso da longa jornada, guiadas em bando até os estábulos; confiantes, corteses; ah, e com presentes para o Rei e a Rainha daqui – eu e Herodes – em troca de banhos de espuma, camas de dossel, frutas, as melhores carnes e vinhos, música, dançarinos, papo – e do jeito como aconteceu, com todos cochilando, menos eu, aquele vívido trio – até a amarga manhã.

[...]

O rapaz perfeito para dilacerar seu peito, um Príncipe molenga para lhe tirar o nome e dar um aro vazio, um nada, uma aliança dourada. Chamei o Chefe de Gabinete, homem das montanhas, cicatriz na cara, como um tique em vermelho contra o seu esgar. Leve homens e cavalos, adagas, espadas, machados. Cavalgue para o Leste e mate cada um dos meninos. Vá. Não poupe nenhum.

[...]

Fazemos nosso melhor, nós Rainhas, nós mães, mães de Rainhas.

Vadeamos sangue 72 pelas filhas adormecidas. Temos adagas no olhar.

Por trás das canções de ninar, os cascos de terríveis cavalos são tambor e trovão.

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4.4. SRA MIDAS

Era fim de setembro. Peguei uma taça de vinho, comecei a desopilar, fervi a água dos legumes. A cozinha cheirava como devia, serena, seu bafo fumacento escaldando gentilmente as janelas. Abri uma delas e enxuguei o vidro da outra, feito testa, com os dedos. Ele estava debaixo da pereira partindo um galho.

[...] ele tinha feito um pedido. Veja, todos temos desejos, concedido. Mas quem tem o desejo concedido? Ele. Você conhece o ouro? Não alimenta ninguém; áureo, liso, imaculável; não acalma sede alguma. Ele tentou acender um cigarro; eu assisti, arrebatada, a chama azul que brincava na haste amarelada. Enfim, eu disse, você vai conseguir parar de fumar de vez.

[...]

Você sabia quando estava perto. Truta dourada na grama. Na árvore uma lebre, suspensa num arame, um perfeito limão errado. E depois as pegadas dele, brilhando, na beirada do lago. Ele estava magro, delirante; ouvia, ele disse, a música de Pã emanando do bosque. Ouça. Essa foi a gota d’água.

[...] 74

4.5. de SRA TIRÉSIAS

O que sei é isso: ele foi caminhar um homem e voltou para casa mulher.

Saiu pelo portão de trás com sua vara, o cachorro; vestindo a calça de jardinagem, uma camisa aberta e um casaco de tweed Harris que eu mesma remendara nos cotovelos.

[...]

Os olhos eram os mesmos. Mas no chocante decote da camisa havia peitos. Quando ele disse meu nome na sua voz de mulher eu desmaiei.

*

A vida tem que continuar.

[...]

Aí a menstruação dele desceu.

Uma semana de cama. Dois médicos consultando. Três analgésicos quatro vezes ao dia.

[...]

Depois da separação vi ele deitar e rolar, entrando em restaurantes chiques nos braços de homens poderosos – apesar de saber também de que não iria rolar nada daquilo se dependesse dele –

75

[...]

E essa é minha amante, eu disse, na vez que nos encontramos em um baile cintilante debaixo das luzes, entre o tinir de copos, e vi como ele encarou seus olhos lilases o fogo da pele dela a lenta carícia da mão na minha nuca; e o vi imaginar a mordida, a mordida dela na fruta dos meus lábios e ouvir meu grito noturno rubro e úmido enquanto ela apertava a sua mão dizendo Muito prazer; e percebi então as mãos dele, as mãos dela, o choque dos anéis faiscantes e das unhas pintadas.

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4.6. A ESPOSA DE PILATOS

[...]

Eu queria Roma, casa, outra pessoa. Quando o Nazareno entrou em Jerusalém, escapulimos a aia e eu, enfastiadas, furtivas, para junto da multidão ensandecida. Tropecei, segurei nas rédeas de um jegue, me ergui e lá estava ele. Seu rosto? Feio. Talentoso. Ele olhou para mim. Digo que olhou para mim. Meu Deus. Seus olhos eram de morrer. Então ele se foi, [...]

A multidão gritava por Barrabás. Pilatos me viu, desviou o olhar, arregaçou com cuidado as mangas e lavou lentamente as mãos inúteis e perfumadas. Eles agarraram o profeta por fim e o arrastaram, até o Lugar das Caveiras. Minha aia sabe do resto. Ele era Deus? Claro que não. Pilatos acreditou que sim.

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4.7. SRA ESOPO

Por Deus, ele era pior que o Purgatório. Era baixo, sem se destacar. Então tentava impressionar. Homens mortos, Sra Esopo, ele dizia, não contam histórias. Bom, conto agora que o pássaro da mão cagou na sua camisa, esqueça os dois que valiam menos voando. Enfadonho.

[...] eu mal me aguentava acordada enquanto a história vagava em direção à sua moral. As ações, Sra E., falam mais alto que as palavras. E tem isso também, o sexo era diabólico. Lhe contei uma fábula certa noite sobre o pintinho que não piava e um machado afiado de coração mais negro que o corvo a falar do urubu. Corto seu rabinho, pode apostar, eu disse, e salvo minha reputação. Essa fez ele se calar. Eu ri por último, melhor.

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4.8. SRA DARWIN

7 Abril 1848.

Fomos ao Zoológico. Eu disse a Ele – A semelhança entre você e o Chimpanzé é algo óbvio.

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4.9. SRA SÍSIFO

Lá vai ele rolando a pedra morro acima, o estrupício. Digo pedra – mas é grande como uma catedral. Quando ele começou, não era todo esse suplício, mas agora o assunto me revolta, e ele, o tremendo boçal.

[...]

Mas à noite, só no meu colchão, me sinto como a esposa de Noé enquanto ele martelava na embarcação; como Frau Johann Sebastian Bach. Minha voz se reduz a um grasnido, meu sorriso a uma feia torção; enquanto isso, na bruma crescente do precipício, dando cem por cento de si e mais ele segue a trabalhar. 80

4.10. SRA FAUSTO

Começo do começo – casei-me com Fausto. Começou na faculdade, transando e tretando, reatando e noivando, quitando nossa hipoteca, florescendo na academia, Mestrado. PhD. Sem descendentes. Dois roupões bordados. Ela. Ele.

[...]

Aprendi a amar não aquela vida, mas o modo de viver. Ele, a amar os louros da conquista no lugar da mulher. [...]

Ele queria mais. Era inverno e eu cheguei tarde certa noite, ainda sem jantar. Fausto recebia alguém no gabinete do segundo andar. Farejei fumo de charuto, infernal, algo sexy, não permitido. Ouvi Fausto e o outro numa crise de riso.

Em seguida, o mundo, como Fausto dizia, abriu as pernas. [...]

Enquanto isso, eu segui minha doce jornada, visitei a Itália, fiei ouro de palha, fiz um facelift,

81 dei uma turbinada nos peitos, firmei as nádegas; fui à China, Tailândia, África, regressei, iluminada.

[...]

Que seja. O testamento dele deixou tudinho – o iate, as várias casas, o heliporto, o jatinho, o espólio, et cet, et cet, a maior parte – para mim.

C’est la vie. Quando adoeci, foi uma dor dos diabos. [...] Ainda guardo o segredo de Fausto – o pulha miserável, o canalha espertalhão não tinha alma para vender.

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4.11. DALILA

Ensina-me, ele disse – deitado ao meu lado – como cuidar. Lhe dei uma mordidinha na orelha. O que quer dizer? Explique melhor. Ele se sentou e pegou a cerveja.

[...]

Então quando o senti relaxar e adormecer, quando ele começou, como sempre, a roncar, deixei ele deslizar e escorregar e se estatelar, belo e enorme, no assoalho. E antes de pegar e afiar minha tesoura – testando-a primeiro contra o negro e bíblico ar – tranquei a porta com o ferrolho.

Estes foram o jeito, o lugar e o motivo.

Então, com deliberadas e apaixonadas mãos cortei cada mecha do seu cabelo comprido.

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4.12. ANNE HATHAWAY

‘Item I gyve unto my wief my second best bed...’ “Deixo para minha esposa minha segunda melhor cama...” (do testamento de Shakespeare)

O leito no nosso amor era um mundo em rotação, floresta, castelo, luz de velas, penhasco, mares onde ele caçava minha pérola. As palavras dele, estrelas que despencaram na terra como os beijos nos meus lábios; meu corpo então rimava suave contra o dele, depois um eco, assonância; seu toque o verbo que dança no centro de um pronome. [...] Na outra cama, a melhor, as visitas cochilavam em pingos de prosa. Meu risonho e vivo amor – meu bico-de-viúva come sua lembrança com paixão como ele fazia comigo no segundo melhor colchão.

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4.13. QUEEN KONG

Me lembro de espiar pela janela do arranha-céu e observá-lo cochilar. Meu homenzinho. Estava em Manhattan tinha uma semana, fazia meus planos; fiquei em 2 hotéis calmos no Village, onde eram acostumados com estranhos e quase os deixavam em paz. Até hoje continuo gostando de pão com pastrami.

[...]

Êxtase. Mas quando terminou o filme premiado, ele fez as malas; percorreu inteira minha linha do coração, imitando o voo de volta para casa, Nova York. Grande ave de metal. Não sabia que eu podia abater aviões no ar como mosquitos? Mas o deixei ir, o meu homem. Eu o assisti voar para o sol enquanto batia no meu peito distraído.

[...]

Então me vi navegar Hudson acima em junho, era noite, Nova York uma floresta de concreto acesa assolando no horizonte; e senti, saudosa e vasta, o primeiro clarão de esperança em semanas. Fui discreta, perambulei as ruas na escuridão, esmagando meu rosto apaixonado contra mil janelas, todas com seu show particular mostrando tédio ou dor, drama, remorso, amparo.

[...]

Quando ele morreu, lhe dei o abraço de adeus, lhe ninei feito boneca, lambendo seu rosto, seu peito, as solas do pé, o bastãozinho. Mas aí, pesarosa como estava, me pus a trabalhar. Ele teria gostado. Agora eu o carrego no pescoço, perfeito e preservado, com olhos de esmeralda. Homem nenhum foi mais querido. Eu sei que às vezes, na sua morte silente, contra o sopro dos pulmões massivos, ele ouve o meu rugido.

85

4.14. SRA QUASÍMODO

Eu os amara com fervor desde criança. Com o bronze das generosas goelas gargarejando um canto lento, eu me acalmava – defeituosa como era, excluída pela vila, coxa, torta, leporina; eu suportava, apesar de tudo, era doce, boa com a agulha; um feio clichê no campo esfregando as pernas gordas queimadas de urtiga e ouvindo os sinos frios da missa da noite. Acreditava até que eles faziam chover.

[...] Foi perto do Natal. Assim que eles se foram, ele me fodeu sob sinos chocados e boquiabertos até ouvir meu choro.

O matrimônio. Ele tocou um epitalâmio para mim, gravado no ar fragrante. Notas longas e sensuais, exuberantes harmonias, escalas lentas percorrendo os sinos menores, o toque das Ave-Marias.

[...].

Como terminou? Uma escada. Ferramentas. Firmeza na mão. E uma noite inteira lá no alto, fixada em retribuição. Ele dera apelidos a todos. [...] Os sinos. Os sinos. Deixei todos mudos. Chega de arpejos e escalas, de stretti, trinados nos casamentos, batizados, dias felizes, ocasiões especiais. Chega de treinos para os sineiros 86 em noites manchadas de outono. [...]

Segura, serra, solta. Eu queria o silêncio de volta.

Ouça bem:

Quando eu terminei e com as mãos ensanguentadas, agachei no meio da música assassinada dos sinos e dei uma mijada.

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4.15. MEDUSA

Uma suspeita, ciúme, incerteza cresceu em minha mente, tornando meus cabelos serpentes imundas, como se as ideias silvassem e cuspissem pelo escalpo.

[...]

Pois sinta terror. É você quem eu amo, Deus Grego, meu, perfeita criatura; mas sei que um dia irá trair e causar a minha agrura. Então melhor para mim se fores pedra dura.

Um relance à abelha zumbidora, um seixo cinza e gasto rolou pelo chão. Um relance à avezinha cantora, um punhado de cascalho encheu minha mão.

[...]

Olhe para mim agora. 88

4.16. A ESPOSA DO DIABO

1. SUJEIRA

O Diabo era um dos homens do trabalho. Diferente. Ele se achava. Olhava para as meninas do escritório como se fossem sujeira. Não flertava. Nada dizia. Era sarcástico e rude se o fazia. Eu o encarava, mascando chiclete, muda, insolente. Em casa, eu deitava na cama e ardia por ele.

[...]

2. MEDUSA

Voei em meus grilhões sobre o lugar onde enterramos a boneca. Sei que era eu quem estava lá. Sei que carreguei a pá. Sei que estava coberta de barro. Mas o exato quando, como ou onde não consigo lembrar.

[...] Uivei na minha masmorra. Como eu estava no inferno se o diabo se fora?

3. BÍBLIA

Eu disse Não eu não não poderia não faria. Não lembro não eu não estava na sala. Tragam a Bíblia sinceramente eu garanto juro. Eu nunca nem em um milhão de anos foi ele.

Eu disse Tragam um deputado um padre um vigário. Tragam a equipe de TV tragam um jornalista. Não lembro não estava na sala. Tragam um psicanalista cadê meu advogado tragam ele aqui.

[...]

4. NOITE

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Na longa noite quinquagenária, são estas palavras que saem das paredes: Sofra. Monstra. Queime no Inferno.

Quando a manhã chegar, direi o que é certo.

Amém.

5. APELAÇÃO

Se me apedrejassem até a morte Se no pescoço uma corda forte Se depilada me prendessem à Cadeira Se uma injeção Se a cabeça oxigenada na guilhotina Se minha mão esticada para a lâmina Se minha língua arrancada pela raiz Se de orelha a orelha a minha garganta Se um tiro uma marreta um machado Se vida dura a vida dura a vida dura a vida

[...]

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4.17. CIRCE

Gosto, ninfas e nereidas, diferente de muitos, do porco, do javali, de presas em riste, da tromba suína. De um jeito ou de outro, a vara toda foi minha – sob meus dedos, se eriçaram costas de couro salgado, nas narinas, o cheiro forte das colônias porcinas. Conheço leitões e cachaços, a percussão dos roncos guinchados, seus grunhidos. [...] Mas quero começar com uma receita de longe que leva a bochecha – e um bom deboche também. Duas bochechas de porco com a língua: separe numa bandeja, tempere com sal e pimenta. [...]

Bote orelhas suínas bem limpas para escaldar e tostar, jogue num recipiente, ferva, mantenha quente; raspe, sirva, guarneça com tomilho. Olhe bem para o lóbulo a ferver, essa orelha, terá alguma vez lhe ouvido, suas rimas e orações, as entoações da sua voz melodiosa e clara? [...] Claro, eu ainda era jovem. E desejosa de um homem. Agora, reguemos o porco no espeto com molho sem demora.

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4.18. SRA LÁZARO

Eu fizera o luto. Tinha chorado noite e dia pela perda, rasgado o véu de noiva por uma veste negra, lamentado aos gritos, arranhado a sepultura até as mãos sangrarem, vomitado seu nome de novo e de novo, morto, morto.

Fora para casa. Expurgara o lugar. Dormira sozinha, viúva, vazia como uma luva, branco fêmur na poeira, metade. [...]

Então ele se fora. Então virou linguagem, lenda; um professor me levava pelo braço – o choque daquela força de homem sob a manga do casaco –

[...]

Ele vivia. Horror lhe estampava a cara. Ouvi sua mãe numa cantiga demente. Respirei aquele fedor; meu marido num sudário apodrecido, desgrenhado e úmido do mascar frouxo do sepulcro, crocitando feito vítima do cuco, deserdado de seu tempo.

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4.19. A NOIVA DE PIGMALEÃO

Fria, eu era como neve, como marfim. Pensei Ele não vai pôr as mãos em mim, mas ele pôs.

[...] Suas palavras eram duras. Minhas orelhas eram escultura, surdas como conchas. Eu ouvia o mar. Afoguei seu som. O ouvi gritar.

[...] Meu coração era vidro, gelado. A voz dele era rouca, cascalho. Com ele era preto no branco.

Então mudei de itinerário, esquentei, como vela de cera, beijei meu adversário, [...] e no clímax gritei sem parar – pura interpretação.

E não o vi mais desde então. Simples assim.

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4.20. SRA RIP VAN WINKLE

[...]

Eu engordei e larguei a academia. Isso me fez bem.

[...]

Mas meu maior sucesso, que de longe superava o resto, foi dizer um nada saudoso adeus ao sexo.

Até o dia que cheguei em casa com um giz do Niágara e ele me esperava na cama chacoalhando Viagra. 94

4.21 SRA ÍCARO

Não sou a primeira ou a última a ver do morro vazio o homem com quem se casou provar para o mundo que é um grande, total, completo e absoluto imbecil.

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4.22. FRAU FREUD

Senhoras, a bem do debate, vamos dizer que vi meu quinhão de pingolim, membro e neca, de pistola e bingola e júnior e careca, de trolha, de instrumento, de lulu e de peru; na verdade, [...] músculo do amor, piroca, pau, pinto, caralho, caolho e pimpolho, tromba, giromba, o Bráulio, o bilau. Não me entendam mal, não tenho nada contra [...] senhoras, caras senhoras, o pênis médio – nada galante... envesga de inveja o olho solitário... causa um dó sufocante... 96

4.23. SALOMÉ

Já tinha feito dessas (e faria de novo, sem dúvida, mais dia, menos dia) despertado com uma cabeça no travesseiro ao lado – quem seria? – importava? Bonitão, decerto, um cabelo escuro, embaraçado; o ruivo da barba vários tons mais claro; [...] e uma linda boca carmesim que obviamente sabia como bajular... que eu beijei... Fria como gelo. Estranho. [...]

Nunca mais! Eu tinha de me endireitar, emagrecer, e parar de beber e de fumar e de foder. É. E nesse último caso era hora de expulsar o malandro, miserável ou mané que entrara feito cordeiro no matadouro da cama de Salomé.

[...]

97

4.24. EURÍDICE

Gurias, eu estava morta e enterrada, um espectro no Submundo, uma sombra do meu velho eu, nonada. Era o lugar onde a linguagem parava, [...] onde se pensa que uma moça estaria a salvo do tipo de cara que segue seu rastro escrevendo poemas, fica no encalço enquanto ela os lê, a chama de Sua Musa, [...] quando ouvi – baita sorte – um toc-toc-toc familiar nos portões da Morte.

[...]

Uma baboseira. (A digitação sobrou toda para mim, eu saberia.) E se meu tempo de novo fosse dado, garanto que prefiro falar por mim mesma a ser Querida, Amada, Branca Deusa, Mulher Misteriosa, etc., etc.

[...]

Mas os Deuses são como os editores, geralmente homens, [...]

Gostando ou não, devo voltar à vida que ele me deu – Eurídice, mulher de Orfeu – presa nas suas imagens, metáforas, símiles, quadras e sextilhas, dísticos, redondilhas, elegias, limericks e villanelles, histórias, mitos... 98

[...] O que foi que faltou, eu disse, para você ver que acabou? Eu estava mortinha da silva. Descansando em Paz. Passé. Falecida. Com a validade vencida...

[...]

Que mais? Notei que ele não tinha se barbeado. Acenei uma vez e sumi.

Os mortos são tão talentosos. Os vivos caminham à beira de um vasto lago perto do sábio silêncio afogado dos mortos.

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4.25. AS IRMÃS KRAY

Lá vem as gêmeas! gritavam os coroas quando a gente dava aquela esticadinha usando as becas da Savile Row, ajustadas e valorizando nossos para-choques, enormes [...] nosso lar, onde uma moça e seu duplo podiam saracotear; ou pegar uma carona na garupa dum possante, um Austin Princess, até um bar no West; pedir um bom frisante [...]

[...] ouvindo contos da Armada de Emmeline antes e depois da guerra de 14. Damas de diamante, elas eram, as feras que lutaram pelo Voto, sal desta terra. E talvez essa marca seja eterna, por conta da perda materna, falecida ao dar à luz o incomum par de nós. [...] Nós queríamos respeito independente do lugar, no trânsito e no bar, ou se murchássemos um pau duro com um simples esgar, breve ameaça na orelha peluda, ou uma boa joelhada. [...]

Mas aprendemos – e atingindo a maioridade nos instalamos na primeira das nossas boates, a Quebra-Nozes, ao largo da Evering Road. [...] Admitimos, em flagrante, que com os frutos do feminismo – certeza – ficamos ricas, famosas, temidas, amigas das estrelas. [...]

Lembre de nós no nosso pico e auge, vestidas para matar e gingando pela nossa boate, na batida da meia-noite, na vez em que Sinatra cantou para nós de graça. Sempre havia um certo auê quando chegávamos, parando numa mesa favorecida, dando um aceno ou sorriso, pagando uma birita, cedendo a brasa e até o ouvido. [...]

100

4.26. A GÊMEA DO ELVIS

Are you lonesome tonight? Do you miss me tonight?

“Elvis está vivo e é uma mulher” – Madonna

[..] A Madre Superiora vê eu requebrar como meu irmão e acha da hora.

[...] Uso um hábito simples, numa cor escura, um capuz de noviça com barra de renda, um rosário, chaves numa corrente, um par de bons e resistentes sapatos de suede azul.

[...]

Senhor meu Rei, estou viva e bem. Muito tempo que não ando pela Lonely Street até o Hotel Heartbreak.

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4.27. PAPISA JOANA

[...] e embalei o incensário aceso até cobras de fumaça azuis e verdes se enroscarem na barra das vestes

[...] que o mais perto que me senti do poder de Deus foi a sensação de uma mão erguer e empurrar o meu abdômen, erguer e empurrar o meu abdômen, enquanto meu bebê se arrastava do meio das minhas pernas onde eu estava, na estrada, no meu milagre, nem um pouquinho papa ou homem. 102

4.28. PENÉLOPE

Primeiro, eu contemplava a estrada contando vê-lo no caminho para casa por entre as oliveiras, assobiando para o cachorro que me deitara nos joelhos para chorar a sua ausência. [...] Separei pano e tesoura, agulha, linha comprida, pensando em me distrair, em vez disso achei o projeto de uma vida.

[...] e me perdi completamente num selvagem bordado de amor, luxúria, perda, aprendizado; depois o assisti navegar para o sol em seus frouxos fios dourados.

[...] Estava desfazendo o sorriso da mulher no centro daquele mundo, independente, absorta, contente, e não esperando, certamente, quando reconheci o som dos passos atrasados com nitidez. Lambi o meu fio vermelho e mirei com firmeza no buraco da agulha mais uma vez.

103

4.29. SRA FERA

Estes mitos que circulam, fábulas e lendas, vou contá-los direito; assim quando você fitar o meu rosto – o rosto de Helena, de Cleópatra, da Rainha de Sabá, Julieta – e depois olhar fundo nos meus olhos – de Nefertiti, da Mona Lisa, os olhos de Garbo – pense de novo. [...]

Mas a Fera se prostrou de joelhos à porta para beijar minha luva com lábios mestiços – bom – mostrou com as lágrimas dos olhos injetados que sabia da sua sorte – ótimo – não tentou esconder a ereção, como a de uma mula – melhor. E a Fera me assistiu abrir, decantar e tragar uma garrafa de Château Margaux 54, ano de minha graça, antes de erguer a pata.

Vou dizer mais. Despido dos seus veludos e das musselinas, ele fumegava em seu pelo, feio como o pecado. Ele tinha grunhidos, gemidos, ganidos, o bafo de um bode. Eu tinha as palavras, meninas. A senhora diz Faça isso. Mais forte. A senhora diz Faça aquilo. Mais rápido. A senhora diz Não era aí que eu queria. No final tudo fez sentido. O porco na minha cama fora convidado. [...] atirando os drinks ardentes no fundo das rubras gargantas. Meninas más. Senhoras sérias. Lamentando nossas mortas.

[...] E eu fazia uma oração – contando as pérolas, lágrimas de Maria, uma a uma, como a um rosário – palavras pelas perdidas, as belas e cativas, as esposas, as menos afortunadas que nós. A lua era espelho baço pelo hálito de uma Rainha. Meu bafo o lenço de seda de um fantasma elegante. Virei-me para entrar. Tragam a Fera e a chave da adega nesta noite de breu. Deixe que aquela a amar menos seja eu.

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4.30. DEMÉTER

Onde eu vivia – inverno e terra bruta. Me sentei na fria sala de pedra escolhendo palavras duras, granito, sílex para quebrar o gelo. Meu coração partido – eu tinha tentado, mas ele resvalou, cavo, pelo açude congelado.

[...] e o céu sorriu azul, bem na hora, abrindo a tímida boca de uma lua nova.

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5. COMENTÁRIOS DA TRADUÇÃO

Neste capítulo tecem-se considerações a respeito do processo tradutório dos poemas apresentados no capítulo anterior individualmente. Trata de (re)construir a análise poética desenvolvida para cada texto e sublinhar aspectos relevantes, a nível formal e temático, que tenham orientado suas traduções. Conforme discutido no item 2.3 do presente trabalho, a expressão inglesa “the world and his wife” possui um valor semântico que se integra ao título do volume e que não pode ser recuperado em português. Como alternativa, considerou-se a opção “Esposas do Mundo” como proposta de tradução ao título do volume, abarcando o conjunto de textos a partir do uso generalizante propiciado pela construção no plural. Entretanto, em função da natureza da representação construída por Duffy para as personae enquanto sujeitos centrais em suas próprias narrativas, a opção foi abandonada em favor da utilização mais específica de “A Esposa do Mundo”, que intenta ressaltar a individualidade de cada uma delas e reforçar a oposição generificada entre sujeito e objeto decorrente da frase, como mecanismo de compensação da referência mencionada.

5.1. CHAPEUZINHO VERMELHO (LITTLE RED-CAP)

“Little Red-Cap” talvez seja o poema de expressão autobiográfica mais pronunciada em The World’s Wife, em que a atualização da narrativa canônica acontece pela caracterização de Chapeuzinho Vermelho como a própria poeta, aludindo à sua relação com o escritor e pintor Adrian Henri. Como na versão recolhida da tradição oral pelos irmãos Grimm (DUNDES, 1989, p. 195), tematiza a transição dos tempos de infância à vida adulta e a perda da inocência; em oposição a ela, traz também a transformação da menina em poeta e coloca Chapeuzinho em uma posição de poder. O poema é composto em pentâmetros jâmbicos frouxos, organizados em sete estrofes de seis versos. Duffy emprega rimas principalmente internas, efeitos de assonância e aliteração e o enjambement para reforçar ritmicamente a ideia de progressão que permeia o texto. A reconstrução destes efeitos norteou a tradução para o português, com flexibilização da acentuação jâmbica. O “final da infância” (v. 1) é o ponto de partida da jornada contada pela persona, que aventura-se por um cenário suburbano – baseado em Stafford, cidade natal da escritora (DUFFY:WOOD, 2005) – em direção 106

à um arvoredo desconhecido que ela busca adentrar. A floresta pode ser entendida tanto com a vida adulta de Chapeuzinho como uma referência às visitas a Manchester que a escritora fazia na adolescência para assistir a performances de poesia, hipótese corroborada por seu encontro com o lobo em seu limiar (v. 6). O lobo de “Little Red-Cap” é um poeta mais velho, que desempenhará o papel de mentor ou de guia da jovem Chapeuzinho que deseja encontrar sua voz poética, como Henri tornou-se para Duffy. Embora Chapeuzinho caracterize a si mesma pelo uso da expressão coloquial “sweet sixteen and never been kissed”, que denotaria a inocência de uma jovem mulher, ela subverte seu sentido canônico imediatamente, ironizando-o: em vez de sucumbir aos encantos do lobo, os atributos da sua juventude são utilizados para chamar a atenção dele e fazê-lo pagar um drink, seu “primeiro” (v. 12-13), indicando também a primeira vez em que prova da vida adulta. Na tradução, a expressão foi recriada através do uso do diminutivo (“dezesseis aninhos”), e a suposta inocência da personagem é enfatizada pela comparação a um “querubim”, palavra inserida por sua rima com “mim” no verso anterior. Chapeuzinho parece atrair-se pelo lobo justamente por sua capacidade de levá-la para dentro da floresta e encerrar o ciclo em que está inserida. Ao seguir a esteira do lobo, suas roupas são deixadas para trás em frangalhos, acentuando a imagem do desejo sexual, e constituem “murder clues” (v. 18), “provas do crime”, evidências da morte da infância. Chapeuzinho parece ironizar os avisos que provavelmente recebeu ao longo de sua vida ao chegar na toca do lobo (“better beware”, v. 19), e a perda dos sapatos sugere que ela não pode escapar da decisão que tomou. A primeira lição aprendida do lobo é o “poema de amor” (v. 20), o ato sexual que dura até a manhã seguinte; ela lhe oferece um pombo branco, símbolo da sua pureza, que ele devora com satisfação (v. 24-25). Depois de escapar do abraço dele, Chapeuzinho encontra os livros do poeta, uma referência ao encontro com a tradição da poesia, que brilham como um tesouro. Sua primeira incursão na vida adulta foi motivada pela possibilidade deste encontro, como indicado anteriormente (v. 13). As palavras vivas e inquietas são “música e sangue” (v. 30): a música representa a beleza, e o sangue é a raiz da arte – o sentimento, a experiência, a dor e a alegria (DUFFY:WOOD, 2005). A relação com o lobo estende-se por dez anos, período similar ao que Duffy viveu com Henri, e constitui um processo de amadurecimento pelo qual as percepções de Chapeuzinho acerca da relação iniciada ao fim da infância alteram-se e ela incorre na descoberta de novas imagens poéticas (v. 31-34), bem como na percepção do esgotamento do

107 aprendizado com o lobo, encerrado em um mesmo discurso (v. 34-36). A persona toma posição ativa mais uma vez e encarna o lenhador que abre a barriga do lobo na narrativa tradicional. Ela o golpeia com o machado e descobre “os ossos da vovozinha” (v. 40) em seu âmago. A imagem enfatiza a canibalização realizada pelo cânone em relação às mulheres que The World’s Wife concentra-se em desmontar, e reforça o caráter de denúncia da dominação masculina na tradição poética. Liberta desta influência, Chapeuzinho emerge então do bosque carregando flores – as flores da poesia (DUFFY:WOOD, 2005) –, uma figura que será ecoada no poema final do volume (“Demeter”), e sozinha, reafirmando-se como poeta completa em seu próprio direito.

5.2. TÉTIS (THETIS)

“Thetis” propõe a revisão de uma narrativa clássica retirada das Metamorfoses de Ovídio. De acordo com uma profecia, o filho da nereida (ninfa do mar) Tétis teria poder maior que o de seu próprio pai, e para assegurar-se de que a criança viesse de linhagem mortal, os deuses arranjam sua união com o mortal Peleu. Devido à recusa de Tétis, Peleu teve de capturá-la e subjugá-la para conseguir consumar o casamento, impedindo-a de escapar mudando de forma. Ele a amarra enquanto dorme, ao que ela cede; dessa união viria a nascer o guerreiro Aquiles. Tétis, como as personae dos demais poemas em The World’s Wife, subverte a narrativa canônica ao falar em primeira pessoa, reclamando para si o direito de representar-se. Tematiza as mudanças pelas quais os seres humanos passam ao longo da vida em sua procura pela forma conveniente (na tradução, “molde eficiente”, v. 13) para o amor (DUFFY:WOOD, 2005). A perseguição de Peleu pode ser interpretada como as investidas frequentes de um amante indesejado, ou como conflitos que surgem dentro de um relacionamento. Elas apresentam um componente de perigo: a mão dele a aperta (v. 6), seu toque a estrangula (v. 18), e Tétis se vê novamente encurralada a cada nova forma que toma, sua resistência vencida pelo cansaço. Ao mesmo tempo em que denuncia a dominação masculina, reafirma as mulheres como seres adaptáveis. A transformação mais profunda da nereida dá-se não para escapar de um homem, mas a partir da experiência da maternidade no final do poema, uma que lhe ensina e lhe vira do avesso (v. 46-48). Uma visão positiva e libertadora do ser mãe perpassa a produção de Duffy. 108

Refletindo a natureza mutável de Tétis, o poema é composto de oito estrofes de seis versos com metrificação livre em que pesam os efeitos sonoros, condicionados pelas transformações da personagem: quando serpente, surgem os sons sibilantes (v. 13-15); os sons de [r] e [aw] ecoam o rugido da leoa (v. 19-22); sons de [l] acompanham as criaturas marinhas (v. 25-30); quando torna-se ar, manifestam-se sons aspirados e fricativas (v. 37-39). A tradução buscou recriar estes efeitos utilizando uma lógica similar àquela identificada no texto em inglês. Ênfase maior foi dedicada a efeitos como a consonância (“meus passos pesados” ecoa “50 lb [pound] paw”, v. 19; “o homem de arma na mão. Doze mm” restaura os efeitos de “the guy in the grass with the gun” pelo emprego dos sons de [m], v. 24) e às rimas que se proliferam internamente ou em fim de verso (por exemplo, “atravessei o celeste domo. / Como?”, v. 9-10). Estes elementos em que a tradução concentra seus esforços procuram gerar um poema de ritmos variados e efeitos sonoros múltiplo em língua portuguesa, em que pensar o poema declamado, realizado pela voz, constituiu uma estratégia proveitosa. Um exemplo de relação que não conseguiu-se recriar na tradução está na segunda estrofe (v. 8-12), entre “cross [of an albatross]”, cruz [do albatroz], e “crossbow’s eye”, olho da balesta (ou besta, palavra evitada por suas outras acepções, que designa a arma que aparece personificada), uma relação própria da língua inglesa. Por vezes, rimas ricas tiveram de ser recriadas na forma de rimas pobres para privilegiar a estrutura3 criada por Duffy – e pela facilidade do inglês em deslocar palavras para diferentes classes gramaticais. Há também a criação de algumas novas relações que não estão presentes no texto de origem, como uma inversão sintática no penúltimo verso do poema (“turned inside out”, “do avesso me virou”), escolhida para preservar a rima mas funcionando também em nível de sentido.

5.3. RAINHA HERODES (QUEEN HEROD)

O mote de “Queen Herod”, primeiro dos poemas de The World’s Wife a tomar como base uma narrativa bíblica, é a visita que os reis magos fazem a Herodes, o Grande, em seu caminho até o Cristo recém-nascido, e o subsequente Massacre dos Inocentes – o assassínio de todos os meninos com menos de dois anos de idade – ordenado pelo rei da Judeia que, ignorando a natureza espiritual do reino de Deus, passa a temer por seu próprio trono. Duffy utiliza a ideia chocante do infanticídio para

109 explorar os extremos a que uma mãe é capaz de chegar para proteger seus filhos do perigo; “Rainha Herodes”, portanto, segue com a tematização, característica da poeta, da maternidade iniciada no poema anterior (“Tétis”). Os noventa e oito versos estão divididos em nove estrofes de tamanhos variados e apresentam o forte uso de rimas internas e externas que é próprio da dicção da poeta, que buscou-se reconstituir na tradução para o português. Na versão aqui apresentada, os três reis magos são reimaginados como três Rainhas estrangeiras, “com sotaques” (v. 2) e viajando no dorso de camelos (v. 50), que vêm ter aos portões do palácio do casal Herodes. Uma delas se destaca por sua altura, outra tem as mãos pintadas de hena, e a terceira é uma mulher negra (v. 25-27); assim como eles levam presentes – ouro, incenso e mirra – para o Messias na narrativa tradicional, estas trazem presentes para a filha da rainha Herodes, dádivas – graça, força e felicidade –, o que entrelaça a narrativa bíblica àquela do conto de fadas da Bela Adormecida. Essa interpretação é reforçada quando a persona, no v. 13, evoca a imagem de um palácio inteiramente adormecido – excetuando-se ela e as três rainhas – como naquela história após a concretização do encanto do sono lançado sobre a princesa. Além dos presentes, as três Rainhas trazem um alerta, uma profecia, a respeito de uma estrela que surgirá no Leste: em vez de anunciar a chegada do salvador, ela anunciará o nascimento de um menino que acabará por roubar – e partir – o coração da filha da rainha Herodes (v. 31-39). Em certo sentido, os epítetos que compõe a lista das três Rainhas a respeito deste menino – marido, herói, amante, lobo, etc. – refletem os homens que aparecerão ao longo dos poemas de The World’s Wife, descritos com características afins e, em muitos casos, similarmente negativas. A rainha Herodes então promete proteger a pequena a todo custo, declarando que “homem nenhum [...] / jamais vai fazê-la chorar” (v. 46-47). A isso, segue-se o grito de um pavão, animal simbólico da deusa grega Hera, que rege a maternidade e as esposas. Reagindo ao perigo vaticinado pelo trio e o aviso que continua a assombrá-la após sua partida, a rainha Herodes por fim chama o chefe de gabinete – a inserção de um elemento moderno, neste caso um cargo relativo a instituições governamentais ou militares mais recentes, é um procedimento frequente para a atualização das narrativas em The World’s Wife – e dá a fatídica ordem para que os meninos sejam assassinados. Em um mundo onde a segurança e a integridade das mulheres estão ameaçadas pelos homens, a voz da rainha Herodes despe-se de qualquer compaixão por eles: não lhe interessa qual destes meninos está destinado 110 a causar a tristeza da sua filha; todos eles são igualmente culpados em seus olhos. “Spare not one”, “não poupe nenhum” (v. 77). A única solidariedade que pode ser encontrada no poema é aquela entre mulheres; certo viés de lesbianidade é identificável, até – note-se que a Rainha negra encara a persona com “luxúria insolente” (v. 30). Nas últimas estrofes do poema, a rainha Herodes contempla a abóbada celeste, vendo surgir a estrela azul que sinaliza a chegada do menino, enquanto suas ordens são levadas a cabo. Ela reafirma sua decisão e oferece uma justificativa: como mãe, por sua filha, fará o que for necessário, até mesmo atravessar um caminho sangrento – é do seu olhar, afinal, que partem as lâminas; suas cantigas de ninar têm como ruído de fundo o som ominoso dos cascos dos cavalos por ela enviados (v. 90-98). A imagem mais difícil de ser recriada em português foi a dos versos 22-24: “Silver and gold, / the loose change of herself, / glowed in the soft bowl of her face”. Há um brilho precioso sobre o rosto da criança, como moedas soltas (“loose change”) em uma tigela de esmolas (“bowl”), palavra que também evoca a forma redonda do rostinho da criança. Na tradução, como não se chegou a nenhum outro resultado satisfatório, optou-se pela criação de uma nova imagem: “Prata e ouro, / o tesouro de si mesma / era luz espalhada no rostinho redondo”. Usa-se o diminutivo como marca de afeição, e enfatiza-se a preciosidade pela comparação com o tesouro, tentando-se recuperar os efeitos sonoros do poema em inglês.

5.4. SRA MIDAS (MRS MIDAS)

“Mrs Midas” é um poema sobre um amor que fracassou e o processo de deixar um relacionamento para trás. Duffy comenta ser um texto tanto autobiográfico, abordando o homem de Chapeuzinho Vermelho de forma mais afetuosa (DUFFY:WOOD, 2005). Sua inspiração é o mito grego do rei Midas, que teve um desejo concedido pelo deus Dioniso e pediu para que seu toque passasse a transformar as coisas em ouro; a habilidade se revela um tiro pela culatra, já que até mesmo o vinho e a comida passam a se transfigurarem em suas mãos, até que Midas pede a Dioniso que retire o poder (GRIMAL, 1986, p. 274). A história da senhora Midas começa no final de setembro, mês em que se inicia o outono – estação em que as folhas das árvores começam a amarelar – no hemisfério norte. Este dado foi mantido no poema em português, ainda que no contexto brasileiro setembro sinalize o começo

111 da primavera, já que a intenção é produzir um texto marcado como pertencente à cultura anglófona. A persona está na cozinha de casa – cômodo que aparece personalizado, sereno e soltando um hálito fumacento (“relaxed”, “its steamy breath”, v. 3) –, relaxando com um copo de vinho e ocupando-se do jantar. Escolhe-se a expressão “desopilar” na tradução pela conotação coloquial de “unwind” (v. 2). É o fim de um dia ordinário, como indica a baixa visibilidade e a diminuição da claridade (v. 7-8), que será transformado pela descoberta da nova habilidade de Midas. Ele se encontra no pátio, quebrando o galho de uma árvore, que a senhora Midas identifica como dourado. A árvore em questão é uma pereira da variedade “Fondante d’Automne”, fruta de cor amarelada que amadurece no final do outono, que “acendeu na palma dele igual lâmpada” (v. 11), indicando que o toque de Midas confere à pera um certo brilho. A persona manifesta estranheza ao que está acontecendo, mas ainda não compreende; pergunta-se se Midas estará pendurando luzinhas na árvore. A estranheza se intensifica quando ele entra em casa: as maçanetas passam a reluzir e as cortinas, depois que ele as toca, a fazem lembrar-se do Campo do Pano de Ouro – encontro diplomático entre os reis da França e da Inglaterra em que os soberanos tentaram mostrar a riqueza e a opulência de suas cortes um para o outro, na época do Renascimento – e de “Miss Macready” – Duffy explica que esta seria a professora de História da senhora Midas (DUFFY:WOOD, 2005); para tornar este dado mais claro em português, a tradução optou pela substituição do pronome de tratamento “senhorita”, tradução mais corrente de “miss” pelo título de “professora”. Ela questiona “O quê pelo amor de Deus está acontecendo”, ao que Midas responde apenas com uma risada (v. 18). O jantar é servido – “corn on the cob”, milho na espiga; a tradução utiliza “milho na manteiga” para manter-se o efeito aliterativo (v. 19). Midas cospe os grãos na forma de “dentes dos ricos” (“teeth of the rich”, v. 20), como se fossem dentes de ouro. A inquietação da senhora Midas continua a crescer; é somente quando ele ergue seu copo de vinho como num brinde que ela chega ao limite e começa a gritar (v. 24-25). A aliteração em [g] entre os sons de “glass, goblet, golden chalice” é reconstruída pelos sons de [k] e [s] em “copo, taça, cálice dourado”. A quinta estrofe apresenta a reação da senhora Midas à história do marido: ela entorna a garrafa de vinho, tranca o gato no porão e troca o telefone de lugar, mas sugere jocosamente não ter se incomodado com o novo estado da privada. Ao fazer ele “manter as mãos para si” (v. 28), ela começa a assinalar a distância que o novo poder dele coloca entre os dois; 112 ao afirmar sua dificuldade em acreditar, começa a demonstrar a exasperação que a atitude do marido ao ter “feito um pedido” (v. 31) lhe causa. Em seguida, o poema em português busca recuperar o efeito de polissemia da palavra “granted” em “we all have wishes; granted. / But who has wishes granted?” com “todos temos desejos, concedido. / Mas quem tem o desejo concedido?” (v. 31-32). Ao listar as características do ouro, a persona enfatiza a falta de bom senso que motivou o desejo de Midas pelo toque mágico. Ela comenta, como quem tenta ver o lado positivo da situação, que isso pelo menos o fará largar o tabagismo; mas emenda, na sequência, que os dois passam a dormir em camas separadas. Ela agora teme o contato com o marido e revela uma nota de tristeza: eles ainda vivem os “dias de glória” (“halcyon days”, v. 40) do casamento; o lado físico da relação permanecia, e eles ainda despiam-se com a pressa de quem desembrulha um presente ou fast food (v. 40-41). A noite traz revelações à persona na forma de um sonho, onde ela engravida de Midas e o bebê é feito de ouro, como uma estátua. Assim, percebendo-se a irreversibilidade da situação e o declínio sofrido pela relação, Midas é forçado a deixar a casa e começar a viver, sozinho, num trailer que eles possuem na floresta que fica nos confins da cidade. O “trailer [...] no pântano isolado” pode ser relacionado ao “trailer do ermitão” que aparece no poema “Chapeuzinho Vermelho”. Ela o leva até lá na surdina, “sob o manto da escuridão” (“under cover of dark”, v. 51), sentado no banco traseiro do carro; retorna sozinha e reconhece-se como “a mulher que casou com o tolo / que queria ouro” (“the woman who married the fool / who wished for gold”, v. 52). No começo, ela ainda o visita, estacionando longe, como quem não quer mais ser vista junto dele. A nova vida de Midas deixa marcas nos arredores: pegadas douradas, um peixe de metal no chão, uma lebre pendurada numa árvore como um “perfeito limão errado” (“beautiful lemon mistake”, v. 57). Ele agora está magro, provavelmente pelas dificuldades em se alimentar provocadas por sua habilidade e, diferente do Midas do mito original, que tem seu poder levado embora pelas águas de uma fonte, o Midas de Carol Ann Duffy perde a sanidade. A menção a Pã, cuja música ele diz ouvir, alude ao séquito do deus Dioniso – que teria conferido o toque transformador ao rei grego. Na última estrofe, a senhora Midas torna explícito que sua maior reclamação em relação ao marido não é a ganância ou a estupidez que demonstrou quando teve a oportunidade de ter um desejo realizado, mas o egoísmo de pedir por algo que impossibilitaria a intimidade dos dois.

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Apesar de sua exasperação com o marido, e mesmo que haja um recomeço – ela vende as coisas da casa e muda-se; muito provavelmente ela agora possui uma pequena fortuna, já que ele as convertera em ouro – é ainda mais pungente sua tristeza: ela sente saudades das mãos quentes dele tocando sua pele (v. 61-66). Em “Mrs Midas”, poema de onze estrofes regulares – todas elas com seis versos – Duffy opera mais no nível das assonâncias e consonâncias, com poucas ocorrências de rimas em fim de verso, sendo favorecidas algumas rimas internas. Estes aspectos nortearam a tradução, às vezes com a inserção de palavras para manutenção do jogo sonoro, e gerando-se também diversas meias-rimas não intencionais que contribuem para o ritmo do poema em português.

5.5. DE SRA TIRÉSIAS (FROM MRS TIRESIAS)

Na versão mais famosa do mito grego, o jovem Tirésias encontra duas serpentes copulando em uma de suas caminhadas; não fica claro se ele as separa, machuca ou mata a fêmea, mas como resultado Tirésias transforma-se em mulher. Ao percorrer aquele caminho anos mais tarde, depara-se novamente com as serpentes e, intervindo da mesma forma, retorna ao seu antigo sexo. Como Tirésias possui a experiência de ser homem e mulher, é a ele que Zeus e Hera recorrem para resolver uma disputa a respeito de quem sente mais prazer no ato sexual, ao que o tebano responde ser a mulher. Hera, furiosa, cega-lhe; Zeus, agradecido, lhe dá o dom da profecia e o privilégio de viver por sete gerações humanas (GRIMAL, 1986, p. 439-440). O monólogo em verso livre de “from Mrs Tiresias”, composto de 93 versos em 21 estrofes, examina a transformação de Tirésias em mulher e seu impacto no casamento a partir da perspectiva de sua esposa. A separação do texto em quatro blocos demarcados por asteriscos, aliada ao emprego da preposição “from” (“de”) no seu título e ao uso intenso de enjambements, sugerem que o poema é constituído de fragmentos de um relato ainda mais extenso, talvez perdido pela ação do tempo. Essa interpretação reforça a leitura de The World’s Wife como projeto de reconstrução das experiências femininas que sobrevivem, se sobrevivem, em fragmentos dentro das narrativas hegemônicas. A tradução se concentrou, de modo geral, em reconstruir a linguagem coloquial, os efeitos sonoros e o conteúdo semântico do poema. O primeiro bloco de texto (estrofes 1-8) trata de estabelecer a 114 rotina do casamento e relatar a transformação. O Tirésias de Duffy é um homem britânico típico, inserido em um contexto suburbano ou rural, uma criatura de hábitos como vestir-se de tweed e escrever ao jornal para relatar a aparição dos cucos (é dito que Tirésias era capaz de interpretar a linguagem dos pássaros). A senhora Tirésias é uma mulher que revela seu afeto em pequenos atos, como o remendo do casaco, e que age com cumplicidade, ocultando dele ter ouvido o canto dos cucos dias antes para não lhe tirar o prazer (pouco profético) da descoberta. De modo oposto, é ela que parece ter o dom da profecia, pressentindo a transformação de Tirésias na forma de um calor súbito nos joelhos e ouvindo um som de trovão quando percebe a demora em seu retorno. E ainda assim, humilde, a senhora Tirésias admite saber o mesmo que a audiência a qual se dirige, nem mais, nem menos: Tirésias saiu de casa “a man” (v. 2), um homem, e retornou “female” (v. 3), fêmea/feminino (v. 3). Esta distinção entre gênero e sexo do poema em inglês foi reconstruída na tradução pela contraposição de “um homem” à construção sem artigo “mulher”, no que intenta ser um uso generalizante do termo. O vocabulário da senhora Tirésias é permeado de marcadores culturais, como “kecks” (termo usado em partes do Reino Unido para se referir a calças masculinas, v. 6), “Harris tweed” (v. 8; o tweed é um tecido de lã muito usado na região e a marca Harris só é produzida na Escócia, reforçando que Tirésias é um homem tradicional) e a menção ao jornal The Times, um dos mais influentes periódicos ingleses (v. 12). O poema traduzido busca uma aproximação com o texto de origem e optou pela manutenção destas expressões onde fosse possível no texto em português. A transformação de Tirésias é contemplada pela senhora Tirésias através do espelho; sua própria condição de mulher aparece refletida no marido. O corpo e a voz de Tirésias são femininos (v. 31-32; a aliteração entre “shocking” e “shirt” foi recriada pelo eco da terminação [-te] de “chocante decote”), mas seus olhos permaneceram inalterados. Esta provavelmente é a grande questão colocada em jogo por “from Mrs Tiresias”: o olhar que Tirésias lança ao mundo e à sua insólita transformação ainda é o de um homem, um outro tipo de cegueira distinta daquela do Tirésias do mito, e dele decorrem todos os obstáculos encontrados para adaptar-se à nova vida. A mudança parece ser externa, somente. Esta ideia será desenvolvida pela senhora Tirésias no bloco textual seguinte, que narra também o começo da deterioração do relacionamento. Ela é motivada por uma visão prática de que a vida deve continuar e seu amor pelo marido segue imperturbado mesmo em uma

115 relação lésbica. Tirésias, em oposição, resiste à mudança por não conseguir se libertar das convenções masculinas: demonstrações de afeto corriqueiras como um beijo viram motivo de confronto, e o casamento sofre porque ele é incapaz de percebê-lo fora do modelo heterossexual convencional. Aliterações em [t] (estrofe 10) e sibilantes (v. 42) foram reconstruídas no poema traduzido empregando-se principalmente o som de [s]. Ao viver a experiência da menstruação, a reação exagerada de Tirésias ao desconforto físico (e que acentua o ridículo da personagem) nasce de uma preocupação egoísta com seu próprio bem-estar e não por entender a vivência feminina deste ciclo natural. A tradução tenta recriar a proximidade sonora e ortográfica entre “later” e “letter” (v. 47-48) através da rima e dos sons de [t] entre “então” e “petição”. Duffy joga com o duplo sentido de “curse” (v. 54), tanto slang para “menstruação” como “maldição”, no momento em que Tirésias contempla a lua, símbolo associado ao ciclo menstrual. Essa dupla acepção está ausente no texto traduzido. O terceiro bloco de texto concentra-se no período que segue o divórcio. Tirésias, agora famoso ao nível de uma celebridade de televisão, exprimindo simpatia pelas mulheres por ser ele mesmo uma delas. Para a ex-mulher, é apenas uma encenação, já ele dirige-se à audiência com um sorriso “sedutor” e sua voz demonstra que sua transformação é incompleta por ter algo de forçado; mira numa voz de pêssego (a expressão “peachy voice” denota uma voz feminina doce) e acerta no caroço que arranha a lata de conserva. Tirésias permanece atado pelas limitações da identidade masculina, e sua feminilidade não permite uma dimensão sexual com os homens com os quais ele se encontra, homens de status social elevado. Talvez Tirésias use de seus atributos femininos para buscar o poder masculino que sua metamorfose lhe custou, ou ainda que Duffy denuncie o modo pelo qual a fala de um homem, por uma questão de poder social, costuma sobrepor-se à de uma mulher mesmo no que diz respeito à vivência delas. Tirésias só alcança ser uma caricatura de mulher. No segmento final, há o encontro entre os divorciados em um ambiente muito distinto daquele doméstico que ambos ocupavam no começo do poema, que parece ser um baile ou clube noturno (a escolha por “globo espelhado”, v. 78, busca manter a indefinição do espaço na tradução), e Tirésias é apresentado à nova companheira da ex-mulher. Devida à não-marcação de gênero nos substantivos em inglês, sua identidade feminina não é revelada de imediato; a senhora Tirésias a 116 apresenta como “lover”, palavra que denota intimidade e proximidade física. A tradução emprega “amante” para enfatizar o aspecto carnal da relação entre as duas. Enquanto ele permanece engessado em sua posição convencional, ela soube adaptar-se à mudança do marido e permitiu-se ir além, não se deixando reprimir pelos modelos tradicionais de relacionamento. O que parece ser um embate silencioso entre Tirésias e a nova namorada, caracterizado no choque entre unhas pintadas e anéis no aperto de mãos dos dois, permite à senhora Tirésias entreter a noção de que ele pode imaginá-las fazendo amor e, talvez, responda ao argumento do Tirésias canônico, que ao mediar a discordância entre Zeus e Hera afirma que o prazer do ato sexual é majoritariamente feminino (GRIMAL, ibid.). Imagens de prazer sexual em “from Mrs Tiresias” estão restritas ao contexto da relação lésbica, acentuando a sátira à masculinidade tradicional proposta pela obra. “Muito prazer”, tradução corrente para “How do you do” (v. 91), intensifica uma relação de ironia mais sutil no poema em inglês.

5.6. A ESPOSA DE PILATOS (PILATE’S WIFE)

A esposa de Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia a quem coube o julgamento de Jesus Cristo, é mencionada brevemente no texto bíblico; um único versículo (Mateus 27:19) relata que ela teria aconselhado que ele evitasse envolver-se na condenação do nazareno após um sonho que a desconcertara. Em “Pilate’s Wife”, Duffy lhe confere voz e permite que ela ofereça uma visão distinta dos eventos que cercaram a crucificação. Tradicionalmente, Pilatos teria lavado suas mãos em frente à multidão para eximir-se de qualquer responsabilidade quanto à morte de Cristo. De modo similar, mãos constituem a imagem mais importante de “A Esposa de Pilatos”. Numa leitura linear de The World’s Wife, pode-se pensar em uma recuperação da imagem que encerra “de Sra Tirésias”, poema imediatamente anterior, já no primeiro verso deste. Lá, no entanto, as mãos femininas são uma imagem de força e enfrentamento; aqui, a esposa de Pilatos vale-se das mãos dele para pintar um retrato ainda menos lisonjeiro de seu marido. São mãos repulsivas, de “toque pálido de mariposa” (v. 4), mais delicadas que as dela, e representam sua pouca força de caráter. Estar casada com Pôncio claramente desagrada à persona: ela deseja estar em “Roma, casa”, com “outra pessoa” (v. 5). Assim, quando

117

Cristo chega a Jerusalém – por ocasião do Domingo de Ramos – a esposa de Pilatos disfarça-se junto com sua aia e junta-se à multidão. Ela tropeça em meio à turba e apoia-se nas rédeas de um asno, obviamente aquele em cujo dorso está Jesus. Embora afirme não acreditar na natureza divina do nazareno ao final do poema (v. 24), a possibilidade de que ela acredite ao olhar nos olhos dele é explorada pela poeta na terceira estrofe, onde a construção “Meu Deus” é ambígua: interjeição ou vocativo? A esposa de Pilatos o considera talentoso – a palavra é frequentemente empregada por Duffy em seus poemas – e com olhos “de morrer”; a poeta explicita que tinha em mente o carisma de Cristo sobre seus seguidores (DUFFY:WOOD, 2005). Nos versos 13-16, a esposa de Pilatos fala sobre o sonho que supostamente teria tido na véspera do julgamento. De modo não muito surpreendente no contexto do volume, e dada a repulsão que a persona sente pelo marido, é um sonho de teor erótico, onde as mãos de Cristo lhe tocam. Descrevendo-as como pardas e de palmas rijas (“each tough palm”, v. 15) – as mãos de um carpinteiro –, ela estabelece uma contraposição às mãos “inúteis e perfumadas” de Herodes (v. 21). A masculinidade algo rústica do nazareno lhe faz despertar “suada, sexual, apavorada” (v. 16). O pavor provavelmente surge das imagens de dor e do sangue: o sonho tem uma natureza premonitória, indicando o evento da crucificação. Talvez seja seu desejo pelo nazareno que faz a persona enviar o bilhete a Pilatos, pedindo que deixe Cristo estar. Pilatos, no entanto, não tem fibra suficiente para salvá-lo: assim como no texto bíblico, ele lava suas mãos (v. 20-21). O ato de desviar o olhar da esposa indica provável vergonha, já que Pilatos acreditou na divindade de Jesus (v. 24); a esposa de Pilatos demonstra então ainda mais desprezo por ele. Formalmente, “A Esposa de Pilatos” é um poema que ancora-se em efeitos aliterativos, com poucas ocorrências de rima – estas, frequentemente internas. A tradução tentou reconstruir a quantidade de tônicas por verso – variando de quatro a sete – e também os efeitos de assonância e consonância.

5.7. SRA ESOPO (MRS AESOP)

O primeiro verso de “Sra Esopo” dá continuidade ao imaginário católico introduzido no poema anterior (“Pilate’s Wife”), na forma de uma imprecação emitida pela persona feminina para caracterizar seu 118 marido entediante. Imaginada por Duffy como a esposa do fabulista Esopo – figura canônica mas quase certamente lendária a quem atribui-se uma série de narrativas gregas antigas sobre animais, de tom moralizante –, ela vale-se do repertório das fábulas para descrever sua exasperação com a excessiva verve moralista dele e, finalmente, para emasculá-lo. Em certa leitura, o monólogo da senhora Esopo reverbera o jogo que The World’s Wife estabelece em relação às narrativas canônicas e suas figuras masculinas que o volume propõe-se a revisar. O monólogo composto com metrificação livre estrutura-se em cinco estrofes de cinco versos que apresentam, em média, entre três e cinco acentos cada. Como é característico da escritora, emprega efeitos de assonância, consonância e aliteração. No contexto do livro, o poema constitui um dos raros exemplos em que as rimas não desempenham papel de grande relevo em sua tessitura, restringindo-a a algumas poucas ocorrências internas. A tradução tenta acompanhar a cadência dos versos; para tal, realiza acomodações e simplificações de ordem sintática e semântica. A referência ao Purgatório (v. 1), lugar onde as almas daqueles que cometeram pecados leves terminam de purgar as faltas antes de prosseguirem para o Paraíso, foi mantida; já na reconstrução da interjeição “By Christ” evita-se uma referência religiosa mais estrita pela utilização da expressão mais corrente “por Deus”, que evoca uma ideia de juramento cabível no discurso coloquial da senhora Esopo. O eco entre “bore” e “Purgatory” é recuperado pelos sons em [r] e pela consonância em [p] de “piorar o Purgatório”. Estabelecido o tom de reclamação que atravessa o poema, Esopo é então descrito pela esposa como sendo “baixo, sem se destacar” (v. 1-2), que recupera o registro histórico de que ele teria sido um homem de baixa estatura e reforça o desgosto que ele provoca nela. Disto decorre que ele “tentava impressionar” contando histórias, talvez para colocar-se como um indivíduo erudito e filosófico, mas a moral da história é vazia na percepção da senhora Esopo. “Dead men tell no tales” (v. 2-3) não constitui uma referência específica a uma fábula; o emprego de uma expressão de uso popular da língua inglesa pode indicar que as narrativas dele se restringiam ao uso de clichês, uma prisão que em certo sentido também é imposta a ela por sua convivência com o marido. Conectando-se à ideia de “contar” (um conto), a persona apresenta uma versão sem enfeites dos acontecimentos: o “pássaro na mão” defecou na camisa de Esopo, um evento ordinário, nada mágico. A leitura sugerida é a de que nem sempre algo de que se tem posse seja coisa positiva em

119 comparação com o que não se tem – talvez, inclusive, seu marido. Em todas as ocasiões em que ele lhe dirige a palavra ao longo do poema, refere-se à ela pelo composto de uso formal “senhora Esopo”, que não indica particularmente a afeição como traço distintivo da relação dos dois. Na segunda estrofe a tradução brinca com a sibilância da construção “sair era um suplício” (v. 6) para caracterizar a rotina maçante que provavelmente é viver com esse Esopo poético. Aqui Duffy recupera algumas narrativas atribuídas ao fabulista. A tradução não teve êxito em recriar a rima entre as palavras “shy” (v. 7), “sly” e “sky” (v. 8), e procura compensá-la pela inserção de efeitos de consonância em [t], [c] e [v]. A possibilidade de rimar “verão” (v. 9) com “leão” no verso final foi evitada pela manutenção da construção no plural, “leões”, uma quase rima que cabe no contexto da dicção da escritora, que realiza este tipo de procedimento sonoro com frequência. No terceiro quinteto Duffy retoma a história da lebre e da tartaruga. Esopo, possivelmente colhendo material para sua próxima fábula, destaca a determinação como fator de sucesso, ainda que lento. A senhora Esopo, em contrapartida, só consegue enxergar o réptil como “mascote de alguém” (v.13) e imagem representativa do tédio vivido por ela no casamento, revelando uma visão cínica da vida. O poema traduzido usa “jabuti”, tradução literalizante de “tortoise” (v. 13) para manter a concisão do verso, e recupera a reverberação entre “apalling” e “evening” (v. 11) pela sonoridade similar de “absurdo” e “noturno”. Na estrofe seguinte, as indagações da persona assumem a forma de uma lista, outro procedimento comum na poesia de Carol Ann Duffy, como um eco irônico das conclusões moralizantes e enfadonhas derivadas por seu marido. Ela destaca que estas dizem respeito à história em si, apontando sua reduzida relevância no âmbito das experiências da vida e enfatizando-as como forma de afirmação de um homem desinteressante. Contrapõe à elas a ideia de Esopo de que “ações falam mais alto que as palavras”, uma moral à qual ele não consegue se circunscrever: além do falatório infindável, a senhora Esopo também sofre com o baixo desempenho sexual do marido. “O sexo / era diabólico” (v. 20-21); na tradução mantém-se o enjambement que conecta as duas estrofes finais e o efeito de quebra por alongamento do ritmo do poema que percebe-se no uso do termo em inglês. Na estrofe final, a persona reclama para ela mesma a posição de fabulista e apresenta uma história própria, valendo-se do duplo significado de “cock” (v. 22), “galo” e “pênis” – recuperado na tradução pelo caso similar de “pinto” em português – para ameaçá-lo com um 120 horror moderno: alude ao caso de John e Lorena Bobbitt, casal americano que tornou-se popular na década de 1990 quando ele teve o pênis cortado pela esposa em retaliação por tê-la estuprado e abusado no decorrer da relação. A relação de homofonia entre “tail” (v. 24), rabo, e “tale”, conto, não logrou recuperação no texto traduzido; escolheu-se o diminutivo “rabinho” na tentativa de enfatizar um efeito de ridículo. Com a ameaça de emasculação, Esopo finalmente se cala. A senhora Esopo, então evoca o provérbio popular, “quem ri por último ri melhor”, saboreando a vitória. A tradução abre mão da consonância de “laughed last, longest” (v. 25) em favor da forma mais reconhecida da expressão em português, jogando com a sua familiaridade.

5.8. SRA DARWIN (MRS DARWIN)

Charles Darwin publica A Origem das Espécies em 1859, volume fundador para a Teoria da Evolução e que teria um impacto significativo no campo da Biologia até os dias de hoje. Inicialmente sua recepção foi controversa por colocar dogmas religiosos em questionamento e sugerir que o ser humano evoluiu dos primatas. Em “Mrs Darwin”, o monólogo dramático assume a forma de um registro em um diário, fazendo referência aos diários mantidos por Emma Darwin, esposa do cientista, que revelam detalhes e acontecimentos da vida dos dois e que acabaram por adquirir certa notoriedade49. O primeiro verso é uma data, 7 de abril de 1852, que não parece ter um significado particular no contexto da vida de Darwin, mas é anterior à publicação de seus estudos. Na tradução, o esquema rímico AABA que “two” estabelece com “zoo” (v. 1) e “you” (v. 4) foi recriado através de efeitos de assonância; desta forma, a data foi alterada para “1848”. O poema relata um passeio ao zoológico (v. 2), dando continuidade às imagens de animais evocadas no poema anterior (“Mrs Aesop”) e aludindo aos estudos conduzidos pelo naturalista pela observação dos animais em seu meio. O uso do pronome pessoal “Him” com a inicial capitalizada (v. 3) sugere questões de autoridade, possivelmente religiosa. Ao considerar-se o papel de Darwin no embate com as crenças a respeito da criação, ele também torna-se uma autoridade no âmbito da ciência, e este sentido adquire relevância no poema à medida em que sua esposa era

49 Os diários estão disponíveis em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

121 ela mesma uma mulher religiosa. Esta marcação foi mantida no poema traduzido. No verso final, consideravelmente mais extenso que os anteriores, a senhora Darwin sugere existir algo em comum entre Darwin e um chimpanzé. Na atualização das narrativas proposta por The World’s Wife, o comentário maldoso com que ataca o ego masculino implica que a teoria da evolução das espécies foi primeiramente apontada pela esposa de Darwin e ele, posteriormente, colheu os louros da sua descoberta. Duffy questiona assim a presunção de que todo pensamento importante surge de uma mente masculina (DUFFY:WOOD, 2005), jogando com a expressão popular de que há sempre uma grande mulher por trás de um grande homem. Neste processo, a escritora infere o apagamento que muitas ideias femininas provavelmente sofreram ao longo da História. A tradução deste verso aumenta o efeito de comparação entre Darwin e o chimpanzé em função da sonoridade do texto e em consonância com o tom satírico empregado pela autora.

5.9. SRA SÍSIFO (MRS SISYPHUS)

Sísifo, rei e fundador da cidade de Corinto (então chamada Éfira), era considerado o mais astuto dos mortais. Por suas ofensas aos deuses – ele teria enganado e acorrentado a própria Morte –, foi condenado a passar a eternidade rolando uma enorme pedra até o topo de uma montanha; esta despencava encosta abaixo tão logo ele se aproximasse do pico, de modo a fazê-lo recomeçar infinitas vezes (GRIMAL, 1986, p. 404). Dessa forma, uma “tarefa de Sísifo” tornou-se sinônimo para uma atividade repetitiva e infrutífera. A punição de Sísifo é reimaginada por Duffy como sendo o trabalho a que ele se dedica em detrimento do relacionamento com a esposa, e “Mrs Sisyphus” retrata a insatisfação da senhora Sísifo com o marido negligente e workaholic. A persona menciona que interesse pouco saudável em seu trabalho é algo mais recente – “Quando ele começou, não era todo esse suplício” (v. 3) –, e lhe causa uma raiva palpável e intensa: ela o chama de “estrupício” (v. 1) e “boçal” (v. 4), e considera a possibilidade lhe atacar com uma adaga (“I could do something vicious to him with a dirk”, v. 5). A tradução, intentando manter o jogo sonoro do poema, transforma o quinto verso em uma espécie de celebração, por parte da senhora Sísifo, do fato de não possuir uma arma com a qual lhe atacar (“É bastante propício que eu não tenha um punhal”). 122

Sísifo não parece ser tão astuto quanto sua contraparte mitológica, preferindo focar nos “benefícios” que o trabalho lhe traria. Essa visão não é compartilhada pela esposa, que critica a falta de tempo dele para atividades de lazer (conjuntas, pode-se supor). No poema em português, a expressão “pop open a cork”, abrir uma garrafa (de bebida), foi reconstruída como “tomar um conhaque” em função da relação sonora a ser estabelecida com “volta no parque” e “traste” (v. 8-10). A senhora Sísifo também considera a motivação dele, apesar da resposta positiva da multidão que vem para assisti-lo, “a load of old bollocks” (v. 14), que significa algo como um punhado de merda, uma bobagem; optou-se por “monte de merda” pelo efeito aliterativo, na tentativa de reconstruir o efeito dos sons em [o] e [l] do verso em inglês. E ela enfatiza ainda a inutilidade da ocupação do cônjuge: para ele, tudo são “ossos do ofício” (v. 21), tradução escolhida para “mustn’t shirk” também em razão do jogo sonoro; para ela, já que a pedra sempre despenca até o ponto de partida (v. 17-19), o efeito do que ele faz é o mesmo de latir para a lua (v. 15-16). Assim, em razão do orgulho dele, incapaz de abrir mão de uma obsessão infrutífera com seu trabalho, o que seria tradicionalmente a punição dele passa a ser uma punição para ela, a quem resta a solidão do colchão vazio. Ela se sente como outras mulheres da história – a esposa de Noé, a esposa do compositor Bach – que provavelmente também passaram pela experiência de serem postas de lado por conta do trabalho. E, enquanto ele continua trabalhando noite adentro, dando mais do que cem por cento de si para a pedra, ela vai sendo relegada a uma posição que gradualmente torna seu rosto e sua voz em algo insignificante. O maior desafio para a tradução de “Senhora Sísifo” é a manutenção do esquema rímico, já que a grande maioria dos versos se encerra com rimas e meias-rimas com a palavra “work”, trabalho, dando relevo à ideia mais importante nesta revisão da história de Sísifo. Manteve-se “trabalhar” como palavra final do poema por sua importância. Em função de outras características do jogo sonoro e semântico do poema – como a escolha de traduzir palavras marcadas como pertencentes a um contexto irlandês e escocês tais quais “berk”, v. 4, e “feckin’”, v. 17, por termos coloquiais e/ou de registro tanto mais grosseiro (como “caralho” e “merda”) –, este esquema rímico foi “partido” em uma variedade maior de rimas (em -ício, -al, -ão, etc.) no texto em português.

5.10. SRA FAUSTO (MRS FAUST)

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“Mrs Faust” é uma variação da lenda germânica de Fausto, estudioso que teria vendido a alma para o demônio Mefistófeles em troca de conhecimento, poder e uma vida de conforto material. Nos vinte e quatro anos em que o pacto esteve em vigor, a vida da personagem teria sido marcada por excesso e perversão; ao fim desse período, sua alma é condenada ao inferno (ASHLIMAN, 1996). Na revisão proposta por Carol Ann, a senhora Fausto e o marido formam um casal moderno, de acadêmicos (como na narrativa que os inspira) e que não possui muitas qualidades redentoras. Na verdade, os Faustos são alpinistas sociais que estão completamente à vontade em um mundo de materialismo, interessados somente em acumular riquezas e em modos de demonstrar seu sucesso para o restante do mundo. Duffy considera que o poema satiriza um tipo de vida a que podemos ser levados neste século e que nele tentou olhar para formas desagradáveis de ser mulher (DUFFY:WOOD, 2005). Os valores dessa persona são bastante questionáveis: depois que Fausto é levado para o inferno – algo que não lhe causa a mínima comoção – ela compra um rim com o cartão de crédito (v. 130-131), refletindo o egoísmo e a ganância que o levaram a vender a alma; a senhora Fausto submete-se a toda espécie de tratamento de beleza disponível – facelifting, silicone (v. 77-78) – e experimenta diversas doutrinas – o veganismo, o celibato, o Budismo (v. 82-84) – apenas por estarem na moda. Ao examinarmos a relação do casal Fausto contada pela voz da mulher, vemos ainda que esta não parece ser motivada por algo além de conveniência – ela mesma admite que aprendera “a amar não aquela vida, / mas o modo de viver” (v. 19-20) enquanto ele preferia “os louros da conquista / no lugar da mulher” (v. 21-22). Considerando-se toda essa construção da persona feita por Duffy, interpõe-se a seguinte questão: se, como revelado no último verso do poema, Fausto “não tinha alma para vender” (v. 135), será que a senhora Fausto tem? Não seria ela até pior do que ele? A resposta fica a cargo da audiência: como costuma ser na poesia da autora, importa mais explorar possibilidades que apresentar uma verdade rígida. Em sua maioria, os versos de “Sra Fausto” – agrupados em quinze estrofes de nove – são breves e empregam uma miríade de palavras monossilábicas, além do enjambement, criando um poema de ritmo dinâmico. Não há um esquema rímico regular, mas cada estrofe termina com um dístico rimado ou apresenta rima entre dois dos quatro últimos versos. Os esforços da tradução se concentraram na recriação dessas características do jogo sonoro, flexibilizando o número de sílabas ao 124 considerarem-se as diferenças entre o inglês e o português, mas tentando a manutenção do número de acentos por verso. Por vezes, as rimas foram reconstruídas na forma de assonâncias, entre “não permitido” (v. 43) e “crise de riso” (v. 45), por exemplo; no poema em português também enfatizaram-se relações de consonância e aliteração não encontradas no poema em inglês. Talvez o caso mais significativo seja o da quarta estrofe (v.28-36), onde se encontra uma série de sons [st] em fim de palavra – “boast”, “cost” “East”, “lust”, “least”, “ghost”, “lost”, “feast” –, aliterações em [d] (“dinner”, “doing deals”) e uma sequência que alterna sons de [g] e [l] (“the least, / to lay the ghost,/ get lost”); procura-se reconstruir a unidade da estrofe através de uma profusão de sons em [f] – “Fausto frisava / na frente”, “fazer negócios” “falar bem pouco”, “fechar o assunto”, “farrear” –, além de aliterações em [k] (“convidados”, “custos”), [l] (“levar sua lascívia”) e [p] (“perder- se, ver as panteras”). Há no poema diversas marcações que localizam o casal Fausto como pertencente a um contexto britânico, como as referências à outra casa em Gales (“a second home in Wales”, (v. 13), aos negócios fechados por Fausto no “East” (East End, distrito londrino que figurará também no poema “As Irmãs Kray”; v. 31), às visitas ao “Soho” (zona de meretrício que ele visita para “ver as panteras”; v. 33-36). O caso mais peculiar talvez seja o do verso 50, “Safe seat. MP. Right Hon. KG” – “MP” é abreviação para “Member of Parliament”, membro do Parlamento; “Right Hon” abrevia “The Right Honourable”, honorífico de tratamento utilizado pelos mesmos; “KG” indica “Knights of the Garter”, Ordem da Jarreteira, título conferido pessoalmente pelo monarca em exercício. A tradução tenta adaptar o jogo semântico para maior clareza, escolhendo pela versão “Primeiro turno. Parlamento. Honorável. Cavaleiro”. Como a senhora Fausto emprega uma expressão estrangeira, “C’est la vie" (v. 125), o poema em português decidiu manter ainda “offshore” (v. 51) e “business” (v. 54), palavras que estão razoavelmente incorporadas ao vocabulário da língua portuguesa, cujo uso pode também sugerir certo esnobismo da persona e, no caso da segunda, produzir uma aliteração com “bancos” (v. 51) que existe no poema em inglês. A expressão “scaly devil hands” (“mãos demoníacas escamosas”, v. 112) foi reconstituída na forma de um “feio pé de bode” pela familiaridade da imagem no contexto do português brasileiro.

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5.11. DALILA (DELILAH)

“Delilah”, outro poema de inspiração bíblica em The World’s Wife, lança um novo olhar para a história de Sansão, líder dos israelitas contra os filisteus, e Dalila, sua amante filisteia (Livro dos Juízes, capítulo 16). Sansão fora consagrado ao serviço de Deus desde seu nascimento e retirava força sobre-humana de seus cabelos, que nunca haviam sido cortados. Após usar das afeições de Sansão para descobrir a origem do seu poder, Dalila lhe corta os cabelos e o entrega, enfraquecido, aos líderes de seu próprio povo que a haviam subornado. Deus restauraria a força prodigiosa de Sansão uma última vez para que ele pudesse trazer o templo em que estava acorrentado sobre os filisteus; Dalila, em contrapartida, acabaria por se tornar um símbolo da mulher traiçoeira e sexual. Assim como no texto religioso, a Dalila de Carol Ann Duffy permanece uma mulher sexualizada; sua motivação para cortar os cabelos do Sansão adormecido, no entanto, é bastante distinta de uma traição. A persona e seu companheiro estão deitados lado a lado na cama, sugerindo que o diálogo se dá após o ato sexual. É nesse cenário de intimidade que Sansão faz um pedido à Dalila: “teach me [...] to care”, “ensina-me [...] como cuidar” (v. 1-3). No monólogo dramático de quarenta e dois versos livres, estruturado em oito estrofes irregulares, Dalila apresenta Sansão como um homem capaz de feitos extraordinários como “arrancar o rugido / da goela de um tigre, / com fogo gargarejar” (v. 7-9), que habita um mundo de façanhas heroicas tipicamente masculino, baseado em força física e coragem. No entanto, ele possui uma cicatriz sobre o coração, “condecorada lesão dos tempos de guerra” (v. 18), sugerindo que foi a vida como grande guerreiro que lhe tirou a gentileza, o afeto e a doçura (v. 19), e sua percepção disso naquele momento de intimidade compartilhada o leva a indagar acerca da possibilidade de uma “cura” (v. 20). Embora exista uma ênfase na carnalidade da relação – ela lhe dá uma provocativa mordidinha na orelha quando pede uma explicação (v. 4), ele a “fode” novamente até se cansar (“He fucked me again / until he was sore”, v. 22-23) –, um lado mais suave e vulnerável de Sansão vem à tona após o sexo, manifesto não apenas no pedido do começo do poema mas na imagem de sua cabeça que descansa no colo de Dalila (v. 25). Assim, em razão de seu afeto por Sansão, o “seu” guerreiro (v. 31), e convencida de que ele de fato deseja mudar (v. 30), Dalila toma uma 126 atitude para ajudá-lo: ela corta os seus cabelos enquanto ele dorme. Ela faz isso não para entregá-lo aos fariseus, mas sim para humanizá-lo – ou, nas palavras da poeta, para trazer à tona seu lado feminino (DUFFY:WOOD, 2005). É interessante que ela tranque a porta antes do ato; isso intensifica a relação de intimidade do encontro dos dois personagens, mas também aponta para o sigilo daquele momento. Talvez o aspecto mais complicado para a tradução de “Dalila” seja seu esquema de rimas e meias-rimas que, ao modo de “Mrs Sisyphus” antes dele, se orienta em função da última palavra do texto, escolhida por sua relação com a narrativa: hair (cabelo). Tal como no caso de “Sra Sísifo”, “Dalila” abre mão desta relação específica, ainda que importante, em favor da manutenção de outras características dos jogos sonoro e semântico do poema, operando com diversos sons em [r] em fim de verso. Algumas das rimas em final de verso, como aquela entre “heart” e “war” (v. 17-18), foram reconstruídas como rimas internas (“[...]sobre seu coração, / condecorada lesão dos tempos de guerra”). Privilegiando-se o aspecto coloquial da linguagem poética de Duffy utilizou-se, por exemplo, a variante regional “rosnento” na tradução de “bellowing” (v. 11), e “rom-rom” no caso de “burr” (v. 27). A tradução tenta ainda utilizar uma quantidade de sílabas tônicas similar ao número de acentos em cada verso do poema em inglês.

5.12. ANNE HATHAWAY (ANNE HATHAWAY)

“Anne Hathaway” pode ser entendido como uma homenagem ao poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare e, por conseguinte, à forma do soneto. Pouco se sabe a respeito de Anne, sua esposa, à parte de algumas menções em documentos; a mais famosa delas está no testamento de Shakespeare, citado por Duffy na epígrafe do texto, onde ele teria lhe legado apenas “a segunda melhor cama com a mobília”. O poema em português escolheu pela manutenção da epígrafe em inglês acompanhada pela tradução semântica da frase. A intenção da poeta, como explicitado por ela (DUFFY:WOOD, 2005), é desafiar a interpretação desta herança como um insulto dirigido à mulher. Não se trata de uma abordagem pioneira: o costume elisabetano reservava a melhor cama da casa para os convidados, e portanto a “segunda melhor cama” pode ser compreendida como o leito conjugal; assim, a cama torna-se símbolo da paixão do casal. “Anne Hathaway” é um poema de amor, que enfatiza a relação entre linguagem e sentimento

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(“As palavras dele, / estrelas que despencaram na terra como os beijos / nos meus lábios”, v. 3-5) e entre poesia e corpo (“meu corpo então rimava suave / contra o dele, [...] eco, assonância”, v. 5-6; “sonhava às vezes que ele tinha me escrito, o colchão / uma página sob suas mãos [...]”, v. 8-9). A persona cria um contraste entre a melhor cama, onde as visitas dormiam “em pingos de prosa” (“dribbling their prose”, v.12), e “o leito do nosso amor” (“the bed we loved in”, v. 1), onde o marido “would dive for pearls” (v. 3). “Diving for pearls” é mais que “mergulhar em busca de pérolas”, sendo também uma gíria para o sexo oral feito em uma mulher; a tradução tenta reconstruir o duplo sentido pelo emprego do possessivo minha (“caçava minha pérola”). Em razão de suas características semânticas e sonoras, o dístico final (v. 13-14) se mostrou o maior desafio para a tradução. A relação estabelecida no verso em inglês joga com a polissemia do verbo “hold”: Anne guarda o marido na urna/caixão (“casket”) da sua “cabeça de viúva” (“widow’s head”) da mesma maneira que ele a segurava sobre a segunda melhor cama. A solução julgada mais satisfatória para verter o verso para o português, após diversas tentativas malsucedidas, foi a criação de uma nova imagem mais distante daqueles significados mobilizados por Duffy, que aproveita a expressão bico-de-viúva e enfatiza a carnalidade da relação: “meu bico-de-viúva come sua lembrança com paixão / como ele fazia comigo naquele segundo melhor colchão”. O marido falecido vive na memória, na poesia. “Anne Hathaway” é um dos poucos poemas do volume a apresentar um homem sob uma luz positiva, no que será seguido pelo próximo texto, “Queen Kong”.

5.13. QUEEN KONG (QUEEN KONG)

“Queen Kong” distingue-se dos poemas vistos em The World’s Wife até então por retirar sua inspiração de uma narrativa moderna: o longa-metragem “King Kong”, de 1933, que apresenta a primeira encarnação do gorila gigante e o tornou um ícone cinematográfico do século 20. A história de Kong tem algo de “A Bela e a Fera”, e é o desejo da criatura por uma mulher jovem e bela que termina causando a sua morte. O poema de Duffy pode ser compreendido dentro de uma longa lista de variações da personagem surgidas desde o filme clássico, mas a aborda de maneira distinta. Aqui, Kong é transformado em fêmea, e 128 apaixona-se por um dos cinegrafistas que vêm à sua ilha para gravar um documentário. Uma vez que “King Kong” é um filme entranhado no imaginário ocidental e conhecido no Brasil pelo mesmo nome – e não pela forma “Rei Kong” –, a tradução escolheu pela manutenção do título do poema em inglês, considerando sua sonoridade próxima e, ao mesmo tempo, provocando estranheza suficiente para que se perceba haver algo de diferente na versão de Carol Ann. “Queen Kong” é um poema sobre anseio e perda, uma (literalmente) grande história de amor que nem mesmo a morte é capaz de interromper. Este é um dos raros textos do volume em que um homem é retratado sob uma ótica positiva, como se o víssemos através do olhar apaixonado da gorila e ele se revelasse à altura do sentimento; isso também acontecerá em “Anne Hathaway” mais adiante – curiosamente, ambos os poemas tratam de um companheiro falecido. Existe certa graça na história da gorila gigante que, incapaz de superar a partida de seu “homenzinho” (“little man”, v. 2; o diminutivo é empregado para denotar carinho) da ilha onde vive, sobe o rio Hudson e chega em Manhattan à sua procura, hospeda-se em Greenwich Village – reduto boêmio e artístico, “onde eram acostumados com estranhos / e quase os deixavam em paz” (v. 5-6) – e, de modo geral, tem lá a experiência de uma turista; mas esse absurdo bem-humorado contrasta com a verve melancólica que também perpassa o poema – o monólogo da Kong lírica está sendo proferido após a morte do companheiro, afinal –, insinuando-se em sua abertura nostálgica e nas referências musicais feitas por ela – “um blues animal” (v. 16) que a acompanhava quando tinha “estado tão sozinha” (v. 15) antes da chegada dele, o som das flautas das “bodas de papel” do casal (“our first year”, v. 69), uma “melodia perdida e lamentosa” (“plaintive, lost tunes”, v. 70) que a faz chorar. A característica mais importante da voz da Queen Kong talvez seja a subversão de expectativas e papeis tradicionais da relação homem/mulher trazida pelo poema. É dela que parte a iniciativa da relação, e também ela que, por razões óbvias, constitui seu lado mais “forte”; ele, em contrapartida, assume posição tanto mais passiva, cedendo aos encantos da persona e abrindo mão de sua vida prévia em Nova York para ficarem juntos. É possível interpretar ainda que esse deslocamento da mulher para a posição ativa do relacionamento seja a raiz dos “doze anos felizes” (v. 64) que eles vivem juntos, numa relação que permanece apaixonada. Não é à toa que, depois da morte dele, Kong o empalhe, lhe dê “olhos de esmeralda” (v. 75; a pedra costuma

129 representar o amor bem-sucedido) e passe a levá-lo no pescoço como a um amuleto. Embora esteja dividido em onze estrofes regulares, de sete versos cada, “Queen Kong” não tem um esquema rímico regular. Em vez disso, Duffy abusa das rimas no interior do verso e do enjambement, que contribuem para o ritmo dinâmico do poema. A versão em português busca reconstruir esse ritmo, mantendo a quantidade de acentos de cada linha e os ecos sonoros tão característicos da dicção da poeta.

5.14. SRA QUASÍMODO (MRS QUASIMODO)

Como o amor da Queen Kong no poema anterior, o amor representado em “Mrs Quasimodo” também é genuíno, mas chega a um desfecho bastante diferente. Inspirada pela personagem homônima de Victor Hugo, aqui Duffy procura se afastar do que chama de “clichê da bela e a fera” da história de Quasímodo e Esmeralda (DUFFY:WOOD, 2005) e unir duas feras: como o marido, a senhora Quasímodo também tem uma aparência grotesca. Mas o amor por ele surgirá mais tarde no poema; em primeiro lugar está o sentimento que ela nutre pelos sinos, que “amara com fervor desde criança” (v. 1) e cuja música a ajuda a suportar o dia-a-dia, “defeituosa como era, excluída pela vila” (v. 4) – os sinos são seu porto seguro, representam uma forma de magia – ela “acreditava até que eles faziam chover” (v. 9). Sua adoração pelos sinos a leva até a cidade, cenário ao qual ela se adapta rapidamente – na verdade, a cidade parece se tornar reflexo da própria compleição da persona (“minha sombra carocenta / tropeçava no muro torto das alamedas; / meus olhinhos escuros / feito calçamento chovido”, v. 10-13) – e onde ela passa a frequentar aulas para aprender a tocá-los. É lá que ela conhece Quasímodo, sentindo “o fósforo do reconhecimento aceso na mente” (v. 28) já à primeira vista. A paixão que a arrebata é consumada pelos dois lá mesmo, sob o carrilhão – “ele me fodeu sob sinos chocados e boquiabertos / até ouvir meu choro” (v. 31- 32; “Sra Quasímodo” é um poema bastante gráfico, característica que tenta ser recriada na tradução) – e desemboca no casamento, que começa bem – ele lhe dedica um epitalâmio tocado com muito esmero, ambos aproveitam longamente a noite de núpcias – mas que lentamente vai esfriando, até que ela percebe uma mudança no amor do marido por ela. Quasímodo torna-se extremamente crítico (“Por que eu assim? / Como pude assado? Olhe para você”, v. 70-71; a voz lírica ecoa a voz do 130 marido) e interessa-se por Esmeralda, a “pin-up cigana” (v. 75) no calçadão. Essa situação dispara na senhora Quasímodo a consciência de que ele não a considera bela, o que lhe desperta um grande sentimento de inadequação (“é melhor, não é, ser bem formada”, v. 80) e um “arroubo de desprezo por si” (v. 94). Até então, o amor de Quasímodo fora seu santuário (DUFFY:WOOD, 2005) e ele agora oferece santuário para outra: é uma traição irreparável. Mas sua tristeza é posta de lado e ela torna-se “fixada em retribuição” (v. 107), voltando a raiva que sente dele contra os sinos – ela também quer atingi-lo onde a dor será mais intensa. Mas ao mutilar os sinos, arrancando seus badalos e urinando sobre os destroços daquilo que amara desde criança, ela igualmente fere a si mesma. “Sra Quasímodo” é um poema em que a beleza do amor dá lugar ao horror da traição. “Sra Quasímodo” é um poema longo, composto em versos livres, caracterizado pela irregularidade de suas rimas e efeitos sonoros. O poema em português busca recriar e expandir o jogo sonoro: algumas rimas são deslocadas para outras posições, como em “O sineiro. / A esposa do corcunda. / (Os Quasímodos. Você os conhece? Grosseiros.) / Ganhando a vida”, tradução para “The bellringer. / The hunchback’s wife. / (The Quasimodos. Have you met them? Gross.) / And got a life.” (v. 54- 57); outras foram recriadas, como em “Firmeza na mão / e uma noite inteira lá no alto, / fixada em retribuição” (“A steady hand. / And me, alone all night up there, / bent on revenge”, v. 106-108); há ainda aquelas reconstruídas como assonâncias imprecisas, ecos disfarçados (“Assim que eles se foram, [...] até ouvir meu choro. / O matrimônio”, tradução de “When the others left, [...] until I wept. / We wed”, v. 30-33). A tradução também busca recriar aliterações e consonâncias, como aqueles em [g] e [r] nos versos 2-3 (“Com o bronze das generosas goelas / gargarejando um canto lento [...]”, “Their generous bronze throats / gargling, or chanting slowly [...]”. O verso 135 – “I sawed and pulled and hacked” – foi reconstruído como “Segura, serra, solta”, ilustrando o processo de destruição dos sinos, mantendo a rima com “back”, “volta” (v. 136), e gerando a repetição das sibilantes. No sétimo verso, “dock-leaves”, conhecida em português como língua-de-vaca, é uma planta cujas folhas podem ser esfregadas na pele para tratar queimaduras de urtiga. Como a manutenção dessa referência não gerou resultados satisfatórios para a tradução, recriou-se a imagem a partir de sua função: “esfregando as pernas gordas queimadas de urtiga”.

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5.15. MEDUSA (MEDUSA)

“Medusa” continua com a temática do amor que foi traído introduzida em “Sra Quasímodo”. Ao reescrever a história da Górgona, Duffy utiliza as serpentes que ela possui no lugar dos cabelos como imagem para o ciúme, nascido da “suspeita, [...] incerteza” (v. 1) que cresce em sua mente (v. 2) e que dispara sua transformação no monstro que conhecemos. O ciúme nasce da ideia, tornada paranoia, de que o seu “Deus Grego [...] perfeita criatura” (v. 14) eventualmente irá traí-la – “stray from home” no texto em inglês, “causar [...] agrura” na tradução, para manutenção do esquema rímico – e termina por consumi-la: seu hálito rança nos pulmões, sua fala torna-se vil, suas lágrimas viram balas de revólver (v. 6-10). A persona não espera que a traição se torne factual para preferir que ele estivesse morto, transformado em pedra. O projeto tradutório desenvolvido para The World’s Wife neste trabalho procura adotar uma linguagem de uso corrente; assim, formas verbais da segunda pessoa do singular tradicional (“Tu”) são abandonadas em favor da simplificação decorrente do pronome “você”, de marcação mais coloquial. Durante a tradução do verso 17 (“So better by far for me if you were stone”), no entanto, decidiu-se pelo emprego do futuro do subjuntivo do verbo ser (“Então melhor para mim se fores pedra dura”) por acreditar-se que a forma empresta certa teatralidade e força extra à declaração de Medusa. Tudo aquilo sobre o que recai o olhar da Górgona é literalmente petrificado a partir de então – uma abelha, um pássaro, o gato, um porco, um dragão. Pode-se pensar também numa transformação metafórica, como se o ciúme a tivesse endurecido para o mundo. O olhar dela sobre estes elementos que serão transformados em pedra intensifica-se com cada estrofe – “glanced”, estrofe 4; “looked”, estrofe 5; “stared”, estrofe 6 – que se buscou recuperar no poema em português. É aqui também que Medusa revela a fonte de sua angústia e transformação, ao encarar a si mesma no espelho: “love gone bad”, “amor que deu errado” (v. 31). Alterações nas estruturas semânticas destas três estrofes foram introduzidas para manutenção dos efeitos de rima. A história de Medusa está tradicionalmente ligada àquela do herói Perseu, que usa um escudo para fugir do olhar mortal da Górgona e conseguir decapitá-la (GRIMAL, 1986, p. 342). A revisão proposta em The World’s Wife transforma-o no amado de Medusa que, na última estrofe, aproxima-se dela com um escudo – o coração que resiste à persona – e uma espada – a língua. Para Duffy, a traição e a morte que 132 ele inflige à persona é não amá-la (DUFFY:WOOD, 2005). O poema termina numa nota de duplo significado: “olhe para mim agora” (v. 42). Medusa pede que seu “Deus Grego” veja o que lhe causou, já que antes era ela “bela”, “jovem e perfumada” (v. 40-41), mas também que olhe para que ela possa transformá-lo em pedra.

5.16. A ESPOSA DO DIABO (THE DEVIL’S WIFE)

A persona em “The Devil’s Wife” é baseada em Myra Hindley, uma das responsáveis pelos Assassinatos da Charneca (Moors murders), cometidos por ela e o companheiro, Ian Brady, em meados de 1960. Quatro de suas cinco vítimas, com idades entre dez e dezessete anos, foram enterradas pelo casal em uma charneca nos arredores de Manchester; somente uma delas não teria sido abusada sexualmente. Como tende a acontecer com crimes de natureza hedionda que recebem grande cobertura da mídia como estes, os Moors murders inculcaram-se no imaginário britânico – Duffy os considera horrores de infância (DUFFY:WOOD, 2005). Myra recebeu da imprensa o epíteto de “most evil woman in Britain”; condenada à prisão perpétua, tentou inúmeros recursos para recuperar a liberdade, sem sucesso, e faleceu na cadeia aos sessenta anos de idade. A poeta explora a familiaridade da audiência inglesa com estes acontecimentos como faz com os mitos e narrativas afins nos outros poemas do volume, mas também apoia-se em detalhes factuais. É um texto importante no contexto de The World’s Wife porque nele a maldade pura também é reclamada como espaço de atuação para as mulheres – neste caso em razão de sua relação com um homem, do qual a própria persona escolhe se aproximar. Há uma relação de continuidade com o último verso de “Medusa” (“Olhe para mim agora”), personagem a que Duffy também alude neste poema: a esposa do Diabo é outro monstro criado por “amor que deu errado”. Este é o único dos textos de The World’s Wife a ser dividido em cinco seções intituladas; pode ser compreendido como uma pequena antologia no cerne da coleção. O primeiro segmento, intitulado “Sujeira”, mostra como a esposa do Diabo envolveu-se com o marido, originalmente um colega que não se misturava com os outros no ambiente de trabalho; sua atitude indiferente o torna atraente. Ela o trata da mesma maneira (“muda, insolente”, v. 5; “Eu o enfrentei, zombei, fiz cara feia”, v. 7) e conquista sua atenção: “Somos iguais, ele disse por fim” (v. 11). Na tradução, optou-se por

133 traduzir “woods” (v. 12, v. 14) por “charneca”, introduzindo uma alusão ao cenário dos crimes para o leitor do texto em português. Tenta-se reconstruir os efeitos de proximidade sonora no interior dos versos, principalmente na forma de rimas (“palavras chulas [...] arrepio na medula”, v. 10-11; “O sexo me tirou o nexo”, v. 13; entre outros). A atração inicial pelo Diabo consome a persona – será a relação com ele a sujeira que se assenta sobre ela? – ao ponto de ela tornar-se uma figura horrenda: “Língua de pedra. Uma lousa vazia / por olho. A boca uma ferida de soco. Mãe de ninguém” (v. 17-18). A boneca que é enterrada por eles no verso 12 pode ser identificada como uma referência aos Assassinatos da Charneca. No segundo segmento, “Medusa”, os delitos do casal vêm à tona. A esposa do Diabo está algemada e contempla que “era eu quem estava lá [...] coberta de barro” (v. 20-21) no lugar onde haviam enterrado a boneca, como quem deixou a própria humanidade naquela cova. O verso 22 alude à recusa de Hindley em colaborar com informações acerca dos crimes (“o exato quando, como ou onde não consigo lembrar”), negação que será intensificada no próximo segmento do poema. A persona não se importa com a opinião pública que desaprova seu cabelo e seu jeito de falar, ou com sua sentença, porque o Diabo lhe espremeu o “coração na mão até deixá-lo seco” (v. 24); a contradição da esposa do Diabo é estar no inferno da prisão perpétua sem o seu diabo pessoal. Durante a tradução desse segmento, “But life, they say, means life. Dying inside” (v. 31) mostrou-se o jogo semântico e sonoro mais difícil de reconstruir, já que a poeta brinca tanto com a ideia de vida/morrer por dentro e reitera que prisão perpétua quer dizer perpetuamente, além da expressão retornar no quinto segmento do poema numa repetição tanto steiniana (v. 64); a solução encontrada foi criar um jogo de ambiguidades entre as ideias de “durar a vida” e uma vida dura (construção que pode surgir na dimensão sonora do poema), “sofrida” até sofrer-se o evento da morte. “Bíblia”, o terceiro segmento, é um soneto onde a esposa do Diabo intensifica a negação manifestada em “Medusa”, clamando por vários profissionais que possam eximi-la da responsabilidade pelos crimes. O título pode ser entendido como uma tripla referência: ao juramento de se falar a verdade feito sobre a bíblia no tribunal (e que a persona claramente quebra); à religiosidade que Hindley teria desenvolvido na prisão; à noção expressada por Duffy de que a forma do soneto lhe lembra orações (DUFFY:WOOD, 2005). O dístico final não oferece uma resolução, mas sim reforça a negação pela repetição de expressões anteriores. 134

Em “Noite”, o quarto segmento do poema, a esposa do Diabo promete finalmente confessar quando a manhã chegar; é bem possível imaginá-la isolada em sua cela, um tanto paranoica, ouvindo vozes que a condenam. Como a noite dura cinquenta anos, no entanto, implica-se que ela permanecerá sem confessar até finalmente morrer. O poema em português se concentrou em recriar os efeitos sonoros, daí a inserção de “certo” (v. 53) para a rima com “inferno” (v. 51). O quinto segmento intitula-se “Apelação”, em referência tanto ao recurso jurídico como também um apelo que a persona faz aos leitores que formam sua audiência: Duffy introduz uma listagem de maneiras pelas quais a esposa do Diabo poderia ser executada, que vão do apedrejamento à execução por arma de fogo, e ao mesmo tempo parece inquirir se essa realmente seria uma solução melhor que a prisão perpétua. “O que fiz a nós todos, à mim mesma / Quando eu era a esposa do Diabo?” (v. 65-66), ela pergunta por fim – uma pergunta que permanece sem resposta. Para Duffy, em última análise, o dilema da esposa do Diabo é que o amor pela pessoa errada leva a acontecimentos terríveis (DUFFY:WOOD, 2005).

5.17. CIRCE (CIRCE)

Circe era uma poderosa feiticeira, filha do deus Hélio ou, em alguns registros, da deusa Hécate. Sua história é introduzida na Odisseia, onde ela transforma a tripulação de Odisseu, que desembarcara em sua ilha no retorno à Ítaca, em animais – porcos, leões e cachorros, de acordo com a natureza de cada um. Odisseu ardilosamente leva a melhor sobre ela após receber do deus Hermes uma erva que o deixa imune aos poderes mágicos da bruxa; ameaçada por ele, Circe retorna a tripulação à forma humana e acaba por tornar-se sua anfitriã por algum tempo. Em alguns registros, a união de Odisseu e Circe teria gerado filhos (GRIMAL, 1986, p. 99). A abordagem empregada por Carol Ann Duffy em “Circe” assume um tom jocoso: Circe é reimaginada como uma grande mestre-cuca; a poeta a considera “uma espécie de guru50” (DUFFY:WOOD, 2005). O monólogo dramático é dirigido às “ninfas e nereidas” (v. 1) com quem ela compartilha sua expertise acerca dos porcos – a persona afirma que “a vara toda” já foi sua (“all pigs have been mine”, v. 3); na tradução, optou-

50 “She’s a sort of guru, isn’t she?”

135 se pelo emprego do coletivo vara por também ser sinônimo da genitália masculina, acepção que cabe no contexto do poema –, e também “uma receita de longe” (v. 11). Ao descrever seu contato com os suínos, ela emprega uma linguagem algo sensual; o poema em português se vale deste dado e o intensifica, por exemplo, no segundo verso – “de presas em riste, da tromba suína” – uma resolução julgada interessante para a listagem de termos sem uma correspondência mais direta no idioma como “tusker”. Duffy utilizou uma receita legítima para o preparo de bochechas suínas em “Circe” (ibid.); desta forma, embora a tradução seja orientada pela reconstrução do jogo de efeitos sonoros – rimas, aliterações –, a única concessão tomada quanto aos ingredientes é a inversão dos lugares de ocorrência do alho (“cloves”, v. 15) e pimenta (“mace”, v. 21). No v. 12, o jogo entre “cheek”, bochecha, e “tongue-in-cheek”, ironia, é reconstruído pelo eco dos sons de [b] e [sh] em “bochecha” e “bom deboche”. Circe elenca os talentos da língua – “to lick, to lap, to loosen, lubricate, to lie / in the soft pouch of the face” (v. 15-16). O poema em português tenta recriar a aliteração em [l] – “ela lambe e lubrifica, lasseia, ludibria, saliva [...]” –; embora a grafia mais coloquial seja “laceia” (ainda que esta forma não esteja dicionarizada), considerando-se a dimensão visual do poema, entende-se que a grafia com S duplo evoca “lassidão” com maior intensidade, tentando recuperar a dupla acepção de “lie” no verso em inglês (tanto mentir como jazer [a língua] no interior do rosto). Fechou-se o verso com “saliva” após a descoberta de que salivar é um regionalismo para “enganar com palavras agradáveis”, de acordo com o dicionário Houaiss. Para além do efeito de comicidade gerado no poema, enquanto instrui sua audiência de mulheres mais jovens na arte do preparo da carne de porco, Circe gradualmente revela detalhes do seu passado, ao que fica claro que os porcos são os homens. Sua atitude em relação a eles é bastante polarizada: ela não os considera criaturas confiáveis, conhecimento que tenta transmitir às ninfas e nereidas. Os homens não prestam atenção à sua voz, “suas rimas e orações” (v. 25). A persona lembra de quando era jovem e desejava um companheiro: ela convida os navios a atracarem, esperançosa de que eles lhe trariam um amor; os navios, no entanto, são negros e suspiram nas águas rasas, indicando que carregavam algo mais sombrio em seu bojo. Entende-se que é a experiência do amor não correspondido – Odisseu eventualmente abandonaria Circe para retornar à Ítaca, onde Penélope o esperava – que 136 transformou a jovem Circe nesta mulher afeita a transformar os homens em porcos. Aceitando a mudança, ela passa a assá-los no espeto.

5.18. SRA LÁZARO (MRS LAZARUS)

A ressurreição de Lázaro três dias após sua morte é um dos milagres mais famosos de Jesus Cristo (João 11), o último em uma série que o confirmaria enquanto Messias. Em “Mrs Lazarus”, há pouco da comicidade que perpassa os demais textos de The World’s Wife; é um poema sobre o luto, sobre as transformações causadas pela perda de um amor em razão de seu falecimento, e sobre seguir em frente após o final de um relacionamento. Em certo sentido, continua com a temática da carne inserida em “Circe”, que o antecede, mas enquanto lá existe uma celebração algo sensual da carnalidade, aqui tratam-se de “horrores da carne” (DUFFY:WOOD, 2005). Na versão de Duffy, Lázaro permanece morto por muito mais tempo, o que permite que a senhora Lázaro aprenda as “Estações do Calvário” (v. 12) que constituem o luto: ela havia “chorado noite e dia / pela perda” (v. 1-2), abandonando as vestes de noiva; aprendeu a dormir “sozinha, / viúva, vazia como uma luva” (v. 6-7), esvaziara os armários das coisas do marido, “até o feitiço do nome não mais invocar / a sua fronte” (v. 16-17). Ela se entrega ao processo, sendo fiel ao casamento “até ele ser memória” (v. 25), e gradualmente sua vida segue em frente: ela se envolve com um novo homem, um professor (v. 22), e considera- se “curada” (v. 27). E então, de súbito, Lázaro levanta-se do túmulo. Quando os vizinhos correm em sua direção, ela pressente o que aconteceu – “e eu soube” (v. 31), “ele vivia” (v. 36). O marido, no entanto, não parece ter retornado completamente à vida: ele fede, “desgrenhado e úmido do mascar frouxo do sepulcro” (v. 39). O poema termina em uma nota de horror, estampada no rosto de Lázaro, mas também em seu corpo morto-vivo. Entretanto, é tarde demais para Lázaro e a esposa ficarem juntos, estando ele “deserdado de seu tempo” (v. 40) – o que é compreensível, já que ele havia morrido. A tradução buscou reconstruir os efeitos sonoros, especialmente os ecos no interior de cada verso, e o número de acentos em cada um destes. “Cuckold”, no verso final, diz respeito à ave enganada pelo pássaro cuco para chocar seus ovos, mas também é uma expressão para designar o “corno”, o marido traído; no poema em português, optou-se por manter a referência ao pássaro – “crocitando feito vítima do cuco” – em função do

137 jogo sonoro estabelecido com “sepulcro”, no verso anterior, mas ainda fazendo referência à enganação que ele, aparentemente, acredita ter sofrido por parte da esposa que começara um novo relacionamento.

5.19. A NOIVA DE PIGMALEÃO (PYGMALION’S BRIDE)

No mito retirado das Metamorfoses que inspira este poema, Pigmaleão apaixona-se por uma estátua de marfim que representava seu ideal de beleza feminina. Em alguns relatos, ele mesmo a teria esculpido por desaprovar o comportamento das mulheres de sua cidade, cortesãs; eventualmente, a deusa Afrodite atende às súplicas do homem e concede vida à escultura. Essa união teria gerado uma criança (GRIMAL, 1986, p. 380). Para além disso, pouco se sabe a respeito da noiva de Pigmaleão, personagem bastante plana na narrativa tradicional. “Pygmalion’s Bride” conecta-se com o poema que o antecede, “Sra Lázaro”, ao valer-se da ideia de algo inanimado – “fria, eu era como neve, como marfim” (v. 1) – ao qual é concedido vida, e permite à Carol Ann explorar o que a escultura pensaria a respeito das investidas de Pigmaleão, caracterizado aqui como um pretendente inconveniente e indesejado. Duffy descreve a noiva de Pigmaleão como uma mulher real que finge-se de estátua em razão de seu desinteresse por ele (DUFFY:WOOD, 2005). As situações descritas pela persona podem ser claramente identificadas como assédio – ele a toca sem sua permissão e com força suficiente para depois procurar “por sinais, / corações púrpuras, / estrelas escuras, pistas borradas” (v. 29-31), equimoses – e “A Noiva de Pigmaleão” pode sugerir a leitura do texto à luz de uma crítica às violentas relações de poder que o masculino tipicamente é capaz de exercer sobre o feminino. Como a noiva de Pigmaleão não parece se referir à experiência como um trauma, porém, esta leitura não será aprofundada aqui. Cansada da insistência, dos presentes, das palavras, ela decide então mudar “de itinerário” (v. 39) e substitui o comportamento frio por outro mais caloroso, esquentando “como vela de cera” (v. 40), beijando- o, implorando por “um filho dele” (v. 46) e fingindo um enorme orgasmo – “all an act”, “pura interpretação” (v. 49). Mas é o seu exagero ao ceder às investidas de Pigmaleão que alcança o propósito desejado pela persona: ele se afasta. Ela conta com o fato de ele desejá-la justamente por ser esnobado, ou estar interessado apenas no sexo, ou talvez com o seu medo de envolver-se profundamente em uma relação. Desde então, ela não mais o viu, “simples assim” (v. 51). 138

Como vem sendo realizado no projeto tradutório aqui apresentado, o poema em português busca reconstruir o jogo sonoro do texto em inglês junto de seu jogo semântico, priorizando-se as rimas, às vezes deslocadas para versos próximos (por exemplo, “Eu ouvia o mar. / Afoguei seu som. / O ouvi gritar”, “I heard the sea. / I drowned him out. / I heard him shout”, v. 14-16). Isso ocorre também na rima final, “act” e “that” (v. 49-51) no poema em inglês, “interpretação” e “desde então” (v. 49-50) em português.

5.20. SRA RIP VAN WINKLE (MRS RIP VAN WINKLE)

O orgasmo da noiva de Pigmaleão serve como gancho para a história de “Mrs Rip Van Winkle”, poema sobre o sexo e a velhice baseado no conto homônimo e influenciado pelo folclore germânico do escritor Washington Irving (1783-1859). O Rip Van Winkle de Irving é um homem gentil porém preguiçoso, para desespero da esposa; para escapar das reclamações da mulher, ele refugia-se nas montanhas e, depois de embebedar-se junto com espíritos que lá encontra, acaba adormecendo por vinte anos. Ao retornar para casa, descobre que a esposa falecera e, assim, não precisa mais lidar com sua implicância – para inveja dos outros homens do vilarejo. O sono do marido da senhora Rip Van Winkle é metafórico e representa o abandono da vida sexual tradicionalmente associado à velhice, o que permite à poeta explorar os efeitos disso sobre a esposa. Para a persona construída por Carol Ann, que afunda “nas águas calmas e profundas da terceira-idade” (v. 2), esse é um momento de encontro consigo mesma, onde ela descobre atividades que lhe dão prazer: viajar para o exterior, pintar. De tudo, no entanto, o que mais lhe agrada “foi dizer um nada saudoso adeus ao sexo” (“[...] a none-too-fond farewell to sex”, v. 15): estar por conta própria e dedicando-se ao que lhe interessa é o suficiente. O tom de satisfação, no entanto, dá lugar ao choque e à surpresa quando ela chega “em casa com um giz do Niágara” (v. 17) e vê que o marido a “esperava na cama chacoalhando Viagra” (v. 18). O Viagra, droga usada no combate da disfunção erétil, veio a público no final da década de 1990, período da publicação de The World’s Wife; Duffy rapidamente integrou a imagem ao repertório do volume. Existe algo de cômico na insistência do marido, mas ao mesmo tempo a voz lírica de “Sra Rip Van Winkle” parece sugerir, em relação ao conto que a inspira, que as reclamações para que um marido preguiçoso

139 ponha-se a trabalhar são menos incômodas que a insistência masculina acerca do sexo: é ele, afinal, quem a importuna. A tradução se orientou pelos efeitos sonoros do original, como a aliteração em [s] no nono verso – “Seeing the sights I’d always dreamed about”, “cenários com que sempre tinha sonhado” no poema em português) e a rima na quinta estrofe na forma de assonância em [é] e [o] – “Mas meu maior sucesso, / que de longe superava o resto, / foi dizer um nada saudoso adeus ao sexo”, “But what was best. / what hands-down beat the rest, / was saying a none-too-fond farewell to the sex” (v. 13-15). O poema em português também procura manter a quantidade de acentos em cada verso.

5.21. SRA ÍCARO (MRS ICARUS)

Para escapar de seu aprisionamento no labirinto do Minotauro, Ícaro voou com asas afixadas aos seus ombros por cera de abelha. Sua tragédia foi não ter prestado atenção aos avisos do pai, Dédalo, e se aproximar demais do sol: o calor derreteu a substância e causou a queda de Ícaro no mar (GRIMAL, 1986, p. 215). O objetivo de Duffy em “Mrs Icarus”, assim como em “Mrs Darwin”, é valer-se da familiaridade provável de seu público com a narrativa, já retratada tantas vezes na arte e na poesia, sem aprofundamento particular (DUFFY:WOOD, 2005), para lhe acrescentar um pequeno comentário à parte. No âmbito do projeto de The World’s Wife, a senhora Ícaro que vê o marido despencar no mar caracteriza o ato, pura e simplesmente, como estupidez masculina, num misto de humor maldoso e de resignação que emerge da consciência de não ser a primeira mulher nesta posição. “Mrs Icarus” é um poema breve, de cinco versos, que ancora-se formalmente na rima entre “hillock”, outeiro (v.2), e “pillock”, uma pessoa estúpida (v. 5). A rima simples e o acúmulo de adjetivos do verso final orientaram a tradução: “morro vazio” e “imbecil” buscam a manutenção da rima entre o lugar de onde a senhora Ícaro observa o desenrolar do voo do marido e o adjetivo que ela lhe confere. “Grade A”, de boa qualidade (v. 5), foi traduzido como “grande” pela similaridade dos sons.

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5.22. FRAU FREUD (FRAU FREUD)

A persona em foco neste poema é a esposa51 de Sigmund Freud, fundador da psicanálise. Ela dirige-se a uma audiência formada por mulheres em tom de palestra (“Ladies, for argument’s sake”, v. 1), e seu discurso intenta desmontar um conceito cunhado por seu marido, a ideia freudiana da “inveja do pênis”. Duffy não se ocupa das minúcias da teoria, e admite não ter um conhecimento aprofundado do pensamento de Freud (DUFFY:WOOD, 2005); o que lhe interessa é o entendimento de senso comum dessa teorização, expresso diretamente nos termos que nomeiam o conceito. A ela a poeta vai contrapor pena ou comiseração gerada pela aparência do órgão como sendo a verdadeira natureza do sentimento feminino em relação ao pênis. Identifica-se a apropriação, por parte da escritora, de um discurso acadêmico (um espaço tradicionalmente negado às mulheres ao longo da História e que ainda hoje permanece sob certa disputa), que por ela também é subvertido: os argumentos da senhora Freud, embora embasados por conhecimento empírico, não seguem um padrão estritamente científico, constituindo-se de uma listagem de expressões coloquiais e pitorescas para se referir ao órgão genital masculino (trinta, no total). Esta leitura ressalta o efeito dialógico gerado na forma do monólogo dramático com que Duffy trabalha e a inserção de material convencionalmente pouco poético em sua poesia (GREGSON, 1996, p. 97). A listagem acentua o humor em jogo no texto e seu tom debochado, estabelecido pela quebra de expectativas quando passa de um registro polido e formal na introdução da fala da persona para um registro prosaico e, por vezes, de baixo calão, atípico de uma senhora inserida num contexto europeu e burguês do final do século 19. Atípica, também, é a familiaridade com que ela discorre dos componentes envolvidos no ato sexual, o que aponta para a interpretação de que a senhora Freud seja uma mulher liberta das amarras de seu próprio tempo e sexualmente empoderada. Seu discurso ironiza a arrogância masculina que percebe na suposição de um sentimento como “inveja” em relação ao pênis por parte das mulheres (para ela, é o órgão que lança um olhar invejoso para o mundo) e denuncia a ênfase quase obsessiva que os homens, na verdade, dedicam a ele (por conseguinte, denunciando o falocentrismo do pensamento freudiano). O acúmulo de sinônimos pode ser entendido

51 Em alemão, frau é pronome de tratamento usado para se referir a mulheres casadas.

141 ainda como forma de ridicularização do hábito masculino de conferir nomes carinhosos para a própria genitália. O poema estrutura-se como um único bloco de texto (uma estrofe) composto por catorze versos e encerrado por um dístico rimado. Insere- se assim dentro da tradição do soneto inglês, mas sua forma convencional é extrapolada por Duffy pela irregularidade do número e tipo de pés acentuais em cada verso, por não adotar um esquema rímico fixado nos versos 1-12 e por convertê-la em suporte para uma extensa lista de expressões relativas ao genital masculino, perturbando seu uso cristalizado como lírica de temática amorosa (ABRAMS, 2012, p. 370- 371). A poeta, entretanto, trabalha algumas rimas internas além do par “pretty” e “pity” (v. 13-14), na tradução reconstruída na forma da rima entre “galante” e “sufocante”: “jock” e “cock” (“neca” e “careca”, v. 2- 3); “todger” e “nudger” (“pistola” e “bingola”, v. 3); “dong”, “shlong” e “wrong” (“pau”, “bilau” e “mal”, v. 8-10); “dick”, “prick”, “disptick” e “wick” (“pinto”, “caralho”, “caolho” e “pimpolho”, v. 8-9; neste caso flexibilizou-se a rima em favor dos sons de [p] e [k] explorados nos versos); “rammer” e “slammer” (“tromba” e “giromba”, v. 9); este encadeamento de sons é produtivo para o ritmo do texto. Há o emprego de uma única figura de linguagem, o símile, através do qual a escritora alude ao escândalo sexual envolvendo o ex-presidente estadunidense Bill Clinton e a estagiária Monica Lewinsky. A inserção de um elemento contemporâneo como a citação a Lewinsky no soneto provoca um deslocamento temporal na narrativa da senhora Freud (que estaria inserida no final do século 19) e é característica dos procedimentos de atualização das narrativas femininas que Duffy propõe em The World’s Wife; para a poeta, seu propósito é reforçar a ideia de hipocrisia masculina que permeia o texto, já que Clinton negou repetidamente seu envolvimento com a estagiária mesmo após a eclosão do caso (DUFFY:WOOD, 2005). A tradução manteve o pronome de tratamento “frau” no título do poema por ser uma marcação que o distingue dos outros textos da obra e pela geração de um efeito aliterativo. Também buscou certa proximidade com as acentuações do poema em inglês, mas priorizando o efeito das rimas e aliterações; a métrica irregular do poema traduzido se justifica à medida em que Duffy flexibiliza a regularidade do soneto e não introduz uma restrição formal neste sentido. A problemática óbvia colocada para a tradução de “Frau Freud” diz respeito à recriação da sequência de expressões sinônimas de pênis, fortemente marcadas por seu contexto britânico. Para o funcionamento do 142 poema, foi preciso transformá-las em um código legível dentro do sistema do português brasileiro. Partiu-se da construção de uma lista de termos afins na cultura alvo (que, dada a prevalência do ato sexual em qualquer sociedade humana, acabou por tornar-se bastante extensa), da qual escolheram-se aqueles que permitiam combinações em grupos de duas ou três palavras que rimassem ou que apresentassem sons semelhantes. A tradução busca acomodá-los de acordo com características do texto de origem: palavras que são também nomes próprios (“percy”, “júnior”, v. 2; “Rupert”, “Bráulio”, v. 9), palavras que rimam entre si, palavras que geram efeitos aliterativos ou contam uma história específica acerca da significação de “pênis”. Foram obtidas consonâncias principalmente com sons de [k], [t], [r] e [s]. Uma leitura possível é a de que o emprego de expressões de registro grosseiro funciona como ato de insurgência da senhora Freud em relação ao recato de sua época, e sua aparição em concomitância com outras de registro mais polido ou infantil contribui para o humor gerado no poema em inglês. Desta forma, o calão dos sinônimos escolhidos para a tradução não foi uma preocupação específica, entendendo-se que a variação para um registro mais chulo em alguns deles pode amplificar este efeito humorístico e decorre do procedimento de reconstrução do sentido do texto de origem com o repertório de uma língua distinta. Disto decorre a tradução de “Hunt-the-Salami” por “afogar o ganso”, expressão de uso corrente no Brasil e que projeta-se de modo mais claro neste contexto. No dístico final, a manutenção da rima levou à substituição de uma rima rica (entre substantivo e adjetivo) por uma rima pobre (dois adjetivos).

5.23. SALOMÉ (SALOME)

Embora Duffy sugira que “Salome” segue “Frau Freud” por serem ambos poemas a tematizarem atitudes que possam ser consideradas promíscuas (DUFFY:WOOD, 2005), outra leitura possível é a de que estes poemas aparecem lado a lado por serem ambas personae mulheres sexualizadas e sexualmente empoderadas. É verdade que a Salomé de Carol Ann é uma figura algo decadente. A personagem que a inspira, retirada na narrativa bíblica (Marcos 6:17-29), igualmente não representa um modelo de virtude: a filha de Herodias – frequentemente identificada como Salomé – teria encantado o rei Herodes II com sua execução da dança dos sete véus; ele, encantado, teria lhe oferecido qualquer recompensa que desejasse, ao que a jovem pediu pela cabeça de João

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Batista, então prisioneiro do rei, numa bandeja. A escritura sugere que Herodias ressentia-se de João, que condenava sua união com Herodes, originalmente seu cunhado, e usou a filha para seus próprios fins; já Duffy busca recuperar a visão proposta por Oscar Wilde, de que Salomé desejava João Batista e fora rejeitada por ele (ibid.). A poeta joga com o clichê de se acordar “com uma cabeça no travesseiro ao lado” (v. 4) ao mesmo tempo em que a decadência de Salomé é exagerada para causar um efeito cômico: essa versão da personagem é festeira e inconsequente, “acabada [...] na ressaca após a noite de bebedeira” (v. 23), incapaz de lembrar o nome de seu companheiro – embora tenha uma vaga lembrança de sua relação com personagens bíblicas, questionando se seria “Pedro? / Simão? André? João?” (“Peter? / Simon? Andrew? John?, v. 14-15; os nomes de apóstolos foram atualizados para a grafia mais comum ao português brasileiro). Como muitos de nós, a ressaca de Salomé a leva à vaga – e provavelmente vã – promessa de se “endireitar, / emagrecer, / e parar de beber e de fumar e de foder” (“I needed to clean up my act, / get fitter, / cut out the booze and the fags and the sex”, v. 25-27), o que a faz virar- se para expulsar “o malandro, / miserável ou mané” (“the blighter, / the beater or biter”, v. 29-30; a tradução buscou recuperar a aliteração e gerar um eco com outros sons de [e] aberto na estrofe) de sua cama. Este é o momento em que ela levanta a “coberta vermelha” (“sticky red sheets”, v. 34; os lençóis estão grudentos com o sangue, a que a tradução alude mais sutilmente pela referência ao vermelho) e encontra “a bandeja com sua cabeça” (“his head on a platter”, v. 36), mas não sem antes soltar uma imprecação – “e não é uma vida de merda?” (“ain’t life a bitch”, v. 35, poema em português busca recuperar o registro coloquial e pouco polido da expressão). Em “Salomé”, como em “Sra Sísifo” e “Dalila” antes dele, o esquema de rimas e meias-rimas é construído com base em uma palavra significante para a narrativa – “platter”, bandeja. A tradução busca reconstruir características dos jogos semântico e sonoro de forma mais frouxa, dadas as diferenças entre os dois idiomas. O poema em português acabou gerando uma profusão de sons de [a] antecedidos por sons de [e] abertos e fechados em fim de verso, mas também internamente, que ecoa a construção final “bandeja com sua cabeça”.

5.24. EURÍDICE (EURYDICE)

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De acordo com a tradição grega, a dríade Eurídice era a esposa de Orfeu, representante arquetípico do poeta (aedo) grego. Ela falecera após ser picada por uma serpente e Orfeu, inconsolável pela perda, desceu até o Submundo para recuperá-la; com sua lira, ele abre caminho entre os monstros e encanta os deuses. Eurídice poderá retornar desde que o poeta não olhe para trás no caminho até a superfície mas, incerto de que ela o seguia, ele vira-se – e perde Eurídice uma segunda vez (GRIMAL, 1986, p. 315). “Eurydice” permite que Carol Ann desafie uma imagem algo persistente até hoje: aquela do poeta como figura masculina, da poesia como reino dos homens. Na sua versão da história, Eurídice está confortavelmente instalada no Submundo, “o lugar onde a linguagem parava” (v. 4), satisfeita por estar “a salvo / do tipo de cara / que segue seu rastro / escrevendo poemas” (v. 16-19). O retrato que ela apresenta do poeta não é muito lisonjeiro: a vida a dois era consumida pela poesia dele e Orfeu ressentia-se ao receber críticas; a persona também duvida de seu estatuto enquanto gênio poético, já que ela mesma digitara os textos para a publicação. Eurídice recusa o posto de “Sua Musa” (v. 22) a que ele tenta confiná-la e sugere que, se pudesse viver novamente, preferiria escrever seus próprios textos “a ser Querida, Amada, Branca Deusa, Mulher Misteriosa, etc., etc.” (v. 49). O reaparecimento de Orfeu lhe exaspera: segui-lo de volta à vida significa acabar “presa nas suas imagens, metáforas, símiles, / quadras e sextilhas, dísticos, redondilhas, / elegias, limericks e villanelles, / histórias, mitos...” (v. 63-66); ultrapassando os limites da relação entre Eurídice e Orfeu, estes versos podem ser entendidos como um comentário sobre os modos com que as vozes de mulheres são tradicionalmente afogadas pelas masculinas e construídas a partir de seu olhar, premissa que The World’s Wife procura desmontar. “Mas os Deuses são como os editores, / geralmente homens”, diz a persona (v. 51-52), e ignoram a sua vontade em favor do pedido de Orfeu. Eurídice, no entanto, não é uma vítima passiva de sua sorte, e faz tudo que está em seu alcance para que ele olhe para trás. Suas tentativas falham até que, num momento de inspiração, ela elogia o poema de Orfeu e pede para que ele o declame novamente, apelando para seu ego e sua vaidade. É assim que ela leva a melhor sobre o companheiro e consegue retornar ao sossego da morte. Suas últimas palavras, onde ressalta o talento dos mortos – afogados – em oposição aos vivos que circulam em volta do lago de silêncio, podem ser lidos como o início do poema da própria Eurídice, sugere a autora (DUFFY:WOOD, 2005). Esse reconhecimento algo tardio de Eurídice

145 como poeta – em conjunção com a referência “na época as coisas eram diferentes” (v. 34) a respeito da fama de Orfeu – pode ser compreendido dentro do reconhecimento algo tardio de mulheres escritoras que emerge, no contexto inglês, junto dos novos cânones nas últimas décadas do século 20 (DAWSON, 2016, p. 38). Ao fazê-la dirigir-se repetidamente a uma audiência de mulheres, também parece sugerir que a união entre elas é a forma de resistência à dominação masculina. A tradução de “Eurídice” foi realizada após um longo período passado no Rio Grande do Sul, e assim o dialeto gaúcho acabou por se insinuar no texto em português – este é o motivo de “girls” (v. 1) ter sido vertido como “gurias” enquanto o restante das traduções normalmente traz “meninas”; o projeto tradutório desenvolvido para o livro incorpora palavras originadas em diversas regiões do país, e o efeito gerado no verso foi julgado satisfatório. A palavra “nowhen” (v. 3), cujo significado é algo como “em tempo nenhum”, foi traduzida como “nonada” que, além de soar como “no nada”, introduz ao mesmo tempo uma relação de intertextualidade com o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, julgada desejável ao se pesar o diálogo que o texto de Duffy estabelece com outras obras – e cujo significado de “insignificância” ou “quase nada” também funcionam, já que Eurídice está reduzida ao estado de morte. Para a manutenção do efeito onomatopaico de “knock-knock- knock” (v. 28), o poema em português emprega a forma “toc-toc-toc”. Sugere-se “Ózão” na reconstrução de “Big O”, no verso 30, por acreditar- se que lhe confere certa coloquialidade específica do aumentativo em português ao mesmo tempo que ainda evoca a ideia de um grande zero, que parece ser o real motivo do apelido escolhido por Eurídice. A lista de animais que se acomoda para ouvir Orfeu declamar, que vai de “aardvark to zebra” (v. 39), é reconstruída como “da abelha à zebra”, reconstruindo a referência aos animais de todo o alfabeto, já que o aardvark é mais conhecido em português como porco-da-terra. No poema em português, “Octaves and sextets, quatrains and couplets” (v. 64) aparece como “quadras e sextilhas, dísticos, redondilhas” em razão do jogo sonoro, bem como “Na verdade, senhoras, eu prefiro estar morta” (“In fact, girls, I’d rather be dead”), v. 50). Rimas internas e em final de verso e efeitos de aliteração também serviram como parâmetros para a construção do texto em português.

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5.25. AS IRMÃS KRAY (THE KRAY SISTERS)

“The Kray Sisters”, assim como “A Esposa do Diabo”, baseia-se em uma narrativa factual e contemporânea que adentrou o imaginário britânico. Os gêmeos Reggie e Ronnie Kray foram os principais chefes do crime organizado no East End londrino nas décadas de 1950 e 1960, líderes da gangue conhecida como The Firm – A Firma. Eles também gozavam de certo status de celebridades por serem donos de casas noturnas em outro bairro, o West End, e seus clientes incluíam diversas celebridades e figuras políticas da época. Duffy lembra que havia uma espécie de “tolerância afetuosa” em relação a eles no East End, onde a poeta também residiu, e considera que fazem parte de uma imagem sentimentalizada do bairro (DUFFY:WOOD, 2005). Assim como no caso de “Queen Kong”, as personagens titulares são reimaginadas como mulheres; este é também o único poema do volume em que duas vozes femininas falam em uníssono. Como sua mãe falecera após o parto, as gângsteres de Carol Ann foram criadas pela avó, uma das sufragistas originais da “armada de Emmeline52” (v. 20), ouvindo suas histórias. A poeta considera portanto que o feminismo estaria no sangue das gêmeas Kray, e as descreve como “sado-feministas” (ibid.), mulheres de vozes independentes e duronas em uma dura realidade de mundo, que patrulham a área e garantem que todos sigam uma cartilha feminista, oferecendo proteção à qualquer mulher que estivesse com problemas “sem perguntas” (v. 48). O monólogo das irmãs Kray parece estar sendo proferido muito depois dos seus tempos como donas das casas noturnas, já que elas pedem à audiência que lembre-se delas no seu “pico e auge” (v. 63). O maior desafio para a tradução de “As Irmãs Kray” sem dúvidas é o emprego do “rhyming slang”, uma forma de construção linguística bastante praticada no East End. No rhyming slang uma palavra é substituída por outra expressão composta que rima com a primeira, e por vezes a palavra final (onde está a rima) é suprimida, assemelhando-se a uma língua codificada – o que cabe bem na caracterização das gêmeas como gângsteres. Duffy utiliza as seguintes: “frog and toad” (“sapo e rã”, substitui “road”, rua; v. 2), “whistle and flutes” (“assovio e flautas”, substitui “suits”, ternos; v. 3), “thr’penny bits” (“peças de três centavos”, substitui “tits”, peitos; v. 4), “mince pies” (“tortas de carne”, substitui “eyes”, olhos; v. 8), “God Forbids” (“Deus me livre”, substitui “kids”,

52 Emmeline Pankhurst, uma das fundadoras do movimento pelo Sufrágio.

147 crianças; v. 13), Vera Lynn (nome de uma cantora britânica bastante tradicional, substitui “gin”, gim; v. 20), “orchestra stalls” (“barracas da orquestra”, substitui “balls”, testículos ; v. 30) e “butcher’s” (vem de “butcher’s hook”, “gancho de açougueiro”, substituindo “look”, olhar; v. 53). Desconhecendo-se estruturas minimamente análogas em português e para não afetar a legibilidade do texto de Duffy, normalmente bastante aberto, com a invenção de um código similar, optou-se por traduzir o rhyming slang, bem como algumas outras inserções ao longo do poema, por gírias que oferecessem um certo ar datado, como “becas”, “coroas”, “para-choques”, “possante”, “auê”. Espera-se com isso recuperar a imagem das irmãs Kray como pessoas envolvidas com a vida noturna, talvez algo rebeldes. O poema traz também diversas referências marcadas como pertencentes à cultura londrina, como nomes de ruas (“Savile Row”, v. 3; “East End”, v. 5; Hungerford Bridge”, v. 36; “Mile End Road”, v. 40, “Piccadilly”, v. 49), marcas de carros (“Austin Princess”, v. 10), competições nacionais (“Grand National”, v. 15). Em português, escolheu-se a manutenção destas marcações, apenas traduzindo “bridge” no v. 36 como “ponte” para maior clareza. Do mesmo modo, a “música- tema” das gêmeas, cantada por Sinatra (revelada como a filha, Nancy, em vez de seu pai, Frank, justamente através dos versos da canção) foi mantida em inglês, na presunção de que “These Boots Are Made For Walking” é uma música suficientemente conhecida também em português – ou de que a descoberta, por parte do leitor do texto em português que desconheça estas referências, seja suficientemente interessante. Em contrapartida, os estabelecimentos gerenciados pelas Kray receberam versões em português por serem nomes fictícios e de múltiplos sentidos, alguns de baixo calão: “Ballbreakers” (v. 45) tornou-se “Quebra-Nozes”, jogando com a ideia de “quebrar bolas/testículos”; “Prickteasers”, palavra utilizada para caracterizar uma moça atrevida, coquete, é palavra composta que, caso separada, significaria algo como “provocadoras de pênis/de idiotas” – tornou-se então “Pistoleiras”, termo que identifica uma mulher interesseira e sinônimo para “prostituta” que na sua forma masculina significa também bandido e que, acredita-se, as gêmeas gostariam de ressignificar. A tradução, além disso, concentrou-se na recuperação dos efeitos sonoros e números de acento em cada verso.

5.26. A GÊMEA DO ELVIS (ELVIS’S TWIN SISTER)

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Na esteira da referência à canção de Nancy Sinatra em “As Irmãs Kray”, Duffy traz à baila outra lenda contemporânea do mundo da música: Elvis Presley, o Rei do Rock’n’Roll, é a personagem que inspira “Elvis’s Twin Sister”. A poeta se vale da figura da irmã gêmea – Elvis de fato teve um irmão gêmeo, natimorto, reimaginado aqui como uma menina – para propor uma homenagem bem-humorada ao músico, aludindo à crença popular de que ele não teria realmente falecido. O poema, estruturado em seis estrofes de cinco versos cada, não possui um esquema rímico regular e é acompanhado por duas epígrafes. A primeira delas é retirada de “Are You Lonesome Tonight?”, canção gravada por Elvis que fez muito sucesso; embora os versos introduzam a temática da solidão que perpassa o poema, na tradução preferiu-se manter o texto em inglês, como se indicando a trilha sonora ao fundo de “A Gêmea do Elvis”. A segunda cita uma frase famosa de Madonna, mas não de forma exata – ao conhecer a artista k.d. lang, ela teria dito “Elvis is alive... and she’s beautiful”53 –; Carol Ann a adapta para os seus propósitos no poema, como faz com todas as narrativas em The World’s Wife, por este motivo vertida para o português. A gêmea de Elvis leva uma vida completamente oposta à do irmão – ela tornou-se Irmã Presley, freira de uma ordem reclusa, satisfeita com a simplicidade e o anonimato. Ela encontrou seu próprio caminho na vida e vive em um estado de paz – o convento é sua “Graceland / uma terra de graça” (v. 22-23), assim como uma referência à mansão do irmão –; entretanto, é possível ler nela certo senso de rebeldia e irreverência similar àquele de Elvis, já que mesmo no convento ela faz diversas referências ao mundo dele: ela usa “um par de bons e resistentes / sapatos de suede azul” (v. 19-20), como na música; ela tem um gingado nos quadris que é apreciado pela madre superiora – “A Madre Superiora / vê eu requebrar como meu irmão / e acha da hora”, “The Reverend Mother / digs the way I move my hips / just like my brother” (v. 8-10) –; e ela reza “pela alma imortal / do rock 'n' roll” (v. 4-5) – que pode ser lida como a dele, o rei, algo curioso para a integrante de uma ordem religiosa. Uma vez que Elvis é uma personagem famosa na contemporaneidade, como na primeira epígrafe o poema em português busca manter as referências às músicas do artista – daí não se haver traduzido “suede” (v. 20) por “camurça” (também pelo efeito aliterativo

53 In: LEVY, Ariel. “Return of the Ingénue”. New York Magazine, Estados Unidos, fev. 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

149 gerado com “sapatos”), bem como a expressão “Lonely Street” que antecede “Hotel Heartbreak” (ordem da segunda expressão foi invertida para maior clareza). Também manteve-se a frase em latim, “Pascha nostrum immolatus est” (“O cordeiro pascal foi imolado”, v. 13), em referência ao canto gregoriano que ecoa pelo convento – ao combinar o rock ao canto gregoriano, a irmã Presley de certa forma redime a “música do diabo” de seu irmão. Em contrapartida, “Lawdy” faz referência tanto à música “Lawdy Miss Clawdy” como também a “Lord”, Deus (v. 26); a tradução tenta recriar este duplo sentido pelo emprego de “Senhor meu Rei”, jogando com as ideias de interjeição, de divindade, de Elvis como rei do rock e gerando um eco com as vogais em “bem” e “Heartbreak” nesta mesma estrofe.

5.27. PAPISA JOANA (POPE JOAN)

Da clausura do convento em “A Gêmea do Elvis”, The World’s Wife nos catapulta para o posto máximo da igreja católica, o papado. “Pope Joan” alude a uma narrativa sem base histórica mas bastante popular acerca de Joana, jovem mulher letrada que teria se disfarçado como homem e ascendido na hierarquia católica até eventualmente ser eleita pontífice; ela dirigiria a instituição por um breve período na Idade Média, até seu gênero ser revelado durante uma procissão, na qual ela teria dado à luz. Duffy sugere que o poema é uma exploração do efeito da maternidade em uma mulher que conseguiu ser bem-sucedida em um mundo extremamente masculino; ela o considera um poema bastante autobiográfico (DUFFY:WOOD, 2005). Para Joana, ainda que duas vezes mais virtuosa (v. 16) que os “melhores dos homens” (v. 14) que fizeram do Vaticano sua casa, há um esvaziamento de sentido no cargo de papa após o nascimento da criança, seu verdadeiro “milagre” (v. 29). Nesse sentido, “Papisa Joana” refletiria a trajetória da própria Carol Ann, que também alcançou sucesso no mundo bastante masculino da poesia, mas que vê a maternidade como sua experiência mais sublime – “[...] o mais perto que me senti / do poder de Deus” (v. 21). “Pope Joan” é composto de dez estrofes de três versos, como “pequenas orações” (ibid.). A tradução não se deparou com grandes questões no caso deste poema, e se concentrou na reconstrução das imagens e dos efeitos sonoros.

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5.28. PENÉLOPE (PENELOPE)

Na Odisseia, Penélope teria aguardado pacientemente o retorno de Odisseu após a guerra de Troia, recusando os pretendentes que surgiram na ausência do marido e a importunavam: ela prometera escolher um deles depois que terminasse de tecer a mortalha do sogro, mas desfazia o trabalho durante à noite, protelando a decisão indefinidamente. A personagem consolidou-se como arquétipo da fidelidade matrimonial (GRIMAL, 1986, p. 337). A revisão da narrativa em “Penelope” surge, de acordo com a autora, do desejo de esmiuçar a ideia de que, na ausência de Odisseu, Penélope teria “apenas esperado” (DUFFY:WOOD, 2005). Nesta versão, a persona de fato começa dessa maneira, “contando vê-lo no caminho para casa / por entre as oliveiras” (v. 2-3) mas, conforme os meses se esvaem e não há sinal do marido, a ausência lentamente torna-se menos pungente. Como no caso da Sra Lázaro antes dela, a passagem do tempo opera mudanças na personagem. Penélope decide distrair-se bordando, separando “pano e tesoura, agulha, linha comprida” (v. 9) – e nessa atividade é que ela encontra sua vocação, “o projeto de uma vida” (v. 11). A ausência de Odisseu lhe permite descobrir-se como artista: seu “dedal feito semente / irrompendo da terra escura” (v. 19-20) sugere que algo cresce nela a partir disso. “Penélope” é um poema em que, ao perder-se em seu trabalho, a persona também é capaz de encontrar a si mesma – seu “bordado de amor, luxúria, perda, aprendizado” (v. 25) retrata sua própria vida. Então, quando os pretendentes aparecem para lhe perturbar, ou mesmo quando ela reconhece “o som dos passos atrasados” (v. 43) do Odisseu retornado ao final do poema, Penélope permanece a “mulher no centro / daquele mundo, independente, absorta, contente” (v. 41). O amor que havia pelo marido foi transformado em amor pela sua arte. A tradução procurou reconstruir a trama sonora do poema em português, concentrando-se principalmente sobre as rimas em final de verso, jogando por vezes com sons aproximados. É o caso, por exemplo, dos versos 17-18, onde o eco de “to show a snapdragon gargling a bee. / I threaded walnut brown for a tree” é reconstruído como “para mostrar a abelha engolida pelo dente-de-leão. / Trancei uma árvore em marrom”.

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5.29. SRA FERA (MRS BEAST)

Em “Mrs Beast” o projeto que Carol Ann Duffy desenvolve ao longo de The World’s Wife é reiterado já desde os primeiros versos, onde a persona afirma que “Estes mitos que circulam, fábulas e lendas, / vou contá-los direito”: a senhora Fera, assim como a poeta, busca revisar e atualizar a(s) história(s) a partir das vozes de mulheres que dela(s) são frequentemente apagadas. A autora identifica a voz lírica como sua Chapeuzinho Vermelho crescida e com o próprio dinheiro (DUFFY:WOOD, 2005), mas nela reverbera algo de diversas personae mobilizadas anteriormente no volume: da Rainha Herodes (“Eu poderia ter avisado - veja, querida, sei do que falo, / os príncipes são uns desgraçados”, v. 12-13); de Circe (“O porco na minha cama / fora convidado”, v. 36-37); da Queen Kong (da compleição simiesca da Fera ao brinde em homenagem à atriz Fay Wray, v. 79); da monstruosidade da senhora Quasímodo; até mesmo das gêmeas Kray e seu mundo de figuras escusas no seu jogo de pôquer. A senhora Fera nunca é referida como a “Bela” da história que inspira o poema. Ela fala com a voz de uma mulher forte, um tanto endurecida pela vida, que apresenta-se como uma mulher experiente e aconselha sua audiência a tomar uma Fera – e não um príncipe, ou mesmo um homem – por companheiro, já que “O sexo / é melhor” (v. 14-15). Diante de sua senhora, a Fera adota uma postura dócil e servil e mostra “com as lágrimas dos olhos injetados / que sabia da sua sorte” (v. 23-24). A persona assevera sua independência – e dominância – em relação ao companheiro, mostrando-se como pessoa plena, que não precisa ser definida por sua relação com um homem. Igualmente, a senhora Fera reclama para si comportamentos associados com frequência ao mundo masculino, exemplificado pelo tenso jogo de pôquer que se arma com suas companheiras, todas mulheres, figuras “duronas, fortes pra cacete, / todas nós belas e ricas” (v. 48-49; embora “fortes pra cacete” introduza uma imagem fálica, foi a solução encontrada na tradução para manter o registro pouco polido de “tough as fuck”). Elas têm consciência de que sua posição é a exceção em vez da regra: o poema permite que Duffy lide brevemente com as narrativas de diversas figuras, de origens literárias – Julieta (v. 4), a Pequena Sereia (v. 6), Rapunzel (v. 72), as esposas de Barba Azul (v. 74) –, mitológicas – Helena de Troia (v. 3), Eva (v. 71) –, históricas – Cleópatra (v. 3), Nefertiti (v. 5), as esposas de Henrique VIII (v. 74) – e até mesmo contemporâneas – Marilyn Monroe (v. 71), a cantora Bessie 152

Smith (v. 73), a princesa Diana (v. 75) –, entre outras, que não foram discutidas no decorrer do volume, “uma fila de fantasmas / impedidas de vencer” (v. 70-71) que jamais se esgotará. O texto de Duffy, assim, constitui uma espécie de elegia para as “perdidas, as belas e cativas, / as esposas, as menos afortunadas que nós” (v. 87-88). Há uma ideia de solidariedade entre mulheres que perpassa o texto de “Sra Fera”, e é a partir da tristeza causada pela lembrança destas outras mulheres que não se encontram em uma posição análoga à das amigas de pôquer que a persona revela um lado mais vulnerável. A ocultação dessa fragilidade, a aparente dureza, é o custo de sua autossuficiência, o custo de sua sobrevivência em um mundo que não mostra clemência para com as mulheres. A senhora Fera então escolhe a posição de força sobre a Fera, recusando a feminilidade idealizada pelo masculino, relegada ao reino do sentimento: “Deixe que aquela a amar menos seja eu” (“Let the less- loving one be me”, v. 92), afirma ela, contradizendo o verso de W.H. Auden (“Let the more loving one be me54”). A tradução buscou reconstruir a irregularidade formal do poema em inglês, concentrando-se sobre os efeitos sonoros como as aliterações (por exemplo, em “Ele tinha grunhidos, gemidos, ganidos, / o bafo de um bode”, “He had the grunts, the groans, the yelps, / the breath of a goat”; v. 32-33) e as assonâncias (por exemplo, “A Pequena Sereia cortou / em duas a cauda de prata polida, esfregou sal / na droga da ferida”, “The Little Mermaid slit / her shining, silver tail in two, rubbed salt / into that stinking wound”; v. 6-8), entre outros. As modalidades de pôquer citadas pela senhora Fera tiveram seus nomes mantidos em inglês, como costumam ser referidas no Brasil, mas “pot” foi traduzido para a forma “pote”, também usada, para facilitar o jogo de duplo sentido do pote de mingau (v. 60).

5.30. DEMÉTER (DEMETER)

A jornada da Esposa do Mundo encerra-se com “Demeter”, soneto com que Duffy celebra a maternidade. Embora exista uma referência enviesada a um relacionamento prévio – “meu coração partido” (v. 4) –, o foco do poema é a relação entre mãe e filha e não entre uma mulher e

54 AUDEN, W. H. “The More Loving One”. Poets.org. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2017.

153 um homem, o que o distingue dos outros poemas em The World’s Wife. Como costuma ser na poesia de Carol Ann, o mundo de Deméter transforma-se deixando de ser uma paisagem desolada – “inverno e terra bruta” (“winter and hard earth”, v. 1) – através da experiência da maternidade: neste caso específico, pela experiência de ter uma filha que, tal qual Perséfone, traz “todas as flores da primavera / para a casa da mãe” (v. 10-11). A leitura autobiográfica insinua-se com certa força em “Deméter” – a única filha da poeta nasceu quando ela já estava com quase quarenta anos, “none too soon” (“bem na hora”, v. 13) (DUFFY:WOOD, 2005). Também é possível a leitura metapoética: Deméter senta-se na “fria sala de pedra / escolhendo palavras duras” (v. 2-3), como Carol Ann ao longo do livro; a Chapeuzinho Vermelho que sai da floresta carregando as flores da poesia vinte e nove poemas atrás reverbera na imagem da filha que atravessa os campos trazendo as flores da maternidade, e finaliza um ciclo que tem muito a ver com a experiência de Duffy – “I define myself as a poet and as a mother”, diz ela: define-se como poeta e como mãe (DUFFY:WINTERSON, 2005). “Deméter” já havia sido traduzido previamente, o único dos poemas de Duffy a possuir versões tanto em português europeu – Oliveira (2009) o traduz junto com “de Sra Tirésias” e “Sra Lázaro” – quanto em português brasileiro – com autoria de Telma Diniz (2010). De modo distinto do que aconteceu com as versões de Oliveira, cuja leitura foi evitada no período que antecedeu a tradução, esse não foi o caso com o “Deméter” em português brasileiro. O desafio maior para o processo tradutório, então, foi afastar-se suficientemente da leitura de Telma para produzir a leitura do Bernardo; há, entretanto, limites para o que pode ser feito a partir de um poema cuja forma se intenta reconstruir em nosso idioma. Assim, há versos em que nossas conclusões foram extremamente similares, e o eco gerado entre “terra bruta” (v. 1) e “palavras duras” (v. 3) foi emprestado da versão da tradutora por ser julgada uma solução bastante eficaz. As maiores diferenças dizem respeito ao registro de linguagem – minha versão prioriza a coloquialidade, abandonando, por exemplo, a ênclise – e a resolução da rima no dístico final. Diniz (2010) a resolve belamente como “e o céu se abriu azul, no sorriso incipiente / e tênue da recém-nascida lua crescente” (v. 13-14); na minha versão, o resultado obtido é “e o céu sorriu azul, bem na hora, / abrindo a boca tímida de uma lua nova”, recuperando a rima pela assonância mas algo mais próximo dos sentidos mobilizados por Carol Ann em “and the blue sky smiling, none too soon, / with the small shy mouth of a new moon”. 154

O componente pessoal que procurei inserir na minha versão inspira-se na fala de minha mãe, natural do interior do Rio Grande do Sul, que motivou a escolha de “açude” como tradução para “lake” – ela é, afinal, o que eu melhor conheço de amor materno.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O primeiro capítulo da presente dissertação, “Carol Ann Duffy e The World’s Wife”, debruçou-se sobre a dicção da escritora e na análise do volume escolhido para tradução. A argumentação foi construída com o objetivo de caracterizar o modo “Duffyesco” como poética democrática e política, que se vale do recurso do jogo sonoro e uma linguagem corrente para convidar o(a) leitor(a) a colocar em questão, ainda que minimamente, temáticas e lógicas integradas ao pensamento hegemônico. É uma voz que não se furta ao diálogo com as vivências de grupos marginais, engendrando-se como ferramenta de resistência, que tem na sua base o poema como modo de captura de uma verdade emocional – a ser por ele amplificada – e a enunciação dele como coisa pública, na conotação de coisa pertencente ao povo tanto quanto da realização do texto em voz alta para uma audiência – como seu propósito. Voltando-se o olhar então para o livro de 1999, propôs a análise do volume à luz do conceito de “revisionist mythmaking”, recurso literário pelo qual uma escritora reordena uma mitologia prévia que a excluía, enquanto mulher, para que passe a incluí-la. Entendendo o riso como fator de desestabilização das narrativas dominantes, tenta demarcar os processos pelos quais as personae de cada um dos poemas distinguem-se das suas contrapartes tradicionais ao serem construídas como vozes de sujeitos com agência e particularidade e mostrar que suas perspectivas, ouvidas, transformam completamente nossa leitura de cada uma dessas histórias. No segundo capítulo, intitulado “Poesia e Tradução”, tenciona-se demarcar um posicionamento teórico em relação à tradução poética que a compreenda enquanto ato criativo, que implica escrever poesia. Isso passa por um diálogo com diferentes eixos de fortuna crítica especializada, que procura explorar a multiplicidade do poético enquanto objeto e enquanto expressão da sensibilidade humana, sendo o poema a cristalização literária de uma experiência. O tradutor, ao confrontar-se com a tarefa de verter o texto para sua outra língua, há que se posicionar frente a ele de forma estratégica para responder às demandas colocadas por uma práxis pensada no espectro do possível e que possa se constituir, de fato, como uma prática; terá de mobilizar, portanto, competências textuais próprias e da criação poética a partir de um movimento de leitura, crítica e interpretação sobre um texto em outro idioma, orientado por dispositivos linguísticos distintos daqueles do contexto que irá recebê-lo. Estabelecendo relações de correspondência em vez de equivalência, o processo tradutório da poesia representa uma leitura transformadora do 156 texto que não precisa estar presa a interdições tradicionalmente atribuídas ao gênero. O terceiro e quarto capítulos apresentam, respectivamente, a tradução, “A Esposa do Mundo”, e os “Comentários da Tradução” gerados no decorrer do fazer do tradutor, sinalizando referências identificadas em cada um dos poemas do livro e explicitando leituras em jogo na realização do movimento, enquanto agente e sujeito do texto, sobre os poemas de Carol Ann Duffy. Enquanto pretende demonstrar, com um viés aplicado, competências que se entende serem do âmbito do papel do(a) tradutor(a) – da análise literária, do olhar contextualizado, da posição crítica em relação ao seu próprio fazer, por exemplo –, esta pesquisa, compreendendo a tradução como movimento de produção de sentido sobre um potencial do texto, demarca uma espécie de jornada da “Esposa do Mundo”, iniciada por “Chapeuzinho Vermelho” e encerrada por “Deméter”, por questões de representação das mulheres nas narrativas tradicionais e de subversão de políticas hegemônicas, que se reflete na trajetória do fazer tradutório dessa poesia traduzida. São os poemas que conduzem o tradutor pela mão, sua lógica particular interpondo as regras desse jogo onde ele é agente e sujeito de um texto. Enquanto da transformação fantástica que opera-se sobre a obra de Carol Ann pela tradução, também se opera uma transformação nesse indivíduo que a realiza e soma a ela a voz de uma experiência marginalizada como aquelas privilegiadas pela poeta; a nível pessoal, poderia falar sobre um despertar de mim enquanto agente de uma forma de poética de resistência. Talvez sirva para corporificar, ainda, que a poesia e a tradução têm entre si fronteiras mais porosas, menos sólidas, do que se possivelmente supõe pelo pensamento comum. O trabalho aqui apresentado é ele, também, cristalização de uma experiência, como é a poesia, como é a tradução. Como desdobramentos futuros aponta-se a possibilidade de aprofundamento na problemática do mito e na problemática do gênero no fazer tradutório, a nível teórico, para além de seu condicionamento pela necessidade de resposta ao engendramento do texto na dimensão da práxis, como um exercício reflexivo que lhe contraste de nuances que avancem essas discussões tão necessárias. Discussões que, numa última análise, dizem sobre dar-se sentido ao nosso passado e nossa memória e sobre promover um diálogo mais produtivo com o que haverá de ser no futuro. Tal é, também, intrínseco e específico no ato de traduzir.

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