IBERO-AMERICANA PRAGENSIA – AÑO XLI – 2007 – PP. 189–204

VA LENTIN STANSEL – UM OBSERVADOR TCHECO DO CÉU BRASILEIRO

por PAVEL ŠTĚPÁNEK (Universidade de )

Depois dos esboços biográficos e intelectuais do Mas quem é Valentim Stansel (1621–1705)? jesuíta tcheco, Valentin Stansel, da autoria do Um tcheco, nascido na terra da , quem investigador brasileiro, Carlos Ziller Camenietzki, entrou na Companhia de Jesus em Praga e, desde pouco pode agregar-se à biografia do missionário. cedo, dedicou-se ao estudo das matemáticas e da Por esta razão, praticamente, transcrevo um pe- filosofia natural (o que hoje se chama de física). queno resumo do texto de Camenietzki, com Temos um testemunho documental de que fala- o amável beneplácito do autor1 e agrego umas ob- va a língua moravia (tcheca), alemãoelatim.2 servações próprias, e a mais, da literatura tcheca, Sempre quis ser missionário. Em 1656 ele partiu inacessível aos pesquisadores brasileiros. da Boêmia para Roma, depois para Lisboa. Per-

1 Carlos Ziller Camenietzki permitiu aproveitar Peregrinações Celestes de Valentin Stansel”. os resultados do seu trabalho, no seu e-mail do In: XX Simpósio Nacional de História: Histó- dia 6. 7. 2006: “Quanto às referências, é com ria; Fronteiras, 1999, Florianópolis. Programas muito prazer que soube de seu interesse e da e Resumos. Florianópolis, 1999, pp. 274–274. – utilidade de meus escritos para o seu trabalho C. Z. Camenietzki, “Astronomia, Teologia e (…) dar-me-á imensa satisfação ver o resulta- e Ficção no Diálogo Uranophilus Caelestis do de seus esforços”. Aproveito nominalmente Peregrinus de Valentin Stansel”. In: V Con- o seu artigo Carlos Ziller Camenietzki, “Esboço gresso Latino-Americano de História das biográfico de Valentin Stansel, (1621–1705), Ciências e da Tecnologia, 1998, Rio de Janei- matemático jesuíta e missionário na Bahia”, ro. Resumos. Rio de Janeiro, 1998. p. 62. – Ideação, Feira de Santana, n. 3, pp. 159–182, C. Z. Camenietzki, “Le Savant Etonne: La jan./jun. 1999, na versão publicada em Pensée de Valentin Stansel SJ (1621–1705), http://www.uefs.br/nef/ziller3.pdf. Outra versão, Missionnaire Au Brésil”. In: XXth Internatio- “Nos céus do Brasil./ Estudos sobre cometas nal Congress of History of Science, 1997, Liège. feitos por jesuíta na Bahia colonial chamaram Book of Abstracts – Scientific Sections. Liège, a atenção de ”. – C. Z. Came- 1997, p. 118. – Carlos Ziller-Camenietzki, nietzki, “O Cometa, o Pregador e o Cientista. “L’Extase Interplanétaire d’Athanasius Kir- Antonio Vieira e Valentin Stansel observam cher: Philosophie, Cosmologia et Discipline o céu da Bahia no século XVII”. Revista da dans la Compagnie de Jésus au XVIIe siècle”. Sociedade Brasileira de História da Ciência, Nuncius, X, 1995, pp. 3–32. Rio de Janeiro, vol. 14, pp. 37–52, 1995. – 2 Josef Koláček, Olomoučtí indipetae (Os indi- C. Z. Camenietzki, “Baroque Science between petae de Olomouc). Roma 1993, p. 8. O jesuí- the Old and the New World: father Kircher and ta tcheco Josef Koláček residente em Roma his Colleague Valentin Stansel (1621–1705)”. escreveu uma série de livros sobre os jesuítas In: Paula Findlen (Org.). : tchecos, de forma novelizada, mais sobre The Last Man Who Knew Everything. New York: documentos estudados nos arquivos jesuítas Routledge, 2004. vol. číslo?, pp. 311–328. – em Roma e em outros lugares. Valentim Stan- C. Z. Camenietzki, “The celestial pilgrimages sel foi um deles, no trabalho que recolhe infor- of Valentin Stansel (1621–1705), jesuit astro- mações sobre três dos jesuítas que atuaram em nomer and missionary in Brazil”. In: Morde- Olomouc. Com anterioridade, Zdeněk Kalista, chai Feingold (Org.). Archimedes. The New “Los misioneros de los países checos que en Science and Jesuit Science: seventeenth centu- los siglos XVII y XVIII actuaban en América ry perspectives. Dordrecht: Kluwer, 2003, Latina”. Ibero-Americana Pragensia, Año II vol. 6, pp. 249–270. – C. Z. Camenietzki, “As 1968, pp. 117–160, escreveu sobre ele, e espe-

189 maneceu em Portugal até 1663, mudando logo Então, quando os jesuítas voltaram ao seu para o Brasil onde ficou até a sua morte. Seus lugar (em Praga ao Clementinum que se trans- numerosos escritos de ciência tratam de temas formou numa fortaleza jesuíta durante mais de importantes do seu tempo e, particularmente, dois séculos), acabaram por se ocupar da Uni- aqueles escritos na Bahia tiveram boa repercus- versidade de Praga, de onde surgiram as lutas são entre os sábios do século XVII. Stansel es- contra os protestantes, agora sumidos, mas tam- creveu um número expressivo de obras de filo- bém contra outras diferentes visões da reforma sofia natural e de astronomia. Apenas sete foram católica, como a do Cardeal Harrach.6 publicados durante sua vida3. Os demais acaba- Da mesma maneira como retomaram os seus ram censurados pela própria Companhia ou per- colégios, confiscados temporariamente pelos didos depois da expulsão da Companhia de protestantes, os reconstruiram e edificaram Jesus dos domínios da Coroa de Portugal, em 1759, o que acabou por dispersar os papéis do padre astrônomo – manuscritos, correspondên- cia, etc. Com isso, foi-se também parte signifi- cialmente do seu livro Legatus Uranicus, na cativa da memória de seus estudos, e suas ativi- p. 134. Finalmente, o estudo mais aprofunda- dades acabaram por cair no esquecimento. do foi o artigo de Simona Binková, “Os países tchecos e a zona lusitana (Contactos e teste- O pensamento do padre Valentin era profun- munhos dos séculos XV–XVIII)”, Ibero-Ame- damente marcado pelo ecletismo típico de seu ricana Pragensia XXI, 1987, pp. 137–160, tempo e suas idéias não se afastavam das princi- que, nas pp. 157–158 traz um fragmento da pais questões discutidas pelos homens de ciência descrição do Brasil por este jesuíta de Olo- ç mouc, em língua latina. Outro trabalho que do século XVII, mas as suas observa ões deram localiza duas obras de Stansel é de Simona resultados notáveis que aproveitou o grande Binková, “El descubrimiento y la conquista sábio inglês Newton. Segundo uma opinião de América en la Biblioteca de Strahov”, generalizada, os únicos experimentos ocorridos Ibero-Americana Pragensia XXVII, 1993, pp. 89–105, p. 104. no Brasil a serem citados em uma das obras mais 3 O que é muito mais do que afirma Camenietz- importantes da História da Ciência, os Principia, ki (três). A lista completa oferece Koláček, são, modernamente, a expedição de Couplet e as ob. cit., no total dez trabalhos, trêsnão publi- observações realizadas pelo padre Valentim cados, mas documentados. Um dos primeiros impulsos para mim foi a conferência, no semi- Stansel (Stanzel), na Bahia, na segunda metade nário do prof. Polišenský, no dia 5. 4. 1988, de do século XVII.4 J. Vít, “As observações astronômicas de Começando pelo próprio país de nascimento V. Stansel no Brasil”. de Stansel, há de dizer que o Reino da Boêmia era 4 “Notas da História da física no Brasil”. Física ã na escola, vol. 4, 2003, nr. 2, p. 33. A mate- também uma terra de miss o desde, praticamente, mática também interessou. Veja: “História da a metade do século XVI, concretamente desde matemática na Bahia: uma ‘curiosidade’?”, 1556, quando chegaram os primeiros jesuítas5. Os Valentin Stansel. In: Congresso Latino-Ame- protestantes lhes fizeram fugir de Praga em 1618, ricano… “Esboço biográfico de Valentin Stansel (1621–1705), matemático jesuíta”: mas voltaram e outra vez se estabeleceram na www.uefs.br/sitientibus/exatas_23/historia_da_ terra depois do ano 1620, data da vitória dos cató- matematica_na_bahia.pdf –. Sobre as obser- ĺicos imperiais, na Batalha da Montanha Branca, vações de Coulet na Paraíba em 1698, veja perto de Praga. Durante toda a primeira e ainda http://www.instituto-camoes.pt/CVC/ciencia Pe56/html. a segunda metade do século XVII, se dedicaram 5 Na Morávia, dez anos mais tarde, quando à educação, prática com tanto êxito já na primei- os jesuítas fundaram a Universidade de Olo- ra etapa, até atrair alunos de famílias protestantes. mouc – o seu primeiro reitor era um espa- Para Praga convergiram muitos missionários nhol, Hurtado de Mendoza. Veja o artigo Pavel Štěpánek, “Španělské základy olomouc- e intelectuais de toda Europa, até ingleses, irlan- ké univerzity”. In: Historická Olomouc 11 deses, flamencos, mas de formação romana, ita- (1998), pp. 45–64. liana, e também de outras ordens – capuchinos, 6 O boemista italiano Alessandro Catalano pu- franciscanos, carmelitas, etc., com a explícita blicou, depois de vários estudos, o seu livro ê â sobre o cardeal e sobre os planos deste – veja incumb ncia de enquadrar todo o reino nos c no- Alessandro Catalano, La Boemia e la ricon- nes da igreja católica, apostólica e romana. Os quista delle coscienze. Ernst Adalbert von Har- inacianos em primeiro lugar, e com o empenho rach e la Controriforma in Europa centrale e os resultados habituais. (1620–1667), Roma 2005.

190 outros, também formaram a linha de frente da ner, Athanasius Kircher, Giovanni Battista retomada da Boêmia à igreja católica na luta Riccioli, François Aguillon entre outros) já pela religião, como era natural no período da demonstrara a solidez dos conhecimentos mate- Contra-Reforma. Se puseram, de acordo com os máticos dos jesuítas. Entre os tchecos foi o padre seus hábitos, a buscar e a seguir nas instituições Carlos Slavíček10, ativo na corte de Pekim. de ensino da Ordem a reflexão filosófica do que Certamente, quando Valentin estudou em de mais avançado se poderia ter na época. Olomouc e em Praga, mas também quando pas- Em particular, os jesuítas se esmeravam nas sou a lecionar nestas cidades, os livros mais usa- ciências matemáticas; assim surgiu em Praga dos nos colégios jesuítas deveriam ser os uma escola matemática de tal fama, que alguns Comentários de Clavius, Euclides e de Sacro- dos professores foram chamados até à Espanha, bosco, o Progymnasta de Tycho Brahe, etc. Em para ensinar nos colégios de navegantes, con- 29 de fevereiro de 1651, quer dizer, aos seus cretamente em Cádiz, e também no Ultramar. 30 anos, já maduro de mente e instruido cientifi- É natural que a Companhia de Jesus não poderia camente, o padre Valentin escreveu uma carta ao debater com Kepler ou com os maiores astrôno- padre Geral da Companhia de Jesus solicitando mos europeus usando os cansados argumentos de ser enviado às missões. O documento, um exce- Ptolomeu; era preciso servir-se de teses e idéias lente testemunho do fervor e da mentalidade da atualidade que pudessem apresentar alguma religiosa do tempo, mostra firmeza na disposi- eficácia. Assim, a parte da filosofia neoescolás- ção em partir. Stansel relatou seu sofrimento tica, que se tinha por muito tempo, praticamente e angústia aliviados pela figura de SãoFrancis- inútil, mas nos últimos tempos vinha a ser cada co Xavier, apóstolo jesuíta das Índias; o missio- vez mais apreciada,7 os jesuítas se puseram nário-candidato narrou suas mortificações ofere- a estudar o que de mais avançado havia no seu cidas ao padre Geral com a finalidade de se fazer tempo na ciência. Não houve na Boêmia ne- enviar ao Oriente, concretamente ao Japão. nhum que se ocupara ou ensinara matemática de A sinceridade de seu desejo pode ser bem com- maneira tão sistemática e eficaz.8 preendido pela oferta ao padre Geral de 200 chi- O héroi da nossa aventura, Valentin Stansel batadas que ele aplicou sobre si mesmo: nasceu em 1621 em Olomouc (em tcheco Olo- “200 disciplias dedico pro AR Paternidade mouc, em alemão Olmütz – a antiga capital da voestra”. Não se tem notícia da resposta, mas terra da Morávia, e sede, até hoje, do arcebispo houve troca de correspondência entre Stansel da Morávia), numa família muito humilde eaCúria Romana da Companhia sobre esta soli- e onde estudou no colégio da Companhia de citação.11 Jesus. Morreu no dia 18 dezembro de 1705 na Bahia, capital do Brasil. Aos 16 anos, no dia 1º de Outubro de 1637, Stansel ingressou na Ordem e seguiu uma carreira longa e incomum. 7 Stanislav Sousedík, Roderigus de Arriaga: No colégio de Olomouc e na Universidade de Leben und Werk. (Roderigus de Arriaga: Life Praga ele estudou Filosofia e Matemática ocu- and work), in: († 1667): pando, poucos anos depois, postos de ascensão Philosoph und Theologe (ed. T. Saxlová, S. Sou- sedík), Praha: Karolinum, 1998, pp. 9–18. pelas suas capacidades intelectuais. A atividade 8 Jaroslava Kašparová – Karel Mačák, Utilitas de Stansel neste período é rica, porém a docu- matheseos. Jezuitská matematika v Klementi- mentação permanece escassa. Por esta razão são nu 1602–1773 (A matemática jesuítica no surpreendentes os estudos de Carlos Ziller Klementinum), Národní knihovna ČR, Praha 2002, p. 7. Esta exposição era importantíssi- Camenietzki9. ma para aclarar os fenômenos da matemática O estudo das matemáticas nos colégios jesuí- cultivada neste colégio jesuíta. tas era muito valorizado já desde os finais do 9 Veja nota 1. 10 século XVI. Além disso, nas primeiras décadas J. Kolmaš (ed.), Karel Slavíček. Listy z Číny do vlasti. Praha 1995. do século XVII, os esforços do padre Christo- 11 Este documento, estudado por C. Ziller Came- phorus Clavius em constituir grupos de investi- nietzki, encontra-se preservado em Roma no gação astronômica e matemática nas escolas já arquivo da Companhia de Jesus: Archivum havia dado seus primeiros frutos: a geraçãode Romanum Societatis Iesu, Indipetae, Bohe- mia, 1624–78, Gesuitico 756, fl. 52r. De fato, matemáticos da Companhia de Jesus que lhe restam ainda outras três cartas de Stansel ao sucedeu imediatamente (Christophorus Schei- Geral tratando de seu envio às missões.

191 Pouco após a assinatura do tratado da paz de instrumento e sistema que provavelmente cons- Westfalia, em 1648, que significou o fim da truiu Stansel. O trabalho contém textos dos opo- Guerra dos Trinta Anos, no início dos anos 1650, sitores Jan Marek Marci, insigne médico e cien- Valentin Stansel dispunha de um “museu” – tista tcheco, e Godefrid Aloysius Kinner de termo corrente na época para designar o espaço Loewenthurn. As gravuras são da autoria de Jan físico onde o sábio fazia seus estudos de Filoso- Kryštof Smíšek.14 Na obra Dioptra se definem fia Natural. Este museu foi recentemente recons- as noções geométricas (linha, circunferência), truído, em parte virtualmente, em parte mate- e depois se analiza a trigonometria, situando as rialmente, a base das menções e catálogos, nas ilustrações numa paisagem. Dois anos mais celebrações da chegada dos jesuítas a Praga no tarde, em 1655, publicou um Cursus Philoso- ano de 2006.12 De fato, este “museu” era um phicus.15 protolaboratório onde o jesuíta realizava expe- Um contemporâneo seu amigo que trabalhou riências de diversas naturezas. O principal teste- com o padre Valentin em Praga, Jakub Václav munho desta atividade é a obra de Stansel publi- Dobřenský (Iacobo Wenceslao Dobrzenski) de cada em 1653 ou 1654 pela Universidade de Černý Most (Ponte Negra), comentou suas reali- Praga: Dioptra Geodetica, ao menos da a conhe- zações e publicou uma imagem do que se tinha cer algum detalhe sobre a atividade de Stansel como um projeto de um perpetuum mobile.16 neste período. Este trabalho felizmete se conser- Camenietzki se refere porém, a diversos apare- va na Biblioteca Nacional de Praga e outro na lhos projetados e fabricados por Stansel visando Biblioteca Científica de Olomouc.13 Foi caracte- esclarecer os movimentos dos fluidos, construir rizado como trabalho de dissertação defendido um relógio de água, um motu perpetuo baseado por Ch. F. Turek de Sturmfeld, dedicado aos pro- no fluxo de líquidos, etc. De passagem, Came- blemas de medição no terreno por meio do nietzki destaca que Dobrzenski ressaltava

12 Catálogo Jezuité a Klementinum (Os jesuítas 16 A referência completa da obra é a seguinte: eoClementinum), Praga, Biblioteca Nacio- Jacobo Dobrzenski, Nova, et Amaenior de nal, 25. 4. 2006 – 15. 6. 2006. Com o tempo Admirando Fontium Genio (ex abditis natu- chegaram ao museu produtos da natureza ou rae claustris, in orbis lucem emanante) Phi- da habilidade humana do ultramar. Sobre losophia…, Ferrariae: apud Alphonsum, et Io: Stansel, o catálogo, p. 46, não traz muita Baptistam de Marestis (Typographos Episco- novidade, só remete as suas observações pales), 1659 (Ziller Camenietzki da a data de reconhecidas por Newton. Também se cele- 1657). Biblioteca Nacional de Praga, cota 49 brou um simpósio. A 31. No livro há muitas gravuras; as referen- 13 Dioptra Geodetica. Auspicii serenissimi prin- tes a Stansel e ao seu Perpetuum mobile cipii Leopoldi Ignatii archiducis Austria …In são ilustrações nas págs. 114, 115 e 118. Veja Caesarea Regiaeque Vniversitate Carolo-Fer- também Michael John Gorman, “Between dinandea à Cristophoro Ferd. Turek a Sturm- the demonic and the miraculous: Athanasius feld et Rosenthal… defensa et demonstrata Kircher and the baroque culture of machi- praeside R. P. Valentino Stansel… Doctore, nes”, The Great Art of Knowing: The Baroque nec non mathematum professore ordinario. – Encyclopedia of Athanasius Kircher, ed. Pragae: Typis Caesareo-Academicis, (1654), Daniel Stolzenberg, Stanford: Stanford Uni- 8º. (8), 76, (3) pág., 1 agregado. Cota 49 F 25. versity Libraries, 2001, pp. 59–70, informa Kašparová – Mačák, op. cit., p. 18. SVK (Bi- que Jakob Johann Wenceslaus Dobrzensky blioteca Científica de Olomouc), cota 10.505. (Dobřenský) de Ponte Negra viu um relógio – Veja Václav Pumprla, http://www.sweb.cz/ fonte hidro-magnética de Stansel, que descre- navarikp/ulohy3.html. Camenietzki, parece, ve no livro acima citado de Dobrzenski, p. 46. não haver tido a oportunidade de fazer um Sobre Dobrzensky (Dobřenský) de Ponte exame deste trabalho. Segundo Koláček, Negra (1623–1697) veja R. J. W. Evans, The op. cit, a data é de 1653. Making of the : An Inter- 14 Segundo Prokop Toman, Nový slovník česko- pretation. Oxford: Clarendon Press; 1979, slovenských výtvarných umělců, II, Praha 1950, pp. 316, 337, 339–40, 356, 369–70, 390. E fi- p. 464, este artista foi ativo em Praga nos anos nalmente, membros da família Dobrzensky 1652–1663, e mostras da sua obra estão guar- (Dobřenský) chegam, dois séculos mais tarde, dadas na Biblioteca do Mosteiro de Strahov a emparentar com a família imperial brasilei- (Real Canongia dos Premonstratenses). Toman ra, e, também a atual Embaixada do Brasil em não menciona a gravura em Dioptra… Praga encontrou a sua sede no palácio que um 15 Koláček, op. cit., p. 39. tempo ocupou a mesma família.

192 a postura de Stansel contrária à tese do motu per- ção de antigüidades doada aos jesuítas em 1651. petuo – o jesuíta teria inclusive enviado ao seu Kircher nestes anos era celebrado como cientis- amigo um texto – intitulado Themate – defen- ta de respeito e terminava a edição do seu livro dendo seu ponto-de-vista. Um destes aparelhos, Itinerarium Exstaticum Caeleste – obra de um aparato para medir distâncias acessíveis ficção em que um personagem passeia pelos e inacessíveis, alturas, profundidades, para nive- céus. Alguns livros dele estavam, e até agora laçãoecontabilidade do rádio da terra, Stansel estão, na biblioteca jesuíta de Praga.21 Mas construiu durante a sua estadia em Praga. Publi- a estadia em Roma era curta. Provavelmente, cou a instrução do uso deste aparato em Praga no entre o final de 1656 e o começo de 1657, ano de 1653.17 o padre Valentin deixou Roma e foi para Lisboa, Mas parece certo que Stansel também é autor a porta de saída para o Oriente. Foi enviado, para de um Tratado astronômico, astrológico, geomé- preparar-se melhor, também a língua que fora trico e físico, que se conserva em manuscrito na o meio de comunição no oriente, em Portugal, Biblioteca Nacional de Praga, pois na folha 87v concretamente em Lisboa, onde foi lente de (está encadernado com outros textos) há o seu matemáticas, em Elvas e Évora, da astronomia. nome, possivelmente a sua asinatura, pois diz: O conhecimento do português era indispensável, “M. Valentini Stansel 1645 Mense Octobris”.18 sobre tudo no Oriente, não somente o universal Valentim Stansel é autor de vários livros latim ou o espanhol, ou o italiano. Há cartas de (não falamos dos seus escritos teológicos, somen- Stansel a Athanasius Kircher escritas de Lisboa te científicos), que se guardam tanto nas bibliote- em 1659 e em 1660 que demonstram que o con- cas brasileiras, como portuguesas e tchecas, e possivelmente em outras, mas, segundo parece, não estudados. Também publicou um livro de pouca repercussão em 1657: Nova et Amaenior de 17 Q. Vetter, “Vývoj matematiky v českých Admirando Fontium Genio. O trabalho trata do zemích od r. 1620 do konce 17. století”. Sbor- fluxo de líquidos e contém interessantes conside- ník pro dějiny přírodních věd a techniky. VI rações sobre estas disciplinas. (1961), str. 213–214; id., “Šest století mate- matického a astronomického učení na univer- Não deveríamos esquecer também uma pu- zitě Karlově v Praze”. Věstník KSČN, 1952. blicação, ainda no seu país natal, de um escrito A. Šimek, “Moravané zasloužilí o rozvoj em que publica, dois anos mais tarde, em 1655, matematiky a geometrie”, manuscrito. O resu- a primeira vez no país tcheco, o mapa da lua.19 mo veja Jaroslav Folta, Pavel Šišma, http:// www.math.muni.cz/math/biografie/valentin_ Também se atribui a Stansel um relógio do sol, stanzel.html. no Páteo chamado dos Estudantes (um dos 18 Kašparová – Mačák, op. cit., p. 17. O nome 15 relógios deste tipo que há no Colégio Jesuíta do tratado é: Tractatus astronomici, astrolo- Clementinum de Praga, mas não se conhece gici, geometrici, physic. Tem 122 folios, 19,5 x 15 cm, cota XIV G 8. autor de nenhum deles). As publicações mais 19 Václav Pumprla, “K vývoji olomouckého knih- sérias nãoomencionam.20 tisku do roku 1800” (Tese da conferência em De qualquer modo, o padre Valentin conse- LIBRI ‘95). Ex: http://www.svkol.cz/obzory/ guiu o seu desejo: partiu de Praga para Roma no 951_11.htm. 20 Se Kašparová – Mačák, p. 46, opinam que segundo semestre de 1655; a estadia na capital não se conhecem razões da atribuição, o espe- eclesiástica era uma escala quase obrigatória cialista nos relógios Bedřich Polák, Staro- para os missionários vindos da Europa do leste pražské sluneční hodiny (Os relógios de sol com destino ao Oriente. Uma vez em Roma, na velha Praga), Praha: Academia 1986, p. 29, não dá nehum autor. Stansel entrou em contato direto com Athana- 21 Os livros de Kircher estão na Biblioteca Nacio- sius Kircher (1601–1680), tido como o grande nal de Praga, na coleção de livros antigos do orientalista da Companhia naquele período. No Museu de Artes Decorativas de Praga, mas ambiente de Kircher, Stansel entrou em contato também no palácio de Duchcov há exempla- res da propriedade do bispo de Praga João também com outros sábios ligados a ele – Gio- Frederico de Valdštejn (Wallenstein), ante seffo Petrucci, Gaspar Schott etc., – construindo todo a obra rica em ilustrações China monu- relações que duraram por décadas. Stansel reali- mentis qua sacria qua profandia nec non zou algumas experiências com o padre Kircher variis naturae et artis spectaculis… illustrata, publicada em Amsterdan em 1667. Outro e acompanhou o início da montagem do Museu exemplar está na Biblioteca do Museu Nacio- Kircheriano, que tomava corpo a partir da cole- nal de Praga.

193 tato continuou. A confiança de Stansel em che- dente do curso geral que fora ministrado pelo gar ao Oriente pareceu inabalável: ele assinava Colégio. Ali lecionaram mestres de matemática já “missionário da China” em algumas de suas de diversas partes do mundo, discutindo a atua- cartas neste período.22 lidade da disciplina e procurando difundir os Em Portugal, Stansel passou primeiro pelo novos conhecimentos astronômicos. Como Colégio de Santo Antão da capital do reino, onde exemplo, podemos mencionar Inácio Stafford a “aula de esfera” tinha fama, já há bastante (1599–1642), autor de livros didáticos sobre tempo, de uma das melhores escolas matemáti- Matemática elementar, que fora de 1630 a 1635, cas da Europa. Fora no Colégio de Santo Antão professor de Cosmografia. Depois estivera na que a Companhia de Jesus abrira a primeira aula Bahia no período de 1640 a 1641. pública de Matemática em Portugal, em 1590, Stansel trouxe na sua bagagem uma obra oferecia um famoso curso de astronomia desti- dedicada ao rei Afonso VI, Orbis Alphonsinus nado à formação de pilotos marítimos e de cos- sive Horoscopium Sciothericum Universale, que mógrafos. O ensino predominante fora de Cos- ele fez traduzir e publicar na Universidade dos mografia e dos aspectos práticos do uso dos jesuítas de Évora, em 1658, por baixo do nome instrumentos náuticos e astronômicos. Ali tam- de Orbe Affonsino, ou Horoscopio Universal, bém fora ensinado Astrologia, Arte de navegar, publicado em 1658 em Évora, do que se guar- Geografia e Hidrografia; ela ficara conhecida dam mais exemplares.23 A sua importância por “Aula de Esfera”. Fora uma aula indepen- é científica, mas observamos também gravuras,

22 Como diz Camenietzki noutro lugar, no que Velarde, Juan Caramuel. Vida y obra, Oviedo diz respeito aos trabalhos astronômicos, 1989. De um modo geral, pode-se dizer que diversos jesuítas esmeraram-se no estudo dos a Companhia de Jesus adotou quase que una- movimentos planetários e das melhores hipó- nimemente o sistema do mundo proposto por teses para interpretá-los. Formaram diversas Tycho. Tratava-se de um modelo astronômico gerações de matemáticos nas suas escolas confortável para os cálculos e para as observa- e contribuíram sensivelmente para a organi- ções. Ele mantinha a Terra no centro do mundo zação da disciplina. No conjunto das ativida- e fazia girar ao seu redor apenas a Lua, o Sol des da Ordem, os trabalhos em matemática e as estrelas fixas. Os demais planetas girariam também contribuíram para o esforçode por si mesmos ao redor do Sol sem a necessi- implantação do cristianismo no Oriente. Na dade de esferas cristalinas que os carregassem. passagem do século XVI ao XVII, depois dos Este sistema foi também adotado pela maior trabalhos do jesuíta missionário Matteo Ricci, parte dos astrônomos do século XVII. numerosos matemáticos foram enviados para 23 Valentin Stanzel, Orbe Affonsino, ou Horos- a China a fim de atuar no Observatório astro- copio Universal. Évora 1658 (Datos comple- nômico que os membros da Companhia de tos: Valentin Stanzel, Orbe Alfonsino, ou Jesus construíram em Pequim. É importante Horoscopio Universal no qual pelo extremo registrar que a astronomia praticada por esses da sombra inversa / se conhece, / Que hora missionários não era a simples repetiçãode seja em qualquer lugar de todo o Mundo. teorias antigas e reavivadas. Os jesuítas mate- O círculo Meridional. O Oriente & Poente do máticos da China traduziram trechos da obra Sol. / A quantidade dos dias. / A altura do de Galileu para o chinêsefaziam seus cálcu- Polo, & Equador o linha. / OFERECIDO / Ao los segundo as teorias de Tycho Brahe, quer Serenissimo Senhor & Amplissimo / Monar- dizer, também idéias nascidas em Praga. cha / D. AFFONSO VI REY DE PORTU- É importante saber que em Praga se defende- GAL &c. / pelo P. M. Valentim Estancel da ram as idéias de Galileu, em primeiro lugar, Com-/panhia de IESV, Iuliomontano, lente pelo embaixador de Espanha, Guillermo de que / foi das mathematicas em as Vniversida- San Clemente, e depois pelo reitor da Univer- des / de Praga, Olmuz, & agora o He em sidade de Praga, o espanhol Rodrigo de Arria- Elvas. EVORA. Com todas as licenças neces- ga. Este é o autor do Cursus philosphicus sárias. Na Impressão da Universidade 1658. auctore R. P. Roderigo de Arriaga, Antver- 162 x 155 x 93 (com a encadernação, 108), piae: ex oficina Plantiniana Balthasaris More- 12 + 80 p. + 4 est. 1 f. desdobr. Biblioteca Na- ti, 1632, Biblioteca Nacional de Praga, cota cional e Biblioteca da Ajuda, Lisboa 39-II-19. 12 A 8. Também estava naquela época em Koláček, p. 39, dá forma latina Orbis Alphon- Praga o grande poliglota e sábio polifacético, sinus sive Horoscopium universale, in quo polimático Juan Caramuel de Lobkowicz, ini- per extremitatem umbrae inversae cognosci- migo declarado da independência portugue- tur, quae hora sit in quovis mundi loco. Ebo- sa. A melhor monografia sobre ele é de Julián rae, 1658, 12º.

194 não de muita qualidade, mas sim de certo valor Não estava só, pois junto a ele estiveram na decorativo, e o frontispicio. Bahia vinte e três jesuítas germânicos, e entre Pouco depois, o padre Valentin encontrava-se eles, como João Ginzl, provavelmente tchecos em Elvas, lecionando matemática no Colégio da ou alemães da província tcheca. O porto de Sal- Companhia desta cidade. Na época da sua docên- vador, além de centro dinâmico, foi também cia em Évora publica, mais tarde, em 1675, ainda o espaço privilegiado para a construção de uma outro livro, que foi guardado na Livraria Pública idéia de cidade a beira-mar, uma urbe portuária de São Roque, hoje na Biblioteca Nacional de típica da época, forjando entre os viajantes es- Lisboa: Zodiacus Diuini Doloris sive Orationes trangeiros uma imagem de sujeira espalhada XII, quibus Coeli candidatus Christus Dei Filius, pelos cantos e becos da cidade. O interesse dos Pontio Pilato praeside, in Aula Crudelitatis in alemães pela Bahia data da primeira invasão Regem Dolorum inauguratur.24 holandesa na Bahia, em 1624, quando o soldado Mas finalmente Valentin partiu de Portugal alemão Johann Gregor Aldenburg, integrante da em abril de 1663, não para sua desejada missão Companhia das Indias Ocidentais, registrou na China, mas para o Brasil. As circunstâncias o cotidiano da invasão na capital do Brasil, em precisas desta mudança ainda não estão perfeita- obra intitulada Viagem as Índias Ocidentais pu- mente claras. No tempo de sua partida a missão blicada no ano seguinte na Alemanha.25 chinesa vivia conflitos devidos a uma troca da O local onde Stansel realizou as suas obser- dinástica no Império. Porém, Adam Schall ainda vações e as suas medições, foi o Colégio dos vivia e guardava sua importância no Observató- Jesuítas (Colégio do Terreiro de Jesus) em Salva- rio de Pequim – lembre-se de passagem que esta dor, que não era propriamente um sítio adequado função cumpria papel de primeiro plano, nãose às observações astronômicas, dada à nebulosida- tratava de uma instituição de pesquisa, mas de de existente em boa parte do ano em função do um tribunal do Império. Talvez a mudançade regime pluviométrico da Baía de Todos os San- destino do missionário Stansel se deveu a pro- tos, onde se encontra Salvador.26 blemas outros da Companhia de Jesus na China, Clóvis Pereira da Silva lembra que o primei- talvez a restrições específicas feitas ao padre ro curso de Artes (um curso de nível mais avan- Valentin pessoalmente ou ainda a um projeto çado) fora criado no Colégio de Salvador, Bahia, específico para a província jesuíta do Brasil. O estado da pesquisa biográfica ainda não per- mitiu revelar. E, não em último lugar, há de lembrar que 24 Zodiacus Diuini Doloris sive Orationes XII, o final dos anos cinqüenta e o início dos sessen- quibus Coeli candidatus Christus Dei Filius, ta foi uma época em que a Restauração de Por- Pontio Pilato praeside, in Aula Crudelitatis tugal estava solidamente implantada no reino in Regem Dolorum inauguratur. Auctore P. OValentin Stancel, é Societatis Jesu. Ebo- e em suas colônias. Vivia-se um período de certa rae, 1675. Typ. Academiae. 120 x 65, XLVI+ “euforia nacional” – a expulsão dos holandeses 114 p., 100-IV-52. Da Livr. Publica de São do Brasil, em 1654, datava de poucos anos. Roque. (Minha transcrição.) Koláček oferece O reino português, estava em guerra com a versão breve: Zodiacus Divini doloris, Evora 1675. a poderosa Espanha desde 1640 e a paz dos Piri- 25 Maria Renilda Nery Barreto – Lina Maria neus – pondo fim à guerra com a França– já Brandão de Aras, “Salvador, cidade do mundo: anunciava que o país vizinho poderia dispor de da Alemanha para a Bahia”, capítulo Os meios aparentemente capazes de recuperar o ter- alemães na Bahia, http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- ritório rebelde. Elvas, distante da fronteira pou- 59702003000100005. Outra versão http://www. quíssimos quilômetros e ainda o caminho mais scielo.br/pdf/hcsm/v10n1/17834.pdf. curto da Espanha para Lisboa, encontrava-se no 26 Conf. Abertura – O papel das Instituições de centro de uma região que muito sofreu com Política e de Fomento – Prof. Amilcar Baiar- di (UFBA), “Atividades Científicas no Brasil a guerra. Não se sabe ao certo quanto tempo ele Durante os Séculos XVI, XVII e XVIII, viveu ali e ainda em quais outras cidades o mate- 1ª parte”, http://72.14.221.104/search?q=cache: mático lecionou. aN_LdVntXZ0J:dtr2001.saude.gov.br/sps/ Diversos testemunhos asseguram que, logo areastecnicas/ctecnologia/docs/conf_abertura. ppt+%22VALENTIN+STANSEL%22&hl= após a chegada do missionário à Bahia, sua ati- cs&ct=clnk&cd=10&lr=lang_pt. Com refe- vidade de matemático e cientista foi intensa. rência a Morais (1994).

195 mantido pelos jesuitas, já em 1572. Naquele & temperie. Ele resumiu seu conteúdo: “libellum curso estudavam-se durante três anos: Matemá- scripsi de hoc Caeli temperie et benigno syde- ticas, Lógica, Física, Metafísica e Ética. O curso rum influxu ubi multa curiosa et digna scitu conduzia ao grau de bacharel ou licenciado. Tra- inspersi”.29 balharam no Colégio da Bahia, dentre outros, Duas semanas após ele escreveu outra carta aparte Valentim Stansel, os seguintes jesuítas: anexa ao manuscrito e ao material referente ao Inácio Stafford, Aloisio Conrado Pfeil, Manuel livro. Resta-nos apenas uma página de rosto, do Amaral, Filipe Bourel, Jacobo Cocleo ou Jac- uma dedicatória ao Superior Giovani Paolo ques Cocle, Diogo Soares, Domingos Capassi Oliva e uma carta ao leitor. Deste último docu- eJoão Brewer. Naquele Colégio o ensino das mento depreende-se algo mais do seu conteúdo. Matemáticas iniciava com Algarismos ou Arit- Trata-se de uma obra sobre a natureza do Brasil, mética e ia até o conteúdo matemático da Facul- das combinações dos elementos, dos ventos dade de Matemática (onde se estudava, dentre e das águas, dos viventes locais, animais outros tópicos: Geometria euclidiana, Perspecti- e humanos, com uma explanação sobre a influên- va, Trigonometria, alguns tipos de equações cia dos astros na sua conformação. Obra de algébricas, Razão, Proporção, Juros), que fora grande interesse que infelizmente está perdida fundada em 1757.27 há muito tempo. Há ainda outras referências Dos dezessete Colégios mantidos pelos jesuí- a este manuscrito na correspondência entre Stan- tas no Brasil colônia, em apenas oito funciona- sel e Kircher. vam os cursos de Artes ou de Filosofia. Em Em cartas posteriores o padre Valentin pas- geral, estes Colégios destinavam-se a formar sou a referir-se à obra com o título de Mercurius pessoal para a ordem inaciana. Pois, o ensino dos inacianos, que era de inspiração e intenção religiosa, tinha por objetivo educar os moços para a Igreja. A educação para Deus era o obje- 27 Clóvis Pereira da Silva, “A matemática no tivo do ensino dos inacianos; a formação cientí- Brasil, Uma história do seu desenvolvimento”. fica era um meio para alcançar o fim. Mas, os Em: http://64.233.183.104/search?q=cache: 0pdQ89CTvAoJ:www.accefyn.org.co/ bancos dos colégios dos inacianos também PubliAcad/Clovis/Clovispdf/2.pdf+%22foram+ foram freqüentados por muitos alunos que não utilizados+livros+did%C3%A1ticos+de+ entraram para a Ordem. Dessa forma, o ensino autores+inacianos%22&hl=cs&ct=clnk&cd=1. das Matemáticas no Brasil começou com os Ainda lembra os destinos posteriores: Nela estudara o matemático português José Mon- jesuítas. Em algumas escolas elementares foram teiro da Rocha que chegara ao Brasil em ensinadas as quatro operações algébricas e nos 15 de Outubro de 1752, onde entrou para cursos de Arte foram ministrados tópicos mais a Companhia de Jesus. Naquela instituição adiantados, como por exemplo, Geometria ele- estudara Filosofia com o brasileiro Jerônimo Moniz e Matemáticas com o jesuíta alemão mentar. No ano de 1605 havia nos Colégios de João Brewer. Com a expulsão dos jesuítas em Salvador da Bahia, de Recife, de Pernambuco fins de 1759, ele se desligara da ordem ina- e da cidade do Rio de Janeiro aulas de Aritmética. ciana em 1760, porém continuara a viver na Dentre os tópicos ensinados: Razões e Propor- Bahia onde recebera a Ordenação sacerdotal. Ao regressar a Portugal, obtivera o bacharela- ções, bem como Geometria euclidiana elemen- do em Cânones pela Universidade de Coim- tar. Observa-se, portanto, a gradação positiva bra em 1770. José Monteiro da Rocha fora con- e permanente do ensino das Matemáticas ele- vocado pelo Marquês de Pombal para compor mentares por parte dos inacianos até o ano de a comissão que reformara, no século XVIII, a Universidade de Coimbra, criando inclusive 1757, no qual fora criada no Colégio de Salva- a Faculdade de Matemática em 1772. dor, a Faculdade de Matemática.28 28 Veja também André Luis Mattedi Dias, Stansel destacava-se no uso de equipamentos Engenheiros, mulheres, matemáticos, Interes- de aferição astronômica sendo a ele atribuído ses e disputas na profissionalização das mate- máticas na Bahia, São Paulo, 2002, pp. 16–17, o desenvolvimento de um tipo de astrolábio. Em com referência a Carlos Ziller. carta a Kircher de 21 de julho de 1664 ele deu 29 Andres, J. – Kučera, R., “Note on the obse- notícia de uma obra que teria acabado de escre- rvation of comets in 1664 and 1665 by the ver e estaria enviando para publicação na Bélgi- Olomouc scholar P. Valentin Stansel, S. J.”, Acta Universitatis Palackianae Olomucensis, ca, com o tema brasileiro: Coelis Brasiliensis Facultas rerum nat., Phys. 120, 34 (1995), Oeconomia sive de benigno syderum influxu pp. 207–218. 196 Brasilius, ou com outras pequenas variâncias de um monstro que teria sido morto a flechadas irrelevantes (Mercurius Brasilicus, sive de Coeli indígenas e a estocadas de um colono português. et soli Brasiliensis oeconomia, por exemplo).30 Estas narrativas combinando o fantástico ao Atualmente tem-se conhecimento de outras verossímil são, antes de mais nada, um retrato da referências importantes a esta obra, sempre vin- insegurança face ao desconhecido vivida pelos das do ambiente de Kircher. A primeira é uma europeus em contato com uma natureza efetiva- pequena citação feita ao final do catálogo do mente diferente daquela habitual. Não se trata Museu Kircheriano, obra assinada por Giorgio aqui de aprofundar esta análise, mas é importan- de Sepi e publicada em 1678.31 Numa parte rela- te registrar que, nestes anos, a fronteira separan- tiva aos livros guardados no Museu, o autor do o possível do fabuloso em matéria natural disse possuir o manuscrito de Valentin Stansel, não se apresentava com a mesma clareza que virá o Mercurius. a ter posteriormente. A segunda referência é um conjunto de No que respeita particularmente ao depoi- pequenos extratos dos manuscritos publicados mento de Stansel reproduzido por Petrucci, numa obra de Gioseffo Petrucci, composta para a existência de tal monstro é perfeitamente acei- defender seu mestre, Athanasius Kircher, numa tável, uma vez que tanto do ponto de vista do controvérsia científica com Francesco Redi. aristotelismo reinante, quanto das principais O livro, Prodromo apologetico alli studi chir- alternativas teóricas que se apresentavam na cheriani, foi escrito para sustentar a veracidade época, a geração da besta não constituía obstá- de diversos depoimentos sobre as “maravilhas” culo maior. do mundo narradas por viajantes e missionários O maior impacto dos trabalhos do padre à América, à China, etc. Estas narrativas de via- Valentin Stansel ocorreu entre os médicos da gens e da extraordinária natureza tropical – seja colônia. No século XVII, as terapias curativas do Oriente ou do Ocidente – tinham sido postas dificilmente poderiam prescindir da consulta aos em questão por Redi que, cético, buscava esta- astros. Acreditava-se que as doenças estavam belecer limites entre o fabuloso de alguns relatos diretamente associadas ao equilíbrio interno dos eaverdade natural. Athanasius Kircher se pôs pacientes e tinham relação com os astros. Discu- em defesa dos depoimentos de seus confrades tia-se muito se a força dos céus agia diretamen- missionários e as trocas entre os dois constitui te sobre os homens (Marte excitando diretamen- um interessantíssimo capítulo do processo de te o sangue dos pacientes, por exemplo) ou se construção da ciência moderna. É claro que, neste contexto, um depoimento de um matemá- tico que escrevia do Novo Mundo acrescentava em muito aos interesses do polemista jesuíta. 30 Nas rápidas citações feitas por Petrucci do O texto completo é – segundo Camenietzki – o seguinte: “Mercurius Brasilius, id est de manuscrito de Stansel, percebe-se algumas teses mirabilibus Brasiliae, quo describuntur primo e testemunhos importantes defendidos pelo mis- ritus, & constitutiones naturales regionis, dein- sionário: a geração espontânea de vermes e de de hominum mores, & vita, postea animalia insetos – tese que é também objeto de discussão quadrupeda, volatilia, natalia, insecta, quibus subjungit vegetabilia, arbores, herbas, flores, entre Kircher e Redi –, a eficácia da pedra da fructus, & tandem de mineralibus, omnium- serpente na cura de envenenamento por mordida que jam dictorum virtutibus, & proprietatibus de besta peçonhenta e a existência do monstro eleganti & polito stylo agit. Opus vere curio- Ypupiara, de larga trajetória nas narrativas sobre sum & dignum consideratione, praesertim cum is omnium inspector & observator fuerit. Est a História do Brasil. opusculum phaenomenorum solis, quo side- Em particular, o depoimento sobre o Ypupia- rum, circa polum australem apparentium nobis ra vem acompanhado de uma ilustração que Pe- incognitorum, uti & de cometarum praeterla- trucci afirma ter vindo diretamente do Brasil. Na pis annis in Brasilia apparentium, motu, dura- tione, interitu, scite admodum scripsit, quo- realidade, nesta passagem, Stansel reproduziu – rum omnium ipse primus ex astronomis sub como explica Camenietzki – um lugar-comum zona torrida observator fuit & plurima singu- dos escritos sobre o Brasil do século XVI e início laria continet Europae astronomis ignota”. do XVII. Trata-se de uma história que se repete, Koláček, op. cit., p. 39, o indica como manus- crito, do ano 1664. com detalhes ligeiramente diferentes desde 1565, 31 Giorgio de Sepi, Musaeum Celeberrimum. relatando o aparecimento, numa praia brasileira, Amsterdam, 1678, p. 66.

197 sua ação era indireta (Marte excitando o ar e os sociedade científica inglesa, tornando-se ampla- elementos, e estes alterando o temperamento do mente conhecido por uma brilhante geraçãode paciente). Era comum, portanto, a crença de que cientistas, como Isaac Newton e Edmond Hal- as doenças estavam ligadas aos movimentos dos ley. Newton, por exemplo, citou observações de corpos celestes. O parecer de um bom conhece- Stansel na sua obra maior, Princípios matemáti- dor dos astros era peça importante no diagnósti- cos da filosofia natural (Principia Mathemati- co de diversas enfermidades, caso o próprio ca), publicada em 1687.32 Os resultados da sua médico não pudesse fazê-lo. Acreditava-se tam- investigação na Bahia, das observações e as aná- bém que os planetas poderiam afetar os aconte- lises de Stansel dos cometas de 1664/5 e de 1668 cimentos políticos, os casamentos e quase todas foram reunidas pelos seus confrades de Praga as esferas da vida social e, por essa razão, os reis num volume, Legatus Uranicus ex Orbe Novo in e príncipes sempre mantinham na corte um bom Veterem, publicado em 1683, ainda em vida de conhecedor dos céus. Boa parte do financiamen- Stansel e também, numa outra edição, muito to e do prestígio que os astrônomos tiveram nos tempo após a sua morte, em Praga, em 1774, por séculos XVI e XVII se devia à crença na astro- baixo do título Legatus uranicvs sive cometa… logia, e era de se esperar que a imensa maioria observatus in Brasilia, Bahiae Omnium Sancto- dos textos escritos por ocasião do aparecimento rum, de maneira que mesmo em Praga houve de um cometa contivesse algum prognóstico as- testemunho da sua atividade na Bahia. Os edito- trológico. res dedicaram a obra a Carlos Inácio, conde Em dezembro de 1664 um luminoso cometa de Šternberk, cujo brasão, de toda página, está apareceu no céu e foi notado em todo o mundo. publicado como suplemento. Depois do texto há Após um breve intervalo de tempo, em janeiro cinco páginas inteiras com gravuras em cobre de 1665, outro cometa voltou a ser visto – de que representam observações astronômicas. Esta fato, trata-se do mesmo objeto celeste que, na obra foi resenhada pelo periódico Acta Erudito- sua trajetória fica oculto pela luminosidade do rum de 1683.33 Sol. Diversos astrônomos deixaram registros da observação deste portento. O padre Stansel tam- bém observou o fenômeno e escreveu uma pe- quena obra narrando e analisando os resultados obtidos. No seu escrito, ele procurou resolver os 32 Isaac Newton, Philosophiae Naturalis Prin- principais problemas referentes aos cometas dis- cipia Mathematica. Londres, 1687. A passa- gem encontra-se, segundo Camenietzki, no cutidos na época: matéria do cometa, sua locali- livro III, Prop. XLI, Probl. XX, pp. 507–508. zação no céu, natureza do seu brilho, trajetória, Por outra parte, pouco antes da expulsão dos etc. O manuscrito, composto no primeiro jesuítas, o padre José Monteiro da Rocha semestre de 1665, circulou na Europa entre vá- observou a primeira passagem prevista do cometa de Halley em 1759. Naquela época rias mãos. o astrônomo contava cerca de 25 anos e, ao Um bom exemplo do interesse suscitado contrário do anterior, sempre estudara no pelos escritos de Stansel é o caminho trilhado Colégio dos Jesuítas de Salvador. Na ocasião, pelo tratado que ele escreveu na Bahia logo após José Monteiro escreveu um livro, o Sistema físico-matemático dos cometas em que defen- a observação do cometa de 1668. O padre o redi- de as teorias de Isaac Newton sobre os movi- giu nos meses subseqüentes às observações mentos dos corpos celestes. Trata-se de obra de eoenviou a diversas personalidades, particular- caráter newtoniano. Veja também http://www. mente aos matemáticos da Companhia de Jesus, comciencia.br/reportagens/2005/05/11.shtml. e http://www.nossahistoria.net/Default.aspx? em Roma. O texto chamou a atenção pela quali- PortalId=-1&TabId=-1&MenuId=-1&pagId= dade e foi publicado num periódico erudito, IKDHQPWQ. o Giornale dei Letterati, de setembro de 1673. 33 Valentinus Stansel, S. J., LEGATUS URA- Christiaan Huygens (1629–1695), renomado NICVS SIVE COMETA Qui sub decursum A. 1664 in Asterismo Corvi, Mundo Illuxit: matemático holandês que trabalhava em Paris, observatus in Brasilia, Bahiae Omnium Sanc- traduziu-o e o encaminhou à Royal Society de torum. Praga 1683, 4º, (1), CLXVIII pág., Londres, sociedade científica criada sob os aus- 6 suplem. Na primeira pág. texto: ILLVS- pícios do rei da Inglaterra em 1660. O texto foi TRES, ET CLARISSIMOS EUROPAE ASTRONOMOS. Também o escudo de armas republicado no número de julho de 1674 de Phi- de Inácio Carlos conde de Sternberg. No texto losophical Transactions, periódico editado pela há gravuras das imagens astronômicas com

198 Voltando ao tema do livro, a análise feita por o padre Kircher, Stansel deu conta da observação Stansel é bem cuidadosa. Seus pontos-de-vista de eclipses lunares e solares em 1664 e 1665. fundamentais não se destacaram muito do comum Em 1669, ele comentou ao seu correspondente entre os astrônomos da Companhia de Jesus. Há em Roma ter escrito duas obras. A primeira, Ti- uma reduzida bibliografia recente sobre estas phys Lusitano ou Regimento Nautico Novo, é um observações e seu significado. Estes estudos pos- texto que nunca foi publicado e, atualmente, suem uma certa importância para um primeiro o manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional contato com o pensamento de Stansel. de Lisboa.35 Trata-se de um manual de navega- Finalmente, o último texto, a observaçãodo ção escrito a partir de um instrumento de obser- cometa de 1689, é um pequeno Discurso Astro- vação inventado por Stansel. Nele encontra-se nômico, de autoria não declarada, mas que con- instruções para a obtenção da altura do pólo, tém evidências internas suficientes para susten- para um melhor uso das cartas náuticas e mapas tar a hipótese de que se trata efetivamente de um entre outras coisas. No curso do P. Stansel escrito de Stansel.34 (Estancel), incluíram-se lições sobre a Arte da Os primeiros anos de sua estadia na Bahia Navegação, reunidas neste manuscrito: o texto revelaram-se de uma imensa riqueza, como já é inteiramente dedicado à descrição de dois instru- ficou registrado. Na citada correspondência com mentos que o autor concebera, e com os quais

referência ao texto. O desconhecido editor em a seventeenth century missionary in Brasil”. Praga completou as suas observações com Archivum Historicum Societatis Iesu. vol. 62, muitas observações dos jesuítas por toda Euro- pp. 319–30, 1993; e Carlos Ziller-Camenietzki, pa, de modo que houve comparação de vários “O Cometa, o Pregador e o Cientista: Antônio pontos/lugares do globo. Veja também o exem- Vieira e Valentin Stansel observam o céu da plar de Olomouc: Václav Pumprla, Soupis sta- Bahia no século XVII”. Revista da Sociedade rých tisků ve fondech Státní vědecké knihovny Brasileira de História da Ciência. Nº 14, v Olomouci. IV. Díl. Hispanika a iberoameri- pp. 37–52, 1995. kána 1501–1800. Olomouc 1981 (com Oldřich 35 O adverte por exemplo, Inocêncio Francisco Kašpar), nr. 645, Biblioteca Científica Estatal da Silva, Dicionário bibliográfico, Lisboa, de Olomouc, procedente da Biblioteca do 7º vol., 1862, p. 396. Já em outra publicação Colégio dos Jesuítas da mesma cidade, com mencionada, Propositiones seleno-graphicae, a data de 1693 (cota 10.364). A segunda edi- sive de Lunae (Olomouc, 1655) se recorda ção ou versão deste livro Legatus uranicus… que este jesuíta publicou um dos primeiros Observationes Americanae estão nas bibliote- mapas da lua com topografia (primeiro na cas da Real Canongia dos Cistercienses de Boêmia, mas ainda sem nomes e descrição). Praga, cota CD IX 10 e no Museu Nacional de Veja Bulletin plus http://www.nkp.cz/bp/ Praga NM 56 D 5. Kašparová – Mlčák, p. 18, bp2003_4/19.htm. Valentim Estancel, Tiphys descrevem os dados da seguinte maneira: Lusitano ou Regimento Náutico Novo o qual Legatus Uranicus ex Orbe novo in veterem, ensinava a tomar alturas, descobrir os meri- hoc est. Observationes Americanae cometa- dianos e demarcar as variações da agulha rum factae, conscriptae ac in Europam missae a qualquer hora do dia ou da noite com um a R. P. Valentino Stansel e Societate Jesu,… discurso prático sobre a navegação de leste Mathesi Pragensi in Collegio Societatis Jesu a oeste / composto pelo padre Valentim Estan- ad S. Clementem cum auctario observationum cel da Companhia de Jesus que foi das mate- Evropearum astrophilorum boho majorique máticas em várias universidades e ultima- lumnini in lucem datae. – Pragae: Typis Uni- mente no real Colégio de Santo Antãoem versitatis Carolo-Ferdinand: in Collegio Socie- Lisboa. – [ca 1660]. – [70] f., enc.: 3 dese- tatis Jesu ad S. Clementem, 1683, 4º, (5), nhos; 31 cm. Cópia, tendo a dedicatória CLXVIII (167) folhas, 6 suplem. Comp. tam- a D. Pedro II, e assinatura do autor (?). – As bém S. Binková, “Os países tchecos e a zona lições dos mestres de Santo Antão eram trans- lusitana…”, op. cit., p. 143. Koláček, op. cit., critas e compiladas, circulando as cópias p. 39, apresenta a seguinte transcrição: Legatus entre os alunos do Colégio. – Três desenhos Uranicus ex orbe novo in veterem, id est obser- à pena, a sépia, de página inteira, represen- vationes americanae Cometae, qui a. 1664 in tando os instrumentos descritos: f. [14], [41] asterismo Corvi mundo illuxit, observatis e [10]. – Bibliogr.: Santos (1814); Sommer- Brasilia Bahiae omnium Sanctorum, qui cum vogel (1896); Albuquerque (1972). – Enca- auctario observationum Europearum Mathesi dernado com pastas de cartão revestidas a pele Pragensi prodiit. Praga 1683. castanha com ferros a seco. Ex http://purl.pt/ 34 Juan Casanovas – Philipp Keenan, “The 102/1/especulacao/nautica/especulacao_ Observations of Comets by Valentine Stansel, nautica_thumb_46.html.

199 supunha poder solucionar os problemas da Náu- 15 de agosto já era visível no Pará pelos padres tica Astronômica (determinação das latitudes jesuítas. Em sua poesia satírica Gregório de Matos e longitudes, declinação da agulha, hora diurna (1623–1696) diz tê-lo observado na Bahia.39 e noturna, etc.); na Dedicatória, o autor esclare- A província brasileira da Companhia de Jesus ce que o «Tiphys Lusitano» é um novo instru- não se apresentava como as demais. Na frota em mento para medir a altura do sol. A segunda obra que veio o missionário matemático, embarcou é de ascética, Zodiacus Divini Doloris, publica- também o italiano Jacinto de Magistris, visitador da finalmente em Évora, 1675. enviado à Bahia pela Cúria de Roma para recon- Desde a sua chegada à Bahia, o padre mate- duzir os religiosos locais à política da Compa- mático enfrentou uma realidade certamente ini- nhia. Tão logo desembarcou, os jesuítas do Brasil maginada. Se a natureza lhe deu elementos para se puseram em revolta contra ele – o visitador era a composição do Mercurius Brasilicus, a cultura uma espécie de interventor. Este episódio encon- baiana da época não pode ter deixado de lhe tra-se resumido de forma um tanto enigmática impressionar. Deixo a palavra a Camenietzki: pelo padre Serafim Leite, o historiador oficial da “Na segunda metade do século XVII, Salvador Companhia. Trata-se, contudo, de um momento viveu um período de grande florescimento cultu- ral; até mesmo surpreendente para uma capital mercantil do Império português. Por ali passaram e viveram Gregório de Matos, Antônio Vieira 36 Cf. Gregório de Matos, Obra Poética. Rio de e Alexandre de Gusmão. A Bahia já havia recebi- Janeiro, 1992 (3a ed.), vol. I, p. 123. Came- do a visita de Dom Francisco Manuel de Melo. nietzki considera que se a regência de D. Pedro Porém, para um religioso que cresceu e viveu por II terminou em 1683, o soneto não pode ter diversos anos no ambiente jesuíta da reconquista sido escrito muito longe desta data. Veja tam- bém Apresentação do modelo da proposta da católica de Praga, da exuberância cultural da edição crítica da obra poética de Gregório Contra-Reforma, a capital da mais importante de Matos em: http://web.letras.up.pt/ftopa/ colônia portuguesa não poderia deixar de repre- Livros_Pdf/GM-III.pdf. 37 sentar um ambiente humano exótico.” Ex: Supernovas – Boletim Brasileiro de Astro- nomia – http://www.supernovas.cjb.net. O poeta Gregório de Matos deixou um sone- 38 Legatus, op. cit. Nota 33. Encontramos uma to sobre um astrolábio que o matemático teria série de referências epistolares sobre o come- dado ao rei de Portugal, D. Pedro II, na ocasião ta Hevelius de 1664, que Vieira observou em de seu coroamento. Aliás, o poeta mazombo es- Coimbra em dezembro desse ano, procurando compará-lo ao cometa de 1616 que tanto creveu um soneto ridicularizando o padre Stan- o impressionou na juventude. A mais valiosa sel: A El Rey D. Pedro II com um astrolábio de informação sobre a aparição desse cometa tomar o Sol, que mandou o padre Valentim Stan- encontra-se em carta de 23 de fevereiro de sel dedicado ao renascido monarca.36 1665 na qual relata que o astro teria sido observado, pela primeira vez, em 12 de no- O cometa de 1689 pode ter sido observado vembro no Maranhão. Tal afirmativa altera pela primeira vez em 1 de dezembro de 1689 pelo completamente a história até hoje conhecida, jesuíta Valentim Stansel no Brasil. Uma hora antes que dá sua descoberta como tendo ocorrido na do Sol nascer em 28 de outubro de 1695 na Bahia, Espanha em 17 de novembro. 39 Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, “A con- o jesuíta francês Jacob Cocleo descobriu o come- tribuição do Padre Antônio Vieira à história ta que leva seu nome – Jacob.37 As referências aos da astronomia”, Separata da Revista do Insti- cometas encontram-se, em geral, em cartas de tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 160, Vieira, nas quais encontramos também inúmeras n. 403, 1999: http://www.instituto-camoes.pt/ cvc/ciencia/e19.html. O cometa Richaud, referências a eclipses e até mesmo a uma provável observado pela primeira vez a bordo de um estrela nova em 1665. Numa carta Vieira escreveu navio em 1 de dezembro de 1689, foi também sobre “um religioso nosso, alemão, bom matemá- visto por Vieira em 6 de dezembro. Tal apari- tico”, que vivia no Brasil. Trata-se, sem dúvida, ção foi descrita, com muitos detalhes, no Dis- curso Astronômico, existente na Biblioteca do padre Stansel que, de fato, descreveu esse Nacional de Lisboa, Coleção Pombalina cometa em sua obra Legatus Uranicus, publicada (códice n. 484, folhas 170 a 177). Esse relato em Praga, em 1683.38 Curiosamente não encontra- foi reproduzido em 1911 na Revista do Insti- mos referência à aparição do cometa Halley em tuto Arqueológico e Geográfico de Pernam- buco. Admite o historiador português Serafim 1682 e do Brilhante Cometa de 1686. Esse último, Leite (1890–1969) que o autor desse discurso seguramente, foi observado por Vieira, pois em deve ser o jesuíta Valentim Estancel.

200 importante da vida política dos jesuítas brasilei- para Carlos II da Inglaterra e para Catarina de ros, quase que uma marca da singularidade desta Bragança, filha de Dom JoãoIVde Portugal. província no século XVII. Em breves linhas, pois O outro documento, bem mais interessante, não tem sentido uma exposiçãoeuma análise é a censura feita pelos padres da Companhia. De detalhada do acontecido neste texto, o visitador fato, desde o início do século XVII, os jesuítas vem ao Brasil com a finalidade de reduzir as constituíram um corpo de censores internos que “inúmeras irregularidades desta província”. Já na teria a responsabilidade de zelar pelas obras saída de Lisboa, Jacinto de Magistris leva consi- publicadas por membros da Ordem. Já no tempo go diversos jesuítas do Brasil que residiam na de Inácio de Loyola, a Companhia se preocupa- metrópole na qualidade de procuradores da pro- va muito com sua unidade doutrinal e política. víncia para fins específicos – entre eles o padre Se diversos “heréticos” conhecidos tinham saído Simão de Vasconcelos. Em poucos meses o visi- das fileiras de importantes ordens religiosas, isto tador se incompatibiliza completamente com não poderia acontecer aos religiosos jesuítas. a província e termina sendo deposto de suas O Collegio Revisorum tinha a função de exami- funções e embarcado à força de volta para nar os livros escritos por membros da Compa- a Europa – coisa inédita na Ordem. A resposta do nhia e de dar, ou não, a facultas, que significava alto comando da Companhia não se fez esperar: a aprovação do texto pelos rigorosos censores o padre Geral reduziu a rebeldia, espalhou os internos. Entãonão pode surpreender que para principais revoltosos por outras cidades e puniu contornar a vigilante censura interna da Com- brandamente os demais. A parte do padre Stansel panhia de Jesus a propósito de sua adesãoao neste processo é nula. O matemático acabara de cartesianismo, Valentin se serviu do recurso da entrar na província e portanto não acompanhava dissimulação que foi prática corrente nos meios direito os problemas e debates. Viera de Lisboa diplomáticos e literários, sempre associada e provavelmente não tinha conhecimento apro- à própria escrita durante a época barroca. A dis- fundado do ponto-de-vista dos brasileiros. Esta simulação se associa à metáfora e a outras figu- revolta dos brasileiros certamente marcou seu ras de linguagem tãoprestigiadas pelo gosto juízo sobre o Brasil nos seus primeiros anos de literário do século XVII. O seu uso também esta- vida nos trópicos. va disseminado entre os cientistas da época bar- É fato que na sua carta a Kircher de junho de roca. Este exemplo, e ainda outros, sugere que 1669 Stansel já pedia para o amigo interceder a dissimulação pode ser entendida como um junto ao padre Geral para seu retorno à Europa. importante elemento na interpretação da cultu- Sua decepção deve ter sido enorme. O fato de ter ra científica deste tempo. Afinal, ao obrigar retomado a grafia “Estansel” para o próprio o leitor a decifrar a mensagem dissimulada, nome, conforme já ficou registrado neste traba- o homem de ciência o transforma, de certa lho, é bastante expressivo. Em todas as cartas do maneira, em cúmplice de suas idéias.40 final dos anos sessenta e nas posteriores ele re- O Vulcanus Mathematicus não foi aprovado clamava da falta de livros, da dificuldade em por eles. Entre outras condenações, consideraram publicar os seus trabalhos, do ensino de teologia que o livro defendia idéias cartesianas e atomís- moral que ministra no Colégio da Bahia, etc. ticas. Pouco se pode dizer sobre este ponto-de- O matemático estava visivelmente decepcionado vista: sem a leitura do manuscrito, resta apenas com o Brasil e com os brasileiros. Muito embo- a especulação. Contudo, nãoé improvável que os ra seu estado de espírito não fosse dos melhores, censores tivessem tido um juízo um tanto envie- o missionário nãoabandonou sua vocação cien- sado do pensamento de Stansel: suas relações tífica. Em carta a Kircher de 20 de abril de 1674 eruditas e sua clara filiação ao mesmo ramo de ele anunciou mais um livro: “Tenho nas mãos pensamento que o padre Kircher sugerem um outra obra muito curiosa. É trabalho erudito equívoco ou uma certa pressa na censura. e tem por título Templum Vulcanun Sacrum. Trata de Física, Matemática, Óptica…” O escrito mudou de título, mais tarde, para Vulcanus Mathematicus. Esta obra também está 40 perdida. Porém, pouquíssimos resíduos indicam Carlos Ziller Camenietzki, Dissimulações honestas e cultura científica na Idade Barro- tratar-se de trabalho bastante interessante. Resta, ca, resumo: http://www.sigila.msh-paris.fr/ em primeiro lugar, a dedicatória do livro feita dissimulation.htm. 201 Apesar das adversidades, o padre Valentin suítas, nos arredores da cidade. Atualmente parecia incansável. Em 1685 veio a público a edificação abriga o Arquivo Público da Bahia. o seu livro Uranophilus Caelestis Peregrinus. Pode-se ver a fonte que ocupa o centro do pátio Todo o título desta obra é: Uranophilus celestis interno do prédio. A cena parece traduzir o espí- peregrinus sive Mentis uranicae per mundum rito do mestrado, com o conhecimento sendo sidereum peregrinantis extases Authore Valenti- transmitido concomitantemente com um agradá- no Estancel de Castro Julii Moravo, é Societate vel cafuné.45 Jesu, olim in Universitate Pragense, deinde in É uma edição de um título tão nobre como Regia Olyssiponensi Matheseos Magistro…41 orgulhoso, no qual o autor se declara – ou O livro foi escrito em Salvador, editado em 1685 o fazem os seus confrades – não somente pro- em Gand, na Bélgica. Uranófilo o peregrino fessor das universidades de Praga e de Lisboa, celeste é um diálogo latino bastante interessante mas também moravio e cidadão de Olomouc (na em que combina habilmente a exposição de seus forma latina Castro Julii). Isto explica também conhecimentos astronômicos e a ficção. O padre um problema do seu nome: Segundo Camenietz- Valentin não discute velhas e obsoletas teorias ki, há uma expressiva curiosidade sobre o nome dos céus; ele não defende Ptolomeu e o geocen- do missionário que merece um rápido comentá- trismo. Suas proposições (Propositiones seleno- rio. Em suas cartas escritas de Olmutz e de grahicae sive de Luna, Olomouc 165542) acom- Roma, o padre Valentin assinou sempre com panham aproximadamente o sistema de Tycho a grafia Stansel. Chegado a Portugal, ele mudou de Brahe e procuram incorporar as mais recentes para Estansel. Na Bahia, ele assinou Valentin de descobertas da astronomia. Note-se que esse Castro em algumas cartas. Em 21 de julho de padre veio ao Brasil como missionário e mate- mático já formado, com mais de quarenta anos de idade. Se considera peregrino dos espaços celestes, cuja constituição explica como sendo 41 Uranophilus caelestis peregrinus sive mentis em parte líquida e em parte sólida. uranicae per mundum sidereum peregrinantis Não menos extravagante era a sua concep- extases Authore Valentino Estancel de Castro Julii Moravo, é Societate Jesu, olim in Uni- ção sobre os cometas, que admitia serem gera- versitate Pragense, deinde in Regia Olyssipo- dos pela conjunção de dois planetas. Conven- nensi Matheseos Magistro… 1685, Gandavi: ceu-se desta origem quando, após ter assistido Apud Heredes Maximiliani Graet. Prostat a uma conjunção de Saturno com o Sol, em Antverpiae, apud Michaelem Knobbaert, 1685. 4º 205 x 125. – XII + 222 + XIII p. e. 1 de novembro de 1689, descobriu, no mês 1 est., cota 37-VIII-26 Biblioteca Nacional de seguinte, um cometa que julgou ser “movido Lisboa. Na Biblioteca Nacional de Praga, cota por algum anjo”.43 49 B 1. Kašparová – Mačák, op. cit., p. 19. Em 1686, uma doença desconhecida (que as Binková, “Os países tchecos e a zona lusita- na…”, op. cit. p. 142 e 157–158. Koláček, autoridades batizaram de Males) castiga o Reci- op. cit., p. 39 oferece uma pequena variante: fe, vira epidemia que se prolonga por sete anos, Uranophilus caelestis peregrinus sive mentis matando milhares de pessoas. Entre a popula- Uranicae per mundum siderum peregrinantis ção, o prognóstico: dois eclipses, um do sol, extases. Authore Valentino Estancel de Castro Julii Moravo, e Societate Jesu, olim in univer- ocorrido em agosto do ano anterior, e um da lua, sitate Pragensi, deinde in Regia Ullyssiponen- ocorrido em dezembro daquele ano. si matheseos Magistro, demum theologicae O eclipse solar tinha “uma figura de uma feroz moralis in Urbe S. Salvatoris vulgo BAHIA e gigantesca aranha” e a lua apareceu “abrasada Omnium Sanctorum in Brasilia professore, Gent, Belgica, 1685, 4º. num eclipse de fogo escuro”. Documentos ofi- 42 Koláček, op. cit., p. 39. ciais estabeleceram relação entre os eclipses 43 Álvaro de Freitas Armbrust, “História da Astro- eaepidemia e o padre Valentim Estancel, da Com- nomia no Brasil – Parte I.” (Da descoberta do panhia de Jesus, que era um conceituado astrólo- Brasil ao final do Período Colonial), Histórias da Astronomia, Nº 021, 5 de Novembro de go, aproveitou para profetizar que “muitas enfer- 2005, em: http://www.uranometrianova.pro.br/ midades e mortes iam cair sobre o Brasil e que historia/hda/0005/hisbrasil1.htm. haviam de continuar por muito tempo”.44 44 http://www.pe-az.com.br/curiosidades/fim_ O frontispício ilustrativo, uma gravura retra- mundo.htm. 45 http://www.fis.ufba.br/dfg/pice/ludico/ ta os três personagens da obra, Uranofilo, Urania pice-logotipos.htm, ver o frontispicio com- e Geonisbe, em conversação na quinta dos je- pleto.

202 1664, numa carta escrita do Colégio da Compa- ria astronômica. O diálogo de Stansel se reveste de nhia ao padre Kircher em Roma ele acrescentou um interesse extraordinário para a História da um comentário: “Valentinus de Castro, novuus Ciência no Brasil. É obra de um sábio que teve seu in cognomine, veteranus in amore & obsequio”. trabalho reconhecido em seu tempo – a citação das Neste ponto não estou de acordo com Came- observações do cometa de 1668 por Isaac Newton nietzki que diz que esta mudança parece acom- é certamente algo notável. Além disto, trabalhan- panhar seu entusiasmo com a rica experiência do em circunstâncias freqüentemente precárias – que vivia, nem que o abandono desta novidade falta de livros e de interlocutores – ele insere em já na carta escrita em 10 de agosto de 1666 ao sua reflexão no quadro geral das grandes mesmo destinatário talvez seja expressivo de concepções do mundo. Se a sua crença no Ypu- uma frustração. É que o sobrenome Castro está piara, nas sereias e se suas obras religiosas e ascé- tomado da forma latina da cidade de Olomouc ticas o afastam do que acreditamos hoje em dia ser (Castro Julii), assim que o assinante quer dizer um homem de ciência, é exatamente isto que faz que é de Olomouc, “olomucense”.46 de Stansel um cientista plenamente inserido na Uranophilus Caelestis Peregrinus foi dedica- cultura do seu tempo. Inútil esperar que o sábio do do a Bernardo Vieira Ravasco – irmão do padre século XVII pudesse escapar aos problemas que Antônio Vieira. Trata-se de um diálogo entre afligiam os intelectuais da sua época. três personagens: Uranophilus, Geonisbe e Ura- Camenietzki dá a conhecer que existe ainda nia, que passeiam pelo espaço discutindo a con- uma última referência a trabalhos científicos de formação dos céus e da Terra. Conforme o cos- Stansel que merece uma breve nota. Em uma tume daquele tempo, o livro vem com um belo carta de 27 de julho de 1697 ao padre Geral, frontispício que procura sintetizar o seu conteú- o missionário comunicou o envio a Portugal de do. É importante registrar que, no século XVII, um texto, Novum Phaenomenum Caelestem, foi publicada uma quantidade expressiva de e solicitou sua publicação. Por esta carta e por obras em que uma viagem para fora da Terra outras evidências, sabemos que ele esteve em é tema que organiza a narrativa. Kepler, Cyrano Pernambuco, porém nada há que possa precisar de Bergerac, Francis Godwin e Athanasius Kir- melhor o período e as razões do seu desloca- cher são alguns dos escritores deste gênero lite- mento. No mesmo documento ele solicitou rário de sucesso em meados do século. a autorização para publicar, em Antuérpia, uma A escrita em forma dialogal constitui um outra obra ascética: Clavis Regia Triplici Para- meio importante de expressão das idéias cientí- disi. Nada mais se sabe sobre este texto. Como ficas desta época; Galileu, por exemplo, se ser- já vimos, sua rica produçãonão se limitava ape- viu deste recurso com brilhantismo. A publica- nas a obras de caráter matemático ou científico, ção deste livro não passou desapercebida no por assim dizer. Certamente, antes de julho de Velho Mundo. No número de maio de 1685 1683, o padre Valentin escreveu uma obra que o periódico Acta Eruditorum publicou uma ficou esquecida pelos bibliógrafos da Compa- resenha do Uranophilus. nhia de Jesus: Philodoxius Peregrinus. Acta comparou o livro de Stansel com aquele Seus textos eram copiados e enviados para do padre Kircher, Iter Exstaticum Caelestis, publi- diversos homens de ciência em Portugal, Itália, cado em 1656, que conheceu grande sucesso com Boêmia e outros países. Recebidos com maior duas outras edições. Esta última obra também narra, na forma de diálogo, uma viagem interpla- netária. A aproximação entre os dois livros é evi- dente. Outro periódico daquele tempo registrou 46 Também outro jesuíta tcheco, Simón de Cas- a semelhança: o Jounal des Sçavants de agosto de tro utiliza este nome (em espanhol), mais por 1685. Muito provavelmente Stansel leu o Iter kir- pura tradução, pois o seu nome original tche- cheriano. Ele esteve certamente em Roma com co é Boruhradský, quer dizer “Do Castro do Pino”. Veja o meu estudo “Simón de Castro – o padre Athanasius em 1655 e, provavelmente, no Šimon Boruhradský, un arquitecto checo del início de 1656. De qualquer maneira, se o missio- siglo XVII en México”. Ibero-Americana Pra- nário se inspirou na obra de um seu amigo e con- gensia XX (Praga), 1986, pp. 159–174. Tam- frade, ou se isso não aconteceu, não constitui nada bém pode afirmar-se que Stansel utilizou outras formas, que deviam aproximar a pronúncia ao de relevante. É fato que o Uranophilus não copia original ou a sua adaptação ao português: o Iter nem defende as mesmas posições em maté- Estencol ou Estançol.

203 ou menor entusiasmo pelos especialistas, os tra- são do papel usualmente atribuído aos Jesuítas no balhos eram consultados por astrônomos e seus processo da constituição da ciência moderna. No resultados integravam-se, como diversos outros, Brasil tais pesquisas, conduzidas principalmente na grande controvérsia do século XVII acerca da por Carlos Ziller Camenietzki, têm mostrado que natureza desses fenômenos. a idéia de que a pesquisa em Física, Astronomia Nos resta dela um volumoso manuscrito na e Matemática no Brasil começou em 1934, com Biblioteca Nacional de Roma, num fundo que per- a criação da USP, ou na melhor das hipóteses, no tencera ao antigo Colégio Romano. O livro, cuja caso da Astronomia, no Império, é um mito histó- leitura completa está impossibilitada devido aos rico que precisa ser submetido ao crivo da inves- estragos que o tempo se encarregou de fazer, vem tigação. Afinal, ainda há quem se ponha a ques- dedicado a João de Sousa, governador de Pernam- tão se os jesuítas fizeram ou nãociência. Ainda buco, e contém uma série de poemas ao autor e ao existe quem considere a inutilidade e mesmo empreendimento. Não se trata aqui de proceder a inviabilidade de fazer ciência no Brasil. E aque- a um estudo de seu conteúdo. Tal trabalho será les que crêem não ter havido nada no Império feito em uma ocasião mais propícia. No momento, português que se pareça com ciência antes da fun- é importante registrar a existência desse manuscri- dação desta ou daquela instituição. Certamente to. No domínio de seus escritos religiosos restam Isaac Newton teria algo a lhes dizer. ainda duas referências. A primeira registra a exis- Resumindo, é comum a idéia de que os reli- tência de um trabalho enviado em meados de 1692 giosos que vieram para o Brasil na época colo- ao padre geral para publicação: Typhis Spiritualis. nial dedicaram–se exclusivamente à catequese A segunda, mais importante, é um conjunto de e ao esforço de encontrar um lugar para os nati- documentos relativos à censura da obra: Lucubra- vos na sociedade cristã. Acredita-se também que tiones in Prophetam Danielem. O texto teria sido eles não tinham nenhuma ligação com a ciência escrito em 1694, conforme a facultas do padre e até que não havia atividade científica sistemá- Alexandre de Gusmão. Há, contudo, duas censu- tica no Brasil, pelo menos até o final do século ras de 1696 que mandam alterar detalhes antes da XVIII. Em maior ou menor grau, tais interpreta- publicação. Segundo Serafim Leite, esta obra teria ções refletem, na verdade, o pouco conhecimen- colidido com o livro Clavis Prophetarum – tam- to que ainda se tem sobre trabalhos científicos na bém inédito – de Antônio Vieira.47 Outro manus- Colônia. Além das missões e do trabalho de crito que está documentado, desta vez numa carta assistência espiritual e ensino à população por- de seu colega na Bahia, João Gintzel, é Typus nau- tuguesa ou lusodescendente, os padres que vie- ticae coelestis.48 ram para a América portuguesa desempenharam Como foi informado na introdução, o padre outras atividades, entre as quais as de natureza Valentin Stansel terminou sua vida na Bahia, em científica. Esse esforço foi bastante significativo 1705, aos 84 anos de idade. Sua produção cien- particularmente entre os jesuítas, que formaram tífica é notável: segundo Camenietzki “nove preciosas bibliotecas nos seus colégios, montavam obras de Filosofia Natural entre opúsculos e tex- boticas onde preparavam e vendiam medica- tos de fôlego, cinco livros religiosos e mais não mentos ou, ainda, observavam os céus, partici- se sabe quantos pequenos textos espalhados pando de discussões científicas com astrônomos pelos sábios da época. Vasta produção, mesmo do Velho Mundo. E um destes científicos avan- considerando os padrões do seu tempo. Sem çados foi o tcheco da Moravia, Valentin Stansel, dúvida cabe a pergunta sobre as razões do esque- Castro Julii Moravo. cimento de seu trabalho. Afinal, por que o padre Valentin teria caído no profundo esquecimento (Escrito em português pelo autor) em que ficou relegado por tanto tempo? Não é aceitável que um estudo sobre a História da Ciência no Brasil na época colonial deixasse de perceber este sábio, citado nos principais perió- 47 O Padre Antônio Vieira, em carta de 3 de julho dicos do seu século, citado ainda na obra que de 1665 já se referira ao texto de Estansel talvez tenha estabelecido os fundamentos da sobre o cometa daquele mesmo ano. Cf. Lúcio Ciência Moderna!” de Azevedo, Cartas de Antonio Vieira. Coim- bra: Imprensa da Universidade, 1926, vol. 3, A historiografia contemporânea da ciência pp. 188–189. tem levado, em escala internacional, a uma revi- 48 Koláček, op. cit., p. 39.

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