Revista Aeronáutica ISSN 0486-6274 Número 308 2020 PRESIDENTE Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Perez Expediente 1º Vice-Presidente Jul. a Set. 2020 Cel Av Paulo Roberto Miranda Machado 2º Vice-Presidente Brig Ar Carlos José Rodrigues de Alencastro

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SUPERINTENDÊNCIAS Sede Central Praça Marechal Âncora, 15 Sede Central Cel Av Pedro Bittencourt de Almeida Rio de Janeiro - RJ - CEP 20021-200 • PABX (21) 2210-3212 Sede Barra 3 Brig Ar Paulo Roberto de Oliveira Pereira ª a 6ª feira de 8h às 12h e 13h às 17h

CONSELHO DELIBERATIVO Sede Barra Presidente - Ten Brig Ar Paulo Roberto Cardoso Vilarinho Rua Raquel de Queiroz, s/nº Rio de Janeiro - RJ - CEP 22793-100 CONSELHO FISCAL Presidente - Maj Brig Int Manoel José Manhães Ferreira • (21) 3325-2681 4ª a domingo de 9h às 17h30 SEDE CENTRAL COMISSÃO INTERCLUBES MILITARES Diretor Cultural Assessores Clube de Aeronáutica Cel Av Araken Hipolito da Costa Maj Brig Ar Venancio Grossi Diretor Social, Tecnologia da Informação e Hotel Cel Av Araken Hipolito da Costa Cel Av Ajauri Barros de Melo Cel Av Ajauri Barros de Melo

Diretor Administrativo e Chefe da Secretaria-Geral REVISTA AERONÁUTICA Cel Av Théo Salgado Falcão (21) 2220-3691 Diretor Beneficente Diretor e Editor Cap Adm Ivan Alves Moreira Cel Av Araken Hipolito da Costa Diretor Jurídico Conselho Editorial Dr. Francisco Rodrigues da Fonseca Ten Brig Ar Marco Aurélio Mendes Diretor Financeiro e Patrimonial Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Perez Cel Av Bruno Pedra Cel Int Genibaldo Bezerra de Oliveira Cel Av Renato Paiva Lamounier Assessor Secretaria-Geral - Cap Adm Ivan Alves Moreira Cel Av Araken Hipolito da Costa Ten Cel Av Flávio Kauffmann SEDE BARRA Jornalista Responsável 2º Ten QOCON Jor Erika Blaudt Diretor Desportivo Brig Ar Paulo Roberto de Oliveira Pereira Produção Editorial e Design Gráfico Rosana Guter Nogueira Diretor Aerodesportivo Cel Av Luiz Claudio Cunha Ottero Produção Gráfica Luiz Ludgerio Pereira da Silva Diretor de Operações e Diretor Técnico do Dep. Aerodesportivo Revisão Cel Av Pedro Pereira Alonso Ten Cel QFO Dirce Silva Brízida Assessores Administrativo Social - Brig Ar Carlos José Rodrigues de Alencastro Gabriela da Hora Rangel Financeiro - Cel Int Carlos Eduardo Costa Mattos Amanda de Farias Lima Administrativo e Pessoal - Cel Av Luiz dos Reis Domingues Infraestrutura - Ten Cel Av Alfredo José Crivelli Neto As opiniões emitidas em entrevistas e em matérias assinadas estarão sujeitas a cortes, no todo ou em parte, a critério do Conselho Editorial. As matérias são de inteira SEDE LACUSTRE responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista. As matérias Assessor - Cap Esp Met José Renato do Nascimento não serão devolvidas, mesmo que não publicadas. Briefing do Capitão Você pode ler, fazer download Newton Lagares aos seus comandados, ou compartilhar esta revista e da Esquadrilha Verde, as edições anteriores no link antes da missão na Campanha da Itália http://www.caer.org.br/acervo/ e, ao fundo, no P-47, um membro da equipe de terra

Sumário 4 MENSAGEM DO PRESIDENTE 26 PARA QUE AINDA SER CRISTÃO? Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Perez Joseph Ratzinger Papa emérito Bento XVI 5 NOTÍCIAS DO CAER A Redação 30 FIDELIDADE Dietrich Von Hildebrand 7 O PENÚLTIMO VOO Filósofo e teólogo católico (In memoriam) Ghisi Costa Cel Av 34 ANIVERSÁRIO DO MARECHAL 8 DESAFIOS CONJUNTURAIS EDUARDO GOMES Ives Gandra da Silva Martins UMA MEDALHA E ALGUMAS Jurista HISTÓRIAS Ten Brig Ar Astor Nina de Carvalho Netto 10 FOI A SOCIEDADE QUE MUDOU OU O STF QUE SE EXTRAVIOU? Percival Puggina 36 AS GERAÇÕES DA AVIAÇÃO Arquiteto, empresário e escritor DE CAÇA NO BRASIL: PASSADO, PRESENTE, FUTURO? 12 O ALFAIATE, OS CUPINS Brig Ar Teomar Fonseca Quírico E OS MONSTROS Afonso Farias S. Júnior Cel Int 40 A ESTAÇÃO DE HIDROAVIÕES: AS RAÍZES DO INCAER 15 AULA COM CARLOS NEJAR Elaine Gonçalves da Costa Pereira Antonio Carlos Araújo de Melo Ten QOCON His Capitão de Mar e Guerra João Victorino Ferreira Jornalista (In memoriam) 44 A OBRA DE ARTE EM HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 17 ÚLTIMA AUDITORIA DO TCU Carlos Frederico G. Calvet da Silveira NO SIVAM Filósofo Maj Brig Ar Álvaro Luiz Pinheiro da Costa Tiago Cabrera Filósofo 20 A IGNORÂNCIA LETRADA: ENSAIO SOBRE A MEDIOCRIZAÇÃO DO AMBIENTE ACADÊMICO 48 QUASE MORRI... Paulo Roberto de Almeida Reinaldo Peixe Lima Doutor em Ciências Sociais Cel Av MENSAGEM DO PRESIDENTE

Estimados sócios, civis e militares: Estamos entrando na Primavera, a estação das flores, e com elas, a nossa esperança de voltarmos a viver uma vida mais normal, sem essa de “o novo normal”, como estão querendo nos impingir a todo o momento!

Conforme previmos na edição passada, o nosso Clube de Aeronáutica reabriu as suas portas totalmente, no dia 10 de julho. Estamos funcionando plenamente há mais de dois meses. A experiência tem sido gratificante, apesar de ainda não termos recuperado todas as receitas que tínhamos antes da pandemia. A procura atual por aluguel dos nossos salões para eventos particulares e institucionais, mesmo com a autorização legal para isso, ainda é ínfima. A Sede Barra já atingiu um movimento razoável nos finais de semana. As reuniões de turmas da FAB já recomeçaram na Sede Central. É muito bom ver os companheiros se congraçando novamente.

É interessante lembrar que no dia 5 de agosto, o nosso CAER completou 74 anos de existência. Um “jovem senhor” saudável e forte! Infelizmente não pudemos fazer o tradicional Baile de Aniversário, por motivos óbvios, mas iniciamos os trabalhos para realizarmos uma série de atividades alusivas às comemorações dos 75 anos para o ano que vem. Teremos muitas novidades!

Neste exemplar temos muito conteúdo. São vários artigos de todos os tipos: filosóficos, políticos, técnicos e operacionais. Temos no cardápio iguarias para todos os gostos. Ficamos muito felizes e gratificados pelas várias manifestações de carinho e elogios pela edição passada, a de número 307, recebidas por meio de e-mails e telefonemas. Muito grato a todos!

Desejamos bons momentos aos nossos leitores!

Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Perez Presidente do Clube de Aeronáutica

Sede Central CAER REELEGE PRESIDENTE eleição do Clube de Aeronáutica a eleição por “aclamação”, para a posse Cardoso Vilarinho, e contou com a presença A (CAER), ocorrida no dia 22 de se- do Presidente, do Primeiro e Segundo de 36 sócios com direito a voto. Para a pró- tembro, na Sede Central, reelegeu a Vice-Presidentes, dos Conselheiros Efetivos xima gestão continuará na Presidência do Presidência, as Vice-presidências e os e Suplentes do Conselho Deliberativo e Clube, o Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Conselhos Deliberativo e Fiscal atuais dos Conselheiros Efetivos e Suplentes Perez; o Cel Av Paulo Roberto Miranda para manter a instituição firme em sua do Conselho Fiscal do CAER para o Machado, como 1º Vice-Presidente; e o missão de fomentar o círculo militar e biênio administrativo 2020/2022. A AGO Brig Ar Carlos José Rodrigues Alencastro, o pensamento brasileiro e aeronáutico. foi conduzida pelo Presidente do Conselho como 2º Vice-Presidente. A Assembleia Geral Ordinária (AGO) realizou Deliberativo, Ten Brig Ar Paulo Roberto Desejamos muito sucesso a todos! NOVOS INTEGRANTES NO VIVEIRO ovos integrantes chegaram na Sede Central do Clube de Aeronáutica (CAER) N para morar no seu jardim: dois exemplares de Grou Coroado. Cada um mede mais de 1,2 m de altura, sua envergadura chega a dois metros e estão no viveiro, patrimônio histórico tombado há décadas, que fazia parte da Estação de Hidroaviões do Aeroporto Santos-Dumont (leia mais na página 40). De andar elegante e com um penacho amarelo na cabeça, que se assemelha a uma coroa, essas aves exóticas pertencem à família gruiformes, denominada Gruidae, a mesma de jacamim, saracura, frango-d’água, pavão-do-pará, siriema... Alguns vivem na América do Norte, Europa, Ásia, África e no norte da Áustrália. Originários da África, os novos integrantes são machos e vieram de cativeiro. Os novos moradores do CAER são considerados sagrados em algumas regiões do continente. Estudos apontam que são pássaros gregários, que se comunicam entre si por meio de vocalizações ruidosas. São migratórias e voam sempre com o pescoço estendido. Na época de reprodução constroem um ninho feito de lama e vegetação em regiões pantanosas, onde colocam dois ovos. Os juvenis recebem a atenção de ambos os progenitores. As aves são regularizadas, cadastradas no IBAMA e possuem Nota Fiscal e Certificado de Origem. Elas chegam para desejar um cotidiano mais colorido a todos.

5 j REVISTA AERONÁUTICA RECEBE NOVOS CONSELHEIROS EDITORIAIS

Conselho Editorial da Revista O Aeronáutica recebe mais dois mem- bros para contribuir com as suas edições futuras: Cel Av Bruno Pedra e Ten Cel Av Flávio Kauffmann. Eles passam a integrar o Conselho Editorial, que é formado pelo Ten Brig Ar Marco Aurélio Gonçalves Mendes; pelo Presidente do CAER, Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Perez; pelo Cel Av Renato Paiva Lamounier; e pelo Diretor do Departamento Cultural do Clube, Cel Av Araken Hipolito da Costa. No dia 20 de agosto foi realizada uma reunião, na Sede Central do CAER, com todos os membros, a fim de apresentar o periódico, o fluxo do processo editorial e também fazer a devida recepção aos novos conselheiros. O Ten Brig Mendes participou da integrantes contribuirão com o processo Da esquerda para a direita, parte do conselho editorial, Cel Av Bruno Pedra, reunião por meio de vídeo-chamada e, editorial e com a renovação constante da Maj Brig Ar Marco Antonio Carballo Perez, assim como o Brig Perez, saudou os linha editorial desta tradicional revista. Cel Av Renato Paiva Lamounier, Cel Av Araken Hipolito da Costa novos membros e desejou um novo reco- Sejam bem-vindos ao Conselho e Ten Cel Av Flávio Kauffmann meço para o Conselho Editorial. Os novos Editorial! GRUPOS PENSAMENTO BRASILEIRO E AERONÁUTICO RETOMAM OS ESTUDOS encontro dos Grupos de Estudos Pensamento Brasileiro e O Aeronautico, deste ano, foram retomados (parte on-line, parte presencial), em agosto e setembro, respectivamente, na Sede Central do Clube de Aeronáutica, para fomentar debates e voltar-se ao pensamento filosófico, posicionando o CAER como A Casa do Pensamento Brasileiro. O Grupo de Estudos do Pensamento Brasileiro tem estuda- do sobre o culturalismo e a sociedade para a implementação do Curso EAD (Ensino a Distância). Promovido há dez anos pelo Departamento Cultural do CAER, o estudo resultou neste curso que objetiva oferecer informaçes relacionadas à filosofia nacional para se entender melhor as questoes de brasilidade e da propria cultura brasileira. Já o Pensamento Aeronáutico começou neste ano contando com os conselheiros editoriais da Revista Aeronáutica para compor o grupo, que se desdobrará nas reflexões direcionadas por princípios filosóficos para a construção da soberania nacional e aeronáutica. j 6 O PENÚLTIMO VOO

Ghisi Costa Cel Av TTC (Tarefa por Tempo Certo) no CINDACTA II (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo em Curitiba/PR) [email protected]

endo voado por um longo tempo na aviação brasileira, incluindo Tos marcantes voos na aviação de Desenho de Luis Henrique, Caça, fiquei pensando em como deverá meu filho, entregue no dia do meu aniversário ser a despedida desta vida para aquela outra, a definitiva, aquela que nos leva diretamente ao encontro do nosso Criador. É o que a minha querida e saudosa Vó Maria chamava de “viaginha”. Penso que esta pequena e derradeira viagem, caso seja eu um bom Cristão – estou me esforçando para tal, será pro- vavelmente um voo calmo, com o próprio Jesus ao meu lado, como sempre Ele esteve, dentro da nacele do avião, dando as instruções sobre velocidade, nível de voo, e outros procedimentos operacionais tão conhecidos pelo pessoal da aviação. Ou talvez, seja um pouco diferente e até mais emocionante. Um voo de elemento, ou seja, uma formação de dois aviões, sendo Jesus o líder, no avião à frente, e eu, como um bom ala operacional, devidamente posicionado pouco atrás, seguindo todos os movimentos e a direção do avião líder. Ok, câmbio. Este voo já está quase tudo combinado, faltando acertar apenas alguns detalhes. Em outros tempos já sonhei bastante que é um sinal do Criador, um aviso Mas, o que me deixa mais alerta e com os voos na Caça. Depois, foi rareando, demonstrando que estou pronto para o ansioso é sobre o outro voo, o anterior ao e, por um longo tempo, não mais sonhei voo final. último, aquele que é pré-requisito para o com eles. Certamente que, ao chegar deste voo final, quando, em sonho, será recor- Mas, em tempos mais recentes, voltei penúltimo voo, se der tempo, ainda pegarei dada e revivida grande parte dos demais a sonhar com tais voos. Acontece que, mais uma vez a minha caderneta de voo já voos que eu realizei durante a vida. Quando nestes sonhos, nunca chego a decolar. envelhecida pelo tempo e ali anotarei os serão relembrados os amigos da Caça, os Lembro-me de já ter colocado o macacão, seguintes dados: instrutores, os esquadrões e as cidades o equipamento anti-G, as fitas restritoras Identificação: Joker126 (Pacau47). por onde passei, as viagens, os briefings e o capacete. Já assisti a vários briefings. Penúltimo voo realizado com sucesso. e os diferentes tipos de voo, incluindo Certa feita até já cheguei a entrar no avião e Conceito: Voo Bom. o emprego do armamento, o tiro aéreo, dar a partida e realizar o táxi até à cabeceira Resultado: piloto promovido a líder de a formatura tática, as comemorações e da pista. Porém, nunca, jamais, nunca esquadrilha celestial. até os momentos de descontração no cheguei a decolar para este voo. Comentário final: piloto apto a realizar esquadrão. O penúltimo voo. Quando isto acontecer, saberei o voo finaln

7 j DESAFIOS CONJUNTURAIS

Fragmento de tecido Seda França - Lyon, 1760-1765 j 8 Ives Gandra da Silva Martins Jurista, advogado, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, escritor e presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio/SP [email protected]

crise mundial provocada pela ciedade, envolveu-se também com tomada parlamentares, apoiadores do presidente, Covid-19 está longe de uma solução, de posição sobre a conjuntura nacional. serem investigados, sofrerem buscas e Avisto que, apesar dos esforços de Começo pela presidência. Eleito pelas apreensões, perdendo, pela não defesa de cientistas de todo o mundo, não se encon- redes sociais, contra a maioria dos grandes sua autonomia e liberdade de expressão, trou, ainda, uma vacina contra a insidiosa veículos de comunicação, terminou se protagonismo no debate Judiciário versus doença e restam muitas dúvidas sobre o indispondo com a clássica mídia – não Executivo. seu espectro. Se o problema concernente saberia dizer se por ação ou reação – pas- Os três poderes foram tratados no à saúde continua grave e preocupante, o sando a ter a imprensa, em grande parte, título IV da Constituição Federal, muito problema econômico não é menor, exigindo contra ele. Dessa forma, só o que não vai embora a defesa do Estado e das institui- reformulação dos padrões clássicos de bem no governo é noticiado. Exemplifico ções democráticas, em momentos de crise, planejamento para compensar, em termos com o noticiário sobre o coronavírus. O tenha sido disciplinada no título V. Tem a de elevada queda do PIB, a alavancagem Brasil, por sua população, está, em núme- seguinte dicção: “Da Defesa do Estado e da recuperação futura, na qual alguns ele- ros absolutos, em segundo no ranking de das Instituições Democráticas”, dividido em mentos de difícil contenção e compressão mortes no mundo. Em números relativos, quatro partes (Estado de Defesa, de Sítio, permanecem, a despeito do preço que a todavia, estava em décimo nono lugar ainda Forças Armadas e Segurança Pública). sociedade está pagando, como é o do custo na semana passada. Embora tenhamos em Estamos num Estado democrático de burocrático dos governos mundiais. torno de 50 mil mortos, temos também, direito (artigo 1º), em que os poderes devem A queda do PIB em todos os países pro- aproximadamente, um milhão de brasileiros ser harmônicos e independentes (artigo 2º). voca menos receita tributária para sustentar curados. Os dados positivos não são Estou convencido de que chegou o mo- a máquina administrativa pesada que exige trazidos ao público pela maioria da grande mento de os três poderes dialogarem a bem os mesmos recursos pré-pandemia de uma imprensa. Outro exemplo: o maior programa do país, pois as soluções para os desafios sociedade fragilizada, com redução de dis- social da História do Brasil, ou seja, os atuais poderão ser comprometidas pela ponibilidades para investimentos e sensível seiscentos reais distribuídos para dezenas inoportunidade dessa crise entre poderes. aumento do desemprego no mundo. de milhões de brasileiros, que exigiu uma Temos necessidade de duas reformas fun- As políticas econômicas globalizadas logística fantástica em montagem e rapidez, damentais para permitir o Brasil começar cedem terreno às políticas nacionais, à luz só é lembrado pelos poucos milhares de a se levantar da violenta queda do PIB, do da necessidade das nações de enfrentar pessoas que ainda não receberam. desemprego e da perda de competitividade. os efeitos deletérios da crise, em nível O Poder Judiciário, cujos ministros, De uma reforma tributária e de uma reforma não simétrico. A exigência de preservação indiscutivelmente, são competentes e administrativa. Na primeira, abandonaria em cada país de sua força produtora gera idôneos, na adoção do “consequencialismo as grandes mudanças constitucionais e um retorno, pelo menos provisório, à jurídico”, que se auto-outorgou de poder passaria a uma reforma simplificadora da teoria de “Mateus, primeiro os teus”, visto invadir competências de atribuições e legislação ordinária para facilitar a com- que a ajuda dos países mais ricos ou de legislativas de outros poderes, viu todos os preensão da caótica legislação brasileira. organismos internacionais aos emergentes seus ministros, escolhidos pelos presiden- Seria mais simples, mais rápida e mais ou às nações mais pobres terá redução tes anteriores, sentirem-se com a missão útil. Na segunda, se não fizermos uma considerável, além de sensível impacto no civilizatória de corrigir o que consideravam “lipoaspiração” no tamanho da burocracia comércio internacional. errado na atuação dos outros poderes, e da Federação, reduzindo a esclerosada Todos os governos do mundo en- com o que passaram a ter uma atuação, máquina administrativa, o Brasil estará frentam os mesmos dilemas. O Brasil além da Constituição, de caráter também condenando, para benefício de uns poucos, acrescentou uma terceira crise, desde a político, estimulada pelo apoio da mídia gerações futuras de brasileiros. saída cinematográfica do ministro Sérgio antipresidente, com o que as declarações O momento é de efetivas crises, econô- Moro, que, como magistrado, passou à de Bolsonaro e de ministros do Pretório mica e de saúde. Que os nossos dirigentes História do Brasil no combate à corrupção, Excelso, são, constantemente, objeto de discutam os problemas de divergências ou seja, uma crise política, na qual os três posicionamentos não jurídicos. Já não políticas quando a nau da Federação tiver poderes estão envolvidos, até mesmo falam somente nos autos, mas também fora deixado o tormentoso mar das duas crises, em manifestações de seus dirigentes à deles. O Legislativo, por outro lado, a todo pois, caso contrário, o mar sorverá essa imprensa, que, como quarto poder da so- o momento, por meras suspeitas, vê seus nau com seus passageiros n

9 j FOI A SOCIEDADE QUE MUDOU OU O STF QUE SE EXTRAVIOU? j 10 Percival Puggina Membro da Academia Rio-Grandense de Letras, arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de jornais e sites no país. [email protected]

ão podemos mais tolerar essa da liturgia mero pacote de instrumentos situação que se passa no para cumprir, naquele impróprio cenário, “NMinistério da Saúde. Não é objetivos inerentes a seu fervor político ou aceitável que se tenha esse vazio. Pode até ideológico. Todo detentor de mandato eletivo se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo deve ter consciência da dignidade inerente do governo federal, é atribuir a responsa- à representação da sociedade, sabendo bilidade a estados e municípios. Se for que esta pode elevar-se com ele, ou com essa a intenção, é preciso se fazer alguma ele soçobrar. Testemunhei tempos em que coisa. Isso é péssimo para a imagem das tudo isso era intuitivo. Depois, presenciei Forças Armadas. (...) É preciso dizer isso parlamentares sequestrando plenários, de maneira muito clara: o Exército está arrancando papéis das mãos do presidente se associando a esse genocídio, não é da Casa, instalados como farofeiros na mesa razoável. É preciso pôr fim a isso.” (ministro da presidência... E assisti ao processo pelo Gilmar Mendes) qual a negociação própria dos parlamentos Seria necessário ter problemas neuro- deslocou-se de sua essência deliberativa lógicos para que, mesmo sem capacidade para ingressar, pragmaticamente, no mundo de leitura e interpretação, os sentidos não dos negócios. bastassem para identificar nessas palavras Um magistrado, e de modo especial um o ânimo agressivo e o assumido viés político ministro do STF, deve ter a compostura de do ministro. Conforme demonstrei em artigo magistrado, não deve ser alguém em busca anterior, Gilmar Mendes não é o único a de notoriedade e de protagonismo político. explicitar esse “ponto de vista”. Outros Deve falar pouco, preferivelmente nos autos; colegas seus, em recentes declarações, trabalhar muito, preferivelmente no Brasil e deixam vazar o mesmo pendor, o mesmo em sua atividade. Uma vida pessoal discreta, estado de espírito e se comprimem sobre o igualmente lhe cai bem. mesmo ponto de vista em relação ao Poder Diferentemente, o ministro Gilmar Executivo. Todos esses casos são típicos de Mendes e seus colegas se creem pedago- um fenômeno em curso no Brasil, afetando a gos gerais da República e de seus cidadãos. harmonia e a ordem na sociedade. Assumem-se como fornecedores do bem em Refiro-me a algo muito escasso entre forma de texto autografado (o que já seria nós, que se pode definir como adequação uma pretensão abusiva), e também em forma consciente do agir ao ser. Sim, o que direi de palpites grosseiros, formulados com as a seguir, se aplica, também, ao presidente razões do fígado, a custo zero para uma da República. Todo professor, por exemplo, imprensa ávida pelos bocadinhos de intriga deve ter a consciência da importância que isso possa gerar. Como surpreender-se do ser professor, não pode assumir-se alguém com o somatório de desgostos que como “trabalhador em Educação”, nem agir causam aos cidadãos? Será meramente como militante de causas políticas e, muito casual o fato de nunca antes haver o menos ainda, despejar sobre seus alunos STF experimentado tais antagonismos na as ditas narrativas com que o conhecimento sociedade? Foi a sociedade que mudou é emprestado e a realidade dissimulada. ou o STF que se extraviou? Nenhum dos Retrato de Duval de L’Epinoy Todo religioso deve identificar-se como onze ministros se pergunta: “por que esse Maurice-Quentin de La Tour Pastel tal, no vestir, no falar e no agir; não pode sentimento em relação a nós, agora quando França, 1745 fazer do altar palanque de comício, nem eu estou aqui?”. Alô? n

11 j O ALFAIATE, OS CUPINS E OS MONSTROS

esde o início de março que a para sempre! Definitivamente, a população mil, tornando-se, de longe, o menor núme- sociedade assiste episódios de- sentiu na pele todas as ausências que eles ro entre países desenvolvidos do G-7. Em Dsencontrados, estapafúrdios e de produziram. Toda a mentira que impuseram Tóquio, com alta densidade populacional, grande desinformação nas comunicações por algumas décadas. os casos caíram para um dígito na maioria endereçadas ao cidadão brasileiro. Uma Considerando o Brasil em sua exten- dos dias. Em virtude dos rastreadores de cesta de incertezas foi jogada na sala dos são e complexidade, muitos conhecem contato existentes no Japão, aos primeiros lares nacionais: proibições, recomenda- a diversidade regional nacional e sabem sinais das infecções, a resposta foi rápida, ções, equívocos, medidas acertadas e que a problemática da pandemia tem uma vez que seus centros de saúde outras exageradas. Pouco falaram dos comportamento diferente nas regiões e, pública (que, na normalidade, rastreavam alfaiates, prevaleceram os cupins e os por isso mesmo, não pode ser resolvida infecções – como influenza e tuberculose) monstros. com procedimentos únicos. É como o agiram com velocidade e precisão. Os monstros são aqueles que se alfaiate atua: vê medidas, curvas, retas, Quanto à Coreia do Sul, não houve qua- apropriaram da morbidez da notícia, da postura, faz recomendações apropriadas, rentena decretada pelo governo nacional. divulgação do tenebroso e da massificação testa e entrega o serviço/produto. A Ruas e transportes públicos continuaram da desgraça. São pessoas, jornais, canais saúde, a economia e a segurança pública na frequência normal. Empresas e pessoas televisivos, mídias sociais e profissionais não podem atuar estanquemente. Não se continuaram suas vidas normalmente. da saúde comprometidos com o sistema pode separar a realidade nem muito menos Máscaras não foram impostas, mas reco- (político partidário ou enviesados pelo esquecer dela. O vírus é real, letal e tem de mendadas – raro presenciar alguém sem mercado). Espalharam o medo, o terror e o ser combatido nos espaços conforme o a proteção pelas ruas e estabelecimentos. pavor... Geraram o conteúdo para florescer seu comportamento e disposição de meios Em prédios públicos há controle mais a histeria. E construíram o alicerce para localizados. Fechar tudo; isolar todos; rigoroso: verificam temperatura, tem álcool derrubar a economia e renascer a crimi- retirar direitos constitucionais consagrados em gel na entrada, anotam seus dados. nalidade – nas diversas acepções. da população; e fazer a gestão do medo Entretanto, em mercados e em outros Em segundo plano, mas não menos não é, e nunca será, uma medida eficaz lugares privados não têm isso. O país ativos, estão os cupins da República. Nas de combater vírus ou qualquer outro vetor. controlou, de forma rigorosa, a entrada de sombras, escondidos e promovendo a Japão e Coreia do Sul são exemplos da boa pessoas no país. Qualquer pessoa (nativa discórdia, a polêmica e o caos. Pessoas atuação nesse parque de impropriedades ou não), viajante, ao chegar no território que estiveram no poder e criaram a pandêmicas. Atuaram como alfaiates no coreano tinha de pagar US$1.400 para derrocada das estruturas e sistemas dos tecido social. Observaram, discutiram a ficar de quarentena por duas semanas diversos segmentos nacionais. Dirigentes situação, lançaram medidas pontuais, tes- em alojamentos do governo. Os testes de e governantes alheios à vontade do povo taram e acompanharam continuadamente verificação são gratuitos a qualquer hora, e preocupados somente com a conquista o desenvolvimento da covid-19 em seus para todos que estejam por lá. e manutenção de poder, exalaram vene- territórios. No Brasil, somas vultosas de dinheiro nos verbais aos quatro cantos. Quando No Japão, o estado de emergência foram destinadas aos estados – pelo estavam em seus cargos, pouco ou nada deve terminar em breve (em algumas se- governo federal, e muitos equipamentos fizeram em prol do desenvolvimento manas), com novos casos de coronavírus e materiais distribuídos pelo Ministério humano dos brasileiros. Afastados do tendo diminuído para meras dezenas. Não da Saúde e pelas FFAA para várias poder, colocam-se como vestais e gênios foram impostas restrições à mobilidade localidades necessitadas. Já começam da política e/ou da gestão da coisa pública. aos habitantes e empresas. Não foram a surgir, no entanto, as denúncias de Responsáveis por corroerem as bases implantados aplicativos de alta tecnologia irregularidades na contratação de serviços de sustentação da saúde, da educação e que rastreavam os movimentos das pes- e aquisição de materiais e equipamentos da segurança pública do Brasil, querem soas. Por lá, não há um centro de controle para combater a pandemia. A politicagem expor soluções e dizer qual o melhor de doenças. O país testou apenas 0,2% engoliu o vírus e o trem viaja desgover- caminho a trilhar. São canalhas, patifes da população, uma das taxas mais baixas nado. Em futuro próximo, o povo saberá ou criminosos? Esses insetos merecem entre países desenvolvidos, mas conseguiu discernir sobre essas questões. O advento o ostracismo e o total desprezo da nação, achatar a curva, com mortes bem abaixo de da República, em 1889, por certo, não j 12 Afonso Farias S. Júnior Cel Int O ALFAIATE, OS CUPINS E OS MONSTROS Professor e Doutor em Desenvolvimento Sustentável [email protected]

fez bem ao país. Favoreceu uma oligar- quia que queria poderes absolutos e o empecilho era um imperador bem quisto e amado pela população da época. Essa oligarquia vem revezando poder desde então – a qualquer custo e, de certa forma, age criminosamente, como em 1889 e nos mais variados episódios da História recente do Brasil. Em 27 de junho de 2020, os números do Ministério da Saúde para covid-19 são os seguintes casos confirmados: 1.313.667; óbitos: 57.070; mortalidade/100 habitantes – 27,2; incidência/100 habitan- tes – 625,1; e recuperados – 715.905. A região mais impactada pela doença é a Sudeste e, em seguida, a Nordeste. São Paulo está com mais de 265,6 mil casos e 14,3 mil óbitos. O Rio de Janeiro tem 108,8 mil infectados e quase 9,8 mil mortos pelo novo coronavírus. No Nordeste, os estados mais impactados são Ceará (106,6 mil ca- sos e 5,6 mil mortos); Pernambuco (57 mil casos e 4,7 mil mortos) e Maranhão (78,1 infectados e 1,9 mil óbitos). O Amazonas destaca-se no Norte, com 69 mil infectados e 2,7 mil óbitos. Esse é o quadro da doença nos estados mais impactados, em 27 de junho de 2020. O sistema de saúde arrasado e funcionando em frangalhos, os fracos resultados educacionais continuados nos últimos 30 anos aliados ao fortalecimento do crime organizado, juntamente com a politicagem desenfreada, desmedida e leviana, cooperaram para as estatísticas acima dispostas. Urge modificar a essência da Constituição Federal em vigor, que coopera com a judicialização interminável das questões políticas e reduzir ou findar com o ativismo judicial. Finalizando, melhorar a qualidade dos integrantes dos

três poderes constitucionais – nas três Pato Bravo Morto esferas públicas – retirará o Brasil do de- Albrecht Dürer Alemanha, 1502 sastre e contemplará desejos e aspirações Aquarela e tinta opaca pretendidos pelo povo. O povo decidirá n sobre pergaminho

13 j La Maison Tellier Texto Guy de Maupassant e aquarela e caligrafia de Henri Maigrot vulgo Henriot França, 1897 j 14 AULA COM CARLOS NEJAR Antonio Carlos Araújo de Melo Capitão de Mar e Guerra [email protected] João Victorino Ferreira Jornalista (In memoriam)

escritor gaúcho Carlos Nejar, quistaram a cidadania pelo fato de viverem comovem, com a terra prometida em seus dos mais atuantes membros da intensamente esta terra, como foi o caso dizeres. Depois nos trouxe os poemas do OAcademia Brasileira de Letras, do Padre José de Anchieta. Outros, embora Padre José de Anchieta, escritos na areia e voltou ao Curso do Pensamento Brasileiro, brasileiros natos, tratavam de temas afins preservados na memória; os célebres e tão no Clube de Aeronáutica, para um voo com o Brasil, mas aqui não viviam, como atuais ‘Sermões’, do Padre Antonio Vieira; rasante sobre a literatura brasileira, desde Gonçalves Dias, para citar um exemplo. Gregório de Matos; os épicos de Basílio da os primeiros escritos deixados por Pero Vaz “Também me considerei instigado Gama louvados por , a de Caminha, quando da chegada à Terra de pelo palestrante, quando sugeriu que quem dedicou muitas loas e o considerou o Santa Cruz. refletíssemos a respeito da sutil distinção grande gênio da nossa literatura, ressaltan- Como bem lembrou o CMG Antonio acadêmica entre os termos poesia e poema. do que foi ao mesmo tempo uma expressão Carlos, este voo rasante decola com as Degustei as palavras dele ao comentar que de sua época e uma exceção a ela; Cláudio reflexões da literatura sobre a alma indígena a poesia não é gênero textual e não está Manoel da Costa; Cruz e Souza, que afirmou (colonizado), passando pela alma do negro necessariamente relacionada à palavra ser o nosso ‘Dante negro’; Gonçalves Dias (escravizado) e pela alma do oprimido escrita. Enfatizou isso dizendo que um e o seu inigualável ‘Juca Pirama’; Álvares social, sendo esta última escala objeto de belo quadro ou uma escultura podem estar de Azevedo; , o mais intensa ebulição cultural, em que os mo- repletos de poesia sem que tenham uma popular entre os românticos; Alphonsus dernistas foram projetados, nacionalmente, única letra, uma única palavra. de Guimaraens, a quem reconheceu como pela Semana de Arte de 1922. “A referida sutileza me levou a apro- o ‘Petrarca brasileiro’; ; e Nejar lamentou profundamente que fundar uma pesquisa sobre a mencionada , que considerou um marco. as obras literárias não estejam no foco diferença, que me permitiu concluir que a “Abordou a obra de Clarice Lispector, primordial dos cadernos culturais dos poesia é um gênero de composição poética, um dos ‘monstros’ mais temidos da nossa jornais e revistas. Também deixou clara e poema é a obra desse gênero. Poema é literatura, um trabalho onde impera a subje- a sua tristeza, pelo fato de não termos o objeto poético e o texto onde a poesia tividade. Uma autora ímpar, que causou um escritores brasileiros indicados ao Prêmio se realiza.” impacto imperecível, com a densidade e a Nobel, sendo que apenas um autor da língua elegância de sua escrita. Também ressaltou portuguesa foi agraciado: José Saramago. A RIQUEZA LITERÁRIA a importância de outra mulher na nossa Maria Aline Soares Brito é uma aficio- história literária: Cecília Meireles. AFINIDADE COM A NAÇÃO nada pelas Letras. Sentiu uma incomensu- “Guimarães Rosa foi lembrado por Segundo a percepção do Cel Av Paulo rável paixão de Carlos Nejar pela literatura ‘Grande Sertão, Veredas’, que Nejar consi- Fernandes da Silva, “o palestrante discorreu brasileira, “o que transbordou no decorrer derou como sendo a sua obra mais impor- sobre as mais expressivas obras literárias de toda a explanação”. tante e responsável pela invenção de uma produzidas desde épocas mais remotas. “É sempre muito bom reconhecer que nova língua, que possibilitou o entendimento Percorreu diversos séculos, mostrando os nossos melhores intelectuais já não de um Brasil até então desconhecido pelos o trabalho de escritores que sempre dão mais as costas à nossa literatura, tão próprios brasileiros. demonstraram imensa afinidade com este rica e peculiar. Reconhecem e a admiram, “Carlos Drummond de Andrade não território, com a nação que nele foi forjada, sem compará­la a ninguém, nem a todos poderia estar ausente. Lembrou o tradicional fruto da miscigenação de nativos com os aqueles que cantam sua cultura e seu povo ‘No Meio do Caminho’, onde a tônica da conquistadores brancos e os escravos através de ficções bem inventadas. A escrita pedra é a marca. E também citou ‘E Agora negros. é sempre uma invenção, uma invenção José?’, cujos versos se encaixam no atual “Alguns desses primeiros literatos nem humana. momento em que vivemos. sempre eram brasileiros natos, mas con- “As ‘Cartas de Caminha’ até hoje nos “Não fugindo às suas raízes gaúchas,

15 j lembrou Mario Quintana, alertando que o MEXENDO NA MEMÓRIA ram nesse período (chegada da Família Real conjunto da obra exprime um particular E INFÂNCIA portuguesa e a Independência, em 1822) entendimento dos fatos, dos costumes, e Alfredo Muradas Dapena alegou que influenciando a literatura de José de Alencar uma intuitiva compreensão dos homens e a palestra mexeu com a sua memória e o (‘O Guarani’), Gonçalves de Magalhães da vida. Em um só verso, em uma pequena fez lembrar-se dos tempos de infância e (‘Suspiros Poéticos e Saudades’), Castro historieta ou ainda em breves reflexões, juventude. Alves (‘Espumas Flutuantes’), Gonçalves Quintana comprova a sua inclinação para o Disse que “pudemos acompanhar Dias (‘Primeiros Cantos’), Casimiro de coloquial, para a palavra liberta de medida, as figuras significativas da nossa história Abreu, Álvares de Azevedo, traços que identificarão a sua obra para e as suas expressões literárias”. Como e Teixeira e Souza. sempre.” Nejar comentou, a cultura é a maneira de “Trouxe também informações sobre o ser de um povo e as artes se constituem realismo/naturalismo da segunda metade UM BOM PANORAMA na maneira da cultura se exprimir. Assim, do século XIX, em que a realidade social, Luba Sampaio enalteceu o aprendizado pelas artes nós acompanhamos a evolução cenas cotidianas, conflitos humanos, crítica pela nossa literatura, “desde as primeiras da história de um povo. e visão irônica surgiram numa linguagem linhas através da ‘Carta de Pero Vaz de O escritor lembrou que a literatura é o popular, como o fez Machado de Assis Caminha’, passando pelos missionários conjunto de obras literárias, de reconhecido (‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’), evangelizadores e chegando às ‘Espumas valor estético, pertencentes a um país, Aluizio de Azevedo (‘O Mulato’ e ‘O Cortiço’) Flutuantes’, de Castro Alves; a Gonçalves época, gênero etc., composta de romances, e Raul Pompéia (‘O Ateneu’). Dias e o seu foco no índio, com ‘Minha Terra poesias, poemas, contos, cantos e novelas, “O parnasianismo do final do século XIX Tem Palmeiras’; as ‘Memórias Póstumas só para citar alguns meios de expressão. E e começo do século XX, com o rigor formal de Brás Cubas’, do Machado de Assis; os através dos livros percorreu as fases da nos- e a poesia descritiva foi lembrado pela obra poetas simbolistas; e Guimarães Rosa, sa evolução, desde as origens portuguesas de , Raimundo Corrêa, Alberto de com a sua obra ‘Grandes Sertões, Veredas’, até os dias de hoje, e que marcam a vida do Oliveira e Vicente de Carvalho. dentre outros”. único país a oeste de Portugal que preserva “Surgido no final do século XIX, o Waldyr Rodrigues também se disse esse idioma. simbolismo também fez parte deste roteiro encantado com essa “viagem rápida, porém “Através dessa palestra revivi a fase do Carlos Nejar. Comentou que os poetas profícua através do nosso universo literário”. quinhentista, a de aculturação dos índios, dessa época usavam uma linguagem Navegamos desde a ‘Carta de Caminha’, em que a literatura jesuítica se destacou abstrata e sugestiva. enchendo as suas marco inicial, que profetizava o surgimento através do Padre José de Anchieta e do obras de misticismo e religiosidade, de escritores até chegarmos a Mário Padre Antonio Vieira (‘Sermão de Santo como encontrado em Cruz e Souza e em Quintana e outros autores contemporâneos. Antônio ou dos Peixes’); o barroco, no Alphonsus de Guimaraens. “No decorrer desse itinerário, tivemos século XVII, com obras marcadas pela “ (‘Os Sertões’), o Padre José de Anchieta, que escrevia para angústia e pela oposição entre o mundo Monteiro Lobato, Lima Barreto (‘Triste evangelizar os indígenas; o Padre Antonio material e o espiritual, e também onde Fim de Policarpo Quaresma’) e Augusto Vieira, que falava com Deus; Gregório de aparecem figuras de linguagem, como dos Anjos foram mencionados como Matos, ‘Boca do Inferno’; Cláudio Manoel metáforas, antíteses e hipérboles, e aqui representantes do pré-modernismo (1902 da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, os tivemos Bento Teixeira (‘Prosopopéia’) a 1922). Logo a seguir citou Mário de inconfidentes; o poeta dos escravos, Castro e Gregório de Matos Guerra (‘Boca do Andrade (‘Macunaíma’), Oswald de Andrade, Alves; e muitos outros. Em cada uma Inferno’), como principais representantes; , Alcântara Machado e dessas ‘estações’ foram apreciadas suas no século XVIII, o neoclassicismo ou Manuel Bandeira como identificados com características e obras principais. arcadismo, onde o complexo é trocado o modernismo (1922 a 1930). “Mas o tempo, bálsamo para todos por uma linguagem mais fácil, valorizando “Por fim, abordou o neorrealismo os males, agora conspirou contra nós, a natureza e a mulher amada, como foi (1930 a 1945), em que destacou ‘Vidas trazendo-nos de volta à realidade. Desta feito pelos escritores Cláudio Manoel da Secas’, de Graciliano Ramos; ‘Fogo Morto’, feita, porém, com a alma mais leve e Costa (‘Obra Poética’), Basílio da Gama (‘O de José Lins do Rego; ‘O Quinze’, de Rachel enriquecida, usando uma imagem citada Uraguai’), Tomás Antonio Gonzaga (Marília de Queiróz; e ‘O País do Carnaval’, de Jorge pelo escritor Carlos Nejar, quando comentou de Dirceu’ e ‘Cartas Chilenas’) e Frei José Amado. Além desses autores mencionou que o espaço de tempo foi curto. Sem de Santa Rita Durão (‘Caramuru’). Vinícius de Moraes, Carlos Drummond sombra de dúvida, porém, suficiente para “A seguir comentou sobre o romantismo de Andrade e Cecília Meireles, como os nos impregnar de cultura e saber.” do século XIX e os fatos históricos que surgi- principais poetas.” n j 16 Broche Libélula René Lalique França, 1897-1898 Ouro, esmalte, crisopraso, calcedônia, pedras da lua e diamantes

Maj Brig Ar Álvaro Luiz Pinheiro da Costa [email protected] ÚLTIMA AUDITORIA DO TCU NO SIVAM Projeto SIVAM (Sistema de tecnologia e gerido com transparência, de dólares estadunidenses), acabou Vigilância da Amazônia) pode ser lisura e eficiência, sempre sob constante três dias antes do prazo contratual de O considerado no Brasil, quiçá no fiscalização. oito anos, implantou mais sensores e mundo, um raro, senão único, exemplo Corroborando esta afirmativa ousa- sistemas do que originalmente previsto, de contrato governamental bem suce- da, basta dizer que o projeto, no valor e ainda deixou de utilizar mais de US$50 dido, terminado dentro do preço e do inicial de US$1.395.000.000,00 (um bi- milhões do financiamento autorizado prazo contratual, com transferência de lhão trezentos e noventa e cinco milhões pelo Congresso.

17 j Infelizmente, por não ter sido cor- resultantes da falência da empresa instalações e testes de aceitação em retamente informado à população, o ESCA, escolhida inicialmente para ser a campo SAT (Site Acceptance Tests) de SIVAM sofreu críticas de todos os gê- empresa integradora brasileira. todo o projeto estavam sendo realizados. neros, a maioria por desconhecimento, Inicialmente fui diretor de Operações Finalmente, creio que mercê de to- mas algumas, também, por interesses da CCSIVAM, durante o período em que das as funções que exerci na Comissão, contrariados, o que levou o Tribunal de as diversas concepções, configurações fui designado como Presidente da Contas da União (TCU) a ter especial e projetos estavam sendo elaborados e CCSIVAM, no começo de 2004, e tive atenção com a fiscalização do contrato, analisados. Depois, de junho de 1999 o privilégio de assinar o Termo de resultando em nove auditorias daquela a junho de 2001, fui designado como Encerramento do Projeto, em 22 de julho egrégia corte sobre o projeto, durante chefe da 2a Comissão de Fiscalização e de 2005, três dias antes do prazo final os oito anos de sua execução. Recebimento de Materiais e Serviços nos do contrato. Esta atenção especial, apesar de Estados Unidos (COMFIREM – SIVAM), Legal e contratualmente, fomos incômoda, por trabalhosa, foi até con- que foi responsável pelo recebimento em inclusive capazes de implementar mais siderada importante internamente, para fábrica FAT (Factory Acceptance Test) de do que o originalmente previsto, como garantir que a comissão da aeronáutica mais de 95% dos materiais e serviços do por exemplo, os Centros Estaduais de encarregada da gestão do contrato – Projeto SIVAM. Usuários, que não existiam na concepção Comissão de Coordenação do Projeto Voltando ao Brasil, passei um perío- inicial, mas sua necessidade foi consta- SIVAM (CCSIVAM), não relaxasse na do de um ano na ESG, em 2002, depois tada somente durante a implantação fiscalização ou nos processos, buscando do que assumi, no final daquele mesmo do SIVAM. Para tanto, tiramos proveito agir sempre da melhor forma para a ano, a vice-presidência da CCSIVAM, da cláusula contratual de atualização administração pública, o que resultou na no momento em que as obras civis na tecnológica, que determinava que o aprovação das contas em todas as nove Amazônia estavam terminando e sendo fornecimento fosse ao estado da arte no auditorias realizadas por aquele tribunal. recebidas; os materiais chegando; e as momento em que a configuração de cada Infelizmente essas nove aprovações não foram adequadamente divulgadas pela imprensa. A frequência das audito- rias era tanta, sempre com uma equipe de três auditores, dos quais dois eram substituídos na inspeção seguinte, que a CCSIVAM tinha uma sala permanente- mente montada para a equipe do TCU. É importante entender que o SIVAM, que foi quase sempre mencionado como um “sistema”, foi de fato um projeto, com começo, meio e fim, concebido pelo governo brasileiro e não pela aeronáutica, como apresentado pela mídia e, em consequência, entendido de forma incorreta pela maioria da população, tendo terminado e sido legalmente encerrado em 22 de julho de 2005, após oito anos de execução contratual, perscrutada pelas já citadas auditorias do TCU. Eu cheguei à CCSIVAM em março de 1996 e passei então a pesquisar, conhecer e entender melhor o Projeto SIVAM, que começou a ser executado contratualmente em 25 de julho de 1997, Esquema territorial do SIVAM depois de se recuperar dos percalços (Sistema de Vigilância da Amazônia) j 18 subsistema fosse “fechada”. Com isso, Durante nossa visita ao sítio de evacuada com urgência para um hospital não apenas o equipamento era melhor Eirunepé, a tripulação do C-97 da FAB em Manaus. como, normalmente, era mais barato, me informou que, como o Rio Juruá Novamente liguei para coordenar resultando em economia de recursos. estava muito baixo, a cidade só estava com o COMAR 7, informei ao Chefe Curiosamente, já nos últimos me- sendo suprida com balsas de pequeno do DTCEA de Tefé, para conseguir um ses do Contrato do Projeto SIVAM, a calado e, por isso, o aeroporto estava apoio ao chegarmos, e dei a notícia aos CCSIVAM recebeu do Tribunal de Contas com estoque baixo de combustível de auditores do TCU, acrescentando que da União (TCU) a notificação de que aviação. Por isso, os pilotos sugeriram naquela próxima localidade (Tefé) tam- iria realizar mais uma auditoria, a nona, que voltássemos passando primeiro bém havia um dos sítios implementados que deveria ser a última. Nesta, além do por Tabatinga (AM), antes de voltarmos pelo SIVAM, e que eles poderiam ampliar exame administrativo dos processos, para Manaus, onde eles já tinham ainda mais a auditoria que estavam os auditores solicitaram ainda verificar confirmado que haveria como abastecer realizando, se assim o desejassem. Isto in loco, de acordo com o cronograma sem problemas. posto decolamos de Tabatinga para Tefé contratual, o último sítio completado Coordenei a alteração do itinerário e, com o apoio do DTCEA, os auditores na Amazônia, que estava localizado em com o COMAR 7, que autorizou a modi- aproveitaram para também realizar Eirunepé (AM). ficação; contatei o Chefe do DTCEA de uma inspeção rápida daquele sítio, que Para atendê-los, nos deslocamos Tabatinga, solicitando apoio na nossa tem duas áreas separadas, onde seus em aeronave comercial do Rio de chegada; e dei a notícia aos auditores do sistemas, sensores e a infraestrutura Janeiro (RJ) para Manaus (AM), a fim TCU, informando, além disso, que como ficam distribuídos, enquanto a tripulação de pernoitarmos e coordenarmos com o aquela nova escala também possuía um coordenava com o posto de saúde local então COMAR 7 (Sétimo Comando Aéreo dos sítios implementados pelo SIVAM, os procedimentos para o transporte da Regional) o apoio de uma aeronave C-97 eles poderiam aproveitar para auditar menina doente – que estava bastante Brasília da FAB (também implantada pelo os sistemas e sensores que foram anestesiada – e do pai, que embarcou Projeto SIVAM, para apoio aos desloca- instalados naquela cidade, pelo projeto. juntamente com ela. mentos logísticos na Amazônia), ida e Decolamos então de Eirunepé para Finalmente decolamos com o C-97 volta no trecho Manaus (AM)/Eirunepé. Tabatinga, onde, enquanto os pilotos de Tefé para Manaus, chegando somente No dia seguinte decolamos do ae- providenciavam o abastecimento da à noite, apesar de originalmente nossa roporto de Ponta Pelada (na então Base aeronave, os auditores aproveitaram chegada estar prevista para as 15 horas, Aérea de Manaus) às 8 horas, em voo para realizar a inspeção do sistema de com uma ambulância do Exército já direto para Eirunepé. Na chegada, ainda tratamento de água, do radar bidimensio- nos esperando no aeroporto. Isso tudo, em voo, já podíamos avistar o radar nal, do radar e estações meteorológicas depois de os auditores do TCU terem tridimensional local girando, para apoiar de superfície e de altitude (com sensor tido a oportunidade de não somente o controle de tráfego aéreo e a defesa de ozônio), das telecomunicações, da conhecer, inspecionar e aprovar três aérea na área, sob responsabilidade do estação rádio de comunicações com diferentes sítios implementados pelo CINDACTA IV (Quarto Centro Integrado aeronaves, de obras civis de infraes- Projeto SIVAM, mas, principalmente, de Defesa Aérea e Controle de Tráfego trutura e urbanização, dos sistemas de de testemunhar um pouco da realidade Aéreo), sediado em Manaus. segurança etc. da Amazônia e da importância da FAB Após o pouso em Eirunepé recebe- Dado o avançado da hora, almoça- para o apoio ao pessoal daquela região, mos o apoio do Destacamento de Controle mos por lá mesmo, e tivemos inclusive tão carente de recursos e meios de do Espaço Aéreo (DTCEA) local para a oportunidade de visitar rapidamente transporte. que os três auditores do TCU pudessem Letícia, na Colômbia, cidade geminada Esta foi a “saga” daquela última inspecionar todos os sensores e sistemas a Tabatinga, antes de decolarmos de auditoria realizada pelo TCU no SIVAM, ali implantados pelo projeto (estações me- volta. Quando estávamos prontos para aprovando e coroando de êxito esta ini- teorológicas de superfície e de recepção embarcar no C-97 para Manaus, o ciativa pioneira do governo brasileiro. Os de dados de satélites, telecomunicações general comandante da Brigada local auditores puderam avalizar a seriedade terrestres e satelitais, estação de rádio do Exército Brasileiro nos abordou, do trabalho do Comando da Aeronáutica de comunicações com aeronaves, obras perguntando se poderíamos voltar fa- na coordenação, fiscalização e gestão civis de infraestrutura e urbanização, o zendo uma escala em Tefé (AM), porque daquele projeto tão importante para a próprio radar tridimensional, estação de uma adolescente naquela localidade Amazônia, um exemplo singular e des- tratamento de água e efluentes etc.). estava com crise renal e precisava ser tacado nesses tempos de Lava-Jato n

19 j Paulo Roberto de Almeida Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento Econômico, Diplomata @PauloAlmeida53 (Twitter) A IGNORÂNCIA LETRADA: ENSAIO SOBRE A MEDIOCRIZAÇÃO DO AMBIENTE ACADÊMICO

nsaio sobre a crescente deterioração NOTA PRELIMINAR formada na leitura de muitos artigos da qualidade da produção acadêmica 1 publicados. Ebrasileira na área de humanas, Sempre me lembro de um aforismo O uso do conceito de “mediocrização”, examinando a natureza do problema, de quando vou escrever em relação à academia, e não simplesmente suas causas, suas consequências mais um texto a partir do zero, sem notas e em conexão com a televisão aberta, por evidentes e as evidências disponíveis, de sem preparação: “A crase não foi feita exemplo, ou, de maneira geral, com a cultura modo indireto. Ademais das pedagogias para humilhar ninguém”. Pois bem, este de massas no Brasil, pode parecer exagerado freireanas, que estão na raiz da tragédia ensaio não foi feito para humilhar nenhum e indevido, mas me pareceu necessário nas educacional nos dois primeiros ciclos de acadêmico, nem para ofender a categoria, circunstâncias atuais. Em qualquer hipótese, ensino, o sistema de educação superior de modo geral. Apenas desejei externar a mediocridade reinante não é obra de um ou padece de viseiras mentais criadas por uma reflexão feita inteiramente a partir dois acadêmicos; ela é um empreendimento ideologias supostamente progressistas do que constato nos ritos e nas práticas coletivo de longa duração, que já vem desde que deformam a percepção da realidade e acadêmicas, com base na interação com algum tempo no passado recente e que contribuem para a erosão de qualidade nos outros professores, no exame de artigos promete se estender por um tempo ainda diferentes ciclos de ensino. submetidos ao meu parecer e também indefinido no futuro da academia brasileira. j 20 Canapé com assentos de canto Jean-Nicolas Blanchard (marceneiro) e Antoine Rascalon (escultor) França, 1784 Madeiras de nogueira e faia douradas e folha de ouro Tapeçaria dos Gobelins A IGNORÂNCIA LETRADA: ENSAIO SOBRE A MEDIOCRIZAÇÃO DO AMBIENTE ACADÊMICO

NOTA PRELIMINAR 1. O problema depois que a universidade foi inteiramente 2 A universidade brasileira, como todos construída. Formada a partir de escolas e Talvez o adjetivo “letrada” pudesse sabem, é uma construção tardia. Talvez faculdades isoladas na primeira metade ser substituído por um equivalente alguma sumidade acadêmica atribua seus do século 20, a universidade brasileira mais culto, “ilustrada” digamos, para evidentes traços negativos ao chamado só começou a engrenar um sistema de caracterizar a ignorância ostentada “capitalismo tardio” em nosso país, pós-graduação a partir do final dos anos na “parte alta” da sociedade, isto é, qualquer que seja o significado desse 1960: a “substituição de importações” naquela supostamente dedicada ao conceito histórico naturalmente anacrô- nessa área foi um processo lento, ainda conhecimento de alto nível. No meu nico (pois que todo processo complexo não de todo acabado, mas já bastante conceito, porém, essa ignorância não e multissecular, como o capitalismo, consolidado para os padrões habituais dos merece a caracterização “ilustrada”, pois apresenta defasagens temporais em suas países em desenvolvimento. Pode-se dizer se trata mesmo, apenas e tão somente, manifestações concretas, em cada situa- que, do ponto de vista dos procedimentos de cultura “letrada”, na sua acepção mais ção social determinada); mas a verdade administrativos e das técnicas de formação elementar. Com estes “avisos” a toda a é que a mediocrização também é uma e de aperfeiçoamento de pessoal de nível comunidade, agora começo. obra tardia, pois o fenômeno só surge superior, a missão foi razoavelmente bem

21 j cumprida, muito embora as “importações” Sem ter apoio em pesquisas especí- nos anos seguintes, movimento que se ainda permaneçam como um componente ficas os estudos setoriais empiricamente prolongou na República de 1946. Os líderes importante em várias áreas do sistema (o embasados – correndo o risco, nesse militares e civis que comandaram esses que é absolutamente natural e necessário). particular, de algum subjetivismo – é processos nos trinta anos seguintes à Essa construção se deu basicamente possível afirmar-se que o crescimento e Revolução de 1930 foram bem sucedidos sob o regime militar (1964-1985), não a expansão do terceiro ciclo ocorreram em criar um sistema de escolas públicas ocorrendo depois, na redemocratização e paralelamente ao enorme crescimento de qualidade, ainda que bastante seletivo no período recente, nenhuma “revolução” quantitativo e à perda de qualidade dos em sua capacidade de recrutamento – ba- no terceiro ciclo, pelo menos não compa- dois primeiros ciclos de ensino. Existem sicamente a classe média urbana – e ten- rável ao processo de rupturas registrado muitas evidências prima facie de que esses dente a um mínimo denominador comum durante a fase autoritária. Os governos dois processos paralelos e aparentemente – horários reduzidos e reforço limitado de posteriores se limitaram a expandir o contraditórios – embora concordantes mecanismos extraescolares – mais do que sistema, por vezes de forma anárquica, no aspecto quantitativo – aconteceram à ampliação progressiva dos conteúdos e abrindo novos espaços ao setor privado, ao longo das quatro últimas décadas e metodologias. na ausência de investimentos estatais no meia, ou seja, nos 21 anos do regime Essa escola “republicana” funcionava setor, ou na incapacidade de governos es- militar e nos 25 anos decorridos desde a razoavelmente bem, ainda que de modo taduais e do próprio governo central fazê-lo redemocratização. restrito, quando os militares tomaram o de modo compatível com as necessidades Ao longo desse processo de inegá- poder e decidiram fazer uma revolução nas detectadas. Essa expansão se deu de forma vel democratização de oportunidades carências educacionais mais sentidas no mais “elástica” do que sistêmica, bem mais sociais – embora insuficiente e longe de Brasil dessa época: criar uma universidade do lado quantitativo do que qualitativo, ter sido completada, sobretudo devido ao compatível com as necessidades industria- embora se possa dizer que a produção estrangulamento do secundário – os dois lizantes e, sobretudo, operar a implantação ampliada também melhorou sensivelmente movimentos se reforçaram mutuamente e de programas de pós-graduação. Os de qualidade em muitas áreas. consolidaram seus traços mais negativos, militares provavelmente partiram do O que a redemocratização trouxe de evidenciados justamente no elemento pressuposto de que a escola pública já diferente foi, justamente, um simulacro de característico que constitui o elemento estava montada e funcionando adequada- “democratização” das instituições univer- central desta análise: a perda de qualidade mente, e que os esforços mais importantes sitárias, sob a bandeira da “autonomia”. e a mediocrização geral do ensino no Brasil, deveriam ser dirigidos, portanto, para a Na verdade, um aumento extraordinário e em especial em sua vertente “superior”. graduação universitária, em especial para uma forte consolidação do corporativismo a pós-graduação. e do sindicalismo em todas as faixas profis- 2. As causas Recursos foram maciçamente di- sionais, ambos os fenômenos dominados Como para todo fenômeno complexo, recionados a esses dois sistemas, ao por partidos e movimentos de esquerda e a perda de qualidade do ensino público em mesmo tempo em que os dois primeiros pelo chamado “baixo clero” (e, portanto, já geral, no Brasil, possui múltiplas causas, ciclos recebiam os influxos de milhões tendente ao que chamei de mediocrização diversas variáveis intervenientes e diferen- de novas crianças e adolescentes, sob o das instituições). Não existe novidade tes tipos de condicionantes, que foram se impacto do crescimento demográfico e da nesse tipo de “evolução”, mesmo quando alterando ao longo do tempo. urbanização, bastante rápidos no Brasil dos não aceitamos a legitimidade de uma Pode-se, no entanto, tentar isolar anos 60 aos 80. As entidades de fomento cultura de “elite”; o romancista americano algumas causas aparentes que foram cresceram, as bolsas se multiplicaram, James Fenimore Cooper mais conhecido interagindo entre si desde os anos 1960 os salários dos professores universitários entre nós por seu romance histórico bem e que se reforçaram conjuntamente no eram relativamente elevados. pesquisado O Último dos Moicanos – já final do período, ou seja, atualmente, e Paradoxalmente, um dos principais tinha detectado a crescente mediocrização que prometem continuar agindo no futuro fatores da perda progressiva de qualidade da vida intelectual nos Estados Unidos previsível. do ensino público nos dois primeiros ciclos desde o início do século 19, sociedade que Tudo tem início na geração precedente foi a concentração – e a centralização e a não pode ser tida como exemplo de elitismo e no movimento pela reforma do ensino e reconcentração – dos recursos públicos aristocrático, ao contrário: ele indicava o de reforço da escola pública, começado na no terceiro ciclo, este ultraprivilegiado fenômeno como coetâneo ao processo de sequência da Revolução de 1930, continu- pelas autoridades em relação aos dois democratização social, em forte ascensão ado na implantação do Estado autoritário primeiros ciclos e, por isso mesmo, capaz naquele país recentemente independente. no Brasil, em 1937, e em sua consolidação de “produzir” universidades relativamente j 22 dinâmicas ao longo das últimas três neste ensaio, um dos problemas mais mais diretamente a perda de qualidade décadas (sem prejulgar aqui e agora quanto sérios envolvidos nos processos gerais e dos ciclos iniciais de ensino; mas ele é a à sua capacidade de produzir boa ciência). específicos da deterioração da qualidade consequência de anos, mais exatamente O Brasil representa verdadeira anoma- do ensino no Brasil (em vários níveis). As décadas, de ideologias “educativas” mar- lia internacional, provavelmente universal, pedagogias freireanas estão no centro da cadas pelo que existe de mais atrasado na sob a forma de uma pirâmide invertida de tragédia educacional brasileira. Ponto, teoria social contemporânea. Ademais da gastos entre os ciclos. É absolutamente parágrafo. ausência de controles de qualidade, da falta único na desproporção inusitada, e aber- Estou plenamente consciente de de sistemas de metas fixadas e resultados rante, com que são alocados os recursos que as próprias corporações engajadas cobrados – que explicam sua falta de no topo da educação (na verdade transfor- no oficio (e no comércio) educacional produtividade – o que mais distingue a mado em base superior da pirâmide), em no Brasil – em qualquer ciclo – tendem área de humanidades, no Brasil, é uma detrimento dos “primos pobres” dos dois a enfatizar os fatores pecuniários – in- adesão acrítica a correntes e movimentos ciclos de base (e da educação técnico- suficiência dos orçamentos públicos, no típicos do capitalismo atrasado que aqui -profissional, também). Isso em flagrante plano institucional, modéstia ou mesmo vigora. (Parêntese rápido: obviamente meu contraste com o que acontece na maior depressão salarial dos professores, comentário não vale para os que professam parte dos países (notadamente naqueles no plano individual – como estando na a fé religiosa nas alternativas socialistas de melhor performance educacional e de origem de todas as mazelas da educação ao capitalismo, mas estes já pararam de maior produtividade no sistema econômico brasileira. Não descarto, obviamente, ler este meu ensaio desde o começo, se de maneira geral). essa linha explicativa – embora eu prefira é que começaram; quanto a mim, estou Essa desigualdade distributiva não enfatizar o escândalo da pirâmide invertida certo de que o Brasil é um país capitalista, explica tudo, porém, sendo necessário da distribuição de gastos educacionais; ainda que atrasado, mas “condenado” a completar o quadro mediante um fator mas os fatores políticos e ideológicos são se desenvolver no âmbito do capitalismo, causal de natureza mais qualitativa, para mim bem mais relevantes, e mesmo ponto). As concepções dessas correntes representado pelas orientações políticas determinantes, na erosão qualitativa de de “pensamento” são as de um anticapita- e pedagógicas adotadas nos cursos de todos os níveis da educação e de todo o lismo instintivo, as de um forte sentimento formação de professores, especialmente ensino (público ou particular) no Brasil. antimercado, um estatismo exacerbado, nas faculdades de pedagogia (que formam enfim, uma crença ingênua nas virtudes formadores, eventualmente também 3. As consequências da “engenharia social”, características, formadores de formadores). A tese principal deste ensaio provo- aliás, bastante disseminadas em diversas Não é segredo para ninguém que cador – deliberadamente focado nas áreas universidades da região; e, até, em muitas o ensino no Brasil, em geral, e os cur- de humanidades – é a de que, depois de universidades de países perfeitamente sos de pedagogia, em particular, são ter se beneficiado – e beneficiado a socie- capitalistas (como exemplo a França, por tremendamente influenciados – se não dade – com a construção de um sistema isso mesmo em declínio intelectual e com dominados – pelas ideologias tidas por universitário relativamente completo, e baixa produtividade geral nos terrenos aqui “progressistas” (as aspas indicam ob- aparentemente eficiente, com a formação focados). viamente o subjetivismo da expressão), de recursos humanos de melhor qualidade Aqui existe uma correlação circular com ênfase naquelas aproximadas ao que aqueles previamente existentes, a e cumulativa de fatores causais: os marxismo; bem como pelas correntes universidade brasileira deu início a um ignorantes letrados e as corporações pedagógicas identificadas de perto ou de processo de introversão autossustentada, sindicais se multiplicam e se reforçam longe com modismos da área (entre eles o que a levou a se isolar da sociedade e a mutuamente, disseminando tentáculos o chamado “construtivismo”) e com um desenvolver comportamentos entrópicos e por todos os poros universitários. Os que amálgama já difuso a partir da cepa original autistas que, ao fim e ao cabo, redundaram alcançam funções “pedagógicas” formam “freireana”, ou seja, a chamada “pedagogia no referido processo de mediocrização as pedagogas freireanas que, por sua vez, do oprimido” produzida por Paulo Freire. atual (aliás, em crescimento e expansão). vão formar os professores do primário Dito assim, com essa simplicidade De fato, esse processo apresenta, e do secundário – qualquer que seja a redutora, parece que se trata de um as- pelo lado das humanidades, um aspecto estrutura e os títulos desses cursos, que se pecto desimportante no mar de problemas de ignorância letrada que surpreende pela tornam, no momento devido, seus pupilos e – materiais, curriculares, humanos – da sua extensão e profundidade. Ele não é, orientandos, uma audiência cativa (muitas educação brasileira, embora ele seja, do exclusivamente, o resultado das ditas vezes passiva) dos novos mandarins ponto de vista da abordagem adotada pedagogias freireanas – que explicam universitários.

23 j Nos vários componentes dessa com- o progresso também é uma fatalidade”. Com efeito, um dos aspectos mais plexa equação, pedagogas freireanas, Trata-se, sobretudo, de bloqueios buro- preocupantes dessa involução no período sinecuras acadêmicas, sindicalismo de cráticos e materiais a um progresso mais recente, aliás, estimulada em grande medi- baixa extração e ideologias anticapitalistas rápido: qual é o país emergente que possui da pelas próprias autoridades da área, é a e antimercado se combinam e se reforçam uma carga fiscal típica de país rico: 38% tendência ao enclausuramento acadêmico, para destruir a educação brasileira, pelo do PIB? (Atenção: essa é a taxa média nos à diminuição dos esforços de cooperação menos naquelas funções iluministas países da OCDE, sendo que alguns estão com o Norte e, no sentido contrário, o que ela deveria exibir, colocando em seu abaixo de 30% e que sua renda per capita reforço de intercâmbios variados com lugar esses elementos característicos da ultrapassa 40 mil dólares, mais de seis países do Sul, numa discriminação política ignorância letrada. vezes a brasileira.) Qual é o país no qual a que não faz sentido no plano científico; No curto prazo, o resultado global é o atividade empreendedora é tão cercada de dificilmente se poderá sustentar que en- aprofundamento da mediocridade que já vi- entraves e dificuldades? (No que o Brasil tidades de pesquisa da América Latina ou nha marcando as áreas de humanidades do empata, talvez, com a Índia, outro país de continentes assemelhados possuam sistema universitário – tanto público quanto capitalista atrasado. Atualmente, mesmo maior e melhor substância científica do privado – nos últimos anos (possivelmente aquele outro grande país burocrático, que que seus equivalentes do Norte. Não nas duas últimas décadas), contribuindo, é a China, é mais capitalista que o Brasil.) existe maior demonstração da vontade no médio e no longo prazo, para reforçar de autocondenar-se a viseiras mentais do as tendências brasileiras à estagnação ou 4. As evidências que a frase sumamente imbecil, bastante ao atraso relativo. Essas características Independentemente dos lentos pro- repetida em certos meios, que proclama não são percebidas, obviamente, pelos gressos materiais que o Brasil consiga que o “Sul é o nosso Norte”. Toda e qual- que integram o próprio sistema, sobretudo realizar nos terrenos vinculados a merca- quer ciência, toda e qualquer abordagem por aqueles que vivem exclusivamente a dos capitalistas – no que ele vem sendo acadêmica que se autodireciona para um vida universitária brasileira, em tudo o que superado por países de crescimento e de lado, ignorando todos os outros, é por ela apresenta de autista e de entrópico. modernização mais rápidos – o fato é que o definição estúpida e autolimitativa em Os acadêmicos que já viajaram, que já panorama acadêmico vem experimentando termos estritamente científicos. conviveram com universidades estran- nítido declínio de qualidade no âmbito Acadêmicos defensores dessa postura geiras – refiro-me, obviamente, às boas das humanidades, o que é revelado, por se orgulham de exibir uma proclamada universidades americanas, e algumas exemplo, pela forma e substância dos “latinoamericanidad” que não faz o menor boas europeias – e que já se utilizaram de artigos publicados ou apresentados para sentido no plano das metodologias e das serviços e mercados nesses países, devem publicação nos veículos da área (muitos pesquisas de ponta, como se o fato de ter perfeita consciência, se tiverem as deles existindo apenas e tão somente para pertencer ao mesmo arco cultural ou a mentes abertas, para o verdadeiro atraso cumprir requisitos de pontuação estabele- uma mesma zona geográfica represen- em que vive o Brasil, mesmo com todos cidos de forma puramente quantitativista tasse qualquer garantia de qualidade os seus sinais de aparente modernidade. O pelos organismos de fomento acadêmico). acadêmica. O “indigenismo” ingênuo e Brasil é um país que caminha lentamente, O problema vai muito além do que já canhestro presente em algumas dessas que praticamente se arrasta, penosamente, tinha constatado, desde 1985, Edmundo novas experiências de cooperação introduz em direção à modernidade. Campos Coelho, em seu aclamado (e um elemento totalmente estranho nas Esse lento caminhar no sentido dos pouco lido) A sinecura acadêmica: a tradições de pesquisa brasileira, já que avanços científicos e tecnológicos mais ética universitária em questão (São Paulo: referidos a um universo civilizatório que dinâmicos da contemporaneidade é Vértice, 1985), já que atingindo bem mais não tem nada a ver com os componentes evidente, mesmo comparando o Brasil a do que bancas de seleção de professores, outros países emergentes que se integram cargos comissionados, apoios financeiros aos mercados globais da atualidade, e prebendas institucionais de modo geral. sobretudo na Ásia. Não se trata apenas Ele transformou-se num problema sine cura, ou exatamente de dificuldades em aceitar alcançando o próprio núcleo do sistema de os requerimentos do progresso em suas produção acadêmica, ou seja, sua própria diversas expressões materiais e culturais; substância, que é a capacidade de produzir afinal de contas, como já dizia Mário obras originais, em linguagem acessível a de Andrade mais de setenta anos atrás, um público mais vasto, mas dentro de ri- “progredir, progredimos um tiquinho, que gorosos padrões acadêmicos de qualidade. j 24 antropológicos ou culturais da formação atitude militante compatível com preferên- os acadêmicos gramscianos só pretendem histórica e social do Brasil. cias manifestas na vida civil; mas jamais ler Gramsci, jamais as críticas que lhe A busca sôfrega por identidades aos requisitos do trabalho acadêmico tal são feitas, mesmo as de um intelectual nessas áreas, certamente forçada, mas como reconhecido pelos padrões normais socialista (embora liberal) como Norberto intensamente praticada nos últimos anos, da pesquisa científica. Todos eles vão Bobbio, por exemplo. As viseiras mentais representa um atraso e uma dispersão reforçar as deficiências metodológicas, a daqueles mesmos que posam de sumida- de esforços que vão, inevitavelmente, ignorância letrada e o atraso substantivo des acadêmicas de relevo, e que são lidos cobrar um preço na produção acadêmica nas pesquisas relevantes para o progresso e repetidos nas universidades brasileiras, brasileira. As interpretações classistas e o desenvolvimento do Brasil. Em algum chegam a ser assustadoras, inclusive e e “campesinas” da história social e do momento, o ambiente acadêmico vai sobretudo porque parecem ter assegurado desenvolvimento econômico na região, emergir das camisas de força ideológicas o seu próprio sucesso continuado, a a adesão pouco refletida a supostas e buscar a atmosfera mais arejada da pes- julgar pela bibliografia distribuída e pelos causas de “oprimidos” e de “injustiçados” quisa de boa qualidade. Mas esse processo trabalhos produzidos nessas esferas. reforçam os componentes do atraso promete ser longo e custoso, tendo em Não é preciso, aqui, citar nomes e acadêmico; interpretações, aliás, que vêm vista os equívocos e desvios já incorridos ensaios publicados, pois é muito fácil acompanhadas de um inacreditável apoio no cenário universitário brasileiro. deduzir quem, ou quais, são as “vacas a uma das experiências políticas mais Quero crer, também com base em sagradas” do processo de mediocrização nefastas já assistidas em todo o mundo, evidências subjetivas, que o atraso é da universidade brasileira. Talvez dois que é a construção progressiva de um apenas relativo, e não absoluto, pois em pequenos trechos retirados de texto de fascismo tido supostamente por ser de algumas áreas ou situações específicas a um dos gurus da nova ignorância sejam esquerda, apenas porque o caudilho pro- racionalidade tem condições de se impor representativos do que estou analisando: motor emite invectivas “anti-imperialistas”. contra as ideologias ingênuas. No cômputo “Entra governo, sai governo, as leis do mer- Uma falsa noção de segurança e de geral, contudo, a situação atual nas huma- cado parecem dominar irreversivelmente o soberania alimentar condena a atividade nidades da academia brasileira aparece mundo, o estilo de vida norte-americano primário-exportadora como sendo negativa como quase desesperadora, necessitando, devasta espaços nunca antes alcançados do ponto de vista do desenvolvimento praticamente, o estabelecimento de um – seja na China ou na periferia das grandes econômico e social, quando ela é o quilombo de resistência intelectual contra metrópoles do sul do mundo (...)”; “A crise sustentáculo da modernidade no campo, os assaltos à racionalidade mais elementar da URSS não deu lugar a um socialismo independentemente de considerações por parte de tribos crescentes de ignoran- superador dos problemas desse modelo e, ad hoc sobre as dimensões regionais das tes letrados. Gostaria de estar errado, e de ao contrário, disseminou o neoliberalismo propriedades ou seus vínculos com o ser apenas um pessimista elitista (não, não nas terras de Lênin”. mercado externo. tenho nenhuma vergonha em buscar a elite “O capitalismo abandonou seu modelo São muitos os exemplos de posturas do saber). Gostaria de registrar uma rápida keynesiano por um modelo de extensão anacrônicas no plano das humanidades, correção da academia brasileira em direção inaudita da mercantilização de todos os assim como são muitos os componentes de padrões de comportamento institucional rincões do mundo.” Um acadêmico capaz da mediocridade universitária, entre eles mais consentâneos com sua vocação de escrever tamanha bobagem é capaz de um “gramscianismo” instintivo e até ignaro humanista e, sobretudo, constatar uma qualquer impostura intelectual, que ele aliás (já que não corresponde a uma verdadeira produção intelectual à altura dos requisitos não cessa de praticar. leitura aberta da obra original). Esses de modernidade e progresso que estamos Os quilombos de resistência intelectual exemplos podem até corresponder a uma no direito de esperar de um país inserido a esses processos de indigência acadêmica na globalização do conhecimento. Não é o e de desonestidade no plano das ideias – o que tenho observado até aqui. que ocorre sempre quando os argumentos Esperemos que seja um fenômeno exibidos estão longe de corresponder à passageiro, embora meu pessimismo realidade mais evidente – são ainda muito realista tenha sólidas razões para existir: tênues e pouco numerosos. A esperança é afinal de contas, o otimismo da vontade, que eles se multipliquem nos anos à frente ou da prática, não consegue prevalecer e possam superar os imensos pântanos de num ambiente de mentes fechadas, o que mediocridade que se espalham de modo só alimenta o pessimismo da razão, ou do preocupante pela universidade brasileira. intelecto. O problema parece estar em que Estou sendo muito pessimista? n

25 j Anunciação Dierick Bouts Flandres, 1465-1470 Têmpera e óleo sobre madeira transpostos para tela

PARA QUE AINDA SER CRISTÃO? j 26 Joseph Ratzinger Papa emérito Bento XVI

s ouvidos nos reboam com a afirmação de que aos poucos se torna coisa que se enten- Ode por si mesma, que hoje a fé e a Igreja não servem mais para nada. Designar uma coisa como tradicional já se tornou frequentemente o mesmo que designá-la como superada e irrelevante. Mas a Igreja vive da tradição daquilo que recebeu desde o início, parecendo com isso não ter mais chance alguma em todo o caso na sua forma de até agora. Semelhantes palavras e pensamentos não exerceriam tal poder se não se fundassem numa experiência a que dificilmente alguém se pode subtrair: de um lado a vivência de que tudo muda no mundo; ele parece transformar-se sempre mais rapidamente e de modo tão radical que não perdura nenhuma das medidas que nos são familiares, podendo apenas caminhos inteiramente novos auxiliar a uma humanidade completamente mudada; de outro lado aparece também a experiência da ineficiência do cristianismo que não pode arrancar o homem à sua miséria, vindo assim a ser para muitos apenas um mero consolo, uma redenção aparente que passa ao largo da realidade. De fato quem não participa da experiência cristã dificilmente pode julgar de outra maneira; disso porém se segue que começamos a sentir vergonha da mensagem cristã, querendo apresentar realizações mais palpáveis: com resultados sociais e econômicos, que ninguém possa contestar, que claramente libertam homens, salvando-os da sua miséria. Entretanto as necessidades crescem mais depressa do que a ajuda que lhes pode ser oposta, e com a fuga para o palpável, que constrangida quer fazer esquecer a tradição, explicando o cristianismo como parte do trabalho moderno de humanização, ao mesmo tempo aumenta a cisão da Igreja, que assim apenas se torna sempre mais falta de alegria, sempre mais sem esperança, sempre mais problemática para todos. Pouco parece ter ficado da boa nova, havendo em vez dela lutas e perplexidade. Já faz tempo, o cardeal Dopfner comparou a Igreja a um canteiro de construção para explicar o mal estar que se alastra nela; um pensador crítico acrescentou que parecia ser um canteiro de uma obra cujo projeto se perdeu, continuando cada um a trabalhar como pedreiro e marceneiro segundo o seu bel prazer: O resultado PARA QUE AINDA SER CRISTÃO? é o que era de se esperar. Para que ainda ser cristão? Hoje toma-

27 j ram o lugar da redenção cristã pela fé alma, certamente não dará menos valor no sentido de que todo o conteúdo desse dois caminhos novos pelos quais os à política para a salvação do homem. Ele livro se passa no inferno e este inferno está homens se procuram salvar: o polí- compreenderá por que a Igreja desde o precisamente lá, onde a política total erigiu tico-econômico-social e o psicológico. princípio – neste ponto de acordo com a o seu paraíso: este paraíso é o inferno no De um lado a sociedade do bem estar sinagoga – por meio da sua oração pelos qual o homem destrói o homem – inferno procura sempre mais aqueles confessores dirigentes do mundo, reconheceu o âmbito exposto de modo assustador na cena profanos, cujo conhecimento científico político como uma área parcial da salvação final, na qual para esconder os presos da alma humana deveria recompor a sua humana. Neste sentido há uma obrigação da publicidade eles são amontoados em existência demolida e esvaziada: deve ser política do cristão, sem cujo cumprimento vagões de víveres que têm a inscrição: descoberto de novo o que é amor, o que é ele esvazia o caráter da realidade da fé. A carne. O correspondente do jornal frânces palavra, tudo que é primordial no homem. honestidade e a seriedade da fé se provam “Libération” sempre de novo torna a ver Mas esses médicos ajudam de fato? precisamente também pela sua capacidade tais vagões e aponta no seu caderno: “o Podem dizer sem dúvida como funcionam para a ação positiva e para a resistência aprovisionamento da capital só pode ser as diversas forças da alma humana, mas política onde é de obrigação. designado como excelente”. não para quê. Entretanto o desmantelamen- O trabalho político pertence à salvação Há uma cena no livro na qual pre- to da alma humana se funda precisamente do homem. Mas a política total seria a sua cisamente essa conexão me parece em que as suas forças se movem no vazio. perdição. O homem precisa de pão para o intensificada até a extrema clareza. O autor É propriamente em atenção a estes seu bem estar, mas só o pão não o salva; a põe na boca do velho marxista idealístico esforços que se pode ver muito claramente divisão justa do poder tem a ver com a sua Rubin uma interpretação impressionante que a alma humana está estruturada de tal salvação, mas somente a redistribuição do Fausto, de Goethe. Como é sabido, a tra- modo que não se explica por si mesma. dele não pode ser a salvação do homem. gédia de Goethe não termina tragicamente Não pode ser composta como um relógio, Há uma explicação político-econômica e sim num otimismo o qual, é verdade, se um todo fechado que funciona, quando se do Antigo Testamento segundo a qual a funda numa contradição estranha. Fausto sabe o lugar em que deve estar cada peça salvação consiste na obtenção do bem estaria perdido, se dissesse a um momento particular. estar e da segurança. A história da tentação da sua vida: fica, és tão belo! Em todas Pelo contrário, ela vive numa circu- de Jesus caracteriza esse conceito da as seduções com que Satanás o procura lação aberta, ou melhor, numa parábola salvação como a noção da salvação de enfeitiçar não pronuncia essas palavras. aberta, não podendo ser curada sem o Satanás. Atrás do relato de que Satanás No fim da sua vida organiza multidões de ponto de referência que está fora dela. propôs a Jesus que transformasse pedras trabalhadores que arrancam terras novas Vem-nos à mente uma imagem de em pão e lhe ofereceu o domínio sobre ao mar e, então, ao retinir das pás que Santo Agostinho: ele tinha dito que a todos os reinos do mundo estão correntes ativamente parecem criar uma nova terra, existência humana está construída de tal muito reais do seu tempo: o Messias se ele diz as palavras: modo que Deus é o ponto ao qual está deveria comprovar dando a todos pão em “É esta a última conclusão da sa- presa; se este entrosamento superior está abundância e erigindo um reino mundial bedoria: em ordem, também as partes restantes de paz sob o signo do seu poder político. Só aquele merece a liberdade e a vida ficam unidas numa estrutura racional; Jesus, que não terminou com a fome Que cada dia as deve conquistar. mas se ele se rompe também todo o do mundo, nem mudou a situação de E assim cercados de perigos passam resto se desconjunta, ficando apenas poder, por isso mesmo não poderia ser o Aqui seu tempo de vigor a infância, o fragmentos. Messias... Só quem remisse o homem de homem e o ancião. Mas não antecipemos. Ao lado da modo político-social o teria remido. Tudo Tal movimentação eu desejaria ver, salvação psicológica está a socioeconô- o mais não significava nada. Contra isso o Estar em chão livre com um povo livre. mica, o caminho da política total. Tudo é Evangelho declara: tal salvação entregaria Ao momento eu poderia dizer: político, ouvimos hoje; por isso, somente o homem a Satanás, isto é, o escravizaria Fica, és tão belo!” a politização consciente da Igreja, da fé, da completamente. Fausto volta ao seu começo: ele liturgia, pode abrir o caminho para o futuro, Parece uma sentença muito dura. Mas tinha traduzido o prólogo de São João “salvando” o homem. talvez precisamente a experiência da nossa “no princípio era a ação”, substituindo o Quem vê a miséria imensa do homem geração nos pode fazer compreender de termo palavra por ação, vendo a salvação na Índia e na Indochina, nas favelas das modo novo essa afirmação, um paralelo do mundo não no sentido que o sustenta grandes cidades da América do Norte notável dessa afirmação bíblica. No grande desde o começo e que é palavra para cada e do Sul, quem vê como o processo da romance de Soljenitzin, “O Primeiro Círculo um em particular, mas na ação na qual industrialização programa sempre mais do Inferno”, há um paralelo notável dessa o homem mesmo cria o seu sentido. o homem ameaçando privá-lo da sua afirmação bíblica. Um paralelo primeiro Ele morre na esperança da salvação j 28 que a sua ação lhe conseguiria: a ação como dispensável. Talvez até pudesse Jesus Cristo que o amor se tornou visível e político-social que cria um povo livre em parecer que a questão de Deus o impedia certo como o fundamento do mundo para chão livre – ela é o que permanece, a sal- realmente de se libertar de tradições ultra- aqueles que têm fé. É para ele que vai o vação. Sobre isso diz Rubin em Soljenitzin: passadas, empenhando-se a fundo pelos caminho cristão. E até ele mesmo é esse “mas se considerarmos isto um pouco seus próprios interesses. Mas quem olha caminho. Assim se poderia talvez, de modo mais exatamente, devemo-nos perguntar para a constelação atual da história pelo um pouco teorético demais, exprimir do se aqui Goethe não zombou do sentimento menos se deverá tornar muito pensativo. seguinte modo a fórmula básica cristã: o de felicidade dos homens? A situação de hoje está determinada pela amor aceito com fé e que se tornou visível “Com efeito, em última analise esse oposição entre o positivismo (como a em Cristo é como caminho a esperança sentimento não traz proveito... Fausto nova forma do liberalismo) e o marxismo do homem. pronuncia a frase salvadora pela qual como profecia política da salvação: entre Permitam-me concluir com uma ob- ansiou por tanto tempo a um passo da ambos se trava a luta pelo homem, por servação mais prática. Nas suas anotações sepultura, ludibriado e talvez também já exemplo, filosoficamente como a luta entre na prisão, Bonhoeffer observou numa com o espírito obnubilado; os lêmures já o neopositivismo de Popper e aquele da ocasião que hoje também o cristão deve o impelem para a cova...” De fato, quando escola de Frankfurt. Se o positivismo pode viver, quasi Deus non daretur – como se se reflete melhor, tudo parece uma pura provar a todas as filosofias marxísticas que Deus não existisse. Que devia deixar a Deus ironia. As pás, cujo retinir leva Fausto à elas são teologias secretas, o marxismo fora dos enredos de cada dia, estruturando sua exclamação, pertencem aos servos do pode provar ao positivismo que a sua ob- a sua vida terrena inteiramente por sua demônio, que com elas não preparam um jetividade não tem escala nem finalidade. própria responsabilidade. Eu, em oposição mundo novo, mas a sua sepultura, e só o O limiar propriamente dito, porém, no a isso, preferiria formular precisamente em cego, o que se tornou cego, pode ouvir nele qual o homem pergunta por si mesmo, sentido inverso: hoje também aquele para o a música da salvação, não suspeitando, pelo seu porquê e pelo seu caminho não qual a existência de Deus, o mundo da fé se como zomba de si mesmo. Pelo contexto é ultrapassado nem aqui nem lá. tornou escuro, praticamente deveria viver, do livro me parece estar bem claro que Em última análise ambas as correntes quasi Deus esset – viver como se Deus com isso Soljenitzin dá a sua interpretação não têm nada a dizer além do poder e do realmente existisse. Viver sob a realidade do stalinismo (e do marxismo como tal): consumo. Mas com isso precisamente o da verdade que não é nosso produto, mas fica, és tão belo, diz ele agora a um mundo que é central no homem permanece vazio. nossa soberana. Viver sob a direção da do trabalho, a um mundo construído por O que é deprimente em certas formas do justiça que não só pensamos, mas que é ele mesmo e a ser construído por ele cristianismo moderno consiste em que poder e nos determina a nós mesmos. Viver mesmo que na realidade é um mundo de também elas se parecem ter tomado cegas sob a responsabilidade do amor que espera lêmures no qual se abre a sepultura do para tudo que não é poder ou consumo; por nós e nos ama. Viver sob a exigência homem – o demônio zombando do homem que também elas só podem entender a da eternidade, pois quem vive com olhos que cego, tornado cego, envelhecido, não Igreja sob o aspecto do poder e do gozo. abertos o desenvolvimento compreenderá repara mais que louva o inferno como a Com isso certamente não se pode salvar que este é o único modo como o homem sua salvação. o cristianismo. A sua grandeza está em pode ser salvo. Deus – somente Ele – é a Procuremos dizer sem imagem o que que dá o homem a si mesmo. Inicialmente salvação do homem; esta verdade inaudita pretendemos: o homem precisa da política, lhe indica um caminho, uma direção como que tanto tempo nos parecia uma teoria que precisa do planejamento e da ação social deve agir e viver. Talvez há 10 anos tudo quase não podia ser atingida se tornou a e econômica. Mas quando a ação se isso nos teria parecido apenas moralismo fórmula mais prática da nossa hora da torna total, quando a política pretende ser que antes teríamos dispensado. história. E quem, embora de início de modo a salvação do homem, ela está tentando Hoje sabemos que o homem que talvez indeciso, se confiar a este como se fazer o papel da teologia resposta da fé, não tem essência (no sentido de Sartre), trabalhoso e contudo inevitável – viver tornando-se então a escravização total que sempre primeiro se deve inventar a como se Deus existisse – notará sempre do homem. O homem perece se lhe falta si mesmo, precisamente porque se quer mais que este como se é a verdadeira um sentido que penetra mais fundo do constituir, perece física e psiquicamente, realidade. que a ordem da economia. Na história da e somos capazes de apreciar de modo Percebendo que ela nos torna res- emancipação do homem por si mesmo, novo a dádiva do caminho e das normas. ponsáveis nos daremos conta da sua talvez nos últimos 150 anos realmente Mas é verdade: um caminho só é um força salvadora. E saberemos do modo tenha havido instantes nos quais se sentido e só pode ser percorrido, se dá profundo e indelével por que também hoje impunha a impressão de que o homem esperança de uma meta. Quando leva o cristianismo ainda é necessário como podia dispensar a questão de Deus sem para diante. Entretanto ultimamente só o a verdadeira boa mensagem que salva os sofrer prejuízo; que podia deixá-la de lado amor é esperança para o homem. E é em homens n

29 j FIDELIDADE Capítulo extraído do livro do autor Atitudes Éticas Fundamentais

j Recueil de diverses fables, Giordio Fossati - 1744. Encadernação em marroquim de Derôme 30 Dietrich Von Hildebrand Filósofo e teólogo católico In memoriam

ntre as atitudes humanas fundamen- limita ao nível em que se dá essa contínua outras, de modo que bem poderíamos tais para a vida moral, figura também mudança, ao nível da atenção expressa da denominá-los efêmeros; desses homens Ea fidelidade. Pode-se falar de fidelida- consciência “atual”. Quando continuamos a dizemos que se esgotam inteiramente no de em sentido amplo e em sentido estrito. correr para outra impressão ou conteúdo, momento que passa. Temos em vista o sentido estrito quando o passado, em vez de se perder sem mais, Outros vivem das camadas mais falamos de fidelidade a seres humanos; finca-se na camada mais profunda e aí profundas da pessoa, e nada de signifi- assim, por exemplo, no caso da fidelidade sobrevive. De certo que é já exemplo disto cativo neles desaparece só por não ser entre amigos, da fidelidade conjugal, bem a memória, a capacidade de recordar, que já presente, antes se torna um cabedal como da fidelidade à própria nação ou da liga passado e presente; mas, para além humano sobre o qual se constrói algo de fidelidade a si mesmo. disso, também o é a sobrevivência de fundo novo, cheio de sentido. Só estes últimos Mas esta fidelidade já pressupõe a fide- das nossas atitudes em face do mundo, merecem o nome de personalidades. Só lidade em sentido amplo. Refiro-meà quela da posição tomada perante as verdades neles se pode formar uma riqueza interior. constância que primordialmente confere e os valores fundamentais, enquanto a Quantos não há que chegaram a co- à vida do homem a sua coesão interna, nossa atenção atual se fixa em questões nhecer grandes obras de arte, viram países a sua íntima unidade. Só firmando-nos inteiramente diferentes. magníficos, entraram em contato com nas verdades e valores que um dia se nos É mais ou menos desse modo que a homens notáveis – mas nada lhes deixa desvelaram é que se nos torna possível alegria de um acontecimento profunda- efeito duradouro! Talvez, por instantes, construir a personalidade. mente feliz sobrevive no fundo da nossa tenham ficado fortemente impressionados, O decurso de uma vida humana encer- alma, dando um colorido especial a tudo mas nada lançou neles raízes profundas, ra um contínuo revezamento de diversas o que fazemos em determinado instante. nada “retiveram”, pois desapareceu, mal impressões, tomadas de posição, ações. Enquanto trabalhamos, continua a resistir, se deixaram levar por novas impressões. Não conseguimos pensar muito tempo vivo, no fundo de nós mesmos, o amor ao Esses homens são como uma peneira seguido numa única ideia ou permanecer ser amado, como uma reserva oculta por por onde tudo passa. Podem ser bons, com a atenção fixa num só ponto. Assim cima da qual se passa tudo o mais. afetuosos, honestos, mas atolaram-se como na vida biológica se sucedem a Sem esta capacidade, o homem num estado puerilmente inconsciente; não fome e a saciedade, a fadiga e o vigor, careceria de qualquer unidade interior, seria têm nenhuma profundidade, escapam-nos, assim também a vida do espírito tem certa apenas um feixe de impressões e vivências são incapazes de relacionar-se realmente mobilidade peculiar. sucessivas. Se uma impressão sempre e com outros homens, porque lhes faltam de Dada a sucessão de impressões sem mais se substituísse a outra, se o todo em todo laços profundos com o que que nos marcam, dada a torrente de passado se perdesse indiferentemente, a quer que seja. acontecimentos que nos trazem ao vida interior do homem ficaria privada de São homens irresponsáveis, já que espírito uma heterogeneidade de objetos, sentido e de conteúdo; não haveria nenhu- desconhecem condições duradouras e a nossa atenção não se pode fixar sempre ma estrutura, nenhum desenvolvimento, nada conservam de um dia para o outro. do mesmo modo; e o nosso pensamento não haveria, sobretudo, “personalidade” Ainda que as suas impressões sejam caracteriza-se por um ir e vir de conteúdo alguma. vivas, decerto não chegam a penetrar para conteúdo, outro tanto se podendo Ora, ainda que esta capacidade de naquelas camadas profundas em que, dizer dos nossos sentimentos e desejos. retenção, sem a qual se tornaria impossível por sobre as mudanças de um instante, Mesmo num acontecimento feliz, como a vida própria da pessoa espiritual, se dê se encontram as orientações e atitudes o reencontro longamente ansiado do ser em todos os homens, é de certo variável elevadas. amado, não nos podemos demorar muito; o grau em que se forma nos indivíduos Prometem honestamente alguma do pleno presente da alegria profunda, concretos a coesão interna e persistente coisa num instante, mas logo a seguir tudo a torrente da nossa experiência retorna da sua vida. Os homens distinguem-se uns se esvai; concebem propósitos sob uma pressurosamente a outros rumos que nos dos outros pela sua diferente profundidade: impressão forte, mas qualquer impressão prendem a atenção e as vivências. uns vivem na camada mais superficial da mais forte que se siga lhos apaga. São Mas o homem tem diversos níveis de sua consciência atual, e neles as vivências tão impressionáveis que, na sua vida, só profundidade. A sua vida interior não se se sucedem fragmentariamente umas às a camada exterior da consciência atual

31 j tem a palavra. Para esses homens, o que ausente, que a longo prazo manifesta uma uma vez tenha brilhado, aquele que não determina a dedicação e o interesse não é o importância inteiramente diferente. esquece nenhuma verdade se uma vez a valor e o peso de um assunto, mas apenas Em contraste com estes dois tipos, penetrou – só esse faz realmente justiça o viço e a intensidade do “presente”. O que o homem constante conserva tudo o que à peculiaridade do mundo da verdade e os domina é esta preferência geral pela se lhe deparou como verdade e valor ge- dos valores, tornando-se capaz de se lhe intensidade, em que a impressão presente nuínos. A vivacidade do presente não tem manter fiel. ou a presente situação levam a melhor poder algum sobre a sua vida, em confron- Esta constância, ou fidelidade no sobre o passado. to com o peso interno das verdades, uma verdadeiro sentido da palavra, é uma con- Há duas espécies no gênero destes vez reconhecidas, ou do valor ético, uma sequência necessária de toda a verdadeira homens volúveis. Primeiro, a daqueles vez captado. A repercussão das coisas na compreensão dos valores e, portanto, de em quem, geralmente, nada avança até sua consciência depende exclusivamente toda a vida moral no seu conjunto. Só uma à camada pessoal mais profunda, que da altura do valor que possuem, e não resposta que se prende duradouramente permanece neles como que vazia. São da sua “atualidade”. Tais homens estão, ao valioso é uma resposta moralmente sempre homens superficiais, carentes por isso, imunizados contra a tirania de madura e plenamente consciente. de vida profunda e de qualquer firmeza tudo o que é simples moda; já nada os Sob o ponto de vista moral, só um interior; parecem areia movediça, que logo impressiona só por ser moderno, por andar homem destes é realmente adulto, digno de cedem sem mais: se procurarmos neles um momentaneamente no ar, mas apenas por confiança; só ele se sente responsável por âmago duradouro, sobre o qual se possa ser valioso, belo, bom, verdadeiro. tudo o que tenha feito noutras situações; construir, logo se toca no vazio. Para homens assim, o mais valioso, só ele se arrepende realmente da injustiça Evidentemente, nunca é este o caso o mais importante, é também e continua- anteriormente cometida; só ele se sairá de um homem são; quem, em sentido mente o “mais atual”. Para eles, o valioso bem nas provações. literal, fosse puramente “instantâneo”, nunca passa de moda, mesmo que há Com efeito, para esse homem, a luz seria um psicopata. Entretanto, mesmo muito tenha sido posto de lado no seu dos valores morais continua a brilhar no sem os podermos qualificar de doentes ambiente. meio do embotamento do dia-a-dia, mes- psíquicos, são frequentes os homens cuja A vida destes homens constitui uma mo através da noite das tentações, porque vida costuma transcorrer assim. trama coerente e cheia de sentido, que é das profundezas que ele vive e é do fundo Da outra espécie fazem parte os que, espelha continuamente no seu decurso de si mesmo que ele se impõe ao momento embora tenham impressões profundas e a hierarquia objetiva dos valores, ao passageiro. Quanto mais constante e fiel for um âmago duradouro e firme na sua pes- passo que a dos inconstantes vem a ser o homem, tanto mais rico e valioso será, soa, perturbam-se tanto com a impressão prezadas situações e impressões que se tanto mais capaz de se tornar um autêntico momentânea que o que têm de permanente lhes deparam fortuitamente. vaso de valores éticos, um ser que viva e não consegue sobrepor-se à impressão São eles os únicos a captar a su- duradouramente abrigue e irradie pureza, do instante que passa. Só quando esta se blimidade do que vale plenamente em justiça, humildade, amor e bondade. dissipa é que volta ao de cima o que têm todas as épocas e que, cheio de valor e Basta observarmos as diversas esfe- no íntimo. de verdade, nunca envelhece, nunca des- ras da vida, para logo encontrarmos por Tais homens, por exemplo, podem ter merece. Compreendem que uma verdade toda a parte o significado fundamental por alguém um amor profundo e duradouro; significativa não perde o interesse nem da fidelidade neste sentido amplo. Com mas basta uma situação forte, viva, expres- nos deve ocupar menos, só porque nos é efeito, essa atitude é o pressuposto de siva, para num momento se perturbarem de conhecida de longa data. qualquer crescimento da pessoa em geral tal maneira que “esquecem” o ser amado, Reconhecem, sobretudo, que o que é e, sobretudo, de todo o desenvolvimento e e fazem coisas ou dizem palavras que nem valioso, não se limita a exigir-nos a atenção progresso moral. Como há de crescer mo- de longe combinam com aquele amor que e o interesse no momento presente. Só o ralmente quem não retém todos os valores sobrevive lá no íntimo. homem constante compreende realmente a que se lhe revelaram, quem não faz deles São homens que sempre estão em exigência do mundo dos valores éticos, só para sempre um cabedal próprio? Como há perigo de se tornar traidores. Neles, o ele é capaz de responder aos valores com a de realizar-se uma construção progressiva presente avantaja-se continuamente ao resposta que objetivamente lhes é devida; num homem dominado exclusivamente ausente, pelo interesse momentâneo, isto é, com uma resposta duradoura, por impressões momentâneas e de pouca pelo papel que desempenha nos seus independente do encanto da novidade, da duração? pensamentos, sensações e desejos, em- vivacidade do presente. Só aquele para Sem estabilidade, de que serve a bora, fundamentalmente estimem mais o quem jamais passa qualquer valor que melhor educação? De que servem as j 32 mais penetrantes advertências, a viva unidade de sentido com passado, presente do amor de mãe; a fidelidade inconcussa de descoberta de valores, se nenhuma raiz se e futuro? Quem poderá contar com ele? um amigo, possuem uma especial beleza prende no fundo ou no fundo fica apenas e Só o homem fiel torna possível aquela moral que toca o coração de quem se abre sempre a dormitar? Por mais estranho que confiança que constitui o fundamento de aos valores. pareça, os homens volúveis não mudam qualquer comunidade; só ele possui aquele A fidelidade é, assim, o núcleo de qual- nunca. Conservam as imperfeições e as elevado valor moral que reside na firmeza, quer amor grande e profundo, o que é que preferências que possuem de seu natural, na lealdade, na confiabilidade. há, em contrapartida, de mais moralmente mas não conquistam novos valores éticos. A fidelidade é, além disso, pressuposto baixo e disforme do que a infidelidade Ainda que num determinado momento da própria capacidade de confiar, da fé manifesta, a antítese radical da fidelidade, compreendam tudo e concebamos me- heróica. O volúvel, além de que não merece que ultrapassa largamente a inconstância? lhores propósitos, ainda que não lhes falte qualquer confiança, jamais consegue crer Que mácula moral se pode comparar com boa vontade, a inconstância impede-lhes com fé firme, inabalável: nem nos outros a do traidor que, por assim dizer, apunhala qualquer progresso moral duradouro. Não homens, nem em verdades, nem em Deus. o coração que se lhe ofereceu cheio de porque se fechem, à maneira daquele que É que lhe falta o vigor necessário para viver confiança e indefeso? se contorce na sua soberba, tornando-se do valor que uma vez contemplou, se o Quem for falto de fidelidade na sua como que impermeável, mas porque se rodeia à noite e a escuridão ou se outras atitude fundamental é um Judas perante abandonam demais a qualquer impressão, impressões fortes arremetem contra ele. todo o mundo dos valores éticos. Sem não conseguindo “segurar”; no turbilhão da Não é por acaso que, nas línguas latinas, dúvida, há homens para quem a fidelidade sua vida nem mesmo aquilo que tomam a palavra fides significa simultaneamente não passa de simples virtude burguesa, a sério. fidelidade e fé. Com efeito, a fidelidade é de mera correção ou probidade. O homem A atitude fundamental da fidelidade parte constitutiva e essencial do vigor da livre, grande, genial – assim pensam eles é, pois, pressuposto, de toda a auto-edu- fé e, portanto, de toda a região. – não precisa da fidelidade. Néscio mal cação. Só o homem fiel consegue digerir Muito especialmente nítido é o signifi- entendido! Talvez haja, efetivamente, uma interiormente as impressões contraditó- cado transcendente da fidelidade no campo espécie de fidelidade inócua e complacen- rias, extraindo o bem de cada uma delas, das relações humanas. O que é o amor sem te. Mas o certo é que a autêntica fidelidade aprendendo e crescendo com as mais fidelidade? No fundo, uma mentira. Porque é parte indispensável, constitutiva de toda a variadas situações da vida, porque per- o sentido mais profundo de todo o amor, grandeza moral, de toda a verdadeira força manece nele estável e viva a craveirados o “sim” interior que se pronuncia no amor, e profundeza de uma personalidade. valores autênticos. Em contrapartida, o é uma íntima dedicação e entrega de si A autêntica fidelidade de que aqui homem volúvel cede, ora a uma, ora a outra mesmo, que sobrevive sem prazo algum, tratamos é o contrário da mera probidade impressão, e, sem mais, “cai”; tudo nele inabalável através de todas as mudanças burguesa ou da simples atitude de quem passa mais ou menos sem deixar rasto. na correnteza da vida. se aferra aos seus costumes. Não deriva Só o homem fiel, por outro lado, prefe- Um homem que, por exemplo, diga: também de um temperamento apático, re o mais relevante ao menos relevante, o “amo-te agora, mas por quanto tempo não como a inconstância não deriva de um valioso ao que o é menos; o volúvel, esse, sei”, nem amou realmente, nem faz ideia temperamento vivo e impulsivo. no melhor dos casos, mede pela mesma nenhuma da essência do amor. A fidelidade A fidelidade é uma resposta livre e rasoura todas as realidades valiosas, é tão essencial ao amor que qualquer um cheia de sentido ao mundo da verdade e mesmo que assim pereça algum valor mais tem de considerar perene à sua dedicação. dos valores, à sua significação imutável e alto. Ora, para o crescimento moral e, de Isto vale para todos os amores: para o autônoma, às suas exigências próprias. modo geral, para a vida moral da pessoa, amor aos pais, para o amor aos filhos, aos Sem a atitude fundamental da fidelidade, nada é mais importante do que a conside- amigos, para o amor conjugal. Quanto mais não há nenhuma cultura, nenhum progresso ração da hierarquia objetiva dos valores, a profundo é o amor, tanto mais o penetra a no conhecimento, nenhuma comunidade; capacidade de preferir constantemente os fidelidade. mas, sobretudo, nenhuma personalidade valores mais altos. É precisamente nesta fidelidade que moral, nenhum amadurecimento moral, A atitude fundamental da fidelidade é repousa o especial brilho moral do amor, nenhuma vida interior una e consistente e também pressuposto de toda a confiança, a sua casta beleza. O que o amor tem nenhum amor verdadeiro. Todo o esforço de toda a credibilidade. Como há de de especificamente comovente, naquele de educação tem de ter em conta este alguém manter uma promessa ou merecer caráter único com que nos surge no Fidelio, significado fundamental da fidelidade em crédito na luta das ideias, se vive apenas de Beethoven, prende-se essencialmente sentido amplo, se não quiser condenar-se no momento que passa, sem formar uma com a fidelidade. A fidelidade imperturbável de antemão ao malogro n

33 j Ten Brig Ar Astor Nina de Carvalho Netto [email protected] Aniversário do MARECHAL EDUARDO GOMES Uma medalha e algumas histórias

m 20 de setembro celebra-se o aniversário do Marechal Eduardo EGomes. Nascido em 1896, ele faria 124 anos. Durante a minha vida na Aeronáutica tornei-me admirador deste homem que é um mito e Patrono da Força Aérea Brasileira. Em várias ocasiões, de alguma maneira, senti a grandeza dos seus feitos e o exemplo que nos deixou. Em 20 de julho de 2018, recebi a Medalha Eduardo Gomes, outorgada àqueles que se distinguiram nas atividades escolares durante a sua carreira na FAB. Muito justo o nome dado a essa medalha por ter sido ele um dos melhores alunos dos cursos que fez, a ponto de receber o apelido de “matemático”, e também por ter deixado marcantes lições de vida. Ao recebê-la na Base Aérea de Brasília, o meu pensamento voltou-se para o Brigadeiro Eduardo Gomes em razão de ter sido ali a única vez que tive a oportunidade de encontrá-lo e falar com aquele homem que foi um personagem marcante da História do Brasil. Esse encontro ocorreu no dia 5 de julho de 1972. Naquele dia, com a Câmara dos Deputados e o Senado reunidos, o Brigadeiro Eduardo Gomes - Pintura de J. G. Fajardo - óleo sobre tela - Acervo Clube Militar Congresso Nacional prestou-lhe significa- diam um sistema político democrático Naquele cinco de julho de 1972, como tiva homenagem pelo Cinquentenário da autêntico, sem fraudes nas eleições e um capitão Ajudante de Ordens do Ministro da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, país sem corrupção. Após forte tiroteio Aeronáutica Araripe Macedo, fui com ele a primeira revolta tenentista da República na Praia de Copacabana, as tropas do à Base Aérea de Brasília para receber o Velha. Governo mataram quase todos os rebeldes, Brigadeiro Eduardo Gomes, que começou Em 1922, um grupo de tenentes tentou tendo sobrevivido apenas os tenentes a descer a escada do avião Viscount com derrubar o Presidente da República Epitácio Siqueira Campos e Eduardo Gomes, este dificuldade. Por solicitação do ministro, Pessoa. Aqueles jovens idealistas defen- gravemente ferido. subi rapidamente na escada, apresentei- j 34 -me ao Brigadeiro e disse que estava ali revoltou contra ele, e a firme posição de Aeronáutica nos governos dos presidentes para ajudá-lo. Com voz branda ele disse: um tenente na defesa dos seus ideais. Café Filho e Castelo Branco. Nas duas “muito obrigado, capitão; eu não preciso Durante toda a sua vida, Eduardo Gomes vezes, assumiu o Ministério em época de de ajuda, pode descer”. Ali estava refletida lutou pela democracia, pela justiça e pela graves crises políticas, sendo sempre con- a imagem de um homem polido e firme. honestidade. ciliador, enérgico e competente condutor Primeiro o agradecimento, depois a recusa. Foi um dos fundadores do Correio dos destinos da Força Aérea Brasileira. A seguir rumamos de carro para o Aéreo Nacional, contribuindo para a inte- Em 1997, assumi o cargo de co- Congresso Nacional, e aí veio um fato de gração e o desenvolvimento das regiões mandante do Segundo Comando Aéreo grande importância histórica. Durante o do nosso imenso país. Em 1941, com a Regional. Para mim, foi motivo de justo trajeto, o ministro perguntou: “Eduardo, criação do Ministério da Aeronáutica, em orgulho exercer um comando que tinha 50 anos hoje, o que você lembra daquele plena Segunda Guerra Mundial, ainda como sido do Brigadeiro. dia?“ E o Brigadeiro contou que ao levar o coronel e logo depois promovido a briga- No Nordeste, edificou as bases aéreas tiro a dor foi tão forte que ele desmaiou, deiro, foi nomeado primeiro comandante da de Fortaleza, Natal, Recife e Salvador, e só acordando no hospital. Lá recebeu um Primeira e da Segunda Zona Aérea, depois construiu centenas de residências para visitante ilustre que perguntou: “Tenente, transformadas em Primeiro e Segundo os militares da Aeronáutica, sempre você sabe quem sou eu?” O Brigadeiro Comando Aéreo Regional, respectiva- pensando em primeiro lugar no bem-estar respondeu: “Sei, o senhor é o Presidente mente. Ressalte-se que as áreas do Norte dos seus comandados. O patrimônio por da República”. “Não só o Presidente e Nordeste eram da maior importância ele deixado é de imensurável valor e deve da República, também o Comandante estratégica em razão do conflito. ser preservado. Supremo das Forças Armadas”, disse Em 1945, como major brigadeiro, Na Segunda Zona Aérea, o seu pri- Epitácio Pessoa, perguntando se ele acha- deixou o comando para candidatar-se à meiro motorista foi o Cb Milton Queiroz de va certo revoltar-se contra o Comandante Presidência da República. Foi na campanha Almeida, hoje tenente reformado residente Supremo. E o Brigadeiro complementou: eleitoral que o docinho brigadeiro se em Recife. Pelas conversas mantidas com “Aí, Araripe, eu pensei nas fraudes das espalhou pelo país. ele, foi possível ver no Brigadeiro a figura eleições, na corrupção e na perseguição in- Sabedoras de que Eduardo Gomes de um homem de notável força moral, justa à oposição, e disse acho sim senhor”. gostava muito daquele docinho, senhoras muito calmo, extremamente perspicaz, de O presidente prosseguiu: “Se você acha integrantes da União Democrática Nacional grande religiosidade, sempre preocupado certo, por que os seus companheiros não o do Rio de Janeiro e admiradoras do briga- com os subordinados e com a disciplina da acompanharam?” “Foi quando eu constatei deiro difundiram a receita para senhoras tropa. Tinha grande capacidade de ouvir, que o pessoal do Forte Copacabana tinha dos locais onde ele faria comícios. Em orientar e ajudar, sendo admirado por todos sido traído, pois os oficiais da Vila Militar se algumas cidades, eram vendidos para e considerado um autêntico líder. comprometeram a aderir à revolta”, disse angariar fundos para a campanha. Assim, No mês em que se comemora o seu ainda Eduardo Gomes. o docinho popularizou-se no Brasil, foi aniversário, nada mais justo do que ressal- Belas lições deste fato. Ficaram denominado brigadeiro e virou motivo de tar o trabalho primoroso por ele realizado patentes a magnanimidade e a humildade alegria para a garotada. em benefício da Aeronáutica, e prestar uma de um Presidente da República ao visitar, Derrotado nas eleições, voltou ao especial homenagem ao Patrono da Força no hospital, um tenente ferido que se serviço ativo, tendo sido Ministro da Aérea Brasileira n

Foto da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Eduardo Gomes é o primeiro da esquerda para a direita

35 j Brig Ar Teomar Fonseca Quírico Piloto de Caça (Turma 1970) AS GERAÇÕES DA AVIAÇÃO DE CAÇA NO BRASIL: PASSADO, PRESENTE, FUTURO?

ncentivado por uma troca recente oficiais que começaram sua carreira como típicas de superioridade aérea clássica de de mensagens entre dois excelentes pilotos de caça voando P-40 e P-47 e que Defesa Aérea. Ioficiais do Esquadrão Adelphi (sério chegaram ao fim da carreira voando F-5. Evoluímos das formaturas baseadas que cometi um pleonasmo?), resolvi Tivemos até a ventura de contar com a no Ataque 2 para a filosofia de Linha de uma vez mais vencer minha tradicional presença de um oficial que participou do Frente Tática e conceitos de Caça Livre e preguiça e escrever algumas linhas sobre primeiro Estágio de Seleção de Pilotos de Caça Engajado, além de uma nova doutrina o que, há algum tempo, falei durante um Caça, em 1946, e que terminou sua carreira de Combate Aéreo que revolucionou a “Picadinho Jesus Está Chamando”, ao voando F-5E, o Brig Marion. Além dele, maneira com que a Caça evoluía no espaço, apresentar as Velhas Águias ali presentes, faço uma menção especial ao Maj Brig operacionalmente falando. de forma que os pilotos de Caça mais Silas e ao Cel Janvrot, dois outros pilotos Na Caça, os pilotos desse período jovens soubessem de quem se tratavam que também participaram desse primeiro foram selecionados em aeronaves P-47, e do respeito que aqueles caçadores estágio e não puderam comparecer ao depois F-80 e, finalmente, nos T/TF-33. mereciam por tudo o que haviam feito pelo evento por motivos de força maior. Coincidentemente, e de uma forma engrandecimento da Aviação de Caça da Não podemos esquecer também do ampla, essa geração corresponde aos Força Aérea Brasileira. Brig Motta Paes, esse sim um veterano pilotos ainda formados na então Escola de Naquela ocasião, por inspiração do Jambock da guerra na Itália, que terminou Aeronáutica dos Afonsos, berço da Aviação momento, resolvi apresentá-los segundo sua carreira como major brigadeiro Militar no Brasil. as aeronaves que voaram e, sem querer, voando no Mirage F-103E (monoplace). acabei por dividir a história da Caça no Quando me recordo que todos estes SEGUNDA GERAÇÃO Brasil em gerações, função das capacida- oficiais citados já eram pilotos de Caça e PASSADO RECENTE des operacionais que cada uma a meu ver eu não era nem nascido, sou obrigado a (1970-1995) possuía, e que acabaram por corresponder, lhes render um enorme preito de gratidão DO ANALÓGICO AO DIGITAL grosso modo, a quartéis de século que, e admiração! Aos pilotos mais jovens presentes no reportando-me ao título deste artigo, cor- Durante esse período, 1945 a 1970, “Picadinho”, apresentamos, também, uma responderiam à história passada e presente a Aviação de Caça brasileira evoluiu do segunda geração de pilotos de Caça bem da Caça no Brasil. E nesse embalo não há avião à hélice (P-47/P-40), fez a transição antigos, desconhecidos da maioria, que como especular como será o futuro, a partir para o jato puro (F-8/F-80/TF-33 e AT-26) tiveram sua formação realizada quase que dessas mesmas experiências vividas. e terminou nos supersônicos F-103/F-5E, totalmente na Academia da Força Aérea É, enfim, um exercício despretensioso em que a grande novidade, além da óbvia (AFA) em Pirassununga, e que tinham em numa tarde de sexta-feira de pandemia, performance supersônica, foi a incorpora- comum, em termos de Aviação de Caça, mas que poderá incentivar outros a se ção, no painel principal de instrumentos, de terem iniciado sua carreira de caçadores arriscarem em suas experiências passadas uma pequena tela correspondente ao radar em aeronaves cheias de “reloginhos” e e em suas visões de futuro. Fica o repto! de bordo, além de mísseis ar/ar instalados evoluído para outra plataforma, esta com nas asas. capacidade de navegação e de ataque inte- PRIMEIRA GERAÇÃO Em termos de capacidade, esta pri- grados, na qual os primeiros instrumentos PASSADO meira geração transportou a caça dos de CRT (Cathode Ray Tube) e os desconhe- (1945-1970) motores a pistão, limitada aos 30.000 cidos HUD (Head-Up Display), associados DA HÉLICE AO JATO SUPERSÔNICO pés de altitude e voltada, mormente, para a uma aviônica mais atual, acabaram por Naquele instante do “Picadinho”, em missões de ataque ao solo, para uma caça ampliar, sobremaneira, nossa capacidade outubro de 2019, estavam ali presentes voando a 50.000 pés e executando missões operacional. j 36 Reunião da Caça, na Base Aérea de Santa Cruz, em 1959

Começamos a conviver com sistemas aeronaves AT-26 Xavante, fabricadas sob sabemos ainda muito bem como será, mas eletrônicos de autodefesa passivos e licença no Brasil. que começará a ser escrito brevemente. ativos e com um ferramental disponível Diria que enquanto a primeira geração A geração que hoje guarnece nossos a bordo que permitiu nos afastar do levou a Aviação de Caça brasileira às mais esquadrões operacionais e que era repre- conceito de que, em termos de ataque modernas técnicas e táticas em termos ar/ sentada pela grande maioria dos pilotos ao solo, o F-5E era tão somente um P-47 ar, nossa segunda geração fez o mesmo em presentes em nosso “Picadinho” teve sua supersônico. relação às doutrinas ar/solo. formação como pilotos de Caça realizada Saímos de um Erro Circular Provável em Natal, voando aeronaves A-29, estas (ECP) médio de 100 pés nas missões de TERCEIRA GERAÇÃO já desenvolvidas e fabricadas no Brasil, a ataque ao solo para um “ECP” de 10 pés, PASSADO-PRESENTE partir de requisitos estabelecidos por nós. evoluímos dos bombardeios rasantes para (1995-2020) Foram eles que ultrapassaram os limites bombardeios executados com precisão DO VISUAL AO ALÉM DO ALCANCE VISUAL, do combate ar-ar dentro do campo visual de grande altitude e, doutrinariamente, DO HJ PARA A OPERAÇÃO H-24 (WVR) para o além do alcance visual (BVR), implantamos o conceito de “Pacote” e A despeito do aparente paradoxo – e que superaram a barreira imposta pelo pôr “Mission Commander” nas missões de passado-presente – estamos, de fato, do sol na execução de missões a baixa altura ataque ao solo, um enorme salto opera- findando mais uma era na Aviação de Caça e de ataque ao solo, graças ao desenvolvi- cional em relação aos antigos conceitos e no limiar de uma nova fase que irá orientar mento de táticas e técnicas suportadas pela de Varredura usados na Segunda Guerra o emprego da Caça no futuro. operação de Óculos de Visão Noturna (NVG) Mundial e, até então, em vigor em nossos Estamos no momento da “passagem e Forward-looking infrared (FLIR). esquadrões operacionais. de bastão” de uma geração para outra, Foi essa mesma geração que, em Na Caça, os pilotos desse período já do passado-presente, em que nos encon- termos de ataque ao solo, nos levou de um fizeram sua seleção no curso de Caça em tramos, para um presente-futuro que não ECP de 10 pés a um ECP de apenas um pé,

37 j mesmo em condições marginais de tempo, graças aos armamentos de precisão guiados a laser, GPS e INS. Se no passado discutí- amos a área ou o alvo a ser bombardeado, hoje identificamos a janela em que queremos que nosso armamento penetre. E alguns dos pilotos dessa geração ali presentes, já de cabelos brancos, agora observavam com emoção os muito mais jovens, cantantes e entusiasmados caçadores que, “assumindo o bastão”, serão os grandes responsáveis em conso- lidar a doutrina hoje existente em nossos esquadrões e estabelecer as bases para o P-47 Thunderbolt em recriação de cena histórica desenvolvimento de doutrinas futuras para Foto Sgt Johnson os novos pilotos de Caça que, eventual- mente, ainda nem ingressaram nas fileiras Aérea Componente permite-nos imaginar “UCAV”, “UAV”, “ARP” ou outra sigla da Força Aérea. alguma coisa de mais concreto. que venham a ter. Serão esses jovens pilotos que es- Certamente as arenas de combate já Nesse sentido, permitam-me reprodu- creverão, a partir de folhas de papel ainda dominadas operacionalmente – combates zir (devidamente autorizado) os pequenos em branco, a futura doutrina operacional BVR e ataques ao solo a qualquer tempo textos retirados da troca de mensagens dos da Força Aérea Brasileira para o próximo com armamentos de precisão cirúrgica – dois excelentes Adelphis (olha o pleonasmo quartel de século. serão cada vez mais expandidas em termos aí novamente!) citados no início deste de dimensão e precisão. artigo e que me motivaram a escrever QUARTA GERAÇÃO As comunicações entre os caçadores este texto. São instigantes pensamentos FUTURO serão as mínimas possíveis, eventualmen- referentes a conceitos novos sobre “Loyal (2020-?) te “não existentes”, função de um sistema Wingmen” que de alguma forma poderão GUERRA CENTRADA EM REDE E OPERAÇÕES de data link cada vez mais robusto e influenciar as operações de Caça no futuro. CONJUNTAS TRIPULADAS E NÃO TRIPULADAS amplo, numa operação de guerra centrada Interessante ressaltar que ambos O mundo evolui tão rapidamente que em rede onde o ciclo OODA (Observar, trabalharam e trabalham intensamente no qualquer ideia de imaginar o futuro corre o Orientar, Decidir, Agir) será continuamente acompanhamento e desenvolvimento do risco de rapidamente se tornar obsoleta e aperfeiçoado, levando aquele que mais Programa Gripen. motivo de ironia. Acabamos de ver, inclu- rápida e eficientemente realizar esse ciclo Na ocasião, assim disse o Adelphi 47: sive, a recente missão de uma nova nave a destruir o alvo inimigo e obter a vitória “muito se falou (e ainda se fala...) na tripulada à Estação Espacial Internacional na guerra. ‘última geração’ de pilotos de Caça, que (ISS), em que saltou aos olhos a impres- Os capitães e tenentes que hoje guar- viriam a ser substituídos por drones UCAV. sionante evolução nos trajes espaciais e no necem nossos esquadrões operacionais Agora, cada vez mais, vemos o caminho painel de controle da chamada “SpaceX/ da Caça, e todos aqueles que ainda estão dos ‘loyal wingmen’ tomando o espaço Crew Dragon”, completamente diferente em nossas escolas de formação ou que das notícias que prospectam o futuro do do utilizado na última missão espacial ainda nem entraram na Força Aérea ou ambiente aéreo das operações militares. americana há, tão somente, nove anos. nem nascidos são, serão os que irão operar “A tecnologia avança, de fato, de uma Qualquer coisa que se possa escrever nesse ambiente extremamente exigente e maneira que até nos ‘autoriza’ a pensar no momento será pura especulação, mas para tal terão de se preparar. que nada é impossível. Não é tão difícil a novíssima aeronave de Caça Gripen NG Eles serão aqueles que, certa- pensar em um Gripen E, por exemplo, que brevemente receberemos – a previsão mente, irão responder às perguntas voando e combatendo sem piloto, tomando da primeira é para daqui a apenas 3/4 que muitos hoje fazem, se os pilotos ‘decisões’ com base em inteligência arti- meses – e o que está acontecendo nas de Caça se tornarão uma “raça em ficial e algoritmos complexos, além de se forças aéreas dos países mais avançados extinção” no futuro, em virtude das ‘autopilotar’. Tudo isso é possível. Porém, com as quais, eventualmente, poderemos capacidades cada vez mais elevadas é possível imaginar que um elemento cha- operar de forma conjunta como uma Força demonstradas pelos atuais “Drones”, mado ‘caos’ será eliminado dos ambientes j 38 de batalha, incluindo os ambientes aéreos? “Talvez aí esteja o ponto. Nesse sentido, o compartilhamento do ambiente de combate entre aeronaves pilotadas e UAVs ‘leais’ ainda me parece mais ‘militarmente aceitável’. Em alguns casos, os UCAV poderão dar conta, sozinhos. Mas o campo de atuação do elemento humano em voo ainda parece existir no futuro do voo de Caça. Ao menos até onde a nossa vista alcança... “Creio que seja interessante estarmos atentos, sim, a esse caminho em desenvol- vimentos futuros. Ou tudo isso seria apenas Gripen-NG uma maneira de usar o ‘recurso remanescen- Foto K. Tokunaga te’ dos aviões pilotados que ainda existem, até que eles não existam mais? “O Gripen será o nosso caça por guarneceram, guarnecem e haverão de “Fica a questão para se pensar.” muitos anos. Seu substituto só será guarnecer nossos Esquadrões de Caça. Em sequência, assim escreveu o necessário e viável daqui a pelo menos Não tive a intenção de contar a história Adelphi 26: 30 anos, creio. da Aviação de Caça brasileira, mas sim dos “Exato... Pude observar na última “Precisamos manter nossa indústria pilotos que a construíram, constroem, e edição de Le Bourget, quando estivemos viva. Aproveito esse seleto grupo para haverão de construir. Sentir-me-ei extre- com o KC, a ‘proliferação’ desse novo fomentar essa ideia. Podemos debater mamente recompensado se cada piloto ‘vetor’”. Daí me despertou o interesse, e as diversas aplicações de um vetor como de Caça, que de alguma forma venha a tenho achado que seria uma nova área de esse. Vai ficar claro o quanto isso vai ler essas linhas tenha se localizado ao atuação da nossa indústria. aumentar a capacidade operacional das longo da história e percebido o quanto ele “Esses ‘alas’ podem ter diversas aeronaves atuais.” contribuiu para o nosso engrandecimento. aplicações e ampliam muito a capacidade Nota minha: São ou não são excelentes Cada geração teve as suas dificulda- do ‘líder’. Vi, naquela ocasião, ‘alas’ que oficiais Adelphis? (Não falo mais do des, as suas crises e frustrações, mas a podem carregar armamento adicional e pleonasmo!) cada uma delas deu a solução adequada sensores específicos. Sei que tais aerona- Além desse conceito de Loyal com os instrumentos que estavam à sua ves necessitam de tecnologias complexas Wingmen, podemos especular, ainda, que disposição à época. para atuarem de forma quase autônoma, na futura arena de nossos pilotos de Caça Nenhum dos “tijolos” foi mais impor- permitindo o seu controle pelo piloto ‘líder’, eles operarão de forma conjunta com uma tante que outro, e espero que cada piloto ou de solo. É, certamente, um cenário “esquadrilha” de drones (Drone Swarm), de Caça tenha identificado “o seu tijolo” e futuro e acredito que devemos começar a que os auxiliarão na efetiva condução da a enorme importância da sua contribuição pensar nisso. missão. para o engrandecimento da nossa Aviação “Juntamente com essa nova neces- São conceitos que, eventualmente, de Caça e da nossa querida Força Aérea. sidade operacional, vislumbro isso como em nosso contexto sul-americano, podem Todos unidos, com o mesmo propó- uma janela de oportunidade para que estar por demais distantes, mas se um sito, e mantendo o mesmo brilho no olhar, possamos desenvolver um sistema aqui dia formos operar como Força Aérea que vimos durante o “Picadinho”, nos no Brasil, ou em parceria com algum país. Componente num contexto internacional olhos do nosso piloto de Caça mais antigo Suécia? determinado pela ONU, obrigatoriamente, presente, da turma de 1946, que recebeu os “A EMBRAER domina todo o ciclo teremos de estar minimamente familiariza- ensinamentos e a doutrina transmitida di- de desenvolvimento e certificação de dos com eles, para não sermos os “cegos retamente pelos nossos bravos Jambocks aeronaves. Creio termos toda a capacidade em tiroteio de bambas”! que combateram na Itália. para desenvolver uma aeronave dessas. O mesmo brilho no olhar! É isso que Vejo essa opção muito mais promissora e CONCLUSÃO nos mantém! economicamente viável do que desenvolver Procurei neste artigo falar de gente, “HONRA A QUEM NOS PRECEDEU um caça novo. de pilotos de Caça, de carne e osso que E GLÓRIA A QUEM NOS SEGUIRÁ!” n

39 j A ESTAÇÃO DE HIDROAVIÕES: AS RAÍZES DO INCAER

Elaine Gonçalves da Costa Pereira A influência para as mudanças na cidade pela ascendente valorização da arquitetura. inspiravam-se no movimento modernista. O misto de estilos arquitetônicos pode ser Ten QOCON His “O Rio de Janeiro presentificava, viva- analisado em construções da época, como [email protected] mente, esse espírito do moderno. Pólo de os edifícios do Ministério da Educação (1936- atração e irradiação de culturas das diferentes 1943), do Ministério da Fazenda (1937-1943), eescrever fatos passados é um grande regiões e cidades brasileiras, a cidade possuía da Associação Brasileira de Imprensa (1936- desafio. Entretanto os estudos de uma elite intelectual-artística que se mantinha 1938), do Aeroporto Santos-Dumont (1937- Rhistoriadores consagrados, como em permanente diálogo com as ideias 1944), e da própria Estação de Hidroaviões Jacques Le Goff e Pierre Nora, demonstram cosmopolitas. Em função desses fatores, (1937-1938), objeto deste estudo. que é possível analisar o mesmo período, as a cidade adquire uma configuração social É quase impossível escrever sobre o mesmas fontes, e encontrar “novos proble- bastante específica. Junto a esse movimento desenvolvimento do Rio de Janeiro, bem mas, novas abordagens e novos objetos”. de atualização cultural, que a projetava em como o desenvolvimento da aviação na Desta maneira, este artigo pretende revisitar direção ao cenário internacional, o Rio tam- cidade, sem destacar o desmonte do Morro o processo de construção do prédio da antiga bém possuía um corpo de tradições populares do Castelo, iniciado durante a administração Estação de Hidroaviões do Aeroporto Santos- extremamente atuantes” (Velloso, 2007). do Prefeito Carlos Sampaio (1920-1922). Dumont, local que hoje abriga o Instituto Entre os feitos realizados para atingir O Morro, considerado como uma zona Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER). esse objetivo, destacam-se as inúmeras insegura e proletária, não combinava com a Nas décadas de 1920 e 1930, a cidade do obras realizadas no intuito de melhorar cidade, que estava prestes a celebrar os cem Rio de Janeiro passava por profundas trans- a circulação e o aspecto da cidade. Na anos da Independência do Brasil, e que, em formações políticas, econômicas e sociais. concepção do economista Carlos Lessa, o comemoração, seria anfitriã da Exposição O intuito era o de que a Capital Federal fosse Rio de Janeiro, a partir da década de 1920, Universal de 1922. uma cidade moderna, que representasse o “sentia-se o bastião do Modernismo”, talvez Da operação de desmonte, aterrou-se progresso, a civilização, e que servisse de melhor definido como “um mostruário calei- a área situada entre a Praia de Santa Luzia e espelho para os outros estados da Nação. doscópio de estilo”, constatação influenciada a Enseada da Glória, até à Ponta do Russel, j 40 A ESTAÇÃO DE HIDROAVIÕES: AS RAÍZES DO INCAER

Consolidated Commodore da Panair do Brasil, no cais flutuante do terminal de passageiros Presidente Getúlio Vargas inaugura o Aeroporto Santos-Dumont da Pan American, no aterro da Ponta do Calabouço, na década de 30

sendo denominada Esplanada do Castelo. De Exposição de 1922 era utilizado como estação fevereiro de 1937, no Salão da Comissão de acordo com Juliana Silva Mattos (2007), o de passageiros. A empresa americana Pan Eficiência do supracitado Ministério. Do total, desmonte do Morro do Castelo foi retomado American Airways, cuja representação sete foram recusados porque não atendiam entre os anos de 1926 e 1928, na adminis- brasileira era da Panair do Brasil, construiu às cláusulas do edital. tração do Prefeito Prado Júnior (1926-1930), um terminal próprio, com toda a estrutura De acordo com o arquiteto Luiz Gonzaga ampliando o aterro até à região da Ponta e o conforto necessários para atender seus Montans Ackel (2007), o projeto vencedor do do Calabouço, já com o intuito de pouso de passageiros, assim como um hangar e uma concurso foi elaborado pelo arquiteto Attílio aeronaves. estação de hidroaviões. Corrêa Lima, com o auxílio de seus alunos de A construção de um aeroporto no Rio Ainda segundo Ermakoff (2010), a urbanismo da Escola Nacional de Belas Artes. de Janeiro, que serviria como espaço urbano iniciativa da empresa “mexeu com os brios” Em seus estudos, Patrick Di Almeida para atender à evolução natural, ocorreu das autoridades brasileiras que resolveram Vieira (2014) constatou que Attílio Corrêa em um momento em que a aviação mundial construir dois terminais, um para hidroaviões Lima nasceu em Roma, em 8 de abril de 1901, passava por mudanças estruturais, visando e outro para os passageiros que embarcavam e formou-se engenheiro-arquiteto no Rio de sempre ao desenvolvimento tecnológico e e desembarcavam em terra firme. Janeiro, pela Escola Nacional de Belas Artes, ao progresso. Entre elas, a necessidade de O periódico Correio da Manhã, do dia no ano de 1925. No ano seguinte, o arquiteto adaptar as aeronaves a uma nova utilidade, 12 de janeiro de 1937, noticiava a decisão viajou para Paris, onde, após quatro anos, ou seja, como transporte de passageiros, do governo em abrir um concurso para a doutorou-se em urbanismo pelo Instituto de permitindo a inserção do Brasil na era da apresentação de projetos que visavam à Urbanismo da Universidade de Paris. aviação comercial. construção de uma estação de hidroaviões Ao regressar, assumiu a cadeira de O transporte aéreo comercial iniciou-se no Aeroporto Santos-Dumont. Anunciava, urbanismo da Escola Nacional de Belas na região da Ponta do Calabouço, com a também, a abertura de novos concursos para Artes. Entre os trabalhos mais renomados de utilização de hidroaviões. De acordo com a construção de outros edifícios e devidas Attílio, está a elaboração do Plano Piloto para o economista George Ermakoff (2010), o instalações do aeroporto, como uma estação a construção da capital de Goiás, Goiânia, desenvolvimento da atividade aérea na região de passageiros e hangares. elaborado entre 1933 e 1934. Também esteve levou a prefeitura, no ano de 1934, a ceder um A comissão julgadora foi constituída pelos presente na remodelação de Recife, entre terreno mais amplo ao Ministério de Viação engenheiros Augusto Vasconcellos Junior, outros tantos projetos. Por seus feitos, Attílio e Obras Públicas, destinado à construção Paulo Camargo de Almeida e William Preston, é considerado um dos pioneiros da arquitetura de um aeroporto comercial, que foi batizado indicados pelo Instituto de Arquitetos do Brasil moderna no Brasil. de Santos-Dumont, pelo Presidente Getulio (IAB), e mais dois engenheiros do Departamento O projeto da Estação de Hidroaviões Vargas, em 1936. de Aeronáutica Civil (DAC), Arnaldo Junqueira é uma demonstração clara da influência O processo de construção do aeroporto Ayres e Alberto de Mello Flores. moderna imanente à arquitetura da época. foi realizado por etapas e, entre as peculiarida- Os projetos deveriam ser entregues até o Os estudos de Lauro Cavalcanti (2011) apon- des da empreitada, observa-se que o mesmo dia 15 de fevereiro daquele ano. O concurso, taram que a edificação de dois pavimentos foi erguido no núcleo urbano e começou a ser autorizado pelo Ministério de Viação e Obras possui a estrutura de concreto armado, com utilizado, a despeito das obras incompletas. Públicas, recebeu dezessete propostas. espaço fluído, grandes fachadas de vidro e Um dos pavilhões construídos para a O julgamento aconteceu entre 24 e 27 de mármore travertino romano.

41 j O projeto previa, no primeiro andar, que excedesse a este limite. Estava incluído de Janeiro, a definição da data não é de um terminal de transportes, com balcões nestes honorários o valor referente ao prêmio fundamental importância, até mesmo pela para a venda de passagens, recepção de do concurso que seria pago em 12 parcelas. proximidade delas. passageiros, área de carga e descarga de A primeira delas no ato da entrega do projeto, O auge do uso de hidroaviões ocorreu bagagens e ainda uma ampla escada, “cuja no valor de 10:000$000 (dez contos de réis) nos anos de 1920 a 1930. No Brasil, em- forma se alçava no espaço em metáfora de e outras 11 parcelas mensais de 3:333$000 presas como a Condor, Varig, Vasp e Panair voo”, direcionando o público ao segundo (três contos, trezentos e trinta e três mil réis) do Brasil investiram naquela tecnologia, pavimento. todos os dias 10 de cada mês. O prazo total como apontam os estudos do autor Carlos Já no segundo andar, foi construído um da realização das obras ficou estabelecido em Silva (2008). É importante ressaltar que o amplo restaurante e um terraço panorâmico, 15 meses” (Luiz Ackel, 2007). hidroavião representou um marco na aviação com vista para a Baía de Guanabara. Uma ou- Durante a obra, todas as atenções comercial brasileira. Acreditava-se que tra escada caracol ligava o terraço ao jardim, de Attílio Corrêa Lima estavam voltadas pousos e decolagens feitos em rios e mares localizado na parte inferior. A Estação ainda para o projeto. Mesmo depois do prédio seriam mais viáveis economicamente, além dispunha de uma marquise que protegia das inaugurado, o arquiteto continuou cuidando de mais seguros. intempéries e conduzia os passageiros até do paisagismo da área externa da Estação A construção de aeródromos e aero- o ancoradouro, onde acontecia o embarque de Hidroaviões, entregando a obra definiti- portos corroborou para uma mudança no nos hidroaviões. Após vencer o concurso vamente finalizada no segundo semestre do perfil dos aviões comerciais, de tal forma e ser contratado pelo Departamento de ano de 1939. que, o irrefutável avanço da aviação, na Aeronáutica Civil (DAC), Attílio teve trinta dias Na obra Rio de Janeiro 1930-1960, de metade dos anos de 1940, fez com que de prazo para apresentar um projeto definitivo George Ermakoff, consta que a inauguração os hidroaviões ficassem obsoletos. Nesse da Estação. da Estação de Hidroaviões aconteceu em ínterim, o Aeroporto Santos-Dumont tam- O contrato assinado por ele previa que outubro de 1938, pelo Presidente Getúlio bém acompanhou o progresso da aviação o arquiteto deveria comparecer à obra três Vargas. Com o intuito de buscar imagens comercial. vezes por semana. As obras foram iniciadas e notícias que ilustrassem o momento, a Conforme visto neste artigo, a matéria no primeiro semestre de 1937 e foram fim de anexar a este artigo, verificou-se que do Correio da Manhã informava que, além concluídas em meados de 1938. A agilidade a data apresentada não era a mesma das do concurso para a construção da Estação na construção ocorreu devido à crença de publicações da época, despertando interesse de Hidroaviões, haveria também um certame que o desenvolvimento do transporte aéreo para a análise de outras fontes. para a construção da Estação Central de seria realizado pelos hidroaviões, o que levou Em periódicos da época, tais como Passageiros do Aeroporto Santos-Dumont, o DAC a dar total prioridade à obra. Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, cujo projeto vencedor foi o dos irmãos De acordo com Luiz Gonzaga Montans Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, como Marcelo e Milton Roberto. A obra foi iniciada Ackel (2007), era previsto, em contrato, também do Anuário Estatístico do Distrito em 1938 e concluída em 1945. que os honorários seriam pagos a Attílio Federal, consta que a inauguração foi reali- De acordo com Claudio Calovi Pereira de acordo com a tabela do Instituto de zada em 1º de novembro de 1938. Contudo, (1993), o empreendimento era maior do Arquitetos do Brasil: acredita-se que, mediante a grandiosidade que o da Estação de Hidroaviões e foi “Que estabelecia uma taxa de 8% do e riqueza da conjuntura em que o prédio foi concluído em etapas. Além do terminal valor da obra até o valor de 500:000$000 construído, e da tamanha representatividade de passageiros, o projeto previa um local (quinhentos contos de réis) e 6% sobre o valor da construção na história da cidade do Rio para os serviços técnicos do aeroporto e j 42 a edificação foi inscrita no Livro de Tombo das Belas Artes, volume 1, folha 82. O SPHAN ainda enviou, em fevereiro de 1957, uma notificação ao Ministério da Aeronáutica, comunicando sobre aquele tombamento. Como visto, havia o interesse de algumas instituições em se instalar no prédio. O Ministério da Aeronáutica, por sua vez, optou por conceder o uso da edificação ao Clube de Aeronáutica, que ocupava, desde Ao fundo, prédio do atual INCAER. À frente, o jardim outubro de 1950, as instalações do antigo do CAER, ambos tombados Pavilhão de Caça e Pesca, vizinho da antiga como patrimônios históricos Estação de Hidroaviões, permitindo, assim, um espaço para a sede do Departamento edifício, enviou um documento ao Serviço a expansão das suas atividades. de Aeronáutica Civil. Contemplava, ainda, do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional O processo do contrato de concessão espaço para comércio, restaurante, balcões (SPHAN), alertando sobre o risco de demoli- ao Clube foi protocolado no Ministério da das companhias e serviços, tais como ção do prédio da Estação, devido às obras de Fazenda, em 1959, sob o nº 345.102, e banco, correio e polícia. construção do Elevado da Perimetral. culminou no Decreto nº 47.240, publicado As instalações do Aeroporto Santos- De acordo com o arquiteto Antônio no Diário Oficial da União de 16 de novembro Dumont foram ocupadas à medida que as Colchete Filho (2008), a construção do do referido ano, prevendo que o Clube utili- obras eram concluídas. Com isso, algumas elevado, na década de 1950, provocou a zasse o edifício com fins sociais. As páginas das atividades da Estação de Hidroaviões demolição do Mercado Municipal e de quase da Revista Aeronáutica (1986) elucidam foram transferidas para o novo complexo todos os prédios da Exposição do Centenário que, sob a responsabilidade do Clube de do Aeroporto. da Independência, áreas essas situadas Aeronáutica, a edificação foi palco de eventos Contudo, a Estação de Hidroaviões próximas à Estação. Esse processo refletia e bailes. As festas e exposições aconteciam ainda recebia passageiros que chegavam mais um momento em que a cidade crescia na parte inferior, que ficou conhecida como em lanchas e seguiriam para as novas em dissonância com os registros da história “salão de mármore”. O restaurante da parte instalações do Aeroporto, de onde partiam urbana, demonstrando a substituição de superior foi reativado, servindo, inclusive, os voos internacionais e nacionais. marcos e modelos de administração. As como local para refeições de oficiais do De forma gradual, o edifício arquitetado referidas obras destruíram, ainda, parte Ministério da Aeronáutica. O local também por Attílio Corrêa Lima foi encerrando as suas do jardim localizado à frente do edifício da recebeu, posteriormente, uma biblioteca. atividades. O prédio da Estação ficou sem uti- Estação. Em 27 de junho de 1986, foi criado, lidade e, para atender algumas necessidades Este cenário intensificou as intenções do por meio do Decreto nº 92.858, o Instituto do Aeroporto, foi sendo paulatinamente des- SPHAN em proteger a construção. O pedido Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER), caracterizado, além de sofrer com a ação das de tombamento foi feito pelo renomado urba- cuja finalidade era pesquisar, desenvolver, intempéries e com a falta de conservação. O nista Lúcio Costa, que, naquele momento, era divulgar, preservar, controlar e estimular as traçado da construção do viaduto demonstra Diretor de Estudos e Tombamento do órgão. atividades referentes à memória e à cultura a proximidade da obra com o prédio e a A proposta defendia que o prédio era um da aeronáutica brasileira. Em março do ano eliminação de parte do jardim. marco fundamental da arquitetura moderna. seguinte, o Clube de Aeronáutica cedeu o Cabe ressaltar que a criação do Os tombamentos preventivos ocorriam prédio da antiga Estação ao INCAER, para Ministério da Aeronáutica (1941) uniu a pelo temor em se perder algo “genuíno, que fosse sua sede. aviação naval, militar e civil em uma única ju- original, atribuído como patrimônio nacional”, A ideia de Pierre Nora de que a “memória risdição, absorvendo, assim, o Departamento segundo Flavia Brito do Nascimento (2013), se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, de Aeronáutica Civil, antes pertencente ao e impulsionavam os intelectuais do SPHAN. na imagem” pode ser relacionada à decisão Ministério de Viação e Obras Públicas, e A ideia de salvar as edificações ame- de entregar o prédio da antiga Estação de que administrava a Estação de Hidroaviões. açadas e sem proteção era comum nos Hidroaviões ao INCAER, haja vista que um Nota-se que, a partir da década de 1950, processos de tombamento da época, local com tanta expressão na História da cresceu o interesse de algumas instituições que periodizavam as obras coloniais e do Aviação Brasileira deveria ser mantido por em ocupar aquelas instalações. A obra de movimento modernista. A antiga Estação de uma instituição cujo intuito é preservar a Renato Alves Silva exemplifica que, em Hidroaviões foi uma das que recebeu este tipo memória e a cultura da aeronáutica brasileira, 1956, o Instituto de Arquitetos do Brasil de proteção preventiva, sendo efetivamente atribuindo àquela edificação o valor necessá- (IAB), justificando o interesse em ocupar o realizada no dia 29 de janeiro de 1957, quando rio para a preservação da nossa História n

43 j Carlos Frederico G. Calvet da Silveira Doutor em filosofia pela Pontifícia Università San Tommaso - Roma [email protected] Thiago Cabrera Doutor em filosofia pela UFRJ (Extraído do livro Filosofia na Praia) AA OBRAOBRA DEDE ARTEARTE EMEM HEIDEGGERHEIDEGGER EE MERLEAU-PONTYMERLEAU-PONTY a obra de Heidegger, de forma espaço de coordenadas geométricas mas A janela aberta deixa entrar a luz célebre desde Ser e tempo, pu- antes num lar, numa escola, numa floresta. fraca deste dia nublado e o vento gentil de Nblicado originalmente em 1927, a De alguma forma, sei agora, por inverno, que me lembram outras manhãs interpretação da experiência cotidiana de exemplo, que ao meu redor estão a minha agradáveis de escrita e leitura; os ruídos mundo serve como ponto de partida para o estante repleta de livros mais ou menos indistintos são os de uma vizinhança pensamento filosófico, em contraposiçãoà arrumados, a minha escrivaninha sobre urbana familiar. visão científica, com sua sobreposição de a qual se apóia o computador onde eu Embora não me volte tematicamente constructos e teorias. Enquanto habitamos escrevo este texto, uma pilha de papéis para todo esse conjunto de saberes sobre o mundo, não nos relacionamos com as com anotações pessoais e ainda a xícara de o meu mundo circundante, dificilmente se coisas primariamente como objetos cientí- café que preparei há pouco, ainda a exalar pode duvidar de que seja por ele que eu me ficos. Não me encontro habitualmente num seu odor característico. oriente cotidianamente. j 44 Quem somos nós e que Nação é esta? Araken 2020

AA OBRAOBRA DEDE ARTEARTE EMEM HEIDEGGERHEIDEGGER EE MERLEAU-PONTYMERLEAU-PONTY Na verdade, mundo se dá imediata onde todo mundo e todo significado pode repente se revela ao primata a caminho do e permanentemente como essa teia emanar. ser-homem jamais poderia ser derivado de significados, referências, valores, A fenomenologia procura mostrar, das propriedades físicas e químicas do sintonias de humor e formas de vida. É em contrapartida, que os sentidos e osso. Numa leitura heideggeriana do filme, derivadamente que se nos abre o “mun- mesmo as corporalidades que constituem a possibilidade de ser instrumento do osso do” artificial das ciências naturais com o mundo que habitamos concretamente não é criação da subjetividade humana, suas entidades postulacionais, modelos, são irredutíveis ao discurso científico. mas, ao contrário, se abre para ele, ao leis, técnicas e procedimentos. De região No início do filme 2001: uma odisséia do mesmo tempo constituindo o seu mundo circunscrita e secundária dessa teia, espaço, por exemplo, o desvelamento do e a sua possibilidade de ser-homem. De contudo, a ciência passou a reclamar osso como utensílio de caça é um acon- toda forma, o aparecimento do osso e da o status de terreno e solo originário de tecimento originário: esse sentido que de natureza em geral nas suas possibilidades

45 j de uso precede seus aparecimentos como quando vemos a pintura do sapato de Van mundos, outros horizontes de sentido. objetos de conhecimento científico. A visão Gogh, por exemplo, não vemos primor- Na obra de arte, está em tela para nós desencarnada da ciência é muito mais dialmente o sapato representado, mas a participação num horizonte de sentido as- uma construção sobre aquilo que é dado antes a forma de aparecimento do sapato, sim como a sua própria produção. Mundo fenomenologicamente do que o contrário. seu contexto ou horizonte de sentido: o é o que é desocultado e desvelado nesse A verdade em sentido mais originário, mundo camponês de trabalho, fadiga, acontecimento privilegiado da verdade, segundo Heidegger, é, por isso, o próprio desgaste no campo. O sapato não está e terra, o que se retrai e se fecha, o que acontecimento do desvelar de um sentido, em uso, mas seu sentido “intramundano” não se deixa analisar e sondar, mas que ou mais amplamente, de um complexo não desapareceu, como seria numa análise aponta para outras possibilidades (ainda horizonte de sentidos, pelo qual podemos científica do objeto, mas ao contrário, se não abertas) de sentido. compreender e nos relacionar com as revela tematicamente. Nas belas palavras Merleau-Ponty: O Olho e o Espírito coisas e com as pessoas. No cotidiano, do filósofo: Retomemos agora O Olho e o é porque “a verdade está em obra” que “Na escura abertura do interior gasto Espírito, de Maurice Merleau­-Ponty, que estamos junto às coisas, ocupando-nos dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o foi publicado primeiramente em 1961, por com elas em algum fazer, e estamos com cansaço dos passos do trabalhador. Na Sartre, na revista Les Temps Modernes, outras pessoas, preocupando-nos com gravidade rude e sólida dos sapatos está constando de cinco breves e densos capí- elas de modo especial. Contudo não é retida a tenacidade do lento caminhar pelos tulos. Trata, sobretudo, da pintura e de sua no cotidiano que visamos tematicamente sulcos que se estendem até longe, sempre relação com a metafísica, ou melhor, da esse próprio horizonte de sentido pelo iguais, pelo campo, sobre o qual sopra o pintura como expressão do ser. Merleau- qual essa ocupação e essa preocupação vento agreste. No couro está a umidade e a Ponty vê no gesto do pintor a expressão da se fazem possíveis. Usamos o osso, e fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se nossa relação com o ser, a manifestação o pré-compreendemos como utensílio, a solidão do caminho do campo, pela noite dessa “gênese secreta febril das coisas no mas não visamos esse uso como sentido que cai. No apetrecho para calçar impera nosso corpo”. A obra de arte, por sua vez, possível que se nos desvela. É na filosofia o apelo calado da terra, a sua muda oferta é a coisa visível vendo-se a si mesma, ou de caráter fenomenológico ou na própria do trigo que amadurece e a sua inexplicável ainda, a visão fazendo-se visível. Em outras experiência da arte que visamos horizontes recusa na desolada improdutividade do palavras, a obra de arte é reflexão. de sentido e o acontecimento da verdade campo no inverno. Por este apetrecho pas- Como vimos, Merleau-Ponty abre seu como instalação desses horizontes. sa o calado temor pela segurança do pão, a primeiro capítulo com sua reflexão sobre Na obra de arte, segundo Heidegger, silenciosa alegria de vencer uma vez mais a a pintura com uma crítica ao papel da ci- se põe claramente para nós em obra o miséria, a angústia do nascimento iminente ência moderna no âmbito das experiências acontecimento da verdade. Nos termos e o tremor ante a ameaça de morte. Este humanas. A ciência trata seu objeto como do filósofo em A Origem da Obra de Arte, apetrecho pertence à terra e está abrigado algo geral, considera o mundo como que seu texto mais importante sobre o tema, no mundo da camponesa. É a partir desta pronto para suas explorações: “a ciência escrito entre 1935 e 1937 e publicado em abrigada pertença que o próprio produto manipula as coisas e renuncia a habi- 1950, “a obra de arte instala um mundo e surge para o seu repousar-em-si-mesmo”, tá-las”, (MERLEAU-PONTY, 2004:15). produz a terra” (2000:36). (HEIDEGGER, 2000:25-26). O pensamento operatório parece Em todo aparecimento, para a fenome- Ainda na interpretação de Heidegger, o ser o máximo que o homem pode atingir nologia, ao mesmo tempo em que algo se templo grego abre uma clareira de sentido, hoje. O homem torna-se, por conseguinte, presentifica, se desvela, algo se oculta e uma forma de ver vida e morte, deuses e um verdadeiro manipulandum. É a partir se retrai. No exemplo clássico de Husserl, homens, sagrado e profano, trabalho e desse breve diagnóstico que se reivindica ao contemplarmos um cubo, vemos a descanso. O mundo grego antigo em sua a verdadeira experiência do homem com cada vez diretamente um de seus lados, verdade plena se faz no habitar do templo, o mundo e com os outros – os corpos enquanto os demais se escondem, em- no participar em suas festas. Entretanto, associados que se assediam mutuamente. bora continuemos compreendendo numa na experiência da arte, como celebração A pintura e o pintor parecem tocar âmbitos percepção contínua que estamos vendo um de mundo, se faz ver também a terra, isto do ser – têm uma ciência “secreta” que vai e o mesmo cubo, e que nunca deixaremos é, o que não se deixa reduzir ao nosso atual mais longe: “É preciso que o pensamento de concebê-lo, ainda que, implicitamente, mundo histórico. O cálice na missa instala de ciência – pensamento de sobrevoo, em sua inteireza, isto é, como composto a aliança de sacrifício entre Deus e homem, pensamento do objeto em geral – torne a de todos os seus seis lados. mas também faz ver a produção do cobre se colocar num ‘há prévio’, na paisagem, Na arte, contudo, para Heidegger, como aquilo que poderia instalar outros no solo do mundo sensível e do mundo tra- j 46 balhado, tais como são em nossa vida, por um dos dois mapas é completo. O mundo ser, porque é a experiência da reversibili- nosso corpo, não esse corpo que é lícito visível e de meus projetos motores são dade das dimensões; afirmar ser uma máquina de informações, partes totais do mesmo ser”, (MERLEAU- 2) a cor é o lugar onde o nosso cérebro mas esse corpo atual que chamo de meu, PONTY, 2004:19). e o universo se juntam; a sentinela que se posta silenciosamente O capítulo III inicia com uma crítica 3) a linha não é mais, como em sob minhas palavras e sob meus atos”, ao modelo cartesiano de visão, que é o geometria clássica, o aparecimento de um (MERLEAU-PONTY, 2004:17). tato. A visão, na verdade, é ubiquidade e ser sobre o vazio do fundo; é, como nas ge- É integração do corpo do pintor com ação à distância, qualidades ignoradas por ometrias modernas, restrição, segregação, o mundo que faz o pintor. O requisito Descartes. A pintura tem estreita relação modulação de uma espacialidade prévia. básico é saber ver. E o ver está associado com a metafísica. Descartes, no entanto, Portanto, o ver tornou-se metafísico. ao movimento do olhar (eu posso olhar!): não vê a relação entre a pintura e o ser. A visão não é certo modo de pensamento o mundo visível e os projetos são partes Fixa-se, por isso mesmo, no desenho. A ou da presença de si: é o meio que me é totais do ser. pintura é então mera cópia do existente. dado de estar ausente a mim mesmo, de Meu corpo é vidente e visível, de “O olho vê o mundo, e o que falta ao assistir de dentro à fissão do ser, no termo modo que todos os aspectos da pintura mundo para ser quadro, e o que falta ao da qual me fecho sobre mim. Em pintura influenciam nosso corpo. A imagem não quadro para ser ele próprio, e, na paleta, não há problemas separados, pois o pintor é mera cópia, pois o olho vê o mundo e a cor que o quadro espera; e vê, uma transforma os dados de todos os outros em o que falta ao mundo para ser quadro. vez feito, o quadro que responde a todas nova experiência da realidade, de modo que O olho é aquilo que foi comovido por um essas faltas, e vê os quadros dos outros, a pintura nunca acaba. Enquanto durar o certo impacto do mundo, por isso a pintura as respostas outras a outras faltas. (...) mundo... Haverá pintura. desperta e eleva à sua última potência um Instrumento que se move por si mesmo, Considerações finais delírio que é a própria visão. A interrogação meio que inventa seus fins, o olho é aquilo Entre Heidegger e Merleau-Ponty, em da pintura visa a essa gênese secreta e que foi sensibilizado por certo impacto do seus diferentes percursos fenomenológi- febril das coisas em nosso corpo, e a visão mundo e o restitui ao visível pelos traços cos, abrem-se formas extraordinariamente do pintor é nascimento continuado. da mão”, (MERLEAU-PONTY, 2004:23). novas de compreender a obra de arte. “É preciso que com meu corpo des- Não há visão sem pensamento, mas Com eles, podemos questionar o papel pertem os corpos associados, os ‘outros’, não basta pensamento para ver: a visão é acessório e periférico em nossa existência que não são meus congêneres, como diz pensamento condicionado. O mundo está atribuído a ela na visão técnico-científica a zoologia, mas que me frequentam, que em torno a mim e não diante de mim. A de mundo, hegemônica desde há muito. frequento, com os quais frequento um reivindicação final neste capítulo: a filosofia Para ambos, o fazer e o experienciar único ser atual, presente, como animal por fazer une-se à pintura. da arte atingem um contato originário e nenhum frequentou os de sua espécie, seu A História da pintura moderna tem insubstituível com o mundo e com o ser, território ou seu meio. Nessa historicidade significado metafísico e este significado um modo privilegiado de produzir-se da primordial, o pensamento alegre e impro- básico é, por um lado, a exploração de verdade que não apenas merece estimular visador da ciência aprenderá a ponderar outras regiões do ser, e, por outro, sua e auxiliar o pensamento filosófico, mas sobre as coisas e sobre si mesmo, voltará própria manifestação. Assim: tem seu lugar e valor próprios no habitar a ser filosofia (...).”, (MERLEAU-PONTY, 1) a profundidade é a deflagração do do mundo pelo homem n 2004:17). E ainda: “Que seria a visão sem ne- nhum movimento dos olhos, e como esse movimento não confundiria as coisas se ele próprio fosse seu reflexo ou cego, se não tivesse suas antenas, sua clarividência, se a visão não se antecipasse nele? Todos os meus deslocamentos por princípio figuram num canto de minha paisagem, estão reportados ao mapa do visível. Tudo o que vejo por princípio está ao meu alcance, pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do ‘eu posso’. Cada

47 j j 48 Reinaldo Peixe Lima Cel Av (Jaguar 25), Cmt 1º GAC 1988/1989 [email protected] QUASE MORRI...

quela noite em Santa Cruz estava esquadrilha, faz algumas perguntas para Partida dada e cheques realizados, muito escura, e acho que até um verificar os conhecimentos dos pilotos iniciamos o táxi. O líder passou pela minha Apouco sinistra... em Curso. frente, acompanhado a uma distância Estávamos em 1973. Eu e mais seis Briefing encerrado, todos os procedi- razoável pelo número 2, seguido pelo nú- pilotos da minha turma, que havíamos mentos acertados, seguimos então para mero 3. Só então iniciei meu táxi. Seguimos chegado ao 1º Grupo de Caça em 1971, a Sala do OPO (Oficial de Permanência lentamente, mantendo a distância, em fila acabávamos de ser declarados Líderes de Operacional), onde recebemos as últimas indiana, até à lateral da cabeceira da pista Esquadrilha de Caça. Éramos todos jovens informações sobre a meteorologia na 22, onde estacionamos a 45° para o cheque tenentes, porém já com uma razoável área. Nessa hora recebi a confirmação do final. Após novo contato com a Torre, experiência de voo, pois tínhamos voado o meteorologista que a base da camada de esta autorizou então que a Esquadrilha TF-33, o F-8 Gloster e o AT-26 Xavante, e nuvens estava em torno dos 2.000 pés. entrasse na pista e tomasse posição para acumulávamos já umas 450 horas de Caça. Já equipados com o macacão anti-G, a decolagem. Naquela noite eu estava escalado colete salva-vidas e capacete de voo, Neste tipo de missão a decolagem da para ser o checador de uma esquadrilha dirigimo-nos para a pista. Antes, porém, Esquadrilha é feita individualmente, pois a em um voo por instrumentos noturno, do passamos na Casa de Pista (como é co- reunião das aeronaves após a decolagem qual constavam procedimentos IFR, no nhecida a Sala da Manutenção), localizada vem a ser também uma parte importante Galeão e em Santa Cruz. Quem estaria ao lado do pátio de estacionamento, onde do treinamento dos pilotos. sendo avaliado por mim era o Líder da verificamos a disponibilidade e condições O líder tomou sua posição do lado Esquadrilha, que já havia apresentado dos aviões. Dali, partimos acompanhados esquerdo da pista, colado às luzes de alguns problemas durante o seu Curso de pelos mecânicos de voo, cada um para a balizamento. O número 2 parou à sua Liderança. Além do líder, o número três sua aeronave. direita, bem próximo, em uma relativa de estaria também sendo avaliado. Caminhando para o meu Xavante, dei 45°, e assim o número 3, e eu, número 4, Neste tipo de voo, o líder em formação uma olhada no céu e constatei novamente na mesma relativa, fechando a raia. Nesta é responsável pelo planejamento de toda que a noite estava escura pra cacete. Não posição, o último avião da Esquadrilha a missão. Durante o briefing, que iniciou dava para ver nem estrela, nem lua, nada. alinha os três capacetes de voo dos pilotos conforme previsto, 1h30 antes do horário Para quem já operou noturno em Santa à sua frente, na mesma relativa de 45°. marcado para a decolagem, todas as infor- Cruz, deve estar lembrado do “negrume” Pronto: estão todos em posição para a mações relativas ao voo foram passadas em que se entra logo após a decolagem decolagem. à esquadrilha. na pista 22 (rumo Sul): não há qualquer Decolagem autorizada, o líder coman- O líder acertou os relógios, e iniciou referência visual, pois não existem cidades dou pelo rádio a aceleração dos motores sua explanação sobre todas as fases do ou aglomerações de casas, somente as para 100% e acendeu os faróis do avião. voo: frequências rádio que seriam utiliza- águas escuras da Baía de Sepetiba e a Este era o sinal de que ele estava pronto das, procedimentos de táxi e decolagem, Restinga da Marambaia. A primeira refe- para decolar. Todos acenderam seus reunião da esquadrilha, procedimentos rência – a iluminação da vila de Itaguaí – só faróis, e o líder soltou os freios iniciando por instrumento, velocidades utilizadas, vai aparecer depois de quase 180° de curva sua corrida de decolagem. A partir daí, o procedimentos de emergência, enfim, pela direita. número dois esperou cinco segundos e tudo foi apresentado aos pilotos. O briefing Bem, naquela noite não deu outra: a soltou os freios. O número três agiu da se encerrou com a clássica pergunta: – pista 22 era a pista em uso... mesma forma e também o número quatro. “Alguém tem alguma dúvida?” O líder fez o cheque rádio no horário pre- Assim, 15 segundos depois do líder, eu Nessa hora o checador, que é o visto e, logo em seguida, a Torre autorizou- iniciei minha corrida de decolagem, com responsável pelo voo e pela avaliação da -nos a dar a partida nos quatro Caças. o tanque da ponta da asa passando rente

49 j às luzes de balizamento, do lado direito tanto? Apesar de estar na relativa correta e com os outros membros da Esquadrilha. da pista. com o motor a pleno, meu avião não estava O líder iniciou seus comentários sobre o Alguns cuidados devem ser tomados se aproximando do número 3. Percebi voo e, quando chegou no item “curva de neste tipo de decolagem noturna: então que o Xavante estava meio mole em decolagem”, informou-nos que, devido ao – os pilotos têm de manter “cravada” minhas mãos, e o manche leve demais para fato de ter encontrado algumas nuvens a reta na corrida de decolagem para não o meu gosto. pela frente, preferiu não entrar em con- deixar turbulência para quem vem atrás, Foi então que meu “Anjo da Guarda” – dições de voo por instrumento (IFR) e, evitando também de pegar a turbulência velho e querido amigo que me acompanha em decorrência disso, “teve de fechar um do avião da frente; até hoje – bateu no meu ombro e falou bem pouco sua curva de reunião e perder um – após a decolagem, o líder tem de baixinho: – “Olha pra dentro do avião, ô pouco de altura...” se manter na reta durante um minuto no tenente!...” (Ele sempre me chamou pelo Agora a coisa estava explicada: eu mínimo, subindo em busca da altitude posto...). E eu olhei, e gelei... quase “pulara o muro”, quase desencarna- recomendada – no caso 1.000 pés (300 Foi uma triscada de olho, uma fração ra, por conta dessa decisão. As consequ- metros) – antes de iniciar a curva de de segundo, e o que eu vi primeiro foi o ências para mim, o número 4, que estava reunião; altímetro do Xavante (que fica no lado pendurado lá embaixo, na ponta do chicote, – sempre subindo, o líder inicia uma direito do painel frontal do avião) indicando por muito pouco – questão de centímetros curva de pequena inclinação para reunir que minha altitude estava abaixo de zero ou segundos – não foram trágicas... a Esquadrilha, reduzindo o motor para pés! Em seguida vi o mar, a superfície da Relatei então o que havia aconte- 90%, e embalando o avião para 200 nós Baía de Sepetiba, que estava tão próxima cido comigo, e a experiência serviu de (350km/h). que a fraca luz de navegação da ponta de ensinamento a todos os integrantes da Decolei, recolhi o trem de pouso e, minha asa direita conseguia iluminá-la, Esquadrilha. Quanto ao líder, foi feita sempre de olho no avião de número 3, re- dando-lhe um tom esverdeado assustador! uma avaliação bastante detalhada de sua duzi um pouco o motor. Naquela situação, Eu estava em uma curva pela direita, de performance operacional pelo Conselho de já dentro do “breu total”, a única referência quase 60º de inclinação, com uns 130 Instrução do Grupo de Caça, que decidiu que eu tinha eram as luzes de navegação nós de velocidade, e prestes a colidir com pela repetição da missão, e determinou ao dos aviões à minha frente. o mar! Imediatamente nivelei as asas Esquadrão um acompanhamento detalhado Para quem não é do ramo, imagine- do Xavante, colei o olho no indicador de de seu desempenho em todos os voos dali -se pilotando um carro a 350 km/h e, na atitude, e comecei a subir lentamente na para a frente. escuridão total, ter de se aproximar a dois reta, ganhando velocidade. Desta vez foi quase! Fazendo uma metros de um outro carro, que está na Depois que consegui levar o avião para retrospectiva dos vários “inesquecíveis mesma velocidade e em curva, e do qual uma situação controlável, ordenei ao líder momentos” pelos quais passei em minha você só vê as lanternas traseiras. Pois bem, para subir imediatamente para 2.000 pés, vida como piloto de Caça, creio que este com avião é muito mais difícil, porque além e reunir a Esquadrilha na vertical do VOR foi um dos mais emocionantes, pois até do mais, você tem de trabalhar nas três de Santa Cruz. Respirei fundo, e só então hoje tenho “o filme” nitidamente gravado dimensões... percebi que estava com a adrenalina a mil, na memória n O líder iniciou a curva de reunião e, saindo pelos ouvidos! automaticamente, o número 2, o número 3 Como eu tinha ido parar naquela e eu iniciamos também as nossas curvas. situação? Sempre cortando a curva do avião do Atingi 1.000 pés e curvei para a direita, líder e buscando uma relativa de 45° com aproando o VOR. Como a base da camada a sua trajetória, a reunião da Esquadrilha de nuvens devia estar acima de 2.500 pés, deve normalmente ocorrer antes dos 180° logo avistei a Esquadrilha e me reuni a ela. de curva. É importante repetir que nessa A partir daí o voo seguiu normal, com a hora, durante a reunião noturna, o piloto realização dos procedimentos previstos no está com os olhos grudados nas luzes do Galeão e em Santa Cruz. Eu, porém, duran- avião à sua frente, que vem a ser sua única te todo o voo, estava meio besta, pensando referência. na minha quase “pulada de muro”. Lá pelas tantas eu me senti um pouco Pousamos em Santa Cruz depois de desconfortável. Alguma coisa estava er- uma hora de voo, e fomos para o “debrie- rada. Porque a reunião estava demorando fing”. Até aí eu não havia comentado nada j 50 SEGURANÇA E PRIVACIDADE DE DADOS ANTECEDE A LGPD

Em 2020, a fintech Zetra completa duas décadas no mer- cado brasileiro e 16 anos de parceria com a Força Aérea Brasilei- ra, fornecendo a gestão de benefícios consignados segura e efi- ciente. Seja pelo aplicativo do celular ou no computador, o militar pode acessar o Portal de Consignações eConsig.

A plataforma que conecta o militar a diversas diversos fornecedores de benefícios, via desconto em folha de pagamen- to, continua investindo fortemente na segurança das informa- ções do Portal eConsig. Com a entrada em vigor da Lei 13709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD), a empresa já realizou diversas ações para adequação e conformidade com a nova legis- lação . “Para nós, a preocupação com segurança e privacidade de dados antecede a publicação da Lei 13709/18 (LGDP). Desde a criação do eConsig, plataforma pioneira e líder no mercado, atuamos como um canal entre as instituições financeiras/sociais (consignatárias) e os profissionais (servidores públicos/militares/ colaboradores/aposentados) através da relação que eles têm com o empregador (consignante). Com isso, a Zetra se preocupa e investe fortemente na garantia da confidencialidade, integrida- de, disponibilidade e privacidade dos dados”, informa Eloi Rezen- de, diretor de Governança, Risco e Compliance da Zetra.

Cabe ressaltar que a empresa também é certificada na Eloi Rezende, norma ABNT NBR ISO-9001 - Gestão da Qualidade desde 2015, Diretor de Governança, Risco e na norma ABNT NBR ISO/IEC-27001 - Gestão da Segurança da e Compliance da Zetra. Informação desde 2013, e que optamos também por adotar os controles definidos na ABNT NBR ISO/IEC-27701, que é uma nor- Aponte a câmera do celular, ma com diretrizes e requisitos específicos para Gestão da Priva- escaneie o QRcode e baixe o cidade da Informação, alinhada com a General Data Protection aplicativo eConsig Regulation (GPDR) e a LGPD.

Sobre a Zetra

A Zetra é uma fintech brasileira que oferta tecnologia e serviços que promove o bem-estar, inclusive financei- ro, dos militares, servidores e empregados de empresas públicas e privadas. São 20 anos de atuação no mercado, com a missão de empoderar pessoas por meio dos seus salários. O portal de consignações eConsig foi desenvolvido para conectar empresas e instituições a diversos fornece- dores de benefícios, via desconto em folha, permitindo às pessoas o acesso fácil a uma cesta de produtos e serviços com melhores preços e condições, com contratação online, de forma ágil, conveniente e muito sustentável. Atualmente, são cerca de 4 milhões de empregados beneficiados pela sua tecnologia em todo o Brasil e no mundo. A fintech brasileira atende o Tribunal de Contas da União (TCU), a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro, o Su- premo Tribunal de Justiça (STJ) a Peugeot/Citröen e muitas outras instituições fundamentais. Por meio da SalaryFits, possui atuação em países como o Reino Unido, Índia, Itália, Portugal, Espanha e México. j 52