i i i i

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

1867 Um Ano de Gigantes Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha

i i

i i i i i i

Ficha T´ecnica T´ıtulo: 1867 — Um Ano de Gigantes: Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha Organiza¸c˜ao:Ernesto Rodrigues Pagina¸c˜ao:Lu´ısda Cunha Pinheiro Edi¸c˜ao:Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Lisboa, 2018

ISBN — 978-989-8916-01-3

Esta publica¸c˜aofoi financiada por fundos nacionais atrav´esda FCT — Funda¸c˜ao para a Ciˆenciae a Tecnologia, I.P., no ˆambitodo Projecto «UID/ELT/00077/2013»

i i

i i i i i i

1867 Um Ano de Gigantes Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha

Organiza¸c˜aode Ernesto Rodrigues

CLEPUL 2018

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

´Indice

Ernesto Rodrigues Nota ...... 9 Teresa Martins Marques Raul Brand˜ao:a condi¸c˜aotr´agicado homem moderno ...... 11 Vasco Rosa Raul Brand˜aoe os A¸cores ...... 21 Annabela Rita Aos ombros da «vis˜aod’artista» ...... 35 Ernesto Rodrigues Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre ...... 45 Joana Lima S´o: um livro de tinta transparente ...... 57 Ana Margarida Chora Camilo Pessanha e os matizes da decadˆencia ...... 67 Dion´ısioVila Maior Camilo Pessanha e a figura¸c˜aodo esp´ıritosubjetivo ...... 79 Ant´onioCarlos Cortez Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas ...... 91 Jos´eRui Teixeira Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha ...... 109

7

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

Nota

O Congresso Internacional 1867 — Um Ano de Gigantes: Raul Brand˜ao, Ant´onio Nobre, Camilo Pessanha, organizado pelo CLEPUL — Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, decorreu no Audit´orioda Biblioteca Nacional de (BNP) entre 23 e 25 de Outubro de 2017, no sesquicenten´ariodo nascimento de t˜aoilustre trindade. Generosamente acolhidos pela BNP e sua directora, InˆesCordeiro, ouvimos comunica¸c˜oesde Maria Jo˜aoReynaud, Joana Lima, Daniel Pires, Jos´eRui Tei- xeira, Annabela Rita, Ant´onioCarlos Cortez, Golgona Anghel, Jos´eManuel de Vasconcelos, Vasco Rosa, Ana Margarida Chora, Dion´ısioVila Maior, Ricardo Nobre, Teresa Martins Marques e Ernesto Rodrigues, organizador do Congresso, al´emde moderador de mesa-redonda com Ant´onioCˆandidoFranco e conferencis- tas presentes. Outras modera¸c˜oescouberam a Helena Carvalho, Sofia Carvalho e Rui Sousa. Encerrou Jos´eCarlos Seabra Pereira, sobre afinidades e distˆancias dos trˆescontemplados. Na oportunidade, assistiu-se ao lan¸camentode Cinzento e Dourado. Raul Brand˜aoem foco, nos 150 anos do seu nascimento (INCM), de Vasco Rosa, com apresenta¸c˜aode Gustavo Rubim. Aurelino Costa — actor, poeta e diseur, com quem estaremos sempre em d´ıvida– intervalou as sess˜oesrecitando excertos dos trˆesautores. Para mem´oriafutura, decidimos reunir algumas comunica¸c˜oes,representa- tivas dos trˆespercursos, acrescidas de um inesperado de Guilherme de Faria congregador (justificando, al´emdos trˆes,Carlos de Lemos) e de pitada coetˆanea em modo de Ces´ario.

Ernesto Rodrigues

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

Raul Brand˜ao:a condi¸c˜aotr´agica do homem moderno

1 Teresa Martins Marques

«Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os h´abitoslentamente acumulados.» Raul Brand˜ao(H´umus)

A Obra de Raul Brand˜aoafirma a condi¸c˜aotr´agicado homem moderno, numa ´ıntimaconex˜aoentre a vida e a escrita, conjugando a contesta¸c˜aoe a revolta, le- vando, ao mais alto grau, os paradoxos reflexivos do sujeito ag´onico. Maria Jo˜ao Reynaud, editora de Raul Brand˜aoe uma das suas melhores exegetas, situa o au- tor dentro das linhas fundamentais da est´eticafinessecular, superando o impacto de v´ariasinfluˆenciascontradit´oriasque v˜aodo spleen baudelairiano ao pessi- mismo de Schopenhauer, ao psicologismo de Paul Bourget e `asinfluˆenciasdo romance russo, particularmente de Dostoievski. Raul Brand˜aopˆosradicalmente em causa os modelos liter´ariosvigentes na sua ´epoca,abolindo a oposi¸c˜aoentre prosa e poema, subvertendo as categorias gen´ericas,desvalorizando os elemen- tos convencionais da narrativa e antecipando as experiˆenciasmais inovadoras 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase Europeias (CLEPUL).

i i

i i i i i i

12 Teresa Martins Marques

da fic¸c˜aoportuguesa contemporˆanea,de que constituem2 exemplo Finisterra de Carlos e Oliveira ou a obra de Maria Gabriela Lhansol￿ . H´umus, opus magnum brandoniano, teve a sua 1. vers˜aoeditada em 1917, no Porto, pela Renascen¸caPortuguesa; uma segunda, muito refundida, em 1921, no Rio de Janeiro, pelo Anu´ariodo Brasil, tamb´emcom chancela da Renascen¸ca Portuguesa; a terceira, resultante de nova refundi¸c˜ao, editada em Lisboa em 1926, pelas livrarias Aillaud & Bertrand, esta a edi¸c˜aode ´ultimam˜ao, ne va- rietur. Inclassific´avelquanto ao g´enero, nas palavras de Jos´eR´egio: «Em v˜ao se tentar´aarrum´a-ladentro de qualquer g´enerodefinido: nem romance, nem di´ario, nem colectˆaneade cr´onicas,nem ensaio, nem3 poema, nem confiss˜oes;de tudo isto comparticipa e a tudo isto se evade» . A sua estrutura ´ea de um angustioso di´ario, entretecido￿ de reflex˜oespo´eticase metaf´ısicas,abrangendo cerca de um ano (na 3. edi¸c˜ao, de 13 de Novembro a 30 de Novembro do ano seguinte), onde alternam dois mon´ologosinteriores,￿ plasmando um estado alte- rado da consciˆenciade uma 1. pessoa e a voz do seu duplo, o Gabiru, numa atmosfera eminentemente subjectiva, de uma vila estagnada, povoada de velhos, onde o espa¸coe o tempo s˜aodeformados e as imagens irrompem reiterada- mente como fantasmas. H´umus releva do sentimento do absurdo e antecipa-se ao surrealismo, ao existencialismo e ao nouveau roman pelo desmantelamento da intriga tradicional, pela cria¸c˜aode um espa¸cosimb´olico, pela dilui¸c˜aodas personagens num magma narrativo em que o Tempo se torna o motor da «ac¸c˜ao». Idˆenticopapel inovador4 lhe reconhece David Mour˜ao-Ferreira como precursor do nouveau roman . Ant´onioS´ergio, no vol. III dos Ensaios (1932), ter´asido porventura um dos primeiros a chamar a aten¸c˜aopara a Obra brandoniana consi- derada como «um longo mon´ologointerior, donde5 se elevam de espa¸coa espa¸co alguns trechos haml´eticosde humanidade» . Guilherme de Castilho6 afirma que a medita¸c˜aoe o solil´oquiosustentam a obra do autor de H´umus , com a sua multiplicidade de intui¸c˜oesmarginais, com a profundidade que atingem certos momentos de penetra¸c˜aoiluminante, com a for¸caemotiva de que se revestem, com o poder de transfigura¸c˜aopo´eticaque os caracterizam. N’A Farsa e no H´umus, o mon´ologointerior exprime um discurso mental e a estrutura que o suporta ´eel´ıptica,sincopada, por vezes ca´otica,como a conhecemos desde Les Lauriers Sont Coup´es (1887), de Edouard Dujardin, para atingir o seu pleno desenvolvimento com Ulisses (1922), de James Joyce.

2 3 Maria Jo˜aoReynaud, Introdu¸c˜aoa Raul Brand˜ao, H´umus, 2015, p. 8. 4 Jos´eR´egio, «H´umus», in Ler, Novembro de 1952. 5 Cf. David Mour˜ao-Ferreira, 1969, p. 123. 6 Cit. por David Mour˜ao-Ferreira, 1969, p. 126-127. Guilherme de Castilho, 1978, p. 148.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜ao:a condi¸c˜aotr´agicado homem moderno 13

Em Raul Brand˜ao, o presente da actividade mental das personagens ´eainda o tempo estruturador da narrativa, como muito pertinentemente notou Maria Alzira Seixo, num dos seus primeiros trabalhos ensa´ısticos— Para Um Estudo da Express˜aodo Tempo no Romance PortuguˆesContemporˆaneo (1966) — referindo- -se particularmente ao H´umus: H´auma atmosfera de imobilidade que nos colhe e que, sendo a nega¸c˜aodo movimento, ´etamb´ema nega¸c˜aodo tempo. A narra¸c˜ao ´e-nosfeita quase sempre no presente verbal e este facto, que po- deria estabelecer um contacto mais imediato com a vida `amedida que vai sendo realizada com o quotidiano, n˜aoo faz porque se situa numa atitude est´aticaque, pelo contr´ario, conduz a uma esp´eciede eterno presente. Este presente n˜ao´e,como deveria7 ser por essˆencia, fugidio, evanescente — ´eum presente que dura. Na Obra brandoniana as defini¸c˜oesentrecruzam-se at´e`acontradi¸c˜aom´axima e instituem o primado da multiplicidade do «Eu», que filtra a percep¸c˜aode realidades t˜aodiversas quanto a sua capacidade de se fragmentar nos seus contr´arios,numa perturbante luta interior, num espelho paralelo das m´ultiplas faces do «fantasma» que se imp˜oeao ponto de ser ele pr´oprioo juiz, na pe¸ca O Rei Imagin´ario. Jacinto do Prado Coelho entende que o grande assunto de H´umus ´ea dico- tomia terr´ıficado homem e da vida: E se ac¸c˜aoexiste nesta obra singular, ela parece consistir no choque entre o mundo aparente, a rotina e o mundo autˆentico, na desco- berta desnorteante, s´ubitacomo um relˆampago, de algo monstruoso, informe. Brusca ilumina¸c˜aoprojectada nos habitantes desta8 vila on´ıricae tumular onde o tempo corr´oias almas e as pedras . O mon´ologoaparece-nos sob a forma de di´alogoaparente, porquanto os intervenientes s˜aoduplos fantasm´aticosde9 contornos indistintos. Essa indis- tin¸c˜aorefor¸caa10 «dissolu¸c˜aodo acontecer» como em Ulysses por via da «vulga- riza¸c˜ao» daquele 16 de Junho de 1904, dia vulgar na vida vulgar de Leopold Bloom, de Molly Bloom, de Stephen Dedalus. Quer em Ulysses quer no H´umus o mundo ´erepresentado na sua essencialidade e certos mon´ologosda Candidi- nha d’A Farsa oscilando entre a rememora¸c˜aoe o projecto, o real e o imagin´ario 7 8 Maria Alzira Seixo, 1987, p. 47. ￿ ￿ Jacinto do Prado Coelho, in Dicion´ariode Literatura, Verbete Raul Brand˜ao, 2. vol., 3. 9ed., 1979, p. 448. 10 Como a designa Maria Alzira Seixo: ibidem, p. 54.￿ Cf. Lu´ısde Sousa Rebelo, in Col´oquio-Letras n. 70, Novembro de 1982, p. 6.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

14 Teresa Martins Marques

filiam-se avant la lettre no paradigma do discurso interior de Molly Bloom. A sua fantasia auto-er´oticapoder´aencontrar correspondˆenciana fantasia-vendetta daquela personagem d’A Farsa. A Obra brandoniana assenta nos processos nar- rativos da reitera¸c˜aoe da ressonˆancia,do mon´ologosimulado em di´alogoentre o rosto e a m´ascara, entre o homem e o seu fantasma. A pr´opriavida ser´adi- cotomicamente definida como se ela pr´opriafosse rosto e m´ascara, acto de f´ede todos instantes e acto est´upidoe in´util.S˜aoos mortos que mandam nos11 vivos. Esta obsess˜aobrandoniana, «necrofilia», como lhe chama Aquilino Ribeiro , en- contrar´aporventura o cl´ımaxno final de H´umus:«E´ preciso matar segunda vez os mortos.» Machado Pires salienta a duplicidade brandoniana em duas facetas distintas: a apol´ınea-diurna,da12 luz e da cor e a dionis´ıaca-nocturna,«um homem em luta com um fantasma.» Ou ainda, como escreve Marques Gast˜ao:

O conflito brandoniano ´euma luta febril, gigantesca, brutal, cont´ınua, macabra, entre duas personalidades bem distintas: uma a ambicio- sa, que vai a todos os limites; a outra, a emotiva, que se alimenta13 de contrastes, de conflitos, nesse eterno desespero de defini¸c˜oes .

Teixeira de Pascoaes sintetiza exemplarmente a problem´aticadas «formas indecisas» brandonianas:

N˜aoh´asentimentos terminantes ou em n´ıtidorecorte. Os que pa- recem mais contr´arios,tocam-se e fundem-se nos seus contornos fugidios; originam uma esp´eciede nebulosa donde se elevam for- mas indecisas, que participam umas das outras: ´odioe amor, cren¸ca e descren¸ca,tristeza e alegria. O Homem ´ee n˜ao´e,avan¸coe re- cuo. . . A um sim responde sempre um n˜ao. Quando afirmamos, ne- gamos, porque vivemos e14 existimos e a vida nega a existˆencia,como a existˆencianega a vida .

A vila do H´umus ´eum simulacro. Atr´asdesta vila h´aoutra vila maior, ambas situadas num espa¸coambiguamente simb´olico. Segundo Raul Brand˜ao, o supremo valor da vida ´ea Morte, ou um momento de ternura que extrai de cada pedra, como Joana, a mulher da esfrega. Na Carta-Pref´acioa Os Pobres, Guerra Junqueiro observa que Mouca, Lu´ısa,Gebo, Gabiru s˜aosimples pseud´onimos.O nome real, o verdadeiro nome de todos eles ´eum s´o:a Dor, que n˜aoassume a 11 12 Aquilino Ribeiro, 1975, p. 187. 13 Ant´onioMachado Pires, 1988, p. 25. 14 Marques Gast˜ao, 1942, p. 22. Cit. por Marques Gast˜ao, op. cit., p. 35.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜ao:a condi¸c˜aotr´agicado homem moderno 15

dignidade da trag´ediacl´assica, mas a da farsa tr´agica,como em O Doido e a Morte. E´ a dor grotesca e mesquinha, reles e repulsiva que encontramos n’O Gebo e a Sombra, n’Os Pobres, n’A Farsa, no H´umus ou mesmo nos gritos de El-Rei Junot. Dor, luz e sonho, s˜aolexemas que ocorrem obsessivamente na obra brandoniana. Sonho — ambi¸c˜aoego´ısta,desforra interior da Candidinha d’A Farsa. Sonho — a mentira que a velha exige ao Gebo para poder viver. Sonho — o terreno da mem´oria— a m˜ae,nascente de onde lhe vem o sonho. Quimera de um artista frustrado na Hist´oriadum Palha¸co, vontade de poder de uma alma rudimentar n’A Farsa, evas˜aodos humildes condenados a uma vida embrion´aria,beleza pressentida, universo realizado sonho ´etudo isto, mas tamb´emum processo de transfigura¸c˜aopo´etica,meio de liberta¸c˜aoespiritual, o Inominado. Dotado de uma vitalidade prodigiosa, o sonho tudo invade15 e p˜oeas ´arvoresa florir. Mas ´etamb´empasmo, vertigem, descida aos infernos . Segundo Machado Pires, em Raul Brand˜ao, o sonho n˜ao´edevaneio on´ırico;´eo projecto, o plano, a desforra, a quimera, mas quando aspira¸c˜ao´ıntimasecreta e fuga ao real. Tanto pode ser o sonho que liberta e santifica, plasmado pela Dor (Santa Eponina, o Gebo), como o que se transforma em ´odiona Candidinha, ou «o chale velho a que D. Leoc´adiase achega todas as tardes, mesmo no pino16 do Ver˜ao[. . . ] e, quanto mais no fio, mais peso tem: est´aencharcado de sonho.» Sonho situado num Tempo que m´oie rem´oi,fundura constante que se traduz na humidade que alastra nas paredes, nas teias que a aranha tece nos corredores, no granito carcomido das est´atuas,na cinza invis´ıvelque recobre a vila do H´umus. Tempo — personagem t˜aoreal como o lume da lareira. Um tempo atravessado pela Dor, h´umusda Vida. O tempo da ´arvore— reflorescimento da Dor atrav´esdas gera¸c˜oes.Tempo lento, gradual, percurso do amor capaz de fazer florir a ´arvore que naquele reino servia de forca. Tempo-Amor que transforma o deus feroz do pa´ısquim´erico(Hist´oriade Um Palha¸co eoMist´erioda Arvore´ ). Tempo — Amor — dedica¸c˜aode Prisca que lentamente transforma o Ru¸code M´aPˆelo(Portugal Pequenino). Tempo — Futuro de Esperan¸ca,an´uncioda grande revolu¸c˜aosocial que tender´aa￿ instaurar a igualdade que, em tom apocal´ıptico, fora descrita em 1917, na 1. edi¸c˜aodo H´umus, e retomada n’O Pobre de Pedir atrav´esda an´aliseda oposi¸c˜aoentre17 exploradores e explorados e pela express˜aoobsessiva dum sentimento de culpa . Segundo Oscar´ Lopes, as posi¸c˜oessociais de Raul Brand˜aoremetem para um igualitarismo agr´ariocrist˜aode influˆenciatolstoiana, uma das constantes do autor desde o folheto O Padre, onde ali´asse p˜oemre-

15 16 Jacinto do Prado Coelho, op. cit., p. 237. 17 Ant´onioMachado Pires, op. cit., p. 23. Jacinto do Prado Coelho, 1976, p. 232-233.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

16 Teresa Martins Marques

servas `arevolu¸c˜aoliberal e republicana, as quais teriam liquidado,18 com as es- peran¸casdo C´eu,os motivos de humildade e resigna¸c˜aopopular . As oscila¸c˜oesentre as diversas no¸c˜oesde Tempo encontram igual corres- pondˆencianas oscila¸c˜oesda cor, pretendendo captar os instantˆaneosda vida: «Esta paisagem19 entranhou-se-me na alma, n˜aocomo paisagem, mas como sen- timento.» Os jogos de luz e cor representam o real e o irreal, o quotidiano e o sonho. Fotolatria e cromolatria, policromia orgi´astica,num processo de transfi- gura¸c˜aosinest´esicade verde macio, de verde molhado de silˆencioverde (As Ilhas Desconhecidas). Ou ainda o azul — a cor dominante na Obra, ao lado do oiro que Raul Brand˜ao, pintor impressionista, captou na sua tela. Esta visualidade ou sensorialidade constru´ıdaa partir de sinestesias ou hip´alagesestonteantes — «o ar ´eum perfume gordo», o mar o «caldo azul do Algarve», a espuma «um mosto branco e salgado»,20 o silˆencio«h´umidoe verde» —, inscreve-se num universo de sensorial espanto . A paisagem reflecte o espanto de existir, face poli´edricada Vida azul, verde, doirada, silenciosa e h´umida. Jo˜aoPedro de Andrade considera que Raul Brand˜aoconseguiu um estilo caracter´ısticoe individual, apesar das frequentes incoerˆencias,do21 desgrenha- mento dos per´ıodos,da ausˆenciade composi¸c˜aopaciente e met´odica . A mesma oscila¸c˜aolhe atribui Aquilino: «A sua frase tanto se eleva ao p´ıncaro como baixa `aplatitude sem pejo. . . Meia d´uziade p´aginasdecorrem articuladas a primor. . . Sucedem-se22 outras, descosidas de sentido, sup´erfluas,palha emedada sem gr˜ao» . Castelo Branco Chaves, porventura o autor da cr´ıticamais contun- dente sobre Brand˜ao— «Improvisador, n˜aotrabalhou a sua arte, n˜aoraciocinou a sua emo¸c˜ao, n˜aolapidou a sua prosa, n˜aocorrigiu nem disciplinou a cria¸c˜ao» —, ainda assim lhe prestou homenagem: «Se n˜ao´ehistoricamente rigoroso,23 ´e literariamente inexced´ıvelcomo criador de figuras cheias de pitoresco» . Esta opini˜aode Castelo Branco Chaves haveria de contaminar outras opini˜oescr´ıticas: ´eo caso de Alvaro´ Salema, que afirma:

O seu destino liter´ario, o que mais o personalizou como escritor, foi o de quedar-se nesse primarismo do instinto sem o superar e organizar numa est´eticade prosador, sem o submeter a uma reflex˜ao

18 19 Oscar´ Lopes, 1987, p. 363. 20 Ant´onioMachado Pires, op. cit., p. 30. 21 Oscar´ Lopes, op. cit., p. 360. 22 Jo˜aoPedro de Andrade, s/d [1963] p. 25-26. 23 Aquilino Ribeiro, op. cit., p. 203. Castelo Branco Chaves, 1981, p. 112 e 115.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜ao:a condi¸c˜aotr´agicado homem moderno 17

instru´ıdapor uma cultura, sem24 o submeter `aoficina de artista, na lavra do trabalho depurador .

Ant´onioS´ergiodeseja que «os seus pastores, os oper´ariose os lavradores, sejam a hist´oriahumilde do nosso povo e n˜aos´oa paisagem em que vive o povo». Muito embora aprecie a expressividade25 da linguagem de Brand˜ao, declara que «a pintura por palavras ´efatigante» . Vitorino Nem´esioconsidera Raul Brand˜ao a individualidade mais forte da literatura portuguesa da primeira metade do s´eculoXX, mau grado um estilo sem plano, um ide´ariodesfeito em nebulosas sentimentais e um instinto que deforma a realidade para trat´a-laa seu gosto. A dial´ecticainterior do bem e do mal, do anjo e do dem´onioconstituem, na opini˜aode Nem´esio, um drama ´unicona arte portuguesa de sempre, sintetizado26 lapidarmente: «Uma vida que ´esonho na lama e luz nas catacumbas» . Segundo Oscar´ Lopes, o mais vis´ıveltra¸coestrutural da Obra de Raul Bran- d˜ao´eo de uma certa deficiˆenciade estrutura ficcionista, inacabada e improvisada. Este cr´ıticoconsidera O Gebo e a Sombra a obra que atingiu o m´aximoequil´ıbrio, sendo o resto uma esp´eciede di´ario, de mem´oriasou reflex˜oesem busca de uma filosofia ou de uma cristaliza¸c˜aoliter´aria,ora l´ırica,ora dram´atica,ora narrativa imagin´aria,g´enerosque27 se interferem e at´ereciprocamente se atrofiam a cada passo . Opini˜aooposta ´esustentada por David Mour˜ao-Ferreira, que consi- dera O Gebo e a Sombra a pe¸cade teatro mais ambiciosa, mas tamb´ema menos conseguida, n˜aopor falta de qualidades dram´aticas,mas por carˆenciade quali- dade liter´aria,devido a uma fus˜aoindiscriminada de linguagens em que todas as personagens falam como o Gebo e o Gebo fala como escreve Raul Brand˜ao, ficando a obra a meio caminho da tradi¸c˜aoe da modernidade, do drama social e do drama psicol´ogico, da cria¸c˜aoplur´ıvocae do estrangulamento monologal. J´a O Rei Imagin´ario se afigura a David Mour˜ao-Ferreira como28 uma verdadeira obra-prima, compar´avelapenas a certos mon´ologosde Tcheckov . Conforme escreve V´ıtorVi¸coso, Raul Brand˜aon˜aoter´asabido superar as contradi¸c˜oesque foram inerentes a todo um grupo de intelectuais pequeno-bur- gueses imbu´ıdosdo mais profundo pessimismo, fruto da sua incompatibilidade29 ideol´ogicacom uma sociedade cujos valores dominantes lhes eram inaceit´aveis . Se, no plano social, Raul Brand˜aon˜aoter´asuperado tais contradi¸c˜oes,no plano liter´arioelas foram o material precioso com que construiu a multiplicidade do Eu, 24 25 Alvaro´ Salema, 1982, p. 118. 26 Cit. por Alvaro´ Salema, op. cit., p. 120. 27 Cit. por Ant´onioMachado Pires, op. cit., p. 19-20. 28 Oscar´ Lopes, op. cit., p. 346-347. 29 David Mour˜ao-Ferreira, 1969, p. 110. V´ıtorVi¸coso, 1978, p. 9.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

18 Teresa Martins Marques

a fant´asticavis˜aodo «magma ectopl´asmico», de uma sociedade de t´ıteres,que imp˜oea fuga para o sonho. O autor de H´umus, magma sem nome e sem contornos no que tem de destruidor das tradicionais categorias da narrativa, ´econsiderado por David Mour˜ao-Ferreira uma influˆenciadeterminante «na forma¸c˜aodaque- les que constituem a not´avelplˆeiadede narradores da gera¸c˜aode 1930: Jos´e R´egio, Rodrigues Migu´eis,Nem´esio, Tom´asde30 Figueiredo, Domingos Monteiro, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga» . Raul Brand˜aon˜aofez como Gorki uma galeria social de tipos capazes de influ´ıremno conjunto das sociedades. N˜aofez como Dostoiewski um tratado de tipos patol´ogicosde alcance universal. N˜aofez como E¸cauma galeria ma- ravilhosa, mas sem influˆencianos destinos do conjunto social. N˜aofez como Camilo o retrato de figuras passionais. N˜aofez como Dickens o cen´ariorisonho e profundo duma sociedade. N˜aofez como Balzac a hist´oriade uma ´epocade ambi¸c˜oese de transi¸c˜ao,31 onde a burguesia disputava lugar na escala social `ano- breza em decadˆencia . Tendo consciˆenciado fosso que o separava dos escritores do s´eculoXIX, Raul Brand˜aoconfessou a Augusto Casimiro: «N˜ao. N˜aosou32 um escritor. Sinto a dor humana, a amargura dos seres, vazo-as em figuras.» . Em jeito de conclus˜aopoderemos dizer que a li¸c˜aoda modernidade em Raul Brand˜aose manifesta pelo discurso on´ırico, fragment´ario, nebuloso, dominada pela perda, atrav´esdo mon´ologointerior como medita¸c˜aoe solil´oquio, pelo des- mantelamento da intriga tradicional, pela cria¸c˜aode um espa¸cosimb´olico, pela dilui¸c˜aodas personagens num magma narrativo em que o Tempo se torna o motor da ac¸c˜ao, representando o mundo na sua essencialidade e quebrando os proto- colos do g´eneroromanesco, atingindo um cl´ımaxno H´umus, como «a express˜ao mais radical e sublime33 da trag´edia´ıntimado ser humano na literatura portuguesa do s´eculoXX» .

30 31 David Mour˜ao-Ferreira, op. cit., p. 110, 122, 123. 32 Marques Gast˜ao, op. cit., p. 14. 33 Cit. por Guilherme de Castilho, op. cit., 127. Maria Jo˜aoReynaud, loc. cit., p. 14.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Bibliografia

Andrade, Jo˜aoPedro de, Vida e Obra de Raul Brand˜ao, Lisboa: Arc´adia,s/d [1963]. Brand˜ao, Raul, H´umus. Edi¸c˜aode Maria Jo˜aoReynaud, Lisboa: Rel´ogioD’Agua,´ 2015. Castilho, Guilherme de, Vida e Obra de Raul Brand˜ao, Lisboa: Livraria Bertrand, 1978. Chaves, Castelo Branco, Cr´ıticaInactual, Lisboa: Arc´adia,1981. Coelho, Jacinto do Prado, Ao Contr´ariode Pen´elope, Lisboa: Bertrand, 1976. Gast˜ao, Marques, Joana e Gabiru — Dois S´ımbolosna Obra de Raul Brand˜ao, Lisboa: Edi¸c˜aoda Imprensa Baroeth, 1942.￿ Lopes, Oscar,´ Entre Fialho e Nem´esio, 1. volume, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. Mour˜ao-Ferreira, David, «Releitura do H´umus ou um Novo Romance com Cin- quenta Anos», in T´opicosde Cr´ıtica e de Hist´oriaLiter´aria, Lisboa: Uni˜ao Gr´afica,1969. Pires, Ant´onioMachado, Raul Brand˜aoe Vitorino Nem´esio, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988. Rebelo, Lu´ıs de Sousa,￿ «James Joyce e a conquista da consciˆenciatotal», in Col´oquio/Letras n. 70, Novembro de 1982. R´egio, Jos´e,«H´umus», in Ler, Novembro de 1952. Ribeiro, Aquilino, Cam˜oes,Camilo, E¸cae Alguns Mais, Lisboa: Livraria Bertrand, 1975. Salema, Alvaro,´ Tempo de Leitura, Lisboa: Moraes, 1982. Seixo, Maria Alzira, Para Um Estudo￿ da Express˜aodo Tempo no Romance Por- tuguˆesContemporˆaneo [1966], 2. ed., Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. Vi¸coso, V´ıtor, H´umus — Raul Brand˜ao(Textos Escolhidos), Lisboa: Seara Nova, 1978.

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores

Vasco Rosa

Dedico estas palavras Aos meus amigos dos A¸cores tal como Raul Brand˜aofez com o seu livro de 1927

Por incr´ıvelque pare¸ca, As Ilhas Desconhecidas. Impress˜oese Paisagens de Raul Brand˜ao´eainda um livro desconhecido, ou um livro por conhecer. Para conhecer um livro — qualquer livro — n˜aobasta lˆe-lo;´epreciso co- nhecer ou reconhecer as condi¸c˜oesem que foi escrito, como foi editado, criticado e lido ao longo dos tempos, sabendo tudo acerca daquilo a que habitualmente chamamos a sua fortuna cr´ıtica. Da mesma maneira que um livro deixa de per- tencer exclusivamente ao seu autor quando sai da tipografia, o leitor actual dum livro publicado em 1927 deve ter em mente que esse livro percorreu gera¸c˜oesde leitores como ele, e que o seu significado, acolhimento ou alcance foi mudando ao longo das d´ecadasde acordo com o ponto de vista de cada gera¸c˜ao, dos seus interesses pr´opriose at´e— ou sobretudo — da sua capacidade de revisitar o passado e de nele encontrar valores subterrados, como achados arqueol´ogicos que brilhem inesperadamente `aluz de cada tempo presente. Autores que fo- ram quase deuses para uma determinada ´epoca(pensem em Antero de Quental), em ´epocasseguintes ca´ıram vertiginosamente sem estrondo nem escˆandalo, para muito mais tarde serem subitamente reabilitados e fascinarem gente capaz de relˆe-losde uma maneira nova, ou, bem pelo contr´ario, sem apelo nem agravo desaparecerem talvez ad æternum na obscuridade hist´orica.

i i

i i i i i i

22 Vasco Rosa

Uma obra de g´eniodo passado vive, portanto, da capacidade que tivermos — aqui e agora — de reaviv´a-lacom a nossa imagina¸c˜aoe inteligˆencia,pesando com balan¸cade ourives as suas qualidades intr´ınsecas. Isso ´eespecialmente v´alidopara a literatura de viagens. E´ um privil´egioque algu´emde fora venha perscrutar em n´osalgo que n˜aov´ıramos ainda reflectido nos espelhos `anossa disposi¸c˜ao. E quando essa d´adiva´epraticada por um escritor de tanto talento como Raul Brand˜ao, um escritor que afinal quase nunca viajou, esse privil´egio deve ser entendido como redobrado, triplicado e assim por diante. Ao contr´ariode alguns seus amigos de sempre, como Justino de Montalv˜ao, que escreveu v´arioslivros sobre It´alia,Antero de Figueiredo, que viveu alguns anos em Paris e de l´aescreveu op´usculose cr´onicas,ou Celso Herm´ınio, que viveu uma temporada no Rio de Janeiro, Raul Brand˜aosaiu apenas uma vez do pa´ıs,para um p´eriploeuropeu em 1906, durante o qual n˜aoescreveu uma ´unica cr´onicade viagem, como era grande h´abitoou tradi¸c˜aode escritores de renome fazerem naquele tempo, como t˜aobem demonstraram J´ulioDantas, ou, mais perto de n´os,Alfredo de Mesquita com os seus cl´assicos sobre a Am´erica,a Holanda e Espanha, e pouco depois o inesquec´ıvele genial Vitorino Nem´esio, com os seus volumes sobre o Brasil, os pr´opriosA¸corese outras muitas cr´onicasde viagem ainda hoje dispersas em jornais e revistas. Pouco antes da viagem para As Ilhas Desconhecidas, Raul publicou em 1923 Os Pescadores, mas este livro n˜aolhe ´esequer compar´avelenquanto processo liter´ario, na medida em que acumula e organiza apontamentos escritos espar- samente ao longo dos dois ou trˆesanos anteriores, sobre gentes e lugares que ele conhecia como ningu´em,pois eram verdadeiros epicentros da sua biografia desde sempre, e outros, mais a sul, sobre os quais nunca escrevera mas que n˜ao lhe exigiram mais do que duas ou trˆessemanas de veraneio e aten¸c˜ao. Por´em, sair da pequena aldeia minhota de Nespereira, entre Guimar˜aese Vizela, para uma campanha de trˆesmeses em ilhas no meio do oceano, contrastava em abso- luto com os trabalhos liter´ariosque ele tinha na cabe¸cae entre m˜aosnaquele per´ıodo, que foi sem d´uvidao mais f´ertil, intenso e decisivo da sua vida: todo o seu Teatro, de que destaco a pe¸caem quatro actos O Gebo e a Sombra;a revis˜aode H´umus para uma segunda edi¸c˜ao;e A Morte do Palha¸coe o Mist´erio da Arvore´ — todos eles trabalhos que, como sabem, representam ac¸c˜oesficcio- nais em espa¸cosou lugares estreitos, ex´ıguos,escuros, no p´olomais distante, afinal, da imensid˜aooceˆanicae da riqueza e novidade paisag´ıstica,luminosa e crom´aticadestas ilhas. Temos portanto, aqui, uma primeira quest˜ao: por que motivo veio Raul Bran- d˜aoaos A¸coresem Junho de 1924? E´ ao mesmo tempo f´acile dif´ıcilresponder a isso. E´ f´acilporque Os Pescadores lhe tinham conferido, aos 56 anos, e pela primeira vez, a gl´oriado sucesso editorial, e o escritor que estivera empenhado

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores 23

naquele Guia de Portugal de Raul Proen¸caque deixava as ilhas atlˆanticasuma vez mais de fora do todo p´atrio, ter´avisto a´ıa chance de um prolongamento natural, l´ogicoe l´ucidodo seu livro litorˆaneocontinental. Por outro lado, a Seara Nova, que Brand˜aoajudara a fundar trˆesanos antes, acreditava numa «regenera¸c˜aoda rep´ublica»que passasse pelo conhecimento e auto-estima do pa´ıs,e tamb´empor a´ıpodemos admitir algum impulso para a viagem aos A¸cores e `aMadeira — como mais tarde o nosso escritor haveria de tentar fazer `as col´oniasda Africa´ ocidental, que n˜aoconcretizou. Seria todavia imprudente — para n˜aodizer, imposs´ıvel— n˜aorelacionar a decis˜aobrandoniana de escrever um livro sobre os arquip´elagosportugueses do AtlˆanticoNorte com a Miss˜aodos Continentais promovida pelo Correio dos A¸cores na primavera desse mesmo ano de 1924, com a inten¸c˜aode estimular not´aveisdas letras, da pol´ıticae da finan¸caa declararem-se favor´aveisa uma certa autonomia administrativa da regi˜ao. E´ uma coincidˆenciagrande de mais para n˜aoser apontada. Raul detestava escrever cartas, o que hoje nos impede de aperceber a sua abordagem a essa campanha insular para a qual, de facto, n˜ao foi convidado, como comprovei no seu arquivo conservado na Sociedade Martins Sarmento, de Guimar˜aes,ainda que o destaque que lhe havia sido dado pelo ˆambitogeogr´afico, m´eritoliter´arioe sucesso recent´ıssimo de Os Pescadores tornasse razoavelmente expect´avelesse convite, feito ali´asa escritores como Afonso Lopes Vieira, Carlos Malheiro Dias e Antero de Figueiredo, o autor de Jornadas em Portugal, impresso pela quarta vez em 1921. Seja como for, a decis˜aode embarcar solto e a custas pr´opriasdoze dias de- pois da ilustre embaixada convidada e recebida com banquetes e bailes, tapetes de flores e fanfarras, dava-lhe a enorme vantagem duma liberdade de movimen- tos n˜ao-protocolaresque ´e,no fundo, toda a essˆenciada viagem como aventura e descoberta, e permitia-lhe apresentar-se mais tarde ao confronto directo do exame p´ublicoe cr´ıticoentre o seu livro e quaisquer outros que os demais conti- nentais viessem a escrever. Al´emda liberdade de movimentos, uma estada duas vezes mais demorada nas ilhas permitia-lhe seguramente um retrato mais com- pleto e profundo. Podemos at´eadmitir que tal confronto foi inicialmente desejado e mais tarde at´eprovocado ou reclamado por Raul Brand˜ao, depois que a sua presen¸cano arquip´elagofoi acolhida de modo hostil por promotores da Miss˜ao: Terras de Maravilha do jornalista Oldemiro C´esar, publicado em Janeiro de 1925, ´ededicado «Aos meus amigos dos A¸cores», e o nosso escritor, que n˜aopodia ignorar o «concorrente», far´aidˆenticadedicat´oriadois anos depois, convidando — do meu ponto de vista — os seus leitores a um paralelismo com essa outra representa¸c˜aodas ilhas produzida na mesma circunstˆancia. Com Os Pescadores Brand˜aopublicara pela primeira vez na influente casa A¨ıllaud& Bertrand, e isso representava uma consider´avelvantagem promocional

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

24 Vasco Rosa

e comercial. E´ de crer que o crescente sucesso livreiro desse seu livro — 15 000 exemplares em apenas trˆesanos — acabasse por influenciar favoravelmente a expectativa e a recep¸c˜aod’As Ilhas Desconhecidas. A esse prop´osito, parece-me especialmente significativo, embora n˜aotenha ainda sido sublinhado, que, antes mesmo de embarcar para os A¸cores,numa esp´eciede «reserva de patente» o escritor tenha pr´e-anunciadoo t´ıtulodo seu livro ao jornalista e cr´ıticoliter´ario C´esarde Frias, que o publicitou na sua Revista Liter´aria logo em Maio de 1924. Al´emde muito sugestivo (e de cumprir o ide´arioseareiro de reabilita¸c˜ao p´atria),esse t´ıtuloabra¸cavapor inteiro o des´ıgnioregionalista da miss˜aodos continentais, a ponto de toda a sua efic´aciaacabar por ser reconhecida por Jos´eBruno Carreiro — anos mais tarde e muito a contragosto, devo adiantar —, quando chamou «A¸cores,terres ignor´ees»a um pequeno artigo de promo¸c˜ao tur´ısticadirigido a uma revista francesa (carta a Afonso de Bragan¸ca,de 15 de Maio de 1932, in´editae no esp´oliodeste na Biblioteca Nacional). A grav´ıssima falta de arquivos hist´oricospreservados tamb´emnos impede de sustentar a hip´otese— que n˜aome parece descart´avel,bem pelo contr´ario— de a viagem de Raul Brand˜aoaos A¸corester partido duma proposta dos seus editores A¨ıllaud& Bertrand, ali´asrefor¸cadadesta feita com a associa¸c˜ao`aim- portante Livraria Francisco Alves, do Rio de Janeiro (ent˜aocapital do Brasil), entusiasmada com o inesperado talento do escritor expressionista para a litera- tura de viagens e com o sucesso de livraria d’Os Pescadores e apostada em tirar partido do mediatismo que os A¸coresviriam a ter no futuro pr´oximo, a cavalo da cobertura jornal´ısticafeita pelo Di´ariode Not´ıcias, Epoca´ e Di´ariode Lisboa, ali representado pelo seu pr´opriodirector, Joaquim Manso. Refor¸camesta ideia duma s´ubitamudan¸cade planos duas cartas do escritor ao seu grande amigo Teixeira de Pascoaes. Na primeira, datada de 27 de Novembro de 1923, d´a- -lhe conta dos trabalhos liter´ariosem m˜aos,referindo-se ao «livro que se segue aos Pescadores» como Os Oper´arios; e na segunda, de 7 de Setembro de 1924, admite: «A viagem aos A¸coresfoi esplˆendida. Deve dar um livro interessante, — quando eu o puder escrever.» E se assim foi, ou seja, se foram os editores a convencˆe-loa ir aos A¸corese escrever sobre eles, interrompendo um plano pes- soal de trabalhos em mente, ent˜aopodemos dizer que acertaram em cheio, pois ´eposs´ıvelencontrar exemplares duma «quarta edi¸c˜ao»sem data mas ainda com o tipo e a pagina¸c˜aooriginais, o que, para os meios e modos t´ecnicosda ´epoca, significa um ciclo de reimpress˜oescont´ınuas,acompanhando o ritmo de vendas em livraria. No arquivo do escritor n˜aopersistem contratos ou correspondˆencia com o editor Bertrand, pelo que ´eimposs´ıvel— por enquanto — ir mais al´em na quantifica¸c˜aode tiragens, etc. Naturalmente, a curiosidade pessoal pode tamb´ema´ıter sido determinante. V´ariostestemunhos directos e indirectos real¸camo seu interesse espec´ıficopelo

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores 25

Corvo. Desde logo, o primeiro cap´ıtulodo livro, intitulado «De Lisboa ao Corvo», n˜aodeixa quaisquer margens para d´uvidas.Ali´as,em 1909 Raul Brand˜aoescre- vera um texto sobre a ilha, mantido in´edito— e que publiquei muito recentemente no suplemento liter´ariodo A¸corianoOriental. Tentando explicar como o pˆodeter feito sem ainda l´ater ido, argumentei: «Brand˜aotinha em Lisboa rela¸c˜oespes- soais com ilh´eus,pois colaborara em 1903 num Album´ A¸coriano de homenagem ao dramaturgo e seu especial amigo D. Jo˜aoda Cˆamara, que com ele partilhou, de resto, a organiza¸c˜aoe redac¸c˜aode P´atriaPortuguesa. Livro destinado para pr´emioaos alunos distintos nas escolas de instru¸c˜aoprim´aria (1906), respon- sabilidade e proveito divididos, ali´as,com outro seu amigo, um tanto mais velho tamb´em,Maximiliano de Azevedo, um funchalense, militar e jornalista como ele, que serviu o ex´ercitonuma companhia de artilharia sediada na Horta entre 1876 e 1881, sendo aceit´avelque um ou outro, ou a esposa faialense de Maximilia- no, lhe tivessem referido a ins´olitacomunidade corvina. Ou at´emesmo Celso Herm´ınio, caricaturista disc´ıpulode Bordallo e filho dum general que comandou tropa em Ponta Delgada, onde passou a juventude este ilustrador de alguns dos primeiros escritos de Raul (em 1899 Azevedo e Herm´ıniopublicaram Hist´orias das Ilhas. Reminiscˆenciasdos A¸corese da Madeira, pela Parceria Ant´onioMa- ria Pereira). Ou a not´ıciado Corvo pode ter-lhe chegado, simplesmente, por qualquer leitura — livro, jornal, revista ou almanaque — que talvez s´oum ab- soluto acaso permitir´aidentificar.» E todo esse fasc´ıniode 1909 pode ter sido reavivado na primavera de 1924, tanto mais que um dos principais colegas de Raul Brand˜aona Seara Nova, Lu´ısda Cˆamara-Reys, estava ligado «pelo san- gue» ao arquip´elago, como atesta num pref´acioa um outro livro sobre as ilhas, Poucos Conhecem os A¸cores. . . , do capit˜aoAnt´onioCorreia (Lisboa, 1942), onde se lˆe: «Vivi, desde a infˆancia,longe dos A¸cores,mas num ambiente a¸coriano. Fui um alfacinha num viveiro de ilh´eus.Costumei-me, desde os primeiros anos, `amaneira cantante e arrastada do falar terceirense. Era a fala dos meus e dos amigos da casa.» Se certezas n˜aotemos acerca dos motivos ou contexto da viagem, d´uvidasn˜ao podemos ter que ela criou uma das amizades mais belas da literatura portuguesa. Por extraordin´ariacoincidˆencia,Vitorino Nem´esioe Raul Brand˜aoviajaram no mesmo S˜aoMiguel que zarpou de Lisboa a 8 de Junho. Segundo depoimento do ent˜aoestudante de Coimbra, foram apresentados no cais de Santos por Lu´ısda Cˆamara-Reys e debru¸cadosdo conv´esacompanharam lado a lado a manobra dos rebocadores que colocaram o paquete em rota oceˆanica.Nos seis anos que ainda viveu o escritor portuense, o especial amplexo espiritual com o jovem a¸coriano ficou registado em cartas, depoimentos, reenvios liter´ariose dedicat´orias,como a de A Casa Fechada publicada em 1937 e as tantas vezes citadas cr´onicasdo Observador nos distantes 1970. Mas Nem´esiofoi tamb´emo primeir´ıssimo leitor

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

26 Vasco Rosa

d’As Ilhas Desconhecidas, quando o livro ainda sequer estava completamente fabricado na tipografia, a partir de um ma¸coquase completo de cadernos j´aim- pressos. Foi com base nestes pap´eispor encapar que Vitorino Nem´esiopublicou, a 14 de Maio de 1927, o primeiro artigo que lhe foi dedicado. (Parece imposs´ıvel, mas este texto sa´ıdono Di´ariode Lisboa esteve eclipsado at´e2014 e ´epena que nunca tenha integrado como margin´alia,ao menos as recentes edi¸c˜oesa¸corianas d’As Ilhas Desconhecidas, de 2009 e 2015, promovidas por um nemesiano de referˆencia,Ant´onioManuel Bettencourt Machado Pires.) Tanto quanto as minhas pesquisas puderam apurar at´eao momento — e fa¸co aqui uma ressalva —, n˜aohouve na abundante e pulverizada imprensa a¸coriana da ´epocaimediata uma verdadeira cr´ıticado livro de Raul Brand˜ao. Alegando falta de espa¸co, um mˆesdepois de o ter recebido, como reconhece,oCorreio dos A¸cores de Ponta Delgada dedicou o centro da sua primeira p´aginade 12 de Junho de 1927, um domingo, `areprodu¸c˜aodas linhas lapidares sobre as Furnas, classificando o livro como «not´avelvolume» e fazendo promessa dum escrito «de mais de espa¸co»que n˜aocumpriu. Em contrapartida, a 15 de Maio, o jornal de Jos´eBruno Carreiro puxara bem a brasa `asua pr´opriasardinha, des- tacando a duas colunas Um Mˆesde Sonho. Conspecto de etnografia a¸coriana de Jos´eLeite de Vasconcelos, o livro de um dos participantes da Miss˜ao, com uma cr´ıticainesperadamente assinada — talvez um convite ou uma encomenda — pela prestigiada pedagoga, feminista e incans´avelpublicista Ana de Castro Os´orioque, indiferente ao brado que As Ilhas Desconhecidas de Raul Brand˜ao ent˜aolan¸cavamem Lisboa, a´ın˜aose lhe refere nem mais tarde o far´a.. . Em contrapartida, o Di´ariodos A¸cores, rijo entusiasta do livro a vir — em Janeiro de 1926 antecipara a publica¸c˜aodum excerto, «Quatro ilhas `avista» (em vers˜ao provis´oria,que permite datar o trabalho de escrita), a 26 de Novembro de 1925 fez longa cr´ıtica`as Mem´orias do escritor e a 14 de Maio de 1927 exibiu dois ou- tros excertos do livro, poucos dias antes de ser conhecido —, n˜aose abalan¸coua uma cr´ıticaliter´ariadigna desse nome. At´eao momento, s´on’A Uni˜ao de Angra do Hero´ısmoencontrei uma recens˜ao, da autoria de Lopes Baptista, mas seis meses depois, a 24 de Setembro: texto datado de «Sintra, 17 de Agosto». O A¸corianoOriental nada disse, e at´emesmo O Faialense. Seman´arioIndepen- dente de Francisco Silveira Garcia, que a 22 de Junho e 20 de Julho de 1924 lhe dedicara bondosas palavras de apre¸coe boas-vindas («da sua passagem calada por estes aben¸coadostorr˜oesalgo resultar´ade glorioso para ele e de consolador para todos n´os,a¸corianos: o seu livro sobre os A¸cores»),n˜aoencontrou quem nem quando coment´a-lo. As coisas s˜aoo que s˜ao, mas ´eimposs´ıvel n˜aoreconhecer da parte do seri´ıssimo bi´ografo de Antero de Quental (Subs´ıdiospara a sua Biografia, 1934), e director do jornal micaelense, Jos´eBruno Carreiro, uma boa dose de animosi-

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores 27

dade por Raul Brand˜ao, que o formalismo de um punhado de palavras de cortesia e amabilidade de protocolo n˜aoconsegue esconder. A 18 de Setembro de 1924, no termo da campanha, comentou com azedume os elogios superlativos dum re- dactor do Di´ariodos A¸cores, um rival micaelense, segundo o qual o livro que Raul Brand˜aoiria escrever em breve seria «o mais alto e mais inabal´avelpadr˜ao erguido at´ehoje em proveito das nossas ilhas». Semanas antes, a 30 de Julho, o Portugal, Madeira e A¸cores publicara — e que coincidˆenciadiab´olica! —, justamente ao lado duma fotografia de Jos´eBruno e de breves aprecia¸c˜oesdos tais mission´arios,uma not´ıcian˜aoassinada que come¸caassim: «Encontra-se nos A¸corescontemplando o mar, o c´eue os costumes mar´ıtimos,Raul Brand˜ao. N˜ao pare¸catal facto vulgar: Raul Brand˜ao´edos maiores prosadores modernos. A sua pena tem o cond˜aode ser um pincel admir´avel. A sua prosa n˜aodescreve a natureza: revive-a. Os Pescadores, sua ´ultimaprodu¸c˜ao, ´eo mar imenso, que beija as costas de Portugal, arfando constantemente. Esse livro tem dentro de si o rumor da vaga, a frescura da neblina, a cor inimit´aveldo c´eu,do mar, da luz. Todo ele s˜aochapadas de azul, manchas de verde, alvuras de espuma, n´odoasde n´evoa.»E uma d´uziade linhas vibrantes abaixo, conclui, para prov´aveldesespero de Jos´eBruno: «Que maravilha n˜aonos dar´aRaul Brand˜aoao voltar dos A¸cores, aonde foi colher, seguramente, as mais fortes emo¸c˜oesda sua vida? N˜ao´epois vulgar, nem pode passar despercebida aos a¸corianos,a vilegiatura, na sua terra natal, de um t˜aogrande portuguˆes.» Temendo, por certo, que o escritor outsider obscurecesse — injustamente na sua opini˜ao, mas ainda assim, obscurecesse — o efeito obtido pela sua escolha pessoal de convidados para elogiarem uns A¸coresa caminho da autonomia ad- ministrativa, em v´esperas das comemora¸c˜oesdo seu descobrimento, Jos´eBruno Carreiro n˜aodemorou a escrever a outro componente da miss˜aode continentais, Antero de Figueiredo, pedindo-lhe que se apressasse. A carta ´ein´edita,est´a datada de 24 de Dezembro de 1924, pertence `aBiblioteca P´ublicaMunicipal do Porto e nela se pode ler isto: «E quando nos d´aas impress˜oesda sua viagem aos A¸cores?Quanto gostaria que sa´ıssem antes do livro do Raul Brand˜ao, n˜ao pelo receio das compara¸c˜oes,mas porque tudo teriam a lucrar, no ponto de vista de interesse e livraria, em aparecer primeiro.» E declara: «A viagem do Brand˜ao foi mais uma mina para o democratismo e para o radicaleirismo ind´ıgenas,que j´aanunciam o livro “como o mais extraordin´ariomonumento”, “o mais radioso poema”, o “mais isto” e “o mais aquilo” jamais erguido em honra dos A¸cores,a cantar-lhes os aspectos e as belezas!. . . Compreende-se o jogo e a inten¸c˜ao.. . J´ao ver˜aopassado tive de dizer duas coisas, no jornal, a um redactor do ou- tro quotidiano micaleense. . . ». Figueiredo nunca escreveria o livro desejado por Carreiro, e menos ainda o faria, acredito eu, para enfrentar em benef´ıcioduma trica pol´ıticaum amigo de longa data, pois estudaram juntos num liceu do Porto

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

28 Vasco Rosa

e tinham por h´abitofrequentar-se reciprocamente em suas casas, em Espinho ou Guimar˜aes. Mas se esta carta nos ajuda a esclarecer um certo ambiente de crispa¸c˜ao — como agora se diz — que subtilmente envolveu, por ricochete, a passagem de Raul Brand˜aopelas ilhas, e desse modo tamb´empelo menos uma parte da restrita recep¸c˜aoque o seu livro aqui teve, trˆesanos depois, preferia avan¸carno tema, sugerindo-vos a leitura dos textos sobre estes assuntos que Urbano Bet- tencourt dedicou demoradamente no seu livro O Gosto das Palavras II, de 1995, e do texto «Raul Brand˜aoe as ilhas», que Pedro da Silveira (1922-2003) publicou no suplemento liter´ariod’O Com´erciodo Porto, a 23 de Junho de 1953, antes de recicl´a-locomo pref´acio`asegunda edi¸c˜aod’As Ilhas Desconhecidas, de 1978. Em cavaqueiras de biblioteca aqui em Angra, cerca de 1940, o muito jovem inte- lectual florentino ouviu do idoso publicista Gerv´asioLima (1876-1945) ter-se ele recusado a Vitorino Nem´esioapresentar-se a Raul Brand˜aoque desembarcava no P´ateoda Alfˆandegadesta cidade, porque ao contr´ariodum literato fardado `a aristocrata, como ele, e como ele supunha — e porventura exigia a — todos os outros escritores, viu no autor de H´umus algu´emque poderia ser «um emigrante que voltava da Am´ericasem vint´em». Vale a pena reler esse testemunho de Pedro da Silveira, tanto mais que ele ´ehoje dif´ıcilde encontrar. Disse ele: «Aos quinze ou dezasseis anos, j´adepois de ter calcorreado quase todo o arquip´elagodos A¸cores,j´acom o estˆomago afeito aos diab´olicossolavancos do vapor da Insulana no Canal das Flores, eu, como tantos muito mais velhos, n˜aoencontrara ainda o que havia de ´ıntimo, de nosso, na paisagem e no feitio da gente do Oeste dos A¸cores. O verde da paisagem era simplesmente verde, o c´eude chumbo n˜aome dizia nada, ou n˜ao o entendia. [. . . ] E foi Raul Brand˜ao, com As Ilhas Desconhecidas, quem me desvendou o mist´eriodisso tudo. E tamb´emdas vidas dos homens e mulheres simples do Corvo, das Flores, do Pico. Ele e os velhos marinheiros coevos da Moby Dick, os emigrantes mais ou menos falhados da Calif´ornia,do Oregon e da Nevada — deram-me as primeiras li¸c˜oesde uma realidade a¸corianaque, at´ea´ı, ningu´emmais me soubera mostrar. Primeiro que Roberto de Mesquita e Vitorino Nem´esio, Raul Brand˜aofoi o meu mestre da geografia sentimental das ilhas.» E conclui assim: «S´opor m´a-f´e,ou por cegueira se poder´amenosprezar obras como esta. Repito — As Ilhas Desconhecidas ´edos maiores livros portugueses de viagens de todos os tempos. E o maior que um estranho aos A¸coresescreveu acerca destas ilhas atlˆanticas»— opini˜aoque transpˆose manteve no verbete «A¸cores»que com a sua enorme autoridade escreveu para o Grande Dicion´ario da Literatura Portuguesa e de Teoria Liter´aria dirigido por Jo˜aoJos´eCochofel, em 1977.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores 29

No Jornal de Not´ıcias do Porto, logo a 27 de Maio de 1927, em texto de primeira p´aginan˜aoassinado, «o novo livro de Raul Brand˜ao»tinha sido saudado com um entusiasmo que nada deve a estas aprecia¸c˜oes: «O livro ´e duma composi¸c˜aosimples que, como estilo, ´edas melhores li¸c˜oesque temos recebido. Certas das suas p´aginasdescritivas s˜aomodelares. O escritor, que ´eessencialmente um dissecador de almas, ´etamb´emum colorista fulgurante. [. . . ] Os A¸coresencontraram o seu grande pintor — um riqu´ıssimo pintor, que no seu verbalismo opulento tem a melhor paleta» (it´alicomeu). E referindo-se especificamente ao «formid´avel»cap´ıtulodedicado `ailha do Corvo, prossegue: «A piedade pelos humildes, que ´eo fulcro de toda a obra de Raul Brand˜ao, transluz em cada p´aginadesse cap´ıtuloque ficar´acomo das melhores coisas da nossa l´ıngua.» Em Orense, o galego Vicente Risco (1884-1963), grande amigo￿ de Teixeira de Pascoaes, comenta As Ilhas Desconhecidas na revista N´os, n. 45, de 1927, sublinhando «a sua for¸caexpressiva verdadeiramente extraordin´aria», pois «com palavras junta os procedimentos todos da pintura: esquematiza, desenha, divide os tons, cria veladuras, ou lava e lambe, empasta e embastece as tintas como lhe conv´empara o efeito de que o leitor veja quanto ele descreve. E´ verdadeiramente digna de nota a an´aliseque faz da luz dos A¸cores,que ele decomp˜oede mil modos nos seus elementos, como faria um qu´ımico».Mais ainda: Risco aproxima — pela primeira e ´unicavez, quanto sei — o livro de viagens de Raul Brand˜aoa um outro do irlandˆesEdmund John Millington Synge, The Aran Islands, de 1907. Como sabem, Brand˜aomorreu a 5 de Dezembro de 1930. Comovido, Nem´esio escreveu sobre ele na primeira p´aginado Di´ariode Lisboa sob o t´ıtuloimpactante de «Algu´em», mas, pelo que j´avi (ou pude ver), os jornais regionais passaram ao largo do ´obitodo escritor. O Correio da Horta, fundado na v´espera do ´obitoe dirigido por Os´orioGoulart e Raposo de Oliveira, dois advogados literatos, n˜ao lhe dedica sequer uma breve. Uma vez mais, o A¸corianoOriental tamb´emlhe foi indiferente. O Di´ariodos A¸cores, atrav´esdo seu correspondente em Lisboa, fez um relato muito completo, mas s´oa 16 de Dezembro, onze dias depois, portanto. A 2 de Janeiro do ano seguinte o Di´ariodos A¸cores de S˜aoMiguel publicou um depoimento escrito em Lisboa pouco antes do Natal, curiosamente por algu´emque o vira descendo o Chiado no ´ultimodia de vida. «Compreendo agora perfeitamente — escreveu o micaelense Manuel Barbosa — que Raul Brand˜aofosse tamb´emum pintor, deixando o seu nome ligado a numerosas telas. Pois que s˜aoestas Ilhas Desconhecidas sen˜aonossa vasta galeria de quadros, reveladores de riqu´ıssima paleta em que as mais delicadas cambiantes das cores se mostram d´oceisao poder descritivo e criador do Artista? O facto concreto e a ideia de cada quadro a pouco mais se reduzem do que `ass´ınteses que apresentam: a ac¸c˜ao, como a de quase todos os seus livros, ´emorosa, indolente

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

30 Vasco Rosa

e escassa: tudo o mais ´eriqu´ıssimo colorido composto divinamente pelo sol, do mar, do c´eue da paisagem, e transmitido ao papel pela excelsa virtude deste mago da palavra.» Em 1933 Armando Cˆortes-Rodrigues dedicou `amem´oriade Brand˜aoo soneto «Sorriso de ver˜ao», inclu´ıdono seu livro Cˆanticodas Fontes, com capa desenhada por Domingos Rebelo, e previamente impresso no Correio dos A¸cores de 25 de Mar¸co— retomando um motivo das Mem´orias do escritor minhoto, o da ´arvore velha e tonta que floresce no inverno (mais tarde incluiu excertos d’As Ilhas Desconhecidas na sua Antologia Liter´ariados A¸cores publicada pela Bertrand). Mas com o passar dos anos, como tantas vezes acontece, a poeira do tempo adensou ainda mais o eclipse a que o livro haveria de ser votado. No primeiro congresso a¸corianode 1938, a escritora e jornalista Maria Lamas foi chamada `aSociedade de Geografia para falar de S˜aoMiguel, «ilha de encanto», e nas quatro densas p´aginasque publicou nas respectivas actas — ela, cujo livro As Mulheres do Meu Pa´ıs tanto deve a uma sugest˜aode Raul —, n˜aofoi capaz de referir-se-lhe, preferindo elogiar «a palavra inspirada de Guilherme de Morais», o malogrado autor de Ilhas do Infante. Manchas & Paisagens dos A¸cores, com bel´ıssima capa de Domingos Rebelo, relato p´ostumodum breve cruzeiro das ilhas na primavera de 1933, em que tamb´emesteve Manuel Carreiro, grande adepto de Raul Brand˜ao(em Janeiro de 1928 oferecera-lhe Meio-Dia. Prosas com dedicat´oria«Ao eminente Escritor Senhor Raul Brand˜ao, um dos mais cultos e brilhantes esp´ıritoscontemporˆaneos»).Como se n˜aobastasse, Morais refere-se ali´aspor v´ariasvezes ao nosso escritor, a quem chama «o pintor artista de As Ilhas Desconhecidas» (p. 95). No Corvo, fez mesmo quest˜aode passar «junto da casa onde morou o prosador. E´ uma casa muito caiada, de janelas rasgadas sobre a via, com um pequeno balc˜aoajardinado. Vislumbro ali o escritor, sentado no mainel, “alto e ru¸cocomo um choupo”, irm˜aode Dostoiewsky, com a mesma capa com que o via subir o Chiado, nos dias friorentos, contemplando o mar e as almas» (p. 105). Mas esse eclipse, casual ou intencional, perdurou, explic´avelou inexplicavel- mente. Em 1944, assinalando duas d´ecadasda miss˜aodos continentais, o livro de Oldemiro C´esarfoi publicado em edi¸c˜aoaumentada, incluindo um pref´aciode balan¸co, em que o jornalista omite uma vez mais o livro de Raul Brand˜ao, um autor por ele conhecido e estimado, ao ponto de ter colocado frase sua como ep´ıgrafe de cap´ıtulode um dos seus livros. . . A morte de Raul Brand˜ao, a emergˆenciae dom´ıniode novas correntes li- ter´ariase a n˜aoreimpress˜aodos seus livros submergiram As Ilhas Desconhe- cidas do panorama liter´ario. Lu´ısRibeiro destaca nos seus t˜aoreferenciados Subs´ıdiospara Um Ensaio sobre a A¸corianidade, de 1936, que o escritor «soube ver» os A¸cores,cuja «luz difusa, coada pelas nuvens, tanto impressionou [. . . ] a

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores 31

sua extraordin´ariasensibilidade de artista» — e Jo˜aoAfonso, em coment´ario`a edi¸c˜aode 1964 desse op´usculo, considera que as «descri¸c˜oesliter´ariasplenas de observa¸c˜ao— as de Raul Brand˜ao, sobretudo — [. . . ] se poderia ir buscar nova explica¸c˜aopara a complei¸c˜aops´ıquicado a¸coriano». Em O Lavrador de Ilhas, I: Literatura A¸corianahoje (1981), J. H. Santos Barros reproduz artigo de Novembro de 1979 onde se lˆe:«quando entre n´osesteve, [Raul Brand˜ao]teve a humildade suficiente para querer conhecer-nos sem ser do alto de c´atedras. E conheceu-nos. E falou de n´os,como poucos de n´ostemos sabido falar de n´os pr´oprios», ousando por isso classific´a-lode «escritor a¸coriano». Vinte e seis anos depois da primeira edi¸c˜ao, o referido artigo de Pedro da Silveira num prestigiado suplemento liter´ario, em Junho de 1953, n˜aofoi sufi- ciente para motivar um editor — nacional ou regional — a reparar no livro, pese embora a ˆenfasecolocada nas suas qualidades: «N˜aohesito em classificar As Ilhas Desconhecidas como dos maiores livros de literatura de viagens de todos os tempos da Literatura Portuguesa. [. . . ] Ao p´edisto, tudo o mais que estranhos escreveram acerca dos A¸cores´em´usicadesafinada. As belas p´aginas de Chateaubriand sobre a Graciosa, o livro dos sagac´ıssimos Joseph e Henry Bullar, o do americano Webbster, os escritos de Alberto de M´onaco, de Knud Andersen e de tantos outros podem considerar-se quase nada ao p´ede As Ilhas Desconhecidas». Mas tamb´ema n´ıvel regional avisos deste tipo n˜aosurtiram efeito. Em conferˆenciaproferida no Liceu Nacional de Ponta Delgada a 11 de Maio de 1967 (assinalando com ligeiro atraso o centen´ariodo nascimento do nosso escritor), Manuel Carreiro exclamou: «Qual o prosador portuguˆes,ao n´ıvelcimeiro deste, que se dispˆosa visitar, por sua pr´opriainiciativa, o nosso arquip´elago, a percorrer estas ilhas e a escrever sobre elas um livro de t˜aogrande projec¸c˜aoliter´aria?! | Bastaria esta particular circunstˆanciapara redobrarmos a nossa admira¸c˜aoe o nosso reconhecimento perante a figura inconfund´ıveldo famoso homem de letras, que ao nosso arquip´elagoconsagrou uma das suas principais obras, de que, inexplicavelmente, h´as´ouma primeira edi¸c˜ao, h´amuito esgotada. | Parece-me que um dos modos mais significativos de cultuarmos a mem´oriade Raul Brand˜ao neste ano centen´arioseria a vulgariza¸c˜aoda sua obra, a pre¸cosacess´ıveis,e entre os livros a reeditar deveria ser dada primazia `as Ilhas Desconhecidas» (it´alicosmeus). Seria ainda preciso esperar longo tempo para que o livro ressurgisse, pri- meiro por Perspectivas & Realidades, e depois por Comunica¸c˜ao, Frenesi, Solmar e Quetzal, respectivamente em 1978, 1988, 2008 e 2012. A entrada da obra de Raul Brand˜aoem dom´ıniop´ublico(1980) facilitava a iniciativa de quaisquer edi- tores que quisessem public´a-lo, em obras completas que tardavam. A primeira foi uma editora formada ap´osNovembro de 1975 por Jo˜aoSoares, ent˜aoum

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

32 Vasco Rosa

jovem de 26 anos (1949-), e por Victor Cunha Rego, jornalista de gabarito que em 1961-64 havia sido editor no seu ex´ıliobrasileiro. Ao contr´ariode outros projectos editoriais de obra completa, que subestimam o livro a¸corianode Raul Brand˜ao, a P&R lan¸cou-odepois das mem´oriasdo escritor, dando-lhe uma prio- ridade e uma importˆanciaque at´ea´ıningu´emlhe tinha dado. A promo¸c˜aoda leitura numa rede p´ublicade bibliotecas que dava os primeiros passos estava a ser levada a cabo por um instituto do livro dirigido pelo escritor e tamb´em outrora editor Ant´onioAl¸cadaBaptista, que decidiu reparar o esquecimento do livro de 1927 atribuindo t˜aoelevado patroc´ınio`aedi¸c˜aoda P&R, que centenas de exemplares foram oferecidos a bibliotecas e escolas, e os que foram para as livrarias tiveram pre¸coreduzido por deferˆenciado editor — mais ainda, foi feita uma edi¸c˜aoespecial, ilustrada por um jovem artista que viajara pelos A¸cores,um austr´ıacofilho de diplomatas de nome Dante Vicente. Veio depois a edi¸c˜aoda editora Comunica¸c˜ao, com o pref´aciode Ant´onioMa- nuel Machado Pires, replicado ipsis verbis nas recentes reimpress˜oesregionais, mais de duas d´ecadasdepois. Curioso ´enotar que o t˜aosagaz editor Figueiredo de Magalh˜aeschamou ao coment´arioprefacial de Os Pescadores o escritor Jos´e Cardoso Pires, mas deixou a um acad´emicoa avalia¸c˜aode As Ilhas Desconhe- cidas. Pessoalmente, acredito que Jos´eMartins Garcia, ou Carlos Wallenstein — actor, tamb´empoeta e romancista, cuja simpatia por Brand˜aolevou a querer represent´a-loem finais de curso —, estariam bem posicionados para reler o livro de 1927 num instigante exerc´ıciode confronto liter´ariogeracional idˆenticoao acima referido. Muitas raz˜oes,hoje dif´ıceisde estabelecer, ou f´aceisde cal- cular quando rela¸c˜oespessoais fixam ou entorcem e fragilizam meios culturais confinados, podem ter feito que assim n˜aotivesse acontecido. Seja como for, e porquanto a recep¸c˜aocr´ıtica do livro precisa ainda de ser profundamente inquirida, «Dos apontamentos de Raul Brand˜ao`afic¸c˜aode Nem´esio», inclu´ıdono volume Exerc´ıcioda Cr´ıtica (1995) de Martins Garcia, parece-me ser o tipo cl´assico de margin´alia— como tamb´ems˜aoexemplos: «Raul Brand˜aoe As Ilhas Desconhecidas. Duas cartas de Noriega Varela a Jo˜aoVerde, e os cadernos de notas da viagem pelos A¸cores», de Pedro da Sil- veira (nesta mesma Atlˆantida, em 1986); e «Estrangeiro e amigo: Raul Brand˜ao nas Ilhas Desconhecidas» de Gustavo Rubim — (Lusofilias, Universidade de Aveiro, 2008) — que conviria reunir numa pr´oximaedi¸c˜aodo livro, cujas marcas na comunidade insular tamb´emest˜aopor estabelecer. Mas o facto de o maestro Francisco Lacerda ter sido um dos primeiros a carregar o f´eretrodo escritor, e que entre ele e Domingos Rebelo muito de comum possa ser sugerido, a partir de documentos prevalecentes e de obras pict´oricas,garante-nos vivamente que, ao assinalarem-se 90 anos do livro, este possa come¸cara ser menos desconhecido. . .

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Raul Brand˜aoe os A¸cores 33

Este escrito ´eum primeiro relato da pesquisa hom´onimaem curso, com o pa- troc´ınioda Direc¸c˜aoRegional da Cultura dos A¸cores,em parceria com a editora Companhia das Ilhas, de Lajes do Pico. Foi apresentado no Instituto A¸coriano de Cultura, a 8 de Setembro de 2017.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

Aos ombros da «vis˜aod’artista»

1 Annabela Rita

«Se vi mais longe foi por estar de p´esobre ombros de Gigantes», disse Newton em carta de 5/Fev./1676 a Robert Hooke, evocando a famosa met´afo- ra atribu´ıdapor John de Salisbury a Bernard de Chartres no seu Metalogicon (1159), met´afora que Richard William Southern (s´ec. XII) considerou de com- para¸c˜aoentre os acad´emicosseus2 contemporˆaneosaos da Antiguidade Cl´assica. Antigos e Modernos . Como lembrou Carlos Fiolhais no seu pref´acio`aobra Aos Ombros de Gigantes (2010), de Stephen Hawking, Newton referia-se a Ga- lileu Galilei e a Johannes Kepler, da gera¸c˜aoque o precedeu, os quais, por sua vez, foram precedidos por Nicolau Cop´ernico, que desafiou a longa tradi¸c˜ao geocˆentricaao afirmar que a Terra se movia em torno do Sol. Eo´ confronto em que a inova¸c˜aose gera. Seja qual for a ´areadisciplinar. E´ a mudan¸caque a Biologia evidencia, configurando com o seu modelo o conhecimento oitocentista: a vida feita por sucess˜aogeracional e por adapta¸c˜aoe morte. . . vida e morte do corpo e da imagem, ciclo, transforma¸c˜ao. No caso da Literatura Portuguesa na viragem do s´ec. XIX para o XX, ei- -la protagonizada por 3 grandes autores que nasceram h´a150 anos e que aqui celebramos: Raul Brand˜ao(1867-1930),3 Ant´onioNobre (1867-1900) e Camilo Pessanha (1867-1926) . 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase2 Europeias (CLEPUL). Richard William Southern, The Making of the Middle Ages, Yale, Yale University Press,3 1952, p. 203. Assinale-se, a prop´osito, que, dos 3, apenas a Camilo Pessanha [http://purl.pt/1436

i i

i i i i i i

36 Annabela Rita

H´a140 anos, uma d´ecadadepois do nascimento dos nossos 3 Gigantes, quando nasciam como leitores, eis que se imp˜oeum texto de Ces´arioVerde (1855- -86): «Num Bairro Moderno» (1877). Nele se consagra a «vis˜aode artista», da Arte, e a Poesia, a da Modernidade est´eticadominada pela dimens˜aotransfi- guradora (n˜aoexpressiva, nem representativa, nem mim´eticade modelos). Vis˜ao que nos surpreende sob a luz brilhante da manh˜a,oferecendo-se `aexplora¸c˜ao e reconfigura¸c˜aopelos diferentes e sucessivos programas est´eticos,sombreada e indecidida por tantos. Convoquemos a passagem.

Dez horas da manh˜a;os transparentes matizam uma casa apala¸cada; Pelos jardins estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada. [. . . ] [. . . ] Eu descia, Sem muita pressa, para o meu emprego, [. . . ].

Na imagina¸c˜aodo leitor actual que eu sou, esta imagem ces´aricaforma um d´ıpticocontrastivo￿ com o nocturno e posterior «O Sentimento dum Ocidental» (1880, 3. centen´ariode Cam˜oes),pois ilumina e consagra uma Lisboa em pro- gressiva expans˜ao, evocando, assim, as s´eriesimpressionistas a diferentes alturas do dia, com as paisagens transformadas pela intensidade e varia¸c˜aoda luz. E a «vis˜aode artista» surpreendente ocorre sob o Sol mais brilhante e num cen´arioque lhe serve de moldura e lhe duplica a novidade: o da transfigura¸c˜ao urban´ısticade Lisboa pela Avenida da Liberdade, que inicia «o velho sonho de um boulevard moderno4 que devorasse e desse novo sentido ao Passeio P´ublicoda cidade romˆantica» , metamorfose acompanhada pela euforia de projectos conce- bidos e multiplicados com a imagina¸c˜ao`asolta. A civiliza¸c˜aorasgando o espa¸co e transformando-o. Duplo prod´ıgiode idˆenticosentido, pois, de rec´ıprocainten- sifica¸c˜ao. 9/1/, http://purl.pt/14369/1/cronologia1867.html] e a Raul Brand˜ao[http://www.raulbran dao.pt/pt/autor/] foram dedicadas cuidadas cronologias. Quanto a edi¸c˜oescr´ıticas:o H´u- mus de Raul Brand˜aotem uma de 2012 [https://sigarra.up. pt/reitoria/pt/pub_geral.pub_vi ew?pi_pub_base_id=10715], de Maria Jo˜aoReynaud, e Clepsidra tem a de 1997, de Bar- bara Spaggiari, e de 1996, de Paulo Franchetti, divergentes [Cf. http://paulofranchetti.bl ogspot.pt/2012/05/editarcamilo-pessanha-metodo-e-de.html]. Ant´onioNobre ´eo menos cuidado.4 . . Jos´e-AugustoFran¸ca, Hist´oriada Arte em Portugal. O Pombalismo e o Romantismo, Lisboa: Editorial Presen¸ca,2004, p. 162.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros da «vis˜aod’artista» 37

Em contraponto, fica, pois, para n´os,leitores dos s´eculosseguintes, um velho Portugal de uma Lusitˆaniaimagin´aria,evocada, p. ex., pelo sujeito nobreano deslocando-se nesse Quartier Latin da bo´emiaart´ıstica(«Lusitˆaniano Bairro Latino», 1891-92). Contraluz compositivo formando um imagin´ariopol´ıpticooi- tocentista entre passado e presente, sombra e luz, mem´oriae observa¸c˜ao. O novo gerando-se na sua anterioridade. . . Eis-nos, pois, num admir´avelmundo novo onde a inova¸c˜aonos atinge, s´ubita, singular, prodigiosa e sob luz que «fere». Ferido pelas «brancuras quentes», o olhar do poeta desliza pelo real en- volvente, oferecendo-nos imagens em sucess˜ao, oscilando entre o conjunto e o pormenor, o im´ovele o seu contr´ario, a paisagem e as figuras. Na primeira estrofe, a descri¸c˜aoda banalidade quotidiana adquire apresen- tacionalidade: «Pelos jardins estancam-se as nascentes» assinala uma progres- siva suspens˜aodo movimento e do som correspondente que parece anunciar um acontecimento. Suspense. Estrofe, pois, institu´ıda pedestal de obra art´ıstica: o poema, a vis˜aode artista, o processo imaginativo. De repente, perante a giga «como um retalho de horta aglomerada». . .

Subitamente, — que vis˜aode artista! — Se eu transformasse os simples vegetais, A` luz do sol, o intenso colorista, Num ser humano que se mova e exista Cheio de belas propor¸c˜oescarnais?!

A pergunta ret´orica,acentuando o registo convivial do poema, evoca famo- sos di´alogosentre artistas, g´enesede muitas obras. Frankenstein (1817) ´eo exemplo mais imediato, mas Ces´arioarrasta a experiˆenciada cria¸c˜aoda vida das sombras do laborat´oriopara a luz do Sol, libertando-a do estigma da negativi- dade nocturna e solit´aria,secretista, e legitimando-a na partilha diurna e social, est´etica. Afinal, o s´ec. XIX ´eo de Darwin e d’A Origem das Esp´ecies5 (1859). E combina-a com a c´elebree anterior Lei de Lavoisier (s´ecXVII) , fundador da Qu´ımicamoderna e autor de uma das primeiras gram´aticasrussas. Respostas modernas `aobsidiante interroga¸c˜aoda vida e das suas origens. . . Nessa imagem do «bairro moderno» dinamizada pela desloca¸c˜aodo sujeito, gera-se, «subitamente», uma fractura por onde o olhar perscruta a «vis˜aode artista», a Arte, enfim, na sua emergˆencia.Otravelling d´alugar ao zoom em direc¸c˜aoao pormenor e este, em close up, a um salto no imagin´ario:o movimento cede `aimagem, esp´eciede portal para outra dimens˜ao, a est´etica. 5 Na verdade, anterior, Lei da Conserva¸c˜aodas Massas, de Mikhail Lomonosov publi- cada pela primeira vez em 1760, mas sem divulga¸c˜aona Europa.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

38 Annabela Rita

Neste novo universo, s˜ao-nosoferecidos os instrumentos/crit´eriospara nossa orienta¸c˜ao, gps do pensamento inovador. E, como nos velhos planisf´erios,tamb´emas referˆenciasse assinalam. N˜ao resisto a evocar o exemplo do planisf´eriode Martin Waldseem¨uller, Universalis Cosmographia Secundum Ptholomaei Traditionem et Americi Vespucii Aliorum- que Lustrationes (1507), que apresenta pela primeira vez o mundo dividido em dois hemisf´erios,oriental e ocidental, separadamente, com Ptolomeu `aesquerda e Am´ericoVesp´ucio`adireita, cada um deles com os seus instrumentos cartogr´aficos e acompanhado pelos ventos antropomorfizados e nomeados, sinalizando o ciclo da cartografia desde a Antiguidade Cl´assica `asviagens de explora¸c˜aodo seu tempo. Vejamos os factores de orienta¸c˜aoque constituem os operadores da «vis˜aode artista» ces´arica.E observemo-lo a folhear a Hist´oriada Arte, mas numa pers- pectiva de bastidores, da alquimia do verbo caldeado nos diferentes e sucessivos programas est´eticos. Regressemos ao poema:

E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgˆanico, aos bocados. Achava os tons e as formas. Descobria Uma cabe¸canuma melancia, E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos d˜aoo azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos, S˜aotran¸casdum cabelo que se ajeite; E os nabos — ossos nus, da cor do leite, E os cachos de uvas — os ros´ariosde olhos.

H´acolos, ombros, bocas, um semblante Nas posi¸c˜oesde certos frutos. E entre As hortali¸cas,t´umido, fragrante, Como dalgu´emque tudo aquilo jante, Surge um mel˜ao, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate, Vi nos legumes carnes tentadoras, Sangue na ginja v´ıvida,escarlate, Bons cora¸c˜oespulsando no tomate E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros da «vis˜aod’artista» 39

Em primeiro lugar, define a «vis˜aode artista» como uma percep¸c˜ao trans- figuradora do real, capaz de lhe conferir uma dimens˜aom´agica,revelando nele outras realidades, qualitativamente diferentes, imagin´arias,surpreendentes. Em segundo lugar, denuncia uma tendˆenciaantropocˆentrica do imagin´ario que o conduz irresistivelmente dos «vegetais» ao «ser humano», lembrando-nos, quer a tradi¸c˜aoocidental erudita, quer a nacional popular, relacionando-as de modo ´ıntimoe vinculando-se a elas: por um lado, no Renascimento onde a An- tiguidade se renova, encontro autores seiscentistas como Giuseppe Arcimboldo, cujas composi¸c˜oescom vegetais, frutos e flores configuravam perfis, rostos huma- nos, constituindo naturezas-mortas antropom´orficas. Em terceiro lugar, reconhece que essa transfigura¸c˜ao (e este termo ser´a tamb´emestrat´egicopara a minha reflex˜aomais adiante) ´e transcendente, por conduzir do «simples» (vegetal im´ovel) ao complexo («ser humano que se mova e exista»), reactivando em n´osa mem´oriada Alquimia e das esot´ericastenta- tivas e mitos da cria¸c˜aodo homem, do hom´unculo, reivindicada por Paracelso e vividamente representada no Fausto de Goethe. . . O poeta ces´aricoparece lembrar-nos, assim, uma longa e antiga galeria m´ıticade seres que desafiaram as for¸casdivinas ensaiando a cria¸c˜aoda vida, estimulando em n´osa imagina¸c˜ao, a fantasia e a sensibilidade a elas, efeito idˆentico, ao da conversa entre Lord Byron e Percy Shelley sobre a natureza da origem da vida e de que forma coi- sas inanimadas poderiam voltar a mexer-se, que provocou em Mary Shelley, com consequˆenciastamb´emcriativas. Em quarto lugar, dizendo que «recompunha, por anatomia, / Um novo corpo orgˆanico, aos bocados», o poeta imp˜oej´ainevitavelmente o fant´asticopressentido nesse ser estranho e heterog´eneo, agigantado pela evoca¸c˜aopantagru´elica(e, atrav´esdela, tamb´emdos gigantes da mitologia cl´assica, da literatura de viagens e do maravilhoso conto´ariopopular e infantil): o monstro de Frankenstein eleva- -se diante de n´osdesde o in´ıciode oitocentos, dominando a cena, assombrando-a de incr´ıvel,deformando o racional tra¸cogeom´etrico(«a compasso e esquadro») em emocional curva g´otica,mas consubstanciando, igualmente, a actualiza¸c˜aodos velhos mitos na revolu¸c˜aocient´ıficae tecnol´ogicado s´ec.XIX, pela cedˆenciadas pr´aticascombinat´oriase experimentais alqu´ımicase cabal´ısticas`aelectricidade. O monstro ´eo que se agiganta pela singularidade potenciada pelo efeito de estranheza em quem o vˆe. Se nos lembrarmos que a segunda parte do t´ıtuloda obra ´e Frankenstein ou o Moderno Prometeu (1818), suspeitamos na alus˜aoa evoca¸c˜aoda Arte como fogo prometeico e do Autor como esse velho mito do conhecimento ocidental, com uma grandeza que n˜aoreconhecemos aos que lhe sucedem na busca do conhecimento. . . O exotismo verte-se em estranheza, e esta, em assombro.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

40 Annabela Rita

Atrav´esdas figuras comp´ositasde Arcimboldo e dos conceitos do belo e da proporcionalidade, faz-nos recuar at´eao Renascimento, ´epocado artista-cientis- ta que combina a investiga¸c˜aogeom´etrica,anat´omicae matem´atica,em especial, com a arte. Passeemo-nos por este universo imagin´arioem que entramos atrav´esdo ofe- recido portal da «vis˜aode artista». Encenemos uma nova perspectiva artificialis, de vertiginosa acronia. Na obra de Arcimboldo, onde o surrealismo se anuncia, a mem´orialeva-me ao encontro de duas obras fundamentais: Ver˜ao (1573) e Vertumnus (c. 1590). A primeira, quadro da s´erie Quatro Esta¸c˜oes, organizada por simetria e assimetria, apresenta um busto masculino de perfil composto por legumes e frutos da ´epoca em cuja gola o pintor inscreveu «GIUSEPPE ARCIMBOLDO F.» («G. A. fez isto») e «1557», autenticando-o e datando-o. O segundo, quadro de homenagem ao imperador austr´ıacoRudolfo II, representa o antigo deus romano da vegeta¸c˜ao e da transforma¸c˜ao, sendo esta ´ultima,vinculada `apr´opriaexistˆencia,exacta- mente a problem´aticaaqui em causa. Fazendo-me evoc´a-las,o discurso ces´arico parece desejar que conjugue ambas as imagens num mesmo ´ıconeemblem´aticoe simb´olicoda transforma¸c˜ao, representado de perfil e de frente, garantindo, assim, uma identidade. Considerado por alguns um dos precursores da arte moderna, Arcimboldo est´a tamb´emfortemente enraizado na cultura cl´assica e humanista: as suas figuras encenam o velho sistema de correspondˆenciasque se repercutir´ano Simbolismo, defende a harmonia formal e tonal, os seus desenhos grotescos inspiram-se di- rectamente nas ´aguas-fortes alem˜ase nas caricaturas de Leonardo da Vinci, a reflex˜aorelaciona-o com a tradi¸c˜aoalquimista e m´agicat˜aoforte na corte im- perial letrada, etc. Interessantes s˜ao, ainda, as experiˆenciasde dupla leitura por invers˜ao(O Cozinheiro, c. 1557, O Horticultor, c. 1590). Respons´avelpelas Cˆamaras de Arte e Prod´ıgiosda corte imperial e seu excelente colaborador, a sua produ¸c˜aocomo que desenvolve uma museologia semelhante. Em suma, Arcimboldo sinaliza aspectos importantes da composi¸c˜ao, em ge- ral, e da que se gera na descontinuidade do texto ces´arico, em particular: as correspondˆencias,as (as)simetrias, a ambiguidade potenciadora de dupla leitura, o prod´ıgio. Prod´ıgio que, nas suas vers˜oesde maravilha ou de monstro, foi o grande protagonista da longa tradi¸c˜aoda literatura de viagens, suspendendo a continuidade ao olhar fascinado do viajante e invadindo-o de expectˆancia, essa que tamb´emnos invade sob o impacto da escrita ces´arica.Escrita onde a deambula¸c˜aotamb´emevoca o digressivo Viagens na Minha Terra, em cujo limiar Garrett prop˜oee legitima a transforma¸c˜aodesse modelo preferindo-lhe a visita reflexiva do territ´orionacional.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros da «vis˜aod’artista» 41

Renascimento, barroco, exotismo e literatura de viagens sucedem-se, pois, na minha mem´oria,diluindo-se mutuamente as fronteiras, interpenetrando-se, confundindo-se. . . Na fractura da imagem do bairro moderno, o prod´ıgio de uma natureza- -morta antropom´orficairrompe «subitamente» com toda a pan´opliade carac- ter´ısticasenunciadas («como um feto, enfim, que se dilate», supremo prod´ıgioda existˆencia),numa hipotipose que me absorve a aten¸c˜aopara de novo a surpreen- der pelo modo como se historicizar´a, quer atrav´esde um percurso na Hist´oriada Arte, quer acenando com a hip´otesede se tornar uma narrativa. Depois, e contrastando a Renascen¸cacom a realidade descrita no presente, descreve no imperfeito essa transfigura¸c˜ao do real, concebida e inscrita na ima- gem original, prod´ıgio a investigar e a mostrar em forma¸c˜ao. Revelando os crit´eriosdessa transforma¸c˜ao(a antropomorfiza¸c˜aoe a semelhan¸ca), os seus elementos (os tons, as formas, as posi¸c˜oesrelativas), as suas referˆencias(na Est´etica,na Hist´oriada Arte), as suas etapas, etc. Ao longo dessa descri¸c˜ao, evoca e pondera com rigor modelos est´eticos sub- tilmente sinalizados por certos pormenores, percorrendo, afinal, um itiner´arioda Hist´oriada Arte e revelando-o inscrito na imagem comp´ositado primeiro mo- mento, cujos elementos, aparentemente contemporˆaneos,se demonstram como sucessivos (o espa¸co descompacta-se ou verte-se em tempo), historicizando a composi¸c˜ao: o classicismo apol´ıneo das «belas propor¸c˜oescarnais» (aqui, o g´eneroainda ´eneutro), o romantismo das «tran¸cas»negras (o feminino come¸caa impor-se), o naturalismo dos «seios injectados» (e, em etapa posterior, o realismo das «carnes tentadoras»), o decadentismo-simbolismo dos «ros´ariosde olhos», o expressionismo dos «ossos nus», o cubismo da combinat´oriados recortados «colos, ombros, bocas, um semblante» (abandonando o paradigma da arte como representa¸c˜ao)e o surrealismo de «um ventre» pantagru´elico«d’algu´emque tudo aquilo jante», insinuando, por fim, a possibilidade do narrativo na descri¸c˜aoat´e a´ıdominante, mas tamb´emsublinhando o del´ırioimaginativo. Finalmente, demonstra o modo e as etapas do processo transfigurador na sua percep¸c˜ao. Por um lado, evidencia a crescente redu¸c˜aodo campo de vis˜ao desde a rua ao grande plano do cabaz de vegetais e, neste, aos elementos que toma caso a caso, metamorfoseando-os em signos-sinais de diferentes est´eticas, assim evocadas, ponderadas e ultrapassadas. Por outro lado, faz-me acompanhar a progressiva perda da consciˆenciaproprioceptiva ao ser absorvido pelo imagi- nado e imagin´ario:primeiro, a consciˆenciada subjectividade de «[eu] achava» ou «[eu] descobria» cede `aaparente objectividade de «h´a»e «surge», fase em que os objectos se lhe imp˜oempela pr´opriadinˆamicado processo, depois, esta etapa ´e,por sua vez, encerrada na recupera¸c˜aoda lucidez implicada no procedimento comparativo em «como», «me lembrou», etc., lucidez que parece conduzir-nos a

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

42 Annabela Rita

uma mesa de anatomia ou de talho (lugares que a imagina¸c˜aopopular tanto compara) cumulada de «carnes», «sangue», «cora¸c˜oes»e «dedos». Se os mes- tres da Renascen¸cafaziam anatomia para verter em arte esse conhecimento do corpo humano, Ces´arioobserva anatomicamente a hist´oriada arte para construir este ser estranho que aqui nos oferece, «corpo orgˆanicoaos peda¸cos»ou «ser humano», que, afinal, parece outra coisa ainda. . . A carnavaliza¸c˜aoda Arte pela Arte ´edenunciada pelo «ventre» pantagru´elico que, a certa altura, parece «tudo aquilo [ir] jant[ar]», engolir, fazer desaparecer, qual monstruoso Cronos que, incrivelmente, comesse o «feto» que lhe tivesse estado na origem. Rabelais imp˜oe-se-noscom outro prod´ıgio: Pantagruel, o gigante. Avan¸candoem direc¸c˜aoao ponto de fuga renascentista (ou aproximando-se ele de n´os),a imagem transforma-se e define-se, integral: «um ser humano». Depois, afastando-me dele (ou vice-versa), vejo-a fragmentar-se em detalhes sucessivos (cabe¸ca,seios, cabelos, olhos, colos, bocas, etc.), cada um deles, por sua vez, referido de modo que releva de uma sensibilidade, de um cˆanone,de uma est´etica. Por fim, esses fragmentos recombinam-se e constituem-se em nova compo- si¸c˜ao, diferente da anunciada, logrando as expectativas criadas. Em suma, manipulando o detalhe, o poeta folheia uma Hist´oriada Arte, coloca-a em perspectiva, perspectiva vertiginosa, numa esp´eciede raps´odia,num midlin que nos conduz da figura¸c˜ao`aabstrac¸c˜aoe dos mitos da cria¸c˜ao(do poeta inspirado e habitado de transcendˆencia)aos da representa¸c˜ao(do poeta que cria a partir de alguma coisa, em geral percepcionada) e aos da composi¸c˜ao(do poeta que secciona metodicamente outras composi¸c˜oes,muitas delas, alheias, recom- binando esses fragmentos citacionais em nova composi¸c˜ao).Estas ´ultimasduas hip´oteses,a da representa¸c˜aoe a da composi¸c˜ao, concretizam-se e relacionam- -se no texto: a imagem do espa¸copercorrido e a que nela se esbo¸ca,cindindo-a, interrompendo-a, introduzindo-lhe a descontinuidade. Nesse encontro com o Renascimento que Arcimboldo me proporciona, per- cebo a busca do tempo do nascimento da Arte e do Artista, das origens. Ea´ altura em que a consciˆenciado olhar como fundamento do saber e da cria¸c˜ao se cristaliza na perspectiva artificialis, essa mesma que confere protagonismo ao Artista, conhecedor das leis do espa¸coe organizador da composi¸c˜aoem fun¸c˜aodo seu lugar, seleccionando tamb´emo seu destinat´ario, dirigindo-se a um entendido na mat´eria.A perspectiva organiza e planifica, a proporcionalidade dimensiona e confronta, ambas existindo em fun¸c˜aodessa humanidade centralizada e exposta de modo emblem´aticono desenho de Leonardo da Vinci, como que a libertar-se das constri¸c˜oesdo cosmos medieval estratificado para se impor no centro do uni- verso pelos seus poderes criadores, iniciando uma hist´oriaprofana e nobilitada,

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros da «vis˜aod’artista» 43

com os seus Artistas (v. o «divino Miguel Angelo»,ˆ o enobrecido Ticiano, etc.) e estilos. Naquela altura, a ‘laiciza¸c˜ao’do olhar, reduzindo o real ao percepcionado, perseguiu a objectividade atrav´esda geometria, da matem´aticae da anatomia, mas tamb´emteve de reconhecer a centralidade frontal da subjectividade equ´ıvoca protagonizada pelo observador. Da´ıa ambiguidade nunca totalmente erradicada, origem ret´oricada imagem. Da´ı a quase contemporaneidade da emergˆencia da paisagem, do retrato e, at´e,do auto-retrato: Jan van Eyck (c. 1390-1441) oferece-nos uma vista de Li`egeao fundo de A Virgem do Chanceler Rolin (1434- -36), na mesma altura em que nos faz ver Os Esponsais dos Arnolfini (1434) no interior dom´estico, reflectindo-os por tr´asno espelho convexo (mise en abyme), representando-se em miniatura como pintor e assinando em latim como testemu- nha («Jan van Eyck esteve presente»). No texto ces´arico, a composi¸c˜aon˜aoinscreve nem fixa em janela e em espe- lho outra, respectivamente interior e exterior, como nos referidos quadros de Van Eyck: o ‘artista’ inscreve-se como observador em movimento na paisagem que instabiliza, inscrevendo nela ou, em rigor, num pormenor da cena da vendedeira, ela mesma suscept´ıvelde evocar toda uma linhagem pict´orica,tamb´emimagi- nariamente, o fantasma de um retrato que acaba por n˜aoo ser, revelando-se, afinal, itiner´arioest´etico ou composi¸c˜aofragmentada capaz de, por sua vez, se dinamizar em narrativa. A cl´assica perspectiva fixa, central e frontal de outrora cede `aperspectiva em movimento, em sucess˜aoe clivada pelo imagin´ariode Ces´ario:entre ambas, h´auma Hist´oriada Arte que vai da representa¸c˜ao`acrise da representa¸c˜ao, hist´oriacujos ind´ıcioso poeta manipula na sua experiˆencia matinal. . . E, se, no ch˜ao, «um cobre ign´obil,oxidado» (IV, 4), ao bater nos alperces, provocara a fractura na imagem do real, do Bairro Moderno, o Sol, com a lu- minosidade e o calor precedentes, reinstaura a realidade, dando continuidade `a cena da venda interrompida. Metal insinuando a obra alqu´ımicaque a arte pode ser. E, nessa fractura, implica-se outra: a da leitura, que subverte a linearidade com a evoca¸c˜ao, a associa¸c˜aoe. . . como me vai acontecendo aqui. A emergˆenciada Arte recua ent˜ao, remetida para esse ponto de fuga as- sim desaparecido, obliterado pelo banal quotidiano citadino. Fugaz e carnava- lesca, a imagem desaparecida deixa-nos suspensos entre percep¸c˜ao, miragem, imagina¸c˜aoe alucina¸c˜ao, mas tamb´ementre retrospectividade e prospectividade reflexivas. Dominados pela suspeita face `a indecidibilidade da imagem vislum- brada na fenda de outra. . . Na rua, o poeta faz suceder a essa imagem da sua poi´eticaa de uma outra que a antecede:

Um pequerrucho rega a trepadeira

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

44 Annabela Rita

Duma janela azul; e com o ralo Do regador, parece que joeira Ou que borrifa de estrelas; e a poeira Que eleva nuvens altas a incens´a-lo

A janela, s´ımboloda perspectiva est´etica,limiar entre real e ficcional com que Garrett encena e enquadra a hist´oriadessa Joaninha que equaciona a identidade nacional, como atr´asreferi. Janela onde Ces´ariosubstitui o canto e a imagem dos rouxin´oispela «infantil chilrada» de um can´arioapenas escutado. «Janela azul» que parece antecipar para mim essa outra que Matisse nos oferecer´ada mesma cor (A Janela Azul, 1912). Inesperada e insinuada esquadria do prod´ıgio da «vis˜aode artista» oferecida `anossa observa¸c˜aoe `apena dos Gigantes que agora celebramos e que aos ombros dela andaram...

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre

1 Ernesto Rodrigues

Breve, mas suficiente, a2 introdu¸c˜aode M´arioCl´audio`asoma da Poesia Completa, de Ant´onioNobre — mais completa do que o pref´acio`aedi¸c˜aode 2000 nas Publica¸c˜oesD. Quixote –, esquece, entre lugares de publica¸c˜ao(p. XII), os seguintes: ￿O Heitor Pinto / Revista Litterario-Scientifica (Covilh˜a, 18-III/16-IV-1887, n. 3), Nova Alvorada (Famalic˜ao),3, 1-VII-1891, e A Flor (Porto), 1, 1-VII-1887, onde sai «O Meu Noivado» (p. 46-47), suscitando esta pontua¸c˜ao, logo no primeiro verso: Em sonhos, vi-me de repente frio, 1988 Em sonhos, vi-me, de repente, frio, 1887. Tamb´em«Balada do caix˜ao», do S´o, sai como «A Balada do Caix˜ao», e pequenas variantes (de pontua¸c˜ao, mas n˜aos´o: «vai aborrecer» d´a«vae￿ a aborrecer»), em A Leitura / Magazine Litterario (Lisboa / Rio de Janeiro), 3. ano, t. XV, 1896, p. 364-365. Dilui, igualmente (o mesmo faz Guilherme de Castilho), em simples Consa- gra¸c˜ao o mais longo t´ıtulo Consagra¸c˜aoa Alexandre Herculano, Porto, 1886, p. 9-10, onde saiu «Os Marinheiros» (p. 88), soneto transcrito3 numa￿ s´oestrofe em Vitorino Nem´esio, A Mocidade de Herculano (1810-1832) , 2. vol., p. 255. Se este — que n˜aoinscreve, no final, a data «1886.» — oscila em oceano / Oceano / oceano todo-poderoso, devendo manter-se Oceano e Oceano Todo-Poderoso, e compensando em «tem pena vs. Tem pena» (v. 13), j´a,em dois momentos, corrige M´arioCl´audio. Assim, nos vv. 8-9, deve ser «Quando ´esereno, e v˜aoa todo o 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase2 Europeias (CLEPUL). 3 Lisboa: C´ırculode Leitores, 1988. Venda Nova: Bertrand, 1979.

i i

i i i i i i

46 Ernesto Rodrigues

pano, / Maldizem Deus,» e n˜ao«Quando ´esereno, e voa a todo o pano, / Mal- dizem Deus,»; pior ´eno final do v. 11, «ao fogo», que nem sequer rima em –oso, como exige o v. 14, porque se gralhou a forma correcta «ao gozo». Para melhor entendimento, veja-se como 1988 e 2000 transcrevem os tercetos, indiferentes `a necess´ariarima:

Quando ´esereno, e voa a todo o pano, Maldizem Deus, riem de ti, oceano! Lan¸cam-seao vinho, `aembriaguez, ao fogo;

Mas quando estala e zurze a tempestade, Ent˜ao.. . Tem pena d’eles! tem piedade! O´ velho oceano Todo-Poderoso!

Importa, agora, registar os in´editosretirados do meu M´agicoFolhetim. Li- teratura e Jornalismo em Portugal (1996), cuja edi¸c˜aoem volume (1998) pudera ter interessado em 2000. No Jornal￿ de Calliope /￿ Revista Litteraria Dedicada ´aClasse Academica (Porto, n. 18, 23-X-1882; n. 26, 1883) — que, em 1988, M´arioCl´audiocita, relativamente ao ano de 18824 (quando sai «Intermezzo occidental»,￿ com￿ que abre a Poesia Completa de 2000) —, temos, neste derradeiro n. 26, 2.5 ano, 7-I- -1883, dois sonetos que se justificavam nos Primeiros Versos (1921) , relativos ao per´ıodode 1882-1889. Considerando que a Poesia Completa, t´ıtulodistraidamente seguido, na capa de 2000, pelas datas «1867-1900» — como se o Poeta escrevesse versos desde 4 . . . E3 aquele Guilherme de Castilho, Vida e Obra￿ de Ant´onioNobre (Lisboa: Livraria￿ Bertrand, 1980, p. 282), refere-se t˜ao-s´oaos n. 21, 19-XI-1882, «Passando. . . », e n. 24,5 10-XII-1882, «Mis´eria», ausentes da Poesia Completa... Esta edi¸c˜aoe a de 1937 comportam 85 composi¸c˜oes. Reduzidas em Braga, 1945, ascendem `acentena em Viale Moutinho, Primeiros Versos e Cartas In´editas (Lisboa: Editorial Not´ıcias,1983), com in´editosde A Alvorada e Di´arioNacional. Ver Francisco Topa, «Entre a cr´ıticatextual￿ e a cr´ıticagen´etica:um exemplo», Letras de Hoje (Porto Alegre), v. 45, n. 4, out.-dez. 2010, p. 30-36. N˜aoconsidera a Poesia Completa, onde comparecem 70 poemas. O confronto de in´editosdever´apassar por A. Nobre, Ave & Outras Poesias Desconhecidas (Porto: Parnaso, 1958?), e Fernando Carmino Marques, Ant´onio Nobre em Paris, S´o,Correspondˆencia (Porto: Edi¸c˜oesCaixotim, 2005), mostrando quanto trabalho est´aainda por fazer. Breve resumo: a edi¸c˜aode 1988 abre com «Tremulante», de parceria com Eduardo Coimbra. O alinhamento dos textos diverge, entre omiss˜oese acrescentos. Descontado aquele, 1988 traz 97 Primeiros Versos, incluindo 42 sonetos; 2000 comporta 48 mais 22 sonetos, num total de 70. 1988 contempla, ainda, Alicerces, entre S´o e Despedidas.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre 47

6 o nascimento –, abre por quadras de 20 de Maio de 1882, conjugando «O doce verbo amar!. . . », e que os sonetos hoje apresentados foram editados em 7 de Janeiro de 1883, significa que deveriam estar entre os primeiros, ou anteceder o segundo poema, «Dezasseis anos (16 de Agosto de 1883)», que familiarmente termina: Hoje, caro leitor, ´eo dia dos meus anos. Completo dezasseis e fa¸couns altos planos. . . O ros´ariofeliz da minha mocidade E´ bem pequeno, eu sei: mas chega-me `avontade Para fazer `anoite as minhas ora¸c˜oes. Anjos da minha infˆancia,´ocastas ilus˜oes! Primeiros Versos tem uma sec¸c˜aode «Sonetos», onde tamb´empuderam caber alguns da sec¸c˜aoanterior. Os primeiros s˜aode Dezembro de 1882, coetˆaneos dos aqui apresentados, pelo que estes deveriam sequenci´a-los. O tom de 1884 ´eainda confiante: «O amor»; «Inglesinha», a qual escreve, «`aflor da areia: / “I love you”.», e vai convocar t´ıtulosafins: «Inglesinhas», «Inglesa», «Perfil de miss», ou um sem t´ıtulocome¸cadopor «Ellen! meu c´eu! meu norte! meu abrigo!»; «O amor», de novo; «O eclipse»; «Cheia de gra¸ca»;etc. Ora, entre aquela conjuga¸c˜aodo verbo amar e um ano esperan¸coso, a situa¸c˜ao do sujeito, aos 15 anos, anuncia j´aas ra´ızesfictas de um futuro triste. Vejamos o primeiro soneto: O Canto do Ebrio

Eu caminhava triste e solitario Por um deserto atalho, endurecido: O meu soturno olhar, amortecido, — Frio olhar de descrente e visionario — Procurava entre as urses o sudario D’alguem que alli passou, enlouquecido, Nas m˜aos,levando um craneo carcomido, No olhar o aspecto vil de incendiario. . . E cansado, e abatido eu me assentei Nas espinhosas urzes, d’onde olhei, Em torno de mim. Tudo ermo e s´o:Ninguem. . . 6 Esta edi¸c˜aotem mais para lamentar. Na «Nota sobre o autor», S´o ´eeditado em 1893 (p. 15); na «Nota `aedi¸c˜ao», dizem-se as primeiras edi¸c˜oesde Despedidas e Primeiros Versos «ambas de 1921» (p. 19).

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

48 Ernesto Rodrigues

No entanto o meu olhar inda buscava O sudario d’um Pae, que idolatrava, O craneo frio d’uma santa M˜ae.. . (p. 102)

Se as rimas s˜aopobres, o ritmo ´eexcelente, e cantante nas discretas re- peti¸c˜oesde nomes e pronomes. Mais: n˜aos´ose conta uma hist´oria,o que em curtos versos muitos fazem, como, na reitera¸c˜aode «sudario» e «craneo», se desvenda um segredo, e, policiariamente, se descobre o criminoso — um Pai idolatrado, que mata «santa M˜ae». Compreende-se, assim, o estado de l´ucida embriaguez, traduzida em «Frio olhar de descrente e visionario». Assombram as marcas de vazio, tanto mais vivo quanto um olhar quatro ve- zes dito se passeia: solit´ario, deserto, soturno, amortecido, frio (que se repete), descrente, carcomido. . . Satura-se a orfandade da natureza e do sujeito na con- tiguidade de ermo, s´o,ningu´em.Poema rizom´atico, d´aum lamir´e.D´auma nota, ainda, de poseur, de quem organiza a sua pr´opriafic¸c˜aode vida, o seu mito (dir˜aoalguns). Noutro tom, mais leve e pr´oximo, anaforizante, semi-quiasm´atico, temos o segundo, anunciando esteios de sobrevivˆenciae interpela¸c˜oesfuturas:

Collegas

E´ bom vivˆer:vivˆerco’a mocidade, Que na alma sente o fogo resplendente Do amor, esse ideal casto e innocente Como os risos da florea virgindade.

E´ bom vivˆer:vivˆerna suavidade Do conchego d’amigos, onde ardente S’espande o enthusiasmo, eternamente, E se repelle a lˆepra — a inimizade!

Eu vivo n’um cenaculo adoravel De rapazes amigos — invejavel — Onde, ´asvezes, discute-se a belleza

D’alguem que passa na deserta rua, Mostrando a esbelta perna semi-nua. . . — Apos o alegre rir vem a tristeza. . . (p. 103)

A discreta liberdade sint´acticaem «Onde, ´asvezes, discute-se a beleza» incide sobre o assunto da conversa entre amigos, beleza figurada na «esbelta perna semi-nua». Respondem reticˆenciasde «tristez», insinuando incapacidade

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre 49

ou derrota do sujeito, num efeito-surpresa que anuncia as oscila¸c˜oesan´ımicas da l´ıricanobriana. O quadro cenacular ´et´ıpicodo s´eculo, embora pouco tratado em verso. A vida deste Cristo poeta, morto aos 33 anos, em 1900, foi uma continuada peregrina¸c˜aoem busca de sa´udepela Europa, incluindo a ilha da Madeira, e Estados Unidos, cujos lugares inspiram «Outras Poesias» de Despedidas (1902). Esse calv´ariop´os-1895,licenciado pela Sorbonne e com um p´ena carreira di- plom´atica,encerra com o longo ciclo «O Desejado», uma raps´odiaestr´oficainci- dindo sobre Lisboa e mem´oriasda p´atria,tamb´emmem´oriados seus passos ou autores, que prevˆe,mesmo, 13 oitavas camonianas. . . A toada ´epico-narrativa￿ abre o S´o (1892), com textos desde 1884 a 1895, revistos at´e`a3. edi¸c˜ao(1898). As formas de passado do primeiro soneto in´edito, bem como de um pai e m˜aeque se perderam, buscados pelo filho («Em v˜aocorri mundos, n˜aovos encontrei / Por vales que fora, por eles voltei.»), est˜aono inaugural «Mem´oria», a modos de proposi¸c˜ao, topografando um espa¸co– ali´as, por causa da primeira rima, engana-se a geografia –, em continuada linhagem das Viagens. . . do «Meu caro Garrett» («Saudade»; sendo que um dos melhores ´e «Viagens na minha terra»), e assumindo o tom do Mestre, ao ouvido dos leitores:

Ora isto, Senhores, deu-se em Tr´as-os-Montes,

fechando, ap´osaquela supradita orfandade:

E assim se criou um anjo, o Diabo, o lua: A´ıcorre o seu fado! a culpa n˜ao´esua! Sempre ´eagrad´avelter um filho Virg´ılio, Ouvi estes carmes que eu compus no ex´ılio, Ouvi-os v´ostodos, meus bons Portugueses! Pelo cair das folhas, o melhor dos meses, Mas, tende cautela, n˜aovos fa¸camal. . . Que ´eo livro mais triste que h´aem Portugal!

Subsumidas, tamb´em,invoca¸c˜aoe dedicat´oriaaos «bons Portugueses», se- gue-se «Ant´onio», narra¸c˜aodial´ogicacontrastante em primeira pessoa, seja no gelo de Paris ou nos «Poentes de Fran¸ca», triste presente a que se contrap˜oe o «Val’ do Passado» individual e de p´atriaher´oica.A linguagem da terra e da regi˜ao´ea que mais se afasta do preciosismo `aEug´eniode Castro:

Que noite de Inverno! Que frio, que frio! Gelou meu carv˜ao: Mas boto-o `alareira, tal-qual pelo Estio,

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

50 Ernesto Rodrigues

Faz sol de Ver˜ao! [It´alicomeu.]

Util´ parˆentesissobre as po´eticasdo tempo explica essa op¸c˜ao. «Ant´onio», «Lusitˆaniano Bairro Latino», «Entre Douro e Minho», s˜aode Paris, 1891-1892, longe, todavia, dos v´arios-ismos locais, exportados para todo o mundo. Qual a recep¸c˜aolusa no tri´eniodecisivo de 1890-1892, sob os efeitos muito dilu´ıdos do Ultimatum e da bancarrota, seguida de onerosos empr´estimoscontra´ıdosno estrangeiro? A` impessoalidade7 do Naturalismo respondia nota¸c˜aonevr´otica,verificava Alberto de Oliveira8 , em v´esperas de Oaristos, «uma pedante amostra da preo- cupa¸c˜aode inovar» em sede decadista. Logo nos dias 21 e 22 de Abril de 1890, o mesmo Novidades d´alargas ao «inspirado d´ecadiste» Gustavo Cano, de cuja «genial obra Yvaristus» extrai versos par´odicos,que outros ´org˜aosreproduzem. Na falta de estudo, o pa´ısdiverte-se `acusta de Eug´eniode Castro; «a cr´ıtica limitou-se a rir», informa9 Trindade Coelho. «Outro decadente» ´eAnt´oniode Oliveira Soares. Explica o recenseador de Azul: «Quem diz versos decadentes diz versos de forma revolucion´aria,emanci- pados das leis triviais da po´etica,alguns erros de metrifica¸c˜ao, voc´abulosn˜ao conhecidos nos dicion´arios,rimas audazes e grande emprego de parangona.» Mariano Pina confirma Soares «decadente» e, retomando Castro em p´aginas cont´ıguas,lamenta o t´ıtulo Oaristos, que nem est´adicionarizado. Entre ironias e paternalismo, redu-lo a nada, porquanto «a sua poesia, Eug´enio, aflige-me e tortura-me, pelo torcido, arrebicado, repenicado, esprimido, comprimido, esticado,10 espevitado, torturado, enforcado, guilhotinado, de todos aqueles versos» . Tamb´emD. Jo˜aode Castro ´eda «escola que a si mesma11 se baptizou, ora com o nome de decadente, ora com o nome de insubmisso» , lembrando, «pelo rebus- cado da forma, e pelo12 abuso da adjectiva¸c˜ao, sonora mas vazia, a desacreditada escola gong´orica» . Na edi¸c˜aode Horas, de Eug´eniode Castro,13 irmanam-se «Decadentes e simbolistas» (criticando a sinestesia voc´alica) , e14 o novo Ant´oniode Oliveira Soares, Exame de Consciˆencia, ´ej´adito simbolista , ambos plasmando quanto 7 8 «Os melanc´olicos», O Intermezzo (Porto), 2-I-1890. 9 Novidades (Lisboa), 20-IV-1890. 10 Tempo (Lisboa), 1-V-1890. ￿ 11 A Ilustra¸c˜ao (Paris), vol. 7, n, 9, 5-V-1890, p. 130-131. 12 Sic. Remiss˜aopara a revista Os Insubmissos. 13 «Bibliografia», O S´eculo (Lisboa),￿ 24-VII-1890. 14 A Ilustra¸c˜ao (Lisboa), vol. 8, n. 165, 15-III-1891, p. 66. «Livros, folhetos e revistas», Correio da Manh˜a (Lisboa), 21-III-1891.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre 51

Trindade Coelho vˆenos decadentes: «[. . . ] duas das mais vulgares formas de loucura: a monomania religiosa [. . . ]; e a monomania das grandezas». N˜aoacaba, por´em,o mˆessem irromperem charges aos nefelibatas, cuja gal´axiase prolonga em nefelibatesco, nefelibatomania, nefelibatismo, nefelib´ati- co, nefelibatice, nefelibatofobia, neo-nefelibatismo. As «interviews liter´arias» que O Universal anuncia em 9 de Mar¸co1892, «com personagens importantes e macabros da capital e mais partes do reino», ou «com as figuras cuja moleirinha mais alveja entre a multid˜aodos talentos p´atrios»(10-III), s˜ao, embora ficciona- das, as primeiras do nosso jornalismo. A s´erie«Acerca de Os Nefelibatas», de frei Ant´onio, leva-nos a visitar Abel Botelho, Melo Barreto, Tom´asRibeiro, Pi- nheiro Chagas e Te´ofiloBraga, o Cardeal Patriarca, o governo e a oposi¸c˜ao, mas ´eRamalho Ortig˜aoquem d´aos melhores «conselhos sobre o que fazer com os nefelibatas»: «Um passeio de manh˜a,`ainglesa, depois de um bom douche pelo espinha¸coabaixo. . . A barquea¸c˜aod´atamb´emum excelente resultado. Ponha- -m’os ao sol, `aluz; que tomem banhos de mar.» Indagado sobre os «de fora», n˜ao hesita: «Doentes. . . N˜aose entendem. . . Que comam bem, que vivam como toda a gente, que trabalhem!. . . Porque h´amuito mais sinceridade numa p´aginada Hist´oriaTr´agico-Mar´ıtima [. . . ] do que em todos os livros desses senhores.» In- sistindo o jornalista sobre a gente nova, Ortig˜ao´etaxativo: «Fosse eu pai deles, que eu lho diria!. . . Eu lhe[s] daria as poesias p’ra ali com um bom marmeleiro!» (15-III). J´a,entretanto, frei Ant´onio/ Alberto Bram˜aoinventara o poeta Alberto Can- tagallo, nascido em Fornos de Algodres, conflituando com Melo Barreto, mas n˜aos´o: Eug´eniode Castro, por exemplo, seria «compreendido quando todas as na¸c˜oesestrangeiras quiserem governar em Portugal» (16-III). Gouveia Pinto critica o vestu´ariodos novos poetas: «Olhe, esses nefelibatas s˜aouns literatos de cal¸caapertada, vestem pelos algibebes da Rua dos Fanqueiros, n˜aotˆema m´ınimano¸c˜aodo que ´evestir bem. S˜aouns gauches!» (23-III). Enquanto isso, O Ant´onioMaria e Lu´ısde Magalh˜aesd˜aoEug´eniode Castro, chegado «de romagem cosmopolita `atorre Eiffel,15 ao tempo da Exposi¸c˜ao»de16 1889, como «introdutor da novidade em Portugal» , refor¸cadospor Ren´eGhil ; esquecendo Xavier de Carvalho, o mesmo Novidades (4-IV-1891) a todos opusera17 Alberto Os´oriode Castro, simbolista h´aquatro anos. Segundo p. C. Vieira , que alerta para media¸c˜aodiab´olicaem decadistas e simb´olicos (= simbolistas, 15 16 «A escola nefelibata», Novidades, 1-VI-1891. Xavier de Carvalho, «De Paris», O Portuguˆes, 23-VIII-1891. Esta declara¸c˜aosobre «le chef d’un mouvement de r´enovation»em Portugal levantar´an˜aopouco ru´ıdo.. . Castro paga-lhe com «Ren´eGhil», Jornal do Com´ercio (Lisboa), 3-IV-1892, dito chefe da Escola Evolutiva-Instrumentista.17 «Os nefelibatas», A Na¸c˜ao (Lisboa), 7-IV-1891.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

52 Ernesto Rodrigues

nefelibatas), «um alter ego trabalha no indiv´ıduo, ainda imberbe, salientando-o de modo a provocar a admira¸c˜aoem todos, que o contemplam e lhe n˜aoconhecem a causa da transforma¸c˜ao». Um alegado simbolismo alterna, agora, com nefelibata, sendo esta acep¸c˜ao mais constante, inclusive na recusa ou na par´odia: minist´eriosnefelibatas de- vem dar lugar a minist´eriosnefelibatas; e quem, como Alberto Pimentel, vˆenos parnasianos «a m´aximaperfei¸c˜aopl´astica», olha `aquelesou ao decadismo como18 «a nega¸c˜aode todos os processos art´ısticosconquistados pelo s´eculoXIX» . Tamb´em A Ordem coimbr˜a(10-VI-1891) n˜ao explicar´a«O que ´eo nefeliba- tismo»: «Eu n˜aoposso conceder o nome de arte a um trabalho, ou como queiram chamar-lhe, em que ningu´em,nem o mais pintado, ´ecapaz de descortinar qual- quer pensamento. Aquilo n˜ao´earte, ´eum embroglio; n˜ao´eluz, ´esombra; n˜ao ´esublimidade, ´echarco: ´euma cousa perfeitamente indiscut´ıvelsob o ponto de vista liter´ario.» Oliveira Martins reconduz `aseriedade, mas observando um s´oaspecto, mu- sical, que nos importa em Camilo Pessanha: sendo a poesia «a mais geral, a mais expressiva e a mais constante» das «formas de tradu¸c˜aosimb´olica», buscam os cultores «achar no estilo efeitos sonoros, reclamando das s´ılabasum poder de express˜aoque auxilie a significa¸c˜aoideal das palavras. Hoje tamb´emo estilo se fez m´usicasacrificando19 muitas vezes aos efeitos ac´usticoso poder da express˜ao l´ogica.» Citado pel’O Di´arioPopular (27-I-1892), em resposta a artigo de Pinheiro Chagas n’O Pa´ıs carioca, Eug´eniode Castro confessava procurar «por todos os modos dar `aInspira¸c˜aonovas asas, ao Pensamento a liberdade, e `aPalavra restituir-lhe o som, o perfume, o desenho e a cor que ela possui num grau t˜ao elevado». Assinando sarcasmo em «Carta ao Sr. Conselheiro Chagas» no Jornal do Com´ercio (7-II-1892), lembra que «o p´ublicoque riu dos meus poemas foi o mesmo que aplaudiu A Morgadinha de Valflor e que se riu dos versos de oiro de Ces´arioVerde». N˜ao´es´oChagas versus E¸ca;tamb´emcontra o poeta, Chagas ergue o estandarte do seu regime, na rela¸c˜aopacificada entre autor e leitor. Dezoito anos depois de blague20 de Ramalho (1874), para que fosse «cada vez menos Verde e mais Ces´ario» , este conservava-se divisor de ´aguas. E, surpreendentemente, tamb´emdevido ao nome de A. Nobre. Em 31 de Mar¸co, O Rep´orter anuncia para breve L´ıricas, de Ant´onioNobre, que ser´ao S´o, pedra fundacional de nova era, «o respeito, o amor e o sentimento da nacionalidade», corrobora Mariano Pina, que mistura parnasianos, decaden- 18 19 «Revista da semana», O Economista (Lisboa), 19, 26-V-1891. 20 «A poesia», O Portuguˆes, 19-VI-1891. As Farpas, t. X, cit. em As Farpas Completas, quinto volume, ed. de Ernesto Rodrigues, Lisboa: C´ırculode Leitores, 2007, p. 1564.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre 53

tistas e simbolistas,21 cujo cosmopolitismo ´ede imita¸c˜aofrancesa e desprezo das tradi¸c˜oesnacionais . N˜aopoucos olham, todavia, `a«poesia22 nefelibata, instrumental e impressio- nista», ao «nov´ıssimo gongorismo» de Nobre, que Trindade Coelho vˆepr´e-ex- pressionista — «eleg´ıaco, pessimista, torturado, excˆentricopor vezes at´eparecer macabro, arrepiado frequentemente com a vis˜aodo pus e da gangrena, mirando o mundo e a vida atrav´esde um cristalino que a nevrose congestionou e a febre raiou23 de sangue»; e, enquanto Alberto de Oliveira cumpre a melhor recens˜aoao S´o e precisa a necessidade de «organizar uma lista de Poetas regio- 21 22 O Di´arioPopular, 21-IV-1892. Di´arioIlustrado, 19-IV-1892. S´oum «lado comum» observa Trindade Coelho entre gongorismo23 e simbolismo: a «subtileza arrevesada do pensamento». N’O Primeiro de Janeiro de 21-IV-1892. Excertos: «[. . . ] Direi primeiro que o S´o, numa ´epocade hipocrisia liter´ariae de almas secas e parnasianas — ´eum livro humano, simples, crist˜ao, escrito com febre, regado de uma alta e comunicativa emo¸c˜aoe intensamente revolvido pela Dor, como a leiva de um campo pela enxada de um cavador beir˜ao. Ant´onioNobre, vˆe-selogo, n˜ao´eum trovador feliz e amoroso, nem um dourado bo´emiodos vinte anos; ´eum triste, um desalentado, um Antero precoce, vinte anos com um passado cuja evoca¸c˜aoj´afaz l´agrimas,olhos grandes de crian¸cailuminando uma testa que j´atem rugas. A sua primeira obsess˜ao, por isso, ao embebedar tamanha tristeza no vinho dos seus versos, ´eevocar a meninice, o colo da ama cheio de tranquilidade, tempos de aldeia comungando com os pobres de esp´ırito, repartindo juntos a mesma broa rude de felicidade. L´ade Paris, o nost´algico, s´ocomo o t´ıtulodo seu livro, s´ocomo a cabe¸caalta do seu orgulho e a maneira esquisita do seu temperamento, evoca (com uma intensidade de imagina¸c˜aoextraordin´aria)a ´epocaem que era «menino e mo¸co» e desenterra, do vale do Passado, as suas mem´orias. Mem´oriasde um rapaz que ´etal qual um velhinho, pela doce tristeza com que se lembra. E isso constitui o encanto da admir´avelpoesia “Ant´onio”. O seu verso ladainhado (posto em uso por Ant´onioNobre, a primeira vez em Portugal, depois das endechas dos Romˆanticos)d´a`aevoca¸c˜aocomo o ritmo de um solu¸cohumano que se prolonga. Atravessam cada estrofe, dando-lhe um tom de m´usicaonde o mesmo acorde triste vem periodicamente interromper a melodia, certos harmoniosos refr˜aesque s˜aotamb´emuma inova¸c˜aoliter´ariade Ant´onioNobre. Poesia simples, humana, os seus epis´odioss˜aopopulares, a sua emo¸c˜ao(transcrita com talento) ´ea de toda a gente que chora e que sofre. Entendˆe-la-˜aoos av´osque rezam rimances ao lume, chorar˜aocom ela os poveiros que v˜aopara o mar “buscar as dores”, como diz meu irm˜aoAdolfito. [. . . ] A do¸cura l´ıricade Ant´onioNobre, o seu cristianismo de alma, tˆem documentos excepcionais nos versos piedosos da “Purinha” e da “Elegia” e nas endechas da “Certa Velhinha”, feita no metro introduzido por Junqueiro na moderna poesia; o seu sofrimento e desespero chocaram poesias febris e exacerbadas como o “Ao Canto do Lume” e a “Vida”. O S´o n˜aotem uma sinfonia cor-de-rosa, nem uma papoila a cantar no meio da sua tristeza. E´ desesperado, desalentado, doente e as desgra¸casdo poeta desfilam, como uma prociss˜aodo Enterro, entre olhos comovidos e h´umidosde espectadores. [. . . ]

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

54 Ernesto Rodrigues

24 25 nais» (com Jos´eSarmento associando, j´a,Nobre e J´ulioBrand˜aoao Minho ), eis que, para justificar o S´o como «a mais not´avelobra po´eticaque tem aparecido em Portugal, para c´ade Junqueiro e de Gomes Leal», desvaloriza Ces´ario:

Nunca [. . . ], no meu entender, Ces´ariopoderia vir a ser um grande poeta. Faltava-lhe inspira¸c˜ao, faltava-lhe imagina¸c˜ao, faltava-lhe alma. Sofria pouco, sentia `asuperf´ıcie, e o que h´ade eterno e s´eriona vida n˜aoo tocou. [. . . ] Aos seus versos falta desequil´ıbrio, A evoca¸c˜aode Portugal ´epermanente e isto tem de se acentuar, n˜aos´opelo senso cr´ıtico que revela em Ant´onioNobre, mas por se dar num rapaz vivendo num meio enorme e absorvente, cheio de sedu¸c˜oese ´ımanesde encanto e que, entretanto, resiste, n˜aose desnacionaliza por vaidade, nem se deixa levar na onda por covardia, mas, pelo contr´ario, tem sempre diante da imagina¸c˜ao, na sua cela de solit´arioperdido entre o ni´agara doido de Paris, a vis˜aointensa da P´atria,`aqual, apesar de tudo, n˜aodeve muitos favores. O seu c´euazul de Portugal, a sua paisagem amada de Coimbra, o seu mar infinito de Le¸can˜ao lho fazem esquecer nem ru´ıdosde bulevar, nem imprevistos ataques de uma civiliza¸c˜ao diferente e aguda, nem sequer as extravagˆanciase as novidades da cor local, que tanto alucinam o sr. Ramalho Ortig˜ao. Ant´onioNobre prefere ao absinto baudelairiano das cervejarias do Bairro Latino, `asnevroses liter´ariase ex´oticasdos poetinhas decadistas da ´ultimahora, a Humanidade que sofre, os ceguinhos que v˜ao`asromarias portuguesas, os pescadores que remam para o mar alto, os jantares do Sr. Abade com arroz branco como a sua alma e a enxada crist˜ado Z´eda Teresa, enterrando os mortos. No S´o, n˜aoh´aliteratos nem duquesas hist´ericas,nem mobili´ariosraros, como nas cidadelas dos parnasianos. A popula¸c˜aodo S´o ´ede almas e de simples: coveiros, raparigas de Coimbra, abades santos, olhos negros de portuguesas, pobres t´ısicas, velhos e desgra¸cados,paisagens tristes, Amigos distantes. . . Nem angl´omano, nem janota da poesia, nem envolvendo-se no mar da humanidade ego´ıstaonde a sua almadia n˜aogosta de navegar, Ant´onioNobre nisso tudo mostra ser um verdadeiro poeta e n˜aoum virtuose da rima que vence dificuldades. A resistˆenciado seu temperamento ardente e lusitano aos meios que atravessa faz-me lembrar Garrett, portuguˆessempre, e apesar de tudo, perp´etuoviajante pelas sete partidas do mundo e, no entanto, escrevendo apenas, orgulhosamente, um livro de viagens. . . na sua terra. A “Lusitˆania”´ecomposta em verso livre, por sinal executado com magistral euritmia. O p´ublico, por enquanto, compreende mal o encanto desta forma assim´etrica,impondo aos poetas muito mais talento na procura da harmonia, mas (desde que a conseguem) dando resultados admir´aveis. Junqueiro, em certas can¸c˜oesda agonia, maneja, com m˜aode mestre, o ritmo livre; alguns dos poetas novos o tˆemempregado tamb´em.Quando o leitor se encontra em frente de uma metrifica¸c˜aosim´etricae igual, vai para diante, empurrado pelo pr´oprioandamento do verso; mas se as combina¸c˜oesm´etricascome¸cam de variar, o leitor n˜aocompreende do primeiro lance e desgosta-se. Enfim, ´euma educa¸c˜aonova do ouvido24 que resta a aconselhar, bom p´ublico.. . [. . . ]». 25 Novidades, 28-IV-1892. O Rep´orter, 5-V-1892.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Dois sonetos in´editosde Ant´onioNobre 55

falta g´enio.26 Teria dado um prosador cheio de originalidade e de car´acter .

No n˜ao-ditode Ces´ario, v˜aodescontinuidades que far˜aoo modernismo: opo- si¸c˜aocidade-campo, novo e velho Portugal, moderno e tradicional, rapidez-lenti- d˜ao, mudan¸ca-fixidez,do Tejo ao oceano, e respectivos meios de transporte, entre navios e diligˆencias.H´ainjusti¸ca,pois, nesse fanatismo oliveirino. 27 E´ um prosador, Abel Botelho, que, no pretexto do S´o, em dois artigos , faz o processo da poesia decadentista. No primeiro, retoma o programa est´eticode g´enesefrancesa, que mais se aplicar´aa Pessanha: «idealizar, quer dizer, ver com os olhos do esp´ırito;alcan¸cara s´ıntesepor meio da unidade; delir min´ucias,cor- rigir deformidades, interpretar e n˜ao copiar». Se h´a«regress˜ao`a interpreta¸c˜ao simb´olica da Natureza», n˜aomenos se valoriza o ritmo, o colorido, embora re- sultando «sarabandas macabras de versos sem regularidade, sem n´umero, sem ordem, sem medida», cita¸c˜aoesta que n˜aoatinge Pessanha. Botelho n˜aoen- tende a atitude pol´emica,a pose transgressora da Modernidade, via vanguardas in ovo. No segundo artigo, distingue o grupo dos poetas «altivos e solenes como pont´ıfices»dos «humildes e candurais como abades de aldeia». Recusa «dur´aveis condi¸c˜oesde vitalidade» `aescola de Eug´eniode Castro: «Derivando toda do artif´ıcio, do embriagamento exterior, de uma embriaguez de instrumenta¸c˜ao, do estonteio da forma, esta pretendida B´ıbliade renova¸c˜aon˜aopassar´anunca de uma tentativa ef´emera.» Entre os da segunda escola, com visos de «renovar a tradi¸c˜aoda l´ınguae do car´acternacional» em poesia simples, depurada e «sen- tida», releva Alberto de Oliveira, J´ulioBrand˜aoe Ant´onioNobre: mas a «potˆencia visionante» de Nobre (aquele olhar «vision´ario»do soneto acima) «falha, a sua capacidade criadora agita-se no v´acuo, intimida-se, encolhe de medo as asas e n˜aoconsegue fazer-nos bater o cora¸c˜ao». Na convoca¸c˜aode grupos d´ıspares(decadistas ou decadentistas, nefelibatas, simbolistas, so´ıstas,neo-garrettistas e regionais, pr´e-expressionistas. . . ), h´ano- mes e t´ıtulosque ora entenebrecem o caeirismo de Ces´ario, ora correm a doen¸cas psicol´ogicase definham `anossa frente, num j´ainsensato dandismo: J´ulioDantas, Manuel Penteado, Jos´eDuro, algum Gomes Leal ou Fialho, mesmo Raul Brand˜ao (com J´ulioBrand˜aoe Justino de Montalv˜ao, autor de Nefelibatas, 1891, sob o cript´onimoLu´ısde Borja). Ant´onioNobre adquire uma toada cancioneiral ou uma disposi¸c˜aoteatral ausentes em Ces´ario;a par do soneto, que este n˜aopraticou, tem outra liber- dade formal, da estrofe e verso livres `asacentua¸c˜oesraras (oito e onze s´ılabas) ou rimas emparelhadas, mau-grado coincidˆenciasnos alexandrinos. Da ´epica 26 27 «Ces´arioVerde», Novidades, 6-V-1892. O Rep´orter, 25, 26-V-1892.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

56 Ernesto Rodrigues

ao romance localista e familiar (na sempre memorada ama Carlota), atento aos amigos que j´avimos no segundo soneto in´edito, ou refigurando-se em atitudes mon´asticas,de remiss˜oesliter´ariashaml´eticase of´elicas,mas tamb´em nacionais (A Morgadinha dos Canaviais, em «Viagens na minha terra», ´euma surpresa), e constantes reminiscˆenciascr´ısticas,at´e`ainterpela¸c˜aode um tu, Nobre ´eum inovador como raros. Veja-se coimbr˜a«Carta a Manuel», neste limiar sincopado: «Manuel, tens raz˜ao. Venho tarde. Desculpa.» Arrisca rimar «spleen / sim / assim» («Sonetos / 3»), «ouvir / Sr. Shakespeare» (linhas antes, ´ecaso do «Sr. Dr. Oceano»), e semeia passos que Camilo Pessanha ou M´ariode S´a-Carneiro apreendem: «Que desgra¸canascer em Portugal!» («Sonetos / 2») equivale `a primeira «Inscri¸c˜ao»de Pessanha: «Eu vi a luz em um pa´ısperdido.» «O´ Vir- gens que passais, ao Sol-poente,» («Sonetos / 4») encontra a mesma cesura no Pessanha de «Imagens que passais pela retina». O «Zut» do soneto 13 («Falhei na vida. Zut! Ideais ca´ıdos!»)´eum palavr˜aorevisto em S´a-Carneiro, por natural influˆenciado linguajar francˆes. Com O Livro de Ces´arioVerde (1887) a meio do seu percurso, Nobre pode alargar experiˆencias,enfim coincidindo na t´ısica fatal. . .

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

S´o: um livro de tinta transparente

1 Joana Lima

A tinta com que Ant´onioNobre pinta erros ortogr´aficosem barcos de pesca ou azeite boiando sobre o crep´usculoparisiense ou a saudade da infˆanciadispersan- do-se pelo Mondego ´ea ´agua,sob o estado de rio que flui e nuvem que assombra e gelo que estagna. Este pequeno ensaio apresenta os modos como este elemento primordial que atravessa a poesia de S´o ´efeito s´ımbolopelo poeta, explorando, para tal, a renova¸c˜aoque este faz do arqu´etipoliter´arioda ´aguana literatura portuguesa. Al´emde este livro espelhar a fertilidade fremente do amor jovem presente nas fontes das albas trovadorescas e a supera¸c˜aodo medo e do abismo dos mares na ´epicacamoniana, o simbolista Ant´onioNobre desenha novas ´aguas po´eticasno cˆanoneliter´arionacional, ao criar novos movimentos e significados – decadentistas, pessimistas, melanc´olicos— para a ´agua.Percorramo-las. O frescor, a fertilidade e o fr´emitoamoroso da imagem de um cervo bebendo ´aguae assim inquietando o espelho que ´ea fonte `aqual uma rapariga apai- xonada vai buscar ´aguanuma cantiga de alba medieval, donde se desdobram todas as Lianores consequentes, traz primavera `apoesia de Ant´onioNobre, cer- tamente inspirado pelo cancioneiro trovadoresco nacional, como bom romˆantico ou neorromˆantico. A alegria que vai, intermitente e sinestesicamente, oxige- nando o nigredo da sua poesia ´efeita2 de o sujeito po´etico«ir pelas tardes, at´e `afonte / ver as pequenas encher3 e rir» ; de escutar, em tardes outonais, «fontes carpindo / Entre erva sedenta!» , uma «Agua´ fria de Tr´as-os-Montes/ Que faz 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase2 Europeias (CLEPUL). 3 Ant´onioNobre, «Can¸c˜aoda felicidade», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 44. Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 15.

i i

i i i i i i

58 Joana Lima

4 sede s´ode se ouvir!» ou uma ´aguacorrente e caudalosa, uma «´aguapara5 le˜oes», como a do «Mondego das raparigas, / Estudantes e viol˜oes!» ; e6 de idealizar a sua Purinha como um «ser natural» como «as ´aguasdas fontes» , dotando esta menina-mulher inocente e imposs´ıvelde abra¸carcomo a pr´opria´aguade uma transparˆenciapouco pr´opriade um ser humano. Estas ´aguasfrescas e primaveris decorrem de uma tradi¸c˜aoliter´ariae es- pecialmente amorosa nossa conhecida. N˜aodespertando emo¸c˜oesprofundas no leitor, dado o seu car´aterfugidio e dado surgirem quase como um leitmotiv tradi- cional, transmitem tamb´emapenas impress˜oesfugidias e a confort´avelconc´ordia entre pares de estarmos a ler poemas que decorrem de outros, estando a ler em Ant´onioNobre as cantigas de alba, a Lianor camoniana e tantos outros amo- res liter´ariosprimaveris, levando a que rapidamente a poesia deste simbolista, romˆantico, neorromˆantico, decadentista, neogarrettiano seja engavetada em todas estas categoriza¸c˜oespitorescas. E trancada `achave. O que tamb´emn˜aocontribui para clarificar em que medida a poesia de Nobre ´ecapaz de um mergulho mais profundo s˜aoaquilo a que chamaremos as ´aguasimperiais, isto ´e,a vis˜aonacionalista, provinciana e patri´oticaque ´e colada `asua obra. Ela existe (que n˜aose duvide dessa presen¸ca),mas, n˜ao sendo ultrapassada, reduz a obra quase caricaturalmente, impedindo de ver al´em da auto-genealogia do poeta enquanto «neto de Navegadores,7 / Her´ois,Lobos d’´agua,Senhores / Da ´India, d’Aqu´eme d’Al´em-mar!» . Portugal espraiando- -se imperialmente no mundo,8 «um pa´ısde Marinheiros, / o meu pa´ısdas Naus, de esquadras e de frotas!» («Lusitˆanianum bairro latino»), ´ecertamente um tema crucial e cl´assico. Este orgulho de pertencer a um pa´ısque se expandiu maritimamente e dominou o globo perpassa tamb´emnas v´ariasevoca¸c˜oesfeitas ao maior ´ıdolo romˆantico— Lu´ıs Vaz de Cam˜oes— pedindo-lhe inspira¸c˜ao9 po´etica,como em «Cam˜oes! O´ poeta do Mar bravo! / Vem-me ajudar» , ou nas referˆencias`a´epicacamoniana, como quando, integrando o verso ‘As armas e os bar˜oesassinalados’ no poema «Lusitˆaniano bairro latino», revela o poeta renascentista como uma fonte da sua vis˜aoliter´ariada vida mar´ıtima. Esta ´ereatualizada desde o auge do Imp´erioPortuguˆesultramarino para um final de s´eculoXIX em que se d´ao Ultimatum inglˆes.Se o alcance das viagens heroicas diminui em quil´ometros,a dramatiza¸c˜aoe o tom ´epicoda descri¸c˜aodo 4 5 Ant´onioNobre, «Viagens na minha terra», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 64. Ant´onioNobre, «Para as raparigas de Coimbra», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 47. 6 7 Ant´onioNobre, «Purinha», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 38. 8 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 10. 9 Ant´onioNobre, «Lusitˆaniano bairro latino», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 27. Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 17.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

S´o: um livro de tinta transparente 59

dur´ıssimo quotidiano dos marinheiros e pescadores portugueses em nada perde o seu fulgor. Ant´onioNobre desenha o tracejar das «lanchas [. . . ], `aflor das ´aguasverdes»,10 conduzidas pelos «poveiros / A sa´ırema barra, entre ondas e gaivotas!» («Lusitˆaniano bairro latino»); Ant´onioNobre desenha n˜aos´oa sua vis˜aoemp´atica,lastimosa e piedosa sobre a vida mar´ıtimado povo portuguˆes,mas tamb´emum contraste entre a sua pr´opriarela¸c˜aocom a ´aguae os seus desejos individuais para com este elemento primordial e a sua perspetiva e desejos que saem da sua individualidade relativamente `arela¸c˜aodos outros com a ´agua (nomeadamente, marinheiros, pescadores, tripulantes e passageiros de navios em perigo11 ou j´anaufragados no mar, caracterizado como «jazigo de paquetes de ossos» ). Apesar de o mar ser ´agua,nem toda a ´agua´emar. Talvez este seja um bom momento para eu indicar que come¸caremosa analisar simbolicamente o simbo- lista, um gesto muito pouco p´os-modernoou antirromˆanticoda minha parte, que defendo corrompendo deliberadamente o poema «Raio de luz» de M´arioCesa- riny: «Romˆanticossomos n´ostodos / desde pequenos. // Romˆanticossomos n´os todos / ou ainda menos». Mergulhemos na profundidade da poesia de Ant´onio Nobre. Apesar de o mar ser ´agua,a ´aguatamb´em´erio, fonte, chuva, gelo, pˆordo sol, luar, leite, sangue e vinho. Gaston Bachelard estabelece, psicanaliticamente, uma teoria sobre como os quatro elementos primordiais (a ´agua,o fogo, a terra e o ar) auxiliam na hermenˆeuticados poetas e que associam os seus textos a estas substˆanciasda natureza. Em A ´aguae os sonhos, o fil´osofocaracteriza a ´agua como12 «um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substˆanciado ser» . Lembrando o conceito de panta rei (ou devir) de Heraclito, Bachelard esclarece que s´on˜aonos banhamos duas vezes no mesmo rio, visto que, na sua profundidade, «o ser humano tem o destino da ´aguaque corre». Acrescenta que, sendo a ´aguao elemento transit´oriode entre os elementos13 primordiais, «´ea metamorfose ontol´ogicaessencial entre o fogo e a terra» . Nesse sentido, «o ser votado `a´agua´eum ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa da sua substˆanciadesmorona constantemente. A morte quotidiana n˜ao´ea morte exuberante do fogo que perfura o c´eucom as suas flechas; a morte quotidiana ´e a morte da ´agua.A14 ´aguacorre sempre, a ´aguacai sempre, acaba sempre na sua morte horizontal» . Leiamos, assim, a poesia de Ant´onioNobre, poeta em verti-

10 11 Ant´onioNobre, «Lusitˆaniano bairro latino», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 27. 12 Ant´onioNobre, «Lusitˆaniano bairro latino», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 27. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti,13 1993, p. 6. 14 Idem, Ibidem, p. 6. Idem, Ibidem, p. 6-7.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

60 Joana Lima

gem, como um programa de prepara¸c˜aopara a morte em vida ou como um conjunto de pequenas mortes quotidianas. A morte nas ´aguas´e,pois, um tema central da sua po´etica. Rasando o ultrarromantismo na sua obsess˜aoem descrever naufr´agiose in´umeroscad´averes boiando nas ´aguas,Ant´onioNobre revela, na mesma medida,15 tanto interesse quanto «Horror!» pelo cen´ariotriste de ver «Mortos a nadar!» na ´aguafria como a pr´opriamorte. Se, por um lado, verificamos um sentimento de lamento e compaix˜aopelos que perdem a vida no mar (quando o sujeito po´etico, por exemplo,16 lamenta: «Coitados daqueles que perdem a filha / Sobre ´aguasdo Mar!» ), por outro lado, encontramos na mesma voz uma vontade expl´ıcitade morrer nas ´aguasou de ser deitado `as´aguasdepois da sua morte. Este tom suicid´ariobuscando a profundidade e a tranquilidade aqu´aticasapresenta-se imediatamente em «Ant´onio», o segundo poema de S´o, numa confiss˜aofeita depois de se denotar uma procura pelo vento miando17 nas ´aguasagitadas do mar: «numa certa ter¸ca-feira / Estive j´ap’ra me matar» . Algumas estrofes depois, o motivo de busca pelas ´aguasrevoltas18 ´eesclarecido: «Quando eu morrer, hirto de m´agoa/ Deitem-me ao Mar!» . Este despojamento do seu corpo, este abandono a uma m´agoaque tanto poderia ser grafada com «o» ou «u», numa sinon´ımia mais tarde lembrada por M´arioCesariny na sua tradu¸c˜aode Uma cerveja no inferno, de Jean-Arthur Rimbaud, encontra, outras estrofes adiante, um cume na express˜aodo desejo do sujeito po´eticode se dissolver totalmente no mar, quando afirma: «Irei indo de fr´aguaem19 fr´agua,/ At´eque, enfim, desfeito em ´agua,/ Hei de fazer parte do Mar!» . Conhecemos esta imagem do suicida vogando no rio em dire¸c˜aoao mar: desde a Of´eliade Hamlet, de William Shakespeare. Bachelard, pensando sobre aquilo a que chama «Complexo de Of´elia», afirma que esta imagem shakespea- riana simboliza «o pensamento da nossa ´ultimaviagem e da nossa dissolu¸c˜ao final. Desaparecer na ´aguaprofunda ou desaparecer num horizonte long´ınquo, associar-se `aprofundidade ou `ainfinitude,20 tal ´eo destino humano que extrai a sua imagem do destino da ´agua» . Encontramos na poesia de Ant´onioNobre dois desdobramentos desta imagem. Primeiramente, na transfigura¸c˜aoda pr´opria Of´eliano poema «Enterro de Of´elia», presente em: «Morreu. Vai a dormir, vai a sonhar. . . Deix´a-la! / [. . . ] os choupos formam ala, / nas margens do ribeiro 15 16 Ant´onioNobre, «Ao canto do lume», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 93. 17 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 15. 18 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 11. 19 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 10. 20 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 14. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti, 1993, p. 14.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

S´o: um livro de tinta transparente 61

onde ela se afogou. // Toda de branco vai,21 nesse h´abitode opala / [. . . ] E, assomando no C´eu,sua Madrinha, a Lua» . Depois, muito semelhantemente `aimagem de Of´elia,aparece «Santa Iria» num poema com o seu nome: «Num rio virginal d’´aguasclaras e mansas, / Pequenino baixel, a Santa vai boiando. / Pouco e22 pouco, dilui-se o oiro das suas tran¸cas/ E, dilu´ıdo, vˆe-seas ´aguas aloirando» . Igualmente afogada e flutuando no rio, esta santa vai a caminho da sua dissolu¸c˜aoserena nas ´aguastranquilas, vai a caminho do «Infinito», que ´edefinido por Nobre como sendo «o mar sem23 borrasca, onde enfim se descansa», onde «vem desaguar o rio da Esperan¸ca.. . » . Ambas s˜aojovens, belas e santas, correndo vagarosamente para uma morte `aimagem das suas qualidades. Ambas ser˜ao´agua:Of´eliaopalizando o rio vestida da cor da lua, sendo luar; Santa Iria dourando o rio atrav´esdos seus cabelos, sendo pˆordo sol. Bachelard esclarece que a persistˆenciadeste complexo de Of´eliaprende- -se com o facto de «a imagem de Of´elia»resistir «mesmo ao seu componente macabro que os grandes poetas sabem apagar», perdurando na tradi¸c˜aoliter´aria, na medida em que «a24 ´aguahumaniza a morte e mistura alguns sons claros aos mais surdos gemidos» . Para este autor, a ´agua´e,por excelˆencia,de entre os quatro elementos primordiais, o cosmos da morte. Esta ofeliza¸c˜aode alguma literatura p´os-shakespearianaaponta para a ideia de, simb´olicae literariamente, a ´aguaem que os mortos vogam ser uma substˆancianoturna, j´aque «perto dela, tudo inclina25 `amorte», comungando a ´agua«com todos os poderes da noite e da morte» . Bachelard acrescenta que, «para Paracelso, a lua impregna a substˆanciada ´aguacom uma influˆencia»corruptora. Apoiado no pensamento de Jules Michelet, que afirma26 que a «lua d´aaos que s˜aopor ela influenciados o gosto da ´aguado Estige» , Bachelard caracteriza «a ´aguaque ficou27 muito tempo exposta aos raios lunares» como sendo «uma ´aguaenvenenada» . Verificamos essa identifica¸c˜aoentre a lua, a ´aguacorrompida pelo luar e a morte na poesia de Ant´onioNobre n˜aoapenas no impressionismo e simbolismo de Of´eliamorta vestida de Opala tingindo de luar as ´aguasdo rio em que voga em dire¸c˜aoao infinito, mas frequentemente numa liga¸c˜aodireta entre estes termos e o sujeito po´etico. Imediatamente em «Mem´oria», primeiro poema de 21 22 Ant´onioNobre, «Enterro de Of´elia», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 151. 23 Ant´onioNobre, «Santa Iria», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 150. 24 Ant´onioNobre, «A` toa», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 92. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la matie`ere, Paris: Jos´eCorti,25 1993, p. 90. 26 Idem, Ibidem, p. 90. 27 Jules Michelet apud Gaston Bachelard, op. cit., p. 92. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti, 1993, p. 92-93.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

62 Joana Lima

S´o, ´e-nosdado um ep´ıtetoou cognome para o autor que, desde ent˜ao, dado o cariz autobiogr´aficodo texto, se apresenta como sujeito po´eticodo livro: «o lua». Narrando a sua biografia, Nobre explica — «E assim28 se criou um anjo, o Diabo, o lua: / Ai corre o seu fado! A culpa n˜ao´esua!» — definindo-se como sendo regido pela lua, pelas ´aguas. Em v´ariospoemas, o poeta explicita uma sinon´ımiaentre29 lua e ´agua: em «Ant´onio», escreve: «a Lua aspergindo / Luar, ´aguabenta» ; em «Meses30 depois, num cemit´erio», escreve: «(Como eu estou molhado! E´31 do luar. . . )» ; em «Ao canto do lume», escreve: «O´ luar, ´aguasprofundas!» ; e em «Viagens32 na minha terra», escreve «O Luar, cada vez mais lindo, / ca´ıaem l´agrimas» . Em todas estas imagens encontramos um elemento descendente, de luar banhando com melancolia a terra ou a ´agua. A famosa imagem de St´ephaneMallarm´ede uma cidade sob chuva e de um cora¸c˜ao sob l´agrimas,em simultˆaneo, poder´ater inspirado Nobre. A ´agua´eo elemento primordial melanc´olicopor excelˆencia,e parece ser, especialmente, o elemento melancolizante da literatura do s´eculoXIX (atravessando as po´eticasde Edgar Allan Poe, Jean-Arthur Rimbaud, Alphonse de Lamartine, que diz que a ´agua chora com todo o mundo, e Charles Baudelaire. Por´em,Ant´onioNobre reveste de uma preocupa¸c˜aosocial esta imagem descente em v´ariosmomentos de S´o. A ´aguaque chora dos c´eusem diversos poemas ´eum lamento n˜aopor si, mas pelos pobres, existindo frequentemente um contraste entre o seu conforto dentro de casa em noites de chuva e o desabrigo dos que vˆem`asua porta pedir esmola durante a borrasca,33 como ´eo caso da «triste Vi´uva»que «em noites de chuva» a sua «casa ia pedir» , no poema «Ant´onio», desigualdade gritada em «Ao canto do lume»34 quando desabafa «(E a chuva cai. . . ) Meu Deus! Que insuport´avel Mundo!» . Consequentemente, tamb´em´ea lua um elemento melancolizante, a que Ant´o- nio Nobre chama «ceifeira» no poema «Ant´onio», numa clara alus˜ao`atradicional alegoria da morte como ceifeira de vidas. Mas esta lua ´etamb´emexpress˜aoda ´aguaenquanto s´ımbolode v´ariasmortes quotidianas, como se percebe quando, no mesmo poema, o autor escreve «O´ Lua encantada no fundo do po¸co, / Moirinha35 da M´agoa!/ O balde descia, quimeras de Mo¸co!/ Trazia s´o´agua.. . » . Estas 28 29 Ant´onioNobre, «Mem´oria», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 8. 30 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 15. Ant´onioNobre, «Meses depois, num cemit´erio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 183.31 32 Ant´onioNobre, «Ao canto do lume», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 95. 33 Ant´onioNobre, «Viagens na minha terra», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 65. 34 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 14. 35 Ant´onioNobre, «Ao canto do lume», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 95. Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 16.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

S´o: um livro de tinta transparente 63

quimeras, ilus˜oesda juventude e desilus˜oesde homem, est˜aometaforizadas na sua impossibilidade de beber a lua, e s˜aocriadas pelo engano impresso nos reflexos das ´aguasque duplicam o mundo e todas as imagens, duplicando igual- mente o sonhador e o poeta que ´eAnt´onioNobre, e envolvendo-o numa imagem n˜aomeramente v˜a,n˜aomeramente um t´opicoromˆantico, mas numa verdadeira ex- periˆenciaon´ırica,simbolista e impressionista. Esta ´ea ´aguado inconsciente, da imagina¸c˜aopo´etica,uma ´aguapesada de tantos reflexos e sombras, exprimindo o cansa¸coe o decadentismo finissecular que atravessam a obra de Nobre. Encontramos as mesmas l´agrimas,embora diferentemente coloridas, no poen- te sobre as ´aguas. Recordemos que, segundo Bachelard, para «a imagina¸c˜ao material, todo o l´ıquido´euma ´agua.[. . . ] tudo o que escoa participa da natureza da ´agua.A cor pouco importa, ela s´od´aum adjetivo; n˜aodesigna mais do que uma36 variedade. A imagina¸c˜aomaterial vai imediatamente `aqualidade37 substan- cial» . Nesse sentido, tamb´emo «sol chora sobre as ´aguas» em S´o. A imagem impressionista e decadentista do sol dissolvendo-se nas ´aguasao poente ´eda predile¸c˜aode Ant´onioNobre. Em «Lusitˆaniano bairro latino», s˜aoinvocados os «poentes da Barra,38 que fazem desmaios. . . » mimetizando os raios do sol es- correndo para o mar» ; em «Poentes de Fran¸ca»(que o poeta repete de uma forma quase obsessiva n˜aoamar, revelando saudade da p´atriamas, simultanea- mente, grande interesse pela est´eticafrancesa sua contemporˆanea,constituindo este poema toda uma pintura impressionista), ´ecriado um pˆordo sol ´el´ıquido, «verde-mar», «de azeite», feito de um «Sol poente de vinho39 velho» que muge «crep´usculosde leite / e roxos e cardeais e amarelos e azuis» . A estes sinest´esicospoentes de Fran¸ca,Nobre pede uma coisa — bebˆe-los — quando,40 tendo-os por vocativo, lhes roga para lhe encherem o «copo de S. Graal» , num mon´ologoem que a sua sede n˜ao´esaciada. Este santo graal ´e sol, lua, azeite, verde-mar, vinho velho, leite, ´agua.Transfigurando a realidade do seu ex´ılioparisiense em ´agua(depois de, numa corrup¸c˜aodo milagre da B´ıblia, ter transformado a ´aguaem vinho, sol, azeite e leite), estes poentes constituem, como dir´ano poema «Da influˆenciada lua», em que o sol vai morrendo na ´agua,as «Tardes de sonho em que a poesia escorre / E os bardos, a cismar, 36 Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti,37 1993, p. 121. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti,38 1993, p. 67. 39 Ant´onioNobre, «Lusitˆaniano bairro latino», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 25. 40 Ant´onioNobre, «Poentes de Fran¸ca», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 88. Ant´onioNobre, «Poentes de Fran¸ca», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 88.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

64 Joana Lima

41 42 molham a pena!» que fazem dos seus «grandes olhos [. . . ] dois bˆebedos» . Em «Febre vermelha», a sede ´efeita de «Rosas de vinho!» a cujo seio pede que o seu43 l´abiose «atole» at´e«cair, bˆebedo, para o lado,» bebendo «at´eao ´ultimo gole!» , numa alus˜ao`amorte pela ´agua,por um afogamento interior. No mesmo poema, pede o alagamento de todas as montanhas, um afogamento do mundo44 pelas ´aguasdo oceano e dos rios que levam «na corrente Of´eliasde45 luar. . . » , revelando um desejo de apagar «uma sede estonteadora e cruel!» , saciada pela transfigura¸c˜aopo´eticade v´ariascores e substˆancias,ao pedir ao pr´oprio poema que o tem cor de leite se transforme, num processo46 alqu´ımicoinvertido, em rubro: «Que seja sangue o leite e rubins as opalas!» . A ´agua,pelo del´ırio impressionista, ´etamb´ema tinta transparente dos poetas, ´ea bebedeira visual de que Baudelaire fala quando nos pede para que nos embebedemos: de vinho, de poesia ou de virtude. Eu diria: de ´agua,pois tudo o que ´eflui ´e,primordial e substancialmente, ´agua. Esta sede de Ant´onioNobre, este desejo de se afogar t˜aoprofundamente na ´aguae de se embebedar t˜aocompletamente com ela, pode ser compreendido sob um prisma psicanal´ıtico, segundo o qual toda a ´agua´eum leite e toda a bebida feliz um leite materno. Para Carl Jung, a ´agua´eum s´ımbolomaternal. A partida do morto pelas ´aguasrecriada em Of´elian˜ao´emeramente uma imagem liter´aria, mas um rito na religi˜aocelta, no zoroastrismo e no budismo, por exemplo.47 Nos funerais destas religi˜oes,«o morto ´edevolvido `am˜aepara ser re-parido» j´a que «o desejo do Homem ´eque as ´aguasda morte se transformem nas ´aguasda vida, que48 a morte e o seu frio abra¸cosejam o rega¸comaterno, exatamente como49 o mar» . Assim, a morte nas ´aguassurge como «a mais maternal das mortes» . Segundo Bachelard, «morrer na ´aguaou ser entregue `a´aguadepois da morte ´euma forma de concretizar um regresso a um estado primordial, `ainfˆanciafeliz50 em que n˜aoera ´orf˜ao, tinha m˜aee era amamentado pela sua ama» . Este regresso `ainfˆancia´econtinuamente tentado em S´o, na busca pela m˜aeou pela ama nas ´aguas,que, s˜ao, afinal, maternais. Se, no in´ıciodo poema «Ant´onio», as 41 42 Ant´onioNobre, «Da influˆenciada lua», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 25. 43 Ant´onioNobre, «Poentes de Fran¸ca», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 88. 44 Ant´onioNobre, «Febre vermelha», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 86. 45 Ant´onioNobre, «Febre vermelha», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 86. 46 Ant´onioNobre, «Febre vermelha», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 86. 47 Ant´onioNobre, «Febre vermelha», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 86. 48 Carl Jung, apud Gaston Bachelard, op. cit., p. 75. 49 Carl Jung, apud Gaston Bachelard, op. cit., p. 75. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti,50 1993, p. 75. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti, 1993, p. 75.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

S´o: um livro de tinta transparente 65

´aguasprimaveris51 e frescas expressivas de alegria s˜aoidentificadas como «amas a cantar. . . » , tentando-se um retorno `ainfˆanciaatrav´esda invoca¸c˜aodas mesmas (´aguase ama), uma invoca¸c˜aoque Nobre passar´aa considerar v˜amais adiante ao afirmar que «A Morte, agora, ´ea minha Ama / Que bem que sabe acalentar! // A` noite, quando estou52 na cama: / ‘Nana, nana, que a tua Ama / Vem j´a,n˜ao tarda! Foi cavar. . . » , identificando a sua nova ama como a morte, donde se infere que esta ´edescanso e consolo como o leite materno, que morrer ou ser atirado morto `a´agua´eum caminho para ser re-parido, para se agregar ao uno primordial. Este ´ea ´aguae ´eo leite materno. E´ o retorno `a«Torre de leite», ao tempo em que, como Nobre refere em «Lusitˆaniano bairro latino», as «Oliveiras [. . . ] davam azeite [. . . ] / E loiras vacas de maternas ancas» lhe «davam o leite de manh˜a»; em que a sua ama «Carlota,53 `anoite, ia ver se (ele) dormia / E vinha, de manh˜a, trazer-(lhe) o leite» . Um tempo em que as oliveiras ainda n˜aotinham secado, as vacas n˜aotinham morrido, uma infˆanciafeliz, uma idade de ouro, contrastando com a sua vida adulta, um tempo de felicidade perdida, «sem um ´unicodeleite» (sendo este jogo de palavras54 entre leite e deleite uma pista para a importˆancia simb´olicadesta substˆancia ), um tempo que poder´aesperan¸cosamenteterminar55 quando o sujeito po´eticobaixar «. . . em breve, `a Agua´ fria» . A morte pela ´aguamaiusculizada ´ea solu¸c˜aoencontrada para um presente de desamparo e desespero. Esta ´e,como explica no poema «Meses depois, num cemit´erio», a sua ama: «56O´ velha Morte, minha outra ama! / Para eu dormir, vem dar-me de mamar. . . » . Este ato de57 amamenta¸c˜aoacontece bebendo-se o luar, j´aque a lua ´e«formosa leiteirinha» ; afogando-se nas ´aguasque embalam como uma ama ou uma m˜aedando ao seu filho o leite, o primeiro dos calmantes, simbolizado, na poesia de Nobre, nos reflexos da lua sobre58 a ´agual´acteaonde flutua Of´elia. O luar ´e«um fluido que penetra o sonhador» e o poeta, que impregna de leite

51 52 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 11. 53 Ant´onioNobre, «Ant´onio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 17. Ant´onioNobre, «Lusitˆaniano bairro latino», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 20-21.54 «Nunca eu mamasse o leite aureolado / que me fez homem, m´agicabebida!» (Ant´onio Nobre,55 soneto «10», op. cit., p. 132). Ant´onioNobre, «Lusitˆaniano bairro latino», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 20-21.56 Ant´onioNobre, «Meses depois, num cemit´erio», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 183.57 58 Ant´onioNobre, «Ca(ro)da(ta)ver(mibus)», S´o, Porto: Porto Editora, 2015, p. 158. Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti, 1993, p. 126.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

66 Joana Lima

e serenidade as ´aguascontempladas, opalizadas pelo tom lunar do vestido de Of´eliae pelo esp´ıritolunar de Ant´onioNobre, «o anjo, o Diabo, o lua». S´o ´eum livro escrito a tinta transparente, em cujos versos lemos a transluci- dez do luar e o turvimento do sol sobre as ´aguas. E´ o desenho de uma po´eticada ´aguae do mais profundo inconsciente humano, muito al´emdo mar portuguˆese do pitoresco regional. E´ o saciar de uma sede pela viagem jamais feita, que nos rouba a mat´eriada terra. E´ uma viagem pelas ´aguasque59 oferecem «um t´umulo quotidiano a tudo o que, diariamente, morre em n´os» .

59 Gaston Bachelard, L’eau et les rˆeves,essai sur l’imagination de la mati`ere, Paris: Jos´eCorti, 1993, p. 58.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e os matizes da decadˆencia

1 Ana Margarida Chora

A poesia de Camilo Pessanha ´ereconhecida sobretudo pela representa¸c˜ao de um Simbolismo peculiarmente ligado `asonoridade l´ırica,aproximando-se da est´eticasimbolista francesa. Legitima as imagens r´ıtmicase as met´aforas da musicalidade que se filiam quer no vocalismo de Rimbaud, quer na demarca¸c˜aode um ˆambitode linguagem pr´oprioda poesia de Verlaine (diferencia-se, por assim dizer, do campo da «literatura»), quer ainda na intr´ınsecarela¸c˜aoentre sons e formas (anunciando a postura contemplativa do poeta face `aBeleza) segundo Baudelaire, confirmando o conceito de «arte pela arte» defendido por Mallarm´e. Nesta medida, a poesia de Camilo Pessanha encontra uma l´ogicaespec´ıficaque passa de um n´ıvelde sonoridades simb´olicas(referente `acria¸c˜aode imagens sonoras atrav´esdo ritmo e quest˜oesdo ˆambitoestil´ıstico, correspondente a um Simbolismo preliminar) a outro de figura¸c˜oessonoras (que se relaciona com a cria¸c˜aometaf´oricados sons), para progressivamente se instalar na imagem, primeiro num plano sensitivo (momento correspondente `asatura¸c˜aodas formas metaf´oricas,atrav´esde imagens que as esvaziam de sentido), e posteriormente transitar do ritmo `aimagem (n´ıvelligado ao modo mais acabado do ritmo e do esgotamento da forma, cujo fim ´ea procura da Beleza). Apesar da sonoridade difusa e modulada, a poesia de Camilo Pessanha pro- cura fixar-se semˆanticae estilisticamente numa imag´eticadecadentista, suge- rida atrav´esda explora¸c˜aode espectros crom´aticosequ´ıvocos,t´ıpicosda Belle 1 IELT-FCSH/UNL.

i i

i i i i i i

68 Ana Margarida Chora

Epoque´ , os quais reflectem as fragilidades do sujeito po´etico. Os matizes s˜ao apreendidos em fun¸c˜aodos sentimentos ligados `avida, `assensa¸c˜oesde es- tagna¸c˜aoe `aimobilidade, em conformidade com o imagin´ariovisual da ´epoca,j´a que se trata de um per´ıodoobcecado, na arte e na t´ecnica,pela preserva¸c˜aodas imagens. Nesta ´epoca,a fotografia evolu´ıra do daguerre´otipopara o papel albumi- nado, para os usos comerciais, para as cartes de visite e para uma divulga¸c˜ao sem precedentes de imagens atrav´esdas cartes postales. Os pr´opriosfot´ografos tornaram-se personalidades art´ısticasconhecidas. Alguns fixaram-se no Oriente do Imp´erioOtomano (como Pascal Sebah), outros trabalharam imagens do Ex- tremo Oriente (designadamente Macau) em Fran¸ca,como Jean-Marcel Delboy, em Bord´eus,Dando-Dubois, em Blaye, Henry Guillier, todos eles editores de postais. Os tons s´epiae cinzentos sofreram um for¸cadoacrescento de realismo com a coloriza¸c˜aomanual (preferencialmente em tons pastel), mas as solu¸c˜oesaquosas dos colorantes, os pigmentos transparentes e os efeitos de satura¸c˜aonem sempre homog´eneoscolocaram a ambi¸c˜aoprogressista da imagem num plano contem- plativo, como se de uma «espera» se tratasse, a qual antecedeu a chegada das imagens cin´eticas. Este ´eum panorama do Decadentismo que entendemos segundo2 a perspec- tiva de Gilbert Durand, no artigo Les Myth`emesdu D´ecadentisme , que o situa entre as fronteiras da Madame Bovary e os Ensaios das Puls˜oesda Morte de Freud, digamos que entre cerca de3 1856-57 e 1918-20, n˜aoo cingindo `aspu- blica¸c˜oesdo jornal Le D´ecadent , ou a4 folhetos como L’Ecole´ D´ecadente, de 1887, ambos dirigidos por Anatole Baju . Este definiu o Decadentismo como uma esp´eciede «progressismo desiludido», distinguindo-o do Simbolismo:

Le D´ecadentest un homme de progr`es[. . . ] il a pour id´ealle Beau dans le Bien et cherche `aconformer ses actes avec ses th´eories. Artiste dans la plus forte acception du terme, il exprime sa pens´ee en phrases irr´eductibleset ne voit dans l’art que la science du nombre, le secret de la grande harmonie. [. . . ] Les Symbolistes, en g´en´eral, ont un caract`ereabsolument oppos´e.[. . . ] Symbolisme [. . . ] d´esigneun groupe d’´ecrivainsqui suivent les traces des D´ecadents. Mais les Symbolistes n’ont rien apport´ede neuf, ils se servent des 2 Gilbert Durand, «Les Myth`emesdu D´ecadentisme», D´ecadenceet Apocalypse, S´eminairesde3 l’ann´ee1985-86, Universit´ede Bourgogne. 4 Le D´ecadentLitt´eraire & Artistique, jornal parisiense publicado entre 1886 e 1889. Anatole Baju (1861-1903), jornalista e escritor francˆes.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e os matizes da decadˆencia 69

id´eesde leurs5 devanciers pour les tronquer ce sont des pseudo- -d´ecadents . Esta era uma perspectiva est´eticainovadora que, no entanto, n˜aoera nova, pois relacionava-se com uma postura contemplativa perante o mundo que par- tia da imagina¸c˜ao. Por´em,esta manifestava-se designadamente em espectros crom´aticos,nesta altura fortemente influenciados n˜aos´opela revolu¸c˜aopict´orica dos impressionistas6 como, antes disso, pelas teorias qu´ımicasde Eug`eneChe- vreul , respectivamente de 1839, Loi du contraste simultan´edes couleurs, e 1846, Th´eoriedes effets optiques que pr´esententles ´etoffes de soie, sobre o c´ırculo crom´aticoe as cores prim´arias(vermelho, azul e amarelo) e as secund´arias(verde, laranja e violeta) de cuja justaposi¸c˜aoresulta a vibra¸c˜aoda atmosfera. Essa vis˜ao«vibrante» e «oscilante», t˜aopresente em Camilo Pessanha, co- loca a poesia no meio de uma «orgie de chaos syllabiques invraisemblables, (. . . ) broyant des couleurs et des fantasmagories7 incoh´erentes,et inaugurant un art ´etrange», como definiu o cr´ıticoJ. B. Rolland . A poesia situa-se num plano complexo que privilegia o Belo, segundo o texto de Jean Mor´easde 11 de Agosto de 1885, em resposta a Paul Bourde (Le Temps, 6 de Agosto de 1885): Les pr´etendusd´ecadentscherchent avant tout dans leur art le pur Concept et l’´eternelSymbole, et ils ont la hardiesse de croire avec Edgar Poe «. . . que le Beau est le seul domaine l´egitimede la po´esie (. . . ). Les po`etesd´ecadents— la critique8 (. . . ) pourrait les appeler plus justement des symbolistes (. . . ) . Por´em,a procura da Beleza situa-se, num primeiro n´ıvel,naquilo a que os pr´opriosdecadentistas chamaram «audi¸c˜aocolorida» (se bem que tivesse sido defendida como pr´opriados alienistas, pois chamou a aten¸c˜aode v´ariosm´edicos ao longo do s´eculoXIX). A poesia, tal como qualquer texto escrito, n˜aosup˜oea existˆenciade ele- mentos supra-segmentais (ritmo, entoa¸c˜ao, pros´odia),a n˜aoser deliberadamente 5 Anatole Baju, L’Anarchie Litt´eraire. Les diff´erentes´ecoles:les d´ecadents,les sym- bolistes, les romans, les instrumentistes, les magiques, les magnifiques, les anarchistes, les6 socialistes, etc., Paris: L´eonVanier, 1892, p. 10-13. E. Chevreul, De la loi du contraste simultan´edes couleurs et de l’assortiment des objets color´es,consid´er´esd’apr`escette loi dans ses rapports avec la peinture, les tapis- series. . . / par M. E. Chevreul; avec une introd. de M. H. Chevreul fils, Paris: Gauthier- -Villars7 et fils, 1889. Revue Litt´eraire du Maine. Organe de l’Acad´emiedu Maine, 105, 1 Set. 1890, p. 181.8 Jean Mor´eas, Les Premi`eresArmes du Symbolisme, Paris: L´eonVanier, 1889, p. 29-30.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

70 Ana Margarida Chora

(e nisso diverge da narrativa). O signo ´enaturalmente imotivado. Mas pode motivar-se atrav´esde figuras de som (como a alitera¸c˜ao)e pontua¸c˜aoque ope- ram numa esp´eciede «colora¸c˜ao»para expressar o significado das palavras. Em Camilo Pessanha, s˜aoas alitera¸c˜oescoloridas das sibilantes de «S´o,incessante, um som» (de «Ao longe os barcos de flores» e das fricativas e l´ıquidas«A flauta fl´ebil»que traduzem o isolamento e o ex´ılio, tal como as oclusivas em «Quem poluiu, quem rasgou os meus len¸c´oisde linho» (do poema com o mesmo incipit) que reflectem a indigna¸c˜aoe a desilus˜ao. Camilo Pessanha ´eprecursor neste aspecto: h´aum timbre que n˜ao´einstrumental, de orquestra¸c˜ao, mas vocal. Se Rimbaud, no emblem´aticosoneto sobre as vogais, tinha feito «todo o mal» causando confus˜ao`apoesia, de acordo com Antoine Sabatier (que criticou o m´edicoEmile Laurent no seu livro La po´esied´ecadentedevant la science psychiatrique, o qual alegava que os «decadentistas» eram desequilibrados do ponto de vista psiqui´atrico)— «A noir, K blanc, I rouge, V, vert, o bleu» —, abria `apoesia a liga¸c˜aon˜aosomente `am´usicacomo `asartes performativas. Um cr´ıtico(que se dava a conhecer como Ko-Ta-Ki) da Gazette Artistique de Nantes afirma que

les d´ecadentsattribuaient `achaque mot une couleur particuli`ere.Eh bien! il paraˆıtqu’il n’allait pas assez loin: non seulement les mots ont des analogies9 avec les couleurs, mais les couleurs en ont avec la musique .

Nessa medida, se um determinado uso espec´ıficode consoantes e vogais em Camilo Pessanha revela a presen¸cade cores, de acordo com a teoria simbolista- -decadentista, estas, por sua vez, manifestam significados intr´ınsecos ao seu espectro. A chamada «audi¸c˜aocolorida» come¸cano canto, na voz e nas artes c´enicas. Nesta ´epoca,na m´usicafalava-se de «tons» que n˜aoeram mais do que «cores» da voz cantada, correspondentes ao timbre vocal que permitia ao ouvinte reco- nhecer o tipo de voz. Assim, a voz pode ser «mais escura», «mais clara», «azul», «verde». . . O panorama musical preocupava-se com as cores, ao ponto de clas- sificar as pr´oprias´operas. Diz o mesmo cr´ıticono seu artigo sobre a «audi¸c˜ao colorida» da Gazette Artistique de Nantes:

[. . . ] D´ecid´ementle Cid est bleu. [. . . ] Chaque op´era a sa cou- leur propre, continua mon confr`ere; ainsi l’Africaine est rouge- -orange. [. . . ] Lucie, par exemple, est gris ´ecossais; la Favorite, 9 Gazette Artistique de Nantes: journal musical et litt´eraire, paraissant tous les Jeudis, 50, 23-Dez.-1886, p. 6.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e os matizes da decadˆencia 71

blanc d’Espagne; Lackm´e, jaune indien; les Diamants de la Cou- ronne, toutes les couleurs de l’arc-en-ciel; etc., etc. . . [. . . ] Ainsi, j’en connais pour qui les violons sont bleus, ainsi que les t´enors;les cuivres, rouges, comme les barytons; les orgues, noires, comme les basses; les harpes,10 blanches, comme les soprani; les flˆutes,jaunes, comme les contralti . Tout bien consid´er´e,le d´ecadentismepouss´e`ace degr´edevient du gˆatisme.Pour moi, le chanteur d´ecadentest le fort t´enor, qui donne11 le si b´emolde t`ete,ou le t´enorl´egerqui le donne avec son nez .

Por´em,a explora¸c˜aosonora conduz ao desaparecimento do sentido lingu´ıstico por explora¸c˜aodo ornamento vocal, reduzindo o elemento verbal a mero som. Na ´opera faz-se com a «coloratura». E quando mais coloridas mais as palavras mu- sicadas tendem a perder a sua for¸casemˆantica.A «colora¸c˜ao»move-se para um n´ıvelvago e inef´avelde que a Poesia de Camilo Pessanha ´eo melhor exem- plo. As «An´emonas,hidrˆangeas,/ Silindras» de «No claustro de celas», bem como os «Soid˜oeeslacustres. . . / — Lemes e mastros. . . / E os alabastros / Dos bala´ustres!»(do «Violoncelo») perdem significa¸c˜aoem prol de uma colora¸c˜ao musical, vocal e tecnicamente articulat´oria,que transp˜oepara o Belo o que n˜ao ´edecifr´avel. A cor decadentista prende-se com um segundo plano, ligado ao imagin´ario da sua referencia¸c˜ao, insepar´avelda linguagem que o expressa. Em primeiro lugar, a cor pode ser metaf´orica. Em Camilo Pessanha, a «D´alia», com o seu «mole sorriso», de «Foi um dia de in´uteisagonias» n˜aopode ser de uma cor viva, pois o dia ´e«p´alido».Da mesma forma, o «v´euescuro» de «Caminho I» n˜ao indica a cor do v´eu,mas o sentimento do cora¸c˜ao, coberto com essa escurid˜ao. As transposi¸c˜oesde sentido, deslocando12 o significado para o que est´ano seu lugar, criam aquilo a que Jacques Lacan designou por «mecanismo do desejo», pr´oprio da meton´ımia. A cor metaf´orica,por seu turno, n˜aocria uma ordem simb´olica em que a liga¸c˜aoseja entre a cor concreta e a generalidade ou conceito de cor, a mat´eriada composi¸c˜aocrom´aticae a representa¸c˜aoda cor. Os efeitos do significado s˜aogerados a partir das muta¸c˜oesdo significante. Nesta medida, 10 Digamos que h´auma correspondˆenciaentre os instrumentos referidos, as cores e a voz. Assim sendo, os instrumentos de sopro, cujo elemento ´eo ar, corresponderiam ao azul; as cordas ao elemento ´aguae ao verde; os metais ao vermelho e ao fogo; a percuss˜ao ao amarelo e `aterra. Da mesma forma, a pronuncia¸c˜aode vogais e consoantes, segundo esta11 l´ogica,tamb´emremeteria para tons crom´aticos,dos mais escuros aos mais claros. Loc. cit. Segundo a ´ultimaconsidera¸c˜ao, as notas mais agudas, «azuis», dependiam da12 t´ecnicapara as atingir. Jacques Lacan, Ecrits´ , Paris: Seuil, 1966.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

72 Ana Margarida Chora

Camilo Pessanha desloca o sentido da cor para o objecto, criando um efeito meton´ımico. Em segundo lugar, a cor volta a ganhar a carga semˆanticaperdida na «audi- ¸c˜aocolorida» atrav´esdo sistema de referencia¸c˜aocrom´aticode Camilo Pessanha ligado ao imagin´ariocrom´aticodecadentista. E ´eneste ponto que mais se apro- xima daquilo que Gilbert Durand denominou por «cen´ariovago» que tipifica a decadˆencia. As cores, aludidas ou nomeadas, s˜aoinseridas na linguagem que exp˜oea sua realidade, descrevendo tamb´emaquilo que os seus limites possibi-13 litam, segundo os conceitos de linguagem e dos seus limites de Wittgenstein , j´aque as cores nomeadas ganham significado em detrimento da motiva¸c˜aodo signo (presente na «audi¸c˜aocolorida»). O imagin´arioretratado ´eo correspondente ao complexo de Gilbert Durand do farniente, de origem baudelairiana (complexo do dandy ou do dandisme), ali´asfacilmente orientalizado, pois as vis˜oesdo Oriente careciam dessa postura contemplativa e imaginativa do decadentismo, atrav´esde mitemas (ou complexos) que se organizam14 e formam «un mytholog`ene,comme on dit un philosoph`ene d´ecadent» do decadentismo ligados `avis˜ao, que contribuem para o mitologema da Decadˆencia,ou15 «structure figurative». Nessa mesma linha baudelairiana, Ernest Raynaud defende a ideia de que o poeta ´eum «espectador», procurando apenas a Beleza que era suficiente a ela mesma, dispensando quaisquer provas. O poeta ´eum espectador e a totaliza¸c˜aodo significante d´a-seno plano da imagem que, n˜aodeixando de sugerir em vez de conceptualizar as ideias inerentes aos sentimentos do poeta, permanece no plano da «vibra¸c˜ao»crom´atica. As cores vagueiam, indecisas, entre o vago e a desilus˜ao. Vejamos como se comp˜oea paleta desse mitema em Camilo Pessanha, matizada entre a nomea¸c˜ao e o seu intertexto. Partindo da sugest˜aode vida e de infinito, ´e«Tudo verde, verde, a perder de vista.» (em «Depois da luta e depois da conquista»), «o seu cabelo verde» (poema «V´enus»),«folhedos tenros», «colina», «ramos», «silva», «haste», «folhagem», «arvoredo» (poema «Desce em folhedos tenros a colina») e a «Esmeralda viva do Canal» (em «Nesgas agudas do areal») que se transformam em «Em glaucos, frouxos tons adormecidos» (no poema «Desce em folhedos tenros a colina»). O vi¸co´eef´emeroe os seus vislumbres fugitivos, diluindo-se numa ausˆenciade cor, matizada de transparˆenciasmetaf´oricas,da «fria transparˆencialuminosa», da «´aguaplana» (em «Singra o navio. Sob a ´aguaclara»), da «acr´opolede gelos» (poema «Floriram por engano as rosas bravas»), «[. . . ] escutando o correr da 13 Ludwig Wittgenstein, Tratado L´ogico-Filos´ofico. Investiga¸c˜oesFilos´oficas, Lisboa: Funda¸c˜aoCalouste14 Gulbenkian, 1987, p. 199. 15 Loc. cit., p. 14. Durand usa a express˜ao«mitema» em homenagem a Bachelard. Baudelaire et la Religion du Dandysme, Paris: Mercure de France, 1918, p. 45.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e os matizes da decadˆencia 73

´aguana clepsidra» (poema «O´ cores virtuais que jazeis subterrˆaneas»),apenas evocando «A fugitiva hora, [. . . ] / — T˜aorediviva!, nos meus olhos ba¸cos.. . » (em «Quando voltei encontrei os meus passos»), perdendo-se do sujeito po´etico«A tua cor sadia, o teu sorriso terno. . . » (poema «N˜aosei se isto ´eamor. Procuro o teu olhar»), restando apenas «— O espelho in´util,meus olhos pag˜aos!/ Aridez de sucessivos desertos. . . » (em «Imagens que passais pela retina»). A n˜aoconcretiza¸c˜ao´esugerida pelo branco, inef´avele intang´ıvel,quer in- sinuada no «aljˆofar»(de «Desce em folhedos tenros a colina»), nas «silindras» (poema «E eis quanto resta do id´ılioacabado»), na «Alma de silfo, carne de cam´elia.. . » (de «Desce em folhedos tenros a colina»), nos «L´ırios,l´ırios,´aguas do rio, a lua. . . » (de «Fon´ografo»), ou nos «castos len¸c´ois»(em «Quem poluiu, quem rasgou os meus len¸c´oisde linho»), sobre quem «cai nupcial a neve» (poema «Floriram por engano as rosas bravas»). O branco da distˆanciaencontra a sua forma mais acabada em «L´ubrica», em que a mulher, inating´ıvel,lembra uma16 personagem de uma narrativa fe´erica, uma vez que o branco ´ea cor das fadas («Quando a vejo, de tarde, na ala- meda, / Arrastando com ar de antiga fada, / Pela rama da murta despontada, / A saia transparente de alva seda» ou «At´equase esmagar nesses abra¸cos/ A sua carne branca e palpitante; // Como, d’Asia´ nos bosques17 tropicais / Apertam, em spiral auriluzente, / Os m´usculosherc´uleosda serpente» ), ao mesmo tempo que, aparentemente de um modo paradoxal, exerce a sua fun¸c˜aode mitema fatal, segundo Gilbert Durand, confirmando o matiz da Decadˆencia.Por´em,a ilus´oria fada e a mulher fatal situam-se a um mesmo n´ıvelsimb´olico, uma vez que sub- metem o homem `asua vontade, manipulando-o quer atrav´esda sedu¸c˜ao, quer do conhecimento. O branco18 ´eainda mencionado como sin´onimode fim, e, em ´ultimainstˆancia, de morte , em «T˜aobranco o peito! para o expor `aMorte. . . » (de «Esvelta surge! Vem das ´aguas,nua»), «Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!» (poema «Desce em folhedos tenros a colina»), «T˜aobranco o peito!» (em «Esvelta surge! Vem das ´aguas,nua»), «T˜aobranca do luar!» (em «Se andava no jardim»), evidenciando a «Cadaverina: Branca flor do espinheiro» (poema «Cristaliza¸c˜oes 16 Cf. Ana Margarida Chora, «Branco: a cor enigm´aticado Outro Mundo», in Cores: VII Col´oquioda Sec¸c˜aoPortuguesa da Associa¸c˜aoHispˆanicade Literatura Medieval (org. Isabel Barros Dias e Carlos F. Clamote Carreto), Lisboa: Universidade Aberta, 2010, p. 267-274.17 Os versos citados s˜aoos da segunda edi¸c˜aoda Clepsydra, que inclui o poema «L´ubrica»segundo a vers˜aoescrita em 1885, encurtado na primeira edi¸c˜aocom o t´ıtulo «Desejos».18 Cf. Maria Alzira Seixo, «O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha», An´alise, 13, 1989, p. 107-116.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

74 Ana Margarida Chora

salinas»), levando o sujeito po´eticoao isolamento, selado a prata: «E hei-de mercar um fecho de prata. / O meu cora¸c˜ao´eo cofre selado.» (poema «Ao meu cora¸c˜aoum peso de ferro»). Mas o branco reveste-se de outro metal precioso, o ouro, quando o sujeito po´eticoreflecte sobre o intang´ıvelperdido: «Longas teias de luar de lhama de oiro» (em «Depois da luta e depois da conquista») e «[. . . ] Cˆoncavasas velas, / Cuja brancura, r´utilade dia, / O luar dulcifica» (poema «San Gabriel II / Vem conduzir as naus, as caravelas»). O branco dilacerado n˜aos´od´at´ıtuloao poema «Branco e vermelho», como marca a ruptura do sujeito po´eticocom o real («vermelhos de hemoptise / Repre- sados clar˜oes»em «O´ cores virtuais que jazeis subterrˆaneas»)e com o «outro» por excelˆencia(«E os l´abios,branca, do carmim desflora. . . » em «Ao longe os barcos de flores»), ferido pelas «Tatuagens complicadas do meu peito», em que a dor assume um espectro crom´aticoj´avivido: «E o meu bras˜ao.. . Tem de oiro, num quartel / Vermelho, um lis; tem no outro uma donzela, / Em campo azul, de prata o corpo». Este ´e,pois, o azul da estagna¸c˜ao, dos sentimentos e da vida do sujeito po´etico, patente nas «Fulgura¸c˜oesazuis» (de «`ocores virtuais que jazeis sub- terrˆaneas»)e no «P´utridoo ventre, azul e aglutinoso» (do poema «V´enus»),que brevemente conhecera amplitude na «plan´ıcieazul» (de «San Gabriel I»), no «campo azul» (de «Tatuagens complicadas do meu peito») ou nas «Ondas do azul oceano» (de «Roteiro da vida I»). A imobilidade do fim adorna-se de tons malva. Recordemos que esta cor foi a primeira cor produzida artificialmente, pelo qu´ımicobritˆanicoWilliam Perkin, em 1856, nas suas experiˆenciaspara descobrir o medicamento para a mal´aria, tornando-se a cor da moda que, na segunda metade do s´eculoXIX, contribuiu para reinventar o imagin´ariocrom´aticoda ´epoca.Assim, para Camilo Pessanha, o «aljˆofarcor-de-rosa viva!. . . » (em «Desce em folhedos tenros a colina») ´eda cor das «Conchinhas tenuemente cor-de-rosa», das «R´oseasunhinhas» (poema «Singra o navio. Sob a ´aguaclara») e das «hidrˆangeas»(de «E eis quanto resta do id´ılioacabado»), do «efl´uviode violetas» (poema «Fon´ografo») que tingem o mundo da cor da desilus˜aodo sujeito po´etico. A «Putrescina: Flor de lil´as» (em «Cristaliza¸c˜oessalinas») e «o campo das lili´aceas»(em «Choveu! E logo da terra humosa») paralisam os «Meus pobres p´esdorir / J´aroxos dos espinhos» (de «Depois das19 bodas de oiro»). A cor malva ´e n˜ao apenas uma «cor sentimental» , como a definiu Oscar Wilde em O Retrato de 19 Vide o di´alogoentre Harry e Dorian no cap. 8 de The Picture of Dorian Gray: «nunca confies numa mulher que use malva, pois ela tem um passado» — «Never trust a woman who wears mauve, whatever her age may be, or a woman over thirty-five who is fond of pink ribbons. It always means that they have a history.»

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e os matizes da decadˆencia 75

20 Dorian Gray , ligada `asensibilidade on´ıricados decadentistas e `acadˆencia das grada¸c˜oescrom´aticasque se demarcavam do gosto burguˆes(sendo21 que o malva era uma cor burguesa, como notou Huysmans em A` Rebours , a «b´ıblia do Decadentismo»22 («cette bible du d´ecadentismequ’est A Rebours.», segundo Gilbert Durand ) que manifesta a est´eticado mal du si`ecle, sintetizando t´opicos do gosto simbolista. Para Camilo Pessanha o malva (lil´as)´euma cor nefasta do t´erminoda vida a que subtilmente alude. Ou seja, sintetiza o desencanto progressista ao constatar a desilus˜ao. O fim ´e,pois, doloroso e negro, a «Cobrir-me o cora¸c˜aodum v´euescuro!. . . » (poema «Tenho sonhos cru´eis;n’alma doente»), equivalente ao esquecimento, na sua fei¸c˜ao´ultima:«Desce por fim sobre o meu cora¸c˜ao/ O olvido. Irrevoc´avel. Absoluto. / Envolve-o grave como v´eude luto» (poema «Olvido»). A «escurid˜ao tranquila» (em «Ao longe os barcos de flores») do «lago escuro onde termina / Vosso curso» («Imagens que passais pela retina»), onde outrora correu a ´agua passageira da vida, ´eo derradeiro destino. O espectro calicromo de Camilo Pessanha atavia-se da amplitude est´eticada Belle Epoque´ , n˜aofugindo `aspreferˆenciassimbolistas dos tons de ouro, roxos, brancos, azuis e verdes, nos seus matizes gradativos. E ´enesse ponto de varia¸c˜ao ilus´orioque encontra a fragilidade e a ru´ına. Na sua busca da perenidade, Camilo Pessanha n˜aoencontrou mais do que o car´acterfugaz e transit´oriodo real. Tentou, no entanto, encontrar uma Beleza, atrav´esda sua poesia, `asemelhan¸cada que todos os artistas tiveram o objectivo de procurar durante a Belle Epoque´ . Os pintores, os m´usicos,os romancistas e os poetas lan¸caram-se no encal¸coda Beleza al´emda imanˆenciados significan- tes da sua arte e dispersaram-se nessa demanda desenfreada que culminou na dissolu¸c˜aodas diferentes linguagens em que a procuraram e, consequentemente, na decadˆenciae na desilus˜ao fin de si`ecle. Ali´as,as artes da Belle Epoque´ foram esteticamente perme´aveis.A palavra fundiu-se com a m´usicae com a pin- tura de uma forma completamente nova. O fim do s´eculoXIX abriu um cap´ıtulo sem precedentes na Arte. Camilo Pessanha n˜aofoi excep¸c˜ao, pois a sua poesia antecede a dispers˜aoest´eticamodernista, fruto de uma incessante e frustrada busca de uma beleza exterior `amaterialidade do signo. Camilo Pessanha excede 20 A obra The Picture of Dorian Gray de Oscar Wilde (1854-1900), publicada inicial- mente na revista mensal americana Lippincott’s Monthly Magazine, em 1890, saiu em vers˜aorevista21 e ampliada sob a forma de volume em 1891. A` Rebours, de Joris-Karl Huysmans (1848-1907), de 1884: «la v´erit´ed’une th´eorie qu’il d´eclarait d’une exactitude presque math´ematique:`asavoir, qu’une harmonie existe entre la nature sensuelle d’un individu vraiment artiste et la couleur que ses yeux voient d’une22 fa¸conplus sp´ecialeet plus vive», p. 16 (ed. 1920). Loc. cit., p. 14.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

76 Ana Margarida Chora

os sentidos po´eticos,transcendendo o complexo no qual as palavras significam, permitindo ao poeta passar a figura remanescente e inovadora relativamente ao sistema de significa¸c˜ao.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

BIBLIOGRAFIA Ativa Pessanha, Camilo, Clepsidra e Outros Poemas (pref´acioe fixa¸c˜aode texto de Daniel Pires; ilustra¸c˜oesde Rui Campo Matos), s.l.: Livros Horizonte, 2006. Huysmans, Joris-Karl, A` Rebours, Paris: Librairie des Amateurs, 1920. Wilde, Oscar, The Picture of Dorian Gray, London: Simpkin Marshall Hamilton Kent and Co. Ldt., 1891.

Passiva Baju, Anatole, L’Anarchie Litt´eraire. Les diff´erentes´ecoles: les d´ecadents,les symbolistes, les romans, les instrumentistes, les magiques, les magnifiques, les anarchistes, les socialistes, etc., Paris: L´eonVanier, 1892. Chevreul, Eug`ene, De la loi du contraste simultan´edes couleurs et de l’assor- timent des objets color´es,consid´er´esd’apr`escette loi dans ses rapports avec la peinture, les tapisseries. . . / par M. E. Chevreul; avec une introd. de M. H. Chevreul fils, Paris: Gauthier-Villars et fils, 1889. Chora, Ana Margarida, «Branco: a cor enigm´aticado Outro Mundo», in Co- res: VII Col´oquioda Sec¸c˜aoPortuguesa da Associa¸c˜aoHispˆanicade Literatura Medieval (org. Isabel Barros Dias e Carlos F. Clamote Carreto), Lisboa: Uni- versidade Aberta, 2010, p. 267-274. Durand, Gilbert, «Les Myth`emesdu D´ecadentisme», D´ecadenceet Apocalypse, Seminaires de l’ann´ee1985-86, Dijon: Universit´ede Bourgogne, 1986. Gazette Artistique de Nantes: journal musical et litt´eraire, paraissant tous les Jeudis, 50, 23-Dez.-1886. Le Grillon: mensuel, litt´eraire et satirique, 14, 15 Set. 1888. Franchetti, Paulo, O Essencial sobre Camilo Pessanha, Lisboa: Imprensa Na- cional – Casa da Moeda, 2008. Lacan, Jacques, Ecrits´ , Paris: Seuil, 1966. Mor´eas,Jean, Les Premi`eresArmes du Symbolisme, Paris: L´eonVanier, 1889. Raynaud, Ernest, Baudelaire et la Religion du Dandysme, Paris: Mercure de France, 1918. Revue Litt´eraire du Maine. Organe de l’Acad´emiedu Maine, 105, 1 Set. 1890.

i i

i i i i i i

78 Ana Margarida Chora

Seixo, Maria Alzira, «O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha», An´alise, 13, 1989, p. 107-116. Spaggiari, Barbara, O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, Lisboa: Insti- tuto de Cultura e L´ınguaPortuguesa, 1982. Wittgenstein, Ludwig, Tratado L´ogico-Filos´ofico. Investiga¸c˜oesFilos´oficas, Lis- boa: Funda¸c˜aoCalouste Gulbenkian, 1987.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e a figura¸c˜ao do esp´ıritosubjetivo

1 Dion´ısioVila Maior

1. Num texto de provavelmente 1914, intitulado (ainda que com algumas reservas por parte de Bernardo Soares) O Sensacionista, este outro eu pessoa- no — em termos bastante elucidativos, pela nota de pessimismo que ostenta — refere-se precisamente ao «crep´usculodas disciplinas» em que ent˜aoa Humani- dade vive, sublinhando pouco depois que pertence «a uma gera¸c˜ao— ou antes a uma parte de gera¸c˜ao— que perdeu todo o respeito pelo passado e toda a cren¸caou esperan¸cano futuro» (Pessoa, F., 1986b: 927 e 928). Ainda noutros fragmentos n˜aodatados do mesmo Livro, testemunha a sua dece¸c˜aopelo facto de, com as «cousas modernas», os homens terem passado, pelos seus prop´ositos materialistas, ego´ıstas,vaidosos, f´uteis,`acategoria de «criaturas vestidas, de corpo e alma», de «animais vestidos», sublinhando a «doen¸caterr´ıvel»e o «de- sastre de tudo» que caracterizam impressivamente a sua ´epoca(id.: 890 e 892). Essa ´epoca,note-se — marcada pela suspens˜aoe esvaziamento dos «grandes prop´ositos»(id.: 906), di-lo noutro fragmento sem data –, aparece aos seus olhos de igual modo desqualificada pelo «horror `aac¸c˜ao»e pela falˆenciadas «cren¸cas» (id.: 893 e 927) — o que, subsequentemente, e ainda segundo Soares, condu- zir´as´oalguns esp´ıritos(onde ele naturalmente se inclui), por um lado, a um paulatino interesse pela esfera da subjetividade, e, por outro, a comportamentos de emblem´aticaabdica¸c˜aoe ostensivo alheamento e indiferen¸caem rela¸c˜ao`a 1 Universidade Aberta; Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Lite- raturas e Culturas Lus´ofonase Europeias (CLEPUL).

i i

i i i i i i

80 Dion´ısioVila Maior

2 realidade (id.: 928) . E, como se sabe, estes sentimentos encontram-se profu- samente representados em m´ultiplosfragmentos do Livro do Desassossego, de forma exemplar, ali´as,em dois textos: um, n˜aodatado, intitulado Est´eticada Indiferen¸ca (id.: 966-968); outro, de provavelmente 1912 ou 1913, intitulado Na floresta do alheamento (Pessoa, F., 1986b: 923).

2. Algum tempo depois, em 1916, na revista Centauro, Lu´ısde Montalvor (que, no ano anterior, na introdu¸c˜aode Orpheu 1, num texto que pouco dizia das inten¸c˜oesdos colaboradores da revista, qualificava-a como um «ex´ıliode temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento») considera, na sua (tardia) «Tentativa de um Ensaio sobre a Decadˆencia», a Decadˆencia como um conceito est´etico, percebendo-a como um sentimento exclusivo dos raros, conscientes da dolorosa realidade quotidiana e capazes (s´oeles) de aceder a um «mundo outro», de Beleza. Escreve no in´ıciodesse texto:

Somos os descendentes do s´eculoda Decadˆencia.Vamos esculpindo a nossa arte na nossa indiferen¸ca.A vida n˜aovale pelo que ´emas pelo que d´oi.. . S´oa Beleza nos interessa. O resto passa por n´os como n´ospassamos sobre tudo. Somos os descendentes de uma estirpe que, apesar de humildemente representar traz consigo e orgulhosamente a marca com que Deus aben¸coaos predestinados e os divinos. . . (Centauro, 1982: 7)

pouco depois, antes ainda de se referir ao Simbolismo como «a flor da arte deca- dente» do s´eculoXIX (id.: 10), acrescenta: «A decadˆencia´epara n´oso s´ımbolo com que vestimos o estado de alma coletivo de exilados da Beleza!»(id.: 8). Ora, ´epara as ideias de «ex´ılio», «dor», «beleza» que reenviam mediatamente estas palavras de teor program´aticode Montalvor. E aceitando-se, por estas palavras, a no¸c˜aodo artista decadente (como Baudelaire, Verlaine, Eug´eniode Castro, Gomes Leal, diversamente o consideraram) como um indiv´ıduocom um sistema nervoso hipertrofiado, incapaz de assumir o passado, posicionando-se 2 Para um melhor esclarecimento sobre a presen¸cadeste ponto em Bernardo Soares, bem como sobre outras dominantes tem´aticasrelacionadas com a crise geral do pensa- mento europeu do final do s´eculoXIX e in´ıciodo s´eculoXX (o desencanto, a descri¸c˜aoda banalidade e da monotonia do real quotidiano, a fuga a esse real, a «´eticada indiferen¸ca» de um sujeito «mordido pelo t´edio», a vivˆenciado sonho, a rela¸c˜aocom a est´eticadeca- dentista, a rela¸c˜aocom a alteridade, a «ausˆenciaradical» do eu, a «consciˆenciado nada do eu e do mundo», o «esvaziamento do ser», a ang´ustia,a n´ausea),leia-se: Galhoz, M. A., 1979: 480-482; 1985; Lind, G. R., 1983; Louren¸co, E., 1985; Sena, J., 1984: passim; Crespo, A., 1985; Aranguen, M. I., 1987; Coelho, J. do P., 1987: 67-69; Elia, S., 1991.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e a figura¸c˜aodo esp´ıritosubjetivo 81

contra uma ´epocaque lhe parece absurda e corrupta, expressando recorrente t´edio, revificando conce¸c˜oespessimistas da existˆenciaef´emera, buscando (numa ˆansiado absoluto e de uma interioridade absoluta) a essˆenciametaf´ısica,bus- cando sensa¸c˜oesnovas, mais intensas (fru´ıdasno extravagante, no m´orbido, nos requintes da forma), procurando a evas˜aopara o mundo da imagina¸c˜aosensual, aceitando-se, diz´ıamos, esta no¸c˜ao, mais facilmente compreenderemos aquele comportamento e aquele viver art´ıstico do poeta de registo decadente como espa¸code ativa¸c˜aode uma problem´aticaque se resume, em primeira instˆancia,na interse¸c˜aodial´ogica (porque alteron´ımica)do sujeito po´eticoem conflito consigo mesmo e com a realidade que o rodeia, bem como, em ´ultimograu, na necessidade de «saltar na bruma em busca da beleza», que S´a-Carneiro, no poema Partida, encararia como dever do artista, j´aque o que, segundo ele, importa para o ar- tista ´e«Correr no azul `abusca da beleza», «subir al´emdos c´eus», «Viajar outros sentidos, outras vidas» (S´a-Carneiro, M., s/d: 72). E com que frequˆenciao poeta de inscri¸c˜aodecadente se apercebe, com lucidez, das ilus˜oesque se encontram nas promessas da vida! «Castelos doidos! T˜aocedo ca´ıstes!.. . » (Pessanha, C., 2014: 65) (a lembrar os «Castelos desmantelados, / Le˜oesalados sem juba. . . », no poema hom´onimoda antologia Dispers˜ao [S´a-Carneiro, M., s/d: 65]), reco- nhece Camilo Pessanha no poema «Floriram por engano as rosas bravas», cujo incipit, por si s´o,revela desde logo o vigor est´etico-liter´ariocom que o sujeito po´eticode Clepsidra representa a dor,eafrustra¸c˜ao,eofracasso! E os estigmas da dor, da frustra¸c˜ao e do fracasso s˜ao, de facto, algumas das marcas mais im- portantes na poesia de Pessanha, no que toca `aconsciencializa¸c˜aodo fracasso e na confirma¸c˜aode um sujeito cujas ˆansiasacabam, como sugere frequentemente, por n˜aose concretizar de modo pleno (no¸c˜aoesta que t˜aobem lembra o poeta do Quase). «Depois da luta e depois da conquista / Fiquei s´o![. . . ] // Porque vos fostes, minhas caravelas, / Carregadas de todo o meu tesoiro?», pergunta Pessa- nha no poema «Depois da luta e depois da conquista» (Pessanha, C., 2014: 62), real¸cando, assim, a inutilidade do pr´oprioato de conquista e do pr´oprioobjeto conquistado, e equacionando-se, desse modo, a perda de valor do pr´oprioato de desejo em conquistar algo, com formula¸c˜oesque, enquadrando um desespero e uma profunda negatividade, traduzem um cen´ariode ang´ustia,melancolia e desilus˜ao.

3. Como quer que seja, o que para j´aimporta ´eevidenciar, relativamente a Camilo Pessanha, a condi¸c˜aoparticular de um sujeito po´eticoque se repre- senta intersecionado diante do mundo do real, condi¸c˜aoessa tanto mais rele- vante, quanto maior for a persistˆenciadesse sujeito na elabora¸c˜aode dominantes tem´aticasque se v˜aoconstituindo, a partir do momento em que ganha densidade

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

82 Dion´ısioVila Maior

est´eticaa rela¸c˜aode conflito com a realidade e o conv´ıviocom o desencanto a que a vida e as suas vit´oriasef´emeras, afinal, conduzem:

Foi um dia de in´uteisagonias, Dia de sol, inundado de sol. Fulgiam nuas as espadas frias, Dia de sol, inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias: D´aliaa esfolhar-se, o seu mole sorriso. (id.. 68)

Libertando o sujeito po´eticoo significado das palavras («in´uteisagonias», «mole sorriso»), e no quadro de uma problem´aticacentrada numa sensa¸c˜aode negatividade, desencanto e fracasso, ganha express˜aoa no¸c˜aode ang´ustiado sujeito po´etico, nomeadamente se nessa no¸c˜aovalorizarmos particularidades que se articulem com um sentimento de desassossego, patente nas «falsas alegrias», afinal, amb´ıguas,fugazes, ilus´orias;e a claridade de um dia «inundado de sol» — um pouco reverso, at´e,`aimag´eticasimbolista (que normalmente privilegia o outono e os poentes) – serve para aquilo mesmo: acentuar o desencanto do sujeito po´etico. Rela¸c˜aodolorosa entre o sujeito po´eticoe o real (como se, afinal, como disse Montalvor, a vida «n˜aovalesse pelo que ´e,mas pelo que d´oi»)?Rela¸c˜aoangustiada com a falˆenciado ideal amoroso? Rela¸c˜aofalida no processo em atingir a beleza (real, ou imaginada)? Rela¸c˜aodesassossegada com a multid˜ao(alinhando-se assim com aquela «silva esot´erica»que um Eug´enio de Castro abra¸cara no seu «Pr´ologo-Pref´acio»do seu Oaristos)? «Voltavam ranchos das romarias», mas o sujeito po´etico, na ambivalˆenciado dizer e do n˜ao dizer, do mostrar e do sugerir, encontra-se afastado do evento externo quotidiano, demonstrando que o que importa ´eo seu pr´opriointerior:

[. . . ] o meu ´osculoardente, alucinado, Esfriou sobre o m´armorecorreto Desse entreaberto l´abiogelado. . . ,

escreve no soneto Est´atua (Pessanha, C., 2014: 58), assinalando um sujeito polarizado `avolta da sensa¸c˜aode frustra¸c˜aoe de dor resultante do embate n˜ao esperado do seu ardor com a fria realidade — uma dor que n˜aoest´amuito longe daquela ang´ustiaque comparece no universo de po´eticopessoano (pela voz de um Campos derrotista, de um Soares desassossegado, de um Pessoa amargurado) e, de forma ainda mais pungente, em M´ariode S´a-Carneiro. Atente- -se, por exemplo, na «ang´ustiasem leme» perante a vida (Pessoa, F., 1990: 194), que Campos sublinha em Lisbon Revisited (1926) — o mesmo Campos que poeticamente representa tamb´emuma ang´ustiaque decorre da falˆenciados seus

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e a figura¸c˜aodo esp´ıritosubjetivo 83

3 ideais (em Bicarbonato de Soda) –, aquela outra que lhe aparece tamb´emcom a perda da sua4 infˆanciae `aqual o sujeito procura fugir pela loucura (em Esta velha ang´ustia) e ainda a que ´eprovocada pela5 sua autoconsciˆencia(em Ah, perante esta ´unicarealidade, que ´eo mist´erio) . Tamb´emneste contexto se torna evidente a forma como, em Bernardo Soares, a ang´ustiaaparece ora como um sentimento que6 decorre da tentativa de o sujeito compreender o sentido7 da vida e do universo8, ora sob a forma de desassossego, propriamente dito , ora associada ao t´edio ; ou, no universo po´eticodo eu Pessoa, a dor representada em Estado de alma, com aquele esclarecedor «Nada: inerte e dolorida, / A minha dor» (Pessoa, F., 1986a: 159) e em Hora Absurda, no modo como o eu po´eticofigura a sua existˆencia,quer identificando-a amarguradamente com uma rocha («Todas as minhas horas s˜aofeitas de jaspe negro»), quer representando ambiguamente o seu sentimento («N˜ao´ealegria nem dor esta dor com que me alegro» [id.: 166]). E se em Pessoa a dor se avizinha, sobretudo pelo t´ediode existir, em S´a-Carneiropode dizer-se que n˜aoraro ela figura o desconsolo em que o sujeito po´etico, por n˜aoamar, se «afunda» (no poema Como eu n˜aopossuo), ou a plangente amargura experimentada com o fracasso em n˜aoconseguir atingir a Beleza, o Al´em,a plenitude (como ocorre em Alcool,´ em Al´em-t´edio, ou nas referˆenciassimb´olico-decadentistasque percorrem o poema Taciturno).

3 «S´ubita,uma ang´ustia.. . [. . . ] / Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! / Que4 esterco metaf´ısicoos meus prop´ositostodos!» (Pessoa, F., 1990: 305). «Esta velha ang´ustia[. . . ] // Transbordou. / [. . . ] Se ao menos endoidecesse deveras!» (Pessoa,5 F., 1990: 244-245). «[. . . ] ´ecom minhas ideias que tremo, com a minha consciˆenciade mim, / Com a substˆanciaessencial do meu ser abstracto / Que sufoco de incompreens´ıvel,/ [. . . ] E deste medo, desta ang´ustia,deste perigo do ultra-ser, / N˜aose pode fugir, n˜aose pode fugir, n˜aose6 pode fugir!» (PESSOA, F., 1990: 334-335). «. . . O pasmo que me causa a minha capacidade para a ang´ustia. N˜aosendo, de natureza, um metaf´ısico, tenho passado dias da ang´ustiaaguda, f´ısica mesma, com a indecis˜aodos7 problemas metaf´ısicose religiosos. . . » (Pessoa, F., 1986b: 798). Este sentimento aparece bastante expl´ıcito, por exemplo, no posicionamento de Soa- res perante a pr´opriapassagem do tempo, quando, num texto n˜aodatado do Livro, lamenta o seu «desassossego de ter que ter um futuro» (Pessoa, F., 1986b: 874). Mais: com aquela ang´ustiase poderia, ali´as,indiretamente articular a «ang´ustiadesesperada!» e a «m´agoa que sabe a fim!» que o sujeito po´eticoPessoa representa em Ah quanta melancolia! (Pessoa,8 F., 1986a: 225), ou ent˜aoo intenso derrotismo que percorre Elegia na Sombra. «H´adias em que sobe em mim [. . . ] um t´edio, uma m´agoa,uma ang´ustiade viver [. . . ]» (Pessoa, F., 1986b: 708 [texto de provavelmente 1932]); «Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de t´edio. Uma grande ang´ustiainerte manuseia-me a alma por dentro» (id.: 917 [num texto de provavelmente 1912-1913]).

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

84 Dion´ısioVila Maior

4. Entretanto, n˜aoesque¸camosa indiferen¸cade um Pessanha que, em ´ultima instˆancia,acaba por ‘fugir’ ao real — concentrando-se precisamente nessa ‘fuga’ algumas das linhas tem´aticase ideol´ogicascapitais que orientam outras atitudes semelhantes. Essa indiferen¸ca,intensifica-a nos dois textos com que abre e encerra Clepsidra: se nos versos de teor program´aticode Inscri¸c˜ao se revela um sujeito perturbado, passivo e derrotista («A minha alma ´elˆanguidae inerme») diante de um pa´ısdecadente («Eu vi a luz em um pa´ısperdido»), um sujeito que, exilado em si, se promove em fuga («No ch˜aosumir-se, como faz um verme. . . » [Pessanha, C., 2014: 53]), os versos do poema Final deixam perceber, em ´ultima instˆancia,um profundo desencanto, traduzido na configura¸c˜aode uma atitude de vis´ıvelderrotismo e ren´uncia,que o «n˜aosuspirar», o «n˜aorespirar» e os verbos «cerrar», «cessar», «adormecer», «n˜aosuspirar» deixam perceber (id.: 91). E para quˆetrazer o prazer, se tudo est´adestinado a desaparecer, se nada ´eduradoiro? J´aem Paisagens de Inverno I essa particularidade assumira um peso expressivo, se nesse peso virmos a evidˆenciacom que o sujeito po´eticose representa alteronimicamente, quando pede ao seu cora¸c˜ao«desatinado» para «tornar para tr´as»e aos seus olhos «febris» para «cismar como os velhinhos», desejando, assim, fugir ao ´ımpeto provocado pelas paix˜oes,procurando dessa forma alcan¸cara paz e a tranquilidade (Pessanha, C., 2014: 64). Trata-se, afinal, de uma consequˆenciaquase l´ogica,no ˆambitoda viagem em Clepsidra — t´ıtulo desde logo rubricado pelo fluir do tempo, onde a morte consagra a efemeridade, onde Tˆanatoacaba por prevalecer sobre o impulso vital. E facilmente se pode verificar como aqueles «sonhos cru´eis»na «alma doen- te» do sujeito po´etico(em Caminho I [id.: 95]), ou o significativo «J´ao sonho come¸ca.. . / Tudo vermelho em flor. . . » (em Branco e Vermelho [id.: 117]) permitem concluir que, apesar de tudo, Pessanha nunca deixar´ade permanecer preso do seu pr´opriodesejo, o desejo de algu´emcuja condi¸c˜ao´e,afinal, a de um vulgar mortal. Trata-se, como se poderia igualmente ver, da mesma constata¸c˜aoem Bernardo Soares — quando, num texto n˜aodatado do seu Livro do Desassosego, reconhece que as suas vit´orias«falharam», que o seu sonho «falhou at´enas met´aforas e nas figura¸c˜oes»(Pessoa, F., 1986b: 736) —, ou em Ricardo Reis — quando, num poema de 1926, confidencia «Quantos reinos nas mentes e nas cousas / Te n˜aotalhaste imagin´ario!»e conclui: «A vida ´e´ınvia»(Pessoa, F., 1994: 155).

5. Naqueles e noutros versos de Pessanha («D´aliaa esfolhar-se» [Pessa- nha, C., 2014: 68]; «A olhar da amurada, / Que triste que estou! / Miragens do nada, / Dizei-me quem sou. . . » [id.: 105]; «Aguas´ claras do rio! Aguas´ do rio, / Fugindo sob o meu olhar cansado, / Para onde me levais meu v˜aocuidado?» [id.:

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e a figura¸c˜aodo esp´ıritosubjetivo 85

69]; «Eis quanto resta do id´ılioacabado» [id.: 66]), encontramos a mesma linha tem´aticade um conformado derrotismo com tonalidades significativas acrescidas, pelo facto de esse derrotismo presidir a determinadas atitudes existenciais acon- selhadas pelo poeta. E uma dessas atitudes ´efavorecida precisamente n˜aos´o pela advertˆenciaacerca do in´utildesejo vital, mas tamb´em(como o vai fazendo ao longo do livro) pela apologia do desprendimento para com a vida, justamente por concluir que a resposta `apassagem breve da vida se encontra na consciˆenciado car´acterinexor´avelda morte e na abdica¸c˜aototal de lutar contra algo que j´aest´a destinado, «Porque o melhor, enfim, / E´ n˜aoouvir nem ver. . . / Passarem sobre mim / E nada me doer!» [id.: 107). O mesmo ´edizer que o sujeito po´eticoabra¸ca a ren´uncia(«E eu dormindo um sono / Debaixo duma pedra.»), a indiferen¸ca («Alheio `asv˜aslabutas, / As` esta¸c˜oesdo ano.»), o desejo de paz e serenidade, o desejo de se afastar da realidade, das ilus˜oes,das paix˜oes,dos conflitos, da multid˜ao(«Rixas, tumultos, lutas, / N˜aome fazerem dano. . . » [ibid.]). . . Compreende-se, assim, como, nos textos de Camilo Pessanha (esse poeta t˜ao querido e admirado pelos ´orficosPessoa e M´ariode S´a-Carneiro, convidado, at´e, por Pessoa a publicar naquela que seria a Orpheu 3), as imagens do fracasso e da morte possuem um peso adicional, sobretudo quando o sujeito po´eticopretende vincar as condi¸c˜oese as circunstˆanciasem que ocorre a sua rela¸c˜aocom o «objecto» vital a que se prop˜oeatingir. Talvez por isso o valor nuclear daquela dominante tem´aticaresida grandemente em alguns versos vertebrais de Branco e Vermelho, sobretudo naqueles quando o sujeito po´eticopede: «O´ Morte, vem depressa, / Acorda, vem depressa, / Acode-me depressa,» (Pessanha, C., 2014: 117). Em ´ultimaan´alise,poder-se-ia dizer que, na «escrita fragment´aria»de Ca- milo Pessanha (com a mais-valia da sugest˜aoamplificada t˜aoao gosto simbolista [cf. Bento, J., 1984: 31]), os temas do desejo, da vivˆenciatemporal dolorosa, da ilus˜ao, da desilus˜ao, da frustra¸c˜ao, da indiferen¸cae da morte (encarada «ora como decomposi¸c˜aoe putrescˆencia,ora como purifica¸c˜aoe assepcia» [Spag- giari, B., 2014: 28]) sejam temas centrais, onde se descortina uma imag´etica profundamente derrotista, que pode, em parte, ser resumida no poema Olvido. A´ıse percebe um sujeito po´eticointersecionado por uma puls˜aode serenidade («Dorme por fim sem desejo e sem saudade»; «imortal serenidade») e por um ´ımpetode desassossego («Ias andar, sempre fugia o ch˜ao»;«Corria-te um suor, de inquieta¸c˜ao.. . »); e o adormecimento final, a morte, essa (aqui metaforizada pelo «olvido»), ´e«Irrevoc´avel», dominadora, mas desejada («Desce por fim so- bre o meu cora¸c˜ao»;«Dorme enfim sem desejo e sem saudade») (Pessanha, C., 2014: 101), j´aque o sujeito po´etico, deixando perceber um certo empenhamento na busca do seu centro interior — busca essa sempre acompanhada, contudo, pela nota de desencanto (j´aprevis´ıvelno t´ıtulodo livro, Clepsidra) —, procura

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

86 Dion´ısioVila Maior

a reconstru¸c˜aodo espa¸coe verdade interiores (espa¸coonde transitam «sonhos cru´eis»na sua «alma doente»).

6. Em termos semelhantes, perguntar´aPessoa mais tarde, em 1933 (em Por que ´eque um sono agita), por que raz˜ao«um sono agita / Em vez de repousar» (Pessoa, F., 1986a: 363); e, pela voz de Campos, referir-se-´aem 1935 (em O sono que desce sobre mim) ao sono enquanto «soma de todas as desilus˜oes», enquanto «s´ıntesede todas as desesperan¸cas»(Pessoa, F., 1990: 260), relem- brando assim que, neste contexto, mais do que a tranquilidade, o sentido que rege e sustenta poeticamente a no¸c˜aode sonho se encontra centralizado na ima- gem de desassossego. E certamente que n˜aoser´aexcessivo evocar tamb´ema rela¸c˜aoentre vida/sonho e vida/morte, a que Pessoa, ort´onimoe pela voz de Bernardo Soares, recorre para decisivamente evidenciar que, no fim de contas, a vida ´ea morte: «[. . . ] a morte do que verdadeiramente somos» (Pessoa, F., 1986a: 848), escreve num fragmento sem data do Livro do Desassossego; e, no ano da sua morte, em Elegia na Sombra, dirigindo-se desencantado a uma P´atria que considera moribunda, passiva e perdida, Pessoa assegura: «Vives, sim, vives porque n˜aomorreste. . . / Mas a vida que vives ´eum sono» (Pessoa, F., 1986a: 1191); e, a este prop´osito, note-se como o sentido atribu´ıdopor Maria Vitalina Leal de Matos `aideia de morte se enriquece neste contexto, ao defender que a dinamiza¸c˜aotem´aticada morte nos textos pessoanos prov´emdiretamente da profunda consciˆenciaque o sujeito tem de si e do mundo (Matos, M. V. L., 1993: 232). Barbara Spaggiari, por sua vez, em 1982, no seu livro O Simbolismo na obra de Camilo Pessanha, escrevera:

Na rela¸c˜aoconsigo mesmo, Pessanha desdobra-se, separando a alma «lˆanguidae inerme» das capacidades sensitivas a que est´a confiada a percep¸c˜aodo real. No olhar do poeta, ora aceso, ora cansado, ora absorto (n˜ao´epor acaso que «olhos» e «olhar» apare- cem insistentemente no l´exicode Pessanha), a realidade refrange-se como num espelho partido (Spaggiari, B., 1982: 44).

No caso de Pessanha, ´eprecisamente porque a insatisfa¸c˜aopermanente nos seus poemas perante uma realidade fragmentada («como num espelho partido» [Spaggiari, B., 2014: 27]) lhes confere, por isso mesmo, um certo grau de uni- formidade que se pode dizer que o sujeito po´eticoem alguns deles se configura como instˆanciadiscursiva marcada de modo recorrente pelo pathos do derro- tismo, no¸c˜aoque concorda com uma outra dire¸c˜ao:a demanda de um absoluto. Da´ı que o sujeito po´etico, «exilado da Beleza», sublinhe variavelmente ou a

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e a figura¸c˜aodo esp´ıritosubjetivo 87

perda de algum lastro representativo do absoluto (no plano temporal), ou mesmo a pr´opriatangibilidade de um absoluto outro. Pessanha «exilou-se»: saiu ao pa´ıs(ainda que os motivos profissionais estejam naturalmente associados a essa sa´ıda); «fugiu» ao amor, «fugiu», de certo modo, a uma realidade. . . E `amo- tiva¸c˜aode Can¸c˜aoda Partida n˜aoser˜ao, completa e mediatamente, estranhos alguns sofrimentos no plano biogr´afico, ou desilus˜oesno ˆambitoamoroso, capa- zes de provocarem Pessanha para a figura¸c˜aopo´eticado seu «jardim ex´ıguo» (Pessanha, C., 2014: 63), ou do «peso de ferro» atado ao seu cora¸c˜ao(id.: 78). Contudo, e de forma menos velada, a nota¸c˜aode alguma qualidade de algo de absoluto comparece naquele poema que Ant´onioQuadros considerou como sendo o poema que, a seu ver, «culmina [. . . ] toda a obra de Camilo Pessanha» (Quadros, A., 1989: 104); poema «m´ıstico», a´ıse representa uma experiˆenciade ˆextase:o sujeito po´eticofala de uma dor, «forte e imprecisa» e parece abandonar a realidade e aceder, suspenso («Todo o meu ser, suspenso, / N˜aosinto j´a,n˜ao penso, / Pairo na luz, suspenso. . . / Que del´ıciasem fim!»), a um lugar de onde contempla o sofrimento humano (a «enorme dor humana», a «in´utildor humana!»); finalmente, apela `amorte, «vermelho em flor» (Pessanha, C., 2014: 115-117). E, em sono/sonho alteron´ımico, a configura¸c˜aodessa perce¸c˜ao´edominada, no poema, por um pacto po´etico-liter´arioque consente a vigˆenciade um princ´ıpio que, neste contexto, podemos ler como uma express˜aoda procura de um absoluto.

7. Em conclus˜ao, se o que tamb´eminteressa notar ´eo confronto interse- cionista de for¸case motivos (vida, morte, passado, presente, desejo, frustra¸c˜ao, derrotismo) que visivelmente acabam por caracterizar a poesia de Camilo Pessa- nha, n˜ao´emenos plaus´ıvelconsiderar o sinal de uma profunda pluralidade, aqui entendido com uma dinˆamicapr´opria,enquanto componente que, acabando por fazer acentuar nesse sujeito a sensa¸c˜aode incerteza e de indetermina¸c˜ao, acaba tamb´empor conferir a Pessanha n˜aos´oum protagonismo a que a modernidade na literatura portuguesa se deve, mas tamb´emo protagonismo de algu´emcuja poesia nos ajuda a clarificar a nossa rela¸c˜aocom a vida e com a morte; ou, como Pessoa escreveu num texto sem data: Camilo Pessanha, um dos seus mestres (ao lado de Antero e Ces´ario),«descobriu-nos a verdade de que para ser poeta n˜ao´emister trazer o cora¸c˜aonas m˜aos,sen˜aoque basta trazer nelas a sombra dele» (Pessoa, F., 1986c: 182-183).

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

BIBLIOGRAFIA Bibliografia Ativa Pessanha, Camilo (2014) — Clepsidra [Ed. Barbara Spaggiari], Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Bibliografia Passiva Amaral, Fernando Pinto do (1993) — «A poesia como doen¸cada alma: uma abordagem do “pleen” no “S´o”», in Revista Col´oquio/Letras, 127/128, Jan. 1993, p. 77-86. Aranguren, Mikel Irondo (1987) — «, el desasosiego y su ´etica», in Anthropos, 74/75, p. 112-118. Belchior, Maria de Lourdes (1970) — «Verlaine e o Simbolismo em Portugal», in Brot´eria, 3, p. 305-319. Bento, Jos´e(1984) —￿ «Outra Vez o Tema da Agua´ na Poesia de Camilo Pessa- nha», in Persona, n. 10, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, julho, p. 12-16. Br´echon,Robert (1985a) — «Le jeu des h´et´eronymes:la conscience et le monde», in Arquivos do Centro Cultural Portuguˆes, XXI, p. 85-93. Br´echon,Robert (1985b)￿ — «La conscience et le r´eeldans le Livro do Desas- sossego», in Actas do 2. Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, p. 91-98. ￿ Camilo, Jo˜ao(1984) — «A Clepsidra de Camilo Pessanha», in Persona, n. 10, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, julho, p. 20-33. Carvalho, Angelaˆ (2008) — «O Naufr´agioem Camilo Pessanha», in Revista da Faculdade de Letras — L´ınguase Literaturas, II S´erie,vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], p. 221-232 Centauro (1982), Lisboa: Contexto Editora [edi¸c˜aofacsimilada]. Coelho, J. do Prado (1976) — «De Verlaine a Camilo Pessanha e a Fernando Pessoa», in Ao contr´ariode Pen´elope, Amadora: Bertrand, p. 209-214. Coelho,￿ Jacinto do Prado (1987) — Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 9. ed., Lisboa: Editorial Verbo. Crespo, Angel´ (1985) — «El paganismo￿ y el problema de los heter´onimosen el Livro do Desassossego», in Actas do 2. Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, p. 133-148.

i i

i i i i i i

Camilo Pessanha e a figura¸c˜aodo esp´ıritosubjetivo 89

Duarte, L´eliaParreira (1990) — «Perda do absoluto e ironia em Fernando Pessoa», in Encontro Internacional do Centen´ariode Fernando Pessoa, Lisboa: Funda¸c˜aoCalouste Gulbenkian, p. 117-119. Elia, S´ılvio(1991) — «O existencialista Bernardo Soares», in Estudos Portu- gueses. Homenagem a Luciana Stegagno Picchio, Lisboa: Difel, p. 719-741. Fernandes, Maria da Penha Campos (1991) — «Camilo Pessanha, poeta ´orfico: da [«Inscri¸c˜ao»],da escrita, da Clepsidra, e da Orpheu», in Diacr´ıtica, 6, Braga: Universidade do Minho, p. 227-238. Ferreira, Jos´eEduardo (2011) — O processo de representa¸c˜aodo «eu» na Clep- sidra de Camilo Pessanha, S˜aoPaulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciˆencias Humanas. [Disserta¸c˜aode Mestrado] Galhoz,￿ Maria Aliete (1979) — «Sobre o Livro do Desassossego», in Actas do 1. Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, Bras´ıliaEditora, p. 473-491. Galhoz, Maria Aliete (1985) — «Fernando Pessoa e a fic¸c˜ao(?) de um real (quotidiano) para Bernardo Soares no￿ seu Livro do Desassossego — o pequeno espa¸coda felicidade», in Actas do 2. Congresso Internacional de Estudos Pes- soanos, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, p. 169-177. Klobucka, Anna (1988) — «A (de)composi¸c˜aode V´enus: reflex˜oessobre dois sonetos de Camilo Pessanha», in Revista Col´oquio/Letras, 104/105, p. 38-45. Lencastre, Maria Jos´ede [ed.] (1984) — Camilo Pessanha, Cartas a Alberto Os´oriode Castro, Jo˜aoBaptista de Castro e Ana de Castro Os´orio, [Lisboa]: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lind, Georg Rudolf (1983) — «O Livro do Desassossego — um brevi´ariodo decadentismo», in Persona, 8, Mar¸co, p. 21-27. Lopes, Teresa Rita (1984) — «Pessoa e Pessanha: o succedentismo e o inter- seccionismo na teoria e na pr´atica», in Seixo, Maria Alzira [coord.], Po´eticasdo s´eculoXX, Lisboa: Horizonte Universit´ario, p. 149-164. Louren¸co,￿ Eduardo (1985) — «O Livro do Desassossego, texto suicida», in Actas do 2. Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, p. 347-361. Marietti, Melissa Andr´ea(2008) — A constru¸c˜aodo sujeito po´eticoe a no¸c˜ao de tempo na poesia de e na de Camilo Pessanha, S˜aoPaulo: Faculdade de Filosofia, Letras e CiˆenciasHumanas. [Disserta¸c˜aode Mestrado] Matos, Maria Vitalina Leal de (1993) — A vivˆenciado tempo em Fernando Pessoa, Lisboa: Editorial￿ Verbo. Orpheu (1984), vol. I, 4. ed., Lisboa: Edi¸c˜oes Atica´ [edi¸c˜aofac-similada]. Pessoa, Fernando (1986a) — Obras de Fernando Pessoa [Introdu¸c˜oes,orga- niza¸c˜ao, biobibliografia e notas de Ant´onioQuadros], Porto: Lello & Irm˜aoEdi- tores, vol. I.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

90 Dion´ısioVila Maior

Pessoa, Fernando (1986b) — Obras de Fernando Pessoa [Introdu¸c˜oes,orga- niza¸c˜ao, biobibliografia e notas de Ant´onioQuadros], Porto: Lello & Irm˜aoEdi- tores, vol. II. Pessoa, Fernando (1986c) — Obras de Fernando Pessoa [Introdu¸c˜oes,orga- niza¸c˜ao, biobibliografia e notas de Ant´onioQuadros], Porto: Lello & Irm˜aoEdi- tores, vol. III. Pessoa, Fernando (1990) — Edi¸c˜aocr´ıticade Fernando Pessoa — Poemas de Alvaro´ de Campos [Edi¸c˜aoe introdu¸c˜aode Cleonice Berardinelli; Nota pr´evia de Ivo Castro], Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. II. Pessoa, Fernando (1993) — Pessoa In´edito [coordena¸c˜aode Teresa Rita Lopes], Lisboa: Livros Horizonte. Pessoa, Fernando (1994) — Edi¸c˜aocr´ıticade Fernando Pessoa — Poemas de Ricardo Reis [Edi¸c˜aode Luiz Fagundes Duarte], Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. III. Quadros, Ant´onio(1989) — O Primeiro Modernismo Portuguˆes— Vanguarda e Tradi¸c˜ao, Lisboa: Publica¸c˜oesEuropa-Am´erica. Romano, Fernanda Maria (2007) — Camilo Pessanha: travessias entre poesia e tradu¸c˜ao, S˜aoPaulo: Faculdade de Filosofia, Letras e CiˆenciasHumanas. [Disserta¸c˜aode Mestrado] S´a-Carneiro, M´ariode (s/d) — Obras Completas de M´ariode S´a-Carneiro— Poesias, Lisboa: Edi¸c˜oes Atica.´ S´a-Carneiro, M´ariode (1992) —￿ Obras Completas de M´ariode S´a-Carneiro— Cartas a Fernando Pessoa I, 2. ed., Lisboa: Edi¸c˜oes￿ Atica.´ ￿ Sena, Jorge de (1984) — Fernando Pessoa e C. Heter´onima, 2. ed., Lisboa: Edi¸c˜oes70. Serafim, Fernando Ulisses Mendon¸ca(2015) — Camilo Pessanha no contexto da sinologia de seu tempo: idiossincrasias, S˜aoPaulo: Faculdade de Filosofia, Letras e CiˆenciasHumanas. [Disserta¸c˜aode Mestrado] Spaggiari, Barbara (1982) — O Simbolismo na obra de Camilo Pessanha, Lisboa: ICLP. Spaggiari, Barbara (2014) — «Introdu¸c˜ao», in Pessanha, Camilo, Clepsidra [Ed. Barbara Spaggiari], Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, p. 13-38.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas

1 Ant´onioCarlos Cortez

A poesia procura formas de fazer mundos, isto ´e,modos de inscrever na vis˜ao esquem´aticado real uma forma outra de perspectivar o humano naquilo que o define, a linguagem. A poesia ´e,at´ecerto ponto, e nos melhores casos, uma outra maneira de reconfigurar esse real tantas vezes parco em experiˆenciasvivas, em cenas que se fa¸cam,na nossa vida, imorredouras. Parto da constata¸c˜aode considerar que Emile´ Benveniste est´acerto: que o homem ´eum animal de linguagem e que a linguagem ´eum «modo de mundos» (Gusm˜ao, 2009: 46) que participa de uma dificuldade que ´ea um tempo bloqueio e desafio. Se, como produtor de signos para dizer o mundo, o homem tem acesso aos objectos pelos nomes que lhes d´a,operando sobre eles uma esp´eciede fisicidade que os torna, sen˜aocognosc´ıveisna essˆencia,ao menos n˜aopuramente reduzidos na sua aparˆencia;por outro lado os signos verbais-ac´usticosde que nos servimos — as palavras — n˜aobastam para abarcar as coisas com os nomes que lhes damos. A poesia responde, a esse projecto condenado, paradoxalmente, ao fracasso: fixar a realidade impermanente de tudo sabendo de antem˜aoque gravar o ef´emero s´opor triste ironia ´eposs´ıvel. E a ironia est´ana sensa¸c˜aode que, escrito ou dito, alguma coisa fica por dizer sobre o poema (quando se trata de poesia), ou 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lus´ofonase Europeias (CLEPUL).

i i

i i i i i i

92 Ant´onioCarlos Cortez

alguma coisa o poema oculta por detr´asdo que se enuncia. Talvez por isso o veridicto de Hugo Hoffmasnthal seja uma li¸c˜aoactual´ıssima: Lord Chand´os´e a alegoria da falha inerente a toda a linguagem numa carta que ficciona uma verdade insofism´avel:o poema escapa-se-nos a um pleno entendimento, e ´eesse escapar-nos que justifica a magia, ou o «lago escuro / silente de juncais» aonde as imagens do poema v˜aoter, territ´orioincorrupt´ıveldo pensar que sente e do sentir que pensa. Jogando o perigoso ludus da significa¸c˜aonum n˜ao-serou num n˜ao-dizerque exige o balbucio das nossas parciais, ou incompletas respostas, a poesia afirma- -se como uma fala estranha («Ao longe, ao luar / no rio, uma vela / serena, a passar / que ´eque me revela? // N˜aosei. Mas meu ser / tornou-se-me estranho», assim escreve o ort´onimo, Pessoa ele-mesmo), pois a palavra po´etica responde atrav´esde um «n˜aosei» excˆentrico, que ´ej´auma sageza, um saber que transcende as categorias esquem´aticasda scientia. A radicalidade do poema prende-se, portanto, com uma finalidade que o texto po´eticosabe n˜aopoder atingir: na sua n˜aoreferencialidade, porquanto s´ono ser linguagem se referencie, o poema persegue o sentido do sentido das coisas de que nasce. De algum modo, a quest˜aodo sentido coloca-se, mesmo em propostas mais literais ou mais propensos `anarratividade. Nesses enunciados, a poesia faz do texto uma casa com divis˜oese desenho mais imediatos. Mas mesmo nesse labor efabulat´orio, o poema n˜aodispensa o espanto. Referindo a vida de modo mais directo, o poema est´apara al´emda vida e ´ea vida da poesia a ´unica existˆenciaque ele, de facto, configura. Num autor como Pessanha, podemos pressentir quanto:

Na dinˆamicadesta poesia, ela como objecto de desejo sempre a refazer-se, tende, pois, a personalizar-se num superar cont´ınuodo englobante onde a cada passo se recorta; tende, da´ı,a impor-se ao desejo como sujeito e n˜aomero objecto — o que, por seu turno, implica a personaliza¸c˜aodo pr´opriosujeito abstracto de desejo e abra¸co. (Lopes, 1970: 201)

Na pr´oprialinguagem enquanto discurso pejado de signos que, em si mes- mos, nada fixam, nem mesmo se fixam na boca que os diz ou na escrita que os surpreende; ´enesse lugar abstracto que o homem que os pronuncia se pensa imortal, como se uma poesia feita “teoria da fala” tornasse mais poss´ıveluma linguagem — a po´etica— manifestamente objectiva, isto ´e,objectual — feita objecto (de desejo. . . ). Que, apesar do seu poder musical-r´ıtmico, imagin´ıstico, ´elinguagem infinitamente feita fic¸c˜ao, palavra condenada, portanto, ao engano, disso n˜aose pode duvidar. O poema ou se lan¸casobre o real como rede poten- cialmente irreal-real, prendendo na linguagem sentidos outros do mundo, ora se

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 93

fecha na sua malha e desfere sobre esse mundo o silˆencioprodutor do enigma. Pessanha ´e,como Gast˜aoCruz, um ´ımparprodutor de enigmas. Ambos procuram dar `aspalavras uma forma tang´ıvelde modo a tornar concreta a existˆenciado texto na sua organicidade, na sua racionalidade, ou seja, no seu ser pensamento, logos, «raz˜aoapaixonada», como pretende Gusm˜aoe como responde, ou escla- rece Gast˜aoCruz, o poema ergue-se como lugar do questionamento da vida e da poesia como se lˆeem «As palavras e as coisas», arte po´eticade Escarpas:

A quest˜aoprincipal ´ea do sentido n˜aodas frases: dos factos, a poesia ´euma forma de racionalismo,

pensar a vida, n˜aoqueria usar mais uma vez este voc´abulo no entanto ele volta e corro o risco,

estranho dizer a vida ´eum voc´abulo (que ela ´ee n˜ao´e)e no entanto h´averdade no nome: um velho tema

da lingu´ıstica;as palavras e as coisas coicindiam, por´em,quem poderia pensar que elas um dia viriam

separadas? o pensamento era uma coisa que nos pertencia como agora decerto nos pertence

diversamente; a alegria pode fazer-nos rir e esse riso cada vez mais ´eum modo

de acabar, talvez as coisas j´asejam s´opalavras, tudo existiu na mente e acredit´amos

que ela estava tamb´emfora de n´osdando existˆencia aos que eram pensamento (Cruz, 2010: 80-81)

A frase, como ensina Wittgenstein, tem sempre um fim, ´euma cadeia de sons que conhece sempre a suspens˜aopela reticˆenciaou a total anula¸c˜aopelo ponto final («estranho dizer a vida ´eum voc´abulo/ (que ela ´ee n˜ao´e)», escreve

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

94 Ant´onioCarlos Cortez

Gast˜ao).A poesia, como frase extrema, como «finalidade sem fim» (segundo Kant toda a arte a essa finalidade se destina), padece, pois, de um mal inescap´avel: quer ser eterna na sua finitude, pretende estender, ou esticar at´eao horizonte o corpo sonoro de que ´efeita, como essa ave do poema «Ela canta, pobre ceifeira», de Pessoa, cujo canto ´ea elegia da pr´oprialegibilidade da poesia. Gast˜aoCruz, em As Leis do Caos, define bem uma das grandes ambi¸c˜oesdo poeta, as quais, na verdade, a linguagem simbolista timbrou como princ´ıpioe que num poema como «As palavras e as coisas» recebe a forma acabada do questionamento sobre o sentido, n˜aoexactamente da poesia, «forma de racionalismo», mas da vida a que a poesia d´aforma. Afirma Gast˜aonesse volume:

O poeta persegue o movimento do mundo, procura fix´a-lo, dar-lhe uma imagem est´avel.Trata-se de um trabalho destinado ao malo- gro, mas ´eno permanente renovar desse equ´ıvocoque se origina a poesia. (Cruz, 1990: 50)

N˜aoestamos longe, creio, do que um poema de Pessanha enuncia de forma radical:

Imagens que passais pela retina 2 Dos meus olhos, porque n˜aovos fixais?

Mas a inextric´aveln˜aoreferencialidade da linguagem po´eticafoi (tem sido) o trilho percorrido pela modernidade, como se no combate contra a opacidade da linguagem dos textos pudesse irromper o sentido que a mimese, como princ´ıpio regulador da arte ao longo de s´eculos,n˜aoatingiu. Tem particular importˆancia,na hist´oriadesse combate pelo sentido e contra a indecibilidade mesma da palavra, a poesia do simbolismo que, nascendo do princ´ıpioda associa¸c˜ao— a c´elebreimagem da «fˆoretde symboles», de Baude- laire —, evolui para o primado do significante sobre o significado. Como se no texto, num aparente jogo de oculta¸c˜oesque a imagina¸c˜aoiria aos poucos revelar, todo o real assumisse uma figura¸c˜aonova:

[. . . ] o poeta, com a sua sensibilidade, colhe dele [do mundo real] alguns aspectos, que ir´avalorizar sob dois pontos de vista com- plementares: como «esteta», intui a «quantidade de beleza» que esses aspectos s˜aosuscepct´ıveis de produzir e, por conseguinte, escolhe os meios t´ecnicose estil´ısticospara os representar. Como, «consciencioso observador cient´ıfico», interpreta os fen´omenose 2 In Camilo Pessanha, Clepsydra, edi¸c˜aode Barbara Spaggiari, Lisboa: INCM, 2014, p. 71.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 95

prescruta o fundo escondido atrav´esda aparˆenciasuperficial da realidade, indaga as rela¸c˜oes´ıntimasimpl´ıcitasnas coisas, tendo sempre a consciˆenciada interven¸c˜aoracional e emotiva do «eu» na percep¸c˜aodo mundo. A alma do poeta ´ecomo espelho em que se reflecte a aparˆenciasupeficial das coisas: a tarefa da poesia ´e evocar a realidade, n˜aos´oreproduzindo-lhe a beleza exterior, mas tamb´emcaptando essa trama densa de rela¸c˜oesque liga cada parte do universo ao todo. (Spaggiari, 2014: 26)

Uma vez que nas malhas do texto liter´arioencontrar´ıamoso lugar para pro- curar e obter a especificidade da literatura, o texto em si mesmo considerado torna-se a figura inesgot´avelque produz sentido. Por isso Gast˜aoCruz, indo ao encontro do pensamento po´eticode Camilo Pessanha observa:

[. . . ] porque utiliza um instrumento t˜aofluido como o pr´oprioreal, o poeta transforma o encontro sucessivamente adiado na ilus˜aoque cada poema procura fixar, faz dessa ilus˜aoa energia da imagem que n˜aose fixa, o ponto fugaz em que se interceptam a poesia e a vida. (idem: 50)

Em As Leis do Caos, a declara¸c˜ao«H´ano poema um sentido violento da forma, que ´ea marca da imagina¸c˜ao, da vis˜ao.», defende-se a ideia do poe- ma como espa¸cos´ıgnico total, lugar da emergˆenciade uma evidˆencia,ou de uma forma de olhar que, em Gast˜aoCruz, como em Pessanha, se traduz em po´eticasonde a irrealidade do real se torna textualizada. Ao sˆe-lo, essa fic¸c˜ao concretiza-se, agarrando, no processo da redac¸c˜ao, na transferˆenciado vivido, ou do percepcionado pelo olhar e intelectualizado pela faculdade discursiva, o que ´eevanescente, fluido, impermanente. Nesse sentido ´eque se pode dizer que Carta ao Vidente se prop˜oediscurso moderno na perspectiva de a´ıse falar de um nada que s´ona linguagem existe. O que s´ose fixa na imagem — entenda-se o que acontece na projec¸c˜aodo que prov´emdo imagin´ario, isso mesmo possibilita a evidˆenciada poesia moderna, ou a sua forma de ser vidˆencia. Note-se, de resto, que a quest˜aoque se coloca no texto de Rimbaud — o eu que ´eoutro, o desregramento de todos os sentidos a que o poeta se francˆes se refere nas cartas a Georges Izambard e a Paul Demeny, respectivamente de 13 e 15 de Maio de 1871 — ´ecentral na forma¸c˜aodo discurso moderno. A vidˆencia,ou a figura¸c˜aodo poeta vidente, implicar´a,na linhagem que lhe segue o exemplo (Pessanha e, ainda, Gast˜aoCruz) a procura incessante de, pela linguagem, atingir aquela alquimia verbal que transforma o mundo, decompondo a tal ponto a realidade de que parte que a express˜aointelectual de uma sensa¸c˜ao vivida elimina essa primeira forma de compreens˜aoda realidade — a vivˆencia

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

96 Ant´onioCarlos Cortez

dela pelos sentidos — que o poema mostra os estados de alma que s˜aomais pensados que vividos sensorialmente. Na antecˆamara da poesia dram´atica,a´ıse situa Pessanha. Fernando Pessoa, aproveitando a li¸c˜aodo mestre, evolui para um quarto grau da poesia l´ıricae, despersonalizando-se, n˜aos´osente estados de alma que n˜aotem, como cria outros estados de alma. O que, na sequˆencia de Pessanha e Pessoa, podemos ler em Gast˜aoCruz ´en˜aoapenas a consciˆencia de que o poema ´e matter of fact, objecto de linguagem, mas que o estilo que caracteriza a sua poesia denota a subtileza e a complexidade de um dizer que s˜aon˜aoj´aexpress˜aol´ırica, mas uma fala intelectualizada. Como tal ´eque Gast˜aoCruz pode criar estados de alma «pensados e n˜aosentidos, sentidos imaginativamente e por3 isso vividos», assim criando uma persona fict´ıciaque os sente verdadeiramente . Por isso o rigor do poema ´eo rigor de uma vis˜ao, ou de uma epifania: ao escrever sobre as imagens que n˜aose fixam, escreve-se sobre aquilo que, de facto, se tatua no papel e foi processado intelectivamente. Porque se trata de um material que s´oo poeta sabe ser concreto, palp´avel,orgˆanico, animal — a linguagem, as palavras — que se domina e se amestra, ou se deixa solto na folha em branco, na arte liter´ariamuito depende da t´ecnicado poeta, do modo como esse impalp´avelse agarra. Diz-nos Gast˜aoCruz, lembrando-se de Ruy Belo, ´e certo, mas lembrando-se, decerto, de Pessanha:

Nada mais rigoroso que esta convoca¸c˜aoaparentemente arbitr´aria de signos, que terminam construindo uma consistente unidade de sentido a que n˜aopareciam estar destinados [refere-se Gast˜aoao poema de Ruy Belo «Um dia n˜aomuito longe n˜aomuito perto», de Homem de Palavra[s] ]. O poema, ao alcan¸cara sua forma e delimitar o seu espa¸co, a partir do movimento de uma nebulosa que assumir´a,no c´eunocturno, o desenho de uma constela¸c˜ao, sagra-se como regra e conquista o estatuto do caos. (idem: 50)

*

A substitui¸c˜aoda est´eticada representa¸c˜aopela da figura¸c˜aomarca o ad- vento de uma textualidade ausente que encontra no Livro a sua fic¸c˜aosuprema 3 Sigo de perto um dos textos fundamentais de Fernando Pessoa a respeito dos graus da poesia l´ırica. Vide P´aginasde Est´eticae de Teoria e Cr´ıticaLiter´arias, textos estabe- lecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Edi¸c˜oes Atica,´ 1994, p. 68-69.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 97

e ´eessa altera¸c˜aode for¸casentre postulados mim´eticosem arte e novos para- digmas que preparam a ilogicidade da poesia no s´eculoXX, do Modernismo `as neovanguardas dos anos de 1960. Tudo se passa justamente no texto, lugar onde a variabilidade do homem mo- derno pode, quem sabe, encontrar uma seguran¸ca,uma respira¸c˜aotranquila, por oposi¸c˜aoao tropel de uma modernidade que, marcada pelo ef´emero, o transit´orio e o contingente, cinde esse mesmo homem. Ao contr´arioda est´eticaromˆantica, na qual os dois lados de uma textualidade no tempo — vida a obra — n˜aoest˜ao ainda separados, o que eclode com as est´eticasfinisseculares, em toda a tens˜ao do seu estilha¸camento, ´eessa incomensurabilidade entre desejo, sonho e reali- dade que percorre muita da poesia que lemos em Antero de Quental, Ant´onio Nobre, Eug´eniode Castro, Ces´arioe, claro, Camilo Pessanha. Essa consciˆenciaparticular do po´etico(aquilo que na poesia ´edecomposi¸c˜ao e an´alisedas partes em fun¸c˜aode um todo orgˆanico)tem na voz espectral de Pessanha, e adentro do quadro evolutivo da nossa poesia moderna e contem- porˆanea,uma ´obviarelevˆancia. Clepsydra faz irromper novos modos de decifrar os referentes, isto ´e,de trabalhar a referencialidade, no pr´opriocorpo da lin- guagem, no pr´opriosigno. A sua literatura d´a-sea ver como discurso novo no contexto do comp´ositode formas que4 modelizam uma arte que ultrapassa em definitivo a representa¸c˜aomim´etica . Pessanha vˆe-secomo que obrigado a assumir o risco de ser uma voz diferente e at´edivergente em rela¸c˜aoao simbolismo, para mais num pa´ısque, influenciado pela cultura francesa, n˜aodeixava de ser esse «pa´ısperdido» da pr´opriapoesia, ou seja, lugar impr´opriopara o nome pr´oprioda literatura. Tem raz˜aoBarbara Spaggiari quando refere que Pessanha ´eum simbolista isolado porque organizou o seu volume baseando-se «na oposi¸c˜aoestrutural entre soneto e n˜ao-soneto [reflexo] evidente das teorias parnasianas», indo assim ao encontro da est´etica simbolista, `aluz da qual

a poesia ´eapenas fragmento, dispers˜ao, evoca¸c˜aomomentˆaneada realidade, que nunca se fixa, que num continuum de sensa¸c˜oesque vivem no tempo; por outro lado existe a ambi¸c˜ao, dessult´oria,de organizar, uma ´unicavez, os versos em forma de “Livro”, subtraindo os poemas ao fluxo da incessante mutabilidade (Spaggiari, 2014: 23) 4 Veja-se que no caso de Baudelaire a met´afora ´euma sugest˜aoque relaciona abstracto e concreto, actuando in absentia, aproximando-se do s´ımbolo. E´ o comparante, o abstracto que lhe interessa, ocultando o concreto, o que ´e«comparado». Por isso ´eBaudelaire quem lan¸caas bases de um discurso obscuro e insond´avelque o simbolismo de escola ir´a explorar, em particular com Verlaine e Mallarm´e.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

98 Ant´onioCarlos Cortez

Mas em Pessanha n˜aoh´a,a meu ver, uma simples ades˜aoao simbolismo de escola. Nele h´auma originalidade discursiva, marcas de singularidade que o isolam do movimento simbolista enquanto tal. Desde logo a sua poesia n˜ao se limita a dar conta de imagens previamente determinadas. O que acontece ´e serem as suas imagens fruto daquilo que surge como epifania: o poeta vˆeo que outros vˆeem,mas a sua interpreta¸c˜aodo real op˜oe-se`asestruturas vulgares. Como quer Oscar´ Lopes: «[a sua poesia] convida-nos a dar o salto em direc¸c˜ao a novas estruturas de compreens˜aoe valor» (Lopes, 1970: 202). Em permanente inquiri¸c˜aodas potencialidades f´onicasdo idioma, a m˜ao que escreve «Violoncelo» parte da li¸c˜aode Verlaine, mas ultrapassa essa li¸c˜ao pelo lado menos ´obvioque esse mestre facultaria: refiro-me a uma express˜ao ins´olita,determinada pela descoberta de oscila¸c˜oesnovas na forma de dizer a hesita¸c˜aoentre pensar e sentir, ou entre o que ´eda ordem da consciˆenciae o que ´edo foro do inconsciente. Tal po´eticaest´aancorada no poder da met´afora suprassensorial e da sinestesia introduzindo na audi¸c˜aoe na vis˜ao, no t´actile no olfativo, mesmo no gustativo, percep¸c˜oesque multiplicam as correspondˆencias horizontais (sensa¸c˜oes)e as sensa¸c˜oesverticais (a esfera espiritual), assim pro- curando decifrar-se o mist´erioexistencial daquilo mesmo, sendo sensa¸c˜aofulgu- rante dev´emfantasia. Como refere Esther de Lemos: «a do [. . . ] transforma-se em imagem e ao visualizar-se deixa de ser aniquilamento delicioso, para dar lugar ao trabalho implac´avelda inteligˆencia». Camilo Pessanha participa das potencialidades estruturais das formas po´e- ticas, nomeadamente no soneto, como se s´onuma forma r´ıgida,convencionada, consagrada pela tradi¸c˜aoocidental, fosse poss´ıvelfixar a evanescˆenciaquer de um mundo moderno que ´ej´ao seu, dramaticamente estilha¸cado, quer o seu pr´opriomundo interior que o levar´aa cultivar o ´opiocomo forma v´ıvidade dizer o que Pessoa repitir´amais tarde no «Opi´ario». Se tudo se resume a «conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos», se tais referentes, na n˜aoreferencialidade da po´eticasimbolista, d˜aocorpo `a vanitas como tema maior de uma obra breve, isso acontece num movimento dinˆamico de imagens que, por mais l´ıquidasou impalp´aveisque sejam, est˜aodentro de um outro corpo — m´etrico, estr´ofico, rim´atico, fonol´ogico— que possibilita uma leitura ancorada num objecto «real»: o texto, espa¸coda encena¸c˜aomental(izada). Nesta perspectiva, importa relˆe-lo, tomando como exemplo um dos seus so- netos, «Foi um dia de in´uteisagonias», paradigma da confluˆenciada po´etica do impermanente do real, da n˜ao-referencialidade da palavra de poesia, com o rigor e a vigilˆanciadiscursivas que, nessa estrutura, reconduzem o sujeito a uma hip´otesede sentido sobre a realidade que se tenta sondar. Com raz˜aoescreveu Gast˜aoCruz, em artigo inserto em A Vida da Poesia — textos cr´ıticosreunidos, que

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 99

[. . . ] elementos como a m´etricae rima, por exemplo, artificiais por natureza, conferiram `apoesia o grau, ou o v´eu,de irrealidade que sempre lhe foi necess´ario. A ´unicarealidade importante no poema ´e a emo¸c˜aoderivada, j´an˜aodos factos narrados, ou dos sentimentos e emo¸c˜oesa que se alude, mas da pura jun¸c˜aodas palavras, apro- ximadas n˜aotanto pela necessidade de fielmente reproduzir casos [. . . ] mas pela dinˆamicada transferˆencia,para a l´ıngua,das emo¸c˜oes recolhidas em acontecimentos que n˜aoimporta se o s˜aoefectiva- mente ou se acontecem apenas no plano da linguagem. (Cruz, 2009: 23)

N˜aoesque¸camostamb´emque em Camilo Pessanha, como bem viu Oscar´ Lopes,

a descren¸cade que algo de essencial exista para al´emdas (ou dentro das, na organiza¸c˜aodas) simples aparˆenciassensoriais, [as- sim como] a indecis˜ao, a abulia do pr´opriopoeta, [certo] vocabul´ario predilecto, e at´ecertos nexos sint´acticosmais t´ıpicos[insinuam que] constantemente tudo [se] encara como simples imagens, miragens, sonhos transit´orios,sen˜aoevanescentes ou mesmo d´ubios— ima- gens que n˜aose fixam na retina dos olhos, este espelho de in´util aridez e sucessivos desertos (Lopes, 1970: 202)

Daqui resulta um dos aspectos mais pertinentes na po´eticapessanhiana: a escolha por uma forma cl´assica que, promulgada pelo simbolismo de escola, pelo mestre da modernidade, Baudelaire, nem por isso resulta estranha, antes ade- quada «`anecessidade de ordenar os poemas de forma n˜aocasual» (Spaggiari, 2014: 23). Por corresponder a um esfor¸code grava¸c˜ao, de impress˜aona reali- dade, no texto, de algo que se n˜aopode eternizar a n˜aoser pela dita «dinˆamica da transferˆencia»a que alude Gast˜aoCruz, as imagens de uns olhos pag˜aos´e condi¸c˜ao sine qua non do pr´oprioacto de fazer poesia. Quer dizer: o processo associativo, ou imagin´ısticoque torna o poema uma rede recolhida na linguagem — rizoma lingu´ıstico— determina que o poeta afirme que sem as imagens os seus «olhos pag˜aos»seja «aridez de sucessivos desertos», olhar sem imagens, sem f´e,ou, se quisermos, olhar sem a (e)vidˆenciado movimento das imagens. Perdida a faculdade da vis˜ao, o poema ´eo lugar dessa solid˜ao(«porque ides sem mim, n˜aome levais?»), lugar de uma «forma violenta» onde a percep¸c˜aodo real se abre feita discurso. O poema em causa diz, portanto, o seguinte:

Foi um dia de in´uteisagonias, Dia de sol inundado de sol.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

100 Ant´onioCarlos Cortez

Fulgiam nuas as espadas frias, Dia de sol inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias: D´aliaa esfolhar-se, o seu mole sorriso. Voltavam os ranchos das romarias, D´aliaa esfolhar-se, o seu mole sorriso.

Dia impress´ıvelmais que os outros dias, T˜aol´ucido, t˜aop´alido, t˜aol´ucido! Difuso de teoremas, de teorias,

O dia f´utilmais que os outros dias. Minuete de discretas ironias! T˜aol´ucido, t˜aop´alido, t˜aol´ucido!

O que se projecta como cena neste soneto ´euma estrutura que, apesar de reconhec´ıvel,escapa a uma qualquer aproxima¸c˜aoautobiogr´afica,ainda que haja a ambiguidade do uso da primeira pessoa. Simplesmente atenta `apossibilidade metaforizante de um discurso que, em si mesmo, est´apara l´ada met´afora e ´e,at´ecerto ponto, um exemplo de como a n˜ao-referˆenciada poesia pode ser quase um exerc´ıciode referencialidade, este soneto, tal como o magistral «Imagens que passais pela retina», concretiza a ideia moderna da poesia como espa¸cobranco, tela das paisagens f´ılmicasde uma mente em ac¸c˜aode dar a ver e a que emo¸c˜aoderivada dar´aforma: soneto cl´assico, de m´etricadecassil´abica,implac´avelna sua arquitectura fr´asica,na suspens˜aode um pensar que divaga e quer, a tuoo o custo, descrever uma realidade fugidia, indefin´ıvel,em ambos os sonetos as imagens tˆemum dinamismo que decorre da transitoriedade do real («um dia de in´uteisagonias» num, e no outro «Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos porque n˜aovos fixais?»). De facto, em ambos os textos h´aa mesma insinua¸c˜aode que tudo se encami- nha para a morte (veja-se o dia f´util,p´alido, «difuso de teoremas, de teorias», e no soneto «Imagens que passais», a alus˜aodo «espelho in´util», os olhos do poe- ta, que sem f´es˜ao«olhos pag˜aos», «Aridez de sucessivos desertos»). O terceto final da composi¸c˜ao«Imagens que passais» refor¸caa sugest˜aodo fim inexor´avel: se o sujeito for para «o lago escuro silente de juncais», nem a «flex˜aocasual dos [s]eus dedos incertos» sobreviver´a.Tudo se ir´aresumir `anost´algicae «Estranha sombra em movimentos v˜aos», pondo-se at´eem causa o pr´opriosentido vital que a escrita poderia assumir enquanto forma de dar sentido `aspr´opriasimagens que passam pela retina. J´ano soneto «Foi um dia de in´uteisagonias» o tema ´etamb´emestranho: tentar descrever um dia «impress´ıvelmais que os outros dias». Nada que, de

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 101

acordo com um programa realista, um Ces´arion˜aofizesse, pintando «por letras por sinais», por exemplo, em «Num Bairro Moderno», a ambiˆenciaurbana. Na primeira quintilha desse c´elebrepoema realista, a imagem logo nos coloca pe- rante um s´ımilede realidade, de referencialidade que faz deste texto o lugar seguro da mimese:

Dez horas da manh˜a;os transparentes Matizam uma casa apala¸cada; Pelos jardins estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada.

Em Pessanha n˜aopoderia ser assim. A poesia como arte da palavra — mas Ces´ario´e,evidentemente, mestre tamb´emindiscut´ıveldesse rigor e vigilˆancia verbais, tem um estilo marcadamente caracterizado pelo postulado impressionista — encontra aqui uma outra estesia. H´a,se quisermos, uma ilogicidade que embate na referencialidade do tema: o dia. As imagens, logo no primeiro verso, fazem deslizar o poema para um territ´orioque, ainda hoje, ´e´aridoa um leitor menos familiarizado com este autor. E´ na conquista de uma autonomia da imagem que este soneto est´a,por assim dizer, interessado. O compromisso assumido n˜ao´epara com qualquer contrato de leitura com ancoragem na concretude das coisas, nomeadamente do tempo, com suas presen¸case objectos, realidade em si mesma, indefin´ıvel. O acordo entre subjectividade do eu enunciador e as palavras de que ele se serve para tornar o poema uma mat´eria de facto reside na amostragem de um n´ucleovocabular que se repete e expande em imagens sucessivas, precisamente num sucedentismo avant la lettre. Mas a radicalidade da po´eticade correspondˆenciasdo simbolismo est´aneste soneto assegurada: a cena inicial — «Foi um dia de in´uteisagonias. / Dia de sol, inundado de sol!. . . » — funciona como mote dos restantes nexos r´ıtmico- -fr´asicosque modulam a voz do sujeito l´ırico. Poema cujo visualismo participa daquele poder de associa¸c˜aoque leva Pessanha a conceber sob formas sens´ıveis o que ´eda ordem da interioridade e a encontrar analogias entre o plano concreto e o plano do discurso/sonho/linguagem, neste soneto h´auma subtil invariˆancia nessa l´ogicaou dial´ecticaentre jogo de abstrac¸c˜oese persegui¸c˜aode objectos concretos. Com efeito, aqui ´ea realidade exterior ao «eu», um dia de agonias in´uteis, que se pretende tornar coisa mais sens´ıvele, por essa via, eventualmente defin´ıvel — sen˜aopor um pensamento que sonda e concretiza o que os seus sentidos absorvem, ao menos pela intui¸c˜ao, isto ´e,por uma sensorialidade extremada nas imagens que o texto faz explodir.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

102 Ant´onioCarlos Cortez

E´ a vontade de clareza o que o soneto, afinal, permite. Num corpo de catorze versos, num c´odigoconvencionado e antigo, a tessitura das analogias pode creditar uma l´ogica,um significado, ainda que um sentido pejado dessa aparente ilogicidade a que se refere Gast˜aoCruz seja caracter´ısticada poesia moderna e contemporˆanea:

O teor de todo o poema ´eimediatamente determinado por um dom´ı- nio do significante, o que n˜aoquer dizer que esse impulso inicial, com continuidade no resto do poema, impe¸caa forma¸c˜aode sentidos emergentes de uma m´usicalivre dos constrangimentos da l´ogicae do realismo. (Cruz, 2009: 30)

A destrui¸c˜aode qualquer nexo l´ogicodo soneto «Foi um dia de in´uteis agonias» abre-se, na verdade, a uma outra possibilidade l´ogicaque transforma este texto em exemplo de figura¸c˜aom´aximado discurso singularmente simbolista de Camilo Pessanha. As realidades interior e exterior misturam-se, numa cadˆenciaparalel´ıstica que as modeliza em pl´asticasindefini¸c˜oesde uma realidade oculta, que s´ose pode dizer por alus˜ao, a´ıse contendo um ind´ıciode referencialidade: `aimagem inicial de um dia «de in´uteisagonias», mas de sol — contradi¸c˜aoque esplende no jogo de ox´ımorosfinais — logo se associa outra imagem, a do brilho das «espadas frias», nuas, fulgindo `aluz daquele sol que inunda o dia. Esse terceiro verso — «Fulgiam nuas as espadas frias» — n˜aoest´a,apesar de parecer, em colis˜ao com o que os versos anteriores apresentam. O que temos ´ea predominˆancia de uma imagem — as espadas frias — que mobiliza a idealidade do cen´ario: o dia de sol, como as espadas frias, tamb´emfulge e o lexema «frias» ´ej´auma correspondˆenciacom a express˜aodo primeiro verso «in´uteisagonias». Num tom e num ritmo reticentes, que suspendem os elos mais obviamente l´ogicos,como se o cen´ariofosse, na projec¸c˜aomental do poeta, um qualquer cen´arioem que a sua pr´opriaagonia tivesse participado, logo a inutilidade do dia se desdobra num outro verso, varia¸c˜aodo primeiro: «Foi um dia de falsas alegrias». A` met´afora das «espadas frias», a sugest˜aodo vago e do subtil, do complexo e do ideal, ganha agora concretude: a «D´aliaa esfolhar-se . . . o seu mole sorriso» articula-se com o verso anterior, mas numa irrup¸c˜ao— agora sim — il´ogica,mas nem por isso menos consequente. E´ que, num dia in´util,num dia de sol, num dia de espadas fulgindo, a d´aliaesfolhando-se ´e um s´ımbolopoderoso que prolonga a sugest˜aodaquele «dia falso», isto ´e,dia ficcional, dia sonhado, irreal, a que s´oa imagem de uma flor esfolhando-se, sobreposta `asimagens anteriores que parecem recriar um cen´ariode eventual luta ou combate, empresta nova significa¸c˜ao. A evoca¸c˜aodessa flor complica-se com nova intersec¸c˜aoimagin´ıstica: «Voltavam os ranchos das romarias». Mas

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 103

esses ranchos est˜aono soneto como concatena¸c˜aol´ogica:est˜aopara a d´aliaque se recorda como as «espadas frias» est˜aopara as «in´uteisagonias». Assim, o «mole sorriso» da d´aliaa esfolhar-se ´ej´acomo a «falsa alegria» do dia «inundado de sol». O sol ag´onicoda primeira quadra, o «vago ar de aparato militar» (Lemos, 1981: 135), tudo se corresponde com o ambiente de alegria vaga, ou tristeza vagamente dita que um dia in´utiltraz `aevoca¸c˜ao. E a d´alia, flor de fim de Ver˜ao, associa-se a essa parada militar que, talvez, inutilmente, ao sol de um dia vago e v˜ao, in´util,´es´ımileda vacuidade de tudo, refor¸cada,essa inutilidade, pelos ranchos que, vindos das romarias, v˜aoe vˆemvindo, n˜aose sabe para onde, nem porquˆe.Estaremos de acordo com Esther de Lemos, quando diz que o soneto tem um tom geral de «impaciˆencianervosa, de alegria for¸cada,de inquieta¸c˜ao»interior,5 de «vago sorriso ir´onicolan¸cadoa toda a v˜aagita¸c˜aoda vida e do esp´ırito» . Mas o curioso ´eque essa atmosfera vaga e, como noutros poemas de Clepsy- dra, tantas vezes espectral e fantasm´atica,vive daquilo mesmo que a contradiz: da luz que vem do sol e das espadas. Podemos estar perante um cen´ariode fim de festa, mas a quem recorda a inutilidade e o vazio de tudo, mais vibrantes s˜aoessa inutilidade e vazio se tais sensa¸c˜oes-ideiasbrilham na concretude das imagens. Ora, no mundo evanescente e impalp´avelde Pessanha, tendencialmente im- pulsionado pelo desejo de tudo fixar numa vis˜aoestabilizada, que bloquearia a instalibilidade e fluidez das imagens do real ´eque este soneto sobre o «Dia impress´ıvelmais que os outros dias», revela a quase chegada de Pessanha ao que Pessoa far´amais tarde, na faceta ort´onimae nos sonetos de, por exemplo, «Os Passos da Cruz», que ´efixar em moldes de realidade textual, um pensamento que sente e um sentimento que pensa. A outra l´ogicada linguagem po´eticaest´a,por isso, na capacidade de dotar a n˜ao-referencialidadedo discurso de uma outra ordem de referentes: os signos verbais que, em associa¸c˜aopermanente, abrem os olhos de quem lˆe`as´aguasdas imagens de uma incomensur´avelfenda: esses signos j´as´odepois do significado de algumas alus˜oese imagens possibilitam que cheguemos, por via do jogos de significante, `amensagem final do texto. E´ o que os dois ´ultimostercetos exigem. O dia impress´ıvel— impressionante e que causa uma impress˜aosens´ıvel— ´e um dia irrepet´ıvel. E´ o dia da vis˜aol´ucida: «T˜aol´ucido.. . t˜aop´alido.. . t˜ao l´ucido».Numa sucess˜aode flashes que o paradoxo — dia l´ucido/diap´alido— acentua, j´an˜aoest´aem causa definir o dia de in´uteisagonias, mas perceber como ´eque, nesse dia, ´eposs´ıvelchegar-se a uma essencialidade da pr´opria poesia ao dizer-se um verso como «Difuso de teoremas, de teorias», em si mesmo um achado musical que faria invejar Verlaine. 5 Vide Esther de Lemos, A Clepsydra de Camilo Pessanha, Lisboa: Verbo, 1981.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

104 Ant´onioCarlos Cortez

O que ´edifuso aqui? O dia de sol obl´ıquo?As espadas frias que, por estarem frias, reenviam para o sem-raz˜aoou o absurdo de uma tal referˆencianum cen´ario onde n˜aohaveria circunstˆanciapara uma eventual parada militar? Difuso ´eo som do soneto, composi¸c˜aotornada aqui uma esp´eciede lugar onde ´eposs´ıvel experimentar uma vis˜aonova do mundo em alucina¸c˜aoque ´eo de Pessanha. Por´em,convir´aesclarecer que, «difuso de teoremas, de teorias» ´eum verso decassil´abicoestranho, pontuado com reticˆenciaspara ampliar, ou amplificar, pelas vogais fechadas em cascata, o grito mudo de um sujeito que ´e,tamb´emele, difuso e para o qual nenhum teorema ou teoria vale. Por isso o dia ´ef´util«mais que os outros dias!» e a imagem do «minuete», dan¸cacaracterizada por ser alegre, «dan¸cade passos mi´udos»(menus), delicada nos seus movimentos e que se vulgariza, no s´eculoXVIII, em obras instrumentais em forma de sonata, incluindo sinfonias e pe¸casde m´usicade cˆamara, surte enorme efeito de sugest˜aoporque, por elipse, associa o dia f´utila uma dan¸ca que, no contexto ret´oricodeste soneto, ´eo contr´ariodo que a tradi¸c˜aomusical definiu. Este n˜ao´eo dia para uma dan¸caalegre, mas sim dia «de discretas ironias», a come¸carpela ironia de se querer sondar a ang´ustiade um dia assim num soneto, isto ´e,numa composi¸c˜aoque6 ´eem si mesma um «pequeno som», como quis Giacomo Lentini, pai do soneto . Ou seja, a forma mais perfeita, afinal, para dar conta da impress˜aodas imagens ora l´ucidas,ora p´alidas,que esplendem aos olhos do poeta. Valeria a pena ver, por fim, algo que me parece produtivo. N˜aoser´aeste o momento ideal para elencar, de forma t˜aocompleta quanto poss´ıvel,o grau de incidˆenciada po´eticade Pessanha nos nomes centrais da poesia portuguesa do s´eculopassado, mas ´eposs´ıvelverificar que o soneto, forma fixa cl´assica e moderna, se mant´emcomo concretiza¸c˜aosuperior da s´ıntesede um pensamento po´eticoque, em diversos casos da nossa poesia novecentista, se afirma como lugar das imagens vindas de mestres antigos. Se h´a,como defende Paul Oppenheimer, em The Birth of the Modern Mind — self, counsciousness and the invention of the sonnet, uma propor¸c˜aoharmo- niosa nesta 1forma matem´atico-filos´ofica,po´etico-musical,tal se deve ao facto de, na historicidade deste g´enero, os poetas que o cultivam n˜aoesquecerem que o soneto, na sua arquitectura musical, na sua engenharia m´etrico-sil´abica,re- flecte essa «inaudible music of the heavens and the structure of the human soul» (Oppenheimer, 1989: 190). A m´usicada alma, no caso de um poeta como Camilo Pessanha, que tanto influenciou e determinou os caminhos da nossa poesia contemporˆanea,est´aainda 6 Vide Paul Oppenheimer, The Birth of the modern mind — Self consciousness and the invention of the sonnet, Oxford: Oxford University Press, 1989.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 105

viva, por exemplo, em produ¸c˜oesque, respeitando o esquema-base do soneto, tal como Giacomo Lentini prefigurou, o reinventam, sem pˆorem causa essa l´ogica da significa¸c˜aopo´etica. Num racioc´ıniodiscursivo complexo, numa f´ormulaque obedece a um es- quema de tese-ant´ıtese-s´ıntese,Pesssanha ´ecapaz de, nos seus sonetos, tudo reduzir a miragens, sonhos transit´orios,movimentos v˜aos,como se, por a´ı,no so- neto, s´opudesse ficar inscrita uma irrealidade, de tal modo desprovida de ˆamago, que ´eo soneto — o texto, a for¸cadas imagens e dos sons — que reabilita uma possibilidade de o que ´etransit´orioe incerto, inessencial e esfumado, perdurar. Se nele se baralham as dimens˜oesdo espa¸coe do tempo, se nele a trans- parˆenciadas ´aguas´ea transparˆenciado fluir humano, a verdade ´eque em in´umerossonetos aquele «emaranhado de reversibilidades e irreversibilidades» implica-nos num salto de sentido que antecipa igualmente o que outro grande poeta portuguˆestem vindo a propˆorna sua poesia, Gast˜aoCruz. Para o autor de Existˆencia, o discurso po´etico, por ser engendramento de linguagem, produz, em si mesmo, um conhecimento. Esse conhecimento vem de uma transforma¸c˜aoradical da poesia-confidˆenciaem direc¸c˜aoa uma poesia- -imagem que, de resto, o eventual programa de algumas vozes centrais da Poesia 61 configura. No seu livro mais recente as palavras-imagem n˜aos˜aoapenas uma maneira de reinventar e subverter a realidade impermanente. No limite, as palavras- -imagem s˜aoo discurso (in)tenso que na sua dial´ecticade trˆansitoe em transe, reinventa o vivido, reconfigurando-o de um modo que, apesar de paradoxal, produz sentido, porque nessa linguagem doente, a poesia, explica-se de modo mais evidente, isto ´e,com uma nova vidˆencia,o absurdo de que se faz o mundo. Gravando uma vis˜aosingular que n˜aoelimina a negatividade do real e da pr´oprialinguagem, no poema vive-se uma situa¸c˜aopor vezes quase insustent´avel: como ´eque a poesia e o seu fazer s˜aouma forma de sapiˆencia?Se a mat´eriada poesia, o verbo, a palavra, n˜aoabarca o ˆamagoda existˆencia,como sustentar as imagens que passam na retina? Real ou irreal, que plano ´eo mais materialmente vis´ıvel? Mais palp´avel? Para responder, golpeiam-se as palavras, pois quanto mais dolorosa for a vida da poesia, mais real ser´aa vida do que existiu. Em Escarpas, livro de 2010, o segundo terceto do poema «Of´ıcio»isso mesmo sugeria:

Os poemas que fiz s´oos fiz porque estava pedindo ao corpo aquela esp´eciede alma que somente a poesia pode dar-lhe

Se o mundo ´eo corpo e o corpo ´eo mundo «que se confunde com o duro sopro / de quem est´avivo e `asvezes n˜aorespira», fazer do mundo um lugar mais

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

106 Ant´onioCarlos Cortez

respir´avel´erefazˆe-lo(e respir´a-lo)numa linguagem que, apesar de ferida, torna o corpo de palavras o «monumento perene» de Hor´acio. Poesia: eterniza¸c˜aodo ef´emero. Imerso nas palavras-imagem, o poeta tentar´aconhecer o sentido da vida, chegando, em alguns momentos, a ter certezas sobre o que se ´e(«somos o labirinto onde o sangue abriu t´uneis/ que foram esvaziados quando a beleza / nos traiu» [Cruz, 2017: 14]).

*

Compreender o labirinto, ou o entendimento da trai¸c˜aoda beleza, isso mesmo anima o poema, lugar que se constr´oicomo interroga¸c˜aoe possibilidade de aceder a uma compreens˜aototal dos factos de que se faz a vida. Conhecer a essˆenciado que aconteceu, ´eisso poss´ıvel?Que real ´eo real que existe: o real dos sonhos, ou a realidade vazia do presente? O que pode a poesia contra a «cont´ınuarealidade» que sorve os dias do poeta? A poesia, como a vida, promete tamb´emo que n˜aotem? A tudo isto respondeu, h´ad´ecadas,ultrapassando a mera clave citacional, Gast˜aoCruz, num soneto que ´eem si mesmo uma homenagem a Camilo Pessanha:

Imagens que passais pela retina dos meus olhos porque voz fixais? Acumuladas como sucessivas vagas vativas sob o c´eudas praias

v´osencheis ao morrer a minha vida presente onde j´anada vos chamava porque a vida suprime-vos e cria sucessivas imagens das imagens

Este c´euque revela as ondas frias sob a sua cratera separando-se exaustas

como as folhas do livro da linguagem no passado presente cresce oscila e reconduz aos olhos as imagens (Cruz, 2009: 144)

Retenha-se, neste contexto, o que Gast˜aoCruz, o cr´ıtico, igualmente apre- senta. Trata-se de uma tese que, hoje, como ontem, vale a pena recordar:

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Sobre a Poesia: Camilo Pessanha e Gast˜aoCruz — o sentido violento das formas 107

A dinˆamicado som ´eimperativa e condiciona o sentido, ou mais exactamente, aquilo que, criado o texto, n˜aopoder´aser subtra´ıdo`a fluidez unificadora do todo. [. . . ] Num poema como «Branco e ver- melho» ´eevidente a prevalˆenciado som, o mesmo sucedendo, entre muitos outros exemplos poss´ıveis,de forma particularmente signi- ficativa, no soneto «Foi um dia de in´uteisagonias»: por exemplo, o verso «Difuso de teoremas, de teorias», com que o poeta carac- teriza aquele «dia impress´ıvel,mais que os outros dias», exibe um caso bem claro de utiliza¸c˜aode significados («teoremas», «teorias») inseridos no verso por simples raz˜aode paron´ımia, ou seja, pela semelhan¸cados significantes, que estimula o poeta a associ´a-los. (Cruz, 2009: 30)

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

Bibliografia de referˆencia

Cruz, Gast˜ao, Os Poemas, Lisboa: Ass´ırio& Alvim, 2009. ______, A Vida da Poesia — textos cr´ıticosreunidos, Lisboa: Ass´ırio& Alvim, 2008. ______, Existˆencia, Lisboa: Ass´ırio& Alvim, 2017. Gusm˜ao, Manuel, Tatuagem & Palimpsesto — da poesia em alguns poetas e poemas, Lisboa: Ass´ırio& Alvim, 2010. Lemos, Esther, A Poesia de Clepsidra, Lisboa: Verbo, 1981.￿ Lopes, Oscar,´ Ler e Depois, Porto: Editorial Inova, 1970 (3. ed.). Oppenheimer, Paul, The Birth of the modern mind — Self consciousness and the invention of the sonnet, Oxford: Oxford University Pres, 1989. Pessanha, Camilo, Clepsidra, edi¸c˜aode Barbara Spaggiari, Lisboa: INCM, 2014.

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha

1 Jos´eRui Teixeira

E embora eu n˜aoas entenda, V˜ao-mea esperan¸caembalando Lembran¸casde n˜aosei onde,2 Saudades de n˜aosei quando. . .

Guilherme de Faria

INTRODU¸CAO˜ Guilherme de Faria nasceu no dia 6 de outubro de 1907, em Guimar˜aes. Em 1919 mudou-se, com a fam´ılia,para Lisboa. Entre 1922 e 1927, publicou seis livros de poesia: Poemas e Mais Poemas (1922), Sombra (1924), Saudade Minha (1926), Destino e Manh˜ade Nevoeiro (1927). Quando se suicida, no dia 4 de janeiro de 1929, com apenas 21 anos, ´e— eventualmente sem que disso 1 2 Poeta, cr´ıticoe editor. Guilherme de Faria, Manh˜ade Nevoeiro, Lisboa, 1927, p. 24.

i i

i i i i i i

110 Jos´eRui Teixeira

tenha tido consciˆencia— um dos casos mais interessantes e ins´olitosda hist´oria da literatura portuguesa. Postumamente, em 1929, s˜aoimpressos o seu ´ultimolivro — Desencanto –e a antologia Saudade Minha (poesias escolhidas). S´oem 1947 ´epublicada uma Antologia de Poesias Religiosas que deixou organizada. 3 Guilherme de Faria foi editor de Teixeira de Pascoaes e relacionou-se, com mais ou menos proximidade, com as principais figuras das letras e das artes do seu tempo, como ´eo caso de Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Fausto Guedes Teixeira, Afonso Lopes Vieira, Ant´onioCorreia d’Oliveira, Alfredo Pimenta, Raul Leal, M´arioBeir˜ao, M´arioSaa, Almada Negreiros, Ant´onioBotto, Jos´eBruges d’Oliveira, Anrique Pa¸cod’Arcos, Ant´onioPedro, entre tantos outros. A sua ef´emera existˆenciapossibilita-nos uma perspetiva profundamente hu- mana e dram´aticada cultura portuguesa, uma esp´eciede cosmorama n˜aoapenas dessa Lisboa que Jos´e-AugustoFran¸cat˜aobem4 descreve no quarto cap´ıtulode Os Anos Vinte em Portugal . Guilherme de Faria foi, em muitos sentidos, desconcertante: fracassou nos estudos liceais, mas doutrinou-se com os mestres Afonso Lopes Vieira, Ant´onio Sardinha e M´arioSaa; foi um tradicionalista mon´arquico, companheiro das prin- cipais figuras do Integralismo Lusitano e simultaneamente amigo dos pol´emicos Ant´onioBotto e Raul Leal. ´Intimo de saudosistas e modernistas, o jovem poeta assumiu plenamente uma express˜aoneorromˆanticalusitanista, da qual se tornou uma das vozes mais representativas. Tudo o que na biografia de Guilherme de Faria ´esuscet´ıvelde ser relacionado com a sua idade resulta na evidˆenciade uma precocidade perturbadora: com apenas 11 anos, ainda em Guimar˜aes,dirigiu o5 5 de Dezembro, um pequeno jornal quinzen´ario, defensor da causa sidonista ; com apenas 17 anos editou a Elegia do Amor de Teixeira de Pascoaes; com apenas 19 anos foi retratado por Almada Negreiros; com apenas 21 anos deixou uma obra po´eticasingular, no contexto da melhor tradi¸c˜aol´ırica e eleg´ıaca da poesia portuguesa. Mas acabou por ser esquecido, particularmente devido `asua morte prematura, `as especificidades quase6 anacr´onicasda sua poesia e `aproximidade ideol´ogicaao Integralismo Lusitano . 3 Em 1924 e 1925, Guilherme de Faria publicou quatro livros do poeta de Amarante: Elegia4 do Amor, Sonetos, Londres e D. Carlos. Jos´e-AugustoFran¸ca, Os Anos Vinte em Portugal, Lisboa: Presen¸ca,1992, p. 73- -116.5 Saiu em 22 de agosto de 1918 o primeiro n´umerodo 5 de Dezembro. Guilherme de Faria era o diretor deste quinzen´ario«Defensor da Causa Sidonista», cujo ´ultimon´umero ´epublicado6 no dia 12 de janeiro de 1919, pouco depois do assassinato de Sid´onioPais. Sobre a vida e a obra de Guilherme de Faria: Jos´eRui Teixeira, Vida e Obra de

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 111

Quando Guilherme de Faria nasceu, Raul Brand˜aoe Camilo Pessanha tinham 40 anos. Os autores de H´umus e de Clepsidra nasceram em 1867, ano da morte de Baudelaire, tal como Ant´onioNobre, que tinha morrido no final do inverno de 1900. A estes trˆes«gigantes», junta-se Carlos de Lemos, poeta que importa ser recordado neste contexto. Consciente da diversidade de abordagens, pareceu-me que seria interessante evocar a mem´oriadestes quatro autores nascidos em 1867 desde as interse¸c˜oes com Guilherme de Faria. Foi em 1924 que o jovem poeta come¸coua catalogar a sua biblioteca. Em junho de 1927,￿ o ´ultimoregisto￿ do cat´alogoassegura-nos que nas estantes da sua casa, no 2. andar do n. 11 da Rua da Horta Seca, existiam 861 obras. Guilherme de Faria n˜aotinha ainda vinte anos. At´e´adata da sua morte, em janeiro de 1929, muitos outros livros integraram certamente a sua extraordin´aria biblioteca. ￿ Na sexta￿ p´aginado cat´alogo, depois da 4. edi¸c˜aod’O Livro de Ces´arioVerde (1919), a 1. edi¸c˜aoda￿ Clepsidra (1920) de Camilo Pessanha e os trˆeslivros de Ant´onioNobre:7 a 4. edi¸c˜aodo S´o (1921), Despedidas (1902)￿ e Primeiros Versos (1921) . Doze livros de Raul Brand˜aovˆemlistados na 17. p´aginado cat´alogo: entre eles, Hist´oriad’um8 ￿ Palha¸co (1896), O Padre (1901), Os Pobres (1906) e H´umus (1917) . Na 37. p´agina,dois livros de Carlos de Lemos: Miragens (1893) e Ge´orgica (1898), ambos oferecidos pelo autor.

CARLOS DE LEMOS 1867-1954

Carlos de Lemos nasceu no dia 3 de janeiro de 1867, em Lalim, Tarouca. Formou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, mas dedicou a sua vida ao ensino, tendo terminado a sua carreira no Liceu Passos Manuel, em Lisboa, em 1937, depois de ter lecionado em algumas escolas da prov´ıncia. Al´emda intensa colabora¸c˜aoliter´ariae sociopol´ıticaem v´ariaspublica¸c˜oes,dirigiu — juntamente com Beatriz Pinheiro (1872-1922), sua esposa — a revista Ave Azul que, em 1899 e 1900, contou com a colabora¸c˜aode autores como Manuel da Silva

Guilherme7 de Faria. Os versos de luz por escrever, Maia: Cosmorama Edi¸c˜oes,2013. Destes livros, foi poss´ıvellocalizar a edi¸c˜aod’O Livro de Ces´arioVerde e de Clep- sidra8 ; e foi poss´ıvelrecuperar a edi¸c˜aode Despedidas. ￿ O ´unicolivro que ´ereferido como «oferta do autor» ´ea 2. edi¸c˜aod’Os Pobres (1925).

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

112 Jos´eRui Teixeira

Gaio, Camilo Pessanha e Eug´eniode Castro, dos irm˜aosCarlos e Roberto de Mesquita, de Fausto Guedes Teixeira, Ana de Castro Os´orio, Delfim Guimar˜aes, Afonso Lopes Vieira e Ant´onioCorreia d’Oliveira, entre outros. Como poeta, Carlos de Lemos estreou-se em 1893, com Miragens, livro em que a primeira parte — «Anterianas» — ´ededicada «A` mem´oriado inimit´avel sonetista Antero de Quental», que assina a carta-pref´acioque termina estas impressivas palavras:9 «Conservarei os seus versos entre os pap´eisque guardo com mais estima» . Em 1943, com 76 anos, Carlos de Lemos publica Palingen´esia (por iniciativa de Gaspar Baltar), edi¸c˜aoque re´unequatro livros: Palingen´esia, Ge´orgica, Es- trela d’Alva e Coroa de Saudades. No in´ıciodessa primeira parte, que empresta o t´ıtuloao livro («palingenesia» significa renascimento, regenera¸c˜ao),Carlos de Lemos transcreve um excerto de uma carta de Trindade Coelho, a prop´ositode Miragens:

A palingen´esia´ea minha ressurrei¸c˜ao: o meu renascimento para a Cren¸ca,para o Amor, para a Vida: porventura as Ladainhas que eu vou salmeando (a Coluna-de-Fogo a guiar-me. . . ) a caminho do Eden,´ que, depois de, por momentos, julgado perdido, novamente surge aos olhos do meu Cora¸c˜aoe aos olhos do meu Esp´ırito, como Miragem (derradeira?!. . . quero crˆe-lo!.. . ) que se deixar´aabra¸car, enfim, na Cana˜adonde me vˆemj´a,em10 horas de sonho, uns vagos aromas de flores de laranjeira. . .

O ´ultimodesses quatro livros reunidos em Palingen´esia — Coroa de Sau- dades — ´ededicado `aesposa do poeta: Beatriz Pinheiro, que foi poetisa, pro- fessora do ensino prim´arioe pioneira do movimento de emancipa¸c˜aofeminina em Portugal. A sua morte, em 1922, deixa Carlos de Lemos vi´uvocom apenas 55 anos e motiva este comovente soneto:

C´avim!. . . Tinha de ser!. . . Oxal´an˜ao!.. . Oxal´a,meu Amor!. . . eu n˜aoviesse! Que nenhum de n´osaqui tivesse De enterrar, ainda vivo, o cora¸c˜ao!

Viver um, s´oenquanto o outro vivesse, Levando-se um ao outro pela m˜ao.. . 9 Antero de Quental, carta escrita em Vila do Conde, no dia 5 de fevereiro [de 1891?], in10 Carlos de Lemos, Miragens, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1893, p. 17. Cf. Carlos de Lemos, Palingen´esia, Lisboa, 1943, p. 3.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 113

E, chegados `a´ultimaesta¸c˜ao, Morrer um, quando o outro lhe morresse! Um beijo nossas almas fundiria Numa estrela com asas!. . . — afinal, O beijo que te dei na boca fria, O´ minha companheira estremecida! Foi-me nele a alma, foi! mas, por meu mal,11 Nem me deu morte a mim. . . nem a ti vida! E este ´eum excelente pretexto para lermos uma carta que Guilherme de Faria escreve ao amigo Manuel de Castro, no dia 18 de julho de 1924: Acordei agora, h´amenos de meia hora e, obedecendo a um impulso natural, venho conversar uns minutos contigo. Desde que partiste ainda n˜aoprovei uma x´ıcara de caf´e. N˜aotenho sa´ıdode casa. Tenho lido muito, tenho trabalhado bastante. [. . . ] Como te disse, passei uma destas noites em casa do Carlos de Lemos, grande poeta e querido amigo. Queres ouvir um soneto que ele escreveu aquando da morte da mulher, uma senhora muito inteligente, muito culta e muito simp´atica? Parece-me realmente um belo soneto, este que vais ouvir e que o nosso Carlos de Lemos teve a amabilidade de me oferecer. Depois de transcrever o soneto, Guilherme de Faria prossegue: «E´ admir´avel de perfei¸c˜aoe sentimento. Mas, em verdade, estou arrependido de o ter escrito nesta carta. Porque ´e,realmente, duma tristeza f´unebre,que compreendo, mas que me impressiona». Carlos de Lemos fora seu professor no Liceu de Passos Manuel, onde Gui- lherme de Faria foi inscrito no outono de 1919 e de onde foi expulso em 1922, supostamente «por ter agredido um professor12 que tinha o dobro do seu tamanho e que, no seu entender, fora injusto com ele» . No dia 9 de setembro de 1925, hospedado na casa de Fausto Guedes Tei- xeira, em Lamego, Guilherme de Faria escreve a Manuel de Castro: «Estou em Lamego e muito feliz da minha vida. Que a vida aqui ´echeia de encantos: o Fausto ´egentil´ıssimo, um grande esp´ıritoe um grande poeta; e Lamego ´e,real- mente, uma linda terra. [. . . ] Vim encontrar aqui, em Casa do Fausto, o nosso amigo Carlos de Lemos que ´everdadeiramente encantador». 11 12 Id., ibid., p. 160. Joaquim Pa¸cod’Arcos, «Destino e Obra do Poeta Guilherme de Faria», in Pedras `a Beira da Estrada [vol. II], Lisboa: Guimar˜aesEditores, 1971, p. 332.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

114 Jos´eRui Teixeira

Passados dois anos, no jornal Novidades, no dia 14 de abril de 1927, na sequˆenciada edi¸c˜aode Destino, Carlos de Lemos publica um extenso e impor- tante artigo sobre a poesia de Guilherme de Faria. A´ıacompanha a obra do poeta desde Poemas e Mais Poemas. A prop´ositode Sombra e Saudade Mi- nha, Carlos de Lemos escreve: «J´anos volumes posteriores brilhantemente se afirmava, ´ecerto, o lirismo muito pessoal de Guilherme de Faria: mas com inter- mitˆenciasainda, ainda com desfalecimentos,13 aqui e ali uma exalta¸c˜aom´orbida, o arrepio duma psicose haml´etica.. . » . E reconhece, no final, a prop´ositode Destino:«E´ que o poeta paira,14 de facto, muito alto, na posse, finalmente, duma arte e duma poesia muito suas» . Com efeito, ´eem Destino que Guilherme de Faria assume plenamente a est´eticaneorromˆanticalusitanista. Carlos de Lemos tem, ent˜ao, 50 anos. Ante- riormente, «enquanto pretenso disc´ıpulo po´eticode Antero de Quental e en-15 quanto promotor cr´ıticode um “Musset portuguˆes”(Fausto Guedes Teixeira)» , Carlos de Lemos protagoniza, talvez, o caso mais evidente das tentativas de alargamento do espectro neorromˆanticoque n˜aofica apenas a dever-se `arefor- mula¸c˜aoda tradi¸c˜aoexpressivista, sentimental e evasiva, mas revela fundamen- talmente a tentativa de instaura¸c˜ao, sobre esse mesmo fundo sub-romˆantico, de novas eloquˆenciasl´ıricas. Nesse artigo de 14 de abril, Carlos de Lemos possibilita-nos uma interes- sante descri¸c˜aode Guilherme de Faria, do tempo em que era seu aluno no Liceu Passos Manuel: «Ele era ent˜aoum mocinho quase crian¸ca,de corpo reduzido em que se destacava a cabe¸cae nela os grandes olhos m´ıopes,em cuja pretid˜ao luminosa [. . . ]16 se refletia a candidez of´elicade uma alma em ˆextase,assombrada de Infinito. . . » . Carlos de Lemos exalta a precocidade de Guilherme de Faria, considerando que Poemas e Mais Poemas s˜aolivros mais interessantes do que a juven´ıliade Almeida Garrett, Te´ofiloBraga ou Guerra Junqueiro:

Certo ´eque esses primeiros versos de Guilherme de Faria, contagia- dos nos «Males de Anto», tinham muito sens´ıveisressonˆanciasda m´orbidatoada do S´o: n˜aomarcavam bem uma personalidade. Esse o seu sen˜ao. Valem e muito valer˜ao, sobretudo para os vindouros, como elementos de estudo da idiossincrasia do autor: por isso ´e 13 14 Carlos de Lemos, Novidades, 14 de abril de 1927. 15 Id., ibid. Jos´eCarlos Seabra Pereira, «TendˆenciasNeo-Romˆanticasda Poesia Finissecular», in Hist´oriada Literatura Portuguesa: Do Simbolismo ao Modernismo [vol. 6], Mem Martins:16 Publica¸c˜oesAlfa, 2003, p. 145. Carlos de Lemos, Novidades, 14 de abril de 1927.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 115

natural que um dia surjam numa edi¸c˜aointegral. Para o quanto poss´ıvel perfeito conhecimento dum poeta, muito ajuda saber-se qual o guia dos seus hesitantes passos, das entranhas da Sombra para a estrela que lhe marca o Destino.

Depois reflete sobre a autenticidade, beleza e simplicidade dos poemas que Guilherme de Faria re´uneem Destino, em 1927: «nos seus versos n˜aoencontra- mos aquelas “inanidades sonoras”, de que fala Mallarm´e.Nada de requinte ou de ineditismo: tudo s´odo que h´ade mais simples e natural e espontˆaneo. [. . . ] Assim o seu livro ´euma bela obra de arte, e da melhor, da mais pura poesia». Guilherme de Faria p˜oefim `asua vida com 21 anos,￿ a 4 de janeiro de 1929, um dia depois de Carlos de Lemos celebrar o seu 52. anivers´ario. Desta amizade restam alguns documentos, interse¸c˜oest´enues,apontamentos de um passado esmaecido. Carlos de Lemos viria a morrer em 1954, com 87 anos. Passados 150 anos do seu nascimento, a sua obra espera necess´arioestudo e merecida reedi¸c˜ao.

RAUL BRANDAO˜ 1867-1930

Em 1923, de certo modo aceite pela cr´ıtica, Guilherme de Faria passa a frequentar A Brasileira￿ do Chiado, de onde praticamente se vˆea porta da casa onde vivia, no n. 11 da Rua da Horta Seca. No hist´oricocaf´e,na mesa do fundo, sentavam-se Teixeira de Pascoaes, Vitoriano Braga e Gualdino Gomes; apareciam sempre, `atarde, entre outros, Raul Brand˜ao,17 Jo˜aoCorreia d’Oliveira, Francisco Lage, Alfredo Cortˆese M´arioBeir˜ao . A afei¸c˜aoque Guilherme de Faria revela no princ´ıpiode 1924 por Teixeira de Pascoaes n˜ao´eposs´ıvelinduzir de nenhuma das suas referˆenciasa Raul Brand˜ao. E´ curioso que dos doze livros do autor￿ portuense que Guilherme de Faria guardava na sua biblioteca, apenas a 2. edi¸c˜aod’Os Pobres lhe tinha sido oferecida por Brand˜ao. Al´emdisso, dos trˆesexemplares recuperados desse conjunto de doze livros, dois est˜aoassinados por Raul Brand˜ao— Hist´oriad’um Palha¸co (1896) e Os Pobres (1906) —, mas sem dedicat´oria. Quando, em meados de agosto de 1924, Guilherme de Faria conhece e se afei¸coapor M´arioBeir˜ao, vemos subitamente desaparecer a considera¸c˜aoque at´e ent˜aotinha por Teixeira de Pascoaes e come¸caa referir-se depreciativamente em 17 Cf. Joaquim Pa¸cod’Arcos, «Destino e Obra do Poeta Guilherme de Faria», p. 334.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

116 Jos´eRui Teixeira

rela¸c˜aoao poeta de Amarante e, por uma esp´eciede cont´agio, a Raul Brand˜ao. E´ evidente: o que M´arioBeir˜aoter´acontado a Guilherme de Faria sobre Pascoaes e Brand˜aocondicionou definitivamente o modo como o jovem poeta passou a desconsiderar os dois escritores. Lˆe-senuma carta a Manuel de Castro, datada de 16 de agosto: «Duas palavras apenas: estou com muita pressa, porque o M´arioBeir˜aoacaba de chamar-me pelo telefone. Conheci h´adois dias este grande poeta, muito mais poeta do que todos os Pascoaes, e j´auma grande simpatia me18 prende `asua alma. Parece meu amigo. Convers´amosontem at´ealtas horas» . Passados trˆes dias, Guilherme de Faria escreve este desabafo: «Lisboa todos os dias est´amais desagrad´avel.A vida ´emil vezes pior19 que os versos do Pascoaes e as prosas do Brand˜ao, os dois grandes jacar´es!» . Numa carta dirigida ao mesmo amigo, no dia 1 de outubro de 1924, Gui- lherme de Faria escreve: «Quando me falas da tua incapacidade ou nega¸c˜aopara escrever, procuras enganar-te e enganar-me, porque, tanto tu como eu, conhece- mos muito bem as tuas faculdades, n˜aodirei de grande escritor ou jacar´e`aRaul Brand˜aoou `apobre tolo20 de Amarante, mas de simples prosador de bilhete-postal `aGuilherme de Faria» . 21 Na correspondˆenciaentre Raul Brand˜aoe Teixeira de Pascoaes , encontra- mos duas referˆenciasa Guilherme de Faria, ambas de car´acterdepreciativo. A primeira data de julho de 1928. Raul Brand˜aoescreve: «Ainda hoje me chegou `asm˜aosum livro de versos — que n˜aoli nem lerei — Distˆancia do Ant´onio Pedro, com um pref´acioonde22 o Coelho de Carvalho chama “grande poeta” ao Guilherme de Faria» . A segunda referˆenciafoi escrita por Pascoaes no dia 10 de janeiro de 1929: «O Guilherme de Faria parece que se suicidou. O Pimenta faz-lhe um enorme elogio, na Voz — a ele e ao Visconde de Ameal! Sim, para aquele Cam˜oess´oaquele Camilo! [. . . ] Est´atudo muito certo, neste Pa´ısde navegadores do mar das23 ´Indias que demudaram em pescadores de ´aguasturvas! Que pouca vergonha!» .

18 19 Guilherme de Faria, carta a Manuel de Castro, 16-08-1924. 20 Id., carta a Manuel de Castro, 19-08-1924. 21 Id., carta a Manuel de Castro, 01-10-1924. Raul Brand˜aoe Teixeira de Pascoaes, Correspondˆencia (recolha, transcri¸c˜ao, atua- liza¸c˜aodo texto, introdu¸c˜aoe notas de Ant´onioMateus Vilhena e Maria Em´ıliaMarques Mano),22 Lisboa: Quetzal Editores, 1994. 23 Raul Brand˜ao, ibid., p. 184. Teixeira de Pascoaes, ibid., p. 197. Nesta alus˜aomordaz est´aimpl´ıcitaa ideia de que Alfredo Pimenta, numa atitude caricata, comparara Guilherme de Faria a Cam˜oese atribu´ıra `aobra do Visconde de Ameal um fulgor semelhante `ado novelista de Seide.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 117

ANTONIO´ NOBRE 1867-1900

Quando Guilherme de Faria nasceu, em 1907, Ant´onioNobre tinha j´amorrido h´asete anos. Dos quatro autores nascidos em 1867, Nobre era o ´unicoque j´an˜ao estava vivo, mas foi o que exerceu uma influˆenciamais profunda sobre Guilherme de Faria. No S´o, em vez de precursor do saud´avelneogarrettismo que Alberto d’Olivei- ra teorizaria em 1894, Nobre inventou a forma liter´ariaexata para a sua am- biguidade. O seu m´etodoconsistiu na debruagem de notas realistas sobre um tecido fundamentalmente m´ıtico. A poesia das ermidas e romarias n˜aoimpede o desprendimento24 ir´onico: «Nada me importas, Pa´ıs! [. . . ] Que desgra¸canas- cer em Portugal!» .OS´o —«Os Lus´ıadas da nossa decadˆencia», segundo o apodo de J´ulioDantas — vive do entran¸camentode dois registos: a saudade da infˆanciae a consciˆenciade que ´eimposs´ıvelregressar. Ant´onioNobre deu aos seus leitores a subtil e delicada f´ormula,mistura de cepticismo e25 patriotismo, que iria moldar a rela¸c˜aodos seus leitores — esse «p´ublico snob» , nas palavras desdenhosas￿ de Albino Forjaz de Sampaio — com o pa´ısem que viviam. Foi na 4. edi¸c˜ao, de 1921, que Guilherme de Faria leu o S´o. Data de maio desse mesmo ano o manuscrito aut´ografo do soneto in´edito«Purinha», onde se lˆeesta quadra:

Mais leve do que a asa de andorinha, Mais lindo do que o c´euque a todos cobre, E´ irm˜apiedosa da Purinha Do meu santo e querido Ant´onioNobre.

Guilherme de Faria tinha 13 anos quando￿ escreve estes versos. No outono de 1922, na turma do 5. ano, no Liceu Pedro Nunes, al´emde Joaquim Pa¸cod’Arcos (de regresso a Lisboa, depois de trˆesanos vividos com a fam´ıliaem Macau, onde fora aluno de Camilo Pessanha) e de Manuel de Castro (que ser´ao melhor amigo de Guilherme de Faria), estava inscrito Francisco de Lucena, sobrinho da Purinha de Ant´onioNobre. Joaquim Pa¸cod’Arcos recorda 24 25 Ant´onioNobre, Poesia Completa, Lisboa: Publica¸c˜oesD. Quixote, 2000, p. 300. «Ant´onioNobre ´edos poetas mais queridos do p´ublico snob que lˆepoetas para apenas lhes citar monoss´ılabosde admirativo ˆextase. [. . . ] Ant´onioNobre ´emoda, as suas edi¸c˜oesesgotam-se e o poeta tem, hoje ainda, quem lhe pretenda continuar a obra, restaurando o s´osismo como se ele n˜aofosse coisa que com o seu autor nasceu, morreu e com ele foi definitivamente enterrada».￿ Albino Forjaz de Sampaio, Os B´arbaros. i. Ant´onioNobre, Lisboa: Guimar˜aes& C. , 1920, p. 11-12.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

118 Jos´eRui Teixeira

esse dia 6 de outubro de 1922: «Quando nos reunimos, nesse primeiro dia de aulas, o Guilherme de Faria completava exatamente quinze anos [. . . ]. Mas j´a era Poeta publicado, pois meses antes, atirara para as montras do26 Chiado um primeiro livro de oito poesias que intitulara singelamente Poemas» . A intensa rela¸c˜aoque Guilherme de Faria estabelece com a figura e com a poesia de Ant´onioNobre est´aintimamente ligada `aamizade com Manuel de27 Castro e, atr´asda figura do melhor amigo, e ao amor pela sua irm˜a:Em´ılia . Para Joaquim Pa¸cod’Arcos, o drama amoroso do poeta evoca, na sua dedica¸c˜ao a Manuel de Castro, o caso de Ant´onioNobre e a sua afei¸c˜aopor Manuel de Lucena, irm˜aoda Purinha. Mais exacerbada, por´em,a amizade de Guilherme de Faria, «na medida em que correspondia `atransposi¸c˜aoexaltada do28 sentimento para a pessoa mais chegada ao objeto, inating´ıvel,da sua paix˜ao» . Para Guilherme de Faria, Ant´onioNobre constitui uma referˆenciaincon- torn´avele n˜aoapenas do ponto de vista liter´ario. Com efeito, arrisco afirmar que a biografia de Guilherme de Faria ´einintelig´ıvelsem o S´o de Ant´onioNo- bre, consciente29 do modo inilud´ıvelcomo o afetou «o livro mais triste que h´aem Portugal» . Neste contexto, uma particularidade se destaca: Em´ılia Castro — even- tualmente mais do que30 Margarida de Lucena — corresponde ao ideal feminino descrito em «Purinha» , poema de 1891. Guilherme de Faria utilizou, mais ou menos consciente ou inconscientemente, o poema de Ant´onioNobre como crit´erio para a escolha da mulher que, fatalmente, escolheu amar. Com efeito, quanto mais nos embrenhamos na complexa personalidade de Guilherme de Faria, mais se torna evidente que tenha sido Ant´onioNobre quem descreveu poeticamente a Em´ıliaCastro que Guilherme de Faria amou. Assim, h´ade ser alta (como a Torre de David) e magra (como um choupo); seu cabelo em cachos (cachos de uvas) e negro (como as capas das vi´uvas);a sua boca uma31 rom˜a,os seus olhos duas «Estrelinhas da Manh˜a»;seu corpo ser´aligeiro e leve . A coincidˆencia´eimpressionante. Efetivamente, o poema de Nobre est´a mais pr´oximoda descri¸c˜aode Em´ıliaCastro do que de Margarida de Lucena. Com efeito, a Em´ıliaque Guilherme conheceu em 1922 ou 1923, ´euma menina com treze anos, alta e magra, cabelo escuro em cachos, boca bem definida e olhos expressivos. 26 27 Joaquim Pa¸cod’Arcos, «Destino e Obra do Poeta Guilherme de Faria», p. 332. Em´ıliaCastro nasceu no dia 7 de janeiro de 1910, casou em 1930 com Ant´onio Pereira28 Palha van Zeller, teve oito filhos e morreu no dia 21 de junho de 1971. 29 Joaquim Pa¸cod’Arcos, «Destino e Obra do Poeta Guilherme de Faria», p. 339. 30 Ant´onioNobre, Poesia Completa, p. 164. 31 Id., ibid., p. 197-204. Cf. id., ibid., p. 197.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 119

Ant´onioNobre prossegue: h´ade ser natural e «h´ade ser32 boa, excecional, quase divina / Mais pura, mais simples, que mo¸cae menina» . Guilherme de Faria teria desejado ser o noivo que a espera `aporta da igreja, teria desejado o lar de que fala Ant´onioNobre, teria repetido vezes sem conta: «E33 assim me iluda e, assim, cuide viver / Noutro s´eculoem que eu deveria nascer» . E´ recorrente na poesia e na correspondˆenciade Guilherme de Faria a idealiza¸c˜aode uma vida que n˜aoteve, num tempo em que n˜aoviveu. 34 «Mas pode haver, assim, na Terra uma Purinha?» . Para Guilherme de Faria podia, de facto; ele desejava a Purinha de Ant´onioNobre, desejava-a na figura de Em´ıliaCastro e nenhuma outra mulher que conhecera correspondia de um modo t˜aoevidente a esse ideal. Numa carta dirigida a Manuel de Castro, datada de 8 de setembro de 1924, o jovem poeta contextualiza a figura da mulher que deseja num cen´ariotipicamente35 marcado por Ant´onioNobre, retirado, por exemplo, da «Can¸c˜aoda Felicidade» : Quero completar o curso liceal para depois viver longe das coisas b´arbaras do mundo, nesse admir´avelRibatejo que t˜aograndes en- cantos tem. Meu Deus! d´a-meao menos a gra¸cade ver realizadas as minhas pobres ambi¸c˜oes!D´a-mepela vida fora alimenta¸c˜aofrugal para o corpo e serenidade e alegria para o esp´ırito!Para desvane- cer definitivamente as d´uvidasque me entristecem e as sombras que me torturam, d´a-mea luz clara e doce duns olhos negros de mulher! (crian¸caque nem sabe que ´emulher!) D´a-mea tua bˆen¸c˜ao, redime a minha pobre alma deste humano cativeiro, d´a-meum pouco de ingenuidade e inconsciˆencia,que36 nunca tive!, e deixa-me sonhar, e deixa-me viver! Em «Carta a uma estrangeira», poema de Destino, Guilherme de Faria for- mula poeticamente o amor por Em´ıliaCastro nestes termos: Vendo este c´eu,senti-me logo poeta E, toda a vida, amei uma s´ovez. Amei a flor mais nobre desta Ra¸ca — Menina e Mo¸ca,um dia, aparecida, Por milagre de Deus, cheia de gra¸ca, A aben¸coarde amor a minha vida. 32 33 Cf. id., ibid., p. 198. 34 Id., ibid., p. 201. 35 Id., ibid., p. 204. 36 Id., ibid., p. 205-206. Guilherme de Faria, carta a Manuel de Castro, 08-09-1924.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

120 Jos´eRui Teixeira

E assim eu vivo a am´a-la;e ´eclara e linda A minha vida, `aluz do seu amor; E amando-a sempre, am´a-lamais37 ainda E´ o meu ideal de perfei¸c˜aomaior.

E aqui se lˆeo poema «Viagens na minha terra», de Ant´onioNobre:

Meu pobre Infante, em que cismavas Porque ´eque os olhos profundavas No C´eusem par do teu Pa´ıs? Ias, talvez, mo¸cotroveiro, A cismar num amor primeiro:38 Por primeiro, logo infeliz. . .

Este ´eum retrato po´eticoque Guilherme de Faria assume no seu «Ex-libris»:

Nasci em Portugal, E, gra¸casao Senhor, Nasci bem portuguˆes; Assim, d’alma leal, Num sonho sempre39 em flor, Amei uma s´ovez.

Guilherme de Faria n˜aointerpreta isoladamente a figura de Em´ıliaCastro. Com efeito, h´atodo um contexto que ´etransportado do imagin´ariopo´eticode Ant´onioNobre para a constru¸c˜aoda identidade de um Guilherme de Faria que n˜aochegou a existir, que supostamente teria sido feliz numa paisagem rural, id´ılica,longe de Lisboa, junto a uma Em´ıliaCastro que talvez s´otenha existido nos versos do S´o de Ant´onioNobre ou nas apari¸c˜oespo´eticase on´ıricasde Guilherme de Faria. Para al´emdas qualidades evidentes que os seus poemas revelam, para al´em da cultura liter´ariaque adquire, para al´emda condi¸c˜aode poeta assumida fata- listicamente, o caso de Guilherme de Faria adquire uma singularidade na hist´oria da poesia portuguesa por um aspeto particular: como nenhum outro poeta, ele identifica-se dramaticamente com as suas leituras, assume fragmentos da vida e da obra de outros poetas, sobretudo de Ant´onioNobre, e confere-lhes uma vida nova, com uma densidade que assoma nos seus pr´opriospoemas e nos desabafos que guardou em centenas de cartas ´ıntimas. 37 38 Id., Destino, Lisboa, 1927, p. 41-44. 39 Ant´onioNobre, Poesia Completa, p. 230. Guilherme de Faria, Manh˜ade Nevoeiro, Lisboa, 1927, p. 11.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 121

Em Guilherme de Faria ´emuito dif´ıcilseparar aquilo que ´edo dom´ınioda vida — o quotidiano, as rela¸c˜oes,a forma¸c˜aoescolar, a atividade profissional, etc. –, daquilo que ´eespecificamente do dom´ınioda literatura. Isto acentua a condi¸c˜aode «poeta romˆantico»e a fatalidade de um comportamento tendencial- mente mim´eticoem que dificilmente se distingue o que ´eoriginariamente seu e o universo liter´arioassimilado nas suas leituras e nas proje¸c˜oesque essas leituras lhe possibilitaram. Para al´emdas evidentes semelhan¸casa que j´aaludi, entre Em´ıliaCastro e a descri¸c˜aode Margarida de Lucena por Ant´onioNobre, em «Purinha», a fam´ılia de Manuel e Em´ıliatinha sido ´ıntimade Ant´onioNobre: a sua m˜ae,Em´ılia Maria das Dores Teles da Gama, e os seus tios conviveram com o poeta com grande proximidade em 1898, na ilha da Madeira.40 S˜aov´ariasas referˆenciase as fotografias que testemunham estas rela¸c˜oes . Neste contexto, importa salientar a bem descrita41 e ilustrada camaradagem entre Ant´onioNobre e Domingos Teles da Gama e o soneto que o poeta dedica `am˜aede Manuel e Em´ılia,no dia 20 de novembro de 1889, posteriormente recolhido na edi¸c˜aode Despedidas, em 1902. Como se Em´ıliaTeles da42 Gama n˜aogostasse do seu nome — «Em´ılia´es, quer queiras, ou n˜aoqueiras» —, Ant´onioNobre pressagia: Que Santa Em´ıliate acompanhe, Rainha! E com a tua M˜ae,seja madrinha, Quando ela, um dia, te levar `aigreja! E, ´opura Gl´oria,que em teus olhos brilha! Doces press´agiosmeus, que a tua43 filha Seja loira tamb´eme Em´ıliaseja! Em´ıliaTeles da Gama cumpriu o vatic´ıniode Nobre e pˆos`asua filha o nome de Em´ılia.E ´epor esta menina que Guilherme de Faria se apaixonar´a. Num impressionante poema n˜aodatado, provavelmente de 1926, o jovem poeta enuncia a proposta da sua automitografia, legitima o seu amor e profetiza o seu pr´oprionascimento na voz de Ant´onioNobre: Ora ouvi, ouvi, que ´euma doce hist´oria A que vou contar-vos. . . Conto-a de mem´oria, 40 Cf. M´arioCl´audio, Ant´onioNobre — Fotobiografia, Lisboa: Publica¸c˜oesD. Quixote, 2001,41 p. 156-157. Guilherme de Faria, nas suas estadas na Quinta de Santo Ant´onio, em Vila Franca de Xira, conviveu com Domingos Teles da Gama, a quem dedicou o poema «Balada do fim do42 mundo» (Saudade Minha, 1926, p. 41-44) e com quem se correspondeu regularmente. 43 Ant´onioNobre, Poesia Completa, p. 390. Id., ibid.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

122 Jos´eRui Teixeira

Pois no meu sentido, na minha alma a trago Viva sempre, e cheia desse encanto vago

Que para mim teve, mal eu a escutara A uma voz saudosa, certa noite clara:

— «Uma vez um poeta, namorado e estranho, De inspira¸c˜aocasta e peregrino engenho,

Ao louvar um nome de beleza infinda, E a Senhora dele, mais formosa ainda,

Disse-lhe, num canto cheio de harmonia, Esta encantadora e maga profecia:

— Heis de ter, Senhora, pela vida fora, Como padroeira, como protetora,

Milagrosa Santa que ´ena eternidade Vossa irm˜ano nome como na bondade.

E quando casardes, h´ade a vossa Filha, Como v´os,Senhora, linda `amaravilha,

Ter o nome, a gra¸caque em meu canto exalto! (E pensou ainda, sem o dizer alto:

Antes d’Ela, um outro poeta nascer´a Que o seu nome e gl´oriacerto exaltar´a!)»—

Mais do que qualquer quest˜aode natureza biogr´aficacircunstancial ou mesmo do que quaisquer intertextualidades e intratextualidades, o que mais intrinsecamente irmana Guilherme de Faria ao autor do S´o ´eesse rumor po´etico que possibilita44 o verso de Mais Poemas: «Oh meu p´alidoIrm˜ao, t˜aop´alidoe t˜ao doce!» . Com efeito, os dois poetas partilham uma intimidade perturbadora com a morte, as paisagens outoni¸case crepusculares, o mesmo modelo de idealiza¸c˜ao amorosa e a mesma vertigem de mar. Em dois vetores fundamentais, Ant´onioNobre marca significativamente o contexto no qual Guilherme de Faria folheou as p´aginasdo S´o: 44 Guilherme de Faria, Mais Poemas, 1922, p. 22. Encontrei um bilhete-postal com o retrato de Ant´onioNobre, onde Guilherme de Faria escreveu em 1922: «Oh meu divino Irm˜ao, t˜aop´alidoe t˜aodoce!».

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 123

Enquanto decadentista, o lirismo de Ant´onioNobre dava express˜ao po´eticaparadigm´atica`adepress˜aonacional advinda da crise pol´ıti- ca e ao maremoto pessimista (e suicid´ario)que varre a elite inte- lectual e art´ısticaportuguesa; enquanto neorromˆantico, o lirismo de Ant´onioNobre dava express˜aoparadigm´aticaa uma poesia de re- gresso `asfontes populares, de nostalgia hist´oricae de regenera¸c˜ao rural que, se n˜aoassegurava uma estrat´egiavitoriosa, oferecia uma divers˜aot´aticapara enfrentar justamente o fatalismo da decadˆencia nacional e o fatalismo da onda angustiosa, neurast´enica,ao mesmo tempo que garantia o conforto da diferencia¸c˜aocasti¸caperante45 a prosperidade e for¸caestrangeiras [. . . ].

Tal como Guilherme de Faria, Ant´onioNobre fora um poeta precoce, a partir dos 15 anos, «uma ou outra vez revelando, em textos postumamente recolhidos nos Primeiros Versos, por que raz˜aopodia escrever num dos seus cadernos: “Nasci46 poeta. Tive g´enioe, sem rebu¸co/ Juro que j´asenti segundos de Cam˜oes!”» . Com efeito, o sentimento de predestina¸c˜aosuscita nos dois poetas «um narcisismo agressivo e origina tamb´em,em natural complementaridade, o afastamento de47 uma otimista confronta¸c˜aocom a vida e a proximidade da sombra da morte» . Tal como em Ant´onioNobre, existe em Guilherme de Faria uma tens˜aoentre existˆenciae mitogenia, entre a realidade e o sonho exaltante, entre o acutilante desengano e a crescente alucina¸c˜ao. A vis˜aopessimista da vida e o abatimento perante a decadˆenciade Portugal coexistem com a proje¸c˜aoevasiva de um mundo id´ılicoe rural, uma cartografia po´eticaque assinala os loca sancta da infˆancia. Tudo isto encontramos nos poetas neorromˆanticose, consequentemente, na poesia e nas cartas de Guilherme de Faria, onde se sente apenas a ausˆenciada Coimbra eleg´ıacae tradicional que Jos´eCarlos Seabra Pereira define como «s´ıtioda48 peregrinatio individual e da geografia sentimental de todo o neorromantismo» . Guilherme de Faria, na poesia e no epistol´ario, manifesta permanentemente o desejo de uma vida diferente da sua, o sentimento de que n˜aopertence `a realidade hist´oricaque lhe fora imposta e que assumiu como um ex´ılio, do qual se libertou pela morte. O universo alternativo que Guilherme de Faria idealiza ´eo mesmo que aparece descrito de um modo recorrente na poesia de Ant´onio 45 Jos´eCarlos Seabra Pereira, «A Poesia Nova do Fim-de-S´eculo:Eug´eniode Castro, Camilo Pessanha, Ant´onioNobre», in Hist´oriada Literatura Portuguesa: Do Simbolismo ao46 Modernismo [vol. 6], p. 81. 47 Id., ibid., p. 65. 48 Id., ibid., p. 72. Id., ibid., p. 64.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

124 Jos´eRui Teixeira

Nobre, particularmente na «Can¸c˜aoda Felicidade». Mas h´auma impiedosa ironia neste processo: Guilherme de Faria idealiza uma idealiza¸c˜ao. Na verdade, n˜aoh´anada no S´o que lhe pudesse valer. E n˜ao´ea alternativa dolorosa de engano e desengano que mais os afeta: «´ea inalterada carˆenciade interesse de que a existˆenciase reveste,49 numa monotonia estagnante e mort´ıfera. O taedium vitae ´eomnipresente» . O S´o ´eatravessado por alus˜oesa figuras, preces e pr´aticasdo universo do catolicismo, mas para al´em«desta interse¸c˜aoest´eticado mundo religioso, h´a passos onde o poeta parece integrar-se nele,50 ao menos pela identifica¸c˜aoou vibra¸c˜aosimp´aticacom os que o rodeiam» . Acontece o mesmo na poesia de Guilherme de Faria. Nos dois poetas encontramos, ocasionalmente, uma verda- deira profiss˜aode f´ee de plenitude espiritual, «mas estas, no pr´opriomomento em que se afirmam,51 mancham-se com o parentesco da crendice e vˆema consentir na sua impotˆencia» . Em Guilherme de Faria, como em Ant´onioNobre, a «incon-52 sistˆenciadesta religiosidade contrasta com o relevo da inquieta¸c˜aometaf´ısica» e, por desgra¸ca,um e outro encontram aconchego na escurid˜aopacificadora da morte. 53 O S´o de Ant´onioNobre exerce a sua sedu¸c˜aopolidirecionada , como um fantasm´aticorumor. Mas talvez nenhum outro poeta neorromˆanticotenha sido t˜ao 49 50 Id., ibid., p. 73. 51 Id., ibid., p. 74. 52 Id., ibid. 53 Id., ibid. [. . . ] «gra¸casa not´aveisqualidades espec´ıficasde efeito real e de encantamento evasivo, de aderˆenciaao genuinamente nacional e popular e de subliminares ironias in- tegr´aveisna ironia maior do alcance prof´eticode um discurso narcisista e do alcance ces´areode um discurso infantilista e feminil — qualidades essas atualizadas gra¸casa uma certeira explora¸c˜aodas virtualidades da l´ınguae das suas varia¸c˜oes,bem como a uma eficaz explora¸c˜aodos subsistemas ret´orico-estil´ıstico, t´ecnico-compositivoe pros´odico- -versificat´orio. Da´ıresultam os tra¸cosinconfund´ıveise o apelo irrecus´aveldo seu estilo iterativo e evocativo, exclamativo e coloquial; da´ıresulta, por outro lado, que “coisas li- teralmente mortas, como invers˜oesfr´asicasexigidas pela rima, per´ıfrases pedantes ou de necessidade versificat´oria,condu¸c˜aoainda discursiva e conceituosa do soneto, alus˜oes culturais em moda, acotovelam-se com recursos mais vivazes, e todavia simples, de sin- taxe exclamativa e dialogal, a-prop´ositosincisos, repeti¸c˜oese paralelismos no verso ou na estrofe — coisas que com uma candidez arrebatante conseguem diluir todos os grumos da banalidade ou pedantice num movimento maior de conjunto”. Mas Ant´onioNobre n˜ao se tornou apenas o autor de uma obra modelar e o detentor de um thesaurus de temas e estilemas para a poesia anti-naturalista do fim-de-s´eculoe para a poesia neorromˆantica do primeiro quartel do s´eculoXX. Ant´onioNobre, ou Anto, tornou-se tamb´em,e sobretudo, uma dramatis persona dessa poesia neorromˆanticae um seu motivo importante; tornou- -se, ele mesmo, um macrossigno liter´ario, relevante no subsistema semˆantico-pragm´atico

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 125

influenciado por Ant´onioNobre como Guilherme de Faria. A experiˆenciada lei- tura do S´o, neste contexto, possibilita-nos um retrato dram´aticoe expressionista54 desse poeta em que «a Dor,55 que morava com ele no peito,/ Com ele crescia. . . » , «Mo¸coLus´ıada! crian¸ca!» . Guilherme de Faria poderia ter sido o autor das palavras que Ant´onioNobre,56 alguns anos antes, tinha escrito: «Quero viver, eu sinto-o, mas n˜aoposso» . Nas p´aginasdo 57S´o encontra um caminho sem retorno:58 «Que fazer? Porque n˜aonos suicidamos?» , «Estive j´apra59 me matar. . . » . E se Antero evoca o mar como «Sepultura romˆantica» , Ant´onioNobre ´e ainda mais expl´ıcito: «Quando eu morrer [. . . ] / Deitem-me ao Mar! [. . . ] Irei indo de fr´aguaem60 fr´agua,/ At´eque, enfim, desfeito em ´agua,/ Hei de fazer parte do Mar!» . Guilherme de Faria estabelece um di´alogoperturbador com Ant´onioNobre. Descal¸coe com um ter¸code rezar ao pesco¸co, com apenas 21 anos de idade, Guilherme de Faria precipitou-se no mar. As fragas, a ´aguafria e a violˆencia das vagas reclamaram o seu corpo. Diante do S´o, ocorre-nos a interroga¸c˜ao: quantos dos seus versos teriam servido de epit´afioa Guilherme de Faria?

CAMILO PESSANHA 1867-1926 61 Guilherme de Faria era parente afastado de Camilo Pessanha . explorado pela poesia neorromˆanticae, ainda, representa¸c˜aomais l´ıdimado “Poeta” e do “Poeta portuguˆes”, isto ´e,em termos de metalinguagem liter´aria,metamorfose genuina- mente nacional do bardo genial e maldito do Romantismo». Jos´eCarlos Seabra Pereira, «A Poesia Nova do Fim-de-S´eculo:Eug´eniode Castro, Camilo Pessanha, Ant´onioNo- bre», in Hist´oriada Literatura Portuguesa: Do Simbolismo ao Modernismo [vol. 6], p. 82.54 55 Ant´onioNobre, Poesia Completa, p. 168. 56 Id., ibid., p. 176. 57 Id., ibid., p. 305. 58 Id., ibid., p. 311. 59 Id., ibid., p. 168. Cf. Antero de Quental, Poesia Completa, Lisboa: Publica¸c˜oesD. Quixote, 2001, p. 255-256.60 61 Ant´onioNobre, Poesia Completa, p. 171. A m˜aede Guilherme de Faria, L´uciaEduarda Pessanha de Sequeira Braga Leite de Faria, que nasceu em Miranda do Douro, no dia 20 de novembro de 1881, descendia de Manuel Pessanha, um genovˆesque D. Dinis encarregara de reorganizar a incipiente

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

126 Jos´eRui Teixeira

Juntamente com Antero de Quental e Ant´onioNobre, Camilo Pessanha foi uma figura tutelar para o jovem poeta, que lhe dedica um artigo, publicado em janeiro de 1927, n’A Folha do Lado:

Morreu, h´ameses, no seu ex´ılio volunt´arioem Macau, o grande Poeta Camilo Pessanha. [. . . ] Poeta, pela sensibilidade extraor- din´ariae pela inspira¸c˜aooriginal´ıssima, Camilo Pessanha at´eda sua gera¸c˜aoliter´ariafoi ignorado ou, pelo menos, esquecido. S´o Alberto Os´oriode Castro e o lembraram, nas suas obras, com enternecidas palavras. [. . . ] Para alguns, como eu, o aparecimento e leitura da Clepsidra foram motivo de imperec´ıvel consola¸c˜aoe grat´ıssimo orgulho. Cansado da m´apoesia que, por quase todas essas obras contemporˆaneas,ora se desmancha em deselegˆanciasafectadas, ora se conturba e escurece de nevoeiros «saudosistas» que visam s´ofalsear o puro sentimento portuguˆes,eu tive a boa sorte de encontrar o livro de Camilo Pessanha. Apesar de parente do Poeta, eu n˜aotinha, em virtude da sua ausˆencia,a ventura de o conhecer. E aos seus versos desconhecia-os tamb´em. Foi assim que os meus alvoro¸cadostreze anos encontra- ram, perfumados e frescos da eterna gra¸caportuguesa, estes poemas de Clepsidra; e ainda hoje, ao reler os versos de maravilha, neles encontro, viva, a angustiosa express˜aodo ex´ılio[. . . ]. E nesse livro bem-amado, foi-me dado encontrar de novo o puro sentido e o ledo e brando ritmo da Poesia portuguesa. Passando sobre todas as m´asinfluˆenciase piores inten¸c˜oesda poesia revolucion´aria,e bem extremada das sombras bizantinas do simbolismo francˆes(porque Camilo Pessanha n˜ao´eum simbolista de escola), enfim, depurada de tudo quanto ´eestranho e inferior na nossa poesia, a alma l´ırica dos Cancioneiros62 perpassa e plange, enamorada nos versos deste Poeta .

Guilherme de Faria, de certo modo escrevendo sobre si pr´oprio, demarca- -se do saudosismo e do modernismo e situa-se￿ na continuidade da poesia de Camilo Pessanha. Curiosamente, ao folhear a 1. edi¸c˜aode Clepsidra, de 1920, percebemos onde o jovem poeta foi buscar inspira¸c˜aopara a publica¸c˜aodos seus Poemas e Mais Poemas, em 1922: o tipo de papel, o modo de apresenta¸c˜aodos t´ıtulosou a disposi¸c˜aodos sonetos. armada portuguesa e a quem concedeu o t´ıtulode Almirante de Portugal em 1317 [cf. Jos´e Benedito de Almeida Pessanha, Os Almirantes Pessanhas e Sua Descendˆencia, Porto: Imprensa62 Portuguesa, 1923]. Guilherme de Faria, «Um Poeta portuguˆes», A Folha do Lado, 30-01-1927.

www.clepul.eu

i i

i i i i

i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 127

Sobre o exemplar de Clepsidra que pertenceu a Guilherme de Faria, en- contramos um interessante testemunho de Jos´eGomes Ferreira, escrito no seu di´ario, no dia 7 de junho de 1968: ￿ Esta manh˜a,ao remexer nos livros da estante, encontrei a 1 edi¸c˜ao da Clepsidra, ou antes da Clepsydra, de 1920. Pertenceu a Gui- lherme de Faria (lˆe-sea assinatura bem n´ıtida— letra tipo afon- solopesvieiresco — numa das folhas de guarda) e foi-me oferecida pelo Manuel Mendes, amigo ´ıntimodo infeliz poeta de Saudade Minha. Folheie-o com a lentid˜aode quem caminha num museu. Ou procura um rasto. Logo os primeiros quatro versos da Inscrip¸c˜ao (assim mesmo com «p») — Eu vi a luz de um paiz (com «z») perdido, etc. — est˜ao assinalados com uma chaveta a l´apis. Ades˜ao. Depois, come¸camos sonetos — ou melhor, os «sonˆetos»com acento circunflexo no «e». O primeiro — Tatuagens complicadas do meu peito, etc. — n˜aotem qualquer tra¸coa real¸c´a-lo. Interessou pouco a Guilherme de Faria. (Em compensa¸c˜ao, Am´ericoDur˜aoleu-o, por certo, apaixonado.) J´ao segundo — Cancei-me de tentar o teu segrˆedo, etc. — me- receu a honra de um risco cont´ınuode aprova¸c˜ao. Mas o terceiro — Phonographo (assim com todos estes phs) — s´olhe impˆosum verso: Ante o Seu corpo o sonho meu flutua... O pr´oximo— Desce em folhedos tenros a collina (com dois ll)— ostenta uma bela seta, levemente curva e vinda do alto, apontada `a cabe¸cado soneto. E aqui temos agora o Esvelta surge! Vem das aguas, nua, etc. — convenientemente riscado com carinho aprovador. O seguinte — Depois da lucta e depois da conquista, etc. — passou despercebido. E encontramo-nos ent˜aodiante de Quem polluiu, quem rasgou os meus len¸coesde linho. (Dois ll em poluiu.) Entusiasmado no carregar do l´apise no «G» rabiscado no princ´ıpio do primeiro verso como que a dizer: Gostaria que este soneto fosse meu. Entretanto volto a p´aginae leio O´ meu cora¸c˜aotorna para traz, etc., onde n˜aodescubro qualquer marca de ades˜ao. Mas o entusiasmo suscitado pelo Quem polluiu, etc., n˜aotem tempo para arrefecer, pois aparece logo o Floriram por engano as rosas bravas riscado de cima a baixo. Ao que se segue o soneto E eis quanto resta do

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

128 Jos´eRui Teixeira

idyllio acabado / — Primavera que durou um momento. . . —s´o com esses dois versos destacados. (Aproveitamento n´ıtidoda voz alheia para uma confiss˜aopessoal.) Entramos ent˜aona parte do livro intitulada Poesias. A primeira deve ter feito c´ocegasnas convic¸c˜oesmon´arquicasde Guilherme de Faria, porque n˜aoresistiu a chamar a aten¸c˜aode si mesmo para estes versos de sabor her´aldico: E quando, ´oDˆoceInfanta Real, Nos sorrir´asdo belveder? — Magra figura de vitral, Por quem n´osfomos combater. . . E surge o c´elebrepoema N˜aosei se isto ´eamor com um «E» bem desenhado a l´apisno alto da p´agina— talvez a inicial do nome da mulher amada. No final da poesia, como que a assinar aquela carta l´ırica`asua «E», o nome sincopado do poeta: Guilhe (imita¸c˜aodo «Anto»). Voa depois, r´apido, sobre o Rufando apressado / e bamboleando, etc. e. . . (Preparem-se para o grande choque imprevisto.) Na minha frente est´auma poesia a que dois tra¸cos,na primeira e ´ultimaquadra, d˜ao um significado terr´ıvel. E leio, a compreender: Ao meu cora¸c˜aoum peso de ferro Eu hei-de prender na volta do mar. Ao meu cora¸c˜aoum peso de ferro. . . Lan¸cae-oao mar. A ´ultimaquadra ´eesta: A sete chaves, — a carta encantada! E um len¸cobordado. . . Esse hei-de-o levar, Que ´epara o molhar na agua salgada No dia em que enfim deixar de chorar As restantes poesias j´anem as li. S´ouma, ali´as,n˜aoestava mar- cada. Aquela, lind´ıssima: De sob o cˆomoroquadrangular Da terra fresca que me ha-de inhumar... Mas a Guilherme de Faria n˜aointeressava a terra. (A terra de morrer.) Interessava sim o mar indicado neste volume da Clepsydra como o itiner´ariodo seu suic´ıdio:

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 129

Ao meu cora¸c˜aoum peso de ferro. . . Lan¸cae-oao mar. Porque Guilherme de Faria afogou-se. A 4 de Janeiro de 1929. Talvez por amor a «E». Conheci-o. Sombra vaga. Hei-de pedir aos meus filhos e aos filhos dos meus filhos que n˜ao se desfa¸camdesta primeira edi¸c˜aoda Clepsydra de 1920. . . que a ausˆenciade numera¸c˜ao, os yy, os phs, as letras dobradas e os acentos circunflexos, tornam os versos mais belos e estranhos. Mas sobretudo porque esteve nas m˜aosdum pobre poeta malogrado que nele aprendeu a morte. . . Seguiu-a de verso em verso.63 . . E, ainda hoje, as impress˜oesdigitais magoam o papel.

Como se percebe neste testemunho de Jos´eGomes Ferreira, o que une Gui- lherme de Faria a Camilo Pessanha n˜ao´eo parentesco, nem mesmo uma suposta reminiscˆenciaquinhentista nos versos de Clepsidra. O que verdadeiramente os une ´euma identidade po´eticae ontol´ogicaprofunda. Com efeito, n˜aopodemos deixar de pensar em Guilherme de Faria quando lemos a carta que Camilo Pes- sanha escreveu ao seu pai, quando chegou a Macau: «minha infˆancia,virtual, pois que eu n˜aome64 lembro de ter tido uma infˆancia(h´amuitos cism´aticosque nascem velhos)» ; n˜aopodemos deixar de pensar em Guilherme de Faria quando recordamos a amizade que Camilo Pessanha partilhava com Alberto Os´oriode65 Castro e o amor n˜aocorrespondido pela irm˜ado amigo, Ana Os´oriode Castro ; n˜aopodemos deixar de pensar em Guilherme de Faria quando pensamos nas limita¸c˜oespessoais de fragilidade f´ısica,na figura desinteressante de estr´abico franzino, na nula sedu¸c˜aoexercida sobre o sexo feminino, no tendencial66 dese- quil´ıbrionervoso ou na instabilidade psicol´ogicade Camilo Pessanha . Em 1895, numa carta a Alberto Os´oriode Castro, v´ıtimade um doloroso drama psicol´ogico-moral e de um cont´ınuoprocesso de degrada¸c˜ao´ıntima,Camilo Pessanha escreve: «Sabe que eu tamb´emando por esses mares fora sempre a 63 Jos´eGomes Ferreira, Dias Comuns V — Continua¸c˜aodo Sol, Alfragide: Publica¸c˜oes D.64 Quixote, 2010, p. 23-26. Camilo Pessanha, Correspondˆencia,Dedicat´oriase Outros Textos, Lisboa: BNP, 2012,65 p. 223. Cf. Jos´eCarlos Seabra Pereira, «A Poesia Nova do Fim-de-S´eculo: Eug´eniode Castro, Camilo Pessanha, Ant´onioNobre», in Hist´oriada Literatura Portuguesa: Do Simbolismo66 ao Modernismo [vol. 6], p. 49. Cf. id., ibid., p. 46.

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

130 Jos´eRui Teixeira

67 escolher o melhor lugar da minha sepultura?» . Guilherme de Faria encontr´a- -la-ia num mar mais pr´oximo. Acentuando a dimens˜aodisf´oricada poesia de Camilo Pessanha, Jos´eCar- los Seabra Pereira evoca a atitude derrotista que se manifesta num ceticismo fenomenista que em tudo vˆecontingˆencia,aparˆenciae efemeridade; o fatalismo, a ausˆenciade alternativa feliz para a sua condi¸c˜ao, a expectativa da morte, a aguda convic¸c˜aoda inconstˆanciado mundo e da vida, a perecibilidade dos po- deres e for¸casdas criaturas, a fugacidade da ventura. Camilo Pessanha, como mais tarde Guilherme de Faria, «funde em m´ultiplospoemas, o desengano com a mundividˆenciafatalista68 e pessimista, de par com os consequentes apelos `a apatia» . Com efeito, Guilherme de Faria escutou atentamente os «repetidos apelos de69 Camilo Pessanha para refrear a sensibilidade e para o sono ab´ulicoe alheado» . E´ por isso que em Guilherme de Faria, como antes em Ant´onioNobre, Camilo Pessanha e M´ariode S´a-Carneiro, ganha particular coerˆenciao t´opico, frequente na l´ıricadecadentista,70 da aspira¸c˜aoao derradeiro adormecimento, a entrega a uma mors liberatrix .

CONCLUSAO˜

A ef´emera existˆenciade Guilherme de Faria possibilita-nos uma perspetiva muito interessante da hist´oriada literatura portuguesa: ´ecomo uma sentinela, o romˆanticoguardi˜aode um tesouro esquecido, poeta que assumiu — talvez mais do que qualquer outro — uma existˆencialiter´aria,profundamente configurada com as suas leituras. Franzino, irrequieto, de grandes olhos negros a arder na face iluminada, Guilherme de Faria foi esse rapaz raro que escolheu adormecer nas brumas de um qualquer encoberto m´ıticoe que foi, nas palavras de Alfredo Pimenta, «o 67 68 Camilo Pessanha, Correspondˆencia,Dedicat´oriase Outros Textos, p. 116. Jos´eCarlos Seabra Pereira, «A Poesia Nova do Fim-de-S´eculo:Eug´eniode Castro, Camilo Pessanha, Ant´onioNobre», in Hist´oriada Literatura Portuguesa: Do Simbolismo ao69 Modernismo [vol. 6], p. 60. 70 Id., ibid. Cf. Jos´eRui Teixeira, «Qualquer coisa de interm´edio. Da estesia `aastenia: o sono ab´ulico, a morte e outras derivas intertextuais na poesia de M´ariode S´a-Carneiro», in Fernando Curopos e Maria Ara´ujoda Silva (org.), Paris, M´ariode S´a-Carneiroet les autres, Paris: Editions´ Hispaniques, 2017, p. 79-96.

www.clepul.eu

i i

i i i i i i

Aos ombros de gigantes: a rela¸c˜aode Guilherme de Faria com Carlos de Lemos, Raul Brand˜ao, Ant´onioNobre e Camilo Pessanha 131

´ultimoPoeta portuguˆes,que aos 21 anos se deixou enfeiti¸carpelo71 marulho das ondas e no seio destas se foi cantar a sua ´ultimaestrofe» . O modo como a sua vida e obra intercetam as vidas e as obras destes quatro autores nascidos em 1867, permite-nos — mais do que uma adi¸c˜aode conheci- mentos espec´ıficos— um olhar mediado, intensamente idiossincr´atico, um desses lugares onde a vida e a literatura n˜aose distinguem.

71 Alfredo Pimenta, dedicat´oriamanuscrita na p´aginade rosto do exemplar de Saudade Minha (poesias escolhidas) oferecido ao Dr. Ricardo Jorge, 18-06-1935 (exemplar que se encontra na Biblioteca Municipal do Porto).

www.lusosofia.net

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

e

i i

i i i i i i

i i

i i i i i i

Esta publica¸c˜aofoi financiada por Fundos Nacionais atrav´esda FCT — Funda¸c˜aopara a Ciˆenciae a Tecnologia, I.P. no ˆambitodo Projecto «UID/ELT/00077/2013»

i i

i i i i i i

i i

i i