CURSO DE BACHARELADO EM PRODUÇÃO CULTURAL

LUDMILA NOGUEIRA FERREIRA

ENCENAÇÃO DO POPULAR NO PROGRAMA ESQUENTA!

IFRJ – CAMPUS NILÓPOLIS

2017 2

LUDMILA NOGUEIRA FERREIRA

ENCENAÇÃO DO POPULAR NO PROGRAMA ESQUENTA!

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à coordenação do Curso de Bacharelado em Produção Cultural, como cumprimento parcial das exigências para a conclusão do curso.

Orientadora: Profa. Dra. Isabel Milanez Ostrower

IFRJ – CAMPUS NILÓPOLIS

2º SEMESTRE/2016 3

IFRJ – CAMPUS NILÓPOLIS

F383e Ferreira, Ludmila Nogueira

Encenação do popular no programa Esquenta! / Ludmila Nogueira Ferreira; Orientadora Isabel Milanez Ostrower-- Nilópolis, RJ, 2017.

64 .f., il ; 30 cm

Trabalho de conclusão de curso de Bacharelado em Produção Cultural - Instituto Federal Rio de Janeiro - IFRJ, com cumprimento parcial das exigências para conclusão de curso.

1. Cultura Popular. 2. Encenação do popular. 3. Programas de Auditório 4. Esquenta I. Ostrower, Isabel Milanez, Orient. II. IFRJ. III. Título.

CDU 316.7: 654.172

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LUDMILA NOGUEIRA FERREIRA

ENCENAÇÃO DO POPULAR NO PROGRAMA ESQUENTA!

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à coordenação do Curso de Bacharelado em Produção Cultural, como cumprimento das exigências para a conclusão do curso.

Aprovada em___ de ______de 2017.

Conceito: ______(______)

Banca Examinadora

Profa. Doutora Isabel Milanez Ostrower (Orientadora/IFRJ)

Profa. Especialista Suéle Maria de Lima (IFRJ)

Mestre Ohana Boy de Oliveira (UFF)

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, sem os quais não seria quem sou. Aos amigos que fazem o fardo da vida ser menos pesado. Ao IFRJ Campus Nilópolis e aos professores, por me mostrarem as belezas de Produção Cultural.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, sempre, gostaria de agradecer a Deus e à Nossa Senhora Aparecida por cuidar de mim, me proteger e me dar força para passar por esses 4 anos de faculdade e, principalmente, por esse processo de escrita. Pela minha fé, que foi expandida e cresceu em respeito a tantas outras religiões e divindades.

Aos meus pais, minha base e meu porto seguro, que sempre apoiaram minhas escolhas, principalmente a acadêmica. À minha mãe, guerreira que me carregou por 9 meses, me deu carinho e cuidou de mim como pôde enquanto trabalhava e, mesmo depois de perder o emprego, deu sempre um jeito para me dar as melhores coisas, educação, roupas, presentes e amor. Agradeço pela sua vida, já que uma vez estivemos tão próximas de não estarmos mais juntas. Obrigada por cada um desses 23 anos que você me acompanha e pelos 4 em que você acordou de madrugada para me colocar no ônibus, se preocupou com meus trabalhos, fez marmita para eu comer no estágio e foi me buscar na chegada do trabalho. Obrigada mais uma vez pela força, pelo encorajamento e pela preocupação com o desenvolvimento desse trabalho, ele é fruto muito mais do seu desejo de ver meu sucesso do que pelo meu próprio mérito. Ao meu pai, que me deu conselhos sábios quando precisei e que, apesar de não saber que eu sei, falou sempre com muito orgulho do meu curso e da minha caminhada até aqui. Pai, o barulho das suas máquinas de “serralheria amadora” me atrapalharam às vezes, mas também contribuíram para que eu tivesse mais força de vontade para terminar essa monografia. Você e a minha mãe são a luz da minha vida, sou o que sou por ter nascido filha de vocês! À minha família como um todo, pelo amor, apoio e força, eu amo vocês.

Aos meus mestres (e doutores), muito obrigada! Em primeiro lugar à minha orientadora, Isabel Milanez Ostrower, que me aceitou como orientanda e abraçou minha proposta. Isabel, obrigada pelo tempo, pelo suporte e pelo apoio. Sei que algumas vezes minha preocupação e meu medo (e eventualmente minhas lágrimas) tornaram o desenvolvimento do trabalho mais difícil, mas sou grata pelos seus conselhos, dicas e toda força nesse momento tão importante da minha 7

vida pessoal e acadêmica. Aos meus querides professores, quero agradecer a todes pelas lições e por terem me ensinado a ver a cultura de uma forma diferente, por fazerem eu me apaixonar por Produção Cultural nos mais diversos âmbitos. Agradeço principalmente à Ana Luisa Lima, Albertina Silva, Suéle Maria de Lima, Renata Silêncio, Fernanda Delvalhas Piccolo, Tiago Monteiro, João Guerreiro e Tadeu Mourão. Aos três últimos, agradeço respectivamente pelas conversas e livros, pelos favores acadêmicos e dicas de como passar por essa fase final, pelo carinho e atenção nas conversas (sendo um professor que me fez pensar fora das caixas ou sendo meu psicólogo xamânico, que me fez acreditar e respeitar culturas tão diferentes das minhas). Gostaria de fazer agradecimentos maiores e declarações francas de como minha vida mudou por causa desse curso que surgiu como bacharelado assim que entrei e que hoje apresenta tantas vitórias através des alunes. Aos mestres, com carinho, minha eterna gratidão por todos esses anos!

Aos meus amigos de colégio (Maressa Clem, Thais Barenco, Ruhan Oliveira, Taís Cidade, Paula Bigatte, Jehan Firmo, Raul Pio e Sérgio Tavares (in memorian), obrigada pelo apoio e pela diversão que sempre me proporcionam.

Aos meus colegas de trabalho (Lucy Anna Lima Alves, José Carlos Silvares Júnior, Fabiana Comparato, Zelita André, Keyna Eleison, Alice Alfinito, Nélio Albieri e Guardas Municipais), obrigada pela compreensão e pela ajuda nos momentos em que precisei, aprendi e continuo aprendendo muito com vocês.

Aos amigos que ganhei nos últimos anos (Thayara Athayde, Daniel Martins, Thaís Costa, Thais Oliveira, Bruna Soares, Matheus Mecenas, Davi Lemos e Henrique Carneiro), obrigada por não me deixarem perder a inspiração na vida ou esmorecer no meu objetivo. Vocês são incríveis!

Às minhas amigas, irmãs de coração e incentivadoras natas (Ana Carolina Reis Cavalcanti Pimentel, Ruth­Anne Santos Maciel e Fernanda Rabello), eu não tenho como agradecer o suficiente por tudo. À Ana pela acolhida, pela amizade, pela compreensão, pelo carinho e pelas lágrimas compartilhadas em cada período da faculdade. Minha vitória é a sua e a sua é minha, gêmea. Estendo meus agradecimentos à tia Angélica e à Dona Helena que se tornaram minha 8

família também, por isso e por muito mais, obrigada! À Ruth, que tive o prazer de desenvolver uma amizade que me surpreendeu pela sinceridade e afinidades tão grandes que não haviam sido descobertas antes, me fazendo adotá­la como mais uma irmã gêmea. Querida, obrigada pelas mensagens, pelos áudios e pela presença (mesmo não sendo física) na minha vida, esse trabalho também é dedicado à você. À minha madrinha, amiga, parceira de crescimento, Fernanda, um obrigada não é suficiente. Eu cresci te admirando e tendo em você mais um exemplo de mulher a ser seguido. Por todos os conselhos, puxões de orelha, shows, peças, tatuagens e fotos, eu só posso agradecer retribuindo com amor. Aqui também estendo meus agradecimentos à minha madrinha Edith e meu padrinho José Carlos, obrigada por estarem presentes sempre.

Por fim, gostaria de agradecer ao IFRJ por me tornar uma pessoa, uma aluna e uma profissional melhor. Foram muitas dificuldades e ainda serão muitas as batalhas que a instituição e o curso enfrentarão, mas acredito em seu potencial e força para realizar grandes mudanças na educação e cultura brasileiras.

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EPÍGRAFE

“Meus pensamentos são estrelas que não consigo organizar em constelações.” (John Green) 10

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar o programa de auditório Esquenta! buscando compreender como este se apropria da cultura popular e a representa na mídia televisiva. Para tanto, desenvolve­se um estudo parcial da Cultura Popular, do histórico do rádio e da televisão, bem como de alguns programas de auditório. Apresenta­se ainda o desenvolvimento do programa Esquenta! em suas temporadas e um breve histórico de sua apresentadora, Regina Casé.

Palavras­chave: Esquenta; Cultura Popular; Encenação do Popular; Programas de Auditório

ABSTRACT

This study aims to analyze the auditorium program Esquenta!, seeking to understand how this appropriate of popular culture and epresentes it at the television media. For this, a partial study is developed of Popular culture, the history of radio and television, as well as some programs of Auditorium. It still presentes development of Esquenta! in their seasons and a brief history of your host, Regina Casé.

Keywords: Esquenta; Popular Culture; Staging of the Popular; Programs of Auditorium

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1: Abelardo Barbosa (Chacrinha) – página 31

Figura 2: Chacrinha e as chacretes – página 32

Figura 3: Silvio Santos – página 33

Figura 4: Equipe da TV S – página 33

Figura 5: Silvio Santos e Chacrinha – página 34

Figura 6: Regina Casé e o grupo de teatro “Asdrúbal Trouxe o Trombone” – página 42

Figura 7: Regina Casé e a plateia – página 47

Figura 8: Regina Casé no Esquentão! – Especial Festa de São João – página 47

Figura 9: Regina Casé e dançarinas – página 48

Figura 10: Regina Casé e garis – página 52

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...... 13

2. CULTURA POPULAR...... 18

3. MÍDIA AUDIOVISUAL BRASILEIRA: DO RÁDIO PARA A TV...... 26

3.1 BREVE HISTÓRICO DO RÁDIO NO BRASIL ...... 26

3.2 OS PROGRAMAS DE AUDITÓRIO NA TV ...... 29

3.3 A REPRESENTAÇÃO DO POPULAR NOS PROGRAMAS DE AUDITÓRIO...... 39

4. “COM A REGINA CASÉ O NOSSO DOMINGO ESQUENTA!” ...... 42

4.1 UMA BREVE BIOGRAFIA DE REGINA CASÉ ...... 42

4.2 O ESQUENTA! ...... 46

4.3 ENCENAÇÃO DO POPULAR NO ESQUENTA! ...... 51

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 57

REFERÊNCIAS ...... 61

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1. INTRODUÇÃO

Minha trajetória pelo curso de Produção Cultural se iniciou sem que eu tivesse uma clara percepção sobre o mercado de trabalho e o campo de atuação de um profissional da área. Ao longo dos períodos, aprendi com os professores e as disciplinas ministradas múltiplas maneiras de se observar o mundo e as manifestações culturais. Na metade do curso, fiz a disciplina de Culturas Populares e estudei um pouco mais sobre o movimento popular brasileiro em todo o país. O objetivo era que, ao final do período, formássemos grupos e analisássemos uma representação daquilo que considerávamos popular, não necessariamente aquilo que fazia parte da cultura popular tradicional. Até aquele momento não me havia ocorrido a ideia de falar sobre os programas de auditório, nem mesmo sobre o Esquenta!. Foi a partir de um debate entre os alunos que percebi que este programa, que um dia já havia me atraído, era uma representação do popular. Durante a discussão, comecei a notar que o programa se apropriava de uma linguagem popular e como isso despertava diferentes opiniões e gerava reflexões sobre questões que ainda não haviam sido pensadas. Após o debate, foi solicitada a formação de grupos para que realizassem um trabalho a partir da escolha de um tema. Meu grupo, formado por cinco pessoas, decidiu falar sobre o programa de auditório comandado por Regina Casé, o Esquenta!. Durante as pesquisas, sugeri que tentássemos uma visita às gravações, o que me fez entrar em contato com algumas pessoas da produção no intuito de conseguir agendar um dia. Depois de conversar com uma das produtoras e de explicar nossa intenção, escolhemos o dia.

Em 1o de outubro de 2014, eu e uma colega do grupo fizemos uma visita ao programa Esquenta!. O estúdio onde ocorrem as gravações localiza­se no Projac1, no Rio de Janeiro. O programa, que é exibido aos domingos e tem duração de 1h30min, leva em torno de 5 a 6 horas para ser gravado. Ao chegar ao ambiente em que todas as caravanas e convidados esperavam, pude observar que o espaço era semelhante aos bastidores mostrados na televisão. Algumas

1 Projac ou Projeto Jacarepaguá refere­se à Central Globo de Produções, situada no bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. 14

paredes de vidro, outras de drywall e um chão acarpetado de azul marinho. A sala era ampla e tinha alguns lugares para sentar, mas não deu para acomodar todos.

Aos poucos, algumas caravanas foram chegando e trazendo grandes grupos de pessoas, as quais só descobri a origem no momento em que a divisão foi anunciada para a entrada no estúdio. Eram oriundas de algumas cidades dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Comecei a reparar nas roupas das pessoas que lá se encontravam. Algumas mulheres de blusa mais curta e colada ao corpo, calça justa e salto alto, outras de saia ou vestido. Umas maquiadas e com penteado nos cabelos, outras menos arrumadas, mas igualmente preocupadas com a aparência. Entre os homens havia quase um padrão: camisas estilo polo ou de alguma marca, bermuda ou calça jeans e tênis de marca. Muitos que trajavam roupas com as marcas à mostra tiveram que trocá­las por uma peça neutra, uma vez que o programa não pode fazer nenhum tipo de propaganda para marcas que não o financiem. Para a maioria dos participantes da plateia, estar bem vestido era importante, já que eles poderiam ter a chance de aparecer na televisão. As roupas me chamaram atenção, pois naquele momento me encontrava num ambiente em que as demarcações sociais e afirmações identitárias se faziam presentes e talvez o que se vestia e a maneira como se portava tais vestimentas fossem elementos simbólicos importantes de distinções e hierarquias sociais. Não me interessa, neste trabalho, particularmente nesta introdução, desenvolver sobre este assunto, mas vale destacar que reparar em roupas é algo comum na minha rotina e nesse dia em especial, em que a maioria das pessoas era desconhecida mas compartilhava da mesma espera que eu, observar seus trajes se tornou uma forma de passar o tempo (e quem sabe de criar vínculos ainda que passageiros).

Depois de uma longa espera para o início da gravação, a plateia foi dividida para organizar melhor a entrada e o local que cada um ocuparia nas arquibancadas e balcões. O tema2 do programa daquele dia era “Sertanejo” e contava com a presença de cantores como Leonardo e Eduardo Costa, atores

2 O Esquenta! iniciou uma dinâmica temática a partir da terceira temporada, em 2013. A partir de então, a cada novo programa, é apresentado um tema ligado à cultura popular ou à história do Brasil. 15

como Fábio Assunção e Filipe Pontes (que imita Fábio em programas de TV e stand up comedy3). Com a plateia organizada, foram passadas instruções do que era permitido e de como as pessoas deveriam agir diante de uma atração. Os produtores nos instruíam a evitar fazer barulhos, não filmar ou tirar fotos durante as gravações e em hipótese alguma levantar sem que nos fosse solicitado. Os aplausos e sinais de animação do público também foram gravados antes do programa se iniciar, com a intenção de já ter essas “reações espontâneas” para o caso de algum imprevisto ou qualquer desânimo, sobretudo porque o tempo de gravação é longo. Pelo menos 15 minutos antes das gravações, a apresentadora Regina Casé se apresentou de maneira informal, explicando que o silêncio, em determinados momentos, era imprescindível porque ela não poderia forçar suas cordas vocais para cobrir a falação do público diante das atrações. Durante sua fala, foi possível observar, ao fundo do palco, Hermano Vianna, Estêvão Ciavatta, Guel Arraes e Mônica Almeida que representavam, respectivamente, o grupo de criação e os diretores do programa. No entanto, não ficaram muito tempo no estúdio, aparentemente foram apenas conferir se estava tudo correndo bem.

O figurino dos dançarinos e dançarinas era um pouco discrepante, enquanto umas meninas usavam roupas mais curtas, outras usavam roupas mais fechadas. Já entre os homens, não se observava nenhuma roupa que causasse desconforto ou que chamasse muita atenção. A apresentadora usava um traje no estilo country, composto por uma blusa de mangas compridas e franjadas, uma calça pantalona franjada nas laterais e uma bota de salto médio. Esta, segundo a mesma, era muito desconfortável e a deixou bastante irritada durante toda a gravação. Seu comportamento com o público presente também me chamou atenção. Diante das câmeras, mostrava­se receptiva e amigável, mas quando ouvia­se o “corta” da direção, o tratamento era completamente diferente, agindo, muitas vezes, de forma rude e de maneira impaciente tanto com a plateia quanto com sua equipe de produção.

3 Stand Up Comedy é mais conhecido no Brasil como “comédia em pé”, em que o ator ou humorista se apresenta em pé sem a ajuda de elementos cênicos, como cenário, personagem ou caracterização. 16

Durante a gravação, a repetição de alguns quadros e conversas fazia o tempo se arrastar, confirmando a previsão da produção de que o público desanimaria. Em muitos momentos, quando a apresentadora se dirigia a algum convidado e a resposta não era satisfatória ou a mesma não tinha lido suas fichas corretamente, errando alguma informação, era necessário que todo o trecho fosse gravado novamente. O auge do cansaço foi quando o cantor Péricles e o ator Fábio Assunção tiveram que cantar uma música juntos. Ambos erravam a letra ou a esqueciam, o que levou a pelo menos cinco regravações até que eles pedissem a letra no teleprompter4 para que pudessem cantar sem percalços. Além disso, ocorreram entrevistas, o quadro “Roleta Musical”, o sorteio de brindes com participação da plateia, o quadro de humor feito por Douglas e Mumuzinho e, como de costume, as rodas de samba que, nesse dia, contavam com a presença do tradicional grupo de samba carioca “Fundo de Quintal”.

A gravação terminou às 20h30 da noite, com a apresentadora desanimada e insistindo na sua finalização, alegando estar passando mal. Assim que o programa foi encerrado, fez­se um cordão de isolamento para que os artistas e elenco pudessem se retirar sem qualquer incômodo por parte da plateia, que esperava ansiosa por uma possível aproximação. Depois da saída do público, iniciou­se o processo de organização das caravanas para que todos fossem embora sem grandes dificuldades.

Após essa visita e uma observação preliminar de como funciona o programa, meu interesse pelo assunto foi se intensificando. Comecei a fazer pesquisas, conversar com professores e pessoas da área de comunicação, procurar livros e textos sobre o tema. Neste trabalho, de forma particular, dou continuidade às pesquisas que se iniciaram quando cursei a disciplina de Culturas Populares, em maio de 2014, buscando compreender de que forma a cultura popular é representada nos programas de auditório e em especial no Esquenta!.

A metodologia de trabalho baseou­se na observação presencial do programa, ocorrida em 2014, e nas observações, pela televisão, de todas as

4 Equipamento acoplado às câmeras onde é exibido o texto ou o conteúdo que deve ser falado por jornalistas e apresentadores de programa, facilitando a transmissão da informação. 17

temporadas, incluindo a última, realizada em 2016. A revisão bibliográfica de alguns artigos, trabalhos e livros também fizeram parte da estruturação dessa monografia.

O trabalho está dividido em três capítulos, de maneira a apresentar o conteúdo gradativamente. No capítulo sobre cultura popular, apresentando a distinção inicial entre suas vertentes erudita e popular, bem como a forma como esta é vista e utilizada em diferentes meios, inclusive na mídia. No capítulo seguinte resgato o período comunicacional anterior à televisão, apresentando uma breve história das rádios e de como estas foram uma base dos programas de auditório. Discorro também sobre as mudanças que ocorreram na medida em que novas emissoras de televisão foram surgindo, assim como vozes e rostos já conhecidos foram se tornando sucesso em programas televisivos. Os programas de auditório, seus principais expoentes e as atrações que surgiram a partir do fim da década de 1980 são apresentados para discutir posteriormente sobre como estes representam o popular frente às câmeras. O último capítulo é dedicado à Regina Casé e o Esquenta!. Nesse caso, apresento uma breve biografia da apresentadora, de modo que alguns acontecimentos de sua vida possam ilustrar sua contribuição (e de alguns parceiros de trabalho) na concepção e realização do Esquenta!. Ainda nesse capítulo discuto a encenação do popular e a maneira ambígua como o programa se direciona e dialoga com o público. Encerro com algumas considerações sobre o desenvolvimento dessa pesquisa, realizando um balanço sobre a importância da mesma em minha formação acadêmica e apontando possíveis caminhos de desdobramento.

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2. CULTURA POPULAR

A chamada cultura popular começou a receber atenção no fim do século XVIII, quando a Europa passava por mudanças sociais e econômicas devido ao início da Revolução Industrial. A nova forma de divisão da sociedade, com grande parcela de pessoas migrando para o meio urbano, modificou também as práticas culturais. Apesar de uma disparidade entre cultura erudita e cultura popular, muitas atividades culturais, nessa época, ainda eram praticadas por toda a população, como as crenças religiosas, as superstições e os jogos realizados pelas camadas subalternas, como assinala Ortiz (1985 apud CATENACCI, 2001, p. 29). O distanciamento entre as pessoas que se identificavam com as práticas citadas se intensificou devido a fatores políticos que causaram uma série de transformações tais como “a administração unificada dos impostos, da segurança e da língua” (Catenacci, 2001). Após uma intensa migração populacional, no intuito de acompanhar as transformações que a Revolução Industrial proporcionava, novas divisões sociais foram constituídas e com elas reforçou­se o distanciamento entre as práticas de algumas culturas. Se antes a cultura praticada pelos subalternos tinha um valor diferenciado da praticada pelos nobres e ricos, com as mudanças geopolíticas, essa lacuna se intensificou ainda mais, criando um afastamento entre as práticas culturais realizadas na cidade e também entre as práticas culturais do meio urbano e do campo.

Para alguns estudiosos daquela época, como os intelectuais românticos Jacob Grimm e Wilhelm Grimm, era necessário preservar a cultura produzida pelo povo, uma vez que as transformações pelas quais a Europa passava poderiam influenciar negativamente as atividades realizadas pelas camadas populares. Uma das formas encontrada pelos irmãos Grimm foi registrar histórias e tradições em contos, para que estas não fossem perdidas diante de tantas mudanças. Partindo dessa premissa, o etnólogo William John Thoms cunhou o termo folk­ lore, cuja definição é “saber tradicional do povo”. De acordo com Gilmar Rocha (2009), “(...) desde então, folclore tornou­se sinônimo de ‘cultura popular’, embora nem toda cultura popular seja folclórica” (p. 219). É difícil encontrar apenas uma definição para cultura popular, mas naquele momento em que se iniciavam 19

pesquisas e maneiras de compreendê­la, o princípio estabelecido foi de que ela era o oposto da cultura erudita. Neste sentido, cultura popular se tornou uma representação de tudo aquilo que é criado pelo povo, desde danças, passando por jogos, músicas e literatura. Esta última tem destaque na França, entre os séculos XVIII e XIX, sendo nomeada de littérature de colportage, ou seja, uma literatura popular, que atingia um grande público e que contava estórias baseadas em contos populares que haviam sido transmitidos de forma oral por muitos anos.

A cultura popular pode ser compreendida através de diferentes áreas, entre elas a política, o folclore e a indústria cultural. No Brasil, esses segmentos foram importantes para o desenvolvimento da ideia mais geral de cultura popular que se tem atualmente5. Na seara política, que segue a ideia do popular como algo feito pelo povo, a perspectiva do populismo amplia essa visão e se utiliza da cultura para estabelecer um poder, normalmente através de um líder carismático que diz representar o povo. Lançando mão de políticas assistencialistas que satisfizessem necessidades da população, o Brasil dos anos 1930 contou com a figura de Getúlio Vargas, mais conhecido como “pai dos pobres”. A classe trabalhadora (considerada a classe subalterna no século XVIII) teve uma maior atenção a partir de um Estado tutelar que procurou criar leis trabalhistas resguardando seus direitos, além de educação e saúde funcionais para todos. No âmbito cultural, Getúlio fomentou políticas culturais que ajudaram a desenvolver uma identidade nacional que partia de aspectos tradicionais das manifestações culturais ao redor do país, tendo como base fazeres herdados e adaptados pelos nossos antepassados.

Vale destacar que, anos antes de Vargas se tornar presidente, mais precisamente em 1922, eclodiu o Movimento Modernista em São Paulo. A ideia era valorizar o que era nacional, buscando elementos de nossas origens como a cultura indígena e nossa língua e romper de forma radical com as estruturas anteriores, ou seja, tudo que partisse de uma visão europeia. Durante a Semana de Arte Moderna, houve muitas criações inspiradas na valorização do nacional,

5 De maneira geral a cultura popular é vista como a produção realizada pelo povo, seja artesãos ou produtores/coletivos culturais que criam músicas, literatura, peças teatrais, danças, obras de arte e outras atividades voltadas para o grande público. 20

tanto na arte como na literatura. Nesse momento, destaca­se também o movimento antropofágico, criado por Oswald de Andrade, com intuito de consumir o que era produzido pela vanguarda europeia e recriar, segundo a perspectiva nacional, uma versão brasileira.

Mais tarde, durante o governo de Getúlio Vargas, tem início o desenvolvimento de questões ligadas à educação e saúde, que posteriormente abririam espaço para a cultura. Em 1934, o presidente nomeia Gustavo Capanema como ministro da educação e da saúde e este reúne um grupo de pessoas que o ajudariam, tais como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Fernando Azevedo, Heitor Villa­Lobos, Manuel Bandeira entre outros. Uma das iniciativas foi criar o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN – que mais tarde se tornaria o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), cujo projeto ficou sob responsabilidade de Mário de Andrade. O SPHAN dividia o patrimônio em algumas categorias de arte patrimonial, como arqueologia ameríndia, popular, histórica, erudita nacional e estrangeira, aplicadas nacionais e estrangeiras. A categoria “popular” previa a patrimonialização de objetos, monumentos, paisagens e do folclore, mas não de bens imateriais como os saberes. Ainda entre 1930 e 1945, muitos setores sofreram mudanças e tiveram crescimento, como o teatro, as bibliotecas, as rádios e o cinema. Após o fim do governo de Vargas, o desenvolvimento da política cultural, entre 1946 e 1960, contou com uma presença forte do Estado e manteve algumas instituições. Muitas mudanças foram realizadas com base no que já havia sido feito, contando com alguns cortes e priorização de algumas áreas, como o folclore.

Durante esse período de mudanças e adaptações na política cultural, o folclore começou a ser investigado enquanto manifestação cultural. Para pesquisadores como Cecília Meireles, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Artur Ramos, Manuel Diégues Júnior, Renato de Almeida e outros, essas manifestações poderiam ser uma base para compreender melhor as características que tornavam a cultura brasileira tão diversa (Cavalcanti, 2001). De acordo com Vivian Catenacci (2001), “o popular, olhando pelo prisma do folclore, é o que se refere à tradição, o depósito de criatividade camponesa (...)” 21

(p.31). Os estudos sobre o folclore brasileiro também giram em torno das classes subalternas, daqueles que fazem parte das camadas mais simples da sociedade.

Em 1961, surgiram os CPCs (Centros Populares de Cultura), após muita efervescência e mudanças políticas, com o intuito de “produzir uma arte revolucionária que promova a conscientização política do povo” (ROCHA, 2009). Os CPCs viam na cultura popular um potencial revolucionário, mas “qualquer tipo de arte – desvinculada da militância política e, consequentemente, da realidade social – era rejeitada como arte alienada e alienante” (Catenacci, 2001, p. 33 apud Barcellos, 1994, p. 217). A intenção dos cepecistas era falar sobre cultura popular de maneira revolucionária e politizada, pois a arte revolucionária só podia ser vivenciada depois que os artistas se deparassem com a realidade social e se dessem conta de que “ser popular se identifica com os objetivos do povo e se une a ele na luta pela direção da sociedade” (Catenacci, 2001. p 34). Contraditoriamente, com os Centros Populares de Cultura, a cultura popular ganhou um status elitista, deixando de lado representações produzidas pelo povo, uma vez que seus integrantes não aceitavam as manifestações populares como válidas, taxando­as de “falsa cultura”, o que não condizia com o combate à alienação que eles defendiam.

No que tange aos meios de comunicação massivos, Catenacci (2001) observa que a cultura popular, como qualquer outra produção cultural, nada mais é do que fruto de difusão e integração geradas pela indústria cultural. Neste sentido, o popular é visto como algo mercantilizável que pode ser comercializado para atrair as massas. Os meios de comunicação massivos utilizam a cultura popular através de muitas linguagens, como telenovelas, cinema, revistas etc, e em diferentes gêneros (humor, drama, mitos, religiões e músicas). Sob esta perspectiva, a autora comenta que “o popular é, dessa forma o que vende, o que agrada multidões e não o que é criado pelo povo”, e completa:

Além disso, para o mercado e para a mídia, o popular não interessa como tradição, ou seja, como algo que perdura. Ao contrário, o que tem popularidade na indústria cultural deve ser, após atingir o seu auge, relegado ao esquecimento, a fim de dar espaço a um novo produto que deverá ser acessível ao povo, ser do gosto do povo, enfim, ser popular (CATENACCI, 2001. p. 32). 22

Corroborando com a ideia de Catenacci (2001), Canclini (1990) define popular como aquilo que vende, que agrada as multidões, neutralizando a força que a palavra “povo” contém, uma vez que este tem uma suscetibilidade política maior. Assim, se o que vende é o que agrada as multidões e as novas atrações que dão lugar às antigas devem ser acessíveis e do gosto delas, os programas de televisão são bons exemplos disso, principalmente os de auditório. As atrações que interagem com o público trazendo­o para participar do programa, seja em suas plateias ou em seus quadros, têm uma ligação com o popular. Os programas de auditório como Esquenta!, Caldeirão do Huck, Domingão do Faustão e Programa do Silvio Santos levam pessoas ao palco e produzem atrações que tentam dialogar com o telespectador. A rotatividade dos quadros, por exemplo, baseia­se no princípio apontado por Catenacci (2001), pois é preciso manter o interesse do público e apresentar novidades (ainda que sejam recriações de antigas atrações) o que se torna um bom recurso.

O Esquenta! segue este mesmo princípio: oferecer aquilo que é popular, através de manifestações da cultura popular e do folclore, exaltando sua importância e mostrando a transformação da tradição. Começando pelas festividades de Carnaval, em 2011, o programa levou ao ar as escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, falando um pouco da história de cada uma, relembrando os principais sambas­enredo e reproduzindo um pouco do que acorria na avenida. A apropriação cultural realizada pelo Esquenta! pode ser vista de forma semelhante no Rio de Janeiro durante o século XIX, quando o carnaval foi trazido pela Península Ibérica e ganhou maior desenvolvimento no século XX. O festejo, que era realizado em bailes das camadas abastadas da sociedade (Grande Carnaval), mas também em ranchos e blocos das camadas médias e populares (Pequeno Carnaval), era comemorado por todos, mas de maneiras diferentes. O Pequeno Carnaval, realizado pelos populares, acabou dando origem ao formato dos desfiles de Carnaval comemorados atualmente. Os ranchos eram organizados por burgueses que se fantasiavam, deslocavam­se em carros alegóricos e tinham uma marcha musical para um desfile; já os blocos eram feitos pelas camadas mais pobres, moradores do subúrbio e dos morros. De acordo com Maria Laura Cavalcanti (2001) “o surgimento das escolas de samba, na 23

década de 1920, veio confundir essas distinções, iniciando um novo tipo de carnaval, denominado por Pereira de Queiroz (op. cit) de ‘Carnaval Popular’” (p. 10).

Algumas das principais escolas de samba cariocas surgiram dos blocos que se formaram em 1920, entre eles o Deixa Falar (bairro do Estácio), o da Mangueira (homônima do morro onde foi criada), o Vai como Pode (mais tarde conhecida como Portela, de Madureira) e Salgueiro (também homônimo do morro em que foi criada). O Carnaval tem uma conexão muito grande com o povo e sua popularidade é histórica, a adaptação dessa cultura popular pela mídia, nesse caso pelo Esquenta!, mostra que as produções culturais, a princípio originárias de uma camada não hegemônica, podem ser e são consumidas por um público que não é apenas o periférico. Quanto a isso, Canclini (1990) analisa que uma das transformações que a tecnologia tornou mais evidente é a reorganização entre grupos e sistemas simbólicos, permitindo que classes sociais e estratos culturais não tenham mais separações tão rígidas devido às hibridizações. Por isso, “ainda que muitas obras permaneçam dentro dos circuitos minoritários ou populares para que foram feitas, a tendência predominante é que todos os setores misturem em seus gostos objetos de procedências antes separadas” (Canclini, 1990, p.11). O desenvolvimento do carnaval parece corroborar com as ideias de Canclini (1990) e de Cavalcanti (2001) para quem

o impulso criativo popular agregou segmentos de outras camadas sociais e elementos artísticos das outras formas carnavalescas. As escolas de samba são produto do encontro do morro e das áreas periféricas com a cidade como um todo, resultam da interação do universo popular em expansão com outras camadas da sociedade (CAVALCANTI, 2001. p. 11). Após desenvolver o tema do carnaval com êxito, o programa começou a explorar outros temas como a Festa de São João, com dois especiais dedicados às festas típicas de meio do ano. Neste caso, a apropriação cultural feita pelo Esquenta! se dá pela recriação de uma festa popular, transformando­a num encontro que não gira apenas em torno da religiosidade, mas sim de outros rituais festivos que essa data remete como danças típicas (que mais tarde transformam­ se nas quadrilhas), casamentos (também incorporados à quadrilha), comidas, quermesses, etc. Essa apropriação e adaptação cultural também foram 24

desenvolvidas com outros temas já exibidos no programa, como “Amazônia”, “Cultura Chinesa no Brasil”, “Cultura Mineira” entre outros, buscando levar ao público a diversidade cultural existente no país.

A produção de cada programa passa por profissionais cujas relações com os temas são distintas, o que revela diferentes concepções envolvidas. Com uma equipe multidisciplinar como o antropólogo e redator Hermano Vianna, o diretor artístico e de núcleo Guel Arraes, a diretora geral Mônica Almeida e o redator Êstevão Ciavatta, o Esquenta! acaba realçando essas diferentes visões. No caso de Hermano6, que por muitos anos estudou manifestações como funk, samba, e pop­rock, a ideia é apresentar a cultura popular como uma atração televisiva, mostrando seu leque de possibilidades. O aparato teórico de Hermano parece ser colocado em prática por colegas como Regina e Êstevão que conseguem fazer essa transposição midiática de maneira simples e palatável para um maior público. Já Guel e Mônica são responsáveis por dar vida a essas ideias, representando­as através da composição de núcleos como convidados, músicos, dançarinos e plateia.

O programa, ao se apropriar de uma cultura não hegemônica, busca torná­ la acessível a todas as camadas, com uma linguagem que possa ser compreendida por todos. Vale ressaltar que a cultura não hegemônica, ou melhor, a elaboração de obras e atividades que partem de uma minoria ou de áreas e setores periféricos, deve ser compreendida aqui como manifestações que são atravessadas por práticas hegemônicas e não como polos opostos. São, portanto, produções que dialogam, que ocorrem em paralelo, ainda que hierarquias e estigmas permaneçam em nossa sociedade. Desta forma, práticas culturais como as desenvolvidas por artesãos e artistas periféricos ainda precisam de mediações como o Esquenta! para que possam ser reconhecidas e valorizadas na sua potencialidade e não apenas como bens de consumo.

6 Dentre os trabalhos de Hermano Vianna destacam­se O mistério do Samba (1995), O mundo Funk Carioca (1997) e Galeras Cariocas (1997), bem como artigos para jornais e revistas abordando assuntos como música e cultura popular, como o “Funk e Cultura Popular Carioca” (Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n.6, 1990, p. 244­253). 25

No próximo capítulo veremos como a cultura popular, que se tornou uma fonte de inspiração para muitos artistas e estudiosos, começou a ser representada nos meios de comunicação como o rádio, que se difundiu pelo Brasil entre os anos 1920 e 1930, levando notícias, músicas e atrações de auditório a cada lar brasileiro. Anos mais tarde, foi a vez da televisão levar às casas dos telespectadores atrações inspiradas na cultura popular, trazendo à cena nacional grandes figuras televisivas como Abelardo Barbosa (Chacrinha), Flávio Cavalcanti e Silvio Santos.

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3. MÍDIA AUDIOVISUAL BRASILEIRA: DO RÁDIO PARA A TV.

3.1­ Breve histórico do rádio no Brasil

O rádio surge oficialmente no Brasil no dia 7 de setembro de 1922, data de comemoração do centenário da Declaração de Independência. Neste dia ocorreu a transmissão do discurso do então presidente da república, Epitácio Pessoa, e da ópera O Guarani, tocada diretamente do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ainda demoraria algum tempo até que a primeira emissora de rádio (Rádio Sociedade) surgisse no Brasil, sendo inaugurada por Roquette Pinto7 em 1923. Em 1924 e 1926, surgiram, respectivamente, as emissoras Rádio Clube do Brasil e Rádio Mayrink Veiga, seguidas por outras criações.

Em 1930, o rádio chegou ao seu ápice e passou a ter um papel fundamental na difusão das mudanças político­econômicas que ocorriam no país. Foi instaurado um momento de expansão econômica, onde muitos investimentos estrangeiros eram feitos o que, consequentemente, ajudou no crescimento das rádios. Sobre esse processo de desenvolvimento, Magnoni (2010) comenta:

A partir de 1930, a educação pública e a radiodifusão passaram a desempenhar papéis estratégicos para o desenvolvimento de uma nova ordem interna, nos aspectos econômico, político e cultural. Como parte da mesma estratégia de poder, o governo federal criou o Ministério da Educação, estimulou a instalação das salas de exibição de cinema sonoro em cidades e povoados pelo interior do país e distribuiu concessões de emissoras comerciais para localidades com potencial de desenvolvimento econômico (MAGNONI, 2010 apud RODRIGUES, 2013). Em 1936, observando a grande influência que o rádio tinha sobre a população da Alemanha nazista e da Itália fascista, o presidente Getúlio Vargas criou a Rádio Nacional. A emissora era responsável por transmitir aos ouvintes os feitos do governo e de propagar os interesses do Brasil em tratos com o exterior. A Rádio Nacional, bem como as outras emissoras da época, transmitiam diariamente outra criação de Vargas, a “Hora do Brasil” que, mais tarde, tornou­se a “Voz do Brasil”, apresentando notícias sobre a política e a cultura do país. Com

7 Professor, médico legista, antropólogo, etnólogo e ensaísta brasileiro é considerado um dos precursores da radiodifusão no Brasil. 27

o passar dos anos, a Rádio Nacional começou a ampliar sua programação e a difundir a música popular brasileira8, revelando novos talentos como Cauby Peixoto, Carmem Miranda, Aracy de Almeida, Francisco Alves entre outros.

Com o desenvolvimento das rádios e um ótimo retorno de audiência, a partir de 1940 estabeleceu­se a “Era do Rádio”. Nesse momento, surgiram novas formas de programação como as radionovelas, os programas musicais e os jornalísticos, que aos poucos foram ganhando espaço. A rádio era responsável não só por transmitir informações, mas também por entreter e trabalhar com o imaginário dos ouvintes. Um dos grandes exemplos do meio radialístico foi Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Durante o momento de ouro que viviam o rádio e os cassinos do Rio de Janeiro, o então radialista colocou no ar um programa intitulado O Cassino da Chacrinha, em alusão ao bairro da cidade de Niterói (RJ) de onde Abelardo costumava fazer as transmissões. As imitações e os efeitos sonoros realizados no programa pareciam tão reais que alguns ouvintes acreditavam na existência do cassino que dava nome à atração. O mesmo ocorria com as radionovelas9 que estimulavam a imaginação dos ouvintes, fazendo­os imaginar feições, cenários, figurinos e ambientações de acordo com as descrições feitas a cada capítulo.

A partir dos anos 1950, mais precisamente no dia 18 de setembro, o Brasil iniciou seus primeiros contatos com a televisão. Seu precursor foi Assis Chateaubriand, fundador da primeira emissora de televisão do Brasil. Apesar do rádio ainda fazer um grande sucesso com o público, os aparelhos televisores, que prometiam unir imagem e som, eram a novidade do momento. Assim como os rádios, as primeiras televisões que chegaram ao país não eram economicamente acessíveis. Assis Chateaubriand trouxe alguns aparelhos para distribuir no Brasil, com o intuito de gerar público para a emissora que iria inaugurar. Tal quantidade

8 Com o apoio de Vargas e seu interesse em estabelecer uma identidade nacional, muitos maestros foram contratados pela Rádio Nacional para ajudar a moldar o estilo musical que o país assumiria, compondo diariamente alguns arranjos musicais que se tornariam base para a música popular. Com ampla transmissão nos rádios e depois nos cinemas, como trilha sonora das “chanchadas”, a música popular brasileira ganhou status de identidade nacional. Apesar da Rádio Nacional ser sediada no Rio de Janeiro, as manifestações culturais por ela disseminadas ganharam repercussão nacional, vindo mais tarde a competir com a produção cultural de São Paulo e estabelecendo o conhecido eixo político­cultural Rio­São Paulo. 9 Novela transmitida através de emissoras de rádio em capítulos curtos e geralmente diários. 28

não foi suficiente para distribuir às muitas famílias, mas foi o chamariz para atrair a atenção de outras pessoas, assim como dos anunciantes que antes tinham parceria e davam suporte às emissoras de rádio. Abriam­se, numa escala, talvez incalculável para aquela época, novas possibilidades e formas de entretenimento e, sobretudo, de se fazer negócio.

Assim que a TV chegou ao Brasil, em 1950, Chateaubriand criou o primeiro canal de televisão, intitulado TV Tupi. Logo depois foram criadas as TV Rio e TV Record, que se uniram formando as Emissoras Unidas. Ao longo dos anos, mais emissoras receberam concessão do governo para que fossem ao ar, entre as principais destacam­se TV Globo (1965), TV Bandeirantes (1967) e SBT (1981). Com o advento da televisão, muitos artistas e radialistas migraram para o novo meio de comunicação, fortalecendo seu crescimento frente a um novo público, os telespectadores. Apesar de conquistar muitos adeptos, ainda havia uma parcela da população desconfiada do novo advento tecnológico.

(...) Para uma infinidade de pessoas, o aparelho não passava de um fogo de palha tecnológico destinado ao esquecimento. Além disso, ainda havia crendices como: ‘Não toque na tela que dá choque’; ‘Se deixar muito tempo ligada, explode’; ‘Assistir por muito tempo deixa a pessoa cega’ (MONTEIRO, 2014, p.87).10 Com o passar do tempo, a televisão passou a fazer parte do cotidiano das pessoas, realizando um momento de união que antes só era possível durante as refeições ou mesmo nos cultos religiosos. Devido ao alto valor, muitas famílias de classes média e baixa não tinham condições de obter um aparelho, o que fazia com que todos se reunissem e fossem assistir às atrações na casa de pessoas que o tivessem, da mesma maneira que se fazia no período em que o rádio surgiu. Entre as principais atrações, destacavam­se os programas de auditório (Cassino do Chacrinha e Programa do Silvio Santos), as telenovelas, que iniciavam seu caminho de ascensão, e os filmes da época.

10 Situações de espanto e desconfiança também estiveram relacionadas ao surgimento do cinema. Em 28 de dezembro de 1895 não mais de três dúzias de visitantes presenciaram o momento histórico da primeira sessão cinematográfica comercial do mundo. Na ocasião da exibição de “A chegada do trem na estação”, a plateia, assustada com o movimento da cena, fugiu da sala de projeção acreditando que a locomotiva sairia da tela. 29

Com o advento das emissoras de TV, as gravações de alguns programas precisavam de um espaço maior e, como a TV trouxe consigo a herança do auditório dos programas de rádio foi necessário usar os teatros para acomodar o grande público que acompanhava e participava das gravações.

3.2­ Os programas de auditório na TV

Os programas de auditório surgiram primeiramente no rádio, com a abertura dos estúdios de gravação ao público, possibilitando acompanhar de perto a atuação dos ídolos da época. Esse modelo também foi aproveitado na televisão, uma vez que muitos dos apresentadores que comandavam as atrações eram radialistas de renome que mobilizavam um grande número de fãs e ouvintes.

O primeiro programa de auditório televisionado foi “Um Instante Maestro”, de 1955 e apresentado por Flávio Cavalcanti. O apresentador, jornalista e compositor ficou conhecido também por outros programas, inclusive por um episódio de competição por audiência com Abelardo Barbosa, em que os dois “brigaram” por uma mesma atração. De forma geral, as duas figuras mais marcantes dos programas de auditório são Chacrinha e Silvio Santos, que ainda atua no canal SBT.

As atrações que contavam com a presença de público muitas vezes tinham um viés popular, com quadros que possuíam uma linguagem mais simplificada e um perfil voltado para o entretenimento. Ao acompanhar os programas de auditório, Maria Celeste Mira (1995) observa:

Um fato absolutamente notável é que quanto mais voltamos na história dos programas de auditório mais nos aproximamos do universo da cultura popular. Passando pelas histórias das primeiras emissoras de TV e das manifestações culturais que constituíram suas fontes mais diretas (rádio, a ‘chanchada’ e o teatro de revista), acabamos por descobrir sua ligação profunda com o circo e a festa popular (MIRA, 1995, p.128). Os principais programas de auditório têm como referências o circo e as festas populares ao redor do Brasil. Aquilo que conversa diretamente com o povo 30

estimula os produtores a criar novas atrações, vide a fórmula utilizada por muitos anos no SBT. Segundo Maria Celeste Mira (1995), “buscando estreitar essa identificação com o público das classes populares, [os produtores] levaram essa concepção de televisão até seus limites” (idem, p.113). A autora ainda cita a fala de um dos produtores que deixa claro que os esforços estão em testar hipóteses e ganhar “(...) confiança, que basicamente são: linguagem simples, apresentação descontraída e assuntos que estão afligindo o nosso povo mais diariamente” (idem, p.115).

Esse roteiro pode ser observado na produção dos programas do Chacrinha (Cassino do Chacrinha e A hora da buzina), bem como no de Silvio Santos (Programa do Silvio Santos). Ambos trabalhavam com a participação do público, os presentes ou os que assistiam de casa, e utilizavam bordões e ofertas de recompensas, algumas vezes exageradas, diga­se de passagem. Certa vez, um dos patrocinadores de Chacrinha ligou pedindo ajuda para esgotar o estoque de bacalhau que comprara, pois estava prestes a passar da validade. Rapidamente, o apresentador pediu alguns para que fossem distribuídos no programa. Na primeira oportunidade, Chacrinha apanhou o bacalhau e, gritando “Quem quer bacalhau?”, jogou na plateia que, sem entender muito bem, acabou disputando um pedaço do peixe conhecido pelo seu alto valor. Basicamente, os apresentadores conquistavam o público com dois ingredientes: carisma e quadros chamativos. Nesta perspectiva, Dominique Wolton (1996) defende que:

(...) a despeito de tudo aquilo que separa uns (espectadores) dos outros, existe, nos programas oferecidos, a possibilidade de participar de uma forma de comunicação coletiva. A televisão é, além disso, a única atividade que, ao lado do voto, reúne uma tal participação coletiva (WOLTON, 1996. p. 15). Seguindo este raciocínio, pode­se perceber como os programas de entretenimento e as práticas políticas possuem muitos elementos semelhantes. Ao destacar que, além do voto, a única outra atividade que mobiliza grande participação coletiva é a TV, Wolton (1996) chama atenção para o caráter eminentemente político, e não só lúdico, que os programas televisivos carregam, principalmente os de perfil popular. Sob esta ótica, a TV, enquanto um meio de comunicação de massa, tem a capacidade de interferir e criar opinião pública. Os conteúdos transmitidos por telejornais, novelas e programas de auditório emitem 31

informações que podem causar (ou até inibir) uma reflexão por parte dos espectadores. Como nos lembra Bourdieu (1997), a televisão também “oculta mostrando”. Os jornalistas, artistas e apresentadores, assim como os políticos, buscam relacionar­se de forma direta com o público e as ideias por eles emitidas (assim como os gestos, as gírias, as vestimentas ou mesmo um corte de cabelo) são fatores fundamentais na formação de opinião daqueles com quem se comunicam. O rádio e a televisão, como meios de comunicação de grande alcance, podem e são utilizados para fins político­ideológicos, através de peças publicitárias, imagens, discursos e valores que conversam e convencem o espectador diariamente.

Ao comentar sobre a capacidade de mobilização política que a televisão apresenta, Pierre Bourdieu (1997) reconhece esse papel de captação de público, mas chama atenção também para os perigos de uma possível cooptação. Assim, é preciso cautela ao lidarmos com o “campo midiático” para que aquilo que poderia se tornar “um extraordinário instrumento de democracia direta não se converta em instrumento de opressão simbólica” (Bourdieu, 1997, p. 13).

Como nos lembra Muniz Sodré, “na televisão não se trata apenas de enunciados de discursos. Se trata, sim, de envolvimento multissensorial”.11 A televisão não é apenas um veículo transmissor de conteúdos, mas ela precisa criar métodos e recursos para seduzir, encantar, atrair e até mesmo remodelar a vida e os valores das pessoas. Não à toa, Sodré acrescenta que “nessa ressubjetivação, nessa concorrência, a televisão assume um lugar de pai e mãe poderosos”. Apropriando­se de espaços antes ocupados por esferas tradicionais como a escola, a igreja e a família, a televisão – e especificamente os programas de auditório – vai se reinventando para consolidar seu poderio como uma poderosa instituição social, atraindo um séquito de fãs que se comportam de maneira similar aos seguidores de uma liderança política.

11 Entrevista para a Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 16, dezembro 2001.

32

Por muito tempo os programas de auditório foram gravados em grandes teatros, para poder comportar o número de espectadores que faziam fila para acompanhar as atrações. Ao eleger os programas de Abelardo Barbosa como indicadores de todo essa capacidade de arregimentar, Denilson Monteiro (2014) observa:

A fila para assisti­lo era enorme, o povo lutava com unhas, dentes e muita perseverança por um lugar no auditório. Mulheres e crianças tinham prioridade; homens entravam apenas se sobrasse alguma vaga. Para garantir seus lugares, as pessoas chegavam bem cedo à Pacheco Leão, passando pelo menos umas quatro horas na fila. [...] O sacrifício valia a pena, pois quando Abelardo Barbosa dava início a mais uma noite de programa, tudo ficava pra trás, dando lugar à alegria do animado ‘desanimador de auditórios’ (MONTEIRO, 2014, p. 158)

Figura 1 – Abelardo Barbosa (Chacrinha)

Fonte: Acervo Memória Globo – Disponível em:

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Figura 2 – Chacrinha e as chacretes

Fonte: Acervo Memória Globo – Disponível em:

Numa gravação onde tudo podia acontecer, de concurso de quem tem o cachorrinho mais bonito a atrações musicais, o público não queria perder nada, pois aquele era um momento ímpar de descontração e diversão. No entanto, apesar de todo o carisma e habilidade para conquistar tanto o público presente quanto a audiência, os programas de auditório eram vistos por muitos como algo marginal ou menos importante. Seus críticos diziam ser de “mau gosto”, que se sentiam ultrajados com o humor escrachado e os programas excessivamente popularescos. Chegaram até a apelidar a TV S (atual SBT) de “TV do Povão”, conforme atestam as pesquisas de Maria Celeste Mira (1995). Por volta de 1969, os programas de auditório sofreram com a criação de novas atrações para a TV, chegando a ser diretamente ameaçados por um assessor da diretoria da Rede Globo, conforme ilustra Mira (1995):

A fase das vedetes, do programa feito em torno de uma pessoa só está ultrapassada. Chacrinha, Dercy Gonçalves, Raul Longrats tiveram um papel importante no desenvolvimento de nossa linha de programação. Mas não tínhamos o telejornalismo, as novelas, a equipe de profissionais que temos hoje. Agora, os programas são feitos em equipe: esta é a tendência. (MIRA, 1995, p. 43). 34

Figura 3 – Silvio Santos

Fonte: Acervo SBT sobre Silvio Santos. Disponível em:

Apesar dos rumores e dos programas de auditório terem passado por um período de adaptação frente às novas atrações, o gênero conseguiu se manter e começou a crescer. Ao longo dos anos, com a crescente audiência e a perda de alguns apresentadores, novos programas foram surgindo e se reinventaram no modo de pensar e organizar as atrações para o público.

Figura 4 – Equipe da TV S

Fonte: Acervo SBT sobre Silvio Santos. Disponível em: 35

Considerando esta reconfiguração, a proposta é abarcar a virada dos anos 1980 para os anos 90 e seguir até 2011, ano de criação do programa Esquenta!. Na medida em que muitos programas de auditório usaram como base de produção o Cassino do Chacrinha e o Programa do Silvio Santos, será mantida a linha cronológica dos que seguiram no ar ou surgiram após o falecimento de Chacrinha, em 1988.

Figura 5 – Silvio Santos e Chacrinha

Fonte: Acervo Jornal do Estadão. Disponível em:

Abaixo podemos visualizar alguns programas que tiveram maior destaque nos anos 1990 e 2000 e que foram acompanhados por toda uma geração. Apresento suas principais particularidades e as mudanças pelas quais passaram para se adaptar às novidades que surgiram com o passar dos anos e às novas demandas do público. 36

1. Programa Raul Gil (1973 – atualmente): Ainda hoje permanece no ar com um formato muito semelhante ao original. Tendo passado por algumas emissoras (REI, TV Record, TV RIO, TV S e TV Tupi), o programa traz atrações e competições musicais, entrevistas e quadros que remetem ao humor. Assim como Chacrinha e Silvio, o programa de Raul Gil continua realizando um quadro musical de calouros, com um grupo de jurados convidados e fixos. A exibição sempre foi semanal e atualmente vai ao ar aos sábados à tarde. O direcionamento da atração é feito para o público em geral, sendo uma programação familiar, como veicula a emissora em que está sendo exibida no momento, o SBT.

2. Domingão do Faustão (1989 – atualmente): Durante 10 anos, de sua estreia até 1999, o programa era filmado no antigo Teatro Fênix, localizado na Lagoa Rodrigo de Freitas. A partir de então, passou a ser gravado no Projac, no Rio de Janeiro, mas com alguns quadros sendo filmados em São Paulo. Em 2000 mudou­se definitivamente para São Paulo e em 2001 voltou a ser transmitido ao vivo. Nesse mesmo ano a Central Globo de Jornalismo assumiu os cuidados do Domingão, com o intuito de investir na ideia de “jornalismo­show”. A partir de 2006 a atração começou a ser transmitida apenas duas vezes por mês diretamente de SP, nos outros domingos era transmitida do Rio. O Domingão do Faustão teve uma programação bem diversa ao longo desses 27 anos, com quadros como “Maratona do Faustão”, “Se vira nos 30”, “Pizzaria do Faustão” e “Dança dos Famosos”, que teve uma boa audiência e aprovação do público.

3. (1993) / Planeta Xuxa (1997­2002) / TV Xuxa (2005­2007/2008­ 2014): Os programas apresentados por Xuxa Meneghel começaram nos anos 1970, mas serão levados em consideração apenas os iniciados nos anos 1990. A apresentadora teve muitos programas exibidos pela Rede Globo, sendo alguns de auditório. O programa “XUXA” tinha uma hora de duração e realizava gincanas e brincadeiras entre pais e filhos, números musicais e possuía um quadro de entrevistas. A apresentadora contava com assistentes de palco (paquitas) para animar o público, que era majoritariamente infantil. O “Planeta Xuxa” tinha como foco apresentações 37

de músicos e bandas de sucesso na época. Seu formato de discoteca contava com a participação do público e da nova geração de paquitas. Nesse momento houve certo distanciamento do público infantil e Xuxa aproximou­se mais do público adulto, que compunha sua plateia. Já no “TV Xuxa” houve uma divisão em duas fases, de 2005 a 2007 e de 2008 a 2014. Na primeira, Xuxa retornou para o público infantil, trazendo um formato diferente, com exibições de desenhos animados, brincadeiras, números musicais e quadros de dramaturgia, em que interpretava alguns personagens ligados ao seu público–alvo. Na segunda fase, o programa voltou repaginado, com um formato voltado para todos os tipos de público, tornando­se semanal e possuindo um auditório novamente. A ideia era manter a linha à qual Xuxa sempre esteve acostumada, com competições e brincadeiras, números musicais, entrevistas e algumas reportagens.

4. Programa Livre (1991­2001) / Altas Horas (2000 – atualmente): O “Programa Livre”, que teve sua estreia em 1991, era gravado em SP nos estúdios do SBT e recebia números musicais, quadros de humor, realizava entrevistas com artistas e tinha participação do público com piadas e perguntas. Em 1999, o apresentador Serginho Groisman foi para a Rede Globo e o programa, que passa pelas mãos de outros cinco, continua até 2001. Voltado para os jovens, a plateia era composta basicamente por essa geração, sendo em sua maioria estudantes. Com a contratação de Serginho pela Globo, o “Altas Horas” acabou seguindo o mesmo formato do programa que ele apresentava anteriormente. Músicas, entrevistas, humor, quadros direcionados aos jovens e participação da plateia mantiveram­se na linha da atração. Um espaço em forma de arena, com capacidade para até 280 pessoas, passou a conceder ao programa uma dinâmica diferente das utilizadas anteriormente.

5. Domingo Legal (1993 – atualmente): Foi ao ar em 1993, sendo gravado em São Paulo, nos estúdios do SBT. Em 1994, passou a ser transmitido ao vivo e, em 1997, mudou de horário para disputar audiência com o programa de Fausto Silva. Sob o comando de Augusto Liberato, mais conhecido como Gugu, o programa semanal contava com assistentes de 38

palco e não possuía um público específico, mantendo a linha popular que a emissora prega até hoje. Entre os quadros, destacam­se aqueles de apelo social, os números musicais, as “gincanas” entre artistas convidados e as entrevistas com famosos. Com a saída de Gugu do SBT, em 2009, o programa foi assumido por Celso Portioli, atual apresentador.

6. Programa H (1996­2000) / Caldeirão do Huck (2000 – atualmente): O “Programa H” estreou em 1996, na Rede Bandeirantes, sendo apresentado por Luciano Huck de segunda à sexta. Inicialmente, era exibido em horário nobre, mas devido às suas atrações ousadas e divertidas, passou a ir ao ar bem mais tarde no horário noturno. Voltado para o público jovem, manteve­ se no ar até 2000, sendo que em 1999 o apresentador foi contratado pela Rede Globo para comandar um programa na emissora. Nesse período, outros dois apresentadores assumiram o programa até 2000. O “Caldeirão do Huck” começou com um formato parecido com o que Luciano apresentava anteriormente, mas um pouco mais moderado devido à mudança de dia e horário. Daquele momento em diante o programa iria ao ar aos sábados na parte da tarde. No início, alguns convidados da área musical eram as principais atrações, mas com o passar do tempo os quadros de desafio foram surgindo, oferecendo prêmios e recompensas aos telespectadores. Surgiram também quadros para eleger a Musa do Carnaval, o ator ou atriz que faria alguma novela da emissora etc. Em alguns anos, o programa fez edições de Verão, realizando gravações na praia com atrações diferenciadas e exaltando o calor da estação. Nos últimos anos, o público­alvo se expandiu para os adultos e as crianças, além do já fiel público juvenil. Partindo desse ponto, é possível compreender o sucesso dos últimos anos com quadros como “Lar Doce Lar”12, “Lata Velha”13 e “Soletrando”14, carros­chefe do programa de Luciano Huck.

12 Nesse quadro, a produção do programa escolhe uma família do Brasil que deverá participar de um desafio para ter sua casa reformada. 13 Esse quadro é semelhante ao “Lar Doce Lar”, porém é escolhida a história de uma pessoa cujo veículo, na maioria das vezes carros ou semelhantes, é antigo e tem grande valor sentimental. 39

7. Amor e Sexo (2009­2017): Programa de auditório feito por temporadas, que debate alguns temas tabus como amor e sexo e é voltado para um público jovem e adulto que participa tirando dúvidas, dando opinião e interagindo com os convidados. Ao longo das temporadas, a apresentadora Fernanda Lima começou a diversificar os programas realizando um número musical relacionado ao tema do dia, sempre com seus dançarinos. Há também uma bancada de comentaristas que oscila entre convidados e pessoas fixas. Foram realizadas dez temporadas até o momento, em que dias e horários foram modificados de acordo com a grade da emissora. Um auditório amplo e com cenário eclético comporta até 400 pessoas, ficando a animação por conta das conversas, da banda e das brincadeiras realizadas com a plateia.

Todos esses programas foram formatados contemplando, de certa maneira, o que já havia no cenário televisivo, ou seja, as experiências anteriores foram úteis para que cada um deles fosse aperfeiçoando a melhor maneira de atrair o público. As mudanças foram necessárias para a evolução na produção dos programas de auditório. Desde cenários a quadros temáticos, cada um desses detalhes, aparentemente banais, foram estudados e colocados em prática no tempo certo para que fossem bem recebidos pelos telespectadores. O Esquenta!, que teve como base principal o Cassino do Chacrinha, também pôde se utilizar da evolução e modificação de cada programa que o antecedeu até sua estreia. Sua concepção será melhor desenvolvida no próximo capítulo.

3.3­ A representação do popular nos programas de auditório.

Os programas de auditório têm um direcionamento de público, assim como todos veiculados pelas emissoras de televisão. A partir dessa premissa, é possível discutir como as estratégias pensadas e elaboradas pela produção de

Para receber o veículo de volta, a pessoa e alguns integrantes da família devem passar por um desafio musical que é votado pela plateia do programa. 14 Uma competição baseada numa atração norte­americana, o Spelling Be, que nada mais é do que soletrar as palavras sem errá­las. Nesse quadro, 27 estudantes, entre 12 e 15 anos, disputam o título de soletração e um prêmio em dinheiro para ser investido em sua educação. 40

um programa podem interferir e até remodelar as práticas culturais e o cotidiano de um determinado público. Seguindo a linha dos programas de apelo popular, ou seja, aqueles que se destinam às classes B, C, D e E, atrações e quadros são idealizados de modo que estabeleçam uma conexão direta com esses telespectadores. Segundo Muniz Sodré (1984), a televisão é um espelho que reflete nossa imagem e nos causa fascinação, pois nos possibilita saber como queremos nos ver e como queremos ser vistos. A partir disso, ele comenta o relato de uma pesquisadora que questionou um jovem engraxate morador da Rocinha sobre seu interesse em aparecer na televisão, tendo uma resposta positiva. Para Sodré (1984), o desejo do rapaz é justamente:

(...) ver a sua própria imagem refletida nesse moderno espelho eletrônico e por ele multiplicada com tal intensidade que alguma modificação viesse a ocorrer no seu estatuto social de engraxate da Rocinha ou que algo pudesse compensar uma provável autoimagem negativa. (SODRÉ, 1984, p.9) A partir deste raciocínio, percebemos que a televisão não é apenas uma forma diferente de espelho que reflete uma versão aparentemente melhor do que o público imagina de si, ela também é um meio pelo qual as pessoas podem transmitir fatos e experiências. Arlindo Machado (2005) ratifica essa situação:

Mas também se pode abordar a televisão sobre outro viés, como um dispositivo audiovisual através do qual uma civilização pode exprimir a seus contemporâneos os seus próprios anseios e dúvidas, as suas crenças e descrenças, as suas inquietações, as suas descobertas e os voos da sua imaginação. (MACHADO, 2005, p. 11) Tendo em vista o desejo do público de se ver representado de alguma forma, seja de maneira física ou simbólica através de ideias, histórias ou de manifestações da cultura popular, os criadores e produtores dos programas de auditório vem estabelecendo diferentes formatos de atrações. Um exemplo, já citado anteriormente, é a produção dos programas do SBT, que realiza pesquisas e levantamentos entre o público para identificar como e o quê este gostaria de ver nas atrações exibidas pelo canal televisivo. Para endossar essa concepção, um dos conceitos de qualidade televisiva que Machado (2005) aborda são: “[...] programas e fluxos televisuais que valorizem as diferenças, as individualidades, as minorias, os excluídos, em vez da integração nacional e o estímulo ao consumo” (p. 25). Com isso, abre­se um filão para que os programas de auditório 41

de cunho popular explorem as diferenças sociais, valorizando­as e colocando­as como base para qualquer atração ou atividade. A proposta de análise do Esquenta! se dá justamente por este ser um ótimo exemplo de programa de auditório de linguagem popular que, através de quadros, cenários, convidados e figurinos, conquistou o interesse do telespectador. As atrações, que representam possíveis vertentes da cultura popular brasileira, chamam atenção e acabam conversando com um determinado segmento social, tornando o público fiel à programação de maneira (aparentemente) despretensiosa. Lançando mão de uma apresentadora intrinsecamente ligada ao popular, um famoso grupo de convidados e a presença de uma plateia representativa de uma parcela da sociedade, o programa acabou se tornando um sucesso.

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4. “COM A REGINA CASÉ O NOSSO DOMINGO ESQUENTA!”

4.1­ Uma breve biografia de Regina Casé

Nascida no dia 25 de fevereiro de 1954, no Rio de Janeiro, Regina Maria Barreto Casé, filha de Geraldo Casé e Heleida Barreto, é conhecida como Regina Casé, atriz e apresentadora no meio televisivo. O histórico de sua família paterna não deixa dúvidas de que Regina enveredaria profissionalmente para os meios de comunicação. Seu avô, Ademar Casé, foi um dos pioneiros no radialismo e de certa forma atraiu o filho para a área, uma vez que Geraldo Casé começou trabalhando em algumas estações de rádio para, mais tarde, passar por algumas emissoras de televisão, como TV Tupi, TV Excelsior, TV Rio entre outras. Os projetos mais conhecidos do pai de Regina são a adaptação de O Sítio do Pica­ Pau Amarelo de Monteiro Lobato para a TV, em 1977 e em 1986, bem como a criação do programa “Um instante Maestro”, de Flávio Cavalcanti.

Embora tenha crescido na Zona Sul do Rio de Janeiro com boas condições financeiras e possibilidades de maior abertura intelectual, sua formação educacional foi tradicional. No maternal estudou no Colégio Ofélia de Agostini, já o primário foi cursado numa escola de freiras, o Colégio Sacre­Coeur de Marie, concluindo os estudos no Colégio Rio de Janeiro, em 1973. Nesse meio tempo Geraldo e Heleida se separaram e iniciaram novas uniões conjugais. Regina e as irmãs ficaram com a mãe, até que a mesma conheceu um piloto da aeronáutica de Portugal e resolveu se mudar para lá. Já adolescente, Regina preferiu ficar no Brasil e morar com uma amiga num prédio de frente ao seu. Alguns anos depois resolveu mudar­se para a casa das tias­avós em Copacabana, por quem terminou de ser criada. Já adulta, passou para o curso superior em Comunicação Social na UFF, porém não ficou muito tempo, trocando ainda mais duas vezes de curso, uma para Filosofia e outra para História, mas não concluiu nenhum, sua real vocação parecia mesmo ser o teatro e a interpretação.

Na década de 1970, Regina começou a fazer um curso de teatro, onde conheceu várias pessoas, dentre as quais Daniel Dantas e Hamilton Vaz Pereira, e fundou um grupo teatral batizado de Asdrúbal Trouxe o Trombone. O grupo 43

interpretou muitas peças e fez um grande sucesso no meio teatral. Aos poucos, ela foi participando de filmes e outras atividades, conhecendo mais pessoas e aumentando sua afinidade com a atuação. Em 1983, iniciaram­se os trabalhos na televisão, com sua estreia na novela “Guerra dos Sexos” de Sílvio de Abreu. Nesse mesmo ano participou do programa infantil que o pai dirigia, “O Sítio do Pica­Pau Amarelo” e também do programa de humor de Chico Anysio, o “Chico Anysio Show”. Em 1984, Regina foi convidada a trabalhar novamente numa novela de Sílvio de Abreu, Cambalacho, em que interpretava Albertina Pimenta, mais conhecida como Tina Pepper. A personagem era uma referência a Tina Turner, cantora norte­americana, o que deu certa popularidade a Regina, que ficou mais conhecida após essa interpretação.

Figura 6: Regina Casé e o grupo de teatro “Asdrúbal Trouxe o Trombone”

Fonte: Acervo do site de Regina Casé. Disponível em:

Envolvida com outros trabalhos após a atuação na novela, Regina retornou à televisão em 1988 com o programa humorístico TV Pirata, onde atuou com alguns de seus amigos do antigo grupo teatral e conheceu novos atores, um deles foi Luiz Fernando Guimarães. O programa de humor era um sucesso e foi dirigido por Guel Arraes que mais tarde seria parceiro criativo de Regina Casé em outros 44

programas. Após o fim da TV Pirata, Regina apresentou uma proposta diferente de programa, voltado para o jornalismo, para o autor e diretor Daniel Filho. Em entrevista ela comenta:

Eu queria estar na rua, trazer uma coisa que sempre fiz bem no teatro, e que achava que ainda não tinha feito na televisão, que é a cena de plateia. No teatro, eu sempre achei chato ficar no palco, eu sempre chegava e dizia qual mais ou menos era o assunto da peça e ia me sentar no colo das pessoas e passava a peça inteira na plateia e só subia de novo para o encerramento. Então, isso que eu sentia que era o que eu tinha de mais legal para oferecer, e que ainda não estava na TV. Eu quis trazer para a TV a rua, a cena de plateia, o contato com as pessoas, o encontro direto (Regina Casé, Memória Globo15). O Programa Legal, idealizado por Regina e pelo antropólogo Hermano Viana, misturava jornalismo, humor e ficção para falar de temas recorrentes como turismo, samba, corpo, música, festas etc. Ao lado de Luiz Fernando Guimarães, a atriz interpretava as mais diferentes situações e os dois saíam às ruas para saber a opinião do público sobre cada tema. Após um ano no ar, o programa foi interrompido por escolha de Regina, que queria modificar o projeto. Com maior interesse pela parte jornalística, o Brasil Legal foi criado com o intuito de viajar pelo país mostrando lugares inusitados e desconhecidos pelo público, documentando costumes e tradições. O programa, que estreou em 1995 e permaneceu no ar por três anos, foi seguido quase de imediato por Muvuca, que foi apresentado de 1998 a 2000. Neste, realizado em um casarão no Humaitá (bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro), Regina chamava anônimos e famosos para conversar, sem um roteiro ou tema definido. De acordo com o formato do programa, os encaixes e melhores momentos ficavam por conta da edição, que deveria selecionar cenas mais espontâneas com informações sobre os convidados.

Em 2001, no canal Futura, Regina Casé e seu marido, Estevão Ciavatta (terceiro companheiro da apresentadora), foram responsáveis por Um pé de quê?. O programa, que envolvia visitas a lugares com diversos tipos de árvores, contava a origem e a história local através desta curiosidade. Nesse mesmo ano, os dois

15 O Memória Globo é um acervo da Rede Globo de Televisão sobre seus artistas e funcionários mais expoentes. Para maiores detalhes ver: Acesso em 20 de dezembro de 2016 45

produziram Que história é essa? que contava a história de pessoas comuns nascidas no mesmo dia de grandes acontecimentos históricos. Essa produção também foi realizada para o canal Futura e teve duas edições, uma apresentada na Biblioteca Nacional e a outra no Fantástico, em 2002.

Após um tempo afastada do comando de programas de televisão, com apenas algumas participações em novelas, filmes e redação de algumas séries, a apresentadora retornou com um quadro no Fantástico, o Minha Periferia, que ficou no ar de abril a dezembro de 2006. A proposta era rodar o país com pessoas conhecidas que representavam as comunidades em que cresceram. No mesmo período, surgiu Central da Periferia, baseado no quadro do Fantástico e rodado ao ar livre, sendo exibido no primeiro sábado de cada mês, com uma hora de duração. Foi idealizado por Hermano Vianna e dirigido por Guel Arraes, tendo Regina como apresentadora e repórter. O Central da Periferia percorria algumas comunidades para mostrar as atrações que não eram tão conhecidas pelo resto do Brasil, e também para realizar uma mediação entre o que se produzia nos centros e nas periferias. Em 2007, a apresentadora retornou com um quadro que fizera no Fantástico, mas um pouco diferente, com o nome Minha Periferia é o Mundo. Dessa vez o quadro mostrava a produção cultural das periferias ao redor do mundo, fosse no Brasil, em Angola ou em Paris. A esquipe de Regina era composta por Hermano Vianna, Estevão Ciavatta, Alberto Renault e Mônica de Almeida, sendo os três primeiros roteiristas e a última, responsável pela direção.

Em 2008, devido ao falecimento de seu pai, a apresentadora se afastou por algum tempo, realizando apenas participações em novelas. Pouco tempo depois da morte de Geraldo Casé, seu marido, Estevão Ciavatta, teve um acidente e quase ficou tetraplégico, ocasionando então o total afastamento de Regina da televisão. O retorno de Regina se deu em 2011, com a encomenda de um programa, pela Globo, que deveria ocorrer no período de Carnaval. A apresentadora reuniu antigos amigos de outros projetos e idealizou um programa que seria o “esquenta” no pré­Carnaval. Com a colaboração de Hermano Vianna, Guel Arraes, Estevão Ciavatta, Mônica de Almeida, Mário Meirelles, Leonardo Netto e Alberto Renault, Regina formou a equipe de roteiro, direção e produção que comandaria o Esquenta!. Depois de grandes sucessos e de projetos que 46

falavam diretamente com um público mais popular, esse programa foi o grande resultado do sucesso de Regina Casé com a massa. Partindo de Cambalacho, onde interpretava Tina Pepper, passando por programas como TV Pirata, Brasil Legal, Central da Periferia e participações em filmes, em que representava a parcela mais humilde da população, e chegando ao Esquenta!, é possível ver a sintonia de Regina na sua relação com o público. O sucesso do Esquenta! se deve a muitos fatores e um deles é o fato de ser comandado e idealizado por Regina Casé.

4.2 ­ O Esquenta!

O programa, que foi encomendado diretamente pela Rede Globo a Regina, surgiu em 2011. A ideia era reunir pelo menos duas escolas de samba por programa, levando em consideração o eixo Rio­São Paulo de produção carnavalesca. Iniciando cerca de dois meses antes do Carnaval de 2011, a intenção era reunir todas as escolas do grupo especial e falar sobre carnaval, música, comida e manifestações culturais brasileiras. Com convidados variados, entre artistas e sambistas, amigos e pessoas comuns com histórias interessantes para contar, o programa de auditório se diferenciava de outros que a emissora tinha em sua grade.

No momento em que o Esquenta! foi ao ar, o país vinha de uma transformação sociopolítica decorrente do primeiro e segundo mandatos do presidente Luís Inácio Lula da Silva. O desenvolvimento de políticas assistencialistas, como programas de transferência de renda e de inclusão em universidades e no mercado de consumo, favoreceu a ascensão das classes C, D e E, e fez com que determinadas minorias recebessem uma atenção que antes não era dada a elas, ganhando visibilidade e forjando novas marcas identitárias. Foi também nesse período que começaram a surgir alguns quadros de cunho filantrópico, como Lata Velha e Lar Doce Lar do Caldeirão do Huck. Na transição de governo, quando Dilma Rousseff assumiu a presidência, em 2011, estas políticas permaneceram e foram intensificadas. A ascensão econômica e cultural das camadas populares, ainda que viabilizada pela via do consumo, apresentou 47

ao mercado uma nova clientela e um novo tipo de telespectador para a mídia brasileira. O popular ganhou espaço e este “não consiste no que o povo é ou tem, mas no que é acessível para ele, no que gosta, no que merece a sua adesão e a sua frequência”, como aborda Canclini (1997). Neste contexto, um programa como o Esquenta! era perfeito para dialogar ou mesmo atrair um novo tipo de audiência.

No ar de janeiro a março de 2011, a primeira temporada foi considerada um sucesso, atingindo grandes índices de audiência e criando um vínculo com o público. Esta foi uma nova forma de se fazer programa de auditório, tendo em vista que muitas características desse tipo de atração, normalmente roteirizadas e de formato mais fechado, não se aplicavam ao Esquenta! nas duas primeiras temporadas. A organização do auditório, as atrações, os figurinos e convidados eram apresentados de maneira diferente, fugindo do padrão. A própria apresentadora disse ter como base os primeiros programas de Chacrinha, que eram livres e divertidos. Com o bom desempenho inicial, o programa foi renovado para mais uma temporada de Carnaval, dessa vez começando mais cedo, em dezembro de 2011, e terminando mais tarde, em abril de 2012. Nos intervalos dessas duas temporadas, o programa teve especiais em duas edições, uma em 2011 e outra em 2012. O especial de São João, o Esquentão!, ocorreu no mês de junho, trazendo atrações típicas das festas juninas, como bandas de forró, quadrilhas, comidas e brincadeiras tradicionais.

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Figura 7 – Regina Casé e a plateia

Fonte: Acervo do site de Regina Casé. Disponível em:

Figura 8 ­ Regina Casé no Esquentão! – Especial Festa de São João

Fonte: Acervo da Rede Globo. Disponível em: 49

Após duas temporadas, a demanda pelo programa e os altos índices de audiência fizeram com que as temporadas fossem estendidas, tornando o programa uma atração fixa na grade da Rede Globo. Com essa mudança, a atração teve que se adaptar e realizar modificações na estrutura, uma vez que não ocorreria apenas no período de Carnaval, sendo, portanto, necessário desenvolver novos conteúdos. Na terceira temporada, os assuntos giravam em torno do cotidiano do país e das manifestações culturais brasileiras, seguindo um pouco o estilo do antigo Brasil Legal que Regina já comandara. O programa criou um estilo de “bagunça organizada”, em que tudo parecia ser festa e brincadeira, mas com um mínimo de organização para que um programa de auditório fosse gravado. Novos quadros e atrações surgiram, como o “Calourão”, em que pessoas eram convidadas a se apresentar realizando uma tarefa que tivesse a ver com a dinâmica que estava acontecendo. Os participantes ganhavam prêmios de acordo com sua classificação. O “Roleta Musical” propunha que os músicos do programa, acompanhados de convidados, competissem cantando músicas a partir de uma palavra que saísse na roleta. A forma de apresentar as atrações musicais, os quadros como “Vem com tudo”, “Biblioteca do Esquenta” e o bate­papo com os convidados se mantiveram.

Figura 9 – Regina Casé e dançarinas

Fonte: Acervo do site de Regina Casé. Disponível em: 50

A quarta temporada contou com algumas mudanças físicas e acréscimos no elenco. O auditório, que antes tinha um formato de arena circular, na qual todos os convidados e atrações se concentravam, se tornou um palco elisabetano retangular, com o público se posicionando de frente para o palco e nas suas laterais. Além dessa mudança no cenário, os programas e os figurinos passaram a seguir um tema a cada domingo, desenvolvendo assim uma relação direta entre conteúdo e convidados. As temáticas eram variadas, passando por dias festivos, elementos da cultura popular, homenagem a cidades ou momentos históricos. A apresentadora se tornou um pouco mais sóbria no comando das atrações, considerando as outras temporadas. Nesse período, o programa também passou pelo desafio de ser apresentado algumas vezes ao vivo, devido aos jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014, sediada no Brasil. Um programa gravado não possibilitaria que chamadas ao vivo fossem feitas momentos antes dos jogos que ocorriam em alguns domingos. Ainda surgiram novas atrações relacionadas à interação da plateia com o programa e seus convidados.

Na última temporada, realizada no ano de 2016, houve uma grande mudança de conceito. O programa foi reformulado completamente depois de ficar um período de dez meses fora do ar. A nova ideia era realizar gravações dentro e fora dos estúdios, indo até o público que acompanhava o Esquenta! nos seus almoços de Domingo. Foram doze programas nos quais Regina visitou famílias, almoçou, conversou e assistiu ao programa que já havia sido gravado. Em alguns havia apenas uma família, em outros mais de uma, mas sempre se escolhia um lugar do país por apresentação. O lema se tornou “Esquenta aí, Esquenta aqui, Esquenta do Oiapoque ao Chuí!” ou “Esquenta aqui, Esquenta lá!”. A cada programa, elegia­se uma cidade e uma forma de como o público assistia à atração, conectando os assuntos discutidos com as famílias e levando para o palco. Nessa temporada, não só o conceito foi mudado, como muitas ideias foram suprimidas, como por exemplo, a já conhecida abertura do Esquenta!16. Foram feitas também outras mexidas como as crianças, que já estiveram presentes, bem

16 A abertura do Esquenta! se tornou muito conhecida devido à música dedicada à Regina Casé, o Samba da Regina. Segue um trecho: “Alô, Regina! / É tão gente fina que sabe chegar / Em qualquer esquina / Lá na cobertura, na laje ela está / É quem domina / Porque tem a sina de ser popular... alô” 51

como o corpo de baile que não teve tanto destaque nessa temporada. O cenário e a arquibancada foram modificados, deixando o ambiente mais organizado, com uma única entrada e uma plateia posicionada de frente para o palco e não mais nas laterais ou ao seu redor. O grupo de sambistas permaneceu o mesmo, mas entre os convidados fixos já não se viam pessoas como Douglas Silva, Natália Rodrigues e Luis Lobianco. Com uma equipe mais centralizada na música, o foco do novo modelo eram as famílias e as discussões que surgiam entre convidados e plateia e não mais a conhecida bagunça anterior. Após uma curta temporada, o último programa foi ao ar no primeiro dia do ano de 2017, reunindo toda a equipe, desde os dançarinos, passando pelos câmeras, produção, redação e direção. Depois de cinco temporadas, era chegada a hora de se despedir daquele que movimentou o domingo de alguns brasileiros.

4.3 – Encenação do Popular no Esquenta!

A atração televisiva que ficou cinco anos no ar na Rede Globo teve índices de audiência surpreendentes e atraiu um público diversificado. Baseando­se nos programas anteriores da apresentadora, a linha que se seguiu foi a mesma, estabelecer uma conexão gradual com o popular. O programa Esquenta! emergiu, entre os outros programas de auditório, com um diferencial: a capacidade de mediar culturas. Através de lemas como “O que o mundo separa, o Esquenta! junta”, “Xô, preconceito!” e “Tudo junto e misturado”, a atração tentava passar a mensagem de que o convívio e o respeito são possíveis e de que a discriminação não cabia naquele programa. Seguindo a linha de raciocínio de Ohana Boy de Oliveira (2014), é possível afirmar que “todos os lemas mencionados dialogam com o discurso da diversidade, principalmente cultural, que tem sido propagado pela mídia hegemônica17” (p. 4).

O Esquenta! se iniciou com um apelo festivo, com foco numa das maiores festas populares do país, o Carnaval. Reunindo figuras públicas e anônimas para

17 As mídias hegemônicas seriam os grandes conglomerados de comunicação, cujo objetivo envolve, sobretudo, as questões econômicas e seus interesses comerciais. 52

realizar uma versão teatralizada desse evento, a apresentadora acabou cativando um público que se interessava pelo assunto e também por ver rostos conhecidos, como os de artistas, manifestando sua simpatia por essa festa. Sobre isso Canclini (1990) expressa:

O que há de teatral nos grandes shows se baseia tanto na sua estrutura sintática e visual, na grandiloquência do espetáculo, quanto nos índices de audiência, na magnitude da popularidade; mas trata­se de uma espetacularização quase secreta, submersa finalmente na disciplina íntima da vida doméstica (CANCLINI, 1990.p. 260). A teatralização do programa foi crescendo e a cada temporada parecia que ele abria mão de um formato mais espontâneo. A escolha de determinados assuntos criou um efeito reverso, pois ao invés de desconstruir alguns (pre)conceitos, estes acabaram sendo reforçados. O programa tinha inicialmente uma área onde o público e os garis da Comlurb18 ficavam, geralmente perto da arquibancada de alguma escola de samba, uma vez que nesses períodos festivos os trabalhadores se tornam figuras reconhecidas pelo seu serviço no Sambódromo do Rio. Com o passar das temporadas, o que se pretendia como integração acabou se tornando uma segregação, pois os garis foram alocados para uma área exclusiva, uniformizados e sem um motivo aparente, afinal, a presença desses servidores não estava mais ligada ao foco carnavalesco. A integração cultural, proposta inicial do programa, acabou se tornando uma apropriação onde apenas uma das faces do que é considerado cultura popular é mostrada, ou seja, as festividades e a alegria. A antropóloga Bianca Freire (2009) problematiza um pouco essa ideia relacionando­a ao turismo nas favelas:

Essa tendência do poor chic, como observa a socióloga Karen Halnon (2002), traz uma significação ‘estilosa’ e ‘divertida’ da pobreza ou dos símbolos tradicionalmente associados às classes populares. Trata­se de um consumo racional – controlado, eficiente, previsível – que longe de apagar as distâncias sociais, as reforça (FREIRE, 2009. p 34­35).

18 Comlurb designa a Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro. 53

Figura 10 – Regina Casé e garis

Fonte: Acervo do site de Regina Casé. Disponível em:

Apesar dessas disparidades de formato, não nos interessa compreender o Esquenta! a partir de um modelo dicotômico. Se este tipo de análise acaba polarizando o fenômeno impedindo uma compreensão em toda sua complexidade, nosso objetivo aqui é outro. Na tentativa de abarcar as múltiplas dimensões que atravessam o programa, a ideia é pensá­lo enquanto um produto midiático que acaba por desempenhar um papel ambíguo, ou seja, por um lado realiza uma atração de cunho popular cujo intuito é quebrar barreiras e criar mediações, mas por outro acaba fortalecendo­as com determinadas estratégias.

Dentre essas táticas, destacam­se a diferenciação nas roupas das dançarinas negras e brancas e o fato de mostrar a favela e as áreas periféricas como ambientes cercados de imagens estereotipadas: mulheres de roupas curtas e fala escrachada, homens que crescem cercados pelo tráfico e muitas vezes não têm escolha de qual caminho seguir, além de moradores que só escutam funk e pagode.

Apesar de realçar alguns rótulos, o programa viabiliza o contato entre diferentes camadas sociais, principalmente por estabelecer mediações e defender 54

lemas que pregam a tolerância como os já citados anteriormente. Neste sentido, o Esquenta!, enquanto um produto cultural, é ambíguo e esta ambiguidade é fruto das próprias relações humanas. Como esclarece Chaui, “para que algo seja isto ou aquilo e isto e aquilo é preciso que seja assim posto ou constituído pelas práticas sociais” (CHAUI, 1986. p. 122). Ao resgatar manifestações culturais que por si só são complexas, o programa acaba representando diferentes nichos sociais que muitas vezes entram em choque. Talvez essas contradições vem à tona justamente porque as relações sociais não são fórmulas exatas, não são dadas e não podem ser previstas. Por mais que algumas situações pareçam reforçar algumas mensagens

(...) é preciso lembrar que um programa com tantas contradições e falhas acaba sendo percebido como praticamente o único que dá alguma visibilidade para sujeitos e setores alijados de representação na grande mídia. Esse embate mostra como o programa traz questões importantes sobre representação, produção de sentidos e demanda por visibilidade, a serem cada vez mais complexificadas (OLIVEIRA, 2014. p. 5). Na tentativa de fugir de um círculo teatral, os criadores têm a ideia de ir até o povo, de escutá­lo e de vê­lo. Logo, como proclama Canclini (1990) ao referir­se ao povo, é preciso que “leiamos seus textos, assistamos a suas manifestações espontâneas, deixemos que tome a palavra” (p. 267). Foi exatamente isso que Regina Casé e sua equipe fizeram na última temporada de seu programa, foram de encontro ao povo. Em suas viagens pelo Brasil, assim como fez em Brasil Legal, a apresentadora quis mostrar aqueles que a acompanhavam pela televisão nos últimos anos, realçando suas atividades e produções culturais. Essa foi uma oportunidade de modificar a opinião pública sobre o programa e isso ocorreu concidentemente num período inesperado de transição política no Brasil.

Sendo o Esquenta! um programa intrinsicamente ligado ao popular e às minorias, a mudança de poder no governo brasileiro, em 2016, pode ter sido um dos fatores que influenciou nas transformações da última temporada. Como já foi dito anteriormente, a atração surgiu num período em que políticas públicas foram desenvolvidas para atender as classes menos favorecidas. Com a transição para um governo de cunho conservador, começaram a se estabelecer outras formas de se fazer política no Brasil, menos ligadas às questões de fortalecimento das minorias. As reformulações do programa acompanharam essa transição política e 55

passaram a priorizar famílias de classe média, média­alta e alta. Certamente há outros fatores a que se pode atribuir a mudança e o fim do programa, como o desgaste depois de tantos anos no ar, a necessidade de novidades para manter o interesse do público e o alto índice audiência, e até mesmo o desenvolvimento de novos projetos envolvendo a equipe que trabalhou na atração.

No entanto, independentemente da razão, o fato é que o programa sofreu uma mudança tão grande em seu formato que, ao invés de ressurgir como uma novidade que, além de trazer pontos para a audiência, continuaria a dar visibilidade às manifestações populares, se tornou apenas mais um programa de auditório na grade da emissora. Os produtores e redatores não souberam manter o equilíbrio entre a teatralização e a realidade, o programa teve seu potencial festivo reduzido, a “bagunça”, que antes era uma característica positiva, se perdeu. A mistura entre o que era encenado pelo núcleo da atração e a relação “íntima” com a plateia e convidados, que geravam uma conexão com o telespectador, dissolveram­se. A substituição por um formato mais centrado e hierarquizado, priorizando a realidade de algumas famílias brasileiras mais abastadas em detrimento da miscelânea sociocultural que ocorria no palco, acabou por desequilibrar a dinâmica e esfriar a conexão que havia sido estabelecida com o público.

Se seguirmos a sugestão de Debord (1967) para quem “o espetáculo é simultaneamente o resultado e projeto do modo de produção existente” (p.15), podemos entender que as mudanças no programa, que sai de uma linha de sobrerrepresentação para subrepresentação das minorias, acabam por refletir a realidade sociopolítica brasileira. Num contexto em que a cultura é frequentemente mercantilizada, o Esquenta! tornou­se um produto consumido e identificado principalmente pelas camadas sociais mais baixas que passaram a ocupar um espaço, até então exclusivo a outros segmentos. Nesse período de transformação, em que o debate da representatividade perde força, vale questionarmos se o antigo formato do programa conseguiria se manter. A mudança nas questões de representação e visibilidade do programa, como foi abordada acima, só reforça a necessidade de que não é possível observar um 56

produto midiático como o Esquenta! sem estabelecer conexões com a política existente, uma vez que seus resultados têm relação direta com o projeto vigente.

O programa de auditório, que se espelhou em outros comandados por gigantes do palco como Chacrinha, Silvio Santos e Fausto Silva, se iniciou e se estabeleceu por um diferencial, mas sua queda talvez tenha se dado por sua padronização. No momento em que começou a apresentar características comuns à maioria dos programas de auditório19, desenvolvendo­as de maneira pouco atrativa, o Esquenta! perdeu sua essência. O programa, cujo diferencial se estabelecia na forma festiva (e mesmo ambígua) como era apresentado, abrindo espaço para a confluência entre diferentes grupos sociais, e que tinha como grande atrativo a apresentação feita por Regina Casé, talvez deva seu fim a alguns fatores, dentre eles a grande mudança estrutural na sociedade brasileira.

19 Entrevistas pontuais, participação da plateia mais moderada, cenários e figurinos mais sóbrios, música introduzida apenas em determinados momentos. 57

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu interesse por Cultura Popular surgiu nos primeiros momentos de faculdade e se intensificou com o estudo de uma disciplina que discutia esse tema. Numa das aulas foi abordada a questão da apropriação cultural e foram dados alguns exemplos, sendo um deles o Esquenta!. Demorou um tempo para eu compreender esta relação e para despertar minha curiosidade de pesquisa sobre o tema. Após um trabalho para uma disciplina, tive a possibilidade de observar a forte conexão do popular com a atração e tão logo o Esquenta! se tornou um objeto de estudo.

A escolha se deu considerando que este é um programa cujo apelo popular me pareceu mais nítido e tangível20. Desde sua origem, seu formato foi pensado para representar uma das festas que nasceu do samba: o Carnaval. A partir dessa temática, pode­se notar um direcionamento a um público­alvo, visto que uma das festas mais populares do Brasil (e do mundo) surgiu em morros e comunidades cariocas onde se encontra uma parcela significativa do público do programa dominical. O Esquenta! cresceu e a abordagem cultural, que antes era pontual, relacionada apenas ao Carnaval, se ampliou. Ganhou mais temporadas e mais tempo no ar, o que acarretou ainda a transformação de seu formato.

Como vimos ao longo da monografia, a forma como o Esquenta! lidava com as minorias e a cultura popular passava por questões complexas, e esta ambiguidade não é exclusividade do programa mas está imersa em diversas outras produções culturais. Conforme esclarece Marilena Chaui (1986), a “ambiguidade é a forma de existência dos objetos da percepção e da cultura, percepção e cultura sendo, elas também, ambíguas, constituídas não de elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas (...)” (p. 123). Nesta perspectiva, nosso objetivo não foi o de analisar o Esquenta! a partir de dicotomias mas, na tentativa de escapar de armadilhas que dificultam a

20 O Caldeirão do Huck, apresentado por Luciano Huck, também é um bom exemplo, mas apesar do apelo popular, este se camufla no meio de outros quadros e atrações. Diferentemente do Esquenta!, o programa não procura expor de forma nítida o direcionamento de uma mensagem ou um público­alvo. Neste o apelo popular é mais tangível justamente por apresentar discussões e formas de representação social que outros programas realizam de maneira mais superficial. 58

compreensão de fenômenos sociais na sua complexidade, foi preciso encarar o programa de auditório como um emaranhado de experimentações sociais.

Nesta teia complexa de significados, ao mesmo tempo que as atrações representavam grupos minoritários, algumas vezes de maneira a reforçar naturalizações do senso comum, também lhes dava visibilidade e voz. Por vezes, a alegria dos “pobres” era superestimada e exagerada, quando, por exemplo, aparecia uma plateia sempre animada ou com relatos que refletiam a felicidade por morar em comunidades, tentando colocar um pouco de lado as dificuldades e riscos diários desses moradores. Mas, por outro lado, oferecia­se espaço a grupos marginalizados, como a equipe de jornalismo “Voz da Comunidade”, criada por Rene Silva e jovens moradores das comunidades e favelas do Rio de Janeiro, bem como visibilidade às minorias LGBT e atividades socioculturais, como a “Biblioteca do Esquenta!”, cujo intuito era arrecadar livros para uma biblioteca itinerante. As apresentações musicais seguiam linha semelhante (encontros que incentivavam um determinado ritmo como sertanejo, tecno­brega, rap e pop), mas mantinham sempre a mesma base com o samba e o funk representando as minorias. Começando pelos figurinos, passando pelo cenário, pela música e terminando no núcleo de convidados, tudo no programa era feito para chamar a atenção do público e, para tanto, fomentava­se, de forma performática (e talvez caricata) a diversidade cultural.

Embora este trânsito de interesse possa denotar uma aparente confusão no formato do programa, ele demonstra justamente toda uma complexidade que não nos interessa reduzir a um polo ou outro, mas resgatar a multiplicidade de atores sociais (e de subjetividades) envolvidos nos campos em disputa. A ambiguidade se encontra no fato de que ao mesmo tempo em que reforçou representações sobre determinados grupos, o Esquenta! realizou mediações e encontros entre realidades completamente diferentes, proporcionando, ainda que de maneira superficial, uma troca de vivências. Recuperando alguns exemplos podemos citar o contato, no palco do programa, dos asiáticos com a música 59

brasileira, assim como a troca de informações sobre moda entre Luane21 e blogueiras de moda reconhecidas, ou ainda quando o funk foi misturado com músicas sertanejas.

O programa, que foi taxado por muitos como sendo feito para “preto e pobre”22, inegavelmente atingiu um grande público e fez muito sucesso nos seus cinco anos no ar, com índices de audiência bastante positivos em 2011, 2012, 2015 e 2016, quando alcançou respectivamente 17, 14, 17 e 18 pontos.23 Por mais que nem todos os telespectadores se sentissem representados pelo que era veiculado, ainda houve enorme empatia por aquilo que foi produzido. O Esquenta! não foi o primeiro programa a se apropriar da cultura popular, mas de fato se destacou por fazer isso estabelecendo um diálogo com certas minorias24 num período em que estas começaram a ascender no cenário político e econômico do Brasil. A popularidade da apresentadora também colaborou para que o público estabelecesse uma afinidade com a atração, uma vez que sua carreira foi construída em torno de representações e atrações que foram bem recebidas e apreciadas ao longo de vários anos. De forma geral, o que o Esquenta! apresentou em suas temporadas foi positivo em termos comunicacionais, pois resgatou algumas características e resultados que não se via há alguns anos na televisão. A atração pôde apresentar ao grande público tradições e atividades culturais de diversos lugares do país que não eram tão conhecidas, despertando reações inesperadas nos telespectadores, fossem estas de curiosidade ou mesmo de reprovação.

21 Moradora da Cidade Alta, comunidade do Rio de Janeiro, que ficou conhecida nas redes sociais por postar vídeos no Youtube falando de questões comportamentais, como moda, relacionamentos amorosos e maneiras de lidar com situações do dia­a­dia. Foi convidada para fazer parte do núcleo fixo do Esquenta! em 2013. 22 Com uma significativa presença de negros, pessoas “pobres” e moradores de favelas, criou­se um estigma de que o programa era feito para essas pessoas. A participação desses segmentos relaciona­se com a questão da representatividade, do contexto político­econômico brasileiro e também com a trajetória artística de Regina Casé, que desenvolveu uma forte ligação com esse público. 23 Para melhor visualização dos índices de audiência do Esquenta! ver: Acesso em 12 de fevereiro de 2017. 24 As minorias citadas não são necessariamente em quantidade, mas sim a nível de representação social, são grupos que ficam à margem da sociedade. 60

As pesquisas e o processo de elaboração dessa monografia foram feitos de maneira gradual, separando informações, assistindo às atrações, revisando trabalhos e realizando leituras que estimularam a produção de ideias sobre o tema. Escrever sobre a encenação do popular e a apropriação cultural foi um desafio acadêmico, tendo em vista que a produção teórica (e também nas redes sociais) sobre essas questões é bem extensa.

Como todo trabalho de pesquisa precisa ter o seu ponto final e dada a impossibilidade de abarcar uma temática na sua integridade, foi necessário filtrar e estabelecer uma linha de raciocínio, deixando de lado algumas ideias, o que não impede que eu possa desenvolvê­las em outro momento. Ao longo do curso de Produção Cultural, o aprendizado acadêmico e profissional viabilizou a observação e compreensão de muitos fatores que envolvem a cultura em sua produção teórica e prática. Este curso me permitiu discutir inclusive o tema dessa monografia, uma vez que sua amplitude e interdisciplinaridade dão espaço para discussões que dialogam com outras áreas de estudo, como a Comunicação, a Antropologia, os Estudos de Mídia, a Filosofia, a Arte e tantas outras. Envolver estes campos de conhecimento, estreitando debates, teorias e conceitos foi um dos objetivos desse trabalho. Caso o desafio não tenha sido alcançado, pelo menos o pontapé inicial foi dado em minha carreira de pesquisadora.

Os próximos passos serão compreender melhor a opinião pública sobre o programa, saber como o espectador acompanhou sua evolução e como reagiu a suas mudanças de formato, além de diversificar a pesquisa, buscando entender como os programas de auditório se tornam populares entre diferentes camadas. O Esquenta! e seu formato foram responsáveis pelo início dessa análise e poderão, quem sabe, também despontar estudos posteriores sobre cultura e comunicação.

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