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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOCIÊNCIAS

ANÁTOMO-HISTOLOGIA ÓSTEO-DENTÁRIA BÁSICA DO guaibensis BONAPARTE et al., 2001 (THERAPSIDA, ): IMPLICAÇÕES NO ESTUDO DA EMERGÊNCIA E INTEGRAÇÃO DOS CARACTERES MAMALIANOS

Sergio Furtado Cabreira.

Orientador: Prof. Dr. Cesar Leandro Schultz.

Comissão Examinadora: Prof. Dr. Cástor Cartelle Guerra – Univ. Federal de Minas Gerais Prof. Dr. Nestor Fernando Abdala – Univ. of the Witwatersrand. Johannesburg. Profª. Drª. Iria Guimarães Machado Pureza Duarte – Univ. Federal de Pelotas Prof. Dr. José Eduardo Figueiredo Dornelles – Univ. Federal de Pelotas. Prof. Ana Maria Ribeiro – Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.

Tese de Doutorado apresentada como requisito para a obtenção do título de Doutor em Ciências.

Porto Alegre – 2009

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

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Cabreira, Sérgio Furtado Anátomo-histologia ósteo-dentária básica do Tritheledontidae Riograndia Guaibensis Bonaparte et al., 2001 (Therapsida, Eucynodontia): implicações no estudo da emergência e integração dos caracteres mamalianos / Sérgio Furtado Cabreira. - Porto Alegre : IGEO/UFRGS, 2009. 293 f. : il.

Tese (doutorado). - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Geociências. Programa de Pós-Graduação em Geociências. Porto Alegre, RS - BR, 2009. Orientação: Prof. Dr. Cesar Leandro Schultz.

1. Riograndia. 2. Tritheledontidae. 3. Cinodonte. 4. Evolução. 5. Esmalte. I. Título.

______Catalogação na Publicação Biblioteca Geociências - UFRGS Luciane Scoto da Silva CRB 10/1833

“Go to nature – take the facts into your own hands – look, and see for yourself.”

-L. Agassiz.

(Inscrição que ornamenta a entrada do Ruthven Museum Building, University of Michigan, Ann Arbor, Michigan.)

AGRADECIMENTOS

Ao Orientador deste trabalho Dr. César Leandro Schultz pelas orientações técnico-científicas, pelos aconselhamentos e pela confiança em mim depositada. Drª. Marina Bento Soares pela “informal” Co-orientação de todas as fases deste trabalho e pelo apoio, que tornaram mais tranqüila esta caminhada. Aos Professores e Pesquisadores do PPGEO-UFRGS pelos ensinamentos ministrados, pelo apoio e pela amizade. Aos Professores e Pesquisadores Dr. Luis Fernando Mallabarba e Drª. Vera Gaiesky pelos ensinamentos ministrados em disciplinas do Curso de Pós- Graduação. Aos Pesquisadores e Professores da Fundação Zoobotânica do Estado do Rio Grande do Sul, Drª Ana Maria Ribeiro e Dr. Jorge Ferigolo, pelos ensinamentos ministrados em disciplinas do Curso de Pós-Graduação da UFRGS. À Universidade Federal do Rio Grande do Sul e à todos os seus Servidores pelos serviços que prestam a sociedade brasileira. Ao CNPq pela Bolsa de Pós-graduação integrada Mestrado/Doutorado, que permitiu a realização deste trabalho de pesquisa e que assegurou a minha formação científica. Aos Senhores Doutores Dr. Castor Cartelle Guerra, Dr. Fernando Abdala e Drª Iria Guimarães Pureza Duarte por comporem a Banca de Doutorado desta Tese. Ao Servidor Público Sr. Roberto Martins Pereira pelo apoio que nós alunos do Curso de Pós-Graduação recebemos da sua pessoa. Dra. Valeska Brasil Lemos e Dr. Renato O. de Freitas, por participarem da Banca de Qualificação. À Dra. Karen Weigert, Coordenadora da Clinica de Odontologia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Cachoeira do Sul, pelo apoio em estomatologia e histologia bucal, pelas orientações técnicas e pela amizade. Ao Servidor Público Federal Sr. Luiz Flávio Lopes pelos excelentes trabalhos de fotografia que compõe esta Tese. À Doutoranda Cristiane Ferreira pelos trabalhos de composição fotográfica que fazem parte deste trabalho. Aos Colegas de Pós-Graduação Alexandre Liparini, Daniel Costa Fortier, Tiago Raugust, Sara Nascimento, Cristiane Pakulski da Silva e Rodrigo Carrilho pela amizade fraterna que nos permitiu caminhar ao longo desta jornada. Aos amigos Suzana Mello Rodrigues, Patrícia Amaral, Naiana Siqueira, João Batista Silva dos Santos, Ingrid Ferreira, Protásio Antônio Vervloet Paim e Lúcio Roberto da Silva, pela amizade e pelo apoio moral. À toda a minha Família: Karine e Leandro, Elisete e Cristian, Vovó Eli e Maria, Paulo Ricardo (Dinho),Vinícius, Luma, Ana Paula, Luana, Marlene, Lola, Murilo, Talita e Ana Paula. Aos meus Pais Adão e Deraci, meus irmãos Adão Filho, Ciro, Cleber, Fábio e Robinson, e aos meus filhos Dionatan e Alana, pelo amor que sempre tivemos. Enfim, para todos os que tornam a nossa caminhada menos árdua, e que fazem com que a vida seja mais suave!

RESUMO

O presente estudo é uma abordagem histológica básica da dentição do Tritheledontidae Riograndia guaibensis Bonaparte, Ferigolo & Ribeiro, 2001, em níveis de mesoscopia e microscopia. Neste táxon foram observadas evidências histológicas e embriológicas da presença de um padrão mamaliano placentário difiodonte de substituição dentária, especialmente indicada pela clara inversão da onda de substituição seqüencial dos premolaiformes. A presença de difiodontia em Riograndia está obrigatoriamente relacionada com outros caracteres mamalianos apomórficos como a endotermia, lactação, padrão de crescimento limitado e com o incremento dos cuidados parentais. Riograndia também apresenta um esmalte dentário prismático mamaliano, caracterizado pela presence de decussações coletivas dos prismas de esmalte e de Bandas de Hunter-Schreger. Adicionalmente, Riograndia também apresenta uma dentição euhipsodonte semelhante as encontradas entre os rodentes, principalmente na anatomia e na organização histológica dos incisivos centrais inferiores. Como se pode observar, a euhipsodontia somente pode ocorrer em dentições permanentes com altos níveis de pedomorfose. Ainda mais, a presença de um palato secundário extenso, maxiloturbinais e um grande coeficiente de encefalização reforçam a condição mamaliana de Riograndia. Por outro lado, neste táxon está presente ainda uma primitiva articulação crânio-mandibular, com a primitiva e reptiliana articulação “articular/quadrado, associada com um contato medial acessório entre o dentário e o esquamosal. Entretanto, o padrão da articulação crânio-mandibular pode não ser considerado como um sinal de status “reptiliano” ou “mamaliano” para um , uma vez que este caráter não tem uma importância decisiva no processo mastigatório mamaliano, como usualmente é alegado. De fato, as principais forças envolvidas neste processo estariam concentradas nas estruturas alveolares de suporte dentário – pelo deslocamento do complexo massetérico para frente – e não sobre a articulação. Assim, a mastigação mamaliana (e os controles neuro-musculares necessariamente associados), difiodontia, presença de esmalte prismático e de um palato secundário mais extenso, bem como a endotermia e a lactação, formam um indissociável conjunto de caracteres, os quais evoluíram antes da articulação crânio-mandibular e ouvido médio mamalianos. Estes resultados diferem dos estudos previamente realizados e permitem a elaboração de uma nova hipótese para a sequência evolucionária da emergência dos principais caracteres mamalianos.

Palavras-chave: Riograndia, Tritheledontidae, Cinodonte, Evolução, Esmalte. ABSTRACT

The present study is a basic histological approach to the dentition of the Tritheledontidae Riograndia guaibensis Bonaparte, Ferigolo & Ribeiro, 2001, in meso- and microscopic levels. The presence of histological and embryological evidences of the characteristic mammalian diphyodont placental pattern of dental replacement was observed in this taxon, especially indicated by a clear inversion of the wave of the sequential premolariforms substitution. Riograndia also shows much derived mammalian prismatic enamel characterized by the presence of collect decussations in the prisms and Hunter-Schreger Bands. The lower central incisors are rodent-like and euhypsodont. Euhypsodonty can only be possible in a permanent and pedomorphic dentition, and the presence of sclerotic dentine and reversal resorption lines in the radicular cementum of the post-canine roots reinforce the existence of a permanent diphyodont dentition. Diphyodonty, in turn, must be necessary linked to other mammalian characters as endothermy, lactation, limited growth and parental care. In this way, the presence in Riograndia of an extended secondary palate, maxilloturbinals and a high encephalization coefficient reinforces a mammalian condition to this taxon. On the other hand, this taxon presents a “primitive” craniomandibular joint, with the traditional articular/quadrate “reptilian” articulation associated to a medial contact of the dentary and squamosal. However, the pattern of the craniomandibular joint should not be considered as indication of a “reptilian” or a “mammalian” status to an animal, because this character does not play a decisive role in the mammalian masticatory process, as usually claimed. In fact, the main forces involved in this process are concentrated at the dental portion of the dentary – by the displacement of the masseteric complex forward - and not at the joint. Therefore, mammalian mastication (and the muscular and neural controls necessarily associated to it), associated to diphyodonty, extension of the secondary palate and presence of specialized dental tissues (prismatic enamel and sclerotic dentine), as well as endothermy and lactation, form an indissociable set of characters which evolved before the mammalian craniomandibular joint and middle ear. These results differ from those of previous studies and lead to a new hypothetic evolutionary sequence to the emergency of mammalian characters.

Keywords: Riograndia, Tritheledontidae, , Evolution, Enamel LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Cladograma dos Sinápsidas ...... 015 FIGURA 2 - Crânio de Riograndia guaibensis ...... 016 FIGURA 3 - Localização geográfica da cidade de Candelária ...... 020 FIGURA 4 - Filogenia de Riograndia guaibensis ...... 021 FIGURA 5 - Perfil litoestratigráfico do afloramento da Linha São Luiz ...... 022 FIGURA 6 - Composição esquemática de alguns crânios...... 023 FIGURA 7 - Orientações e notações craniais ...... 031 FIGURA 8 - Orientações e notações dentárias ...... 032 FIGURA 9 - Distribuição espacial e cronológica dos Ictidosauria ...... 034 FIGURA 10 - Cladograma das relações filogenéticas de cinodontes brasileiros ...... 036 FIGURA 11 - Composição do crânio de Riograndia ...... 038 FIGURA 12 - Composição de maxilar e dentes de Riograndia ...... 040 FIGURA 13 - Composição do dentário de Riograndia ...... 041 FIGURA 14 - Composição esquemática do dentário de Riograndia ...... 043 FIGURA 15 - Estágios de desenvolvimento dentário ...... 046 FIGURA 16 - Diagrama do desenvolvimento dentário ...... 048 FIGURA 17 - Diferenciação de ameloblastos/odontoblastos e mineralização de matriz .. 050 FIGURA 18 - Estágios de dobramento do epitélio interno do órgão do esmalte ...... 053 FIGURA 19 - Diagrama do padrão de maturação e mineralização da coroa dental ...... 055 FIGURA 20 - Evolução do osso dentário dos mamíferos ...... 059 FIGURA 21 - Dentário de Diarthrognathus broomi ...... 062 FIGURA 22 - Padrões de fixação dentária entre os vertebrados ...... 064 FIGURA 23 - Composição esquemática do crânio de Palaeolagus...... 072 FIGURA 24 - Composição esquemática de crânios de primitivos rodentes ...... 073 FIGURA 25 - Padrões dentições inferiores encontradas entre os Multituberculata ...... 075 FIGURA 26 - Diagrama de cortes transversais de diversos dentes de roedores ...... 076 FIGURA 27 - Diagrama de cortes transversais de incisivos centrais ...... 077 FIGURA 28 - Modelo de dentes superiores de Gomphos elkema ...... 078 FIGURA 29 - Composição fotográfica de Gomphom elkema ...... 079 FIGURA 30 - Anatomia e histologia dos dentes de Lavanify miolaka ...... 083 FIGURA 31 - Fotografia de crânio e dentário de Ctenomys torquatus ...... 088 FIGURA 32 - Vista oclusal dos molares de Spanocriceton ningensis ...... 090 FIGURA 33 - Composição esquemática do dentário de Fruitafossor windsheffeli ...... 091 FIGURA 34 - Desenho de Phyllomys bainvillii ...... 092 FIGURA 35 - Fotografia de crânio de Phyllomys lamarum ...... 093 FIGURA 36 - Esquema dos controles proprioceptivos e neuromotores ...... 096 FIGURA 37 - Variações de forma e disposição das fileiras de dentes e dos côndilos ...... 100 FIGURA 38 - Diagrama dos músculos adutores da mandíbula dos mamíferos ...... 101 FIGURA 39 - Processo de modelamento funcional dos dentes mamalianos ...... 102 FIGURA 40 - Representações craniais de sucessivas radiações synapsidas ...... 105 FIGURA 41 - Representação diagramática da radiação ...... 107 FIGURA 42 - Sinopse da emergência das principais apomorfias mamalianas ...... 110 FIGURA 43 - Reconstrução da cabeça de Nemegtbaatar ...... 113 FIGURA 44 - Os crânios de , Riograndia, Brasilodon e Didelphis ...... 115 FIGURA 45 - Reconstituições tridimensionais de alguns crânios ...... 116 FIGURA 46 - Comparação entre moldes cerebrais de diferentes cinodontes ...... 117 FIGURA 47 - Diagramação da evolução da ACM dos cinodontes não-mamalianos ...... 119 FIGURA 48 - Comparação das ACM/ATMS de cinodontes/mamíferos ...... 120 FIGURA 49 - Composição esquemática do esqueleto de cinodontes ...... 124 FIGURA 50 - Crânio de riograndensis ...... 125 FIGURA 51 - Crânio de Diarthrognathus ...... 128 FIGURA 52 - Padrões de palato secundário em cinodontes e mamíferos ...... 129 FIGURA 53 - Evolução convergente do palato duro entre cinodontes e terocefálios ...... 130 FIGURA 54 - Crânio de ...... 131 FIGURA 55 - Processo de desenvolvimento embriológico do palato ...... 133 FIGURA 56 - Cladograma da emergência da difiodontia em mamíferos Mesozóicos ...... 136 FIGURA 57 - Reconstrução do Dentário de ...... 138 FIGURA 58 - Composição esquemática do crânio de Chaliminia musteloides ...... 141 FIGURA 59 - Dentes pós-caninos superiores de monus ...... 142 FIGURA 60 - Composição esquemática dos dentes de Pachygenelus...... 142 FIGURA 61 - Dentário direito de Pachygenelus ...... 144 FIGURA 62 - Face interna da mandíbula de Ophiacodon ...... 149 FIGURA 63 - Dentes de um mamífero placentário primitivo ...... 152 FIGURA 64 - Dentição superior esquerda de um mamífero placentário ...... 154 FIGURA 65 - Padrões de substituições dentárias em P. monus e Alphadon ...... 158 FIGURA 66 - Dentes de Megazoostrodon ...... 162 FIGURA 67 - Dentes tribosfênicos isolados de ...... 163 FIGURA 68 - Esquematização do crânio e mandíbula de brasiliensis ...... 164 FIGURA 69 - Padrões de formação dos três tipos de esmalte reconhecidos ...... 167 FIGURA 70 - Processo de deposição da matriz do esmalte prismático ...... 168 FIGURA 71 - Esmalte de dente humano ...... 169 FIGURA 72 - Modelo de decussação dos prismas de esmalte ...... 170 FIGURA 73 - Diagrama de formação das Bandas de Hunter-Schreger ...... 171 FIGURA 74 - Cladograma do relacionamento filogenético presumido de eutérios ...... 172 FIGURA 75 - Planos de corte de prismas de esmalte e formas geradas ...... 174 FIGURA 76 – Esquema dos planos de corte em esmalte humano ...... 175 FIGURA 77 - Linhas incrementais existentes nos dentes dos mamíferos...... 181 FIGURA 78 - Fotomicrografia de secção dentária coronal de ...... 182 FIGURA 79 - Fotomicrografia de corte transversal de coroa dental humana ...... 183 FIGURA 80 - Fotomicrografia de esmalte dentário de multituberculata ...... 184 FIGURA 81 - Corte de um dente humano permanente ...... 188 FIGURA 82 - Esquema da disposição dos tecidos dentários dos mamíferos...... 190 FIGURA 83 - Dentário de Riograndia guaibensis ...... 193 FIGURA 84 - Fotografia do dentário de Riograndia ...... 195 FIGURA 85 - Fotografia de vista lateral do dentário de Riograndia ...... 196 FIGURA 86 - Fotografia de lâmina petrológica de dentário Riograndia ...... 197 FIGURA 87 - Fotografia de vista medial do dentário de Riograndia ...... 199 FIGURA 88 - Fotografia do dentário direito de Riograndia ...... 200 FIGURA 89 - Fotografia de crânio e dentário de Ctenomys ...... 203 FIGURA 90 - Fotografia do dentário inferior direito de Ctenomys ...... 204 FIGURA 91 - Fotomicrografia do incisivo central inferior de Ctenomys ...... 205 FIGURA 92 - Fotomicrografia de esmalte/dentina de Ctenomys ...... 206 FIGURA 93 - Fotografia de dentário de Riograndia ...... 208 FIGURA 94 - Composição fotográfica do dentário de Riograndia ...... 209 FIGURA 95 - Processo de substituição dentária de Riograndia ...... 210 FIGURA 96 - Composição fotográfica do dentário esquerdo de Riograndia ...... 212 FIGURA 97 - Dente molariforme inferior direito de Riograndia ...... 215 FIGURA 98 - Fotomicrografia do incisivo central de Riograndia ...... 217 FIGURA 99 - Fotomicrografia do terço incisal do incisivo de Riograndia ...... 218 FIGURA 100 - Fotomicrografia de terço incisal de Riograndia ...... 219 FIGURA 101 - Fotomicrografia de luz refletida de incisivo de Riograndia ...... 221 FIGURA 102 - Fotomicrografia de incisivo central de Riograndia ...... 223 FIGURA 103 - Fotomicrografia da coroa em fase de campânula em Riograndia ...... 224 FIGURA 104 - Fotomicrografia do dente de Riograndia ...... 225 FIGURA 105 - Fotografia do dentário de Riograndia ...... 226 FIGURA 106 - Fotomicrografia da coroa do terceiro incisivo de Riograndia ...... 227 FIGURA 107 - Fotomicrografia da dentina de incisivo de Riograndia ...... 229 FIGURA 108 - Microfotografia de raízes dentárias do Riograndia ...... 230 FIGURA 109 - Composição fotográfica do maxilar de Riograndia ...... 232 FIGURA 110 - Composição fotográfica de canino de Riograndia ...... 233 FIGURA 111 - Fotomicrografia em luz polarizada do canino de Riograndia ...... 234 FIGURA 112 - Bandas de Hunter-Scrheger no canino superior Riograndia ...... 236 FIGURA 113 - Fotomicrografia da zona apical da raiz dentária de Riograndia ...... 238 FIGURA 114 - Fotomicrografia de processo de rizólise esfoliativa Riograndia ...... 239 FIGURA 115 - Fotomicrografia da região sinfiseal de Riograndia ...... 242 FIGURA 116 - Fotografia de pós-canino inferior de Riograndia ...... 243 FIGURA 117 - Composição fotográfica e esquemática do dentário de Riograndia ...... 244 FIGURA 118 - Fotografia do pré-maxilar e maxilar de Riograndia ...... 245 SUMÁRIO

1-INTRODUÇÃO ...... 014 1.1-OBJETIVOS ...... 018 1.2-REGISTRO DOS TRITHELEDONTIDAE NO RIO GRANDE DO SUL ...... 019

2-MATERIAIS ...... 024 2.1-MATERIAIS FÓSSEIS UTILIZADOS ...... 024 2.2-MATERIAIS CRANIANOS ATUAIS UTILIZADOS ...... 024

3-METODOLOGIA ...... 026 3.1-MACROSCOPIA/MESOSCOPIA ...... 029 3.2-MICROSCOPIA DE LUZ POLARIZADA ...... 029 3.3-MICROSCOPIA DE LUZ NATURAL E LUZ REFLETIDA ...... 030 3.4-NOMENCLATURA DENTÁRIA APLICADA ...... 031

4-SISTEMÁTICA ...... 034

5-ESTRUTURAS ÓSTEO-DENTÁRIAS ...... 038

6-ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS DENTES ...... 044 6.1-ORIGEM FILOGENÉTICA DOS DENTES ...... 044 6.2-DESENVOLVIMENTO EMBRIOLÓGICO DENTÁRIO ...... 045 6.3-HETEROCRONIA E A ORIGEM DOS TECIDOS DENTÁRIOS ...... 049 6.4-HETEROCRONIA E A ORIGEM DOS DENTES MULTICUSPIDADOS ...... 052

7-EMBRIOLOGIA DOS OSSOS MAXILARES E DENTÁRIOS ...... 056 7.1-EVOLUÇÃO DO DENTÁRIO EM CINODONTES ...... 058

8-SISTEMAS DE FIXAÇÃO DOS DENTES ...... 064 8.1-O SISTEMA MAMALIANO DE IMPLANTAÇÃO DENTÁRIA ...... 065

9-HETERODONTIA E EVOLUÇÃO MAMALIANA ...... 068

10-ESPECIALIZAÇÕES ANATÔMICAS DENTÁRIAS HIPSODÔNTICAS EM VERTEBRADOS ...... 071 10.1-ADAPTAÇÕES ECOLÓGICAS HIPSODÔNTICAS ...... 087 10.2-A MASTIGAÇÃO COMO CARÁTER MAMALIANO ...... 094

11-A EMERGÊNCIA DOS CARACTERES MAMALIANOS ...... 104 11.1-ENCEFALIZAÇÃO E EVOLUÇÃO MAMALIANA ...... 116 11.2-EVOLUÇÃO DO DENTÁRIO E OUVIDO MÉDIO DOS MAMÍFEROS ...... 119

12-A MASTIGAÇÃO ENTRE OS CINODONTES ...... 123 12.1-A EVOLUÇÃO DO PALATO SECUNDÁRIO NA TRANSIÇÃO CINODONTE- MAMÍFERO...... 128 12.2-EVOLUÇÃO DENTÁRIA E A TRANSIÇÃO CINODONTE-MAMÍFERO ...... 134 12.3-A DENTIÇÃO DOS TRITELEDONTÍDEOS ...... 139 12.4-A PRESENÇA DE OSSO DE FUSIONAMENTO NA DENTIÇÃO DOS TRITELEDONTÍDEOS ...... 146

13-DENTIÇÃO E EVOLUÇÃO MAMALIANA ...... 149 13.1-DIFIODONTIA E DESENVOLVIMENTO ONTOGÊNICO ...... 149 13.2-RAÍZES DENTÁRIAS ...... 161 13.3-ESMALTE DENTÁRIO ...... 164 13.4-DENTINA ...... 186 13.5-CEMENTO DENTÁRIO ...... 189

14-O APARELHO ESTOMATOGNÁTICO DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 193 14.1-DESCRIÇÃO/DIAGNOSE ANATÔMICA E HISTOLÓGICA DO DENTÁRIO E DENTIÇÃO DO ESPÉCIME UFRGS-PV0878T ...... 193 14.2-DESCRIÇÃO/DIAGNOSE ANATÔMICA E HISTOLÓGICA DO DENTÁRIO E DENTIÇÃO DO ESPÉCIME UFRGS-PV1033T ...... 199 14.3-DESCRIÇÃO ANÁTOMO-HISTOLÓGICA DA DENTIÇÃO DE UM ESPÉCIME DE CTENOMYS TORQUATUS ...... 202 14.4-EMBRIOLOGIA DENTAL E O PADRÃO DE SUBSTITUIÇÃO DENTÁRIA EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 206 14.5-ANATOMIA DENTÁRIA DOS PÓS-CANINOS EM R. GUAIBENSIS ...... 212 14.6-ORGANIZAÇÃO ANATOMO-HISTOLÓGICA DO INCISIVO CENTRAL INFERIOR DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 216 14.7-DISTRIBUIÇÃO DO ESMALTE NOS INCISIVOS INFERIORES DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 225 14.8-INTRA-ESTRUTURA DA DENTINA DO INCISIVO CENTRAL INFERIOR DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 228 14.9-A PRESENÇA DE DENTINA TRANSLÚCIDA (ESCLERÓTICA) APICAL E O PADRÃO DE SUBSTITUIÇÃO DENTÁRIA EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 230 14.10-ANÁTOMO-HISTOLOGIA DA MAXILA DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 231 14.10.1-CARACTERÍSTICAS GERAIS DA MAXILA ...... 231 14.10.2-CARACTERES AUTAPOMÓRFICOS HIPSODÔNTICOS DOS CANINOS SUPERIORES ...... 233 14.10.3-HISTOLOGIA DE ESMALTE DO CANINO SUPERIOR DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 235 14.11-A PRESENÇA DE CEMENTO DENTÁRIO EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 237 14.12-A PRESENÇA DE OSSO DE FUSIONAMENTO NA DENTIÇÃO DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 240 14.13-A NATUREZA OSTEOLÓGICA DA SÍNFISE DENTÁRIA DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 241 14.14-DIAGNOSE OCLUSAL COMPLEMENTAR ...... 242 14.15-CONSIDERAÇÕES GERAIS DA ANATOMIA DENTAL EXTERNA ...... 246

15-DISCUSSÕES ...... 248 15.1-O APARELHO MASTIGATÓRIO DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 248 15.2-HIPSODONTIA E MASTIGAÇÃO EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS E OUTROS CINODONTES NÃO-MAMALIANOS ...... 260 15.3-RIOGRANDIA GUAIBENSIS COMO UM PEQUENO MAMÍFERO PRIMITIVO, HERBÍVORO E DE HÁBITOS FOSSORIAIS ...... 264

16-CONCLUSÕES ...... 270 16.1-CONCLUSÕES RELACIONADAS A RIOGRANDIA GUAIBENSIS ...... 270 16.2-CONCLUSÕES E INFERÊNCIAS QUANTO À EVOLUÇÃO DOS MAMÍFEROS ... 272

17-RECOMENDAÇÕES/TRABALHOS FUTUROS ...... 276 18-REFERÊNCIAS ...... 278

APÊNDICE ...... 291 GLOSSÁRIO ...... 291

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1-INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, as descobertas de formas transicionais conferiram importantes avanços ao conhecimento dos cinodontes não-mamalianos e sobre a origem e evolução dos primeiros mamíferos. Para este contexto, contribuíram significativamente as descobertas de fósseis de cinodontes avançados do Rio Grande do Sul, efetuadas por diversos autores (Abdala et al., 2002; Bonaparte et al., 2001; Bonaparte & Barberena, 2001; Rubert & Schultz, 2003; Soares, 2003, 2004; Bonaparte et al., 2003; Martineli et al., 2005; entre outros).

Estes trabalhos têm sido muito bem recebidos no meio científico, com novas abordagens e interpretações ao tema em questão. Porém, neste conjunto de trabalhos, inexistem abordagens de cunho histo-anatômico, visando a pesquisa dos caracteres ósteo- dentários destes táxons de cinodontes não-mamalianos.

Os dentes e ossos dentígeros de vertebrados fósseis apresentam importantes caracteres de diagnose, utilizados nos trabalhos filogenéticos. No estudo das relações cladísticas entre os táxons de cinodontes não-mamalianos avançados e mamíferos basais, as dentições são objeto de discussões e análises, mas estas são quase totalmente embasadas apenas em feições morfológicas externas e de escala meso ou macroscópica. Nesse contexto, fica evidente a necessidade de estudos adicionais, de cunho histo-anatômico em escala microscópica, para a análise de estruturas especializadas como os dentes e ossos dentígeros, uma vez que estes elementos esqueletais representariam processos ontogênicos diferenciados que podem vir a se constituir em importantes apomorfias diagnósticas.

A partir do exposto, o presente projeto propõe-se a contribuir com o desenvolvimento do arcabouço teórico referente à transição cinodonte-mamífero, através de um estudo paleo-histológico de avaliação de caracteres ósteo-dentários do cinodonte Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001).

Nesta abordagem, reafirmam-se as possibilidades que os estudos paleo- histológicos oferecerem na busca de diagnósticos claros e objetivos, passíveis de serem alcançados pela estomatologia atual, com a utilização de técnicas laboratoriais elementares de microscopia óptica. 15

O tema e a metodologia aqui propostos são inéditos, tanto em relação a Riograndia guaibensis, quanto para qualquer outro Synapsida envolvido na transição cinodonte-mamífero. Do ponto de vista metodológico isto se deve, principalmente, ao fato de que a metodologia aqui utilizada implica na perda parcial ou mesmo total do material fossilífero, sendo que o estudo aqui apresentado só foi oportunizado devido à redundância de materiais fósseis atribuídos a Riograndia guaibensis coletados em expedições realizadas pelos pesquisadores do Laboratório de Paleovertebrados do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O trabalho de estabelecimento do estado-da-arte aborda caracteres embriológicos, histo-anatômicos e anátomo-fisiológicos dentários dos Synapsida (Figura 1) extintos e dos mamíferos fósseis e atuais. Esta fase de estudo constrói a fundamentação teórica necessária ao desenvolvimento da tarefa de analisar a macro/micro-estrutura da dentição de Riograndia guaibensis.

FIGURA 1 - Cladograma mostrando as relações filogenéticas entre os Synapsidas, onde os triteledontídeos aparecem como grupo irmão dos mamíferos (modificado de Carrol, 1988).

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Como forma de se programar os processos de análise, foram realizados estudos histológicos ósteo-dentários suplementares em um pequeno Rodentia atual (Ctenomys torquatus) e foram elaboradas diversas comparações anatômicas, histológicas, fisiológicas e ecológicas entre este e R. guaibensis (FIG. 2). A ampliação da base de caracteres anátomo-histológicos dentários permitirá uma melhor e mais adequada compreensão dos padrões evolucionários presentes na transição cinodonte-mamífero.

FIGURA 2 - Crânio de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001), UFRGS–PV0596T, em vista lateral (modificado de Soares, 2004).

Ao abordar-se especificamente a histologia ósteo-dentária de R. guaibensis, foi tomado como exemplo o trabalho histórico de Parrington (1971) sobre os mamíferos basais Morganucodon watsoni ( problematicus), Kuehneotherium praecursoris e outros táxons, onde o autor estabeleceu a difiodontia como o padrão de substituição dos dentes de Morganucodon. Apesar dos excelentes resultados que Parrington (1971) obteve nos estudos dentários de Morganucodon, deve-se ressaltar que estes foram estritamente obtidos através de análises indiretas da anatomia externa das coroas e raízes dentárias. Parrington (1971) dispendeu vários anos de exaustivo trabalho para radiografar, dissecar e analisar centenas de fragmentos de dentes, maxilares e ossos dentários. No presente trabalho sobre a dentição de Riograndia guaibensis, utilizou-se uma abordagem de natureza mais integradora, iniciando pelo estudo dos materiais ósteo- 17

dentários de Riograndia em nível macroscópico, prosseguindo através da mesoscopia até o nível de microscopia óptica, tendo como pano de fundo a análise do desenvolvimento histo- embriológico.

As fases iniciais deste trabalho apresentaram situações extremamente críticas pela inexistência de quaisquer protocolos previamente estabelecidos que pudessem ser utilizados para uma abordagem sem riscos. Isto ocorreu por que este modelo de estudo jamais foi utilizado em trabalhos anteriores. As dificuldades tornaram-se reais já nos aspectos mais básicos do projeto, como a definição das resinas, a escolha dos abrasivos e a determinação dos padrões de desgaste para a preparação das lâminas petrológicas. Por outro lado, restavam incógnitos os elementos anátomo-histológicos a serem enfocados na dentição de Riograndia guaibensis, sendo que, uma vez encontradas novas evidências, seria necessário definir a sua relevância e possíveis aplicações em estudos sobre a transição cinodonte-mamífero.

Neste contexto, avaliou-se a natureza do esmalte dentário, a diferenciação anatômica dental e também a complexidade histológica das coroas e das raízes dentárias. No decorrer do estudo, evidenciou-se, na dentição de R. guaibensis, a ocorrência de caracteres até então tidos como mamalianos derivados, como a presença das Bandas de Hunter-Schreger, além de outros ainda não encontrados entre os táxons transicionais de cinodontes ditos “não- mamalianos” como “a presença de cemento radicular e de graus variados de euhipsodontia”.

A evidenciação do padrão de substituição dentária de Riograndia é um importante elemento para a diagnose final deste táxon, porque este caracter tem sido profundamente considerado em trabalhos de autores como Bonaparte et al. (2001), Kemp (2005), Kielan-Jaworowska et al. (2004), Luo et al. (2002), Kermack et al. (1973, 1981), Parrington (1971) entre outros, sendo que todos estes trabalhos, como já foi mencionado, utilizaram abordagens distintas daquela utilizada no presente estudo e, por isso mesmo, chegaram a diferentes conclusões sobre este tema.

No sentido de viabilizar a compreensão dos processos biológicos que culminaram com a formação e evolução das dentições dos cinodontes e mamíferos estaremos estabelecendo previamente, na fase de revisão blibliográfica, um conjunto de informações necessárias à plena compreensão dos processos biológicos que foram diagnosticados em Riograndia guaibensis. Em alguns momentos desta fase do trabalho, muitas das informações apresentadas poderão parecer pouco ou nada relacionadas ao objeto de estudo. Todavia, os elementos teóricos aqui abordados compõem um conjunto indissociável para a compreensão e 18

análise da dentição de Riograndia e estabelecem, entre si, uma profunda conexão biológica e evolucionária, como será comprovado através dos objetivos alcançados.

1.1-OBJETIVOS

Este projeto teve o objetivo geral de realizar um estudo de histologia básica do aparelho mastigador do cinodonte triteledontídeo Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001), do Triássico Superior da Formação Caturrita, Rio Grande do Sul, Brasil, a partir de uma abordagem analítica direcionada à microscopia óptica dos elementos ósteo-dentários que compõem a sua estrutura oral.

Como objetivos específicos, pretendeu-se:

Analisar a anatomia e a histologia dos órgãos dentários, esmalte dentário, dentina, cemento dentário, estruturas ósseas alveolares e dos ossos dentígeros de Riograndia;

Avaliar os possíveis estágios de organogênese dentária e os padrões de substituição dentária;

Levantar aspectos fisiológicos diretamente relacionados à anatomia dentária;

Inferir caracteres do aparelho estomatognático presentes em Riograndia, diretamente implicados na “transição Cinodonte-Mamífero”, que possam sugerir um “perfil” do tipo de dieta e dos hábitos de vida deste táxon, os quais estão diretamente relacionados às estruturas dentárias estudadas;

Propor uma nova metodologia para os trabalhos futuros sobre a histologia da dentição de micro-paleovertebrados, no sentido de garantir o aporte de informações básicas, seguras e inovadoras, a ser aplicada em outros estudos.

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1.2-REGISTRO DOS TRITHELEDONTIDAE NO RIO GRANDE DO SUL

Os Tritheledontidae foram um grupo de pequenos cinodontes não-mamalianos, reconhecidamente carnívoro/insetívoros, que existiram desde o Triássico Superior até o Jurássico Inferior. Tritheledon riconoi, do Jurássico Inferior, foi encontrado na África do Sul e descrito por Broom, em 1912, que criou a Família Tritheledontidae. Pachygenelus monus foi descrita por Watson (1913), que também descreveu outros dois materiais fósseis muito fragmentários, que o citado autor designou como “Ictidossauros A e B”. Estes materiais foram reavaliados por Crompton (1958) que estabeleceu um deles como Diarthrognathus broomi, o qual se salientava por apresentar uma articulação crânio-mandibular transicional, na qual uma articulação acessória dentário/esquamosal incipiente ocorria medianamente à articulação mais primitiva quadrado/articular. Esta característica foi utilizada por Hopson e Kithing, em 1972, para reestabelecer a família Tritheledontidae, que abrigaria os gêneros Diarthrognathus, Pachygenelus e Tritheledon. Em 1980, Bonaparte descreveu Chaliminia musteloides para a Formação Los Colorados, do Triássico Superior da Argentina. Este novo táxon, juntamente com Pachygenelus, foi colocado pelo autor supracitado na família Pachygenelidae, enquanto Tritheledon + Diarthrognathus comporiam a família Tritheledontidae. Entretanto, a grande maioria dos autores atuais, incluindo o próprio Bonaparte (e.g. Bonaparte et al., 2001, Bonaparte et al., 2003, 2005; Soares, 2004; Martinelli et al., 2005), considera todos os gêneros de ictidossauros como pertencentes a uma única família: Tritheledontidae, Na última década, a Formação Caturrita, cujos afloramentos do Triássico Superior ocorrem em diversos municípios do Rio Grande do Sul (Figura 3) tem propiciado a descoberta de inúmeros fósseis de pequenos cinodontes não-mamalianos, incluindo, além de Riograndia, Brasilodon quadrangularis Bonaparte et al., 2001, riograndensis Bonaparte et al., 2001, e Irajatherium hernandezi Martinelli et al., 2005, que contribuem com os estudos sobre a evolução e origem dos primeiros mamíferos (Bonaparte et al., 2001; Bonaparte et al., 2003, 2005; Martinelli et al., 2005).

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FIGURA 3 - Localização geográfica das áreas de ocorrência dos cinodontes triteledontídeos no RS, Brasil (53° 30’ 23’’ W; 29° 34’ 08’’ S) (modificado de Bonaparte et al., 2003).

Dentre estes, Bonaparte, Ferigolo e Ribeiro (2001) descreveram Riograndia guaibensis e, baseados no conjunto de caracteres autapomórficos dentários do mesmo, criaram a família Riograndidae. Posteriormente, Bonaparte et al., 2003, 2005; Soares, 2004 e Martinelli et al., 2005 passaram a incluir este táxon na família Tritheledontidae (Figura 4), juntamente com Chaliminia musteloides Bonaparte (1980), Irajatherium hernandezi Martinelli (2005), Pachygenelus monus Watson (1913) e Diarthrognathus broomi Crompton (1958), além de Tritheledon riconoi Broom (1912).

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FIGURA 4 - Filogenia de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001). 1-Eucynodontia; 2- Cynognathia; 3-; 4-Tritheledontidae; 5-Mamaliaformes (modificado de Martinelli, 2005).

Atualmente, Riograndia guaibensis é o triteledontídeo que apresenta os melhores e mais completos materiais deste táxon, sendo representado por dezenas de espécimens juvenis e adultos.

Os fósseis de R. guaibensis foram descobertos nas localidades de Sesmaria do Pinhal, no município de Candelária (RS), e Linha São Luiz, município de Faxinal do Soturno (RS). O afloramento da Linha São Luiz apresenta uma litofácies característica de um sistema fluvial anastomosado (Figura 5). Nos níveis inferiores, as camadas arenosas com correntes de acreção são dominantes, enquanto fluxos subaquasos gravitacionais foram responsáveis pela deposição de arenitos massivos, encontrados em depósitos de fundo de canal ou pelo corte das barras anastomosadas. Já o topo desta sucessão, onde os fósseis de vertebrados foram encontrados (Bonaparte et al. 2003), é dominado por arenitos finos massivos com geometria lobular, que incluem intra-clastos de lamitos.

Nestes níveis, Riograndia guaibensis foi encontrado em associação com esfenodontídeos primitivos (Ferigolo & Ribeiro, 2000; Bonaparte & Sues, 2006), procolofonídeos derivados (Cisneros & Schultz, 2003) e outros cinodontes não-mamalianos derivados, como Brasilitherium riograndensis Bonaparte et al. (2003, 2005), Brasilodon quadrangularis Bonaparte et al. (2003, 2005) e Irajatherium hernandezi Martinelli et al. (2005). Com base nesse conteúdo fossilífero e em sua posição estratigráfica (no topo do pacote triássico do RS e acima dos níveis contendo rincossauros – fósseis guias do Carniano – 22

da Formação Santa Maria), é atribuída, para a Formação Caturrita, uma idade Carniano Superior/Noriano Inferior (Bonaparte et al., 2003).

FIGURA 5 - Perfil litoestratigráfico do afloramento da Linha São Luiz, no Município de Faxinal do Soturno (modificado de Bonaparte et al. 2003).

Os triteledontídeos compõem, com outros táxons de cinodontes avançados (Figura 6) como cargnini Bonaparte & Barberena (1975), Prozostrodon brasiliensis Barberena, Bonaparte & Sá Teixeira (1987), Kühne 1956, Brasilodon quadrangularis Martinelli et al., 2005, e Brasilitherium riograndensis Bonaparte et al., 2003, uma importante fonte de informações do processo de transição cinodonte- mamífero. 23

FIGURA 6 - Composição esquemática dos crânios de A-Pachygenelus monus Gow (1980); B-Riograndia guaibensis Bonaparte et al., (2001); C-Therioherpeton cargnini Bonaparte & Barberena, (1975); D-Diarthrognathus broomi Crompton (1958); E-Brasilodon quadrangularis Bonaparte et al. (2001) e F-Brasilitherium riograndensis Bonaparte et al., (2001) (modificado de Bonaparte et al., 2001).

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2-MATERIAIS

2.1-MATERIAIS FÓSSEIS UTILIZADOS

Os fósseis utilizados neste trabalho de pesquisa pertencem todos ao acervo do Laboratório de Paleontologia de Vertebrados do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os materiais utilizados para os estudos histológicos foram escolhidos e utilizados dentro do estrito critério de que não estivessem totalmente hígidos. Além disso, não foram utilizados quaisquer materiais que constassem de trabalhos previamente publicados ou que tivessem sido coletados juntamente com outros materiais osteológicos. Apesar da perda da estrutura fóssil no procedimento de abrasão e laminação, entendemos que as razões científicas e os resultados atingidos justificaram plenamente o modelo de estudo. As lâminas petrológicas estão devidamente tombadas no acervo do Laboratório de Paleontologia, constituindo uma coleção de lâminas de paleo-histologia que podem ser permanentemente estudadas e reavaliadas. Os exemplares fósseis de Riograndia guaibensis utilizados neste trabalho e que foram transformados em lâminas petrológicas, são os seguintes: A- UFRGS-PV0787T = Dentário direito; B- UFRGS-PV0791T = Dentário esquerdo; C- UFRGS-PV1033T = Dentário direito; D- UFRGS-PV0789T = Maxilar esquerdo.

2.2-MATERIAIS CRANIANOS ATUAIS UTILIZADOS

O presente estudo buscou, além da análise dos materiais fósseis de Riograndia guaibensis, sua comparação com algum táxon atual que pudesse servir como análogo. Nesse sentido, foi escolhido o rodente Ctenomys torquatus, em função de sua semelhança morfológica dom Riograndia e pela disponibilidade de materiais referentes ao mesmo na coleção do Laboratório de Paleovertebrados. 25

Desse modo, o material craniano de táxon atual que foi cortado e utilizado na confecção de lâmina petrográfica foi tombado como “Dentário de Rodente Ctenomys torquatus. UFRGS-PVL001”. 26

3-METODOLOGIA

Historicamente, os triteledontídeos estiveram envolvidos em constantes discussões científicas acerca de sua condição de cinodonte mamaliano (mamífero) ou não- mamaliano. Muitas destas dúvidas se devem, em parte, à condição muito fragmentária dos espécimes representativos de alguns táxons, como Tritheledon riconoi e Pachygenelus monus.

Hoje, Riograndia guaibensis é o triteledontídeo que apresenta os melhores e mais completos fósseis deste táxon. Desse modo, a partir da existência de inúmeros materiais ósteo-dentários deste táxon, com alta qualidade de conservação, resolveu-se trabalhar com uma nova metodologia, com o objetivo de realizar análises histológicas a partir de lâminas petrográficas e assim buscar informações mais confiáveis sobre a histologia básica do aparelho estomatognático dos triteledontídeos. Considera-se esta metodologia inovadora na medida em que se propõe a estudar um grande número de órgãos dentários in situ e em conjunto com os alvéolos e os ossos dentígeros, fazendo com que esta abordagem tenha maior relevância científica. Assim, espera-se que as informações histológicas obtidas permitam uma melhor compreensão das relações internas do grupo.

Os espécimes utilizados nesta pesquisa foram exemplares isolados e incompletos, coletados por pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com recursos advindos de projeto aprovado pelo CNPq, em associação com pesquisadores vinculados ao Museu Argentino de Ciências Naturales “Bernardino Rivadavia”. As expedições foram coordenadas e lideradas pelo paleontólogo Dr. Jose Fernando Bonaparte com financiamento da National Geographic Society. Foram confeccionadas seis lâminas petrográficas com amostras de ossos maxilares, pré-maxilares, ossos dentários e dentes de Riograndia guaibensis, as quais foram submetidas a análises em lupa binocular e em microscopia ótica; simultaneamente, foram obtidas fotomicrografias para posterior descrição e estudo. A utilização de dentários de exemplares juvenis e adultos de Riograndia foi uma estratégia crucial para manter o perfil do processo de análise de desenvolvimento ontogênico.

Igualmente, realizou-se a preparação de lâminas histológicas das estruturas ósseas dentígeras de um pequeno roedor atual que apresenta hábitos fossoriais, Ctenomys 27

torquatus (tuco-tuco), que possui um aparelho dentário estruturalmente semelhante ao de Riograndia guaibensis.

Este estudo paralelo foi realizado como forma de aporte de informações adicionais, uma vez que os dois táxons apresentavam muitas convergências anatômicas craniais e dentárias.

A técnica utilizada para a fabricação das lâminas delgadas seguiu o seguinte protocolo:

→Fase de impregnação:

A) Secagem do material em estufa (40ºC) durante uma semana; B) Inclusão em bloco de Resina de Poliestireno Resapol T208; C) Dessecagem do monômero; D) Secagem do Bloco em estufa (40ºC) durante duas semanas.

→Fase de fabricação das lâminas:

A) Corte do bloco em seção transversal com serra diamantada com lubrificação à óleo; B) Remoção de fragmentos menores com serra esfriada sob água; C) Abrasão inicial com Carbeto de Silício (320-500) óxido de alumínio (1.500- 3.000); D) Abrasão com Carbeto de Silício em placa de vidro; E) Lavagem da amostra; F) Secagem da amostra em estufa a 50ºC por 24 horas; G) Colagem das amostras em lâminas de vidro com araldite CY 248 – Catalisador HY 95 (6:1); H) Secagem das amostras em estufa (50ºC) por 24 horas; I) Remoção da espessura excedente da amostra, remanescendo, aproximadamente 1.0 mm de material; J) Abrasão com Carbeto de Silício 320 e Óxido de Alumínio 1.500, em equipamento politriz até atingir a espessura necessária; K) Lavagem com xilol, secagem e etiquetagem do material. 28

Os níveis dos desgastes foram controlados através de observação direta em microscópio e em várias oportunidades foram necessárias novas abrasões para melhorar a qualidade da translucidez dos materiais.

O preparo dos exemplares e a confecção das lâminas foram realizados pelo autor deste projeto, no Laboratório de Geologia Isotópica, CPGq, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A existência de inúmeros exemplares isolados de materiais fósseis de um mesmo táxon, com variadas condições de conservação e em estágios ontogenéticos diversos, abriu espaço para metodologias mais invasivas. Isto permitiu a busca de informações parcimoniosas, com alto grau de confiabilidade e um razoável controle dos tendenciamentos que poderiam advir do estudo de amostras reduzidas e, portanto, pouco representativas do universo em estudo. A preparação das amostras a partir de estruturas ósteo-dentárias mais íntegras permitiu a realização de observações e conclusões que seriam impossíveis de ser elaboradas através de outros modelos de estudos. A análise histológica só se fez possível mediante o acesso direto da luz sobre a totalidade do substrato de estudo, única forma de obter uma diagnose mais precisa e correta.

A decisão de orientar os cortes histológicos em planos longitudinais aos dentes e ossos dentários permitiu uma melhor observação histológica ao longo de todo o órgão dental, qualificando as diagnoses mais genéricas. Foram evitados cortes dentários transversais, pois estes são realizados em padrões horizontais aos tecidos e geralmente cortam e interrompem estruturas como os canalículos dentinários e os prismas de esmalte em planos contrários à maior extensão da síntese celular. Em outras palavras, cortes horizontais geram planos de estudos “não naturais”, aumentando a presença de “artefatos de técnica”, que seriam formas “anatômicas” que não representam o contexto das estruturas observadas, dificultando a compreensão dos fenômenos histogênicos. A utilização de cortes transversais, em nosso conceito dar-se-ia apenas em contexto de estudo complementar.

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3.1-MACROSCOPIA/MESOSCOPIA

A abordagem das estruturas dentárias de Riograndia guaibensis resultou em uma variada gama de informações, uma vez que todas as fases de preparação foram objeto de interesse e de investigação. Mesmo nas fases mais iniciais de desgaste foram realizadas observações sob lupa, centenas de fotografias e análises fotográficas, em busca de evidências meso-anatômicas ainda não referenciadas ou identificadas para este táxon.

A anatomia dentária, os processos e os padrões de substituição dentária, de odontogênese, de rizogênese e as formações ósseas de 4ª ordem, a presença de seios ósseos pneumatizados, etc. Enfim, muitos elementos histológicos básicos ósteológicos e dentários foram diagnosticados durante as fases intermediárias da laminação, tendo como único obstáculo a constante necessidade de realização, revelação, e ou digitalização de fotografias.

O fato de encontrarmos elementos anátomo-histológicos dentários passíveis de gerar informações sobre o padrão de substituição dentária em Riograndia constitui-se num resultado importante para os estudos relacionados à emergência dos caracteres mamalianos.

Este método de pesquisa retardou significativamente a velocidade do trabalho, uma vez que novos polimentos e desgastes do material fóssil só pudessem ser reiniciados mediante a certeza de efetiva e correta diagnose e de bons resultados fotográficos que registrassem os resultados e que garantissem a preservação das evidências.

3.2-MICROSCOPIA DE LUZ POLARIZADA

Esta etapa foi realizada no sentido de analisar as estruturas ósteo-dentárias mediante a diferença de refração de luz polarizada, com conseqüentes diferenciações cromáticas, uma vez que as matrizes ósseas e dentárias apresentam padrões peculiares de síntese, deposição e mineralização das suas estruturas teciduais e orgânicas.

No âmbito deste trabalho foi o recurso de microscopia mais utilizado e gerou excelentes resultados, uma vez que o controle direto da espessura dos cortes histológicos permitiu uma busca dirigida às microestruturas de maior interesse de estudo. 30

Em nosso entendimento, se possível, esta deve ser a primeira ferramenta de diagnose paleontológica histológica de materiais ósteo-dentários, pois permite a observação conjunta de ossos e dentes em apenas uma unidade de estudo, o que possibilita avaliar as relações entre todos os órgãos dentários e elementos osteológicos em análise.

As Fotomicrografias sob luz polarizada foram realizadas com Microscópio modelo CARL ZEISS, C. E. - Axiolab POL.

3.3-MICROSCOPIA DE LUZ NATURAL E LUZ REFLETIDA

A microscopia com luz refletida salientou o relevo externo das microestruturas, permitindo uma abordagem micro-anatômica dos tecidos e da sua micro-arquitetura. Estas imagens ajudaram na definição alguns padrões histológicos que se mostravam refratários aos outros meios microscópicos.

As Fotomicrografias com luz normal foram realizadas com equipamento automático, acoplado ao microscópio ótico de luz transmitida, modelo CARL ZEISS, MC80. Foram utilizados filmes coloridos Kodak GOLD ASA 100 A e filmes coloridos Kodak Ektachrome Slide.

As Fotomicrografias foram feitas através de equipamento fotográfico Yashica LENS ML, com Zoom de 35-70 mm. Foi utilizado o filme Kodak Ektachrome Slide. As Fotomicrografias foram realizadas pelo autor e pelo Sr. Luiz Flávio Lopes, Técnico em Fotografia e Servidor Público da UFRGS.

As Fotomicrografias de luz refletida foram realizadas no Laboratório de Petrologia Sedimentar, com a orientação técnica do Dr. Luiz Fernando De Ross.

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3.4-NOMENCLATURA DENTÁRIA APLICADA

Existe alguma inconsistência na terminologia das notações e orientações utilizadas nos trabalhos que estudam as dentições dos vertebrados fósseis e atuais, sendo que isto é particularmente notável no estudo das formas transicionais não- mamalianas/mamalianas, porque vários elementos dentários não apresentariam anatomia característica heterodôntica mamaliana e são nominados de forma diferenciada por vários autores. No sentido de facilitar a compreensão deste trabalho, optamos por modificar parte da nomenclatura sugerida por Smith & Dodson (2003) uma vez que abordamos diversos táxons transicionais. A utilização destes termos muitas vezes se origina do interesse do autor em designar um nível evolucionário ao táxon em questão. Como exemplo, podemos referir os dentes inferiores pós-caninos imediatos dos mamíferos, que são chamados de pré-molares, enquanto os dentes similares dos cinodontes não-mamalianos são chamados de pós-caninos imediatos ou tão somente designados como primeiro pós-canino (pc1), segundo pós-canino (pc2), etc. Neste caso, usam-se as letras “p” e “c” minúsculas (Figura 7) para indicar os dentes inferiores e os dentes superiores serão anotados com letra maiúscula. Tal notação converge com aquela utilizada por Bonaparte et al. (2001), Bonaparte et al. (2003) e Soares (2004) e será aqui adotada, na medida do possível, para eliminar possíveis confusões durante a descrição e as comparações anatômicas e histológicas.

FIGURA 7 - Orientações e notações craniais utilizadas para vertebrado mamaliano. Crânio, dentário e a dentição de canídeo em vista lateral (modificado de Smith & Dodson, 2003). Abreviaturas: C = canino superior; c = canino inferior; I1 = primeiro incisivo superior; i1 = 32

primeiro incisivo inferior; Pm1-Pm4 = premolares superiores; pm1-pm4 = premolares inferiores; M1 = primeiro molar superior; m1 = primeiro molar inferior.

Quanto à notação das faces dentárias (Figura 8) são aqui utilizados os termos “proximal” para as faces de contato dos dentes entre si, “mesial” para a face de contato voltada para a linha mediana e “distal” para designar a face dental proximal afastada do plano mediano. As faces dentárias chamadas de “faces livres” são aquelas que ou estão voltadas para a região externa (vestíbular) da cavidade oral ou estão voltadas para a parte mais interna da cavidade oral. As faces livres voltadas para a região externa sejam dos dentes superiores ou inferiores, são denominadas “labiais”, enquanto as internas recebem a designação de face dentária “lingual” quando relacionadas aos dentes inferiores e face “palatina” para indicar a face livre dos dentes superiores. A utilização do termo “palatina” foi aqui preferida, em detrimento do termo “lingual” usualmente utilizado indistintamente para as faces dos dentes superiores e inferiores. Isto ocorre, porque se entendeu que os cinodontes apresentariam um palato mais extenso, e anatomicamente semelhante ao dos mamíferos (e muito diferente do que ocorre entre os répteis), permitindo a utilização de uma terminologia mais distintiva.

FIGURA 8 - Orientações e notações dentárias utilizadas. A-dentição de Riograndia (tomada como modelo) em vista dorsal; B-dente humano em vista incisal/dorsal; C-dente humano 33

birradiculado; D-dente reptiliano em vista lateral; E-dente humano em vista oclusal (modificado de Smith & Dodson, 2003).

A notação dentária utilizada em referencia à Riograndia guaibensis será alterada ao longo deste trabalho, na medida em que os conceitos advindos de nossa avaliação diagnóstica sobre a natureza biológica deste vertebrado fóssil possam ser aplicados sobre este triteledontídeo. 34

4-SISTEMÁTICA

A posição filogenética de Riograndia guaibensis tem sido bastante controversa. Bonaparte et al., 2001 criaram a família Riograndidae unicamente para abrigar R. guaibensis. Posteriormente, Soares (2004) considerou que Riograndia formaria um clado monofilético com os demais Tritheledontidae e que, aparentemente, seus atributos autapomórficos dentários não seriam suficientes para justificar o estabelecimento de uma nova família. Diferentemente, Martinelli & Rougier (2007) colocaram Riograndia em uma posição mais basal, considerando como Tritheledontidae apenas os clados mais inclusivos em relação àquele (Figura 9). Neste contexto, os autores denominaram o clado formado por Riograndia + triteledontidae como “Ictidosauria”.

FIGURA 9 - Distribuição espacial e cronológica dos Ictidosauria (retirado de Martinelli & Rougier, 2007).

A descrição inicial do holótipo MCN-PV2264 (Bonaparte et al., 2001) e de outros materiais tombados como MCN-PV2265 e MCN-2271 e a diagnose emendada (Soares, 2004) fazem referência ao conjunto de caracteres que filogeneticamente estabelecem Riograndia guaibensis como um cinodonte avançado:

-Segundo Bonaparte et al. (2001): (1) ausência de pós-frontal; (2) porção anterior do arco zigomático delgada; (3) lacrimal dorso-ventralmente alto; (4) palato ósseo 35

secundário estendendo-se posteriormente ao último pós-canino; (5) contato do processo ventral do frontal com o processo dorsal do palatino; (6) incisivo superior 1 reduzido e incisivo inferior 1 hipertrofiado; (7) coroas dos últimos pós-caninos superiores e inferiores imbricadas, com dentes implantados em ângulo com o axis longo do palato; (8) pós-caninos espatulados (blade-like) com 5/9 cúspides de tamanho similares, regularmente distribuídas na borda quase semicircular da coroa dos pós-caninos superiores e na borda póstero-dorsal dos pós-caninos inferiores.

-Segundo Soares (2003): (9) sulco meckeliano convergente com a borda ventral da mandíbula; (10) palato primário alargado na base do basiesfenóide; (11) ala basiesfenóide reduzida e excluída da margem da fenestra oval; (12) dois forames hipoglossais fora da margem do forame jugular; (13) separação do forame jugular e fenestra rotunda; (14) saída dos ramos maxilar e mandibular do trigêmeo na lâmina anterior do proótico; (15) forame ptérigo-paraocciptal aberto; (16) órbito-esfenóide contribuindo para a parede orbital medial e fazendo contato com o processo ascendente do palatino.

O caráter 8 representa a única autapomorfia que poderia representar um caráter reverso. A relação de Riograndia guaibensis com outros triteledontídeos estaria suportada por outro conjunto de caracteres derivados: (1) lacrimal dorso-ventralmente alto; (2) incisivo superior 1 reduzido (convergência com Tritylodontidae); (3) incisivo inferior 1 hipertrofiado (convergência com Tritylodontidae); (4) implantação imbricada dos pós-caninos na maxila e dentário; (5) dois forames de tamanho médio na maxila; (6) raízes dos 3 últimos pós-caninos com sulco incipiente; (7) articulação crânio-mandíbular mais alta que a linha alveolar; (8) pré- frontal ausente (9) pós-orbital ausente; (10) palato secundário mais longo que a fileira dentária; (11) palato secundário se estendendo posteriormente à borda anterior da órbita; (12) arco zigomático delgado; (13) fenestra rotunda completamente separada do forame jugular; (14) sínfise dentária não fusionada.

Alguns caracteres também foram referenciados por Bonaparte et al., 2001, como não compartilhados por Pachygenelus, Chaliminia e Diarthrognatus:

(1) pós-caninos com uma cúspide principal diferenciada e muitas cúspides secundárias, com as posteriores à cúspide principal em maior número; (2) coroa dos pós- caninos superiores e inferiores transversalmente estreita; (3) ausência de cíngulo nos pós- caninos; (4) processo articular do dentário sem côndilo articula. 36

Outros trabalhos de análise filogenética também colocaram os Tritheledontidae como grupo-irmão dos mamíferos (Luo, 1994, Luo et al., 2002, Kielan-Jaworoswska et al., 2004, etc.).

A análise feita por Martinelli & Rougier (2008) na redescrição de Chaliminia musteloides Bonaparte, 1980, (Figura 10) mostrou os Ictidosauria já como grupo-irmão de mamaliaformes, que incluiriam Brasilodon, Brasilitherium, e Morganucodon. Nesta mesma análise, os autores colocam os brasilodontídeos (Brasilodon, Brasilitherium) como extremamente derivados e aproximados de Morganucodon, principalmente devido à presença de certos caracteres anatômicos craniais e dentários. Neste cladograma, os Ictidosauria são referenciados como sendo mais primitivos que os brasilodontídeos, devido à presença, nestes últimos, de diversos caracteres derivados cranianos e principalmente pelos caracteres dentários.

FIGURA 10 - Cladograma das relações filogenéticas de cinodontes e mamíferos (modificado de Martinelli & Rougier, 2008).

É interessante ressaltar que todos estes trabalhos utilizaram caracteres dentários em suas análises, por exemplo: padrão de substituição dentária, tipo de esmalte, número de raízes dentárias, posição dos incisivos (proodontia), notação dentária, etc. Assim, devemos entender que os estudos histo-anatômicos relacionados às estruturas dentárias e periodontais destes grupos podem trazer informações filogenéticas adicionais quanto à biologia destes 37

táxons. Entretanto, em nenhum deles foi feita uma análise anátomo-histológica das estruturas dentárias.

Atualmente os modelos de estudos levam em conta principalmente atributos osteológicos relacionados aos mamíferos viventes (a estrutura do ouvido médio mamaliano/organização da mandíbula), que teriam surgido gradativa e reptidamente entre as linhagens correlacionadas e entre os mamíferos. Nesse contexto, Rougier (1996) utilizou a designação de Mammalia referindo-se unicamente ao ancestral comum dos monotremos, dos marsupiais e dos mamíferos placentários, que são os grupos de mamíferos viventes atualmente. Assim, todos os grupos fósseis que não seriam proximamente relacionados com Mammalia são classificados em outros táxons mais inclusivos.

Os “Mamaliaformes” de Rowe (1988) constituem o clado que abriga o ancestral comum de Morganucodon e de Mammalia, bem como de todos os seus descendentes. Já o clado que reúne o ancestral comum de Trityledontidae + Morganucodon e todos os seus descendentes passou a ser designado de “Mamaliamorpha”. Entretanto, diversos autores não seguem as definições estritas de Rowe e se abrigam em posições tradicionais para situar os “Mamaliaformes” também ao abrigo da designação Mammalia (Soares 2003).

Finalmente, os Eucynodontia foram redefinidos por Kemp, em 1988, como um táxon monofilético menos inclusivo que reuniria os grupos de cinodontes “avançados”, Cynognathidae, Chiniquodontidae, Probaiognathidae, “gonfodontes”, Tritylodontidae, Tritheledontidae e Mammalia. 38

5-ESTRUTURAS ÓSTEO-DENTÁRIAS

Devido ao excelente estado de conservação dos materiais cranianos de Riograndia guaibensis (Figura 11) o aparelho mastigador deste táxon é, dentre os triteledontídeos, o que se encontra mais completo, resultando em que os caracteres de diagnose deste táxon (Bonaparte et al., 2001) incluíram uma série de caracteres anatômicos e fisiológicos relacionados ao aparelho estomatognático.

FIGURA 11 - Composição fotográfica (A) e esquemática (B) do crânio de Riograndia guaibensis (UFRGS – PV0596T), em vista lateral. Abreviaturas: COC-côndilo ocipital; D- dentário; ES-esquamosal; F-frontal; FES = forame esfeno-palatino; L-lacrimal; MX-maxilar; N-nasal; OBS-órbito-esfenóide; P-parietal; PAL-palatino; PAN-processo angular; PMX-pré- maxila; Q-quadrado; SMX-septo-maxila (modificado de Soares, 2004).

Estes caracteres dentários serão aqui reestudados, de maneira que possamos analisar estes elementos quando da obtenção de evidências histológicas. Para tal, estaremos trazendo ao âmbito deste trabalho as informações mais importantes, elaboradas pelos autores originais e outros (Bonaparte et al., 2001; Soares, 2004; Kemp, 2005; Martinelli et al., 2005). 39

Nos pré-maxilares, foram considerados relevantes por Bonaparte et al. (2001) os três incisivos procumbentes e, nos maxilares, o reduzido volume do canino e os sete pós- caninos em forma de lâmina. Os incisivos superiores apresentam diferentes padrões de volume, sendo os incisivos centrais menores que os incisivos laterais.

O incisivo I2 apresenta-se oval em corte transversal, muito procumbente (proodonte) e com uma longa faceta de desgaste na sua face palatina. O esmalte ocorreria tão somente em sua face palatina e nas bordas mesial e distal. A mesma distribuição de esmalte dentário seria notada desde o incisivo I2 até o incisivo I3, mas seus volumes seriam bem menores. Adicionalmente, estes dentes apresentam profundos desgastes em suas faces palatinas.

Entre os incisivos superiores e o canino estaria presente um diastema bastante definido, também presente em Pachygenelus monus Gow, 1980. A coroa do canino é menor que o volume dos incisivos 2 e 3, e se apresentaria achatada em sua face palatina e bulbosa em sua face bucal. Também se apresentaria, em vista bucal, com forma cônica, recurvado e com um ápice afilado. Sua borda mesial é aguda, afiada e lisa, enquanto a sua borda distal apresenta três pequenas cúspules acessórias (Bonaparte et al., 2001).

Os pós-caninos superiores (Figura 12) de Riograndia guaibensis foram descritos (Bonaparte et al., 2001) como que apresentando coroas homogêneas, em forma de lâmina, possuindo de 6 a 9 cúspides, todas alinhadas e cada uma delas com uma pequena ranhura na face bucal, não apresentando cíngulo. Usualmente, a cúspide central seria um pouco maior que as demais.

40

FIGURA 12 - Composição fotográfica (A) e esquemática (B) de maxilar e dentes de Riograndia guaibensis (UFRGS - PV0788T), em vista lateral. Abreviaturas: C-canino; PC1 ao PC7-pós-caninos superiores (modificado de Soares, 2004).

Bonaparte et al. (2001) consideraram que as coroas dos pós-caninos superiores apresentar-se-iam levemente imbricadas (sempre acrescentando aproximadamente mais 5º, em relação à coroa anterior, o que, ao final atingiria um total acumulado de 30º no nível do PC7). Bonaparte et al. (2001) atribuíram esta angulação como um ajuste à “oclusão”, porque as bordas meso/palatinas, desde PC5 até PC7, mostram profundo desgaste oclusal, o qual seria causado por uma oclusão alternada.

O maxilar superior de Riograndia guaibensis, segundo Soares (2004), apresenta uma plataforma ou saliência maxilar (maxillary bulge), lateral à fileira dentária (Bonaparte et al., 2001), que é uma feição também encontrada em cinodontes gonfodontes como Exaeretodon, Massetognathus, e Andescinodon. Esta estrutura também está presente nos tritylodontídeos como Oligokyphos, Bienotherium e (Soares, 2004).

A dentição inferior de Riograndia (Figura 13 e 14) apresenta inúmeras características bastante singulares. Segundo Bonaparte et al. (2001) o incisivo central inferior é considerado “hipertrofiado”, tanto em largura como em comprimento, além de apresentar-se 41

procumbente. Este dente apresenta duas superfícies alongadas, separadas por uma borda lisa, em sua face lingual (Bonaparte et al., 2001).

A coroa do incisivo central inferior apresentaria esmalte “preservado” somente em sua face labial e em suas faces medial e distal, permanecendo sua face lingual totalmente desprovida de esmalte, configurando um caráter de distribuição de esmalte considerado “original” por Bonaparte et al., (2001). Os autores consideraram tais faces desprovidas de esmalte como “facetas de desgaste”, embora tenham atribuído as mesmas apenas ao “contato com os alimentos” e não como resultantes de atividades de verdadeira oclusão com os incisivos superiores.

Este padrão seria semelhante ao que ocorre em Pachygenelus monus, onde este desgaste poderia ocorrer desde a erupção dos incisivos centrais.

Os incisivos 2 e 3 são sucessivamente menores e menos procumbentes que o incisivo 1 e apresentam idêntica distribuição de esmalte e duas facetas de desgaste na face lingual. O canino seria pequeno, mais verticalizado e apresentaria um forte desgaste oclusal na face disto-lingual, provavelmente por oclusão com o canino superior (Bonaparte et al., 2001).

Os pós-caninos inferiores (Figura 13) estão muito próximos, são uniformes em tamanho e separados do canino através de um diminuto diastema. O grau de imbricação dos pós-caninos inferiores é bastante menor que a angulação encontrada nos pós-caninos superiores. O último pós-canino (pc9) coloca-se medialmente ao processo coronóide (Bonaparte et al., 2001).

FIGURA 13 - Composição fotográfica do dentário, em vista medial, de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0622T. Abreviaturas: c = canino inferior; D = dentário; i3 = incisivo inferior 3; pc 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 = pós-caninos inferiores (modificado de Soares, 2004). 42

Todos os pós-caninos inferiores apresentam-se laminares, convexos lingualmente e sem evidências de cíngulos linguais. Possuem de 5 a 9 cúspides de tamanho uniforme, sendo a principal apenas levemente maior que as demais e separada da cúspide seguinte por um raso entalhe. As coroas seriam tão largas quanto a medida “da raiz”, e se apresentariam incompletamente subdivididas, o que seria sugestivo de “um processo de bifurcação ainda incipiente” (Bonaparte et al., 2001).

A seguir, ressaltamos algumas outras considerações de Bonaparte et al., (2001), quanto à dentição de Riograndia guaibensis:

1-A dentição de Riograndia é totalmente diferente da dentição de qualquer outro cinodonte já descrito;

2-Riograndia representaria um cinodonte não-mamaliano avançado, mas com uma dentição “muito generalizada”.

3-Pela presença de caracteres especiais nos incisivos e nos caninos, este táxon pertenceria ao grupo dos “Ictidossauros”.

4-O morfótipo dentário de Riograndia parece ser mais identificável com o de Chaliminia, embora este pareça ser mais derivado;

5-Em espécimes fraturados, onde as raízes dentárias estão expostas, não surgem indícios de qualquer tipo de substituição dentária;

6-Não ocorre substituição tipo gonfodonte ou outro modelo;

7-A referida “dentição permanente” de Riograndia seria conseqüência de um processo heterócrono, de retenção de uma dentição juvenil (pedomorfose), ou seja, ela seria resultante de uma apomorfia reversa;

8-A maioria dos espécimes seriam sub-adultos ou totalmente adultos, devido à baixa taxa de substituição dentária.

9-A dentição de Riograndia estaria adaptada a uma dieta carnívoro/insetívora, assim como a dentição dos demais triteledontídeos;

10-O plano oclusal se situaria bem abaixo do plano da articulação crânio- mandibular. 43

Com base nas observações acima, fica claro que Bonaparte et al. (2001) estabelecem que este táxon apresentaria um padrão de substituição que culminaria com uma dentição permanente.

Diferentemente ao que ocorre entre os mamíferos, Kemp (2005) considera que a oclusão dos triteledontídeos, incluindo Riograndia guaibensis, seria resultante de processos não precisos, embora ele concorde que estejam presentes certas características mamalianas:

A-Presença de esmalte prismático;

B-Facetas de desgaste oclusal entre pós-caninos superiores e inferiores bem definidas;

C-Presumivelmente, Riograndia seria um triteledontídeo especializado, talvez adaptado a uma dieta carnívora/insetívora de invertebrados mais “macios” que os insetos.

Em relação ao dentário de Riograndia (Figura 14) Bonaparte et al., 2001 referem que este seria um osso robusto, muito semelhante ao dentário de Pachygenelus, com uma região “sinfiseal” mais volumosa. As bossas anteriores dos dentários seriam inclinadas para a frente, sem fusionamento entre elas. Os ramos horizontais são largos e espessos, apresentando processos angulares mediais bem marcados, além de processos coronóides relativamente altos.

FIGURA 14 - Composição esquemática do dentário de Riograndia guaibensis. Em vista medial. Abreviaturas: AP-processo angular; GDL-ranhura da lâmina dentária; MC-canal de Meckel; PAP-processo pré-articular; PDG-ranhura pós-dentária (modificado de Bonaparte et al., 2001).

Bonaparte et al. (2001) referem também que o processo articular de Riograndia é “bem definido, constituindo o ponto mais posterior da mandíbula e apresentando-se de forma alongada, não sendo tão lateralmente expandido como um côndilo”. 44

6-ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS DENTES

6.1-ORIGEM FILOGENÉTICA DOS DENTES

A origem dentária era, até pouco tempo isenta de controvérsias, uma vez que a teoria proposta por Reif (1982, apud Smith, 2003), era aceita sem maiores questionamentos. Segundo aquele autor, existiria um único sistema morfogênico, no qual os odontódes, dérmicos ou orais, seriam originários de interações epitélio-mesenquimáticas entre células ectomesenquimáticas da crista neural embriônica e o mesoderma subjacente. Nesse contexto, os dentes orais seriam apenas dentículos dérmicos – como os que existem nas placas ósseas dos ostracodermos, placodermos e tubarões - que migraram para a cavidade oral. Outros autores, como Orr (1986), referem que as escamas, os dentes e os osteodermas representariam estruturas homólogas, apesar das fortes diferenças histológicas e organizacionais destes derivados ectodérmicos.

No entendimento de Ten Cate (2001) a migração de células da crista neural para o primeiro arco branquial formaria uma banda ectomesenquimática sob o epitélio do estomódeo embrionário, mas estas células necessitariam ainda entrar em contato com epitélio bucal embriônico para, posteriormente, expressarem o seu potencial odontogênico.

Porém, uma nova e consistente abordagem sobre o assunto, proposta por Smith & Johanson (2003), referencia, em placodermes mais derivados, a presença de estruturas de placas dentárias, com características histológicas e distribuição espacial compatíveis com a pré-existência de uma lâmina dentária, inclusive com os intrínsecos controles heterócronos necessários à produção dos odontódes orais. Nesta nova hipótese, os dentes orais seriam induzidos pelo endoderma faringeal e teriam tido uma origem anterior - e separada - à evolução dos maxilares. Considerando que os modelos de formação histológica, de substituição e da organização espacial dos odontódes dérmicos externos são incompatíveis ao que se observa em dentições orais, onde os padrões heterócronos são extremamente regulares, deve-se inferir que esta novíssima abordagem quanto à origem embriológica dos dentes é uma possibilidade mais que razoável (Smith & Johanson, 2003; Smith, 2003).

Esta posição se fortalece na medida em que se passa estimar a imensa importância da aquisição dos elementos ligados aos controles heterócronos de ordenação 45

temporal e espacial, os quais são imprescindíveis e necessariamente intrínsecos aos sistemas embriônicos morfogênicos de produção das fileiras de odontódes orais (Smith, 2003).

6.2-DESENVOLVIMENTO EMBRIOLÓGICO DENTÁRIO

No estudo das estruturas dentígeras dos vertebrados é necessário, primeiramente, o estabelecimento dos conceitos de embriologia e histologia dentária e peridentária utilizados, como forma de se designar compreensiva e objetivamente os elementos de análise do assunto.

A formação dental, assim como a formação de outros órgãos em geral, implica no surgimento e desenvolvimento de estruturas embrionárias específicas, que através de processos de diferenciação celular e de morfogênese, darão origem aos tecidos dentários e aos diversos e diferentes tipos de dentes. Os dentes são órgãos complexos que se formam a partir de um ciclo de mudanças químicas, morfológicas e funcionais que ocorrem desde as fases iniciais de formação do estomódeo do embrião. A primeira manifestação deste processo é a diferenciação e o surgimento da lâmina dentária ou fita dentária, a partir de células do ectoderma que reveste a boca primitiva, sobre as zonas onde surgirão os ossos dentígeros. Nestes locais, ocorre uma invasão de células da crista neural e os tecidos passam a se comportar como mesênquimas, originando tecidos de natureza conjuntiva e, por isto, recebem a designação de células ectomesenquimais (Ferraris & Muñoz, 2006; Katchburian & Arana, 2004). Neste momento, o epitélio oral primitivo passa a se proliferar e forma uma fita que mergulha no ectomesênquima subjacente, formando uma banda epitelial contínua em forma de ferradura, que constitui a banda epitelial primária. Após mergulhar no ectomesênquima, a lâmina primária se divide em duas bandas: a banda vestibular, que dará origem ao vestíbulo da boca, e a lâmina mais mediana, que dará origem aos dentes e, por isso, denomina-se lâmina dentária (Ferraris & Muñoz, 2006; Katchburian & Arana, 2004). Como as estruturas dentárias e paradentárias apresentam uma origem embrionária relativamente padronizada e reconhecida, entende-se como imprescindível o 46

resgate destas informações, pois as possibilidades de realizar trabalhos paleontológicos neste contexto histológico dentário são perfeitamente viáveis, tal como externou Smith (1995):

“tecidos duros retêm precisos registros internos da variação das atividades secretoras celulares, de modo que as amostras fósseis e atuais podem ser comparadas e as informações de desenvolvimento extrapoladas a partir das matrizes teciduais calcificadas.”

A Figura 15 resume objetivamente a origem embrionária, os estágios de desenvolvimento, as estruturas embriológicas envolvidas e quais elementos anatômicos e histológicos seriam delas derivados durante a odontogênese e a periodontogênese.

FIGURA 15 - Composição esquemática dos estágios de desenvolvimento dentário e da origem das diversas estruturas dos dentes e das estruturas periodontais dos vertebrados (modificado de Carlson, 1990).

Os princípios básicos que definem a formação dos órgãos dentários e de suas estruturas anexas são relativamente bem conhecidos. Diversos trabalhos em vertebrados viventes que apresentam o sistema de fixação dos dentes em alvéolos através de ligamento periodontal de fibras conjuntivas estabeleceram que os três elementos que compõem o chamado “periodonto de inserção” são derivados de células ectomesenquimais do “folículo dental”. Este anexo embrionário é formado por várias camadas de células que, durante a odontogênese, circundam a “papila dental” e, junto com o “órgão do esmalte”, formam o 47

embrião do dente, chamado “órgão dental” (Arey, 1966; Walker, 1966; Peyer, 1968; Bailey et al., 1976; Torrey, 1978; Osborn & Ten Cate, 1988; Pough et al., 1999).

O órgão dental é a estrutura embriológica responsável pela formação dos tecidos fundamentais do dente, que seriam o esmalte, a dentina e a polpa dental. Este órgão é dividido em três estruturas primordiais: o folículo dental, a papila dentária e o órgão do esmalte. O folículo dental apresenta todas as células embrionárias responsáveis e capazes de originar o cemento dentário e as fibras conjuntivas do ligamento periodontal, além de dar origem às paredes internas dos alvéolos dentários, que seriam formadas por um tecido ósseo laminar de ancoragem, chamado de lâmina cribriforme (Ten Cate, 2001; Katchburian & Arana, 2004). Quanto à papila dentária, suas principais funções estariam relacionadas ao desenvolvimento do cilindro dental dentinário coronal e radicular. Teria também a função de induzir, embriologicamente, a atividade dos ameloblastos no limite da lâmina basal do epitélio interno do órgão do esmalte (Katchburian & Arana, 2004, Junqueira & Carneiro, 2004). O órgão do esmalte, por sua vez, tem a função básica de secretar e formar a estrutura do esmalte (ou parte do enamelóide) e ainda deveria constituir o indutor embrionário do chamado “periodonto de proteção”, que é constituído pelo tecido gengival, epitélio juncional e pelo epitélio sulcular (Ham, 1977; Junqueira & Carneiro, 2004).

Entre os vertebrados, o desenvolvimento dentário apresenta um seqüenciamento embrionário padronizado e relativamente estável. Durante a organogênese dental, as células do órgão dental proliferam a partir de células ectomesenquimáticas subjacentes à lâmina dentária, formando um germe dentário que cresce e passam por três estágios seqüenciais (Figura 16), que são o estágio de Broto Dentário (Botão), de Casquete e de Campânula (Ham, 1977; Osborne & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al. 2004; Junqueira & Carneiro, 2004; Katchburian & Arana, 2004; Avery 2005; Ferraris & Muñoz, 2006), assim definidos:

1-Estágio de Broto dentário: uma pequena concentração de células derivadas da lâmina dental forma a papila dentária, que é recoberta por um agrupamento de células ectodérmicas, as quais constituirão o futuro órgão dental.

2-Estágio de casquete: as células ectodérmicas do órgão dentário se expandem sobre a superfície da papila dentária, assumindo a forma de um pequeno casquete (capuz). Durante a fase de casquete, começa a diferenciação celular e a histodiferenciação e as estruturas do órgão dental tornam-se mais evidentes. Nesta fase, separam-se as camadas celulares da papila e do folículo dental e o órgão do esmalte também se torna evidente. 48

3-Estágio de Campânula: com o crescimento acentuado das células do órgão dentário, este assume a forma de uma campânula. Nesta fase, desenvolvem-se as cúspides, cristas e fissuras, dando forma ao padrão final da coroa dental. As células do epitélio interno do órgão do esmalte são as responsáveis pela formação do esmalte.

FIGURA 16 - Diagrama resumido mostrando o desenvolvimento da lâmina dentária e algumas fases de desenvolvimento dos embriões dentários. Abreviaturas: A - ectomesênquima concentrado sob o epitélio faringeal; B - formação da lâmina epitelial primitiva; C - surgimento da lâmina vestibular e desenvolvimento da lâmina dental; D - estabelecimento do Broto Dentário; E - estabelecimento da Fase de Casquete; F - a fase de Campânula e definição do vestíbulo da boca e do lábio (modificado de Osborne & Ten Cate, 1988).

O estudo destes estágios de desenvolvimento osteodentário é usualmente realizado através de histologia de animais atuais, em técnicas que exigem a desmineralização dos tecidos mineralizados e impregnação das peças com corantes. Por isto mesmo, estas possibilidades são quase que impossíveis de ser utilizadas em materiais fósseis, devido à inexistência de tecidos “moles” (Osborne & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004; Katchburian & Arana, 2004; Ferraris & Muñoz, 2006).

Adicionalmente às funções formativas e indutivas, o órgão do esmalte tem a função de constituir o “órgão reduzido do esmalte” ou, como refere Arey (1966), “cutícula 49

dental transitória”, ou ainda “membrana de Nasmyth”, que é uma capa de tecido mole, formada a partir da redução do órgão do esmalte, que isola a coroa dental recém-formada dos tecidos conjuntivos que a circundam, protegendo-a e impedindo que o esmalte seja reabsorvido ou recoberto por deposições de tecido ósseo ou cemento dentário (Ten Cate, 2001).

Este “órgão reduzido do esmalte” também é referido por Osborn & Ten Cate (1988) como “epitélio dental reduzido”, sendo formado pelos “ameloblastos reduzidos” e o restante das camadas do “órgão dental” que então formam uma película de proteção sobre o esmalte recém-formado. Portanto, nos diversos sistemas dentários conhecidos, até o momento da erupção da coroa dental na cavidade oral, o esmalte dentário deve ser obrigatoriamente protegido pelo órgão reduzido do esmalte. Caso esta proteção não ocorra, o esmalte recém- formado pode ser atacado e reabsorvido pela produção de enzimas produzidas por ameloclastos surgidos nos tecidos conjuntivos circunjacentes (Ten Cate, 2001).

O próprio processo erupcional é efetivamente dirigido e controlado pelas células do órgão reduzido do esmalte. Estas células, além de todas as suas funções já descritas, quando o dente está concluso, fusionam-se com o epitélio da mucosa oral, formando um cordão epitelial. Este, por sua vez, ao atingir um determinado estágio, passa a ter as suas células centrais em processo de degeneração, gerando um canal através do qual o dente finalmente realiza a sua erupção na cavidade oral propriamente dita (Osborn & Ten Cate, 1988).

As estruturas histológicas dentárias derivadas dos odontódes orais apresentam uma origem embriônica padronizada e regular. Eventuais alterações e variações histológicas dentárias e peridentárias devem ter sua origem diretamente relacionada aos fatores embriológicos, embora possam estar relativamente sujeitos às influências de elementos epigenéticos (Carlson, 1990).

6.3-HETEROCRONIA E A ORIGEM DOS TECIDOS DENTÁRIOS

A organogênese dental e a formação dos tecidos de suporte e proteção são resultado de uma seqüência de interações embriológicas epitélio-mesenquimais. Este 50

processo, de acordo com Smith (1995), inicia com as primeiras diferenciações nas células da crista neural do embrião. Quaisquer mudanças heterócronas no processo de modulação e diferenciação das células embriogênicas e em seus controles intrínsecos, em nível das células da crista neural, podem resultar em uma cascata de novas modificações sobre as estruturas dentárias e sobre seus anexos periodontais de suporte, fixação e proteção.

Os tecidos duros que constituem as estruturas dentárias são produto dos processos de secreção e mineralização das células que se diferenciam a partir do órgão embrionário dental. O esmalte dentário é secretado e mineralizado por células chamadas ameloblastos, enquanto que a dentina é formada e mineralizada pelos dentinoblastos. As poucas modificações que ocorrem em nível das estruturas celulares secretoras embrionárias dentais seriam as responsáveis por uma grande variabilidade estrutural e dos tecidos esmalte, enamelóide e dentina, que podem ser encontradas entre os vertebrados (Osborne & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004; Katchburian & Arana, 2004; Ferraris & Muñoz, 2006). Segundo Smith (1995), o tempo relativo de indução e de diferenciação dos ameloblastos e dentinoblastos é um fator heterócrono fundamental na definição da natureza, da estrutura e das inter-relações dos tecidos dentários básicos, que seriam o esmalte, o enamelóide e a dentina. Smith (1995) refere que a diferenciação entre esmalte ou enamelóide (Figura 17) seria uma variação heterócrona resultante do “momento relativo de diferenciação dos ameloblastos e odontoblastos e dos eventos de produção e mineralização das matrizes, relacionados com aposição da lâmina basal e da junção amelo-dentinária”.

FIGURA 17 - Comparação dos tempos relativos de diferenciação de ameloblastos e odontoblastos e os eventos da produção e mineralização de matriz, relacionados com a 51

posição da lâmina basal e da junção amelo-enamelóide dentinária (JAD), em uma seção através de uma parte de um germe dental em fase final de campânula. Em (a) temos a diferenciação ameloblástica após a diferenciação dos odontoblastos e o esmalte seria formado na direção mostrada (seta C) por crescimento aposicional, depois de a dentina ter iniciado a sua calcificação em direção oposta (seta B). A JAD constitui o local da lâmina basal e a calcificação se inicia pela dentina (*) antes da diferenciação dos ameloblastos; Em (b) ameloblastos se diferenciam antes dos odontoblastos secretarem dentina, ambos secretam componentes de matriz para a área abaixo da lâmina basal, antes que a mineralização aconteça (*). A JAD se forma em um nível abaixo da lâmina basal; A mineralização do enamelóide iniciaria primeiramente na direção mostrada na seta (A) e a dentina logo após, como mostrada na seta (B); SE-superfície do esmalte ou do enamelóide (modificado de Smith, 1995). (*) Ponto de início da mineralização.

Com base neste modelo diagramático proposto por Smith (1995) pode-se designar como esmalte verdadeiro todo o tecido derivado do epitélio interno do órgão do esmalte que estiver separado da dentina por uma típica “junção amelo-dentinária” (JAD). Esta deve ser associada, secundariamente, à presença necessária de um “manto dentinário” (MD), sensu Osborn & Ten Cate (1988). Este último representaria o primeiro extrato de dentina que se forma, e que, caracteristicamente, não apresenta canalículos dentinários em sua matriz calcificada, mas mostra outras estruturas típicas denominadas de “vesículas da matriz”.

Ao longo deste trabalho, optou-se por utilizar a presença ou ausência destes elementos histológicos dentinários e da Junção Amelo-Dentinária como suportes evidenciadores para a classificação destes tecidos dentários básicos (esmalte-dentina). Assim, o esmalte dentário seria um tecido de origem ectomesenquimática, originado a partir do órgão do esmalte, secretado pelos ameloblastos, em uma produção contínua e centrífuga à linha de junção amelo-dentinária e à papila dentária. Já o enamelóide é um tecido derivado de uma produção combinada de elementos secretados pelos dentinoblastos e pelos ameloblastos, também em secreção centrífuga à JAD e não ocorre entre os Synapsida (Osborne & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004; Katchburian & Arana, 2004; Ferraris & Muñoz, 2006). A dentina, por seu turno, é aqui definida como o tecido formado pelos dentinoblastos existentes na periferia da papila dentária, em contato com as células do órgão do esmalte. Durante a secreção de dentina, os dentinoblastos recuam, deixando para trás um fino prolongamento do seu citoplasma, que permanecerá retido após a mineralização da matriz. Por isso a dentina, diferentemente do esmalte, apresenta-se como um tecido mineralizado com capacidade de responder fisiologicamente aos estímulos externos, como lesões cariosas ou estímulos mastigatórios (Osborne & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004; Katchburian & Arana, 2004; Ferraris & Muñoz, 2006). 52

6.4-HETEROCRONIA E A ORIGEM DOS DENTES MULTICUSPIDADOS

A formação de coroas dentárias multicuspidadas e de estruturas menores do esmalte como serrilhas, microserrilhas e dentículos, chamam a atenção para o detalhamento e especialização da atividade realizada por cada órgão dentário. Isto implicaria, a princípio, em que a evolução de um determinado morfótipo dentário seria dependente da organização de um singular modelo de interação epitélio-mesênquima e de diversos modelos novos para cada gênero de aparelho mastigador que surgisse durante a evolução dos vertebrados (Jernvall & Thesleff, 2000).

Porém, estudos recentes (Jernvall & Thesleff, 2000; Jernvall, 2000; Jernvall et al., 2000) demonstram que pequenas alterações e replicações de sinalização gênica, secretados como proteínas, podem ser responsáveis pela formação de diversas cúspides sobre um embrião dentário, com sinalização molecular e respostas devidamente controladas. A determinação da sucessão na região dentária, do tipo de dente, da forma básica de coroa dental e mesmo das cúspides individualmente, são todos resultantes de sinalizadores moleculares que regulam a replicação e o crescimento celular.

Alguns destes sinalizadores moleculares já foram estabelecidos, particularmente os das famílias BMP, FGF, HH e WNT, sendo que vários deles sinalizam expressão gênica e respostas para a formação e delimitação de cúspides. Estes sinalizadores moleculares são constituídos como moléculas de ativação, fatores de crescimento e fatores de transcrição, que atuam sobre os tecidos embrionários bucais para determinar a formação dos dentes. A forma dentária também seria determinada por sinalizadores epiteliais e envolveria a ativação diferencial e genes homeobox em células mesenquimais.

O surgimento evolucionário rápido de novas cúspides pode ser explicado através de uma simples replicação gênica de sinalizadores, tendo por conseqüência o “dobramento” do epitélio interno do órgão de esmalte, formando um “nodo embriônico acessório”, o qual iniciará o “brotamento” de uma nova cúspide, independentemente do surgimento de outras mutações para regularem o seu desenvolvimento (Jernvall & Thesleff, 2000). Nas fases iniciais de indução ao desenvolvimento embriológico dental, é na terceira fase, de campânula (Figura 18), que surgem os dobramentos que irão constituir os 53

ápices das cúspides da futura coroa dental. Estes centros de diferenciação surgem, e primeiramente se desenvolvem isoladamente, nos ápices das diversas cúspides, onde a secreção de dentina e esmalte acontecem em pontos afastados do epitélio interno e da papila dental. Assim, no estágio tardio da fase de campânula, teremos, num dado momento, as várias cúspides já formadas e mineralizadas, mas ainda isoladas ou já em fase de fusionamento para a total delimitação do contorno e da forma da futura coroa dental (Osborne & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004).

FIGURA 18 - Os sete estágios de dobramento do epitélio interno do órgão do esmalte, responsáveis pela origem das cúspides, cristas e fissuras que constituem o complexo relevo dos dentes multicuspidados (modificado de Osborn & Ten Cate, 1988).

O estágio de Campânula do germe dentário é considerado extremamente importante, pois é nesta fase que ocorrem os maiores eventos de histodiferenciação que culminarão por determinar a forma da coroa do dente em formação. Estes processos de diferenciação estão diretamente relacionados aos controles heterócronos dos processos mitóticos que ocorrem nas células ao longo do epitélio interno do órgão de esmalte. Os pontos de maturação celular precoce, associadas com zonas de interrupção mitótica ao longo do epitélio interno de esmalte, são diretamente responsáveis pelo surgimento das cúspides e margens dentárias incisais. Enquanto isto, isto as zonas responsáveis pelo surgimento das fissuras e das margens dos dentes estariam relacionadas às áreas mitoticamente ativas (Osborn & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004). Assim, durante a fase avançada de campânula, a lâmina basal, junto aos ameloblastos dos pontos formadores das cúspides e das margens dentárias, induz os odontoblastos a se diferenciarem plenamente e secretarem pré-dentina. Isto 54

inicia uma progressiva onda de diferenciação, que se dirige cervicalmente, estimulando a diferenciação dos ameloblastos e odontoblastos ao longo de todo o epitélio interno do esmalte. Logo a seguir, os ameloblastos também sintetizam uma primeira e fina camada de esmalte (de natureza aprismática) e, como conseqüência, isto desencadeia o estabelecimento de uma “frente de síntese de dentina e esmalte” com a formação da linha de “Junção Amelo- Dentinária” (JAD), dando início ao processo inicial de mineralização das matrizes de esmalte e dentina (Osborn & Ten Cate, 1988; Smith, 1995; Berkovitz et al., 2004).

A rápida mineralização inicial da dentina recém-formada acelera a diferenciação dos ameloblastos, que levam ao surgimento dos processos de Tomes e à secreção do esmalte prismático. O esmalte formado é prontamente mineralizado, o que explica a manutenção dos padrões de forma e direção dos prismas de esmalte (Berkovitz et al., 2004).

Segundo Berkovitz et al. (2004) a dentina coronal e o esmalte, imediatamente após formados, sofrem uma inicial e rápida - mas apenas parcial - mineralização. Uma vez que toda a espessura de esmalte esteja formada, ele apresenta apenas 30% da mineralização de um dente erupcionado. Então, logo a seguir, para adquirir a sua dureza final, este esmalte passa por um processo chamado de maturação, através do qual ocorre uma redução do espaço intercristalino pelo preenchimento de minerais e pela remoção de proteínas e água.

As mudanças intra-estruturais do esmalte pela maturação são obtidas através de diferenciação dos ameloblastos que, desta forma, assumem outras funções. A maturação final não ocorre de forma homogênea sobre a superfície da coroa dos dentes, os quais apresentam padrões diferenciais de desenvolvimento do processo de mineralização final. Isto ocorre durante a fase final de Campânula (Figura 19). Em alguns casos a maturação poderia se iniciar logo após a formação do esmalte dentário. Como se vê, a interrupção do processo de maturação de um dente em fase de campânula pode, portanto, mostrar uma coroa ainda disforme e desorganizada, e com os diversos segmentos de esmalte imaturo e cúspides não fusionadas e inconclusas (Berkovitz et al., 2004).

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FIGURA 19 - Diagrama mostrando o padrão de maturação e subsequente mineralização da coroa dental, mapeado por microrradiografia de cortes de desgaste. As áreas pontilhadas representam a deposição inicial de esmalte. As áreas escuras mostram o padrão que o incremento de mineralização segue durante a maturação. Iniciando pelas cúspides, a maturação se estende rapidamente até a junção amelo-dentinária e se estende ao longo desta, antes de continuar através da região mais externa do esmalte do ápice das cúspides. (modificado de Berkovitz et al. 2004).

Berkovitz et al. (2004) sugerem que a altura das cúspides dentárias, diferentemente do que se poderia supor, estaria mais diretamente vinculada com o processo heterócrono relacionado ao crescimento “para baixo” das margens e fissuras do que à extensão “para cima” das próprias cúspides. A morfogênese e a variabilidade das formas das coroas dentárias também poderiam estar relacionadas com diferenças ou defeitos nos padrões de absorção da “cripta óssea” que envolve os germes dentários, que alterariam os padrões de “pregueamento do epitélio interno”.

Portanto, outros fatores externos, como a falta de espaço entre os germes dentários e mudanças nas forças mecânicas de desenvolvimento dos ossos cranianos poderiam ser co-fatores de variabilidade na morfogênese dentária (Berkovitz et al., 2004). Assim, isto poderia também explicar a grande variabilidade intraespecífica da anatomia dental, particularmente na forma, tamanho e disposição das cúspides dos dentes dos mamíferos, fato bem descrito e bem observável na odontologia animal e humana. 56

7-EMBRIOLOGIA DOS OSSOS MAXILARES E DENTÁRIOS

A origem e o desenvolvimento primordial dos ossos pré-maxilares, maxilares e dentários estariam relacionados às células da crista neural embrionária, que contribuiriam para a formação do mesênquima (ectomesoderma) craniano (Kardong, 2002). Segundo Ten Cate (2001) a estrutura óssea maxilar surge a partir de um centro de ossificação no mesênquima do primeiro arco branquial, onde inexistiria qualquer sinal de cartilagem de arco branquial ou primária. A ossificação se daria a partir deste único ponto, de forma a originar a estrutura maxilar. Já os alvéolos são formados como um tecido ósseo especializado que teria origem em células mesenquimais da face externa do folículo dental como comprovam diversos trabalhos experimentais em animais (Osborn & Ten Cate, 1988; Ten Cate, 2001).

Hildebrand (1995) refere-se à natureza dos ossos maxilares de sustentação aos dentes como sendo de origem dérmica ou intramembranosa e que surgiram caracteristicamente entre os Sarcopterygii e Actinopterygii. Pough et al. (1999) também referem-se aos maxilares como derivados do dermatocrânio e como sendo de origem intramembranosa ou “dérmica”.

Estes ossos dérmicos têm o seu crescimento estabelecido através dos padrões seletivos que determinam as deposições das lâminas ósseas, as direções dos canais vasculares primários, as extensões das laminações e os modelos característicos de acumulação dos períodos de crescimento de cada estrutura óssea e de cada espécie em particular. As laminações são formadas com o eixo dos canais vasculares primários formando fileiras circunferencialmente orientadas na direção de crescimento ósseo (Pough et al., 1999).

Segundo Enlow (1969), é possível reconstruir os modelos de crescimento e de desenvolvimento ósseos, interpretando a sua história ontogênica, a partir de seus modelos estruturais e da avaliação da natureza periosteal ou endosteal dos depósitos osteais encontrados. Francillon-Vieillot et al. (1990) fazem referência ao padrão de crescimento periférico radial primário, que poderia ocorrer ativamente nos ossos de membranas, em processos de deposição e ossificação diretamente por produção centrifugal superficial.

Ao estudar as análises realizadas em trabalhos anteriormente desenvolvidos sobre as estruturas maxilo-dentárias de vertebrados observa-se uma grande variabilidade de 57

denominações referentes à classificação dos tecidos ósseos encontrados pelos diversos autores. Como forma de evitar a incongruência da utilização de diversas classificações, cujas significações fisiológicas, histológicas e embrionárias fossem conflitivas, optou-se por definir alguns elementos de diagnose, como fundamentais para a classificação dos tecidos ósseos que fossem encontrados.

Nesse sentido, foram utilizados, como referenciais, os trabalhos de Francillon- Vieillot et al. (1990) e Enlow (1969):

Entre os principais fatores classificatórios foram relacionados:

A-Origem do tecido ósseo: intramembranosa ou endocondral; B-Natureza do tecido ósseo: celular ou acelular; C-Natureza do tecido ósseo: vascular ou avascular; D-Instância de ser primário (original) ou secundário, terciário, etc. (de substituição); E-Presença de estruturas principais de organização interna do osso, como lamelas, osteóns, trabéculas, etc;

F-Direção de formação da matriz osteal: centrifugal e centripetal.

Os tecidos ósseos dentígeros são principalmente de origem intramembranosa e, neste caso, geralmente a produção de matriz primária ocorre de forma centrífuga, isto é: a membrana ossificante se afasta externamente em relação à camada de osso recém formada, reiniciando novamente o ciclo para formação e calcificação de uma nova lâmina aposicional de tecido ósseo primário. Excepcionamente, os ossos dentários dos mamíferos apresentam centros cartilagíneos embrionários acessórios que também contribuem para a sua formação (Osborn & Ten Cate, 1988; Berkovitez et al., 2004).

Quanto à sua estrutura organizacional, ossos de natureza mais celular são aqueles em que um grande número de osteócitos está presente e que, geralmente, não apresentam uma organização nítida entre a localização dos osteócitos e a matriz osteóide secretada por eles. Esta maior quantidade e o maior volume dos osteoblastos indicariam que esses tecidos ósseos seriam fácil e rapidamente remobilizados e substituídos (Buffrénil & Mazin, 1990). Por seu turno, os ossos acelulares apresentam pouca quantidade de osteócitos em relação ao volume matricial e geralmente apresentam uma disposição regular em relação à matriz, podendo formar estruturas lamelares contíguas de diversas espessuras e formas. Os 58

tecidos ósseos podem se apresentar mais ou menos vascularizados, sendo que a quantidade de vasos presentes também é diretamente proporcional à labilidade fisiológica do tecido (Buffrénil & Mazin, 1990; Francillon-Vieillot et al., 1990). Ao se conceituar um tecido ósseo como “primário” se estaria indicando que a matriz óssea calcificada e fossilizada representaria a primeira estrutura óssea depositada naquela zona, não tendo, portanto, passado por qualquer processo de reabsorção e ou substituição. Quanto aos tecidos ósseos “secundários”, “terciários”, etc., isto significa que estes já foram reabsorvidos e substituídos fisiologicamente. Tecidos secundários podem ser, ainda, de natureza lamelar ou Haversiana, em conformidade com os processos de substituição à que forem submetidos (Francillon-Vieillot et al., 1990). Excepcionalmente, o osso de fusionamento ou de fixação (attachment bone) deve ser referido neste trabalho. Este tipo de tecido ósseo comumente ocorre associado às estruturas dentárias e está presente em dentições que representam aparelhos mastigatórios adaptados ao esmagamento dos alimentos. Sobretudo, o tecido ósseo de fusionamento estaria associado aos dentes dos mamíferos herbívoros e apresentaria uma natureza vascular reticular (Enlow, 1969; Francillon-Vieillot et al., 1990).

7.1-EVOLUÇÃO DO DENTÁRIO EM CINODONTES

O desenvolvimento estomatognático dos mamíferos implicou em marcantes mudanças na anatomia e evolução das estruturas cranianas e mandibulares dos amniotas mais primitivos. Estas modificações surgem como uma tendência evolutiva permanente entre os sinápsidos, de aumento alométrico positivo dos ossos dentários em relação aos ossos pós- dentários e seu desenvolvimento para trás e para cima, passando a substituir gradativamente os demais ossos constituintes da mandíbula reptiliana (Pough et al., 1999; Oftedal, 2002; Berkovitz et al., 2004).

Ao final da transição cinodonte-mamífero o dentário desloca totalmente os demais elementos ósseos da mandíbula sinápsida primitiva, culminando com o desenvolvimento de uma mandíbula totalmente constituída pelo dentário (Crompton & Parkyn, 1962; Kielan-Jaworowska et al., 2004) e passando a se articular diretamente ao esquamosal, através de uma articulação altamente especializada. A expansão lateral do arco 59

zigomático e o desenvolvimento posterior do palato secundário também são elementos importantes neste processo, que também envolveu mudanças metabólicas, neuro-motoras e respiratórias (Hildebrand, 1995; Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Ao longo da evolução mamaliana, ocorre uma simplificação do crânio por meio da perda de ossos, incluindo os pré-frontais, pós-orbitais, quadradojugais, paraesfenóides e todos os ossos de membrana da mandíbula, excetuando-se os angulares, pré- articulares e dentários (Crompton & Parkyn, 1962; Orr, 1986; Hildebrand, 1995). O pterigóide se une ao ectopterigóide, o pré-articular forma um processo do martelo e o angular se transforma no timpânico, enquanto o petrosal se desenvolve encapsulando o ouvido médio. Dentro deste, (Figura 20) o articular (martelo) e o quadrado (incus) juntam-se à “stapes” (estribo).

FIGURA 20 - Evolução do osso dentário em Synapsida. Desde os primitivos Pelicossauros até os primeiros mamíferos, com aumento alométrico do dentário, diminuição dos ossos pós- dentários e incorporação do quadrado e do articular ao ouvido médio. Os táxons usados para 60

descrever estas mudanças são mostrados relacionados com sua ocorrência no registro geológico. Abreviaturas: An-angular; Ar-articular; C-coronóide; Ca-coronóide anterior; Co- côndilo do dentário; Cp-processo coronóide; D-dentário; I-incus; Ma-martelo; Pa-pré- articular; Q-quadrado; Qj-quadrado jugal; S-stapes; As-surangular; Sp-esplenial; Ty- timpânico (modificado de Kardong, 2002).

O osso dentário dos mamíferos é, principalmente, de origem intramembranosa, iniciando a partir da proeminência mesenquimal mandibular do primeiro arco faríngeo, mas algumas de suas estruturas são formadas a partir de “cartilagens acessórias embriônicas”, em número de quatro e designadas como: cartilagem acessória sinfiseal, cartilagem acessória coronal, cartilagem acessória condilar e cartilagem acessória angular (Ferraris & Muñoz, 2006; Berkovitz et al., 2004; Ten Cate, 2001).

Estas estruturas embrionárias resultam no desenvolvimento respectivo da sínfise do dentário, do processo coronóide e dos processos condilar e angular, respectivamente. Associadamente às funções formativas dos centros embrionários cartilagíneos acessórios estão também relacionadas aos locais de inserção dos principais grupos musculares da mastigação (Bramble, 1978; Moore & Persaud, 2004; Ferraris & Muñoz, 2006).

Como a mandíbula tem o seu desenvolvimento relacionado intrinsecamente à porção distal da cartilagem de Meckel e às cartilagens embrionárias acessórias, o seu desenvolvimento também pode ser considerado como de origem mista. Ao se desenvolver no entorno da cartilagem de Meckel a mandíbula mamaliana igualmente pode ser referida como de desenvolvimento “justaparacondral” (Ferraris & Muñoz, 2006).

É importante relacionarmos que a porção distal da cartilagem de Meckel nos mamíferos, está intimamente associada à formação dos ossículos auditivos do ouvido médio: martelo (articular) e bigorna (Ferraris & Muñoz, 2006).

A lâmina dentária embrionária, por outro lado, também estaria relacionada à geração dos controles indutivos de formação da mandíbula, o que aconteceria através da formação das estruturas alveolares (Ferraris & Muñoz, 2006).

Como se pode inferir, o desenvolvimento pleno do dentário dos mamíferos é peça chave para o entendimento de um processo evolutivo complexo, que envolve profundas alterações esqueléticas ósteo-dentárias e outros caracteres fisiológicos singulares do grupo, como a homeotermia, a lactação, o ciclo de desenvolvimento orgânico estabilizado ao atingir 61

a idade adulta e uma dentição difiodonte altamente especializada, entre outros (Parrington, 1971; Bramble, 1978; Crompton & Sun, 1985; Goñi & Goin, 1990; Luo, 1994; Oftedal, 2002).

Os mamíferos apresentam fisiologismos alimentares complexos e de alto custo biológico, uma vez que a mastigação não é isenta de dispêndios energéticos. Estes gastos biológicos estão associados aos processos respiratórios, aos sistemas cárdio-circulatórios mais elaborados e com “necessidades metabólicas” mais elevadas (Schultz, 1998; Kemp, 2005; Oftedal, 2002).

Como resultante destes maiores gastos fisiológicos têm-se maiores demandas nos sistemas de excreção, termólise, equilíbrio hidro-eletrolítico, e maiores necessidades de atividades de controle endócrino e do Sistema Nervoso Central (Kemp, 2005).

Neste contexto fisiológico já totalmente adaptado, fica muito difícil determinar quais processos biológicos deram início à transição cinodonte-mamífero e quais alterações esqueletais podem responder melhor como caracteres apomórficos deste processo evolucionário. As alterações do palato ósseo, da estrutura óssea da mandíbula e a organização de um ouvido ósseo característicos de Mammalia são elementos que ajudam a compor um conjunto de formas transicionais que levam a construção de um histórico e coerente “modelo evolucionário” (Luo, 1994; Kielan-Jaworowska et al., 2004; Luo et al., 2002; Kemp, 2005).

É relevante mencionar que os dentes dos mamíferos estão intimamente associados aos complexos processos fisiológicos que envolvem todas as fases de ontogênese, de desenvolvimento, de fisiologismos e metabolismos tipicamente mamalianos. Portanto, é natural aceitarmos que a origem e aquisição destes traços que consideramos da natureza dos verdadeiros mamíferos ocorreram conjuntamente ao surgimento do osso dentário mamaliano, junto aos outros caracteres típicos como a estrutura do ouvido médio, do palato ósseo secundário e com as reconhecidas reduções ósseas craniais (Luo, 1994; Oftedal, 2002).

Luo (1994) refere também que a origem dos mamíferos “é caracterizada por muitas e importantes transformações cranianas e dentárias”, mas que a interpretação destas transformações depende do nosso entendimento do relacionamento filogenético entre os cinodontes não-mamalianos e os primeiros mamíferos.

Crompton & Parkyn (1962) sugeriram que o aumento progressivo do dentário na evolução dos Therapsida foi acompanhado por um incremento da massa muscular relacionada à mandíbula. Adicionalmente ocorreu a diminuição dos ossos pós-dentários, 62

associada com um “enfraquecimento” e diminuição de volume das estruturas da articulação temporo-mandibular.

Crompton & Parkyn (1962) sugerem que a redução em volume dos ossos pós- dentários determinaria uma diminuição da resistência da articulação crânio-mandibular, que implicaria em atividade oclusal menos eficiente. Alguns cinodontes, como Diarthrognathus broomi, apresentariam a estrutura da articulação crânio-mandibular ainda “reptiliana” (ACM), extremamente frágil, mesmo quando comparada aos outros terápsidos e à articulação têmporo-mandibular (ATM) dos primeiros mamíferos. Conflitantemente com a natureza reptiliana das estruturas osteológicas, Crompton & Parkyn (1962), após extensos trabalhos de análise da mandíbula de Diarthrognathus (Figura 21) concluíram que as estruturas ósseas e musculares apresentavam uma organização típica de mamíferos herbívoros, embora desconsiderassem esta dieta e classificassem Diarthrognathus broomi como um pequeno carnívoro-insetívoro (Crompton & Parkyn, 1962).

FIGURA 21 - Dentário de Diarthrognathus broomi mostrando a tendência de redução dos ossos acessórios pós-dentários. Abreviaturas: ART-articular; P.ART + S.ANG + ANG- prearticular + surangular + angular; bc-bossa coronóide; c-coronóide; c.boss-bossa para o coronóide; con.-côndilo; cp-processo coronóide; cp-processo coronóide; i.e.p.-inserção do pterigóide lateral; idm-inserção massetérica; ig-ranhura interna; ism-inserção masseter superior; lat.r-plataforma lateral; m.for-forame mandibular; med.r-borda medial; med.r- 63

borda medial do dentário; t-contato dos ossos dentários acessórios (modificado de Crompton & Parkyn, 1962).

As causas filogenéticas para a redução dos ossos pós-dentários são atribuídas ao fato de que ossos mais leves seriam mais eficientes ao transmitir as vibrações através da membrana timpânica, mesmo à custa de uma evidente redução da resistência da articulação crânio-mandibular (Crompton & Parkyn, 1962).

Outros autores (Goñi & Goin, 1990) consideram que a diminuição da área da ACM estaria diretamente relacionada a um incremento de amplitude de movimentos inerentes à própria articulação, através de discrepância entre uma cavidade glenóidea do articular e o côndilo do quadrado.

Entretanto, Parrington (1967), coerentemente, considerou que a diminuição do volume dos ossos pós-dentários deveu-se às mudanças osteológicas e musculares que surgiram com o advento da mastigação. Neste caso, as forças mastigatórias foram transferidas mais anteriormente no dentário e lançadas sobre os dentes, raízes dentárias e alvéolos.

A mastigação propriamente dita não exerceria maiores esforços oclusais sobre as estruturas da articulação têmporo-mandibular, porque o fulcro das forças mastigatórias é aplicado sobre os dentes e estas forças seriam mecanicamente dispersas através do conjunto de raízes dentárias e osso alveolar (Parrington, 1967).

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8-SISTEMAS DE FIXAÇÃO DOS DENTES

Entre os vertebrados, existem vários modelos básicos de sistemas de como os dentes são afixados às estruturas orais portadoras de dentes (Figura 22) segundo definições de Torrey (1978) e de Peyer (1968). O sistema de implantação dentária acrodonte (Gr. akros = cume, cimo) apresentaria os dentes precariamente fixados sobre os bordos das estruturas ósseas portadoras de dentes, através de fibras de tecidos conjuntivo, osso de fixação ou cemento de fixação. O grupo de fibras do tecido conjuntivo é chamado de ligamento periodontal.

FIGURA 22 - Composição esquemática com os diferentes padrões de fixação dentária entre os vertebrados. Abreviaturas: A-Padrão Tecodonte, onde os dentes ficam dispostos dentro de alvéolos dentários (tecas); B-Padrão Acrodonte, no qual os dentes são afixados sobre os rebordos alveolares dos ossos dentígeros; C-Padrão Pleurodonte, no qual os dentes são afixados ao lado do rebordo dentário dos ossos dentígeros (modificado de Kardong, 2002).

O sistema pleurodonte (Gr. pleuro = lado) difere do modelo acrodonte porque os dentes estariam dispostos ao lado da borda das estruturas orais portadoras de dentes, 65

situados em uma parede baixa, localizada do lado vestibular. Os dentes são fixados às paredes orais através de ligamentos periodontais de natureza conjuntiva.

O sistema tecodonte (Gr. theke = caixa) que apresenta a retenção dos dentes dentro das estruturas orais portadoras de dentes, os alvéolos, seria o mais complexo, evolutivamente, entre os sistemas vertebrados de fixação dental (Hildebrand, 1995; Peyer, 1968; Kardong, 2002). Além da presença do ligamento periodontal e do cemento dentário, o sistema tecodonte exige a presença adicional de um elemento anatômico: o alvéolo dentário, um osso laminar especializado de ancoragem, em forma de caixa, também chamado de lâmina cribriforme, que envolve a estrutura dentária radicular (Osborn & Ten Cate, 1988).

Um quarto modelo foi proposto por Sigmund (1969, apud Motani, 1996): seria o sistema subtecodonte (Gr. sub = menos) onde o dente se encontraria entre duas paredes ósseas baixas, sendo a mais alta situada do lado vestibular e a outra, mais baixa, do lado lingual das estruturas dentígeras, observando que os dentes estariam fusionados em suas bases, através de tecido ósseo de fixação.

8.1-O SISTEMA MAMALIANO DE IMPLANTAÇÃO DENTÁRIA

Peyer (1968) estabelece que uma das mais extremadas adaptações adquiridas pelos mamíferos seria o tipo de sistema de implantação dos dentes aos ossos dentígeros: a “gomphosis”, assim designada porque os dentes estariam ancorados em alvéolos “verdadeiros” delimitados por uma tábua óssea. Já a superficie radicular dos dentes estaria recoberta por um tecido, também mamaliano, chamado de cementum (substantia ossea). Unindo firmemente estes dois tecidos duros, estaria presente a “membrana alvéolo-dentária”, também chamada de periodontium.

A origem deste padrão de inserção dentária mamaliana seria dependente de um índice menor de substituições dentárias, porque o modelo de substituição dentária polifiodonte não permitiria a evolução e o estabelecimento de estruturas peridentárias estáveis, uma vez que substituições constantes de dentes implicariam em processos reabsortivos das estruturas ósseas e das estruturas ligamentares peridentárias (Hopson, 1971). 66

Este padrão “alternado” de contínuas e múltiplas dentições, chamado de polifiodontia ocorria nos sinápsidas basais e terápsidas, inclusive em cinodontes como Crompton (1963), Diademodon Hopson (1971) e Pachygenelus Gow (1980) e acontecia em seqüência erupcional ântero-posterior, nos rebordos alveolares dentários.

O surgimento do sistema mamaliano de implantação dentária ocorreu como uma aquisição independente entre cinodontes gonfodontes e a linhagem com dentes sectoriais que levou aos mamíferos (Hopson, 1971).

Nos cinodontes não-mamalianos, a direção da “onda de substituição nos pós- caninos imediatos” era a tipicamente encontrada nos répteis, ou seja, da frente para trás. Embora o padrão mamaliano não seja exatamente semelhante ao que ocorre nos cinodontes, este teria sido resultado da manutenção de apenas duas “ondas de embriões dentários” (Hopson, 1971; Paula Couto, 1979).

O processo mastigatório e as pressões oclusais levaram, necessariamente, ao surgimento de um sistema mais derivado de fixação dentária: o sistema “gonfodonte” (de gomphosis), que seria um modelo diferenciado e derivado de fixação dentário, que segundo Hopson (1971) teria a capacidade de conferir diversas vantagens fisiológicas aos seus portadores:

1-Transfere, adequadamente, as fortes pressões mastigatórias da articulação crânio-mandibular para os ossos maxilares e dentários;

2-Desenvolve apropriadamente a oclusão pelo ajuste da erupção dentária em altura e posição horizontal;

3-Controla as forças mastigatórias por meio de inervação proprioceptiva do periodonto;

4-Mantem a oclusão e a integridade das fileiras dentárias, apesar dos desgastes oclusais e interproximais, através da erupção contínua e pela deriva transversal e longitudinal dos dentes sobre os rodetes alveolares.

Assim, a oclusão dentária e a mastigação teriam evoluído independentemente entre os cinodontes gonfodontes mais avançados e na linhagem que conduziu aos mamíferos, através de uma necessária redução do número de substituições dentárias, sendo que o modelo plenamente difiodonte foi estabelecido somente nos mamíferos (Hopson, 1971). 67

Hopson (1971) observa ainda, muito apropriadamente, que o padrão polifiodonte reptiliano primitivo é incompatível com o surgimento de uma oclusão mais elaborada, característica dos mamíferos. Neste caso, o autor refere que os extensos e contínuos processos de reabsorção a que são submetidas as estruturas ósseas dentígeras e as raízes dos dentes, durante as fases de substituição dentária, tornariam inviável a organização de estruturas alveolares e ligamentos radiculares capazes de se organizar em um sistema proprioceptivo competente para controlar as forças mastigatórias.

A maior variabilidade anatômica das raízes dentárias também sugere uma maior variabilidade anatômica das coroas dentárias e dos movimentos da articulação temporo- mandibular, gerando, conseqüentemente, uma maior complexidade das forças oclusais (Osborn & Ten Cate, 1988).

Diversos autores consideram como “gonfodontes” aqueles cinodontes traversodontídeos cujos dentes pós-caninos se apresentam buco-lingualmente alargados, como Exaeretodon, Massetognathus e Luangwa. Entretanto, o termo “gonfodonte” tem sido aplicado com outra conotação que não aquela originalmente proposta, e se estende ao padrão de articulação dento-alveolar mamaliano, no sentido de designar o tipo de relação existente entre os dentes e seus alvéolos.

Seeley, em 1908, cunhou o termo gonfodonte ao descrever Gomphognathus browni (Diademodon entomophonus). Mais tarde, Von Huene, em 1928, designou um cinodonte de Gomphodontosuchus brasiliensis, o qual também apresentava alvéolos bem definidos e uma dentição que o autor qualificou de “gonfodonte” (Huene, 1990).

Atualmente, não existem mais referências descritivas que levem em conta a presença de um sistema de fixação dentária em forma de gonfose presente, e o termo “gonfodonte” é atribuído sistematicamente a todos os cinodontes traversodontídeos. 68

9-HETERODONTIA E EVOLUÇÃO MAMALIANA

Os mamíferos apresentam dentições tipicamente heterodontes, com raras exceções para os táxons com especialização dentária ou edentados. A diversidade de forma dos dentes inclui dentes com coroas em forma de bisel, cônicos e com duas ou mais cúspides, como no caso de pré-molares e molares (Arey, 1966; Luo, 1994; Paula Couto, 1979; Peyer, 1968). As estruturas dentárias comumente apresentam formas mais complexas que envolvem as coroas e as raízes dentárias. Assim, os dentes mamalianos apresentam também uma leve constrição entre a coroa e a raiz, chamada de colo dentário ou “região cervical”, que delimita anatomicamente estas duas regiões (Peyer, 1968).

Nos mamíferos, as coroas dos dentes assumem as funções mais diversas como cortar, triturar, esmagar, rasgar, etc., mantendo, entretanto, o princípio da oclusão com seus antagonistas, que é definido como mastigação (Paula Couto, 1979; Peyer, 1968; Luo, 1994; Luo et al., 2002; Kemp, 2005).

Hildebrand (1995) considera que a heterodontia é uma característica mamaliana por excelência e que a homodontia em mamíferos seria resultante de especializações alimentares. Assim, a homodontia em mamíferos é um caráter derivado, resultante de dietas alimentares muito especializadas em insetos, peixes, etc.

Portanto, as estruturas dentárias refletem os processos de evolução e adaptação dos vertebrados ao seu habitat. Assim, Paula Couto (1979) estabelece que o estudo dos dentes, associado ao estudo das estruturas esqueletais pode, inclusive, definir características paleoecológicas dos táxons que são considerados, permitindo inferências sobre o ambiente em que eles viveram.

A variabilidade e a complexidade das coroas dentárias parecem corresponder à idêntica complexificação das estruturas radiculares. Peyer (1968) distingue estes elementos anatômicos dentários mamalianos, salientando as diferenças entre estes e os dentes dos vertebrados reptilianos mais primitivos: “As coroas dos dentes mamalianos não são cobertas pelas gengivas”. Isto ocorreria porque a maioria dos mamíferos apresenta dentes com uma constrição entre a coroa dental e a raiz (região cervical), a qual limita uma linha na qual, normalmente, os dentes mamalianos estão aderidos à gengiva. 69

Butler & Clemens (2001) ao analisarem a dentição do mamífero holotério Amphitherium prevostii, da Fomação Tayton, do Jurássico Médio da Inglaterra, encontraram uma notação dentária mandibular de i/4, c/1, p/5 e m/6-7 em um padrão considerado básico entre mamíferos primitivos. Entre outras características, estariam presentes, já neste mamífero mesozóico, uma maior complexidade morfológica das coroas dos molares, que seria um fator indicativo de maior “diferenciação funcional”, atestando a natural evolução dos dentes pós- caninos.

Na maioria dos répteis, o tamanho das coroas dentárias não é limitado, porque os dentes podem ser recobertos, em variada extensão, pelas membranas mucosas bucais. A zona cervical do dente é de grande importância em diagnose anatômica e sua presença incrementa ainda mais a variabilidade das formas dentárias e a heterodontia. O termo “cervical” se aplicaria somente se o diâmetro desta área for menor que o da coroa dental. Peyer (1968) também refere que nem todos os dentes mamalianos apresentam uma região cervical e que os répteis não apresentam dentes com região cervical definida.

Conjuntamente à constrição cervical, nos táxons reconhecidamente mamalianos, pode-se observar que ocorre uma leve expansão volumétrica em nível mediano da coroa, o que aumenta a impressão de estrangulamento da região cervical dos dentes (Paula Couto, 1979; Peyer, 1968). Estas adaptações realizam o fundamental processo de desviar os alimentos mastigados, impedindo-os de se chocarem contra as estruturas gengivais que formam o periodonto de proteção, evitando que lesões periodontais venham a diminuir a capacidade mastigatória e a vida útil destas unidades dentárias (Shaffer et al., 1979).

Morfologicamente o surgimento dos dentes trituberculados dos mamíferos encontra respaldo na teoria de Osborn (1988), onde o ponto de partida evolucionário seria um dente “haplodonte”, ou seja, com apenas uma cúspide, chamada de protocone. Nos dentes superiores, esta cúspide primária se situaria medianamente. Este dente teria a forma de um cone e pode ser observado em certas formas mamalianas atuais como, por exemplo, entre os golfinhos (Peyer, 1968; Osborn, 1988).

As formas derivadas do dente de natureza triconodonte (trituberculado) surgiriam pelo acréscimo anterior e posterior de cones acessórios, sendo o paracone situado em situação medial e o metacone situado distalmente ao protocone. Outras mudanças de forma adviriam com mudanças de angulação e volume entre as cúspides, resultando em dentes mais ou menos complexos (Peyer, 1968). 70

Entretanto, os processos evolucionários que levaram ao surgimento da dentição heterodonte mamaliana não podem ser resumidos às variações dentárias em nível anatômico. Os dentes dos mamíferos também apresentam maior complexidade em nível histológico, fisiológico e na organização dos aparelhos estomatognáticos. Neste estudo, o tema heterodontia se encontra inserido nos diversos tópicos em discussão. Isto permitirá uma abordagem com melhor detalhamento destas importantes características que marcam os inúmeros modelos dentários mamalianos. 71

10-ESPECIALIZAÇÕES ANATÔMICAS DENTÁRIAS HIPSODÔNTICAS EM VERTEBRADOS

Dentro do contexto morfo-dentário de alguns triteledontídeos, chama a atenção a presença de incisivos centrais inferiores excessivamente hipertrofiados e procumbentes, com forma de bisel auto-afiável, como podemos observar, por exemplo, em Riograndia guaibensis e Pachygenelus monus. Estas estruturas dentais em forma de “fuste” também estão associadas à presença de bossas ósseas elevadas sobre a região rostro-ventral dos dentários e são semelhantes às que ocorrem entre os roedores e lagomorfos, fósseis e viventes.

Estas feições morfológicas são muito semelhantes àquelas relacionadas a um tipo de dentição muito peculiar, que evoluiu de maneira independente entre diversos grupos de mamífeos atuais e fósseis, o chamado padrão hipsodonte. Nesse contexto, surgiu, no presente estudo, a idéia de estabelecer uma comparação, em nível histológico meso e microscópico, entre Riograndia guaibensis (um triteledontídeo triássico) e Ctenomys torquatus (um roedor atual). Isto foi realizado no sentido de verificar se estas semelhanças externas refletem também padrões semelhantes internos relacionados à natureza e organização estrutural dos tecidos ósseos e dentários, bem como se tais padrões seriam resultantes dos mesmos processos evolutivos.

As dentições dos herbívoros “roedores” apresentam os dentes incisivos centrais inferiores proodontes e hipertrofiados, recurvados dorsalmente em níveis variados e seguidos ou não de diastemas. Segundo Paula Couto (1979) estes dentes não apresentam uma região cervical “estrangulada” e sim em forma cilíndrica (Figura 23 e 24), recebendo o nome de dentes hipsodontes.

Assim, dentes hipsodontes ou hipselodontes são aqueles nos quais não é possível distinguir a região de transição anatômica entre as raízes e as coroas dentárias. Estes dentes, ditos “sem-raízes”, assumem a forma de um “fuste” ou de cilindros pouco diferenciados e representam importantes diferenciações funcionais das estruturas intra- alveolares e extra-alveolares. Dentes hipsodontes estariam presentes entre os haramiyídeos, multituberculatas, roedores, lagomorfos e tubulidentados (Simpson et al., 1928; Paula Couto, 1979; Gurovich, 2005). 72

Estes dentes cilíndricos, quando vistos em roedores, cavalos, ruminantes, toxodontes e outros grupos, tendem a apresentar um crescimento contínuo e a manter as polpas permanentemente abertas nas raízes dentárias, até o final da idade adulta (Paula Couto, 1979).

Quando chegam ao final da fase adulta do animal os dentes hipsodontes tendem a se fechar nos ápices radiculares. Então, os fustes dentários começam a diminuir de tamanho e as raízes se tornam curtas e fracas, de maneira que, numa idade mais avançada, estes dentes - inicialmente hipsodontes (proto-hipsodontes) - passam a ser de natureza braquiodonte (Paula Couto, 1979; Wu et al., 2004; Gurovich, 2005).

Por outro lado, a designação hipselodonte também pode ser utilizada com relação aos dentes anteriores “hipsodontes” dos roedores, lagomorfos e multituberculados, e que apresentariam a posibilidade de crescimento contínuo até a morte do animal (Gurovich, 2005).

A hipsodontia (proto-hipsodontia/euhipsodontia) forma um conjunto de caracteres dentários cuja evolução, distribuição e aquisição são facilmente distinguíveis como feições encontráveis entre os mamíferos herbívoros. Seus processos ontogênicos e filogenéticos não são ainda bem compreendidos. Entretanto, está entendido que as aquisições da proto-hipsodontia e da euhipsodontia envolveriam variações heterocrônicas, as quais provocariam o retardamento na formação dos tecidos e atrasos na organogêse das coroas e das raízes dentárias (Verzi, 2002; Meng et al., 2004; Gurovich, 2005).

FIGURA 23 - Composição esquemática do crânio de Palaeolagus, um Lagomorpha do Oligoceno, em (A) vista lateral, (B) vista dorsal, em (C) dentição superior e em (D) a dentição inferior (modificado de Carrol, 1988). 73

Em todos os mamíferos “roedores” os dentes incisivos apresentam crescimento contínuo durante quase toda a vida dos animais e são utilizados para roer as coberturas resistentes das plantas e alcançar as partes mais macias em seus interiores (Paula Couto, 1979; Pough et al., 1999).

Nos Lagomorpha (Figura 24) ocorre um segundo par de incisivos, colocados logo atrás dos incisivos centrais. Diferentemente, nos Rodentia, imediatamente atrás dos incisivos existem longos diastemas, que separam os incisivos das seqüências de dentes molares (Pough et al., 1999; Martin, 2005).

FIGURA 24 - Composição esquemática de crânios de primitivos rodentes, em norma lateral. (A) Paramys, Eoceno Inferior; (B) Palaeocastor, Mioceno Inferior; (C) Pseudosciurus, Eoceno; (D) Cricetops, Terciário; (E) Neoreomys, Mioceno Sul-Americano; (F) Florentiamys, Mioceno (modificado de Romer, 1971).

Estes diastemas têm a importante função de permitir a inserção de uma dobra de mucosa, cuja atividade consiste em impedir a penetração de fragmentos de madeira ou cascas de vegetais, quando o animal fecha a boca. Os Lagomorpha apresentam as faces labiais, mesiais e distais dos incisivos recobertas por esmalte dentário especializado, com uma dupla camada externa (Pough et al., 1999; Martin, 2005). 74

Os e os Multituberculata também apresentavam grandes diastemas na região dos caninos e pré-molares inferiores.

Thomasia antiqua Poche, 1908, um Haramiyidae, mostrava uma dentição inferior constituída de apenas um incisivo central inferior hipertrofiado e proodonte, seguido de um diastema, dois dentes pré-molariformes e quatro molariformes (Kielan-Jaworowska et al., 2004). A porção mais anterior da dentição superior apresentaria três incisiformes superiores pequenos, que Kielan-Jaworowska et al. (2004) consideraram “não- especializados”. A região dos pré-molares é desconhecida neste táxon, e os três dentes molariformes remanescentes mostram volumes coronais em sequência ântero-posterior decrescente. Além disso, os Haramiyidae apresentavam os molariformes superiores com apenas três cúspides dentárias labiais, de tamanhos muito diferentes, sendo que a cúspide central seria a mais alta. O número de cúspides linguais dos molariformes superiores e inferiores seria variável. As mais elevadas cúspides seriam as mésio-linguais dos dentes inferiores e as cúspides disto-linguais dos molariformes superiores. A oclusão se daria com as cúspides disto-linguais dos dentes superiores incidindo na ranhura central dos molariformes inferiores, em movimentos preponderantemente ortais-palinais (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Como podemos observar, a hipsodontia surge independentemente entre os mamíferos como respostas evolucionárias adaptativas aos novos ambientes xeromórficos. As dentições dos multituberculados apresentavam de um a três dentes incisiviformes superiores, seguidos ou não de um pequeno canino (Figura 25). Os pré-molares superiores poderiam ser em número de um até quatro, enquanto mostravam apenas dois molares. Diastemas poderiam separar os incisivos, o canino e os pré-molares (Kielan-Jaworowska et al., 2004). Os dentes incisivos centrais inferiores dos multituberculados eram hipertróficos, proodontes e nitidamente hipsodônticos. Os demais incisivos estavam ausentes, bem como o canino e a maioria ou todos os pré-molares inferiores. Apenas dois dentes molares completavam a dentição inferior (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

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FIGURA 25 - Composição diagramática de padrões de dentições inferiores encontradas entre os Multituberculata. O quarto pré-molar inferior está hachurado (modificado de Kielan- Jaworowska et al., 2004).

Os Multituberculata mais basais apresentariam três incisivos superiores, quatro ou cinco pré-molares e dois molares. Na maioria das vezes, os incisivos centrais superiores eram dentes menores que I2 e I3. Os caninos, presentes nas formas mais primitivas, poderiam estar ausentes nas formas mais derivadas do Jurássico Superior e os pequenos diastemas estariam restritos à dentição inferior (Kielan-Jaworowska et al., 2004). Além disso, as coroas dos dentes molariformes eram tipicamente divididas em duas fileiras de cúspides, que se apresentavam com tamanho semelhante. As cúspides labiais dos molariformes inferiores ocluíam sobre a ranhura central dos dentes molares superiores, em uma combinação de movimentos mandibulares predomimantemente palinais (retrusivos). Os componentes mastigatórios primitivamente mamalianos de uma movimentação transversal/unilateral dos dentários não estariam presentes (Kielan-Jaworowska et al., 2004). 76

Segundo Kielan-Jaworowska et al. (2004), as características apomórficas dentais dos multituberculados estariam relacionadas aos incisivos centrais inferiores hipertrofiados, proodontes e hipsodônticos, à presença dos diastemas entre incisivos e pré- molares, e à estranha anatomia dos primeiros molares em relação aos segundos molares inferiores. Também seria um caracter apomórfico deste táxon a presença de pré-molares inferiores com forma de uma lâmina de borda serrilhada e com estrias oblíquas sobre o esmalte coronal.

Assim, a dentição heterodonte e derivada dos Multituberculata seria notoriamente voltada para a herbivoria e aos hábitos de roer alimentos fibrosos e duros (Kielan-Jaworowska et al., 2004; Gurovich, 2005). Além destas especializações na dentição como um todo, o esmalte dentário dos roedores é um tecido extremamente especializado e muito duro, que se desgasta na forma de um bisel auto-afiável (Pough et al., 1999). Esta morfologia dentária é outro elemento dentário convergente entre Rodentia, Lagomorpha, Haramiyidae e Multituberculata e está relacionada ao padrão diferenciado de distribuição da cobertura de esmalte sobre os fustes dentários dos incisivos centrais inferiores (Simpson et al., 1928).

Nos primitivos Rodentia como Ctenomys cotoacaensis (Huáscar, 2005) e nos atuais Ctenomys brasilisensis (Figura 26) a cobertura de esmalte dentário não é homogênea em toda a superfície das coroas dentais. Nos incisivos, o esmalte localiza-se exclusivamente nas faces labial, mesial e distal dos incisivos centrais, permanecendo as faces linguais e palatinas com a dentina exposta ao meio bucal.

FIGURA 26 - Diagrama de cortes transversais de diversos dentes de roedores Eurymylidae e Lagomorfa mostrando a distribuição heterotópica de esmalte entre táxons roedores. Barra de 77

Escala de 1,0 mm. Abreviaturas: A-Matutinia nitidulus, incisivo inferior direito; B-Matutinia nitidulus, incisivo superior esquerdo; C-Leporidae, gen. et. sp. indeterminado, incisivo superior esquerdo; D-Leporidae, gen. et. sp. indet., incisivo superior direito, esmalte perdido por corrosão; E-Mimotonidae, gen. et. sp. indet., incisivo superior esquerdo; F-Mimotonidae, gen. et. sp. indet., incisivo superior direito; G-Eurymylus laticeps, incisivo inferior direito; H- Paleolagus temnodon, incisivo superior esquerdo; I-Ochotonoides complicidens, incisivo inferior esquerdo; J-Megalagus turgidus, incisivo superior esquerdo; d-dentina; e-esmalte; cp-cavidade pulpar (modificado de Van Valen, 2004). Observação: O esmalte dentário situa- se sempre na face labial dos dentes.

Também entre os multituberculados, alguns táxons, como os Djadocthatatherioidea (Figura 27) os Microcosmodontidae e os Eucosmodontidae apresentariam o esmalte distribuído apenas sobre as faces disto-labiais dos incisivos centrais inferiores. Estes dentes teriam a função principal de “roer” alimentos vegetais mais duros e abrasivos, em estratégias alimentares onde ocorrereriam diversas variações entre o volume, a curvatura e o comprimento dos incisivos inferiores e a variabilidade dos padrões de distribuição de esmalte (Simpson et al., 1928; Kielan-Jaworowska et al., 2004; Gurovich 2005).

FIGURA 27 - Diagrama de cortes transversais de incisivos centrais de diversos rodentes caviomorfos Santarozenses gen. et. sp. indeterminados, mostrando a distribuição heterotópica de esmalte entre táxons roedores hipsodõnticos. Abreviaturas: de A até L-incisivos superiores; M até R-incisivos inferiores; e-esmalte; d-dentina; cp-cavidade pulpar 78

(modificado de Martin, 2005). Observação: O esmalte dentário situa-se sempre na face labial dos dentes.

Diversos padrões de hipsodontia foram encontrados entre os gliriformes ancestrais de Lagomorpha e Rodentia. Nestes grupos a proto-hipsodontia e a euhipsodontia podiam estar relacionadas a alguns caracteres dentários pouco expressivos, e restritos apenas a alguns dentes do arco dentário, como os encontrados em Gomphos elkema (Figura 28 e 29) do Terciário Superior da Mongólia (Meng et al., 2004; Asher et al., 2005).

FIGURA 28 - Modelo de dentes hipsodônticos superiores de Gomphos elkema. Mostra a inexistência de constrição cervical entre a coroa e a raiz dentária. A–C-Vista oclusal, labial e lingual de P4-M1-M2 direitos (modificado de Meng et al., 2004).

Em Gomphos elkema foram encontrados pré-molares e molares cilíndricos, sem distinção da região cervical (cérvix dental) e distribuição não homogênea de esmalte nas coroas. Os incisivos centrais também se apresentam em forma de fuste alongado, sem distinção de limitação coroa/raiz e extremidade em bisel auto-áfiavel (Meng et al., 2004).

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FIGURA 29 - Composição fotográfica de Gomphos elkema, táxon do Paleoceno-Eoceno da Mongólia. Mostrando caracteres hipsodônticos como a proodontia dos incisivos, a presença de diastemas e a ausência de premolariformes (A) vista cranial lateral; (B) vista cranial dorsal; (C) vista cranial ventral; (D) vista oclusal do dentário (modificado de Meng et al., 2004).

A natureza dos dentes dos rodentes basais também poderia ser considerada como hipsodonte e assim permanecia por toda a vida do animal. Mas, em alguns casos, ao final da sua vida, os rodentes poderiam apresentar dentes levemente braquiodontes, como os encontrados em Tribosphenomys e Paromys, segundo Van Valen (2004).

A estes dentes incisivos de crescimento contínuo e de polpa persistente atribui- se uma formação constante de dentina na parte superior da polpa dentária, onde o dente continua a crescer em um alongamento extra-alveolar permanente. Os dentes são mantidos em um mesmo plano oclusal através do desgaste intermitente causado pelo atrito contra o dente opositor. Na ausência deste atrito, o dente terá uma curvatura e um crescimento desmesurado, podendo desencadear conseqüências funestas para o animal (Paula Couto, 1979).

Os dentes incisivos de crescimento contínuo e que apresentam esmalte apenas em sua face bucal podem ser utilizados para diversas funções e são considerados como “ferramentas” de uso variado. Vários autores referem que estes dentes incisivos, quando mais 80

procumbentes, são utilizados nas atividades de escavação de galerias subterrâneas realizadas por roedores fossoriais. Isto deveria ocorrer principalmente quando estes pequenos roedores habitassem em terrenos de solos mais agregados e, portanto, mais resistentes e difíceis de escavar (Paula Couto, 1979; Hildebrand, 1995).

Uma característica histológica “acessória” importante dos dentes hipsodontes stá relacionada à disposição das pregas de esmalte dos molariformes, que estão perpendiculmente orientadas em relação à direção do movimento mastigatório, potencializando, assim, a capacidade de corte dos alimentos (Orr, 1986; Hildebrand, 1995; Verzi, 2002).

As dentições dos multituberculados também poderiam apresentar diferentes posibilidades funcionais, uma vez que seu modelo básico e suas variações são semelhantes ao que ocorre nos roedores. Simpson & Elftman (1928) não atribuem funções de escavar para os dentes incisivos dos Multituberculata, mas afirmam que as dentições dos mesmos apresentavam três zonas funcionalmente específicas para:

A-Seleção e apreensão dos alimentos com os incisivos, com a mandíbula em sua posição rostral mais extrema;

B-Cominução preliminar da comida pelos pré-molares, com a mandíbula em extrema posição caudal, por meio de movimentos verticais;

C-Esmagamento dos alimentos pelos molares e sua preparação final para a deglutição, com a mandíbula se movimentando preferencialmente no sentido rostro/caudal.

Todas as estruturas osteológicas e dentárias indicariam que os multituberculados seriam vegetarianos. No multituberculata Eucosmodon também apresentava os dentes incisivos inferiores longos, com o esmalte estando limitado apenas às faces labiais. Estes dentes apresentavam facetas de desgaste oclusal em forma de bisel auto- afiável (Simpson et al., 1928). Através de estudos osteológicos do pós-crânio de Eucosmodon, os autores atribuiram hábitos de vida arbórea para este táxon. Eles seriam animais ágeis e de rápida locomoção e, eventualmente, se aventurariam a correr pelo solo, em busca de alimentos e até de restos de ossos para complementar a sua dieta herbívora (Simpson et al., 1928).

Porém, diferentemente dos rodentes, os incisivos dos multituberculatas seriam fortemente comprimidos transversalmente e as extremidades coronais seriam circulares e afiadas. Eucosmodon teria um regime alimentar a base de vegetais, com substâncias muito 81

fibrosas, raízes, cascas e até madeiras, embora os autores evitasdsem afirmar que seus dentes atuassem como os incisivos dos rodentes (Simpson et al., 1928).

Os incisivos centrais dos multituberculata não continuavam a crescer após a idade adulta em resposta ao desgaste incisal e, portanto, não seriam dentes de crescimento contínuo como os que ocorrem nos rodentes. Outros táxons de multituberculata, como Ptilodus apresentavam incisivos diferentes, totalmente recobertos por esmalte, e sem qualquer indício desgaste oclusal. Estes incisivos seriam mais proodontes e teriam as estranhas funções de perfurar, penetrar e apreender pequenos “objetos”. Segundo Simpson & Elftman (1928), estes dentes não teriam a função de cortar os alimentos, como os incisivos de Eucosmodon e Rodentia.

Estas mesmas feições anatômicas para a hipsodontia são referenciadas por Zheng & Li (1986), quando tratam da anatomia do Rodentia Mimomys chinensis, M. guansunicus, M. heshuinicus e outros do gênero, encontrados no Plioceno/Pleistoceno da China. Os autores referem para os mesmos as seguintes tendências hipsodônticas:

A-Aumento transversal das coroas dos molares;

B-Surgimento de pregas de esmalte;

C-Surgimento de cementum entre as coroas dos molares;

D-Raízes mais largas;

E-Crescimento mais prolongado e tardio das raízes;

F-Variação na espessura das paredes de esmalte.

Entretanto, a presença de cementum não ocorreria nas coroas dentárias de todos os táxons estudados e raramente ocorria nas espécies de pequeno porte.

Zheng & Li (1986) se depararam com uma grande variabilidade de características às quais atribuem graus diferentes de proto-hipsodontia/euhipsodontia. Algumas espécies de rodentes estudadas apresentavam, inclusive, algum grau de braquiodontia, quando as raízes terminavam seu desenvolvimento mais cedo. Nestes casos, os depósitos de cementum entre as coroas dentárias dos molares seriam mínimos ou totalmente ausentes. Isto sugere, então, que a produção de cementum sobre as coroas dos dentes estaria diretamente relacionada, de alguma forma, ao tempo de desenvolvimento das raízes e ao maior grau de hipsodontia (Zheng & Li, 1986). A formação de cementum dentário coronal é 82

um fator pouco analisado, como se pode observar em diversos trabalhos sobre mamíferos. Sem dúvida, deve ser um importante fator de adaptabilidade dos mamíferos à herbivoria.

Outros autores (Verzi, 2002; Gurovich, 2005) também atribuem um significado de adaptabilidade evolucionária, para as dietas abrasivas, ao clima, aos hábitos (especialmente a vida em ambientes fossoriais), como forma de explicar as diferenciações histo-anatômicas que conformam a hipsodontia. De um modo geral, estes processos terminariam pela efemeridade dos tecidos e estruturas dos ápices coronais e aumento temporal nas fases de desenvolvimento das estruturas dos ápices radiculares.

Estes processos hipsodônticos e os desenhos complexos das faces oclusais dos herbívoros estabecem uma distribuição adequada das superfícies côncavas e convexas de “enfrentamento”, favorecendo o corte dos alimentos e preservando os tecidos dentários da abrasão (Verzi, 2002).

Segundo Verzi (2002) algumas das adaptações que figuram no quadro de características dentárias ditas hipsodontes seriam:

1-Aumento progressivo no tempo de desenvolvimento e crescimento radicular;

2-Aceleração dos caracteres da região apical da coroa;

3-Aquisição de Euhipsodontia e perda dos fléxidos (dobras de esmalte);

4-Formação de tratos dentinários no esmalte dos molares;

5-Aumento de tamanho dos dentes (hipertrofia);

6-Mudanças anatômicas e aumento das faces oclusais das coroas dos molares;

7-Aquisição secundária de esmalte radial de reforço nos molares.

Verzi (2002) estudou a presença e a origem destes padrões anagenéticos hipsodontes e a sua origem, procurando explicar sua evolução em alguns táxons, terminando por comprovar a existência de diversos modelos de desenvolvimento gradativo destes caracteres. Os padrões e as características dentais histo-anatõmicos que configuram a hipsodontia variaram durante a evolução e dispersão dos rodentes.

Também a dentição do multituberculata Lavanify miolaka Krause et al. (1997), do Cretáceo Inferior de Madagascar e Índia, apresentava curiosas estruturas em seus molares. O molar holótipo trata-se de um dente de 11,2 mm de comprimento que mostra a face oclusal 83

aplainada pelo desgaste oclusal (Figura 30). A coroa e a raiz dentárias mostram-se contínuas, sem a presença de um cérvix dental.

FIGURA 30 - Composição esquemática da anatomia e histologia dos dentes do multituberculata Lavanify miolaka. (a) Holótipo, em vista disto-lingual, lateral e oclusal; (b) Molar inespecífico em vista mesial, lateral e oclusal; (c) esquematização do dente do sudamericide do Cretáceo Superior Deccan, da Índia. Em vista lateral, medial e oclusal; (d) estrutura do esmalte prismático em L. miolaka; (e). Abreviaturas: C-cementum; D-dentina; E- esmalte; JAD-junção amelo-dentinária; I-infundíbulo; R-ranhura (modificado de Krause et al., 1997).

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Em Lavanify miolaka, o dente, de forma cilíndrica, expõe diversas intra- estruturas de esmalte e dentina que o tornam extremamente peculiar. A coroa dental é muito grande, representando 85% do total e está definida pela cobertura de esmalte. O dente tem uma aparência tubular e é profundamente recurvado caudalmente. O ápice radicular permanece aberto, confirmando a natureza hipsodôntica desse dente. Entretanto, outros elementos hipsodônticos autapomórficos totalmente inusitados caracterizam este táxon. O esmalte coronal apresenta um largo e profundo infundíbulo que se invagina na face distal, cuja superfície apresenta dentina exposta. No entorno desta estrutura pode ser observada a junção amelodentinária (Krause et al., 1997).

A coroa dental apresenta um contorno irregular, causado por um forte dobramento do esmalte e da dentina coronais. Isto ocasionou a formação de uma superfície oclusal onde a dentina se apresenta em forma de “v” e duas lâminas de esmalte definem a anatomia coronal. Este dobramento de esmalte/dentina determinou a ocorrência de uma ranhura que se estende ao longo da face labial por todo o fuste dental (Krause et al., 1997). O interior desta ranhura dental é preenchido por tecido ao qual os autores atribuem à natureza de cementum dentário. O esmalte dentário de Lavinify miolaka é do tipo prismático, onde os prismas são pequenos, circulares e alinhados em colunas. Bandas de material interprismático separam regularmente as colunas de prismas de esmalte.

Os rodentes basais Tribosphenomys e Paramys apresentam dentes molares braquiodontes. Van Valen (2004) refere que mesmo um padrão leve de hipsodontia não poderia ser revertido para um padrão de braquiodontia, bem como a total impossibilidade de redução evolucionária de um determinado grau para um grau menor de hipsodontia. O estado plesiomórfico destes caracteres hipsodônticos permanece desconhecido para os rodentes.

Outro estudo sobre a origem e derivação da hipsodontia entre os Lagomorpha (Bair, 2006) estabelece que as formas dos dentes dos mamíferos herbívoros seriam determinadas pór diversos fatores de modelamento:

1-Pela orientação das superfícies de desgaste de incisivos ou molares;

2-Pela curvatura dos dentes;

3-Pelo ângulo da trajetória oclusal;

4-Pelas propriedades estruturais dos tecidos dentários esmalte/dentina. 85

Além disso, devido à alta integralidade dos sistemas biológicos, inúmeros outros fatores anatômicos e fisiológicos constrangeriam o processo derivativo destes organismos e atuariam como “limitadores evolucionários”:

1-Limitadores estruturais dentários;

2-Limitadores evolucionários;

3-Limitadores funcionais.

Já o estudo de Koenigswald et al. (1999), sugere designações anatômicas para a hipsodontia, classificando-a como Externa ou Interna quando em relação às estruturas orais. A hipsodontia Externa ocorreria quando os dentes afetados estão expostos externamente à cavidade bucal, e normalmente atingiria os dentes mais anteriores, como os incisivos inferiores e superiores. Os autores classificam como hipsodontia Externa do 1º Tipo os padrões nos quais os dentes hipertróficos e de crescimento contínuo seriam utilizados como elementos de interação social ou como armas, estando presentes em elefantes, morsas, hipopótamos, etc.

A hipsodontia Externa do 2º Tipo ocorreria em alguns marsupiais, onde os incisivos proodontes não apresentariam antagonistas com tamanho igual ou similar. Os dentes relacionados à hipsodontia do 3º Tipo estariam presentes entre os mamíferos, onde os dentes se apresentariam aos pares, nos rodetes alveolares superiores e inferiores. Neste caso, estes dentes poderiam estar relacionados ao processamento alimentar, escavação de galerias e contato social (Koenigswald et al. 1999).

A hipsodontia Interna, por seu turno, estaria tão somente relacionada ao crescimento contínuo dos dentes posteriores, devido ao desgaste oclusal causado pelo processamento de alimentos vegetais fibrosos e duros (Koenigswald et al. 1999).

Assim, os exemplos supracitados demonstram que a hipsodontia, além de ter surgido independentemente entre diversos táxons de mamíferos, também poderia ser considerada como um dos mais complexos caracteres dentários derivados presentes nos mesmos (Bair, 2006).

Modificações volumétricas e de forma são responsáveis pela maioria dos processos evolucionários, e podem ser descritos em termos quantitativos, podendo ser comparadas e expressadas em termos matemáticos de tempo de desenvolvimento ou taxas de 86

crescimento em relação às outras partes do corpo dos animais (Mckinney & McNamara, 1991).

O termo “heterocronia” foi criado por Haekel (1866) para explicar o deslocamento temporal, ou a mudança na ordem de sucessão de órgãos particulares, tais como os órgãos sexuais, do ancestral para o descendente. Conceitualmente ela deve ser compreendida como uma alteração que ocorre entre o ancestral e o descendente, nas taxas ou nos tempos de diferenciação de uma ou mais estruturas, que ocorrem durante o processo de desenvolvimento ontogenético (Mckinney & McNamara, 1991).

Assim a heterocronia seria responsável pelas mudanças alométricas conseqüentes da variação nas taxas de crescimento ou pela redução/extensão dos tempos em que as taxas de crescimento ocorrem (Mckinney & McNamara, 1991).

Se durante o seu desenvolvimento ontogenético um descendente passar por um menor número de estágios ontogenéticos a sua forma adulta será semelhante ao seu ancestral ainda em uma fase juvenil. Este processo recebeu o nome de pedomorfose. Enquanto isto, de modo contrário, quando o descendente apresentar um maior número de estágios de desenvolvimento ontogenético o descendente se desenvolverá além do estágio adulto do ancestral. Este fenômeno é chamado de peromorfose. Assim peromorfose e pedomorfose expressam os resultados morfológicos finais de diferentes padrões de heterocronia (Mckinney & McNamara, 1991).

A pedomorfose também é considerada como um “subdesenvolvimento organogênico” e pode ser causada por fatores temporais de desenvolvimento embriológico, como pelo crescimento lento (neotenia), conclusão orgânica tardia (pós-deslocamento) ou pela terminação antecipada da organogênese (progenesis) (Mckinney & McNamara, 1991).

Como a hipsodontia (proto-hipsodontia/euhipsodontia) se caracteriza pela retenção de partes das estruturas embrionárias dentais (papila dental e órgão do esmalte), e que se mantêm proliferativas ao longo da vida útil dos animais, fica caracterizado que ela é derivada de processos de pedomorfose, segundo Mckinney & McNamara (1991).

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10.1-ADAPTAÇÕES ECOLÓGICAS HIPSODÔNTICAS

Partindo da hipótese de que a dentição de Riograndia guaibensis apresenta uma série de semelhanças morfológicas com as de mamíferos hipsodontes, será apresentada, a seguir, uma discussão a respeito das adaptações ecológicas vinculadas a este tipo de dentição, constatadas em animais viventes, de modo a compará-las, posteriormente, com o contexto ambiental presumido para Riograndia no Triássico.

Os animais adaptados à vida em subterrâneos de cavernas ou de passagens interconectadas estão sujeitos a condições ecológicas peculiares, como a ausência de luz e o limitado aporte às reservas alimentares. Estas condições levam ao surgimento de certos caracteres, como a diminuição da pigmentação, a redução do metabolismo e a restrição de mecanismos e estruturas osmoreguladoras. As adaptações relacionadas à osmoregulação implicariam no surgimento ou supressão de estruturas objetivando uma maior retenção de água, seja por uma menor sudorese ou por maior concentração das secreções (urina e fezes). Adicionalmente, estes táxons estão sujeitos ao desenvolvimento de órgãos sensoriais, excetuando-se a visão (Hildebrand, 1995, Verzi, 2002).

Com relação ao esqueleto, estes animais mostram diversas variações craniais e pós-craniais que lhes permitem ocupar e viver ativamente em ambientes subterrâneos. Entre estas características troglomórficas podemos citar a diminuição do tamanho das órbitas para uma melhor proteção dos olhos, um caráter comumente encontrado entre os roedores fossórios (Marques & Gnaspinis, 2001). Também são reconhecidas as alterações de reforço dos membros anteriores e das cinturas escapulares, no sentido de permitir movimentos de escavação e deslocamento do substrato de areia ou terra (Verzi, 2002).

Diversos roedores apresentam também adaptações do aparelho mastigatório vinculadas à vida fossorial. Adaptações dentárias voltadas à escavação de galerias em terrenos mais agregados ou abrasivos surgem como importantes adaptações à vida fossorial. Cavar e remover rapidamente grandes volumes de solo, construindo galerias complexas e profundas, são estratégias fundamentais à sobrevivência destes pequenos mamíferos. Então, os dentes incisivos hipertróficos e proodontes (Figura 31) surgiram como ferramentas adequadas para a escavação de terrenos mais compactos (Hildebrand, 1995; Verzi, 2002).

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FIGURA 31 - Fotografia de crânio e dentário de Ctenomys torquatus, roedor fossorial, mostrando o alto nível de procumbência dos incisivos centrais (I1), bem como as bossas ósseas (BO) do dentário, próximas à região radicular do incisivo central inferior (i1).

Estas adaptações anatômicas estariam associadas com outros caracteres de natureza histológica, como a presença de um esmalte coronal mais resistente, crescimento dental prolongado e com o reforço ósseo peri-radicular dos incisivos (Verzi, 2002).

Estas características ósteo-dentárias estão diretamente relacionadas às aplicações das forças básicas que permitem uma melhor escavação e o corte das raízes durante a construção das galerias (Verzi, 2002):

1-disposição e posicionamento para um ataque frontal do substrato;

2-aumento da força de mordida para superar a resistência do solo;

3-encurtamento do crânio e da mandíbula;

4-implantação profunda dos incisivos centrais;

5-raízes largas para dissipação das forças de mordida através da base.

Estas são características anátomo-fisiológicas craniais importantes que são encontradas entre os Octodontidae Ctenomyinae e que lhes permitem viver como dento- escavadores eficientes. A respeito destas especializações, Verzi (2002) refere que elas estão associadas às mudanças ambientais (maior aridez) e não estariam restritas apenas aos roedores Octodontidae. 89

O desenvolvimento da hipsodontia entre diferentes grupos de mamíferos mostraria uma profunda vinculação às mudanças climáticas ocorridas durante o Cenozóico. A diversificação dos mamíferos hipsodontes (derivados dos braquiodontes) teria acontecido simultaneamente, em diversos continentes, mediante os eventos de desertificação ocorridos a partir do final do Mioceno. No Mioceno Superior, os processos de derivação dos mamíferos hipsodontes das regiões mais austrais da América do Sul se tornam mais acelerados, surgindo então formas mais euhipsodontes (Verzi, 2002; Gurovich, 2005).

Entre os roedores considerados fossórios diversos táxons exibem estas adaptações hipsodônticas, relacionadas à dento-escavação. Segundo Orr (1986) os ratos- toupeiras africanos da família Bathyergidae são especialistas em escavar com os dentes. Os ratos-toupeira mediterrâneos, os ratos-do-bambu e os ratos-das-raízes, todos da família Rhizomyidae, e quase todos os Muridae, também escavam com seus incisivos centrais procumbentes. Na América do Sul, além de Ctenomys (o “tuco-tuco”), o “coruro”, Octodontidae provavelmente também utiliza os incisivos para escavar suas galerias (Hildebrand, 1995).

Paula Couto (1979) atribui uma característica de dentes de crescimento contínuo e de euhipsodontia aos incisivos e molares de diversos grupos de roedores fósseis e viventes (Aplodontidae; Cylindrodontidae; Mylaugalida; Cricetidae; entre outros). Estes dentes euhipsodontes estariam caracteristicamente relacionados a um regime vegetariano (frutos, grãos, raízes, folhas) e a hábitos predominantemente terrícolas e fossoriais.

Entre as Ordens Anagalida e Lagomorpha também estão presentes diversos táxons de animais, aos quais, Paula Couto (1979) atribui às características de apresentarem dentes molares hipsodontes e incisivos hipertrofiados procumbentes. Entre os Lagomorpha, estão presentes as características dentárias de hipsodontia (Paula Couto, 1979) e de uma dentição de crescimento contínuo, acrescidas de outros caracteres, como o fato dos dentes incisivos permanentes, em número de dois, serem acompanhados de um terceiro incisivo, juvenil, que é perdido quando o animal atinge a idade adulta.

As Famílias Ochotonidae e Leporidae também apresentam uma dentição onde a hipsodontia é uma das características mais marcantes. Todos estes grupos estão relacionados à herbivoria e hábitos fossoriais, principalmente. Paula Couto (1979) também refere para alguns destes táxons (Paleolaginae), o fato de as raízes dentárias apresentarem-se em apenas um dos lados nos molariformes superiores. 90

Os dentes incisivos de crescimento contínuo dos roedores não apresentam substituição dentária, como ocorre normalmente em dentições difiodontes. Nestes casos, subentende-se a ausência de formação do embrião da dentição decídua precursora, uma vez que a substituição destes dentes incisivos implicaria em impedimento e prejuízo à fisiologia mastigatória, durante a fase de troca. A ausência da “função de roer” causaria momentânea impossibilidade de alimentação, situação inaceitável entre mamíferos roedores com altas taxas metabólicas basais (Van Valen, 2004).

Os Rodentes cricetídeos são um dos grupos mais prolíficos entre os mamíferos atuais. Neste grupo, as características dentárias variam da proto-hipsodontia à euhipsodontia. Spanocriceton ningensis foi um rodente Cricetidae do Mioceno de Fangshan, Nanjing (Nanking), China, descrito por Chankui Li em 1977. Os dentes molares de Spanocriceton se apresentam extremamente braquiodontes, amplos e em uma seqüência dental curta e paralela ao osso dentário (Figura 32). O incisivo inferior é estreito e apresenta uma grossa camada de esmalte na face labial e metades das faces mesial e distal. Como nos demais rodentes, o esmalte não é formado na face lingual, permitindo que o dente apresente um bisel auto-afiável (Li, 1977).

FIGURA 32 - Vista oclusal dos molares inferiores (m1-m2-m3) de Spanocriceton ningensis. Mostrando distribuição heterotópica de esmalte e presença de fléxidos (modificado de Li, 1977).

Existem muitas dificuldades em estabelecer a natureza de caracteres gradualistas que ocorrem entre a proto-hipsodontia, a hipsodontia e a euhipsodontia. Em alguns trabalhos de descrição das estruturas dentárias, podem ser observadas condições em que os autores referem afirmações conflitantes, na tentativa de definir as funções corretas das mais variadas dentições (Van Valen, 2004). 91

O surgimento e a irradiação dos primeiros mamíferos foram acompanhados de processos de ocupação de diversos nichos ecológicos que requeriam profundas especializações dentárias. Fruitafossor windsheffeli do Jurássico Superior da Formação Morrisson, Colorado, apresentava estruturas pós-craniais indicativas de hábitos fossoriais e uma dentição estranha, à qual os autores Luo & Wible (2005) atribuíram “alta especialidade e adaptabilidade” à insetivoria ou onivoria.

Entretanto, a dentição especializada de Fruitafossor consiste de dentes molares uni-radiculares, com uma anatomia externa lisa e tubular, cujos ápices radiculares, segundo os próprios autores, mantinham-se permanentemente abertos. Estes dentes apresentam-se elípticos em cortes transversais, não mostram uma cobertura de esmalte e tem amplas facetas de desgate oclusal em planos horizontais (Figura 33). Luo & Wible (2005) atribuíram a Fruitafossor uma dieta dirigida à predação de formigas, térmitas e pequenos invertebrados, complementada por plantas.

FIGURA 33 - Composição esquemática do dentário de Fruitafossor windsheffeli. (A) em vista lateral; (B) em vista medial; (C) diagrama de dente molar obtido a partir de tomografia computadorizada. Abreviaturas: pa-processo angular; foc-faceta do osso coronóide; pc- processo coronóide; cd-côndilo do dentário; rm-ranhura de meckel; ftm-forames mentais anteriores; fm-fossa massetérica; sm-sínfise mandibular; apcm-abertura posterior do canal mandibular (modificado de Luo et al., 2005).

Como nas discussões anteriores, podemos concluir que os dentes molares de Fruitafossor windsheffeli apresentam evidentes características hipsodônticas, mas estes 92

caracteres não foram identificados pelos autores. Assim, os dentes molares “tubuliformes” de Fruitafossor relembram as dentições dos Xenarthra (tatus) e de Oricteropus (aardvark), que também são insetívoros e generalistas, provavelmente sugerindo que a captura de insetos poderia estar contaminada com outros elementos abrasivos, como areia e restos vegetais, o que explicaria a profunda abrasão dentária e a conseqüente presença de caracteres hipsodônticos na sua dentição.

Outra característica a ser notada em Fruitafossor é o côndilo do dentário, que se apresenta direcionado rostro-caudalmente. Adicionalmente, podemos nos referir ao plano da articulação têmporo-mandibular, que se situa acima do plano de oclusão dentária. Estas características osteológicas são consideradas por Hildebrand (1995) como clássicos atributos anatômicos adaptados à herbivoria.

Segundo o autor (op. cit), estas características próprias dos roedores lhes permitem um elevado grau de dispersabilidade e adaptabilidade ecológica. As vantagens fisiológicas de uma dentição hipsodonte podem ajudar a explicar a variabilidade dos roedores, pois lhes dão condições de atuar sobre os mais diferentes tipos de alimentos vegetais (Hildebrand, 1995).

Os Rodentia atuais estão adaptados para viverem em uma grande variedade de habitats. No Brasil o gênero Phyllomys (Figura 34) habita as florestas do leste do Brasil, desde o Ceará até o Rio Grande do Sul. Ele é representado por diversas espécies, como Phyllomys nigrispinus, P. lamarum Moojen (1952), (Figura 35) P. unicolor, P. medius, entre outros, que apresentam hábitos arborícolas (Emmons et al., 2002).

FIGURA 34 - Desenho de Phyllomys bainvillii Geoffroy, 1840. Mostrando a cauda longa como principal adaptação aos hábitos arborícolas (modificado de Emmons et al., 2002). 93

Comumente, os Rodentia apresentam elevado grau de adaptabilidade aos mais variados ambientes. Por exemplo, o gênero Heteromys, originário da América do Norte e do México, apresentou fácil dispersão em ambientes florestais, desde a Venezuela até a península de Paranaguá.

FIGURA 35 - Fotografia de crânio de Phyllomys lamarum. (A) vista dorsal, (B) vista ventral, (C) vista lateral esquerda, com o dentário. Observa-se um crânio curto e compacto, com alto grau de proodontia e presença de diastema. (modificado de Emmons et al., 2002).

Este gênero também é encontrado em ambientes xeromórficos, em ambientes de florestas decíduas e em florestas de altitude, na cordilheira andina da Colômbia, demonstrando a fácil adaptabilidade dos roedores aos mais diversos habitats da América do Sul (Anderson, 2003; Hadler et al., 2008).

Como se pode observar, a hipsodontia representa, indiscutivelmente, um caráter mamaliano extremamente derivado, relacionada, principalmente, aos hábitos alimentares vinculadas com dietas vegetarianas durofágicas. Entre os exemplos citados, a euhipsodontia se expressa de forma mais extrema nos herbívoros roedores, estando sempre 94

associada com a hipertrofia e proodontia dos dentes mais anteriores e com o reforço da sínfise mentoniana, entre outros.

10.2-A MASTIGAÇÃO COMO CARÁTER MAMALIANO

Entre os caracteres mamalianos fisiológicos mais complexos que podem ser diagnosticados em fósseis, está, sem dúvidas, a mastigação. As facetas de desgaste são resultantes da oclusão e se formam por causa dos atritos constantes entre as estruturas dentárias ou entre os dentes e os alimentos. Estes atritos causam perdas de tecidos dentários, como o esmalte e a dentina, modificando a anatomia externa dos dentes e estabelecendo definitivamente as “facetas de desgaste oclusal” (Luo et al., 2002; Berkovitz et al., 2004).

Estas facetas de desgaste podem indicar os movimentos mastigatórios e a natureza dos processos de cominuição alimentar. Uma precisa oclusão dental entre os dentes inferiores e superiores é um dos caracteres mamalianos, unindo desde Morganucodon até os mamíferos viventes, representando uma característica única entre os amniotas (Luo et al., 2002; Berkovitz et al., 2004).

Os ossos craniais relacionados às estruturas dentígeras: pré-maxilares, maxilares e dentário, sofreram uma série de modificações evolucionárias que levaram ao surgimento e à melhoria de um dos mais importantes atributos fisiológicos mamalianos: a mastigação. As modificações osteológicas e fisiológicas que permitiram aos cinodontes mais primitivos desenvolver hábitos alimentares com altos custos metabólicos constituem a chave para a compreensão da origem e evolução dos primeiros mamíferos (Romer et al., 1981; Schultz, 1998).

Diversos autores atribuem aos cinodontes a incapacidade de mastigar os alimentos. Isto seria evidenciado pela inexistência de dentes mais especializados e pela ausência de um sistema neuro-motor adequado ao controle das funções propioceptivas mais complexas (condição presumida a partir dos modelos de desenvolvimento cerebral propostos para os mesmos). Também consideram as fragilidades da mandíbula e da primitiva articulação reptiliana como incapazes de suportar as pressões advindas da atividade mastigatória (Crompton & Luo, 1993; Bonaparte et al., 2001; Jaworowska, 2004). Outros autores atribuem 95

às dentições homodontes pouco especializadas e aos palatos ósseos pouco desenvolvidos a causa da inexistência de processos de trituração alimentar, que pudessem ser considerados como uma verdadeira mastigação (Schultz, 1998; Maier, 1999; Bonaparte et al., 2001).

Acredita-se, também, que o fechamento do palato secundário na linha média e seu aumento caudal estariam associados às necessidades de manter altos níveis respiratórios durante o tempo necessário ao processamento mastigatório dos alimentos. Estes processos estão relacionados ao incremento das altas taxas metabólicas mamalianas, que deveriam ser até dez vezes maiores que as taxas metabólicas reptilianas, com conseqüentes maiores necessidades respiratórias (Kemp, 2005).

A origem e o desenvolvimento de uma musculatura da língua, dos lábios e das bochechas estão diretamente relacionados à eficiência dos controles de movimentação do bolo alimentar durante as trajetórias de oclusão e intercuspidação. Nos mamíferos, isto incluiu um melhor desenvolvimento dos sistemas neuro-motores faciais relacionados à mastigação e ao processamento bucodental dos alimentos. Conseqüentemente os mamíferos apresentam melhores processos digestórios e de absorção alimentar ao longo do trato digestivo (Kemp, 2005).

Segundo Berkovitz et al. (2004) e Luo et al. (2002) o processo mastigatório é considerado uma característica fisiológica dos mamíferos (Figura 36) no qual, em fases subseqüentes, o alimento é cortado ou triturado em pequenos pedaços através de movimentos articulares precisos. Por isso, as estruturas anatômicas dos dentes apresentariam heterodontia e também teriam surgido adaptações ósseas, musculares e neurológicas do aparelho estomatognático como um todo (Guyton et al., 2002). 96

FIGURA 36 - Esquema dos controles proprioceptivos e neuromotores que controlam a motricidade dos músculos da mastigação e as estruturas acessórias à deglutição. Abreviaturas: CH-músculo bucinador e musculatura associada; EL-musculatura levantadora da mandíbula; H-musculatura hióidea associada; T-língua e musculatura associada (modificado de Berkovitz et al., 2004).

A mastigação tem por objetivos a transformação mecânica e, às vezes, química dos alimentos, a qual favorece a deglutição, digestão e absorção dos mesmos, potencializando, desta forma, um melhor e mais adequado desempenho nutricional e energético por parte dos mamíferos (Berkovitz et al., 2004).

Aos vertebrados não-mamíferos é atribuída uma ingestão alimentar pouco elaborada, na qual os alimentos são ingeridos sob a forma de bocados não-processados e pouco fracionados ou pouco triturados na cavidade oral. Tal assertiva pode ser questionada, em parte, uma vez que muitos animais, como as aves, por exemplo, podem seccionar e cortar os alimentos, melhorando assim a sua digestão (Luo, 1994; Berkovitz et al., 2004). 97

Entre outras vantagens nutricionais atribuídas à mastigação pode-se citar, por exemplo, segundo Berkovitz et al. (2004):

1-Facilitação da deglutição;

2-Aumento da eficiência e eficácia do processo de digestão:

A-Pela diminuição do particulado dos alimentos, aumentando a superfície de atuação das enzimas e a eficácia de ação dos ácidos digestivos;

B-Pela melhoria reflexiva das secreções orais, gástricas e enterais, favorecendo a digestibilidade dos alimentos;

3-Estimulação do desenvolvimento e do crescimento das estruturas do aparelho estomatognático.

A potencialização da eficiência digestiva e nutricional é, sem dúvida, a principal função da mastigação, o que propicia a manutenção de altas taxas metabólicas e a homeotermia, usualmente encontradas entre os mamíferos. Por outro lado, deve-se observar que o processo mastigatório compreende um conjunto de funções neuro-motoras que envolvem um apreciável gasto de energia quanto ao alimento ingerido.

A trituração e o fracionamento, determinados pelos movimentos mastigatórios, disponibilizam, de forma mais rápida e eficaz, o alimento ao processo digestório e de absorção intestinal, o que aperfeiçoa os ganhos nutricionais por parte dos animais. Isto torna o processo altamente eficaz e vantajoso quando se verifica que o acesso aos alimentos, em certos ambientes, pode ser restrito e aleatório (Berkovitz et al., 2004; Kemp, 2005).

Guyton et al. (2002), diferentemente de outros autores, externam que a mastigação é uma função orgânica mais importante entre os animais que comem vegetais e frutas do que entre os animais carnívoros. Isto estaria relacionado ao fato de que as células vegetais são mais resistentes que as células dos animais e que a mastigação deveria ser, necessariamente, mais eficiente entre os herbívoros e onívoros que entre os canívoros.

Entre estes últimos, os ácidos da digestão poderiam atuar mais facilmente sobre os grandes nacos de carne com que se alimentariam. Já as células e tecidos vegetais, que se apresentam com as paredes celulares mais resistentes, devem ser macerados e triturados em partículas menores, para uma melhor digestão e absorção alimentar (Guyton et al., 2002).

A mastigação mamaliana tem por fundamento fisiológico a oclusão unilateral dos dentes de cada dentário, onde as forças geradas pelos músculos dos lados de balanceio 98

oclusal podem ser transferidas, através das sínfises, para o lado em oclusão. Isso praticamente dobra a força mastigatória aplicada sobre os alimentos dispostos entre as superfícies oclusais do lado mandibular funcional, resultando em uma melhor trituração dos alimentos (Berkovitz et al., 2004).

Mecanicamente, a mastigação ocorre através de movimentos convergentes entre os dentes maxilares e mandibulares, cujas formas e funções especializadas estão relacionadas ao corte e trituração dos alimentos. O processo de preparação física dos alimentos chama-se cominuição, a qual, em sua fase inicial não requer a oclusão total dos dentes posteriores, o que poderia acontecer, eventualmente, ao final do processo de mastigação (Guyton et al., 2002; Berkovitz et al., 2004).

Quando observado em detalhe, fica claro que as estruturas dentárias dos mamíferos, com raras exceções (roedores) não são regularmente submetidas a uma forte e direta atrição dente a dente. Isto ocorre porque existem diversos neuro-sensores, dispostos de forma a exercer rigoroso controle neuro-motor sobre as estruturas musculares e peridentárias, evitando, assim, o desgaste dos dentes e impedindo uma conseqüente diminuição da funcionalidade dos mesmos (Berkovitz et al., 2004; Guyton et al., 2002).

Diversas adaptações anatômicas dentárias, principalmente aquelas relacionadas aos pós-caninos, tem o objetivo de impedir que os alimentos triturados pelos dentes posteriores sejam projetados contra as estruturas peridentárias de suporte, como a gengiva e papilas interdentárias. As cristas marginais e os pontos de contato têm esta função de proteger o periodonto, evitando as lesões e sequelas por impacção alimentar (Shaffer et al., 1979).

A mastigação representa um complexo sistema de interatividade entre os dentes, os movimentos sincronizados da língua e a musculatura das bochechas e lábios. Tal interatividade permite uma ação ordenada e seletiva dos dentes sobre alimentos de diversas texturas, os quais são dispostos e selecionados pela língua, definindo perfeitamente o deslocamento intra-oral do alimento a ser cortado, triturado ou deglutido (Hildebrand, 1995).

Outros fatores de fundamental interesse seriam aqueles relacionados ao controle neuromiomotor das estruturas envolvidas com a mastigação. Alimentos duros e macios geram diferentes atividades proprioceptivas nos ligamentos periodontais, nas estruturas dentárias e nas lâminas ósseas alveolares (Berkovitz et al., 2004).

Estes estímulos sensoriais aferentes ao sistema nervoso central, por sua vez, geram estímulos neuronais motores (eferentes) que realizam um delicado conjunto de 99

atividades musculares relacionadas à mastigação ou envolvendo estruturas ósseas da articulação temporo-mandibular, língua, lábios e músculos relacionados com a deglutição e de controle da faringe. Músculos envolvidos com o fechamento e abertura da epiglote também apresentam correlações fisiológicas com este sistema (Guyton et al., 2002; Kielan- Jaworowska et al., 2004).

Esta meticulosa redução física dos alimentos implica que outras estruturas associadas sejam peculiares aos mamíferos, como por exemplo, as glândulas salivares serosas, o esmalte dentário prismático, o palato secundário, a articulação dentária do tipo gonfose, a articulação temporo-mandibular e finalmente, o modelo de substituição difiodonte (Berkovitz et al., 2004).

O desenvolvimento da articulação temporo-mandibular e o aumento reorganizado da massa muscular associada permitem mais força e maior variabilidade de movimentos oclusais, qualificando o processamento físico dos alimentos. A produção das glândulas salivares serosas propicia uma pré-digestão de carboidratos e adicionalmente umidifica e lubrifica os alimentos, preparando-os para as fases posteriores da deglutição e da digestão (Kermack et al., 1973; Luo, 1994; Guyton et al., 2002).

Kermack et al. (1973) referem-se detalhadamente às complexidades dos movimentos oclusais e aos danos físicos que os dentes sofreriam caso a mastigação não fosse um processo tão especializado e já evoluído entre os primeiros mamíferos. Os autores se referem ao preciso e complexo sistema de corte dos dentes dos morganucodontídeos, onde um processo especializado chamado de thegosis (thegos (Gr.) tesoura) permitia que, ao mesmo tempo em que os dentes superiores e inferiores cortavam os alimentos, eles promovessem, entre si, um suave contato auto-afiante. Deste modo, as bordas de corte dos dentes dos mamíferos se mantem permanentemente agudas e afiadas.

A desarticulação da articulação temporo-mandibular (ATM) mamaliana oposta ocorreria naturalmente quando são esmagados e cortados os alimentos no lado de oclusão, permitindo um suave balanceio do dentário e um deslizamento das superfícies dentárias de corte, umas sobre as outras. Este sistema complexo permitiria a mastigação dos mamíferos, sem causar danos às estruturas dentárias e às estruturas periodontais. Assim, o autor atribui à presença de superfícies de desgaste oclusal, entre os dentes opostos, a importância de caráter filogenético próprio dos mamíferos (Kermack et al., 1973). 100

A forma e a disposição dos arcos dentários (Figura 37) também são fatores que influenciam nos padrões mastigatórios, podendo divergir (Aplodontia), convergir rostralmente (Cavia) ou ainda se apresentar retos ou recurvados (Hildebrand, 1995).

FIGURA 37 - Esquema das variações de forma e disposição das fileiras de dentes e dos côndilos em diferentes táxons de mamíferos herbívoros. (modificado de Hildebrand, 1995).

Hildebrand (1995) reforça a observação de que a função de corte ou trituração ocorre apenas durante uma das fases do ciclo mastigatório, quando os dentes inferiores deslizam sobre os superiores, em geral quando a mandíbula move-se para frente, ou de um lado em direção à linha média. O animal mastiga com um lado de cada vez, com um movimento relativo entre os dentes superiores e inferiores, quase sempre transversal ou levemente oblíquo e jamais em uma trajetória paralela entre os arcos dentários.

O aumento lateral da superfície articular do côndilo do dentário seria extremamente importante para a realização deste movimento, mas a evolução da ATM seria resultante de uma maior complexidade das atividades dentárias oclusais e não a causadora desta evolução da oclusão. Esta idéia reflete que a evolução dentária e da ATM estão relacionadas entre si e, consequentemente, seriam caracteres mamalianos interdependentes (Kermack et al., 1973). 101

Hildebrand (1995) também entende que a forma da superfície articular do côndilo do dentário estaria relacionada à fisiologia mastigatória e à dieta alimentar de cada táxon. Observa o autor que o côndilo dos mamíferos carnívoros seria usualmente transversal, embora o mesmo pudesse ocorrer entre em alguns herbívoros, como o hiracóide (Dendroirax), o cavalo (Equus) ou o Wombat.

O côndilo do dentário, ao se movimentar em uma fossa glenoídea menos restritiva, poderia ser orientado com um eixo rostro-caudal mais alongado e, quando deslizasse em uma cavidade articular longitudinal, poderia ser mais arredondado, como no caso do castor e da paca, ou mesmo em uma superfície articular relativamente plana do esquamosal.

Nos mamíferos carnívoros, as ATMs estão quase que no nível da fileira de dentes. Nos herbívoros, que necessariamente trituram os alimentos, elas estariam situadas bem acima do plano mastigatório. Nos roedores, sua posição é variável, com tendência a estar localizada em um plano situado logo acima do plano oclusal dos dentes inferiores (Hildebrand, 1995).

Entretanto, estes padrões mastigatórios herbívoros dos roedores não seriam aplicáveis aos multituberculados, que apresentariam outros modelos fisiológicos mastigatórios. As ATMs dos multituberculados se encontram em plano inferior ou no nível do plano de oclusão e, consequentemente, os movimentos mastigatórios (Figura 38) ocorreriam em trajetórias predominantemente palinais (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

FIGURA 38 - Diagrama de ilustração das forças resultantes dos músculos adutores da mandíbula dos mamíferos. Em “A” dentário dos multituberculatas e em “B” dentário dos rodentes. Abreviaturas: F-vetor das forças adutoras; m1-Momento da força de oclusão com o coronóide em posição alta e, em m2-Momento da força de oclusão com o coronóide em 102

posição baixa; O1-processo condilar situado abaixo do plano dos molares; O2-proceso condilar situado no plano dos molares (modificado de Kielan-Jaworowska et al., 2004).

A mastigação entre os Ctenomyinae é realizada através de movimentos oblíquos, póstero-linguais, ântero-linguais e unilaterais, podendo ocorrer pequenas variações entre as espécies. Entre os roedores, a mastigação oblíqua deve ser considerada como primitiva quando relacionada à mastigação com movimentos propalinais, a qual não se encontra entre os Ctenomyinae (Verzi, 2002). Assim, podemos observar que a mastigação complexa, mesmo entre mamíferos, ocorre em um elevado número de diferentes padrões fisiológicos, em associação aos diferentes tipos de aparelhos mastigatórios.

Um interessante estudo de Evans & Sanson (2003) sobre o surgimento dos morfótipos dentários mamalianos trabalha dentro de conceitos de desenvolvimento genotípico/modelamento mecânico funcional. Neste contexto, os dentes dos mamíferos foram considerados como “ferramentas” que teriam as suas formas definitivas estabelecidas pelo modelamento abrasivo resultante das diversas trajetórias oclusais. Este desgaste de modelamento, (Figura 39) seria consequência das interações físicas entre as superfícies dentárias de oclusão e os alimentos, bem como entre as estruturas dentárias antagonistas.

FIGURA 39 - Composição esquemática do processo de modelamento funcional aplicável aos dentes mamalianos (modificado de Evans & Sanson, 2003). 103

Assim, os órgãos dentários mamalianos poderiam chegar ao melhor desenvolvimento possível da forma das coroas, obtendo um máximo de eficiência funcional. As formas originais dos dentes seriam semelhantes às ferramentas de duas faces, mas que realizam diversos trabalhos em parametros funcionais variados (Evans & Sanson, 2003).

Os fatores determinantes da forma final dos dentes estariam relacionados às estruturas anatômicas dos dentes, dos maxilares, dos pré-maxilares e das mandíbulas, em profunda associação com a organização neuromuscular adutora e as trajetórias oclusais. Conceitualmente, a morfologia biológica dentária mamaliana seria resultante de um complexo de interações entre princípios físicos e evolução biológica, em escalas físicas extremamente diversas (Evans & Sanson, 2003).

A coerência deste modelo tornar-se-ia evidente pelos processos evolucionários conservativos durante os 140 milhões de anos da história evolucionária mamaliana, onde as anatomias dos dentes pouco mudaram, inferindo-se daí terem atingido muito cedo as formas funcionais ideais. As diferenças, muitas vezes, estão restritas apenas a diferentes escalas volumétricas, que podem atingir centenas de vezes, enquanto as formas funcionais básicas dos dentes se mantem muito semelhantes (Evans & Sanson, 2003).

104

11-A EMERGÊNCIA DOS CARACTERES MAMALIANOS

Os mamíferos são essencialmente endotérmicos e homeotérmicos e, consequentemente, apresentam circunstâncias ontogênicas, anatômicas, fisiológicas e comportamentais extremamente mais complexas que os sistemas biológicos reptilianos. As tentativas de estabelecer uma ordem cronológica através da qual as características mamalianas emergiram esbarram no fato de que vários destes elementos, que estão integrados, são de natureza totalmente bioquímica e deveriam evoluir de forma conjunta com os caracteres anatômicos (Kemp, 2005).

A endotermia é um caráter mamaliano que executa outras atividades fisiológicas sinérgicas e totalmente integradas, que são a termoregulação (homeotermia) e a elevação da taxa metabólica basal (TMB). Neste caso, a complexidade dos processos metabólicos envolvidos indicaria que diversos passos evolucionários estariam interligados, desde uma situação de total ectotermia até um organismo endotérmico totalmente viável e integrado (Kemp, 2005).

No caso de análise de fatores orgânicos intrínsecos, como hipotéticas mudanças mutagênicas menos complexas, o simples aumento intracelular do número de mitocôndrios poderia desencadear um incremento das taxas metabólicas basais dos organismos, com consequentes incrementos da atividade fisiológica e da temperatura. Mesmo em pequena escala, esta mutação gênica pontual exerceria mudanças comportamentais importantes, podendo estabelecer pequenas vantagens ambientais (Kemp, 2005).

Estas modificações deveriam ser seguidas obrigatoriamente de outras adaptações como o controle da termogênese, da termólise, aumento das taxas respiratórias e da circulação sanguínea, modificação e incrementos da pressão sanguínea e das atividades renais, modificações do sistema nervoso central, etc. Entretanto, poucas mudanças fisiológicas geram estruturas passíveis de fossilização.

Paula Couto (1979) acreditava que os terápsidas mais antigos, descendentes dos “pelicossáurios”, surgidos entre o Permiano Médio e Permiano Superior, já apresentavam alguns caracteres progressivamente mais assemelhados aos primeiros mamíferos, tanto em seus esqueletos quanto em suas dentições. Um táxon deste grupo, os cinodontes, seria quase 105

que inseparável dos primeiros mamíferos, do ponto de vista estrutural e também no aspecto metabólico, uma vez que deveria apresentar certo grau de endotermia.

Segundo este mesmo autor, a endotermia teria permitido que os terápsidas ocupassem regiões notadamente glaciais e regiões ocupadas por vegetação de Glossopteris, durante o Permiano Superior da África do Sul, Rodésia, Índia, América do Sul e outras regiões Gondwânicas de altas latitudes. Isto acontecia enquanto grupos de pelicossáurios caseídeos herbívoros e captorríneos, ambos os grupos constituídos por ectotérmicos, ficaram confinados às regiões mais quentes, próximas ao equador (Paula Couto, 1979).

Isto caracterizaria uma clara zonação paleofaunística determinada por elementos climáticos e da natureza metabólica dos táxons, à semelhança do que ocorre hoje com os grandes vertebrados. As transformações e o surgimento dos caracteres mamalianos devem ter ocorrido neste contexto de adaptabilidade aos paleoclimas permianos, inclusive com o surgimento de características singulares dos mamíferos, como por exemplo, os pêlos (Paula Couto, 1979).

O processo de evolução mamaliana defendido por Paula Couto (1979) entende a linhagem Synapsida (Figura 40), desde os primitivos Edaphosauridae e Caseidae, como um eixo evolucionário permanente de aquisição e de desenvolvimento dos caracteres mamalianos.

FIGURA 40 - Representações craniais de sucessivas radiações synapsidas. (A) Eothyris, synapsida basal do Permiano. (B) Biarmosuchus, therapsida do Permiano Superior; (C) 106

Thrinaxodon, cinodonte do Triássico Inferior; (D) Morganucodon, mamaliaforme do Triássico Superior + Jurássico Inferior. Observa-se nessa sequência a redução do número de ossos cranianos e o incremento do volume dos ossos dentários (modificado de Oftedal, 2002). Abreviaturas: art-articular; pc-processo coronóide; fr-frontal; j-jugal; ffm-fossa para a fixação do masseter; m1-primeiro molar; ffma-faceta de fixação da musculatura adutora; mx- maxilar; n-nasal; lr-lâmina reflexa; es-esquamosal; ad-es-articulação dentário-esquamosal; q- qj-quadrado-quadrado/jugal; por-pós-orbital; lac-lacrimal; prf-pré-frontal.

Oftedal (2002) afirmou que diversos caracteres morfológicos seriam evidências de que estes táxons já apresentavam um grande número de processos metabólicos de natureza endotérmica. Os autores entendem que os seguintes caracteres já teriam sido adquiridos durante a evolução Synapsida/, sugerida pela Figura 41:

A-Crânios compactos e com suturas ósseas com pouca mobilidade interna, adaptados a promover processos mastigatórios mais eficientes;

B-Ossos dentários maiores em direção rostral, caudal e cranial, acomodando o aumento da musculatura mastigatória;

C-Aumento da diversidade na forma e na complexidade dos dentes, com conseqüentes especializações da dieta;

D-Abandono da postura sprawling, do tipo reptiliana, para uma postura na qual os membros se situam mais abaixo do corpo do animal;

E–Restrição das costelas à região torácica, presumivelmente para prover sustentação ao diafragma respiratório e incrementos na respiração aeróbica;

F-Evolução e incremento do palato duro, que permitiu a manutenção do fluxo respiratório durante a mastigação dos alimentos ou mesmo possibilitando aos neonatos que respirassem e sugassem o leite materno;

G-Desenvolvimento da musculatura facial, dos lábios, da língua e das bochechas, que permitiriam a mastigação, através do preciso controle de posicionamento do bolo alimentar e propiciando aos neonatos a sucção do leite materno;

H-Surgimento e evolução dos maxilo-turbinais ósseos e cartilagíneos, favorecendo o aquecimento e umidificação do ar respirado, permitindo a homeotermia e taxas metabólicas aumentadas, para efetiva economia de energia e, principalmente, para a retenção de água; 107

I-Presença de um padrão osteológico com poucas variações de sazonalidade, maior uniformidade e altamente vascularizado, indicadores de crescimento rápido e com menor dependência de fatores ambientais.

FIGURA 41 - Representação diagramática da radiação desde Amniota (I) até Mammalia (VI). A figura refere alguns táxos mais representativos de cada radiação (indicado pelas linhas hachuradas); a linha horizontal indica a duração dos táxons no registro fossilífero; a linha vertical indica as idades geológicas e a grande extinção do final do Permiano; a inclusão das tartarugas entre os Parareptilia é controversa (modificado de Oftedal, 2002).

Estes caracteres “mamalianos” se repetiriam inúmeras vezes ao longo dos 310 milhões de anos desta história, e estão presentes nos táxons derivados durante toda a diversificação dos Synapsida. Seu surgimento e evolução aconteceram de forma gradual e conjunta, em um modelo que sugere uma profunda progressão e interdependência destes elementos (Oftedal, 2002). Isto poderia indicar que outros caracteres mamalianos mais clássicos, como a lactação e a difiodontia, teriam surgido dentro deste contexto de uma evolução gradativa, associada com o mosaico de elementos osteológicos que hoje tipificam os mamíferos (Oftedal, 2002). 108

Os caracteres associados à lactação também seriam excelentes indicadores de elevadas taxas metabólicas basais, rápido processamento alimentar, altas taxas respiratórias e de um crescimento juvenil acelerado (Oftedal, 2002). As manutenções de altas taxas metabólicas internas, obtidas através da endotermia e as evoluções das glândulas mamárias, que teriam ocorrido durante as últimas fases de irradiação dos Therapsida, preparou as condições para o surgimento do modelo de reprodução mamaliana (Carrol, 1988).

Brink (1980) fez diversas inferências quanto à capacidade respiratória de Diademodon e de Thrinaxodon e constatou que a organização das caixas torácicas destes cinodontes deveria permitir a movimentação de um diafragma respiratório totalmente funcional. Ele sugere que os cinodontes mais avançados seriam animais homeotérmicos que possivelmente apresentariam “sangue-quente” (endotermia), cobertura de pêlos, glândulas sudoríparas e suplementariam a alimentação de seus filhotes através de lactação.

Neste sentido Brink (1980) argumenta que a transição de uma articulação articular-quadrado para dentário-esquamosal não necessariamente deveria ser considerado o ponto de aquisição dos demais caracteres tipicamente mamalianos. Ele acreditava que a endotermia, a lactação e o nascimento placentário teriam surgido antes que a articulação dentário-esquamosal fosse adquirida. Assim, ele infere que “mesmo após qualquer criatura ter estabelecido uma articulação dentário-esquamosal, com o articular e o quadrado se tornado funcionais no ouvido médio, como o martelo e a bigorna, se estas criaturas fossem ectotérmicas, produzissem ovos amnióticos, e não apresentassem pêlos sobre a pele, elas seriam considerados répteis zoologicamente e mamíferos paleontogicamente. Contrariamente, se a endotermia associada ao nascimento placental e cuidados parentais como a lactação tivessem se estabelecido antes da articulação dentário-esquamosal, estas criaturas seriam zoologicamente consideradas como mamíferos, enquanto que paleontologicamente seriam répteis”.

Além destes caracteres, Brink (1980) referiu-se à provável presença de turbinais respiratórios, à semelhança dos que ocorrem entre os mamíferos, à presença de um palato ósseo secundário, dentições adaptadas à mastigação e diversos elementos (ranhuras e forames rostrais) indicativos da presença de vibrissas, adaptações secundárias dos pêlos, como elementos indicativos de endotermia entre os cinodontes.

A existência de fósseis de cinodontes (Thrinaxodon) com esqueletos enrodilhados, em uma atitude peri-mortem característica dos mamíferos, que buscam diminuir as perdas calóricas, também sugeririam a presença de endotermia (Brink, 1980). 109

Os pequenos mamíferos geram neonatos ectotérmicos imaturos e altriciais. Os recém-natos mamalianos são geralmente pouco desenvolvidos, cegos e dependentes dos adultos para o seu aquecimento, proteção e alimentação. A ectotermia destes rebentos é conseqüência de nascerem com um Sistema Nervoso Central pouco desenvolvido, incapaz de controlar os processos de endotermia e homeotermia. Por outro lado, este caráter neotênico permitiria que um desenvolvimento maior do SNC ocorresse no período pós-natal, através do elevado aporte de nutrientes obtidos com a lactação (Carrol, 1988).

Paula Couto (1979) sustentava que a amamentação deveria ter precedido a viviparidade (pelo que se depreende do ocorrido entre os monotremados), e que diversos destes caracteres não fossilizáveis (endotermia, presença de pêlos, amamentação, etc.) poderiam estar presentes entre os Therapsida mais avançados.

Kemp (2005) também acreditava que estas modificações deveriam evoluir orgânica e fisiologicamente integradas, e que, adicionalmente, não podemos excluir a necessária inter-relacão com as mudanças paleoambientais. Tal complexidade não pode ser argumentada simplesmente em termos de “graus de acumulação de funções isoladas”.

O desenvolvimento ontogênico juvenil acelerado seria resultante de processos heterocrônicos pedogênicos, que requeriam altos valores de suplementação alimentar e deveriam ser acessados através do aumento de cuidados parentais (Kemp, 2005), como pode ser observado na Figura 42.

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FIGURA 42 - Sinopse esquemática realizada para explicitar o caráter integrador da emergência das principais apomorfias mamalianas (modificado de Kemp, 2005).

Os processos de desenvolvimento dos mecanismos locomotores e a ampla distribuição dos cinodontes em ambientes temperados por todo o Gondwana sugerem que aconteceram aumentos das taxas metabólicas basais. Os primeiros mamíferos parecem ter surgido durante um processo evolucionário de miniaturização, o que torna a compreensão deste fenômeno ainda mais difícil (Parrington, 1967; Kemp, 2005). Durante este processo de miniaturização, estes cuidados parentais poderiam estar relacionados ao pequeno coeficiente volume/superfície, que seria responsável por um incremento das necessidades alimentares, com vistas à manutenção dos parâmetros de homeotermia (Kemp, 2005).

Kemp (2005) sugeriu ainda que todas as evidências levam a acreditar que os primeiros ancestrais mamíferos seriam muito semelhantes à Morganucodon e , com uma massa corporal estimada de apenas 5-20 gramas de volume, semelhante ao de 111

alguns pequenos mamíferos atuais. Eles apresentariam sinais osteológicos de altas taxas metabólicas, dentes de cúspides afiladas e com evidentes sinais de perfeita atividade oclusal, compatível com hábitos carnívoro-insetívoros. Além disso, deveriam ter sido preferencialmente noctívagos e de hábitos provavelmente arborícolas.

Em um ambiente noturno, as funções sensitivas relacionadas à visão e à olfação poderiam ter se desenvolvido de forma mais acelerada. Argumentos em favor de uma dieta voltada à insetivoria estariam relacionados aos movimentos mastigatórios e com a forma anatômica dos molares, que realizariam um “corte em tesoura”, associados ao pequeno tamanho corporal. Já as indicações de que os primeiros mamíferos teriam sido arborícolas estariam vinculadas ao alto grau de mobilidade articular e às estruturas pós-craniais leves e delgadas. O desenvolvimento de um ouvido especializado teria aumentado a capacidade auditiva para os sons dispersos pelo ar, demonstrando a importância deste sentido, enquanto a capacidade de identificação ótica das cores teria surgido somente tardiamente na evolução mamaliana (Kemp, 2005).

Kardong (2002), por seu turno, propôs que os principais caracteres mamalianos seriam resultantes de um metabolismo endotérmico, mais eficiente em manter altas taxas metabólicas em animais de pequeno porte, mesmo em neonatos, que poderiam ser alimentados com leite materno por um longo período. Estes fatores metabólicos e nutricionais permitiriam um desenvolvimento rápido e seguro, necessários ao desenvolvimento de um Sistema Nervoso Central mais complexo dos mamíferos. O surgimento de uma placenta cório-alantóidea e das células do trofoblasto seriam fatores diferenciais, ao efetivar amplas trocas gasosas e metabólicas entre o feto e a mãe, constituindo uma eficiente barreira contra a rejeição do embrião, fato determinante para permitir gestações intra-uterinas prolongadas, mesmo em situações de incompatibilidade tissular (Kaufman, apud Kardong, 2002).

A lactação e o natural incremento dos cuidados parentais seria um dos mais importantes fatores de evolução, porque o aumento de proteção e o incremento no aporte dos alimentos aumentaram as taxas de sobrevivência das proles mamalianas (Kemp, 2005).

Neste aspecto, Maier (1993) argumentou que os sistemas biológicos que permiriam o processo de lactação devem ter surgido muito precocemente na evolução mamaliana, embora ele acreditasse que a mastigação propriamente dita tenha surgido somente entre os primeiros mamíferos Jurássicos. Isto seria previsível, uma vez que a lactação pressupõe da necessidade de desenvolvimento de estruturas orais (palato secundário, lábios, bochechas, língua, palato mole, reflexos neuronais, entre outros) que permitissem aos 112

neonatos mamalianos altriciais que eles pudessem succionar adequadamente o leite nos mamilos das mães.

A difiodontia seria um dos mais singulares caracteres apomórficos que diferenciam os mamíferos dos répteis e dos cinodontes não-mamalianos e representa um dos mais complexos passos evolucionários deste táxon. Apesar de ser uma apomorfia mamaliana bem conhecida, a difiodontia é de difícil diagnóstico, quando observada entre os mamíferos basais, juntamente com o esmalte dentário de natureza prismática (Gow, 1985; Kielan- Jaworowska et al., 2004; Kemp, 2005).

O padrão de crescimento determinado dos mamíferos também é um carácter apomórfico considerado de fundamental importância para diferenciá-los dos répteis. Os mamíferos são relativamente grandes ao nascer e apresentam um crescimento acelerado, chegando rapidamente à idade adulta, enquanto os répteis crescem de forma lenta e irregular e seu crescimento varia com a quantidade de sua alimentação e com as demais condições ambientais (Gow, 1985; Luo et al., 2002; Oftedal, 2002; Kielan-Jaworowska et al., 2004; Kemp, 2005).

O trabalho de histologia óssea aplicada aos padrões de desenvolvimento ontogênico realizado por Chinsamy & Hurum (2006) trouxe novas informações sobre a evolução mamaliana. Os autores compararam os padrões da de crescimento na microestrutura óssea de mamíferos transicionais como Morganucodon (Triássico Superior + Jurássico Inferior) com os multituberculata Kriptobaatar e Nemegtbaatar (Cretáceo Superior), com os Eutheria Zalambdalestes e Barunlestes (Cretáceo Superior), com o cinodonte não-mamaliano e com mamíferos atuais placentários e monotremos. Dentre estes, o multituberculata Nemegtbaatar (Figura 43) também apresentava características morfológicas e histológicas dentárias dos incisivos centrais inferiores que sugerem crescimento contínuo e hábitos herbívoros de roedor.

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FIGURA 43 - Reconstrução da cabeça de Nemegtbaatar (Djadochtatherioide). Observa-se no mesmo uma dentição proodonte, com a presença de um amplo diastema na região pós- incisiva. A forma de bisel das extremidades dos incisivos indica também que havia uma capa de esmalte apenas sobre a face bucal dos mesmos (modificado de Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Algumas das observações efetuadas por Chinsamy & Hurum (2006) são as seguintes: a presença de camadas ininterruptas de osso fibro-lamelar periférico nas seções ósseas do úmero do cinodonte não-mamaliano Tritylodon indica a predominância e sustentação de altas taxas de crescimento. Uma pequena espessura de osso lamelar periférico, apresentando linhas de repouso, situada em secção do rádio, sugere a diminuição gradativa das taxas de crescimento ontogênico tardio. As taxas de desenvolvimento encontradas em Morganucodon e nos multituberculatas apresentaram altas e rápidas taxas de deposição óssea e crescimento, que diminuíam ao final da ontogenia. Enquanto isso, os dois eutérios cretácicos desenvolviam lentamente, com pausas de crescimento indicadas por linhas de repouso (anéis de crescimento). Estes Synapsida cresciam mais lentamente que os mamíferos atuais, mas bastante mais aceleradamente que os répteis.

Em resumo, Chinsamy & Hurum (2006) concluíram que as estratégias de desenvolvimento e crescimento ósseo rápido e limitado, características típicas dos mamíferos atuais, surgiram e evoluíram primeiramente entre os Therapsida não-mamalianos.

As diferenças nos padrões de desenvolvimento/crescimento, segundo Gow (1985) seriam associadas aos diferentes tipos de substituição dentária existentes entre répteis e mamíferos e estariam diretamente relacionadas à lactação e à endotermia. 114

As características anatômicas das velas dorsais, em sinápsidos basais como Dimetrodon e Edaphosaurus, indicariam, para muitos autores, a ocorrência de ectotermia, uma vez que seriam utilizadas como coletores/dissipadores de calor nestes táxons. Nos clados de terocefálios, gorgonopsianos e dicinodontes não ocorreriam evidências anatômicas relevantes que pudessem ser utilizadas como indicadoras de seu metabolismo basal. Por outro lado, os cinodontes apresentavam diversos indicadores da presença de um metabolismo endotérmico (Parrington, 1967; Kemp, 2005).

Parrington (1967) e Oftedal (2002) sustentaram que alguns terápsidos gorgnopsianos permianos apresentariam maxiloturbinais respiratórios bem desenvolvidos e que estas estruturas atuariam para limpar e umidificar o ar inalado, o que sugeriria algum grau de endotermia nestes táxons. Estes maxiloturbinais estariam associados com a existência de pseudo-palatos membranosos, que também surgiram independentemente entre táxons de cinodontes e terocefálios. Os maxiloturbinais seriam estruturas imprescindíveis em animais com altas taxas metabólicas, pois teriam as funções de aquecer e de umidificar o ar inspirado que vai até os alvéolos e, através do epitélio respiratório, filtrar partículas sólidas presentes na atmosfera (Parrington, 1967; Kielan-Jaworowska et al., 2004; Rodrigues, 2005).

A endotermia representa um maior estresse fisiológico/biológico para os animais que habitam os desertos. Em regiões desérticas, os endotermos precisam reverter suas reações fisiológicas desenvolvidas em ambientes normais. Isto ocorre porque os processos de homeotermia são mais eficazes quando a temperatura corpórea do animal se situa acima da temperatura do meio ambiente. Nesta situação, o gradiente de dissipação térmica se dá do animal para o meio ambiente e, neste caso, os sistemas de homeotermia conduzem a uma situação de equilíbrio entre a termogênese e os processos de termólise (Pough et al., 1999).

Nos mamíferos, ocorre a presença de um reciclador de contracorrente nas vias aéreas superiores, através do resfriamento das mucosas dos maxiloturbinais e nasoturbinais, sendo este um processo que tem importantes implicações evolucionárias, em termos energéticos e no balanço hídrico. Isto acontece porque o ar inalado é aquecido e umidificado nos tecidos das passagens das vias respiratórias e assim, quando entra nos pulmões, está saturado de água na temperatura corpórea, resultando num importante fator de proteção das estruturas alveolares. Porém, quando o ar inalado passa sobre os turbinais respiratórios, a evaporação é acelerada e esfria as mucosas ali existentes (Pough et al., 1999). Quando o ar aquecido e umidificado dos pulmões é novamente exalado, o vapor de água nele contido se condensa sobre as paredes mucosas dos turbinais, propiciando uma importante economia de 115

água e de energia que iria para a evaporação. Poder-se-ia enfatizar que este trocador de contracorrente de calor e energia “é uma conseqüência inevitável da anatomia e fisiologia das passagens nasais”. (Pough et al., 1999).

Este caráter fisiológico foi taxativamente defendido por Oftedal (2002), que considerou que os turbinais respiratórios, existentes nas porções mais rostrais das cavidades nasais dos cinodontes, possuíam a única e exclusiva função de realizar a retenção de água e que isto somente poderia ocorrer em animais com altas taxas metabólicas.

Curtis (1977) referiu que o rato-canguru, Dipodomys ordii, que vive em ambientes desérticos da América do Norte, apresenta diversas adaptações à vida em ambientes xeromórficos. Estes roedores apresentam hábitos de vida noturna, a sua excreção urinária é altamente concentrada e as suas fezes são extremamente ressecadas. Estes animais apresentam na respiração a maior causa de perda de água, mas recuperam esta água exalada através da expiração pelos eficientes mecanismos de contracorrente que existem nos turbinais respiratórios, daí o fato de apresentarem focinhos mais alongados.

Rodrigues (2005) realizou estudos tomográficos de osteologia craniana em diversos cinodontes não-mamalianos, entre eles Massetognathus, Riograndia e Brasilitherium, comparando-os com os padrões osteológicos de Thrinaxodon e Morganucodon, além de alguns padrões mamalianos atuais. O autor realizou mensurações tomográficas e fez análises de correlação entre o tamanho da região olfatória da cavidade nasal e o volume dos bulbos olfativos, cujos resultados apontam que Riograndia guaibensis apresentaria uma elevada capacidade olfatória, quando comparado aos outros cinodontes não- mamalianos da amostra, como pode ser observado na Figura 44.

FIGURA 44 – Comparação entre as secções transversais das regiões respiratórias das cavidades nasais de: A-Massetognathus (PV0968T); B-Riograndia (PV0596T); C-Didelphis, 116

preservados os maxiloturbinais e o septo internasal; D-cavidade nasal de Morganucodon e arranjo dos maxiloturbinais; E-Canis lupus; F-Panthera tigris. Sem escalas (modificado de Rodrigues, 2005).

Rodrigues (2005) também determinou, em Riograndia, (Figura 45) a presença das cristas ósseas maxiloturbinais, indicativas da existência dos turbinais respiratórios, que são igualmente encontradas em Thrinaxodon e em 99% dos vertebrados endotérmicos.

FIGURA 45 - Reconstituições tridimensionais dos crânios de A-Massetognathus (PV0968T), B-Riograndia (PV0596T), C-Brasilodon (PV0628T) e D-Didelphis, em secções de plano sagital, para comparação dos padrões de desenvolvimento osteológico. Sem escala. Legenda: 1-cristas para maxiloturbinais; 2-cristas para nasoturbinais; 3-nasoturbinal; 4-parte dos etmoturbinais; 5-placa transversa (modificado de Rodrigues, 2005).

11.1-ENCEFALIZAÇÃO E EVOLUÇÃO MAMALIANA

Rodrigues (2005), por meio de análises tomográficas, avaliou o nível de encefalização presente entre alguns cinodontes não-mamalianos (Massetognathus, Riograndia e Brasilitherium) que ocorrem no Triássico do Rio grande do Sul. Comparando os moldes internos digitais das cavidades encefálicas destes táxons entre si e com outros existentes na literatura, o autor constatou uma maior encefalização, para Riograndia e Brasilitherium, na comparação com Massetognathus e Exaeretodon (Figura 46). Conceitualmente, a abordagem 117

de Rodrigues, de que ocorreu uma crescente encefalização dos clados mais mamalianos em relação aos cinodontes não-mamalianos mais basais também é suportada por Kielan- Jaworowska et al., 2004, que atribuem este crescimento ao desenvolvimento dos hemisférios do neo-cortex, bulbo olfatório, cerebelo, etc.

FIGURA 46 - Comparação entre moldes cerebrais de diferentes cinodontes. Os diferentes estágios evolutivos representados no cladograma mostrado em “A” são: I (Eucynodontia), perda do complexo parietal-pineal; II (Mammaliaformes), incipiente expansão do cérebro; III (grupo coronal Mammalia), bulbos olfatórios aproximadamente esféricos, nítida divisão mediana do cérebro por uma fissura longitudinal e expansão lateral dos hemisférios cerebrais. Em “B” vemos Exaeretodon e em “C” são comparados Massetognathus, Riograndia e Brasilitherium. Abreviaturas: 1-corpo pineal; 2-bulbo olfatório; 3-hemisférios cerebrais; 4- vermis; 5-exposição do mesencéfalo; 6-hemisfério cerebelar; 7-pedúnculo olfatório; 8- parafloculus cerebelar; 9-preenchimento da crista parietal (contribuição direta de P. G. Rodrigues).

Rodrigues (2005) considerou os hemisférios cerebrais de Riograndia e Brasilitherium compatíveis, em largura, com os hemisférios dos encéfalos dos mamíferos atuais. 118

Ulinski (1986) considerou que a evolução do neocortex mamaliano estaria relacionada, principalmente, ao desenvolvimento e controle da musculatura esquelética relacionada à mastigação e à locomoção, mas também estaria relacionada ao incremento da olfação e da audição, devido ao desenvolvimento de hábitos noturnos e arborícolas (Jerison, 1973). Este processo de encefalização crescente também estaria sendo suportado pela maior energização do metabolismo mamaliano.

A compreensão da origem, evolução e o sequênciamento dos principais caracteres mamalianos é de fundamental importância para a melhor compreensão do surgimento dos mamíferos, mas não existe concordância a respeito de quando, como ou em qual sequência estes caracteres surgiram (Kemp, 2005).

Luo et al. (2001) também consideram o incremento dos níveis de encefalização como um dos mais importantes caracteres mamalianos transicionais. O autor fez uma correlação direta entre a expansão do Sistema Nervoso Central e a evolução do dentário mamaliano. Esta correlação estaria relacionada ao incremento da mastigação, ao surgimento da difiodontia e aos maiores aportes nutricionais pós-natais, passíveis de ocorrerem pela lactação e amamentação.

Neste contexto evolucionário complexo, o fato da transição cinodonte mamífero ter acontecido entre táxons de terápsidas de pequeno volume corporal, incluídos em um processo chamado de “miniaturização” deve estar associado aos padrões morfogênicos destes grupos. Sabe-se que animais de tamanho pequeno representam, geralmente, formas heterócronas pedomórficas, com a retenção de caracteres juvenilizados, passíveis de gerar formas derivadas variadas. Neste caso, alguns autores como Gow (1985) defendem que o surgimento da difiodontia, crescimento determinado, presença de promontório, associados ao pequeno volume corporal, estariam ligados a mudanças súbitas e profundas. Sidor e Hopson,1998 (apud Soares, 2003) entretanto, sustentam que ocorreria um incremento progressivo na acumulação de sinapomorfias progressivamente menos inclusivas em “taxas” que poderiam ser observadas durante a evolução do grupo e entre as linhagens consideradas como grupos-irmãos. Durante a “transição cinodonte-mamífero” a miniaturização é considerada como um caráter mamaliano.

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11.2-EVOLUÇÃO DO DENTÁRIO E OUVIDO MÉDIO DOS MAMÍFEROS

Entre os caracteres osteológicos mamalianos considerados mais relevantes está a condição de um osso dentário hegemônico e a conformação do ouvido médio, típico dos mamíferos. A organização do ouvido médio dos mamíferos está estruturada de maneira que os primitivos e reptilianos ossos pós-dentários - o quadrado, o articular mais o pré-articular e o angular - tornam-se estruturas anatômicas estritamente auditivas, sem qualquer vinculação com o aparelho mastigador (Meng et al., 2003). Estes ossos passam a se chamar, respectivamente, bigorna, martelo e ectotimpânico.

Nos cinodontes não-mamalianos, a articulação crânio-mandibular (ACM) se realiza entre o articular e o quadrado (Figura 47). Diferentemente, nos mamíferos a chamada articulação temporo-mandibular (ATM) ocorre sempre entre dentário o esquamosal (Kielan- Jaworowska et al., 2004; Martin & Luo, 2005).

FIGURA 47 - Diagramação esquemática resumida da evolução da articulação crânio- mandibular dos cinodontes não-mamalianos até a ATM dos mamíferos, com a redução dos elementos pós-dentários. A- Thrinaxodon: (A1) vista medial da mandíbula; (A2) vista lateral 120

da articulação crânio-mandibular e elementos pós-dentários afixados; B- , vista medial da mandíbula, mostrando a redução dos ossos pós-dentários; C-Morganucodon, mamaliaforme jurássico, mostrando a redução ainda maior dos ossos pós-dentários; D- Didelphis: (D1) ATM em vista lateral; (D2) ouvido mamaliano em vista lateral, mostrando a homologia dos ossículos do ouvido; (D3) mandíbula em vista medial, com a separação dos ossos do ouvido médio da parede do dentário; E-mandíbula de placentário em vista medial, mostrando fases embriológicas iniciais, com a cartilagem de Meckel afixada ao dentário. Abreviaturas: a/art-articular; cm-cartilagem de Meckel; d-dentário; ge-glenóide esquamosal; q-quadrado; s-surangular; pr-parede reflexa do angular; part-pré-articular; t-timpânico; lra- lâmina reflexa do angular; s-stapes; i-incus (quadrado); oms-ouvido médio separado (modificado de Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Entretanto, em diversos táxons transicionais mais inclusivos como Thrinaxodon, Probainognathus, Pachygenelus e os mamíferos Sinoconodon, Morganucodon e , surgem condições intermediárias, com uma articulação crânio-mandibular composta, como podemos observar na Figura 48. Em alguns destes casos, a articulação entre o dentário e o esquamosal ainda não estaria estabelecida, o que ocorre em Trinaxodon, Probainognathus e Pachygenelus. Entretanto, o osso articular e o quadrado continuavam a se relacionar, em posição mais medial, em uma condição considerada reptiliana (Kielan- Jaworowska et al., 2004).

FIGURA 48 - Composição esquemática das articulações crânio-mandibulares de cinodontes e mamíferos, em vista ventral. Abreviaturas: A-Thrinaxodon; B-Probainognathus; C- 121

Pachygenelus; D-Sinoconodon. Sequência de aquisição de apomorfias; 1-Eucinodontes, como Probainognathus: contato surangular/esquamosal (somente em Probainognathus existe a faceta esquamosal). Em outros, poderia existir contato surangular/esquamosal (mas sem a presença de uma faceta esquamosal); 2-Pachygenelus: contato dentário/esquamosal (sem a presença de um côndilo dentário “verdadeiro” e sem a presença de uma cavidade glenóide “verdadeira”). A região posterior do dentário se estende caudalmente, entre o crânio e a parte do processo zigomático do esquamosal, deslocando o quadrado-jugal; 3-mamíferos: presença de uma ATM mamaliana com um “bem conformado” côndilo do dentário contatando com uma cavidade glenóide esquamosal “verdadeira”. Abreviaturas: a-angular; art-articular; cd- côndilo dentário; e-esquamosal; ent-entalhe; ge-glenóide esquamosal; q-quadrado; qj- quadrado-jugal. (modififcado de Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Estas condições intermediárias formam articulações crânio-mandibulares duplas (ou compostas) e também podem ser encontradas em outros táxons associados com a transição cinodonte–mamífero, como Diarthrognathus, Riograndia, etc.

Diversos passos estariam envolvidos na transformação do ouvido médio mandibular para o ouvido médio cranial:

1-transformação do quadrado em incus (bigorna);

2-modificação da articulação incus-malleus (bigorna-martelo);

3-imobilização da articulação incus-malleus (bigorna-martelo);

4-deslocamento do articular/pré-articular da incisura pós-dentária;

5-deslocamento do angular do dentário e redução da concavidade medial do dentário.

Posteriormente, a aquisição de outros caracteres adicionais seria necessária para a configuração do ouvido mamaliano em uma condição moderna, envolvendo a separação do malleus e do ectotimpânico da mandíbula e sua incorporação à base do crânio. Esta separação dos ossos pós-dentários e a sua incorporação ao ouvido médio mamaliano parece ter ocorrido no Jurássico Inferior em conjunto com uma maior encefalização (Luo et al., 2001).

Hadrocodium wui foi o primeiro mamaliaforme a ser reconhecido por não apresentar a incisura de Meckel e a curvatura pós-dentária (Luo et al., 2001; Kielan- Jaworowska et al., 2004; Martin & Luo, 2005). , entretanto, não apresenta a ranhura de Meckel característica de outros mamaliaformes transicionais - e que pode ser 122

observada nas fases ontogênicas iniciais dos mamíferos - antes da reabsorção da parte anterior da cartilagem meckeliana (Luo et al., 2001).

Conceitualmente, não existe um consenso estrito da diagnose osteológica de Mammalia, embora o registro fossilífero apresente inúmeros fósseis com boa preservação osteológica. Neste contexto, Luo et al. (2002) estabeleceram que a mais característica sinapomorfia mamaliana é a presença de uma ATM constituída unicamente pelo côndilo dentário e por uma verdadeira glenóide esquamosal, como vista em Sinoconodon.

Outras caracteríscas “mamalianas” seriam o crescimento alométrico do promontórium e a apresença de uma região pós-glenóidea bem desenvolvida no esquamosal (Luo et al., 2001).

123

12-A MASTIGAÇÃO ENTRE OS CINODONTES

Os diversos trabalhos sobre os cinodontes não-mamalianos mais derivados, apresentam significativas referências sobre a mastigação entre estes pequenos Therapsida, nesta fase de transição para mamífero. Entre as feições morfológicas observadas estão diversas referências à ocorrência de facetas de desgastes oclusais, que revelam a existência de diferentes padrões de relação interdentária de natureza mastigatória. Estes achados indicariam incrementos no processamento mastigatório dos alimentos, tanto em cinodontes carnívoros como em dentições mais derivadas para a herbivoria (Botha & Chinsamy, 2004). Crompton & Parkyn (1962), estabeleceram um movimento dorsal e posterior para a mandíbula dos traversodontídeos e uma oclusão entre os pós-caninos superiores e inferiores. Goñi & Goin (1990), fizeram detalhadas inferências ao modelo mastigatório em Exaeretodon frenguellii Cabrera (1943) (Figura 49-B), chamando a atenção para “um dos padrões dentários mais especializados entre os “répteis conhecidos” que, com um grande volume mastigatório, sugere um tratamento bucal aperfeiçoado para os alimentos”. Atraiu a atenção dos autores a pouca extensão das séries das fileiras dentárias dos pós-caninos, que representam apenas 25% do comprimento craniano.

Abdala & Giannini (2000) mostraram que cinodontes como Massetognathus pascuali (Figura 49-A), durante seu desenvolvimento ontogenético, apresentam um padrão alométrico negativo para o volume total dos dentes, que seria incompatível com a idéia de uma dentição reptiliana polifiodonte. Nestas, os volumes dos dentes de substituição usualmente apresentam alometria positiva.

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FIGURA 49 - Composição esquemática do esqueleto de cinodontes gonfodontes Massetognathus (A) e Exaeretodon (B) (modificado de Kemp, 2005).

Goñi & Goin (1990) referiram um padrão braquiodonte para os dentes pós- caninos em Exaeretodon, que apresentariam coroas e raízes morfologicamente bem definidos, salientando que os pós-caninos apresentam uma única raiz, de ápice fechado e que é expandida transversalmente. Estas raízes únicas dos pós-dentários de Exaeretodon apresentam uma concavidade em sua face distal e expansões linguais e distais, conformando uma estrutura de natureza quase laminar. Além disso, nas coroas dentárias de Exaeretodon são descritos diversos sulcos e facetas resultantes de “desgaste oclusal”, que indicariam complexos e também cíclicos movimentos anteroposteriores da mandíbula.

Exaeretodon frenguellii apresenta uma sínfise mandibular reforçada e côndilos da mandíbula menores que a superfície da cavidade glenóide do quadrado, o que permitiria uma gama maior de movimentos e deslocamentos laterais da mandíbula, que realizaria processos de corte e maceração dos alimentos. Goñi & Goin (1990) referiram, ainda, da necessária natureza monofiodonte deste aparelho mastigador, onde o surgimento de novas peças dentárias ocorria apenas na região posterior das fileiras de dentes.

As especializações dentárias e mandibulares em Exaeretodon riograndensis (Figura 50) tal como descritas por Abdala et al. (2002), e encontradas também em outros cinodontes gonfodontes (Barberena, 1974), sugerem um tratamento oral especializado e prolongado dos alimentos neste grupo de cinodontes não-mamalianos. 125

Abdala & Malabarba, 2007, fizeram significativas inferências quanto aos processos mastigatórios observados em Exaeretodon riograndensis e em outros cinodontes traversodontídeos, os quais (omnívoros e herbívoros) apresentariam uma “mastigação bilateral, que precederia a oclusão precisa e complexa, desenvolvida posteriormente pelos mamíferos”.

FIGURA 50 - Crânio de Exaeretodon riograndensis (UFRGS-PV0715T), em vista lateral. Observar a presença de diastema pós-canino e a redução proporcional do volume coronal dos pós-caninos.

A oclusão dentária presente nos dentes posteriores do diademodontídeo Scalenodon, do Triássico Médio da Tanzânia, segundo Benton (2006), seria bem desenvolvida. Os processos mastigatórios deste cinodonte apresentariam um preponderante movimento palinal na fase oclusiva. Benton sugeriu que este tipo de oclusão seria comum em traversodontídeos, nos tritylodontídeos e em mamíferos. As evidências fisiológicas mastigatórias nestes cinodontes traversodontes são representadas pelos complexos padrões das facetas de desgastes das coroas dentárias, a partir dos quais eles puderam inferir trajetórias oclusais que representariam processos biológicos “mais mamalianos que reptilianos”, em direção a um maior aproveitamento energético dos alimentos (Abdala et al., 2002).

Outros trabalhos, como o de Crompton & Parkyn (1962), de Kermack et al. (1973) e de Crompton & Luo (1993), todos realizados em cinodontes, acusaram uma acentuada especialização dentária, associada a facetas de desgastes oclusais, complexificação 126

anatômica coronal/radicular e alterações dos padrões da anatomia e fisiologia dos ossos dentários.

Autores como Botha et al. (2005), referiram-se aos cinodontes não-mamalianos como táxons transicionais que deveriam apresentar processos de desenvolvimento da dinâmica de mastigação em “estágios intermediários” entre os modelos polifiodontes reptilianos e o modelo de mastigação elaborada da dentição difiodonte mamaliana. Neste caso, atribuíram aos cinodontes não-mamalianos baixas taxas de substituição dentária, em índices de substituições que estariam pouco acima da substituição única difiodonte mamaliana. Curiosamente, neste mesmo trabalho, Botha et al. (2005) atribuíram processos de oclusão mastigatória precisa para os pós-caninos de e Diademodon, evidenciados pela presença de facetas de desgaste oclusal.

Abdala & Giannini (2000) também atribuíram baixas taxas de adição dentária em cinodontes não-mamalianos como Massetognathus pascuali, mas se referiram somente às zonas posteriores aos pós-caninos. Este padrão envolveria outros táxons da transição cinodonte mamífero, como Sinoconodon. No mesmo trabalho, os autores sugeriram ainda que os dentes mais antigos não seriam substituídos e não se referiram ao modelo de substituição dentário das regiões anteriores dos arcos dentários.

Alguns cinodontes não-mamalianos como Trirachodon, da África do Sul, também apresentavam dentes pós-caninos com padrões oclusais mais eficientes, juntamente com um palato secundário mais derivado. Estes caracteres, associados à histologia óssea fibro-lamelar, seriam indicadores de níveis de processamento alimentar mais eficiente e taxas de desenvolvimento ontogênico mais acelerado (Botha & Chinsamy, 2004).

Os representantes da linhagem Probainognathia da Formação Caturrita, encontrados em associação com Riograndia guaibensis, são Irajatherium hernandezi, Brasilodon quadrangularis e Brasiltherium riograndensis. Irajatherium não possui ainda materiais cranianos com a porção articulçar preservada, mas Brasilodon e Brasiltherium mostram uma articulação crâniomandibular padrão articular/quadrado, totalmente desenvolvida e funcional, apesar da presença de uma incipiente articulação dentário/esquamosal, de natureza acessória, condição muito similar à encontrada em Morganucodon (Bonaparte et al., 2005).

Por outro lado, a dentição de Brasilodon quadrangularis apresenta facetas de desgaste em diversos dentes pós-caninos superiores, sendo que, no PC6, a faceta de desgaste 127

oclusal situa-se no nível das cúspides bucais acessórias, enquanto que o PC7 apresenta uma ampla faceta de desgaste em plano inclinado posteroventralmente e o PC8 também apresenta desgastes oclusais, embora seja referido como um dente recém-erupcionado (Bonaparte et al., 2005). Os autores referem-se ainda à presença de facetas de desgaste em outros espécimes analisados, com variados volumes de desgaste oclusal, tanto em pós-caninos superiores como nos inferiores, atribuindo este fato aos diferentes períodos de erupção dos dentes e, portanto, dos diferentes tempos de exposição ao desgaste oclusal (Bonaparte et al., 2005).

Parrington (1967) fez importantes comparações quanto ao desenvolvimento das estruturas mastigatórias entre os Therapsidas do Permiano Inferior e do Triássico. O aumento sistemático dos dentes caninos foi seguido pelo surgimento de dentes pós-caninos com coroas mais complexas. A fenestra temporal tornou-se gradativamente maior, para acomodar uma volumosa e complexa musculatura mastigatória. No osso dentário, surgiu um processo coronóide muito mais desenvolvido, que serviria para a fixação da musculatura mastigatória, concentrando a distribuição das forças oclusais mais anteriormente, diretamente sobre as estruturas dentárias. Isto permitiria que os movimentos mastigatórios posteriores da mandíbula fossem realizados sem diminuição da força de oclusão dental, como pode ser observado na Figura 51 (Parrington, 1967; Bramble, 1978). Segundo Bramble, 1978, um dos mais importantes eventos na evolução do sistema mastigatório teria sido o surgimento do complexo miomotor formado pelo músculo masseter, formado a partir de partes do músculo temporal. Nos cinodontes a presença dos músculos masseter superficial e profundo significaria mudanças qualitativas nos movimentos mastigatórios. Isto implicaria em aumento da força de mordida e incremento dos controles miomotores. Como consequência, as forças dos impactos mastigatórios teriam deixado de pressionar a articulação crânio-mandibular.

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FIGURA 51 - Crânio de Diarthrognathus, mostrando o arranjo das forças oclusais da musculatura adutora da mandíbula, com o estabelecimento de um fulcro adequado a uma mastigação eficiente. Abreviaturas: T-músculo temporal; M-músculos da mastigação (modificado de Parrington, 1967).

Martinelli & Rougier (2007) consideraram que os “ictidossaurios” apresentariam diversos caracteres relacionados à uma melhor performance oclusal, entre os quais: 1-Uma articulação crânio-mandibular transicional mais estabilizada. 2-Estruturas musculares mastigatórias mais eficientes.

12.1-A EVOLUÇÃO DO PALATO SECUNDÁRIO NA TRANSIÇÃO CINODONTE- MAMÍFERO

As estruturas ósseas do crânio e da mandíbula dos Therapsidas mais avançados apresentam um grande número de caracteres importantes para a compreensão da transição cinodonte-mamífero. Objetivamente, os ossos relacionados aos processos de mastigação, à respiração e a audição parecem apresentar as sinapomorfias mamalianas mais importantes.

As demais estruturas bucais que compõe a cavidade bucal óssea ou que contribuem para a mecânica funcional seriam fundamentais para o surgimento e evolução da mastigação mamaliana: o palato ósseo secundário e a articulação temporo-mandibular dentário-esquamosal. 129

O palato ósseo do tipo mamaliano é mais extenso caudalmente que os escontrados entre os cinodontes não-mamalianos, e provê uma separação mais eficiente entre a cavidade bucal e as vias aéras respiratórias. Adicionalmente, o palato ósseo mais alongado permitiria uma maceração mais eficiente dos alimentos, que poderiam permanecer mais tempo em processamento mastigatório na cavidade oral, sem causar interferências com o fluxo de ar da atividade respiratória.

O surgimento deste palato secundário mais extenso conta uma parte importante da história evolucionária da transição cinodonte-mamífero. Maier, Ven Den Heever & Durand (1996) e Maier (1999) sugerem um interessante modelo para a evolução e diferenciação das estruturas do palato secundário, buscando esclarecer algumas particularidades da transição cinodonte-mamífero (Figura 52). O autor defende que os Therapsida mais primitivos apresentariam dobras de mucosas presas às bordas ósseas das coanas, que proviam separações funcionais para o isolamento de passagens de ar durante a ingestão dos alimentos.

FIGURA 52 - Diagramação esquemática dos padrões de palato secundário entre cinodontes e mamíferos. A-Procynosuchus; B-Thrinaxodon; C-Probainognathus; D-Kayentatherium; E- Pachygenelus; F-Morganucodon; G-Didelphis (modificado de Kielan-Jaworowska et al., 2004). 130

Maier, Ven Den Heever & Durand (1999) preconizam que o desenvolvimento dos palatos ósseos secundários nos tetrápodos mais derivados, Therocephalia e Cynodontia (Figura 53) teriam ocorrido através de modelos embriológicos evolucionários diferentes. Nos Therocephalia o aumento do palato ósseo secundário e a conseqüente fusão na região mediana teriam ocorrido rostro-caudalmente, não permitindo a permanência de um forâmen incisivo (forâmen palatino anterior).

FIGURA 53 - Diagrama da evolução convergente do palato duro entre cinodontes e terocefálios. Nos terocefálios o desenvolvimento ocorria no sentido rostro-caudal. Porém, entre os cinodontes/mamíferos este desenvolvimento embriológico ocorria no sentido rostro- caudal, e simultaneamente, ocorria a partir da região mediana do palato (modificado de Maier, 1999).

Enquanto isto, entre os Cynodontia o processo que levou à fusão dos ossos palatinos teria começado com um estreitamento da fissura palatina mediana próxima à metade do teto da cavidade bucal (Figura 54), seguindo-se um processo de fusão dos processos laterais do palato em direções rostral e caudal simultaneamente. Esse processo embriológico de fechamento do palato ósseo secundário entre os cinodontes teria então resultado na retenção de um ducto nasopalatino e do forâmen incisivo anterior, estruturas ósseas que não estão presentes entre os Therocephalia, mas que são acidentes ósseos conspícuos entre os mamíferos (Maier et al., 1996; Maier, 1999). Também seriam apomorfias dos cinodontes os foramens palatinos maiores situados em posição caudal/lateral do palato ósseo expandido, segundo Kielan-Jaworowska et al., 2004. 131

Estes diferentes modelos embrionários levaram a uma evolução convergente dos palatos ósseos secundários entre os therocefàlios e os cinodontes/mamíferos, e tiveram implicações na origem das estruturas dentárias. Schultz (1998) e Maier, Ven Den Heever & Durand (1999) referem que os primeiros theriodontes tinham dentes pós-caninos mais simples, com dentições formadas por dentes cônicos que estariam diretamente associados à carnivoria. Somente no Triássico Superior surgiram alguns padrões herbívoros, com dentes pós-caninos que apresentavam padrões de oclusão mais complexos.

FIGURA 54 - Crânio de Procynosuchus, um cinodonte primitivo, do Permiano Superior da África do Sul e Rússia: A) Vista dorsal do crânio; B) vista ventral do crânio; C) vista lateral do crânio e (D) vista lateral da mandíbula. Mostra a fase evolutiva de estreitamento da fissura palatina medial, pelo crescimento e horizontalização dos processos palatinos. Abreviaturas: f- frontal; pm-pré-maxilar; m-maxilar; pal-palatino; pt, perigóide; ept-ecto-pterigóide; art- articular; d-dentário; q, quadrado; qj-quadrado-jugal; prf, pré-frontal; po/pf-pós-orbital e pós- frontal fusionados; sa-surangular; sm-septo-maxilar; n-nasal; j-jugal; m-maxilar; bo-baso- occiptal; pc-processo coronóide; ft-fossa temporal (modificado de Carrol, 1988).

Vários autores relacionam a origem e a evolução do palato ósseo secundário com o desenvolvimento dos processos que levaram à amamentação por sucção. Isto estaria relacionado ao conjunto de estruturas orais neonatais que permitiriam aos recém-nascidos mamalianos de efetivar o succionamento do leite em glândulas mamalianas que apresentam mamilos (Soares, 2004; Maier, 1993, 1999).

Nestes casos diversas estruturas como a língua, os lábios, as bochechas e uma estrutura adequada dos músculos do véu do palato e da epiglote seriam fundamentais à existência da amamentação por sucção entre os Cynodontia e que poderiam não existir entre os Therocephalia (Maier, 1993, 1999; Maier et al., 1996). 132

Outros autores associam a origem do palato ósseo secundário ao conjunto de necessidades metabólicas ligadas à endotermia, cujas funções teriam um melhor desempenho com o total isolamento das cavidades nasais e a cavidade bucal. Uma respiração mais eficiente somente poderia ser alcançada com a total separação das vias aéreas e dos processos de mastigação e de deglutição dos alimentos (Schultz, 1998). Neste caso os últimos pós- caninos devem estar em posição rostral em relação ao limite caudal do palato ósseo, o que ocorre comumente entre os triteledontídeos, morganucodontídeos e os mamíferos (Kielan- Jaworowska et al., 2004).

Riograndia guaibensis apresenta uma condição derivada em relação às características de extensão caudal do palato secundário, juntamente aos mamaliaformes, chiniquodontídeos, triteledontídeos e Multituberculata. Adicionalmente Riograndia guaibensis apresenta uma maior expansão transversal do palato, caracter derivado compartilhado entre triteledontídeos e mamaliaformes (Soares, 2004).

Berkovitz et al. (2004), Avery (2005) e Ferraris & Muñoz (2006) também mostram que o processo de elevação das tábuas palatinas e o fechamento do palato de embriões humanos, durante a oitava semana de desenvolvimento intra-uterino, ocorreria primeiramente no terço médio do palato, onde então ocorreria o “aderência inicial”. Primeiramente ocorreria a ruptura do epitélio e a penetração de células ectomesenquimais e o desaparecimento da lâmina basal, com a consequente fusão das tábuas palatinas opostas.

Em seguida, em torno da 10ª semana de desenvolvimento embrionário, em uma primeira fase, o processo de fusão e união das cristas palatinas se estenderia anteriormente até se fusionar com a lâmina do palato primário, para formar a rafe palatina mediana, restando formado o forame palatino anterior (forâmen incisivo), como pode ser observado na Figura 55. Em sequência, nas fases posteriores de desenvolvimento craniano, aconteceria um fechamento gradual das partes posteriores do palato secundário, pela fusão dos processos palatinos laterais (Berkovitz et al., 2004; Avery, 2005 e Ferraris & Muñoz, 2006. 133

FIGURA 55 - Processo de desenvolvimento embriológico do palato primário e palato secundário humanos. Em A, temos a expansão do palato primário e das cristas palatinas; em B, ocorre o primeiro contato e a fusão das cristas palatinas no terço médio; em C, observamos a desintegração do epitélio interposto; em D, podemos observar as direções anterior e posterior que seguem as “ondas” de desenvolvimento e fusionamento do palato secundário (modificado de Avery, 2005).

Os Autores associam que as malformações da palatogênese ocorridas em fases precoces de desenvolvimento, podem estar associadas com agenesias dos alvéolos e dos dentes que ocorreriam sobre áreas das fendas palatinas. Tais eventos sinalizam que os processos de embriogênese, formação e a definição do seqüenciamento das erupções dos dentes dos mamíferos ocorreriam nas primeiras fases de desenvolvimento embrionário (Berkovitz et al., 2004; Avery, 2005 e Ferraris & Muñoz, 2006).

Também em concordância com a “Teoria de Maier, Ven Den Heever & Durand (1996)”, Butler (1982) ao descrever a ontogenia dos padrões dentários mamalianos em embriões de ratos com apenas oito (8) dias, refere que as células mesenquimais originadas da crista neural realmente se concentram em um ponto mediano dos maxilares e dentários. Posteriormente elas formariam então, dois cordões celulares que se dirigem anteriormente e posteriormente ao longo da lâmina de ectoderma oral dos futuros rodetes dentários.

134

12.2-EVOLUÇÃO DENTÁRIA E A TRANSIÇÃO CINODONTE-MAMÍFERO

Kielan-Jaworowska et al. (2004), consideraram que as estruturas craniais e dentárias seriam as que apresentariam a grande maioria dos caracteres-chave para o entendimento da transição cinodonte-mamífero. Entretanto, diversos cinodontes apresentam caracteres dentários primitivos associados com outras características osteológicas e dentais mais derivadas, apresentando um mosaico de feições evolutivas de difícil compreensão.

Entre as transformações esqueletais mamalianas consideradas mais relevantes estão aquelas associadas às modificações ósteo-dentárias que levaram ao surgimento da difiodontia e da mastigação (Soares, 2003). Os estágios evolucionários ditos “transicionais” entre cinodontes não-mamalianos e mamíferos representam processos heterócronos variados, que culminaram, por exemplo, em mudanças no desenvolvimento ontogênico craniano, variações no número e na supressão de substituições dentárias e em diferenças anatômicas e fisiológicas do aparelho ósseo-dentário, entre outras.

A definição do clado Mammalia de Luo et al. (2002) implica no reconhecimento de que:

A mastigação dentária, conseqüência de processos oclusais complexos, é uma sinapomorfia mostrada por todos os membros fósseis e viventes deste grupo, cracterizada pela presença de facetas oclusais nos molares inferiores e superiores que se articulam precisamente logo após a erupção Crompton & Sun (1985), enquanto descreviam a dentição de Sinoconodon, também referiram como caracteres dentários “mamalianos” a heterodontia dos pós-caninos e o incremento na estrutura e número das raízes dos mesmos dentes. Adicionalmente, estes autores atestam a presença de um crescimento craniano indeterminado, acompanhado de uma possível substituição polifiodonte dos molariformes, o que explicaria a não apresentação de um padrão oclusal consistente entre os dentes posteriores.

Caracteres de heterodontia são bem descritos por Osborn & Crompton (1973) para Thrinaxodon Liorhinus, onde os Autores descrevem três morfótipos bem definidos para os dentes pós-caninos, os quais seriam resultantes da presença diferentes campos morfogênicos sobre os rodetes alveolares. Osborn & Crompton (1973) também inferem que a dentição de Thrinaxodon Liorhinus seria polifiodonte, embora sugerissem que estivessem presentes na dentição fatores de desacelaração do número de substituições e de estabelecimento de uma dentição definitiva, “devido à perda de atividade da lâmina dental 135

durante a vida do animal”. Chamou a atenção dos Autores o fato de que alguns dentes posteriores de substituição mostravam tendência de apresentarem alometria negativa em relação aos dentes substituídos, em um padrão que sugeriam que fosse diferente do que ocorreria normalmente no modelo polifiodonte de substituição dentária.

Quanto ao seqüenciamento das substituições dentárias Osborn & Crompton (1973) sugerem que os pós-caninos imediatos poderiam apresentar um padrão de substituição alternado, com a onda de substituição sendo de trás para a frente, em um padrão diferente do que ocorre nos répteis e também diferente do que ocorreria entre os mamíferos.

Estes elementos também foram encontrados em Morganucodon, nos incisivos, caninos e molares posteriores, por Parrington (1971). Neste contexto, o referido autor tentou estabelecer um modelo seqüencial e filogenético para a emergência dos principais caracteres dentários mamalianos e do crescimento craniano determinado. Para tanto, Parrington (1971) levou em conta os desgastes relativos das coroas dentárias como critério para inferir o sequenciamento da erupção dentária.

Kielan-Jaworowska et al., 2004 estabeleceram que Sinoconodon apresentar-se- ia como uma forma transicional, com redução da freqüência de substituição dentária, per locus, em seus pré-molares. Estes autores propuseram que o complexo fenômeno do padrão de substituição dental poderia ser compreendido por diversos “elementos anatômicos básicos”:

1-Frequência de substituição: o número de substituições dentárias “per locus” e o momento em que a substituição dentária ocorreria nos molariformes estariam diretamente relacionados com o padrão de crescimento craniano (determinado ou indeterminado).

2-Modo de substituição (alternadamente ou sequencialmente).

3-Direção da onda de substituição: anteroposterior ou posteroanterior.

Kielan-Jaworowska et al. (2004) estabeleceram uma hipótese de evolução gradativa para estes grupos de “elementos anatômicos básicos”, a qual ocorreria em dois degraus evolutivos, através dos táxons Tritheledontidae/Sinoconodon/Morganucodon. A “reversão da onda” de substituição dentária seria um evento evolucionário posterior à aquisição da substituição seqüencial dos pós-caninos. Este seria o mais importante atributo mamaliano concernente à difiodontia, surgida em associação com a não-substituição dos molariformes e com um padrão de crescimento determinado do crânio. Assim, os autores 136

estabeleceram um quadro (Figura 56) de “emergência” destes caracteres entre os grupos envolvidos na transição cinodonte mamífero.

Em Morganucodon e Sinoconodon já ocorreria um padrão de substituição dentária difiodonte nos pós-caninos imediatos (ante-molares/pré-molariformes), mas esta se daria em sentido ântero-posterior, ou seja, em um padrão ainda não mamaliano (Kielan- Jaworowska et al., 2004). Curiosamente, segundo os mesmos autores, Pachygenelus monus já seria reconhecido por apresentar as características de um crescimento ontogênico craniano rápido e determinado, embora apresentasse um padrão de substituição dental polifiodonte de natureza reptiliana.

FIGURA 56 - Cladograma da provável seqüência para o surgimento da difiodontia entre os mamíferos mesozóicos (modificado de Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Mais tardiamente, em Dryolestes e Zhangeotherium, ocorreria a substituição alternada dos premolariformes, que teria revertido para um padrão seqüencial póstero-anterior entre os placentários, como por exemplo, em Alphadon (Kielan-Jaworwska et al., 2004).

Outros autores também trabalharam no sentido de observar os padrões embriológicos e constataram que, embora os dentes anteriores dos mamíferos se formem em uma sequência ântero-posterior, na região dos premolariformes os dentes erupcionam em uma sequência póstero-anterior. Luckett (1993) também refere que este padrão de sequenciação dos premolares seria característica para os mamíferos Eutérios. 137

Assim, o estabelecimento total dos caracteres referentes ao padrão de dentição difiodonte mamaliano seria atingido plenamente somente entre os placentários, nos quais, finalmente, ocorreria a inversão da onda de erupção dos pré-molares, agora em associação com um crescimento limitado do crânio (Kielan-Jaworwska et al., 2004) como seria observado em Haldanodon e Gobiconodon.

Através das propostas acima citadas, conclui-se que a trajetória evolucionária que levou ao surgimento da dentição mamaliana poderia ser explicada através de uma sucessão de quatro ou cinco eventos evolutivos diferentes, gradativos, acontecidos entre Pachygenelus e Alphadon, e que culminariam com o estabelecimento da difiodontia:

Nesse sentido, Luo (1994) sugeriu que as apomorfias mamalianas mais significativas estão relacionados aos seguintes caracteres diagnósticos:

1-Tamanho pequeno; 2-Crescimento determinado; 3-Presença de um promontorium; 4-Difiodontia. Estes caracteres apomórficos também foram citados por Gow (1985) e estariam relacionados a duas categorias de “estados transicionais de caráter”, que seriam:

A-Tendências de mudanças direcionadas e acumulativas de longo tempo;

B-Mudanças súbitas e profundas associadas com a emergência do táxon superior.

Gow (1985), porém, posicionou-se no sentido de que “somente mudanças súbitas e profundas suportariam as complexas apomorfias mamalianas”, o que sugere uma trajetória evolucionária diferente da proposta por autores como Luo (1994).

Luo et al. (2002), sugerem que a transformação dos caracteres apomórficos mamalianos fundamentais foram adquiridos “passo a passo”, em clados transicionais como Tritheledontidae--Sinoconodon. Portanto, a transição mamaliana teria ocorrido em um padrão sucessivamente menos inclusivo nos níveis hierárquicos dos cinodontes, onde os triteledontídeos e os mamalia seriam “grupos-irmãos”. Luo et al. (2002), assumem que “a transição cinodonte-mamífero poderia ser mais bem caracterizada em uma evolução de uma mais eficiente mastigação, em um contexto carnívoro-insetívoro”. Em trabalhos mais recentes, Luo (2007), incluem Brasilitherium como táxon irmão de Mammalia. 138

Caracteres dentários mamalianos mais derivados foram encontrados entre os primitivos “triconodontes”, entre os quais chama a atenção o aparelho estomatognático de Morganucodon oehleri (Kermack et al., 1973, 1981; Crompton & Parkyn, 1962; Crompton & Luo, 1993 e Parrington, 1971). Neste táxon, a especialização e a diferenciação ao longo das fileiras dentárias, associadas com um padrão difiodonte de substituição dentária e uma incipiente articulação dentário/articular-esquamosal, sugerem uma feição avançada na transição cinodonte-mamífero (FIG. 57).

FIGURA 57 - Reconstrução do Dentário de Morganucodon. A-dentário esquerdo, em vista lateral; B-dentário direito, em vista medial; C-dentário direito, em vista medial. Abreviaturas: add fo-fossa adutora; ang-angular; ant p cor f-faceta para a bossa anterior do coronóide; art f-faceta articular; art fo-fossa articular; art-articular; c-canino; cond p-processo condilar; cond-côndilo; cor b-bossa coronóide; cor f-faceta para o coronóide; cor h-sulco coronóide; cor-coronóide; d fl prat-faceta para a lâmina dorsal do pré-articular; de tr-face interna do dentário; diag r-borda diagonal; m-molar; g de lam-ranhura da lâmina dental; I-incisivo; inf de for-foramen dentário inferior; infraart p-processo infra-articular; l r de-borda lateral do dentário; m fl-lâmina medial; ment for-foramina mental; p-pós-canino; prart-pré-articular; ref lam ang-lâmina reflexa do angular; sur-surangular; sym de-sínfise do dentário; sym for- foramen sinfiseal; sym r-borda sinfiseal (modificado de Kermack et al., 1973).

139

Explicitamente, Kermack et al. (1973) mostraram-se surpresos ao constatar similaridades entre a morfologia das estruturas dos ossos pós-dentários de Morganucodon e as de alguns cinodontes que os autores consideram avançados como Cynognathus, onde as estruturas citadas não mostram mudanças proporcionais em complexidade, tamanho ou resistência.

Como podemos observar não existe um consenso de quais seriam os padrões evolutivos aplicáveis às dentições transicionais. Assim, não se pode traçar uma adequada trajetória, desde o padrão mais primitivo polifiodonte para o padrão mamaliano mais complexo, que possa ser aplicável aos táxons de cinodontes envolvidos na transição cinodonte-mamífero. Este quadro apenas apresenta as inevitáveis propostas de “redução” no número das dentições, sem que um padrão seja claramente estabelecido.

12.3-A DENTIÇÃO DOS TRITELEDONTÍDEOS

O primeiro cinodonte Tritheledontidae sul-americano descoberto foi Chaliminia musteloides Bonaparte (1980), do Triássico Superior da Província de La Rioja, Argentina. Chaliminia apresentava “heterodontia evidente ao longo das fileiras dentárias” e uma diferenciação dentária assim distribuída: 3 incisivos superiores e 3 incisivos inferiores; 1 canino superior e 1 canino inferior; 12 ou 13 pós-caninos superiores e, como supunha o autor, o mesmo número nos rodetes dentários inferiores. A zona mediana aos incisivos superiores era edentada, para a acomodação dos incisivos inferiores (Bonaparte, 1980; Martinelli & Rougier, 2007). Seus pós-caninos superiores apresentavam-se comprimidos no sentido vestíbulo-palatino e com oclusão complexa. Os pós-caninos inferiores também são comprimidos no sentido vestíbulo-lingual, apresentando uma cúspide alta e três cúspides secundárias, que diminuem de altura distalmente, todas dispostas em um mesmo plano parassagital.

Diferentemente de Bonaparte (1980), Martinelli & Rougier (2007) mencionaram que Chaliminia musteloides apresentaria 4 incisivos superiores (3 incisivos na pré-maxila e 1 incisivo no maxilar), 1 canino e ao menos 13 pós-caninos. A dentição inferior seria composta por 3 incisivos, 1 canino e, no mínimo 10 pós-caninos. 140

É marcante a presença de uma zona edentada mediana entre os incisivos superiores, os quais se apresentam em forma cilíndrica, sendo que o incisivo central seria bem maior e bastante mais projetado para frente que os demais. Os incisivos inferiores são maiores que os superiores e muito proodontes, de tal forma que, em oclusão, ocupariam o diastema mediano nos pré-maxilares, formado entre os incisivos superiores.

Os caninos superiores são pequenos e pouco evidentes (Bonaparte, 1980, Martinelli & Rougier, 2007).

Os pós-caninos superiores aumentam de volume no sentido anteroposterior e se apresentam em fila contínua e com anatomia similar, qual seja: a face vestibular é convexa; presença de uma cúspide principal grande mediana, mais labialmente colocada; a cúspide secundária anterior é pequena e posicionada lingualmente à cúspide principal; a cúspide acessória posterior é discreta ou ausente; presença de uma borda “sectorial” lingual retilínea que se articula com a superfície externa dos pós-caninos inferiores; ausência de cíngulos (Bonaparte, 1980).

Os pós-caninos inferiores também são comprimidos no sentido vestíbulo- lingual; apresentam uma cúspide anterior principal mais elevada; as cúspides secundárias podem ser em número de até três e diminuem suas alturas e seus volumes distalmente; apresentam maiores diferenciações anatômicas na coroa, colo e raiz dentários; apresentam superfícies de desgaste oclusal nas bordas laterais (Bonaparte, 1980).

No trabalho de Bonaparte (1980) referente a Chaliminia musteloides não foram feitas referências ao padrão geral de substituição dentária, tendo sido citado apenas o provável estágio de substituição do canino superior, sem especificar se um ou ambos caninos estariam nesta fase. Adicionalmente, devemos salientar que, apesar da precisa descrição realizada pelo autor, as imagens das estruturas dentárias (Figura 58) apresentadas no trabalho são poucas e sem maior detalhamento.

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FIGURA 58 - Composição esquemática do crânio de Chaliminia musteloides Bonaparte (1980) em norma lateral. Abreviaturas: ART-articular; D-dentário; F-frontal; J-jugal; L- lacrimal; MX-maxilar; N-nasal; P-parietal; PART-pré-articular; PMX-pré-maxilar; SC- esquamosal (modificado de Bonaparte, 1980).

Como se pode observar, os triteledontídeos já apresentavam as estruturas dentárias com uma marcada diferenciação anatômica e profunda regionalização funcional, além de mostrar também padrões de fisiologismo oclusal muito complexos. Bonaparte (1980) referiu que, em todos os espécimes onde há material ósteo-dentário, observa-se a presença de várias superfícies e facetas dentárias de desgaste ocusal, como nos incisivos centrais inferiores e nos pós-caninos.

Em 1980, Gow comparou as dentições de Pachygenelus monus Watson (1913), Diarthrognathus broomi Crompton (1958), e Tritheledon riconoi Broom (1912). Em Pachygenelus monus, Gow (1980) conseguiu destacar diversos aspectos anatômicos e histológicos que considerava estarem relacionados à origem dos mamíferos. Entre estes, chamou a atenção para a redução no número de incisivos superiores e inferiores para dois, a presença de facetas de desgaste oclusal e a presença de esmalte dentário de natureza prismática. No mesmo trabalho, o autor também chamou a atenção para o padrão oclusal que ocorre entre os caninos de Pachygenelus (Figura 59), onde o canino inferior oclui em frente ao canino superior, em posição mais “superficial” (bucal). Esta situação oclusal foi entendida por Gow (1980) como uma posição derivada de oclusão dos caninos, característica encontrada somente entre os mamíferos.

Kemp (2005) também considerou esta característica como típica dos mamíferos, uma vez que os caninos inferiores apresentam facetas fisiológicas de desgaste oclusal indicativas que estes dentes efetivamente trabalhavam contra a face meso-labial do 142

canino superior, enquanto que, primitivamente, este contato se fazia na face palatina do superior.

FIGURA 59 - Dentes pós-caninos superiores de Pachygenelus monus. As facetas de desgaste oclusal estão marcadas com hachuras. Os pós-caninos estão numerados de 1 a 7 (modificado de Gow, 1980).

Odontologicamente estas “facetas fisiológicas de desgaste” somente seriam formadas pela oclusão contínua entre dentes superiores e inferiores, seguindo um padrão oclusal constante, quadro que Gow (1980), entretanto, considerava compatível com o modelo polifiodonte de “contínuas, alternadas e rápidas substituições dentárias, com um aparente padrão de aumento de complexidade dentária em direção à região posterior”.

Rowe (1993) concordou com a presença de facetas de desgaste oclusal entre os triteledontídeos, embora tenha referido que elas se formaram em um contexto fisiológico mastigatório no qual “o relacionamento entre os dentes superiores e inferiores seria menos intrincado e regular que o que ocorreria entre os demais Eucinodontes”. Isto, em parte, se daria pelo fato de que as sínfises mentonianas dos triteledontídeos permaneceriam não- fusionadas, o que permitiria alguma capacidade de rotação longitudinal de cada mandíbula.

Gow (1980) também fez referência ao fato de que Grine (1979), já havia diagnosticado a natureza prismática do esmalte dos dentes pós-caninos de Pachygenelus 143

monus. Além disso, reconheceu para os triteledontídeos um padrão oclusal (Figura 60 e 61) no qual estes apresentam várias facetas fisiológicas de desgaste, localizadas nas faces internas (faces palatinas) dos pós-caninos superiores e nas faces externas dos pós-caninos inferiores (faces vestibulares), em um conjunto considerado definitivamente heterodonte.

FIGURA 60 - Composição esquemática dos dentes inferiores de Pachygenelus monus. 1-1° pós-canino; 2- 2° pós-canino; 3- 3° pós-canino; 4- 4°pós-canino. As zonas hachuradas representam facetas de desgaste oclusal (modificado de Gow, 1980).

Ao descrever os padrões oclusais do Tritheledontidae Pachygenelus monus, Shubin et al. (1991) definiram um padrão de movimentos dorso-mediais durante a fase de oclusão, o qual seria responsável pelas facetas de desgaste sobre os molares. Além disso, os autores atribuíram um padrão de substituição alternado polifiodonte de substituição dentária para este táxon e chamaram a atenção para a presença de esmalte mais espesso nas superfícies não oclusivas e para a ausência de esmalte sobre as facetas oclusais. Esta organização anátomo–histológica de distribuição diferenciada de esmalte proveria os dentes com um sistema de auto-afiamento. Segundo Shubin et al. (1991), este padrão oclusal seria compatível com as articulações crânio-mandibulares avançadas de Pachygenelus e Diarthrognathus, nas quais o dentário já teria um contato com o esquamosal, situando-se lateralmente à articulação entre o quadrado e o articular. Este padrão seria homólogo ao que ocorreria nos primeiros mamíferos. 144

FIGURA 61 - Dentário direito de Pachygenelus monus Watson, SAM-PK-8404. Stormberg Group, Africa do Sul, Jurássico Inferior (Cortesia de Dra. Marina Bento Soares-UFRGS).

Segundo Kermack (1973) e Kemp (2005), os molares de Pachygenelus não fariam somente um corte usual direto “em tesoura”, mas poderiam apresentar uma ação unilateral dos dentários, padrão mastigatório este encontrado nos primeiros mamíferos. Este modelo oclusal mamaliano apresentaria diversos graus de diferenciação nas trajetórias e padrões oclusais, mesmo entre os mamíferos viventes.

Hopson (1971) definiu que a redução numérica dos dentes incisivos inferiores, para quatro ou até para três dentes, seria também um caráter de diagnose para mamíferos. Quanto aos Tritheledontidae, eles são descritos como sendo cinodontes carnívoros avançados, caracterizados pelo reduzido número de incisivos (Watson, 1913). Porém, como eram contemporâneos dos primeiros mamíferos, eles não poderiam estar relacionados à origem mamaliana (Gow, 1980).

Além do estudo de Gow (1980), indicações de uma dieta unicamente carnívoro-insetívora para os triteledontídeos também foram referenciadas em outros trabalhos, como Kermack (1973), Bonaparte et al. (2001), Soares (2003), Kemp (2005), Martinelli et al. (2005), e Martinelli & Rougier, 2007. Em todos estes trabalhos, estas diagnoses referentes ao tipo de diesta parecem ser resultantes de avaliações anatômicas dos dentes pós-caninos como “dentes de corte”, ou de “aspecto sectorial”.

Segundo Gow (1980), os movimentos mastigatórios dos triteledontídeos seriam semelhantes aos que ocorrem nos carnívoros atuais, como canídeos e felinos, que funcionam promovendo o corte das presas entre os dentes inferiores e seus antagonistas superiores através de movimentos de lâminas de tesouras. Neste contexto carnívoro-insetívoro, Gow 145

(1980) considerou a dentição dos triteledontídeos como “não especializada” e que estes caracteres seriam “achados inesperados e surpreendentes para um táxon de cinodontes carnívoro-insetívoros, com padrão de substituição dentária alternada e rápida” (Gow, 1980).

Segundo Crompton (1958, apud Gow, 1980) os dentes pós-caninos de Diarthrognathus broomi são semelhantes aos de Pachygenelus monus - embora se apresentem com uma maior expansão linguo-bucal - mas seriam um pouco mais especializados e colocados mais oblíquos nas mandíbulas. A ausência de facetas de desgaste seria uma evidência de substituição dentária alternada.

No caso de Tritheledon riconoi Broom (1912), Gow (1980) destacou que seus dentes superiores, embora se apresentem comprimidos em sentido vestíbulo-lingual, são “pouco ou nada parecidos” com os dentes de Chaliminia musteloides e Pachygenelus monus. Esta dentição seria mais assemelhada aos dentes pós-caninos superiores de Diarthrognathus, onde uma primeira cúspide principal é dominante sobre uma seqüência de pequenas cúspides dispostas lingualmente, que terminam em uma borda mesial. Gow (1980) considerou ainda que os dentes “sectoriais” pós-caninos de Pachygenelus monus são dotados de um cíngulo lingual e representariam estruturas dentárias derivadas, direta ou indiretamente, em relação aos primeiros cinodontes carnívoros como Cynognathus e Trinaxodon.

Crompton & Luo (1993) consideraram a dentição dos triteledontídeos como muito primitiva, apresentando substituições dentárias alternadas, com fusionamentos ósseos das raízes dentárias aos alvéolos e sem uma diferenciação mais evidente entre pré- molariformes e molariformes. O autor referiu ainda que a redução no número de incisivos e a especialização dos mesmos seriam apomorfias dos triteledontídeos.

Kermack (1973) referiu que as dentições dos triteledontídeos (referindo-se a Pachygenelus e Tritheledon) representavam formas extremamente primitivas, e que, adicionalmente, não existiam bons trabalhos descritivos destes táxons.

Entre os cinodontes brasileiros, Therioherpeton cargnini Bonaparte & Barberena (1975) também apresenta um óbvio padrão dentário de pós-caninos de dentes tetra- cuspidados, cuja natureza seria “sectorial”, onde estão ausentes os cíngulos linguais, que os autores consideraram derivados aos dentes de Pachygenelus monus.

Com base nos trabalhos citados, foi possível observar que existiu uma clara predisposição de atribuir dietas insetívoras para todos os táxons de cinodontes e mamíferos ditos transicionais. Kermack (1973), por exemplo, foi taxativo em afirmar que “todos os 146

mamíferos basais do Triássico Superior seriam, indiscutivelmente, pequenos insetívoros”. Em resumo, todos os trabalhos já realizados na diagnose dentária dos triteledontídeos apontaram para uma dentição adaptada à dieta carnívoro-insetívora, na qual os dentes posteriores teriam uma ação de “dentes sectoriais”, funcionalmente adaptados para o corte das substâncias alimentares.

12.4-A PRESENÇA DE OSSO DE FUSIONAMENTO NA DENTIÇÃO DOS TRITELEDONTÍDEOS

Gow (1980), em seu trabalho de revisão de Pachygenelus monus, referiu a presença de osso de fusionamento (attachment bone) em vários dentes dos espécimes observados, preenchendo os espaços cervicais, junto ao ligamento periodontal e, consequentemente, fusionando fortemente os dentes aos seus alvéolos dentários.

A presença de osso de fusinamento estaria heterogeneamente distribuída entre os dentes recém posicionados e entre os dentes mais velhos. Nos dentes mais velhos e desgastados de Pachygenelus, o osso de fusionamento seria notado como um “pequeno anel” que circundaria o colo dos dentes. Os dentes mais jovens não apresentariam sinais de fusionamento ósteo-dental (Gow, 1980; Shubin et al., 1991).

Gow (1980) conseguiu, inclusive, estabelecer que, em alguns dentes jovens e não desgastados, este osso de fusionamento estaria ainda em fase de deposição. Curiosamente, o autor utilizou a quantidade de osso de fusionamento como um co-fator para estabelecer a idade dos dentes e a seqüência de substituição dentária:

Notadamente a substituição dentária seria em padrão alternado e a seqüência de erupção dos dentes pode ser determinada de acordo com o grau de desgaste, a altura do cingulum sobre a borda alveolar e pela extensão do desenvolvimento do osso de fusionamento. Neste mesmo trabalho, Gow (1980) não referiu quaisquer indícios de ter encontrado osso de fusionamento em Diarthrognathus broomi Crompton (1958) ou em Tritheledon riconoi Broom (1912) e não fez qualquer inferência quanto à ausência do mesmo nestes dois táxons. 147

Este processo de fusionamento ósseo dos dentes molares aos dentários foi considerado por Rowe (1993) como uma reversão de caráter dos triteledontídeos, no sentido de retorno a uma condição mais primitiva (plesiomórfica) encontrada entre os pré- eucinodontes, via anquilose alvéolo-dentária. Nos eucinodontes, as longas raízes dentárias passaram a ser ancoradas aos alvéolos através de ligamento periodontal, em um padrão chamado de “gonfose”. Este novo sistema gonfodonte apresentaria um determinado grau de mobilidade dentro do alvéolo que seria crítico, no sentido de permitir uma oclusão mais precisa, mais complexa e mais elaborada e estaria associado a uma redução das taxas de substituição dentária e ao início da oclusão bilateral (Rowe, 1993).

A descrição de Riograndia guaibensis (Bonaparte et al., 2001) não apresentou qualquer referência à existência ou ausência de fusionamento ósteo-dentário, o mesmo ocorrendo na descrição de Irajatherium hernandezi (Martinelli et al., 2005). Entretanto, Luo (1994), faz referência à presença de osso de fusionamento fixando os dentes dos triteledontídeos (Tritheledon riconoi e Pachygenelus monus) e o considera como um caráter primitivo que, em conjunto com outros caracteres mais mamalianos, tornariam a dentição deste táxon um verdadeiro “mosaico”.

No trabalho de reestudo de Chaliminia musteloides realizado por Martinelli & Rougier (2007), os autores também referiram a presença de osso de fusinamento, o qual ocorreria, principalmente, no entorno dos dentes posteriores.

Conceitualmente, não é possível discernir “osso de fusionamento” e “cemento dentário” quando estes são citados pelos diversos autores, devido à falta de informações oriundas de trabalhos de histologia. Isto, por sua vez, decorre do fato de que os fósseis são raros e, consequentemente, raras são as oportunidades de se efetuar este tipo de pesquisa.

Entretanto, do ponto de vista embriológico, seria incongruente localizar o típico tecido “cemento dentário” sobre as estruturas de esmalte, uma vez que este tecido se forma a partir da diferenciação das células relacionadas à camada de recobrimento do folículo dentário (Berkovitz et al., 2004). As funções embriológicas das células externas do folículo dentário cessariam após a formação e erupção dentárias.

Por outro lado, o tecido ósseo de fusionamento é um tecido de natureza reticular, reconhecidamente formado a partir dos ossos de origem intramembranosa, que apresentariam o necessário potencial de diferenciação se fisiologicamente estimulados 148

(Cabreira, 2004; Enlow, 1969; Francillon-Vieillot et al., 1990). Consequentemente, do ponto de vista embriológico, este tecido é heterocronicamente derivado de outro tecido ósseo.

Com base nisso, a designação “osso de fusionamento” é utilizada neste trabalho em referência ao tecido que envolve e fusiona as estruturas dentárias, ossos dentígeros e alvéolos dentários. 149

13-DENTIÇÃO E EVOLUÇÃO MAMALIANA

13.1-DIFIODONTIA E DESENVOLVIMENTO ONTOGÊNICO

A dentição polifiodonte (Figura 62) é o modelo de substituição dentária característico dos vertebrados basais, no qual as trocas de dentes ocorrem alternadamente ao longo da fileira de dentes, durante toda a vida do animal, em diversas seqüências definidas de eventos. Estes mesmos padrões regulares de substituição dentária foram descritos por Loomis (1990, apud Edmund, 1960) como estando presentes em peixes, anfíbios e répteis. Segundo Edmund (1960) a presença de padrões de substituições dentárias em répteis foram iniciados pelo trabalho que Parrington publicou em 1936, onde o Autor descreve, pela primeira vez, a existência de “ondas de substituições dentárias alternadas” em um mosassauro. Mais tarde, Romer e Price (1940) estabelecerem que nos répteis duas ondas alternadas estivessem perfeitamente sincronizadas e permitiriam que, enquanto uma substituição está ocorrendo em um “locus”, o dente seguinte estaria em estágio funcional (Edmund, 1960). Nestes casos as “ondas de substituição” dos dentes se dão em um sentido rostro/caudal, ou seja, em uma mesma onda de substituição os germes dentários mais rostrais devem estar em uma fase organogênica mais desenvolvida quando relacionados aos dentes mais caudais desta mesma onda (Edmund, 1960; Romer et al., 1981).

FIGURA 62 - Face interna da mandíbula de Ophiacodon, sinápsido primitivo. Em A podem ser observada a alternância de substituição de dentes, em séries pares e impares; Em B e C as 150

séries são constituídas de “ondas de substituição”, em alternância regular (modificado de Romer et al., 1981).

Na dentição polifiodonte ocorre uma tendência no sentido de que os dentes subseqüentes de cada alvéolo seriam gradativamente maiores que os dentes substituídos. Isto ocorreria por que existe a necessidade de que os dentes se tornem progressivamente maiores, na medida em que os crânios reptilianos continuam a crescer indefinidamente (Peyer, 1968; Romer, 1971).

Outros Autores (Osborn, 1970, apud Crompton & Osborn, 1972) sugerem que o seqüenciamento dentário dos répteis atuais ocorre em ondas que se iniciam de trás para a frente da mandíbula, como pode ser observado em embriões reptilianos.

Os estudos sobre os processos de substituição entre os terápsidas primitivos sempre apresentaram dificuldades de serem aferidos com precisão. As dentições dos terápsidas apresentavam padrões de substituição dentária que diferiam dos répteis. Hopson (1963) refere que entre os pelicossautos ocorreria um padrão alternado, onde as ondas de substituição iniciavam da região posterior das fileiras dentárias e, se dirigiam para a região mais rostral. Os padrões de substituições dentárias entre outros grupos de terápsidas também seriam extremamente difíceis de descrever. Entre os bauriamorfos escapolosaurídeos (Scapolosaurus hoffmani) o padrão também seria alternado (Hopson, 1963).

Entre os gonfodontes e entre os tritilodontídeos os dentes pós-caninos seriam acrescidos da frente para trás, porém sem maiores evidências de que seriam substituídos posteriormente, ficando claro que eles apresentariam taxas de substituição dos pós-caninos fortemente “reduzidas”. Entre os cinodontes gonfodontes os incisivos e caninos seriam substituídos alternadamente e este padrão seria retido entre todos demais componentes do táxon (Hopson, 1963).

A origem do padrão de substituição tipicamente placentário mamaliano segundo Hopson (1963) teria surgido pela simples redução do número total de “dentições” para duas, onde os dentes decíduos seriam acrescidos dos molares permanentes para constituir uma dentição completa e, os dentes anteriores (incisivos, caninos e pré-molares permanentes) constituindo uma dentição parcial.

Segundo Romer & Parsons (1981) a dentição dos mamíferos quando comparada aos vertebrados mais “inferiores” tornou-se gradativamente muito diversificada e 151

mais complexa. Os vertebrados de natureza reptiliana mais primitiva apresentariam uma dentição homodonte, constituída por numerosos dentes monocuspidados e que apresentavam um padrão de substituição dentária dita polifiodonte.

Os mamíferos mostrariam dentições mais complexas nas quais ocorreriam processos elaborados para a formação das estruturas histológicas e anatômicas dentárias e peri-dentárias. As dentições mamalianas não derivadas são tipicamente heterodontes, onde os dentes se apresentam anatomicamente mais complexos, tanto na forma das suas coroas como das suas raízes. O modelo de substituição dentário mamaliano se caracterizaria por apresentar uma única substituição da dentição pós-natal (dentição-de-leite), que ocorreria na região anterior da cavidade oral, com o acréscimo dos molares permanentes (Peyer, 1968; Romer, 1971; Romer & Parsons, 1981; Kemp, 2005).

Crompton & Osborn, 1972, também referem que na dentição pós-canina dos embriões dos mamíferos o primeiro molar decíduo é sempre o último dente decíduo a ser formado, com o que, neste segmento dentário, estes dentes e os pré-molares (permanentes) se formam em seqüência póstero-anterior, e que somente os molares permanentes se formariam em seqüência ântero-posterior.

Nos mamíferos atuais a erupção total dos dentes decíduos coincide com o término do período de lactação. Devido à lactação o crânio e os ossos dentários dos neonatos mamalianos aumentam rapidamente de tamanho, gerando os espaços necessários para os incisivos, caninos e pré-molares decíduos. Os ossos dentígeros dos mamíferos continuam em rápido desenvolvimento devido à amamentação e aos estímulos da mastigação, e então os dentes decíduos são substituídos por outros dentes permanentes. Mais tarde os últimos molares erupcionam em seqüência caudal aos arcos dentários, e as suas erupções quase que coincidem com o término do crescimento dos ossos maxilares e dos ossos dentários (Peyer, 1968; Romer, 1971; Kemp, 2005). Rougier et al. (1998) também atribuem à variabilidade dos padrões difiodontes das substituições dentárias nos Eutérios, Delthatérios e outros táxons de Metatérios mesozóicos, como adaptações às diferenças nos padrões de desenvolvimento ontogênico cranial e diferenças nos modelos de cuidados parentais mamalianos. Adicionalmente, os autores referem que estes táxons apresentavam uma condição difiodonte “primitiva” na qual a totalidade dos pré-molares era substituída antes que os últimos molares chegassem à oclusão.

O surgimento deste modelo difiodonte tipicamente encontrado nos mamíferos (Figura 63) parece estar relacionado com a evolução de um padrão mastigatório mais eficiente 152

no corte e na trituração dos alimentos e, principalmente com a manutenção de um sistema complexo de movimentos a partir de reflexos condicionados, com origem nos proprioceptores do ligamento periodontal (Romer, 1971).

FIGURA 63 - Disposição, o número e os tipos de dentes de um mamífero placentário primitivo. Em A-dentes decíduos (de-leite), abreviaturas: di-incisivo decíduo; dc-canino decíduo; dm-molares decíduos (molares-de-leite). Em B-dentição permanente, abreviaturas: i- incisivos; c-caninos; p-pré-molares; m-molares (modificado de Romer, 1971).

A existência de um tipo de articulação dentária chamada gonfose onde o ligamento periodontal apresenta um sistema de neuro-controle da espessura do “espaço” entre o dente e o alvéolo, permite que os movimentos dentários mais complexos à que estão sujeitos cada órgão dentário, sejam transmitidos e analisados pelo centro nervoso localizado no tronco cerebral (Ten Cate, 2001). Assim, as gerações de impulsos neuro-motores associados à mastigação podem ser produzidos de forma adequada, apesar da grande quantidade de estruturas ósteo- musculares associadas aos movimentos mastigatórios e a deglutição. Os movimentos mandibulares ritmados estão associados às ações das musculaturas relacionadas à mastigação, à movimentação da língua e dos músculos das bochechas e são originados através de estímulos dos centros nervosos superiores e também por estímulos periféricos, gerando um “padrão bucal rítmico” (Berkovitz et al., 2004).

Novos estímulos periféricos excitatórios e inibitórios podem ser gerados a partir de várias estruturas, como articulação temporo-mandibular, mucosas orais, linguais, gengivas, dentes e faringe. A hipótese mais aceita atualmente é de que os estímulos sensoriais gerados pela oclusão sobre alimentos duros provocam nova geração de estímulos neuronais oclusais, enquanto o fechamento dos dentes sobre bolo alimentar macio promove a movimentação da 153

língua e o subseqüente transporte do alimento, provocando a deglutição e cessando a atividade rítmica mandibular (Berkovitz et al., 2004).

Em síntese, o sistema polifiodonte seria ineficiente para estabelecer um padrão mastigatório, pois com a troca constante dos dentes e das estruturas periodontais geradoras e controladoras destes estímulos, os sistemas neuronais mastigatórios não seriam precisos (Berkovitz et al., 2004).

A difiodontia constituir-se-ia, portanto, em um modelo complexo de substituição dental no qual uma dentição chamada decídua ou “dentição-de-leite”, que surge nos filhotes, é posteriormente substituída por uma “segunda onda de dentes”, que constituí a “dentição permanente”, com a qual os mamíferos adultos subsistem por toda a sua vida (Paula Couto, 1979; Gow, 1985; Hopson, 1971; Peyer, 1968; Ferraris & Muñoz, 2005).

Neste modelo dentário difiodonte que é aceito pela maioria dos Autores, a segunda geração de dentes compreenderia todos os germes dos dentes anteriores permanentes (incisivos, caninos e pré-molares), acrescida dos germes dentários permanentes dos molares permanentes, os quais, durante a ontogenia, não seriam substituídos ao longo da vida dos mamíferos (Paula Couto, 1979; Gow, 1985; Ten Cate, 2001).

Entretanto, alguns autores como Edmund (1960), Hopson (1963), Peyer (1968), Romer & Parsons (1981) e Lucas (2004) apresentam a possibilidade, na qual os dentes molares permanentes mamalianos seriam remanescentes formados na primeira geração de dentes, os quais seriam retidos durante a vida dos mamíferos. Enquanto isto, os molares da primeira geração (decíduos) seriam substituídos pelos premolares (permanentes), que por definição seriam pós-caninos de segunda geração.

Hopson (1963) sugere que o padrão de substituição mamaliano definitiva (difiodontia) deveria ter surgido tardiamente na evolução, após diversos táxons já terem conseguido ultrapassar a “fronteira” réptil-mamífero. Hopson (1963) acreditava que a redução definitiva da dentição para apenas duas sucessões dentárias teria surgido entre a linhagem dos “Ictidosauria” (atuais Tritheledontidae). O Autor sugere, também, que a origem do padrão mamaliano placentário de substituição dental deve ter evoluído diretamente de um padrão de substituições múltiplas.

Neste caso, segundo Romer & Parsons (1981), nos mamíferos ocorreriam dois “conjuntos” dentários, onde o segundo conjunto seria incompleto, pela ausência de molares de substituição, e desta forma, embriologicamente, a dentição mamaliana representaria partes das 154

duas gerações de dentes: dentes decíduos da primeira geração (molares) e dentes da segunda geração (incisivos, caninos e premolariformes permanentes) (FIG. 64).

FIGURA 64 - Desenho esquemático mostrando a dentição superior esquerda “definitiva” de um mamífero placentário e a sua natureza embriológica mista. Em A Todos os dentes são formados. Em B, ocorre apenas a substituição de todos os dentes ante-molares e os molares “da primeira geração” continuam no arco dental (modificado de Romer & Parsons, 1981).

Como resultado deste evento embriológico pode-se citar o fato de que, usualmente, entre os mamíferos, os dentes molares da “dentição-de-leite” e os molares “permanentes” (dentes da primeira geração) apresentam estruturas anatômicas coronais e radiculares complexas. Enquanto isto, geralmente os pré-molares (dentes da segunda geração) são dentes de anatomia coronal/radicular menos elaborada e tendem apresentam menor volume. Estas evidências podem ser observadas de forma mais acurada através de estudos da dentição humana (Ferraris & Muñoz, 2006).

Crompton & Osborn (1972) ao descreverem a dentição de Thrinaxodon liorhinus também observaram estas discrepâncias volumétricas nos dentes pós-caninos de substituição, e atribuíram este evento ao fato de que os dente sucessórios teriam uma formação mais tardia, advindo deste fato o menor tamanho e a menor complexidade anatômica. Surpreendentemente os Autores reconhecem que este padrão morfológico de sucessão dentária estaria também presente entre os mamíferos.

Portanto, os mamíferos não apresentam substituição de seus molares e seus molariformes decíduos são substituídos por dentes de anatomia oclusal menos complexa e de menor volume, ficando a substituição dentária restrita a apenas duas “ondas” de dentes onde o número de dentes de substituição, per locus, seria muito inferior aos que ocorrem nos sistemas polifiodontes dos cinodontes não-mamalianos (Hopson, 1971; Paula Couto, 1979; Gow, 1985; Guedes-Pinto, 1988). 155

Em estudos realizados em humanos notou-se uma discrepância volumétrica entre o volume dos caninos e molariformes decíduos e permanentes. Nesta localização os dentes decíduos apresentam volume mésio-distal maior que aquele apresentado pelos dentes caninos e premolariformes da dentição permanente. Este padrão não ocorre na região dos dentes anteriores onde a presença de diastemas entre os pequenos dentes decíduos garantem os espaços necessários à erupção de dentes permanentes mais volumosos (Guedes-Pinto, 1998).

Na dentição permanente a ausência de espaços interdentários proveria a manutenção do correto posicionamento dos dentes, permitindo uma oclusão dentária uniforme e constante, pois neste padrão de contato mesio-distal permanente os dentes não podem “migrar” sobre os rodetes alveolares. Tais características são consistentes com os padrões de desgastes oclusais mais complexos encontrados entre morganucodontídeos e kuehneotherídeos, que tendiam a desenvolver sistemas mastigatórios mais complexos (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

O modelo dental chamado de monofiodontia também pode ocorrer entre mamíferos em casos em que a primeira dentição “decídua” falhe em sua formação, através de mecanismos de reabsorção durante o processo embriônico, o que ocorreria antes do nascimento (Peyer, 1968).

Entre certos pinípedes (Phoca vitulina), por exemplo, a dentição decídua é produzida e reabsorvida durante a fase embrionária, e jamais atinge um estágio funcional. Desta forma este táxon torna-se virtualmente monofiodonte, sendo que o mesmo ocorre entre as baleias com dentes (Paula Couto, 1979).

Tipicamente, os mamíferos apresentariam um elaborado modelo de substituição dentária chamado de difiodontia, no qual uma primeira dentição neonatal seria substituída, organizadamente, por uma “segunda onda” de dentes, que permaneceriam funcionais pelo restante da vida do animal. Esta segunda onda de dentes pode ter um número menor de dentes que aqueles surgidos durante a primeira dentição neonatal, o que ocorre muitas vezes na zona dos pré-molares (Paula Couto, 1979). Segundo Peyer (1968) os padrões de substituições dentárias difiodontes seriam diferentes entre carnívoros e herbívoros.

Peyer (1968) relata que entre a maioria dos mamíferos insetívoros primitivos (Hemicentetes) a dentição decídua tenderia a ser funcional até mais tardiamente, até durante a primeira fase da idade adulta, quando então seria gradativamente substituída pela dentição 156

permanente. Enquanto isto, entre os herbívoros ocorreria uma tendência de que a dentição decídua seja precocemente substituída, ainda com os animais em fase de transição da idade juvenil para jovem adulto. Estes aspectos heterócronos ligados à dieta dos táxons podem interferir nos padrões de erupção dental e nas características de desgastes oclusais.

Outra característica importante considerada por Peyer (1968) que diferencia grupos insetívoros e herbívoros estaria relacionada ao número de dentes. Os insetívoros tendem a apresentar um elevado número de dentes, enquanto que os herbívoros apresentariam um menor número de dentes.

Com isto os métodos de diagnose dos padrões de substituição dos dentes dos mamíferos são passíveis de serem tendenciados, caso não sejam levados em consideração estes elementos de análise.

Associadamente ao processo de difiodontia os mamíferos mostram uma profunda diferenciação anatômica dos dentes (Peyer, 1968; Hildebrand, 1995; Kemp, 2005). Com isto, as especializações dentárias funcionais seriam evidentes, e regionalizadas nos rodentes alveolares dentários mandibulares e maxilares, com dentes diferenciados em incisivos, em presas (caninos), pré-molares (pós-caninos) e molares.

Esta diferenciação entre premolares e molares não foi considerada por outros autores (Brink, 1957a, b apud Hopson, 1971; Brink, 1963b). Esta abordagem de natureza “odontológica” foi realizada por Hopson (1971), ao descrever a substituição dentária pós- canina no cinodonte gonfodonte Diademodon. O autor observou as diversas correlações entre os padrões de desenvolvimento craniano e os ritmos e as seqüências de substituição dentária. Hopson (1971) considerou, então, que o padrão de substituição dental de Diademodon diferia dos padrões reptilianos, sem ter ainda um padrão característico dos mamíferos.

Diferentemente dos dentes encontrados nos vertebrados basais, estes dentes apresentam coroas dentárias mais elaboradas, com uma definição e melhor separação anatômica entre a coroa e a raiz dentária, através de uma constrição chamada de “colo”, que passa a constituir a zona cervical dos dentes dos mamíferos.

Também pode ser observada nos mamíferos uma maior complexidade das estruturas radiculares e da anatomia interna dos dentes, onde as câmaras pulpares e as cavidades radiculares são bem definidas (Peyer, 1968).

Dentes com duas ou mais raízes bem definidas também caracterizam este processo de maior complexidade dentária mamaliana. Assim, a difiodontia não existe apenas 157

como um padrão de substituição dentária especializado. Fatores como a heterodontia, a lactação, a mastigação, a encefalização crescente e outros, compõem um quadro complexo de sistemas anatômicos e fisiológicos que co-evoluiram dentro da linhagem Sinapsida (Oftdal, 2002).

Sobre este sistema dentário difiodonte Kemp (2005) fez um questionamento extremamente importante:

A difiodontia dos mamíferos teria ocorrido em conjunto com um osso dentário já hegemônico na mandíbula, ou poderiam ter existido outras formas diferentes de substituição dentária durante as fases evolutivas transicionais? Como a difiodontia teria se desenvolvido através de modelos de substituições dentárias até o modelo difiodonte atual? Como o fisiologismo dos sais minerais (metabolismo do cálcio) poderia ocorrer durante a lactação, sem prejudicar outros mecanismos, como a mineralização e desmineralização de tecidos duros, como os ossos e dentes, ou a não perfeita formação de cemento radicular, dentina e do esmalte dentários? Tarlo (1964, apud Hopson, 1971) sugeriu que o processo de evolução da dentição difiodonte estaria profundamente relacionado com o desenvolvimento de um complexo neuro-motor capaz de realizar a atividade oclusal, de forma a constituir um sistema mastigatório eficiente e eficaz. E, Hopson ainda refere que:

“a difiodontia mamaliana teria evoluído em um estágio tardio, e estaria relacionada diretamente com a origem dos padrões mamalianos de crescimento ontogênico, e com a origem dos padrões mamalianos de cuidados parentais”.

Kielan-Jaworoswska et al. (2004) alegam que as taxas de desenvolvimento cranial pós-nascimento dos mamíferos excedem às do esqueleto pós-cranial, e que o final de crescimento do crânio coincide com a erupção do último molar. Estes padrões estariam correlacionados diretamente com a possibilidade de lactação entre as linhagens mamalianas extintas. Em relação aos cinodontes não-mamalianos são atribuídos processos de substituição dentária alternada, com diversas gerações de dentes, em padrão similar ao que ocorre nos Diápsidas.

Os autores fazem uma direta comparação entre o Tritheledontidae Pachygenelus monus e o Metatheria Alphadon, e demostram através de um diagrama (Figura 65) os respectivos padrões de substituição dentária.

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FIGURA 65 - Composição esquemática dos padrões de substituições dentárias em Pachygenelus monus e Alphadon. (A) substituição dentária alternada reptiliana em Pachygenelus; (B) substituição dentária difiodonte em Alphadon. Abreviaturas: dp, pré- molariforme decíduo; p-pré-molariforme (dente permanente); dpc-pós-caninos decíduos rpc- pós-caninos de substituição; m-molar (modificado de Kielan-jaworowska et al., 2004).

Nesta descrição não foram indicados os meios de diagnóstico utilizados para acessar as exatas localizações dos embriões dos dentes de substituição de Pachygenelus monus e Alphadon, e restaram não avaliados os padrões de substituição dos dentes mais anteriores i1, i2, (i3) e caninos.

Hopson (1967) refere que os cinodontes do Triássico Inferior apresentariam comportamentos neonatais semelhantes aos dos répteis. Assim, logo após nascerem de seus ovos, eles se mostrariam totalmente ágeis e capazes de buscar a própria alimentação, como poderia ser inferido pelas dentições de muitos cinodontes juvenis, que se apresentavam totalmente funcionais. Segundo o Autor, isto seria uma evidência de que os cinodontes não proviam uma alimentação supletiva, através de lactação, aos seus filhotes.

Hopson (1967) infere, ainda, que a ausência de suplementação láctea aos filhotes de cinodontes impediria o seu rápido desenvolvimento neonatal e, consequentemente, não permitiria o estabelecimento uma dentição difiodonte, nos padrões mamalianos. Isto ocorreria porque a “drástica limitação do número de substituições dentais estaria diretamente relacionada ao rápido crescimento craniano dos mamíferos”.

Broom (1913 apud Hopson, 1971) e Hopson (1967) fazem uma surpreendente descrição de um provável padrão de substituição dentária “mamaliana” para Diademodon platyrhinus. Ele notou a substituição de incisivos, caninos, e pré-molares cônicos, mas não observou substituição dos molares. Entre os cinodontes não-mamalianos os tritylodontídeos também seriam táxons que poderiam apresentar padrão de substituição dentária difiodonte (Cui & Sun, 1987 apud Kielan-Jaworowska et al., 2004). 159

Porém, Kielan–Javorowska et al. (2004) referem que ainda restam algumas dúvidas quanto aos padrões das substituições dentárias que ocorreriam entre os cinodontes não-mamalianos:

Restam poucas dúvidas que os cinodontes apresentassem um modelo reptiliano de crescimento indeterminado. Isto pode ser inferido porque os animais maiores apresentavam mandíbulas em crescimento ao mesmo tempo em que os dentes sucessores maiores substituíam precursores de menor volume, em zonas mais caudais dos ossos dentígeros. Porque a substituição dentária prossegue entre os indivíduos adultos dos menores cinodontes conhecidos, é improvável que os cinodontes não-mamalianos tenham desenvolvido a lactação (Crompton, 1963; Hopson, 1971; Osborn & Crompton, 1971; Osborn, 1973; Crompton & Luo, 1993). Para Kemp (2005) a difiodontia aparente dos morganucodontídeos poderia representar um modelo semelhante ao tipo de dentição reconhecidamente mamiferóide, juntamente com a oclusão unilateral, a qual permite o exercício de aplicação das forças das musculaturas adutoras de ambos os lados, sobre apenas um lado da mandíbula, resultando em uma força oclusal bem maior.

A meticulosa avaliação de Parrington (1971) quanto aos processos fisiológicos dentários em Eozostrodon e outros fósseis de cinodontes e mamíferos do Triássico Superior, levaram o autor a considerar um modelo mamaliano difiodonte, para a sua substituição dentária baseado nas seguintes linhas de evidências:

A-O estado de desgaste oclusal apresentado pala maioria dos dentes;

B-As evidências comparativas com espécies difiodontes atuais;

C-As evidências negativas de grande quantidade de material avaliado;

D-A grande variabilidade de tamanho dos diferentes tipos de dentes.

A utilização adicional de radiografias e dissecações instrumentais em diversos espécimes permitiu a observação direta e integral das estruturas dentárias, e assim o autor pode inferir com precisão as fases de organogênese dentária, tendo inclusive encontrado coroas de dentes em fases iniciais de desenvolvimento ainda dentro de suas criptas ósseas.

Parrington (1971) também se refere constantemente às suas dificuldades e ao fato de terem sido gastos “anos e anos de trabalho e de estudo” na busca de tais evidências, tendo examinado radiologicamente e dissecado dezenas de amostras de fragmentos de dentários e dentes. Portanto a conclusão final de que Eozostrodon apresentava uma condição difiodonte mamaliana foi resultado de acurada observação de evidências anatomo- 160

fisiológicas, onde os estudos de vários espécimes juvenis e adultos mostraram claramente o desenvolvimento orgânico dental.

O surgimento deste padrão difiodonte somente seria possível dentro de um táxon de tamanho pequeno, com população numerosa e ciclos de vida extremamente curtos, onde o desgaste oclusal não seria um fator demasiado negativo. Neste caso seria plausível o surgimento de novos tipos de prismas de esmalte dentário, com maior espessura, maior dureza e com taxas reduzidas de desgaste oclusal. Isto, sem dúvida, poderia permitir um maior tempo de vida útil das estruturas dentárias (Parrington, 1971; Marivaux et al., 2004).

Os pequenos mamíferos usariam de outras estratégias para evitar o desgaste oclusal, como, por exemplo, prolongando o crescimento de seus incisivos (rodentes). A alimentação através de insetos para evitar submeter seus dentes ao desgaste também seria uma “estratégia usual” de pequenos vertebrados. E, mesmo pela hipsodontia, a qual aumentaria a vida útil das estruturas dentárias em perissodáctilos e nos arctiodáctilos, etc, (Parrington, 1971; Paula Couto, 1979; Marivaux et al., 2004).

Arey (1966) estabeleceu que a mastigação e as substituições dentárias limitadas fossem consideradas como caracteres diagnósticos dos mamíferos. Entretanto, não existem descrições detalhadas de outros padrões de substituição de dentes que estabeleçam dentições secundárias ou terciárias permanentes, exceptuando-se a difiodontia.

A limitação e a redução do número de substituições dentárias associadas ao processo mastigatório levariam a formação de facetas de desgastes nas superfícies funcionais de esmalte dentário. Assim, a presença de facetas de desgaste em molares de indivíduos adultos é um dos caracteres mamalianos considerados por Luo et al. (2001) uma vez que indicariam a ocorrência de função mastigatória e de uma dentição permanente.

Como podemos observar, inúmeros fatores ontogenéticos e fisiológicos estão envolvidos nos processos que levaram ao surgimento da difiodontia. A complexidade das inter-relações destes fatores compõe um cenário de difícil compreensão dos fenômenos envolvidos.

161

13.2-RAÍZES DENTÁRIAS

Outra característica importante da dentição dos mamíferos é a presença de dentes pós-caninos com um sistema radicular mais complexo, tanto na forma quanto no número de raízes. As estruturas radiculares dos mamíferos são formadas por um ou vários cilindros constituídos de dentina e revestidos externamente por um tecido duro chamado cemento dentário. As raízes apresentam, em seu interior, uma cavidade pulpar, que abriga a polpa dentária e é responsável por manter a vitalidade e a sensibilidade dentárias (Berkovitz et al., 2004).

Os tecidos mineralizados que constituem as raízes dentárias, apresentam uma organização histológica relativamente bem estudada entre os mamíferos e sua organização pode evidenciar os mecanismos embriogênicos e fisiológicos responsáveis pela sua formação (Parrington, 1971; Osborn & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004).

Nos mamíferos, as raízes apresentam-se fixadas às estruturas dos ossos maxilares e dentários através de uma articulação altamente especializada, realizada pelos componentes do periodonto de inserção, que são as lâminas cribriformes dos alvéolos, o ligamento periodontal e o cemento radicular. Estas estruturas ajudam a compôr um aparelho estomatognático com capacidades proprioceptivas especiais. Raízes mais elaboradas como estas também foram encontradas entre os pós-caninos inferiores dos morganucodontídeos (Kermack et al., 1973; Ten Cate, 2001).

A cavidade pulpar, nos mamíferos, é fechada, formando um ápice típico chamado foramen apicis (radicis) dentis. Fogem dessa regra os dentes de crescimento contínuo, como os incisivos dos rodentes e as presas das morsas, nos quais a raiz se mantem aberta (Peyer, 1968; Paula Couto, 1979).

Diversos autores consideram uma maior complexidade radicular como caráter evolucionário mamaliano (Luo, 1994; Soares, 2004; Bonaparte et al., 2003; Bonaparte et al., 2005).

Ao descrever raízes de dentes isolados de Megazostrodon (Figura 66) Eozostrodon problematicus e Morganucodon watsoni, Parrington (1971) referiu diversas propriedades dentárias radiculares, inclusive relacionando a ausência de facetas de desgastes oclusais com o desenvolvimento incompleto de algumas raízes. Isto, segundo ele, indicaria a 162

imaturidade e o estágio fisiológico de ainda não-oclusão e não funcionalidade do órgão dental. As ausências de raízes dentárias e de alvéolos bem desenvolvidos teriam facilitado a queda do dentes recém-erupcionados dos alvéolos, logo após a morte do animal.

FIGURA 66 - Dentes de Megazostrodon. A-molar inferior com faceta de desgaste; B-pré- molariforme com três raízes; C-molar inferior direito; D-dentes-de-leite de Kuehneotherium (modificado de Parrington, 1971).

Algumas coroas dos molares, com cúspides ainda agudas e com o seu esmalte bem conservado, também não apresentam qualquer evidência das raízes, indicando que estes estágios organogênicos dentários incompletos foram interrompidos pela morte do animal. Os dentes com raízes muito longas e com uma expansão radicular apical de cemento dentário indicariam dentes mais “mamalianos”, com um desenvolvimento dentário completo antes da morte. Estas variações encontradas podem impossibilitar a diagnose de dentes isolados, tanto pelas agressões físicas quanto pelas alterações químicas advindas da exposição ambiental (Parrington, 1971).

Neste mesmo trabalho, Parrington (1971) referiu que os dentes inferiores de Eozostrodon apresentam raízes maiores que os molares superiores, enquanto os pré-molares anteriores apresentariam raízes mais longas e menos “recurvadas” que os posteriores. Em Kuehneotherium, o referido autor encontrou as mesmas “feições de desenvolvimento radicular” (Figura 67), o que também tornaria impossível descrever estes fósseis tendo por evidência apenas elementos odontológicos isolados.

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FIGURA 67 - Dentes tribosfênicos isolados de Kuehneotherium. A - molar inferior direito; B - molar inferior direito fraturado; C - molar inferior esquerdo; D - molar superior direito; E - molares inferiores direitos; F - molares inferiores decíduos (modificado de Parrington, 1971).

Outros aspectos ontogênicos, como o tamanho do animal e o dimorfismo sexual, poderiam explicar elementos de variabilidade anatômica referente ao volume e a variedade de formas dos dentes e dos ossos dentígeros.

Em alguns táxons de cinodontes avançados, como nos Probainognathia, são encontradas raízes dentárias que apresentam características peculiares. Em Brasilodon quadrangularis Bonaparte et al. (2005), os autores fazem breve referência aos dentes inferiores, onde as raízes apresentam uma profunda depressão longitudinal, em conformidade com a forma do alvéolo. Para Brasilitherium riograndensis são descritos todos os pós-caninos inferiores como apresentando constrição lingual e bucal, bem como incipientes bifurcações apicais das raízes (Bonaparte et al., 2005).

Martinelli et al. (2005) também encontraram estas constrições longitudinais nas raízes dos pós-caninos inferiores de Irajatherium hernandezi, referindo que esta característica também é vista em probainognatídeos carnívoros não-mamalianos e também em Cynognathus. Adicionalmente, os autores referiram que o sexto pós-canino superior esquerdo também apresentaria um início de constrição radicular, como indicativo da presença destas estruturas radiculares nas raízes destes dentes superiores. 164

Bonaparte & Barberena (2001) referiram, para o cinodonte avançado Prozostrodon brasilisensis, a presença de incipientes bifurcações para os pós-caninos superiores e os pós-caninos inferiores pc3 e pc4, além de profundas ranhuras radiculares para os pós-caninos mais posteriores. Os autores não indicaram, porém, se as raízes, uma vez que apresentam tais ranhuras radiculares, apresentariam efetivamente as raízes bifurcadas ou não. Neste mesmo trabalho, os autores descreveram, para Therioherpeton cargnini, que os dentes pós-caninos superiores e inferiores apresentam claras indicações de bifurcações das raízes. Entretanto, os autores não fizeram a confirmação de que os ápices radiculares seriam efetivamente separados (FIG. 68).

FIGURA 68 - Composição esquemática do crânio e mandíbula esquerdos de Prozostrodon brasiliensis em norma lateral. Abreviaturas: AL - alvéolo; ALS - alisfenóide; CO - coronóide; D - dentário; FE - forame etmoidal; FM - foramina maxilar; FPB - fossa para os ossos pós-dentários; FR - frontal; GDL - ranhura da lâmina dental; L - lacrimal; MX - maxilar; N - nasal; OBS - órbito-esfenóide; PAL - palatino; PAP - processo pré-articular; PA - pré-articular; PMX - pré-maxilar; PO - pós-orbital; P - parietal; PRF - pré-frontal; PT - pterigóide; RPC - pós-canino de substituição; SF - forame sinfiseal; SGR - ranhura sinfiseal; SMX - septomaxila; SPL - esplenial; SPTF - forame esfenopalatino; (modificado de Bonaparte & Barberena, 1975).

13.3-ESMALTE DENTÁRIO

Alguns Autores (Clemens, 1979, apud Wood & Rougier, 2005; Kielan- Jaworowska et al., 2004) sugerem que os caracteres relacionados à ultra-estrutura do esmalte dos mamíferos mesozóicos não deveriam ser utilizados nas análises filogenéticas. Isto 165

ocorreria porque foi percebido que o esmalte mamaliano (1) apresenta alta variabilidade ultra- estrutural dentro de um mesmo táxon, (2) é inconsistemente descrito na literatura, (3) e estaria sustentado apenas na existência e na inexistência de prismas. Entretanto a grande maioria dos autores (Abdala & Malabarba, 2007; Carlson, 1990; Kardong, 2002; Koenigswald & Rose, 2005; Mariavaux et al., 2005; Martim, 2005; Wood et al., 1999; Wood & Rougier, 2005) entende que o esmalte dentário dos mamíferos é um tecido mineralizado importante para os estudos filogenéticos porque pode representar caracteres de organização intra-estrutural passíveis de serem diagnosticados. O esmalte dentário prismático verdadeiro seria um carácter eminentemente mamaliano, que não ocorreria entre os répteis, exceptuando-se o lagarto agamídeo Uromastyx, no qual os prismas não seriam homólogos aos prismas dos dentes dos esmaltes dentários dos mamíferos (Wood & Stern, 1997). As diversas variações nos padrões de formação do esmalte dos mamíferos não estariam relacionadas à produção e aos estágios de secreção das matrizes protéicas, uma vez que os estudos revelaram pouca variabilidade bioquímica (Skobe et al., 1988). Todavia, os estudos apontaram diferenças marcantes nos seguintes elementos envolvidos na produção e na secreção do esmalte, que seriam realmente os fatores responsáveis pela diferenciação dos padrões entre os diversos tipos de esmalte dentário que surgiram entre os táxons mamalianos extintos e atuais (Skobe et al., 1988): 1-Diferenças temporais nas fases de secreção; 2-Variação no tamanho dos ameloblastos; 3-Variação na taxa de deposição de matriz; 4-Variações nas formas dos Processos de Tomes; 5-Variações nas micro-estruturas juncionais entre os ameloblastos. Wood et al. (1999) consideram provável que simples alterações mutacionais nos Processos de Tomes dos ameloblastos poderiam desencadear mudanças nos padrões estruturais dos prismas de esmalte. Assim, o esmalte colunar (ESC) poderia se transformar em esmalte prismático plesiomórfico (EPP) e vice-versa. Neste caso, a utilização dos caracteres intra-estruturais do esmalte em estudos de cladística poderia desencadear ambigüidades em trabalhos de filogenia (Sander, 1997; Wood et al., 1999). Entre os vertebrados existem três tipos básicos de esmalte (Figura 69) segundo a orientação dos cristalitos, estado de carater este que estabelece os padrões de esmalte como aprismático, pré-prismático e prismático. 166

O esmalte aprismático significa que ele se caracteriza por ter todos os cristalitos paralelos entre si e perpendiculares à linha de junção amelo-dentinária. Já o esmalte prismático é caracterizado como tendo todas as agulhas e a cristalização orientadas em uma mesma direção, mas os “cristalitos” (prismas) são separados uns dos outros por bainhas prismáticas e pela presença de cristalitos intermediários. Em ultra-estrutura mediana, o esmalte prismático é caracterizado por colunas de cristalitos que se curvam suavemente, divergindo em um eixo, e em padrões em forma de leque (Carlson, 1990).

Um tipo de esmalte de ultra-estrutura intermediária entre o esmalte aprismático e o esmalte prismático ocorreria entre certos répteis e entre certos mamíferos primitivos. Este tipo de esmalte é chamado de pré-prismático ou pseudoprismático, designações ambíguas que podem levar ao entendimento de que eles não apresentariam quaisquer tipos de prismas (Carlson, 1990).

O esmalte prismático dos mamíferos derivados (Eutérios) expressaria um desenvolvimento estrutural e um conjunto de variações na organização dos prismas, totalmente diferente do que ocorre entre os répteis e entre os mamíferos primitivos (Carlson, 1990).

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FIGURA 69 - Padrões de formação dos três tipos de esmalte reconhecidos. A figura mostra o hipotético processo de evolução a partir de modificações nas estruturas dos ameloblastos, com o surgimento dos Processos de Tomes (seta menor). A-Esmalte Prismático; B-Esmalte Pré- Prismático; C- Esmalte Aprismático. A seta maior mostra a direção de recuo dos ameloblastos (modificado de Carlson, 1990).

A origem do esmalte complexo dos mamíferos reflete um aumento na organização e distribuição espacial em diversos níveis da estrutura do esmalte, com relação aos cristalitos, aos prismas, aos tipos de esmalte e no arranjo intra-estrutural dos diferentes tipos de esmalte que compõe a cobertura externa das coroas dentárias (Koenigswald, 1977). Isto ocorreria porque um único tipo de esmalte não estaria capacitado para suportar os diferentes esforços advindos dos processos mastigatórios mamalianos mais complexos.

Estes padrões organizacionais mais complexos do esmalte refletiriam a variabilidade de direção dos prismas de esmalte, que formaria quantidades variáveis de diferentes padrões de esmalte. Neste caso, os prismas se apresentariam radiais a JAD, ou 168

seriam tangenciais ou estariam sofrendo decussações coletivas (Koenigswald, 1977). Estes arranjos tridimentsionais dos diferentes tipos de esmalte combinariam para formar o que o Autor denomina de “Schmelzmuster”, que seria a intra-estrutura complexa do esmalte dos mamíferos. Mesmo dentro de uma mesma dentição os diversos dentes de mamíferos placentários, como incisivos e molares, poderiam apresentar diferentes “Schmelzmuster”. Nestes diferentes níveis organizacionais de esmalte a presença das Bandas de Hunter- Schreger refletiriam os padrões mais derivados de evolução do esmalte (Koenigswald, 1977).

Koenigswald, 1977, refere que além das decussações coletivas dos prismas de esmalte outros padrões, onde os prismas poderam decussar isoladamente, podem ocorrer entre os mamíferos.

O esmalte dentário prismático, com arranjo espacial complexo e maior espessura (Figura 70), é mais resistente aos impactos e forças dos processos mastigatórios, suportando melhor a atrição e os consequentes desgastes ou fraturas (Berkovitz et al., 2004; Carlson, 1990).

FIGURA 70 - Processo de deposição da matriz do esmalte prismático. Os Processos de Tomes são as estruturas celulares responsáveis pela fase de secreção do esmalte prismático mamaliano (modificado de Carlson, 1990).

Entre os mamíferos fósseis e viventes, são três os tipos de prismas de esmalte encontrados, embora existam poucos estudos comparativos relacionados aos fósseis. O Tipo 1 169

apresenta-se circular em corte transversal e as camadas de prismas envolvem colunas subparalelas de cristalitos arranjados em feixes hexagonais. Este esmalte prismático Tipo 1 ocorre em alguns multituberculatas, marsupiais, quirópteros, cetáceos, sirênios, tapirídeos, lêmures e, inclusive, em alguns hominóides. Este modelo é considerado bastante primitivo entre mamíferos e deveria ter aparecido entre os primitivos Eutérios (Carlson, 1990).

Os prismas de esmalte com padrão Tipo 2 apresentam-se, em secção transversal, com forma de arco e empilhados em fileiras verticais dentro do esmalte. Atualmente, este modelo é comum entre rodentes, marsupiais, lagomorfos, artiodáctilos e perissodáctilos, bem como entre alguns táxons de primatas (Carlson, 1990).

Uma característica extremamente importante que acompanha esse modelo deriva do fato de que as bainhas de prismas adjacentes podem se intercruzar, sendo comuns as decussações dos prismas de esmalte. Quando os dentes, preparados por desgaste, são submetidos à microscopia óptica sob luz polarizada, estas decussações geram bandas claras e escuras alternadas, chamadas “Bandas de Hunter-Schreger” (Figura 71 e 72). Estas estruturas do esmalte dos mamíferos foram descobertas e descritas por Hunter (1778) e Schreger (1800), mas, somente em 1894, Preiswerk atribuiu corretamente a ocorrência deste efeito de luz às diferentes orientações dos prismas dentro do esmalte dentário mamaliano (Koenigswald & Rose, 2005).

FIGURA 71 - Exemplo de Bandas de Hunter-Schreger, visualizadas em esmalte de dente humano. A-aumento de 12X, em luz refletida; B-aumento de 25X, sob luz polarizada (modificado de Berkovitz et al., 2004).

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FIGURA 72 - Modelo de decussação dos prismas de esmalte, necessário à formação das Bandas de Hunter-Schreger, efeito óptico causado pelas curvaturas dos prismas de esmalte. Abreviaturas: A-corte oblíquo com os prismas uniseriais semelhantes a cilindros. Observar o paralelismo dos prismas adjacentes e as fileiras apresentando ângulos diferentes entre si; B- secção longitudinal através do esmalte multiserial, desde a linha de junção amelo-dentinária até a superfície externa do esmalte; C-prismas cortados perpendicularmente aos eixos longitudinais mostram-se circulares, enquanto que os prismas cortados obliquamente aparecem com aforma elíptica (modificado de Carlson, 1990).

A origem e a morfologia das Bandas de Hunter-Schreger (Figura 73) são atribuídas aos diferentes planos de corte aos quais são submetidos os prismas de esmalte que apresentam ondulações. Assim, apresentando anéis ou planos, os prismas são seccionados transversalmente quando o dente é submetido a um corte longitudinal (Carlson, 1990; Ferraris & Muñoz, 2006; Koenigswald, 1997; Koenigswald et al., 2005). Segundo (Berkovitz et al., 2004), as BHS são bandas claras e escuras denominadas respectivamente de parazonas e diazonas, de largura variável e limites imprecisos, que se observam no esmalte ocupando os quatro quintos mais internos do mesmo. São observadas em cortes longitudinais por desgaste com luz incidente polarizada. Estão presentes em todos os dentes permanentes e ainda nos que não completaram sua formação.

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FIGURA 73 - Diagrama de formação das Bandas de Hunter-Schreger por efeitos de transmissão da luz nos prismas de esmalte pelas estruturas de subsuperfície. A-Nas zonas das bandas escuras, os raios luminosos são guiados por dentro dos prismas. As zonas claras são áreas onde os prismas refletem a luz. O efeito luminoso típico ocorre somente quando estes efeitos são multiplicados por diversos prismas paralelos; B-A luz é refletida pelo lado do prisma, mas enfraquece entre os prismas que se entrecruzam; C-Padrão de luz refletida vista em uma camada fina de esmalte. Os prismas intersectados absorvem a luz e aparecem como bandas escuras, enquanto os prismas expostos em planos paralelos ao seu eixo maior refletem a luz (modificado de Koenigswald et al., 2005).

As BHS ocorrem tanto entre os herbívoros como entre os carnívoros, uma vez que estas são elementos estruturais dos prismas de esmalte que se organizam no sentido de resistir às forças decorrentes de trajetórias oclusais complexas. Nesse sentido, constituem uma característica com uma condição claramente homoplásica (FIG. 74).

A microscopia eletrônica também pode, circunstancialmente, evidenciar as Bandas de Hunter-Schreger. Fostowicz-Frelik (2003) demostrou a presença das BHS em um provável dente decíduo, isolado, de baleia do Eoceno Superior da Ilha de Seymour, Antartica. E, adicionalmente, o Autor infere que caracteres intra-estruturais do esmalte como a forma dos prismas de esmalte, os tipos de esmalte, o arranjo intra-estrutural (BHS e a presença de esmalte de cobertura) poderiam ser utilizados como elementos de análise taxonômica.

Rensberger & Wang (2005) realizaram um importante trabalho através da investigação da presença de Bandas de Hunter-Schreger em mamíferos atuais e fósseis. Tabalhando com dentes de Crocuta crocuta (Hyenidae), Puma concolor (Felidae) e dentes do Canidae fóssil Borophagus secundus, do Mioceno Tardio, os Autores conseguem estabelecer 172

uma relação direta entre os padrões alimentares destes mamíferos e a maior estruturação interna do esmalte. Neste caso, a presença e a localização das BHS sobre as faces dentárias possibilitariam definir as zonas dentárias onde os processos mastigatórios causariam maiores estresses.

FIGURA 74 - Cladograma do relacionamento filogenético presumido de eutérios, segundo a presença de padrões ultra-estruturais de esmalte 1, 2, 3 e pela presença das Bandas de Hunter- Schreger (modificado de Carlson, 1990).

Entre os carnívoros fósseis e atuais são referidas diferenças nos padrões de organização das Bandas de Hunter-Schreger. Segundo Stefen (1997) as BHS dos carnívoros tendem a se apresentar dispostas horizontalmente em relação às coroas dentais, e podem se mostrar sob a forma de subtipos como ondulantes, em ângulo agudo ou em Zig-Zag. Estes padrões estariam relacionados aos diferentes padrões alimentares e aos diversos modelos, sistemas mastigatórios, e os respectivos padrões de dieta, que seriam determinantes na organização e distribuição das BHS. O Autor infere que os esforços mastigatórios seriam elementos preponderantes para a ocorrência das pressões mecânicas necessárias ao surgimento de uma maior estruturação interna do esmalte, de forma a gerar as BHS.

As decussações e a natureza das BHS podem variar dentro da estrutura de esmalte de uma mesma coroa dental (Peyer, 1968; Berkovitz et al., 2004; Koenigswald et al., 2005). 173

Em dentes humanos decíduos, por exemplo, as Bandas de Hunter-Schreger devem ser observadas preferencialmente em cortes longitudinais e são mais facilmente observáveis no esmalte das zonas próximas ao bordo incisal dos dentes anteriores. Nos dentes posteriores, as BHS estão mais distintas nos terços cervicais e médios das coroas dentárias. Nos dentes permanentes, podem se observadas ao longo de todas as faces livres e faces proximais dos dentes (Ferraris et al., 2006).

No esmalte das regiões próximas às cúspides dentárias, as Bandas de Hunter- Schreger são indistintas e surge outro padrão de disposição dos prismas de esmalte, que se chama esmalte nodoso, onde os prismas se entrecruzam diversas vezes até atingir a superfície externa do esmalte. Este padrão intra-estrutural parece resistir melhor às pressões verticalizadas a que são submetidas estas zonas dos dentes (Ferraris et al., 2006).

Normalmente, o esmalte dentário, entre os pequenos mamíferos, não apresenta a formação de Bandas de Hunter-Schreger, com exceção dos rodentia e os lagomorfos. Nos incisivos dos rodentes fósseis e atuais, as variações internas dos ângulos das BHS representam reforços biomecânicos contra fraturas e desgastes dentários e estas decussações buscam compensar as tensões e as pressões relacionadas às forças incisais, bem como aquelas dirigidas ao auto-afiamento do bordo incisal (Marivaux et al., 2004; Koenigswald, 1997; Koenigswald et al., 2005; Martin, 2005).

Além disso, o esmalte dos rodentes pode apresentar duas zonas distintamente sobrepostas, o que parece representar uma condição derivada em relação ao esmalte de camada única, presente em lagomorfos e outros mamíferos. Na camada interna, os prismas de esmalte e as matrizes inter-prismáticas estão organizados em um padrão tridimensional cujos trajetos e decussações originam as Bandas de Hunter-Schreger (BHS), enquanto a camada mais externa do esmalte é formada por prismas paralelos entre si, constituindo um esmalte básico radial (Kardong, 2002; Mariavaux et al., 2004).

O último tipo de esmalte prismático, de acordo com a definição de Carlson (1990), é o chamado esmalte padrão “Tipo 3”, que é formado por prismas em forma de arco, quando em cortes transversais, mas muito maiores que os do padrão Tipo 2. Quando se encontram arranjados em pacotes hexagonais muito condensados, assumem uma forma em “buraco-de-fechadura”, sendo encontrados em alguns multituberculatas, proboscídeos, carnívoros e em alguns primatas, inclusive nos humanos (Carlson, 1990; Ten Cate, 2001). 174

Entretanto, a utilização da forma anatômica dos prismas em cortes transversais em estudos filogenéticos pode ser prejudicada pela ocorrência de “artefatos de técnica”, que podem surgir durante as fases de preparação das amostras de estudo dos padrões de esmalte. Katchburian & Arana (2004), trabalhando com esmalte humano, afirmaram que “dependendo da orientação do plano de corte dos prismas, estes poderiam se apresentar com aparência de ferradura (arco) ou de buraco de fechadura”.

Alguns trabalhos, como Osborn & Ten Cate (1988), propõem a existência de um número maior de tipos de prismas de esmalte em humanos (Figura 75), num total de quatro “Tipos” ou “Padrões”, dependendo do ângulo e da posição da secção feita no dente.

FIGURA 75 - Composição esquemática mostrando os quatro tipos de prismas de esmalte humano, gerados pelos cortes em angulacões variadas. Abreviaturas: A-perto da JAD; B- distante 50 micrometros da JAD; C-disperso pelo esmalte; D-junto à superfície de esmalte. Obs: regiões interprismáticas estão pontilhadas (modificado de Osborn & Ten Cate, 1988).

Neste contexto, Berkovitz et al. (2004) também reforçaram esta opinião, ao estabelecer que os prismas de esmalte humano, quando submetidos aos cortes transversais aleatórios, poderiam apresentar até três padrões prismáticos básicos. Os autores alertam que: “Deve ser observado, ao preparar material histológico, onde o esmalte será cortado, uma vez que, com diferentes graus de obliquidade, será produzida uma grande variedade de aspectos prismáticos e orientações de cristais” (Berkovitz et al., 2004).

Os padrões de esmaltes humanos assim obtidos seriam:

A-Padrão 1, representado por prismas em forma “circular” que seriam mais comumente encontrados próximos à junção amelo-dentinária e na região intermediária da espessura do esmalte.

B-Padrão 2, cujos prismas se apresentam em forma de “arco”, sendo pouco comuns e dispersos aleatoriamente. 175

C-Padrão 3, que mostraria prismas com um aspecto de “buraco-de-fechadura”, os quais seriam predominantes nas regiões mais centrais e também junto à periferia do esmalte. Assim o “Padrão 3”, em humanos, representaria apenas uma forma diferenciada do “Tipo 3” estabelecida por Carlson (1990), devido ao elevado grau de “compactação” dos prismas. Desta forma, os prismas seriam intersectados pelas bainhas, sugerindo o aspecto de “buraco-de fechadura”.

Ferrariz & Munhoz (2006) referiram que o estudo dos padrões prismáticos do esmalte humano pode trazer ainda outras variáveis: “Deve-se ressaltar que as orientações dos prismas diferem de acordo com o estudo, sendo ele realizado em dentes decíduos ou permanentes”.

Vários autores (Ten Cate, 2001; Ferraris & Munhoz, 2006) referem que a grande variabilidade de forma dos prismas de esmalte, além de estar associada aos fatores básicos de planos de cortes e da localização da barra do prisma, estaria associada aos artefatos causados pelos processos de preparação das amostras. Neste contexto, os prismas de esmalte (Figura 76) apresentariam os cristalitos intra-prismáticos em ângulos diferentes em relação à superfície de ataque ácido. Ocorre que os elementos constituintes da bainha do prisma, com menor textura cristalina, são mais solúveis e sofrem maior erosão à preparação ácida que a estrutura central (barra) do prisma, na qual os cristalitos estariam mais condensados e em ângulo diferente (Ten Cate, 2001; Ferraris & Munhoz, 2006).

FIGURA 76 - Diagramação esquemática mostrando planos de corte de prismas de esmalte e as formas de prismas gerados, em esmalte humano (modificado de Ferraris & Munhoz, 2006). 176

Portanto, estas circunstâncias, associadas à heterogeneidade do esmalte ao longo das faces dentárias de um mesmo dente, em dentes diferentes e em dentições decíduas ou permanentes, é que seriam os fatores responsáveis pela grande variedade de “Tipos” prismáticos dentro da espécie humana (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004; Katchburian & Arana, 2004;Ferraris & Munhoz, 2006).

Se extrapolarmos estes elementos de análise para o estudo de animais, viventes ou fósseis, estas mesmas variáveis deveriam ser também objeto de criteriosas avaliações, pois os estudos em humanos sugerem que as formas dos prismas em animais também devem se apresentar em uma grande variabilidade intra-específica, a qual seria ainda maior entre táxons diferentes.

Outras classificações, baseadas na ultra-estrutura do esmalte dos Synapsida, são baseadas na organização dos prismas e dos cristais de hidroxiapatita no interior das camadas.

Um padrão caracterizado por muitas ondulações nos prismas de esmalte é designado como Multiserial, padrão que pode ser encontrado no porco-espinho, um Erethizontidae (Carrol, 1988; Marivaux et al., 2004). Os rodentes primitivos Eocênicos apresentavam um padrão de bandas de esmalte pouco organizadas entre si, um modelo que foi designado como Pauciserial, sendo considerado como um padrão plesiomórfico em relação à condição Multiserial, não estando presente nos atuais rodentes (Carrol, 1988; Marivaux et al., 2004). Nestes, um terceiro padrão está presente, que se caracteriza pela presença de bandas alternadas de cristais com uma mesma orientação espacial, sendo designado como padrão Uniserial. Alguns autores acreditam que o esmalte Uniserial pode ter surgido independentemente em diversas linhagens de rodentes ancestrais cujos dentes possuíam o padrão de esmalte Pauciserial (Carrol, 1988; Marivaux et al., 2004).

Poucos trabalhos foram realizados, até o momento, no sentido de buscar a identificação do tipo de esmalte dentário entre os cinodontes não-mamalianos gonfodontes. Entre estes, Exaeretodon frenguelii apresentaria um esmalte do tipo colunar (Abdala, comunicação pessoal), que é um tecido amplamente distribuído entre os sinápsidos, constituindo uma estrutura de natureza bastante plesiomórfica. No caso de Riograndia guaibensis, os autores (Bonaparte et al., 2001), apesar de relatar a presença de esmalte dentário, não fizeram nenhuma referência à natureza micro-estrutural do mesmo, restringindo- se a definir os padrões de desgaste oclusal. 177

Entre os Sinápsidas não-mamalianos ocorreria, portanto, a presença de um esmalte Colunar Sinápsida ao qual Sander (1997) atribuiu às seguintes características:

1-As unidades colunares seriam orientadas paralelas entre si;

2-As unidades seriam secretadas perpendicularmente à superfície externa do esmalte.

3-As unidades seriam secretadas perpendicularmente às linhas incrementais.

Os variados padrões de Esmalte Colunar Sinápsida seriam determinados por diversas variáveis intrínsecas como, por exemplo, os diferentes tamanhos de prismas, as formas dos cortes transversais, o ângulo de convergência dos cristalitos e a integridade dos planos de contato (Sander, 1997).

Ao estabelecer um modelo evolucionário para o surgimento do esmalte prismático dos mamíferos, Sander (1997) estabeleceu um processo transicional de três estágios:

A-O primeiro estágio seria o esmalte aprismático com cristalitos perpendiculares à linha de junção amelo-dentinária, bem como em relação à face secretora do ameloblasto.

B-O segundo estágio seria através do surgimento do esmalte pseudoprismático/préprismático, através do surgimento de uma face cônica na extremidade secretora do ameloblasto, com o que surgiria uma superfície planar entre os cristalitos de esmalte divergentes de um mesmo prisma.

C-E finalmente com o surgimento de um Processo de Tomes totalmente diferenciado estaria caracterizado o terceiro estágio evolucionário, e como resultado surgiria uma uma aguda interrupção da face secretora do ameloblasto, com a formação de uma descontinuidade planar da secreção, e consequentemente formação de uma bainha do prisma, originaria o esmalte prismático.

Sander (1997) também sugere que o esmalte prismático plesiomórfico pode surgir de forma isolada em Pachygenelus e posteriormente teria sido perdido, através de processos de reversão, em tritylodontídeos, Diademodon, chiniquodontídeos, Sinoconodon e Morganucodon, que apresentariam um padrão de esmalte colunar sinápsida transicional, uma vez que estes poderiam ser mais aparentados com os mamíferos. 178

Trabalhos de análise histológica demonstraram que Pachygenelus monus apresentava esmalte prismático plesiomórfico em seus pós-caninos (Grine & Vrba, 1980; Gow, 1980; Sander, 1997; Wood & Stern 1997), associado com facetas de desgaste em suas coroas, evidenciando função mastigatória e uso prolongado das estruturas dentárias. Interessantemente, Wood et al. (1999) referiram que o esmalte prismático plesiomórfico observado em Pachygenelus também poderia estar presente no morganucodontídeo Megazostrodon. Os autores chamaram a atenção para fato de que o esmalte prismático deste último não apresentaria quaisquer mudanças de direção ou decussações dos prismas. Os autores também salientaram a presença de uma espessa camada de esmalte aprismático junto à superfície externa dos dentes, onde os prismas estariam ausentes ou indistintos, tanto em Pachygenelus quanto em Megazostrodon.

Adicionalmente, Wood & Stern, (1997) e Wood & Rougier (2005) também se referiram à presença de esmalte prismático plesiomórfico bem característico em Pachygenelus e Megazostrodon, bem como em virtualmente todos os “tribotheres” mesozóicos examinados até o presente momento.

Wood & Stern (1997) consideram que o esmalte prismático seria uma sinapomorfia para os mamíferos (ou para Mamaliaformes/Mamíferos), embora admitissem a possibilidade de reversão para esmaltes mais primitivos entre alguns grupos de mamíferos docodontes, triconodontes, kuehneoterídeos e multituberculatas.

Acontece, porém, que o esmalte aprismático externo se forma a partir das mudanças de direção de deposição dos cristais, que se apresentam irregulares em tamanho e ainda mais compactados que no esmalte prismático. Também está comprovado que o esmalte aprismático seria mais mineralizado que os esmaltes prismáticos subjacentes (Wood et al., 1999). Como conseqüência destas características intra-estruturais o esmalte aprismático é considerado como apresentando maior resistência aos impactos e à dissolução erosiva por substâncias ácidas dos alimentos ou por ácidos de origem bacteriana. Portanto, a presença de uma camada externa de esmalte periférico aprismático é uma evidência de que este dente apresentaria uma maior complexidade intra-estrutural, na totalidade da sua formação (Wood et al., 1999).

Abdala & Malabarba, 2007, registraram a presença de espessas camadas de esmalte aprismático nos dentes pós-caninos superiores em Exaeretodon riograndensis da Formação Santa Maria, Brasil e em dentes de E. frenguellii da Formação Ischigualasto. Os 179

autores referiram também que este esmalte aprismático apresentaria linhas incrementais bem definidas.

A estrutura paleo-histológica do esmalte dos cinodontes não-mamalianos tem despertado profundo interesse dos pesquisadores, em busca da origem do esmalte prismático dos mamíferos. Nesse sentido, Grine & Vrba (1980 apud Abdala, 2000) propuseram que a origem do esmalte dentário prismático dos mamíferos deveu-se ao surgimento da difiodontia. Isto ocorreria porque o esmalte prismático deve ter surgido como forma de proteção aos efeitos de abrasão e desgaste à que seriam submetidos os dentes em uma dentição permanente.

A grande maioria dos autores, como já foi citado, considera temerário o estabelecimento de afinidades filogenéticas tendo como base apenas a histologia do esmalte (Clemens, 1979, apud Wood & Rougier, 2005; Kielan-Jaworowska et al., 2004). Diferentemente, Wood et al. (1999) não descartam a utilização do estudo de caracteres da microestrutura do esmalte mamaliano, consideradas como válidas, no sentido de estabelecer variações observáveis entre mamíferos e seus previsíveis ancestrais e também de ampliar a base de dados.

Os Synapsida primitivos apresentavam um esmalte transicional, classificado como Esmalte Colunar Synapsida-ECS, enquanto entre os cinodontes avançados e mamíferos basais mesozóicos o esmalte seria classificado como Esmalte Prismático Plesiomórfico (EPP), segundo Wood & Rougier (2005).

Segundo Wood et al. (1999) o esmalte prismático seria uma sinapomorfia para mamíferos e a identificação deste estado de caráter poderia ser potencializada com outros caracteres do esmalte, qualificando um banco de dados para futuras análises cladísticas.

Wood & Rougier (2005) propuseram sete caracteres discretos, existentes na microestrutura do Esmalte Prismático Plesiomórfico, que poderiam ser utilizados, com maior ou menor relevância, para futuras reconstruções filogenéticas:

A-Prismas pequenos (2.5-6.5 mícrons, em média); B-Prismas envolvidos por uma bainha em forma de arco, expostos na superfície do esmalte; C-Prismas dissectados por um plano; D-Prismas em arranjo hexagonal; E-Prismas separados por matriz interprismática por todos os lados; F-Prismas sem decussações ou mudanças abruptas e simultâneas de direção; 180

G-“Schmeltzmuster” = esmalte radial com uma espessa camada de esmalte aprismático.

Entre estes, os autores determinaram que os caracteres “A” e “F” poderiam ser considerados para estudos e diagnose de níveis filogenéticos entre táxons mamalianos mesozóicos e outros grupos de cinodontes avançados não-mamalianos (Wood & Rougier, 2005).

Os clados de mamíferos Mesozóicos apresentam, entre outras características, um esmalte onde os prismas têm orientação radial, são paralelos entre si e não mostram mudanças abruptas de espessura de esmalte nos pré-molares e molares. Os estados derivados para estes caracteres seriam (1) mudanças simultâneas de direção e (2) presença das Bandas de Hunter-Schreger, que ocorreriam somente entre os Theria. Consequentemente as BHS seriam caracteres de táxons placentários (Wood & Rougier, 2005; Martin, 2005).

Outros trabalhos recentes têm abordado a questão das estruturas dos tecidos dentários esmalte/dentina entre outros táxons envolvidos na transição cinodonte/mamífero. Recentemente, um trabalho realizado por Kamiya et al. (2006), em dentes de um tritylodontídeo do Cretáceo Inferior do Japão, encontrou evidências histológicas que demonstram que as texturas do esmalte e da dentina dos molares apresentam organização microestrutural semelhante às presentes nos mamíferos atuais. Entre as estruturas internas da dentina e do esmalte, foram encontradas linhas incrementais cuja formação é semelhante às que ocorrem entre os mamíferos (FIG. 77).

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FIGURA 77 - As linhas incrementais existentes nos dentes dos mamíferos: Estrias de Retzius, Linhas Neonatais e Linhas de Contorno de Owen. Estas estruturas são visíveis em cortes dentários longitudinais, tanto em microscopia de luz polarizada quanto comum (modificado de Carlson, 1990).

Entretanto, Kamiya et al. (2006) desconsideraram uma importante linha incremental, que é a Linha Neonatal, confundindo-a com uma falsa alteração diagenética. Esta linha neonatal é bem visível e facilmente identificável (Figura 79) e tem importante relevância clínica, uma vez que define mudanças de padrões fisiológicos após o nascimento e deveria ser encontrada apenas em alguns dentes decíduos e nos dentes permanentes dos mamíferos. Podemos afirmar que, no exempo em questão, se trata de uma linha incremental neonatal porque, mesmo interrompida no esmalte do ápice dental, por desgaste do mesmo, a linha tem continuidade na vertente oposta da coroa dental (tal como no esquema da Figura 78).

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FIGURA 78 - Fotomicrografia de secção dentária coronal de Tritylodontidae. Sob luz polarizada. Abreviaturas: E-esmalte; D-dentina; LN-Linha neonatal; P-polpa dental (modificado de Kamiya et al., 2006).

Diversos trabalhos foram realizados no sentido de analisar o esmalte dos Multituberculata, sem que fosse possível estabelecer um padrão básico comum para todos os subgrupos deste táxon. Os esmaltes dos Paulchoffatiidae foram descritos como sendo aprismáticos, enquanto que em Plagiaulacidae os dentes apresentariam esmalte prismático mamaliano (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Carlson (1990) estabeleceu que a grande variedade e a ambiguidade dos diagnósticos obtidos no estudo do esmalte dos vertebrados são resultantes da inexistência de métodos e abordagens histológicas padronizadas em microscopia eletrônica. Isto tornaria as abordagens paleo-histológicas inconclusivas e frustantes, devido à impossibilidade de descrever as orientações tridimensionais individuais dos elementos da ultra-estrutura de esmalte. Além disso, ressaltou que a descrição de uma única amostra de esmalte de somente um dente não deve ser utilizada como critério válido na avaliação da natureza de esmalte de um táxon, uma vez que o esmalte pode apresentar grandes variações estruturais ao longo das faces de um mesmo dente.

Outras estruturas internas encontradas no esmalte dentário humano, como fusos, lamelas e tufos do esmalte (Figura 79) também já foram bem estudados e refletem um aumento da complexidade da organização interna do tecido ou representam processos biológicos de natureza metabólica que estão relacionados com a ontogênese e até, talvez, com os ciclos biológicos circadianos (Berkovitz et al., 2004).

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FIGURA 79 - Fotomicrografia de corte transversal de coroa dental humana, mostrando a junção amelo-dentinária. Abreviaturas: A-tufo do esmalte; B-fuso do esmalte; C-lamela do esmalte; D-dentina; E-esmalte (60X) (modificado de Berkovitz et al., 2004).

Os fusos do esmalte são estruturas estreitas, arredondadas, algumas vezes em forma de bastão, que se estendem desde a linha de junção amelo-dentinária, por até 25 micrometros em direção à superfície externa do esmalte.

Os tufos do esmalte, por sua vez, são estruturas juncionais que se restringem ao terço interno do esmalte e apresentam aspecto de tufos de grama. Percorrem a mesma direção dos prismas e parecem “ondular” com as camadas de prismas. Seriam áreas hipomineralizadas e surgem esporadicamente ao longo da junção amelo-dentinária (Berkovitz et al., 2004).

Já as lamelas do esmalte são falhas estruturais laminares que percorrem toda a espessura do esmalte. São também hipomineralizadas, muito estreitas e longas, sendo que as melhores visualizações das mesmas são obtidas através de cortes transversais do esmalte (Berkovitz et al., 2004).

A eventual presença de algum destes elementos micro-estruturais da estrutura interna do esmalte dentário poderia ser utilizada como caracter de diagnóstico dos estágios transicionais da evolução dos tecidos dentários durante a transição cinodonte-mamífero (Carlson, 1990).

Em análises microestruturais realizadas por Martin (2005), foram feitas importantes avaliações relacionadas aos vários padrões de organização intra-estrutural das camadas de esmalte dentário dos roedores. Estes estudos têm demonstrado que existe uma grande variabilidade intra-estrutural do esmalte de táxons próximos ou derivados (Carlson, 1990). 184

Os Lagomorfa foram, durante muito tempo, caracterizados por apresentarem uma única camada de esmalte sobre os incisivos, enquanto que os Rodentia apresentariam um esmalte mais complexo, com duas camadas. Porém, estudos mais recentes demonstraram que alguns Lagomorfa (Ochotonidae, pikas) apresentam um esmalte com várias camadas: a uma camada interna de esmalte radial modificado segue-se outra, intermediária, de esmalte com Bandas de Hunter-Schreger e, finalmente têm-se o esmalte externo tangencial (Carlson, 1990).

Estes padrões de organização mais complexos nas camadas internas dos esmaltes de mamíferos adaptados aos hábitos herbívoros de “roer” alimentos também foram atribuídos aos Multituberculata. Kielan-Jaworowska et al. (2004) estabelecem um padrão estrutural para o esmalte de Ptilodus sp., no qual três camadas distintas de esmalte podem ser bem diferenciadas (Figura 80). A camada mais interna, junto à junção amelo-dentinária é formada por esmalte tangencial, com os “cristalitos” em ângulo. A camada intermediária subsequente é composta com um esmalte “radial”, enquanto a camada mais externa seria composta por uma capa de esmalte aprismático. Mamíferos não-tribosfênicos, como Spalacotheridium do Cretáceo Médio também apresentam este padrão de organização de esmalte (Wood et al., 1999).

FIGURA 80 - Fotomicrografia em microscopia eletrônica de esmalte dentário do multituberculata Ptilodus sp. (AUMENTO: 350X), Mostrando a complexidade da 185

organização intra-estrutural do esmalte (modificado de Koenigswald, 1985, apud Kielan- Jaworowska et al., 2004).

Os dentes dos multituberculatas Taenialabidoidea e Djadochfatheridoidea também apresentam diversos arranjos combinatórios de esmalte radial e esmalte aprismático. Os variados arranjos intra-estruturais do esmalte dos incisivos centrais inferiores hipertrofiados teriam a função de impedir a propagação interna de “linhas de fratura”, quando os dentes fossem submetidos a esforços oclusais extremos (Kielan-Jaworowska et al., 2004). Entretanto, os autores consideram plausível que o esmalte dos incisivos centrais dos multituberculados fosse de natureza diferente do esmalte dos dentes mais posteriores.

Por tudo o que foi exposto, chama a atenção o fato que a maioria dos estudos até agora empreendidos preconizem a utilização de microscopia eletrônica, com a utilização de cortes dentários coronais transversais de amostras de dentes isolados, geralmente de dentes molariformes, como preconizado por Wood et al. (1999). Ocorre que as observações de amostras de esmaltes dentários assim obtidas impedem a observação das estruturas que derivam das trajetórias dos prismas, desde a JAD até a superfície externa do esmalte. Neste contexto, a análise se limita ao estudo de finas secções transversais dos prismas de esmalte e aos arranjos de material interprismático. A visualização de padrões intra-estruturais mais complexas, como a direção e o comprimento dos prismas, a presença ou não de decussações dos prismas de esmalte e a visualização das Bandas de Hunter-Schreger (se ocorrerem), podem se tornar refratárias ao processo de análise sob microscopia eletrônica.

Abordagens filogenéticas a partir do estudo das micro-estruturas de esmalte são ainda precárias devido à pouca amostragem dos táxons derivados e da impossibilidade de estudo dos grupos externos, pela inexistência de amostras disponíveis. Por outro lado, se forem incrementados, estes estudos podem permitir uma melhor compreensão das homologias evolucionárias que resultam de convergências adaptativas (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

A formação de padrões variados de esmalte na intra-estrutura do esmalte dos mamíferos está diretamente relacionada à diferenciação de uma estrutura celular do polo secretor dos ameloblastos. Assim, um mesmo ameloblasto inicia a sua diferenciação sem a formação do Processo de Tomes e dá origem a uma camada de esmalte prismático. Em seguida, este mesmo ameloblasto se diferencia ainda mais e, já apresentando o Processo de Tomes, passa a produzir a camada intermediária de esmalte com decussações. Em uma fase mais avançada, o ameloblasto, novamente com um pólo secretor plano, passaria novamente a 186

produzir esmalte aprismático. Estes padrões de secreções de matriz de esmalte estariam, portanto, diretamente relacionados aos diferentes processos heterócronos de diferenciação dos ameloblastos secretores.

13.4-DENTINA

A dentina é um tecido mineralizado fundamental na construção das estruturas da coroa, da raiz e da câmara pulpar dos dentes dos vertebrados. Na porção coronal, é recoberta pelo esmalte dentário e, na raiz, pelo cemento dentário. A dentina consiste principalmente de prolongamentos celulares tubulares, imersos em uma matriz colágena calcificada, cuja composição varia com a localização anatômica, com a idade, com a fisiologia dentária e oclusal (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004).

Os túbulos dentinários são originários dos odontoblastos existentes na periferia da polpa dentária, que são as células responsáveis por secretarem a substância fundamental amorfa e as fibras colágenas que formam a matriz, chamada de pré-dentina. Estes elementos biológicos são posteriormente mineralizados e conferem resistência e elasticidade quando os dentes são submetidos aos impactos mastigatórios (Gartner & Hiatt, 2003; Berkovitz et al., 2004).

A dentina chamada de Primária é aquela que se forma até a completa erupção do dente, sendo seguida, fisiologicamente, pela formação centrípeta de dentina Secundária, que consequentemente leva à diminuição da amplitude da câmara pulpar. Entre a dentina Primária e a dentina Secundária pode surgir um “limite de demarcação”, que reflete uma mudança brusca de direção dos túbulos dentinários, como resultado do início da oclusão dental e dos estímulos decorrentes da mastigação. Na dentina Secundária, o padrão de organização dos túbulos dentinários torna-se mais irregular e com uma maior densidade. Os túbulos dentinários correm da margem da polpa dentária e se dirigem até o limite entre a dentina e o esmalte dentário, na coroa do dente, e até o limite dentina/cemento, na raiz do dente (Berkovitz et al., 2004).

Na região da coroa dental, o trajeto destes canalículos dentinários é mais retilíneo e regular, enquanto que, nas zonas das raízes dentárias, os túbulos dentinários apresentam curvaturas sigmóides, as quais, próximo à cavidade pulpar, inclinam em direção 187

aos ápices radiculares (Gartner & Hiatt, 2003; Berkovitz et al., 2004). Estas curvaturas mais acentuadas são chamadas de curvaturas primárias, enquanto outras curvaturas, de menor amplitude, são chamadas de curvaturas secundárias e são da ordem de uns poucos micrometros. Estas curvaturas secundárias, chamadas linhas de contorno de Owen, não são comumente vistas porque se apresentam em freqüências discordantes dentro dos túbulos dentinários próximos (Berkovitz et al., 2004) e são resultantes da coincidência das curvaturas secundárias entre os túbulos dentinários vizinhos, sendo hoje interpretadas como alterações nos processos de calcificação da dentina junto à linha de junção amelo-dentinária. A primeira linha de contorno de Owen tem a forma de um casquete. Nas áreas radiculares, elas são representadas por bandas convergentes até a superfície interna da dentina. (Berkovitz et al., 2004; Ferraris & Muñoz, 2006).

A formação de dentina não é um processo fisiologicamente contínuo, apresentando ritimicidade variada de períodos de formação e períodos de descanso. Outras “linhas da dentina” são formadas em resposta a mudanças de padrões de deposição e mineralização da matriz e, por isto, são chamadas de linhas incrementais. Nestes casos, a dentina registra regularmente estas marcas, definindo processos deposicionais de incrementos de longos períodos e de curtos períodos, que se apresentam em ângulo de noventa graus em relação à direção dos túbulos dentinários (Berkovitz et al., 2004). Estas linhas deposicionais podem ser observadas em cortes por desgaste, sob luz polarizada. Elas podem se atribuídas às flutuações metabólicas circadianas que afetam o conteúdo mineral e o coeficiente de refração luminosa das matrizes dentinárias mineralizadas (Osborn & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004).

Alterações pós-eruptivas podem ocorrer em respostas fisiológicas da polpa dental aos diversos estímulos que podem ser direcionados aos órgãos dentários. Estas respostas podem estar relacionadas a fatores patológicos, como as cáries dentárias, pequenas fraturas coronais e também em processos de atrição dental crônica. Nestes casos, estaremos observando depósitos dentinários intra-pulpares que constituirão as chamadas dentinas Terciárias, cujas origens podem, portanto, estar relacionadas a uma variedade de fatores causais externos (Berkovitz et al., 2004).

A deposição da chamada dentina Terciária também pode ocorrer acumulativamente no assoalho da câmara pulpar, diretamente sobre dentina Primária, diminuindo significativamente o volume da câmara e a luz dos canais radiculares em indivíduos mais velhos. Os padrões deposicionais e a organização estrutural da dentina 188

Terciária podem ser muito variados, refletindo diversos estágios fisiológicos e de abrasão oclusal, até ao ponto de parecer totalmente atubular (Berkovitz et al., 2004).

Estas dentinas também são chamadas de dentinas reacionais, uma vez que estão diretamente relacionadas a diferentes fatores de agressão ou estímulo. Estas designações podem variar segundo cada autor (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004; Ferraris & Muñoz, 2006; Gartner & Hiatt., 2006).

Neste conjunto de processos fisiológicos que desencadeiam modificações na síntese e na estrutura dentinária, um dos processos mais marcantes é o envelhecimento fisiológico advindo da idade. Assim, em idade mais avançada, podem ocorrer processos de transformação dos padrões deposicionais de dentinas que surgiram durante a formação, erupção e oclusão dos dentes permanentes (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004; Ferraris & Muñoz, 2006; Gartner & Hiatt., 2006).

Principalmente nas regiões próximas ao ápice radicular, os túbulos dentinários tornam-se totalmente obliterados com a dentina peritubular, agora transformada em dentina “translúcida” (Figura 81). Em humanos, esta dentina se forma também em condições fisiológicas especiais, como em presença de cáries ou atrição severa. (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004; Ferraris & Muñoz, 2006; Gartner & Hiatt., 2006).

FIGURA 81 - Corte de um dente humano permanente, mostrando a dentina translúcida, localizada no terço apical da raiz (modificado de Berkovitz et al., 2004). Abreviatura: DT, dentina translúcida.

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No entanto, a grande maioria dos autores concorda ao referir que a dentina translúcida é resultante de processos fisiológicos lentos, persistentes e não muito severos, todos relacionados à idade dos dentes e à longa permanência dos dentes em atividade oclusal (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004; Ferraris & Muñoz, 2006; Gartner & Hiatt., 2006).

O termo dentina Esclerótica também é referenciado (Berkovitz et al., 2004) para a designação destes tipos de dentinas que se apresentam com os túbulos dentinários totalmente preenchidos com dentina peritubular. Pouco se sabe dos processos deposicionais que levam ao total preenchimento dos túbulos dentinários, mas alguns autores referem tratar- se de material mineralizado de origem não-odontoblástica e que apresenta natureza cristalina de apatitas e depósitos de fosfatos de octacálcio. Esta dentina também pode ser utilizada, eventualmente, como evidência para diagnoses forenses, relacionadas à idade de vítimas desconhecidas (Berkovitz et al., 2004).

13.5-CEMENTO DENTÁRIO

O cemento dentário é um tecido caracteristicamente mamaliano (Peyer, 1968) e somente de forma rara pode ser observado em répteis. Topográfica e anatomicamente, estaria localizado fixado à dentina radicular e, através do ligamento periodontal, às paredes internas do osso alveolar (Figura 82). O cemento radicular seria originado a partir do folículo dental, juntamente com o ligamento periodontal e com a lâmina cribiforme, a qual constitui a parede interna do alvéolo dentário (Peyer, 1968; Osborn & Ten Cate, 1988; Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004)

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FIGURA 82 - Esquema da disposição dos tecidos dentários dos mamíferos (modificado de Berkovitz et al., 2004).

Kermack et al. (1973) referem que os dentes molares inferiores de morganucodontídeos (e. g. Eozostrodon problematicus), apresentariam ápices radiculares típicos, onde dentina e cemento espessados caracterizam os dentes desenvolvidos.

Ao descrever diversos mamíferos do Triássico Superior, Parrington (1971) também se referiu às expansões apicais das raízes, que seriam constituídas por dentina e camadas adicionais de cemento dentário, o que configuraria um caráter típico dos Mammalia, inclusive associando o estágio ontogênico avançado, com uma curvatura final do ápice radicular: “o pé-da-raiz”.

Entre os tecidos odontogênicos, o cemento dentário é aquele que permanece o mais desconhecido em suas atribuições fisiológicas, sendo hoje considerado o menos estudado entre todos os tecidos mineralizados dos vertebrados. Fisiologicamente, o cemento dentário atuaria como o tecido de ancoragem das fibras de Sharpey do ligamento periodontal (Berkovitz et al., 2004). As “fibras de Sharpey” são fibras colágenas que se situam embricadas e mineralizadas na zona profunda do cemento dentário, situando-se externamente à dentina radicular. Elas formam uma camada uniforme, que se estende desde a região cervical até a zona apical da raiz (Ferraris & Muñoz, 2006).

O cemento dentário também ocorreria, secundariamente, nas regiões apicais das raízes ou nas áreas inter-radiculares dos dentes molares. Nesta sua formação secundária, 191

serviria estruturalmente para compensar as perdas decorrentes dos desgastes oclusais decorrentes de processos mastigatórios. Isto permitiria que os dentes pudessem manter um comprimento fisiológico mesmo quando estivessem muito desgastados pelo uso (Berkovitz et al., 2004). Em outra abordagem é sugerido que, com a deposição de cemento, ocorreria a manutenção de um espaço permanente para o ligamento periodontal, resultando na conservação de um “fulcro dentário” constante e em equilíbrio com as forças oclusais.

Em alguns casos, o cemento dentário parece ter sido diagnosticado, embora não conclusivamente, sobre as coroas dentárias de certos mamíferos, como adaptação a uma dieta herbívora (Berkovitz et al., 2004).

A classificação do cemento dentário está baseada na fase de desenvolvimento da raiz dentária e na ausência, ou presença, de células cemento-progenitoras, que permaneceriam presas na matriz orgânica calcificada. O cemento dentário Primário não apresenta células cemento-progenitoras e, por isso, é também chamado de “cemento acelular”. Ele se forma durante a fase de formação radicular e erupção dental e estende-se desde a linha cervical até o forame apical da raiz dos dentes, formando uma camada extremamente fina, constituída pelas fibras de Sharpey (Ferraris & Muñoz, 2006). É atribuído um processo histogênico lento e gradativo para a formação e mineralização deste tecido.

Outro tipo é o cemento dentário “Secundário”, formado principalmente no terço apical das raízes e nos espaços inter-radiculares dos molares e sempre situado sobre uma camada prévia de cemento Primário (Osborn & Ten Cate, 1988; Berkovitz et al., 2004).

O cemento Secundário apresenta-se sempre em situações de deposições fisiológicas de compensação de comprimento dentário por perdas de desgaste oclusal e por acomodação aos movimentos dos dentes. Neste caso, a rápida deposição da matriz surpreende diversas células secretoras do cemento, as quais não conseguem se retrair e restam prisioneiras, dentro de cavidades chamadas de cementoplastos (cementum =cemento + plastós =vaso). Este cemento recebe também a denominação de cemento “celular”.

O terceiro cemento dentário aqui referido é o cemento dentário de “Reparação” ou “Cicatricial”. Este tipo de cemento aparece em locais de lesões da dentina radicular. Também é considerado como um tecido de “reparo radicular”, uma vez que pode ser encontrado preenchendo zonas radiculares de reabsorção dentinária externa. Nestas circunstâncias, formam-se estruturas de reparo, onde um núcleo de cemento de reparação 192

preenche a zona radicular lesionada, separando-se desta por uma “linha de reversão” (Osborn & Ten Cate, 1988; Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004).

Por fim, devemos citar uma variedade de cemento dentário chamado de “Intermediário”, descrito por Osborn et al. (1998), que ocorreria nas raízes de pré-molares e dos molares de humanos e também em cães. Este cemento seria caracterizado por apresentar espaços amplos, irregulares e muitas ramificações. A origem destes “espaços” é atribuída à presença pregressa de células da Bainha Epitelial de Hertwig, resultante de restos epiteliais da “alça cervical” que formaria as raízes dentárias, que ficariam presas pelas camadas de cemento. Outra hipótese seria que os espaços representassem a retenção de odontoblastos durante a fase inicial de formação dentina radicular, sendo que estas células teriam restado envolvidas por matriz de cemento (Osborn et al., 1998). 193

14-O APARELHO ESTOMATOGNÁTICO DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

14.1-DESCRIÇÃO/DIAGNOSE ANATÔMICA E HISTOLÓGICA DO DENTÁRIO E DENTIÇÃO DO ESPÉCIME UFRGS-PV0878T

Os materiais fósseis utilizados neste estudo apresentavam excelente estado de conservação diagenética, sem qualquer vestígio de cobertura de óxidos, concreções internas ou externas ou ainda distorções de forma e/ou volume volumétricas decorrentes da compactação/diagênese.

O dentário esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T (Figura 83) apresentava uma fratura em sua região mais caudal, tendo perdido toda a porção posterior ao sexto pós-canino inferior (pc6). Estando ausentes pc7, pc8 e pc9. Entretanto, a maioria dos órgãos dentários remanescentes encontrava-se em bom estado. O grande incisivo central inferior e os incisivos i2 e i3 estavam relativamente completos, apesar de algumas fraturas.

FIGURA 83 - Dentário de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T, mostrando a seqüência dentária, em vista lateral. Abreviaturas: BOI-bossa óssea incisiva; c-canino; D-dentário; i2- segundo incisivo inferior; i3-terceiro incisivo; ici-incisivo central inferior; pc1-primeiro pós- canino inferior; pc2-segundo pós-canino inferior; pc4-quarto pós-canino inferior; pc5-quinto pós-canino inferior; pc6-sexto pós-canino inferior (coroa fraturada); SD-sínfise do dentário.

O canino e os pós-caninos pc1 e pc2 também estavam presentes, sendo que o pc2 se encontrava com maiores danos em sua coroa. O pc3 apresentou perda total da sua coroa, diferentemente do pc4, cuja coroa estava bem conservada. 194

Curiosamente, a dentição de Riograndia, representada por este espécime, apresenta uma configuração ainda mais reduzida que a dentição característica dos mamíferos mesozóicos mais primitivos, com uma composição de três incisivos, um canino, quatro dentes pré-molariformes e quatro dentes molariformes. Portanto, já se observa uma redução significativa no número de incisivos, característica enfatizada por vários autores, como Paula Couto (1979) e Luo (2002), como passo importante na configuração de uma dentição mamaliana.

Em UFRGS-PV0787T, a coroa dental do incisivo central é hipertrofiada e muito proodonte, enquantos os outros dois incisivos que se seguem apresentam coroas dentais bem menores e de proodontia menos acentuada. A altura e o volume coronais do segundo incisivo inferior (i2) são bem maiores que o terceiro incisivo. A coroa do canino apresenta-se mais volumosa e menos proodonte que os incisivos i2 e i3.

O quinto pós-canino inferior (pc5) mostra-se com a coroa íntegra, enquanto o pc6 teve a sua coroa fraturada quase que no nível cervical. Os pós-caninos subsequentes não estão presentes devido à linha de fratura na região posterior. Mesmo apresentando alguns danos, este material representa um excelente conjunto anatômico para a abordagem histológica, seja pela preservação do material, seja pela qualidade de conservação diagenética das estruturas.

O incisivo central inferior (ic) em Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T além de mostrar-se extremamente hipertrofiado, proodonte e afilado em seu bordo incisal, também apresenta, em sua face distal uma ampla e bem definida faceta de desgaste oclusal. O ic também mostra o bordo incisal afilado e em forma de bisel auto-afiável. Bonaparte et al. (2001) definiram que estas facetas de desgaste de esmalte, existentes em Riograndia, são causadas pelo atrito alimentar e que não resultariam de processos oclusais de natureza de verdadeira mastigação. Os demais incisivos e o canino também foram considerados como proodontes. Segundo Bonaparte et al., 2001, através de uma simples observação da anatomia externa não se poderia definir a existência de um modelo de substituição dentária, seja ela alternada, como usualmente ocorre entre os répteis, ou de outra natureza. Entretanto, Bonaparte et al. (2001) sugeriram que a maioria dos espécimes de Riograndia seriam “adultos ou sub-adultos, com uma baixa taxa de substituição dentária”, sendo que esta dentição alternada culminaria com um padrão que os autores, sugestiva e contraditoriamente, terminaram por classificar como “permanente”. 195

Após a primeira inclusão em resina, o dentário UFRGS-PV0787T foi levado para polimento em corte parasagital lateral, que revelou os elementos ilustrados na Figura 84. As estruturas dentárias e osteológicas que compõem a região sinfiseal de Riograndia formam um quadro de arquitetura e fisologia ósteo-dentária muito complexa.

FIGURA 84 - Fotografia do dentário de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T, em vista medial, em fase inicial de polimento, em plano parassagital. Abreviaturas: BOI-bossa óssea incisiva; CA-cavidades aéreas; CPR-cavidade pulpar radicular; POVD-parede óssea rostro- ventral do dentário; PORLD-parede óssea rostro-lingual do dentário; RI-raiz do incisivo; OFC-osso de fusionamento cervical; BCAA-bisel coronal auto-afiável.

Neste plano de corte não estão visíveis os demais dentes e o incisivo central mede um comprimento total de 8,2 mm. A coroa dental apresenta 3,2 mm de comprimento e a raiz mede 5,0 mm, apresentando um diâmetro máximo de até 2,4 mm em seu terço médio.

O incisivo central apresenta-se hipertrofiado e a coroa mostra uma forma complexa, podendo ser dividida em um corpo da coroa dental, com forma de ogiva, e uma fina lâmina incisal rostral. O corpo da coroa mede aproximadamente 1,0 mm, enquanto a estrutura incisal com bisel auto-afiável lingual mede aproximadamente 2,2 mm.

A raiz do ic apresenta a forma de um bulbo e a região cervical é bem definida. A cavidade pulpar coronal se inicia no nível da raiz dentária e encontra-se totalmente obliterada por dentina secundária. A cavidade pulpar radicular é muito ampla, mas também está reduzida por depósitos de dentina secundária, principalmente nas paredes dentinárias do terço superior da face rostral do dente. O ápice radicular mostra-se aberto e, nesta região, as paredes dentinárias radiculares são muito finas, não ocorrendo o fechamento do forame apical.

As estruturas ósseas de suporte radicular do ic apresentam arquitetura óssea elaborada. As paredes ósseas alveolares (lâminas cribriformes) não estão perfeitamente 196

dissociadas das paredes sinfiseais, embora um pequeno segmento da lâmina alveolar possa ser observado junto à face dorsal da raiz dentária. A estrutura óssea de suporte do incisivo central é formada, principalmente, por paredes muito espessas de osso lamelar, de origem intramembranosa, nas quais são visíveis grandes e pequenas cavitações aéreas do tipo sinusal. Estas cavitações estão presentes principalmente nas paredes ósseas que suportam a face lingual da raiz dentária do incisivo central. A face óssea rostral de suporte do ic se apresenta menos espessa e com cavitações aéreas menores.

Surpreendentemente, nas regiões cervicais deste incisivo central, observamos a presença de grande quantidade de osso reticular, extremamente vascularizado, semelhante a um osso de fusionamento (attachment bone), afixado junto à borda cervical do mesmo. Tal distribuição óssea pode ser explicada como uma forma de fixação dentária mais resistente aos esforços mastigatórios. Este tipo de tecido ósseo reticular, que faz parte do sistema lamelar intramembranoso, pode ser reabsorvido e redepositado rapidamente, pela sua natureza fisiológica de alta labilidade (Enlow, 1969; Francillon-Vieillot, 1990).

Os incisivos inferiores e o canino de UFRGS-PV0787T (Figura 85 e 86) apresentam-se muito proodontes, com angulação de erupção e tamanhos diferentes. No plano de corte efetuado, podemos observar o alinhamento rostro-caudal das estruturas dentárias dos incisivos ic, i2, i3 e do canino, que formam um estranho conjunto de estruturas dentárias coronais radiadas, quando observadas em relação à sua angulação com o osso dentário.

FIGURA 85 - Fotografia, em vista lateral, do dentário de Riograndia guaibensis UFRGS- PV0787T, em corte parasagital profundo. A imagem mostra a seqüência de dentes mais anteriores, com o incisivo central, os demais incisivos e o canino, todos bem alinhados, num arranjo radial. Abreviaturas: CAA-cinzel auto-afiável; c-canino; D-dentário; ic-incisivo central; i2-incisivo lateral; i3-terceiro incisivo; PORV-parede óssea rostro-ventral.

O ic é o dente “dominante” devido ao fato de ser hipertrofiado, muito procumbente e apresentar a coroa recurvada dorsalmente. Apresenta um ângulo de erupção 197

inicial de aproximadamente 30° em relação ao eixo maior do dentário, mas sua extremidade incisal curva-se abruptamente, estando o bisel auto-afiável situado a aproximadamente 40º, em ângulo e anatomia dentária semelhante aos encontrados na extremidade coronal do incisivo lateral. O bisel auto-afiável situa-se em plano com a face vestibular do dente.

A raiz dentária do ic é de natureza hipertrófica, sendo que o seu ápice radicular está caudalmente extendido até o ápice radicular do 2° pós-canino. A raiz se apresenta muito expandida, com a clara função de favorecer a dispersão das tensões exercidas durante o fisiologismo mastigatório.

FIGURA 86 - Fotografia da lâmina petrológica do dentário de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T. Abreviaturas: c-canino; ic-incisivo central; i2-incisivo lateral; i3-terceiro incisivo; pc1-primeiro pós-canino; pc2-segundo pós-canino.

O segundo incisivo (i2) apresenta em torno de 4,2 mm de comprimento, com a coroa em forma de ogiva, em cuja extremidade também pode ser visto um bordo incisal extremamente afilado e em forma de cinzel auto-afiável. A raiz se mostra retilínea, extremamente delgada no seu ápice e não existe delimitação de uma região cervical. A cavidade pulpar coronal está totalmente obliterada por formação de dentina fisiológica secundária. Seu ângulo de erupção, em relação ao dentário, é de aproximadamente 40°.

O i3, por sua vez, apresenta um comprimento total de aproximadamente 3 mm e uma angulação de erupção de quase 50°, em relação ao dentário. É um dente menos volumoso que ic e i2, mas sua coroa está no mesmo plano de i2 e do canino. Sua coroa e a 198

raiz estão perfeitamente alinhadas e a cavidade da câmara pulpar coronal também está obliterada por dentina secundária. Diferentemente dos incisivos central e lateral, este terceiro incisivo não apresentou a típica borda incisal em forma de cinzel auto-áfiavel. Nós atribuímos este fato a uma provável fratura transversal da extremidade da coroa dentária, uma vez que a forma geral da parte remanescente da coroa do dente permite inferir que ele seria muito semelhante ao i2. O canino de UFRGS-PV0787T é um dente retilíneo e muito volumoso, apresentando um comprimento de 3,1 mm. Ele se mostra menos proodonte que os dentes incisivos, com uma angulação de aproximadamente 60° em relação ao eixo maior do dentário. A coroa dentária mostra sua extremidade truncada em plano, provavelmente como resultado de desgaste dentário ou de fratura. A cavidade pulpar coronal também está obliterada por dentina secundária, à semelhança do que pode ser observado nos demais dentes anteriores.

O primeiro e segundo pós-caninos (Figura 86) foram os únicos dentes posteriores que restaram neste plano de laminação de UFRGS-PV0787T. Apesar da falta de outros pós-caninos, as informações adicionadas nesta imagem são fundamentais para a compreensão da dentição deste táxon.

O primeiro pós-canino (pc1) tem aproximadamente 4,0 mm de comprimento total, apresentando anatomia coronal e radicular muito diferente dos dentes anteriores (Figura 86). A coroa dental é alargada mésio-distalmente e comprimida no sentido lábio-lingual. As bordas da coroa estavam muito fraturadas, mas o centro da estrutura coronal permaneceu preservado.

Este dente apresenta uma suave constrição cervical e a raiz dentária mostra uma leve expansão em seu terço mediano. A raiz também apresenta uma leve sinuosidade em seu trajeto cérvico-apical, estando o forame apical fechado. A cavidade pulpar coronal está totalmente obstruída por dentina secundária, enquanto a cavidade pulpar radicular mostra-se ampla e levemente expandida no terço médio da raiz.

Do pc2, estão ausentes as regiões distais e apicais da raiz dentária e uma pequena porção da coroa dental (FIG. 86). A estrutura dental remanescente apresenta 3,2 mm e sua anatomia é semelhante à do primeiro pós-canino. Novamente, chama a atenção a obliteração da cavidade pulpar coronal pela produção de dentina secundária, mostrando que este seria um padrão fisiológico normal nos dentes inferiores de Riograndia guaibensis. A raiz dentária do pc2 também se mostra expandida em seus dois terços mais apicais, fazendo com que a cavidade pulpar se apresente ampliada nesta região. 199

A Figura 87 mostra claramente que os dentes, até o nível do primeiro pós- canino, não apresentam qualquer sinal de rizoclasia esfoliativa, ou seja, são evidências de que o germe dentário de um dente de substituição estivesse agindo no sentido de promover a reabsorção radicular e a conseqüente esfoliação do dente precedente. Todas as raízes dentárias, com exceção da do canino, estão íntegras e bem desenvolvidas em seu terço apical, inclusive com o perfeito fechamento do forame radicular, indicação de que o dente atingiu a sua plenitude funcional. Por outro lado, é claramente visível, no corte ilustrado, uma pequena coroa embrionária, em fase de campânula, do canino de substituição (CS). Como se pode observar, o modelo de estudo permitiu a observação das fases de desenvolvimento embriológico dos dentes, elementos fundamentais para as análises posteriores da dentição de Riograndia.

FIGURA 87 - Fotografia de vista medial do dentário de Riograndia guaibensis UFRGS- PV0787T, após fase inicial de polimento. Note-se a proodontia do ic, a presença da coroa, em fase embrionária, do canino de substituição (CS) e a criptação óssea, junto ao ápice radicular, no nível do pc2. No pc4, o dente mostra a formação radicular completada. Abreviaturas: c- canino; ic-incisivo central; i2-incisivo lateral; i3-terceiro incisivo; pc1-primeiro pós-canino; pc2-segundo pós-canino; pc4-quarto pós-canino.

14.2-DESCRIÇÃO/DIAGNOSE ANATÔMICA E HISTOLÓGICA DO DENTÁRIO E DENTIÇÃO DO ESPÉCIME UFRGS-PV1033T

A região sinfiseal do dentário direito de Riograndia guaibensis UFRGS- PV1033T (Figura 88), cortada em um plano parasagital profundo, apresenta uma 200

complexidade anátomo-histológica semelhante à encontrada em UFRGS-PV0787T, embora mostre algumas diferenças que atribuímos a variações de caráter ontogênico.

FIGURA 88 - Fotografia de dentário direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV1033T. Corte parassagital no nível do incisivo central, mostrando a estrutura óssea e dental interna da região sinfiseal. Abreviaturas: CAP-cavidades aéreas perirradiculares; ELP-espaço do ligamento periodontal; FDO-faceta de desgaste oclusal; FR-forame radicular; CPD-cavidade da papila dental; LAC-lâmina alveolar cribriforme; PORVD-parede óssea rostro-ventral do dentário; PORLD-parede óssea rostro-lingual do dentário; OFC-osso de fusionamento cervical.

Em secção parassagital, o dentário UFRGS-PV1033T apresenta uma espessa parede ventral da região incisal, que é formada por uma cortical óssea espessa de osso lamelar, sem a presença de cavitações. A estrutura da lâmina alveolar (cribriforme) não pode ser visualizada, sugerindo que seja representada pela porção interna da cortical óssea sinfiseal. Enquanto isso, a parede óssea situada dorsalmente à raiz do incisivo central se apresenta mais espessa e com uma arquitetura mais complexa. Esta parede óssea, posterior ao bulbo radicular, apresenta uma lâmina alveolar cribriforme anatomicamente definida, diferentemente do observado em UFRGS-PV0787T. Entre a raiz dentária e a parede alveolar, visualiza-se uma zona linear preenchida por material sedimentar, que representa o espaço do ligamento periodontal.

Dorsalmente, encontra-se uma zona onde várias cavidades aéreas do tipo sinusal estão preenchidas por tecido ósseo de natureza reticular, mostrando inúmeros canais vasculares anastomosados irregularmente. A presença de tecido ósseo reticular indica que esta região do osso dentário estaria em fase de modelamento osteológico rápido, tipo 201

deposição/reabsorção, característico de animais em fase juvenil de crescimento/desenvolvimento ontogênico.

A organização destas estruturas periodontais em UFRGS-PV1033T também mostra aspectos anátomo-histológicos surpreendentes, uma vez que o espaço periodontal, tanto nas proximidades da região cervical ventral quanto na face lingual da raiz do incisivo central, se encontra atrésico, apresentando evidências de fusionamento ósteo-radicular. Isto demonstra que o incisivo central inferior apresentaria um “colar cervical” de osso de fusionamento, característica anátomo-histológica que também foi encontrada em UFRGS- PV0787T e, portanto, deve representar um evento fisiológico normal neste táxon.

A presença de osso de fusionamento em dentes de triteledontídeos foi considerada por Gow (1985) e Rowe (1993) como um caráter plesiomórfico, de reversão apomórfica. Entretanto, em nosso entendimento, este processo parece ser uma convergência adaptativa presente na dentição de diversos táxons de sinápsidas herbívoros, fósseis e atuais, que apresentam oclusão dentária abrasiva e constante, tendo surgido repetidas vezes entre as linhagens mamalianas.

A espessa parede óssea lingual da região incisal do dentário é constituída de osso lamelar, à semelhança do que foi encontrado em UFRGS-PV0787T, evidenciando que esta região do dentário estaria submetida a intensos esforços e tensões advindas dos processos de roer aos quais estavam submetidos os incisivos centrais inferiores e a sínfise do dentário.

As estruturas ósseas perirradiculares formam uma cavidade, com a forma de um bulbo, em cujo interior está situada a imensa raiz do incisivo central. Esta raiz é muito aberta na região do forame apical. As paredes radiculares apicais são finas e a cavidade pulpar radicular é muito ampla, diferentemente do observado nos demais dentes incisivos e canino de UFRGS-PV0787T, onde a formação de dentina secundária levou à diminuição da cavidade pulpar radicular.

O forame radicular mostra-se aberto e a presença uma ampla cavidade, preenchida com material diagenético, indica que a papila dental permanecia em estado ativo contínuo. Em sua face distal, a coroa dentária coronal apresenta uma grande e bem definida faceta longitudinal de desgaste oclusal.

O padrão anatômico até aqui revelado pela anatomia dos dentários de Riograndia guaibensis, com incisivos centrais hipertrofiados e procumbentes, associados a uma organização osteológica sinfiseal complexa, é análogo àquele presentes nos roedores 202

(Rodentia) e Lagomorfa, fósseis e atuais (Paula Couto, 1979; Orr, 1986; Hildebrand, 1995), e em particular com Ctenomys torquatus, o táxon atual que utilizamos para comparação, cujos incisivos de crescimento contínuo seriam submetidos à desgastes incisais constantes.

Acreditamos que, tal como nos mamíferos atuais citados, os incisivos de Riograndia apresentariam crescimento radicular contínuo até uma idade próxima à velhice do espécime, quando então as cavidades pulpares radiculares seriam totalmente preenchidas de dentina secundária, os forames apicais finalmente se fechariam, e as coroas dos dentes seriam totalmente desgastadas, chegando então a senilidade e a morte dos animais.

Os demais dentes do espécime UFRGS-PV1033T foram cortados em planos levemente oblíquos e, como se apresentaram anatomicamente pouco representativos, não foram descritos neste trabalho.

14.3-DESCRIÇÃO ANÁTOMO-HISTOLÓGICA DA DENTIÇÃO DE UM ESPÉCIME DE CTENOMYS TORQUATUS

Significativamente, no decorrer do presente projeto de Tese, não encontramos estudos de anatomia e histologia ósteo-dentárias, com a abordagem aqui proposta, que pudessem subsidiar minimamente este trabalho. Então, com o objetivo de melhor avaliar as possíveis convergências da dentição de Riograndia guaibensis com os aparelhos mastigatórios dos roedores atuais, optamos por realizar a preparação – e posterior estudo - de materiais cranianos e dentários de Ctenomys torquatus (Figura 89) um pequeno rodente sul- americano atual.

A preparação deste material seguiu os mesmos princípios que utilizamos para o estudo anátomo-histológico de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001).

203

FIGURA 89 - Fotografia de crânio e dentário de Ctenomys torquatus, em norma lateral esquerda, mostrando o nível de procumbência dos incisivos centrais superiores e as bossas ósseas de suporte dentário. Abreviaturas: BI-bisel incisal; BO-bossas ósseas do dentário; DA- diastema; D-dentário; I1-incisivo central superior; i1-incisivo central inferior; PM-pré- maxilar; MX-maxilar; m-molares inferiores; M-molares superiores.

O incisivo central do dentário (i1) é muito proodonte (Figura 90) apresentando- se em forma de um cilindro uniforme e mostrando um bordo incisal em bisel auto-afiável. A raiz do i1 é hipertrofiada e apresenta-se aberta. As estruturas ósseas no entorno da raiz apresentam inúmeras e bem organizadas cavitações aéreas, do tipo sinusal, que são sustentadas por trabéculas ósseas. Na face lingual do dentário, o osso lamelar é bastante espesso. Já na face rostro-ventral, o osso lamelar também é de natureza intra-membranosa, mas se apresenta menos espesso.

204

FIGURA 90 - Fotografia de vista medial do dentário inferior direito de Ctenomys torquatus em corte sagital profundo, em fase inicial de laminação. Podemos observar a forma curva e procumbente (proodonte) do incisivo central (ic). As paredes ósseas de suporte do incisivo apresentam a organização osteológica e dentária complexas que caracterizam a maioria dos roedores. Abreviaturas: BOS-bossa óssea sinfiseal; ic-incisivo central inferior; PORV-parede óssea rostro-ventral; PORL-parede óssea rostro-lingual; SAPR-seios aéreos perirradiculares; TOF- Tecido Ósseo de Fusionamento; TO-trabéculas ósseas; BI-bisel incisal, CPR-Cavidade pulpar radicular.

Os seios aéreos perirradiculares estão presentes na parede rostro-ventral do dentário e na parede rostro-lingual e constituem as estruturas de suporte físico-mecânico para os incisivos centrais inferiores.

Como se pode observar, as bossas ósseas associadas à raiz do incisivo central inferior não são estruturas ósseas compactas de natureza hiperplásica, resultantes de um simples espessamento das camadas de tecido ósseo lamelar. Estas bossas ósseas apresentam arquiteturas ósseas complexas, certamente adaptadas ao suporte das imensas e constantes tensões e pressões das atividades fisiológicas associadas ao ato de “roer” e às atividades de escavação de galerias. Esta “arquitetura óssea complexa” se manifesta através da organização de cavitações, arcos e diversas colunas de osso lamelar e algum osso esponjoso. Além disso, as bossas ósseas sinfiseais dos roedores conformam, internamente, um alvéolo incisal bastante amplo, para abrigar as raízes dentárias hipertrofiadas e os imensos folículos dentários dos incisivos de crescimento contínuo, que permanecem embrionicamente ativos durante toda a vida adulta destes animais. 205

A Figura 91 apresenta um corte parassagital do ápice coronal do incisivo central inferior de Ctenomys torquatus, mostrando uma característica e peculiar distribuição de esmalte sobre o dente. O esmalte dentário, de natureza prismática, é formado na face bucal dos incisivos centrais e está ausente na face lingual.

FIGURA 91 - Fotomicrografia do ápice coronal do incisivo central inferior esquerdo de Ctenomys torquatus (10 X), sob luz polarizada, em um corte parassagital. A imagem mostra a disposição da dentina e do esmalte prismático. Abreviaturas: D-dentina; E-esmalte; FB-face bucal; FL-face lingual.

Na face lingual dos incisivos centrais o esmalte não é depositado durante a odontogênese. Esta disposição distribuição heterotópica de esmalte é uma característica dos roedores fósseis e atuais (Paula Couto, 1979; Martin, 2005) e, devido à abrasão diferenciada entre esmalte/dentina, determina que um bisel auto-afiável se estabeleça na extremidade apical incisal, associada com a presença do processo de thegosis.

A Figura 92 mostra a organização histológica do incisivo central direito de Ctenomys torquatus, com o esmalte prismático depositado sobre a zona do manto dentinário e, ainda mais internamente, a primeira camada de dentina primária.

206

FIGURA 92 - Fotomicrografia de esmalte prismático/dentina do incisivo central inferior direito de Ctenomys torquatus (10X), em corte longitudinal parassagital, sob luz polarizada. Abreviaturas: D-dentina; E-esmalte; FB-face bucal; BHS-Bandas de Hunter-Schreger (camada de esmalte prismático); JAD-junção amelo-dentinária; MD-manto de dentina; CEA- Camadas duplas externas de esmalte aprismático; CIA-camada interna de esmalte aprismático.

O esmalte dentário mostra três camadas distintas de esmalte. Uma fina camada de esmalte aprismático, na qual os prismas se mostram indistintos, ocorre próximo à JAD. Ocupando a zona mais central do esmalte encontramos esmalte dentário de natureza prismática, simétricamente alinhados entre si, que se apresentam em ângulo de aproximadamente 45° em relação à JAD. As Bandas de Hunter-Schreger, também dispostas obliquamente, são bem visíveis nesta zona intermediária. Mais externamente, pode-se observar uma dupla camada externa de esmalte aprismático.

14.4-EMBRIOLOGIA DENTAL E O PADRÃO DE SUBSTITUIÇÃO DENTÁRIA EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Apesar de apresentar um precário estado de preservação anatômica, o dentário esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0791T (Figura 93) foi preparado com o objetivo de gerar material de estudo anátomo-histológico adicional. Após o primeiro desgaste, porém, este fóssil se revelou como um dos achados mais importantes deste trabalho, pelas 207

inúmeras informações anátomo-histológicas ali presentes, relacionadas com a embriologia dentária.

O material em questão se apresentava, à primeira vista, com poucas estruturas dentárias preservadas, uma vez que a região sinfiseal, os incisivos e o canino foram perdidos devido a uma fratura da região anterior. Adicionalmente, linhas de fratura seccionaram o dentário e os dentes pós-caninos em um plano oblíquo ântero-posterior. Por isso, a imagem da Figura 93 representa uma “reconstrução” da situação real do dentário, efetuada através de programas gráficos, uma vez que uma linha de sedimento preenchia esta fratura e separava as estruturas dentárias.

O dentário de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0791T ilustrado na Figura 93 mostra diversos dentes em estágios de organogênese e embriogênese diferentes. Na região dos pós-caninos, várias unidades dentárias estão total ou parcialmente presentes. Em relação à dentição já estabelecida, são passíveis de identificação os órgãos dentários de pc2, pc3, pc4, pc5 e pc6.

Adicionalmente, dois germes dentários ainda em formação, no interior de suas criptas ósseas do dentário, fossilizaram em estágios iniciais de organogênese e de mineralização coronal, em fase de campânula, e trazem evidências importantes para o entendimento do padrão de substituição dentária neste táxon. Um terceiro germe dentário, pertencente ao dente de substituição do pc2, parece ter sua organogênese surpreendida em uma fase pré-campânula, e não mostra vestígios de esmalte ou dentina mineralizados.

208

FIGURA 93 - Fotografia do dentário esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0791T, em plano medial. Abreviaturas: ceffc-coroa embrionária em fase final de campânula; cefic- coroa embrionária em fase inicial de campânula; d-dentário; pc2-segundo pós-canino; pc3- terceiro pós-canino; pc4-quarto pós-canino; pc5-primeiro molariforme; pc6-segundo molariforme.

Mesmo nos estudos de anatomia e de histologia em fósseis, raramente são encontrados bons indícios de natureza embriológica. Excepcionalmente, no caso de UFRGS- PV0971T, a morte de um animal juvenil, cujos pós-caninos inferiores estavam ainda em fase de substituição dentária, proporcionou uma oportunidade rara neste sentido.

O exemplar UFRGS-PV0971T era um animal em fase ontogênica de transição de juvenil para adulto. Isto pode ser observado porque, além de ser pequeno, o fragmento do osso dentário apresenta diversos dentes em fases diferenciadas de desenvolvimento organogênico. Além disso, evidencia um padrão de substituição dentária reconhecível como difiodonte, tal como será discutido mais adiante. Neste segmento, também podemos ver alguns dentes que se apresentam em fase de rizólise fisiológica. A Figura 94 apresenta detalhes, em maior aumento, de partes da Figura 93, representando um dos mais importantes resultados deste trabalho. As estruturas dentárias aqui mostradas formam um quadro parcial do processo de substituição dos dentes pós-caninos inferiores de Riograndia, permitindo que possamos avaliar o padrão de substituição dentária que acorreria neste (e provavelmente nos demais) Tritheledontidae. 209

FIGURA 94 - Composição fotográfica, em vista medial, do dentário esquerdo de Riograndia guaibensis, UFRGS-PV0791T, num plano parasagital profundo. Abreviaturas: cec-coroa dental em estágio de campânula; cdepc-coroa dental em estágio pré-campânula; pc2-segundo pós-canino; pc3- terceiro pós-canino; pc4-quarto pós-canino; pc5-quinto pós-canino (1° molariforme); pc6-sexto pós-canino (2° molariforme); cpde-cavidade da papila dentária embrionária. No dentário UFRGS-PVO791T restaram tão somente partes do segundo, terceiro e quarto pós-caninos (pc2, pc3 e pc4). Dos dentes mais posteriores ainda estão íntegros o primeiro e o segundo “molariformes” (pc5, pc6). O pc4 “decíduo” apresenta-se transversalmente fraturado no limite entre a coroa e raiz dentárias. Sua cavidade pulpar coronal está totalmente obliterada por dentina secundária e o canal radicular se apresenta atrésico, em consequência da grande quantidade de “dentina fisiológica” depositada sobre as suas paredes internas. As paredes dentinárias radiculares remanescentes, em pc4, são muito mais espessas que as paredes radiculares de pc5 e de pc6, o que nos permite determinar que pc4 seria um dente “mais velho” que aqueles molariformes. Já a porção proximal da raiz dentária do pc4 está totalmente ausente, devido à rizólise esfoliativa causada pela coroa de um dente de substituição, em fase inicial de desenvolvimento, que se situa abaixo deste quarto pós- canino. As porções mais mesiais do ápice radicular estão presentes, embora a extremidade deste tenha sido reabsorvida por este evento de substituição dentária.

Este dente de substituição está em um estado de organogênese dentária que poderia ser classificado como “fase final de campânula”, pois todas as cúspides e as demais estruturas coronais já se encontravam fusionadas entre si e o esmalte já havia passado pela fase de maturação. Estão presentes todo o esmalte e a dentina primária coronal que iniciaram a formação do dente pc4 permanente. Neste caso, a morte do animal foi o evento que “congelou” este processo embriológico. 210

Outro fato que podemos notar claramente é que existe uma forte discrepância volumétrica entre o pc4 que está sendo substituído e a coroa dental embrionária sob sua raiz. A coroa dental em fase de final campânula apresenta aproximadamente 1,1 mm em seu sentido meso-distal, enquanto que o dente pós-canino (pc4) que ele estaria prestes a substituir apresenta quase 1,3 mm de comprimento mésio-distal. Este padrão alométrico negativo que ocorre no dente de substituição é um caráter heterocróno que representa um processo pedomórfico, de redução de estruturas derivadas.

Sob a coroa do germe dental em fase organogênica final de campânula, que corresponde ao pc4 de substituição, podemos observar uma grande cavitação óssea do dentário, que representa a cavidade onde estaria abrigada a papila dentária embrionária, constituída por tecidos moles, a qual se perdeu durante o processo de necrólise pós-morte.

FIGURA 95 - O processo de substituição dentária do pc4 esquerdo decíduo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0791T. A - Fotomicrografia em microscopia de luz polarizada (20 X); B – Diagrama esquemático explicativo da foto. Pode-se observar a fase de desenvolvimento do pc4 permanente e, também, parte do processo de rizólise esfoliativa do dente pc4 decíduo. Abreviaturas: CPD-cavitação da papila dentária; CDFC-coroa dental em fase de campânula; RDR-raiz dentária residual; EED-esmalte do embrião dentário; DPED-dentina primária do embrião dentário.

Adicionalmente, observou-se que apenas partes remanescentes da estrutura da coroa dental do terceiro pós-canino (pc3), estão presentes (Figura 94). A parte mais apical da coroa dental foi fraturada e o restante do dente foi objeto de fratura e de rizólise fisiológica esfoliativa, como se pode depreender pela presença, abaixo do mesmo, de restos de uma coroa dentária em um estágio inicial da fase de campânula (cdepc, na Figura 94). Isto pode ser inferido pelo fato de que os segmentos de cúspides e facetas, os quais deveriam constituir a coroa deste dente, se apresentam aleatoriamente dispersos no interior da cripta óssea do 211

dentário. Isto mostra que ocorreu a interrupção do processo de maturação de um dente em fase mediana de campânula, com uma coroa ainda disforme e desorganizada e os diversos segmentos de esmalte ainda parcialmente imaturos. As diversas faces e cúspides da coroa estão inconclusas e não fusionadas, num padrão semelhante ao que ocorre em dentes humanos, tal como demonstrado por Berkovitz et al., 2004.

Ainda mais rostralmente, sob a estrutura radicular do pc2, encontramos um princípio de rizólise radicular e uma pequena cavitação óssea que atribuímos ao início do processo de odontogênese do segundo pós-canino permanente. Este germe dentário (coepc2) estaria em uma fase ainda mais incipiente de desenvolvimento organogênico que o terceiro pós-canino e, portanto, não restaram elaborados e mineralizados quaisquer vestígios da estrutura de esmalte e dentina.

Desse modo, constata-se que os embriões dentários coepc4, coepc3 e coepc2, encontram-se em estágios embrionários organogênicos progressivamente menos avançados, o que estabelece que:

1-o padrão de substituição dentária, em Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001) não obedecia um padrão alternado e sim formava uma “onda contínua” nos pós- caninos imediatos;

2-a onda de substituição dentária dos pós-caninos imediatos ocorria em um sentido póstero-anterior, tal como o chamado “padrão seqüencial reverso dos prémolariformes” dos mamíferos.

Este padrão (integrante do conjunto de processos que definem a difiodontia) supostamente estaria restrito aos mamíferos superiores placentários (Kielan-Jaworowska et al. 2004), uma vez que Morganucodon apresentaria um padrão sequencial antero-posterior para a substituição dos pós-caninos imediatos, em uma feição considerada primitiva em relação aos mamíferos placentários (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Assim, contrariamente ao padrão alternado de substituição dentária que vinha sendo atribuído a este táxon (Bonaparte et al., 2001, 2003; Gow, 1980; Wood et al., 1999; Kielan-Jaworowska et al., 2004; Luo, 1994; Luo et al., 2002; Martinelli et al., 2005), foi possível verificar que Riograndia guaibensis apresenta um padrão seqüencial reverso de substituição dos dentes pós-caninos imediatos.

Além disso, a presença, em Riograndia, deste padrão derivado de difiodontia ocorre em conjunção com outros elementos de desenvolvimento craniano, como o 212

crescimento craniano determinado, a não substituição dos molariformes e outros elementos anátomo-histológicos caracteristicamente mais derivados, como será possível observar na continuidade desta análise de histologia básica.

Nesse contexto, fomos compelidos a adotar, nas fases subsequentes deste texto (quando possível), a utilização de termos e de notação dentária referentes a uma dentição mamaliana, no sentido de tornar mais compreensível os caracteres anatômicos encontrados em Riograndia. Portanto, a partir deste ponto, passaremos a usar os termos “pré-molariforme” (pm) para os pós-caninos de pc1 ao pc4 e “molariforme” (m1, m2, m3, ...) para os pós- caninos pc5, pc6, etc. Isto também ocorre no sentido de reforçar a definição do presente diagnóstico, uma vez que entendemos que a análise histo-anatômica torna claramente evidente a natureza difiodonte deste fóssil.

14.5-ANATOMIA DENTÁRIA DOS PÓS-CANINOS EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS

A anatomia e os estados morfogênicos dos dentes molariformes m1 e m2 (pc5 e pc6) (Figura 96) reforçam ainda mais a diagnose de uma dentição difiodonte placentária para o triteledontídeo Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001).

FIGURA 96 - Composição fotográfica de dentário esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0791T, mostrando a sequência de eventos embriológicos de substituição dentária 213

de natureza difiodonte mamaliana. Abreviaturas: coepc2-cripta óssea e embrião do segundo pós-canino permanente; coepc3-cripta óssea e embrião do terceiro pós-canino permanente; coepc4-cripta óssea e embrião do quarto pós-canino permanente; CRD-canal radicular distal; CRM-canal radicular medial; m1-primeiro molariforme; m2-segundo molariforme; pm-pré- molariformes; TD-trave de dentina.

O primeiro molariforme (m1) apresenta aproximadamente 3,0 mm de comprimento e 1,0 mm de largura na coroa. O dente apresenta uma região cervical pouco demarcada, de modo que a coroa e a raiz dentária adquirem o padrão de um fuste alongado. O dente é extremamente comprimido em sua dimensão línguo-bucal e isto pode definir os padrões diferenciados de organização no número e na forma dos canais radiculares. Nesse sentido, pode-se observar (Figura 96) a presença de uma trave de dentina (TD) que corta a cavidade pulpar radicular em sentido longitudinal, conformando internamente a presença de dois canais radiculares. A produção de dentina secundária obliterou a totalidade da cavidade pulpar coronal, mas a cavidade pulpar radicular permaneceu larga e expandida no terço médio da raiz. De fato, é possível identificar claramente a presença de dois canais radiculares atrésicos, que se abrem apicalmente através de dois forames apicais isolados. O desenvolvimento radicular deste primeiro molariforme se apresenta totalmente completado e se pode visualizar um único ápice radicular, de forma aguda.

O m2 apresenta conformação anatômica externa diferente do m1. A coroa dental e a raiz dentária são fortemente comprimidas no sentido buco-lingual e o dente mostra- se mais alargado mesio-distalmente. Este dente apresenta aproximadamente 2,8 mm de comprimento e 1,3 mm de extensão mesio-distal. A raiz é larga e única, com dois canais radiculares amplos que se abrem apicalmente através de dois forames, situados em um ápice radicular largo. Podemos observar, também, que estes molariformes estão em fases diferentes de rizogênese e desenvolvimento organogênico dental. Enquanto m1 já completou sua rizogênese e apresenta paredes dentinárias pulpares radiculares espessas, pela formação adicional de dentina secundária, em m2 pode-se visualizar paredes dentinárias menos espessas, devido à pouca ou não-formação de dentina secundária. Portanto, a presença de paredes dentinárias radiculares mais finas na raiz do segundo molariforme (m2) é um claro sinal de este dente era mais jovem que o primeiro molariforme, quando o espécime UFRGS- PV0791T morreu. 214

Nas regiões dos ápices radiculares de m1 e m2 não existem cavitações ou quaisquer indícios de ocorrência de fenômenos relacionados à existência de órgãos dentários embrionários de substituição. Isto reforça a hipótese de que estes dentes representariam os molariformes permanentes de uma dentição difiodonte.

Na região do dentário situada distal e apicalmente ao m2 encontramos uma cavitação óssea que atribuímos à cavidade residual do embrião do m3, ainda em fase inicial da organogênese dentária, cujas estruturas não haviam principiado a sua mineralização. A ausência de definição da anatomia das coroas dentárias do primeiro e segundo molariformes foi causada pelo plano de corte.

A anatomia dos dentes pós-caninos de Riograndia guaibensis deve ser analisada tendo como princípio o fato de que este táxon apresentaria hábitos alimentares de herbívoros roedores, e não voltados à carnivoria/insetivoria, como entendido por Bonaparte et al. 2001. Desta maneira, a forma geral e a organização dos dentes tomam uma perspectiva mais coerente.

Neste contexto funcional de herbivoria, os dentes molariformes m1 e m2 de UFRGS-PV0791T devem ser caracterizados como levemente hipsodônticos, sendo indistinguíveis os limites entre as coroas e as raízes dentárias, de modo que não existem regiões cervicais propriamente ditas. A parede mesial da coroa dental é retilínea e se estende para a zona radicular sem qualquer indício de uma constrição ou linha cervical. A parede coronal distal, porém, apresenta uma leve concavidade, que indicaria a separação entre coroa e raiz dentárias.

O mesmo padrão pode ser observado na coroa dentária de um molariforme inferior isolado de Riograndia guaibensis (Figura 97), que apresenta os ápices das cúspides muito desgastados, o que nos permite inferir que este dente já estaria em oclusão funcional quando ocorreu a morte do animal. As cúspides estão mesio-distalmente dispostas e apresentam uma inclinação para a face distal.

215

FIGURA 97 - Fotografia de dente molariforme inferior direito de Riograndia guaibensis, material isolado, provavelmente o quinto pós-canino, em vista bucal. Abreviaturas: AC-ápice coronal; AR-ápice radicular; BD-borda distal; BM-borda mesial; CD-coroa dental; CM- cúspule mesial; C2-cúspule; CLR-constrição longitudinal radicular;

O estudo da anatomia externa das raízes dentárias deste molariforme mostra a extrema complexidade dos elementos dentários deste táxon. As raízes se apresentam muito comprimidas no sentido buco-lingual, mostrando-se assimétricas mesio-distalmente, estando separadas por uma profunda constrição longitudinal em toda a extensão cervico-apical. A borda radicular mesial é extremamente retilínea, enquanto a borda radicular distal apresenta uma proeminente convexidade caudal.

As paredes dentinárias da região apical não foram completamente formadas e o seu lúmen parece ser amplo, aberto e sem a formação de um forame radicular bem delimitado. Estas características, quando associadas às imagens dos dentários com dentes indicam que, a partir da cavidade pulpar, dois canais radiculares se dirigem em direção ao ápice radicular. Assim, o dente apresenta duas raízes totalmente individualizadas, apresentando, cada uma delas, canais radiculares anatomicamente separados um do outro. Além disso, podemos observar que estes canais dentários se abrem no periápice através de dois forames apicais totalmente separados. A presença de dentes com duas raízes diferenciadas também é uma característica dental derivada, considerando os dentes monorradiculares dos cinodontes não-mamalianos. Neste caso, poderíamos considerar que 216

estas feições representariam, para Riograndia guaibensis, estados de caracter derivados, quando comparados aos dentes uniradiculares ou mesmo aos dentes molariformes ancestralmente biradiculados. Como Riograndia guaibensis deve ser considerado um herbívoro, sua dentição obrigatoriamente apresenta características derivadas, supondo-se um ancestral carnívoro- insetívoro que apresentasse os dentes pós-caninos mais caudais com uma ou mesmo com duas raízes dentárias. A redução no número de raízes para somente uma raiz achatada, mas apresentando dois canais radiculares, poderia ser considerado um estado de caráter derivado. No caso de que o caráter ancestral para Riograndia fosse considerado um dente com apenas uma raiz dentária e seu respectivo canal radicular, a presença de dois canais radiculares separados por uma parede de dentina também configuraria um caráter derivado. Assim, Riograndia apresenta um quadro histo-anatômico totalmente coerente e compatível com um pequeno herbívoro muito derivado, que apresenta uma dentição permanente difiodonte em níveis variados de proto-hipsodontia e euhipsodontia. De fato, devemos entender que Riograndia guaibensis estaria perfeitamente adaptado aos hábitos de “roer” alimentos vegetais duros e fibrosos, com comportamentos e biologia semelhantes aos roedores atuais.

14.6-ORGANIZAÇÃO ANATOMO-HISTOLÓGICA DO INCISIVO CENTRAL INFERIOR DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

A observação das estruturas anátomo–histológicas do incisivo central inferior (ic) de Riograndia guaibensis mostra diversos caracteres autapomórficos não diagnosticados durante a descrição original de Bonaparte et al. (2001). Entende-se que a distribuição incomum do esmalte dentário, a complexidade intra-estrutural dos prismas no esmalte e as características dentinárias são caracteres dentários que devem ser associados a um padrão de euhipsodontia. Isto ocorreu porque estes caracteres estavam diretamente relacionados à necessidade de assegurar um duradouro e eficiente desempenho das funções de cada órgão dental ao longo da vida de cada espécime.

O ic de Riograndia é hipertrofiado, extemamente proodonte e apresenta esmalte prismático apenas na suas faces bucal, mesial e distal. Como se pode observar (Figura 217

98) este padrão de distribuição de esmalte tem origem ontogenética e não é apenas resultante da existência de uma faceta de desgaste abrasivo pelo contato com os alimentos. Este modelo biológico de distribuição espacial de esmalte, como já foi anteriormente mencionado, é um caráter agregado à euhipsodontia que é extremamente comum em mamíferos roedores atuais e fósseis.

FIGURA 98 - Fotomicrografia do incisivo central inferior direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T, em corte longitudinal parasagital, sob luz polarizada (10X). Abreviaturas: B-face bucal; D-núcleo de dentina; E-esmalte dentário; L-face lingual.

A euhipsodontia é um padrão de desenvolvimento organogênico dental única e exclusivamente compatível com a difiodontia. As dentições dos vertebrados basais polifiodontes prescindem dos mecanismos heterócronos que permitem o aumento dos períodos de vida útil dos órgãos dentais, pois eles são continuadamente substituídos por novas unidades dentárias.

No modelo de substituição difiodonte dos sinápsidas herbívoros mais avançados, a hipsodontia se apresenta como um caracter derivado relevante. A manutenção das funções mastigatórias dos herbívoros mamalianos somente é permitida mediante a presença de caracteres hipsodônticos integrados. Assim, podemos notar nas dentições permanentes difiodontes adaptadas à herbivoria, que a distribuição e a organização intra- estrutural do esmalte dentário apresentam-se derivadas ao extremo.

No incisivo central de Riograndia Bonaparte encontraram-se caracteres de um esmalte formado por longos prismas, com fortes decussações e uma fina camada externa de 218

esmalte aprismático. Estas características estão igualmente presentes no esmalte prismático dos mamíferos mais derivados (Figura 99) e também são encontradas nos roedores atuais e em outros mamíferos placentários.

FIGURA 99 - Fotomicrografia do terço incisal do ic direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T, sob luz polarizada (20X), mostrando a distribuição de esmalte prismático e aprismático. Abreviaturas: D-dentina; E-esmalte; FB-face bucal; FL-face lingual; JAD- junção amelo-dentinária; CEEA-camada externa de esmalte aprismático.

A espessura do esmalte prismático, na face bucal do ic, não é homogênea. Nas porções mais inferiores do terço incisal o esmalte tem apenas 0,1 mm de espessura, enquanto que, no ápice do incisivo, pode atingir quase 0,2 mm de espessura. Proporcionalmente ao volume do ápice do incisivo, estes valores são muito expressivos. Na extremidade coronal, o esmalte se apresenta tão espesso quanto a dentina. Estas mesmas proporções são muito semelhantes às observadas no incisivo central inferior de Ctenomys torquatus.

A extremidade de dentina do ápice coronal labial do incisivo de Riograndia está totalmente protegida por um pequeno capuz de esmalte prismático, o qual apresenta, externamente, uma fina camada de esmalte aprismático. A vertente lingual do ápice incisal não está recoberta por esmalte e, devido a este fato, ela se apresenta lisa e desgastada em um bisel lingual.

Em toda a face lingual do incisivo central inferior, inclusive nas faces situadas abaixo dos limites da lâmina óssea alveolar, não existem vestígios de que a dentina radicular apresente uma cobertura de esmalte. Em contrapartida, a dentina radicular das faces bucais do 219

incisivo central inferior, mesmo a situada abaixo do nível da lâmina óssea alveolar, apresenta uma camada de esmalte.

Portanto, a ausência de esmalte nas faces linguais dos incisivos centrais de Riograndia não é causada pelos contatos abrasivos dos alimentos e esta disposição de esmalte representa um caracter ontogênico derivado. Esta disposição diferenciada de esmalte representa um caráter ligado à euhipsodontia e permitia que os dentes destes animais fossem auto-afiáveis e adaptados à uma fisiologia oclusal voltada para um hábito herbívoro de “roer”. Estas características constituem fortes evidências no sentido de que este pequeno triteledontídeo apresentava uma fisiologia alimentar muito diferente daquela que lhe tem sido atribuída.

O esmalte dentário do ic de Riograndia (Figura 100) é muito mais derivado e complexo que o esmalte descrito para os dentes pós-caninos de Pachygenelus monus (Gow, 1980; Grine & Vrba, 1980; Wood et al., 1999). Neste caso, devemos admitir que diversas variáveis intrínsecas aos modelos de estudo podem ter levado a este resultado.

O trabalho de Grine et al. (1980) foi realizado sobre pequenos fragmentos de dentes pós-caninos de Pachygenelus monus, sendo que estes dentes apresentavam camadas muito finas de esmalte dentário. A presença de esmalte dentário muito fino tornaria difícil a análise histológica, como constatamos em nossos estudos experimentais em Brasilitherium e Massetognathus.

FIGURA 100 - Fotomicrografia, sob luz polarizada, do terço incisal da face bucal da coroa dental do ic de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T, em corte longitudinal parasagital, 220

mostrando as diversas camadas e estruturas do esmalte (20X). Abreviaturas: CEEA-camada externa de esmalte aprismático; D-dentina; DPE-decussações dos prismas de esmalte; E- esmalte; FB-face bucal; PE-prismas de esmalte.

A dentição de Riograndia guaibensis apresenta diversas características peculiares quando comparada aos demais cinodontes não-mamalianos, Tritheledontidae, Tritylodontidae e com os mamíferos mesozóicos. O esmalte dentário mostra uma complexa organização intra-estrutural, onde estão perfeitamente visíveis os prismas de esmalte, a matriz inter-prismática e as decussações dos prismas. Toda esta complexidade tecidual do esmalte de Riograndia caracteriza o que Koenigswald (1997) denomina de “schmelzmuster”, ou seja, a organização interna tridimensional de esmalte dos mamíferos placentários.

Por outro lado, no ic, a presença das decussações dos prismas de esmalte não resultou em geração das Bandas de Hunter-Schreger. Vários fatores podem ser responsáveis pela impossibilidade de diagnose das BHS:

A-O ângulo de corte histológico não foi adequado;

B-Os prismas de esmalte não apresentam decussações em ângulo adequado à formação do efeito óptico;

C-A zona do corte não é a zona de formação das BHS. Entendemos que, neste caso, os ângulos formados pelas decussações estão em torno de 130°, o que não permite a visualização das BHS.

Outras estruturas do esmalte dos dentes de Riograndia demonstram ser caracteres típicos de uma dentição muito derivada:

A-os prismas apresentam uma camada interprismática com cristalitos orientados oblíqua ou transversalmente aos cristais intra-prismáticos;

B-o longo comprimento dos prismas;

C-a presença de uma camada externa de esmalte aprismático;

D-a presença das Bandas de Hunter-Schreger nos dentes posteriores e canino superior;

E-a distribuição diferenciada do esmalte sobre os dentes anteriores.

Os elevados ângulos de decussação prismática no esmalte dos incisivos centrais inferiores (Figura 101) fazem com que as extremidades dos longos prismas 221

apresentem um alto ângulo de ataque em relação às forças de impacto fisiológico a que estão submetidos as estruturas dentárias (Carlson, 1999; Koenigswald & Rose, 2005). Isto aumentaria a resistência do esmalte aos traumas oclusais e permitiria uma dissipação adequada das forças mastigatórias através da dentina do bulbo coronal/radicular e das espessas e cavitadas paredes do osso dentário. Estes prismas também se encontram agrupados em “pacotes” de seis ou sete prismas bem condensados, que decussam de forma coletiva (Figura 101), em ângulos diferentes dos pacotes de prismas das proximidades.

FIGURA 101 - Fotomicrografia de luz refletida do esmalte do terço incisal de incisivo inferior de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T (50X), mostrando, em detalhe, os prismas de esmalte e as suas decussações. Abreviaturas: JAD-junção amelo-dentinária; P- prismas de esmalte; DP-decussações dos prismas de esmalte; CEA-Camada de esmalte aprismático.

O esmalte de Riograndia mostra prismas bem definidos, mesmo quando próximos à linha de junção amelo-dentinária (JAD), a qual está bem marcada e permite inferir que as orientações dos ângulos dos prismas não seriam constantes ao longo da face bucal do esmalte. Junto à JAD, os prismas da face bucal do terço coronal apical do ic de Riograndia guaibensis (Figura 102 e 103) apresentam um diâmetro aproximado de 2,0 mícrons e um comprimento que pode atingir 150 a 200 mícrons, somando-se a zona interna, a 222

zona intermediária (decussações) e a zona correspondente à zona aprismática externa, de esmalte com prismas indistintos. Estas dimensões são muito maiores que os parâmetros estabelecidos por Wood & Rougier (1999), que definiram um comprimento máximo de 6,5 mícrons para os prismas do esmalte prismático plesiomórfico. Nas regiões próximas ao bordo incisal, os prismas podem ter uma angulação próxima dos 80°, em relação à JAD e, quanto mais perto do mesmo, mais oblíquas são as decussações assumidas pelos prismas de esmalte. Na zona coronal, junto ao terço incisal, os prismas surgem da JAD em ângulos próximos de 90°, mas rapidamente assumem fortes decussações e passam a correr em trajetórias quase que paralelas à superfície externa do esmalte. Em toda a superfície externa do dente, podemos observar uma camada de esmalte aprismático na qual os prismas não são visíveis, ou por não existirem como tal ou por serem indistintos. A espessura desta camada de esmalte externo aprismático é menor nos terços basal e intermediário da coroa dental, provavelmente pouco sujeitas aos estresses dos impactos mastigatórios. A largura da camada de esmalte aprismático aumenta substancialmente no sentido do ápice da coroa dental, acompanhando o espessamento de todo o esmalte. Isto poderia significar uma forma de adaptação ao uso do incisivo como ferramenta de escavação, porque o esmalte aprismático apresenta altos coeficientes de resistência aos impactos, reflexo da natureza compactada dos cristalitos em seu interior, associada aos altos índices de mineralização. Os prismas de esmalte existentes no terço médio da coroa dental do incisivo central inferior (Figura 101) apresentam uma altura menor que os prismas próximos da região incisal. Com isto, a espessura do esmalte no terço incisal é muito maior que em outras áreas recobertas por esmalte. Na região mediana da coroa dental, os prismas adquirem uma angulação de praticamente 90° em relação à JAD. Porém, não podemos omitir a possibilidade de que todos os prismas se originem da JAD em ângulo de 90° e que estas variações angulares visualizadas sejam apenas resultantes de “efeitos de técnica”. As decussações dos prismas de esmalte apresentam trajetórias francamente inclinadas para a borda incisal, mas mostram-se convergentes quando se aproximam da face bucal do esmalte e passam a apresentar trajetórias totalmente paralelas à face externa do esmalte, configurando um esmalte aprismático. 223

Com base no exposto, podemos afirmar que a intra-estrutura do esmalte do ic de Riograndia guaibensis pode ser dividida em três camadas: A-Camada Aprismática Interna; onde os prismas estão em ângulos próximos de 90°/JAD; B-Camada Prismática Intermediária; onde os prismas apresentam decussações de até 135°/JAD; C-Camada Aprismática Externa; com prismas paralelos à superfície externa do esmalte e limites prismáticos indistintos, configurando um esmalte aprismático e indistinto.

FIGURA 102 – Fotomicrografia sob luz polarizada do incisivo central inferior direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T em corte parasagital (20 X) mostrando a histologia do terço médio do incisivo central inferior. Abreviaturas: CEA-camada de esmalte aprismático; D-dentina; E-esmalte; FB-face bucal; PE-prismas de esmalte; MIP-matriz interprismática (linhas bordô); DPE-Decussação dos prismas de esmalte; JAD-Junção amelo- dentinária.

Desta forma, o esmalte dentário de Riograndia se apresenta com uma intra- estrutura muito mais complexa do que se poderia creditar a um cinodonte não-mamaliano, portador de uma dentição polifiodonte e sem capacidade mastigatória. O fato de um triteledontídeo apresentar esmalte de natureza prismática complexa entra em conflito com as diagnoses histológicas realizadas por Grine & Vrba (apud Gow, 1980) e com o trabalho de Wood et al. (1999). Estes autores consideravam o esmalte dos triteledontídeos como sendo 224

esmalte prismático plesiomórfico (EPP). Neste tipo de esmalte, os prismas apresentam um pequeno comprimento (até 6,5 mícrons) e estão totamente ausentes as decussações dos prismas de esmalte, de modo que não poderiam ser identificadas as Bandas de Hunter- Schreger. O esmalte de Riograndia mostra a disposição e a orientação dos prismas de esmalte do incisivo central inferior, indicando que eles emergem da JAD em um ângulo de quase 90°, e que então se estendem por aproximadamente 40 mícrons, quando decussam coletivamente em torno de 45° em direção ao ápice coronal em extensões de ainda mais 100 mícrons. Como já foi referido, não pode ser observada, especificamente nos ic de Riograndia analisados, a presença das Bandas de Hunter-Schreger, mas as análises dos outros dentes não só confirmaram a presença das decussações como um padrão intra-estrutural do esmalte deste táxon, como foram observadas as BHS propriamente ditas, registradas no esmalte dentário de dentes cortados em planos mais adequados a este propósito. O germe do 4° pós-canino de substituição, em fase final de campânula, (Figura 103 e 104), por exemplo, apresentou excelentes condições para a identificação das BHS, provavelmente por ser um dente ainda não erupcionado e com um esmalte totalmente íntegro por ocasião da morte do animal.

FIGURA 103 - Fotomicrografia, sob luz polarizada, da coroa dentária em formação, em fase final de campânula, de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0791T, sob luz polarizada. À esquerda (10X), mostrando as cúspides do germe do pm 4. À direita, em maior aumento (20X) notam-se as Bandas de Hunter-Schreger. Abreviaturas: BHS-Bandas de Hunter- Schreger; DP-dentina primária; JAD-junção amelo-dentinária; E-esmalte; MD-material diagenético.

As bandas de Hunter-Schreger são bem visualizadas (Figura 105) nas vertentes do esmalte afastado dos ápices das cúspides coronais, e no esmalte próximo às regiões das fossetas dentárias. Sob luz polarizada as BHS mostram seu arranjo característico de barras 225

claras (amarelas) e escuras (cor-de-vinho), que se apresentam verticalmente estendidas pelos três/quartos mais internos da espessura do esmalte.

FIGURA 104 - Fotomicrografia do dente de Riograndia guaibensis (UFRGS-PV0791T), sob luz polarizada (50X), mostrando o esmalte dental do 4º pós-canino, em fase de formação de “campânula final”, e a presença das Bandas de Hunter-Schreger. Abreviaturas: BHS-bandas de Hunter-Schreger; D-dentina; EP-esmalte prismático; JAD-junção amelo-dentinária.

14.7-DISTRIBUIÇÃO DO ESMALTE NOS INCISIVOS INFERIORES DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Como tem sido até aqui salientado, a dentição de Riograndia guaibensis apresenta inúmeros caracteres autapomórficos, resultantes de sua adaptabilidade funcional. Entre estes caracteres, está uma singular distribuição do esmalte dentário em seus incisivos inferiores ic, i2 e i3, que se apresentam todos em forma de bisel auto-afiável (Figura 105 e 106) e possuindo esmalte dentário apenas nas faces vestibulares, mesiais e distais. Este padrão diferenciado de distribuição do esmalte dentário, presente nos incisivos fazia com que todos estes dentes (e não apenas o ic) adquirissem a capacidade de se manter permanentemente afiados. Isto ocorria por que a dentina exposta na face lingual de todos os incisivos teria um menor índice de abrasão e desgaste que o esmalte prismático situado nas faces bucais (vestibulares) e proximais (mesiais e distais) dos dentes.

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FIGURA 105 - Fotografia do dentário direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T. Neste plano de polimento parasagital, observa-se que o segundo incisivo central inferior direito também se apresenta com a extremidade apical coronal em forma de cinzel auto- afiável. Abreviaturas: ic-incisivo central; i2-Segundo incisivo; i3-Terceiro incisivo; c-Canino; pc1-Primeiro pós-canino; pc2-Segundo pós-canino; pc4-Quarto pós-canino.

Em Riograndia, a organização anátomo-histológica das bordas incisais indica que os movimentos mastigatórios oclusais ocorriam, principalmente, em trajetória antero- posterior, em movimentos mandibulares adequados ao estabelecimento e manutenção destas afiadas bordas e facetas de desgaste.

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FIGURA 106 – Fotomicrografia (20X), sob luz polarizada, da coroa do terceiro incisivo inferior direito de Riograndia guaibensis (UFRGS-PV0787T). Abreviaturas: B-face bucal; D- dentina; E-esmalte; L-face lingual.

Estes “estranhos” padrões de distribuição de esmalte dentário foram diagnosticados por Bonaparte et al. (2001), os quais, inclusive, referiram tratar-se de um “padrão de preservação” de esmalte, no qual as facetas de desgaste da face lingual dos incisivos superiores seriam resultantes de “simples abrasão pelos alimentos”. Os autores desconsideraram a hipótese de que estas facetas de desgaste fossem conseqüência de verdadeira oclusão dentária. Entretanto, uma vez que o esmalte também está ausente em níveis intra-alveolares, fora da região dental submetida aos desgastes por abrasão alimentar, deve-se entender que estes padrões diferenciados de distribuição de esmalte são caracteres ontogênicos, contribuindo para a composição de uma dentição hipsodôntica em Riograndia guaibensis.

Embora a presença de caracteres hipsodônticos ainda não tenha sido observada entre os cinodontes não-mamalianos, esta seria uma solução evolutiva óbvia e natural em táxons que apresentassem baixas taxas de substituição dentária e que derivassem para a herbivoria. Como os dentes dos herbívoros estão sujeitos às abrasões e aos desgastes pela presença das incrustações intracelulares vegetais (sílica), a euhipsodontia provê a manutenção 228

funcional dos dentes por períodos maiores de tempo (Bair, 2006; Paula Couto, 1979; Valen, 2004; Verzi, 2002).

14.8-INTRA-ESTRUTURA DA DENTINA DO INCISIVO CENTRAL INFERIOR DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

A dentina presente no incisivo central inferior direito de Riograndia guaibensis (espécime UFRGS-PV0787T) apresenta algumas intra-estruturas muito peculiares. Na região da coroa dental, subjacente ao esmalte prismático, está presente uma zona correspondente ao manto dentinário, onde estão ausentes os canalículos dentinários. Imediatamente abaixo desta camada, segue-se a dentina primária, onde o trajeto dos túbulos dentinários é bastante regular em direção à cavidade pulpar radicular. Esta dentina primária sofre, então, fortes e persistentes curvaturas dos tratos dentinários em direção ao ápice radicular, constituindo assim a dentina secundária. A face lingual do bulbo dentinário radicular do ic de UFRGS-PV0787T apresenta linhas incrementais extremamente evidentes. Fisiologicamente as linhas incrementais representam o ritmo de formação, deposição e mineralização da dentina (Ten Cate, 2001; Berkovitz et al., 2004; Ferraris et al., 2006). Estas linhas incrementais da dentina da face lingual (Figura 107) estão dispostas paralelamente à superfície da face lingual, e podem apresentar uma leve curvatura, que acompanha a curvatura da raiz dentária. Elas são “marcas” características que resultaram do processo de formação, deposição e mineralização das matrizes dentinárias próprias de um dente que é hipertrofiado, recurvado e proodonte.

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FIGURA 107 – Fotomicrografia, sob luz polarizada (50X), da face coronal lingual do ic direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0787T, mostrando a presença de linhas incrementais da dentina. Em corte longitudinal parasagital. Abreviaturas: FB-face bucal; D- dentina; LI-linhas incrementais da dentina.

O quadro a direita da Figura 107 mostra também que na zona lingual do bulbo dentinário coronal não há qualquer cobertura de esmalte. Na dentina que ali ocorre, as diversas linhas incrementais indicariam “pulsos” de diminuição do ritmo de formação dentinária. Bandas claras indicam um ritmo constante de dentinogênese, enquanto as mais escuras indicariam diminuição do ritmo de dentinogênese e maiores índices de mineralização da matriz dentinária. A sustação e o controle rítmico dos processos de dentinogênese, evidenciados por estas “superlinhas incrementais”, podem explicar a formação de um dente em curva. Na face bucal dos incisivos não existem estas superlinhas incrementais na dentina, de modo que esta face do dente estaria mantendo um ritmo constante de produção e mineralização de pré- dentina. De outra parte, na face lingual, o incremento de dentina sofreria paradas periódicas, gerando um crescimento diferenciado entre as duas faces do dente e, conseqüentemente, o encurvamento do mesmo. Assim, uma formação constante de dentina na face bucal, associada a um padrão controlado de sustação de produção na face lingual do bulbo radicular em desenvolvimento determinariam a curvatura dorsal do dente incisivo central inferior de Riograndia guaibensis.

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14.9-A PRESENÇA DE DENTINA TRANSLÚCIDA (ESCLERÓTICA) APICAL E O PADRÃO DE SUBSTITUIÇÃO DENTÁRIA EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Os terços mais apicais das raízes do segundo e terceiro incisivos, assim como do canino e dos dois primeiros pré-molariforme do dentário do espécime UFRGS-PV0787T (Figura 108) apresentam um tipo de variabilidade fisiológica dentinária chamada de “dentina Translúcida” ou “dentina Esclerótica”.

A dentina esclerosada é uma dentina que sofreu um processo de total mineralização e obliteração dos canalículos dentinários. Então, quando observados ao microscópio de luz polarizada, os canalículos dentinários e a dentina peritubular tornam-se indiferenciados, uma vez que apresentam índices de refração da luz muito semelhantes.

FIGURA 108 - Fotomicrografia, sob luz natural (10X) de raízes dentárias de Riograndia guaibensis (espécime UFRGS-PV0787T). Abreviaturas: c-canino inferior; DE-dentina esclerosada; D-dentina; RD-raiz dentária; pm1-primeiro pós-canino inferior; pm2-segundo pós-canino inferior.

A dentina esclerosada se forma em condições de envelhecimento fisiológico, através de estímulos lentos e persistentes, ou em dentes submetidos à atrição dentária severa (Berkovitz et al. 2004). 231

Curiosamente, este tipo de dentina pode ser encontrado na quase totalidade das raízes dentárias posteriores de UFRGS-PV0787T, demonstrando que eles compunham o aparelho mastigador durante um longo período de tempo e que, certamente, constituíam a bateria dentária definitiva. Este novo elemento de diagnose, em associação com as facetas de desgastes das coroas dentárias, evidencia que Riograndia apresentava um claro, contínuo e regular padrão de oclusão dentária, reforçando a idéia de que este táxon seria um herbívoro roedor. Isto forma um quadro de evidências que demonstram, terminantemente, que a dentição deste táxon não apresentava substituições dentárias alternadas do tipo polifiodonte. Em conjunto com outras evidências que surgiram ao longo deste trabalho, esta característica reforça a idéia de que Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001), apresentava um padrão de substituição dentária do tipo difiodonte mamaliano.

14.10-ANÁTOMO-HISTOLOGIA DA MAXILA DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

14.10.1-CARACTERÍSTICAS GERAIS DA MAXILA

A maxila do espécime UFRGS-PV0789T de Riograndia guaibensis (Figura 109) apresentava uma dentição bem preservada, constituída por um canino, quatro pré- molariformes e dois molariformes. As coroas dentárias se encontravam em excelente estado de conservação. A preparação inicial e o plano de corte foram iniciados com a intenção de se preservar o maior número possível de unidades dentárias, mas esta idéia não pôde ser mantida após as primeiras fases de preparação. Entre todos os dentes presentes, destaca-se o canino que, apesar de estar com o ápice coronal fraturado, mostra ser extremamente volumoso. A face mesial do canino é levemente convexa, enquanto a face distal é retilínea. Ambas se mostram lisas e desgastadas, enquanto que a face bucal é levemente bulbosa.

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FIGURA 109 - Composição fotográfica do maxilar esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0789T, em vista lateral, mostrando o canino volumoso e os dentes pós-caninos em ângulo. Abreviaturas: C-Canino Superior; PM1, PM2, PM3, PM4 - Pré-Molariformes; M1 e M2 - Molariformes, MX, Maxila.

Diferentemente da descrição de Bonaparte et al. (2001) em UFRGS-PV0789T, não estão presentes as três pequenas cúspules que foram encontradas na borda distal do canino superior do holótipo MCN–PV2265. Atribuiu-se à ausência destas cúspules ao desgaste abrasivo fisiológico dos dentes de UFRGS-PV0789T, o que parece indicar que este canino esteve em oclusão durante um mediano período de tempo e que estamos frente a um animal na fase de jovem-adulto ou de adulto. Estão presentes os quatro pré-molariformes e dois molariformes, em diferentes padrões de desgaste oclusal. As coroas do canino e dos pós-caninos estão dispostas alinhadas em um mesmo plano rostro-caudal. Também chama à atenção a disposição das cúspules dos dentes pós-caninos, as quais, invariavelmente, se projetam da face distal em sentido caudal.

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14.10.2-CARACTERES AUTAPOMÓRFICOS HIPSODÔNTICOS DOS CANINOS SUPERIORES

No início da fase de polimento, a observação em lupa revelou que o canino superior do espécime UFRGS-PV0789T (Figura 110) apresentava uma raiz dentária curta e muito aberta, com uma cavidade pulpar ampla. As paredes dentinárias radiculares são francamente divergentes, não apresentando a curvatura característica de uma raiz que se fecharia na região do forame apical.

FIGURA 110 - Composição fotográfica do canino superior esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0789T, em corte parasagital, em fase avançada de polimento, mostrando a natureza hipsodonte deste dente. Abreviaturas: E-esmalte; D-dentina; CP- cavidade pulpar; ARA-ápice radicular; AC-Ápice Coronal.

As linhas incrementais encontradas ao longo das paredes dentinárias deste canino superior (Figura 111) também demonstram padrões particulares para o desenvolvimento de um dente de crescimento contínuo, uma vez que se apresentam com ângulos e inclinações adequadas para permitir que as paredes radiculares se tornassem mais 234

divergentes na medida em que o crescimento ontogênico progredisse. Assim, mesmo mediante o desgaste dentário oclusal, o canino manteria um volume compatível com tamanho do crânio em desenvolvimento ontogenético, permitindo a continuidade do fisiologismo oclusal. Além disso, a distribuição do esmalte na superfície da coroa dental do canino superior mostrou ser totalmente diferente dos padrões usuais para um cinodonte carnívoro-insetívoro. A partir dessas observações iniciais, o canino superior passou a ser o foco principal de nosso interesse em relação ao maxilar, o que determinou uma mudança do plano de corte (visando a análise das microestruturas internas). Esta mudança de rumos, infelizmente, resultou também na abrasão dos demais órgãos dentários deste espécime.

FIGURA 111 - Fotomicrografia do canino superior direito de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0789T sob luz polarizada (10X). Abreviaturas: D-dentina; R-raiz dentária; CP- cavidade pulpar; EP-esmalte prismático.

A observação microscópica do canino superior de Riograndia UFRGS- PV0789T mostrou elementos diferenciados, na anatomia e na histologia dentárias, que não haviam sido diagnosticados no trabalho de Bonaparte et al. (2001) e que não foram, até o momento, atribuídos a qualquer táxon envolvido na transição cinodonte-mamífero. O canino superior se mostra com uma anatomia dentária em que diversos elementos característicos dos dentes hipsodontes estão presentes: 1-Apresenta o ápice radicular aberto, indicando crescimento contínuo; 2-Possui a cavidade pulpar dentária ampla, indicando a presença de polpa dentária embrionariamente ativa; 235

3-Apresenta esmalte dentário apenas nas faces labial, mesial e distal. Estes elementos são fortes indicadores de que processos heterócronos determinaram outras funções, para os caninos superiores de Riograndia, que não àquelas de capturar e perfurar pequenos insetos e invertebrados, que seriam as atribuições características dos dentes dos pequenos cinodontes carnívoro-insetívoros. Dentes com os ápices radiculares permanentemente abertos apresentam a característica de crescer continuamente. Isto ocorreria pelo fato de que suas coroas dentárias são constantemente abrasionadas pelo substrato da sua dieta herbívora. A distribuição de esmalte apenas nas faces labial, mesial e distal dos caninos, e a sua total ausência na face lingual (palatina) indicam claramente que estes dentes apresentavam características de auto-afiamento durante a função “mastigatória”. Novamente, encontramos aí elementos de diferenciação dos dentes que apontam para uma dieta associada ao hábito herbívoro. Os roedores atuais (Rodentia) e os Lagomorpha também apresentam dentes anteriores com esmalte prismático distribuído apenas nas faces labiais, mesiais e distais, um caráter hipsodôntico diretamente associado aos processos fisiológicos de auto-afiamento dos dentes de crescimento contínuo dos herbívoros com dentições com graus variados de hipsodontia. Entretanto, não existe referência, na literatura especializada, um único táxon, atual ou extinto, que apresesentasse um canino de crescimento contínuo associado a um processo de alimentação típico de um herbívoro durófago. Porém, esta é a diagnose resultante dos atributos histo-anatômicos que foram encontrados na dentição de Riograndia.

14.10.3-HISTOLOGIA DE ESMALTE DO CANINO SUPERIOR DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Histologicamente o esmalte prismático deste canino superior de Riograndia guaibensis (UFRGS-PV0789T) apresenta outra característica que o diferencia dos demais triteledontídeos, dos tritylodontídeos e ainda de outros cinodontes não-mamalianos avançados, bem como dos mamíferos basais: as Bandas de Hunter-Schreger (FIG. 112).

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FIGURA 112 - A presença de Bandas de Hunter-Scrheger no esmalte prismático do canino superior esquerdo de Riograndia guaibensis UFRGS-PV0789T (50 X). Abreviaturas: D- dentina; E-esmalte; BHS-Bandas de Hunter-Schreger; JAD-junção amelo-dentinária; MD- manto da dentina.

O esmalte observado na face bucal deste canino é mais fino no terço médio da coroa dental e mais espesso em direção ao ápice coronal. As BHS apresentam-se ocupando os 3/4 mais próximos da linha de junção amelo-dentinária, como acontece no esmalte dentário dos mamíferos placentários atuais (Carlson, 1990). Isto indicaria que o padrão de organização das decussações e a espessura do esmalte estão relacionados com a intensidade e a direção do estresse oclusal dos prismas de esmalte. A camada intermediária de esmalte, na qual aparecem as BHS do canino superior de UFRGS-PV0789T, também é recoberta por uma fina camada externa de esmalte aprismático.

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14.11-A PRESENÇA DE CEMENTO DENTÁRIO EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS

A evidenciação de camadas bem desenvolvidas de cemento dentário “acelular” e de cemento “celular” nas faces laterais das raizes dentárias de Riograndia guaibensis é um fato biologicamente interessante. O cemento acelular é um tecido mineralizado, originado do folículo dentário, que faz parte do periodonto de inserção dos mamíferos, uma vez que realiza a fixação da raiz dos dentes ao ligamento periodontal que, por sua vez, se fixa à lâmina cribriforme de revestimento da cavidade alveolar. Já o cemento acelular se fixa sobre a camada mais externa de dentina radicular, que se chama de “zona granulosa de Tomes (ZGT)”, formando uma linha de fusionamento que pode ser de difícil visualização sob a microscopia óptica. Em Riograndia a ZGT apresenta as características alças e ramificações, em forma de guarda-chuva, dos túbulos dentinários associados à aparência “granulosa” da matriz dentinária (Berkovitz et al., 2004; Duarte, 2008). O cemento radicular se mostra muito difícil de ser estudado, mesmo em mamíferos atuais (Peyer, 1968). Isto acontece porque o estudo, em dentes de humanos e cobaias, tem sido muito limitado pela pouca espessura da matriz de cemento formada e mineralizada no entorno das raízes dos dentes. Peyer (1968) enfatizou que, entre os répteis atuais, este tecido é encontrado apenas nas raízes de dentes dos crocodilianos (Crocodilus niloticus), mas isto pode estar sendo subdimensionado, pela falta de estudos (Parrigton, 1971). Apesar de o cemento ser reconhecido como um tecido mamaliano (Peyer, 1969) poucos trabalhos enfatizam a sua observação nos dentes dos fósseis como um caráter evolucionário. Excepcionalmente, Parrington (1971) fez uma das poucas observações a este respeito quando estudou a difiodontia em morganucodontídeos. A importância deste tecido estaria relacionada à fixação periodontal e à manutenção dos dentes durante longos períodos de atividades fisiológicas mastigatórias, compensando as perdas de volume coronal por desgastes oclusais, pelas cáries, por fraturas e pelos deslocamentos dentários decorrentes do crescimento ontogênico. Em Riograndia guaibensis foi evidenciado tecido dentário radicular de natureza de verdadeiro cemento, que se apresentou em diversas feições histo-anatômicas.

O primeiro registro deste tecido correspondeu a uma camada bem definida de cemento acelular, com aproximadamente 40 mícrons de espessura, observada recobrindo a raíz dentária do espécime UFRGS-PV0787T (Figura 113). Já no terço apical da raiz dos 238

dentes deste mesmo espécime, esta camada de cemento acelular é recoberta, mais externamente, por uma camada de cemento celular de espessura variável.

FIGURA 113 – Fotomicrografia, sob luz natural (50X) da zona apical de raiz dentária de Riograndia guaibensis (espécime UFRGS-PV0787T). Abreviaturas: CA-cemento acelular; D- dentina; DM-dentina do manto; LRC-linhas de reversão do cemento; ZGT-zona granulosa de Tomes; LI-linha incremental.

Um terceiro padrão de organização intra-estrutural de cemento radicular pode ser visto em um dente em fase de esfoliação, no espécime UFRGS-PV0791T (Figura 114). A visualização deste tecido é possível devido ao fato de que os índices de refração de luz polarizada da dentina e do cemento dentário são diferentes. Este dente precursor decíduo também apresenta a sua dentina radicular recoberta por uma primeira camada de cemento dentário do tipo “intermediário”, sensu Orson et al. (1988). 239

. FIGURA 114 – Fotomicrografia, em luz natural (20 X), do processo de rizólise esfoliativa de um dente de Riograndia guaibensis (espécime UFRGS-PV0791T), mostrando a raiz dentária do pc4 decíduo sendo fisiologicamente reabsorvida pelo embrião dentário do pc4 permanente em fase final de campânula. Abreviaturas: CDI-cemento dentário intermediário; CFC-coroa em fase de campânula (pc4-perm.); COED-cripta óssea do embrião dentário; RDD-raiz de dente decíduo; TOD-tecido ósseo do dentário.

Adicionalmente às suas funções de ancoragem do ligamento periodontal, o cemento dentário tem a função de promover cicatrização de pequenas lesões radiculares. Nestas áreas, as cicatrizes mostram o que chamamos de “linhas de reversão” do cemento, que permitem uma maior longevidade às estruturas dentárias e seria muito importante no contexto de uma dentição permanente. Linhas de reversão foram encontradas no cemento das raízes dentárias de Riograndia e, por isso, são indicadoras da presença, neste táxon, de processos fisiológicos periodontais voltados à cicatrização e à conservação dos dentes por longos períodos de tempo (Berkovitz et al., 2004; Ferraris et al., 2006; Katchburian, 2004). Portanto, as seguintes estruturas de cemento radicular mamaliano foram reconhecidas em Riograndia:

A-Camadas de cemento acelular;

B-Camadas de cemento celular;

C-Linhas de reversão. 240

Além disso, o cemento radicular, em Riograndia, apresenta-se progressivamente mais espesso em direção ao ápice radicular, em um padrão que também ocorre entre os mamíferos (Parrington, 1971; Berkovitz et al., 2004).

Portanto, a distribuição e a organização dos tecidos cementários encontrados nas raízes dentárias de Riograndia apresentam padrões semelhantes aos complexos tecidos mineralizados de revestimento radicular presentes nos dentes dos mamíferos atuais reforçando a proposta, aqui defendida, da presença de um padrão de substituição dentária difiodonte, de natureza mamaliana, em Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001).

14.12-A PRESENÇA DE OSSO DE FUSIONAMENTO NA DENTIÇÃO DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Extraordinariamente, os dentes incisivos inferiores centrais de Riograndia guaibensis apresentam tecido ósseo de fusionamento, o qual conforma uma fixação parcial da região do fuste dental, intra e extra-alveolar, com o tecido ósseo da estrutura óssea alveolar. Foram encontrados distintos padrões de fusionamento ósteo-dentário em espécimes diferentes, como UFRGS-PV0787T (Figura 84) e UFRGS-PV1033T (Figura 88). Estes padrões de deposição de tecido ósseo de fusionamento devem estar refletindo diferentes estados fisiológicos e diferentes estados ontogênicos entre os espécimens estudados.

A presença de osso de fusionamento na dentição dos triteledontídeos foi primeiramente referida, como já foi citado, por Gow (1980), durante os trabalhos de estudo da dentição de Pachygenelus monus. Os dentes deste táxon apresentavam muitas facetas de desgaste e quantidades variáveis de osso de fusionamento, de modo que Gow (1980), adequadamente, inferiu que os dentes mais antigos eram aqueles que apresentavam maior desgaste oclusal e maiores depósitos de osso de fusionamento.

Apesar de estarmos de acordo com parte dos conceitos emitidos pelo referido autor, queremos relembrar aqui que a maior ou menor deposição de osso de fusionamente deve sofrer influência da fisiologia mastigatória de cada animal, fator que deve ser levado em conta durante a análise de cada situação estudada. 241

14.13-A NATUREZA OSTEOLÓGICA DA SÍNFISE DENTÁRIA DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Os ossos dentários reptilianos primitivos são, por natureza embrionária, “ossos de membrana” e não apresentam tecidos ósseos de origem endocondral. Estes ossos submembranosos são depositados sob a forma de lâminas ósseas sobrepostas, apresentando-se em camadas bem definidas.

Por outro lado, os ossos dentários dos mamíferos apresentam diversas cartilagens embrionárias acessórias, entre as quais se encontra a cartilagem acessória sinfiseal, que é responsável pelo desenvolvimento de um osso dentário mamaliano mais complexo. Estas cartilagens acessórias embrionárias mamalianas produzem tecidos ósseos cuja estrutura interna difere dos ossos secretados sub-periostealmente e surgiriam precocemente no desenvolvimento embriológico do dentário, juntamente com os embriões dentários decíduos (Butler & Clemens, 2001; Avery, 2005).

Na mandíbula do espécime UFRGS-PV0787T de Riograndia encontrou-se, junto à região sinfiseal, tecidos ósseos (Figura 115) cuja organização intra-estrutural se apresentava diferenciada do tecido ósseo lamelar sub-periosteal depositado nas zonas da borda inferior do dentário. Este tecido ósseo, de origem endocondral, está circunscrito à zona sinfiseal do dentário e isto nos leva a diagnosticá-lo como resultante de ossificação endocondral, realizada a partir de um núcleo de uma cartilagem embrionária acessória sinfiseal mamaliana primitiva.

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FIGURA 115 – Fotomicrografia, em luz natural (50X), do osso da região sinfiseal de Riograndia guaibensis (espécime UFRGS-PV0787T). As setas mostram a presença de tecido ósseo de substituição de origem endocondral.

De fato, a presença deste centro de ossificação endocondral sinfiseal constitui uma evidência acessória aos demais elementos derivados, encontrados na dentição de Riograndia, demonstrando a existência de um padrão evolucionário mamaliano também em nível de organização osteológica do dentário.

14.14-DIAGNOSE OCLUSAL COMPLEMENTAR

A análise complementar dos processos de fisiologia mastigatória em Riograndia guaibensis aponta para a ocorrência de um modelo fisiológico mastigatório bastante diferente do que foi postulado por Bonaparte et al., 2001. Aqueles autores atribuíram a Riograndia um padrão de oclusão unilateral incipiente, com movimentos preferenciais dorso-laterais das mandíbulas, o qual geraria algumas pequenas facetas de desgaste nas faces linguais (palatinas) dos pós-caninos superiores e, eventualmente, nas faces bucais dos pós- caninos inferiores. Em nosso entendimento, este modelo oclusal está equivocado, uma vez que reflete padrões “mastigatórios” esperados em animais com os aparelhos estomatognáticos (ATMs e dentições) adaptados para hábitos alimentares carnívoro-insetívoros. Portanto, tal 243

propositura não deve ser aplicada à Riograndia, que claramente apresenta caracteres ósteo- dentários derivados para hábitos alimentares herbívoros e durofágicos de um pequeno roedor. Os dentes pós-caninos superiores de Riograndia (Figura 116) apresentam uma cúspide principal que separa as vertentes mesial e distal das coroas dentárias, formando, desse modo, uma borda oclusal distal e uma borda oclusal medial. De fato, todas as vertentes coronais distais dos dentes pós-caninos inferiores do espécime UFRGS-PV0622T formam uma borda de corte afilada e linearmente desgastada (FIG. 116).

FIGURA 116 - Fotografia de pós-canino (pc6 ou pc7) inferior direito de Riograndia guaibensis. Vista bucal. Material isolado, sem numeração (Cortesia de M. B. Soares). Abreviaturas: BOD-borda oclusal distal; BOM-borda oclusal medial; CD-coroa dental; RD- raiz dentária.

Entretanto, uma análise mais acurada das estruturas dentárias de Riograndia mostra outras feições de desgastes oclusais que são compatíveis com a anatomia da articulação têmporo-mandíbular e com a anatomia e a disposição das bordas oclusais dos dentes pós-caninos superiores e inferiores. As cúspules destas vertentes disto-bucais dos pós- caninos inferiores estão todas homogeneamente desgastadas, apresentando um padrão regular e linear de abrasionamento. Já os pós-caninos superiores de Riograndia (Figura 117) 244

apresentam este mesmo padrão de desgaste, porém localizado nas bordas meso- linguais (meso-palatinas).

FIGURA 117 - Composição fotográfica (A) e esquemática (B) do dentário com dentes, em vista medial, de Riograndia guaibensis (UFRGS-PV0622T). Abreviaturas: c-canino inferior; i3- 3° incisivo inferior; pc 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9-pós-caninos inferiores. As setas mostram as bordas de desgaste “em linha”, principalmente localizadas nas extremidades das cúspules da borda distal das coroas dos pós-caninos.

Estes singulares padrões de desgaste dos pós-caninos seriam apenas compatíveis com uma fisiologia mastigatória voltada para a herbivoria, onde a superfície articular mandibular alongada de Riograndia realizasse movimentos oclusais preponderantes em direção antero-posterior (movimentos palinais), com um pequeno componente de lateralidade. Associadamente, estes aspectos fisiológicos dos dentes posteriores devem ser vinculados à anátomo-fisiologia das coroas dos incisivos inferiores i2 e i3, cuja morfologia (de cinzel auto-afiável) e disposição de esmalte (apenas na face bucal) evidenciam igualmente uma direção antero-posterior para os movimentos mandibulares. Estes aspectos de fisiologia mastigatória também explicam a disposição das coroas dos pós-caninos superiores (Figura 118) que são comprimidas buco-lingualmente e se 245

apresentam com uma disposição de “imbricamento em ângulo”. Este imbricamento em ângulo se justifica uma vez que todas as bordas mesiais dos dentes superiores ficariam expostas na região palatina, favorecendo a ação cortante das bordas distais dos premolariformes e molares inferiores.

FIGURA 118 - Fotografia do pré-maxilar e maxila com dentes de Riograndia guaibensis U- 4881. Vista Anterior oblíqua. A dentição da hemi-arcada superior é constituída de I3/1C/4PM/5M. Observar o imbricamento “em ângulo” dos dentes pré-molariformes e molariformes. Abreviaturas: IC-incisivo central superior; I2-incisivo lateral superior; I3- terceiro incisivo superior; C-canino; PM1, 4; e Molariformes M6, M8; PM-pré-maxilar; M- maxila.

Outro caráter anatômico notável em Riograndia é a presença de uma alta e espessa “região sinfiseal”, a qual Bonaparte et al., 2001 consideraram semelhante à de Pachygenelus monus. Entretanto, já demonstramos anteriormente que o maior volume da região sinfiseal de Riograndia forma uma estrutura óssea complexa, composta por bossas, cuja função principal seria abrigar e nutrir a raiz hipertrófica do incisivo central inferior. Entretanto, outra função importante destas bossas ósseas sinfiseais seria a de propiciar a dispersão das enormes e contínuas pressões e tensões mastigatórias às quais eram submetidos os incisivos centrais inferiores. Estas forças, que ocorreriam durante o hábito de roer, seriam dispersadas através dos arcos ósseos que contornam as imensas cavitações sinusais existentes 246

nas proximidades da sínfise do dentário, à semelhança do que ocorre nos roedores atuais. A existência destas estruturas como elementos de dispersão de forças mastigatórias encontra ainda respaldo na presença de um “colar cervical” de tecido ósseo de fusionamento, presente nos incisivos centrais inferiores, o que também ocorre entre mamíferos herbívoros hipsodontes, fósseis e atuais.

14.15-CONSIDERAÇÕES GERAIS DA ANATOMIA DENTAL EXTERNA

O dentário de Riograndia UFRGS-PV0622T mostra uma dentição claramente heterodonte, com evidente regionalização funcional, constituída por três segmentos de diferenciação anatômica dentária:

1-A região mais anterior vai desde o incisivo central até o canino, onde os dentes apresentam coroas dentárias longas e ápices coronais extremamente afilados. Os dentes são longos, em forma de fuste e não apresentam a região cervical demarcada. Os dentes incisivos centrais inferiores são muito volumosos, proodontes e apresentavam crescimento radicular contínuo. Os incisivos i2 e i3 estão em ordem decrescente em volume e procumbência. Entre os dentes anteriores, os caninos são os que apresentam menor inclinação rostral coronal e sua coroa dental é comparativamente pequena. A organização histológica da coroa dental dos incisivos i2 e i3 é semelhante ao que ocorre no ic, de modo que todos estes dentes atuavam de forma similar.

2-A região intermediária situa-se entre o primeiro e o quarto pós-canino. Nesta região, os dentes apresentam-se comprimidos no sentido línguo-bucal e as coroas dentárias são quase laminares. As bordas coronais mostram uma série de pequenas cúspules, na qual se sobresai uma cúspule principal, maior e em posição quase mediana, que subdivide a coroa em uma vertente ativa anterior e outra vertente ativa posterior. Nestes pós-caninos imediatos as bordas coronais ativas apresentam duas ou três cúspules em cada vertente, sendo que todos eles apresentam desgastes abrasivos das extremidades das cúspules, representando evidências de atividade mastigatória. Não apresentam delimitação anatômica da cérvix dental e mostram uma sutil ranhura longitudinal sobre as faces livres da raiz do dente. 247

3-A terceira região dental compreenderia os quatro últimos pós-caninos (pm5- pm9). Os dentes deste segmento são maiores e muito diferenciados dos primeiros pós- caninos. As cúspides principais estão caudalmente direcionadas e a vertente posterior da borda coronal está em ângulo quase que vertical As regiões cervicais dos dentes são demarcadas e totalmente discerníveis. As ranhuras verticais nas raízes se mostram bastante profundas. A maior parte das cúspules apresenta sinais de desgaste por abrasão, uma vez que elas se apresentam com uma única borda aplainada. Estes desgastes sistemáticos, associados às facetas de desgaste da face bucal dos pós-caninos e à presença de facetas de desgaste nos dentes incisivos são compatíveis com um fisiologismo mastigatório de oclusão dentária alternada para Riograndia. 248

15-DISCUSSÕES

Este trabalho investigou, em maxilares e dentários, as características anatômicas, histológicas, embriológicas e fisiológicas básicas de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001), um triteledontídeo do Triássico Superior da Formação Caturrita. Uma vez diagnosticados os caracteres histológicos ósteo-dentários básicos, procurou-se determinar em que extensão estes elementos poderiam permitir uma melhor compreensão da transição cinodonte/mamífero.

Pretendemos, aqui, elaborar uma abordagem de análise crítica e, portanto, faz- se necessário questionar os conceitos já atribuídos à dentição de Riograndia guaibensis, contrapondo-os com as novas evidências surgidas no âmbito deste trabalho. Por outro lado, os achados histológicos deste trabalho encontram pouco suporte na literatura especializada, devido ao fato de que virtualmente inexistem abordagens semelhantes para outros táxons envolvidos na transição cinodonte-mamífero.

15.1-O APARELHO MASTIGATÓRIO DE RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Inicia-se esta discussão salientando que um aparelho estomatognático deve ser avaliado como uma unidade anátomo-funcional integrada, de modo que as análises anátomo- histológicas realizadas no presente trabalho não devem ser avaliadas como elementos isolados da constituição do aparelho estomatognático de Riograndia guaibensis, mas sim como partes de um todo que, para se mostrar viável, deve apresentar uma coerência interna.

Neste contexto, pode-se afirmar que Riograndia, contrariamente ao que afirmavam Bonaparte et al. (2001), apresenta uma dentição claramente heterodonte e muito derivada, incluindo algumas variações histo-anatômicas dentárias ainda não referenciadas para as presumidas dentições primitivas e generalizadas dos cinodontes não-mamalianos, aos quais são atribuídas dietas carnívoro-insetívoras. 249

Os dentes incisivos inferiores centrais de Riograndia são dentes totalmente adaptados à herbivoria e durofagia, com a sua organização histo-anatômica análoga aos dentes dos atuais roedores. As adaptações dentárias deste triteledontídeo apresentam os seguintes elementos de convergência com os Rodentia e Lagomorfa:

1-Incisivos centrais hipertrofiados e proodontes;

2-Incisivos de crescimento contínuo;

3-Dentes apresentando diferentes graus de hipsodontia;

4-Estruturas ósseas complexas para o suporte radicular do incisivo central inferior;

5-Distribuição análoga de esmalte;

6-Esmalte prismático com fortes decussações;

7-Camada de esmalte aprismático externo incisal muito espesso;

8-Superfícies de desgaste incisal com forma de bisel auto-afiável;

9-Ápices radiculares abertos e incompletos;

10-Presença de diversas facetas de desgaste mastigatório;

11-Incisivos inferiores com cavidades pulpares amplas para a retenção de um folículo dental embrionário permanentemente ativo.

Além disso, cabe lembrar que os dentes incisivos proodontes, nos grupos atuais supracitados, cumprem variadas funções ecológicas, como o processamento alimentar, a escavação de galerias e o contato social, sendo que o mesmo, por analogia, poderia ser extrapolado para Riograndia.

Em relação à notação dentária chama à atenção a profunda redução no número de incisivos para três unidades (diferente dos demais triteledontídeos, onde ocorrem apenas dois incisivos) e a presença de apenas quatro dentes pré-molariformes. Esta notação dentária pode ser considerada tipicamente mamaliana (Butler & Clemens, 2001).

O canino inferior de Riograndia, por sua vez, é levemente proodonte (procumbente) e a sua coroa apresenta a forma de um fuste auto-afiável. O esmalte se estende desde a vertente mesial até a metade da vertente coronal distal. Segundo Bonaparte et al. (2001) existe uma faceta de desgaste disto-lingual, “provavelmente pela oclusão com o canino superior”. Esta faceta de desgaste resultaria, portanto, da oclusão contra a face meso-bucal do 250

canino superior, onde os autores referiram a presença de uma borda aguda, afiada e lisa. Entretanto, segundo alguns autores (Gow, 1980; Kemp, 2005) este padrão de oclusão entre os caninos superiores e inferiores representa um “típico caráter mamaliano”, mas esta sinapomorfia mamaliana não foi diagnosticada por Bonaparte et al. (2001).

Os dentes inferiores pós-caninos posteriores de Riograndia também apresentam os seguintes caracteres anatômicos derivados:

1-Dentes extremamente comprimidos no sentido buco-lingual;

2-Região cervical pouco marcada, com o limite entre a coroa e a raiz dentária anatomicamente indistinto, em um padrão que sugere proto-hipsodontia;

3-Raízes dentárias dos pós-caninos mais posteriores examinados (pc5/pc6) apresentando um profundo sulco cérvico-apical, demarcando a presença de uma parede interna de dentina que faz a separação de duas câmaras pulpares radiculares bem individualizadas;

4-Raízes dos pós-caninos posteriores examinados (pc5/pc6) apresentando um único ápice, porém com dois foramens apicais bem definidos, que refletem a total subdivisão interna da cavidade pulpar radicular.

A organização anátomo-histológica dos dentes caninos e dos pós-caninos inferiores mostra que as câmaras pulpares iniciam quase que no nível cervical. Portanto, depreende-se que as câmaras pulpares coronais estão totalmente obliteradas pela presença de dentina secundária. Este também deve ser considerado como um caráter de natureza hipsodôntica e é encontrado nos dentes de inúmeros táxons de mamíferos herbívoros fósseis e atuais, refletindo a ocorrência de estímulos mastigatórios e a duradoura permanência do dente no arco dental.

Estes elementos também são reforçados pela presença de diversos tipos de cemento que revestem externamente as raízes dos dentes de Riograndia. A presença e a organização destes tecidos em padrões semelhantes aos que encontramos em mamíferos atuais também configuram mais um carácter derivado para este táxon, indicando que os dentes não seriam substituídos. A presença de cemento dentário radicular derivado reforça os diagnósticos de uma dentição permanente difiodonte em Riograndia.

A presença de amplas zonas de dentina radicular esclerótica nos dentes inferiores de Riograndia confirma que a dentição deste táxon apresentava uma taxa de 251

substituição dentária incompatível com as dentições reptilianas polifiodontes primitivas. A presença de dentina esclerótica, por outro lado, é totalmente compatível com a ocorrência de um padrão de substituição dentária do tipo difiodonte.

Os dentes inferiores de Riograndia também mostram, em seu esmalte, arranjos intra-estruturais dos prismas considerados como derivados e que seriam passíveis de serem atribuídos aos mamíferos placentários: as decussações ordenadas dos prismas de esmalte, com a presença de Bandas de Hunter-Schreger. Nos mamíferos, estas decussações estão associadas a longos prismas de esmalte e à presença de uma fina camada externa de esmalte aprismático. Em Riograndia, as decussações dos prismas de esmalte e a fina camada de esmalte aprismático externa foram encontradas no incisivo central inferior de Riograndia UFRGS- PV0787T. Entretanto, mesmo mediante os mais elaborados esforços, não conseguimos observar as Bandas de Hunter-Schreger neste dente incisivo inferior, mas entendemos que a visualização das BHS foi impossibilitada pelo plano de corte do incisivo central ou pelas trajetórias dos prismas de esmalte na região dental estudada. Estudos atuais mostram, decisivamente, que a visualização microscópica das BHS, mesmo no esmalte humano, não pode ser obtida em todas as regiões de esmalte coronal. O mesmo deve ser inferido para o estudo das BHS em dentes de outros vertebrados atuais ou extintos.

Todavia, foram visualizadas Bandas de Hunter-Schreger em outros dentes de Riograndia, como no 4° pós-canino do espécime UFRGS-PV0791T e na face bucal (vestibular) do canino superior esquerdo de UFRGS-PV0789T. Nestes casos, ocorreu uma feliz coincidência, na qual a angulação das decussações dos prismas e o plano de corte tornaram fortunadamente evidenciáveis as BHS no esmalte.

Diversos autores (Carlson, 1990; Martin, 2005; Mariavaux, 2004; Wood et al., 1999; Wood & Rougier, 2005) defendem que as Bandas de Hunter-Schreger refletem padrões de alta complexidade evolutiva do esmalte dos Synapsida, sendo encontradas apenas nos mamíferos placentários fósseis e atuais. Por outro lado, outros autores consideram arriscado estabelecer caracteres evolucionários mamalianos aos esmaltes que apresentam uma organização intra-estrutural mais complexa (Koenigswald et al., 2004).

A presença de esmalte dentário prismático em Riograndia é um dos mais importantes elementos de análise e diagnose anátomo-fisiológica relacionada à mastigação. Uma vez que o esmalte dentário é um elemento integrado a um sistema mastigador mais complexo presente entre os triteledontídeos, é necessário desconsiderar os argumentos de Wood et al. (1999), no sentido de que a presença de esmalte prismático nos triteledontídeos 252

(referrindo-se a Pachygenelus) possa tratar-se apenas de uma apomorfia reversa de reposição dos Prolongamentos de Tomes dos ameloblastos secretores. Os caninos superiores de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001) surpreendem pelas inusitadas características histo-anatômicas. Apresentam-se com o ápice da sua raiz aberto e incompleto, refletindo um processo heterócrono de retenção de caracteres juvenis (euhipsodontia), que propiciariam o crescimento coronal/radicular contínuo durante a maior parte da vida adulta do animal. Além disso, estes caninos tem a forma de um fuste cônico e de base muito alargada, no qual coroa e raiz são indistinguíveis, uma vez que inexiste a constrição cervical. Inusitadamente euhipsodôntico, este canino está implantado em espessa camada de tecido ósseo, a qual forma uma leve e evidente proeminência canina sobre a superfície rostral do osso maxilar. A cavidade pulpar coronal/radicular é imensa e segue a forma externa do canino superior. As imensas polpas dentárias destes caninos de crescimento contínuo deveriam reter, durante a vida adulta destes animais, muitas células mesenquimais indiferenciadas, que gradativamente se transformariam em células precursoras dos odontoblastos, ameloblastos e dos cementoblastos. Esta seria uma condição embriológica básica para que os dentes, mediante o forte e constante desgaste coronal, continuassem crescendo e se mantivessem funcionais.

As observações histológicas das estruturas deste canino confirmam a diagnose de que estes dentes seriam hipsodontes. O esmalte dentário se apresenta distribuído de forma singular e inesperada, recobrindo somente as faces proximais (mesial e distal) e a face bucal. A face palatina do canino superior não apresenta formação ontogênica de esmalte e a dentina está exposta à abrasão oclusal.

Esta distribuição especializada de esmalte dentário do canino superior também deve ser considerada como resultante de processos heterócronos, que usualmente acompanham a natureza hipsodôntica dos dentes de raízes inconclusas e de crescimento contínuo.

Estas características anátomo-histológicas hipsodônticas relativas ao canino superior de Riograndia também não foram citadas por Bonaparte et al. (2001). Os autores referiram, porém, que o canino teria uma raiz com uma “base forte” e que a borda mesial se apresentaria aguda, afiada e lisa.

A presença destes aspectos hipsodônticos, no canino superior, pode ser explicada através de uma análise funcional mais elaborada. A fase oclusal inicial da mastigação de Riograndia ocorria em movimentos ântero-posteriores, já com os dentários 253

situados em posição alta, próxima ao plano de oclusão. Desta forma, não havia interferência dos caninos e não ocorreria desoclusão dentária. Somente após esta fase inicial, os dentários se deslocavam unilateralmente para trás. Isto pode ser comprovado pelo forte desgaste dental observado nas bordas disto/bucais das coroas dos pós-caninos inferiores e nas bordas meso/palatinas dos pós-caninos superiores, evidenciando que este seria o movimento oclusal preponderante na dentição posterior de Riograndia guaibensis. As facetas de desgaste encontradas nas faces palatinas dos pós-caninos superiores e nas faces bucais dos pós-caninos devem ser consideradas apenas como facetas de desgaste secundário, resultantes da ação dos músculos pterigóideos externos, que buscavam a aproximação das faces de corte entre os dentes superiores e os dentes inferiores. A ação oclusal mais importante ocorria quando os dentes superiores ofereciam as suas bordas meso/palatinas em ângulo de ataque para as bordas disto/lingual dos pós- caninos inferiores cortarem os alimentos vegetais, o que acontecia mediante um movimento dorso/posterior. Nos rodentes fósseis e atuais, ocorreu a supressão total de alguns dentes, como os incisivos laterais, caninos e pré-molares, restando, nesta região, a presença de grandes diastemas. Aqueles dentes provavelmente interferiam com a dinâmica mastigatória herbívora de “roer” e sua supressão foi um passo evolucionário importante para uma melhor adaptabilidade à dieta durofágica. Em Riograndia, a trajetória oclusal preponderantemente ântero-posterior do dentário determinava a presença dos biséis auto-afiáveis nos incisivos, que se dispunham orientados “em linha”, mas também determinava o desgaste da face palatina do canino superior, uma vez que não existe diastema nesta região dental. Nesse contexto, a solução evolucionária encontrada em Riograndia foi o desenvolvimento de caninos hipsodontes, sujeitos ao desgaste e crescimento contínuos, viabilizando um processamento mais eficiente dos alimentos e maior tempo de vida útil dos dentes anteriores, submetidos ao forte desgaste oclusal. Os dentes incisivos superiores de Riograndia apresentam uma forma geral espatulada, sem constrições cervicais e com uma borda incisal em forma de cinzel auto- afiável, à semelhança a que encontramos nos incisivos inferiores. A distribuição do esmalte segue o padrão dos incisivos inferiores e o esmalte está presente somente nas faces proximais e bucais dos incisivos superiores. Não foram realizadas avaliações histo-anatômicas dos incisivos superiores de Riograndia, mas, uma vez constatada a euhipsodontia dos incisivos inferiores, podemos inferir que, dada à necessidade de desgaste constante, estes atributos também estariam presentes nos dentes antagonistas. 254

Os incisivos superiores são dentes medianamente hipertróficos e procumbentes. Os incisivos centrais são menores que os demais incisivos e a conjunção de ambas as bordas incisais apresenta a forma de um arco de concavidade ventral, onde descansariam e ocluiríam os imensos incisivos inferiores.

A euhipsodontia histologicamente diagnosticada nos dentes incisivos inferiores encontra respaldo na anatomia dos dentes incisivos superiores, uma vez que se afiam uns contra os outros. Os padrões de crescimento dentário contínuo, que foram diagnosticados nos incisivos centrais inferiores, seriam consequências destes desgastes fisiologicamente controlados, que ocorrem contra as bordas incisais dos incisivos superiores.

Assim, os dentes anteriores superiores constituíam uma plataforma de oclusão para os imensos incisivos inferiores, onde a dentição de Riograndia guaibensis iniciaria o processamento dos alimentos da sua dieta herbívora.

Não obstante, ao atribuir uma dieta herbívora para Riograndia também estamos levando em conta a presença de diversos outros caracteres anatômicos que foram desconsiderados por Bonaparte et al. (2001), como:

1-Articulação crânio-mandibular (ACM) em nível elevado, situada bem acima do plano oclusal (padrão característico de herbívoros);

2-Espessamento dorso-ventral do ramo horizontal do dentário (idem);

3-Extremidade do processo articular do dentário com forma alongada, sem expansão transversal (idem);

4-Crânio relativamente curto e compacto;

5-Presença de um padrão de oclusão mamaliana entre os caninos superiores e inferiores, como referido por Kemp (2005);

6-Presença de incisivos inferiores proodontes, hipertróficos e sustentados por bossas ósseas estruturalmente complexas do osso dentário.

Assim, as estruturas dentárias diagnosticadas na dentição de Riograndia compõem um quadro anátomo-histológico complexo e totalmente inesperado em um cinodonte não-mamaliano tido como carnívoro-insetívoro. Os elementos de diagnose histológica evidenciaram, em realidade, que Riograndia apresentava uma dentição muito derivada e especializada, cujos atributos fisiológicos eram incompatíveis com àqueles designados por Bonaparte et al. (2001). 255

Os triteledontídeos são conhecidos por apresentarem um padrão primitivo de substituição dentária, no qual os dentes eram substituídos alternadamente ao longo da vida dos animais. Neste modelo “reptiliano” de substituição dentária as ondas das trocas dentárias deveriam ocorrer em sentido rostro-caudal. Então, obrigatoriamente os embriões dentários mais anteriores de uma mesma série seriam organicamente mais desenvolvidos (Peyer, 1968; Gow, 1980; Kemp, 2005; Kielan-Jaworowska et al., 2004; Bonaparte, 2001).

A dentição de Riograndia foi descrita por Bonaparte et al. (2001) como sendo uma dentição “muito generalizada” , com um padrão de substituição indefinido para os pós- caninos: “Não existem indicações sobre qualquer tipo de substituição, seja do tipo gonfodonte, como presente em Andescynodon (Goñi, 1986; Goñi &Goin, 1987), ou do tipo de substituição freqüente, como a que ocorria em um espécime de pachygenelidae derivado (Shapiro & Jenkins, no prelo) do Triássico Superior da Groenlândia (p. 631)”.

Bonaparte et al. (2001)s também referiram que Riograndia “apresentaria taxas muito baixas de substituição dentária”, e interpretaram que “a grande maioria dos espécimes encontrados seriam remanescentes de animais sub-adultos e adultos”. Adicionalmente, Bonaparte et al. (2001), culminam por atribuir uma dentição adulta de natureza permanente para Riograndia guaibensis:

a inferida dentição permanente do gênero brasileiro Riograndia poderia corresponder à retenção de uma dentição juvenil presente em um cinodonte gonfodonte desconhecido, de acordo com as evidências disponíveis (Goñi 1986; Sues & Olsen, 1990). Nas análises realizadas ao longo do presente trabalho, encontrou-se um amplo conjunto de evidências embriológicas e anatômicas que contrariam a diagnose de Bonaparte et al. (2001). As evidências atestam que Riograndia apresentava um padrão de dentição permanente, originada em um modelo embrionário compatível com o padrão de difiodontia atribuído aos mamíferos. Neste sentido, o exemplar UFRGS-PV0791T apresenta dentes em fases embriológicas de desenvolvimento que apontam, para Riograndia, a ocorrência de um padrão de substituição sequencial reversa dos pós-caninos imediatos, à semelhança do que ocorre com os mamíferos placentários. A organogênese dental encontrada evidenciou que os molariformes (pc5 e pc6) foram adicionados em sequência caudal à região mais posterior da fileira de dentes, replicando o padrão mamaliano (Kielan-Jaworowska et al., 2004).

Como podemos observar (Figura 94) o dente premolariforme em fase final de campânula apresenta um comprimento mésio-distal inferior ao apresentado pelo pc4 ao qual se preparava para substituir. Este processo corresponde a um padrão mamaliano, e que pode 256

ser bem observado nas dentições humanas, onde os pré-molares apresentam menor volume que os molariformes decíduos aos quais substituem. Este padrão heterócrono de alometria negativa e simplificação anatômica (pós-delocamento) também foi descrito como presente em outros cinodontes não-mamalianos (Crompton & Osborn, 1972).

A diagnose de uma dentição permanente, com origem provável em um processo de mamaliano de difiodontia, como presente no triteledontídeo Riograndia guaibensis é reforçada de forma significativa por inúmeros outros elementos histo-anatômicos evidenciados neste trabalho:

1-Presença de dentes anteriores de crescimento contínuo;

2-Ausência de processos de substituição dos dentes anteriores;

3-Presença de dentina esclerótica em raízes completas da dentição permanente;

4-Presença de facetas de desgastes na maioria das coroas dentais;

5-Presença de esmalte prismático e Bandas de Hunter-Schreger (evidência de mastigação).

6-pré-molariformes de substituição anatomicamente mais simples que os dentes substituídos.

Por outro lado, o fato de que a maioria dos espécimens encontrados de Riograndia guaibensis representam animais sub-adultos e adultos, em nosso entendimento, reflete um padrão característico das típicas faunas mamalianas, conseqüência do desenvolvimento rápido característico deste táxon, mediante o alto aporte alimentar advindo da amamentação.

Estes elementos que indicam “muito baixas taxas de substituição dental”, quando associadas a assembléias fossilíferas cuja freqüência de adultos e sub-adultos, podem estar refletindo padrões esperados para as assembéias fossiliferas de herbívoros difiodontes, de natureza mamaliana, cujos dentes permanentes tendem a surgir muito precocemente nos arcos dentais.

Isto ocorreria porque, associadamente às necessidades mastigatórias advindas do metabolismo acelerado, a dieta herbívora de sub-adultos recém-desmamados impõe restrições à existência de uma dentição transicional pouco operante. Nestes casos, os dentes permanentes assumem rapidamente suas posições funcionais no aparelho estomatognático, e 257

sua longevidade, se necessária, é suportada por processos organogenênicos heterócronos hipsodônticos.

Os mamíferos carnívoros/insetívoros, cujas presas são formadas por células pouco resistentes e com alta concentração energética e alimentar, precindem de maior eficiência mastigatória, e, nestes casos, os dentes permanentes podem erupcionar de forma mais gradativa. Isto poderia dar uma falsa impressão que estes animais apresentariam maiores taxas de substituição dentária, sendo, portanto, um fator que deve ser levado em conta por ocasião da diagnose de um táxon.

Como podemos observar, a análise e diagnose de dentições de vertebrados compõem um processo complexo, em que uma infinitude de variáveis estão presentes. Estes elementos “acessórios” de diagnose representam muito mais que características morfológicas adicionais para este táxon. Eles demonstram a complexidade e a integralidade evolucionária morfo-fisiológica que estão presentes na dentição de Riograndia.

Neste contexto complexo, a difiodontia é considerada como um caráter apomórfico em relação aos mamíferos. Todos os trabalhos conhecidos referem uma série de passos gradativos que culminaram com um sistema de duas dentições: uma primeira dentição neonatal decídua, que seria substituída por uma dentição permanente, que duraria toda a vida do animal. Este padrão teria surgido dentro de um contexto em que um padrão polifiodonte basal, com ondas de substituições dentárias alternadas em direção ântero-posterior, que ocorriam durante toda a vida do animal, e que culminariam por originar um padrão de dentição difiodonte permanente, em um contexto mamaliano.

Ocorre que os conceitos que estabeleceram este padrão não apresentam as causas embriológicas que levaram a este evento. Neste caso, as tentativas pouco parcimoniosas sustentam que uma sequência de eventos embriológicos com aproximadamente seis passos evolucionários isolados (Figura 56) levaram ao surgimento deste padrão.

Quando temos a oportunidade de avaliar de forma ponderada as afirmações de Maier, Ven Den Heever & Durand (1996) e Maier (1999) quanto aos processos embriológicos que culminaram com o desenvolvimento do palato dos mamíferos (Figura 52 e 55), associando-as aos modelos estabelecidos para o desenvolvimento ontogenético oral de mamíferos modernos, podemos estabelecer uma premissa básica fundamental para uma nova hipótese para a origem da difiodontia. 258

Isto fica claro, no sentido de que grandes mudanças anatômicas não podem surgir sem afetar as estruturas e órgãos anexos. Neste caso, a cavidade oral primitiva sofreu processos heterócronos de amplo espectro, que decorreram de fatores mutacionais precoces. As mudanças das “ondas de fusionamento” e de desenvolvimento do palato dos cinodontes fatalmente levaram a outras conseqüências. Estes eventos compulsoriamente causaram mudanças que afetaram os campos morfogênicos dentários, os quais compunham os leitos do epitélio oral sobre os quais as células ectomesenquimáticas induziriam a formação de um novo padrão de dentição: a difiodontia.

Podemos vislumbrar de forma hipotética, e de forma extremamente parcimoniosa, como, através de um único e precoce evento embriológico, o complexo sistema difiodonte mamaliano surgiu. O mesmo evento que, segundo Maier, Ven Den Heever & Durand (1996), inverte o ponto de fusão dos epitélios no terço médio dos processos palatinos dos cinodontes (e mamíferos) estabelece os referenciais embriológicos de sinalização e indução que determinam, em nosso entendimento, a reversão seqüencial da onda de formação dos pós-caninos imediatos (premolares). Isto ocorreria por que os campos morfogênicos dentários seriam os reponsáveis por inicializar e controlar o desenvolvimento dos botões da lâmina dentária.

Posteriormente a esta área de fusão das prateleiras palatinas, sobre áreas correspondentes aos futuros rodetes alveolares dos molares, a polarização do epitélio oral permanece em seu padrão primitivo, uma vez que a inversão do campo morfogênico teria ocorrido apenas na zona dos prémolares. Com isto, os molares mamalianos apresentam um padrão primitivo ântero-posterior de desenvolvimento e erupção.

A presença de um campo embrionário indutor invertido na região mediana dos rodetes dentários também seria o fator responsável pela não geração de novas dentiçãos. Isto teria ocorrido porque a zona de inversão dos campos de formação dos pré-molariformes criaria uma zona tampão entre a região rostral do embrião e a zona mais caudal. Assim, uma única dentição de substituição seria formada e os molares “permanentes” jamais seriam substituídos.

Neste caso, a opção mais coerente e parcimomiosa seria adotar a teoria defendida por alguns autores como Edmund (1960), Peyer (1968), Romer & Parsons (1981) e por Lucas (2004) de que os molares permanentes seriam componentes “tardios” da primeira geração de dentes. Isto se torna coerente quando se observa a similaridade da complexa 259

anatomia presente entre os dentes molares decíduos e os molares permanentes, diferentemente dos prémolares que são bicuspados e apresentam uma anatomia mais simples.

Este processo pode ser explicado através dos padrões de desenvolvimentos heterócronos sustentados por McKinney & McNamara (1991) como processos pedomórficos de pós-deslocamento, onde as estruturas têm o seu início de desenvolvimento postergado durante a ontogenia. Isto resulta em estruturas derivadas que se apresentam morfologicamente mais simples e menores. Estes elementos podem ser visualizados na dentição dos mamíferos atuais, sendo reconhecida, em maiores detalhes na dentição humana.

De fato, se adotássemos a abordagem mais parcimoniosa de Edmund (1960), Peyer (1968), Romer & Parsons (1981) e por Lucas (2004) poderíamos notar que a dentição mamaliana apresenta diversos elementos que sugerem que estes eventos heterócronos estão presentes. Ao nascerem, via-de-regra os mamíferos são edentados, em flagrante condição pedomórfica se comparados aos padrões reptilianos e aos terápsidas mais primitivos, onde ocorre uma clara postergação do aparecimento da primeira dentição. Logo em sequência podemos observar que a dentição decídua erupciona, sendo então substituída pela dentição permanente.

Segundo as nossas observações a difiodontia apresenta diversos elementos heterócronos pedomórficos:

1-Formação tardia da primeira dentição.

2-A primeira dentição se prolongaria no tempo, durando toda a vida dos animais, através dos molares.

3-Os pré-molares são pedomórficos (menores e menos complexos) em relação aos molariformes decíduos que eles substituem.

4-A dentição mamaliana jamais se transforma em um conjunto totalmente “adulto”, uma vez que os molares jamais são substituídos.

Como forma de ilustrar ainda mais esta possibilidade, devemos relembrar que na dentição humana, a anatomia dos primeiros pré-molares permanentes (principalmente os superiores) é mais complexa, e intrigantemente ele podem se apresentar com duas raízes (à semelhança do que ocorre entre os molares) enquanto o segundo pré-molar tem uma anatomia mais simples, e apresenta raiz única, como o canino (Berkovitz et al. 2004). Isto seria um forte indicador que estas estruturas dentárias teriam tido as suas posições embriológicas 260

revertidas durante a inversão da onda de formação dos pré-molares, ocorrida entre os cinodontes.

15.2-HIPSODONTIA E MASTIGAÇÃO EM RIOGRANDIA GUAIBENSIS E OUTROS CINODONTES NÃO-MAMALIANOS

Os dentes anteriores de Riograndia guaibensis mostram diversos caracteres hipsodônticos (proto-hipsodônticos/euhipsodônticos), que permitiam o crescimento contínuo dos dentes, como a distribuição diferenciada de esmalte, a forma anatômica em fuste, as raízes hipertrofiadas e de ápice radicular permanentemente. Estes elementos anatômicos representam as principais adaptações alimentares deste táxon e sua existência é incompatível com qualquer gênero de substituição dentária polifiodonte, alternada ou não-alternada.

A presença dos incisivos centrais inferiores de crescimento contínuos (euhipsodônticos), muito semelhantes aos dentes que são encontrados nos rodentes e lagomorfos, evidencia a necessidade de que o processo mastigatório de Riograndia tinha de ser mantido plenamente funcional em todas as fases da vida do animal. Isto deve ser assim entendido porque esta é a única razão pela qual a euhipsodontia ocorre nos mamíferos atuais: permitir que os dentes dos herbívoros mantenham-se eficientes por períodos maiores de tempo, uma vez que o crescimento continuado compensa o forte desgaste oclusal promovido pelas dietas fortemente abrasivas (Koenigswald et al. 1999; Van Valen, 2004; Verzi, 2002).

Neste contexto, fica claro que a hipsodontia (proto-hipsodontia/euhipsodontia) é um atributo evolucionário típico das dentições dos mamíferos herbívoros, não estando presente nos répteis, e mesmo em mamíferos carnívoros ou onívoros, com exceção dos tubulidentados insetívoros (Peyer, 1968; Paula Couto, 1979; Koenigswald et al. 1999).

Entre os diferentes padrões de hipsodontia externa, descritos por Koenigswald et al. 1999, pode ser atribuído inequivocamente como presente em R. guaibensis aquele do Tipo 3 . Nestes casos de hipsodontia dois dentes incisivos euhipsodontes se apresentam nos rodetes superiores e outros dois se localizam na mandíbula, tendo as suas funções relacionadas ao processamento alimentar, aos contatos sociais e à escavação de galerias. 261

A euhipsodontia também é um caráter derivado e altamente complexo, composto por modificações anatômicas, histológicas e fisiológicas incompatíveis de serem encontrados em animais que não apresentem processos mastigatórios verdadeiros. Isto ocorre porque os dentes euhipsodônticos devem ser obrigatoriamente submetidos aos desgastes oclusais, sob pena de passarem do plano oclusal e colocarem os animais em risco de morte (Paula Couto, 1979).

A mastigação, por sua vez, é um processo que envolve altos custos biológicos e está associada à origem dos eficientes padrões mamalianos de alto processamento bucal dos alimentos (Kemp, 2005; Schultz, 1998). Estes processos mastigatórios mais eficientes também são dependentes de altos níveis metabólicos (envolvendo circulação e respiração) e de que seus portadores apresentem um maior desenvolvimento do sistema nervoso central.

O palato secundário de Riograndia é bastante derivado e se estende ao nível dos últimos pós-caninos superiores. Isto também estaria em conformidade com os padrões osteológicos necessários à realização de processos mastigatórios mais eficientes. Uma maior separação das vias respiratórias e da cavidade bucal estaria diretamente associada à manutenção de altas taxas respiratórias durante o processamento mecânico/enzimático de mastigação (Schultz, 1978; Kemp, 2005; Kielan-Jaworowska et al., 2004). Adicionalmente, segundo Rodrigues (2004), Riograndia guaibensis apresenta os turbinais respiratórios (evidencia de endotermia) e índices de encefalização compatíveis com os dos primeiros mamíferos.

A respeito da organização anatômica da ACM dos triteledontídeos feita na Figura 48, nota-se, que Pachygenelus (e, por extensão, Riograndia, que apresenta o mesmo padrão) se encontraria num estágio transicional muito semelhantes ao que está definido para Sinoconodon (mamífero), como descrito no trabalho de Kielan-Jaworowska et al. (2004). As articulações crânio-mandibulares compostas transicionais são referidas por diversos autores como articulações “enfraquecidas”, devido à diminuição no volume dos ossos pós-dentários e pelo pequeno volume das superfícies de contato articular/quadrado. Contrariamente, entendemos que a diminuição de volume das estruturas ósseas articulares representa apenas adaptações aos novos padrões de dispersão das forças envolvidas nos movimentos de abdução da mandíbula mamaliana em evolução. Esta dispersão das forças de fechamento mandibular resultava em diminuição das forças que deveriam ser absorvidas pela articulação crânio- mandibular, uma vez que o fulcro mastigatório devia estar ocorrendo sobre as superfícies dentárias, recobertas agora com um esmalte dentário prismático mais resistente. 262

Assim, em Pachygenelus e Riograndia, a ausência de uma expansão condilar no dentário e de uma cavidade glenóide no esquamosal bem definidos, podem ser apenas conseqüências de convergências homoplásicas entre estes táxons, que seriam totalmente voltadas à herbivoria. Nesse sentido, Riograndia apresenta, como já vimos, outros elementos osteológicos como o crânio acinético, o palato secundário extenso e o osso dentário mais espesso.

A presença de um crânio acinético deve ser compreendida como um dos fatores mais importantes para a que a função mastigatória estivesse presente em Riograndia, pois, uma vez que a mastigação exige um complexo sistema proprioceptivo e neuromotor, fica claro que a estabilidade das estruturas ósseas cranianas é um imperativo fisiológico para que o sistema neuromuscular possa funcionar com precisão.

A partir das observações efetuadas em Riograndia no decorrer do presente trabalho, parece-nos agora claro que Gow (1980), Kielan-Jaworowska et al. (2004) e Kemp (2005), entre outros, se equivocaram ao generalizar uma dieta carnívoro-insetívora para a quase totalidade dos táxons envolvidos na transição cinodonte-mamífero, e especialmente para os triteledontídeos.

A mastigação é um caráter reconhecidamente mamaliano, cujos processos mecânicos mais derivados e eficientes realizam a necessária cominuição, digestão e absorção dos alimentos. Isto provê as altas demandas de energia necessárias para sustentar as dispendiosas atividades neuro-miomotoras que compõem o próprio processo mastigatório. Nesse contexto, uma mastigação verdadeira também deve ser considerada como presente em Riograndia, e em todos os cinodontes não-mamalianos, sempre associada à ocorrência de um padrão de substituição dentária do tipo difiodonte mamaliana. A difiodontia está presente nos mamíferos devido à necessidade de estabelecimento de um sistema neuro-miomotor que propicie a existência de verdadeiros processos mastigatórios. A ocorrência de uma dentição permanente difiodonte é condição básica para a necessária existência dos sensores proprioceptivos nos ligamentos periodontais, a fim de permitir que os sistemas nervosos dos mamíferos possam gerar os estímulos motores adequados aos complexos movimentos das bochechas, dos lábios, da língua, das mandíbulas e das estruturas da orofaringe.

Diversos autores (Kielan-Jaworowska et al., 2004; Kemp, 2005; entre outros) concordam em afirmar que a difiodontia é o padrão de substituição dentário tipicamente mamaliano e estaria diretamente vinculada à suplementação alimentar através da lactação, pois só assim seriam propiciados os recursos nutricionais necessários ao desenvolvimento 263

craniano e mandibular rápido, imprescindível e necessário ao estabelecimento da dentição permanente difiodonte. Sem estes adequados aportes nutricionais adicionais, os sistemas nervosos dos mamíferos não conseguem completar o seu desenvolvimento e diversos tipos de lesões neuronais neonatais permanentes tornam-se inevitáveis (Pernetta, 1979). Ulinski (1986) foi taxativo em afirmar que a expansão do neocórtex dos primeiros mamíferos deveria estar associada ao incremento dos processos neurológicos associados à mastigação. Em resumo, um padrão mastigatório complexo, envolvendo difiodontia e euhipsodontia, deve, necessariamente, estar associado a todo um metabolismo mais complexo, incluindo lactação, endotermia, altas taxas respiratórias e um SNC bem desenvolvido.

Deve-se lembrar ainda que, além de Riograndia guaibensis, diversos outros táxons de cinodontes não-mamalianos derivados demonstram processos mastigatórios muito evidentes, como os cinodontes gonfodontes traversodontes. As diagnoses usalmente feitas para a substituição dentária nestes grupos apontam para padrões alternados e de baixas taxas de substituição de dentes, mas ainda não foram realizados trabalhos mais direcionados à histo- anatomia ósteo-dentária nestes grupos. Os vários padrões de oclusão diagnosticados (Compton & Parkyn, 1962; Kermack et al., 1973; Goñi & Goin, 1990; Abdala & Giannini, 2000; Abdala, 2002; Botha & Chinsamy, 2004; Botha et al., 2005; Bonaparte et al., 2005) em grupos de cinodontes não- mamalianos, pouco relacionados à transição cinodonte-mamífero, em sua grande maioria atestam baixos índices de substituição. Deve-se entender que estes seriam elementos indicadores de que o processo de evolução da difiodontia mamaliana já estaria presente. Devemos considerar equívocas as diagnoses de que estes táxons apresentassem processos mastigatórios com características de “mastigação incipiente” ou “mastigação pouco elaborada”, uma vez que estes grupos tiveram sucesso evolutivo expressivo, e irradiaram em uma ampla diversidade de gêneros. As complexas e elaboradas formas das superfícies oclusais dos pós-caninos dos cinodontes traversodontídeos, por exemplo, parecem ser resultantes de precisos processos de auto-afiamento dentário (thegosis). É fato que estes cinodontes, quando adultos, apresentavam dentições permanentes e definitivas, à semelhança com a que encontramos em Riograndia. Alguns destes táxons também derivaram para padrões herbívoros mais complexos, como Exaeretodon e Massetognathus, e estes processos evolutivos derivados atestam a eficiência biológica de seus aparelhos mastigatórios. 264

A grande maioria dos Autores reluta em atribuir dentições adaptadas e derivadas para à herbivoria em táxons de Eucinodontes (Tritylodontidae e Tritheledontidae), mas diversos táxons mostram aparelhos mastigatórios mais derivados. Pachygenelus monus e Riograndia guaibensis são apenas dois exemplos de cinodontes não-mamalianos que, sob uma análise dentária mais criteriososa, apresentaram dentições que divergem anatômica e histologicamente de seus congêneres. Em Pachygenelus monus foi referida a presença de esmalte prismático plesiomórfico (Wood et al., 1999), porém nenhuma fotografia deste material foi divulgada, e tampouco se sabe em qual dente ou em qual região coronal este esmalte foi diagnosticado. Observa-se ainda, naquele táxon, que as facetas de oclusão muito evidentes e os dentes incisivos inferiores centrais são hipertrofiados e proodontes. Além disso, também ocorreu uma forte redução no número de dentes incisivos, de três dentes para dois, e o dentário apresenta um diastema pós-canino bem evidente. Estes caracteres demonstram que a dentição de Pachygenelus seria uma dentição permanente muito derivada, que seguramente era submetida a contatos oclusais mastigatórios mais constantes e regulares. As formas dos dentes de Pachygenelus mostram que eles não eram adaptados à carnivoria, mas que seriam semelhantes aos dentes dos herbívoros durofágicos. Os dentes incisivos centrais inferiores proodontes lembram a dentição de Riograndia, dos multituberculatas e dos roedores atuais. O dentário de Pachygenelus apresenta a sua articulação crânio-mandibular em um nível mais elevado que o plano de oclusão, característica presente em mamíferos herbívoros. Em conseqüência dos caracteres anatômicos e histológicos elencados deveríamos atribuir também à Pachygenelus um fisiologismo voltado para a herbívoria e à durofagia. Com base no que foi observado em Riograndia, entendemos que a dentição de Pachygenelus monus Watson (1913), da mesma forma que as dos outros táxons que hoje são considerados como triteledontídeos, deve ser reavaliada para uma necessária redefinição deste grupo.

15.3-RIOGRANDIA GUAIBENSIS COMO UM PEQUENO MAMÍFERO PRIMITIVO, HERBÍVORO E DE HÁBITOS FOSSORIAIS

A análise das estruturas orais de Riograndia guaibensis permitiu acessar um grande número de evidências histo-anatômicas confiáveis. No âmbito do estudo direto destas 265

estruturas foi possível estabelecer uma série de elementos biológicos e fisiológicos que tornam possível uma “reconstrução viva do animal Riograndia guaibensis”. Entende-se que os diversos elementos dentários aqui apresentados apontam que Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001) era um pequeno mamífero primitivo, herbívoro e homeotérmico. A natureza mamaliana deste táxon foi sobejamente externada pelos atributos encontrados em sua dentição e pela organização de sua ATM, que também atestam a sua adapatbilidade à herbivoria e à durofagia. A endotermia neste táxon deve igualmente ser inferida pelos diversos caracteres anatômicos e histológicos dentários diagnosticados neste táxon, e que estão diretamente associados à mastigação. Entre algumas destas características dentárias mamalianas encontradas em Riograndia podemos citar: A-Padrão de substituição dentária difiodonte; B-Esmalte dentário prismático com BHS; C-Presença de mastigação; D-Presença de euhipsodontia e comportamento alimentar “roedor”; E-Redução no número de incisivos; F-Redução no número de pré-molariformes; G-Redução no tamanho dos pré-molariformes (alometria negativa); H-Heterodontia coronal e radicular ao longo das fileiras dentárias. Outros caracteres fisiológicos devem ser designados como bons indicadores metabólicos e de endotermia também foram claramente diagnosticados para este táxon: A - Sistema Nervoso Central mais derivado (Rodrigues, 2004); B - Taxas Respiratórias mais elevadas (Rodrigues, 2004).

Entende-se que Riograndia deveria ter assumido hábitos de vida fossoriais, pela natureza extremamente proodonte de seus incisivos centrais inferiores, tal como ocorre com a grande maioria dos pequenos mamíferos roedores atuais, que também utilizam os seus incisivos procumbentes como ferramentas para escavar túneis e galerias subterrâneos. Os dentes representam, por certo, os tecidos dentários mais duros dos vertebrados terrestres e se prestam para desagregar os solos mais compactados. A escavação de túneis é um comportamento caro e dispendioso para um animal pequeno, porque implica na desagregação e remoção de grande volume de material de solo. 266

Ao acessarem a vida fossorial, estes pequenos herbívoros estavam usufruindo de inúmeras vantagens não disponíveis para outros pequenos vertebrados. A proteção direta contra os predadores seria apenas uma resultante colateral frente às imensas vantagens metabólicas pelo estabelecimento de um microclima do ambiente fossorial. A possibilidade de fugir das altas temperaturas que ocorrem durante as horas de luz solar e a maior retenção corporal de água pelos maxilo-turbinais respiratórios permitiria a vida nos ambientes xeromórficos do Triássico Superior. A possibilidade de estocagem de alimentos em suas galerias possibilitaria que Riograndia tivesse acesso constante aos alimentos, uma necessidade imperiosa em pequenos vertebrados endotérmicos. O aparelho mastigador extremamente eficiente atuaria sobre uma série de alimentos vegetais duros e fibrosos, fora do alcance de outros vertebrados com dentições menos especializadas. Roer implica em permanecer na presença e posse da fonte alimentar. Portanto, nos parece óbvio que transportar este alimento e estocá-lo em galerias seria uma solução fácil e segura, no sentido de garantir a alimentação em um local fora do alcance dos predadores. Os pequenos roedores atuais carregam uma grande quantidade de sementes e vegetais para as suas tocas, dada à necessidade de alimentação mais constante e regular. Isto ocorre devido o baixo peso corpóreo, o que implica em perdas calóricas mais elevadas e na necessidade constante de reposição de nutrientes. Parece razoável supor que Riograndia apresentasse uma cobertura de pêlos, com o objetivo de permitir o controle das perdas calóricas e que também serviria como uma proteção mecânica durante as suas incursões em busca de alimento. Caso Riograndia fosse ativo durante algumas horas de luz solar, esta pelagem também seria essencial para a proteção contra as radiações solares. As sementes representam grandes quantidades de alimentos essenciais como carboidratos, lipídios, proteínas, aminoácidos e água, entre outros. A euhipsodontia e a mastigação foram “chaves” evolucionárias que garantiram que Riograndia guaibensis pudesse acessar de forma rápida e eficiente estes nutrientes. A elaborada dentição também colocaria ao alcance de Riograndia outros substratos alimentares mais duros como cascas de árvores, raízes, ossos, restos de insetos, etc. Muitos caracteres encontrados em Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001) representam aspectos biológicos mamalianos muito derivados, resultantes de tendências evolucionárias que foram estabelecidas já ao início da evolução dos Synapsidas. 267

Entre estes elementos osteológicos podemos citar a redução e fusionamento dos ossos cranianos, com diminuição do cinetismo e a conseqüente possibilidade de estabelecimento de padrões mastigatórios mais precisos. A reorganização estrutural do osso dentário e dos ossos paradentários estaria diretamente relacionada à evolução dos diversos modelos de sistemas mastigatórios encontrados entre os Synapsida. A mastigação representa, em nosso entendimento, a única função integradora passível de ser diagnosticada pela análise anatômica. Isto ocorre porque a mastigação é fisiologicamente dependente de um grande número de caracteres encontrados entre os mamíferos atuais. A mastigação como função fisiológica presente em Riograndia seria totalmente dependente da existência de uma dentição permanente, condição que permitiria a organização de um sistema proprioceptivo adequado. Este sistema ósteo-dentário deveria ser controlado e movimentado por um sistema neuro-miomotor mais complexo, que regulava e gerenciava os movimentos mastigatórios, promovendo as trajetórias oclusais mais adequadas e a correta movimentação do bolo alimentar. A presença de um Sistema Nervoso Central mais complexo em Riograndia, como o diagnosticado por Rodrigues (2004), foi fundamental para o necessário controle das estruturas esqueléticas com atividades mastigatórias mais elaboradas. A presença de um esmalte dentário prismático em Riograndia foi causa e conseqüência do incremento dos processos evolucionários da mastigação. Entretanto, a existência da difiodontia seria a condição pré-existente determinante no sentido de estabelecer uma dentição permanente mamaliana, com todas as qualidades e possibilidades evolucionárias que podemos hoje observar. Portanto, não seria equivocado afirmar que a difiodontia deve ter sido um dos primeiros eventos que acelerou a evolução dos mamíferos. Maier (1999) muito apropriadamente nos concedeu as pistas que indicam como e quando surgiu o padrão de reversão seqüencial de substituição dos pós-caninos. Ao longo da evolução dos cinodontes, aconteceu a mudança dos padrões de fechamento do palato e estes animais passaram a apresentar diversas sinapomorfias que hoje estão presentes entre os mamíferos, como o forame palatino anterior e os forames palatinos posteriores. Neste momento, porém, além da ação de fechamento do palato secundário em sentido anterior e posterior, a partir de um ponto médio, teria ocorrido também a inversão dos campos morfogenéticos dentários, situados sobre os rodetes alveolares, totalmente necessária à “reversão da onda sequencial de substituição 268

dos dentes pós-caninos imediatos”, que deve ter sido o elemento embrionário mais importante para o estabelecimento da dentição difiodonte. Esta mudança, surgida simultaneamente em todos os quadrantes dentígeros, deve ter ocorrido em um evento evolutivo embrionário de amplas dimensões, e que deve ter realizado outras modificações evolucionárias, às quais não estariam tão somente relacionadas às “ondas de substituição” das estruturas dentais. Riograndia guaibensis também apresenta evidências de um sistema respiratório mais derivado, pela presença dos maxilo-turbinais respiratórios (Rodrigues, 2004). Elevadas taxas metabólicas basais seriam necessárias para o processamento mastigatório dos alimentos, para manter a endotermia/homeotermia e para a lactação. A lactação estaria diretamente relacionada à possibilidade ontogênica de surgimento da difiodontia e de um Sistema Nervoso Central mais derivado. Em Riograndia pode-se encontrar este complexo sistema anátomo- fisiológico integrado, proposto pela sinopse de Kemp (2005), que dinamizaria e potencializaria a emergência de caracteres apomórficos mamalianos. A respeito do fato, já desde o início constatado por Bonaparte et al. (2001), de que a maioria dos espécimens encontrados de Riograndia guaibensis representaria animais sub-adultos e adultos, entendemos que isto apenas refletiria um padrão característico dos mamíferos de pequeno porte, que apresentam um desenvolvimento muito rápido, atingindo o estágio adulto num curto espaço de tempo, mediante o alto aporte alimentar advindo da amamentação.

Em relação à “miniaturização” como mais um caráter “mamaliano” emergente (Gow, 1985 e Kemp, 2005) entende-se que este fator merece uma abordagem diferente. É óbvio que o surgimento e o aumento do número de táxons de cinodontes de pequeno volume corporal foram determinantes para a evolução e surgimento das formas mamalianas mais derivadas. Isto ocorreu porque estes táxons apresentavam-se essencialmente pedomórficos e potencialmente capazes de gerar novas linhagens filogenéticas. Entretanto, parece razoável supor que estas formas pequenas devem ter evoluído a partir de táxons de terápsidas endotérmicos/homeotérmicos, primeiramente em resposta a fatores ambientais, como formas adaptadas aos ambientes cada vez mais quentes e xeromórficos que surgiram e progrediram durante Período Triássico. O surgimento de formas endotérmicas de pequeno volume corporal seria uma consequência natural, como forma de permitir um melhor equilíbrio entre o volume de massa física e a superfície externa do corpo, garantindo uma boa capacidade de perda de temperatura corporal. Outras adaptações estariam relacionadas à aquisição de hábitos 269

noturnos e à vida fossorial. O surgimento de estruturas osteológicas como os turbinais maxilo- respiratórios e naso-respiratórios parecem reforçar este entendimento. Neste caso, a miniaturização não deveria ser considerada como uma consequência da origem dos mamíferos, como sugerido por Gow (1985, Kemp (2005) entre outros, mas sim como o ponto de partida para o surgimento de táxons de terápsidas dotados de organismos muito pedomórficos e com alto potencial de geração de novas linhagens evolucionárias. Como ficou evidenciado ao longo deste trabalho, as estruturas histo-anatômicas ósteo-dentárias básicas, associadas com outros elementos osteológicos encontradas em Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001) denunciam estes padrões organizacionais derivados e extremamente complexos, que somente podem ser associados à natureza dos verdadeiros mamíferos. 270

16-CONCLUSÕES

16.1-CONCLUSÕES RELACIONADAS A RIOGRANDIA GUAIBENSIS

Este trabalho de anátomo-histologia dentária indicou a presença das seguintes características morfo-fisiológicas em Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001):

1-O esmalte dentário de Riograndia guaibensis é de natureza prismática, com prismas longos e que apresentam arranjos intra-estruturais de mudanças simultâneas de direção e Bandas de Hunter-Schreger. Este esmalte apresenta uma camada mais externa de natureza aprismática. Esta condição é compartilhada por mamíferos fósseis (Haramiyidae e Multituberculata) e Eutérios atuais como carnívoros, euprimatas, rodentes, lagomorfos, artiodátilos e perissodáctilos.

2-A presença de dentina esclerótica encontrada nas raízes dos dentes de Riograndia é evidência de que estes pertencem a uma dentição duradoura e permanente. Também serve como evidência de que os dentes deste táxon eram submetidos a processos mastigatórios oclusais constantes e vigorosos.

3-O cemento dentário em Riograndia apresenta características compatíveis com a existência de um periodonto complexo e permanente. O cemento acelular foi depositado sobre a dentina radicular e, sobre este, foram depositadas outras camadas de cemento, tanto de natureza celular como acelular. Este cemento encontrado em Riograndia apresenta padrões deposicionais e organizacionais semelhantes aos que encontramos em animais difiodontes fósseis e atuais.

4-O padrão de substituição dentário evidenciado em Riograndia guaibensis é um modelo Difiodonte, no qual os dentes pós-caninos imediatos (pré-molares) decíduos eram substituídos em uma “onda seqüencial reversa”, que se iniciava a partir do quarto pós-canino inferior permanente. Esta condição seria compartilhada somente pelos mamíferos placentários.

271

5-O surgimento de um palato secundário mais extenso entre os cinodontes (presente em Riograndia), como preconizado pela “Teoria de Maier, Ven Heever & Durand (1996)”, deve ter acontecido em um evento evolucionário único, conjuntamente à aquisição da difiodontia.

6-Como a difiodontia está diretamente condicionada ao crescimento craniano rápido e limitado, estes elementos são obrigatoriamente dependentes de incrementos nos cuidados parentais e na lactação. Assim, ao evidenciar a difiodontia em Riograndia, podemos estabeler também um marco referencial no seqüenciamento hipotético dos mais antigos caracteres mamalianos, como endotermia, mastigação, palato secundário extenso, lactação e organização da articulação dentário/esquamosal.

7-A dentição heterodonte de Riograndia compunha um sistema estomatognático derivado e especializado, constituída por dentes que apresentavam caracteres hipsodônticos em níveis variados de proto/meso/euhipsodontia. Esta dentição estava totalmente adaptada à herbivoria/durofagia e à atividade de “roer” alimentos vegetais fibrosos e extremamente abrasivos. Os dentes incisivos eram proodontes e euhipsodontes, apresentando crescimento contínuo, tal como os dentes incisivos centrais que encontramos entre os rodentes e lagomorfos.

8-A presença de esmalte prismático e as facetas de desgaste demonstram que Riograndia apresentava padrões mastigatórios precisos e complexos.

9-A presença de dentes de crescimento contínuo (euhipsodontia) confirma os elevados padrões de controle neuro-muscular, necessários e imprescindíveis à manutenção dos planos de oclusão, à manutenção das dimensões destes dentes e ao perfeito auto- afiamento das bordas incisais.

10-Em conformidade com a organização das estruturas dentárias, com a disposição das facetas de desgaste sobre os dentes e ainda com a anatomia do osso dentário e da ACM, pode-se afirmar que Riograndia apresentava processos mastigatórios “verdadeiros” com movimentos ântero-posteriores preponderantes. O corte, a apreensão e a mastigação dos alimentos ocorriam em fases separadas do processo mastigatório. A apreensão dos alimentos ocorria em situação protrusiva do dentário, onde os incisivos atuavam no corte da matéria 272

vegetal. Na fase seguinte, os dentários transitavam, em movimentos unilaterais, em sentido dorso-posterior, enquanto as bordas disto/bucais dos dentes pós-caninos inferiores cortavam as fibras vegetais contra as bordas mesio-palatinas dos pós-caninos superiores. Os alimentos eram conduzidos até as superfícies dentárias mastigatórias com a ajuda das bochechas, lábios e da língua. Certamente, Riograndia apresentaria comportamentos e hábitos de “roer” objetos como pedras, ossos, e madeiras duras, para conseguir realizar o desgaste e afiamento adicionais dos incisivos, de forma a mantê-los em um plano oclusal adequado, como o que ocorre com os roedores atuais.

11-As estruturas dentárias de Riograndia evidenciam que os inivíduos deste táxon poderiam processar, com rapidez, grandes quantidades de vegetais, para atender as altas demandas nutricionais e calóricas corporais que necessitavam à semelhança com o que ocorre com os pequenos Rodentia atuais.

12-O fato de Riograndia guaibensis ser o táxon mais abundante (e o fóssil- guia) na Cenozona de Mammaliamorpha do Triássico Superior do Rio Grande do Sul, bem como de estar representado quase que exclusivamente por espécimes já adultos, seria mais um argumento a favor de que este táxon estava constituído por animais com altas taxas reprodutivas e rápido desenvolvimento ontogenético, tal como observado entre os pequenos herbívoros roedores atuais.

16.2-CONCLUSÕES E INFERÊNCIAS QUANTO À EVOLUÇÃO DOS MAMÍFEROS

1-O conjunto de características orgânicas expressadas em Riograndia guaibensis Bonaparte et al., 2001, conflita com os atuais modelos evolucionários que tentativamente buscam delinear a emergência das principais apomorfias mamalianas.

2-O presente estudo estabelece a idéia de que a origem e a evolução dos mamíferos devem ser buscadas em fósseis mais antigos, especialmente entre os Cinodontes do Eotriássico.

273

3-Esta procura de evidências da origem e da evolução dos primeiros mamíferos deve, porém, se concentrar em elementos histo-anatômicos que estejam relacionados aos caracteres emergenciais fisiológicos mamalianos elementares, como o metabolismo e a lactação.

4-Riograndia guaibensis apresenta uma articulação crânio-mandibular com características primitivas (reptilianas), semelhante à que ocorre em Diarthtrognathus e menos derivada que Morganucodon. Portanto, pela presente análise pode-se confirmar que os caracteres mamalianos básicos (homeotermia, endotermia, lactação, difiodontia, esmalte prismático e a mastigação) precederam o surgimento de um ouvido médio mamaliano em uma configuração derivada sensu Luo et al., 2002.

5-A difiodontia mamaliana derivada encontrada em Riograndia guaibensis é um marco evidencial que permite inferir uma ordem seqüencial para a emergência dos caracteres mamalianos básicos. As evidências ósteo-dentárias encontradas levam à conclusão que características mamalianas basais como a homeotermia, a endotermia e a lactação teriam emergido muito antes que caracteres como a difiodontia, o palato ósseo secundário e a articulação dentário/esquamosal, como sugerido por Brink (1980), por Maier (1999) e Oftedal (2002), entre outros.

6-Através dos resultados aqui obtidos entendemos que a Teoria de Maier, Ven Heever & Durand (1996), que explica a origem e evolução dos palatos secundários dos Cynodontia, também pode ser utilizada para explicar, de forma adequada e extremamente parcimoniosa, o surgimento da difiodontia. Isto ocorreria porque a “Hipótese de Maier, Ven Heever & Durand” apresenta uma única e suficiente causa para a reversão da onda de erupção seqüencial dos pós-caninos imediatos permanentes superiores e inferiores, a qual teria ocorrido ao mesmo tempo em que se processaram as alterações osteológicas que culminaram com fechamento do palato secundário mamaliano.

7-A “Teoria de Maier, Ven Den Heever & Durand (1996)”, que diagnostica o modelo embriológico de desenvolvimento do palato dos cinodontes (e mamíferos), também explica a sustação de ondas de substituição dentária, que ocorre na dentição difiodonte mamaliana e as semelhanças anatômicas entre os molares decíduos e molares permanentes. Isto estaria confirmando a hipótese defendida por Edmund (1960), Peyer (1968) Romer & 274

Parsons (1981) e por Lucas (2004), de que os molares permanentes seriam órgãos dentários tardios da primeira dentição. Assim, entendemos que o palato secundário mamaliano e a difiodontia são Apomorfias mamalianas que surgiram a partir de um único evento evolucionário.

8-O termo “difiodontia” que é compreendido como “duas dentições” não representa a realidade embriológica/morfológica da dentição dos mamíferos, uma vez que apenas os dentes ante-molares seriam, de fato, substituídos. Neste caso podemos entender este processo como uma pseudo-difiodontia. Por outro lado, pode-se concluir que a dentição mamaliana pseudo-difiodonte ao se manter inconclusa em seu desenvolvimento, apresenta-se extremamente pedomórfica, propiciando que diversos padrões possam surgir deste modelo ontogênico.

9-A difiodontia mamaliana derivada encontrada em Riograndia guaibensis é um marco evidencial que permite inferir uma ordem seqüencial para a emergência dos caracteres mamalianos básicos. As evidências ósteo-dentárias encontradas confirmam que características mamalianas basais como a homeotermia, a endotermia e a lactação teriam emergido entre os Synapsida primitivos, muito antes que caracteres como a difiodontia, o palato ósseo secundário e a articulação dentário/esquamosal, como foi sugerido por Brink (1980), por Maier, Ven Den Heever & Durand (1996) e Oftedal (2002), entre outros.

10-A evidenciação, em um táxon do Neotriássico, de difiodontia e de outros elementos histo-anatômicos mamalianos derivados, apresentadas neste trabalho, reforçam a Teoria de Oftedal (2002), de que o surgimento da lactação antecede a origem de outros caracteres mamalianos e já estaria presente entre os Cynodontia do Triássico. A difiodontia encontrada em Riograndia evidencia que este táxon apresentava as características metabólicas de rápido e limitado crescimento craniano, ambos necessários à expansão acelerada dos arcos dentários e ao pronto desenvolvimento da dentição permanente.

11-As articulações crânio-mandibulares, mesmo dos Cynodontia mais basais, já responderiam como verdadeiros sistemas mastigatórios mamalianos. Porém, naqueles, os processos oclusais apresentavam movimentos menos complexos, preponderantemente palinais e propalinais.

275

12-Os padrões dentários presentes nos Cynodontia representariam dentições difiodontes mamalianas, decíduas ou permanentes, mais ou menos derivadas, que seriam anatômica, histológica e fisiologicamente complexas. Necessariamente, estas dentições devem ser mais bem observadas e estudadas, inicialmente através de modelos investigativos não invasivos, como tomografias computadorizadas, mas na medida do possível, suportados com estudos de histologia básica, tais como os que foram aqui efetuados.

13-Os diminutos triteledontídeos Triássicos, representados por Riograndia, apresentariam comportamentos noturnos e seriam tímidos herbívoros “roedores”. Estes pequenos Eucynodontia seriam ágeis, laboriosos, e habitariam em tocas e galerias do subsolo.

14-Na condição de pequenos mamíferos, Riograndia e outros cinodontes similares deveriam se manter abrigado em tocas durante o dia, para fugir da desidratação, do calor e dos predadores. À noite sairiam para coletar sementes, raízes e outros alimentos de origem vegetal. Ocasionalmente poderiam comer algum inseto ou os restos de animais já mortos, para complementar a sua dieta, como o fazem muitos roedores herbívoros atuais. 276

17-RECOMENDAÇÕES/TRABALHOS FUTUROS

Este trabalho de Paleo-histologia básica com Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001), apresentou uma gama atrativa de novas informações que surgiram tão logo foram realizados os desgastes iniciais. Foram necessárias algumas mudanças de planejamento, no sentido de que a produção de imagens de diagnóstico fosse realizada durante todas as fases de laminação.

Diferentemente do planejado, outras informações foram acessadas, ampliando e aprofundando o perfil da análise, como, por exemplo, novas inferências referentes aos padrões de alimentação e atividades metabólicas. Outra surpresa importante foi o surgimento da possibilidade de definição do padrão de substituição dentária e da definição dos padrões de emergência dos caracteres mamalianos do esmalte, etc.

As imagens anátomo-histológicas produzidas neste trabalho são bastante diagnósticas, no sentido de gerar as informações necessárias em direta relação com os estados dos caracteres referidos na literatura estudada, ou mesmo de trazer novas informações. Espera-se, a partir das mesmas, contribuir nos estudos dentários dos triteledontídeos e na emergência dos principais caracteres transicionais mamalianos, na fronteira cinodonte- mamífero.

As informações da presente Tese serão utilizadas no desenvolvimento de artigos para publicação em revistas especializadas, com objetivo de divulgar os resultados obtidos. Estes trabalhos serão realizados no sentido de explorar o universo da pesquisa histológica sobre a dentição dos tritelodontídeos e, especificamente, como revisão dos caracteres definidos para Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001). Os trabalhos projetados deverão versar objetivamente sobre os seguintes temas: 1-“A Embriologia, a Histologia e Anatomia Ósteo-Dentárias do Tritheledontidae Riograndia guaibensis Bonaparte et al., (2001)”

Este trabalho terá o objetivo de descrever a histo-anatomia das estruturas ósteo- dentárias encontradas em Riograndia e as possíveis origens embrionárias destas estruturas, devendo dar ênfase aos estudos de microscopia eletrônica de varredura, como forma de propiciar informações adicionais sobre a ultra-estrutura anatomo-histológica. 277

2-“A Fisiologia Mastigatória de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001): O Hábito de “Roer” e suas implicações metabólicas e paleoecológicas”

Este trabalho pretende tratar das possibilidades alimentares do aparelho estomatognático de Riograndia, a partir das evidências encontradas que apontam para uma dieta voltada para a herbivoria, associada a um padrão mastigatório de “roedor”.

3-“As Estruturas Dentárias de Riograndia guaibensis Bonaparte et al. (2001) e suas implicações filogenéticas”

Esta abordagem filogenética pretende aferir a situação filogenética deste táxon, mediante a inclusão analítica, uma vez que diversos elementos anátomo-histológicos podem ser utilizados como caracteres em trabalhos de filogenia de Eucynodontia. 278

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291

APÊNDICE

GLOSSÁRIO

Abrasão-desgaste dentário devido ao contato com os alimentos. Alométrico-referente à acréscimo de medida linear. Altricial-recém-nascido pouco desenvolvido e carente de cuidados parentais. Alvéolos-estruturas ósseas especializadas que envolvem e abrigam os dentes. Ameloblasto-referente à célula produtora de esmalte dentário. Ameloclastos- células que podem lisar e reabsorver o esmalte Anodontia-processo que se caracteriza pela ausência de dentes. Apomórfico-diz-se dos caracteres derivados que definem um táxon. Atrição-desgaste de esmalte-dentina devido ao contato oclusal dente-com-dente. Bordas Dentárias-área de encontro de duas faces dentárias. Braquiodonte-referente aos dentes com pouca altura de coroa dental. Bunodonte-dente com coroa baixa e larga Campânula-estágio inicial do órgão dental. Cíngulo-massa convexa de esmalte nas faces linguais dos dentes. Cominução-redução do volume dos alimentos pela mastigação. Côndilo-processo ósseo articular caracterizado por apresentar um colo mais estreito. Convergência-processo que leva à origem de órgãos com mesma forma e diferente estrutura. Cúspide-extremidade afilada de uma coroa dentária. Cúspule-pequena cúspide. Decíduo-referente a cair (Gr. deciduus = cair) Decíduo-diz-se da primeira e provisória dentição dos mamíferos. Decussações-curvaturas coletivas dos prismas de esmalte. Dentígeros-ossos nos quais os dentes são formados. Dentinoblasto-célula formadora de dentina. Diagenese-processos físico-químicos que ocorrem durante a fossilização. Diastemas-espaços sem dentes que interrompem as sequencias dentárias. Difiodonte-animal que apresenta apenas um processo de substituição dentária (mamíferos). Edentada-zona de rebordo alveolar isenta de dentes. Endotermia-processo metabólico responsável pela geração de calor. 292

Estomatognático-refere-se aos aparelhos buco-dentários. Estomódeo-região rostral do embrião onde se forma a cavidade oral (boca primitiva). Fléxidos-dobramentos de esmalte e dentina característicos dos dentes hipsodônticos. Fuste-referente a forma de um cilindro. Gengiva-mucosa que recobre ossos dentígeros e dentes. Glenóide-superfície em forma de cavidade para articulação de estruturas ósseas. Gonfodonte-articulação dentária ao alvéolo através de um ligamento periodontal. Heterócrono-mudança nos tempo de diferenciação das estruturas celulares e histológicas. Heterodonte-referente às dentições que apresentam dentes com formas diferentes. Hipselodonte-dente hipsodonte de crescimento contínuo e indeterminado (euhipsodonte). Hipsodonte-dente de raízes abertas e crescimento contínuo. Holótipo-diz-se do material fóssil mais representativo da espécie paleontológica. Homodonte-diz-se das dentições que apresentam dentes com formas semelhantes. Homoplasia-refere-se às estruturas que apresentam igual origem e semelhante estrutura. Infundíbulo-cavidade decorrente da invaginação da dentina pelo esmalte. Lamina cribriforme-parede óssea perfurada que constitui os alvéolos dentários. Ligamento periodontal-fibras conjuntivas que unem dente e alvéolo. Mineralização-deposição de sais minerais sobre uma secreção celular. Monofilético-refere-se ao que tem uma única origem. Morfogênese-relativo à formação da forma dos órgãos. Neocórtex-substância cinzenta externa que surge no sistema nervoso mamaliano. Neonatal-refere-se ao que ocorre após o nascimento. Odontóde-refere-se ao órgão dental embrionário. Organogênese-processo embriológico que leva à formação de órgãos. Órgão dental-embrião dental capaz de formar um único dente. Osmoregulação-refere-se ao controle da concentração de sais minerais nas células e tecidos. Palinais-referente aos movimentos mandibulares póstero-anteriores. Pedomórfico-Diz-se do caráter terminal juvenilizado. Peri-mortem-referente aos eventos que ocorrem no período próximo à morte. Peromórfico-relativo ao desenvolvimento inconcluso. Plesiomórfico-forma primitiva. Pneumatização-referente aos ossos que apresentam cavidades aéreas. Polifilétifo-refere-se aquilo que tem várias origens. Polifiodonte-animal que apresenta vários processos de substituição dentária (répteis). 293

Primitivo-basal. Procumbente-diz-se dos dentes que são projetados para frente. Proodonte-o mesmo que procumbente. Propriocepção-sensibilidade e controle da posição músculo-esquelética. Rodetes alveolares-conjunto de alvéolos. Sectorial-referência às bordas cortantes dos dentes dos carniceiros. Síntese-processo que leva à formação de uma determinada substância. Sudorese-processo de formação de suor. Thegosis-processo de cortar como uma tesoura. Traversodontes-referente aos dentes dispostos com o logo eixo oblíquo aos rodetes alveolares. Tribosfênicos-coroas de dentes mamalianos que apresentam três cúspides principais. Trofoblasto-Anexo responsável pela nutrição e isolamento tissular do embrião. Troglomórficas-formas anatômicas adaptadas à escavação de galerias. Viviparidade-geração de nascituros já formados. Xeromórfico-diz-se dos seres vivos adaptados aos ambientes desérticos.

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