150 anos da Guerra do Paraguai: projetos, comemorações e apropriações em torno da retirada da Laguna

150th anniversary of the War of Paraguay: projects, celebrations and appropriations around the Laguna Withdrawal 150 aniversario de la Guerra de Paraguay: proyectos, celebraciones y apropriaciones de la Retirada de Laguna Ana Paula Squinelo* Jérri Roberto Marin**

Analisamos neste artigo os sentidos das Resumo comemorações sobre a Guerra do Paraguai Este trabalho trata do sentido das come- (1864-1870), sobretudo em relação ao episódio morações acerca da Guerra do Paraguai da retirada da Laguna (1865-1867), em Mato (1864-1870), em Mato Grosso e Mato Grosso e em . O objetivo é Grosso do Sul. Para tal, nos reportamos refletir sobre as apropriações e reapropriações aos debates concernentes à memória, aos desse evento na constituição da memória e da espaços da memória e às comemorações. identidade sul-mato-grossense. A construção Especialmente, elencamos como eixo norteador de nossas reflexões o episódio * Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Professora associada da Univer- denominado retirada da Laguna (1865- sidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Co- 1867), considerado cenário secundário ordenadora do Laboratório de Ensino de História da Guerra do Paraguai e ocorrido em e do grupo de pesquisa Historiografia e Ensino de História. E-mail: [email protected] território mato-grossense. Interessa-nos, ** Doutor em História pela Universidade Estadual sobretudo, refletir sobre os impactos Paulista – Unesp. Professor associado da Univer- desse evento na constituição da memó- sidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor da Pós-Graduação em História da Universidade ria e da identidade sul-mato-grossense. Federal da Grande – UFGD. E-mail: [email protected] Palavras-chave: Comemorações. Guerra Recebido em 06/04/2015 - Aprovado em 02/06/2015 do Paraguai. Retirada da Laguna. http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.15n.2.5648

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 de uma história oficial de heróis e datas cele- Os lugares de memória nascem e vivem brativas, de monumentos para Mato Grosso do sentimento que não há memória espon- tânea, que é preciso manter aniversários, e para Mato Grosso do Sul, estado criado em organizar celebrações, pronunciar elogios 1977, valorizou o episódio da retirada da La- fúnebres, notariar atas, porque essas ope- guna. Mais recentemente, o projeto Trilha da rações não são naturais (1993, p. 12-13). Retirada da Laguna reafirmou a importância As comemorações são eventos de gran- desse evento e indicou novas formas de apro- de potencial simbólico quando o Estado, as priação por várias instituições e pelo Estado. instituições e a sociedade civil repensam o Pierre Nora (1993), ao refletir sobre o passado e o presente e elaboram projetos bicentenário da Revolução Francesa, consta- para o futuro. Os Estados nacionais, nos sé- tou que existia uma obsessão comemorativa culos XIX e XX, inventaram tradições, cria- que se manifestava na transformação de to- ram cerimônias públicas, construíram mo- das as datas históricas em eventos celebra- numentos públicos e um passado comum, tivos. As comemorações são lugares de me- supostamente imemorial, para legitimarem- mória, definidas como: -se e robustecer os sentimentos religiosos e [...] toda a unidade significativa, de or- cívicos. Para Hobsbawm, muitas tradições, dem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez como as comemorações das datas pátrias e um elemento simbólico do patrimônio da os símbolos nacionais, são invenções recen- memória de uma comunidade qualquer tes, ou seja, um “conjunto de práticas [...], (NORA, 1993, p. 20). de natureza ritual ou simbólica, que buscam O autor ainda apontou que: inculcar certos valores e normas de compor- tamento” (Hobsbawm; Ranger, 1994, Os lugares de memória são, antes de tudo, p. 9). Os símbolos nacionais e os monumen- restos. A forma extrema onde subsiste tos eternizam a data da fundação da nação, uma consciência comemorativa numa his- tória que a chama, porque ela a ignora. É criam uma memória nacional e motivam o a desritualização de nosso mundo que entusiasmo cívico. Ou seja, os festejos cívi- faz aparecer a noção. O que secreta, ves- cos têm pretensões comemorativas e peda- te, estabelece, constrói, decreta, mantém gógicas, pois constroem subjetividades. pelo artifício e pela vontade uma coleti- vidade fundamentalmente envolvida em Segundo Connerton, sua transformação e sua renovação. Va- [...] as nossas experiências do presente lorizando, por natureza, mais o novo do dependem, em grande medida, do conhe- que o antigo, mais o jovem do que o velho, cimento que temos do passado e que as mais o futuro do que o passado. Museus, nossas imagens desse passado servem nor- arquivos, cemitérios e coleções, festas, ani- malmente para legitimar a ordem social versários, tratados, processos verbais, mo- presente (1999, p. 2). numentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das Como parte do esforço das sociedades ilusões e da eternidade. [...] sinais de reco- nhecimento e de pertencimento de grupo em manter uma relação profícua com o pas- numa sociedade que só tende a reconhecer sado, o autor apontou a necessidade de se os indivíduos iguais e idênticos.

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 instituir e preservar os rituais, que seriam Taunay confessou que escreveu a obra responsáveis pela contiguidade com o pas- por pressão do pai, e que a teria escrito em sado, seja remoto ou imediato. “vinte e poucos dias”. A obra, assim como Tendo em vista tais apontamentos Cenas de viagem, foi recebida com desinteres- acreditamos que a retirada da Laguna cons- se pelo seu círculo de amigos, exceto pelo tituiu-se em um dos episódios a ser meticu- Conde D´Eu (TAUNAY, 1983, p. 303). A pri- losamente preservados no contexto da his- meira versão de A retirada da Laguna data de tória do Brasil, de Mato Grosso e de Mato 1868 e continha pouco mais de 50 páginas, a Grosso do Sul. Interessante ressaltar que os versão integral é datada de 1871. A primei- acontecimentos em torno da retirada, em- ra tradução para o português foi realizada bora tenham se centralizado em solo mato- em 1874 por Salvador de Mendonça. Porém, -grossense, despertaram comoção nacional. foi a tradução de Ramiz Galvão, de 1915, a O episódio é considerado como o mais glo- mais difundida. Cabe ressaltar que a obra foi rioso da história militar e do Exército brasi- traduzida para diversos idiomas e, no Brasil, leiro, como uma epopeia patriótica caracteri- podemos anotar inúmeras reedições. Ela é zada pela constância, pela disciplina militar, considerada como uma obra representativa pela resignação, pelo heroísmo e pelo valor do fim do Romantismo e do início do Realis- dos combatentes, pois conseguiram retornar mo e um clássico da literatura, ao lado de Os com todos os canhões e bandeiras (CARDO- sertões, de Euclides da Cunha (2000). SO, 2011, p. 17-22). Como decorrência, é (re) Com a cristalização de A retirada da La- memorado não só regionalmente como tam- guna: episódio da Guerra do Paraguai, ini- bém nacionalmente. ciou-se a construção épica da historiografia Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle que aborda esse tema. Segundo Cardoso, é a Taunay participou como protagonista na obra mais editada e lida, no Brasil, sobre as Guerra do Paraguai, no episódio que ficou operações militares na Guerra do Paraguai conhecido por retirada da Laguna. Atuou e que, desde a década de 1930, vem sendo como ajudante da comissão de engenheiros adaptada em histórias em quadrinhos, revis- das forças que foram destinadas ao sul de tas, livros e álbuns. O objetivo de traduzir Mato Grosso entre os anos de 1865 e 1867. a obra para outras linguagens era difundir Taunay ingressou na coluna aos 25 anos de o patriotismo brasileiro, tais como os senti- idade, e presenciou grande parte das cenas mentos de “abnegação, persistência, amor à desencadeadas no teatro de operações. So- pátria e coragem”. Artistas plásticos utiliza- brevivendo à longa marcha, retornou ao Rio ram a obra como fonte para compor pintu- de Janeiro, onde, por insistência de seu pai, ras épicas sobre a Retirada (CARDOSO, 2011, começou a escrever a obra que viria imorta- p. 20). O filme Alma do Brasil,1 produzido na lizar a grande tragédia a que esteve submeti- década de 1930, teve cenas filmadas nos lo- do o exército brasileiro: A retirada da Laguna: cais dos acontecimentos. episódio da Guerra do Paraguai. Entre 1867 e 1868, Taunay publicou outras obras sobre a guerra, por exemplo,

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 Scenas de viagem e Relatório geral da comissão (água e alimentos), de controle sanitário, de de engenheiros, que foi elaborado no percur- assistência aos doentes e feridos e, também, so da campanha de Mato Grosso. Em 1869, o pouco treinamento dos soldados. Essas quando o Conde d’Eu, genro de Dom Pedro deficiências já estavam presentes durante II, assumiu o comando das forças brasileiras as ações da coluna expedicionária e durante em operação no Paraguai, Taunay retornou sua retirada; segundo, o desconhecimento ao teatro de operações como secretário do geográfico do território mato-grossense e estado-maior. Terminada a guerra, em 1870, paraguaio e a inexistência de mapas da re- ele retornou ao Rio de Janeiro. Resultou gião. A grande extensão territorial e sua exu- dessa experiência a publicação de Diário do berância justificavam e atenuavam a derrota. Exército, em que descreveu a ocupação do A obra deve ser compreendida dentro Paraguai e a morte de Francisco Solano Ló- do contexto da sua produção. Primeiramente, pez. Outras obras que registram sua presen- Taunay não era somente um homem ligado às ça em solo mato-grossense são: Campanha de estruturas imperiais, como também as defen- Mato Grosso, Dias de guerra e de sertão, Cartas dia arduamente. Por isso, procurou assegurar da campanha de Mato Grosso, 1865-1866, Céus tanto a integridade do Império, como também e terras do Brasil, Viagens de outrora, Paisagens a instituição à qual pertencia ao imortalizar os brasileiras, Diário do exército (1869-1870), A grandes feitos do exército brasileiro. Ou seja, campanha da cordilheira, De a Taunay foi um homem que viveu a consoli- Aquidabã, Em Mato Grosso invadido (1866- dação, glória e desestruturação do Império 1867) e Visões do sertão. brasileiro, e sua família sempre manteve es- Embora Taunay tenha participado treitos laços com o Estado. Na obra, Taunay de duas fases da campanha da Guerra do assumiu o fracasso da coluna, entretanto, Paraguai, pouco esteve presente nos com- narrou o episódio de forma romântica, épica bates. Segundo Alambert, o engenheiro e honrosa. Assim, o que se constituiu em um “nunca se apresenta trabalhando. Ele não fracasso para o exército brasileiro adquiriu, é nem mesmo o ‘nobre-guerreiro’” (1999, nas sucessivas páginas de sua obra, outra di- p. 39). Taunay apenas: mensão, qual seja, a do patriotismo, da glória, da honra, da defesa e da entrega pela pátria. [...] estuda, observa com seu binóculo ra- cional, escreve, corrige e anota os dilemas O atento leitor passará por suas páginas com da moralidade, buscando colocá-los na o sentimento de que, por mais adversidades balança dos trunfos que podem vir a cons- que a coluna tenha enfrentado, acabou por truir a civilização brasileira (1999, p. 39). derrotar os paraguaios, alcançou e A narrativa de A retirada da Laguna cumpriu seu dever para com a pátria. Forja- está centrada em dois eixos temáticos: pri- vam-se, dessa forma, heróis nacionais, datas a meiro, o despreparo e as improvisações do serem comemoradas e uma história patriótica exército, o desentendimento entre os oficiais repleta de feitos grandiosos. superiores a inexistência de uma logística, Também compõem a obra lembranças de armamentos, de oferta de suprimentos e anotações que Taunay registrava em um

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 diário de campanha que fazia parte de suas Como decorrência, acabou por levar o go- obrigações profissionais. Ou seja, o texto não verno imperial a voltar seu olhar ao então foi produzido no “calor dos acontecimen- “abandonado” e “desprotegido” Mato Gros- tos”. Ao recompor suas lembranças, esteve so, ao reabrir o porto de Corumbá, ao defi- sujeito às falhas a que o substrato da memó- nir as fronteiras com o Paraguai e alargar o ria nos expõe, mas, ao mesmo tempo, o con- território brasileiro, ao construir a ferrovia texto propiciou que a remontasse de acordo Noroeste do Brasil e uma rede de telégrafos com aquilo que queria preservar e registrar integrando a região, ao acelerar o processo em seus escritos. migratório; e, por último, ao imortalizar o A credibilidade do relato de suas obras episódio da retirada da Laguna, que passou não é atribuída somente ao volume de fon- a fazer parte da memória da região, como tes, às anotações do seu diário de campo, aos também justificou a escrita de uma história argumentos e às interpretações, mas ao fato mato-grossense ligada aos desígnios de uma de ele ter estado lá, o que certifica, por es- elite dominante. Conforme Zorzato (1998), crito, o testemunho único de situações pre- o discurso memorialista construído ao lon- senciadas e vividas. O texto escrito consa- go do século XX pelos intelectuais mato- gra interpretações, representações, imagens -grossenses sempre esteve atrelado aos gru- da alteridade e de interesses políticos, ao pos que disputavam e partilhavam o poder, mesmo tempo em que, sempre, denuncia a dando-lhes, principalmente, legitimidade. presença de Taunay como autor, seus recor- Em Mato Grosso, a retirada da Lagu- tes e suas escolhas. Além disso, as imagens na passou a ser valorizada no contexto das que produziu acerca do antigo Mato Grosso comemorações do bicentenário da fundação estão afinadas com as discussões e teorias de Cuiabá, em 1919. Essas se tornaram refe- científicas desenvolvidas durante o XIX: ci- rências para as construções de novas identi- vilização versus barbárie; modernidade ver- dades e centralizaram-se em torno das ma- sus atraso; intempéries versus natureza ou nifestações culturais de exaltação à terra e progresso versus civilização. ao homem mato-grossense. D. Francisco de Aquino Corrêa, então presidente do Estado, A construção de memórias em torno da fundou duas instituições que investiram na retirada da Laguna em Mato Grosso e no Brasil produção simbólica para redefinir a identi- dade regional: o Instituto Histórico e Geo- A Guerra do Paraguai marcou sobre- gráfico de Mato Grosso, em 1919, e o Centro maneira o processo histórico mato-grossen- Matogrossense de Letras, em 1921. Para as se e brasileiro. A obra A retirada da Laguna comemorações, foram elaboradas poesias, contribuiu para inserir Mato Grosso no ima- canções patrióticas, símbolos distintivos da ginário nacional, como o outro geográfico identidade regional, como o brasão de ar- da nação. Seria uma fronteira-sertão ainda mas (1918), o hino mato-grossense (1918) e a não incorporada à nacionalidade, em que a confecção da carta geográfica de Mato Gros- presença do Estado deveria ser consolidada. so. O brasão, o hino, as canções e poemas e

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 as publicações oficiais reforçavam inúmeros Na perspectiva oficial, Mato Gros- valores e exaltavam o homem, a natureza, so, desde sua incorporação ao Brasil, teria o passado heroico, a união entre os mato- demonstrado historicamente sinais de ci- -grossenses e a inevitabilidade do progresso. vismo e brasilidade. A incorporação, pelos A divisa latina do Instituto Histórico bandeirantes, das terras que posteriormen- Pro Pátria cognita atque immortali (Pela pátria te constituiriam o Mato Grosso era vista conhecida e imortal) trazia a lume as preocu- como afirmação da nacionalidade e obra pações em preservar, divulgar e imortalizar exclusivamente brasileira. A brasilidade dos a memória e as tradições culturais regionais, mato-grossenses poderia ser atestada na e inseri-las na história brasileira. Desejava-se ampliação das fronteiras a oeste, na vitória superar o estigma da barbárie e incivilidade da Guerra do Paraguai, na defesa dos 3 mil ao divulgar um discurso legítimo e “verda- quilômetros de fronteiras geográficas com deiro” sobre o Mato Grosso, assegurando a Bolívia e o Paraguai (apesar da rarefação assim um espaço privilegiado na história demográfica e do pequeno apoio governa- do Brasil. Para D. Aquino Corrêa, construir mental), na “obra civilizadora” de ocupação uma história oficial era, acima de tudo, exal- territorial, pela incorporação do indígena à tar e glorificar o Mato Grosso e os feitos dos civilização e por priorizar os interesses na- mato-grossenses. cionais sobre os regionais (refere-se à cessão A versão mitificada da história e a de parte do território de Mato Grosso à Bolí- eleição de um panteão cívico buscavam sa- via, no Tratado de Petrópolis, em 1903). lientar figuras que serviriam de modelos e Enfim, na perspectiva da história ofi- arquétipos para os valores e aspirações cole- cial, Mato Grosso seria o estado mais brasi- tivas, além de reforçar identidades e orientar leiro do Brasil, embora fosse uma das últimas ações e projetos concretos. Entre os heróis regiões a se integrar ao seio da nacionalida- eleitos estavam os bandeirantes paulistas, os de. Brasilidade, catolicidade, bravura, de- participantes da Guerra do Paraguai e, por terminação e patriotismo seriam os valores fim, mato-grossenses tidos como portadores fundamentais dos mato-grossenses. Corrêa de qualidades atávicas. Entre as imagens Filho destacou o papel dos mato-grossenses mobilizadas estavam o grande número de no conflito, as “angústias” frente à ocupação descendentes, ainda vivos, de José Francisco paraguaia, a proliferação de epidemias e a Lopes, o guia Lopes, um dos heróis eleitos “recuperação” de Mato Grosso. A retirada para o panteão cívico mato-grossense. Seus foi considerada uma epopeia, “imortalizada descendentes eram apontados como provas na ‘Retirada de Laguna’, escrita por Taunay, visíveis do passado heroico. Como herói, o que participou dos padecimentos dos ex- guia Lopes servia de modelo de patriotismo pedicionários e lhes testemunhou os lances e conferia um lugar de destaque aos mato- gloriosos de heroísmo” (1969, p. 548-549). -grossenses na história nacional, principal- A valorização da retirada da Laguna mente na vitória na Guerra do Paraguai e na também ocorreu em nível nacional. No iní- defesa e ampliação da fronteira oeste. cio da década de 1920, setores da sociedade,

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 sobretudo os militares, procederam a uma via Noroeste do Brasil; b) as ruas e os logra- intensa campanha para comemorar e recu- douros da cidade homenageiam os heróis perar a memória em torno desse episódio e da guerra: ruas Visconde de Taunay, Cel. da memória dos heróis Cel. Carlos de Mo- Carlos de Moraes Camisão, José Francisco raes Camisão, Antônio João, José Francisco Lopes (o guia Lopes), Antônio João, e pela Lopes, o guia Lopes, e incluía também a lem- Praça Retirada da Laguna; c) o conhecimen- brança do Visconde de Taunay. Por inicia- to cívico que os moradores tinham da histó- tiva dos alunos da Escola Militar do Rio de ria da Guerra do Paraguai; d) por ter várias Janeiro foi construído o monumento Aos He- escolas, despertaria na mocidade o amor roes de Laguna e de Dourados, situado na Praia à Pátria, ao venerar os seus monumentos, Vermelha, naquela cidade. O projeto ven- adorando-a em dias de festas, guardando-a cedor intitulado Veritas et labor, do escultor com carinho; e) o fato de residirem na cidade Antonio Pinto de Mattos, tinha uma estética quarenta descendentes de guia Lopes. monumentalista e homenageava os princi- A municipalidade iria auxiliar finan- pais protagonistas da retirada. A construção ceiramente a instalação na Praça da Repúbli- do monumento mobilizou diferentes setores ca, no centro da cidade, e comprometeu-se da sociedade brasileira que se empenha- em embelezá-la com jardins e “outras deco- ram para que as comemorações ocorressem rações”. Por fim, Arlindo de Andrade Go- em nível nacional. Entre as iniciativas esta- mes afirmava que o monumento seria mais va a construção de monumentos em Mato bem interpretado em Campo Grande do que Grosso, mais especificamente em Nioaque em outra cidade.2 Porém, o monumento foi e , em 1923, construídos com instalado em Nioaque, em 1923. verbas do Ministério do Exército destinadas A partir da década de 1930, o dia de a edificações militares (SQUINELO, 2006, Santo Antônio, padroeiro da cidade, passou p. 115). Também como parte das comemora- a ser comemorado com eventos militares e ções e rememorações da retirada da Laguna cívicos que homenageavam o episódio da foi construído o Panteão em homenagem ao retirada da Laguna e os seus principais per- Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. sonagens. A solenidade era festejada com A notícia da construção de um monu- uma parada militar, da qual participavam mento em Nioaque e do interesse em insta- as escolas católicas, seguidas do juramento lá-lo em Campo Grande levou o intendente à bandeira nacional dos novos militares do Arlindo de Andrade Gomes a persuadir o Comando da 9a Região Militar. Os limiares ministro da guerra com o argumento de ser entre catolicidade e brasilidade eram tênues, a cidade o maior centro de atividade do Es- pois ao lado dos símbolos católicos desfila- tado, pois a população do sul de Mato Gros- vam os nacionais e os regionais, assim como so deslocava-se para o município por moti- o culto de Santo Antônio com o dos heróis vos de saúde, estudos e para o comércio. Ele mato-grossenses e brasileiros. arrolou ainda outros fatores: a) o fato de a Posteriormente, outros monumentos cidade estar ligada por rodovias e pela ferro- foram construídos em Mato Grosso, sobre-

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 tudo durante governos autoritários e nacio- quem os projetou. Os monumentos cívi- nalistas. Getúlio Vargas, durante o Estado cos caracterizam-se pela sua simplicidade, Novo (1937-1945), institucionalizou o culto pela lembrança que trazem de determinado aos heróis e aos episódios da retirada da acontecimento e por serem laicos, como o Laguna que se caracterizavam como sinôni- caso do monumento de e Miranda; os mos de nossa brasilidade. monumentos cívicos funerários relembram a abnegação, seguida do sacrifício e da mor- Como exemplo [nesse período], cite-se a importância dada à educação moral e cívi- te. Localizados sobretudo nos cemitérios e ca, à revalorização das entradas e bandei- igrejas, eles relembram o sacrifício dos mor- ras para o interior, à construção da catego- tos, como os monumentos de Jardim e Bela ria sertão, da ideia de “trabalhador novo”, Vista; os monumentos funerários patrióticos “homem novo”, etc. (SANTOS, 1996, p. 94). relembram e glorificam principalmente o sa- Representando esse período, aponta- crifício pessoal em favor da pátria. mos a construção de monumentos em Bela Oito monumentos possuem inscrições Vista, em 1931, e em Coxim, em 1941, esse que homenageiam episódios e as “glórias último erigido pela 9ª Região Militar. Ou- imortais dos heróis” da Guerra do Paraguai, tro momento de valorização da retirada da como o da retirada da Laguna, o da colônia Laguna foi durante a ditadura militar (1964- militar de Dourados e o da retomada de Co- 1985), em que foi instituído pelo Exérci- rumbá – localizados no Parque Histórico da to brasileiro o período de 12 de novembro Colônia Militar de Dourados e nos municí- de 1964 a 1º de março de 1970 como marco pios de Aquidauana, Bela Vista, Corumbá, comemorativo do centenário da Guerra do Coxim, Jardim, Miranda e Nioaque. Seis Paraguai. Em Mato Grosso, o centenário da monumentos rememoram o primeiro cente- Guerra foi comemorado entre os dias 15 e nário da Guerra do Paraguai e se encontram 20 de junho de 1970. A 9ª Região Militar, a em Aquidauana, Bela Vista, Jardim, Miran- 4ª Divisão de Cavalaria, prefeitos, autori- da, Nioaque e no Parque Histórico da Colô- dades, escolas e população em geral home- nia Militar de Dourados. Seis monumentos nagearam os heróis da Laguna com placas apresentam inscrições que homenageiam comemorativas fixadas nos municípios de Antônio João, eleito herói e mártir da nação Aquidauana, Miranda e Nioaque (SQUINE- brasileira, símbolo de bravura e patriotismo. LO, 2006, p. 119). Esses monumentos estão em Antônio João, Squinelo (2006, p. 147-148) analisou Aquidauana, Bela Vista, Corumbá, Doura- dezesseis monumentos construídos em dos e no Parque Histórico da Colônia Mili- Mato Grosso, que foram classificados em cí- tar de Dourados. Dois monumentos fazem vico, cívico funerário e funerário patriótico. referência aos oficiais da retirada da Lagu- Cada um com estilos e referências próprias, na, destacando suas qualidades como intré- de acordo com o período histórico, recursos pidos e beneméritos; situam-se em Coxim econômicos investidos em sua confecção e e Jardim e homenageiam oficiais e praças de acordo com as concepções estéticas de – Cel. Carlos de Moraes Camisão e TC. Ju-

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 vêncio M. Cabral de Menezes –, considera- [...] traduzem as intenções dos municípios dos intrépidos e valentes. Dois monumentos da época. Com o tempo, os cidadãos po- dem ter-lhe dado um sentido diferente [...]. construídos pelo Exército destacam o episó- As cerimônias cujos monumentos foram o dio da retirada e localizam-se em Jardim e centro de interesse podem tê-los revestidos Nioaque. O primeiro monumento traz a se- de significações que não tinham na época guinte inscrição: “Retirada da Laguna. A 4ª (PROST, [19‑‑?], p. 196). Bda CMEC realizou no período de 13 a 20 Por fim, qual o sentido que conservam de julho de 99 a primeira marcha cívico-cul- ou renovam os monumentos em meio às tural a pé, percorrendo 223 km entre Bela transformações da cidade e da sociedade? Vista – Nioaque e vivenciando as efeméri- Nas paisagens urbanas contemporâneas des do Visconde de Taunay e o fato histórico os monumentos perdem, cada vez mais, a retirada da Laguna”. O segundo caracteriza função de legitimar o culto tradicional. Ao a reconstituição daqueles sucessos, com as serem idealizados, as suas dimensões gi- informações: “Retirada da Laguna. Revivi- gantescas e a instalação em espaços centrais da a pé, pela 4ª Bda CMEC – ‘Brigada Guai- contribuíam para enaltecer e consagrar os curus’, suas OMDS e convidados especiais heróis e os acontecimentos fundadores do [...]” (SQUINELO, 2006, p. 147-148). Estado por meio da ritualidade das cerimô- A memória da Guerra do Paraguai e nias cívicas e das liturgias autoconsagrado- da retirada da Laguna pode ser constatada, ras do poder (CANCLINI, 1998, p. 291). ainda, em ruas, avenidas, prédios públicos, Nas tramas das cidades contemporâ- escolas, parques e cemitérios, de diferentes neas, as tensões entre memória histórica e a cidades de Mato Grosso do Sul (Antônio trama visual se acirraram. Como decorrên- João, guia Lopes da Laguna e, indiretamen- cia, esses espaços de memória perdem suas te, Inocência). O aeroporto internacional de significações e podem ser apropriados de ou- Campo Grande homenageia Antônio João. tras formas, diferentes daquelas idealizadas Também foram instituídas ações comemora- pelos que os projetaram. Alguns se perdem tivas como a Semana dos Heróis do Forte de em meio aos sinais de trânsito, aos banhei- Coimbra e da Colônia Militar de Dourados, ros públicos, ao mato, a campos de futebol, a que ocorreu em dezembro de 1964. O muni- praças públicas, a árvores e em meio aos sig- cípio de Nioaque celebra todos os anos sua nos políticos e comerciais. Festas e manifes- fundação na Praça dos Heróis e, desde 2013, tações públicas ocorrem nesses locais, com organiza o Festival Retirada da Laguna. diferentes intenções que extrapolam o nacio- Nesse sentido, evidenciamos que as nalismo e o culto aos heróis. Inúmeros mora- sociedades recordam seus feitos passados dores das cidades em que estão localizados de inúmeras formas, resguardando suas tra- os monumentos desconhecem sua existência dições e criando outras, conforme apontado ou o contexto histórico homenageado. Mui- por Hobsbawm e Ranger (1994), ao regis- tos dos monumentos enumerados estão em trar, criar e recriar tanto sua história, como estado de abandono e são alvo de depreda- sua memória. Porém, os monumentos ções. Espaços públicos que homenageavam

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 episódios históricos relativos à Guerra do quele processo. Era necessário criar uma nova Paraguai deixam de existir, como a Praça da região, com recortes geográficos, políticos e Retirada da Laguna, em Campo Grande. culturais, e sobretudo criar uma identidade Contudo, de outro modo, os monu- regional e sentimentos de pertença coletiva. mentos se renovam “ao dialogar com as O Estado mobilizou instituições, grupos e in- contradições presentes” da vida urbana e telectuais, de diferentes campos, a fim de for- “por meio das ‘irreverências’ dos cidadãos”. jarem a identidade sul-mato-grossense. Para Os grafites e as manifestações sociais e polí- esse fim, foram criadas duas instituições, a ticas expressam a crítica à ordem imposta, Academia Sul-Matogrossense de Letras, fun- enquanto cartazes comerciais e outdoors sin- dada desde 1972, e o Instituto Histórico e cronizam a vida econômica com os interes- Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS), ses do poder econômico (CANCLINI, 1998, criado em 1978. Também foi criada, em 1984, p. 301-302). Segundo Canclini, a Fundação de Cultura, pelo governador Wil- son Barbosa Martins. Para a presidência foi [...] a proliferação de anúncios sufoca a nomeado José Octávio Guizzo, um advoga- identidade histórica, dissolve a memória na percepção ansiosa das novidades inces- do envolvido com o projeto de construção da santemente renovadas pela publicidade identidade regional no campo artístico. A eli- (1998, p. 302). te regional foi tecendo, paulatinamente, uma história, heróis, datas cívicas, artes plásticas, A retirada da Laguna em Mato Grosso patrimônio histórico, cinema, e uma música do Sul: projetos, comemorações que sintetizasse a alma do sul-mato-grossen- se. Para isso, mato-grossenses foram trans- e apropriações formados em sul-mato-grossenses. O IHGMS, ao ser fundado, tinha trinta Com a divisão do Estado (Mato Grosso e membros, que pertenciam à elite econômica, Mato Grosso do Sul), efetivada em 1979, Mato política e cultural, e tinha como presidentes Grosso do Sul ficou órfão de história. Na bus- de honra aqueles que seriam os futuros go- ca de construir sua identidade e seu passado, vernadores de Mato Grosso do Sul, estabe- procedeu-se a uma escrita que privilegiou, lecendo, dessa forma, vínculos da entidade como já pontuado, entre outros aspectos, a com o governo estadual. Segundo Squinelo, Guerra do Paraguai, sobretudo a retirada da “[...] a memória em pauta a ser conservada Laguna, para compor a memória que se dese- [prendia-se] justamente a uma elite que [ti- java preservar. Tal fato explica-se, ao menos nha] como objetivo a idealização de um pas- em parte, pelo desejo de possuir uma história sado grandioso” (2002, p. 72), e também di- ligada aos eventos regionais e nacionais. vulgar o futuro promissor do novo Estado, A divisão de Mato Grosso, com a cria- engrandecendo-o diante dos demais. Dessa ção, em 1977, de Mato Grosso do Sul, trouxe forma, legitimavam a divisão proposta de vários desafios ao Estado, bem como às ins- forma autoritária pelo governo de Ernesto tituições, às elites regionais, aos diferentes Geisel. Enfim, a construção discursiva da grupos sociais e aos indivíduos engajados na- região ficou aprisionada pelo dispositivo

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 oficial, pelo discurso da identidade, pela morialistas, a gestarem uma história ligada preocupação com o resgate das raízes, do aos desígnios de uma elite dominante, bem patrimônio e pelo engajamento na criação como à figura de heróis e episódios gran- de sentimentos de pertenças coletivos. diosos, na qual não há espaço para temas Segundo Squinelo, as diversas obras tidos como “menores” ou os ligados ao que publicadas após a criação do estado de Mato alguns estudiosos denominam de “história Grosso do Sul apresentam várias caracterís- vista de baixo”. ticas comuns: Em 1991, foi publicada, pelo Instituto 1) trazem, em um primeiro momento, uma Histórico e Geográfico de Mato Grosso do descrição geográfica da região, com ênfase Sul, com patrocínio do Estado, a obra His- nos seus rios, na fauna, na flora, no clima, tória de Mato Grosso do Sul, de autoria de etc.; 2) apontam os primeiros homens que Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Gui- devassaram o território e a disputa entre portugueses e espanhóis pela posse do marães. Atualmente está na sétima reedição mesmo; 3) abordam superficialmente as e constituiu-se como a história oficial, sen- populações indígenas, enfatizando suas do distribuída nas escolas e utilizada como relações com os europeus; 4) arrolam e relatam as primeiras vilas fundadas; 5) bibliografia básica em concursos públicos. analisam a presença da Matte Laranjeira Os autores assumiram a tarefa de construir na região; 6) tecem comentários sobre a uma história oficial para Mato Grosso do divisão do estado; 7) descrevem a criação de novos municípios, indicando perspec- Sul, de recriar seu passado, de solidificar os tivas de progresso e desenvolvimento; 8) mitos de fundação e de ordenar os fatos até dão grande destaque ao conflito com o Pa- então dispersos, de trazer à existência essa raguai, principalmente no que diz respei- nova região e forjar a identidade regional. to aos episódios que ocorreram no sul de Mato Grosso em fins de 1864 (2002, p. 76). Os fatos foram encadeados de forma a jus- tificar a existência de Mato Grosso do Sul Ainda de acordo com Squinelo (2002, desde o século XVIII, bem como de sul-ma- p. 124), a produção regional privilegiou, no to-grossenses. Assim, os autores conferem contexto da Guerra do Paraguai, o episódio uma antiguidade, supostamente imemorial, da retirada da Laguna, pois as operações da como a de que Mato Grosso do Sul sempre Guerra do Paraguai e da retirada ocorreram existiu, embora tenha sido criado em 1977. em Mato Grosso do Sul. Porém, ao procede- Esses discursos politicamente engajados, ao rem a escrita da história, elegeram as “fon- defenderem a região, estruturam o regiona- tes tradicionais”, como as obras de Alfredo lismo, ao inventar a região Mato Grosso do d’Escragnolle Taunay e Virgílio Corrêa Filho. Sul, ao forjar subjetividades e ao produzir Esse tipo de escrita prevalece, ainda, na exten- diferenças, trazendo-as à existência. sa produção do Instituto Histórico e Geográ- Os contextos da Guerra do Paraguai fico de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul. são abordados na referida obra do quarto A visão épica e romanceada criada em ao sexto capítulo, intitulados: A invasão do torno da retirada da Laguna por Taunay território, A reação brasileira e A reconstru- levou muitos escritores, sobretudo os me- ção do território, respectivamente. O texto

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 constrói datas cívicas e heróis sul-mato-gros- Assim, terminado o conflito, iniciou senses e elege monumentos e lugares que fa- uma conjuntura de progresso para a região, ziam parte do patrimônio de Mato Grosso do com o aumento demográfico e a retomada Sul. Tecem fatos para serem rememorados, do crescimento econômico. levando em consideração que os sul-mato- -grossenses tinham um passado heroico para O projeto Trilha da Retirada da Laguna se orgulhar. Seus ascendentes eram valentes, bravos, corajosos, destemidos, temerários A criação do projeto Trilha da Retirada e patrióticos, pois detiveram os inimigos e da Laguna está inserida no contexto político defenderam o território brasileiro apesar das das eleições de 1998 para o governo estadu- dificuldades enfrentadas, como a falta de al. Os resultados eleitorais mudaram o cená- munições e a escassez de mantimentos, do- rio político, pois grupos que se perpetuaram enças e reduzidos efetivos militares. Nessa no poder desde a criação de Mato Grosso do narrativa, Antônio João, José Francisco Lo- Sul foram derrotados. Saíam do poder no- pes, o guia Lopes, e o Cel. Carlos de Moraes mes como Marcelo Miranda e Pedro Pedros- Camisão foram eleitos heróis sul-mato-gros- sian, que se revezaram durante as décadas senses, assim como D. Senhorinha, que foi de 1970 e 1980. Chegava ao governo esta- escolhida a mulher símbolo de Mato Gros- dual um novo partido, o Partido dos Traba- so do Sul. Segundo Amarilha (2006, p. 186), lhadores, na figura de José Orcírio Miranda Campestrini e Guimarães (1991) valorizaram dos Santos. Ao assumir a gestão, no início a retirada da Laguna por considerá-la como de 1999, a Secretaria de Cultura, Esporte e o episódio mais épico, glorioso e heroico da Lazer e outros setores do governo, iniciaram guerra, e, também, porque se realizou em as discussões para viabilizar projetos turísti- terras sul-mato-grossenses. cos a fim de inserir o Mato Grosso do Sul no Após o término do conflito, os autores circuito turístico de visitação histórica. registram a reconstrução de Corumbá, Mi- Naquele contexto, em 24 de março randa, Nioaque e Coxim, a reorganização de 1999, foi realizada uma reunião entre o política e religiosa, a reabertura da navega- Secretário de Estado de Cultura, Esporte ção no rio Paraguai, a demarcação das fron- e Lazer, Silvio Nucci, e outros estudiosos teiras, a exploração da erva-mate e a chega- para apresentar ao secretário a trajetória da de “nova gente”: que compõe o palco da retirada da Laguna, Após a guerra, com os antigos fazendeiros que foi apresentada por Krugerson de Mat- chegaram à Vacaria, ao baixio da serra e tos, capitão da reserva do Exército brasileiro aos pantanais outros tantos, atraídos pela (NUCCI, 2004, p. 2). A proposta era viabili- excelência das terras, pelo clima saudável, zar um projeto turístico de reconstituição do abundância de águas e viçosas pastagens, características divulgadas nas províncias percurso realizado pela retirada. vizinhas pelos remanescentes da retira- O projeto foi apoiado, no decorrer das da da Laguna (CAMPESTRINI; GUIMA- últimas décadas, por várias instâncias do RÃES, 2002, p. 158). governo estadual, por outras instituições,

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 tais como o Exército, o Instituto Histórico Vista, Guia Lopes da Laguna, Nioaque em e Geográfico de Mato Grosso do Sul, o Ins- Mato Grosso do Sul e Bella Vista Norte/Pa- tituto do Patrimônio Histórico e Artístico raguai”. Apesar disso, o projeto não definia Nacional e o Conselho Internacional de Mu- qual seria a participação desses municípios seus. Assim, o projeto Trilha da Retirada da (NUCCI, 2004, p. 2). Laguna adequava-se a múltiplos interesses. O projeto da Trilha da Retirada da La- Outro projeto desenvolvido no âmbito guna e outros que se referem à retirada fo- estadual somou-se ao da trilha. Maria Mar- ram articulados pelos municípios já citados gareth Escobar Ribas, diretora da 11ª Sub-re- tendo como justificativas dois pressupostos: gional do Instituto do Patrimônio Histórico a) a configuração e/ou consolidação de uma e Artístico Nacional, Seção de Mato Grosso identidade sul-mato-grossense ligada ao do Sul, planejou, em 2003, tombar a paisa- episódio da Guerra do Paraguai e, ao mesmo gem natural do espaço em que se desenro- tempo, à retirada da Laguna; b) o intuito de lou a retirada da Laguna. implantar o turismo cultural e/ou contem- Embora alguns estudiosos já viessem plativo como mecanismo de desenvolver levantando algumas questões acerca da im- tais municípios, gerando emprego e renda. portância da rota da retirada da Laguna para Nesse contexto, torna-se imperativo fomentar o turismo, somente no novo gover- o apoio e o incentivo do governo estadual no, via Secretaria de Cultura, Esporte e La- aos projetos mencionados, na medida em zer, foi viabilizada a elaboração de um proje- que se consolida a construção de uma his- to para consolidar a iniciativa. A apropriação tória ligada aos desígnios de um grupo que da Guerra do Paraguai nessa conjuntura po- pretendia se perpetuar no poder. Por isso, lítica esteve associada ao novo grupo político apropriam-se da História para reforçar uma e seu interesse em perpetuar-se no poder. Ou ideologia do estado. Vale ressaltar que a me- seja, a memória da guerra não se configura mória da guerra em Mato Grosso do Sul não apenas como uma memória cívica e patrióti- é construída de forma linear e cumulativa, ca, mas também econômica e política. ao contrário, é edificada com interrupções, De acordo com o secretário de Turismo sendo resgatada nos contextos em que pode e o secretário de Cultura e Lazer do estado servir à determinada ideologia. Então, in- de Mato Grosso do Sul, Silvio Di Nucci, o versamente ao que insistem em afirmar, que governo estadual as memórias da guerra e da retirada carac- terizam-se como uma “memória de cunho [...] ofereceu suporte para o lançamento das ações e apoio quanto a publicação da patriótico”, acreditamos que seja a memória revista distribuída no evento, referindo- de uma “conotação política” singular. -se a temática da Retirada, [...] abordando Em suma, em diferentes conjunturas questões relativas a execução do projeto históricas, os contextos da Guerra do Para- em pauta (NUCCI, 2004, p. 1). guai e da retirada da Laguna foram e conti- Os municípios que seriam envolvidos nuam sendo apropriados e reapropriados de eram os de “Anastácio, Aquidauana, Bela acordo com interesses e projetos políticos de

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 diferentes grupos que assumem o governo reflexionar sobre el impacto de este estadual, mantendo a memória desses epi- evento en la formación de la memoria y sódios viva, estabelecendo uma conexão en- la identidad de Mato Grosso del Sur. tre o passado e o presente e definindo como sendo a identidade sul-mato-grossense. Palabras clave: Celebraciones. Guerra del Paraguay. Retirada de Laguna. Abstract Notas This article focuses on the senses of the 1 ALMA DO BRASIL. Disponível em: . Aces- (1864-1870) in Mato Grosso and Mato so em: 25 mar. 2015. Grosso do Sul. To this end, we analyzed 2 Ofício nº 31, de 23 de julho de 1923, do intendente Arlindo de Andrade. In: ARCA, caixa 4, livro 76-A, the debates concerning the memory, the p. 4 e 4-verso. memory spaces and celebrations; particu- lar, we list as a guideline of our reflections the episode called Laguna Withdrawal Referências (1865-1867), considered the Paraguay War and secondary scenario occurred in ALAMBERT, Francisco. Civilização e barbárie, história e cultura. Representações culturais e Mato Grosso territory. We are interested projeções da “Guerra do Paraguai” nas crises in, especially reflect on the impact of this do Segundo Reinado e da Primeira República. event in the formation of memory and 1999. Tese (Doutorado em História Social) – Mato Grosso do Sul identity. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu- manas, Universidade de São Paulo, São Paulo, Keywords: Celebrations. Paraguayan 1999. War. Laguna Withdrawal. AMARILHA, Carlos Magno Mieres. Os in- telectuais e o poder: história, divisionismo e Resumen identidade em MS. 2006. 252f. (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas, Este artículo examina el significado de Universidade Federal da Grande Dourados, las celebraciones sobre la Guerra del Dourados, 2006. Paraguay (1864-1870) en Mato Grosso CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, y Mato Grosso do Sul; para esto nos re- Acyr V. História de Mato Grosso do Sul. Campo ferimos a las discusiones relativas a la Grande: Instituto Histórico e Geográfico MS, memoria, a los espacios de memoria y 2002. celebraciones; en particular, enumera- CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. mos como guía de nuestras reflexiones São Paulo: Edusp, 1998. el episodio llamado Retirada de Lagu- CARDOSO, Athos Eichler. Introdução. In: na (1865-1867), considerado como esce- TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. A retirada da nario secundário durante la Guerra del Laguna: episódio da Guerra do Paraguai. Bra- Paraguay y se produjo en territorio de sília: Senado Federal, 2011. Mato Grosso. Nos interesa, sobre todo

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História: Debates e Tendências – v. 15, n. 2, jul./dez. 2015, p. 383-397 CONNERTON, Paul. Como as sociedades recor- ______. Cartas da campanha. A cordilheira. dam. Tradução de Maria Manuela Rocha. 2. ed. Agonia de Lopez (1868-1870). São Paulo: Me- Oeiras: Celta, 1999. lhoramentos; Rio de Janeiro: Cayeiras, 1922. CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato ______. Cartas da campanha de Matto Grosso Grosso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do (1865-1866). Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, Livro, 1969. 1944. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janei- ______. Céus e terras do Brasil. 9. ed. Viagens ro: Record, 2000. de outrora. 3. ed. Paisagens brasileiras. 2. ed. São HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A in- Paulo: Melhoramentos, 1948. Volume único. venção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, ______. Diário do Exército (1869-1870). A cam- 1994. panha da Cordilheira e de Campo Grande a NORA, Pierre. Entre a memória e história. A Aquidabã. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exér- problemática dos lugares. Tradução de Yara cito, 1958. Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, v. 10, ______. Dias de guerra e de sertão. 3. ed. São p. 7-28, dez. 1993. Paulo: Melhoramentos; Rio de Janeiro: Cayei- NUCCI, Silvio Di. OF/GAB/SEC nº 0855/2004, ras, 1927. Ilustrado. de 2 de dezembro de 2004. Campo Grande, ______. Em Mato Grosso invadido (1866-1867). MS, 2004. 2 p. São Paulo: Melhoramentos; Rio de Janeiro: PROST, Antonie. Les monuments aux morts Cayeiras, 1929. culte républicain? Culte civique? Culte patrio- ______. Scenas de viagem: exploração entre os tique? In: NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. rios Taquary e Aquidauana no districto de Mi- Paris: Gallimard, [19‑‑?]. p. 195-225. (La Repu- randa. Rio de Janeiro: Tipografia Americana, blique, v. 1). 1868. SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai ______. Viagens de Outr’ora. 2. ed. São Paulo: ontem e hoje: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul Melhoramentos; Rio de Janeiro: Cayeiras, 1921. (1868-2003). 2006. Tese (Doutorado em Histó- ______. Visões do sertão. 2. ed. São Paulo: Me- ria Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ci- lhoramentos; Rio de Janeiro: Cayeiras, 1928. ências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. ZORZATO, Osvaldo. Conciliação e identidade: considerações sobre a historiografia de Mato ______. A guerra do Paraguai, essa desconhecida. Grosso. 1998. Tese (Doutorado em História Ensino, memória e história de um conflito se- Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên- cular. Campo Grande: UCDB, 2002. cias Humanas, Universidade de São Paulo, São TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. A missão ar- Paulo, 1998. tística de 1816. Brasília: UnB, 1983. ______. A retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai. Tradução e organização de Sérgio Medeiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. (Retratos do Brasil). ______. Campanha de Matto Grosso. Scenas de viagem. 2. ed. São Paulo: Livraria do Globo; Ir- mãos Marrano, 1923.

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