Tóquio, Em Maio Ao Caminhar Por Hillside, Vemos Um Monumento, Rígido E Cristalizado No Tempo
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Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 10 • Público • Domingo, 27 de Setembro de 2020 Esta é a primeira de cinco partes de uma série sobre uma viagem pelo arquipélago e pela história cultural do Japão. Cada ensaio explora diferentes paisagens e intervalos históricos marcados por obras e autores cruciais para definir a memória cultural desse território. Cada ensaio tem uma componente fotográfica, cujas imagens expandem a constelação de associações apresentadas no texto. Decidimos utilizar o título Primavera Tardia em homenagem à obra de Yasujiro Ozu, e por termos viajado em Junho — o incrível mês da chuva — na transição entre a Primavera e o início do Verão de 2019, num mundo pré-apocalíptico em que a pandemia ainda era uma ameaça distante. Visões do futuro Tecno- distopias Utopias metabolistas de um modo orgânico ao longo do tempo, consoante novas necessidades funcionais, aímos da linha de metro Hibiya tecnológicas e sociais. Em Nakagin o em Higashi Ginza e princípio metabolista consistia na caminhamos para oeste ao possibilidade de cada cápsula poder ser longo das ruas de traçado substituída regularmente — como se fosse de Tóquio regular de shitamachi — a zona uma peça de um enorme Lego —, algo que, baixa de Tóquio. Gradualmente apesar de planeado, nunca chegou a o topo ferrugento e o perÆl acontecer. irregular da Nakagin Capsule Da rua notamos que muitas das cápsulas Tower (1972), desenhada por Kisho mostram através dos seus óculos os detritos SKurokawa, começa a separar-se do resto do acumulados ao longo de décadas de Primavera Tardia Ensaio Uma viagem contexto urbano. À medida que nos abandono, ao mesmo tempo que outras aproximamos, notamos que a torre está foram renovadas e são utilizadas como pelas ruas e ilhas de Tóquio, onde envolvida por uma rede, como se tivesse pequenos escritórios ou apartamentos de sido arrastada do fundo da baía de Tóquio ao Æm-de-semana. Apesar de ser um ícone da arquitectos, cineastas e escritores Æm de anos debaixo de água. Vêem-se tubos arquitectura japonesa do pós-guerra, Çexíveis que descem ao longo da torre a existem planos para a sua demolição e um encenaram as suas visões de um futuro partir de várias dezenas de cápsulas ligadas a grupo de activistas está a organizar uma um núcleo central de 11 andares. Cada uma campanha para salvar Nakagin, Ænanciada entre o sonho e a catástrofe. Tange, das 140 cápsulas é um paralelepípedo (2,5 x através da organização de visitas guiadas e 2,5 x 4 metros) pré-fabricado em aço, com publicações. Murakami, Oshima, Otomo e Shinohara. um enorme óculo num dos lados, que No interior de uma das cápsulas vemos o originalmente servia de habitação mobiliário e o equipamento Sony originais, Lugares que revelam a metrópole como temporária para os salaryman nos dias em assim como a engenhosa mesa desdobrável, que não podiam regressar à sua casa nos em dez metros quadrados onde só cabem um laboratório de utopias e distopias subúrbios de Tóquio. uma cama e uma casa de banho, uma janela Nakagin é talvez a mais icónica obra dos circular e uma televisão, tudo ultrafuncional metabolistas, um grupo de jovens e confortável — a versão arquitectónica do arquitectos japoneses que, nas décadas de walkman. Seria admirável que a campanha Por Eliana Sousa Santos texto 1960 e 70, apresentaram propostas radicais para salvar Nakagin tivesse sucesso. No para edifícios e espaços urbanos, cuja ideia entanto, é irónico que, para isso, se tenha de Tiago Silva Nunes texto e fotografia central era a possibilidade de se adaptarem transformar um edifício metabolista — logo Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. Público • Domingo, 27 de Setembro de 2020 • 11 Radicalismo e austeridade À esquerda, pormenor da Nakagin Capsule Tower (1972), de Kisho Kurokawa. Nakagin é talvez a mais icónica obra dos metabolistas, um grupo de jovens arquitectos japoneses que, nas décadas de 1960 e 70, apresentaram propostas radicais para edifícios e espaços urbanos. Em baixo, campus de Toyama da Universidade de Waseda, onde fica a Faculdade de Letras. Aqui sucedem-se os edifícios austeros do pós-guerra de Hillside Terrace, o projecto que Fumihiko Maki — outro jovem metabolista — começou nesta rua em 1969, a convite dos proprietários desta área, a família Asakura. Atrás de Hillside ainda se vê o perÆl curvo do telhado da antiga residência de Torajiro Asakura que sobreviveu ao terramoto de 1923, aos bombardeamentos de 1945 e ao À medida que nos crescimento urbano dos anos 1980. em constante transformação — num Conference (WoDeCo) de Tóquio, em Maio Ao caminhar por Hillside, vemos um monumento, rígido e cristalizado no tempo. desse ano. aproximamos, conjunto de edifícios cinzentos claros dentro Voltamos para a linha Hibiya e emergimos A maioria dos metabolistas tinha estudado do cânone formal modernista, todos em Roppongi, sob uma das muitas no Tange Lab da Universidade de Tóquio notamos que diferentes mas semelhantes, adaptados ao auto-estradas elevadas que atravessam com Kenzo Tange — o mais importante contexto topográÆco e à escala humana, Tóquio e que aqui ensombra uma avenida de arquitecto japonês do pós-guerra. Nos meses Nakagin está como numa pequena vila no Mediterrâneo. edifícios altos cobertos por anúncios que precederam a WoDeCo, Tange leccionou Depois do Tange Lab, Maki continuou os publicitários. Viramos numa perpendicular e um semestre nos EUA, tendo desenvolvido o envolvida por seus estudos e carreira nos EUA, e a partir de subitamente — numa transição urbana e Boston Harbor Plan com alunos do MIT — um 1958 passou vários anos a investigar cidades espacial abrupta que é comum em Tóquio — exercício que foi um laboratório uma rede, como se por todo o mundo. A versão do metabolismo estamos numa pequena rua calma, onde por experimental para o Plan for Tokyo 1960, um proposta por Maki em Investigations in cima dos muros se adivinham escolas plano urbano radical e utópico que se tivesse sido Collective Form (1964) — group form — é mais privadas, embaixadas e museus, ocupando estendia pela baía de Tóquio, que Tange subtil, discreta e Çexível do que a de Tange e lotes urbanos cuja escala só resiste em áreas apresentou durante uma emissão televisiva arrastada do Kurokawa — megastructure — e, apesar de onde, no período Edo, havia residências de de uma hora na NHK, a 1 de Janeiro de 1961 — não ter a intensidade formal, nem a clareza samurai. Paramos em frente de um muro no num momento em que os protestos fundo da baía icónica de Nakagin, a soÆsticação e subtileza qual está inscrito The International House of estudantis, de Maio e Junho de 1960, contra compositiva de Hillside fazem com que seja Japan (I-House), um edifício modernista a ratiÆcação do Tratado de Cooperação e de Tóquio ao fim de ainda hoje um dos lugares mais elegantes, escondido num grande jardim, que foi Segurança (Anpo Joyaku) entre o Japão e os confortáveis e comunais de Tóquio. Ænanciado pela Rockefeller Foundation em Estados Unidos, dividiam a sociedade anos debaixo 1955, três anos após o Æm da ocupação japonesa. Norwegian Wood americana, e desenhado por um grupo de Deixamos o jardim da I-House com arquitectos que tinham trabalhado com Le relutância e voltamos à linha Hibiya. Saímos de água Na manhã seguinte, subimos a alameda de Corbusier em Paris — Kunio Maekawa, Junzo na estação de Ebisu em yamanote — a zona cedros do campus de Toyama da Sakakura e Junzo Yoshimura. alta de Tóquio — onde, ao contrário de Universidade de Waseda, onde Æca a Passamos as portas de vidro e shitamachi, não existem quarteirões com Faculdade de Letras, e vagueamos pelos sentamo-nos nas cadeiras confortáveis ao traçados rectos, mas ruas orgânicas que edifícios austeros do pós-guerra até lado da biblioteca — a olhar para o jardim e seguem a topograÆa e os limites das antigas descobrir um jardim elegante com um para as árvores impecavelmente podadas — propriedades dos senhores feudais do pequeno lago rodeado pelos lírios da onde os metabolistas se reuniram em 1960 período Edo. Caminhamos por pequenas Primavera tardia — hanashobu (Iris ensata). O para preparar o seu livro-manifesto, ruas secundárias até Daikanyama (yama, campus está deserto, até que pelas nove Metabolism: The Proposals for a New como em yamanote, signiÆca “montanha”) horas os primeiros estudantes chegam Urbanism, apresentado na World Design onde vemos o perÆl discreto da primeira fase sozinhos com o olhar introspectivo e c Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 12 • Público • Domingo, 27 de Setembro de 2020 ausente de Toru Watanabe, o estudante de deambulações errantes de Toru e Naoko em Shinjuku como palco jardim do clã Maeda — o lago, construído em letras de Norwegian Wood (1987) — a obra de Norwegian Wood. Viramos “à direita em Em cima, rampas que fazem a 1638, no início do período Edo, foi mais Haruki Murakami cujo título evoca a canção Iidabashi,” passamos pelas livrarias do ligação à praça da saída oeste da tarde renomeado Sanshiro, em homenagem homónima dos Beatles que começa com os “cruzamento em Jinbocho,” com os seus Estação de Shinjuku, um dos palcos à obra de Soseki. Olhamos em volta para as versos “I once had a girl / Or should I say, she livros protegidos da chuva por plásticos dos protestos de 1969.