Descompassos e dissonâncias em torno das Agrovilas de Serra do Ramalho-Ba*

Ely Souza Estrela**

O anúncio da construção da Represa de Sobradinho em princípios 1970 significou para muitos sertanejos a confirmação da profecia de Antônio Conselheiro: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão” (Guerra, 2000). A abundância de água e a possibilidade de seu aproveitamento para irrigação, conforme propagavam técnicos e políticos, traziam consigo, além do mais, a perspectiva de confirmação de uma outra profecia também bastante conhecida dos sertanejos sanfranciscanos: a terra prometida, onde jorraria, em abundância, leite e mel. À medida que o projeto ganhava contornos mais definidos, os beraderos das áreas atingidas perceberam que, longe de confirmar a profecia, a construção da gigantesca e moderna obra apontava para a total desorganização de seus meios de vida e de seus valores sócio-culturais. Nesse aspecto, convém chamar atenção para a análise de Lídia Rebouças: [...] mesmo que o remanejamento se antecipe ao alagamento das terras, sempre resulta na perda de importantes referenciais que regiam a vida no rio, sejam estes o modo como estavam distribuídos as residências, as redes sociais de reciprocidades e afinidades, a organização da vida doméstica, ou o domínio dos vínculos com as mais diversas instituições: bancos, mercado, cartório, igreja, hospitais, prefeituras, etc. Destes referenciais também fazem parte o trabalho investido na constituição de roças, além das benfeitorias estabelecidas no sítio de cada família e das benfeitorias comunitárias. (2000, p. 28).

Em contrapartida, os órgãos governamentais argumentavam que a desorganização seria passageira e, logo que os indivíduos deslocados se estabelecessem, a situação se configuraria de outro modo, avizinhando-se perspectivas promissoras. Assim, o Projeto Especial de Colonização de Bom Jesus da Lapa foi cercado de enormes expectativas: políticos, burocratas e técnicos, nele, direta ou indiretamente, envolvidos propagandeavam seus benefícios. Mesmo a contragosto a CHESF apresentou aos desabrigados, de acordo com Ghislaine Duqué, três alternativas: 1) [...] reinstalação de forma precária na borda do lago, com apoio mínimo da CHESF: foi a opção da grande maioria (69, 8%); 2) um projeto de colonização do INCRA: foi a opção de 8, 6% das famílias; 3) reinstalação em qualquer outra região do país; esta solução própria foi escolhida por 19.2% das famílias, sendo 18% nos municípios vizinhos e 1,2% em regiões afastadas, especialmente São Paulo. (1984, p. 34).

Apesar das promessas, ameaças e pressões, somente pouco mais de mil famílias deixaram as bordas do lago em formação. As primeiras famílias chegaram ao Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, em março de 1976. Em julho do mesmo ano chegaram outras levas. De modo que, ao final de 1977, estavam instalados em Serra do Ramalho as 1029 famílias, das 1.600 cadastradas. A maioria das mil famílias que foram instaladas em Serra do Ramalho era dos povoados de Pau-a-Pique, Bem-Bom, Intãs e Barra da Cruz, todos situados no município de . Segundo Bursztyn (1988, p. 24)., “o impacto sentido pelas primeiras famílias vindas de Sobradinho foi enorme. Muito do que havia sido prometido não foi encontrado por ocasião da chegada no PEC-SR”. Em linhas gerais, os indivíduos deslocados de Sobradinho eram camponeses- posseiros-foreiros que exerciam atividades subsidiárias como a pesca, a criação e o pequeno comércio. De modo geral, estes camponeses são denominados de beraderos. Estes apresentavam um modo de vida e em uma cultura profundamente marcadas por uma relação de dependência e de afetividade com o rio. O modus vivendi do beradero estava referenciado não só num fazer, mas, sobretudo, num saber fazer e num sentir muito específico. Ele compreende um conjunto de práticas, de valores, de relações sócio-econômicas e culturais, bem como sensações e percepções, colocadas no plano da busca da satisfação das necessidades imediatas. Para o beradero sanfraciscano, o rio tinha importância fundamental, pois, além de possibilitar todo seu sistema produtivo, era seu principal meio de transporte. Em termos simbólicos, o rio representava para o beradero seu principal esquema de “percepção cultural” e sua principal referência espacial. Todo o conjunto de suas atividades sociais, seu calendário agrícola e de festas, estavam organizadas em função do ritmo do rio, o respeito do qual possuíam um saber acumulado há gerações. Com a formação do lago, os camponeses haviam sido expropriados das melhores terras para a agricultura dentro das condições sociais que prevaleciam nas áreas. O regime de águas do rio, que servia como seu principal parâmetro de percepção social, havida sido alterado. (Martins-Costa, 1989, p. 10).

2 A importância do Rio São Francisco como referência era tão expressiva que, os beraderos reassentados em Serra do Ramalho ficaram confusos quanto à sua localização. Num caso exemplar dos camponeses 'reassentados' em Serra do Ramalho, privaram-lhes do rio. Isto significa que restou-lhes apenas, como sistema de referência, o ponto fixo do povoado. Diante das novas casas, no entanto, os camponeses estão quase incapacitados de dar um passo. As casas, as roças, as ruas: carecem de 'frente'. Não 'sobem' nem 'descem'. Não se afastam nem se aproximam da beira. Todos os caminhos possíveis que partem do povoado se perdem numa região desprovida de referências, uma vez carentes de eixo. Todas as direções se confundem e se equivalem, não há como localizar nenhum ponto por referências a outro. O norte e o sul, leste-oeste não se conhecem. A rosa -dos- ventos apagou-se e o mundo está privado de eixo” (Martins-Costa, 1989, p. 124).

Em Serra do Ramalho, o rio estava longe, se encontrava muito mais distante do que quiseram acreditar. Pela primeira vez essa população teve a noção do que era viver na caatinga. Perceberam que dali em diante se tornariam caatingueiros (Machado, 1987, p. 50). A distância do rio incomodava bastante os deslocados de Sobradinho. Não custa lembrar que as agrovilas mais próximas do Rio são as situadas no Eixo 1, distantes dele aproximadamente oito quilômetros. Além do mais, as agrovilas não contavam com “água doce” de que tanto reclamam os entrevistados. Embora muitos reconheçam ter permanecido nas agrovilas pelo fato de haver água, a qualidade do líquido é considerada duvidosa. Todos reclamam da água: "água saloba”. Pesada. Tão pesada que, segundo depoimentos, forma no fundo das vasilhas uma espécie de crosta branca. “Essa água matou muita gente, criancinha e adulto. Quando cheguemos houve uma mortandade danada” (D. Evelina [nome fictício], 1999). Muitos recusaram o projeto de Serra do Ramalho e partiram em direção aos núcleos de reassentamentos situados à borda do Lago de Sobradinho. Pelo regulamento do INCRA, os “beneficiários” não tinham direito de vender os lotes antes da emancipação do Projeto, previsto para acontecer após o atendimento de alguns requisitos básicos. Em face disso, muitos reassentados repassaram os lotes a preços simbólicos. Outros recorreram aos meios mais inusitados para desfazer-se de suas posses: trocaram-nas por bens móveis e ainda outros as abandonaram simplesmente, voltando às áreas de onde eram originários ou se deslocando para São Paulo. A perspectiva de fracasso total do projeto, levou o INCRA, a redirecionar sua política em relação ao mesmo; famílias de sem-terras vindas de diferentes pontos da

3 , do Nordeste e até do Centro-Sul do país receberam lotes e se estabeleceram nas agrovilas ociosas. Em razão da demanda, novas agrovilas foram criadas e o Projeto de Serra do Ramalho se “descaracterizou”, tornando-se uma válvula de escape do INCRA e, em conseqüência, um cadinho de indivíduos provenientes de diferentes pontos do Brasil. Memória e Fontes Orais

As relações e o imaginário social cingidos no espaço das agrovilas suscitam uma série de questões e problemáticas que instigam à pesquisa. O trabalho de pesquisa que busca a apreensão da experiência e do imaginário social, ou seja, do modo como os sujeitos sociais vivenciaram ou vivenciam aspectos da realidade, exige constante diálogo com a memória. Efetivar este diálogo implica reconhecer a memória como o “espaço” de confluência de experiências diversas, sentidas e percebidas de modo diversos, dispostas - digamos assim - circularmente no tempo, mas amalgamadas em função do presente. Faz sentido, portanto, lembrar as palavras de Raphael Samuel:

[...] a memória é historicamente condicionada, mudando de cor e de forma de acordo com o que emerge no momento; de modo que longe de ser transmitida pelo modo intemporal da “tradição”, ela é progressivamente alterada de geração em geração. Ela porta a marca da experiência por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem, estampada, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória e inerantemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece permanecer igual. (1997, p. 44)

As fontes orais foram imprescindíveis para o desenvolvimento da pesquisa. A escolha desse recurso não se deu por causa da escassez das fontes, nem, tampouco, por acreditar no ineditismo das informações colhidas, como ressalta em trabalho Verena Alberti (1990), mas porque a natureza das problemáticas levantadas assim o exige. A história social está intimamente imbricada à história oral e sem ela este trabalho não teria sentido. Além do mais, não devo perder de vista que os indivíduos que se constituíram em foco e, ao mesmo tempo, parceiros deste trabalho, são tributários de uma cultura tradicionalmente marcada pela oralidade (Brito, 1999 p.20; Santana, 1997, p. 40), o que merece ser evidenciado e divulgado. O número de entrevistados é muito amplo, além dos atingidos, procurei ouvir um grande número de pessoas que direta ou indiretamente estiveram envolvidos com o processo de construção da Barragem e do assentamento da população atingida: técnicos,

4 burocratas, dirigentes políticos, religiosos, agentes pastorais, bem como antigos moradores de Serra do Ramalho e de Bom Jesus da Lapa, de modo a formar um plantel de diferentes vozes. A perspectiva era fazer um estudo vigoroso da experiência e do imaginário de indivíduos que, para além do deslocamento compulsório, vivenciaram o reassentamento em bases que não lhes permitiram grande margem de manobra, mas que, mesmo nessas condições, demostraram grande capacidade para subverter limites e determinações. Além de outros aspectos evidenciados no corpo da pesquisa, a exploração dessa oralidade foi capaz de evidenciar a existência de uma consciência crítica da experiência do deslocamento compulsório, vivenciado pelos camponeses expropriados – sujeitos desta pesquisa –, que se expressam através de uma matriz narrativa própria, que ao final culpabiliza as agências governamentais por todas as mazelas acontecidas em suas vidas depois da retirada. A existência dessa matriz mostra não só que as experiências são específicas, mas também que os sujeitos sociais criam modos particulares de narrá-las e interpretá-las, visando a certos interesses. Evidenciar essa matriz narrativa fortemente marcada pela vitimização ou culpabilização não deve ser tomado como uma ressalva aos discursos dos camponeses, pelo contrário, em alguns aspectos, compartilho dela; mas como um imperativo do fazer acadêmico.

Dissonâncias e descompassos em torno das Agrovilas

Conforme salienta Scudder, (Apud Rebouças, 2000, p. 32) “certamente o alto índice de fracasso de esquemas de reassentamento em todo o mundo pode ser atribuído, em parte, às premissas essencialmente diferentes dos técnicos ditando aos relocados, cujo comportamento eles só compreendem parcialmente”. Em Serra do Ramalho, particularmente, os descompassos e das dissonâncias foram marcantes e o Projeto que, inicialmente, era visto como um futuro paraíso, foi rejeitado pelos beraderos, tornando-se, no decorrer dos anos, para uma parcela de seus habitantes, conforme atestam entrevistas, a espacialização mesmo do inferno. Não bastasse, o deslocamento compulsório constitui-se num trauma, provocando modificações nas formas de vida dos atingidos que vão muito além dos aspectos econômicos, sociais e culturais. As perdas afetivas e as perturbações psicológicas deixaram marcas e são irreparáveis, provocando silêncio e desconfianças. A

5 correspondência entre as mudanças provocadas pelo deslocamento e o redemoinho não é uma simples metáfora. Essas dissonâncias e descompassos podem ser sentidos em vários aspectos, a mais importante, sem sombra de dúvida, foi à proposta que redundou na retirada dos beraderos das margens do futuro lago. Tantas outras se sucederam. Uma delas merece especial atenção. Trata-se da criação dos “núcleos de assentamento” no formato de agrovilas. O Projeto Especial de Colonização implementado pelo INCRA em Serra do Ramalho nasceu nos gabinetes da Empresa paulista Hidroservice. Além de elaborar o Projeto, cabia à empresa fiscalizá-lo em todas suas etapas. Da sua elaboração participaram engenheiros civis e agrônomos. O projeto foi pensado nos mínimos detalhes e, como veremos adiante, trazia algumas inovações. Na verdade, conforme salienta Lídia Rebouças, por trás das agrovilas há um projeto “civilizatório” que as Companhias Hidrelétricas e os órgãos implementadores dos assentamentos julgam necessário pôr em prática. Esse projeto “civilizatório” se consubstancia através da organização espacial que privilegia o urbano e as relações de sociabilidades ali dominantes. De acordo com Lídia Rebouças (2000), a organização espacial dada através de agrovilas sofreu influência do modelo adotado nas vilas militares do Norte do Brasil. No que tange especificamente às agrovilas, pretendo explorar a separação entre o local de trabalho e o local de moradia, visto pela maioria dos expropriados como um despropósito, na medida em que subtrai toda uma vivência marcada pela simbiose entre o espaço do trabalho/produção – a roça - e o local de moradia – a casa. Nesse sentido, percebe-se claramente uma tensão entre a organização espacial verificada nas “barrancas” do rio e a nova organização espacial dada através das agrovilas. A nova organização espacial foi criada obedecendo a uma articulação do rural e do urbano. Esta articulação está ancorada na divisão lote/agrovila, fator dos mais ilustrativos dos descompassos entre os agentes planejadores do Estado e os beraderos sanfranciscanos. Em linhas gerais, os 257 mil hectares desapropriados pelo INCRA – formando uma espécie de trapézio – foram divididos em quatro eixos latitudinais; a cada 6 ou 7 quilômetros construiu-se uma agrovila. O Eixo 1 abriga as agrovilas: 1, 3, 5, 7 e 9 . O Eixo 2, as: 2, 4, 6, 8, 10, 11, 21 e 22. O Eixo 3 abriga as de números: 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18. O Eixo 4, as: 19 e 20. Ainda no eixo 4, mas encravada no sopé do lado oriental

6 da Serra, encontra-se a agrovila 23. As Agrovilas 15, 16 e 23 estão localizadas no município de . Todas as demais estão localizadas em Serra do Ramalho, município criado em 1989. A divisão dos lotes obedecia ao módulo rural da região, ou seja, vinte hectares nas glebas e cinco na área de reserva mais próxima ao lote do “beneficiário”. Somente os terrenos irregulares ou alagadiços possuíam extensão acima do padrão. Nesse caso, a área da reserva era proporcional à do lote. Dos 20 hectares, os reassentados receberam dois derrubados1. No que tange à organização espacial, o Projeto apresentava uma novidade: em vez de cada lote preservar um certo percentual de mata, “adotou-se um conceito inovador, que dava como coletiva a área de reserva” (Bursztyn, 1988, p. 30). Havia duas grandes áreas de reserva, várias “reservas extrativistas”, localizadas às margens do Rio São Francisco, e inúmeras pequenas reservas situadas nos interstícios das agrovilas. Em princípios de 1980, os habitantes de Canabrava empreenderam um longo processo de resistência, recebendo, por fim, lote acima do módulo rural; em média 70 hectares. Também os indígenas que habitam a Aldeia Vargem Alegre situada na Agrovila 19 resistiram às investidas do INCRA e impuseram a criação da referida aldeia (ANAI, s/d). Além do lote rural – onde se concentraria a atividade produtiva –, cada família recebeu um lote urbano com uma casa na agrovila. Pelo Projeto original a área abrigaria 16 agrovilas, ocupadas apenas por indivíduos originários da área da Represa de Sobradinho. No plano de construção, além de concentrar as casas dos colonos, as agrovilas abrigariam o comércio, a loja da COBAL (Companhia Baiana de Alimentos), os serviços públicos, comunitários e religiosos. Em relação aos equipamentos comunitários, o Projeto implantou duas novidades: a construção de lavanderias e refeitórios públicos nas primeiras agrovilas. Mais tarde, os equipamentos perderam a sua função e, ao que parece, foram, paulatinamente, sendo destruídos pelos próprios moradores. Das edificações restam apenas as ruínas. Ainda de acordo com a planta original, além de abrigar todos esses serviços, a Agrovila 9 sediaria a administração do projeto e a cooperativa. Por possuir infra-

1 Alguns entrevistados falam em três e outros falam em dois. De acordo com documento da Comissão Pastoral da Terra, a promessa era de dois hectares derrubados.

7 estrutura administrativa, esta agrovila, quando da emancipação do Projeto e, a conseqüente criação do município de Serra do Ramalho, tornou-se sua sede. Pelo projeto, cada agrovila ocupava área de aproximadamente quatro lotes correspondendo a um núcleo habitacional com atividades urbanas, possuindo, aproximadamente, duzentas e cinqüenta casas, dispostas em ruas paralelas e perpendiculares ao eixo de sua localização. Todas as ruas guardam distância razoável umas das outras. Entre uma rua e outra, existem áreas coletivas que podem ser ocupadas por um campo de futebol, uma igreja, uma escola ou árvores de grande porte. Nas áreas não construídas, pastam a pequena criação e os animais de tração dos habitantes, cujos lotes ficam muito distantes da agrovila. Para o abastecimento dos colonos, em todas as agrovilas, seriam perfurados poços semi-artesianos. A concentração da água nas agrovilas deu-lhes funcionalidade e provocou a fixação dos colonos. Em algumas agrovilas existem aguadas, utilizadas para matar a sede da alimária e banhar os animais de tração. As casas foram construídas de blocos largos, meio acizentados e possuíam um estilo padronizado com três cômodos: sala, quarto e uma “puxada”, que, mais tarde seria transformada em cozinha. Quase todas as casas foram de cal branca. Em geral, o banheiro fica separado da casa. Além do banheiro, o quintal abriga também a caixa d’água, o tanque de lavar roupa, o galinheiro, a pocilga e árvores, tais como pinha, manga, laranja, mamão, coité e etc. Os moradores oriundos da região de Sobradinho não consideram a área dos lotes urbanos extensa o bastante para abrigar a casa e o quintal, nos moldes em que estavam acostumados nas barrancas do Rio São Francisco. Além disso, reclamam do exíguo espaço dos cômodos da casa. De acordo com o projeto original, o modelo lote-agrovila seria dominante, não sendo permitida nenhuma outra forma de exploração da terra e de povoamento. Os grandes proprietários situados na área foram indenizados, os pequenos, além da indenização em dinheiro (da terra e das benfeitorias), receberam lotes e casas nas agrovilas de suas preferências. Os posseiros receberam indenizações pelas benfeitorias e, igualmente, um lote e uma casa na agrovila de sua escolha. A desapropriação e a padronização dos lotes gerou descontentamento entre os pequenos proprietários que viviam em Serra do Ramalho. A maioria alega, em tom de queixa, que os beneficiados com o projeto foram os “rendeiros” e “agregados”. A planta das agrovilas e a presença de gerentes-executores geravam temores entre os “nativos”, resultando na rejeição do deslocamento para as agrovilas.

8 As reservas tinham duas finalidades: a preservação ambiental e a criação extensiva, uma vez que era proibida nos lotes a pecuária. As reservas eram de propriedade coletiva. Logo foram ocupados por posseiros que as lotearam da forma como entenderam. Não dispondo de meios e de vontade política para coibir a invasão, não restou ao INCRA outra alternativa senão assimilar os loteamentos, dando a alguns deles status legal. O parcelamento da área coletiva, com certeza, poderá criar futuramente, foco de tensões entre os posseiros – agora reconhecidos pelo INCRA  e os primeiros reassentados que receberam o título provisório com a parcela adstrita à reserva. Em termos administrativos, o Projeto trazia também uma inovação. Sua administração estava a cargo do gerente-executor, nomeado pelo INCRA. Cada agrovila escolheria um representante, espécie de sub-prefeito, que faria a ponte entre as reassentados e o gerente-executor. Tudo indica que a inovação não vingou na maioria das agrovilas e se vingou, ficou restrita a umas poucas agrovilas ou durou pouco tempo. Nas raras agrovilas onde a inovação foi implantada, ouve-se queixas em relação ao papel desempenhados por esses representantes. Para os moradores que vivenciaram a existência dos “administradores”, estes em vez de representá-los, levando ao gerente-executor suas demandas e reivindicações, tornaram-se “dedos-duros” e “capangas” dos funcionários do INCRA. Embora a CHESF prometesse aos deslocados ajuda de custo nos primeiros meses em Serra do Ramalho, somente uma leva de famílias que, por causa do atraso na entrega da agrovila, permaneceu por mais tempo em Casa Nova, recebeu um salário mínimo em dinheiro pelo período de oito meses. Todas receberam sementes de milho e feijão. Mas faltava o principal: a irrigação. Numa estreita área, às margens do Rio São Francisco, o INCRA implantou um sistema de irrigação que poderia ser explorado pelos reassentados dos lotes localizados mais próximos. Sobre isso diz um entrevistado:

O INCRA deu a terra pra gente cultivar irrigado. Nos primeiros anos, plantemos cebola. Deu muito. Depois a terra colou. Um barro esquisito. A terra colou e a água não entrava na terra, não molhava, a sra. entende? Perdemos a produção. Além do mais, o óleo era caro e a gente não tinha pra quem vender a cebola. Em Casa Nova já tinha os comprador certo, aqui não. Dexemos de plantar. Não adiantava (Geraldino, 1999).

O deslocamento compulsório sempre resulta na perda de importantes referenciais espaciais e sociais dos atingidos. No caso específico dos expropriados de Sobradinho,

9 todas as bases materiais nas quais estavam assentadas o modo de vida do beradero sanfranciscano foram brutalmente destruídas. Alguns aspectos do modo de vida do beradero ou do camponês-ribeirinho antes da construção da Represa de Sobradinho apareceram e se mostraram bastantes contrastantes com o modo de vida dos reassentados das agrovilas de Serra do Ramalho. Antes da construção da represa: os povoados ou bairro rural, para usar expressão consagrada na literatura de matriz sociológica; depois da construção da represa: as agrovilas ou “núcleos de reassentamento”. Os povoados e bairro rurais são alguns dos nomes que adquirem, nos vários recantos do interior do país, as unidades mínimas de aglomeração. De modo geral, essas unidades são construídas socialmente e ganham um caráter de espontaneidade, quando opostas aos espaços planejados. De acordo com Lídia Rebouças,

o bairro rural tem suas bases físicas em uma área de habitat disperso, dispondo de um núcleo que serve de fixação à população. O núcleo em geral é formado de uma igreja e uma praça; possui um patrimônio onde as famílias fixam residência. Desta organização espacial fazem parte elementos chaves, tais como: o rio, a rede viária, a vizinhança, os parentes. O bairro rural é uma unidade social mínima, intermediária entre o grupo familiar e outras formas mais complexas de povoamento e solidariedade social. A textura do bairro rural, o seu povoamento e as interligações das parentelas formam redes que abarcam áreas mais ou menos vastas. O casamento entre parentes não ficava circunscrito ao bairro, mas se estendia por espaços mais amplos. Neste contexto, as reciprocidades prescritas pelo parentesco de sangue e por aliança podem cobrir uma região mais extensa, garantido às famílias um apoio fora do próprio bairro que habitam, facilitando os deslocamentos e as migrações” (2000, p. 149).

Essa organização espacial, além de local de concentração da maioria dos serviços básicos requeridos por camponeses, de modo geral, empobrecidos, é espaço de sociabilidades e repositório de relações de parentesco e de identidade cultural muito particulares. As relações forjadas no espaço do bairro rural são muito fortes, compreendendo reciprocidades e o desfrute de um cabedal cultural comum criado e recriado nas relações de trabalho e em anos de convivência. Não se pode pensar, contudo, que o bairro rural é um espaço isolado e excluído das relações de mercado. Os pesquisadores que se debruçaram sobre essa forma de organização espacial, em diferentes períodos, mostram claramente que os bairros rurais são dinâmicos e estão ligados às redes mais complexas de trocas, de conhecimentos, de tecnologias e de controle (político administrativo).

10 As agrovilas têm uma história bastante diferente dos povoados e do bairro rural. Essa forma de organização espacial apresenta algumas características básicas. Primeiro, resulta de uma intervenção do Estado. Em geral, essa intervenção é provocada em função de grandes projetos considerados necessários à modernização. A população reassentada na agrovila é considerada atrasada e vista com desprezo pelas agências governamentais, devendo, portanto, ser tutelada. Em Serra do Ramalho a ação dos gerentes-executores foi sentida pela população com bastante reserva, para ela representava o cativeiro. Segundo, é fruto de um planejamento. Não custa salientar que por trás das agrovilas há um projeto “civilizatório” que as Companhias Hidrelétricas e os órgãos implementadores dos assentamentos julgam necessário pôr em prática. Esse projeto “civilizatório” se consubstancia através da organização espacial que privilegia o urbano e as relações de sociabilidades ali dominantes. Para Lídia Rebouças, o projeto "civilizatório" se constitui em zonas exclusivas e homogêneas de atividade: “a concentração da função de trabalho à função de moradia, projetada na agrovila; a instituição de um novo tipo de organização residencial e a imposição de um novo sistema de circulação de tráfego” (2000, p. 76). Implantado de cima para baixo, esses projetos “civilizatórios” parecem querer fazer a quadratura do círculo, constituindo-se, na maioria das vezes, num engodo e quase sempre trazem problemas aos “beneficiários”, sendo, em conseqüência, rejeitados no todo ou em parte. No caso do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, a rejeição à organização espacial dada pela agrovila parece ter sido bastante contundente. Por último, revela um total descompasso entre o planejado e o vivido. No caso de Serra do Ramalho, os descompassos e as dissonâncias entre os agentes governamentais e os assentados ou reassentados são notórios, resultando na rejeição do projeto, conforme salientado acima. “Mudou, moça. Revirou tudo. Tudo ficou de cabeça pra baixo. Em Bem-Bom era diferente. As famia era mais unida. Não tinha disunião, não. Os parente se dava. Aqui virou um inferno. Ninguém reconhece parente, não. É um inferno” (D. Evelina, 1999) Devido às características da experiência de parte da população reassentada no Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, a rejeição ao projeto parece ser algo dado. Afinal, não faltam razões para isso. Em primeiro lugar, todos os camponeses-ribeirinhos gostariam de ter permanecido na borda do lago, cultivando seus lameiros, criando seus pequenos animais, enfim, mantendo suas relações de sociabilidade na terra onde nasceram.

11 Aliás, os indivíduos provenientes da área de Sobradinho que vivem em Serra do Ramalho têm razões de sobra para se sentirem ludibriados pela CHESF e demais agências governamentais, envolvidas no Projeto Sobradinho. Primeiro, em razão das promessas sedutoras. Segundo, em razão da ameaça de que caso retornassem á borda do lago não teriam direito à terra: mais tarde, tiveram conhecimento do reassentamento em Barra da Cruz da população que retornou de Serra do Ramalho. Por último, em razão da implementação do Projeto Formoso numa área bem próxima às agrovilas2. “Eles nos enganou. O projeto Formoso era nosso. Os desgraçados nos enganou e deu tudo para o povo da Lapa. Esse projeto era nosso. Eles errou... errou” (Geraldino, 1999). O modelo lote/agrovila, ou seja, a separação entre o local de produção/local de moradia desnorteou os beraderos. Em geral, o locus de morada dos camponeses- ribeirinhos estava situado nas áreas de vazantes e, dependendo da estação, o agrupamento familiar se deslocava em bloco para outros pontos da beirada do Rio. Para o homem ribeirinho, valem as palavras de Antonil, viviam caranguejando a borda do dadivoso rio. Contudo, o local de produção e o local de moradia constituíam uma unidade indissociável.

Morar longe da roça! Quem já viu isso? Doidice maior num vi, nunca, não. Roubo de gado teve mutcho. O bandido vem pega o gado leva. E o dono? Em casa dormindo feito trouxa. Isso tudo aqui não ficou vazio por que não tinha água. E tem lote longe. Mais se tivesse água... Ninguém tava aqui não. Agrovila não presta, não (Aguinaldo [nome fictício], 2001).

Notadamente, os beraderos provenientes da área da Represa de Sobradinho não se conformavam com a separação entre o local de trabalho/produção e o local de moradia. Ainda hoje, todos os entrevistados argumentam que as casas deveriam ser construídas nos lotes e reclamam da distância que devem percorrer para trabalhar. Depreende-se de seus depoimentos que o modelo de organização baseado no lote/agrovila revela total desconhecimento do modo de vida camponês. Além do mais, responsabiliza o modelo por todos os problemas de delinqüência e violência que afirmam ter ocorrido em Serra do Ramalho, nos seus primeiros anos. Atribuem a insegurança, o roubo das criações e de outros bens, ao fato das casas estarem situadas

2 A implementação do Projeto Formoso coube à CODEFASF (Companhia de Desenvolvimento do São Francisco) e já havia sido planejado, segundo técnicos, antes do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho.

12 longe dos lotes, portanto, fora do alcance da vista de sues proprietários. Por isso, a primeira medida dos moradores que, apresentam uma pequena melhoria de condição de vida, é construir uma casa no seu lote. Os descompassos e as dissonâncias verificadas entre técnicos e habitantes das agrovilas de Serra do Ramalho aqui evidenciadas podem explicar as razões da rejeição do Projeto Especial de Colonização, consubstanciada no abandono do lote e no retorno à borda do Lago de Sobradinho de 499 famílias. Cabe salientar que ainda hoje quase todos os reassentados em Serra do Ramalho oriundos da região de Sobradinho manifestam interesse em vender seus pertences e voltar para seus locais de origem.

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* Exceto da tese Três Felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em Serra do Ramalho-Ba., defendida junto ao Programa de Estudos Pós- Graduados em História, PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias. ** Profa. Dra. da Universidade do Estado da Bahia – Campus V- Santo Antônio de Jesus.

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