E aí, let’s get sickening!: representatividade e produção de memes em comunidades digitais brasileiras a partir do consumo de RuPaul’s And so, let’s get sickening!: representativity and memes production in brazilian digital communities from the consume of RuPaul’s Drag Race

LUANA INOCÊNCIO1 RAFAEL MORAES2

RESUMO Parte já indissociável do roteiro de consumo de determinado produto da indústria criativa, nas comunidades digitais aglutinam-se diálogos, sociabilidades e remixagens de conteúdos audiovisuais, em que os fãs buscam reinterpretar e personalizar tais produções para um con- texto local. Neste cenário, a presente investigação busca analisar os atravessamentos identitários nas práticas interacionais em torno do reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race, localizados nas comu- nidades digitais brasileiras do programa. Tem-se enquanto hipótese que tais fandoms online atuam como repositórios de repertórios cul- turais LGBTQ+ locais, seus valores, idioletos, personagens e cenários. Utilizaremos enquanto articuladores dessa reflexão os memes de internet em formato de vídeo, produzidos e circulados por fãs bra- sileiros a partir da apreensão de cenas do programa, combinadas a trechos de áudio e vídeo de memes populares brasileiros protagoni- zados por LGBTQ+ e/ou mulheres cis tidas como “divas” de tal sub- cultura, frequentemente referenciada como Vale dos Homossexuais.

Trama: Indústria Criativa em Revista. Dossiê Gênero e Indústria Criativa: produção, representação e consumo. Ano 4, vol.6, n.1, julho/2018: 59-82. ISSN: 2447-7516 PALAVRAS-CHAVE: memes; RuPaul’s Drag Race; produção fã; cultura drag; representatividade.

ABSTRACT Indissociable part of the consume script of product in the creative industries, dialogues, sociabilities and audiovisual content remixes get together in the digital communities, in which the fans aim to rein- terpret and personalize such productions to a local context. In this scenario, this investigation aims to analyze the identitary crossings in the interactional practices involving the American reality show Ru- Pauls’ Drag Race, located in the Brazilian digital communities about the show. We have as an hypothesis that these online fandoms act as a library of LGBTQ+ local repertoires, with its values, idioms, charac- ters and scenarios. We use as articulators for this reflexion the inter- net memes in video and image, produced and circulated by Brazilian fans from the apprehension of scenes of the show, combined to parts of popular Brazilian memes in audio and video protagonized by LGB- TQ+ and/or cis women seen as “divas” of this subculture, frequently referenced as “Vale dos Homossexuais” (or “Homossexual Valley”).

KEY-WORDS: memes; RuPaul’s Drag Race; fan production; drag culture; representativity.

INTRODUÇÃO Em 2009, estreava a primeira temporada do reality show RuPaul’s Drag Race, transmitido pela Logo TV, emissora americana especiali- zada na exibição de produções voltadas para o público LGBTQ+. O programa propõe uma competição na qual artistas drag queens par- ticipam de uma série de provas relacionadas às práticas do universo drag, como costura, desfile, imitação e maquiagem, com o objetivo de conquistarem o título de “America’s Next Drag Superstar”. Em ou- tras palavras, a que tenha quatro principais atributos: carisma, singularidade, ousadia e talento3. Comandado pelo ícone drag RuPaul Charles, o reality atualmente

Indústria Criativa Revista em acumula dez temporadas, uma legião de fãs ao redor do mundo e

ainda possui em seu escopo outros dois programas televisivos deri-

Trama vados: RuPaul’s Drag Race All Stars e RuPaul’s Drag Race: Untucked!. O

60 primeiro é uma edição que reúne algumas das melhores queens de temporadas anteriores, coroando uma delas; já o segundo, é exibido junto com RPDR e mostra os bastidores, enquanto as participantes esperam as deliberações dos jurados. Neste trabalho, procuramos analisar os videomemes (INOCÊNCIO, 2017) criados pelos fãs brasileiros de RuPaul’s Drag Race e a relação que essas produções amadoras audiovisuais possuem com o contexto cul- tural da comunidade LGBTQ+ do Brasil. Observaremos, ao longo desta investigação, o Untucked! como uma instância que privilegia potenciais cargas dramáticas, entre elas as brigas e discussões que rendem diver- sos memes. Um exemplo é a cena4 da nona temporada em que a queen iniciou uma série de ataques irônicos à competidora por esta ser supostamente protegida pelos jurados, canonizando o bordão “You’re perfect, you’re beautiful, you look like Linda Evangelista”. Esse mo- mento foi apropriado pelos fãs e rendeu uma sequência de montagens, remixes musicais e redublagens parodiando a discussão. Outro exemplo pode ser observado no teste final de cada episó- dio, em que as duas concorrentes com pior desempenho precisam “dublar pelas suas vidas” ( for your life) para provar que mere- cem continuar no programa. Dessa forma, elas performam uma mú- sica previamente selecionada pela produção e em diversos dos vide- omemes coletados, os fãs utilizaram cenas destas apresentações e substituindo os áudios originais por músicas brasileiras. Desenvolvemos, assim, a hipótese de que a apropriação criativa pela ressignificação e circulação de vídeos na forma de montagens nos videomemes torna-se uma instância de representatividade importante para fazer referência ao imaginário compartilhado e atravessado pe- las representações identitárias da cultura drag brasileira no consumo do reality RuPaul’s Drag Race. Tais produções carregam diversas espe- cificidades no modo como os interagentes apreendem trechos de tal produto midiático, os relacionam a outros memes, seus cotidianos e acontecimentos glocais, aproximando seus criadores de uma dinâmica Rafael Moraes Rafael cibercultural participativa em torno da diversidade, seus diálogos, dis- putas e pertencimentos. Para isso, exploraremos grupos e páginas do site de redes sociais Facebook dedicadas ao reality, buscando compre- ender as dinâmicas envolvidas na produção dos videomemes e os dis- cursos intertextuais relacionados à performance e representatividade uana Inocêncio, Inocêncio, uana

de gênero (por vezes relacionado a raça e classe) presentes. L

61 THE REALNESS: IDENTIDADE E MIDIATIZAÇÃO DA CULTURA DRAG NO MAINSTREAM

Segundo Hall (1997), na pós-modernidade, a construção de identida- de de um sujeito é híbrida, uma vez que uma mesma pessoa pode entrar em contato e se identificar com diferentes tipos de cultura, pertencendo ao mesmo tempo a diferentes grupos sociais. Sendo assim, a drag queen pode ser entendida como parte do constructo social de determinados corpos queers5, uma forma de expressão que não possui necessariamen- te relação com questões de sexualidade e identidade de gênero, uma vez que é uma arte performática que tem suas origens nas artes cênicas (AMANAJÁS, 2015), mas nem por isso deixa de tensionar uma série de discussões sobre o que molda as identidades masculinas e femininas. Sua estética está diretamente relacionada ao camp6 (SONTAG, 1987), sensibilidade baseada na artificialidade, com estética exagerada e frívo- la. A cultura drag parodia o que é dominante, o que se atribui às pessoas que não seguem os padrões heteronormativos ou do binarismo de gê- nero. Assim, o camp, em associação a uma prática cultural, torna-se um importante ator na introdução de uma agenda queer nos espaços midiá- ticos mainstreams, a partir da incorporação de determinados elementos na cultura popular em sua representação na mídia (WHITNEY, 2006). Como em todo o ocidente, a figura da drag queen no Brasil foi bas- tante influenciada e moldada com a popularidade experimentada pela cultura drag de Nova York na mídia nos anos 1990 (BALZER, 2005). So- bretudo através de produtos como o documentário Paris Is Burning, da música e videoclipe de Vogue, da cantora Madonna, que se apropria do estilo de dança homônimo surgido no seio dessa cultura, resultando na ascensão de figuras midiáticas como adrag queen RuPaul, conhecida como a “Supermodel Of The World”. Tendo realizado trabalhos como per- former, cantora, modelo e atriz, a drag queen chegou a apresentar o seu próprio talk show no canal Vh1 entre 1996 e 1998, o “The RuPaul Show”. Antes de se tornar um fenômeno midiático, RuPaul era uma figu- ra transgressora. Sua carreira começou nos anos 1980, com apenas 15 anos, quando se mudou com a irmã mais velha para a cidade americana Atlanta a fim de estudar artes cênicas. Era um crossdresser7 de brechó

Indústria Criativa Revista em recém-saído da adolescência e praticamente sem teto. Com um estilo

colorido e extravagante, RuPaul se expressava através de visuais exage-

Trama rados, marcados pela androginia, tensionando as estruturas heteronor-

62 mativas hegemônicas. Com a ascensão da cultura drag na mídia, RuPaul foi moldando sua imagem para algo menos agressivo e mais comercial (DAVENPORT, 2017). Isso se deu pela popularização e publicização de sua persona de “Supermodel”, marcada principalmente pela transformação do masculino/feminino e não mais pela indefinição de gênero de antes. A ascensão midiática da cultura drag de Nova York nos anos 1990 chegou com força no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro. Nes- sa década, muitas drag queens nova-iorquinas vieram para o Brasil e vice-versa, criando uma ponte cultural entre os dois lugares, sendo RuPaul a figura mais notória8. Em paralelo à narrativa midiática da figura da drag queen, a própria subcultura drag presente em grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo também se adaptou ao fenômeno midiático estrangeiro, introduzindo novas estéticas e re- ferências musicais tropical-kitsch para essas artistas. As trocas simbólicas entre a cultura drag de Nova York e do Brasil durante os anos 1990 e 2000 demonstra, de maneira geral, a existên- cia de uma dinâmica de relações própria de uma sociedade em rede, sendo fruto do que Castells (1999) define como um novo momento histórico, a era da informação. Nesse tempo, as relações sociais são estabelecidas pela informação e sua a competência para o proces- samento de conhecimentos, linguagens, usos, percepções sensoriais específicas, o que pode vir a proporcionar a modulação e construção de novos significados dentro de subculturas locais. As trocas entre a cultura drag de Nova York influenciaram a as- similação de uma série de práticas que foram incorporadas na cons- trução da identidade das drag queens brasileiras daquele momento histórico. Contudo, mesmo com toda a exposição nos anos 1990, com o passar dos anos, a cultura drag, e, como consequência, figuras mi- diáticas como RuPaul, foram encontrando cada vez menos espaço no mainstream. Em 2009, RuPaul parecia ser uma figura nostálgica quan- do lançou RPDR, construindo uma poderosa rede de influência inter- nacional, tendo conquistado muitos fãs no Brasil. Rafael Moraes Rafael O sucesso do projeto, no entanto, não veio da noite para o dia. Com uma primeira temporada bastante precária do ponto de vista técnico e orçamentário9, o programa foi aumentando a sua popula- ridade gradativamente temporada após temporada, ainda que sua exibição fosse realizada em um canal de televisão extremamente seg- uana Inocêncio, Inocêncio, uana

mentado - a Logo TV, exibidora do reality, era um canal a cabo peque- L no e consideravelmente novo naquele momento.

63 Desde seu lançamento, Drag foi se destacando no catálogo do pró- prio canal. A segunda temporada, exibida em 2010, bateu o recorde de streamings da plataforma da Logo TV10, acumulando 9,8 milhões ao final da temporada. Na quinta edição, em 2013, a estreia atingiu 1,3 milhões de espectadores, aumentando em 136% as atividades relacionadas ao show em sites de redes sociais e se tornando a première mais assistida do canal até então11. Em 2017, após a exibição da segunda temporada All Stars, a Viacom anunciou que a partir de então as novas edições se- riam levadas ao ar pela emissora Vh1, com o intuito de reforçar a marca do show em um canal maior e mais conhecido12. Apesar do alcance te- levisivo de nicho, o reconhecimento em espaço mainstream veio após RuPaul ser eleito uma das 100 pessoas mais influentes de 2017 pela revista Time13 poucos meses após ter ganho o Emmy de Outstading Host for a Reality or Reality-Competition, prêmio que voltou a receber no ano seguinte, junto com mais seis indicações para o programa14. Assim como fez para emplacar sua carreira nos anos 1990, RuPaul foi moldando o formato do reality show abrindo mão da narrativa sub- versiva do camp e apostando em elementos já conhecido pelo públi- co em geral. Em tom cômico e positivista, o programa foi resgatando uma série de “bordões” e práticas incorporadas pela cultura drag, mas já popularizadas por produtos midiáticos nas décadas anteriores. É o caso do desafio de “leitura”: conhecida como a arte do insulto, a prá- tica se tornou conhecida após ser retratada no documentário “Paris Is Burning”, trazendo para a cultura popular uma série de expressões próprias da cultura drag (SIMMONS, 2013). Porém, a principal característica que faz com que RPDR seja uma adaptação da cultura drag para uma demanda consumista é a metáfo- ra da busca no feminino para reforçar o argumento da metamorfose (GONZÁLEZ; CAVAZOS, 2016). Sendo assim, muitas drag queens com performances subversivas e estilos mais undergrounds encontraram dificuldades de seguir na competição frente às críticas dos jurados. O primeiro caso foi na primeira temporada, quando a participante Jade Sotomayor foi criticada por não saber esconder seu órgão sexual adequadamente - em linguagem drag, fazer o tuck ou aquendar, em português. As drags que emulam feminilidade são chamadas de “fish 15 Indústria Criativa Revista em queens ” e, apesar do programa compreender drag queens com uma

variada gama de talentos, a maioria das críticas que as participantes 16

Trama recebem na passarela são em relação à maquiagem ou enchimen-

64 tos17 - que essas artistas usam para emular um corpo feminino - não estarem entregando realness, termo utilizado para definirdrag queens que realizam uma “montação” não apenas glamorosa, mas realista. Outro recorte presente no programa diz respeito às drag queens de minorias étnicas, sobretudo negras e latinas. Dessas artistas é cobrado um certo tipo de comportamento que drag queens brancas ou que não aparentam pertencer a nenhum grupo étnico - no caso de drag queens latinas que conseguem passabilidade branca - no que diz respeito ao julgamento de seu desempenho nos desafios propos- tos, incentivando que sejam reforçados estereótipos de raça (STRIN- GS; BUI, 2013), dessa forma, naturalizando certos tipos de compor- tamentos associados a grupos étnico-raciais. Para essas participantes, os jurados geralmente cobram mais “per- sonalidade”, o que na prática significa uma naturalização e reprodu- ção de padrões pré-concebidos de grupos étnicos. Strings e Bui (2013) observam que apesar desse tipo de cobrança acontecer em diversas temporadas, seu ápice se deu na terceira temporada, quando as par- ticipantes do programa se dividiram em alianças entre dois grupos: as Heathers e as Boogers. As Heathers eram participantes que se auto intitulavam como superiores às outras por serem bonitas, femininas e de traços finos, compostas sobretudo por participantes asiáticas e latinas com passabilidade branca, enquanto as Boogers eram partici- pantes negras e latinas vistas como inferiores pelas suas competidoras. Enquanto as Heathers se destacavam e ganhavam provas sem se apoiar em sua etnicidade, as Boogers sempre venceram desafios reforçando estereótipos esperados de sua raça, mesmo contra sua vontade, mas sim porque era o que os jurados demandavam delas. Por exemplo, as queens e eram duas por- to-riquenhas, mas com estilos bastante diferentes. Enquanto Yara se considerava uma latina orgulhosa, Alexis não queria ser vista como a “queen latina”, mas acabou cedendo e incorporando uma personalida- de latina em um dos desafios que venceu. Em contraponto, quando Rafael Moraes Rafael Yara escolheu fazer um sotaque britânico em uma das provas, foi cri- ticada por RuPaul porque seu sotaque latino seria um impedimento para um bom desempenho. Da mesma forma como as latinas, Shan- gela (uma queen negra do Texas), se destacou em desafios de comédia em que reforçou estereótipos de negritude ao imitar uma cafetina uana Inocêncio, Inocêncio, uana

emulando mulher negra do gueto. Da mesma forma que , L

65 Stacy Laynne Mathews, uma nativa americana, mas socialmente lida como negra, só conseguiu se destacar e vencer um desafio quando fez uma paródia da personagem interpretada pela atriz Mo’Nique no filme “Preciosa”. O típico caso da angry“ black woman”, que é reprodu- zido em todas as temporadas em desafios de interpretação, em que os personagens são pré-definidos pela produção. Apesar de tais problemáticas frequentemente referenciadas pelos fãs, o programa construiu uma forte zona de influência para as comuni- dades LGBTQ+, possibilitando o surgimento de um grupo de consumido- res que é educado acerca de práticas da cultura drag exclusivamente a partir do contato com RPDR, incorporando e reproduzindo uma série de estereótipos de gênero e raça. Além disso, os relatos de pessoas que pas- saram a se “montar” a partir de suas experiências como fãs são constan- temente mencionados, não apenas pelas queens do reality, mas também por interagentes nas comunidades online dedicadas ao debate sobre o programa. A própria drag queen brasileira Pabllo Vittar, uma das maiores artistas pops no cenário brasileiro atual, declarou ter sido diretamente influenciada pelo programa para começar a performar comodrag . Castellano e Machado (2016) apontam que a crescente comuni- dade de fãs de RuPaul’s Drag Race no Brasil influenciou diretamente o surgimento e fortalecimento de uma nova cena drag a partir de festas em boates que passaram a atrair cada vez mais interesse do público mainstream. Entre 2015 e 2018, inúmeras ex-participantes do reality realizaram shows no Brasil em tais festas, e até mesmo uma versão brasileira do programa foi anunciada em 2017. A partir dos exemplos citados, é possível observar que RPDR cons- truiu uma forte e crescente zona de influência ao redor de um público sedento por conteúdo (MORAES, 2015), incorporando e reproduzindo uma série de signos, afetações e alguns atravessamentos com disputas de pertencimentos enquanto performance de gosto (HENNION, 2005), baseados nas críticas dos jurados e na edição do programa. Esse grupo de pessoas também está diretamente ligada ao surgimento de uma nova cena drag, composta, sobretudo, por fãs do programa que reproduzem padrões assimilados através do consumo deste produto midiático. Indústria Criativa Revista em

Trama

66 CAN I GET A GAY MEN UP IN HERE?: MEMES, VIDEOMEMES E PRODUÇÃO DE FÃS NAS SUBCULTURAS DIGITAIS

Ao longo do último século, práticas independentes de desmonta- gem, redesenho e colagem de materiais impressos, sonoros e visuais começaram a se popularizar, tais como os zines gráficos emashups mu- sicais, rearranjando imagens, sons e textos. Com a popularização e ba- rateamento dos computadores, além da miniaturização de dispositivos de captação de imagem e som, programas de edição cada vez mais user friendly e amplamente intuitivos, os meios de comunicação passaram a sofrer progressivos deslocamentos e integrações. Novos modos de edição audiovisual são disseminados e incorporados culturalmente ao consumo midiático, difundindo a prática remix (MANOVICH, 2001). Grandes exemplos dessas apropriações criativas enquanto ex- periências estéticas na web estão relacionados ao contexto dos fan- doms, que são agrupamento de fãs que conjugam certa admiração pelos mesmos produtos culturais. Jenkins (2009) indicava desde meados dos anos 1990 que produtores e consumidores não podem mais ser vistos como categorias totalmente opostas, uma vez que observamos uma intensa produção de materiais produzidos por esses sujeitos. Em tal cenário, é comum encontrarmos ilustrações, narrativas audiovisuais e diversas outras peças criadas por fãs para homenagear ou parodiar seus bens culturais favoritos. Inclusive, é cada vez mais comum que remixes e mashups musicais, bem como fanfictions elaboradas por leitores, façam sucesso a ponto de con- quistarem destaque dentro de determinadas subculturas. Com os avanços das tecnologias da comunicação, as comunida- des de fãs de produtos televisivos adotaram o ambiente digital como ferramenta presente na experiência do consumo televisivo, usando os espaços virtuais para se organizarem, discutirem e circularem in- formações sobre seus programas favoritos. É importante ressaltar, porém, que fandoms de um mesmo produto, como RPDR, podem pos- Rafael Moraes Rafael suir práticas distintas entre si, bem como pontos de disputas e per- tencimentos, variando de acordo com o produto midiático ao qual ele se dedica e com o contexto social, histórico e cultural em que se está inserido. Assim, as práticas e formas de organização de fãs estaduni- denses de um mesmo reality show, por exemplo, não serão necessa- uana Inocêncio, Inocêncio, uana

riamente iguais às de fãs brasileiros desse mesmo programa. L

67 Nesse contexto, Amaral, Souza e Monteiro (2015) analisam as di- versas formas de produções de fandoms, tais como fanfics, fanzines e os fanvideos - que se corporificam nos videomemes aqui estudados - en- quanto práticas de ativismo de fãs, dentre outras ações mais relaciona- das a mobilizações coletivas para causas sociais e cívicas. Ao mapear tais práticas, as autoras retomam algumas questões problematizadas por Bennet (2012) e Brough e Shresthova (2012), que pontuam o ativismo de fãs enquanto uma ação permeada de intencionalidade contra a so- berania hegemônica dos modos de produção das grandes indústrias do entretenimento e seu sistema, como um modo de engajamento político, social e cultural, ainda que pelo viés das rupturas e desconstruções. Pautados fundamentalmente pelas práticas colaborativas de apro- priação de produtos do entretenimento, esses fãs realizam modos de resistência criativa, ao propor usos alternativos às definições pré-esta- belecidas pela indústria de bens culturais em seus produtos e serviços, reescrevendo e reeditando suas narrativas, como uma ressignificação da experiência do consumo. Ao que Jenkins (2009, p.140) pondera, “de- ve-se fornecer maneiras de fragmentar o produto cultural, desarticulá -lo e desorganizá-lo, para que se possa lembrar apenas de partes dele, desconsiderando a relação original das partes com o todo”. No decorrer desta investigação, acionaremos a noção de que os traços de sociabilidade identificados em torno do consumo e produ- ção de memes em sites de redes sociais são encontrados no conceito de subcultura, que de acordo com Amaral (2008) materializa-se como uma construção discursiva polissêmica, marcada pela fluidez, efeme- ridade e disputas de gosto e distinção de natureza estética em deter- minada comunidade em específico, estabelecidas no consumo midiá- tico e fortemente vinculadas aos grupos de fãs. Em tal cenário, Thornton (1995) flexiona a concepção de “capital subcultural”, fundamentada nos comportamentos sociais, estilos, normas e valores de participantes em determinadas comunidades. Permeada por uma série de relações de performance de gosto, valo- rações e autenticidades, identifica-se um inevitável atravessamento destas questões de diferenciação hierárquica, em que os interagentes produzem e compartilham conteúdos populares de modo a estrutu-

Indústria Criativa Revista em rar seu status enquanto criador de conteúdo. Resgatar esse conceito

é importante, uma vez que nas comunidades digitais de maior circu-

Trama lação de memes, verifica-se o uso destes como uma forma de capital

68 subcultural, pontuado nas construções narrativas dos videomemes que analisaremos aqui por conceitos como legitimidade, pertenci- mentos e disputas simbólicas entre os fãs de RPDR. Enquanto um conjunto de micronarrativas que carregam um cerne comum, os memes de internet se pautam pela variabilidade criativa a partir de um produto inicial. Muito do contexto cultural, histórico e social presente na retórica e estética de determinados grupos, identificados aqui como subculturas, se reflete em determi- nadas famílias de memes, revelando novas possibilidades de produ- ção de sentido e memória coletiva na rede. Os videomemes materializam-se em reedições, relegendagem, redublagem, mashups e colagens de elementos de áudio e vídeo asso- ciados ao amadorismo (INOCÊNCIO, 2017). Pertencentes à categoria de produções fanmade denominada vidding, fanvideo ou fanvid, tais objetos ilustram com maior amplitude o fenômeno da imitação de narrativas audiovisuais, como paródias de videoclipes e trechos de programas televisivos remixados a outros conteúdos, espalhados principalmente em sites de redes sociais como Facebook e Youtube. Os videomemes analisados nesta pesquisa constituem-se de edi- ções e colagens de elementos de áudio e vídeo musicais com insumos de outros produtos midiáticos, como filmes, telenovelas, seriados tele- visivos, trechos de apresentações musicais, videoclipes originais, den- tre outros. Como analisam Amaral, Souza e Monteiro (2015, p.148), as produções em fanvideo, no geral, “são caracterizados por trilhas sono- ras marcantes, inserção de imagens e outros vídeos não relacionados ao original, geralmente, romantizando ou parodiando o conteúdo”.

GENTLEMANS, START YOUR MEMES! O FANDOM RPDR NOS SITES DE REDES SOCIAIS

De forma geral, os programas do universo Drag Race atuam tanto como uma plataforma para divulgação da cultura drag, dando visibilida- Rafael Moraes Rafael de para essas participantes, como também é um espaço usado para tra- tar de assuntos e problemas enfrentados por pessoas LGBTQ+. É comum haver momentos em que as queens discutem temas como homofobia, transfobia, bullying na infância, expectativa de vida dos soropositivos e conscientização sobre HIV, transtornos alimentares, uso de drogas e a uana Inocêncio, Inocêncio, uana

relação com a família. Além de, ocasionalmente, relembrarem eventos L

69 específicos que marcaram a comunidade LGBTQ+ mundial e desencade- aram movimentos ativistas ao longo de décadas, desde as resistências às batidas policiais em bares gays no conhecido Stonewall, em 1969, pas- sando pela aprovação do casamento igualitário nos Estados Unidos em 2015, até a tragédia na boate Pulse, em Orlando, em 2016. Essa combinação levemente engajada com o entretenimento foi a fórmula para o sucesso e popularização do reality. É importante aten- tar às estruturas que o programa impõe, moldando o imaginário de seus espectadores sobre uma gama de discussões políticas, uma vez que deliberadamente ignora uma série de questões presentes na co- munidade LGBTQ+, como por exemplo a não presença de mulheres em seu casting18 (com exceção da jurada ), apesar de lésbicas e mulheres transexuais integrarem a comunidade LGBTQ+. Com intensos grupos de fandoms espalhados por todo o mundo, o programa foi popularizado no Brasil principalmente depois de ser adi- cionado ao catálogo da Netflix (MORAES, 2015; CASTELLANO; MACHA- DO, 2016). Em páginas e grupos criados pelos fãs para discutir e trocar informações e materiais fanmade sobre o programa, é possível locali- zar em uma vasta quantidade de produções amadoras, principalmente apropriações de trechos do programa para compor o objeto investiga- do neste trabalho: os memes de internet em formato de vídeo. A exemplo, no início de 2017, a drag queen e ex-participante ganhou um videoclipe19 criado por fãs brasileiros para sua música recém-lançada Come To Brazil, o qual reunia uma coletânea com diversos trechos de memes brasileiros e foi considerado por alguns fãs como o “hino nacional do Vale dos Homossexuais” e um verdadeiro trailer do país20. Ao tomar conhecimento, a artista gravou um vídeo reaction21 co- mentando as cenas do clipe, agradecendo aos fãs e demonstrando grande surpresa com sua qualidade estética, legitimando, portanto, tal produção. Os videomemes criados por fãs de RuPaul’s Drag Race para outros fãs da mesma comunidade parecem figurar, assim, como mediado- res da experiência de consumo e interpretação do reality enquanto produto da indústria do entretenimento. Observa-se, a priori, estes vídeos amadores como prática de ativismo de fãs (AMARAL; SOUZA; MONTEIRO, 2015), marcada por performances de gosto e um reper-

Indústria Criativa Revista em tório cultural de referências e imaginários em torno do qual atores

sociais brasileiros reunidos em fandoms nos grupos e páginas no Fa-

Trama cebook se reconhecem, socializam e disputam.

70 THE THE BOCHE HAS COME! ANALISANDO OS VIDEOMEMES DE DRAG RACE

Metodologicamente, a incursão desta pesquisa buscou compreen- der as dinâmicas envolvidas na produção dos videomemes em uma ar- ticulação culturológica, a partir da análise de conteúdo exploratória de peças postadas em páginas e grupos relacionados a Drag Race no Face- book, como This Is Not a Rupaul’s Best Friend Race Group22, Rupaul’s Dra- gRace Brasil.OFICIAL23, Invasão Drag24, Draglicious25, All RuPaul26, RuPaula27 e Backrolls28. Nestas comunidades digitais, encontramos diversos vídeos que dialogam entre afetos, pertencimentos e disputas, a legitimação do repertório de consumo televisivo brasileiro intertextual e multicultural. Entre esses atravessamentos culturais, podemos observar pontos em comum que essas peças carregam entre si, seja no formato quanto no discurso que carregam. Tais peças inserem as queens participantes do reality corporificadas em outraspersonas e cenários nacionais, como porta-vozes de personagens e situações dos memes brasileiros, adaptando o texto original e adicionando elementos específicos do cenário LGBTQ+ local. Ao observarmos primariamente o material bruto das amostras so- bre as quais esta análise se debruça, foi possível identificar uma série de agrupamentos temáticos inscritos. Analisaremos algumas categorias de memes com elementos do reality que foram mapeados nas comunida- des brasileiras mais detidamente, por permearem um indicial retórico, plástico e simbólico mais rico, que trazem montagens de discursos e re- dublagens mais complexas, indexando as queens ao contexto de prota- gonistas femininas e LGBTQ+ de memes brasileiros. A partir da análise do material coletado, consideramos quatro diferentes grupos temáticos de produções, cada um se utilizando de diferentes elementos que se destacam no universo do programa, criando características únicas:

A) APROPRIAÇÃO DOS CÓDIGOS E LINGUAGENS DO REALITY SHOW Rafael Moraes Rafael

A princípio, foi possível observar uma série de vídeos criados por fãs que se utilizam da estética do programa a partir de um recorte do gênero televisivo reality show. Sendo este um formato híbrido carac- terizado pela interseção, agenciamento e adaptação de diferentes gê- uana Inocêncio, Inocêncio, uana

neros televisivos como o documentário e o talk show (MITTEL, 2004; L

71 MATEUS, 2012), RPDR se utiliza de depoimentos individuais das partici- pantes para guiar um olhar subjetivo de cada personagem no decorrer da competição. Os depoimentos servem não só para que as drag queen comentem os acontecimentos, mas também contribuí para uma per- cepção do público acerca da personalidade de cada uma delas. A partir desses momentos, podemos observar uma série de víde- os criados por fãs que se utilizam da estética dessas apresentação e entrevistas, criando dublagens com as Ru Girls a partir de referências brasileiras que dialogam com a figura “memetizada”. Em um deles, a queen Naomi Smalls29 tem sua voz trocada pela da atriz brasileira Su- zana Vieira; e em outro, Dandara Sedução, que ganhou fama após seu vídeo viralizar, empresta sua voz para Katya30. Em ambas as produ- ções, há uma forte intenção de estabelecer uma conexão entre essas personagens, expressas no ritmo e na edição desses vídeos. Tanto Suzana quanto Dandara carregam em suas falas uma atitude e pos- tura de autoafirmação e forte autoestima, elencando atributos como “sou Dandara Sedução, onde passo chamo atenção, tenho apenas 18 aninhos de pura fechação” e “o que é uma pessoa ruim ou duas, pra 130 milhões de brasileiros que me amam, então meu amor, ninguém é mais poderoso do que Deus e eu”. Ao associá-las com as cenas do programa, esses videomemes são trabalhados como se as drags hou- vessem utilizado essas vozes para falar de si próprias. Sendo assim, é notável o uso de determinadas produções audiovisuais que se apro- priam dos códigos e linguagem do próprio formato do reality.

B) REDUBLAGEM E REMIXAGEM DAS BRIGAS DE BASTIDORES

Outra série de vídeos trabalha cenas de brigas e discussões do programa. Esses momentos se dão, sobretudo, nos momentos de bastidores ou enquanto estão se preparando para a avaliação dos ju- rados, enquanto as queens estão se montando. Nesse sentido, desta- cam-se os acontecimentos que se dão no Untucked!, formato derivado e complementar a RPDR levado ao ar logo após cada episódio. O foco do Untucked! é registrar conversas de bastidores entre as participan- tes após as críticas dos jurados, enquanto esperam a deliberação. Em

Indústria Criativa Revista em alguns momentos são colocadas cenas bônus do episódio para con-

textualizar algumas conversas. O momento de tensão acaba propor-

Trama cionando drama constante entre as Ru Girls. É comum que lá se de-

72 senrolem brigas entre rivais, confissões e muitas lágrimas, momentos que serão apropriados pelos fãs brasileiros através da substituição do áudio original por trechos de videomemes famoso. Em um deles, é trabalhada a cena da discussão entre as competi- doras Valentina e Aja, após esta última acusar Valentina de se esforçar pouco nas provas e ainda assim estar entre as melhores, pois seria uma protegida dos jurados, canonizando o bordão “You’re perfect, you’re be- autiful, you look like Linda Evangelista”. No videomeme, o áudio com as acusações de Aja é substituído por trechos de uma matéria jornalística do programa Profissão Repórter, que originou o meme Eu Sou Bonita Pra Caramba, ao mostrar uma participante do concurso de beleza Garota da Laje indignada por ter sido eliminada. Na montagem, a motivação de Aja é orquestrada em grande similaridade à situação real do programa a partir da nova dublagem: “eu fico revoltada, essas mulher feia ganhando! (...) Sou toda natural, eu sou bonita pra caramba; eu pensei que eu que fosse ganhar, mas também deixei de esmola pra elas!”. Dois outros vídeos trazem trechos em que as drag queens Shan- gela e Mimi Imfurst discutem após Mimi sugerir que sua concorrente teria um sugar daddy, parceiro mais velho que em uma relação he- terossexual ou homossexual banca financeiramente a outra pessoa. A seguir, Shangela protagoniza a cena frequentemente referenciada pelos fãs nas comunidades de RPDR como uma das mais icônicas de toda a história do reality, trazendo um discurso sobre nunca ter tido um sugar daddy e que tudo que construiu em sua carreira foi a par- tir do seu esforço pessoal, mas que se quisesse ter um, não haveria problema. Nos memes, o discurso aparece na forma de um áudio du- blado e gravado a partir do dispositivo de som do Google Translate, já outro traz a voz da participante acelerada e afinada. Ainda dentro do contexto das discussões, a cena icônica da briga entre as competidoras e Phi Phi O’Hara no episódio 4 da quarta temporada, devido a desentendimentos na prova do epi- sódio anterior, foi apropriado pelos fãs e rendeu uma sequência de Rafael Moraes Rafael montagens, remixes musicais e redublagens parodiando a cena. Ori- ginalmente, Sharon informa a Phi Phi que achou irresponsável que ela enquanto líder tenha indicado a montagem de sua personagem com descaso ao lhe destacar “o mesmo look gótico”, ao que Sharon responde a chamando de show girl fracassada e O’Hara protagoniza a uana Inocêncio, Inocêncio, uana

popular frase entre o fandom: “At least I’m a show girl, bitch, go back to L

73 party city where you belong!”. Na redublagem, foram utilizados trechos de áudio do reality de drags cearense Glitter, inspirado em RuPaul’s Drag Race, em que as competidoras Rochelly Santrelly e Sangalo se enfrentam para dizer quem merece ficar no programa. Na prova que instiga a discussão acalorada entre as competidoras, nascem bordões emprestados às falas de Sharon e Phi Phi: “bicha, a senhora é destrui- dora mesmo viu, viado?” e “vai ser choque de monstro, meu amor!”.

C) VÍDEOS REACTS DE MOMENTOS DRAMÁTICOS

A terceira modalidade se apoia em uma prática cada vez mais co- mum em produtos midiáticos com alto engajamento de seus consumi- dores: os vídeo reacts, geralmente caracterizados por fãs ou compilações de fãs reagindo a trailers de filmes31, cenas impactantes de séries ou a lançamento de videoclipes. Sua origem moderna se dá por volta de 2007, no YouTube 32, através da popularização de pessoas reagindo a vídeos gro- tescos e escatológicos, como o famoso 2 Girls, 1 Cup33, ganhando muitos desdobramentos nos anos seguintes. Sendo assim, o objetivo dos vídeos de reações é capturar momentos de surpresa do espectador. No contexto de RPDR, alguns vídeos, trazem, através de mon- tagens, personalidades populares de memes brasileiros “reagindo” a cenas do reality. Os vídeos se caracterizam pela sobreposição de momentos impactantes do programa, como eliminações, com víde- os de “memecelebridades” como a ex-BBB Ana Paula Renault (da 16ª edição). Um trecho do vídeo original foi apropriado a partir da sua reação após ser eliminada em um paredão falso e informada pelo apresentador Pedro Bial de que estaria de volta à competição, que é encaixado a trechos do vídeo divulgando as novas participantes da temporada nove. Bem como a “web-diva”, como é intitulada por seus fãs, Tulla Luana, conhecida por suas reações vociferando com intensa dramaticidade, muitos palavrões e acusações, foram contextualiza- dos a diversos anúncios de RuPaul informando quais queens seriam mandadas embora do programa após o lip sync, ao que as reações de Tulla foram captadas aprovando ou rechaçando tais decisões; e ainda a personagem Carminha, da telenovela Avenida Brasil, gritando exal-

Indústria Criativa Revista em tada contra o julgamento de RuPaul “sua besta, desgraçado, inferno!”

após a eliminação da competidora Katya. Trama

74 D) VIDEOMEMES MUSICAIS

Outros vídeos dialogam diretamente com outros momentos mar- cantes do reality, diretamente relacionado a um contexto musical, uma vez que a dublagem, canto e dança são atributos cobrados das Ru Girls nos principais desafios do programa. Nas produções de videomemes, é possível se observar variadas criações amadoras dentro desse contexto. As mais populares e recorrentes são as inserções de trilhas sono- ras distintas a lip syncs variados: com canções das artistas Xuxa, Inês Brasil34 e Bonde das Atrevidas; ou mesmo trechos de outros vídeos junto a cenas das dublagens realizadas pelas queens, com trechos de bordões de Inês Brasil como “O que é isso? Parece umas pornô!” (sic), em um vídeo em que duas queens apresentam uma performance sen- sualizando juntas para os jurados; além de um outro que apresenta as versões original e legendada da música de superação de RuPaul, Champion, e o que seria uma versão dublada desta, protagonizada por Inês: “Porque o decair é do homem mas o levantar é de Deus” (sic). Também bastante populares são os vídeos de dança retirados do programa Casos de Família. Um deles busca simular um lip sync da drag Alaska Thunderfuck da música This Is My Hair, alocado a um vídeo original do episódio “Você bate cabelo e eu quero bater na sua cara”, em que uma participante entra no palco para discutir suas relações familiares com os pais e a apresentadora, encenando um “bate cabelo35”. Em outra produção, trazem mais um tipo de expres- são performática comum ao show de drag queens, o death drop36. Nos vídeos mapeados, diversas participantes de Drag Race encenam variados momentos ao som da música Sweet Dreams remixada ao som de funk, meme bastante popular no país, em que a queda do protagonista de determinado vídeo é adicionada ao trecho de Casos de Família, em que um rapaz gay encena passos de funk dos popu- lares “passinho do romano” e “sarrada no ar” abrindo espacate, no episódio denominado “Sou gay e não gripe pra te contaminar”. Rafael Moraes Rafael Outro momento que gerou bastante produção de videomemes foi a apresentação do top 4 da temporada All Stars 2, em que as finalistas performaram a gravação da música “Read U, Wrote U”. Considerado um dos piores versos de todas as temporadas, a parte da música cantada pela participante se tornou meme ao ganhar várias uana Inocêncio, Inocêncio, uana

versões em vídeos. Em um deles, a parte da música cantada pela drag L

75 queen é incorporada ao hit Vai Malandra, da cantora Anitta. Em ou- tro, em um trecho da série animada Os Simpsons, o personagem Bart Simpson enfileira uma série de megafones e começa a cantar o trecho de Roxxxy em Read U Wrote U, explodindo a cidade de Springfield.

SASHAY AWAY, MONAMU!: AS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tal contexto, a utilização desses recursos intertextuais, seja de outros produtos midiáticos ou de expressões culturais locais, nos direcionam para um conjunto de referências compartilhadas pelos fãs de Drag Race no Brasil e que fazem parte não apenas do consumo des- se produto midiático como também das referências culturais do públi- co LGBTQ+ brasileiro para gerar humor e identificação. A apropriação e ressignificação de produtos do entretenimento por esses sujeitos, através de uma série de padrões comportamentais, permitem à pes- quisa um etiquetamento diferenciado a estes atores, comumente re- ferenciado na web como o “jeitinho brasileiro” de interagir nas redes. Organizados em comunidades digitais, aqui caracterizadas como subculturas dotadas de comportamentos, valores, estéticas e discur- sos tão próprios, membros diversos das ambiências autodenominadas como Vales dos Homossexuais complementam os sentidos da própria palavra representatividade. Tais interagentes oferecem modos brasilei- ros de interpretar seus produtos culturais queers favoritos, a exemplo de RuPaul’s Drag Race, a partir de personagens nativas da própria cultura digital, popularizadas a partir dos memes como “rainhas” LGBTQ+ ou fi- guras femininas tidas como divas, que dão uma voz personalizada a tais produções, em peças editadas, legendadas, sonoplastizadas e montadas a partir de suas experimentações com as materialidades das tecnologias. Estes intercâmbios são viabilizados pelas tecnologias digitais, que não apenas propiciam que grupos minoritários se localizem, se reúnam e dialoguem, mas oferecem ferramentas para que criem novos artefatos derivados de seus produtos culturais favoritos, complementando seus sentidos, os ressignificando ao contexto local com uma infinita ordem de novas interpretações diversas daquelas premeditadas em suas formas canônicas, quando concebidas pela indústria do entretenimento.

Indústria Criativa Revista em Nesse sentido, os videomemes produzidos por fãs de RuPaul’s

Drag Race, aqui analisados, carregam uma infinidade de traços iden-

Trama titários da permuta entre a cultura drag estadunidense e a brasileira:

76 o death drop das Ru Girls é recombinado a “uma gay que dança funk e dá sarrada no ar”; o lip sync ao som da rainha dos baixinhos, Xuxa, que marcou a infância de tantas crianças viadas37 na década de 1980. Ainda que pelo viés do humor, os pertencimentos e disputas de fundo político ainda “dão pinta” em tais comunidades, seja na exalta- ção do discurso de naturalização da relação com um suggar daddy; ou pela ênfase irônica ao termo “fish queen”; a própria busca pela des- mistificação da hegemonia masculina na arte do performardrag , com uma corrente de fãs mulheres trans e cis também se montando. Nestas comunidades estabelecem-se também as redes de con- tatos e divulgação das queens brasileiras que tiram das performan- ces e shows seu sustento, a informação trocada no ensinar da arte drag, como tutoriais de maquiagem, enchimento, utilização de aces- sórios. As próprias pequenas redes de importação de fã para fã de produtos como perucas, maquiagens, pedrarias, itens como fitas, colas, unhas e cílios vendidos apenas no exterior, além da recomen- dação de lojas brasileiras que aos poucos se estabeleceram e con- seguem se manter apenas com a venda de matérias-primas para a arte drag. Além de tais fins, as comunidades de RuPaul’s são portas abertas para uma série de discussões em torno de movimentos civis relacionados aos direitos LGBTQ+, informação e divulgação de polí- ticas públicas, eventos, coletivos de gênero e sexualidade. São observados variados traços da representatividade perme- ada na cultura drag, apreendida a partir do consumo do programa e mesclado a videomemes que inserem as participantes do reality corporificadas em outraspersonas e cenários nacionais, como porta- vozes de personagens e situações dos memes brasileiros, adaptan- do o texto original e adicionando elementos específicos do cenário queer local. Tais produções de fãs, para além de meros objetos do amadorismo camp, parecem figurar, assim, como mediadores da ex- periência de consumo e interpretação do reality e, por extensão, da própria cultura drag como observada no mainstream. Rafael Moraes Rafael

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1. Professora substituta do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Federal Fluminense. Doutoranda em Comunicação pela mesma instituição. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias (LabCult). E-mail: [email protected]. uana Inocêncio, Inocêncio, uana L

79 2. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Televisão e Novas Mídias (TeleVisões) e do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (LabCult). E-mail: [email protected]

3. Em inglês: Charisma, uniqueness, nerve and talent.

4. Vídeo disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

5. Queer, equivalente ao inglês para “estranho”, foi considerado por muito tempo um termo pejorativo para definir sujeitos desviantes da conduta heteronormativa hege- mônica. O vocábulo passou a ser adotado pela comunidade LGBTQ+, que a partir da associação a movimentos sociais, deu um sentido positivo para a palavra, posterior- mente dando origem à corrente teórica de mesmo nome, dedicada a interpretar a construção social do gênero a partir desses sujeitos.

6. Em ‘Notes of Camp’, Sontag (1987) desenvolve impressões acerca da sensibilidade camp, alertando para a dificuldade de defini-la por não estar relacionada ao natural, mas sim ao amor pelo não-natural, ao artifício e exagero.

7. Crossdressing é a prática de se expressar através de roupas que não são socialmen- te entendidas como adequadas ao gênero de origem desse sujeito. Na experiência crossdresser, não existe a necessidade de realizar alterações corporais como, por exemplo, terapia hormonal ou uso de silicone, uma vez que essa prática não interfere diretamente com a identidade de gênero ou sexualidade do sujeito.

8. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

9. A primeira temporada de RuPaul’s Drag Race foi reprisada em 2013 pela Logo TV com o título de The Lost Season Ruvealed, enfatizando o fato de ser a menor temporada de todas. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

10. Pesquisa da TV By The Numbers, disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

11. Dados do World Of Wonder, disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

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14. Dados do Imdb, disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

15. Apesar de ser considerado um elogio, o termo “fish” possui origens misóginas, uma vez que a referência a peixe (fish, em inglês) se dá por uma comparação entre o forte odor do animal com o cheiro exalado pelo órgão sexual feminino. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018. Indústria Criativa Revista em

16. Por exemplo, na quarta temporada, a participante Willam é constantemente cha- mada atenção por não fazer a barba adequadamente, fazendo seus traços masculinos sobressaírem em sua maquiagem. Trama

80 17. Por exemplo, na sexta temporada, a participante foi criticada por não usar uma cinta para deixar sua cintura menor, afinando sua silhueta.

18. Em 2017, ao ser questionado no Twitter quando iria passar a aceitar mulheres parti- cipando do programa, RuPaul respondeu: “Esse show já existe, se chama #MissUniver- se”. Disponível em: < https://goo.gl/4Lkg3w>. Acesso em: 20 jan. 2018.

19. Matéria disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

20. Vídeo disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

21. Vídeo disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

22. Grupo disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

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27. Página disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

28. Página disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2018.

29. inspirou-se na top model Naomi Campbell para construir a estética de sua drag queen, sendo uma personagem bastante vaidosa de sua temporada por ter como referência o universo da moda.

30. Katya se utiliza de uma persona de prostituta russa para caracterizar sua drag. Em sua entrada no programa, Katya se apresentou como: “Meu nome é Yekaterina Petrovna Zamolodchikova, mas você pode me chamar de Katya. Eu sou apenas uma prostituta russa bissexual travestida. Katya está no cruzamento de glamour e comé- dia. Você pode encontrá-la bem na esquina, vendendo sua bunda”.

31. Disponível em: < https://goo.gl/kEZUxa>. Acesso em: 28 jan. 2018.

32. Disponível em: < https://goo.gl/pxLXNt>. Acesso em 28 jan. 2018.

33. Hungry Bitches, conhecido como “2 Girls 1 Cup,” é um filme pornográfico brasileiro.

34. Inês Brasil, considerada pela comunidade LGBTQ+ online junto com a cantora Gre- tchen como Rainhas da Internet Brasileira, foi descoberta pela web após o seu cômico vídeo de inscrição para o reality show Big Brother 2013 ser intensamente comparti- Moraes Rafael lhado, em 2012. Ao ser divulgado na internet, o vídeo tornou-se viral e gerou muitos comentários pela irreverência, ousadia e humor da “diva” Inês.

35. Técnica performática comum em shows de drag queens em que as artistas giram a cabe- ça rapidamente jogando os cabelos de um lado para outro – geralmente usando perucas.

36. Ato em que as artistas se jogam ao chão de costas abrindo um espacate, geralmen- Inocêncio, uana te nos pontos altos da canção. L

81 37. O meme criança viada originou-se em meados de 2012, quando um jornalista pas- sou a reunir fotos suas e de seus amigos gays e lésbicas em poses bastante inusitadas, de meninos com postura “afeminada” e meninas de cabelo curto bem “machonas”, como uma ruptura “afrontosa” do imaginário pejorativo, fugindo dos padrões da he- teronormatividade. As fotos compuseram um Tumblr homônimo cujas fotos acompa- nhavam legendas divertidas e diversos seguidores passaram a enviar seus retratos, popularizando o termo “criança viada” entre a comunidade LGBTQ+ e inspirando par- te da exposição Queermuseu, realizada em 2017. Subsidiada pelo Santander Cultural, a exposição que reunia 270 obras sobre a temática LGBTQ+ foi cancelada após de- núncias sobre uma suposta apologia à pedofilia nas obras cujas imagens traziam as legendas “Criança viada travesti da lambada” e “Criança viada deusa das águas”. Indústria Criativa Revista em

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