150 Anos Da Guerra Do Paraguai: Projetos, Comemorações E Apropriações Em Torno Da Retirada Da Laguna
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150 anos da Guerra do Paraguai: projetos, comemorações e apropriações em torno da retirada da Laguna 150th anniversary of the War of Paraguay: projects, celebrations and appropriations around the Laguna Withdrawal 150 aniversario de la Guerra de Paraguay: proyectos, celebraciones y apropriaciones de la Retirada de Laguna Ana Paula Squinelo* Jérri Roberto Marin** Analisamos neste artigo os sentidos das Resumo comemorações sobre a Guerra do Paraguai Este trabalho trata do sentido das come- (1864-1870), sobretudo em relação ao episódio morações acerca da Guerra do Paraguai da retirada da Laguna (1865-1867), em Mato (1864-1870), em Mato Grosso e Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul. O objetivo é Grosso do Sul. Para tal, nos reportamos refletir sobre as apropriações e reapropriações aos debates concernentes à memória, aos desse evento na constituição da memória e da espaços da memória e às comemorações. identidade sul-mato-grossense. A construção Especialmente, elencamos como eixo norteador de nossas reflexões o episódio * Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Professora associada da Univer- denominado retirada da Laguna (1865- sidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Co- 1867), considerado cenário secundário ordenadora do Laboratório de Ensino de História da Guerra do Paraguai e ocorrido em e do grupo de pesquisa Historiografia e Ensino de História. E-mail: [email protected] território mato-grossense. Interessa-nos, ** Doutor em História pela Universidade Estadual sobretudo, refletir sobre os impactos Paulista – Unesp. Professor associado da Univer- desse evento na constituição da memó- sidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor da Pós-Graduação em História da Universidade ria e da identidade sul-mato-grossense. Federal da Grande Dourados – UFGD. E-mail: [email protected] Palavras-chave: Comemorações. Guerra Recebido em 06/04/2015 - Aprovado em 02/06/2015 do Paraguai. Retirada da Laguna. http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.15n.2.5648 383 História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 de uma história oficial de heróis e datas cele- Os lugares de memória nascem e vivem brativas, de monumentos para Mato Grosso do sentimento que não há memória espon- tânea, que é preciso manter aniversários, e para Mato Grosso do Sul, estado criado em organizar celebrações, pronunciar elogios 1977, valorizou o episódio da retirada da La- fúnebres, notariar atas, porque essas ope- guna. Mais recentemente, o projeto Trilha da rações não são naturais (1993, p. 12-13). Retirada da Laguna reafirmou a importância As comemorações são eventos de gran- desse evento e indicou novas formas de apro- de potencial simbólico quando o Estado, as priação por várias instituições e pelo Estado. instituições e a sociedade civil repensam o Pierre Nora (1993), ao refletir sobre o passado e o presente e elaboram projetos bicentenário da Revolução Francesa, consta- para o futuro. Os Estados nacionais, nos sé- tou que existia uma obsessão comemorativa culos XIX e XX, inventaram tradições, cria- que se manifestava na transformação de to- ram cerimônias públicas, construíram mo- das as datas históricas em eventos celebra- numentos públicos e um passado comum, tivos. As comemorações são lugares de me- supostamente imemorial, para legitimarem- mória, definidas como: -se e robustecer os sentimentos religiosos e [...] toda a unidade significativa, de or- cívicos. Para Hobsbawm, muitas tradições, dem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez como as comemorações das datas pátrias e um elemento simbólico do patrimônio da os símbolos nacionais, são invenções recen- memória de uma comunidade qualquer tes, ou seja, um “conjunto de práticas [...], (NORA, 1993, p. 20). de natureza ritual ou simbólica, que buscam O autor ainda apontou que: inculcar certos valores e normas de compor- tamento” (HOBSBAWM; RANGER, 1994, Os lugares de memória são, antes de tudo, p. 9). Os símbolos nacionais e os monumen- restos. A forma extrema onde subsiste tos eternizam a data da fundação da nação, uma consciência comemorativa numa his- tória que a chama, porque ela a ignora. É criam uma memória nacional e motivam o a desritualização de nosso mundo que entusiasmo cívico. Ou seja, os festejos cívi- faz aparecer a noção. O que secreta, ves- cos têm pretensões comemorativas e peda- te, estabelece, constrói, decreta, mantém gógicas, pois constroem subjetividades. pelo artifício e pela vontade uma coleti- vidade fundamentalmente envolvida em Segundo Connerton, sua transformação e sua renovação. Va- [...] as nossas experiências do presente lorizando, por natureza, mais o novo do dependem, em grande medida, do conhe- que o antigo, mais o jovem do que o velho, cimento que temos do passado e que as mais o futuro do que o passado. Museus, nossas imagens desse passado servem nor- arquivos, cemitérios e coleções, festas, ani- malmente para legitimar a ordem social versários, tratados, processos verbais, mo- presente (1999, p. 2). numentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das Como parte do esforço das sociedades ilusões e da eternidade. [...] sinais de reco- nhecimento e de pertencimento de grupo em manter uma relação profícua com o pas- numa sociedade que só tende a reconhecer sado, o autor apontou a necessidade de se os indivíduos iguais e idênticos. 384 História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 instituir e preservar os rituais, que seriam Taunay confessou que escreveu a obra responsáveis pela contiguidade com o pas- por pressão do pai, e que a teria escrito em sado, seja remoto ou imediato. “vinte e poucos dias”. A obra, assim como Tendo em vista tais apontamentos Cenas de viagem, foi recebida com desinteres- acreditamos que a retirada da Laguna cons- se pelo seu círculo de amigos, exceto pelo tituiu-se em um dos episódios a ser meticu- Conde D´Eu (TAUNAY, 1983, p. 303). A pri- losamente preservados no contexto da his- meira versão de A retirada da Laguna data de tória do Brasil, de Mato Grosso e de Mato 1868 e continha pouco mais de 50 páginas, a Grosso do Sul. Interessante ressaltar que os versão integral é datada de 1871. A primei- acontecimentos em torno da retirada, em- ra tradução para o português foi realizada bora tenham se centralizado em solo mato- em 1874 por Salvador de Mendonça. Porém, -grossense, despertaram comoção nacional. foi a tradução de Ramiz Galvão, de 1915, a O episódio é considerado como o mais glo- mais difundida. Cabe ressaltar que a obra foi rioso da história militar e do Exército brasi- traduzida para diversos idiomas e, no Brasil, leiro, como uma epopeia patriótica caracteri- podemos anotar inúmeras reedições. Ela é zada pela constância, pela disciplina militar, considerada como uma obra representativa pela resignação, pelo heroísmo e pelo valor do fim do Romantismo e do início do Realis- dos combatentes, pois conseguiram retornar mo e um clássico da literatura, ao lado de Os com todos os canhões e bandeiras (CARDO- sertões, de Euclides da Cunha (2000). SO, 2011, p. 17-22). Como decorrência, é (re) Com a cristalização de A retirada da La- memorado não só regionalmente como tam- guna: episódio da Guerra do Paraguai, ini- bém nacionalmente. ciou-se a construção épica da historiografia Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle que aborda esse tema. Segundo Cardoso, é a Taunay participou como protagonista na obra mais editada e lida, no Brasil, sobre as Guerra do Paraguai, no episódio que ficou operações militares na Guerra do Paraguai conhecido por retirada da Laguna. Atuou e que, desde a década de 1930, vem sendo como ajudante da comissão de engenheiros adaptada em histórias em quadrinhos, revis- das forças que foram destinadas ao sul de tas, livros e álbuns. O objetivo de traduzir Mato Grosso entre os anos de 1865 e 1867. a obra para outras linguagens era difundir Taunay ingressou na coluna aos 25 anos de o patriotismo brasileiro, tais como os senti- idade, e presenciou grande parte das cenas mentos de “abnegação, persistência, amor à desencadeadas no teatro de operações. So- pátria e coragem”. Artistas plásticos utiliza- brevivendo à longa marcha, retornou ao Rio ram a obra como fonte para compor pintu- de Janeiro, onde, por insistência de seu pai, ras épicas sobre a Retirada (CARDOSO, 2011, começou a escrever a obra que viria imorta- p. 20). O filme Alma do Brasil,1 produzido na lizar a grande tragédia a que esteve submeti- década de 1930, teve cenas filmadas nos lo- do o exército brasileiro: A retirada da Laguna: cais dos acontecimentos. episódio da Guerra do Paraguai. Entre 1867 e 1868, Taunay publicou outras obras sobre a guerra, por exemplo, 385 História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 Scenas de viagem e Relatório geral da comissão (água e alimentos), de controle sanitário, de de engenheiros, que foi elaborado no percur- assistência aos doentes e feridos e, também, so da campanha de Mato Grosso. Em 1869, o pouco treinamento dos soldados. Essas quando o Conde d’Eu, genro de Dom Pedro deficiências já estavam presentes durante II, assumiu o comando das forças brasileiras as ações da coluna expedicionária e durante em operação no Paraguai, Taunay retornou sua retirada; segundo, o desconhecimento ao teatro de operações como secretário do geográfico do território mato-grossense e estado-maior. Terminada a guerra, em 1870, paraguaio e a inexistência de mapas da re- ele retornou ao Rio de Janeiro. Resultou gião. A grande extensão territorial e sua exu- dessa experiência a publicação de Diário do berância justificavam e atenuavam a derrota. Exército, em que descreveu a ocupação do A obra deve ser compreendida dentro Paraguai e a morte de Francisco Solano Ló- do contexto da sua produção. Primeiramente, pez. Outras obras que registram sua presen- Taunay não era somente um homem ligado às ça em solo mato-grossense são: Campanha de estruturas imperiais, como também as defen- Mato Grosso, Dias de guerra e de sertão, Cartas dia arduamente.