<<

Pedagogia da Pesquisa-Ação

Maria Amélia Santoro Franco Universidade Católica de Santos

Resumo

A pesquisa-ação tem sido utilizada, nas últimas décadas, de dife- rentes maneiras, a partir de diversas intencionalidades, passando a compor um vasto mosaico de abordagens teórico-metodológicas, instigando-nos a refletir sobre sua essencialidade epistemológica, bem como sobre suas possibilidades como práxis investigativa. O presente trabalho aprofunda reflexões sobre a pertinência e as possibilidades da pesquisa-ação como instrumento pedagógico e científico, buscando indicativos de respostas às questões: a pesqui- sa-ação deve ser essencialmente uma pesquisa intencionada à transformação participativa, em que sujeitos e pesquisadores interagem na produção de novos conhecimentos? Deve assumir o caráter formativo-emancipatório? Mediando pesquisas e estudos já realizados, buscou-se estruturar um processo pedagógico para a pesquisa-ação, que organize a questão da coerência entre a ontologia e a epistemologia pretendida na pesquisa. Para tanto, foi necessário estabelecer referências às questões: de que pesquisa falamos quando nos referimos à pesquisa-ação? Ou mesmo, de que ação falamos quando nos referimos à pesquisa-ação? E ainda, como pesquisa e ação se integram na prática pedagógica da pesquisa-ação? O trabalho realça que a pesquisa-ação, estruturada dentro de seus princípios geradores, é uma pesquisa eminentemente peda- gógica, dentro da perspectiva de ser o exercício pedagógico, con- figurado como uma ação que cientificiza a prática educativa, a partir de princípios éticos que visualizam a contínua formação e emancipação de todos os sujeitos da prática.

Palavras-chave

Pesquisa educacional – Pesquisa-ação – Prática pedagógica – Epistemologia.

Correspondência: Maria Amélia Santoro Franco Rua Campevas, 208 – Perdizes 05016-010 – São Paulo – SP e-mail: [email protected]

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 483 The pedagogy of action

Maria Amélia Santoro Franco Universidade Católica de Santos

Abstract

During the last decades, has been used in different ways, to different ends, giving rise to a mosaic of theoretical-methodological approaches, inviting us to reflect upon its epistemological essence, as well as upon its possibilities as an investigative praxis. This article promotes reflections about the appropriateness and possibilities of action research as a scientific and pedagogical instrument, hinting at answers to the following questions: should action research be essentially targeted at the participative transformation, where subjects and researchers interact in the production of new knowledge? Should it take on a formative-emancipative character? Drawing on existing research and studies, the text tries to compose a pedagogical process for action research that tackles the issue of the coherence between the ontology and the epistemology envisaged for the research. It was thus necessary to establish references for the questions: what research do we talk about when we refer to action research? Or even, what action do we talk about when we refer to action research? Or still, how do research and action come together in the pedagogical practice of action research? The present work highlights the fact that action research, structured according to its generating principles, is an eminently pedagogical research, under the perspective of being the pedagogical exercise, configured as an action that scientificizes the educative practice starting from ethical principles that have in sight the continual formation and emancipation of all subjects of the practice.

Keywords

Educational research – Action research – Pedagogical practice – Epistemology.

Contact: Maria Amélia Santoro Franco Rua Campevas, 208 – Perdizes 05016-010 – São Paulo – SP e-mail: [email protected]

484 Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 A pesquisa-ação tem sido utilizada, nas Este artigo realçará que, a partir de Lewin últimas décadas, de diferentes maneiras, a par- e após diferentes incorporações teóricas ao con- tir de diversas intencionalidades, passando a ceito e à prática da pesquisa-ação, muitas inter- compor um vasto mosaico de abordagens teó- pretações têm sido realizadas em nome da pes- rico-metodológicas, o que nos instiga a refle- quisa-ação, gerando um mosaico de abordagens tir sobre sua essencialidade epistemológica, metodológicas, que muitas vezes se operacio- bem como sobre suas possibilidades como nalizam na práxis investigativa, sem a necessá- práxis investigativa. ria explicitação de seus fundamentos teóricos, Parece unânime considerar que a pesqui- gerando inconsistências entre teoria e método e sa-ação tem suas origens nos trabalhos de Kurt comprometimentos à validade científica dos Lewin, em 1946, num contexto de pós-guerra, estudos. dentro de uma abordagem de pesquisa experi- mental, de campo. Suas atividades com pesqui- De que pesquisa falamos sa-ação foram desenvolvidas quando trabalha- quando nos referimos à va junto ao governo norte-americano. Suas pes- pesquisa-ação? quisas iniciais tinham por finalidade a mudan- ça de hábitos alimentares da população e tam- Se alguém opta por trabalhar com pes- bém a mudança de atitudes dos americanos quisa-ação, por certo tem a convicção de que frente aos grupos éticos minoritários. Pautava- pesquisa e ação podem e devem caminhar jun- se por um conjunto de valores como: a constru- tas quando se pretende a transformação da ção de relações democráticas; a participação dos prática. No entanto, a direção, o sentido e a sujeitos; o reconhecimento de direitos individu- intencionalidade dessa transformação serão o ais, culturais e étnicos das minorias; a tolerân- eixo da caracterização da abordagem da pes- cia a opiniões divergentes; e ainda a considera- quisa-ação. ção de que os sujeitos mudam mais facilmente Tenho observado, em recentes trabalhos quando impelidos por decisões grupais. Suas de pesquisa-ação, no Brasil, pelo menos três pesquisas caminhavam paralelamente a seus conceituações diferentes: estudos sobre a dinâmica e o funcionamento dos grupos. Sua forma de trabalhar a pesquisa- a) quando a busca de transformação é solici- ação teve grande desenvolvimento nas empre- tada pelo grupo de referência à equipe de sas em atividades ligadas ao desenvolvimento pesquisadores, a pesquisa tem sido conceitu- organizacional. ada como pesquisa-ação colaborativa, em Essa concepção inicial de pesquisa-ação que a função do pesquisador será a de fazer dentro de uma abordagem experimental, de parte e cientificizar um processo de mudança campo, adquire muitas feições fragmentadas anteriormente desencadeado pelos sujeitos durante a década de 1950 e modifica-se, estru- do grupo; turalmente, a partir da década de 1980 quan- b) se essa transformação é percebida como do absorve a seus pressupostos a perspectiva necessária a partir dos trabalhos iniciais do dialética, a partir da incorporação dos funda- pesquisador com o grupo, decorrente de um mentos da teoria crítica de Habermas, e assu- processo que valoriza a construção cognitiva me como finalidade a melhoria da prática da experiência, sustentada por reflexão crítica educativa docente. São fundamentais para tal coletiva, com vistas à emancipação dos sujei- enfoque os trabalhos de Elliot e Adelman, do tos e das condições que o coletivo considera Centro de Pesquisa Aplicada em Educação, da opressivas, essa pesquisa vai assumindo o ca- Grã Bretanha, junto ao Ford Teaching Project ráter de criticidade e, então, tem se utilizado (1973-1976). a conceituação de pesquisa-ação crítica;

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 485 c) se, ao contrário, a transformação é previ- lidade de pesquisa, pois o sujeito deve tomar amente planejada, sem a participação dos consciência das transformações que vão ocor- sujeitos, e apenas o pesquisador acompanha- rendo em si próprio e no processo. É também rá os efeitos e avaliará os resultados de sua por isso que tal metodologia assume o caráter aplicação, essa pesquisa perde o qualificativo emancipatório, pois mediante a participação de pesquisa-ação crítica, podendo ser deno- consciente, os sujeitos da pesquisa passam a ter minada de pesquisa-ação estratégica. oportunidade de se libertar de mitos e precon- ceitos que organizam suas defesas à mudança e Kincheloe (1997) afirma que a pesquisa- reorganizam a sua autoconcepção de sujeitos ação, que é crítica, rejeita as noções positivistas históricos. de racionalidade, de objetividade e de verdade A partir desse início de reflexão, cabe per- e deve pressupor a exposição entre valores guntar: a pesquisa-ação deve ser essencialmente pessoais e práticos. Isso se deve em parte por- uma pesquisa intencionada à transformação da que a pesquisa-ação crítica não pretende ape- realidade em que se insere? Deve ser uma pesquisa nas compreender ou descrever o mundo da fundamentalmente participativa, em que sujeitos prática, mas transformá-lo. e pesquisadores interagem na produção de novos A condição para ser pesquisa-ação crítica conhecimentos? Deve essa pesquisa assumir o é o mergulho na práxis do grupo social em caráter formativo-emancipatório? Respostas a es- estudo, do qual se extraem as perspectivas la- sas questões não são ainda consensuais. Porém, tentes, o oculto, o não familiar que sustentam vamos tentar uma aproximação de forma a encon- as práticas, sendo as mudanças negociadas e trar pistas à questão: de que pesquisa falamos geridas no coletivo. Nessa direção, as pesqui- quando nos referimos à pesquisa-ação? sas-ação colaborativas, na maioria das vezes, Se voltarmos às origens da pesquisa- assumem também o caráter de criticidade. ação, com , seguindo os comentá- No entanto, ainda podemos observar pes- rios de Mailhiot (1970), que foi seu aluno e quisadores iniciantes utilizarem-se da pesquisa- trabalhou com ele, a pesquisa-ação deve par- ação para implementarem projetos ou propostas tir de uma situação social concreta a modifi- pensados apenas por eles próprios ou mesmo, car e, mais que isso, deve se inspirar constan- muitas vezes, aplicando uma proposta de mudan- temente nas transformações e nos elementos ça idealizada por um superior hierárquico. Nesse novos que surgem durante o processo e sob a caso, a dimensão crítica e dialética da pesquisa influência da pesquisa. Por outro lado, segundo está sendo negada. A pesquisa-ação crítica deve ainda Mailhiot, de acordo com a concepção gerar um processo de reflexão-ação coletiva, em hegeliana do devir social, que impregnava o que há uma imprevisibilidade nas estratégias a pensamento de Lewin, este propõe como hipó- serem utilizadas. Uma pesquisa-ação dentro dos tese, “que os fenômenos sociais não podem ser pressupostos positivistas é extremamente contra- observados do exterior, do mesmo modo que ditória com a pesquisa-ação crítica. não podem ser observados em laboratório, de A pesquisa-ação crítica considera a voz modo estático” (p. 46). Para Lewin, os fenôme- do sujeito, sua perspectiva, seu sentido, mas não nos de grupo não revelam as leis internas de sua apenas para registro e posterior interpretação do dinâmica, “senão aos pesquisadores dispostos a pesquisador: a voz do sujeito fará parte da se engajar pessoalmente a fundo, neste dinamis- tessitura da metodologia da investigação. Nes- mo em marcha, a respeitar-lhe os processos de se caso, a metodologia não se faz por meio das evolução nos sentidos definidos que a História etapas de um método, mas se organiza pelas lhe imprime e, assim, favorecer-lhe, ao máximo, situações relevantes que emergem do processo. que se ultrapasse” (p. 47). Realça ainda Mailhiot Daí a ênfase no caráter formativo dessa moda- (1970) que, segundo Lewin, o pesquisador só

486 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. deve tentar modificar a dinâmica de um grupo tro, a descaracterização da mesma em termos a partir do consentimento explícito dos mem- de suas raízes epistemológicas. Começa-se tal- bros desse grupo. Dessa forma, segundo Lewin, vez, a partir daqui, a dificuldade em se respon- o pesquisador deve assumir constantemente os der à questão: de que pesquisa falamos quando dois papéis complementares: de pesquisador e nos referimos à pesquisa-ação? de participante do grupo. Outro alerta impor- A pesquisa-ação, nas décadas seguintes, tante de Lewin, considerado por Mailhiot, é que, fortalecer-se-á no espaço educacional: no en- para manter o ritmo de participação dos mem- tanto, segue um modelo simplificado em rela- bros do grupo, é fundamental que os grupos e ção à proposta de Lewin e se enquadra numa subgrupos tomem consciência da dinâmica ine- perspectiva positivista. Dois artigos marcam rente à situação social em evolução1 . esse período: um de Stephen Corey, de 1949, Pode-se observar que as origens da pes- e outro de Taba e Noel, de 1957, ambos bus- quisa-ação com Lewin identificam uma inves- cando formas de melhorar a prática docente e tigação que caminhe na direção da transforma- os resultados educativos. Metodologicamente ção de uma realidade, implicada diretamente falando, esses trabalhos pautavam-se mais em na participação dos sujeitos que estão envol- uma ação pesquisada, em que partiam da iden- vidos no processo, cabendo ao pesquisador tificação de problemas na escola; buscavam os assumir os dois papéis, de pesquisador e de fatores causais dos mesmos; formulavam uma participante, e ainda sinalizando para a neces- hipótese de intervenção; aplicavam com os sária emergência dialógica da consciência dos docentes; e avaliavam coletivamente as ações sujeitos na direção de mudança de percepção empreendidas. Percebe-se que, nesse caso, o e de comportamento. pesquisador tem um papel de investigador, mas Portanto, se considerarmos a proposta os docentes não eram, na realidade, alçados à inicial ao falarmos de pesquisa-ação, estaría- condição de pesquisador. No entanto, muda- mos pressupondo uma pesquisa de transforma- vam suas ações e refletiam sobre os resultados. ção, participativa, caminhando para processos Percebe-se que o ciclo em espiral, bastan- formativos. te importante a Lewin, que permitia reade- No entanto, segundo Kemmis (apud quações e alterações de rumo no processo, deixa Côte-Thibault, 1991), a pesquisa-ação vai sen- de existir. Há várias maneiras de se considerar a do objeto de interpretações e mudanças que “espiral cíclica”, vista como retomada em proces- modificam essa concepção original de Lewin: so das ações, análises, reflexões, numa dinâmi- dois artigos de Lippitt e Radke, datados de ca sempre evolutiva. Kurt Lewin (1946) conside- 1946, e outro artigo de Chein, Cook e Harding, rava que a pesquisa-ação é um processo de es- de 1948, apresentam a pesquisa-ação em ter- piral que envolve três fases: 1. planejamento, mos positivistas e com isso obstruem seu po- que envolve reconhecimento da situação; 2. to- tencial de desenvolvimento na direção inicial mada de decisão; e 3. encontro de fatos (fact- de Lewin. Esses autores distinguem quatro va- finding) sobre os resultados da ação. Esse fact- riedades de pesquisa-ação: a diagnóstica; a finding deve ser incorporado como fato novo na participante; a empírica; e a experimental. É fase seguinte de retomada do planejamento e relevante notar que essas quatro dimensões assim sucessivamente2 . estavam presentes na proposta de Lewin de forma integrada. Essa subdivisão foi aos pou- 1. Côte-Thibault (1991, p. 167) assim se refere: “La recherche-action cos permitindo a descaracterização dos proces- était à ce moment un essai, pour Lewin, d’incorporer systématiquement sos integrativos presentes na proposta lewi- la conscientisation de groupe dans um processus de recherche”. 2. Não me deterei mais neste aspecto por não ser o objeto deste niana, produzindo, de um lado, as múltiplas trabalho, no entanto essa noção de espiral cíclica está subsumida abordagens dessa forma de pesquisa e, de ou- nas reflexões que aqui realizo neste texto.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 487 Nesses casos, permanece a idéia de trans- Conforme já citado, Kemmis (1984) atri- formação da realidade, no entanto de forma bui o ressurgimento da pesquisa-ação aos tra- pontual em algum aspecto da realidade julga- balhos conduzidos por Elliot e Adelman, do do relevante. O foco desloca-se para o produto Centro de Pesquisas Aplicadas à Educação, na da mudança e não mais para o processo. Não há Universidade de East Anglia, na Grã-Bretanha, como negar que, por certo, os docentes envol- no projeto denominado de Ford Teaching vidos poderiam se beneficiar ao analisar os re- Project (1973-1976). Essas pesquisas se basea- sultados de forma coletiva ou mesmo ao parti- vam em Lewin e Stenhouse e se caracterizavam ciparem das mudanças planejadas. Contudo, por uma proposta de resolução de problemas a perde-se a perspectiva de um processo de pes- partir de abordagem pedagógica, realizada quisa desencadear nos práticos novas formas de metodologi-camente, por indução e descoberta. perceber e lidar com a situação, formas essas Para responder à pergunta de que pes- que passariam a ser objeto de pesquisa; perde- quisa falamos quando nos referimos à pesqui- se também o imbricamento entre pesquisa e sa-ação?, será importante considerar que, se- ação. Stanford (apud Cote-Thibault, 1991), ao gundo Carr e Kemmis (1986), essa mudança comentar o declínio das pesquisas-ação em edu- empreendida na década de 1970 é muito dife- cação no final dos anos de 1950, especula que rente daquela empreendida no final dos anos isso pode ter ocorrido pela dissociação gradativa de 1940. As razões são as seguintes: entre pesquisa e ação. Acredito que essa dissociação é típica do aporte positivista que, • a grande preocupação dos pesquisadores como já me referi citando Kincheloe, é um em educação em ajudar os professores a re- aporte incompatível com a intencionalidade da solver seus problemas; pesquisa-ação. • o grande desenvolvimento das abordagens Nesse sentido, Barbier (2003) é bem qualitativas-interpretativas nas pesquisas em enfático ao dizer que a natureza da pesquisa- educação; ação é essencialmente diferente da maneira • o aprofundamento de estudo sobre formas e usual de pesquisa em ciências sociais e cita modelos colaborativos no desenvolvimento de Blum (1955), utilizando-se da fala de Dusbot: programas escolares e avaliação da educação; • o compromisso ideológico e político nas [...] a pesquisa-ação é a revolta contra a se- formas de abordagem dos problemas sociais paração dos fatos e dos valores [...] é um e políticos da educação. protesto contra a separação de pensamento e da ação, que é uma herança do ‘laissez-faire’ A partir de tais considerações, pode-se do século 19. (1987, p. 136) perceber que a continuidade da proposta de pesquisa-ação a partir de Lewin se faz por Portanto, ao falar de pesquisa-ação, fa- meio de Stenhouse, concretiza-se com Elliot e lamos de uma pesquisa que não se sustenta na Aldeman e parece referendar ao estatuto epis- epistemologia positivista, que pressupõe a temológico dessa forma de investigação, a integração dialética entre o sujeito e sua exis- questão da transformação social, agora referen- tência; entre fatos e valores; entre pensamen- dada com compromissos éticos e políticos, com to e ação; e entre pesquisador e pesquisado. vistas à emancipação dos sujeitos e das condi- Porém, a pesquisa-ação vai historica- ções que obstruem esse processo emancipa- mente retornar ao palco das pesquisas em edu- tório; configurada por abordagens interpre- cação, agora incorporando a dialética da rea- tativas de análise; estruturada sob forma de lidade social e os fundamentos de uma racio- participação crítica, cujo processo de pesquisa na-lidade crítica pautada em Habermas. deverá permitir reconstruções e reestruturação

488 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. de significados e caminhos em todo desenro- Quero com isso esclarecer que a pesqui- lar do processo, enquadrando-se num procedi- sa-ação, estruturada dentro de seus princípios mento essencialmente pedagógico e, por assim geradores, é uma pesquisa eminentemente pe- ser, político. dagógica, dentro da perspectiva de ser o exer- Em recente trabalho sobre a especifici- cício pedagógico, configurado como uma ação dade da pedagogia como ciência da educação, que cientificiza a prática educativa, a partir de considero (Franco, 2003) que “o objetivo da pe- princípios éticos que visualizam a contínua dagogia como ciência da educação, será o escla- formação e emancipação de todos os sujeitos recimento reflexivo e transformador da práxis” (p. da prática. Nessa direção, reporto-me à escri- 83). Para a concretização desse objetivo, analiso ta de Barbier (2003) quando afirma que: que o campo de conhecimentos da pedagogia será construído na intersecção entre “os saberes A pesquisa-ação torna-se a ciência da práxis interrogantes das práticas, os saberes dialogantes exercida pelos técnicos no âmago de seu local das intencionalidades da práxis e os saberes que de investimento. O objeto da pesquisa é a ela- respondem às indagações reflexivas formuladas boração da dialética da ação num processo por essas práxis” (p. 85). Nessa direção, para a pessoal e único de reconstrução racional pelo operacionalização dessa especificidade à ciência ator social. (p. 59) da educação, realço a necessidade de uma metodologia, de caráter formativo e emanci- Acredito que a partir das reflexões até patório, que atenda a determinados princípios, aqui empreendidas podem-se distinguir algu- que denomino de princípios fundantes, indican- mas aproximações de respostas à pergunta que do que a investigação sobre a prática educativa tem norteado esta parte deste artigo: de que para se realizar deverá contemplar: pesquisa falamos quando nos referimos à pes- quisa-ação? Para tanto, distinguirei as pistas • a ação conjunta entre pesquisador- encontradas em três dimensões3: pesquisados; • a realização da pesquisa em ambientes onde • dimensão ontológica: referente à natureza acontecem as próprias práticas; do objeto a ser conhecido; • a organização de condições de autoformação • dimensão epistemológica: referente à rela- e emancipação aos sujeitos da ação; ção sujeito-conhecimento; • a criação de compromissos com a formação • dimensão metodológica: referente a proces- e o desenvolvimento de procedimentos críti- sos de conhecimento utilizados pelo pesquisa- co-reflexivos sobre a realidade; dor. • o desenvolvimento de uma dinâmica cole- tiva que permita o estabelecimento de refe- A dimensão ontológica da pesquisa- rências contínuas e evolutivas com o coleti- ação: o que se pretende conhecer quando se vo, no sentido de apreensão dos significados utiliza a pesquisa-ação a partir dos pressupos- cons-truídos e em construção; tos atuais? De um modo bem abrangente, po- • reflexões que atuem na perspectiva de su- der-se-ia dizer que se pretende conhecer a re- peração das condições de opressão, alienação alidade social, foco da pesquisa, de forma a e de massacre da rotina; transformá-la. No entanto, essa abrangência é • ressignificações coletivas das compreensões prejudicial e perigosa, pois atendendo a essa do grupo, articuladas com as condições so- ciohistóricas; 3. Essas três dimensões são inspiradas em Guba (apud Alves-Mazzotti; • o desenvolvimento cultural dos sujeitos Gewandsznajder, 2001), que analisa as diferentes especificidades con- da ação. tidas no rótulo genérico de “paradigma qualitativo”.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 489 perspectiva poder-se-ia usar a pesquisa-ação cimento em educação. Esse rompimento se dá para fins meramente manipulativos. O conhe- especialmente no espaço em que a pesquisa cimento da realidade social é um imperativo positiva, fundada na experimentação, pensa-se que se tornará evidente, mas acredito que, mais neutra e autônoma em relação à realidade so- que isso, o conhecimento pretendido será o co- cial. Desde sua origem, a pesquisa-ação assu- nhecimento da pedagogia de mudança da me uma postura diferenciada diante do conhe- práxis. Quando nos referimos a um conheci- cimento, uma vez que busca, ao mesmo tem- mento pautado na pedagogia de mudança da po, conhecer e intervir na realidade que pes- práxis, estamos nos referindo a uma ação pe- quisa. Essa imbricação entre pesquisa e ação dagógica que deve implicar faz com que o pesquisador, inevitavelmente, faça parte do universo pesquisado, o que, de [...] atitudes problematizadoras e contex- alguma forma, anula a possibilidade de uma tualizadoras das circunstâncias da prática; postura de neutralidade e de controle das cir- dentro de uma perspectiva crítica sobre as cunstâncias de pesquisa. ideologias presentes na prática, tendo por Os pressupostos epistemológicos cami- objetivos a emancipação e a formação dos nham, historicamente, na direção de uma pers- sujeitos da prática. (Franco, 2003, p. 88) pectiva dialética e podemos considerar como fundamentais: Esse conhecimento norteador deve per- mitir aos sujeitos conhecimentos decorrentes • priorização da dialética da realidade social; referentes a: da historicidade dos fenômenos; da práxis; das contradições, das relações com a totali- • produzir conhecimentos para uma melhor dade; da ação dos sujeitos sobre suas cir- compreensão dos condicionantes da práxis; cunstâncias; • produzir conhecimentos para estabelecer • a práxis deve ser concebida como mediação mudanças em suas práticas profissionais; básica na construção do conhecimento, pois • produzir conhecimentos, após cientifi- por meio dela se veicula teoria e prática; cizados, para a melhoria das práticas, para pensar e agir; e pesquisar e formar; fins coletivamente desejados; • não há como separar sujeito que conhece • produzir conhecimentos para a reestru- do objeto a ser conhecido; turação de processos formativos. • o conhecimento não se restringe à mera descrição, mas busca o explicativo; parte do A dimensão epistemológica da pesquisa- observável e, vai além, por meio dos movi- ação: como se estabelecem as relações entre mentos dialéticos do pensamento e da ação; sujeito e conhecimento? Pelo que já expuse- • a interpretação dos dados só pode se reali- mos, pode-se verificar que a pesquisa-ação é zar em contexto; incompatível com procedimentos decorrentes • o saber produzido é necessariamente trans- de uma abordagem positivista, uma vez que formador dos sujeitos e das circunstâncias. requer para seu exercício um mergulho na intersubjetividade da dialética do coletivo. Essa Do ponto de vista metodológico, passa- afirmação da incompatibilidade da pesquisa- se fundamentalmente à exigência de procedi- ação com os pressupostos positivistas não é mentos articuladores da ontologia com a episte- consensual entre os pesquisadores da área, no mologia da pesquisa-ação. Independentemente entanto considero que a pesquisa-ação funda- das técnicas a serem utilizadas, há que se cami- menta-se em princípios que rompem com a nhar para uma metodologia que instaure no perspectiva positivista da elaboração do conhe- grupo uma dinâmica de princípios e práticas

490 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. dialógicas, participativas e transformadoras. É as à construção/compreensão do objeto de relevante aqui referendar o alerta de Thiollant estudo em questão, bem como as ações fun- (2003) de que: damentais para transformar tais compreensões em produção de conhecimento. Portanto, o [...] um grande desafio metodológico consiste grande interesse é permitir conhecer as ações em fundamentar a inserção da pesquisa-ação necessárias à compreensão dos processos que dentro de uma perspectiva de investigação ci- estruturam a pedagogia da mudança da práxis entífica, concebida de modo aberto e na qual na situação em investigação. ciência não seja sinônimo de positivismo, fun- Considerando-se a pesquisa-ação um pro- cionalismo e de outros rótulos. (p. 20) cesso eminentemente interativo, a análise da qua- lidade da ação entre os sujeitos que dela partici- Acredito que podemos elencar alguns pam é fundamental para definir sua pertinência princípios para fundamentar a epistemologia da epistemológica e seu potencial praxiológico. metodologia: Para este estudo, reportamo-nos a Habermas e, num primeiro momento, apoiamo- • deve-se, na escolha metodológica, rejeitar nos na fala de Boufleur (1997): noções positivistas de racionalidade, de obje- tividade e de verdade (Carr; Kemmis, 1986); O que determina a racionalidade de uma fala • a práxis social é ponto de partida e de ou de uma ação? A primeira impressão é a de chegada na construção/ressignificação do que a racionalidade está na dependência da conhecimento; confiabilidade do tipo de saber que a fala ex- • o processo de conhecimento se constrói nas pressa ou que a ação encarna. De fato há múltiplas articulações com a intersubjeti- uma estreita relação entre racionalidade e sa- vidade em dinâmica construção; ber, mas Habermas argumenta que a racio- • a pesquisa-ação deve ser realizada no am- nalidade diz respeito nem tanto ao saber em biente natural da realidade a ser pesquisada; si ou à sua aquisição, e sim à forma como os • a flexibilidade de procedimentos é funda- sujeitos capazes de linguagem e de ação fa- mental e a metodologia deve permitir ajustes zem uso desse saber. (p. 26) e caminhar de acordo com as sínteses provi- sórias que vão se estabelecendo no grupo; Como pode o homem fazer uso de seu • o método deve contemplar o exercício con- saber por meio da ação? Considera-se que o tínuo de espirais cíclicas: planejamento; homem ao realizar suas ações estabelece, por ação; reflexão; pesquisa; ressignificação; meio da mobilização de seus saberes, duas re- replanejamento, ações cada vez mais ajusta- lações fundamentais: das às necessidades coletivas, reflexões, e as- sim por diante... • relação homem natureza: pautada em uma relação de conhecimento e domínio; caracte- De que ação falamos quando rizada por Habermas, quando de seu uso na nos referimos à pesquisa-ação? esfera social, como uma ação estratégica; • relação homem outros homens: relação de Quando se pretende investigar a dimen- interação simbolicamente mediada, utilizada são da ação na pesquisa-ação, tem-se também na esfera da compreensão do outro e assim por finalidade refletir seu sentido, suas confi- considerada uma ação comunicativa. gurações, bem como seu “entranhamento” no processo investigativo. Nessa direção, tem-se a Acompanhando o raciocínio do autor, há preocupação de identificar as ações necessári- duas direções que podem ser tomadas:

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 491 • se considerarmos as relações humanas como mite a criação de um clima de cumplicidade e relações do tipo homem-natureza, em que há verdadeira participação. Portanto, a ação neces- a utilização de um saber não comunicativo, sária para o exercício desse tipo de pesquisa, que estaremos optando por um conceito de racio- ora discutimos, será aquela decorrente do agir nalidade cognitivo-instrumental; comunicativo. Porém, como empreender uma • se considerarmos, no entanto, as relações ação a partir do agir comunicativo? humanas tecendo-se por meio de saberes Imaginemos por um instante um pesqui- intersubjetivamente partilhados, estaremos sador, ou uma equipe de pesquisadores, optando por um conceito de racionalidade adentrando uma escola para realização de uma comunicativa. pesquisa-ação. Como se colocar numa cultura com códigos, significados, representações, resis- Os dois modos de racionalidade ocorrem tências, expectativas, por certo variados e no dia-a-dia de nossas vidas. No entanto, o dissonantes? Como tornar familiar um ambiente exercício da pesquisa-ação como investigação tão novo, do qual, a princípio, o pesquisador não formativo-emancipatória requer fundamental- é um de seus componentes? Como adentrar e mente o modelo do agir comunicativo. Quais lidar com as contradições iniciais, como percebê- os pressupostos desse modelo? las? Como fazer dos grupos ali presentes um Segundo Rojo (1997), a ação comunica- grupo de trabalho? Como começar um trabalho tiva é uma ação eminentemente interativa, nas- de equalizar resistências e preconceitos? Como ce do coletivo, da equipe. Essa ação não preten- chegar ao clima de confiança e cumplicidade? de garantir a eficiência a qualquer custo, não é Alio-me à preocupação de Mizukami et individualista, não persegue o êxito, mas, ao al. (2002) ao analisarem as dificuldades ineren- contrário, é uma ação dialógica, vitalista, que tes à pesquisa na/com a prática: “como profes- emerge do mundo vivido. Essa ação nasce da sores e administradores lidam com relações situação e lhe oferece saídas. É comunitária, assimétricas de poder que podem distorcer os busca o entendimento, persegue a negociação, dados ou colocar em risco os participantes?” (p. o acordo; busca o consenso; é axiológica por- 122). As autoras fazem também um alerta para que acredita na validade das normas discutidas. as questões éticas que emergem de relações “Mansa na escuta e forte na tomada de deci- desiguais de poder. sões” (p. 32-33). Portanto, a grande questão que se colo- Os acordos decorrentes da negociação, a ca é a da necessária interpenetração de papéis: partir da racionalidade comunicativa, são como passar de pesquisador a participante, con- intersubjetivos, negociados dialógica e critica- tinuando a ser prioritariamente pesquisador; ou mente, diferente dos acordos decorrentes da como passar de professor sujeito de pesquisa a racionalidade estratégica que são frios, impos- pesquisador de seu fazer, mantendo-se priorita- tos, induzidos mediante gratificações, ameaças, riamente no papel de professor? Decorre daí que sugestões, em que o que importa é o êxito do surge outra desigualdade, quase que identitária: proponente da ação. o pesquisador estará, por certo, prioritariamente No agir comunicativo, os participantes envolvido na pesquisa e nos resultados desta; o podem chegar a um saber compartilhado que vai professor, por certo, estará prioritariamente en- tecendo uma estrutura interacional de confiança volvido na ação, aguardando melhorias em sua e comprometimento. Já no agir estratégico, prática. Como conciliar, mediar, articular essas pautado por ações de influências recíprocas, o diferenças ancoradas no âmago do fazer profis- acordo subjetivo não é possível, passando a sional de cada um? funcionar o mecanismo de indução de valores e Percebe-se que a pesquisa-ação dificil- convicções, o que mina a interação e não per- mente poderá ser empreendida por pesquisado-

492 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. res iniciantes, pois se corre o risco da ingenuidade cesso, quer como instrumento de autoformação metodológica: ou seja, que essas dissonâncias e formação coletiva e, mais ainda, como uma passem a não ser percebidas, tratadas superfici- “incubadora” que amadurece e potencializa as almente e caindo-se no risco do agir estratégico, apreensões individuais e coletivas, especialmen- dificultando a pesquisa caminhar na direção de te no aspecto afetivo-emocional, há que se con- sua intencionalidade. siderar que uma pesquisa-ação não se realiza em Nessa direção, acredito que a postura curto espaço de tempo. É preciso tempo para colaborativa, vagarosa, silenciosa, “mansa na construir a intimidade e um universo cognitivo escuta e forte na tomada de decisões” é um mais próximo; para barreiras e resistências serem caminho importante, bastante trilhado por transformadas; para apreensão de novos fatos e Elliot (1998), em seus trabalhos com professo- valores que emergem de constantes situações de res, com vistas à mudança curricular: “a cola- exercício do novo; para reconsiderações de seus boração e a negociação entre especialistas e papéis profissionais e elaboração das rupturas que práticos (professores) caracterizam a forma ini- emergem, para o imprevisto e o recomeço... cial do que se tornou, mais tarde, conhecido Daí decorre outra necessária considera- como pesquisa-ação” (p. 138). ção: a pesquisa-ação, para bem se realizar, Garrido, Pimenta e Moura (1998) também precisa contar com um longo tempo para sua tiveram resultados importantes na pesquisa-ação realização plena. Não pode ser um processo que empreenderam numa escola pública paulista. aligeirado, superficial, com tempo marcado. A Foram chamados pela escola como colaborado- imprevisibilidade é um componente fundamen- res de um processo que clamava por mudanças; tal à prática da pesquisa-ação. Considerá-la (a colocaram-se como colaboradores do grupo, sem imprevisibilidade) significa estar aberto para re- desistir do papel de pesquisadores; adentraram, construções em processo, para retomadas de prin- silenciosa e vagarosamente na cultura escolar, ao cípio, para recolocação de prioridades, sempre no mesmo tempo em que disponibilizaram ao gru- coletivo, por meio de acordos consensuais, am- po escola a cultura da universidade, sempre na plamente negociados. A pressa é um pressupos- perspectiva de colaborar com as mudanças pre- to que não funciona na pesquisa-ação e se esti- tendidas pelo grupo e sem perder a dimensão do ver presente conduz, quase que sempre, a atro- caráter formativo do processo. pelamentos no trato com o coletivo, passando a Desde Lewin até Elliot, afirma-se que priorizar o produto, e tornando mais fácil a uti- uma importante característica da pesquisa-ação lização de procedimentos estratégicos que vão é seu processo integrador entre pesquisa, refle- descaracterizar a pesquisa. xão e ação, retomado continuamente sob for- Na intenção de realçar o que foi comen- ma de espirais cíclicas, dando tempo e espaço tado até aqui na direção de responder à ques- para que a integração pesquisador-grupo vá se tão: de que ação falamos quando nos referimos aprofundando, permitindo-se que a prática des- à pesquisa-ação?, podemos evidenciar: se processo vá, aos poucos, se tornando mais familiar, como também o tempo para que o • a ação referendada à pesquisa-ação deve conhecimento interpessoal se aprofunde e, ain- estar vinculada a procedimentos decorrentes da, por meio de tais espirais, dá-se o tempo e de um agir comunicativo; espaço para apreensão cognitiva/emocional das • as ações empreendidas devem emergir do novas situações vividas por todo o grupo – prá- coletivo e caminhar para ele; ticos e pesquisadores. • as ações em pesquisa-ação devem ser emi- Considerando-se a essencialidade das es- nentemente interativas, dialógicas, vitalistas; pirais cíclicas que funcionam quer como instru- • a ação deve conduzir a entendimento/ne- mento de reflexão/avaliação das etapas do pro- gociação/acordos;

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 493 • as ações devem se reproduzir na produção nismos da abordagem dialética que funda- de um saber compartilhado; menta os trabalhos de pesquisa-ação; • as ações devem procurar aprofundar a • aceitar que as coisas podem mudar, que interfecundação de papéis: de participante a elas podem ser reconstruídas; pesquisador e de pesquisador a participante, • ter a capacidade de viver na incerteza e sa- cumprindo assim seu papel formativo; ber reconhecer a característica única de cada • ações devem procurar conviver e superar as situação; relações assimétricas de poder e de papéis; • ser capaz de se colocar disponível aos ato- • ações devem ser readequadas e renovadas res de modo a permitir-lhes observar e com- por meio das espirais cíclicas; preender a lógica das ações; • ações devem integrar processos de refle- • manter o rigor científico do trabalho e ze- xão/pesquisa e formação; lar por uma interpretação justa dos fatos e • ações devem se autoproduzir na sensibili- das práticas; dade de diferentes tempos e espaços, emer- • estar sempre a serviço de um objetivo e gentes das necessidades vitais do processo. não de um cliente, de modo a tornar-se mi- litante de uma causa e não serviçal de um Para se analisar a configuração dessas projeto imposto (Pirson, 1981); ações nos papéis sociais dos participantes da • participar de cada etapa da evolução do pesquisa-ação, vamos aqui realçar o trabalho de projeto, juntamente com os sujeitos partici- Lavoie, Marquis e Laurin (1996), em que, utili- pantes. zando-se de diferentes referências conceituais, procura sintetizar os papéis prioritários do pes- Como se percebe, as ações acima elen- quisador e dos atores num processo de pesqui- cadas pressupõem o que já reafirmamos, ou sa-ação. Dessa síntese, farei uma outra para seja, as ações do pesquisador devem caminhar melhor adequar ao nosso foco de trabalho. dentro de um paradigma de ação comunicati- Ações prioritárias do pesquisador (papéis va, com foco na garantia de espaço de expres- sociais): são e participação aos práticos e foco também na garantia da intencionalidade de uma pes- • o pesquisador deve ultrapassar o saber pu- quisa-ação. ramente fenomenológico, essencialmente Vamos agora verificar a síntese de ex- subjetivo, e caminhar para construir um sa- pectativas de ação aos participantes, conforme ber da prática, que se situa entre o pólo as mesmas autoras: subjetivo e o pólo objetivo; • estabelecer uma comunicação de igual a • participar da elaboração dos instrumentos igual com os atores, reconhecendo-lhes a e assim apreender seu significado; capacidade de dar sentido aos acontecimen- • comprometer-se de acordo com seus talen- tos, de organizar e de planificar; tos, suas capacidades, suas experiências e • deve ser um facilitador: só intervir quando suas relações particulares frente à situação houver necessidade; investigada; • ser capaz de descobrir que suas ações têm • participar ativamente da elaboração da significado diferentes para cada ator social. problemática da ação, da pesquisa, da busca No entanto, deve procurar conhecer e se de soluções, enfim de todas as etapas; ajustar a esses significados; • colaborar nas tomadas de decisão, tanto • conhecer e trabalhar com os vieses de co- nas questões de pesquisa quanto nas ques- municação e de sentido: para tanto devem tões da ação; permitir integrações decorrentes dos meca- • ser cauteloso no trato da difusão oficial de

494 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. resultados e prudente nas generalizações; O objetivo a atingir, inicialmente, é tornar • agir profissionalmente e usar seus conheci- grupos e subgrupos conscientes e lúcidos da mentos e experiências para questionar o pes- dinâmica inerente à situação social em evolu- quisador; ção. Não é senão a partir deste momento que • estar dispostos a participar tanto da pes- subgrupos e grupos aceitarão alterações e quisa quanto das ações decorrentes; complementos às suas percepções de grupo. • aceitar viver na incerteza e instabilidade inerentes a toda situação dinâmica, na qual Nessa direção, outro alerta importante a é impossível a previsão de tudo; pesquisadores iniciantes é que essa questão • viver intimamente a experiência e tentar deve ser considerada: é preciso conhecer e se objetivar e partilhar os seus significados com interessar pela dinâmica dos grupos, no senti- todo o grupo. do da dialética de formação e dos mecanismos de reprodução do grupo, para poder bem tra- Esperam-se atitudes voltadas à disponi- balhar com pesquisa-ação. bilidade, à cooperação, ao envolvimento. No Lembra-nos Morin (1986) que as ações do entanto, sabe-se que tais disposições nem sem- pesquisador devem ser permeadas por um discur- pre estão, de pronto, presentes no grupo. É so acessível, “sem aparelhagem científica comple- preciso que o pesquisador saiba tecer e cons- xa” (p. 304), ser um discurso espontâneo, enrique- truir esse sentimento de parceria e colaboração, cido pelas experiências vividas por meio do diálogo construindo um clima grupal que permita a e ser, acima de tudo, um discurso aberto às trans- emergência qualitativa dessas ações em todos formações e que, dado as condições de ser a pes- os participantes. Essa situação pode ser mais quisa-ação um procedimento aberto a revisões e bem vivenciada quando o grupo solicita o tra- reestruturações constantes, esse discurso deve ter balho dos pesquisadores, como no caso já ci- um caráter eminentemente exploratório. tado do trabalho da professora Selma Pimen- ta e sua equipe. Nesse caso, o clima de coo- Como pesquisa e ação se peração é mais evidente desde o início, mas há integram na pesquisa-ação? outros problemas decorrentes, até porque nem (qual o significado do hífen sempre a solicitação feita pelo grupo é uma so- entre pesquisa e ação?) licitação que expressa a vontade da maioria. Muitas vezes, é de um pequeno grupo, dentro Considero necessária a reflexão sobre a de um grupo maior, de diversos interesses, nem qualidade da relação que se estabelece entre a sempre convergentes. pesquisa e a ação, num processo investigativo Reafirma-se, nessa direção, a preocupa- de pesquisa-ação, pois acredito que surgem ção de Lewin (1946) quando aliava, ao estudo muitos equívocos decorrentes do não aprofun- da pesquisa-ação, o aprofundamento das inves- damento dessa questão. tigações sobre a dinâmica e a gênese dos gru- Quando falamos de pesquisa–ação, esta- pos, sobre os mecanismos de bloqueio às mu- mos nos referindo a: danças grupais ou mesmo o estudo sobre a evo- lução de percepções coletivas de grupo. Lewin • pesquisa na ação; preconizava que somente um bom conhecimen- • pesquisa para a ação; to sobre o funcionamento e dinâmica de deter- • pesquisa com ação; minado grupo permite ao pesquisador adentrar • pesquisa da ação; em seu clima, entender a sua lógica. Escreven- • ação com pesquisa; do sobre a consideração de Lewin, nessa ques- • ação para a pesquisa; tão, escreve Mailhiot (1970, p. 61): • ação na pesquisa.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 495 Há diferenças nessas colocações tão su- inicialmente com ação de intervenção, que tis? Decorrem alterações, no exercício imediatamente passa a ser objeto de pesquisa. investigativo, quando se trocam as preposições Assumimos também que pesquisa e ação po- ou os posicionamentos dos dois componentes dem estar reunidas num mesmo processo, re- dessa expressão? Acredito que há diferenças e afirmando a questão da pesquisa com ação, estas se tornam mais evidentes quando se dis- que vai aos poucos sendo também ação com tancia a intencionalidade metodológica de seus pesquisa. No desenvolver da pesquisa-ação, há procedimentos. a ênfase na flexibilidade, nos ajustes progres- Se considerarmos as reflexões que elabo- sivos aos acontecimentos, fortalecendo a ques- ramos neste artigo e nos pautarmos, para a tão da pesquisa com ação. síntese, em Lavoie, Marquis e Laurin (1996), a Se considerarmos a pesquisa-ação como pesquisa-ação pode ser considerada: uma pesquisa na/sobre ação, poderemos come- ter pelo menos dois equívocos: • uma abordagem de pesquisa, com caracte- rística social, associada a uma estratégia de • transformar a pesquisa-ação em uma pes- intervenção e que evolui num contexto dinâ- quisa de avaliação de um procedimento ado- mico; tado, de uma transformação empreendida ou • é uma pesquisa que parte do pressuposto mesmo de um processo em implantação. Nes- de que pesquisa e ação podem estar reunidas; se caso, a pesquisa, embora relevante, não • essa pesquisa pode ter por objetivos a mu- pode ser considerada pesquisa-ação, pois per- dança, a compreensão das práticas, a resolu- de sua característica dinâmica de transmudar- ção dos problemas, a produção de conheci- se pelas transformações, portanto perde sua mentos e/ou a melhoria de uma situação possibilidade de ajuste progressivo, fator fun- dada, na direção proposta pelo coletivo; damental à pesquisa da/na práxis; • deve se originar de necessidades sociais re- • outro equívoco, bastante comum em pes- ais; deve estar vinculada ao meio natural de quisadores iniciantes, refere-se ao fato de o vida; contar com a participação de todos os pesquisador investigar seu próprio local e participantes, em todas as suas etapas; função de trabalho. Um diretor de escola, • metodologicamente, deve ter procedimen- um coordenador pedagógico ou mesmo um tos flexíveis, ajustar-se progressivamente aos professor realizam a pesquisa no âmbito de acontecimentos; estabelecer uma comunica- sua ação profissional. Apesar da relevância ção sistemática entre seus participantes e se dessa postura, a pesquisa decorrente dificil- auto-avaliar durante todo processo; mente pode ser caracterizada por pesquisa- • ter característica empírica; estabelecer rela- ação, devido principalmente à hierarquia de ções dinâmicas com o vivido; e enriquecer-se papéis profissionais, dos poderes implícitos, o com categorias interpretativas de análise; que passa a exigir ações estratégicas e difi- • deve possuir um design inovador e uma cilmente ações comunicativas. forma de gestão coletiva, em que o pesqui- sador é também participante e os participan- O que importa deixar delimitado é que tes também são pesquisadores. a pesquisa-ação sugere sempre a concomitância entre pesquisa e ação e ação e pesquisa, con- Se considerarmos o acima exposto, fica siderando-se até que deveria ser expressa em mais evidente que, para a pesquisa-ação se forma de dupla flecha, ao invés de hífen: realizar, deve haver uma associação da pesquisa pesquisa↔ação, de modo a caracterizar a a uma estratégia ou proposta coletiva de inter- concomitância, a intercomunicação e a inter- venção, indicando-nos a posição de pesquisa fecundidade.

496 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. Quero deixar bem claro que há outras forme refere-se Perrenoud (1999) em relação ao formas de pesquisas, muito relevantes e neces- fazer docente. sárias, que trabalham a questão da relação Dessa forma, já finalizando este trabalho, ação-pesquisa de forma diferente. Minha afir- quero enfatizar alguns momentos que devem ser mação não sugere, em hipótese alguma, críti- priorizados num processo de pesquisa-ação, para cas a outras formas de considerar e discutir garantir a articulação de seus pressupostos essa concomitância. Quero apenas realçar que, ontológicos, epistemológicos e metodológicos, quando me refiro à pesquisa-ação, embasando- numa dinâmica pedagógica que deve produzir, me nos pressupostos teóricos que sintetica- nos sujeitos, envolvimento, participação, com- mente expressei neste texto, concomitância/ prometimento e produção de saberes e produ- intercomunicação/interfecundidade entre a zir também conhecimentos novos a serem incor- pesquisa e a ação é uma questão de inerência porados no campo científico. à proposta. Decorrem daí as dificuldades Esses momentos a serem priorizados na operacionais/existenciais de se empreender uma pesquisa-ação serão aqui denominados de pesquisa-ação, uma vez que trabalhar cientifi- “processos pedagógicos intermediários” e po- camente na concomitância de papéis, na con- dem ser sintetizados em: tradição de expectativas, na incerteza dos acontecimentos, que darão rumo e novas dire- • construção da dinâmica do coletivo; ções ao processo, requer muita convicção, • ressignificação das espirais cíclicas; muita ousadia e muita persistência. • produção de conhecimento e socialização dos saberes; Estruturando um processo • análise/redireção e avaliação das práticas; pedagógico para a pesquisa- • conscientização das novas dinâmicas com- ação preensivas.

É comum aos iniciantes em pesquisa so- Construção da dinâmica do coletivo licitarem um esquema prático, tipo fases do método para realizar uma pesquisa-ação. Há É muito difícil abordar com pertinência, autores que realizam essa tarefa com muita em poucas linhas, a importância da construção/ pertinência e cito em especial o trabalho aqui já reconstrução de uma dinâmica coletiva. No referendado de Lavoie, Marquis e Laurin (1996). entanto, é preciso que os pesquisadores que se No entanto, quero neste artigo realçar a flexi- propõem a realizar uma pesquisa-ação perce- bilidade metodológica da pesquisa-ação como bam que estarão lidando com um grupo, de um de seus componentes essenciais, que impli- alguma forma estruturado, que possui uma ca, como todo trabalho sobre a prática, um ri- dinâmica própria e que ele, pesquisador, de gor científico que se vincula mais à coerência início, não faz parte desse grupo. Neste, o epistemológica em processo do que ao cumpri- pesquisador pretende, junto ao coletivo, em- mento de um ritual de ações que se sucedem. preender mudanças. Como chegar e imediata- Por isso, realço a questão em torno de uma mente começar a pesquisar? Há que se ter um pedagogia da pesquisa-ação que implica em “aquecimento coletivo” que anteceda o traba- considerar a complexidade, a imprevisibilidade, lho de pesquisa propriamente dito. a oportunidade gerada por alguns acontecimen- Todos os manuais a respeito das fases/ tos inesperados, a fecundidade potencial de al- etapas da pesquisa-ação sugerem que o trabalho guns momentos que emergem da práxis, indi- se inicie com um diagnóstico da situação para cando que o pesquisador precisa muitas vezes posterior planificação da ação a ser empreendi- “agir na urgência e decidir na incerteza”, con- da. No entanto, considero impossível o trabalho

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 497 formal de diagnóstico e/ou planejamento de ação pesquisador no grupo, de autoconhecimento do quando ainda pesquisador e grupo não se colo- grupo em relação às suas expectativas, possibili- cam enquanto um “nós”, que estamos juntos dades e aos seus bloqueios. Essa fase preliminar para elaborar uma tarefa coletiva. é também fundamental para o estabelecimento No espaço deste artigo, não cabem con- de um contrato de ação coletiva, em que se po- siderações sobre os estudos que evidenciam dem esclarecer questões referentes à ética da pes- que mudar as atitudes coletivas ou produzir quisa, compromissos com a ação coletiva e com mudanças sociais em um grupo requer uma as finalidades do trabalho que desenvolverão. reestruturação na sua estrutura de poder, de re- Morin (1992) argumenta que esse contrato deve presentação e nas dinâmicas que organizam ser aberto e constantemente questionado. suas práticas sociais. No entanto, há que se Cabe esclarecer que esse processo peda- pensar que o trabalho com pesquisa-ação re- gógico intermediário, como os demais que se quer a instalação de um clima de “cooperação seguem, deve ocorrer durante todo o processo profissional”, utilizando-me do termo de de pesquisa-ação e ainda deve se trabalhar com Thurler (2001). Segundo a autora, “a coopera- a perspectiva de que tais processos intermediá- ção profissional não corresponde ao funciona- rios devam ser apropriados pelo grupo de par- mento da maior parte dos professores [...], o ticipantes, transcender o momento da pesquisa individualismo permanece no âmago da iden- e funcionarem como princípios e operadores de tidade profissional” (p. 59). Por isso, a constru- formação continuada. Ou seja, a construção da ção dessa cultura de cooperação deve ser uma dinâmica do coletivo tem uma ênfase grande no tarefa a todos que pretendem trabalhar no co- início da pesquisa, mas deve continuar em pro- letivo da escola. cesso de melhoria e aprofundamento, até para A construção da dinâmica do coletivo depois da pesquisa terminada. tem por perspectiva sensibilizar o grupo de práticos para a cultura da cooperação. Isso não Ressignificação das espirais cíclicas é uma tarefa fácil. Segundo Thurler (2001), toda cooperação profissional fundamenta-se Diz Barbier (2002) que o verdadeiro es- em algumas atitudes que devem ser persegui- pírito da pesquisa-ação consiste em sua “abor- das cotidianamente: dagem em espiral”. Significa que “todo avan- ço em pesquisa-ação implica o efeito recursivo [...] um certo hábito de ajuda mútua e de apoio em função de uma reflexão permanente sobre mútuo; um capital de confiança e de franqueza a ação” (p. 117). mútua; participação de cada um na tomada de Essa reflexão permanente sobre a ação é decisões coletivas; um clima caloroso, de humor, a essência do caráter pedagógico desse trabalho de camaradagem e o hábito de expressar seu de investigação. Nesse processo de reflexão con- reconhecimento. (p. 75) tínua sobre a ação, que é um processo eminen- temente coletivo, abre-se o espaço para se for- No entanto pergunto-me: como construir mar sujeitos pesquisadores. Já disse acima que o clima de camaradagem, o humor partilhado, a considero que as espirais cíclicas exercem fun- franqueza mútua? Ou, como diz Shön (1997), damentais funções na pesquisa-ação, tais como: como superar o jogo do silêncio e o apego às atitudes defensivas, o embaraço, a vergonha, a • instrumento de reflexão/avaliação das eta- timidez? pas do processo; Nessa direção, proponho que o trabalho • instrumento de autoformação e formação com pesquisa-ação tenha uma fase preliminar coletiva dos sujeitos; que será constituída pelo trabalho de inserção do • instrumento de amadurecimento e poten-

498 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. cialização das apreensões individuais e coletivas; A pesquisa requer o registro rigoroso e • instrumento de articulação entre pesquisa/ metódico dos dados. Esse trabalho precisa ser ação/reflexão e formação. constantemente realizado. Há autores, entre eles, Lavoie, Marquis e Laurin (1996) ou mesmo Essa questão das espirais cíclicas envol- Morin (1986) que chegam a falar da necessidade ve-se diretamente com os estudos desta última de um “diário de bordo”4 como um instrumento década sobre a formação do professor crítico- necessário para consignar os dados recolhidos reflexivo. Dentre esses, considero o que Libâneo durante todo processo de pesquisa. Sendo ou (2002) analisa em relação à reflexividade herme- não jornal, importa que seja um registro diário nêutica, compartilhada, solidária, comunitária. e cotidiano, de forma a objetivar o vivido e o Trata-se de “retomar a preocupação com as compreendido. Esses registros de dados e fatos coisas e com as pessoas, nas práticas sociais incluem, entre outros: cotidianas, em um mundo compartilhado, cons- tituindo-se uma comunidade reflexiva de com- • referências dos acordos estabelecidos para partilhamento de significados” (p. 69). o funcionamento de grupo; Nessa direção, vale refletir com Monteiro • dados referentes a compreensões, interpre- (2002) quando escreve sua compreensão de que tações, sínteses das leituras de fundamenta- as ações docentes tendem a se tornar habitu- ção teórica; ais e que são os hábitos que dão sustentação • descrição de atividades e práticas do às ações, para em seguida afirmar: “a (re)visão grupo; de nossas ações permite a transformação delas”. • sínteses das reflexões e decisões grupais; A seguir, o autor afirma que considera a revi- • caracterização das mudanças institucionais são “uma operação teórica, reflexiva sobre as e administrativas que estão ocorrendo; ações efetuadas ou a serem efetuadas; é o es- • descrição da participação dos elementos do tabelecimento de uma nova prática [...] por um grupo. novo olhar sobre ela” (p. 118). Considero im- portante a abordagem do novo olhar, uma vez Esses dados são discutidos, refletidos, que se estamos mergulhados na práxis. No apropriados, ressignificados pelo grupo, princi- exercício coletivo, o olhar é o que muda pri- palmente por meio das espirais cíclicas, trans- meiro e é ele que não aceita mais confrontar- formando-se gradativamente em conhecimen- se com o já superado. Esse novo olhar, advindo tos do processo de pesquisa. Essas compreen- de um sujeito consciente das transformações sões/interpretações/análises/revisões precisam existenciais e pessoais, questiona a necessida- ser processadas sob forma de registros críticos. de de novos cenários. As espirais cíclicas têm a Todo grupo deve participar, até porque essas intenção de objetivar esse novo olhar, para que discussões e esses registros são importante ins- dele surjam novas necessidades que implicam trumentos formativos do pesquisador. em novas práticas. Nesse processo reflexivo de coletar da- Assim, o método da pesquisa-ação deve dos, registrá-los coletivamente, discuti-los e contemplar o exercício contínuo de suas diver- contextualizá-los, já se está caminhando para sas etapas, por meio das espirais cíclicas: aqui, a construção de saberes e para seu comparti- nesse processo pedagógico intermediário, refi- lha-mento, num processo único, dialético, ro-me à produção de conhecimento e sociali- transformador dos participantes e das condi- zação de saberes. São tarefas complementares ções existenciais. e associadas, principalmente no caso de pes- quisa-ação, no qual se pretende o trabalho co- letivo, compartilhado. 4. Journal de bord.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 499 Análise/redireção e avaliação das truímos o conhecer de um dado objeto, não é práticas somente o objeto que torna conhecido, mas o próprio sujeito, concluindo o autor que “o conhe- Esse movimento já está, na realidade, cimento de algo é também, simultaneamente, um contemplado no processo das espirais cíclicas. autoconhecimento”. Coloco-o nesse espaço para realçar a importân- Será importante, portanto, que durante cia desse foco de avaliação das práticas, não do uma pesquisa-ação haja tempo e espaço para processo de pesquisa, mas das ações empreen- que cada sujeito vá se apropriando das mudan- didas pelos sujeitos. Isso se realça, pois é fun- ças que se operam em suas significações de damental que, após um trabalho de pesquisa- mundo, que implicam essencialmente mudan- ação, os sujeitos participantes tenham apreen- ças em sua perspectiva como sujeito. dido comportamentos e atitudes no sentido de Em um trabalho anterior (Franco, 2000), incorporarem a reflexão cotidiana, como ativi- especifico a questão de que o professor, ao dade inerente ao exercício de suas práticas. adentrar em um processo contínuo de revisões da De acordo com Smyth (apud Amaral; própria prática, acaba incorporando atitudes na Moreira; Ribeiro, 1996), a reflexão sobre a prática direção de constituírem-se em investigadores no deve transcender os aspectos de sala de aula e con- contexto da prática. Como investigadores, apren- teúdo e atingir um nível de reflexão sobre os prin- derão e desenvolverão habilidades no sentido de: cípios éticos e políticos da sociedade. Segundo o autor, para se conceder poder emancipatório ao pro- • elaborar novas hipóteses para realizar novas fessor, “é necessário questionar a validade ética de práticas; certas práticas e crenças, como meio de restituir ao • conviver criativamente na divergência; professor seu papel de intelectual” (p. 102). • encontrar novas respostas para desafios Para a análise e avaliação das práticas, será que passa a perceber; necessário um trabalho contínuo para que os par- • reconhecer e utilizar as teorias implícitas ticipantes se envolvam em auto-observação, ob- de sua prática, renová-las, adequá-las; servação de outros, refletindo sobre as transforma- • reinterpretar as hipóteses iniciais; ções na realidade que as ações práticas produzem, • buscar articulações entre fins e meios edu- reconstruindo suas percepções, construindo novas cacionais; teorias sobre as práticas, trocando e analisando • perceber-se capaz de retirar do coletivo as intersubjetivamente suas compreensões. fontes de aperfeiçoamento pessoal; • aprender a compreender a relação dialética Conscientização das novas dinâmicas entre sujeito e objeto; teoria e prática; compreensivas • perseguir atitudes contextualizadoras, pro- blematizadoras e estabelecer articulações en- Conforme Ghedin (2002), “o que fazemos tre o fato e a totalidade; não se explica pelo como fazemos; possui senti- • reafirmar que a transformação é o princípio do diante dos significados que lhe são atribuídos. do desenvolvimento; adquirindo a capacida- Estes significados não são latentes mas emanam, de de criar novas visões, de entender os pro- de fato, dos sentidos que construímos” (p. 141). blemas de outras formas, para além de seu Falar em processo de pesquisa-ação é falar de um repertório atual; processo que deve produzir transformações de • descobrir o significado concreto nas situa- sentido, ressignificações ao que fazemos ou pen- ções conflitivas e complexas, permitindo ver samos. A transformação de sentido implica recons- que a prática é um processo investigativo, de trução do próprio sujeito e mais uma vez nos experimentar com as situações de forma a valemos de Ghedin ao explicitar que quando cons- buscar novas e mais adequadas compreensões.

500 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação. Assim reafirmamos que a pesquisa-ação tando tanto a produção de conhecimentos novos pode e deve funcionar como uma metodologia de para a área da educação, como também forman- pesquisa, pedagogicamente estruturada, possibili- do sujeitos pesquisadores, críticos e reflexivos.

Referências Bibliográficas

ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociaissociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira. 2001.

AMARAL, M. J; MOREIRA, M. A; RIBEIRO, D. O papel do supervisor no desenvolvimento do professor reflexivo: estratégias de supervisão. In: ALARCÃO, I. (Org.). Formação reflexiva de professoresprofessores: estratégias de supervisão. Porto: Porto Editora, 1996, p. 91-122.

BARBIER, R. A pesquisa-açãoo. Brasília: Plano, 2002.

BOUFLEUR, J. P. Pedagogia da ação comunicativativa: uma leitura de Habermas. Ijuí: Inijuí, 1997.

CARR, W. Action research: ten years on. Journal of curriculum studiesstudies, v.21 (1), p. 85-90, 1989.

CARR, W.; KEMMIS, W. Becoming critical educationtion: knowledge and action research. London and Philadelphia: The Palmer Press, 1986.

COREY, M. S. Action research to improve school practicespractices. New York: Teachers College Press, 1949.

CÔTE-THIBAULT, D. Historique de la recherché-action. In: LAVOIE, L.; MARQUIS, D.; LAURIN, P. La recherché-action-action: théorie et pratique. Canadá: Presses de l’Université du Québec, 1996.

DUBOST, J. La intervention psycho-sociologiqueique. Paris: PUF, 1987.

ELLIOT, J. Recolocando a pesquisa-ação em seu lugar original e próprio. In: GERALDI, C. M. G.; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E. M. A. (Orgs.). Cartografias do trabalho docentedocente. Campinas: Mercado da Letras, 1998, p. 137-152.

_____. El cambio educativo desde la investigatión-acciónn. Madri: Morata, 1996.

FRANCO, M. A. R. S. Dinâmica compreensiva: integrando identidade e formação docente. X ENDIPE. 2000, Rio de Janeiro. AnaisAnais. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

_____. Pedagogia como ciência da educação. Campinas: Papirus, 2003.

GARRIDO, E.; FUSARI, M. F. R.; MOURA, M. O.; PIMENTA, S. G. A pesquisa colaborativa, a formação do professor reflexivo/ investigativo e a construção coletiva de saberes e práticas pela equipe escolar. (Projeto USP-Ayres/FE-USP/Fapesp). IX ENDIPE. v.1 Águas de Lindóia. AnaisAnais. São Paulo: Cortez, 1998. p. 48-49.

GHEDIN, E. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crítica. In: PIMENTA, S. G. e GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no BrasilBrasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002. p. 129-149.

GUBA, E. G. (Org.). The paradigm dialogdialog. Londres: Sage, 1989.

HABERMAS, J. Connaissance et intérêtt. Paris: Gallimard, 1982.

INGRAM, D. Habermas e a razão dialéticatica. Brasília: Editora da Unb, 1993.

KEMMIS, S. Action researchresearch. International Encyclopedia of Education. Oxford: Pergamon, 1984, p. 35-42.

KINCHELOE, J. L. A formação do professor como compromisso políticotico: mapeando o pós-moderno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 501 LAVOIE, L. MARQUIS, D.; LAURIN, P. La recherché-action-action: théorie et pratique. (Manuel d’autoformation). Canadá: Presses de l’Université du Québec, 1996.

LEWIN, K. Action research and minority problems. Journal of Social IssuesIssues, n. 2, p. 34-36, 1946.

LIBÂNEO, J. C. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação no pensamento pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, S. G. e GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no BrasilBrasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002. p. 53-80.

MAILHIOT, G. B. Dynamique et genèse des groupesroupes. Paris: Édition de l’Épi, 1970.

MIZUKAMI, M. da G. N. et al. Escola e aprendizagem da docênciancia: processos de investigação e formação. São Carlos: EdUFSCar, 2002.

MONTEIRO, S. B. Epistemologia da prática: o professor reflexivo e a pesquisa colaborativa. In: PIMENTA, S. G. e GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no BrasilBrasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002. p. 111-128.

MORIN, A. Recherche-action en éducationtion: de la pratique à la théorie. Rapport. Canadá: Université de Montreal, 1986.

_____. Recherche-action intégrale et participation cooperativetive. Méthodologie et etudes des cas. Laval: Éditions Agence d’Arc, 1992, vol. I.

PERRENOUD, P. EnsinarEnsinar: agir na urgência e decidir na incerteza. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

PIMENTA, S. G. Professor: formação, identidade e trabalho docente. In: PIMENTA, S. G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docentedocente. São Paulo: Cortez, 1999. p. 15-34.

ROJO, M. R. Hacia una didáctica críticatica. Madri: Editorial La Muralla, 1997.

SCHÖN, D. À la recherche d’une nouvelle épistémologie de la pratique et de ce qu’elle implique pour l’éducation des adultes. In: BARBIER, J.-M. (Org.). Savoirs théoriques et saviors d’actionaction. Paris: PUF, 1997, p. 201-222.

SMYTH, J. Developing and sustaining critical reflection in teacher education. Journal of teacher educationtion, v. 2, n. 40, p. 2-14, 1989.

TABA, H.; NOEL, E. Acting researchresearch: a . Washington: Association for Supervision and Curriculum Development (NEA), 1957, p. 12-27.

THURLER, M. G. Inovar no interior da escolaescola. Porto Alegre: Artmed, 2001.

Recebido em 29.06.05 Aprovado em 15.09.05

Maria Amélia Santoro Franco é pedagoga, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, coordenadora do Mestrado em Educação da Universidade Católica de Santos.

502 Maria Amélia S. FRANCO. Pedagogia da pesquisa-ação.