UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – IH DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA – GEA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA – POSGEA

DA CERVEJA COMO CULTURA AOS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: UMA ANÁLISE MULTIDIMENSIONAL

EDUARDO FERNANDES MARCUSSO

Brasília/DF 2021

EDUARDO FERNANDES MARCUSSO

DA CERVEJA COMO CULTURA AOS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: UMA ANÁLISE MULTIDIMENSIONAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPG/GEA do Curso de Doutorado em Geografia da Universidade de Brasília/UnB, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Geografia, área de concentração Gestão Ambiental e Territorial.

Orientador: Prof. Dr. Juscelino Eudâmidas Bezerra

Brasília/DF 2021

EDUARDO FERNANDES MARCUSSO

DA CERVEJA COMO CULTURA AOS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: uma análise multidimensional

Tese de Doutorado submetida ao Departamento de Geografia da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Grau de Doutor Geografia, área de concentração Gestão Ambiental e Territorial.

BANCA EXAMINADORA

______Prof. Dr. Juscelino Eudâmidas Bezerra (Orientador) Departamento de Geografia – GEA/UnB

______Prof. Dr. Newton Narciso Gomes Junior (Externo) Departamento de Serviço Social – SER/UnB

______Profa. Dra. Tatiana de Macedo Soares Rotolo (Externo) Instituto Federal de Brasília – IFB, campus Riacho Fundo

______Prof. Dr. Elson Luciano Silva Pires (Externo) Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus Rio Claro

Data: 14 de abril de 2021 Resultado: aprovado

Ficha catalográfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

MARCUSSO, Eduardo Fernandes M322c DA CERVEJA COMO CULTURA AOS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: Uma análise multidimensional / Eduardo Fernandes MARCUSSO; orientador Juscelino Eudâmidas BEZERRA. -- Brasília, 2021. 403 p.

Tese (Doutorado - Doutorado em Geografia) -- Universidade de Brasília, 2021.

1. Cerveja. 2. Território. 3. Economia. 4. Cultura. 5. Governança. I. BEZERRA, Juscelino Eudâmidas, orient. II. Título.

É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta tese e emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. O autor reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta tese de doutorado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor.

______Eduardo Fernandes Marcusso

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Dedico as minhas queridas mulheres, esposa Jéssica e filha Eleonora.

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AGRADECIMENTOS

Um grande projeto requer a colaboração de muitas pessoas. Assim, muitos colegas, amigos e familiares foram importantes para a conclusão deste trabalho. O nascimento da minha filha, um mês após a qualificação, virou meu mundo de ponta cabeça e agora parece que está tudo certo. Talvez eu vivesse em um mundo ao contrário e não soubesse, agora está tudo certo. Eleonora é o meu projeto de vida mais importante. Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus familiares, que caminharam comigo nesta jornada. Sou grato à minha esposa Jéssica, que sempre esteve ao meu lado, suportando os momentos de dificuldade e as pressões impostas pela vida acadêmica. Sem seu apoio este trabalho não seria possível. À minha filha Eleonora, que foi um alento durante esse processo, expulsando todos os meus fantasmas com um simples sorriso. Aos meus queridos e malditos irmãos Marcus e Paulo, que influenciaram em minha decisão de iniciar o doutorado. À minha mãe Márcia, cuja ajuda foi essencial nos momentos mais difíceis e de grande estresse devido à conjunção das obrigações do trabalho, casa, criança e doutorado em meio à pandemia. Ofereço um agradecimento especial à Universidade de Brasília (UnB), pela qualidade e gratuidade do ensino, além do ambiente de profusão de ideias presente sobretudo na academia. A todos os colegas e amigos que lá fiz, ao meu orientador e amigo Juscelino pelo companheirismo e direcionamento, aos colegas de estrada que atravessaram e ainda estão percorrendo esse percurso, sempre nos ajudando. Agradeço especialmente ao holandês Celso, ao santista Sidney, à baiana Fernanda, à chilena Fiorella e ao candango Marcelo. Também sou grato ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, onde trabalho atualmente, pelo apoio a pesquisa, ainda que de forma parcial. Agradeço ainda ao amigo Vinicio, que me acompanhou nesta trajetória, ao Carlos e ao Alan, com os quais pude dividir inesquecíveis experiências nos finais de semana em que fazíamos as cervejas para beber a vida. Aos professores da UnB e, em especial, aos membros das bancas de qualificação e defesa, Profa. Dra. Shadia Husseini de Araújo, Prof. Dr. Newton Narciso Gomes Junior, Profa. Dra. Tatiana de Macedo Soares Rotolo e Prof. Dr. Elson Luciano Silva Pires. Foi uma enorme satisfação ter em minha banca o professor Elson, que me acompanha desde o início de minha vida acadêmica na UNESP de Rio Claro - SP, orientando-me na iniciação científica e no TCC e como membro avaliador em minhas bancas de mestrado e doutorado. Muito obrigado, Jacaré! Devo-lhe uma cerveja de fabricação própria.

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Também sou grato aos entrevistados nesta tese, que contribuíram com visões críticas em relação à cerveja: Marcelo Scavone, Carolina Oda, André Junqueira, Ronaldo Rossi, Raimundo Padilha, Alexandre Zahn, Alexandre Bazzo, Marco Falcone, Thiago Rosário, Diego Simão, Thiago Galbeno etc. Peço desculpas, caso tenha me esquecido de alguém, pois depois desse turbilhão que foi o doutorado, mal me lembro onde deixei meu copo de cerveja! Agora é celebrar: Saúde!

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“No mundo da comida e da bebida, existe uma família abençoada com a vida eterna: a dos fermentados. Há um apelo primitivo no que é gerado por fermentação: a sensação de algo selvagem” Michael Jackson

“Um bebedor de cerveja que se reconheça como tal é, antes de tudo, um homem ou uma mulher que não deseja embriagar-se se o quisesse, poderia dar-se a bebida dez ou mais vezes mais fortes do ponto de vista alcoólico, para igual quantidade de líquido. Assim, o que ele ou ela quer mesmo é ter o prazer, a alegria, a satisfação, o encantamento que só a cerveja pode proporcionar-lhe.” Antônio Houaiss

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RESUMO

Dos nômades aos businessmen, a cerveja esteve presente no transcorrer do desenvolvimento da humanidade com repercussões que extrapolam o ato de consumo da bebida, interferindo diretamente na ordem econômica, cultural e política da sociedade. A presente tese visa analisar a noção de Cerveja como Cultura (CCC), a partir de hábitos e comportamento das diferentes sociedades no tempo e no espaço, e a formação dos Territórios da Cerveja (TC), discutindo aspectos econômicos, culturais e políticos que envolvem a bebida em distintas formas de poder e apropriação do território. Para isso, realizamos ampla revisão bibliográfica sobre os conceitos de território e cultura, além de analisar a rede de produção da atividade cervejeira. Também utilizamos dados estatísticos, coletas de informações setoriais de órgãos públicos e privados e realizamos de entrevistas e questionários com profissionais do setor cervejeiro. Adotamos uma abordagem multidimensional com aportes de áreas como arqueologia, biologia, história e sociologia, de modo a confirmar a hipótese da pesquisa acerca da constituição dos Territórios da Cerveja. Como resultados, verificamos que os Territórios da Cerveja são constituídos a partir das múltiplas relações de poder (surgimento de novos territórios e territorialidades) e dos diferentes usos do território (multiterritorialidades) por indivíduos ou grupos sociais que têm na cerveja um elemento de mediação. O caráter mutidimensional e integrador dos Territórios da Cerveja permite o entendimento da configuração de territórios, expressa através das dimensões cultural, econômica e política. Com relação aos territórios culturais, os indivíduos criam e dão sentido a práticas cotidianas e formas de vida, utilizando a cerveja como forma de congregação, festas, rituais religiosos e base para o desenvolvimento de técnicas de produção, conformando laços cujo resultado é a expressão de identidades territoriais. Os territórios econômicos da cerveja são formados pela presença de fixos e fluxos engendrados por agentes econômicos “do campo ao copo”, como indústrias, empresas de comercialização, serviços, transporte e logística, configurando territórios de domínio da cerveja Pilsen e territórios das cervejas “artesanais”. Em relação ao território político, verifica-se a constituição de redes territoriais zonais e/ou reticulares, formadas pela ação política de vários segmentos do setor, com destaque para as experiências de governança do território. Por fim, concluímos que a cerveja é um elemento central na cultura formada a partir de relações sociais que envolvem o alimento, a bebida, as cerimônias, a economia e a própria sociabilidade. Portanto, é também veículo de relações econômicas e de poder de diversos processos (i)materiais simbólicos e múltiplos usos do espaço. Dessa forma, a cerveja pode ser considerada um dado constituinte e cocriador de territórios, os Territórios da Cerveja.

Palavras-Chave: Cerveja, Território, Economia, Cultura e Governança.

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ABSTRACT

From nomads to businessmen, followed the course of humanity, reverberating beyond consumption and dire directly interfering in the economic, cultural, and political social order. This thesis aims to analyze the notion of Beer as Culture (BC), based on the habits and behavior of societies in time and space, and the formation of Beer Territories (BC), discussing economic, cultural, and political aspects involving this drink in different forms of power and territory appropriation. Therefore, we carried out a comprehensive bibliographic review on territory and culture concepts and analyzed the production network of the activity. We also used statistical data, data of sectorial information from public and private agencies, and conducted interviews and questionnaires applied to professionals of the beer sector. We adopted a multidimensional approach with contributions from areas such as archeology, biology, history, and sociology, to confirm the research hypothesis about the Beer Territories constitution. As a result, we found that Beer Territories are constituted by multiple power relations (the emergence of new territories and territorialities) and the different uses of the territory (multi- territoriality) by individuals or social groups, whom beer is a mediation element. The multi- dimensional and integrating character of Beer Territories allows an understanding of the configuration of territories, expressed through the cultural, economic, and political dimensions. Concerning cultural territories, individuals create and give meaning to everyday practices and ways of life, using beer as a form of the congregation, parties, religious rituals, and the basis for production techniques, forming bonds that result in the expression of territorial identities. The economic territories of beer are composed by the fixed and flow, generated by economic agents "from the field to the glass" such as industries, commercialization companies, services, transport, and logistics, configuring The Larger and the craft beer territories. About the political territory, there is the constitution of zonal and/or reticular territorial networks, formed by the political action of several segments of the sector, with emphasis on the governance experiences of the territory. Finally, we concluded that beer is a central element in the culture formed from social relations that involve food, drink, ceremonies, the economy, and sociability itself. Therefore, the beer is also a vehicle for economic relations and the power of diverse processes symbolic (i)materials, and multiple uses of space. Thus, beer can be considered a given constituent and co-creator of territories, the Beer Territories.

Keywords: Beer, Territory, Economy, Culture and Governance.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Esquema explicativo sobre a noção de CCC ...... 34 Figura 2 - “Primeira” grande cervejaria do mundo ...... 37 Figura 3 - Fragmentos de potes de cerveja da Suméria e o selo Lápis-Lazúli ...... 37 Figura 4 - Mapa da localização das escavações e os artefatos encontrados...... 39 Figura 5 - A cerveja Chateau (à esquerda) e os potes de Jiahu (à direita) ...... 41 Figura 6 - Mapa da localização das escavações e evidências encontradas ...... 41 Figura 7 - O primeiro contrato de trabalho da humanidade: cerveja como pagamento ...... 45 Figura 8 - Evolução da escrita cuneiforme para cerveja ...... 45 Figura 9 - Representação da Deusa e os tabletes de argila com o hino à Ninkasi ...... 46 Figura 10 - Código Hamurabi e o símbolo da cerveja ...... 50 Figura 11 - Menu de Tepemânkh e as oferendas de alimentos (cerveja) ...... 51 Figura 12 - Gravura de Herttel, o cervejeiro, com o pentagrama acima indicando a produção de cerveja (1425) ...... 56 Figura 13 - Classificação e escala de cor dos Maltes Weyermann ...... 60 Figura 14 - Exemplo de roda de aroma e sabor de tipos de malte e lúpulo ...... 64 Figura 15 - Etapas de produção de cerveja...... 66 Figura 16 - Interação entre alimento, ser humano, análise sensorial e medidas instrumentais ...... 68 Figura 17 - Roda de Aroma da cerveja de Meilgaard década de 1970 ...... 71 Figura 18 - Roda de Aroma da cerveja de Schmelzle década de 2000 ...... 72 Figura 19 - Passo a passo para degustação de uma cerveja para fins de avaliação ...... 75 Figura 20 - Ficha de avaliação BJCP estilo checklist ...... 76 Figura 21 - Os tipos de copos e seus estilos ...... 80 Figura 22 - Propagandas destacando a suposta melhor qualidade da cerveja de Agudos - SP ...... 82 Figura 23 - Rótulo da Cerveja Vienense ...... 84 Figura 24 - Exemplos dos rótulos de lata 350 ml das marcas mais vendidas no Brasil ...... 87 Figura 25 - A seca, a resistência e a festa da volta da cerveja nos EUA ...... 89 Figura 26 - Perfis sensoriais encontrados nas amostras de cerveja envelhecidas ...... 102 Figura 27 - Roda de Aroma de cervejas envelhecidas ...... 103 Figura 28 - Cervejas do Festival Repense Cerveja da Cervejaria 2Cabeças ...... 106 Figura 29 - O chope e o creme: uma cultura cervejeira nacional ...... 119 Figura 30 - Propagandas de cervejas com músicos e sambistas ...... 120 Figura 31 - “Cesta básica” do brasileiro em 1974 ...... 123 Figura 32 - Propaganda da Antarctica ...... 128 Figura 33 - Esquema explicativo sobre a noção de TC ...... 153 Figura 34 - Localização aproximada dos principais agrupamentos de falantes de línguas tupi-guarani na época do contato ...... 160 Figura 35 - Preparação do cauim, de Ferdinand Denis (1837) ...... 162 Figura 36 - Mastigação de cauim de milho (mitähi) ...... 162 Figura 37 - Ritual mapiamí do povo Paiter Suruí: a e a confraternização ...... 166 Figura 38 - Propaganda da cerveja Cauim, uma Pilsen com mandioca ...... 172 Figura 39 - Mapa do Brasil holandês no século XVII, por P.M. Netscher, Haia 1853 ...... 176 Figura 40 - Mapa de Cornelis Golijath, impresso em 1648 ...... 182 Figura 41 - Possível localização da antiga Aldeia Nassau ...... 183 Figura 42 - Fala do Barão de Cayrú no Senado do Império em 1826 ...... 190 Figura 43 - “Primeira” notícia de produção de cerveja no Brasil, em 1836 ...... 191 Figura 44 - Primeira notícia de produção de cerveja no Brasil em 24 de maio de 1832 ...... 192 Figura 45 - Leilão da cervejaria dos Senhores Vidal e C. em 23 de abril de 1835 ...... 193 Figura 46 - Cervejaria Ritter e família no Rio Grande do Sul...... 196 Figura 47 - Notícia da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional-Almanak Laemmert (1857) ...... 198 Figura 48 - Espacialização das cervejarias levantadas no Século XIX ...... 202 Figura 49 - A ilusão do terceiro reinado, de Aurélio de Figueiredo ...... 203

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Figura 50 - Espacialização dos investimentos da Brahma (esquerda) e Antarctica (direita) no século XX ...... 215 Figura 51 - The Magnificent Multitude of Beer. Destaque para os estilos derivados do Lager/Pilsen que dominam o mundo ...... 226 Figura 52 - As marcas de cerveja mais consumidas por país ...... 227 Figura 53 - Comparação da espacialização das 40 principais cervejarias entre os séculos XIX e XXI ...... 234 Figura 54 - Fusões e aquisições para se formar o maior grupo cervejeiro do mundo ...... 237 Figura 55 - Movimento de aquisições no mundo da cerveja no século XXI...... 240 Figura 56 - Amostra do nível de aquisições realizadas entre 2013 e 2017 pelos grandes grupos ...... 242 Figura 57 - Os fixos e fluxos dos TCP e TCA ...... 249 Figura 58 - Espacialização das cervejarias registradas no MAPA em 2019 ...... 251 Figura 59 - Espacialização dos CD de cerveja no Brasil ...... 253 Figura 60 - Identidades visuais do movimento das cervejarias independentes ...... 258 Figura 61 - Distribuição dos mosteiros trapistas produtores de cerveja e seu selo ...... 259 Figura 62 - Divisão territorial da cerveja na Alemanha ...... 260 Figura 63 - Rede de suporte e valoração da cerveja artesanal ...... 265 Figura 64 - Distribuição espacial dos eventos levantados e ano de fundação das ACervAs ...... 283 Figura 65 - Bloco de Carnaval “Arrota, mas não gorfa” da ACervA - DF ...... 284 Figura 66 - Logomarca das ACervAs estaduais ...... 285 Figura 67 - Perfil de modelo ideal do Acerviano ...... 287 Figura 68 - O carnaval e a cerveja nos municípios da folia (2013) ...... 292 Figura 69 - Mapa do rodeio no Brasil (2018) ...... 294 Figura 70 - Mapa interativo com os festejos juninos no Brasil (2018) ...... 295 Figura 71 - Identidade visual do PBS e do IWCBD ...... 297 Figura 72 - Campanha de cerveja como resistência ao preconceito ...... 298 Figura 73 - Propagando de cerveja e política ...... 299 Figura 74 - Elementos visuais, rótulos da Implicantes e a luta pela cultura negra ...... 300 Figura 75 - Classificação das bebidas conforme o Decreto 6.871/2009 ...... 305 Figura 76 - Informativo dos números do setor cervejeiro no Anuário da CervBrasil de 2016 ...... 323 Figura 77 - Fundação da ABM e evolução da identidade visual da ABRACERVA ...... 327 Figura 78 - Representação institucional da rede de produção da cerveja: “do campo ao copo” ...... 341 Figura 79 - Os fixos e fluxos dos TCP e TCA e dos sites das instituições e dos sites das instituições...... 341 Figura 80 - Encadeamento teórico das noções de CCC e TC e seus componentes ...... 355

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Os perfis de água, suas cidades e seus estilos de cerveja ...... 61 Tabela 2 - Classificação de cerveja por cor e comparação SRM X EBC ...... 69 Tabela 3 - Os gostos e suas características ...... 73 Tabela 4 - Estilos de cerveja e o país de identidade ...... 85 Tabela 5 - Referência de estilo BJCP ...... 86 Tabela 6 - Comparação dos estilos German Pilsen e American-Style Lager, segundo o guia de estilos da BA ...... 90 Tabela 7 - Descrição das escolas cervejeiras ...... 95 Tabela 8 - Elementos políticos da governança territorial ...... 142 Tabela 9 - Tipos de governança territorial ...... 144 Tabela 10 - Princípios básicos da governança territorial: ...... 146 Tabela 11 - Tipologia dos fatores de concorrência espacial ...... 149 Tabela 12 - Estrutura da matriz metodológica para formação dos TC ...... 154 Tabela 13 - Evolução da produção cervejeira nacional (séculos XIX-XX-XXI) ...... 156 Tabela 14 - Os proprietários de cervejarias no século XIX e sua descendência europeia ...... 195 Tabela 15 - Localização, origem e concentração das cervejarias no Brasil do Século XIX ...... 201 Tabela 16 - Estrutura da indústria cervejeira por funcionários (1907-1920) ...... 205 Tabela 17 - Estrutura da indústria cervejeira por funcionários (2007-2019) ...... 206 Tabela 18 - Principais investimentos das grandes cervejarias (Início do século XX, década de 1960) ...... 212 Tabela 19 - Principais investimentos das grandes cervejarias (décadas de 1970 e 1980) ...... 213 Tabela 20 - As dez marcas de cerveja mais consumidas no mundo, seus valores, origens e seus estilos ...... 228 Tabela 21 - As 40 principais cervejarias do século XIX (data e local) ...... 230 Tabela 22 - Os 40 principais grupos cervejeiros do século XXI (volume em mi hl) ...... 232 Tabela 23 - As 20 maiores fusões aquisições do século XXI em bilhões de dólares ...... 238 Tabela 24 - Importação de malte por país de origem, valor e peso (2020) ...... 250 Tabela 25 - Importação de lúpulo por país de origem, valor e peso (2020) ...... 250 Tabela 26 - Distribuição do emprego no setor cervejeiro por Região, UF e Município (2019) ...... 252 Tabela 27 - Distribuição dos Centros de Distribuição por cervejarias e UF (2021) ...... 253 Tabela 28 - Níveis de enraizamento das cervejas e cervejarias ...... 256 Tabela 29 - Diferentes definições sobre o universo da cerveja artesanal ...... 264 Tabela 30 - Consumo per capita de cerveja em 1986, 1995, 2008 e 2016 por localização ...... 270 Tabela 31 - Os dez estados com maior número de cervejarias e evolução (2017 - 2019) ...... 280 Tabela 32 - Cervejarias por município (2018 - 2019) e densidade cervejeira ...... 281 Tabela 33 - Principais eventos cervejeiros do Brasil ...... 282 Tabela 34 - Cursos por UF, ano de início e município ...... 288 Tabela 35 - Grupos de pesquisa sobre cerveja em Instituições de Ensino Superior ...... 289 Tabela 36 - Tamanho e o volume dos carnavais pelo Brasil (2020) ...... 293 Tabela 37 - Evolução da tributação conforme tipo de fermentação e vasilhame (1896-1948) ...... 316 Tabela 38 - Participação de mercado e concentração das cervejarias no Brasil (1989-2019)...... 321 Tabela 39 - Os 24 membros da Câmaras Setorial da Cadeia Produtiva da Cerveja ...... 339 Tabela 40 - Avaliação dos princípios da governança territorial da Câmara Cervejeira ...... 344 Tabela 41 - Avaliação dos princípios da governança territorial da Câmara Cervejeira ...... 352

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Produção nacional de cerveja em milhões de hectolitros (1870-2019) ...... 157 Gráfico 2 - Evolução dos estabelecimentos de bebida no Brasil de 1849 até 1913 ...... 199 Gráfico 3 - Produção nacional de cerveja (1870-1942)...... 208 Gráfico 4 - Produção nacional de cerveja (1943 - 1977)...... 218 Gráfico 5 - Evolução da produção cervejeira em mi hl nos principais países entre 2007 e 2019 ...... 236 Gráfico 6 - Produção nacional de cerveja em mi hl de 1977 a 2017...... 243 Gráfico 7 - Inflação INPC entre 1979 e 2017 ...... 244 Gráfico 8 - Variação do salário-mínimo entre 1977 e 2017 ...... 244 Gráfico 9 - Renda domiciliar per capita entre 1975 e 2014 ...... 245 Gráfico 10 - Número de cervejarias entre 1930 e 2015 na Europa e EUA ...... 269 Gráfico 11 - Número total de cervejarias registradas pelo MAPA nos últimos 20 anos ...... 279 Gráfico 12 - Evolução do número de cervejarias no Brasil (final do século XIX-XX) ...... 318

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LISTA DE ABREVIATURAS

AB Anheuser-Busch ABRACERVA Associação Brasileira da Cerveja Artesanal ABV Alcohol by Volume ACervA Associações de Cervejeiros Caseiros Artesanais AHA American Homebrewers Association ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária ASBC American Society of Brewers Chemists BA Brewers Association BJCP Beer Julge Certification Program CAMRA Campaign for Real Ale CCC Cerveja como Cultura CD Centros de Distribuição CERVBRASIL Associação Brasileira da Indústria da Cerveja CGVB Coordenação Geral de Vinhos e Bebidas CS Câmaras Setoriais DIPOV Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal EBC European Convention HWBTA Home and Beer Trade Association IPA India Pale Ale IN Instrução Normativa MBAA Master Brewers Association of the Americas MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MEC Ministério da Educação e Cultura OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas PBS Pink Boots Society PDV Pontos de Venda PIQ Padrão de Identidade e Qualidade RDC Resolução da Diretoria Colegiada SDA Secretaria de Defesa Agropecuária SINDICERV Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja TC Territórios da Cerveja TCA Territórios da Cerveja Artesanal TCP Territórios da Cerveja Pilsen UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura VLB Versuchs-und Lehranstalt fuer Brauerei

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 18 CAPÍTULO 1 - CERVEJA COMO CULTURA: OS PRIMÓRDIOS, AS TEORIAS E AS APROXIMAÇÕES ...... 28 1.1 O debate sobre o termo “cultura” e a tentativa de definição da noção de Cerveja como Cultura ...... 29 1.2 Como a cerveja salvou o mundo: achados arqueológicos e a cerveja como impulsionadora do desenvolvimento humano ...... 34 CAPÍTULO 2 - A CULTURA CERVEJEIRA E SEUS CONHECIMENTOS: PRODUÇÃO, ALIMENTAÇÃO E DEGUSTAÇÃO ...... 58 2.1 Princípios básicos do processo de fabricação de cerveja e suas matérias-primas...... 58 2.2 Análise Sensorial: ciência e prática...... 67 CAPÍTULO 3 - A CERVEJA NA CULTURA: ESTILOS, BARES E ESCOLAS CERVEJEIRAS ...... 78 3.1 Para além da Brahma: inserção no contexto da cultura cervejeira e dos guias de estilos ...... 78 3.2 Escola brasileira de cerveja? Os pressupostos e os caminhos...... 92 3.3 Boêmia, música e cerveja: a consolidação da cerveja como bebida popular brasileira . 109 CAPÍTULO 4 - OS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: AS TEORIAS, A MATRIZ E AS APROXIMAÇÕES ...... 130 4.1 O debate sobre o conceito de território na geografia atual ...... 130 4.2 O encadeamento teórico da governança, território e desenvolvimento ...... 141 4.3 Em busca da definição de Territórios da Cerveja ...... 150 CAPÍTULO 5 - FORMAÇÃO SOCIOTERRITORAL DA CERVEJA NO BRASIL: HISTÓRIA, GEOGRAFIA E ECONOMIA ...... 155 5.1 A cerveja nas/das sociedades indígenas do Brasil: o cauim e as cauinagens...... 158 5.2 A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria do Brasil ...... 173 5.3 A cerveja no Império: os primórdios da cerveja no centro do Brasil do século XIX ... 188 5.4 A cerveja no século XX: ascensão e consolidação socioespacial da indústria cervejeira ...... 203 CAPÍTULO 6 - A CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: ASPECTOS ECONÔMICOS, CULTURAIS E POLÍTICOS ...... 220 6.1 Dos aspectos econômicos: a produção cervejeira e a empresa como elementos constitutivos de territórios ...... 220 6.1.1 A revolução Lager e a trajetória de dominação Pilsen ...... 221 6.1.2 O panorama cervejeiro mundial ...... 229 6.1.3 O panorama cervejeiro nacional ...... 243 6.1.4 Os processos de territorialização da cerveja ...... 255

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6.2 Dos aspectos culturais: expressões culturais e de organização dos agentes e empresas no território por meio da cerveja ...... 262 6.2.1 A revolução da cerveja artesanal e as mudanças no padrão de consumo ...... 263 6.2.2 Os Territórios da Cerveja Artesanal (TCA) na formação dos cervejeiros e cervejarias de pequeno porte do Brasil ...... 278 6.2.3 Os Territórios da Cerveja Pilsen (TCP) nas grandes festas culturais brasileiras ..... 289 6.2.4 A cerveja como resistência ...... 296 6.3 Dos aspectos políticos: a governança e o desenvolvimento territorial no setor cervejeiro ...... 302 6.3.1 O arcabouço institucional da cerveja no Brasil...... 303 6.3.2 Governança, território e desenvolvimento no setor cervejeiro brasileiro ...... 307 6.3.3 Modelos de governança: a Câmara Setorial da Cerveja e a Rota da Cerveja do Rio de Janeiro 331 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 353 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 362 Legislação ...... 393 APÊNDICES ...... 400 Questionário ...... 400 Entrevista ...... 402 ANEXO ...... 403

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INTRODUÇÃO

Você consegue imaginar o mundo sem cerveja? Eu não! E não digo isso por ser um consumidor assíduo da bebida, pois há aqueles que não são adeptos da cerveja e, ainda assim não imaginam o mundo sem ela. Essa bebida está fortemente associada ao modo de organização da sociedade humana, desde tempos remotos até os dias de hoje. Evidentemente, há diferentes formas de organização social, representadas, por exemplo, pelas sociedades ocidental e oriental. Contudo, ambas têm na cerveja um elemento cultural significativo. Por se tratar do estudo sobre uma bebida alcoólica, é importante pontuar que existe uma forte discussão sobre o consumo responsável da cerveja, organizando os debates em âmbitos nacional e internacional sobre os impactos do consumo de álcool para saúde. Mas, para além da questão da saúde, do aspecto patológico ou do vício, temos uma questão cultural envolvida no ato de consumir bebidas alcoólicas, pautada pelas questões: onde, como e com quem se bebe? Se, por um lado, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Organização Mundial de Saúde (OMS), indica no Global Burden of Disease Study1 (IHME, 2018) que não há limite seguro para o consumo de álcool, por outro lado, confere à cultura cervejeira Belga o reconhecimento de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2016 (UNESCO, s. d.[a], on-line). Assim, a cerveja deve ser entendida como uma teia complexa, na qual se articulam diferentes significados: nutricionais, medicinais, lúdicos, econômicos, políticos, religiosos e simbólicos (ALBUQUERQUE, 2011). Segundo Carneiro (2010, p. 268), as drogas, em especial as bebidas alcoólicas, “são como todos instrumentos da cultura, como todas as técnicas do corpo, passíveis de bons e maus usos dependendo da substância, do contexto e, sobretudo do próprio usuário”.

1 Após a conclusão, por meio do estudo citado, de não haver limite seguro para o consumo de álcool, outros pesquisadores passaram a contestar essa afirmação. O professor David Spiegelhalter, da Universidade de Cambridge, que estuda há décadas a compreensão pública do risco do consumo de álcool, afirmou que os dados mostraram apenas um nível muito baixo de danos em pessoas que bebem moderadamente. O autor ainda traz um importante questionamento “Given the pleasure presumably associated with moderate drinking, claiming there is no ‘safe’ level does not seem an argument for abstention [...] There is no safe level of driving, but government do not recommend that people avoid driving. Come to think of it, there is no safe level of living, but nobody would recommend abstention”. Assim, acreditamos que o consumo responsável ou moderado deve ser definido em mais países e amplamente divulgado para que os cidadãos possam se orientar em relação ao consumo das bebidas alcoólicas (BOSELEY, 2018, on-line).

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Assim, a complexidade envolvida na relação das pessoas com o álcool requer uma visão multidimensional – como o título desta tese sugere – para captar as nuances desse processo com o qual a humanidade tem ligações umbilicais, desde o período pré- revolução agrícola até os dias atuais. É a partir da visão da cerveja como um elemento cultural da humanidade que não consigo imaginar o mundo sem esse “suco de cevada”2. Mesmo nas sociedades que proíbem bebidas alcoólicas por questões religiosas, como no Egito, a cerveja já foi um elemento central do cotidiano. Atualmente, a venda é permitida aos estrangeiros em hotéis ou locais reservados, com permissões especiais, ou seja, ainda que seja proibida no próprio país, não há a negação dessa cultura a pessoas provenientes de outros países, onde bebidas alcoólicas são um estilo de vida (TERRA, 2013, on-line). A cerveja conforma diferentes temporalidades e espacialidades, imbricadas com a cultura de cada sociedade. E é dessa mesma forma que a presente tese foi construída: em diferentes momentos e com a presença da cerveja ao longo do desenvolvimento do estudo. Escolher estudar cerveja não foi uma tarefa fácil, mas alguém tem que fazê-lo, como reitera Michael Jackson3, homônimo do rei do pop e um dos maiores escritores e especialistas em cervejas do mundo, homenageado na epígrafe deste trabalho. O tema é meu objeto de estudo desde a iniciação científica (~2007), passando pelo trabalho de conclusão de curso (2010), mestrado (2015) e doutorado (2021), como uma espécie de fechamento acadêmico. O projeto inicial de doutorado sofreu algumas mudanças, resultantes das disciplinas cursadas, dos eventos participados, dos artigos escritos, das experiências profissionais vividas e, sobretudo, das críticas recebidas, que sempre nos ajudam a amadurecer os argumentos e incentivam a continuação da pesquisa. Dois aspectos são basilares para a construção da tese: o primeiro aborda a cerveja como elemento cultural constituinte da organização social da humanidade e de sua cultura material, ordenando e sendo ordenada pela história (SAHLINS, 1990), criando

2 Slogan da cervejaria Tivoli-Brauerei de Berlim, em 1869, que dizia: “Saboreiem no nobre suco de cevada a alma do vinho e a energia do pão”. Apesar da cervejaria não existir mais, o slogan é lembrado até hoje. Entretanto, há uma incoerência em seu conteúdo, pois, por ter de apenas 12% a 16% de teor aquoso, a cevada não serve para fazer suco. Para fazer cerveja, é necessário dissolver os componentes sólidos da cevada (SEIDL, 2003), como veremos na seção sobre o processo produtivo. 3 Jackson possui um legado importante para cerveja, sobretudo através do estudo sobre a cerveja artesanal. Assim, o autor será amplamente referenciado nesta tese. Em seu documentário Beer Hunter, de 1989, exibido no canal Discovery Channel, ele conta como é seu trabalho: “Eu viajo o mundo provando cervejas e escrevendo sobre aquelas que eu mais gosto. É um trabalho duro, mas alguém precisa fazê-lo” (ANTUERPIA CERVEJARIA, s. d., on-line). 19 comportamentos, hábitos, saberes e técnicas passadas de geração em geração (CLAVAL, 2001). O segundo, por sua vez, revela uma contribuição importante lançada pela pesquisa ao tratar a cerveja pela perspectiva material, simbólica e de poder na formação de territórios voltados para produção, consumo e regulação (HAESBAERT, 2014; SAQUET, 2015). Desse modo, temos duas noções que vislumbramos desenvolver: a Cerveja como Cultura (CCC) e os Territórios da Cerveja (TC). Adotamos uma abordagem multidisciplinar com aportes de áreas como história da alimentação, agricultura, arqueologia, biologia, história e discussões teóricas sobre cultura e território para formularmos a pergunta de pesquisa: Como o desenvolvimento da cerveja em seus aspectos econômicos, culturais e políticos configuram os territórios envolvidos na produção, comercialização, consumo e governança? A partir dessa questão, lançamos a seguinte hipótese: A cerveja é um produto importante na história da humanidade, sendo elemento central na cultura e nas relações sociais que envolvem o alimento, a bebida, as cerimônias, a economia e a própria sociabilidade. Portanto, como um produto que extrapola a simples mercadoria e/ou um produto para o consumo familiar, a cerveja pode ser vista como cultura, além de ser veículo de relações econômicas e de poder de diversos processos (i)materiais simbólicos e múltiplos usos do espaço. Como resultado, a cerveja pode ser considerada um dado constituinte e cocriador de territórios, os territórios da cerveja. Guiada por essa pergunta principal, esta tese visa analisar a cerveja como elemento cultural e de construção de comportamentos e hábitos que se inserem nas sociedades ao longo da história e a constituição dos territórios da cerveja através da interação entre os aspectos econômicos (produção), culturais (consumo) e políticos (discussão sobre governança). Os capítulos desta tese foram divididos em dois blocos principais. O primeiro bloco corresponde aos três primeiros capítulos e versa sobre a noção de CCC, orientando- se pelas perguntas: A cerveja estabelece uma cultura? Como isso ocorre? Quais seus aspectos espaciais? O segundo bloco, composto pelos capítulos de quatro a seis, aborda a noção de TC e busca responder à seguinte questão: Como a cerveja pode ser um elemento na formação de territórios? Dessa forma, conseguimos visualizar melhor a direção dos objetivos, caminhando em direção a uma conclusão mais clara, verificando ou não a hipótese levantada. As noções de CCC e TC constituídas neste trabalho condensam uma revisão teórica da literatura da área, a partir da análise da história da cerveja no Brasil e no mundo.

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As aproximações teóricas apresentadas aqui sobre cerveja, cultura e território foram desenvolvidas junto das etapas de elaboração da tese, em um movimento de retroalimentação e revisão constantes. A escrita da tese partiu de uma longa trajetória de estudos sobre o setor ao longo de quase 15 anos de experiência acadêmica com o tema, além do convívio com entes desse setor pelo trabalho no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o que nos propiciou escolhas metodológicas adequadas para capturar pontos essenciais de diversas áreas do conhecimento, de modo a amarrar a história e a geografia da cerveja no Brasil, que hoje se encontra muito fragmentada em certos períodos históricos e abordagem espaciais. É importante destacar que minha trajetória profissional se confunde e influencia meu percurso de pesquisador, uma vez que o referido trabalho no órgão público federal foi no setor que regula a produção de bebidas do país, proporcionando contato direto com os produtores e toda rede de poder envolvida nessa atividade. Por esse motivo, este trabalho ora é escrito em primeira pessoa, ora em terceira. Durante a pesquisa bibliográfica, constatamos que faltam referências consolidadas para construir uma clara noção do desenvolvimento da cerveja, sobretudo no Brasil. Na América Latina, há uma produção relativamente mais avançada, como as obras de Juan M. Morales Alvarez, Historia de la Industria cervecera em Venezuela (Caracas, 1992); Ernesto Daza Rivero, Apuntes históricos de la cervecera Taquiña S.A. em ocasión de su centenário (Cochabamba, 1995); Luiz Alberto Sanchez, Cerveceria Backus y Johnston S.A. Historia de uma indústria peruana (Lima, 1978); Jorge Angel Valleja, 100 años de Bavaria, (Medellin, 1990); Bernd Müller, Cerceveros, cervecerias y porrones del Montevideo de antaño, (Montevideo, 1989); Barbara Hibimo, Cerveceria Cuatémoc. A case study of technological and industrial development in Mexico (México, 1992); e Rodolpho Pastore e Miguel Teubal, Articulaciones agroindustriales en el complejo cervecero (Buenos Aires, 1992) (KÖB, 2000). A obra inaugural do estudo da história da cerveja no Brasil possivelmente é o livro/panfleto de comemoração dos 75 anos da cervejaria Antarctica, de autoria de Jorge Americano, Antarctica, ontem, hoje e sempre, São Paulo, 1966. Contudo, essa obra não está disponível para o público em geral, de modo que o acesso só nos foi possível após o

21 contato com integrantes da cervejaria Ambev que tiveram dificuldades em encontrar uma edição, posteriormente localizada na Fundação Zerrener4. Após a divulgação desse documento em 1966, surgiram algumas publicações generalistas como A cerveja e seus mistérios, de Antonio Houaiss (1986); Os prazeres da cerveja, de Octavio Augusto Slemer (1995), Microcervejarias e cervejarias: a história, a arte e a tecnologia, de Egon Carlos Tschope (2001); Os primórdios da cerveja, de Sergio de Paula Santos (2004), Larousse da cerveja, de Ronaldo Morado (2009) e Cervejas, breja e birras, de Maurício Beltramelli (2014). Apesar de apresentarem valorosas contribuições, tais referências não seguem o rigor científico – e nem era esse seu propósito – na produção do conhecimento e ainda deixam lacunas na construção da história e desenvolvimento da cerveja no Brasil. Em termos científicos, existem poucas obras com relevância, como cita o artigo de Edgard Köb Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da cerveja no Brasil desde o início até 1930 (2000) e o livro de Teresa Cristina de Novaes Marques, A cerveja e a cidade do Rio de Janeiro: de 1888 ao início dos anos 1930 (2014). No campo da geografi,a também há poucos estudos estruturados, sendo que o trabalho mais desenvolvido é a tese de doutorado de Silvia Limberger, Estudo geoeconômico do setor cervejeiro no Brasil: estruturas oligopólicas e empresas marginais (2016). De maneira mais ampla, a história da alimentação e das bebidas contribui para o entendimento da cerveja na sociedade brasileira. A esse respeito, podemos citar o clássico de Luís da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, cuja primeira edição foi publicada em 1967 e as obras de Henrique Carneiro sobre as bebidas (drogas) e o movimento de temperança, como Bebida, abstinência e temperança: na história antiga e moderna (2010) e a Pequena enciclopédia da História das Drogas e Bebidas: histórias e curiosidades sobre as mais diversas drogas e bebidas (2005). A presente pesquisa dissecou o conteúdo já produzido, compilando as contribuições das diferentes áreas do conhecimento para investigar as lacunas deixadas, sobretudo nos primórdios da produção de cerveja no Brasil. A esse respeito, avançamos através do artigo científico A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da

4 Depois da morte dos últimos grandes acionistas, Zerrener e Bülow, a Antarctica esteve envolvida em grande disputa judicial para sua sucessão com curiosas e suspeitas aproximações com o Partido Nazista de Hitler, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Assis Chateaubriand entre outros, ficando as famílias hoje representadas pela fundação Zerrener que, apesar de pequena, ainda tem participação na empresa (SANTOS, 2004, p. 31-41). 22 primeira cervejaria do Brasil (ROTOLO; MARCUSSO, 2019) e a notícia Estudo revela nova data da 1ª cervejaria brasileira (MARCUSSO, 2020). Como podemos observar, pesquisas sobre a história da cerveja no Brasil ainda são escassas. Nesse sentido, esta tese talvez consiga trazer contribuições importantes para essa área de estudo, ampliando o debate científico a respeito da vasta gama de significados e signos da cerveja em sua relação com a sociedade, destacando os aspectos espaciais e culturais. Cerveja, cultura e território são elementos essenciais para o entendimento da história da cerveja em níveis nacional e mundial, utilizando as noções de CCC e TC como ferramentas para conectar os diferentes saberes sobre a cerveja e aprofundar a compreensão do papel dessa bebida na evolução da humanidade e, em especial, na formação socioterritorial do Brasil. Em termos de metodologia, estabelecemos uma abordagem multidisciplinar e multidimensional – como aponta o título da tese – para compreender como a cerveja se estabelece como elemento físico, econômico, social e cultural, ou seja, para nos aproximarmos do entendimento da complexidade que essa bebida carrega. A revisão bibliográfica sobre o termo “cultura” (EAGLETON, 2005) visou elencar definições que pudessem ser aplicadas no contexto da cerveja (SAHLINS, 1990; CLAVAL, 2001), observando seu desdobramento na sociedade, sua cultura material (MILLER, 2007) e verificando a construção da noção de CCC. Esta pesquisa buscou na história, na biologia e nos achados arqueológicos o caminho de volta aos primórdios da cerveja, que correspondem ao início da civilização, buscando ainda regressar na relação entre ser humano e o álcool, identificando a cerveja como um dos elementos impulsionadores da sociedade (MCGOVERN, 2009; MEUSSDOERFFER, 2009; REICHHOLF, 2010; MACGREGOR, 2013). A arqueologia foi um instrumento metodológico importante para sustentarmos a ideia de CCC, uma vez que, a partir dos relatos desse campo, obtivemos a visão das sociedades antigas sobre a cerveja e como ela se inseria espacialmente, sendo possível estabelecer comparações com os processos atuais, já que muitas formas de inserção da cerveja nas sociedades antigas ainda têm vestígios na sociedade atual. A história da alimentação contribuiu para o reconhecimento da cerveja como alimento e da importante relação que o ser humano tem com essa bebida (FLANDRIN; MONTANARI, 1998; MONTANARI, 2013, CASCUDO, 2016). A revisão sobre os aspectos técnicos de produção e análise sensorial da cerveja são necessários para

23 aproximar a cerveja do leitor em termos mais teóricos e mostrar a grande produção científica que existe por trás da bebida. Para isso, destacamos os guias de estilos do Brewers Association (BA) e do Beer Julge Certification Program (BJCP). O posicionamento dos processos produtivos da cerveja foi importante para conectá-los com a história da alimentação e traçar um paralelo entre cultura, alimentação, cerveja e espaço. Também realizamos entrevistas semiestruturadas com personagens focais do mercado cervejeiro nacional, como sommeliers de cervejas, cervejeiros e mestres cervejeiros, presidentes e integrantes das instituições representativas do setor. A reprodução das entrevistas foi devidamente autorizada por todos os participantes da pesquisa. Além disso, utilizamos como fonte de pesquisa a mídia geral e especializada, com destaque para a Revista da Cerveja, principal publicação não científica do setor. Também foram aplicados questionários por meio da ferramenta Google Forms para alcançar um número maior de pessoas, além da participação em festivais de cerveja para uma convivência mais ativa com a comunidade cervejeira. Nesta pesquisa, também nos valemos da análise de músicas populares brasileiras para buscar o retrato do cotidiano da boêmia e sua relação com a cerveja na criação de espaços de expressão cultural que, aos poucos, foi consolidando a bebida como elemento da matriz cultural popular do Brasil, fazendo parte da identidade (paixão) nacional. Também buscamos alterações no comportamento da sociedade brasileira e das grandes cervejarias ao longo do tempo, por meio de propagandas e incentivos às festas, bares e botequins (KÖB, 2000, MARQUES, 2014; SOUSA, 2017; LAVINSKY, 2017). Quanto à ideia de território, utilizamos o conceito de acordo com a atualidade (HAESBAERT, 2014; SAQUET, 2015), sem remeter a seus primórdios, para construir a noção de Territórios da Cerveja (TC), resultado do debate teórico sobre o território, aliado às observações e estudos prévios da atividade cervejeira. A partir da construção teórica dos TC, delineamos a matriz metodológica do conceito que expõe os temas, processos, variáveis, indicadores e fontes de busca utilizados aqui para evidenciar a formação dos territórios em torno da cerveja. Juntamente com o debate teórico, essa ferramenta permitiu estruturamos a visão da cerveja como elemento social, que cria e regula territórios com dois componentes diferentes e complementares: os Territórios da Cerveja Pilsen (TCP), resultados das lógicas globais das grandes cervejarias; e os Territórios da Cerveja Artesanal (TCA), gestados pelas lógicas locais das microcervejarias.

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O resgate da história das bebidas ameríndias e sua relação com os índios, nas fontes médicas, antropológicas e sociológicas (FERNANDES, 2004; ALBUQUERQUE, 2011), foi uma etapa fundamental para traçar o caminho das bebidas no Brasil até chegar no domínio da cerveja. A busca nos arquivos digitais da Biblioteca Nacional trouxe inovações sobre os fatos primeiros da história da cerveja no Brasil, além da bibliografia especializada, que conta a história das primeiras cervejarias no país. Sobre os dados setoriais cervejeiros, em termos globais, consultamos principalmente o relatório Barth-Haas e, para a espacialização dos dados, utilizamos a ferramenta My Maps do Google para facilitar a representação, justamente devido à escala global. Para os dados nacionais, consultamos o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) por meio do Serviço de Informação as Cidadão (SIC), além do acompanhamento da mídia em geral e especializada para levantar os cursos e eventos cervejeiros, aliado à consulta ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), também através do SIC, para os cursos homologados. Esses levantamentos permitiram trabalhar a noção dos TC por meio da matriz metodológica, das entrevistas e questionários. O levantamento das leis e normas que regem a atividade da produção de cerveja, por meio das publicações oficiais (Diário Oficial da União, site do Planalto e casas legislativas das três esferas de poder), foi um importante passo para estruturamos o arcabouço institucional da cerveja, o que permitiu adentrarmos na análise da governança. Esta, por sua vez, contou com bibliografia específica para enquadrar os modelos de governança da cerveja, tendo em tela os processos de desenvolvimento territorial, indissociáveis da organização dos agentes territorializados (BENKO; PECQUEUR, 2001; DALLABRIDA; BECKER, 2003; DALLABRIDA, 2011; PIRES et al. 2011b; PIRES, 2016; PIRES et al. 2017). Esses aspectos políticos dos TC concluem as sustentações teóricas e práticas dessa abordagem. Esta tese está organizada em seis capítulos, além desta introdução e das considerações finais. Como já mencionado, os três primeiros capítulos relacionam-se à noção de CCC e os três últimos ao conceito de TC. No primeiro capítulo (Cerveja como cultura: os primórdios, as teorias e as aproximações), discorremos sobre a os aspectos culturais da bebida, atrelados à história da alimentação. Retornamos aos primórdios da civilização e da cerveja, verificando seu caráter impulsionador do desenvolvimento humano em diferentes momentos da história. Observamos também expressões culturais atreladas à cerveja, como a música e a boêmia, na configuração da bebida como elemento cotidiano do povo brasileiro.

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O segundo capítulo (A cultura cervejeira e seus conhecimentos: produção, alimentação e degustação) traz a construção das técnicas, saberes e comportamentos da cultura cervejeira, desde a produção (insumos, etapas e processos) até o consumo (degustação, estilos e escolas). No terceiro capítulo (A cerveja na cultura: estilos, bares e escolas cervejeiras), abordamos a construção da cerveja como elemento do cotidiano do povo brasileiro, sua relação com a música e a boêmia, na formação da identidade nacional e na construção da ideia de escola brasileira de cerveja, unido a noção de CCC e o seu componente da cultura cervejeira. O quarto capítulo (Os territórios da cerveja: as teorias, a matriz e as aproximações) traz a noção de TC por meio da matriz metodológica, evidenciando os temas, processos, variáveis, indicadores e fontes de busca utilizados para evidenciar os processos de formação dos territórios em torno da cerveja. No quinto capítulo (Formação socioterritorial da cerveja no Brasil: história, geografia e economia), discutimos sobre a formação socioterritorial da cerveja, passando por aspectos da história e da geografia da bebida no Brasil, compreendendo os povos indígenas (imemorial), os holandeses (século XVII), os portugueses e imigrantes (século XIX) e, finalmente, a consolidação da indústria nacional (século XX), mostrando os rebatimentos espaciais desses processos. O sexto capítulo e último capítulo (A caracterização dos territórios da cerveja: aspectos econômicos, culturais e políticos) é o cerne desta tese, estabelecendo uma relação entre a cerveja e o espaço em seus aspectos econômico (produção); cultural (consumo) e político (governança), nas diferentes formas de construção dos TCP e dos TCA. Além disso, discorremos sobre os elementos jurídicos e normativos da cerveja na montagem de seu arcabouço institucional e verificamos as formas de desenvolvimento pautados no território, por meio de modelos específicos de governança. As considerações finais retomam o debate da matriz cerveja/cultura/território e apresentam algumas conclusões que podem ser resumidas em cinco tópicos principais: a) a cerveja contribuiu para a formação dos primeiros aglomerados humanos e suas formas de ritualização, organização do espaço e transferência de conhecimento através do tempo, criando técnicas, signos e significados no seu processo criativo, fixando identidades regionais/locais; b) a cerveja no Brasil teve forte influência dos imigrantes europeus e, ao mesmo tempo, forjou sua identificação com a cultura nacional, em especial por meio da

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música e boêmia, além de acompanhar o desenvolvimento econômico do país, sobretudo com relação ao poder de compra da população e ao poder de investimento do/no setor; c) a cerveja cresce em volume de produção e consumo pelas grandes empresas (TCP) e em número de cervejarias e lançamento de rótulo pelas pequenas e médias empresas (TCA), estas últimas sendo veículos de reprodução flexível do capital e de valorização dos saberes locais que acompanham os movimentos sociais transmitidos pela cerveja; d) a cerveja foi palco de grandes disputas entre grandes e pequenos produtores, com preponderância dos mega conglomerados cervejeiros que fizeram valer seus interessas nas arenas de disputas, restando às microcervejarias a orientação do termo independente para criar uma narrativa de seletividade e exclusividade, com laços socioterritoriais; e) a cerveja pode ser um recuso específico na construção dos territórios associados a essa atividade. Os modelos de governança analisados demonstram que há consensos provisórios entres os agentes do setor para promoção do desenvolvimento territorial das localidades afetas a sua produção.

Por fim, cabe enfatizar que esta tese se baseou na interrelação entre as noções de CCC e TC e seus componentes respectivamente, cultura cervejeira e os Territórios da Cerveja “Artesanal” e Territórios da Cerveja Pilsen. A leitura deste trabalho sempre tendo como pano de fundo a ligação dessas noções facilita o entendimento da proposta para o leitor.

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CAPÍTULO 1 - CERVEJA COMO CULTURA: OS PRIMÓRDIOS, AS TEORIAS E AS APROXIMAÇÕES

Para refletirmos sobre a Cerveja como Cultura (CCC), elaboramos uma pesquisa interdisciplinar em torno do termo “cultura” para entender como a cerveja se configura como elemento cultural na sociedade. Nesse contexto, a história da alimentação colabora para compreendermos como essa relação evoluiu no decorrer do tempo e do espaço e como a cerveja cria identidades culturais e territoriais. Recorremos aos campos da geografia e da história da cerveja para verificar a conformação dos espaços de consumo dentro da estruturação das diferentes sociedades, nas quais a cerveja assumia relevante importância. Ao adotar tal estratégia, foi possível posicionar a cerveja na construção social e cultural da civilização. As técnicas de produção de cerveja marcam seu tempo e são elementos de datação dos períodos de desenvolvimento humano. Assim, a verificação arqueológica da produção da cerveja é uma importante ferramenta que será explorada nas seções seguintes. Além do debate teórico sobre cultura, que servirá de base para analisar a cerveja como elemento cultural, uma importante obra de referência para esta seção é Comida como cultura, de Massimo Montanari (2013), na qual o autor traça o caminho que a humanidade percorreu para se constituir como sociedade, destacando o papel fundamental da comida nesse processo e como ela estabelece um ponto nevrálgico entre as diferentes culturas no mundo. Seguindo os passos de Montanari (2013), mas de forma menos audaciosa, visamos compreender como a cerveja se estabeleceu como ente cultural na sociedade. Os elementos históricos e arqueológicos5 são fundamentais para resgatar a trajetória da cerveja como elemento cultural, mostrando a influência dessa bebida no desenvolvimento humano. Abordaremos o período de sedentarização do ser humano, ou seja, a passagem das civilizações pré-históricas às históricas, ocorrida em diferentes espaços. Contudo, antes de voltar aos primórdios da cerveja, será realizada uma

5 Segundo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pode-se definir arqueologia como a ciência que estuda a cultura por meio dos seus vestígios materiais. Seu foco principal é o conhecimento da pré-história e dos povos da antiguidade. No Brasil, cabe ao Centro Nacional de Arqueologia (CNA), unidade especial do IPHAN, elaborar políticas e estratégias para a gestão do patrimônio arqueológico brasileiro. A metodologia do trabalho arqueológico inclui cinco passos: o planejamento da pesquisa, a busca pelos materiais no campo, a classificação e documentação dos achados, a interpretação dos dados e, por fim, a divulgação dos resultados. Esses procedimentos buscam caracterizar a cultura humana através do tempo (IPHAN, s. d., on-line). 28 fundamentação teórica, que servirá de alicerce para as discussões referentes ao primeiro bloco de capítulos.

1.1 O debate sobre o termo “cultura” e a tentativa de definição da noção de Cerveja como Cultura

Debater sobre cultura de forma geral é uma tarefa desafiadora. A amplidão do tema impõe a necessidade de nos limitarmos apenas aos aspectos conceituais relacionados à compreensão da cerveja como elemento de práticas culturais. Assim, longe de desenvolvermos uma exegese do conceito de cultura, vamos nos ater a uma análise que envolve esse conceito especificamente no contexto da alimentação. Para Eagleton (2005), a cultura é um dos conceitos mais complexos da humanidade, sendo muitas vezes considerado o oposto de natureza. Entretanto, etimologicamente a palavra “cultura” deriva da noção de natureza, uma vez que está relaciona ao ato de cultivar. Nesse sentido, a ideia de cultura significa uma dupla recusa: do determinismo orgânico e da autonomia do espírito. Assim, ao mesmo tempo que transfigura a natureza, impõe limites rigorosos, de modo que “estamos imprensados entre natureza e cultura” (EAGLETON, 2005, p. 141). Laraia (2009) discorre sobre o dilema entre a unidade biológica e a diversidade cultural da espécie humana, trazendo contribuições que vão desde Confúcio, passando por Marco Polo até o padre Anchieta, mostrando as diferenças de comportamento entre os seres humanos. Sahlins (1979), rebatendo alguns enfoques da sociobiologia sobre análises de parentesco e estruturalismo, define cultura como a união entre a biologia e a capacidade simbólica. A antropologia relaciona o conceito à civilização, como faz Laraia (2009). Para Tylor (2009, p. 31), “Cultura ou Civilização, tomada em seu amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo ser humano na condição de membro da sociedade”. Essa noção de cultura, mesmo que de forma parcial, é importante para relacionarmos a CCC com os hábitos adquiridos pelo ser humano na sociedade em que está inserido. A visão universalista do chamado Evolucionismo Cultural foi ponto de crítica usado por Boas (2011) para desmistificar a ideia de criação de linhas mestras da história uniforme do desenvolvimento humano. O autor defende o desenvolvimento histórico por

29 cursos variados, através de um “relativismo cultural”, que busca pluralizar a cultura, promovendo um redirecionamento fundamental na histórica cultural. Na antropologia, esse processo acompanhou a construção do método histórico, que parte da reconstrução histórica dos processos por meio dos quais o desenvolvimento cultural ocorreu, substituindo o método comparativo do evolucionismo. No mesmo sentido da crítica anterior, Geertz (2008) afirma que a cultura não é uma ciência que busca leis gerais, mas uma ciência interpretativa à procura de significado. Para o autor, cultura é a teia de significados que o ser humano criou, o que explica a importância dos significados em sua análise sobre a densidade das relações entre os indivíduos na produção de sentidos e os significados. Os signos criados pela/para cultura são elementos essenciais para mostrar como a cerveja se insere como produto que expressa e materializa sentidos e significados importantes para as diferentes sociedades, ou seja, como a cerveja se transfigura em cultura. Em meio a esse movimento de reposicionamento do termo “cultura”, Eagleton (2005) lança luz à desassociação entre “cultura” e “civilização”, buscando no termo alemão Kultur (baseado no francês culture) uma visão de cultura como criticidade do modelo capitalista, sobretudo de base marxista, configurando-se como um modo de vida característico. Nesse sentido, o termo “cultura” situa-se ao lado das sociedades subjugadas pela colonização, expressando as diferentes nações e períodos. Porém, segundo o autor, cultura não é somente diversidade, porque isso pressupõe pureza. Só é possível hibridizar a partir de algo puro e nenhuma cultura é pura por si só, pois todas as culturas relacionam-se em sua heterogeneidade e diferenciação. Assim, a cultura não é afeita a um interesse social específico, mas exatamente por causa disso é fonte de uma capacidade ativadora de diferenciações e modos de vida. Williams (2003) destaca que a cultura representa as diferentes formas de expressão de um modo de vida, de modo que seu estudo deve desvendar a natureza da organização complexa desses elementos. O autor destaca as revoluções democrática, industrial e cultural como elementos fundamentais para a compreensão da cultura nos últimos séculos, estando as duas primeiras no centro do pensamento social e a última como resistência à supressão provocada pelo capitalismo. Segundo a visão pós-moderna, a cultura é considerada como um nível dominante da vida social sob a estética da mercadoria, da espetacularização da política, do consumismo do estilo de vida, da centralidade da imagem e da integração final da cultura dentro da produção (EAGLETON, 2005). Nesse sentido, juntam-se à cultura e à vida

30 social, as artes e a vida comum nos envolvendo com aspectos relativos à moda, propaganda, mídia etc. Consumismo como estilo de vida é o que Bauman (2008) indica como “tipos ideais”, utilizando a expressão de Max Weber para se referir aos instrumentos de análise para compreensão da sociedade. Para o autor, o consumismo é uma nova fase da estruturação da vida que surgiu com uma espécie de “revolução consumista”, na qual o consumo se transformou em consumismo, quando o propósito das pessoas passou a ser o consumo que, por sua vez, passou a sustentar a economia. Na mesma linha de pensamento, Lipovetsky (2007) afirma que vivemos em uma sociedade de hiperconsumo, na qual o ato de consumir muda de fisionomia. Uma nova cultura de consumo se ergue em uma pós-sociedade de consumo de massa, baseada na lógica do “sempre mais, sempre novo”. A esse respeito, Eagleton (2005) considera que a vida social e a cultura estão ligadas na forma da estética da mercadoria em uma conjunção de localidade, identidade e centralidade da imagem. Portanto, a cultura corresponderia a um complexo de valores, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico. A ideia de cultura assume maior importância quando destinada à emancipação política de um grupo ou de povo e quando uma potência imperialista é forçada a chegar a um acordo, considerando o modo de vida daqueles que são subjugados. Esses dois aspectos colocaram a ideia de cultura na pauta do século XX, de modo que grande parte do significado atual de cultura se deve ao nacionalismo, ao colonialismo e à antropologia a serviço do imperialismo. O debate sobre identidade cultural ajuda a compreender esse processo. Segundo Hall (2004), não podemos afirmar que temos uma identidade fixa e imóvel, pois existem mudanças e transformações nas sociedades, nos espaços e nos sujeitos que alteram a própria identidade. Dessa forma, somos constituídos por representações que mudam a todo momento, ao passo que as culturas se misturam e o processo de globalização altera e reforça os padrões de identidade nacional. Assim, é importante desenvolver um panorama sobre a história da cerveja para verificar como as transformações sociais e identitárias se configuraram na representação da bebida nas diferentes sociedades, tempos e espaços. Nos países que sofreram colonização, o hibridismo é um elemento fundamental na constituição da cultura. Canclini (1998) afirma que a modernidade é sinônimo de pluralidade, mesclando relações entre hegemônicos e subalternos, tradicional e moderno, culto, popular e massivo. Nesse processo, as independências e o desenvolvimento nos

31 países buscaram compatibilizar as transformações culturais com a incompleta e tardia modernização econômica, ambos aliados às tradições persistentes. Para o autor, é necessário compreender como os agentes envolvidos no processo de modernização cultural e econômica se reestruturam e como isso molda os estilos das pessoas e suas relações, revelando as culturas híbridas. “Essa modernização insatisfatória deve ser interpretada em interação com as tradições que persistem” (CANCLINI, 1998, p. 353). Podemos observar como a massificação de um tipo de cerveja foi introduzida como modernidade nos diferentes países, impondo o seu estilo, mas também sofrendo as influências das tradições nacionais, como uso de ingredientes locais. Tais fatores contribuem para uma compreensão mais profunda da CCC. Norbert Elias (1993) explica o processo civilizatório como relativo, já que as transformações sociais no tempo e no espaço estabelecem regras e padrões determinados (estruturas de comportamento) que definem o que é considerado civilizado. Através de ações coercitivas, os comportamentos sociais atingem as atitudes, emoções e personalidade dos indivíduos, tornando essas estruturas socialmente aceitas e naturais, sem se dar conta dessa construção psíquica e emocional no percurso da história. Dessa forma, a cultura se altera ao longo de tempo e do espaço. A cerveja também sofre um processo civilizatório, alterando sua importância e significação conforme a sociedade em que está inserida. Por exemplo, o processo civilizatório da cerveja transformou a bebida de tema central no Egito antigo para produto atualmente proibido no país. Outro exemplo é o discurso de superioridade da cerveja de baixa fermentação em relação à de alta fermentação, o que contribuiu para sua hegemonia, como veremos mais adiante. Essas alterações do status da cerveja no tempo e no espaço são importantes para compreender também a mudança do status da cultura da cerveja. Após discorrer brevemente sobre o conceito de cultura e sua relação com a história da alimentação, partiremos para definições abrangentes que condensam as passagens anteriores para avançarmos na ideia de CCC. A primeira noção, proposta por Sahlins (1990), relaciona cultura e história. O autor evidencia a influência mútua que há entre os dois conceitos, o que nos conduz a traçar a história geral da cerveja para entendermos como os signos associados a essa bebida se configuram ao longo da história.

A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são

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reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses contrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoas envolvidas (SAHLINS, 1990, p. 7).

Já Claval (2001) parte da ideia dos modos de vida e significações das diferentes sociedades e a herança cultural que esses comportamentos passam, sedimentando os processos culturais no espaço das pessoas e nos territórios por elas criados.

A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é herança transmitida de uma geração a outra. Ela tem raízes num passado longínquo, que mergulha no território onde seus mortos são enterrados e onde seus deuses se manifestaram. Não é, portanto, um conjunto fechado e imutável de técnicas e de comportamentos. Os contatos entre povos de diferentes culturas são algumas vezes conflitantes, mas constituem uma fonte de enriquecimento mútuo. A cultura transforma-se, também, sob o efeito das iniciativas ou das inovações que florescem no seu seio (CLAVAL, 2001, p. 63).

Esses conceitos sintetizam o arcabouço teórico para a construção da ideia de CCC, olhando para a história, geografia e cultura da cerveja. Ao condensar o entendimento sobre CCC, podemos construir uma definição própria do tema. Cerveja como Cultura pode ser compreendida como uma aproximação da cerveja com a história/geografia da humanidade, tendo a bebida (alimento) como elemento de conexão entre as pessoas por meio das práticas de fabricação, degustação e estruturação da atividade cervejeira em todos seus aspectos do “campo ao copo”, além das questões de evolução histórica da bebida em diferentes tempos e espaços, criando comportamentos e hábitos passados de geração a geração, construindo heranças e identidades a partir das expressões culturais vinculadas à cerveja, como a boêmia e a música. As análises das relações entre a cultura, o espaço e a cerveja ao longo da história com seus significados e signos serão guiadas a partir dessa definição. A Figura 1, a seguir, traça uma conexão entre a noção de CCC e as seções subsequentes.

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Figura 1 - Esquema explicativo sobre a noção de CCC 1. CERVEJA COMO CULTURA: Os primórdios históricos/geográficos Cerveja como Cultura pode ser compreendida como uma da humanidade e sua relação com a aproximação da cerveja com a história/geografia da cerveja e como essa bebida se humanidade, tendo a bebida (alimento) como elemento consolidou nas sociedades antigas de conexão entre as pessoas por meio das práticas de fabricação, degustação e estruturação da atividade 2. A CULTURA CERVEJEIRA E SEUS cervejeira em todos seus aspectos do “campo ao copo”, CONHECIMENTOS: A bebida além das questões de evolução histórica da bebida em (alimento) em seus aspectos de diferentes tempos e espaços, criando comportamentos e fabricação, degustação e consumo hábitos passados de geração a geração, construindo heranças e identidades a partir das expressões culturais 3. A CERVEJA NA CULTURA: A vinculadas à cerveja, como a boêmia e a música. construção de locais, atmosfera, comportamentos e expressões culturais vinculados ao consumo de cerveja, Fonte: elaboração própria. criando identidade de pessoas e lugares

Através desse caminho teórico, construímos a argumentação de cada seção para sustentar a noção de CCC ao longo dos três primeiros capítulos, sempre buscando relacionar os aspectos que trazem a cerveja para o campo das relações humanas no tempo e espaço. Nossa primeira abordagem refere-se aos primórdios da humanidade e sua relação temporal e espacial com a cerveja.

1.2 Como a cerveja salvou o mundo: achados arqueológicos e a cerveja como impulsionadora do desenvolvimento humano

Retomamos a compreensão de que a história ordena e é ordenada pela cultura e que a herança cultural é transmitida de geração a geração para configurar nosso comportamento, por meio das expressões culturais vinculadas à cerveja. De acordo com esse pressuposto, buscamos compreender como a cerveja foi se solidificando no decorrer da história e como essa bebida chegou aos dias atuais, mostrando sua fixação como elemento cultural nas diferentes sociedades e espaços. Um aspecto-chave na construção da noção de CCC refere-se às relações sociais construídas a partir do consumo da cerveja, como nos lembra Miller (2007).

A história de uma postura moral do consumo não deve ser confundida com a história do consumo em si. As pessoas sempre consumiram bens criados por elas próprias ou por outros. O consumo é um tópico que está emergindo, portanto, em estudos arqueológicos, associado com o aumento da preocupação com a cultura material de uma forma mais geral (MILLER, 2007, p. 40).

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Assim, é necessário investigarmos a história da cultura material da cerveja por meio dos achados arqueológicos para resgatarmos dados sobre a produção e o consumo de cerveja como elementos culturais, ou seja, da CCC. Para além da produção, compreender a história da cultura material da cerveja e seu consumo é “entender que a cerveja é uma forma de arte, um tesouro gastronômico, um ato político, um ritual místico, um alimento, e um ofício humano fundamental” (MOSHER, 2018, p. 17). Para resgatar os primórdios da cerveja através de achados arqueológicos e para evidenciar esse caráter da natureza e sua transformação em cultura, citamos o poeta John Ciardi, segundo o qual “a fermentação e a civilização são inseparáveis” (STANDAGE, 2005, p. 15). Essa frase evidencia a relação entre a produção e o consumo da cerveja na concepção das sociedades humanas6. A história e os achados arqueológicos nas sociedades do crescente fértil e depois a cerveja na Europa mostram como a cerveja foi elemento cultural e como chegou até nós7, evidenciando como essa bebida é responsável por criar identidades culturais. O processo de sedentarização humana caminha lado a lado com a história da cerveja e os primeiros indícios de produção da bebida no mundo ajudam a evidenciar esse paralelismo. As buscas arqueológicas relativas à história da cerveja visam investigar a estrutura social em torno dos vestígios encontrados e a organização espacial, responsável por criar hábitos e comportamentos em torno da bebida, ou seja, um modo de vida e uma identidade a partir dos rituais sociais. Esse entendimento ajuda a sustentar a noção de CCC. Segundo Aymard e Auboyer (1957), no período pré-histórico, os seres humanos constituíram as civilizações mais ecumênicas que o mundo já viu, devido a sua miscigenação. Somente após o uso de abrigos, o ser humano iniciou a compartimentação efetiva dos terrenos reservados a cada grupo. A partir de então, a agricultura sedentária

6 Esse caráter primário da relação entre a cerveja e o ser humano é apontado por Jackson (2010, p.10): “Há momentos em que um cálice de vinho ou um copo de cerveja vem à mente e nada pode substituí-lo. Não é uma questão de sede ou necessidade de álcool. Pode ser bem agradável matar a sede com cerveja, mas a água é mais eficaz. Se o álcool é necessário, a cerveja é a escolha mais fraca, posicionando-se em terceiro lugar, atrás dos vinhos e destilados. Quando alguém tem vontade de um cálice de vinho ou uma caneca de cerveja, o cérebro gradualmente percebe o desejo como um sussurro. Aos poucos, o volume aumenta, criando uma reverberação suave por todo o sistema nervoso. De início é como uma massagem prazerosa, depois se torna obstinada. Você está nas mãos de uma autoridade superior que não admite argumentos. É um desejo, e o trem não pode sair dos trilhos. Seu destino é um encontro com a bebida”. A história, os livros, entrevistas e todo a trajetória do autor estão compiladas no site criado para sua homenagem (BEER HUNTER, s. d., on-line). 7 Em vários momentos históricos da humanidade, a cerveja foi um elemento propulsor da evolução humana e esse aspecto pode ser verificado no interessantíssimo documentário da Discovery Channel que inspira o título dessa seção, “Como a cerveja salvou o mundo” (HOW BEER SAVED THE WORLD, 2011).

35 surgiu como elemento crucial para fixação do ser humano. Nesse período, ocorreu a fragmentação de uma civilização única em civilizações múltiplas que se expandiram, se aperfeiçoaram e se degradaram uma a uma. É nesse contexto de formação das civilizações e de seu desenvolvimento que buscamos as formas de expressão espaço-temporal da cerveja e como ela contribuiu para a sedentarização do ser humano. Michel, McGovern e Badler (1992) trazem uma contribuição importante para a área, ao descreverem as evidências químicas das cervejas ancestrais. A pesquisa foi realizada no Irã (antiga Suméria). No sítio arqueológico de Godin Tepe, na cordilheira de Zagros, foram localizados resíduos de produção de cerveja datados de 3.400 a 3.000 a.C. do período Uruk inferior8. Os potes de cerveja de Godin Tepe (Figura 2, à esquerda) traziam em seu interior as chamadas “pedras cervejeiras”, formadas através do depósito natural de oxalatos de cálcio em recipientes onde a cerveja é fermentada. Tais evidências comprovaram a produção da cerveja a partir da cevada (HABIG; PABST; JAKOBY, 1974 apud MÜLLER, 2018). Em 2021, foi descoberto na cidade de Abydos, no Egito, o que seria a cervejaria de grande porte mais antiga do mundo, datada de um período entre 3273 e 2987 a.C. De o Dr. Matthew Adams, da New York University e líder da missão, a cervejaria pertencia ao Rei Namer e estava dividida em oito grandes seções (20m x 2,5m x 0,4m), que guardavam 40 recipientes com resíduos da mistura de grãos e água (Figura 2). Segundo o pesquisador, a cervejaria “may have been built in this place specifically to supply the royal rituals that were taking place inside the funeral facilities of the kings of Egypt [...] Evidence for the use of beer in sacrificial rites was found during excavations in these facilities” (BBC NEWS, 2021, on-line). Sendo uma das mais antigas cidades do antigo Egito, Abydos situa-se próxima a Luxor, onde estão importantes centros da sociedade egípcia, como o Vale dos Reis, templos e locais de sepultamento de importantes faraós, como Ramsés II, Amenhotep III e Tutankhamon. A importância do local explicaria, em partes, a necessidade da grande produção de cerveja.

8 O período de Uruk corresponde ao desenvolvimento proto-histórico da história da Mesopotâmia, abrangendo os anos entre 3.800 e 3.200 a.C. (WIKIPÉDIA, s. d.[a], on-line). 36

Figura 2 - “Primeira” grande cervejaria do mundo

Fonte: BBC NEWS, 2021, on-line.

Nesse mesmo período histórico, foi encontrado o selo cilíndrico de lápis-lazúli de 2.600 anos a.C. (Figura 3, à direita) que, dividido horizontalmente por duas partes, retrata cenas de banquetes atribuídos à Rainha Suméria Pu-abi. Observa-se que as pessoas bebem em tubos semelhantes à palha (parte superior, provavelmente cerveja) e taças (parte inferior, possivelmente vinho) (MICHEL; MCGOVERN; BADLER, 1992). A imagem mostra que a realeza tinha na cerveja um elemento do cotidiano e transcendental, de modo que a bebida era levada até mesmo ao túmulo, o que mostra o valor que a cerveja assumia para essa sociedade, estando presente no mais elevado grau de estratificação social.

Figura 3 - Fragmentos de potes de cerveja da Suméria e o selo Lápis-Lazúli

Fonte: À direita: MICHEL; MCGOVERN; BADLER, 1992. À esquerda: THE BRITISH MUSEUM, s. d.[a], on-line.

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Considerados pilares da construção da cultura em torno da cerveja no mundo, os sumérios tinham em seus tabletes de argila descrições de diferentes tipos de cerveja, como “cerveja preta”, “cerveja vermelha”, “cerveja de cevada”, “cerveja de espelta”, “cerveja branca fina”, “Cerveja preta fina”, “cerveja prima”, “cerveja 20 qa”, “cerveja 30 qa” (qa é equivalente à 0,4L), além de cervejas mistas com especiarias, muitas com corante Kasi, nome babilônio para planta da época, e cervejas envelhecidas por até um ano (HORNSEY, 2003). Tema central na vida dos sumérios, as cervejas eram divididas por cinco critérios principais: a) qualidade, diferenciando cervejas “prime” e de “segunda qualidade”; b) ingredientes, uma vez que as cervejas podiam ser fabricadas a partir de cevada ou de uma espécie antiga de trigo, denominada emmer; c) processamento, exemplificado pela existência de uma “cerveja densa”; d) cor, já que havia diferentes cores, como “cerveja escura” e “cerveja ouro” e; e) sabor, como por exemplo a “cerveja doce” (HORNSEY, 2003). Segundo Müller (2018), naquela época, a cerveja era obtida através de uma precária malteação9 de cereais, que resultava em uma cerveja muito diferente das atuais. Contudo, essa proto-cerveja, afirma o autor com base em Meussdoerffer (2009), teve fundamental importância no estabelecimento dos primeiros assentamentos humanos e em seu desenvolvimento. As evidências que confirmam a produção de cerveja ao longo da história crescem pari passu ao avanço das pesquisas científicas. Na China, em 2016, pesquisadores descobriram evidências cervejeiras datadas de aproximadamente 5.000 anos a.C., mediante escavações realizadas às margens do rio Wei, tributário do rio Amarelo. Encontraram, em Mijiaya, vestígios do que seria um “beer-making toolkit” (Figura 4), um kit de ferramentas de fabricação de cerveja (WANG et. al., 2016). Os artefatos foram encontrados em um lugar central para atividades de comunidades regionais e que faziam parte de um conjunto de elementos que demonstravam uma hierarquização social estruturada (WANG et al., 2016). O período de Yangshao10 configurou-se por construir grandes edifícios públicos que, provavelmente, serviam para cerimônias rituais e festas em níveis local e regional. Também é provável

9 O processo de malteação será aprofundado na seção 2.1 do Capítulo 2 desta tese. 10 A cultura de Yangshao foi uma cultura do Neolítico que se estendia ao longo do trecho central do rio Amarelo na China, no período de 5.000 a.C. a 3000 a.C. (WIKIPÉDIA, s. d.[b], on-line). 38 que os locais fossem utilizados para banquetes, conduzidos pela elite regional, visando obter um status social elevado (WANG et al., 2016).

Figura 4 - Mapa da localização das escavações e os artefatos encontrados. Os pesquisadores realizaram análises químicas de amido e resíduos de dois funis completos (B) e fragmentos de cerâmica de cinco ânforas Jiandipantes (D).

Fonte: WANG et al., 2016

Nesse ponto, já é possível verificar a ligação entre a cerveja primitiva e as relações sociais e de poder, uma vez que a bebida estava presente em festas e rituais e constituía um elemento de diferenciação social. Esses achados contribuem com a tese da CCC, segundo a qual a cerveja é um elemento cultural moldador das civilizações. A evolução das técnicas, nesse caso evidenciado pelo kit de produção de cerveja, sugere que a atividade cervejeira estava disseminada na sociedade da época. Apesar de espacialmente distantes, Suméria e China apresentavam a cerveja como elemento de apreciação do mais alto grau do poder social. Assim, a técnica da cerveja marcou o tempo (eventos simultâneos) em cada espaço, seja no oriente médio ou, paralelamente, na Ásia. Nessa mesma região de vilas agrícolas do rio Amarelo, já existiam descobertas de produção de bebidas alcoólicas. O arqueólogo Patrick McGovern, conhecido como o Indiana Jones das bebidas11, já havia encontrado evidências de bebidas fermentadas na região de Jiahu, na província de Henan, Zhengzhou, China, datadas de cerca de 9.000 anos atrás. Essa bebida tinha como base uma proto-cerveja à base de arroz e se misturava com mel, uva e outras frutas, alcançando um teor alcoólico de aproximadamente 10%.

11 Patrick Edward McGovern é professor de arqueologia da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Por seus trabalhos com bebidas ancestrais, Dr. Pat é conhecido como o Indiana Jones das bebidas antigas (SOMOS TODOS CERVEJEIROS, 2016a, on-line). 39

Segundo Mcgovern (2009), os humanos pré-históricos aparentemente misturaram pedaços de arroz com saliva em suas bocas, convertendo o amido no grão em açúcar. O arroz mastigado era devolvido à mistura e ocorria uma fermentação espontânea por meio de leveduras selvagens. Devido à fermentação, sua espuma e cascas flutuavam sobre o líquido, motivo pelo qual esses “cervejeiros” usavam palhas compridas para beber nos potes de Jiahu (Figura 4) com gargalo estreitos, técnica semelhante à dos sumérios (Figura 3B). Ainda hoje, o álcool ainda é consumido dessa maneira em algumas regiões da China e da África. McGovern (2009) vê esse processo inicial de fermentação como uma estratégia inteligente de sobrevivência. Para o autor, o consumir açúcar a partir do mel e das frutas e álcool de alta energia foi uma boa solução para sobreviver em um ambiente hostil com poucos recursos naturais. Os indícios sugerem que a fermentação de bebidas alcoólicas foi a motivação primária para domesticação das plantas, consequência da revolução agrícola do neolítico. Essa afirmação contundente está em torno da teoria arqueológica da cerveja como um dos aspectos motivadores da sedentarização do ser humano, principalmente para ritualizar a vida e cultuar seus deuses (MCGOVERN, 2009). O pesquisador recriou essa e outras cervejas ancestrais12 junto de Sam Calagione, fundador da , na cidade de Milton, no estado de Delaware, nos EUA. A cerveja foi lançada como Château Jiahue (Figura 5A) e sua receita tenta seguir os achados arqueológicos, levando em sua composição uma mistura de arroz, mel, uvas e bagas de espinheiro-alvar13.

12 A cervejaria Dogfish Head lançou, junto do Dr. Pat, a série “Ancient Ales”, com três cervejas antigas. A primeira foi a Midas Touch, receita recriada a partir da cerveja compartilha na festa funerária do rei Midas por volta de 700 a.C. Essa cerveja ganhou várias medalhas em concursos, entre eles o Great American Beer Festival e um dos mais renomados concursos do mundo, o World BeerCup. Além da Chateau Jiahu, a Dogfish lançou a TaHenket, uma cerveja feita a partir de ingredientes e tradições retiradas dos hieróglifos egípcios; a Birra Etrusca Bronze, inspirada em vasos de bebida encontrados em tumbas etruscas de 2.800 anos; e Theobroma, a mais antiga bebida à base de cacau alcoólico conhecida, que remonta a 1200 a.C. em Honduras (SEARLES, 2018). 13 Nome popular de duas espécies de arbustos nativos da Europa, da família das rosáceas. Essas plantas são caracterizadas por madeira muito duras e bagas vermelhas (PRIBERAM, s. d., on-line). 40

Figura 5 - A cerveja Chateau Jiahu (à esquerda) e os potes de Jiahu (à direita)

Fonte: À esquerda: DOGFISH, s. d., on-line. À direita: PENN MUSEUM, s. d., on-line.

Recentemente, achados sobre produção cervejeira mudaram o registro da primeira cerveja produzida pela humanidade no tempo e no espaço. Em 2018, foram encontrados vestígios que sugerem a existência da produção de cerveja milênios antes e vão da Ásia para o Oriente Médio. Em Israel, arqueólogos analisaram três morteiros de pedra de uma caverna (Figura 6) de 13.000 anos de idade, onde se configurou a região Natufiana14 (LIU et al., 2018).

Figura 6 - Mapa da localização das escavações e evidências encontradas. As análises das argamassas que se formaram no fundo desses morteiros (B) mostraram que eles eram usados para triturar e fermentar o trigo e cevada, bem como para armazenamento de alimentos (C).

Fonte: LIU et al., 2018.

14 A cultura Natufiana existiu de cerca de 13.500-12.000 a 9.500-7.550 a.C. no Levante, região do Mediterrâneo Oriental. Essa cultura se apoiava em uma população semissedentária e forrageadora, mesmo antes da introdução da agricultura entre os períodos Paleolítico e Neolítico, após a última Era Glacial (WIKIPÉDIA, s. d.[c], on-line). 41

A hipótese levantada pelos pesquisadores era que a fabricação de álcool e o armazenamento de alimentos estiveram entre as principais inovações tecnológicas que contribuíram para o desenvolvimento de civilizações no mundo. Portanto, a fabricação de álcool não era necessariamente resultado do excesso de produção agrícola, mas foi desenvolvida com propósitos ritualísticos e espirituais, em certa medida anteriores à agricultura15. Ainda de acordo com a pesquisa, a evidência da fabricação de cerveja na Caverna de Raqefet há 13 mil anos fornece mais um exemplo dos complexos arranjos sociais nos quais essa bebida constitui uma motivação subjacente para cultivar cereais no sul do Levante, fortalecendo mais ainda a hipótese defendida, segundo a qual a cerveja foi o principal motivo de sedentarização do ser humano. Para apoiar essa teoria, o biólogo alemão Josef Reichholf (2010) traça uma retrospectiva da história humana para encontrar uma justificativa abrangente de seu desenvolvimento e de sua fixação. O autor parte da negação de saberes comumente difundidos, como a ideia de que o ser humano abandonou a vida nômade e se estabeleceu de maneira permanente em um lugar determinado para se alimentar melhor. Para Reichholf (2010), o cultivo da terra era muito trabalhoso e não rendia o necessário para alimentação plena dos seres humanos. Corroborando com essa tese, Flandrin e Montanari (1998) apontam que houve uma alteração no padrão da alimentação humana do período paleolítico médio (200.000 a 40.000 a.C.) para o paleolítico superior (40.000-10.000 a.C.), quando a proporção de carne diminuiu e a coleta de frutas, cereais e a pesca passam a compor parte importante da alimentação. Especificamente no mesolítico (13.000 a 10.000 a.C.), quando ocorreu uma glaciação que afastou os seres humanos das áreas mais ao norte, a caça passou dos animais maiores, como mamutes, bisões, renas etc. para menores, como cervos, javalis, lebres etc. Nessa transição, conhecida como revolução do neolítico16, a domesticação dos animais e o início da agricultura alteraram profundamente a organização social.

15 Segundo os autores, os restos de pão mais antigos do mundo foram recentemente descobertos em uma escavação natufiana no leste da Jordânia. Os vestígios mais antigos de pão têm entre 11.600 e 14.600 anos, enquanto os de cerveja têm idade estimada entre 11.700 e 13.700 anos (LIU et al., 2018). Ainda não conseguimos responder a um dos grandes enigmas da humanidade (Quem veio primeiro: o pão ou a cerveja?), porém, não há dúvidas da importância desses elementos o início das sociedades organizada. 16 O período neolítico como um todo foi de 10.000 a 3.000 a.C., quando se iniciou as idades dos metais. 42

Segundo os autores, a transição da caça de grande porte para a domesticação de animais menores e para a agricultura apresenta duas facetas. De um lado, representou uma segurança aos azares climáticos, embora o consequente aumento da população tenha acarretado na elevação da mortalidade infantil e no risco da escassez. Por outro lado, o trabalho do cultivo de cereais requer maior esforço em comparação às grandes caçadas do paleolítico e a variedade alimentar dos agricultores/criadores é menor que as dos caçadores/coletores, o que causou uma queda na expectativa de vida no início da transição. Esse processo se deu de forma diferente em algumas regiões pouco numerosas e relativamente pouco extensas a partir da autotransformação de sistemas de predação bem variados. Segundo Mazoyer e Roudart (2010), as primeiras formas de agricultura eram praticadas perto das moradias e aluviões das vazantes dos rios, porém, a partir da expansão agrícola, foram adotados os sistemas pastoral (regiões de vegetação herbácea como estepes e savanas) e o de cultivo derrubada-queimada (regiões florestais temperadas e tropicais). Assim, cada região adotou uma forma de agricultura adaptada a suas condições, como é o caso do crescente fértil, no qual o sistema agrário hidráulico operou a partir de cultivos inundados ou irrigados. O ser humano não abandonou a caça na região do crescente fértil devido à escassez de presas (REICHHOLF, 2010). A área era rica em vegetação e, portanto, presume-se que a fauna também estava amplamente presente. Assim, segundo Reichholf (2010), é possível que a agricultura tenha surgido a partir de uma situação de abundância e não de escassez e o cultivo de cereais teria sido um complemento à alimentação, que já era sustentada pela caça e pela coleta. O autor ainda afirma que a humanidade o cultivo de cereais teve início não para fazer pão para alimentação, mas para fabricar cerveja e alcançar estados de embriaguez, que configuravam como uma poderosa forma de transcendência e contato com as entidades cultuadas. Corroborando essa hipótese, Oliver17 (2012) aponta que a cevada encontrada naquele período não era boa para fazer pão e sim cerveja. O trigo também foi encontrado, mas em pequenas quantidades em relação a cevada.

17 O mestre cervejeiro norte-americano é um dos mais respeitados do mundo, inovando por meio da Brooklyn Brewery, onde é o cervejeiro chefe. É editor do The Oxford Companion to Beer, que compilou o conhecimento de 166 especialistas em 24 países e cobrindo 1.120 assuntos, sendo o livro mais abrangente já publicado sobre a cerveja. Também é autor do renomado livro The Brewmaster’s Table e vencedor do Prêmio James Beard de 2014 pelo Excellent Wine, Beer ou Spirits Professional (BROOKLYN BREWERY, s. d., on-line). 43

A reflexão trazida por Reichholf (2010) nos faz lembrar da seguinte frase de Zaki Yamani, Ministro de Petróleo da Arábia: “A Idade da Pedra não acabou por falta de pedras, e a Idade do Petróleo se acabará bem antes de esgotar o petróleo” (MAGNOLI, 2014, on-line). O paralelo que fazemos é a passagem do ser humano nômade caçador e coletor para o ser humano sedentário. Como salientado, a agricultura não teria sido criada por falta de caça ou frutas para coleta, mas por inovações tecnológicas, sociais e culturais, que buscaram no cultivo de grãos uma forma de produzir um líquido (cerveja) que os conectava com uma nova forma de ver o mundo. “A cerveja era considerada um alimento mágico, que mantinha a população alegre e saudável” (OLIVER, 2012, p. 52). Seguindo essa linha, temos outro ponto importante sobre a cerveja e o desenvolvimento humano. A necessidade de desenvolvimento da matemática e da escrita vieram da complexificação social que havia sido criada com o adensamento populacional. A primeira forma de escrita foi a cuneiforme, cujo registro mais antigo data de 5.000 anos atrás na cidade de Uruk, Mesopotâmia, atual Iraque. Para organizar a estrutura social que foi se aglomerando e para definir obrigações entre pessoas que não se conheciam, foram traçadas as primeiras formas de contar e escrever, ou seja, a necessidade de gerenciar a economia impulsionou a humanidade (MACGREGOR, 2013). Além disso, é possível que a cerveja também tenha sido parte fundamental da economia, o que pode ser comprovado através do achado arqueológico de um tablete de argila (Figura 7), que descreve um acordo entre empregado e empregador, no qual o pagamento pelo serviço seria em cerveja (MACGREGOR, 2013).

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Figura 7 - O primeiro contrato de trabalho da humanidade: cerveja como pagamento

Fonte: THE BRITISH MUSEUM, s. d.[b], on-line.

O círculo vermelho na Figura 7 destaca o símbolo da cerveja. Esse tablete de cerâmica é uma espécie de holerite, que faz referência à cerveja como forma de pagamento. No museu britânico, há centenas de milhares desses tabletes de argila, que constituem uma forma de se transportar ao passado. O símbolo cuneiforme para cerveja (Figura 8) foi evoluindo com o passar dos anos e se tornando gradualmente mais abstrato.

Figura 8 - Evolução da escrita cuneiforme para cerveja

Fonte: STANDAGE, 2005, p. 34.

Da escrita cuneiforme até o latim, a grafia da palavra que designa cerveja foi alterada de cervisia ou cerevisia, da qual se derivaram o francês cervoise (suplantada por bière), o italiano cervigia (suplantado por birra), o espanhol cervesa (suplantado por cerveza). Das matrizes lingüísticas anglo-saxônicas, o termo béor, do inglês, passou para beer e a palavra bior, do alemão, transformou-se em bier (HOUAISS, 1986).

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De certa forma, a cerveja também está relacionada com a religião. Sabe-se que o crescimento das plantas cultivadas era considerado uma benção dos deuses e esses, por sua vez, eram adorados e recebiam oferendas devido às colheitas e à fertilidade (AYMARD; AUBOYER, 1957). Na civilização suméria, essa relação era tão estreita que havia uma deusa da cerveja, Ninkasi, que significa “a senhora que enche a boca”. Ninkasi era representada por uma mulher (Figura 9), já que as mulheres eram as responsáveis pela produção da cerveja, entre outras tarefas domésticas (PATTERSON; HOALST- PULLEN, 2014).

Figura 9 - Representação da Deusa e os tabletes de argila com o hino à Ninkasi

Fonte: BIBLIOTECA DIGITAL CUNEIFORME INETERATIVA, s. d., on-line.

O Hino à Ninkasi18 foi registrado em escrita cuneiforme sumérica em tábuas de argila por volta de 1800 a.C., mas acredita-se que seja muito mais antigo, devido ao antiguíssimo culto dos sumérios à cerveja. O hino, composto por duas partes, é tanto uma canção de louvor à deusa, quanto uma receita para preparar seu tipo especial de cerveja. A cerveja produzida através da receita no hino era provavelmente de alta qualidade e usada para oferendas religiosas ou consumida por membros da elite da

18 Na mitologia suméria, Ninkasi é filha de Enki e da Rainha Ninti, e é uma das oito crianças criadas para curar uma das oito feridas que Enki recebe. Além de ser considerada a deusa da cerveja, ela foi feita para satisfazer o desejo e saciar o coração através do processo de fabricação de cerveja que ela fazia diariamente. De acordo com seus laços com as libações, o poema afirma que Ninkasi nasceu de “água corrente”. No poema, Ninkasi é elogiada por fazer coisas como colocar pilhas de grãos em ordem, montar o barril de fermentação e fazer o Bappir, um pão assado duas vezes feito de cevada usada para fazer cerveja (CIVIL, 1964). 46 sociedade, já que Ninkasi era a cervejaria dos deuses (CIVIL, 1964). A seguir, transcrevemos a tradução do hino à Ninkasi (BAMFORTH, 2011, p. 50-51):

Nascida da água corrente Delicadamente cuidada por Ninhursag Nascida da água corrente Delicadamente cuidada por Ninhursag

Tendo fundado sua cidade pelo lago sagrado Ela rematou-a com grandes muralhas por você Ninkasi, fundando sua cidade pelo lago sagrado Ela rematou-a com grandes muralhas por você

Seu pai é Enki, Senhor Nidimmud Sua mãe é Ninti, a rainha do lago sagrado Ninkasi, seu pai é Enki, Senhor Nidimmud Sua mãe é Ninti, a rainha do lago sagrado

Você é a única que maneja a massa com uma grande pá Misturando em um poço o bappir com ervas aromáticas doces Ninkasi, você é a única que maneja a massa com uma grande pá Misturando em um poço o bappir com tâmaras ou mel

Você é a única que assa o bappir no grande forno Coloca em ordem as pilhas de sementes descascadas Ninkasi, você é a única que assa o bappir no grande forno Coloca em ordem as pilhas de sementes descascadas

Você é a única que rega o malte jogado pelo chão Os cães fidalgos mantêm distância, até mesmo os soberanos Ninkasi, você é a única que rega o malte jogado pelo chão Os cães fidalgos mantêm distância, até mesmo os soberanos

Você é a única que embebe o malte em uma ânfora As ondas surgem, as ondas caem Ninkasi, você é a única que embebe o malte em uma ânfora As ondas surgem, as ondas caem

Você é a única que estica a pasta assada em largas esteiras de palha A frieza supera Ninkasi, você é a única que estica a pasta assada em largas esteiras de palha A frieza supera

Você é a única que segura com ambas as mãos o magnífico e doce sumo Fermentando-o com mel e vinho (Você, o doce sumo para o eleito) Ninkasi, (…) (Você, o doce sumo para o eleito)

O barril filtrador, que faz um som agradável Você ocupa apropriadamente o topo de um grande barril coletor Ninkasi, o barril filtrador, que faz um som agradável

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Você ocupa apropriadamente o topo de um grande barril coletor

Quando você despeja a cerveja filtrada do barril coletor É como os barulhos dos cursos do Tigres e do Euphrates Ninkasi, você é a única que despeja a cerveja filtrada do barril coletor é como os barulhos dos cursos do Tigres e do Euphrates

Em 1989, Fritz Maytag, pioneiro da revolução cervejeira norte-americana e dono da cervejaria Anchor Brewing, juntou-se ao Dr. Solomon Katz, arqueólogo da Universidade de Pennsylvania, para refazer uma cerveja de acordo com a receita indicada no Hino a Ninkasi, em uma tentativa de recriar o que se bebia à época (PATTERSON; HOALST-PULLEN, 2014). Por estar ligada a diversos aspectos do desenvolvimento da humanidade, a cerveja é chamada por Standage (2005) de “a bebida civilizada”, título que traduz sua importância crucial na formação social da humanidade. A relação entre cerveja e religião indica ainda que os espaços destinados à cerveja podiam ser sagrados, uma vez que a bebida era utilizada em cultos e ritos, sendo oferecida aos deuses. Dessa forma, a cerveja marca o tempo da época como elemento central na vida das pessoas por meio da religião, sendo parte da sua cultura, o que reforça ainda mais a teoria da CCC, defendida nesta tese. Como podemos ver, a cerveja vem ocupando importante função em diferentes espaços, sugerindo que à bebida é destinado quase sempre uma posição de destaque mesmo em sociedades diversas. Isso fortalece a ideia de que a produção cervejeira impulsionou a formação social. Os sumérios são considerados os “pais” da cerveja, devido ao grande desenvolvimento que a bebida teve na sua sociedade, como elemento central na vida cotidiana, como podemos observar na Epopeia de Gilgamesh, um poema épico, considerado a história escrita mais antiga da Terra, redigida em língua acadiana em tábuas incompletas, narrando as façanhas de um rei que governou a cidade-estado suméria de Uruk por volta de 2700 a.C. (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, s. d., on-line). Em uma passagem, o poema relata a natureza semidivina de Gilgamesh e, em seguida, apresenta o ser humano selvagem Enkidu, que deve matar um demônio que vive em uma distante floresta de cedro. O ser humano selvagem é persuadido a entrar na civilização pela prostituta Shanhat, que o educa nos caminhos dos seres humanos. O trecho a seguir mostra que a cerveja fazia parte do cotidiano dos sumérios, sendo inserida em sua cultura, entre seres humanos e deuses.

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Enkidu não sabia nada sobre comer pão para comer, E de beber cerveja ele não havia sido ensinado. A prostituta falou com Enkidu, dizendo: Coma a comida, Enkidu, é assim que se vive. Beba a cerveja, como é o costume da terra. Enkidu comeu a comida até se saciar, Ele bebeu a cerveja - sete jarras! e tornou-se expansivo e cantou com alegria! (MUSEUM OF ALCOHOL, 2013, on-line).

Mais adiante, na história, temos o Código de Hamurabi, que também faz referência à cerveja. Essa estela de basalto foi erguida pelo rei Hamurabi da Babilônia (1792-1750 a.C.), provavelmente em Sippar, cidade do deus sol Shamash, deus da justiça. Esse código jurídico é o mais importante ordenamento legal do Oriente Próximo e diz muito sobre a sociedade da época (ANDRÉ-SALVINI, 2003). O código contém diversos decretos sobre o cultivo, a colheita e a venda de grãos, o que mostra a importância dessa atividade na sociedade babilônica. A cerveja aparece em quatro de suas leis (Figura 10). A Lei 108 descreve que se um taverneiro (os donos de tavernas e cervejeiros eram essencialmente mulheres) não aceitar milho de acordo com o peso bruto no pagamento da bebida, mas receber dinheiro, e o preço da bebida for menor do que o do milho, ela será condenada e jogado na água até se afogar. A Lei 109 determina que se conspiradores se reúnem na casa de um taverneiro e não são presos, quem morre é o taverneiro. Isso sugere que a cervejaria era um local onde as pessoas costumavam se encontrar, o que despertava no rei certo medo de que ali surgissem conspirações para lhe tirar do poder. A Lei 110 descreve que se uma mulher entrar em uma taverna (cervejaria) para beber será queimada viva, deixando a entender que as mulheres, como filhas ou irmãs de Deus, também bebiam cerveja, mesmo que escondidas. Por último, a Lei 111 afirma que se um visitante oferecer sessenta ka (unidade de medida semelhante a um alqueire) de cerveja para a cidade em forma de agradecimento, este receberá cinquenta ka de milho, o que mostra o grande valor assumido pela cerveja nessa sociedade (BROOKS, 2011).

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Figura 10 - Código Hamurabi e o símbolo da cerveja (destacado pelo círculo vermelho)

Fonte: Museu do Louvre, Paris-França, 2018. Arquivo pessoal do autor.

A cerveja é um elemento fundamental na sociedade babilônica, como sugerido nessas e diversas outras passagens históricas. No Egito, a cerveja tem uma abrangência ainda maior devido ao desenvolvimento da sociedade egípcia. Há evidências de que a produção de cerveja no Egito remonta da era pré-dinásticas (5500-3100 a.C.). Segundo aquela tradição, a cerveja havia sido inventada por Osíris, umas das mais importantes divindades da cultura egípcia (HORNSEY, 2003). A cerveja no Egito era soberana, considerada a bebida nacional e consumida por toda a sociedade, desde plebeus aos faraós. Já no período das dinastias, Ramsés III (1184- 1153 a.C.) teria doado aos sacerdotes do templo de Amon 466.308 ânforas de cerveja fabricadas nas cervejarias reais, o que corresponde a aproximadamente meio milhão de litros. Devido a esse episódio, Ramsés III era considerado o Faraó Cervejeiro. As oferendas aos deuses e nos rituais fúnebres eram constantes, como podemos perceber na peça “O cardápio de Tepemânkh”, do final da 5º dinastia e início da 6º (2350- 2300 a.C.). Na Figura 11, a seguir, Tepemânkh está sentado diante de uma mesa repleta de alimentos. Seus filhos, de joelhos, realizam rituais fúnebres para ele. Dentre os alimentos constam itens como gados, aves, pães e 1.000 jarros de cerveja (LOUVRE, s. d., on-line).

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Figura 11 - Menu de Tepemânkh e as oferendas de alimentos (cerveja). Destaque para a simbologia sobre a cerveja.

Fonte: Museu do Louvre, Paris-França, 2018. Arquivo pessoal do autor.

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No Egito, os sentidos e significados da cerveja eram fundamentais para sociedade, de modo que a bebida constituía parte do pagamento destinado aos trabalhadores responsáveis pela construção das pirâmides. Durante a construção da Pirâmide de Giza, por exemplo, os trabalhadores bebiam cerveja para matar a sede e obter maior energia, devido ao baixo grau alcoólico da bebida e à importante fonte de calorias dos grãos. Cada trabalhador bebia, em média quatro litros por dia. Para se ter ideia da importância da cerveja, quando a Rainha Cleópatra (69-30 a.C.) taxou a cerveja pelas guerras com Roma, causou a ira dos súditos. A maioria dos egiptólogos afirma que a produção e a distribuição de grãos para a fabricação de cerveja e pão sustentou a economia e organizou a política daquela sociedade. Dessa forma, compreender a cerveja no Egito antigo é entender sua própria sociedade (DESALLE; TATTERSALL, 2019). Ressaltando o caráter da cerveja como elemento cotidiano das diferentes sociedades e criador de relações interpessoais e de sociabilidade cultural, a cerveja saiu das civilizações do crescente fértil para a Europa por meio dos viajantes e comerciantes gregos e depois romanos. Porém a aceitação dessa bebida nem sempre foi positiva, uma vez que estes eram apreciadores do vinho. Possivelmente, esse fato é responsável pela criação do mito de que o vinho seria superior à cerveja. Em 331, a.C., sob o comando de Alexandre, o Grande, os gregos invadiram o Egito e estabeleceram a dinastia ptolomaica, que introduziu na região o vinho, bebida que rapidamente alcançou o favoritismo por parte das classes altas, enquanto a cerveja continuou a ser a bebida da maioria da população. Essa distinção entre as classes com relação ao tipo de bebida consumida pode corresponder à origem do preconceito em relação à cerveja, quando comparada ao vinho. Tal visão nasceu da necessidade dos gregos e romanos se distinguirem como seres humanos de cultura e conhecimento em relação aos bárbaros incultos. E, também, por questões filosóficas, relacionadas aos elementos universais da criação, segundo os quais o vinho era considerado quente e dos homens e a cerveja fria das mulheres. O preconceito grego foi absorvido pelos romanos que encontraram bebedores de cerveja hostis na Hispânia, Grã- Bretanha e Alemanha. No entanto, a necessidade de acomodar suas legiões em regiões onde não havia vinicultura exigiu o fornecimento de cerveja (MEUSSDOERFFER, 2009). A cerveja não foi somente transferida dos romanos para o resto da Europa, pois havia povos tradicionais que já fabricavam cerveja a seu modo, mesmo antes de conhecer a tradição vinda do crescente fértil. O povo das ilhas britânicas, por exemplo, já produzia cerveja quando Júlio Cesar chegou em 55 a.C. (HORNSEY, 2003). Na Europa Central, os Celtas já dominavam

52 a fabricação da bebida desde 700 a.C. Entre 400-300 a.C., quando os povos germânicos – que também já produziam a bebida – se aproximaram dos romanos, absorveram a tecnologia romana e inauguraram um novo capítulo da fabricação de cerveja no mundo (MEUSSDOERFFER, 2009). Com a queda do império romano, a cerveja foi se configurando como elemento agregador nas diferentes sociedades europeias da Idade Média, sendo que o álcool – e, especialmente a cerveja –“was the ubiquitous social lubricant; every occasion called for a drink” (UNGER, 2007, p. 2). Como não existia o conceito de alcoolismo e a comida era escassa, a boa oferta de cerveja fazia parte da dieta das pessoas por se tratar de uma bebida de baixo teor alcoólico e com grande quantidade de carboidratos, contribuindo na coesão e bom funcionamento social, além de estar disponível a todos, devido ao seu baixo preço (UNGER, 2007). Os mosteiros19 tiveram grande importância na Idade Média como mantenedores dos conhecimentos adquiridos anteriormente pelo domínio da escrita. Isso também se aplica com relação à cerveja, pois a escrita auxiliou tanto na reprodução das receitas como na reprodução da cultura envolvendo a cerveja. Antes da Idade Média, a produção de cerveja era basicamente caseira e de consumo doméstico. Somente a partir do século VI, a produção passou a ocorrer em escala de cerveja (MORADO, 2009). Nos mosteiros, a cerveja era destinada aos monges, nobres, viajantes, peregrinos e até indigentes. O perfil popular da cerveja contribuiu para sua inserção na cultura local. Além disso, importantes colaboradores contribuíram para esse processo, como o missionário irlandês São Columbano (540-615 d.C.), que criou diversos mosteiros na Europa, todos com suas cervejarias para alimentar as almas, os cofres e os corpos dos monges (MEUSSDOERFFER, 2009). Naquela época, os prósperos mosteiros do norte haviam se tornado centros de produção de cerveja. Essa produção ocorre até hoje no mosteiro Weihenstephan, em Freising, a 37 km de Munique, capital da Baviera na Alemanha. Esse mosteiro foi fundado em 725 por Cornestone Weihenstephan, francês que foi enviado como missionário a Freising junto com outros 12 monges beneditinos. A produção de cerveja foi iniciada em 1040 e Cornestone foi canonizado como São Corbiniano. Em 1803, a cervejaria foi estatizada e, em 1930, foi agregada pela Universidade Tecnológica de Munique, com controle pelo Ministério da Cultura e da Ciência

19 “Os mais famosos são a Abadia de Sankt Gallen, na Suíça, e a Abadia de Bobbio, na Itália, na qual o escritor Umberto Eco se inspirou para escrever o romance O nome da rosa” (MORADO, 2009, p. 30). 53 da Alemanha, sendo hoje referência em estudos e formação de mestres cervejeiros (MORADO, 2009). Após a consolidação da produção de cerveja nos mosteiros, a profissionalização da produção da cerveja se deu nas cidades, com os artesãos cervejeiros sedimentando sua profissão. Entre os séculos XI-XIII, os cervejeiros já aparecem como profissionais importantes nos centros urbanos que crescem com comércio interno e entre cidades. As corporações de ofício passaram a criar uma forma de divisão e especialização do trabalho, de modo que os jovens interessados na produção de cerveja eram admitidos, treinados e proliferavam a produção de cerveja, que começou a ganhar representação política por meio das guildas cervejeiras. Registros de associações de cervejeiros existem já em 1200 em Londres (Inglaterra), 1230 em Ratisbona (Alemanha), 1267 em Ypres (Bélgica) e 1280 em Munique (Alemanha), além da associação dos trabalhadores de cervejarias, em 1447 em Bruges (Bélgica). O surgimento das guildas de cervejeiros é um indicador da transformação da fabricação caseira para fabricação profissional. Ao passo que a cerveja ganhou importância social e se configurou como elemento da cultura das sociedades europeia, ela começou a ser regulada para garantir a qualidade dos produtos e para arrecadar tributos para as cidades. Exemplo disso são as regras estabelecidas para fabricação de cerveja em 1156 em Augsburg, em 1268 em Paris e em 1293 em Nuremberg, regulando principalmente:

• Proteção ao consumidor (aditivos para cerveja, períodos para fermentação, tecnologias cervejeiras). • Segurança de abastecimento (grãos usados para cerveja, preços, obrigação para fabricação). • Organização da fabricação de cerveja (guildas, treinamento, autorização para fabricar cerveja). • Implementação de regulamentos (inspeção de cerveja). • Comércio (venda e tributação de cervejas estrangeiras) (MEUSSDOERFFER, 2009, p. 14).

Uma das principais preocupações era garantir o abastecimento do grão. Assim, muitos decretos especificavam a quantidade de grãos necessária por volume de produção de cerveja, enquanto outras regulavam os aditivos permitidos na produção. Documentos mostram que mais de 40 plantas diferentes eram conhecidas como suplementos à cerveja e 14 outras foram empregadas na cerveja como aplicação médica, já que a cerveja (sobretudo o álcool) também era considerada remédio. No entanto, esses decretos também refletem tentativas de confinar a 54 fabricação de cerveja aos senhores do Gruuthuse, ou Gruit (essa mistura de ervas para saborizar a cerveja) e depois o lúpulo (MEUSSDOERFFER, 2009). Os senhores de Gruuthuse detinham o monopólio da venda de gruut. Depois que os cervejeiros mudaram para o lúpulo, os senhores de Gruuthuuse passaram a ter o direito de cobrar um imposto sobre as cervejarias. Em Bruges (Bélgica), no século XV, foi construído o palácio Gruuthuse como sede dos senhores que detinham esse monopólio20. Neste contexto, percebemos que a questão financeira e fiscal sempre esteve ligada à produção de cerveja. As medidas para capturar parte da riqueza advinda da cerveja foram diversas. Em 1364, o imperador Carlos IV estabeleceu o decreto “novus Modus Fermentandi Cerevisiam”, que visava melhorar a qualidade da cerveja com o seu “novo método para fabricar cerveja”, exigindo que os cervejeiros usassem o lúpulo. A obrigação foi aplicada ao longo do Sacro Império Romano-Germânico à região de Brabante (Região de Luven, onde está Bruxelas) e Flandres imperial (Região de Ghent e Bruges). Porém, a região do Flandres ocidental (Bruges) continuou autorizada a utilizar o gruit, devido à força política dos senhores do Gruit, o que resultou em uma divisão geográfica de estilos de cervejas (CANTILLON, 2018). Nos séculos XVI e XVII, cada vez mais regulamentos foram elaborados para assegurar que boas cervejas fossem produzidas. O mais famoso deles foi o “Reinheitsgebot”, a Lei da Pureza Alemã, criada pelo Duque Guilherme IV da Baviera, em 23 de abril de 1516, que decretava que a cerveja deveria ser produzida exclusivamente a partir de cevada, lúpulo e água. Sendo um dos mais antigos decretos alimentares da Europa e do mundo, a Lei da Pureza também teve cunho político e econômico, trazendo os tributos das cervejas feitas com lúpulo para mão dos governantes germânicos (MARCUSSO, 2015). Como se pode perceber, a cerveja foi se tornando cultural à medida que passou a fazer parte das vidas das pessoas e dos assuntos governamentais, de modo que a bebida acabou por se consolidar nas sociedades onde foi e ainda é produzida. Na Europa central da Idade Média, por exemplo, além de produzir cerveja, as tavernas passaram também a servir comida e acomodação. Nesse processo, as tavernas/cervejarias identificavam para os viajantes por meio

20 O edifício teve várias outras funções ao longo dos séculos: foi uma residência privada, uma casa de penhores municipal e tornou-se um museu no século XX, A Société archéologique de Bruges, uma associação que colecionava objetos antigos e se posicionava como a memória de Bruges e região circundante, inspirando a função final do palácio. Em 1905, a cidade concedeu à associação permissão para usar Gruuthuse para exibir sua coleção. Durante o século XX, os Museus Municipais também o desenvolveram em uma extensa coleção de arte aplicada, graças a várias doações e heranças. Hoje, Gruuthuse faz parte do Bruggemuseum, o museu da cidade em 12 locais históricos em toda Bruges. Juntos, esses sites contam a história da cidade (BRUGGE, 2018). 55 de símbolos se havia estoque de cerveja, os tipos de bebidas servidas, a categoria de preço e se comida e acomodação estavam disponíveis. Os emblemas típicos desses locais começaram a se desenvolver por volta do século XIII. Datada de 1425, há uma gravura de Herttel, o cervejeiro (Figura 12), junto com seus utensílios de preparo de cerveja com um hexagrama na parte superior, símbolo utilizado para indicar a produção de cerveja (MEUSSDOERFFER, 2009).

Figura 12 - Gravura de Herttel, o cervejeiro, com o pentagrama acima indicando a produção de cerveja (1425)

Fonte: NÜRNBERG, s. d., on-line.

Portanto, a cerveja profissional surgiu nas cidades medievais e foi importante etapa para o processo de desenvolvimento a longo prazo da indústria. Assim, “the history of brewing, finally, is important as an indicator of the character of the social structure and social order in Europe up to and through the seventeenth century” (UNGER, 2007, p. 3). Como fica claro, a cerveja vai se tornando elemento cultural à medida que se insere no cotidiano das pessoas e na dinâmica social e espacial dos povos. Desde os tempos mais remotos, a bebida se fez presente entre pessoas de todas as classes sociais em diferentes espaços. O próximo passo da evolução da cerveja pari passu ao da humanidade refere-se à cerveja na Revolução Industrial, mas esse tema será abordado apenas no Capítulo 6 (seção 6.1.1) desta

56 tese. Aos poucos, a cerveja se tornou a bebida alcoólica mais consumida no mundo, sendo parte da cultura de diversos países e atividade econômica muito rentável. Assim, além de CCC, a cerveja também pode ser considerada um elemento da reprodução capitalista. Como vimos, no resgate da cultura material da cerveja pelos achados arqueológicos, sobretudo sobre a produção, a bebida desempenhou papel importante no avanço social da humanidade e suas representações de consumo mostram a criação de sociabilidade cultural envolvida no processo que aproximou e uniu grupos sociais.

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CAPÍTULO 2 - A CULTURA CERVEJEIRA E SEUS CONHECIMENTOS: PRODUÇÃO, ALIMENTAÇÃO E DEGUSTAÇÃO

A exposição dos conhecimentos atrelados à atividade cervejeira mostra como é formado um verdadeiro universo de técnicas, saberes e comportamentos vinculado à cerveja. Neste capítulo, exploraremos os aspectos principais desses conhecimentos para mostrar que, dentro da ideia de Cerveja como Cultura, temos a cultura cervejeira como elemento importante na estruturação da posição da bebida na sociedade atual. Como já apontamos, uma das formas trabalhar a ideia de CCC provém da história da alimentação, que considera a comida como cultura. Segundo Oliver (2012), a cerveja é considerada alimento21 e, como vimos, fez parte da dieta dos primeiros seres humanos, estando repleta de vitaminas, minerais, proteínas e antioxidantes. Um primeiro passo a ser descrito refere-se ao processo de transformação da cerveja que, diferente de outros alimentos, não está naturalmente disponível ao ser humano, sendo elaborada a partir de técnicas específicas. O entendimento básico do processo de fabricação de cerveja fornece ao leitor uma noção geral sobre o processo do “campo ao copo”22. Esse caminho é importante para destacar como a cerveja criou uma diversa relação de códigos, técnicas e saberes, que foram sistematizados no tempo. A criação dessa estrutura é uma forma de expressar a cultura envolvida nessa atividade, o que contribui para validar a noção de CCC.

2.1 Princípios básicos do processo de fabricação de cerveja e suas matérias-primas

21 Segundo as leis brasileiras, as bebidas são consideradas alimentos, por meio do art. 55 do decreto-lei, nº 986, de 21 de outubro de 1969, que institui normas básicas sobre alimentos “Aplica-se o disposto nêste Decreto-lei às bebidas de qualquer tipo ou procedência, aos complementos alimentares, aos produtos destinados a serem mascados e a outras substâncias, dotadas ou não de valor nutritivo, utilizadas no fabrico, preparação e tratamento de alimentos, matérias-primas alimentares e alimentos in natura” (BRASIL, 1969, on-line). Já a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC, nº 259, de 20 de setembro de 2002 da ANVISA, considera alimento “toda substância que se ingere no estado natural, semielaborada ou elaborada, destinada ao consumo humano, incluídas as bebidas e qualquer outra substância utilizada em sua elaboração, preparo ou tratamento, excluídos os cosméticos, o tabaco e as substâncias utilizadas unicamente como medicamentos” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, on-line). Os aspectos gerais da regulação e bebidas no Brasil serão discutidos na seção 6.3.2 desta tese. 22 Expressão lançada pela Associação Brasileira da Indústria da Cerveja – CervBrasil, em seu Anuário da Cerveja 2014, que busca mostrar imensa rede que a cadeia produtiva da cerveja envolve desde a pesquisa, o cultivo, o processamento e a comercialização de insumos e matérias-primas até a entrega do produto ao consumidor, no ponto de venda. Entre outros dados, o estudo mostrou que o setor é responsável por aproximadamente 2% do PIB nacional (CERVBRASIL, 2014).

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Os quatro ingredientes básicos da produção de cerveja são o malte, água, lúpulo e leveduras que interagem nas etapas do processo produtivo, construindo a estrutura da cerveja em relação à cor, ao sabor, à sensação de boca, ao corpo e ao aroma23. Antes do processo de fabricação da cerveja, existe o processo de maltagem ou malteação, segundo o qual um cereal é transformado em malte. Geralmente, o cereal escolhido é a cevada, mas também se pode maltear o trigo e o centeio. Nesta descrição, utilizaremos a cevada como exemplo por ser o cereal mais utilizado devido à sua eficiência na produção de cerveja. Na malteação, a cevada é induzida à germinação por umidade controlada e depois é seca para interromper o processo. Devido a esse procedimento, a atividade enzimática inicia a quebra do amido, tornando o açúcar disponível para a de produção cervejeira (SENAI, 2014). Não existe uma classificação mundial dos tipos de malte24, de modo que cada produtor realiza a sua própria. A título de exemplo, descreveremos a classificação da Maltaria Weyermann25, da cidade de Bamberg, na Alemanha. A Figura 13 traz a escala de cor EBC (European Brewery Convention)26 para os maltes e sua distribuição nos diferentes níveis de cor.

23Esses termos serão explicados em “Análise Sensorial: ciência e prática” (seção 2.2). 24 Existem dois tipos básicos de malte: o malte base, que fornece a maior parte de açúcares fermentáveis, ou seja, aqueles que serão usados pelas leveduras para realizar a fermentação; e os maltes especiais, que propiciam características únicas para a cerveja devido ao seu processo de secagem e torrefação. Os maltes especiais são basicamente divididos em dois tipos: os maltes caramelo (cristal), com diferentes níveis de secagem e os maltes torrados, que são secos em altas temperaturas e sofrem altos níveis de torrefação. A combinação desses tipos de malte determina o estilo de cerveja a ser produzida (CERVESIA, s. d.[a], on-line). 25 A maltaria Weyermann é a maior produtora de malte orgânico do mundo, fornecendo mais de 80 tipos diferentes de maltes para clientes em aproximadamente 140 países. Fundada em 1879 por Johann Baptist Weyermann, a empresa tinha o objetivo de produzir substitutos do café, que ele fazia de malte e frutas em um tambor de assamento artesanal (WEYERMANN, s. d.[b], on-line). 26 Essa organização, fundada em 1946, em Bruxelas, na Bélgica, é o braço científico e tecnológico da The Brewers of Europe, que congrega 29 associações de toda a Europa em um universo de mais de 9.500 cervejarias. A EBC estipula diversos critérios técnicos para a cerveja, dentre eles o mais propalado é a escala de cor EBC, adotada pela legislação brasileira. 59

Figura 13 - Classificação e escala de cor dos Maltes Weyermann

Fonte: AGRÁRIA MALTES, s. d., on-line.

O cervejeiro inicia a produção de cerveja a partir do malte. A parte quente do processo, chamada de brasagem, ocorre a partir da mistura do malte moído com a água já aquecida. O progressivo aquecimento dessa mistura faz com que as enzimas da casca do malte degradem o amido em açúcares menores. Na sequência, temos o mosto cervejeiro, que é separado do bagaço de malte e fervido adicionando-se o lúpulo, que transferirá ao líquido os óleos essenciais responsáveis por conferir o aroma da bebida, além de proporcionar a isomerização do alfa ácido, que agrega o sabor amargo da cerveja (BRIGGS et al., 2004). Os maltes estão fortemente relacionados à cultura e ao espaço. Por exemplo, a maltaria Weyermann possui uma marca registrada de malte, o Caramünich®, que faz referência direta à cidade do sul alemão. O mesmo ocorre com a maltaria Belga Calste Malting, que registrou o Château Munich Light®. Existem ainda os maltes relacionados à cidade de Viena, na Áustria, como o Best Vienna Malt, e à Bélgica, como o Carabelge® (AGRÁRIA, 2018). Observa-se, portanto, que os elementos da cultura e da geografia local vão se agregando ao conjunto de técnicas de produção de cerveja e das matérias-primas, de modo que os aspectos produtivos de toda rede que contempla a fabricação da cerveja também representam sua cultura material. A água é outro elemento fundamental para o processo produtivo e, quantitativamente, é a principal matéria-prima usada na produção de cerveja, constituindo mais de 90% do produto final. Deve-se considerar ainda que a água também é utilizada para lavagem e higiene da fábrica. Assim, o fornecimento e a preparação da água são de extrema importância para o

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cervejeiro, uma vez que a qualidade da água afeta a qualidade da cerveja produzida (KUNZE, 2014). Existe uma diferenciação importante entre os tipos de água para produção de cerveja. A esse respeito, é importante abordar brevemente a característica de dureza da água. Uma água dura é aquela composta por grande quantidade de sais minerais, enquanto a água mole apresenta menos sais minerais em sua composição. Na Alemanha, existe uma unidade de medida para a dureza da água, o grau de dureza. Segundo essa escala, um grau de dureza (°dH) corresponde a 1g CaO/hl ou 10 mg CaO/L. A dureza da água influencia na produção da cerveja desde a quebra enzimática do açúcar do malte até a solubilização das substâncias amargas do lúpulo, além do desenvolvimento das leveduras durante a fermentação (REINOLD, 1997). Assim como o malte, a água também é um ingrediente fortemente arraigado à localidade e seu espaço. Os diferentes estilos de cerveja tiveram importante contribuição das características da água do local para configurar as especificidades de sua cerveja. A Tabela 1 mostra que as diferentes fontes de água estão diretamente ligadas ao local, podendo influenciar até mesmo o nome do estilo de cerveja, como é o caso do estilo Pilsener, que recebe esse nome em alusão à cidade de Pilsen, na República Tcheca, e o estilo Vienna Lager, em referência à cidade austríaca de Viena.

Tabela 1 - Os perfis de água, suas cidades e seus estilos de cerveja

Rep. País Reino Unido Alemanha Irlanda Escócia Áustria Tcheca Cidade Burton Londres Dortmund Munique Dublin Edimburgo Pilsen Viena Cálcio 275 70 230 77 120 100 7 75 Magnésio 40 6 15 17 4 20 2 15 Sódio 25 15 40 4 12 55 2 10 Íon Sulfato 610 40 330 18 55 140 8 60 Cloro 35 38 130 8 19 50 6 15 Bicarbonato 270 166 235 295 315 285 16 225 Alcalinidade 5 85 20 180 170 150 5 125 residual Pale British Export Dry Scottish Vienna Estilo de Cerveja Oktoberfest Pilsener Ale Bitter Lager Stout Ale Lager Fonte: Elaboração própria a partir de BIURRUN, 2016.

Como podemos notar, cada cidade e sua água característica contribuíram para as definições dos estilos. A cidade da Burton-on-Trent, no Reino Unido, por exemplo, possui uma água dura, com alto teor de cálcio e sulfato, o que propicia um perfil acentuado de amargor do lúpulo. A água de Burton tem esse perfil devido ao rio Trent, que corta a cidade, o qual passa

61 sobre um grande banco de gesso. No meio cervejeiro, esse movimento é chamado de “brutonização” da água (WRIGHT, 2007). Assim, as características do espaço também exercem influência sobre o estilo de fazer cerveja. Atualmente, essa é uma situação não é mais tão relevante devido ao avanço no tratamento da água. Porém, na época da criação dos estilos, a água foi uma característica fundamental no processo criativo. Por exemplo, as cervejas claras, como as Pilsen, são originárias de locais onde a água mole possui alcalinidade residual baixa e acidez (pH baixo), enquanto as cervejas âmbar, como as Viena, possuem nível intermediários de cálcio e pH médio. Já as cervejas escuras são provenientes de locais onde a água é dura e com acidez mais elevada (PALMER; KAMINSKI, 2013). Assim, a localização da cervejaria e a disponibilidade de água antes dos processos químicos de ajuste da água era fundamental. Hoje, devido ao avanço técnico, essa importância é relativizada e merece menos destaque, uma vez que o tratamento da água pode ser realizado para moldar a água da forma que se deseja, atingindo o parâmetro ideal para a produção de cerveja (SENAI, 2014). O lúpulo, outro ingrediente essencial da cerveja, é uma trepadeira da família Cannabaceae, a mesma da maconha. Por sua relação taxonômica, ambos têm propriedades calmantes semelhantes. Para a cerveja, o lúpulo tem potentes fatores conservantes e que configuram amargor e sabor à bebida, além dos componentes de aroma. Existem apenas cinco variedades27 e centenas de cultivares de lúpulo, que podem proporcionar à cerveja características diversas. Uma das medidas mais importantes para o lúpulo no universo cervejeiro é o International Bitterness Unit, o famoso IBU, uma escala de amargor usada na cerveja. Existem três principais fórmulas para cálculo de amargor em IBU: Rager, Tinseth e Garetz28. Cada cálculo mede a utilização de lúpulo detalhada com base em tempo de fervura, os volumes de produção, a densidade do mosto e a quantidade de ácido alfa no lúpulo (PALMER, 2017).

27 A espécie Humulus lupulus engloba cinco variedades conhecidas: neomexicanus, lupuloides, pubescens, cordifolius e lupulus. As três primeiras são nativas de várias partes da América do Norte, enquanto H. lupulus var. cordifolius é proveniente da Ásia oriental. A quinta variedade citada, lupulus, é originária de Europa e Ásia ocidental e representa a maior parte do lúpulo comercial cultivado em todo o mundo, devido a suas características próprias com aplicação na indústria cervejeira, farmacêutica, entre outras (DODDS, 2017). 28 Os nomes das fórmulas correspondem aos sobrenomes de seus autores.

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Esse importante ingrediente também está associado culturalmente a lugares. São muitos os cultivares que levam no nome a cidade de Hallertau29, tais como os lúpulos da HVG30, o Hallertau Tradition e suas derivações Hallertau Nugget, Hallertau Magnum, Hallertau Mittelfrüeh e Hallertau Herkules. Outra referência da mesma produtora é sobre a região da produção como o Mandarina Bavaria, além do Idaho 7 e El Dorado, da Crosby Hop Farm31, que trazem os nomes de localidades dos EUA nas variedades dos lúpulos (AGRÁRIA, 2018). O amargor é um elemento essencial para cerveja por proporcionar equilíbrio em relação ao açúcar proveniente do malte. Existem cervejarias que afirmam fabricar cervejas com 1.000 IBU, mas isso é apenas o resultado de uma conta feita em laboratório com vários compostos, dos quais o principal é o alfa-ácido. Esse componente do lúpulo é isomerizado no processo de fervura da cerveja que passa amargor à bebida, porém a percepção humana chega na casa dos 100-120 IBU (HIERONYMUS, 2012). A Figura 14 traz dois exemplos das notas de aromas e sabores que cada uma dessas matérias-primas confere à bebida, um da já citada Maltaria Meyermann, para malte e do Grupo Barth-Haas para o Lúpulo32.

29 Em Hallertau, na Baviera, sul da Alemanha, existe a maior área de cultivo de lúpulo do mundo e um centro de pesquisas local sobre a planta e seus derivados (HOFFMAN, 2007). 30 A Hallertau Hop Processing Cooperative (Deutschen Hopfenverkehrsgesellschaft) - HVG foi fundada em 1953 na cidade de Mainburg pelos fazendeiros e políticos ligados ao lúpulo. Essa cooperativa foi uma consequência Hop Bank AG (Hopfenbank AG), fundada em 1896 e dissolvida após a queda do III Reich (HVG, s. d., on-line). 31 Em 1900, Albert e Mary Crosby iniciaram perto de Woodburn o cultivo de lúpulo no local atual da Crosby Hop Farm. Hoje, a empresa é uma das líderes do mercado norte americano (CROSBY HOPS, s. d., on-line). 32 O grupo Barth-Haas, sediado em Nuremberg, é a maior trader de lúpulo do mundo, com uma participação de mercado de cerca de 30%. A empresa foi fundada em 1794 por Johann Barth. Na década de 1870, como proprietário da terceira geração, Johannes Barth publicou pela primeira vez o Relatório de Produção de Hop e Hop Trading. Atualmente, Barth-Haas Report é mais completa publicação anual de lúpulo no mundo e será amplamente utilizada nessa tese. 63

Figura 14 - Exemplo de roda de aroma e sabor de tipos de malte e lúpulo

Fonte: WEYERMANN, s. d.[a], on-line.

Fonte: BARTH-HAAS, s. d., on-line.

A fervura altera a densidade de açúcar no mosto devido à evaporação. Assim, após o final da fervura, é medida a densidade original ou gravidade original (original gravity) OG, ou seja, a quantidade de açúcar presente no mosto. Após a fermentação, quando as leveduras consomem o açúcar, conseguimos aferir a densidade final ou gravidade final (final gravity) OF.

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A partir da relação entre a OG e a OF, é possível calcular a graduação alcoólica da cerveja ou ABV - Alcohol by Volume (SENAI, 2014). Após a fervura, inicia-se a parte fria do processo, quando o mosto é resfriado e a levedura33 inoculada transforma os açúcares (sobretudo a glicose) em álcool (principalmente etanol) e gás carbônico na fermentação alcoólica.

C6H12O6 > 2C2H5OH + 2CO2 + Energia (6ATP) Glicose > Álcool etílico + Gás carbônico + Calor

Um dos precursores da revolução da cerveja artesanal nos Estados Unidos, Fritz Maytag disse uma frase muito conhecida no meio cervejeiro: “Nós, cervejeiros, não fazemos cerveja, acabamos de reunir todos os ingredientes e a cerveja se faz [...] um elemento de mistério e de coisas que ninguém pode entender” (WHITE; ZAINASHEFF, 2010, p. 2). Adaptamos essa frase para “quem faz cerveja é a levedura, o cervejeiro faz mosto”, mostrando que, apesar de toda a ciência e cultura envolvidas nos diferentes tipos de manipulação de leveduras, esta tem papel fundamental no processo produtivo. Após a fermentação, a cerveja é separada fisicamente da levedura e pode ser estabilizada biologicamente por pasteurização34 ou outro método físico (KUNZE, 2014). A Figura 15 traz um esquema didático das etapas de produção de cerveja.

33 As leveduras são fungos unicelulares que metabolizam eficientemente os constituintes do mosto cervejeiro, rico em açúcares fermentáveis. A principal a espécie de levedura utilizada para esse fim é a . Para cerveja, existe a diferença entre a baixa fermentação, fermento Lager, e alta fermentação, fermento Ale. Essas são as duas principais famílias de cerveja (WHITE; ZAINASHEFF, 2010). O líder global em leveduras e fermentação é a Fermentis, braço cervejeiro da Lesaffre, grupo familiar nascido no norte da França em 1853, que atua no ramo de panificação, alimentos, saúde e biotecnologia, com 70 subsidiárias, com base em cerca de 40 países, alcançando faturamento de mais de 1,8 bilhão de euros (FERMENTIS, s. d., on-line). É importante esclarecer também as diferenças entre as leveduras. A Lager é uma das famílias de cerveja junto da Ale. Essas famílias são delimitadas pela levedura utilizada, sendo que a primeira utiliza Saccharomyces pastorianus e a segunda Saccharomyces cerevisiae. As Lagers são conhecidas por ser leveduras de baixa fermentação, devido a sua floculação mais rápida e sua temperatura menor de trabalho, entre 6°C e 13°C. Já as i são chamadas de alta fermentação devido à subida mais intensa das leveduras durante a fermentação e sua temperatura maior, entre 15°C e 24ºC (DORMBUSCH, 2012). 34 A pasteurização é um método de preservação microbiológica inventado por Louis Pasteur, que elimina as leveduras através de um tratamento térmico (SENAI, 2014). 65

Figura 15 - Etapas de produção de cerveja

Fonte: MÜLLER, 2018, p. 17.

Como podemos verificar, o processo produtivo conta com uma série de relações com o espaço, desde o malte, passando pela água até o lúpulo, no qual foram desenvolvidas técnicas produtivas e avanços sobre o conhecimento e preparo das matérias-primas.

A cerveja sempre foi moldada pela geografia e pelo clima. Cada espécie de grão se adapta melhor a uma determinada zona climática, com o trigo preferindo climas mais amenos, enquanto que o centeio e aveia abundam nas rigorosas regiões do Norte. A cevada é bem resistente, mas precisa de um solo mais rico que centeio e aveia. O lúpulo também é sensível à latitude, pois precisa de dias de verão com uma certa duração para ativar a produção de cones. Cada erva, fruta ou qualquer outro ingrediente tem o seu habitat ideal, e, antes de existir o transporte fácil de mercadorias, cada bebida tinha o gosto da sua flora local (MOSHER, 2018, p. 20).

Como fica claro na citação acima, existe uma geografia da cerveja. Com o passar do tempo, a produção se desenvolveu e diversos estilos de cerveja foram criados, conforme o grau

66 de inserção da bebida nos espaços e nas diferentes sociedades, ou seja, de acordo com o quanto a cerveja faz parte da cultura do local.

2.2 Análise Sensorial: ciência e prática

A análise sensorial faz parte do grande conjunto de códigos e significados adquiridos pela atividade cervejeira ao longo do tempo, expressando uma forma de ritual dentro do processo produtivo da cerveja. Considerada uma importante ferramenta na cultura e no universo cervejeiros, a análise sensorial colabora, ainda que de forma indireta, para a compreensão da cerveja como elemento cultural. Conhecer melhor os alimentos e bebidas e entender como nos afetam por meio dos sentidos é um dos objetivos da análise sensorial, além de avaliar os aromas, sabores e outros aspectos relacionados ao produto desde a matéria-prima e sua formação até sua presença no produto final. O livro Análise Sensorial para Cervejas da professora Grace Ghesti e colaboradores (2017) nos traz importantes elementos para compreensão dessa ciência. Apesar do grande avanço tecnológico, nenhum instrumento substitui a percepção humana sobre estímulos advindos dos alimentos e bebidas. Uma tentativa desse aprimoramento técnico é o chamado “nariz-robô”, da pesquisadora Amanda Reitenbach35 (2016), que detecta na cerveja odores indesejados que podem prejudicar o paladar e o olfato do consumidor. Mesmo assim, a análise sensorial ainda é uma importante ferramenta para o desenvolvimento de novos produtos, testes de vida útil e avaliação do controle de qualidade da matéria-prima e do produto final (GHESTI et al, 2017). A Figura 16 apresenta um esquema da interação entre produto, ser humano, análise sensorial e instrumentos de medições.

35 Fundadora da Science of Beer, uma das principais escolas de cerveja do Brasil (SCIENCE OF BEER, s. d., on- line). 67

Figura 16 - Interação entre alimento, ser humano, análise sensorial e medidas instrumentais

Fonte: GHESTI et al., 2017, p. 8.

A Figura 16 ilustra como a análise sensorial é fundamental para a comunicação das impressões do ser humano em relação ao produto e como isso deve ser casado com as medidas instrumentais para melhores conclusões sobre a análise de um produto. O Instituto da Cerveja Brasil traz a definição de análise sensorial do Institute of Food Technologists, de 1975, a saber, “Análise sensorial é uma disciplina científica usada para evocar, medir, analisar e interpretar reações no organismo às características dos alimentos e materiais quando percebidos pelos sentidos da visão, gustação, olfato, tato e audição” (ICB, 2010, p. 77). Dessa forma, a análise sensorial da cerveja busca compreender como cada elemento do líquido afeta o nosso corpo por meio dos sentidos. Partindo da constatação de Morton Meilgaard (1979 apud SILVA, 2005) de que a cerveja tem mais de 800 componentes de sabor, percebemos a complexidade que existe em uma cerveja, porém nem sempre explorada devidamente. Iniciaremos pelo sentido mais dominante: a visão. Com relação ao atributo visual da cerveja, é importante observar a espuma, o aspecto, a cor, a transparência, o brilho, a limpidez, além da forma e do tamanho da embalagem e do rótulo (GHESTI et al, 2017). A característica que mais chama atenção da visão é a cor da cerveja, definida principalmente pelo malte, responsável pela base da cor da cerveja. Porém, outros fatores, como adição de frutas e envelhecimento, também podem interferir na coloração da bebida.

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Existem duas classificações mundiais para cor da cerveja36: a já apresentada escala EBC e a SRM (Standard Reference Method), muito utilizada nos EUA. Os valores de SRM equivalem a 1,97 da escala EBC, de modo que 1 SRM corresponde a aproximadamente meio EBC (DANIELS, 1998). A Tabela 2 traz uma classificação da cor de diferentes estilos de cerveja, além da comparação entre os parâmetros SEM e EBC.

Tabela 2 - Classificação de cerveja por cor e comparação SRM X EBC

Cor Exemplo de Estilo SRM EBC Tonalidade Água - 0 0 Amarelo-Palha Lite American Lager, Berliner Weisse 2-3 3,9-5,9 Amarelo German Pilsner, Czech Pils 3-4 5,9-7,8 Dourado Dortmunder Export 5-6 7,8-9,8 Âmbar Maibock/Helles Bock, Weissbier 6-9 11,8-17,7 Cobre-claro California Common 10-14 19,7-27,5 Cobre Dusseldorf Altbier, Dark Lager 14-17 27,5-33,4 Marrom-claro Roggenbier 17-18 33,4-35,4 Marron Southern English Brown Ale 19-22 37,4-43,3 Marrom-escuro Robust Porter, Oatmeal Stout 22-30 43,3-59,1 Marrom muito escuro Sweet Stout 30-35 59,1-68,9 Preto Foreign Extra Stout 35-40 68,9-78,8 Preto opaco Russian Imperial Stout 40+-40 >78,8 Fonte: Elaboração própria a partir de BJCP, 2008; MORADO 2009; DANIELS, 1998.

Há uma grande diversidade de cores de cerveja, que podem ser percebidos a certa distância através do sentido da visão. Para os demais sentidos, no entanto, é necessária uma maior proximidade. Passemos, então, ao olfato. O aroma é um dos aspectos mais importantes porque guia o sabor da cerveja. Nas palavras do mestre cervejeiro Garrett Oliver (2012, p. 79), o “sabor começa com aroma”. A percepção do odor se dá pela solubilização das substâncias pela secreção aquosa que recobre as terminações ciliadas do nariz. Estas estão em contato com os receptores nervosos que produzem impulsos elétricos, interpretados pelo cérebro, que cria, ao longo do tempo, um grande repertório de odores (GHESTI et al., 2017).

36 O primeiro sistema de cores para cerveja mais elaborado foi desenvolvido pelo cervejeiro britânico Joseph Williams Lovibond, em 1883, através de placas de vidros coloridas, utilizadas para determinar o valor aproximado da cor da cerveja. O seu colorímetro, apesar de muito famoso e até hoje utilizado para descrever a cor dos grãos de malte como “graus Lovibond”, foi superado pela tecnologia da espectrofotometria de luz, adotada pela ASBC, em 1950, criando o SRM (Standard Reference Method). A EBC foi desenvolvida pelos europeus, através de comparações visuais, como Lovibond, mas logo se rendeu à espectrofotometria de uma forma diferente do sem; por isso a diferença de x1,97 entre os dois (DANIELS, 1998). 69

Apesar da relação entre olfato e paladar ainda ser um campo nebuloso para ciência, sabe-se que existem entre seis e nove milhões de neurônios olfativos. Muitos deles lançam projeções para a superfície do epitélio no fundo do nariz e são especializados geneticamente na recepção de moléculas de odores (MALNIC, 2007). Essa conformação confere ao ser humano a capacidade de sentir cerca de dez mil odores, embora um estudo recente tenha mostrado que esse valor pode chegar a um trilhão37 (BUSHDID et al., 2014). Esses neurônios se dividem em dois grupos: ortonasal, para a percepção de odores; e retronasal, para percepção de sabores. O primeiro grupo funciona como uma ferramenta analítica para identificação e catalogação dos cheiros, enquanto o segundo relaciona-se mais à formação e memória38 do gosto (COLE, 2012). Para melhor definição do aroma, na década de 1970, o Dr. Meilgaard liderou um grupo de cientistas39 para elaborar uma roda de aromas da cerveja (Figura 17), visando produzir um dicionário de terminologias simples e de fácil compreensão para comunicação entre cervejarias, cervejeiros, pesquisadores e profissionais de marketing para descrever e definir cada nota de aroma e sabor da cerveja (MEILGAARD; DALGLIESH; CLAPPERTON, 1979).

37 Os pesquisadores investigaram misturas de 10, 20 ou 30 componentes, retirados de uma coleção de 128 moléculas odoríferas. A quantidade de um trilhão de estímulos que conseguimos captar pelo olfato supera em muito a capacidade da visão que consegue diferenciar milhões de cores e quase meio milhão de tonalidades (BUSHDID et al., 2014) 38 A relação entre aroma e memória vai além da cerveja, devido ao fato de o cérebro processar as informações do olfato em região diretamente ligada ao processamento das emoções. As emoções, antes de serem processadas nas amígdalas, passam pelo bulbo olfatório, de modo que temos uma imediata, primitiva e prioritária conexão do olfato com as emoções. Isso fica mais claro ao lembrarmos que, muitas vezes, determinado cheiro nos remete a um lugar, a uma pessoa ou a um momento marcante (THE EMPIRE OF SCENTS, 2014). 39 A pesquisa contou com cientistas de três continentes: América, pela American Society of Brewers Chemists (ASBC) e Master Brewers Association of the Americas (MBAA), Europa, pela European Brewery Convention (EBC) e Oceania, representada pela Austrália. 70

Figura 17 - Roda de Aroma da cerveja de Meilgaard década de 1970

Fonte: MEILGAARD; DALGLIESH; CLAPPERTON, 1979, p. 42.

Essa roda de aroma ficou mundialmente conhecida e passou a ser utilizada como referência (NACHEL, 2008). No século XX, a roda de aroma da cerveja foi atualizada por Schmelzle (2009). A Figura 18, a seguir, traz uma versão mais simplificada, destinada aos consumidores, mas sem perder a complexidade do modelo.

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Figura 18 - Roda de Aroma da cerveja de Schmelzle década de 2000

Fonte: SCHMELZLE, 2009.

A roda de aroma permite uma melhor comunicação através de atributos da cerveja compreensíveis e familiares da vida cotidiana, elementos da cerveja como cheiro, sabor, textura e a percepção sensorial, tanto para especialistas como para leigos (SCHMELZLE, 2009). Passando para o paladar, temos a língua como órgão sensorial repleto de papilas compostas por células gustativas e os corpúsculos de Krause, que nos conferem as sensações táteis. As substâncias químicas solúveis se difundem e alcançam em toda boca as células receptoras que enviam o estímulo para o cérebro (GHESTI et al., 2017). Por meio das papilas,

72 o ser humano só consegue captar cinco gostos: salgado, doce, ácido, amargo e umami40 (MORADO, 2009). Antigamente, acreditava-se que cada parte da língua era responsável por um gosto, mas hoje já se sabe que todos eles são percebidos por toda a língua com suas cerca de 10.000 papilas gustativas. O amargo e o ácido (azedo) são mais perceptíveis devido à evolução do ser humano e sua necessidade de rápida reação quando ingerimos venenos, geralmente com gostos associados à fermentação bacterianas ou substâncias tóxicas (ALVES; DANTAS, 2014). A Tabela 3 apresenta uma breve descrição dos gostos experimentados pelo ser humano.

Tabela 3 - Os gostos e suas características

Facilidade de Substância Nível min de Gosto Origem percepção Padrão detecção Alfa-ácido do Lúpulo e os Maior Amargo Cafeína 0,25g/L Polifenóis Associado a alguns sais de glutamato (isosinato e Glutamato Médio Alto Umami 0,3 g/L guanilato) não encontrado em Monossódio cervejas Ácidos orgânicos (ex. cervejas Ácido Médio Ácido 0,5 g/L estilo Gueuze e Catharina Sour) Cítrico Raro em cervejas (ex. cervejas Cloreto de Médio Baixo Salgado estilo Berliner Weiss e Leipizig 1,5 g/L Sódio Gose) Carboidratos residuais não Menor Doce fermentados ou não Sacarose 5 g/L fermentáveis, açúcar Fonte: Elaboração própria a partir de GHESTI et al. (2017) e SIEBEL INSTITUTE (2017).

A boca e a língua também são responsáveis pela percepção do tato na cerveja. O tato lingual é resultado da ativação dos nervos presentes na língua (trigêmeos), que são ativados por mudanças de pressão e temperatura (GHESTI et al., 2017). Assim, a cerveja provoca vários estímulos e a análise de seu conjunto é chamada na análise sensorial de sensação de boca, podendo ser táctil, cinética, térmica ou de dor. A seguir, são listados alguns dos aspectos a serem considerados na sensação de boca:

• Viscosidade: pouco viscoso, fluido, viscoso, muito viscoso; • Textura: pastosa, cremosa, elástica, granulada;

40 O termo umami deriva de umai, que em japonês significa delicioso, gostoso. Esse gosto é produzido pelo ácido glutâmico, um aminoácido comumente encontrado em carnes e em alimentos fermentados e envelhecidos (ICB, 2010). 73

• Gás carbônico: efervescente, espumante, pouco carbonatada; • Corpo: leve, elevado (alto), ideal; • Reação a algumas substâncias: adstringente, ardente, picante; • Temperatura: quente, fria, morna, gelada, refrescante; • Aquecimento: leve, médio, alto (ICB, 2010, p. 79).

A descrição do corpo da cerveja também deve ser considerada na sensação de boca. É comum ouvirmos falar que determinada cerveja é mais encorpada que outra ou que uma cerveja é boa por ser encorpada. Essa sensação de boca é percebida pela língua por meio da pressão que a cerveja provoca, ou seja, está relacionada ao “peso” que a bebida faz na boca. A título de comparação, a água não tem corpo (corpo zero), enquanto nas cervejas, quanto maior a carga de malte e outros ingredientes, maior o “peso” e a pressão sobre a língua. Uma vez explicados os conceitos de aroma, gosto e sensações de boca podemos formular o conceito principal de sabor, que consiste na fusão de todos esses estímulos (ICB, 2010), dominados, principalmente, pelo aroma. Esquematicamente, temos:

SABOR = GOSTO + AROMA + SENSAÇÕES

O sabor é conceito subjetivo, pois algo considerado saboroso em uma sociedade pode ser totalmente repugnante em outra (MONTANARI, 2013). Até mesmo dentro de uma mesma cultura, um alimento pode ter status elevado em um período e perder esse protagonismo com o passar do tempo, como vimos no caso da cerveja no Egito. Isso nos mostra como a história pode alterar os parâmetros culturais de referência. Um ponto importante da análise sensorial é a avaliação dos off-flavors, que podem se sobressair ao sabor provenientes das matérias-primas e da fermentação, envelhecimento, entre outros, além de prejudicar a experiência daquele que está bebendo a cerveja. O nariz-robô, mencionado anteriormente, detecta esses off-flavors. O sommelier de Cerveja Marcelo Scavone (2015), da Escola da Cerveja de Porto Alegre - RS, define off-flavors como atributos sensoriais formados a partir de reações químicas ou microbiológicas que ocorrem no processo de fabricação, envasamento, distribuição ou armazenamento da cerveja. Porém, alguns compostos podem ser característicos de um estilo de cerveja, sendo um flavor para esse estilo, mas um off- flavor para outros estilos. Como exemplo41, temos o Acetato de Isoamila, composto que traz aroma de banana para a cerveja. Esse composto é muito desejado para a cerveja tipo Weiss

41 Outros exemplos são o diacetil, aceitável na cerveja tipo Stout, mas que constitui um grave off-flavor em muitos outros estilos; e o lightstruck, característico da Heineken, mas indesejado para outras marcas de Lager. 74

(cerveja de trigo), sendo um flavor desse estilo, mas, quando presente em uma cerveja Pilsen, é considerado um off-flavor. Um conceito importante para percepção desses compostos é o threshold, definido como o limiar de detecção por parte do paladar e do olfato humano (GHESTI et al., 2017). Esse limiar é muito variável, mas cerca de 99% das pessoas não são capazes de perceber alguns compostos irregulares na cerveja se não forem treinadas para isso (ICB, 2010). Isso significa que o conjunto teórico de técnicas criadas no universo da cerveja necessitam de mergulho nas suas etapas para compreensão. Dessa forma, a cultura cervejeira se faz com o conjunto de técnicas e saberes associados à cerveja, construindo signos e significações responsáveis por dar uniformidade aos seus praticantes. Após discorrermos sobre os elementos da análise sensorial, explanaremos sobre como a cerveja é avaliada e como as associações da cerveja se utilizam dessa prática para estruturar grandes eventos e concursos cervejeiros pelo mundo, criando um ritual de degustação, ritual esse que faz parte da cultura cervejeira, constituindo um importante componente da noção de CCC. A degustação de uma cerveja segue alguns passos importantes para sua avaliação crítica, dentro dos critérios da análise sensorial. A Figura 19 ilustra o passo a passo para degustação de uma cerveja.

Figura 19 - Passo a passo para degustação de uma cerveja para fins de avaliação. Da direita para a esquerda: visual, olfativo, paladar e avaliação geral

Fonte: HAMPSON, 2009.

Após o processo de avaliação, as impressões podem ser registradas em fichas para pontuação da cerveja conforme o estilo, prática adotada em diversos concursos de cerveja pelo mundo42. Na Figura 20, a seguir, temos exemplo de fichas de avaliação do Beer Julge Certification Program (BJCP).

42 A contextualização dos concursos de cerveja será amplamente debatida no segundo bloco de capítulos, referentes os Territórios da Cerveja. 75

Figura 20 - Ficha de avaliação BJCP estilo checklist

Fonte: BJCP, 2015.

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Essa ficha de avaliação traz todos os aspectos da análise sensorial e alguns elementos do processo produtivo. Os diferentes dados de análise sensorial da cerveja são fundamentais para compreendermos se o estilo está ou não dentro do estabelecido. A organização dos estilos é ponto crucial para os concursos de cerveja, sendo uma expressão da cultura cervejeira onde o estilo foi criado. Esses elementos técnicos ilustram como a cerveja vai montando sua estrutura de saberes e rituais que, por sua vez, criam comportamentos culturais. A relação entre estilo e local de produção está presente desde os primórdios, estabelecendo critérios bem definidos de estilos e criando toda uma linguagem específica e um universo cervejeiro. Para avançarmos nessa relação entre cultura, espaço e cerveja, é necessário verificar como se configuram os atuais estilos de cerveja, as escolas cervejeiras e a cerveja no cotidiano das pessoas.

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CAPÍTULO 3 - A CERVEJA NA CULTURA: ESTILOS, BARES E ESCOLAS CERVEJEIRAS

Uma forma de congregar os conhecimentos da cultura cervejeira e a ideia de Cerveja como Cultura é verificar como os aspectos espaciais e históricos contribuíram para a formação de estilos de cerveja e seus guias de organização. Outro ponto importante nesse processo consiste em observar como a cerveja se tornou ente da cultura, sobretudo no Brasil. Nesse sentido, podemos explorar o universo dos bares, da música e da vida boêmia, visando compreender como a cerveja se insere como elemento do cotidiano do brasileiro, fazendo parte da cultura nacional. A discussão sobre os aspectos culturais da cerveja nos faz questionar se, no Brasil, essa forma de expressão é suficiente para criação de uma escola cervejeira nos moldes que existem nos EUA e em países da Europa. Caminhando por esse trajeto, podemos verificar com a cerveja se torna cultura e como os aspectos históricos, espaciais e técnicos configuram essa bebida como elemento de agregação identitária entre as pessoas, ou seja, como a CCC se manifesta.

3.1 Para além da Brahma: inserção no contexto da cultura cervejeira e dos guias de estilos

O título dessa seção é ao mesmo tempo uma provocação e um convite para entender o que existe por trás dos diferentes estilos de cerveja, suas origens históricas e geográficas. Para compreender o que é estilo de cerveja, alguns elementos básicos da análise sensorial devem ser observados. Os mais importantes são cor, fermentação, origem, aroma, sabor etc. Contudo, não são somente os parâmetros da cerveja que definem seus estilos. Esse tema gera muita discussão porque as cervejas podem ser agrupadas de diversas formas e modelos, porém o que não gera debate é a sua importância para enquadrar a bebida na expectativa do bebedor de cerveja (WRIGHT, 2007). Segundo o renomado cervejeiro Daniels43 (1998), um estilo de cerveja surge quando vários cervejeiros, muitas vezes em estreita proximidade geográfica entre si, criam cervejas que compartilham os aspectos técnicos e sensoriais que vimos anteriormente. Por fim, as características de um estilo são incorporadas na visão dos cervejeiros, que definem uma formulação. O autor ainda ressalta que a principal função do estilo da cerveja é sintetizar todas

43 Ray Daniels é o fundador e diretor do Programa de Certificação Cicerone e membro do corpo docente sênior do Siebel Institute of Technology, a escola de cerveja mais antiga da América, além de autor de diversos livros cervejeiros, como Designing Great que trazemos aqui (BREWERS PUBLICATIONS, s. d., on-line). 78 as características da bebida, tais como aspectos visuais, aroma, sabor etc., em apenas uma palavra. Por exemplo, o termo “stout” remete a uma cerveja de cor preta opaca com notas de malte tostado ou café, um leve toque de diacetil e uma espuma rica e cremosa. Esse atalho é muito útil para comunicação entre cervejeiros, comerciantes e consumidores. Através dessas definições, um garçom consegue, sem longas explicações, avisar aos consumidores sobre o conteúdo das cervejas. Em visão mais amplificada, o ícone da cerveja artesanal nos Estados Unidos, Charlie Papazian44 (2006) descreve o estilo de cerveja como uma arte que combina diversos fatores para criar identidade naquele tipo de cerveja. As complexidades dos diferentes tipos de cerveja são expressões dos diversos tipos de estilos de vida espalhados pelo mundo. Nesse sentido, o autor fixa a ideia de estilo de cerveja como arte e vê na expansão do mercado internacional uma grande oportunidade de aumento das trocas culturais para introduzir novos estilos de cerveja. Segundo Papazian (2006), os ingredientes, os processos, o envase e embalagem, o marketing e a cultura são os elementos constituintes de um estilo de cerveja. As diferentes formas de combinação da água, do malte, do lúpulo e da levedura abrem caminho para uma infinidade de possibilidades, devido às diversas variações de cada componente da cerveja. A receita da cerveja é um dos definidores do estilo. Existe uma grande variedade de processos produtivos que influenciam na cor, aroma, sabor, sensações e estabilidade de uma cerveja, tais como a configuração do equipamento, a moagem dos grãos, a brassagem, a temperatura de fermentação, o tempo de maturação e a filtração da cerveja (PAPAZIAN, 2006). As formas de envase e embalagens são destacadas com os diferentes tipos de linha de envase. A esse respeito, alguns aspectos são importantes, por exemplo, se o envase é em garrafas, latas, barris ou embalagens de plásticos. O tipo de embalagem determina diferentes níveis de oxigênio no final do produto. Esse gás é considerado o grande vilão da cerveja porque a oxidação desencadeia reações que podem gerar alguns off-flavors, diminuindo o tempo de prateleira da cerveja, ou seja, sua validade. Para atacar o problema do shelf life, a cerveja passou a ser pasteurizada. Por outro lado, a pasteurização interfere nos perfis de aroma e sabor da bebida, de modo que alguns estilos de cerveja não sofrem esse processo (PAPAZIAN, 2006).

44 O líder da Brewers Association (BA) conduziu, a partir dos EUA, a chamada “revolução da cerveja artesanal”, quando fundou a American Homebrewers Association (AHA), em 1978, que hoje conta com mais de 45 mil associados. Papazian escreveu centenas de receitas e artigos centrados em homebrewing, como o The Complete Joy of Homebrewing de 1984. O cervejeiro ainda organizou o National Homebrew Competition (NHC) que, ao longo de seus 40 anos de história, já avaliou 143.240 cervejas, sendo considerada a maior competição de cerveja do mundo (LIOTÉCNICA, s. d., on-line). 79

O marketing cria nos consumidores expectativas sobre os produtos, sendo a apresentação do produto um processo fundamental. A apresentação o copo, por exemplo, é um elemento essencial para o estilo de cerveja, podendo influenciar diretamente na percepção do consumidor ao destacar ou não as características do estilo de cerveja. Alguns tipos de copo foram criados unicamente em função do estilo de cerveja (PAPAZIAN, 2006). A Figura 21 ilustra alguns tipos de copos e sua relação com os estilos de cerveja.

Figura 21 - Os tipos de copos e seus estilos

Fonte: NACHEL, 2008.

A figura acima faz referência a alguns estilos de cerveja, como Berliner Weisse e Pilsener, indicando que esses copos têm relação direta com os tipos de cerveja. O formato do copo Pilsener favorece a formação e a estabilidade da espuma, elemento essencial para esse estilo. Já o copo da Berliner Weisse favorece a dispersão dos aromas por sua “boca” mais aberta, enquanto a haste, reduz significativamente as trocas de calor entre a mão do consumidor e o líquido (ICB, 2010). O último elemento definidor dos estilos, segundo Papazian (2006), é a cultura. A esse respeito, o autor lista alguns fatores políticos, sociais e religiosos – já abordados nesta tese – que tiveram grande importância na definição dos estilos de cerveja:

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a) Reinheitsgebot, a lei de pureza alemã, de 1516, com grande influência no desenvolvimento dos estilos de cerveja alemães, através do uso de apenas, malte, lúpulo e água, o que proporcionou aos estilos características maltadas; b) Na Nigéria, a proibição de importação de malte estimulou a produção de cervejas a partir do sorgo; c) No Japão, o nível das taxas de importação induziu o desenvolvimento de Soshu; d) Durante a colonização britânica, sua cultura e seus produtos se espalharam pelo mundo, influenciando, durante séculos, a criação de estilos de cerveja; e) Os movimentos de temperança colocaram as bebidas alcoólicas como grave problema social, o que levou a uma forte taxação desses produtos. Dessa forma, foram criados estilos de cerveja dentro dos limites da lei, ou seja, com menor graduação alcoólica; f) Os monastérios da Europa foram responsáveis pelo desenvolvimento de diversos tipos de cerveja para acompanhar as regras religiosas.

Além dos exemplos citados por Papazian (2006), a cultura de cada país, região ou lugar exerce influência decisiva na formação dos estilos de cerveja. Em outras palavras, é o fazer da população que conduzirá a formação da receita da cerveja. Por exemplo, o cotidiano de cada cultura traz a relação que os cervejeiros têm com cada elemento da cerveja e sua disponibilidade nos locais, contribuindo para uma linha de criação de cervejas. Pode-se falar em terroir da cerveja, sobretudo em relação à água, como vimos na seção 3.2, como nos casos de Burton-on-Trent, no Reino Unido, Pilsen na República Tcheca e Viena na Áustria. No Brasil, por exemplo, existe o mito segundo o qual a água da cidade Agudos - SP faz uma Brahma melhor do que as produzidas em outras cidades, o que não é necessariamente verdade. A Companhia de Bebidas das Américas (Ambev), subsidiária do grupo AB Inbev, maior grupo de bebidas do mundo, é a produtora da Brahma e busca, como qualquer grande cervejaria, a padronização de seus produtos. Então, teoricamente, a cerveja Brahma deve ser igual do Sul ao Norte do país. Essa uniformidade é perseguida pelos cervejeiros. Segundo Laura Aguiar, mestre cervejeira do complexo de inovação da Ambev no Rio de Janeiro-RJ, “com o passar do tempo, a tecnologia de tratamento de água foi aprimorada. Isso pra gente é muito importante porque temos mais de 20 cervejarias espalhadas pelo país inteiro, e conseguimos fazer cada cerveja ter uma qualidade similar nesse departamento” (TEIXEIRA, 2018, on-line).

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Portanto, existe a manipulação da água para um determinado padrão e a água de Agudos, devido a sua qualidade para produção de cerveja, pode ser menos manipulada no equilíbrio de seus sais para atingir padrão, o que, em tese, significa menos gastos. Porém, esse mito é tão divulgado, não só no estado quanto no Brasil, que muitos estabelecimentos, inclusive de locais mais distantes, preferem comprar a cerveja de revendedores dessa região, o que encarece o produto. A propaganda em torno desse mito é constante e muitos estabelecimentos acabaram até incorporando o nome da cidade. A Figura 22 traz dois exemplos a esse respeito: à esquerda, temos uma propaganda de Porto Feliz - SP, na qual se afirma que a Brahma de Agudos é a melhor da região; enquanto a propaganda da direita refere-se a uma distribuidora de bebidas de Americana - SP, cujo nome faz alusão à cidade de Agudos, sugerindo a venda de produtos exclusivos da região.

Figura 22 - Propagandas destacando a suposta melhor qualidade da cerveja de Agudos - SP

Fonte: À esquerda: FACEBOOK, Empório do Porto, s. d., on-line. À direita: SOLUTUDO, s. d., on- line.

As duas cidades das propagandas acima situam-se a mais de 200 km de Agudos. Por outro lado, há uma fábrica da Brahma em Jaguariúna - SP, que fica a aproximadamente 60 km de Americana e 110 km de Porto Feliz. Como a água é rigorosamente manipulada, é possível chegar a um elevado nível de controle, de modo que a água utilizada para a fabricação da cerveja passa a ser igual em todas as unidades da Brahma. A distância entre a produção e o consumo é um fator tão importante quanto a qualidade da água, já que o transporte em um caminhão com aproximadamente 1.274 caixas de cerveja sob uma lona em altas temperaturas pode levar a algum tipo de alteração (MARCUSSO, 2011).

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O mito de Agudos surgiu devido à procura de um local onde a água possuísse as mesmas características da água de Viena, na Áustria. Em 1951, foi formada a Companhia Paulista de Cervejas Vienenses com sócios austríacos Friederich Weber, Wilhelm Karl e a cervejaria Schwechat Aktienges Ellschaft45, da cidade de Linz, além de um grupo de vários sócios brasileiros. Dr. Weber, como mestre cervejeiro de grande experiência, buscou no estado de São Paulo uma fonte de água que fosse semelhante à austríaca e encontrou no córrego Pelintra, em Agudos, a água ideal. Por esse motivo, a fábrica foi instalada no interior e não na capital como queriam os sócios brasileiros (COUTINHO, 2013). A cervejaria foi construída com equipamentos encomendados pela cervejaria Schwechat A. E. e foi considerada uma das mais modernas do país na época. Além da fábrica, foram adquiridas áreas anexas para a construção de uma vila residencial para os empregados. Também foram implantadas florestas de eucalipto em quantidade suficiente para abastecer com lenha as caldeiras da fábrica. O sucesso da cerveja Vienense foi tão grande, que a cervejaria não conseguia atender todos os pedidos recebidos, de modo que foram necessários empréstimos no Banco do Brasil e em bancos de São Paulo para aumentar a produção. Ao presenciar o rápido crescimento da Companhia Paulista de Cervejas Vienenses (Figura 23), a Brahma assumiu o seu controle acionário em 1954 e, em 1961, mudou o seu nome, criando a filial da Brahma em Agudos (COUTINHO, 2013).

45 A Brauerei Schwechat foi fundada em 1632 na cidade de Frauenfeld, a nordeste de Zurique, e foi comprada em 1796 por Franz Anton Dreher, que iniciou a produção de cervejas de baixa fermentação na década de 1840, na mesma época em que foi criado o estilo Pilsen na República Checa. Sua cerveja combinava os tons claros (claros pra época, hoje um âmbar) das Ales inglesas com a refrescância da baixa fermentação, o que originou a Pale Lager, definida como o Estilo de Vienna Lager, também conhecida como Schwechater Lagerbier. Com a morte de Franz Dreher, em 1863, seu filho Anton assumiu os negócios da família e expandiu a empresa, que se tornou a maior cervejaria do mundo. No final do século XIX, com a as guerras mundiais, a produção sofreu grande queda e foi destruída em 1945. Somente em 1975, com a junção de mais duas cervejarias, foi criada a Brewery Union of Austria, adquirida pela South African (SAB) em 1993, e que, em 2002, se fundiu com a Miller Brewing Company, maior cervejaria do Reino Unido (HORNSEY, 2003). 83

Figura 23 - Rótulo da Cerveja Vienense

Fonte: COUTINHO, 2013, on-line.

Como podemos notar, existe clara relação entre as características geográficas do local onde foram criados as cervejas e seus estilos. Contudo, no Brasil, antes da revolução da cerveja artesanal, todos os estilos de cervejas convergiam para o famoso Pilsen, de modo que a marca era associada às suas cidades de origem e não ao estilo. Vejamos alguns exemplos: a cerveja Bohemia tem forte vínculo com a cidade de Petrópolis; a Polar é distribuída somente no Rio Grande do Sul, tamanha a identificação com a região; e a Adriática é referência em Ponta Grossa, no interior do Paraná. Também podemos citar a clássica relação entre as cervejas vizinhas, como a paulista Antarctica, muito valorizada no Rio de janeiro e a carioca Brahma, amplamente apreciada em São Paulo (SOMOS TODOS CERVEJEIROS, 2016b, on-line). Outra forma de associação frequente está entre o estilo da cerveja e o local onde esta é produzida. A Tabela 4 traz uma relação entre o tipo de cerveja e seu país de identidade.

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Tabela 4 - Estilos de cerveja e o país de identidade

Estados Unidos •American IPA Inglaterra •English IPA Escócia •Scottish Export Irlanda •Irish Stout Bélgica •Trappist Single França •Bière de Garde Alemanha •Weissbier Áustria •Vienna Lager República Tcheca •Czech Premium Pale Lager Polônia •Historical Beer (Piwo Grodziskie) Escandinávia •Baltic Porter Austrália •Australian Sparkling Ale Nova Zelância •New Zealand Pilsner Brasil •Catharina Sour

Fonte: Elaboração própria a partir de BJCP, 2015.

Existem uma grande diversidade de estilos de cerveja, de modo que agrupá-los não é tarefa fácil. O já citado Michael Jackson foi uns dos primeiros a tentar organizar os estilos de cerveja em 1977 em seu livro New World Guide To Beer. Em 1979, a Brewers Association (BA)46 já começava a distribuir descrições de estilos para cervejeiros e competições, muitas delas tomando como referência os estudos de Jackson e tendo sua ajuda na definição. O primeiro guia de estilo da BA foi publicado em 1993 (BA, 2018). A criação de um guia de estilos e sua caracterização e categorização é sempre algo complexo, por isso a BA procurou verificar as tendências comerciais da indústria cervejeira, consultou cervejeiros experientes e os entusiastas da cerveja com notório saber, além das análises de diferentes tipos de cerveja. Uma obra fundamental nesse processo de montagem do guia de estilo da BA47 é a Biere Aus Aller Welt de Anton Piendl’s, renomado professor alemão que publicou na revista alemã Brauindustrie estudos sobre os estilos de cerveja e os seus dados

46 A BA é resultado da fusão entre a The Association of Brewers and the Brewers e a Association of America, ocorrida em 2005. Atualmente, é uma das maiores instituições de congregação de cervejarias no mundo, detendo 13.2% do mercado norte-americano com 7.346 craft breweries, estando nesse universo brewpubs, cervejarias que produzem e vendem no mesmo local não menos que 25% da produção, microbrewers, que produzem até 17.600 hectolitros por ano e Regional Brewery, que produz de 17.600 hectolitros até 7.040.000 de hectolitros de cerveja por ano. Outra importante definição é a propriedade da cervejaria, ou seja, a cervejaria tem que ter 75% do capital nas mãos dos donos. Assim, nos EUA, quando mais de 25% da cervejaria é vendida para grandes grupos cervejeiros, esta não pode mais ser considerada uma independent craft brewer (BA, 2018). 47 Há uma versão do guia de estilos Brewer Association disponível na internet: . Acesso em: 19 abr. 2021.

85 comerciais. O guia da BA reflete as questões ligadas à história, autenticidade e notoriedade do estilo de cerveja no mercado (PAPAZIAN, 2016). Dessa forma, a inclusão de um novo estilo nesse guia leva em consideração a tradição que esse estilo construiu e a necessidade de se preservar essa tradição, de modo que sua inclusão só ocorre se sobreviver ao tempo, ao mercado e a aceitação do consumidor. Outro importante guia de estilos é o Beer Judge Certification Program (BJCP)48. A entidade é referência mundial em classificação de cervejas, avaliação e certificação de juízes de cervejas. Fundada em 1985 por Charlie Papazian, foi uma junção entre iniciativas da American Homebrewers Association (AHA) e a Home Wine and Beer Trade Association (HWBTA). O primeiro guia de estilos do BJCP49 foi publicado em 1995 e as diretrizes de estilos foram revisitadas em 2004, 2008 e 2015, em sua última atualização (BJCP, 2015). A questão geográfica também é importante na organização dos guias, sendo uma das formas de diferenciação entre os estilos de cerveja (Tabela 5). O BJCP tem como objetivo principal ser referência para os concursos no mundo, mas também visa: a) melhor abordar estilos de cerveja do mundo na forma como são encontrados em seus mercados locais; b) manter-se atualizado com as tendências do mercado de cerveja artesanal emergentes; c) descrever cervejas históricas resgatadas e novamente produzidas atualmente em série; d) descrever melhor as características sensoriais dos modernos ingredientes empregados na produção de cerveja; e) referendar e prestigiar os resultados e referências obtidos por pesquisas mais recentes de produção de cerveja e; f) ajudar os organizadores de concurso a melhor gerir seus eventos (BJCP, 2015). Na Tabela 5, abaixo, temos a seleção inicial que esse guia utiliza para compor um estilo e grupos de estilos de cerveja.

Tabela 5 - Referência de estilo BJCP

Categoria Etiqueta Significado Região de Origem Ilhas Britânicas Inglaterra, Gales, Escócia, Irlanda Europa Ocidental Bélgica, França, Países Baixos Europa Central Alemanha, Áustria, República Tcheca, Europa Oriental Polônia,Escandinávia Estados Bálticos, Rússia América do Norte Estados Unidos, Canadá, México Pacífico Austrália, Nova Zelândia Fonte: BJCP, 2015.

48 Atualmente, existem 7.841 juízes BJCP ativos e já foram julgadas 1.554.338 cervejas em 9.339 concursos pelo mundo (BJCP, s. d., on-line). 49 O guia de estilos do BJCP está disponível na internet em inglês (https://www.bjcp.org/docs/2015_Guidelines_Beer.pdf, acesso em: 19 abr. 2021) 86

Desse modo, os diversos estilos de cerveja podem ser agrupados de diferentes formas, de acordo com a referência utilizada. Como a cultura, o mercado e as pessoas não são estáticos, sempre surgem novos estilos de cerveja que são incorporados aos guias e ao cotidiano dos cervejeiros profissionais ou caseiros, terminando sempre no copo dos consumidores de cerveja. Após todo esse percurso, podemos estabelecer uma comparação entre as cervejas de massa e as artesanais. A comparação/diferenciação mais significativa no Brasil refere-se à cerveja Pilsen. Distribuída de forma massificada no país, essa cerveja não oferece nada além de refrescância e uma pequena dose de álcool. O cervejeiro André Junqueira50, da cervejaria Morada Etílica, em entrevista a esta tese, classifica a cerveja comum apenas como um “dispositivo de entrega de álcool”, já que não oferece outros aromas e sabores, devido à baixa proporção de utilização de matéria-prima. A Figura 24 ilustra as quatro marcas mais vendidas no Brasil (O GLOBO, 2018, on-line). Embora todas tragam em seus rótulos a inscrição Pilsen, nenhuma delas pode ser considerada realmente do estilo Pilsen51, de acordo com os guias de estilo já mencionados.

Figura 24 - Exemplos dos rótulos de lata 350 ml das marcas mais vendidas no Brasil

Fonte: Sites das cervejas da Ambev e Grupo Petrópolis.

50 Junqueira, cervejeiro e fundador da Morada Etílica, referência no Brasil para cervejas ácidas (Sour), ainda tem projeto de colaboração com os mercados americano (através da Stillwatter) e belga (através da lendária Fantone). Além de cervejas, a Morada Etílica produz sidras, hidromel e destilados (BEER ART, 2015a, on-line). 51 Importante destacar que a legislação brasileira sobre cerveja, por meio do art. 39 do decreto 6.871/2009, permite que a denominação poderá ser Pilsen, Export, Lager, Dortmunder, Munchen, Bock, Malzbier, Ale, Stout, Porter, Weissbier, Alt e outras denominações internacionalmente reconhecidas que vierem a ser criadas, observadas as características do produto original (BRASIL, 2009). Como a norma não especifica cada estilo de cerveja, as cervejarias se utilizam dessa prerrogativa. 87

Essa forma de tratar toda cerveja no Brasil como uma cerveja clara e leve, sem amargor evidente e para se tomar “estupidamente” gelada foi uma convenção trabalhada por décadas no país. Dessa forma, podemos afirmar que a cerveja Pilsen no país foi uma tradição adaptada e inventada, porque nem sempre foi assim. Segundo Hobsbawm e Ranger (1984, p. 10), as tradições inventadas são um

conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceita; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.

Portanto, a receita trazida pela tradição genuína da cerveja na Europa conduzida pelos imigrantes alemães que fundaram as empresas e/ou dos cervejeiros que influenciaram na formulação do produto era do estilo German Pilsen, sobretudo nas cervejarias Antarctica (1885) e Brahma (1888). Porém, com o tempo, essa formulação foi sendo gradativamente substituída por uma receita com menos carga de malte, diminuindo a cor e o corpo da cerveja, além de utilizar menos lúpulo, o que reduziu o aroma da cerveja. Dessa forma, a tradição da cerveja mais leve, que se tem como mainstrean no Brasil, é uma tradição inventada, como veremos adiante. Esse processo ocorreu também nos Estados Unidos, devido à lei seca das décadas de 1920-30 e do avanço da produção e cultura de massa, que foram, aos poucos, retirando matéria- prima para tornar a cerveja “mais fácil” de beber. A lei seca nos EUA foi resultado de um movimento de temperança52, liderado pela Woman’s Christian Temperance Union (WCTU), fundada em 1874, que combatia a presença do álcool na família. A WCTU influenciou a sociedade, de modo que os políticos da época lançaram o projeto de lei seca. Esse movimento culminou em 1918, com a igreja e vários estados americanos pressionando para que fosse criada uma lei federal a esse respeito. Assim, foi editado o Prohibition, emenda à constituição que instituía a lei seca em todo o território nacional. Em 1933, após anos de lei seca e vários

52 Esse movimento de temperança se iniciou na Europa e nos EUA, no século XIX, quando se percebeu um crescente consumo de gin no velho continente e de whisky no novo continente, bebidas destiladas de alto teor alcoólico, cujo consumo elevado passou a ser visto como problema social associado à prostituição, crimes etc. Esses movimentos fizeram os governos incentivarem o consumo de bebidas fermentadas de menor teor alcoólico, como a cerveja e a cidra. Na Inglaterra, por exemplo, em 1830, foi promulgado o Act to permit the general sale of beer and cyder by retail em England, conhecido como Beer Act 1830 e o Belgian Vandervelde Acdt, na Bélgica em 1919. Com a proliferação de bares, pubs e cervejarias, o movimento se estendeu para a cerveja e foram publicadas normas de restrição de produção e/ou consumo, como a Forbes Mackenzie Act, em 1853, na Escócia, ato que foi seguido pela Irlanda, em 1878, País de Gales, em 1881, e Inglaterra, em 1915. Já nos EUA, o movimento de temperança foi mais forte e todas as bebidas alcoólicas foram altamente taxadas no início do século XX, inviabilizando o seu comércio (MORADO, 2009). 88 protestos contra a norma, ela foi revogada por Franklin Roosevelt em clima de festa nos EUA (HUCKELBRIDGE, 2017). A Figura 25 traz imagens que ilustram o tempo da proibição, mostrando a destruição de cervejas (à esquerda), o retrato do movimento de resistência (centro) e a comemoração da volta ao consumo (à direita).

Figura 25 - A seca, a resistência e a festa da volta da cerveja nos EUA

Fonte: WIKIPEDIA, s. d.[d], on-line.

A questão cultural envolvida está relacionada à ação da lógica produtivista tomada no auge do avanço do fordismo no pós-guerra e da ação da indústria cultural que se posicionou para maior disseminação da cultura de massa nos EUA e no mundo. No final da década de 1970, o mercado americano já estava dominado por cervejas claras e mais leves. A esse respeito, um dos pioneiros da cerveja artesanal naquele país, Jack McAuliffe53, comentou no jornal Washington Post em 1978: “Todas as cervejas norte-americanas têm o mesmo gosto porque os fabricantes buscam o menor custo possível”. Segundo Mosher (2009), uma maneira de diferenciar a cerveja de massa das artesanais é o direcionamento da produção. Como empresas capitalistas, os dois tipos de cervejarias buscam o lucro. Contudo, o departamento de marketing comanda a produção da cerveja de massa, enquanto o mestre cervejeiro é quem decide como produzirá a cerveja artesanal54, de modo que essa figura passa a ser central no processo, como sempre foi no desenvolvimento da cultura cervejeira.

53 Fundador, junto de Suzy Denison e Jane Zimmerman, da New Albion, em 1976, uma das primeiras craft brewers dos EUA. McAuliffe construiu grande parte dos equipamentos da cervejaria com material coletada de sucata (OGLE, 2006). 54 O conhecimento do mestre cervejeiro é incorporado à cerveja que ele produz. As tecnologias modernas ajudam em todos os processos, mas até certo ponto, sendo necessária a experiência do cervejeiro. O estudo da produção de cerveja é uma arte baseada em conhecimentos teóricos e empíricos acumulados pelo mestre cervejeiro, que vieram sendo aprimorados ao longo dos séculos através da prática contínua. Assim, a produção de cerveja não é uma técnica e sim uma tradição milenar. A importância do mestre cervejeiro chega a ter recomendações como as de Tschope (2001, p. 13): “os clientes deveriam conhecer pessoalmente o mestre cervejeiro, e com ele aprofundar- se nos conhecimentos sobre o fabrico deste líquido”. 89

A Tabela 6, a seguir compara a matriz German Pilsen e sua derivação American Lager, através do guia de estilos da BA.

Tabela 6 - Comparação dos estilos German Pilsen e American-Style Lager, segundo o guia de estilos da BA

Características Estilo 1: German Pilsen Estilo 2: Amercian-Style Lager Cor Palha até pálida Palha para Dourado Limpidez Brilhante sem turbidez Limpa sem turbidez Aroma e Sabor Um doce maltado A doçura do malte é entre muito do Malte aroma e sabor devem estar presentes. baixa e baixa Aroma de lúpulo e Aroma e Sabor sabor é moderado e pronunciado, derivado de Não percebido, muito baixo de Lúpulo late hopping com lúpulos nobres Percepção de Média a Alta Não percebido, muito baixo Amargor Níveis muito baixos de DMS abaixo do threshold das pessoas comuns, mas pode ser percebido por pessoas treinadas e paladares aguçados. Outra Leve frutado-esterificado é Características fermentação ou enxofre derivado do aroma e sabor aceitável. Diacetil deve estar de Fermentação de lúpulo podem ser percebidos em níveis baixos. ausente Aromas e sabores frutados-esterificados não devem ser percebidos. Estas são cervejas bem atenuadas. Corpo Médio Alto Baixo Adjuntos não maltados como milho, arroz e outros grãos O colarinho deve ser denso, branco puro e são frequentemente usados. Notas Adicionais persistente American Lagers são bem limpas, frescas e agressivamente carbonatadas. Gravidade Original (°Plato) Gravidade Original (°Plato) 1.044-1.055 (11-13.6 1.040-1.048 (10-11.9 °Plato) °Plato) Extrato Aparente/Gravidade Final Extrato Aparente/Gravidade Final (°Plato) 1.006- (°Plato) 1.006- 1.012 (1.5-3.1 °Plato) Números 1.014 (1.5-3.6 °Plato) Álcool por Álcool por peso (Volume) peso (Volume) 3.6%-4.2% (4.6%-5.3%) 3.2%-4.0% (4.1%-5.1%) Unidades de Amargor (IBU) 25-40 Unidades de Amargor (IBU) 5-15 Cor SRM 3-4 (6-8 EBC) Cor SRM 2-4 (4-8 EBC) Fonte: BA, 2018, tradução livre.

Diferenças marcantes são percebidas nas descrições. A cor das duas cervejas é bem parecida, porém, na American Lager, pode ocorrer o uso de corantes para correção da cor, como o é o caso da Skol no Brasil55. Com relação à limpidez, a German Pilsen traz uma descrição referente ao brilho, enquanto a American é descrita apenas como limpa, ou seja, além de limpa,

55 Na lista de ingredientes da Skol lata 350 ml consta corante caramelo IV, adjunto permito pela legislação brasileira por meio da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC N° 65, de 29 de novembro de 2011 da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

90 a alemã também brilha. Sobre o aroma e sabor do malte e lúpulo, na Pilsen temos presença do doce do malte e marcante do lúpulo com utilização de técnicas de lupulagem como o late hopping56, enquanto para a Lager o aroma e sabor desses ingredientes quase não são percebidos por serem muito baixos. Também existe uma grande discrepância entre a percepção de amargor e corpo das duas cervejas e nas notas adicionais, pois o primeiro estilo apresenta um colarinho bem formado e persistente, enquanto o segundo apresenta cereais não maltados e carbonatação excessiva. Por fim, além da diferença entre extrato (máximo de 3,6 °Plato) e álcool por volume (máximo de 1,2%), o que mais chama atenção é a elevada diferença de IBU entre os estilos, podendo chegar a 35 unidades de amargor. Essa grande diferença evidencia um distanciamento muito grande entre os estilos. Fatores sociais, quando do período de lei seca nos EUA, e econômicos, na ocasião da Guerra Mundial, explicam essa alteração da cerveja. Esses episódios quase reduziram a zero as cervejarias e as que conseguiram sobreviver, devido às dificuldades financeiras e falta de matéria-prima, procuraram uma versão “reduzida” daquilo que vinham fazendo. Como o preço é um elemento importante, essa versão mais barata permitiu uma maior aproximação entre produtores e consumidores. O quilo do lúpulo pode chegar a centenas ou até milhares de reais, dependendo do cultivar. Considerando-se que a German Pilsen utiliza lúpulos nobres em sua fabricação, como o tipo Saaz, podemos entender a redução de sua utilização para a American Lager. Dada a essas reduções, podemos afirmar que a cerveja American Lager, distribuída de forma massificada, não oferece muitos aspectos sensoriais além de refrescância e uma pequena dose de álcool. Contudo, isso não parece ser um problema, visto que o Brasil e os EUA são o segundo e terceiro maiores produtores de cerveja do tipo American Lager do mundo, atrás apenas da China (BARTH-HAAS, 2018). Toda essa discussão não visa desmerecer a cerveja de massa e nem pretendemos induzir o leitor a tomar apenas cervejas artesanais. Visamos apenas transmitir informações importantes sobre os tipos de cerveja, para tornar clara a relação de consumo, permitindo que o consumidor tenha maior clareza do que está bebendo e mostrando como os aspectos culturais podem estar envolvidos nessas transformações. Nesse mesmo sentido de esclarecimento, o Ministério Público Federal de Goiás, por meio de uma ação civil pública, em 19 de julho de 2016, indicou que as empresas produtoras

56 Late Hopping é a adição de lúpulo durante a última parte da fervura para manter componentes aromáticos do lúpulo, os óleos essenciais que são voláteis e não estariam no mosto se colocados no início da fervura (PALMER, 2017).

91 de cerveja, através de seu órgão regulador o MAPA57, deveriam estampar nos rótulos dos produtos informações “claras e precisas sobre todos os ingredientes que compõem o produto, especialmente, a substituição dos termos ‘cereais malteados’ ou ‘cereais não-malteados’ pela indicação do cereal efetivamente contido na cerveja” (BRASIL, 2016, p. 30). As alterações sociais provocam e criam estilos de cerveja, de modo que a cultura do local guia os comportamentos em relação à cerveja, sua produção e comercialização. Portanto, a cerveja e seus estilos refletem a cultura cervejeira local e expressões formas de CCC. Na ideia de processo civilizador da cerveja, foi se construindo um modelo de cerveja que representaria a modernidade e as adaptações do local. Nesse contexto, é importante verificar como e se a cerveja de um local é capaz de criar laços identitários de tal grandeza, a fim de edificar uma escola cervejeira. A próxima seção se debruça sobre esse debate.

3.2 Escola brasileira de cerveja? Os pressupostos e os caminhos

A cerveja como símbolo nacional é uma forma de expressão e identificação cultural. Temos isso bem claro na Alemanha, Reino Unido, Bélgica, EUA. Já no Brasil, apesar de termos a cerveja como elemento cultural, a realidade é diferente. O desenvolvimento da cerveja artesanal, desde seus primórdios, fez nascer nesses países centrais uma cultura cervejeira diferenciada em relação aos estilos e comportamentos cervejeiros. No Brasil, temos ainda um longo caminho para percorrer no sentido da criação de uma escola cervejeira. Dos quatro países citados, iniciaremos essa rápida viagem pela Alemanha, onde a cerveja faz parte de cada cidade58, cada bairro e cada comunidade. De extensão semelhante ao estado do Mato Grosso do Sul, a Alemanha possui mais de 1.500 cervejarias59, sendo o país responsável pela criação da Lei de Pureza Alemã, de 1516. Além disso, o território também é palco da maior festa do mundo relacionada à cerveja: a Oktoberfest de Munique. A Alemanha também possui cervejarias estatais que funcionam para pesquisa e fabricação do combustível de seu povo. “Beer is a natural companion of life in germany” (DORNBUSH, 1998).

57 A Instrução Normativa nº68 de 6 de novembro de 2018 estabelece, por meio de sua competência legal, a obrigatoriedade do rótulo claro quanto às matérias-primas empregadas na fabricação da cerveja. 58 A região da Francônia é reconhecida por sua tradição cervejeira, sobretudo pela cervejaria Aecht Schlenkerla, que inaugurou a cerveja defumada tipo Rauchbier. Na região de Bamberg, temos a cidade de Aufsess, que tem, segundo o livro dos recordes, a maior concentração de cervejarias por habitantes do mundo com 375 pessoas por cervejaria (WADE, 2010, on-line). A título de comparação, a melhor relação que existe no Brasil refere-se à Nova Lima - MG com aproximadamente 4.000 pessoas por cervejaria (MARCUSSO; MÜLLER, 2019a). 59 Número da associação dos cervejeiros da Alemanha (REINHEITSGEBOT, s. d., on-line). 92

No Reino Unido, a cerveja esteve presente em cada canto de Londres e das ilhas Britânicas nos Public House (PUBs) que já existiram nesses territórios. Foi lá que se desenvolveu o malte pale (clara ou pálido), que revolucionou a forma de fazer cerveja no mundo e foi lá que surgiu o movimento da revolução da cerveja artesanal, com a Campaign for Real Ale (CAMRA), alterando drasticamente o mercado cervejeiro mundial (PROTZ, TIERNEY- JONES, 2014). A cerveja é considerada um símbolo do país, de modo que quando a tradicional cervejaria inglesa Griffin Brewery, produtora da icônica marca Fuller’s, foi vendida para os japoneses da Asahi, houve grande protesto dos apreciadores60. A Bélgica é conhecida como o paraíso das cervejas, devido à sua grande diversidade de cervejarias e cervejas. Ao contrário do que ocorreu na Alemanha, que através de sua lei de pureza minava a criatividade para a produção de cervejas diferentes, os cervejeiros belgas tiveram liberdade para criar inúmeros de tipos de cervejas, algumas de fermentação aberta e espontânea, com lúpulos velhos e blends de diferentes anos de envelhecimento. Assim, a Bélgica representa uma das mais antigas tradições cervejeiras do mundo ocidental (JACKSON, 1998). Por toda a tradição belga em relação à cerveja, a ONU declarou a cultura cervejeira belga Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Importante destacar que esse título não foi concedido à cerveja, mas ao conjunto de manifestações culturais que sua fabricação e degustação envolvem61. Nos EUA, como vimos, a lei seca e as guerras foram responsáveis pela criação de um novo tipo de cerveja que ganhou o país, a American Lager. Grandes cervejarias fizeram seu império, como é o caso da Anheuser-Busch (AB), que até hoje carrega em seu rótulo principal, a Budweiser, o título de “King of Beer’s”. Essa é a marca de cerveja mais valiosa do mundo (HUCKELBRIDGE, 2017). O mesmo sentimento que os ingleses tiveram quando foi vendida sua cervejaria símbolo foi despertado nos americanos quando a InBev (associação entre Ambev - Brasil e Interbrew - Bélgica) comprou a AB por US$ 52 bilhões em 200862. No final do século

60 Os militantes do CAMRA demostraram sua indignação como o negócio. “In a statement, the Campaign for Real Ale (Camra) said it was worried that the ongoing consolidation in brewing could lead to a “reduction in choice, value for money and quality for beer drinkers. [...] “It’s a very sad day to see such a well-known, historic and respected name exit the brewing business,” said Camra’s chairman, Jackie Parker. “While the Fuller’s family has stressed it has sought to protect the heritage of the Griffin brewery, we’d call on the new owners to pledge to continue brewing operations at the Chiswick site.” (WOOD; JOLLY, 2019, on-line) 61 Por todo o país, há cervejarias, museus, cursos e seminários, eventos, festas, restaurantes e tavernas em que as tradições relativas à cerveja são cultivadas. “Desde tempos imemoriais ela é uma parte essencial de nossas vidas”, confirmou o governador da região de Bruxelas, Rudi Vervoort (O GLOBO, 2016, on-line). 62 O acordo irritou muitos apreciadores dos EUA que temiam que “sua” bebida fosse modificada ao passar para o controle de belgas ou brasileiros. Devido a esse temor e num ato de desespero patriótico, um estudante de Saint Louis comprou 600 latas antes da venda, alegando que não queria beber uma cerveja que não fosse americana. Os amantes da cerveja até criaram sites como “SaveBudweiser.com” e “SaveAB.com” (VIDAL, 2008, on-line). 93

XX, os EUA presenciaram a revolução da cerveja artesanal, que alterou o mercado mundial e firmou os americanos como o país com mais cervejarias no mundo (BA, 2018). Esses quatro países e regiões apresentam extrema identificação com a cerveja, constituindo as quatro grandes escolas cervejeiras do mundo (Tabela 7). Assim, cursos sobre a cultura cervejeira e de sommelier de cerveja adotam essa segmentação para explorar a cultura cervejeira.

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Tabela 7 - Descrição das escolas cervejeiras

Escola Inglesa Escola Alemã Escola Belga Escola Americana - Muito antiga (remonta aos - Muito antiga (remonta - Muito recente (remonta a povos do norte da Europa e da aos povos celtas, por imigração de holandeses, influência do Império Romano); exemplo); - Muita antiga (remonta aos irlandeses e ingleses a partir do - Ligada à cultura dos - Ligada a cultura das povos habitantes do norte da século XVII); monastérios (cervejas de tavernas e mais Europa); - Dividida entre o antes e o abadia); recentemente às Public - Ligada às raízes depois da Lei Seca do início do História - Ligadas a características Houses (PUBs); camponesas medievais; século XX; climáticas regionais (cervejas - Berço do movimento - Ligada às práticas de - Ligada à cultura do homebrew da região da Valônia, de Beer Revolution fabricação desenvolvidas em (ou cervejeiro caseiro), que foi Flanders ou de Bruxelas); comandado pela determinadas cidades. um dos protagonistas do - Ligada a ritos e ao consumo Campaign for Real Ale movimento Beer Revolution também ritualizado (cafés e (CAMRA). nos EUA. Brasseries). - Cervejas de alta fermentação - Grande maioria de cervejas (com alguns exemplares de baixa fermentação - Cervejas de alta fermentação - Matiz de cor variando híbridos); (Lager); (Ale); do dourado ao negro - Vasta utilização de variedades - Matiz de cor do amarelo - Vasta utilização de barris de profundo; de lúpulos americanos (frutados palha ao negro profundo; madeira para envelhecimento; - Utilização de maltes e cítricos); - Utilização de malte pilsen, - Baixa presença de lúpulo; pale ale, maltes torrados - Criação e inovação em malte de trigo, malte - Utilização de adjuntos e Características sensoriais e variedade de lúpulos processos consolidados; caramelo e maltes torrados; especiarias; ingleses (resinosos e - Presença maciça de lúpulos, - Lúpulos continentais - Exemplares de fermentação terrosos); mediana da levedura, em (florais e condimentados); espontânea; - Balanço entre malte e especial leveduras ales; - Ligada à Lei da Pureza; - Presença maciça da levedura lúpulo e presença - Recentemente desenvolvem- - Presença marcante do malte em diferentes técnicas de moderada da levedura. se também técnicas de e caráter limpo de levedura fermentação. fermentação mista ou Lager. selvagem. Fonte: Adaptado do estudo, ainda não publicado, da Profa. Tatiana Rotolo do Instituto Federal de Brasília - IFB, campus Riacho Fundo. Além de lecionar Rotolo é homebrew e Juíza BJCP.

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Essas escolas cervejeiras são consagradas e levantam a discussão no meio cervejeiro nacional da possível criação da escola brasileira de cerveja, uma vez que o mercado nacional apresenta crescimento muito grande, como veremos no próximo capítulo, e tem diversos aspectos culturais nacionais, que estão sendo incorporados no fazer cervejeiro. Possivelmente, a primeira adaptação do Brasil e das Américas foi a introdução de milho e arroz na produção, adjuntos que não são muito utilizados na Europa, já que lá a cevada é abundante. Além disso, a Alemanha não permite a utilização de adjuntos, somente malte de cevada ou trigo. Por outro lado, os maiores produtores de cerveja do mundo, China, EUA e Brasil, permitem a utilização de adjuntos, na maioria das vezes, sem limites (MÜLLER, 2018). Somente o Brasil limita a proporção em 45%, como veremos a frente. No prefácio do Livro “Antarctica: ontem, hoje e sempre” de Jorge Americano (1966), em comemoração aos 75 anos da empresa, temos as palavras de Gilberto Freyre:

Embora malte e cevada continuem importados da Europa, a cerveja que se fabrica no nosso País é já uma cerveja, em grande parte, brasileiramente adaptada ao clima quente do Brasil: inteligentemente tropicalizada o que se vem conseguindo através de ciência, de técnicos, de experimentos – experimentos que continuam com relação ao malte a à cevada; de arrojo, de imaginação, de paciência; de pesquisas não só de laboratório como das chamadas de opinião, sondados os consumidores, para que se conseguisse, um produto adaptado quer ao clima quente do Brasil, quer ao paladar de uma gente tropical como a brasileira [...] Pois a cerveja que o Brasil há anos fabrica repita-se que é já uma cerveja em grande parte “nossa”; tropical; meio cabocla (AMERICANO, 1966, p. 2),

Como se trata de uma encomenda da Antarctica, talvez remunerada, a fala merece um olhar mais crítico, entendendo que a cerveja brasileira já teve uma proporção de malte de cevada maior que os atuais 55%. Por um lado, esse processo de adaptação descrito por Freyre é uma forma de buscar insumos locais para a produção, para fugir da dependência de importação de malte e criar uma cerveja mais refrescante para o calor do Brasil. Por outro lado, também é forma de cortar custos e aumentar os lucros. O mestre cervejeiro Alfredo Ferreira relata que a indústria da cerveja também diminuiu proporcionalmente o lúpulo. Inicialmente, as cervejas nacionais tinham em torno de 15 IBU. A redução foi feita gradualmente, a cada ano, para que a diferença fosse imperceptível ao consumidor

97 e a indústria pudesse economizar no insumo mais caro da produção, o lúpulo. Após essa redução, hoje, a cerveja brasileira hoje tem cerca de 6-7 IBU63. Nesse mesmo sentido, a legislação sobre cerveja teve sua evolução (como veremos no item 6.3.2 desta tese). O auditor fiscal federal agropecuário Carlos Vitor Müller, mestre cervejeiro pela VLB Berlin e atual Coordenador Geral de Vinhos e Bebidas do MAPA, mostra que o controle utilização de adjuntos foi alvo de regulamentação somente pela Portaria nº 371, de 19 de setembro de 1974, a qual complementa a definição de cerveja e traz seus padrões físico-químicos (MÜLLER, 2018). Somente pelo Decreto nº 2.314, de 4 de setembro de 1997, há especificações sobre o uso de adjuntos, mesmo de que de forma parcial, limitando o uso de açúcares simples em 15% na cerveja e 50% na cerveja escura (mais de 15 EBC). Os açúcares simples deixam a cerveja mais leve, porém em concentrações superiores a 20% prejudicam a fermentação, de modo que o limite de 15% na norma atende aos critérios técnicos. Já no caso da cerveja escura, essa determinação visa contemplar a produção “de um produto típico da cultura cervejeira nacional, a cerveja tipo Malzbier. Estas cervejas tipicamente possuem quantidade elevada de açúcares adicionados e eram utilizadas historicamente como tônicos revigorantes, suplementos alimentares e até como auxiliares da lactação em gestantes” (MÜLLER, 2018, p. 39). Embora a cerveja ainda exista, essas indicações não são mais disseminadas. Fica evidente que existe uma dupla ação entre adaptação das cervejas e a norma, para a cultura nacional e para redução de custos e aumento do lucro. O capital, então, se utiliza dos aspectos culturais para promover seus produtos, alavancando (inventando?) tradições e aumentando os lucros. Retomando a discussão sobre a existência uma possível escola nacional de cerveja, temos a contribuição de Cilene Saorin64, importante expoente da cena cervejeira nacional. Para Saorin, além do Brasil, outros países também estão na trajetória de construção de uma escola cervejeira, como a Itália, Nova Zelândia, Japão e Austrália

63 Com décadas de experiência nas grandes cervejarias, Ferreira atualmente é diretor do Instituto da Cerveja Brasil (ICB), que explora o mundo das cervejas artesanais com cursos e eventos. O relato foi dado durante a aula de sommelier de cervejas em 2015 na sede da empresa em São Paulo, da qual participei como aluno. 64 Engenheira de alimentos, mestre cervejeira com graduação na Espanha pela Universidad Politécnica de Madrid – Escuela Superior de Cerveza y Malta e sommelier de cervejas com graduação na Alemanha pela Doemens Akademie. Com mais de 28 anos de experiência profissional, teve atuação na área de produção de cervejas (1992-1998), desenvolvimento de fornecedores para cervejarias (1998-1999), pesquisa e desenvolvimento (1999-2001) e como especialista em degustação de cervejas para algumas das maiores companhias cervejeiras do mundo (2001-2006). Trabalhou para Brahma, Petrópolis, Antarctica e AmBev, no Brasil, e FlavorActiV, na Inglaterra, empresa líder na área de gestão da qualidade sensorial de cervejas. Atualmente trabalha em consultoria (desde 2006) (SAORIN, s. d., on-line). 98

(SAORIN, s. d., on-line). Ainda de acordo com a engenheira de alimentos, uma escola cervejeira se faz a partir de cinco pilares: a) terroir: conceito-chave para o entendimento de escola, uma vez que traz autenticidade e exclusividade as cervejas; b) criatividade: é necessário que o espírito criativo do ambiente cervejeiro esteja em sua potência máxima, contando com elementos do empirismo, da curiosidade e da intuição; c) domínio técnico: o tecnicismo é fundamental para conduzir a criatividade em cervejas de qualidade comprovada, para conseguir inserir o terroir nas receitas de forma correta; d) domínio da comunicação: após aliar a autenticidade da cerveja nacional, a criatividade e o domínio técnico, a comunicação é elemento fundamental para transmitir ao consumidor sua mensagem. É importante ampliar a comunicação da cerveja, em especial em relação à artesanal, para todos os grupos sociais do país, evitando limitar-se a um segmento restrito e conservador; e) público consumidor: no final da cadeia, o consumidor é peça fundamental para criar um ambiente crítico de cultura cervejeira nacional, difundida, sobretudo, por meio da gastronomia (SAORIN, s. d., on-line).

Saorin (s. d., on-line) ainda afirma que o Brasil possui todos os aspectos para construção da escola cervejeira nacional, mas há um longo caminho a ser percorrido e que passa, essencialmente, pelo profundo conhecimento dos biomas brasileiros, sua geografia e cultura. Para a mestre cervejeira, um mergulho nas comunidades tradicionais é estágio fundamental e o processo de desmatamento acelerado que vivemos pode comprometer esses modos de vidas, bem como a biodiversidade brasileira65. Um dos pontos essenciais para se formar uma escola de cerveja é a criação de estilos de cerveja próprios daquela localidade. No Brasil, temos apenas um estilo catalogado nos guias: a Catharina Sour, uma cerveja de acidez láctea, à base de trigo com frutas brasileiras. Esse estilo foi catalogado em 2018 e, além da nítida relação do nome do estilo com o território de Santa Catariana, temos a história da criação da cerveja que contou com a participação de 20 cervejarias que se uniram para lançar o estilo, intermediadas pela Associação Catarinense das Cervejas Artesanais (ACASC). Assim,

65 Dados obtidos através do Podcast de Saorin: Quanto falta para termos a escola cervejeira brasileira. 99 estão embutidos na cerveja, o saber fazer dos cervejeiros catarinenses e as propriedades das frutas nacionais (GOMES; MARCUSSO, 2021). De forma emblemática, temos exemplos de Catharina Sour fabricadas a partir de frutas nativas brasileiras, como o açaí, goiaba e pitanga na cervejaria Mistura Clássica, no Rio de Janeiro (REVISTA DA CERVEJA, 2019, on-line); o cupuaçu na Schornstien, de Pomerode - SC e; jabuticaba, butiá, guaraná e uva Goethe66 na cervejaria Lohn, também de Santa Catarina (GUIA DA CERVEJA, 2018, on-line). Contudo, um único estilo não credencia o Brasil a sediar uma escola de cerveja. Outro passo importante para configuração de uma escola são os ingredientes nacionais para aos poucos edificar o terroir brasileiro para produção de cerveja. Leveduras nacionais já foram isoladas para produção de vinho na década de 1980, mas para cerveja somente recentemente tivemos avanços nesse sentido, com o estudo que propiciou a produção da Grimor 18 da Cervejaria Inconfidentes (Nova Lima – MG), cerveja com leveduras genuinamente brasileiras selecionadas a partir da Amazônia, Cerrado e de madeiras brasileiras (MONTANDON, dados não publicados67). Há outros estudos com leveduras provenientes da produção de bioetanol (FURLAN, 2016) e de frutos amazônicos, como: o araçá-boi, o cacau e o cupuaçu (FAPEAM, 2019, on-line). Nesse ramo, dominado pelas importações da Europa e EUA, destacamos a Levteck, laboratório de controle de qualidade microbiológico e produção de leveduras em Florianópolis - SC (FAPESC, 2015, on-line) e a Yeastlab de Franca - SP, que produz uma cepa de levedura denominada Brazilian Ale, originária da casca de jabuticaba de Minas Gerais, que produz aromas fenólicos e picantes, menos intensos do que as cepas belgas tradicionais (YEASTLAB, s. d., on-line). O lúpulo é 100% importado para a produção de cerveja no Brasil e, apesar da cultura apresentar relatos de plantação em 1955, em Nova Petrópolis - RS, somente no século XXI a produção foi retomada com o financiamento da então Brasil Kirin, em São Bento do Sapucaí – SP, que resultou na Heller Bock 15 anos da Baden Baden, fabricada com lúpulos ali plantados, em comemoração ao seu aniversário. Em 2018, em Lajes - SC, foi criada a Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo (APROLUPULO), com mais

66 Destaque para esse cultivar de uva que recebeu, em 2012, a indicação de procedência do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), mostrando sua história, cultura e geografia envolvida no processo de cultivo da uva e transferidas para cerveja (EMBRAPA, s. d., on-line) 67 Essas informações derivam do trabalho a seguir não finalizado: MONTANDON, G. G. Seleção de linhagens indígenas de Saccharomyces cerevisiae para produção de cervejas de alta fermentação. Tese (Doutorado em Ciências Biológicas) Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. 100 de 80 produtores. A sede fica no Centro de Ciências Agroveterinárias da Universidade do Estado de Santa Catarina (CAV-UDESC), instituição que desenvolve pesquisas sobre a produção de lúpulo (MARCUSSO; MÜLLER, 2019b). Mais cervejas com lúpulos nacionais começaram a surgir, como a Braza Hops do Grupo Petrópolis, que hoje é o maior produtor de lúpulo certificado do Brasil (FREITAS, 2020a, on-line) e a Green Belly da cervejaria Lohn, que tem parceria com ZX Ventures, braço de inovação da Ambev, responsável pelo projeto Hildegard que fomenta a plantação de lúpulo e seu beneficiamento em Santa Catarina (BEER ART, 2020a, on-line). Embora a produção de cevada, como veremos adiante, tenha avançado no final do século XX, ainda atende 30 % da necessidade de malte utilizado no mercado nacional, destacando-se a produção de cevada no Sul do país (Paraná 62,6%, Rio Grande do Sul 34,9% e Santa Catarina 2,5%) (EMBRAPA, 2012, on-line). Merecem destaque a maior maltaria da América Latina, a Cooperativa Agrária, em Guarapuava – PR; as maltarias da Ambev, em Passo Fundo - RS e Porto Alegre – RS; as micromaltarias, como a Maltes Blumenau, que já defuma os maltes com madeiras brasileiras e a Maltes Catarinenses, em Campos Novos - SC68. Ainda assim, o Brasil precisa evoluir nesse seguimento, pois a importação de malte para a produção da cerveja é bastante significativa. A esse respeito, faltam iniciativas como o caso da cervejaria Zalaz, que defumou o próprio malte com lascas de laranjeiras da própria fazenda para fazer a cerveja Brumas (FREITAS, 2020b, on-line). As madeiras brasileiras podem representar um passo importante para a trilha da escola brasileira de cerveja, uma vez que trazem características únicas para as bebidas e traços da brasilidade na garrafa, como ocorre nas cachaças. Os primeiros trabalhos para adequar o uso de madeiras na cerveja foram desenvolvidos em 2018, através da identificação de compostos voláteis à maturação de cerveja em madeira, o que resultou na criação de uma nova roda de aromas (Figura 26) (NEVES, dados não publicados69), passo importante na definição das características sensoriais da cerveja.

68 Disponível nos sites das empresas. 69 Essa informação é resultante do trabalho a seguir não finalizado: NEVES, L. E. P. Identificação de Compostos Voláteis Associados à Maturação de Cerveja em Madeira. Dissertação (Mestrado em Tecnologias Química e Biológica) - Universidade de Brasília, 2018. 101

Figura 26 - Perfis sensoriais encontrados nas amostras de cerveja envelhecidas

Fonte: GUIMARÃES et al., 2020.

O estudo ainda apontou que as madeiras brasileiras pesquisadas (amburana, bálsamo, castanehira, cumaru, ipê, jaqueira, jequitibá e putumuju) se mostraram totalmente adaptáveis ao processo de envelhecimento de cerveja, superando o carvalho em relação a muitas moléculas, especialmente vanilina e ácido vanílico (GUIMARÃES et al., 2020). A escolha do estilo de cerveja, espécie de madeira, as condições de confecção do barril para envelhecimento e o seu pré-tratamento são elementos fundamentais para obtenção do perfil organoléptico desejado e a flora brasileira tem um potencial inesgotável a ser explorado. Esse processo de combinação entre cerveja e madeiras agrega valor à cerveja, além de ter potencial para gerar produtos novos, conferindo tipicidade à cerveja brasileira e contribuindo para caracterização da escola brasileira de cerveja (SILVELLO, 2019). Nesse mesmo sentido, foi atualizada a roda de aroma das cervejas envelhecidas definindo referências, atributos e terminologias para descrever o seu perfil sensorial. Esse instrumento é uma ferramenta importante para avaliação de qualidade da cerveja envelhecida em madeira, com base na análise sensorial (Figura 27) (SILVELLO; BORTOLETTO; ALCARDE, 2020).

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Figura 27 - Roda de Aroma de cervejas envelhecidas

Fonte: SILVELLO; BORTOLETTO; ALCARDE, 2020.

A esse respeito, o projeto Tanoa, uma parceria entre a produtora de barris Dornas Havana, de Taiobeiras - MG, com a cervejaria Emburarna, de Brasília - DF, busca harmonizar os estilos de cerveja com as expressões aromáticas das madeiras brasileiras, promovendo o encontro sensorial da cerveja com o potencial da flora brasileira (MARTINS; NEVES, s. d., on-line). Como podemos notar a criação da escola brasileira de cerveja necessita fundamentalmente da evolução da pesquisa acadêmica, do aumento da oferta e profissionalização de empresas especializadas nos insumos, nos processos produtivos e na comercialização e marketing dos produtos. Somente dessa forma teremos um mercado maduro para evoluir na edificação da escola brasileira de cerveja, passando pelos cinco pilares elencados por Saorin (s. d., on-line). O tema do terroir brasileiro nas cervejas já começou a ser explorado através de insumos que tornam nossas cervejas únicas, especiais e típicas. Desde o início do

103 desenvolvimento da cerveja artesanal no Brasil, esse caminho vem sendo trilhado. Marcelo Carneiro, fundador da Cervejaria Colorado e adepto de ingredientes nacionais, afirma que identidade brasileira é o que confere identidade à cerveja. “Sem perceber, a gente já começou. Muitas das coisas que estão sendo usadas são nossas, como açúcar, rapadura, café, derivados da cana e cervejas envelhecidas em barril de cachaça”. Dessa forma, para criar uma escola nacional, é necessário investir no terroir do Brasil e na criatividade do povo brasileiro (SOMOS TODOS CERVEJEIROS, 2016c, on-line). Para além do terroir, podemos aprofundar o debate através da pergunta: o que faz as cervejas brasileiras, Brasileiras? Essa pergunta é inspirada no livro de Roberto Damatta (1984) O que o brasil, Brasil? Segundo o autor, “brasil” com “b” minúsculo é apenas um objeto sem vida, autoconsciência ou pulsação. Traçando um paralelo, as cervejas brasileiras com “b” minúsculo seriam aquelas produzidas no Brasil. Por outro lado, Damatta (1984) explica que o Brasil com “B” maiúsculo é uma entidade viva, cheio de autorreflexão e consciência, de modo que as cervejas Brasileiras expressariam a cultura nacional. O autor ainda afirma que a identidade é a matéria que diferencia as nações. O Brasil é compreendido em sua identidade, além da sua geografia, da sua língua e dos seus fazeres por sua lógica relacional, que se manifesta em diversos aspectos, como na negociação e conciliação no campo político e na vida privada; no sincretismo religioso de orixás e católicos/evangélicos; nas relações mediadas entre a casa e a rua; nas ilusões das relações raciais, da democracia racial do “racismo à brasileira”, que torna a injustiça tolerável; nas comidas e mulheres como códigos da sociedade que são colocadas como símbolos, trocando a cabeça pelo estômago e pelo sexo; no carnaval, onde tudo é possível e a lógica social pode ser invertida com as pessoas da favela virando reis e rainhas; nas festas que recriam o tempo e o espaço das relações sociais; na malandragem e no “jeitinho” brasileiro, como modo de navegação social que, para além da contravenção é, em meio a profunda desigualdade, um modo possível de ser. Por fim, Damatta (1984) afirma que não é possível entender o Brasil através de apenas um princípio social, pois trata-se de uma sociedade que une o moderno e o tradicional.

Combinou, no seu curso histórico e social, o indivíduo e a pessoa, a família e a classe social, a religião e as formas econômicas mais modernas. Tudo isso faz surgir um sistema com espaços internos muito bem divididos e que, por isso mesmo, não permitem qualquer código hegemônico ou dominante. Assim, conforme tive que repetir inúmeras vezes, somos uma pessoa em casa, outra na rua e ainda outra no outro

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mundo. Mudamos nesses espaços de modo obrigatório porque em cada um deles somos submetidos a valores e visões de mundo diferenciados que permitem uma leitura especial do Brasil como um todo. A esfera de casa inventa uma leitura pessoal; a da rua, uma leitura universal. Já a visão pelo outro mundo é um discurso conciliador e fundamentalmente moralista e esperançoso. Entre essas três esferas, colocamos um mundo de relações e situações formais. São as nossas festas e a nossa moralidade, que, como disse, se fundam na verdadeira obsessão pela ligação [...] como coisa altamente positiva, como patrimônio realmente invejável, toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar e conciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança (DAMATTA, 1984, p. 80-81).

O Brasil cria sua identidade na contradição e na ligação entre os extremos. Então, o uso de insumos brasileiros pode ser um braço importante para a identidade da cerveja nacional. A criação de cervejas pensando na identidade brasileira, seja nos rótulos ou na criatividade dos cervejeiros, é um passo fundamental para o estabelecimento de escola brasileira da cerveja. Nesse ponto, embora concordemos que os cinco pilares elencados por Saorin (s. d., on-line) sejam essenciais para a criação de uma escola cervejeira no Brasil, propomos também um sexto elemento que consideramos importante. O sexto pilar seria o da cultura brasileira como pano de fundo para criação das cervejas. Em outras palavras, é importante olhar para a cultura nacional e seus elementos de identificação para pensar novas receitas brasileiras associadas ao terrior brasileiro. Não basta inserir um ingrediente local, mas é preciso perceber em qual cultura está inserido esse elemento, como a comunidade se apropria do produto e o que ele representa para aquele grupo social. Para iniciar essa tentativa, façamos um exercício de relacionar a cerveja a símbolos nacionais. O que a cerveja representa? O samba? O carnaval? O “jeitinho” brasileiro? Nossas crenças? Nossas festas? Nossa feijoada? Com relação à associação entre cerveja e feijoada como símbolo nacional, as cervejarias Invicta, Urbana e 2cabeças criaram, conjuntamente, a Repense Feijoada, uma Rauchdoppelmärzen com feijão, arroz, pimenta e sal para a edição 2020 do Repense Cerveja, um festival que segundo seus idealizadores está em “busca da cerveja brasileira” (Figura 28). Além da cerveja em homenagem à feijoada, o festival conta com a Bolinho com café (2cabeças + Cervejaria Landel), Vienna Lager com café e laranja; o Pudim (2cabeças + Tábuas Cervejaria), American wheatwine com caramelo e cumaru; Roiz Doce, (2cabeças + BR Brew Cervejaria), Pastry Sour com canela; Batida de Maracujá (2cabeças + Brewteco), NE APA com dry hopping de Azacca e Mosaic, e adição de maracujá e

105 baunilha; Apfelstrudel (2cabeças + Ale Mania - Alemanha), Dubbel com maçã, canela e passas. Bernardo Couto, idealizador do evento e sócio da 2cabeças, descreve a ideia da iniciativa:

A ideia foi trazer para a cerveja sabores muito familiares na nossa gastronomia regional, como arroz doce ou pudim. E, claro, inserindo os ingredientes de uma maneira que saísse uma boa cerveja no copo das pessoas, que é o mais importante. Ainda tivemos a oportunidade de fazer mais uma colaborativa internacional, e desenvolvemos uma cerveja inspirada no delicioso Apfelstrudel, um bônus nesta busca nacional. A cervejaria precisou repensar o evento para conseguir realizá-lo no atual cenário. O Repense se tornou uma grande marca da nossa cervejaria, todos nos cobravam que ele voltasse, mas não há como realizar grandes eventos tão cedo. Assim, criamos este formato em função do momento de pandemia que vivemos, com um foco maior na venda através da internet, para cada um curtir nossas criações sem aglomerações (BEER ART, 2020b).

Figura 28 - Cervejas do Festival Repense Cerveja da Cervejaria 2Cabeças

Fonte: BEER ART, 2020b, on-line.

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O festival deixa claro que um dos caminhos para a busca pela identidade nacional da cerveja brasileira pode ser a gastronomia. A ideia de uma escola brasileira da cerveja reafirma a noção de CCC, já que preconiza a identidade brasileira como elemento-chave, como forma de materializar os comportamentos e hábitos dos diferentes grupos sociais que compõe o povo brasileiro. No Brasil, existe um culto à tradição cervejeira da Europa, com menções à Idade Média, aos mosteiros, monges e freiras ligados à cerveja, cervejas com nomes franceses e ingleses e destaque para a Lei da Pureza Alemã etc. Embora tenham seus valores, tais aspectos não contribuem para construção da cerveja propriamente brasileira porque não partem da cultura nacional para pensar a cerveja, seu rótulo e sua propaganda. Segundo Papazian (2016), a cultura de cada país, região ou lugar tem influência decisiva na formação dos estilos de cerveja e, consequentemente, na formação da escola cervejeira daquele país, de forma que é o cotidiano de cada cultura que traz a relação entre as pessoas e os elementos para produção da cerveja brasileira e sua escola. Portanto, mesmo que a escola brasileira de cerveja não seja uma realidade próxima, pensar a cerveja a partir das brasilidades contribui mais para a edificação da cerveja nacional do que meramente copiar os modos de fazer e os estilos de fora. A cerveja brasileira deve ser reflexo de seu povo, de sua cultura e das transformações históricas e geográficas, do estilo do brasileiro de festejar, divertir-se e confraternizar, mesmo não tendo muitos motivos devido à profunda desigualdade social e a situação política do país. Esse comportamento festeiro é uma marca do brasileiro e, ainda que não seja exclusivo, é um importante traço que ajuda a entender a função essencial da atividade cervejeira do país e o papel da cerveja como “lubrificante social” (SEILD, 2003). Possivelmente, a cerveja e todas as substâncias psicoativas tenham essa característica agregadora, presente em nosso comportamento e hábito, por se originar da necessidade humana de ritualizar a vida social, nos primórdios muito ligado à esfera sagrada e cosmológica (LANGDON, 2013), mas hoje atrelada a momentos de prazer, de celebração, confraternização, por vezes ligado à noite, à boêmia e ao profano. Como elemento agregador de pessoas nesse processo de ritualizar a vida social, por meio de mesas de bares, festas e diversão, a cerveja é considerada patrimônio imaterial em diversos lugares e instituições. Por meio da 11ª reunião do Comitê Intergovernamental para Preservação do Patrimônio Imaterial, em Addis Abada-Etiópia, em 2016, o comitê decidiu inserir a cultura da cerveja na Bélgica na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, evidenciando que a cerveja faz parte

107 do cotidiano das pessoas e do comportamento daquela sociedade. Além disso, os saberes são transmitidos para as próximas gerações, preservando o modo belga de fazer cerveja.

Serving as an identity marker for its communities of brewers, tasters, mediators and zythologists, beer culture in Belgium combines know- how concerning nature, social practices and craft skills that constitute an integral part of daily and festive life. Regularly shared between practitioners, knowledge and skills are transmitted from masters to apprentices in breweries but also within families, in public spaces and through formal education. Beer culture in Belgium contributes to the economic and social viability at local level and the constitution of the social identity and continuity of its bearers and practitioners, who promote responsible production and consumption (UNESCO, s. d.[b], on-line). No Brasil, a cerveja artesanal é patrimônio imaterial da cidade do Rio de Janeiro, por meio da Lei nº 6.400, de 5 de setembro de 2018 (RIO DE JANEIRO, 2018), fazendo parte da cultura aquela cidade. Outras leis também reconhecem a importância da cerveja. Blumenau foi instituída como a capital nacional da cerveja pela Lei nº 13.418, de 9 de março de 2017 (BRASIL, 2017). Cidades de outros estados também reconhecem a importância da bebida, como é o caso de Feliz - RS (RIO GRANDE DO SUL, 2015), Curitiba - PR (PARANÁ, 2018) e Petrópolis - RJ (RIO DE JANEIRO, 2017). Nova Lima - MG tem projeto de lei em tramitação na assembleia legislativa de Minas Gerais (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE MINAS GERAIS, 2018). O reconhecimento por lei passa por uma avaliação menos criteriosa do que a da ONU, mas não tira o valor da importância da ação que ajuda a preservar a história da localidade ligada a cervejas, além de promover os produtos atual, com vistas para o turismo cervejeiro a partir da organização dos atores locais, como veremos na seção 4.2 sobre os modelos de governança. A partir do exposto, verificamos que a noção de CCC se sustenta no aspecto teórico como forma de reprodução de comportamentos e hábitos ao longo das transformações histórico-geográficas e no aspecto prático em toda estrutura de saberes e experimentações, que vão desde a produção e sua relação com as culturas locais, passando pela análise sensorial como ferramenta de reprodução dos estilos locais, até as formas de expressões culturais ligadas à cerveja, com a boêmia e a música. As expressões culturais da cerveja nos remetem aos tempos primordiais e nos fazem ritualizar nos dias de hoje, tendo a cerveja como hábito, diversão, lazer, história, prazer, identidade, estilo de vida e, enfim, a Cerveja como Cultura.

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Para observar esse processo de reposicionamento da cerveja, é necessário um maior aprofundamento na cultura nacional para entendermos como a bebida se tornou a predileta do povo brasileiro.

3.3 Boêmia, música e cerveja: a consolidação da cerveja como bebida popular brasileira

Uma das marcas da cultura nacional é o estilo de vida do brasileiro, sua música e suas tradições. Dessa forma, discutiremos brevemente o movimento da boêmia para entender como se configurou a cultura relacionada à vida noturna e, sobretudo, aos bares, um dos principais veículos de disseminação da venda de cerveja, uma vez que esta é considerada uma bebida para se tomar fora de casa desde o início do século XX até hoje. Esse processo é importante para observarmos como esse movimento inseriu a bebida alcoólica, em especial a cerveja, no cotidiano das cidades e das pessoas, tornando-se parte da cultura do brasileiro, ideia que corrobora com a noção de CCC. A boêmia é um fenômeno social e literário originado na França, sobretudo em Paris, nas décadas de 1830 e 1840, como um estilo de vida característicos de artistas que procuraram definir seus valores em contraposição aos da burguesia. Seu surgimento é atribuído aos períodos de revoluções e mudanças políticas, como a consolidação dos impactos da Revolução Francesa de 1789, quando os artistas sofreram o fim do patronato e passaram a ser inseridos no mercado. A época também foi caracterizada pelo reconhecimento da juventude e o crescimento exponencial de Paris. Existiam locais definidos para a boêmia, por exemplo, o bairro de Montmartre, em Paris, que também era espaço de consumo de cafés e cabarés, com destaque para o Chat Noir e o famoso Moulin Rouge, criando uma atmosfera de locais de apresentações culturais e ganha pão para os boêmios (SEIGEL, 1992). No Brasil, o movimento da boêmia se instituiu na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e foi alavancado pelas transformações políticas e sociais da época, como a abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889), que provocaram um reordenamento estrutural nas políticas de dominação e nas relações de classe. Assim, o momento era propício ao surgimento de novos e alternativos modos de vida. Contudo, somente nas décadas de 1930 e 1940, a boêmia começou a tomar corpo, época em que o Brasil experimentava intensos movimentos estruturais, como a ditadura

109 de Vargas e a formação do Estado Novo, a crescente industrialização e urbanização etc. (NUNES; MENDES, 2008). No início do século XX, a boêmia já aparecia nas expressões culturais com mais força e esse estilo de vida passou a ser expresso através das letras de músicas da época. É o caso de “O boêmio”, de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense de 1902 e gravada entre 1904 e 1907. Alguns trechos são transcritos a seguir (NASCIMENTO, 2015, p. 2-3):

Deus, que viver! Que prazer nesta vida que tenho ó Senhor! Eu moro só Sem tocar no duende travesso do amor O lé ré, sou feliz Com a pinga delícia que me faz entrever Eu gozar nessa vida corrida, nessa vida florida [...] Meu coração Não aceita os espinhos daninhos do amor E a mulher feito ali, vou passando, Brincando, folgando a cantar Sou assim, segui muito A mulher o demônio de mim Deus me deu essa vida por prêmio Serei o boêmio enquanto ele quiser Leve o diabo esse inferno Da vida este terno Vivente sofrer Não mais pertenço ao amargor de viver Eu costumo beber [...] Eu só encontro alegria No céu da folia cantando a beber Oh, como é bom Como é bom esta vida que passo selar Não quero amar Só namoro a natura que levo a cantar Uma flor, o luar, das estrelas namoro o divino fulgor Que é o boêmio com alma seguinte Sem asas tilintes do bobo do amor

A alusão à vida descompromissada de prazeres, longe do amor e perto da noite e do álcool são pontos marcantes na letra, trazendo a cachaça como parte desse universo. Portanto, podemos verificar que a cerveja ainda não era soberana no cotidiano das

110 pessoas, uma vez que a cachaça ainda era a bebida nacional. Esse fato pode ser verificado, também, na cidade de São Paulo, cuja cachaça era amplamente disseminada nas vendas de secos e molhados e armazéns, como no Beco da Cachaça, na região central70. Entre 1797 e 1803, a cachaça foi o oitavo produto brasileiro na pauta de exportações para a cidade, vindas principalmente do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco (MONTELEONE, 2019a). Outras músicas que representam bem a época são “Casa Boêmia” (1911), de Oscar Carneiro; “Boemia” (1928), de Ernesto Nazareth; e “Mulher Boemia” (1928), de Lamartine Babo e Pixinguinha. Já na década de 1930, foram compostas três canções com referência ao tema: “Esse boêmio Sou eu” (1932-1933?), de Paraguassú; “Boemia da Lua” (1936), de Antenógenes Silva e Ernani Campos; e “Boêmio” (1937), de Ataulfo Alves e J. Pereira. Esta última, interpretada por Orlando Silva, teve grande sucesso, destacando a relação do sujeito boêmio com a noite, o amor e o álcool, como podemos verificar no trecho selecionado abaixo (NASCIMENTO, 2015, p. 11). Além da característica já destacada por esse estilo de vida, a letra de “O Boêmio” (1937), transcrita a seguir, faz referência ao vinho e não à cachaça. Essas músicas ajudam a compreender que, para a boêmia, o principal não era o tipo de bebida alcoólica, mas sim a embriaguez.

Boêmio Nos cabarés da cidade Buscas a felicidade Na tua própria ilusão Boêmio A boemia resume No vinho, o amor e o ciúme Perfume, desilusão (...)

70 Nesse período, também, foi disseminada a caipirinha “A aguardente sempre esteve ligada à alimentação cotidiana dos moradores de São Paulo. Mário de Andrade, pesquisando sobre a genealogia da cachaça, anotou costumes, sinônimos e anedotas sobre a bebida. Mais uma vez, é ele quem nos dá uma pista sobre a antiga relação de São Paulo com a aguardente. Em seu fichário analítico, o escritor fez uma anotação sobre uma bebida muito popular no final do século 19 e começo do 20. Era a Paulista, mistura de limão, açúcar e cachaça. Mário de Andrade lembra de outras misturas com pinga, ligadas à diferentes regiões do país. Ele escreveu sobre a ‘caninha de manga’ mineira, a ‘imbiriba’ nordestina [...] a ‘meladinha’ que também se diz cachimbo [...]. E também sobre uma especialidade de São Paulo: a batida paulista: ‘A batida paulista é realmente a melhor das misturas da cachaça. Quando legítima, isto é, com limão, água e açúcar apenas’. Não é preciso muito para chegarmos à conclusão de que a Paulista da época do Mário ficou conhecida Caipirinha dos dias de hoje. Na verdade, as duas palavras são sinônimas. Afinal, ‘caipira’ significa, em tupi, ‘cortador de mato’, nome que os índios do interior da região davam aos homens brancos e caboclos e que acabou por se tornar um sinônimo dos habitantes do interior do estado. O paulista é o caipira. A bebida paulista é a caipirinha, acrescida de gelo numa benesse dos tempos da geladeira. Pinga, limão, gelo e açúcar. Caipirinha” (MONTELEONE, 2019a) 111

Boêmio Que ficas na rua Em noite de lua Tristonho a cantar Na ilusão dos beijos viciosos E dos carinhos pecaminosos

Dados da época confirmam que a bebida alcóolica mais produzida no Brasil era a cachaça. Somente em 1925, a cerveja passou a ser fabricada em maior escala que a cachaça. Em 1924, o Brasil produziu cerca de 1,2 milhões de hectolitros (mi hl) de ambas as bebidas. Já no ano seguinte, a produção de cachaça caiu para cerca de 1 mi hl, enquanto a de cerveja subiu para 1,4 mi hl. Em 1929, foram produzidos 1,8 mi hl de cerveja e 1,4 mi hl de cachaça (KÖB, 2000). Esses números mostram que a cerveja ainda não representava a bebida do povo, sendo a cachaça a bebida que acompanha os boêmios nas noites. Já na década de 1940, a cerveja passou a assumir o protagonismo como bebida popular do Brasil, tendo sua produção aumentando em 215%, saltando de 2 mi hl para 6,3 mi hl (Tabela 9). Dessa forma, apesar de a cerveja não ser a principal bebida da época de ouro da boêmia, ela passou a substituir outras bebidas, sobretudo a cachaça, como bebida popular brasileira. O movimento da boêmia trouxe a criação desse universo atrelado à noite, ao bar, ao divertimento e à bebida, ou seja, a relação entre o álcool e a sociedade brasileira, criando uma local de reprodução de um fazer cotidiano que vai criando marcas nas pessoas e nos lugares. Alguns locais, portanto, passaram a estar mais ligados à boêmia. Por exemplo, segundo Ticle (2016, p. 97), o bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte - MG seria um local de “tomar cerveja gelada e comer petiscos que remontam às fazendas mineiras. [...] Os botecos de Belo Horizonte são por ela caracterizados enfaticamente como espaços públicos, [...] espaços da diversidade e de práticas culturais incorporadas às práticas cotidianas de seus moradores”. Outro exemplo é a Praça do Ferreira, em Fortaleza - CE, que já foi local de encontro e sociabilidade urbana, sendo considerado o “Coração do Ceará-Moleque”, onde ficava a “esquina do pecado” e uma cervejaria que Benjamin (1995, p. 66 apud SILVA, 2012, p. 59) descrevia como “a chave de toda a cidade”, onde as pessoas se encontravam e se divertiam. Em Porto Alegre - RS, a Cidade Baixa e o Centro Histórico foram construídos no imaginário das pessoas como lugares da boêmia, vinculados à figura do músico Lupicínio Rodrigues, que teve uma coluna no Jornal Última Hora, entre 1963-1964, denominada

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“Roteiro de um Boêmio”, na qual descrevia as experiências da boêmia de um território da chamada “ilhota” composta pelos bairros atuais já apontados (FURQUIM, 2017). Em São Paulo – SP, na região central, a área da Boêmia ficou conhecida como Triângulo, formado pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento, onde havia muitos cafés, bares, pensões etc. para diversão. Naquele ponto da cidade, havia consumo de bebidas e de novos hábitos de lazer, como o café e restaurante Guarany, a confeitaria Brasserie e a Castellões, conhecido como o “Clube dos elegantes boêmios” (MARQUES, 1942, p. 86 apud MUTARELLI, 2018, p. 62). Para além do triangulo, ainda na região central, tínhamos o Bar Municipal, ao lado do Teatro Municipal, e o Bar Baron, na rua do comércio, onde também estava localizado o chope Germânia, local preferido por Voltolino para fazer seus desenhos enquanto tomava cerveja71. Em Brasília, a criação da cidade na década de 1950 está inserida no período de domínio da cerveja e de maior expoente da boêmia, agora já importada do Rio de Janeiro. Os bares e restaurantes multiplicaram-se, totalizando 110 estabelecimentos em 1964. Ainda na década de 1960, destacaram-se o Bar do Careca (Vila Planalto), que funciona até hoje, e Olgas Bar (Núcleo Bandeirante) que, segundo relatos históricos do Arquivo Público do Distrito Federal, era um misto de restaurante e boate, que marcou o início da vida noturna da cidade. Em 1966, foi fundado o Beirute (109 sul), que ainda existe e “foi, em termos históricos, o lugar da constituição da primeira rede de lazer em bares na cidade” (BARRAL, 2012, p. 213). Na década de 1970, temos o Paulicéia (113 Sul) e Bar Só Drink (403 Norte) em funcionamento até hoje. Já na década de 1980, despontavam o Bom Demais (706 Norte), talvez o mais famoso da época e onde tocou Cássia Eller no início de carreira, Chorão (302 Norte) e Cavaquinho (405 Sul), como redutos da MPB, Barzinho (Gilbertinho), onde tocou Zélia Duncan no início de carreira, o Amigos (105 norte), palco para Rosa Passos no início de carreira (LIMA, 2010) e o Piauí (403 Sul), Bar dos Cunhados (115 Norte) que funcionam até hoje. Por fim, nas últimas décadas, as quadras da Asa Norte, próximas à UnB, 209-210-408-409 formam o que seria o “quadrilátero do álcool”, tendo 19 das 30 lojas das entrequadras como bares (BARRAL, 2012, p. 89). Entretanto, o lugar onde a boêmia tem sua referência mais importante é o bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente, o bairro foi criado para acomodar a

71 Voltolino era como ficou conhecido João Paulo Lemmo Lemmi (São Paulo - SP, 1884 - 1926), caricaturista, ilustrador e desenhista associado à boêmia paulistana (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017, on-line). 113 vinda da família real portuguesa ao Brasil, mas após o desenvolvimento das linhas de bondes, os nobres passaram a morar em outros bairros, como o Catete, Flamengo ou Botafogo, deixando a área para populações mais pobres. As casas cederam espaço para bares e bordéis e, aos poucos, o clima boêmio tomou conta da região, atraindo artistas e viajantes. A região ainda sofreu alterações das reformas de Pereira Passos nas primeiras décadas do século XX, que expulsou as camadas mais baixas da população do eixo da Avenida Central (atual Rio Branco), transformando-a na grande vitrine da capital da jovem República, com a abertura de teatros, cinemas, cafés, clubes e restaurantes. Nas praças Floriano (atual Cinelândia) e Tiradentes, havia grande movimento, sendo frequentadas pelas camadas média e alta da sociedade. Já no período noturno, cabarés, botequins, gafieiras e inferninhos passaram a florescer na Lapa, Praça Onze e região portuária72.

Assíduo frequentador do restaurante A Nova Capela e de vários botequins da Mem de Sá, Madame Satã, o mais famoso malandro da Lapa, falou sobre alguns habituées da vida noturna da avenida, com quem costumava beber e conversar nos idos dos anos 1920 e 1930: os bambas do samba Noel Rosa, Ismael Silva e Nelson Cavaquinho, os cantores Francisco Alves e Araci de Almeida, o chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato, o poeta Manuel Bandeira, o jornalista, deputado federal e governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e muitos outros (PIMENTEL, 2017, on-line).

A Lapa define parte da identidade carioca e, por que não, da identidade nacional. “A marca do Rio de Janeiro parece estar associada à boêmia: para o bem, como cidade alegre, cosmopolita, com um povo esperto, festivo e acolhedor; ou para o mal, como a cidade do ócio, da malandragem, dos excessos e do perigo” (VELASQUES, 1994, p. 117). O bairro, então, foi ressignificado de forma positiva, tornando-se representante da boêmia por vivenciar a “carnavalização” cotidiana. Os sambas marcam na memória do coletivo e propagam a cultura da boêmia, simbolizados no papel do malandro (VELASQUES, 1994).

72 O bairro deixou ser encontro dos boêmios a partir da repressão promovida pela ditadura, da transferência da capital do país, das políticas de intervenção no centro etc. Somente na década de 1980, artistas e boêmios em geral voltaram para o bairro com a organização do Circo Voador, em 1982, em frente aos arcos, atraindo a população da Zona Sul da cidade. A partir dos anos 1990, o governo municipal passou a investir na região para instalação de atividades culturais como música e teatro. Assim, a Lapa foi devolvida à boêmia e se estabeleceu no imaginário da população, o que contribuiu para sua consequente valorização, principalmente com foco na atração turística (VILAS BOAS, 2012). 114

Nesse ponto, é importante mencionar outro elemento que passou a se configurar entre a boêmia e a relação da sociedade brasileira com as bebidas alcoólicas: o samba. O gênero tem suas origens na formação da sociedade carioca, mas tem como ponto de partida a canção “Pelo Telefone” (1916), de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, conhecido como Donga. Com partitura de Pixinguinha, a música foi registrada por Donga na Biblioteca Nacional em 27 de novembro daquele ano e iria se tornar grande sucesso com versos de Mauro de Almeida, o Peru dos Pés Frios, no Carnaval de 1917. A letra da música foi envolvida em uma polêmica, já que Donga teria registrado uma versão diferente do original para evitar problemas com a polícia, uma vez que fazia menção ao jogo de roleta, prática então proibida na cidade. Esse fato traz a noção do malandro como identidade do carioca. Além disso, as circunstâncias da criação da música também trazem elementos constitutivos das coletividades surgidas com o samba. Donga teria composto a letra na casa de Tia Ciata, grande promotora da cultura popular trazida da Bahia e da cultura negra nas nascentes favelas cariocas. “A casa de Tia Ciata, na rua Visconde de Itaúna 117, era a capital da Pequena África. Dos seus frequentadores habituais, que incluíam Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Sinhô

115 e Mauro de Almeida, nasceu o samba” (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, s. d., on-line) 73. Podemos notar que as raízes da cultura e identidade nacional estão presentes nesse universo, como a cultura trazida pela diáspora africana, a boêmia e os malandros, todas gerando conexões para criar o samba, uma das principais identidades do povo brasileiro. Nesse contexto, a cerveja vai se infiltrando nos núcleos populares, tornando-se a bebida que acompanha os encontros boêmios e os frequentadores do samba. A seguir, comparamos trechos da letra original de Donga, do que foi registrado na Biblioteca Nacional e de uma paródia feita para cerveja Fidalga, em 1917 (CUNHA, 2008). ORIGINAL REGISTRADO PROPAGANDA

O chefe da polícia O chefe da folia O chefe da folia Pelo telefone Pelo telefone Pelo telefone Mandou avisar Manda avisar Manda dizer Que na Carioca Que com alegria Que há em toda parte Tem uma roleta Não se questione Cerveja Fidalga Para se jogar. Para se brincar. Pra gente beber74

Esse é um dos grandes momentos de inserção da cerveja na propaganda75 de massa, que viria a se tornar estratégia comum no setor. A cerveja faz parte desse universo da boêmia por ser uma bebida agregadora e de confraternização, como podemos perceber nas palavras de outro ícone do samba brasileiro, Noel Rosa: “Loura como as louras espigas de milho, falsa como as mulheres... Eu bato com ela no bucho, ela bate comigo no chão”. Rosa ainda fazia referência à cerveja nas suas canções como é o caso de “Seu Jacinto” (1933), que menciona a marca Brahma (PINTO, 2011, p. 53 e 81):

O que eu sinto e não consinto É seu cinto se afrouxar Seu Jacinto aperta o cinto Bota as calças no lugar

O seu Jacinto tinha que comprar feijão Mas não tinha um só tostão E o caixeiro estava duro

73 Hilária Batista de Almeida, Tia Ciata (1854-1924), baiana, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1876 e frequentava terreiro de João Alabá, na Rua Barão de São Felix, onde também ficava a casa de Dom Obá II e o famoso cortiço Cabeça de Porco (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, s. d., on-line). 74 ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2019, on-line. 75 “A Antarctica teve papel importante na evolução da propaganda brasileira. Foi uma das primeiras a usar outdoors luminosos, patrocinou programas no ano do surgimento do rádio (1923) e foi a primeira a promover um programa de TV, ‘Antarctica no Mundo dos Sons’, nos anos 60” (GUIMARÃES, 1999, on- line). 116

Ele não gosta de pagar feijão à vista Porque sendo futurista Paga sempre pro futuro [...] Quando tem baile lá na casa da Teresa Ela faz pano de mesa Com o lençol que cobre a cama Bota nos copos água usada na banheira Depois diz à turma inteira Que é cerveja lá da Brahma

A referência ao malandro é constante, mas a alusão à cerveja também passa a ser frequente, reforçando a ideia de expansão da produção e do consumo da bebida na década de 1930 e, sobretudo, na década de 1940. Nesse ponto, vale recordar que a cerveja ultrapassou a cachaça em volume de produção somente na década de 1920. Em 1934, é lançado o Brahma Chopp, o chope engarrafado, que se tornou grande sucesso devido ao carnaval da época, quando “a Brahma Chopp invadiu com os foliões as ruas e os salões” (HOUAISS, 1986, p. 79), e também devido à composição de Ary Barroso e Bastos Tigre “Chopp em Garrafa” (1935), gravada por Orlando Silva, que alcançou grande sucesso naquele ano (SANTOS, 2004). O próprio chopp é uma invenção nacional, não existindo em outros países. Pela norma brasileira, a denominação “chopp” ou “chope” aplica-se apenas se a cerveja não for pasteurizada76, mas existe muita espuma para além da regra. A esse respeito, Alexandre Graupner Zahn, gerente corporativo da Central de Assistência Técnica e Chopp do Grupo Petrópolis e antigo proprietário do Chopp do Fritz, uma das primeiras cervejarias artesanais do Brasil, em entrevista para esta pesquisa relata que essa denominação não existe em outros países. Segundo Zahn, a palavra chopp deriva de um vocábulo alemão antigo, o schoppen, uma unidade de medida equivalente a 500 ml de líquido ou copo de meio litro. Essa expressão era usada pelos alemães e seus descendentes no Brasil para pedir cerveja no copo com essa quantidade, ou seja, bastante cerveja. Aos poucos, esse hábito foi se disseminando no cotidiano e na cultura do brasileiro. Zahn ainda descreve que a cremosidade e a leveza, superiores às da cerveja, trazem identidade ao chopp. Assim, um chope bem tirado deve ter um bom colarinho, importante para preservar essas características. Uma boa extração, ao dispensar o líquido,

76 § 5º do Art. 2º da Instrução Normativa nº 65, de 10 de dezembro de 2019 que estabelece os padrões de identidade e qualidade para os produtos de cervejaria: “A expressão ‘chopp’ ou ‘chope’ é permitida apenas para a cerveja que não seja submetida a processo de pasteurização, tampouco a outros tratamentos térmicos similares ou equivalentes” (MAPA, 2019a). 117 promove uma dissociação do CO² que promoverá a cremosidade e leveza típicos do chopp. Por fim, o entrevistado afirma que o chopp e suas características são tão culturais que existe uma torneira somente para extração do creme de chopp e isso faz parte dos serviços das casas especializadas em chopp, como o famoso Bar do Pinguim, em Ribeirão Preto - SP, aberto em 1936 e o Bar do Léo (BAR LÉO, s. d., on-line), em São Paulo - SP, aberto em 194077. A presença dos bares e o consumo de chopp ajudaram a disseminar a cultura da cerveja no Brasil. A incorporação do chopp no comportamento de consumo do brasileiro é tão notória que, junto do estilo de cerveja Malzbier, como veremos adiante, as normas para a fabricação de cerveja preservaram essas formas de se fazer a bebida, mostrando que os hábitos do cotidiano constroem a CCC. A Figura 29, a seguir, ilustra o chopp do Bar do Pinguim, com diferentes níveis de colarinho do chopp do Bar do Pinguim, havendo até mesmo a opção de se consumir apenas a espuma (última imagem à direita).

77 Conta a lenda que, para a abertura do Pinguim, foi instalada uma tubulação subterrânea que saía direto da fábrica da Antarctica na cidade até o bar. Essa lenda povoa o imaginário dos bebedores de cerveja e chopp e arrasta turista e visitantes para o lugar. 118

Figura 29 - O chope e o creme: uma cultura cervejeira nacional

Fonte: PINGUIN, s. d., on-line.

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Com a proliferação de cervejarias no centro sul do país e na Bahia, Recife e Pará, a cerveja foi se popularizando, “consagrando boêmios, festas, anedotas, recordações literárias” (CASCUDO, 2016, p. 822). A cerveja vai se tornando tema na música popular brasileira à medida que se torna mais frequente no dia a dia das pessoas, caracterizando- se como uma bebida popular. Na “segunda metade do século XX o consumo de cerveja já fazia parte do hábito do povo brasileiro” (FONSECA FILHO, 2008, p. 49). A partir da década de 1970, a relação entre a cerveja e o universo da música pode ser observado a partir de propagandas (Figura 30).

Figura 30 - Propagandas de cervejas com músicos e sambistas. Da esquerda para direita e de cima para baixo. 1. O carnavalesco Sargentelli (1979); 2. O sambista Adoniram Barbosa (1972); 3. Capa da revista Veja com os sambistas Cartola, Ismael Silva e Mano Décio da Viola (1975); 4. Processo de composição das músicas de Paulinho da Viola (1989).

Fonte: Imagens 1 e 2: SOUSA, 2017; Imagens 3 e 4: LAVINSKY, 2017.

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Na década de 1970, a produção nacional de cerveja teve um aumento de 165%, saltando de 11 mi hl para 29,1 mi hl (Tabela 9). Na mesma época, foram lançadas as músicas “Feijoada Completa” (1978), de Chico Buarque, e “Tô voltando” (1979), de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, interpretada pela artista Simone.

FEIJOADA COMPLETA Mulher Você vai gostar Tô levando uns amigos pra conversar Eles vão com uma fome que nem me contem Eles vão com uma sede de anteontem Salta cerveja estupidamente gelada prum batalhão E vamos botar água no feijão

Mulher Não vá se afobar Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar Ponha os pratos no chão, e o chão tá posto E prepare as lingüiças pro tiragosto Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão E vamos botar água no feijão

TÔ VOLTANDO Pode ir armando o coreto E preparando aquele feijão preto Eu tô voltando Põe meia dúzia de Brahma pra gelar Muda a roupa de cama Eu tô voltando [...] Dá uma geral, faz um bom defumador Enche a casa de flor Que eu tô voltando Pega uma praia, aproveita, tá calor Vai pegando uma cor Que eu tô voltando

Na composição de Chico Buarque, o clima de amizade se completa com a cerveja. Ainda há alusão à caipirinha que, assim como a feijoada, agrega importantes marcos da cultura brasileira. Já na letra de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, que ficou conhecida como canção do exílio, há referência do retorno dos brasileiros exilados pela ditadura, mostrando que a cerveja é um elemento que não pode faltar nesse retorno, além dos aspectos da culinária, praia e calor, elementos culturais brasileiros importantes.

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É interessante notar que o discurso78 sobre o calor e matar a sede pode ser interpretado como mudanças de hábitos suscitados pelo projeto de modernização da sociedade brasileira atendida por produtos industrializados e não apenas matar a sede com água, além de associar o calor uma condição climática referida à possibilidade de lazer e diversão (LAVINSKY, 2017). Essas transformações ajudam a explicar como a cerveja se tornou a paixão nacional. Outro ponto importante para compreendermos como a cerveja foi se afirmando na cultura brasileira refere-se ao modo pelo qual as cervejarias criavam, patrocinavam e desenvolviam locais de divulgação e vendas de suas marcas, como festas, parques, bares restaurantes etc. O modelo alemão dos biergardens, áreas de lazer com bares e restaurantes financiados pelas cervejarias, foi incorporado ao Brasil pela Antarctica na cidade de São Paulo e pela Brahma na cidade do Rio de Janeiro. A chegada da energia elétrica na virada do século XIX-XX permitiu que as pessoas saíssem mais de casa para se divertir e que novos pontos comerciais fossem abertos, inclusive com a venda de cerveja. Em São Paulo, além de negociar a venda exclusiva em pontos estratégicos na cidade, a Antarctica criou diversos equipamentos urbanos para vender suas bebidas, como o Parque Antarctica (1902), que proporcionou a convivência entre classe operária e elite, além de ter sido sede do primeiro campeonato de futebol do Brasil e da primeira corrida automobilística da América Latina, marcando sua importância na história social da cidade. Também foram criados o Cine Central (1906), o Cassino Antarctica (1913), o Theatro Polytheama (1891), o Cine Bijou (1898-1899) e o Bosque da Saúde (1909). Dessa forma, a empresa influenciou o desenvolvimento urbano através de “estruturas-âncora”, considerados locais de entretenimento e lazer, mas cujo objetivo central era a comercialização de bebidas, em especial a cerveja. (SOUZA, 2017). No Rio de Janeiro, a Brahma também financiou bares e botequins com contrato de venda exclusiva e construiu sua marca na cidade, a fim de dominar o mercado da capital. Em destaque, temos o Bar Luis79, fundado em 1887 e aberto até os dias atuais, vendendo somente Brahma desde a fundação da cervejaria em 1888. A Brahma também se associou ao comerciante italiano Pascoal Segreto, que idealizou parques e locais para diversão das famílias, onde a cerveja era vendida. Como exemplo, temos o Parque Fluminense, Alcazar-Parque, o Cassino Fluminense

78 “Esse tipo de recurso pode ser compreendido também se tivermos em mente, acompanhando as observações de Rocha (2011, p. 163), que a publicidade (certamente responsável pela consolidação desse tipo de sentido, embora não exclusivamente) é uma área na qual o valor no sentido econômico se reveste de valor em sentido cultural” (LAVINSKY, 2017, p. 90) 79 A história do bar está disponível no site: . Acesso em: 09/01/2021 122 e o Maison Moderne. Segreto também era dono dos teatros Moulin Rouge, Carlos Gomes e São José. Todos esses estabelecimentos vendiam exclusivamente cervejas da marca Brahma. Um dos eventos que mais promoveu o hábito de tomar cerveja entre os cariocas foi a Festa da Igreja da Penha. Construída em 1860, a igreja é considerada uma marca da presença portuguesa na cidade e sua festa passou a reunir milhares de pessoas durante o início do século XX, pois era ponto de peregrinação religiosa, concentrando barraquinhas de todos os tipos. A venda de cerveja foi primeiro dominada pela marca Cascatinha da cervejaria Hanseática, comandada por portugueses. Em 1941, a Brahma comprou a Hanseática, mas teve que se adaptar à tradição da festa. A preferência pela Cascatinha, sobretudo por parte dos portugueses e seus descendentes, fez com que os vendedores da Brahma trocassem o rótulo para marca Cascatinha, conseguindo, assim, conseguir vender cerveja. A festa ainda foi um grande ponto de divulgação e produção de samba (MARQUES, 2014). Esses movimentos de inserção da cerveja no cotidiano do brasileiro têm repercussões no modo de vida da população e em seus hábitos, tornando-se um item de consumo regular, como podemos ver na Figura 31, que traz um modelo de “cesta básica” de 1974, alertando para o aumento de preços.

Figura 31 - “Cesta básica” do brasileiro em 1974

Fonte: LAVINSKY, 2017, p. 91.

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É interessante observar que a cerveja aparece como item de consumo regular do brasileiro, marcando presença em seu dia a dia. A marca Brahma é citada nominalmente para se referir à cerveja, mostrando a importância da marca, muitas vezes tratada como sinônimo da própria bebida. Atualmente, a cerveja ainda é consumida regularmente pelas famílias brasileiras, como mostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) (2017-2018), segundo qual a cerveja é um dos produtos consumidos com frequência sobretudo fora de casa (51%). Segundo a pesquisa, os homens consomem três vezes mais que as mulheres (54,5 g/dia contra 16,4 g/dia) e o consumo aumenta de acordo com a renda familiar (0,8% no 1º quarto de renda per capita para 5,9 no 4º quarto) (IBGE, 2020). A cerveja ainda consta na lista dos dez produtos mais consumidos pelas famílias brasileiras, a saber: 1. Arroz; 2. Feijão; 3. Pão francês; 4. Carne bovina; 5. Frango; 6. Banana; 7. Leite; 8. Refrigerantes; 9. Cervejas; 10. Açúcar cristal. Essa lista concentra mais de 45% do consumo alimentar no Brasil, independentemente da região e indica uma padronização no hábito de consumo de alimentos dos brasileiros, seja no meio urbano ou rural (BELIK, 2020). Voltando ao universo da música, na década de 1985, a escola de samba Império Serrano apresentou seu samba-enredo “Samba, Suor e Cerveja, o Combustível da Ilusão”, patrocinada pela Brahma, sendo o primeiro do carnaval carioca a receber patrocínio. A seguir, transcrevemos o trecho que se refere à cerveja:

Quem vem do lado de lá Assistir à nossa batucada Se trouxer no peito tristeza Que afogue lá na mesa Numa cerva bem gelada

Já coloquei na pedreira Cerveja preta para o Rei Xangô Cerveja branca também coloquei na mata A noite inteira “Seu” Ogum bebericou Quem canta o mal espanta Explode coração No combustível da ilusão

Haja frio ou calor Cervejando lá se vai o dissabor

Segundo a letra, a cerveja é associada ao fim da tristeza e dos dissabores da vida, além de servir como oferendas aos orixás, mostrando que cultura e cerveja se misturam, o que reforça ainda mais a noção de CCC.

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Ainda com relação ao universo musical, o gênero sertanejo tem ganhado força no cenário musical brasileiro, descrevendo hábitos do povo em suas letras e, por vezes mencionando a cerveja como elemento cultural presente no cotidiano das pessoas. Exemplo disso é a canção “Cerveja” (1997) de César Augusto e César Rossini, lançada pela dupla Leandro e Leonardo. A letra foi adaptada pela marca Bavária para uma propaganda de televisão exibida durante o intervalo do programa “Amigos” da Rede Globo naquele mesmo ano80. A música “Cerveja” alude à sexta-feira como momento de liberdade do trabalho e permissão à bebida “Hoje é sexta-feira / Chega de canseira / Nada de tristeza / Pega uma cerveja / Põe na minha mesa”. Atualmente, temos a música “Alô Ambev (Segue Sua Vida)” (2020), de De Angelo, Gabriel Agra, Bruno Sucesso interpretada por e Zé Neto & Cristiano, lançada por estes últimos em 26 de março de 2020 e que já conta com mais de 55 milhões de visualizações no YouTube81. A letra descreve a separação de um casal e o alento trazido pela cerveja na situação de solidão e saudade de um dos cônjuges: “Alô, Ambev / Dobra a produção aí que a gente bebe / Eu mandei saudade, ela mandou vida que segue / Então segue sua vidona / Que eu sigo sofrendo e bebendo Brahma”. É interessante observar, através desses exemplos, que a propaganda da cerveja foi incorporada pela música, de modo que esses dois elementos seguem integrados. No ramo do pagode, que também têm ganhado força no cenário musical brasileiro, temos a figura de Zeca Pagodinho com a música “Vida da Gente” (2005), de Alamir e Roberto Lopes. A letra conta a vida do trabalho honesto e penoso, com a recompensa da cerveja no final de semana: “A gente vive honestamente / Sem olhar pro chão / Mas não tem nada / A gente mostra no sorriso / Nosso alto-astral / Um churrasquinho no espeto / E lá vai um real / E desce uma cerveja pra ficar legal”. Mais recentemente, temos a música “Cerveja de Garrafa (Fumaça que eu faço)” (2018), de Pedrinho Pimenta e cantada pelo grupo de pagode Atitude 67 e que já conta com mais de 207 milhões de visualizações no YouTube82. A letra trata sobre a doçura da mulher e seu gosto pela noite, cerveja e afins: “Doce, você tem um jeito doce / O seu olhar é doce, doce / Mas gosta de boteco e de cerveja de garrafa / E nunca ligou pra toda fumaça que eu faço / E toda vez que eu relaxo / Eu imagino um mundo belo assim com você do lado”.

80 O programa Amigos reunia as duplas Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó e Zezé di Camargo e Luciano, que também participaram do comercial da marca Bavária, pertencente à Cervejaria Antarctica. A propaganda está disponível em: . Acesso em: 04 jan. 2021. 81 Conferir: . Acesso em 27 abr. 2021. 82 Conferir: . Acesso em 27 abr. 2021.

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Para fecharmos a relação entre música e cerveja, é interessante ressaltar a figura do já citado sambista Zeca Pagodinho83 como representante desse universo de boêmia e cantor da música Boêmio Feliz (1989). O cantor foi personagem central na “guerra da cerveja84”, ocorrida no início do século XX pela forte concorrência por mercado e por ações de marketing e publicidade entre Brahma e Nova Schin (CONAR, 2004, on-line). Em 2003, o cantor e tradicional consumidor de Brahma, fechou contrato com a Nova Schin, lançando a campanha “experimenta”, em uma propaganda na qual atende o chamado de outros atores e cantores para experimentar a cerveja da Schincariol. A pedido da Ambev, a justiça ordenou que a campanha fosse retirada do ar em novembro do mesmo ano. Mesmo assim, a Schin ganhou 5% na fatia de mercado. Em março de 2004, a Ambev lançou uma campanha com o retorno de Zeca. Então, a Schin lançou slogans nacionalistas, como “Experimenta investir 100% de seu lucro no país de origem” e “Experimenta construir novas fábricas no Brasil, que gerem empregos para brasileiros, desenvolvimento para cidades brasileiras e produzam cerveja brasileira” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2004, on-line). Essas mensagens da Schin mostram aspectos econômicos e culturais dos territórios formados pela cerveja, assunto que será tratado no próximo capítulo e que apresenta proximidade com a noção de CCC. As menções sobre o investimento em fábricas brasileiras para desenvolver as cidades evidenciam um traço de formação de territórios vinculados à produção de cerveja e seu impacto na dinâmica socioespacial local. Enquanto a Ambev investia em sua expansão para América Latina, unindo-se, em 2004, à belga Interbrew e formando a maior cervejaria do mundo, de modo a criar territórios da cerveja fora do país, a Schincariol investia no Brasil e dimensionava aqui seus territórios. A presença do cantor no meio dessa disputa mostra que os aspectos culturais são veículos de comunicação e fixação desses territórios85.

83 O cantor teve como madrinha Beth Carvalho e, sendo muito querido por Arlindo Cruz, foi conduzido ao samba por um contexto social e musical já consolidado. Começou sua carreira no início da década de 1980, com forte ligação com regiões específicas do Rio de Janeiro, como Irajá e Xerém. A relação com a cerveja é sempre lembrada, desde a reunião entre sambista até o bar que abriu em 2018 “Bar do Zeca Pagodinho”, no shopping Vogue Square, na Barra da Tijuca (VILELLA, 2018, on-line). 84 A “guerra da cerveja” como ferrenha concorrência de venda e propaganda entre as cervejas já ocorreu no início da década de 1990 entre Brahma e Kaiser e será abordada na seção 6.3 desta tese. 85 A polêmica continua com a Schin lançando propaganda com sósia do cantor insinuando receber dinheiro para trocar de opinião. Após essa publicidade, o Tribunal de Justiça de SP fixou multa de R$ 100 mil caso a Schincariol use sósia do cantor em comercial e a Brahma fica sujeita a uma multa de R$ 500 mil se voltar a utilizar a imagem do cantor até setembro próximo. Em abril de 2004, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – CONAR, proibiu a Brahma de veicular a publicidade com Zeca Pagodinho e manteve a decisão em junho após recurso (CONAR, 2004, on-line). 126

Por fim, é importante mencionar que a cerveja está associada a diversas expressões culturais, hábitos e comportamentos, os quais podemos verificar na campanha da cervejaria Antarctica (Figura 32), escrita pelo jornalista Armando Nogueira (LAVINSKY, 2017, p. 102- 103).

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Figura 32 - Propaganda da Antarctica

Fonte: Revista Veja de 20 de outubro de 1993.

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Essa peça ufanista exibida pela propaganda demonstra como a cerveja se apresenta como elemento do cotidiano, expressando claramente a noção de CCC. O texto menciona expressões e frases como “paixão nacional”; “cerveja tem gosto de vida”; “Não existe bebida mais solidária. Cerveja é a própria comunhão. É confraria. Nasceu para enturmar. Além de festiva, é festeira [...] levantar o astral das pessoas”; “Cerveja casa com futebol. Como casa com samba. Roda de samba. O tamborim, o pandeiro, o violão, o cavaquinho. Nada funciona sem o barato da cerveja”, mostrando como a cerveja constrói uma matriz popular nacional no imaginário da população (LAVINSKY, 2017). Finalizamos este capítulo concluindo que movimento da boêmia abriu lugar para expressões culturais e a conexão desse universo com as bebidas alcoólicas atuou como lubrificantes culturais, inspirando e abastecendo músicos e artistas em suas composições. Dessa forma, a boêmia, o samba e a música popular brasileira auxiliaram a consolidação da cerveja como bebida predileta do povo brasileiro, moldando comportamentos e marcando o estilo de vida brasileiro.

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CAPÍTULO 4 - OS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: AS TEORIAS, A MATRIZ E AS APROXIMAÇÕES

Nos capítulos anteriores, analisamos a relação entre cerveja, cultura e espaço, visando compreender como essa bebida se expressa como elemento cultural em diferentes tempos e espaços. O entendimento da Cerveja como Cultura (CCC) está relacionado à noção de Territórios da Cerveja (TC). Se a cerveja é cultura, então ela pode criar territórios, processo esse que será explicado nos próximos capítulos. Uma das imagens e uma das epígrafes desta tese captam bem a ideia que envolve a cerveja como elemento social, podendo ser considerada um verdadeiro “lubrificante social”86, por promover maior interação entre as pessoas, que deixam transparecer na mesa de bar, em volta da cerveja, suas emoções e sensações. Essa interação social em torno da cerveja é o ponto de partida para uma análise que visa destacar os territórios da cerveja como uma expressão espacial das relações sociais e de poder associadas à bebida no que concerne a seus aspectos histórico, econômico, cultural e político. O aspecto econômico dos territórios da cerveja será definido a partir da produção de cerveja, localizando e analisando a indústria cervejeira no Brasil em paralelo com o cenário internacional. O aspecto cultural será verificado por meio do consumo, descrevendo-se as expressões culturais do consumidor e os movimentos de mudança nos padrões de consumo. Já o aspecto político será observado pelas relações de poder entre os agentes que governam essa atividade, ou seja, pela governança do setor cervejeiro nacional. O primeiro passo para sustentar a ideia de TC é o detalhamento do conceito território no campo da geografia, além de balizar quais aspectos dessa categoria de análise serão enfatizados e debater como a cerveja encontra canais de comunicação com essa teorização.

4.1 O debate sobre o conceito de território na geografia atual

Para debatermos o conceito de território, não será necessária uma revisão bibliográfica do início do debate sobre o tema na geografia. Partiremos de visões mais atuais que se utilizaram das discussões primeiras para formular suas noções de território. Os aspectos recentes do debate sobre território serão elencados à medida que contribuem para o entendimento da noção de TC.

86 Esse apelido surgiu em diversas pesquisas que demonstraram que o álcool torna as pessoas mais extrovertidas e sociáveis. Como a cerveja é a bebida alcoólica mais entornada pelos bares, botequins, pubs e afins espalhados por todo o planeta, pegou para si essa alcunha (VIOTTI, 2012). 130

Para compreendermos o conceito de território é necessário discutir sobre a noção de espaço. O espaço geográfico foi a grande categoria explorada pela geografia crítica no Brasil no final do século XX sob influência do pensamento de Marx. Nesse período, destacam-se importantes autores, como Manuel Correia de Andrade, Ruy Moreira, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Carlos Walter Porto Gonçalves, Antônio Carlos Robert Moraes, Armando Corrêa da Silva, Armen Mamigonian, Roberto Lobato Corrêa, entre outros (SAQUET; SILVA, 2008). Porém, quem mais contribuiu para essa renovação da geografia brasileira, mesmo que não tenha se filiado exclusivamente aos pressupostos marxistas, foi Milton Santos e é a partir dele que iniciaremos nosso debate sobre espaço para nos aprofundarmos, em seguida, na discussão sobre território. Não temos a pretensão de esgotar a análise das contribuições de Santos ou de esmiuçar todos os possíveis caminhos de interpretação sobre o espaço suscitados em sua vasta produção bibliográfica. Segundo o autor, o espaço é “formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 2006, p. 39). Os sistemas de objetos se expressam por seus conjuntos de unidade de funções e forças, de modo que aqueles que perdem força ou valor são substituídos ou ressignificados. A partir do reconhecimento dos sistemas de objetivos, enxergamos as relações entre os lugares que mostram os processos produtivos de mercadorias e símbolos. Já o sistema de ações é próprio do ser humano e resulta das necessidades materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais, morais e afetivas que conduzem a ação das pessoas, resultando na criação e uso dos objetos. Assim, os sistemas de ações e de objetos estão relacionados e são indissociáveis entre. Entre ação humana e os objetos existe um efeito boomerang, no qual a intencionalidade atua como um corredor entre os dois. Portanto, afetamos e somos afetados pelos objetos. A cada momento de evolução da técnica e da ciência, novos processos renovam as ações e os objetos adquirem novas funções que, por sua vez, alteram as formas-conteúdos geográficos. Essa intencionalidade entre a ação e objeto depende “da respectiva carga de ciência e de técnica presente no território” (SANTOS, 2006, p. 60), ou seja, a tecnificação e emprego da ciência no espaço também determina a relação entre ação e objeto. A observação de todo esse emaranhado está no cerne da interpretação geográfica dos fenômenos sociais. O espaço geográfico deve ser considerado, então, “como algo que participa igualmente da condição do social e do físico, um misto, um híbrido” (SANTOS, 2006, p. 56). A ideia de espaço híbrido foi trazida pelo autor por meio das reflexões de Latour sobre a crítica

131 de conceitos puros e a proposta de se construir uma epistemologia a partir dos híbridos, tratando de forma simultânea o mundo da matéria e o mundo do significado humano. O espaço geográfico87, observado por meio dessa óptica, assemelha-se ao conceito de território88 usado por evidenciar tanto o processo histórico quanto a base material e social das novas ações humanas. Tal ponto de vista permite uma consideração abrangente da totalidade das causas e dos efeitos do processo socioterritorial. O território usado, visto como uma totalidade, é um campo privilegiado para a análise na medida em que, de um lado, nos revela a estrutura global da sociedade e, de outro lado, a própria complexidade do seu uso (SANTOS, 2000). O território se forma a partir do espaço e é fruto da ação de atores sobre o espaço ao se apropriar dele de modo concreto ou abstrato. Portanto, o ator “territorializa” o espaço (RAFFESTIN, 1993). O que queremos extrair da noção de espaço híbrido para pensar o território é a sua capacidade de conter aspectos materiais e imateriais, de produção de elementos mercadológicos e simbólicos, tanto de ações como de objetos. Pensar o território a partir do espaço geográfico só foi possível devido a uma renovação teórico-metodológica centrada no conceito de território, sobretudo na década de 1970, movimento que contou a com contribuição de autores em diversas áreas, como Deleuze e Guattari, com debates profundos sobre desterritorialização e o movimento de constituição do território; Dematteis, com destaque para a processualidade histórica e para as territorialidades; Quaini, que reconheceu a unidade espaço-tempo em estudos territoriais; Raffestin, com a evidência da materialidade do território e da imaterialidade das sensações e representações; e Bagnasco, com a explicação das múltiplas dimensões e articulações territoriais (SAQUET, 2015). Santos (1998) também argumentou que vivemos em um momento de retorno ao território89, uma revisão devido ao seu caráter híbrido e forma impura, diferente da noção de

87 A ideia de território usado como sinônimo de espaço geográfico fica evidente no esforço de interpretação empírica do Brasil a partir do seu território, presente no livro O Brasil: território e sociedade no início do século XXI (2001), de Milton Santos e Maria Laura Silveira. 88 Para Milton Santos, o conceito de território é subjacente, composto por variáveis, como a produção, as firmas, as instituições, os fluxos, os fixos, relações de trabalho etc. Essas variáveis são interdependentes e constituem a configuração territorial (SANTOS, 1988) “formada pela constelação de recursos naturais, lagos, rios, planícies, montanhas, florestas e também de recursos criados: estradas de ferro e de rodagem, condutos de todas as coisas arranjada em sistema que forma a configuração territorial cuja realidade e extensão se confundem com o próprio território de um país”. (SAQUET, 2015, p. 91). 89 Esse texto é considerado por Moraes (2013) como estranho ao conjunto de obras de Milton Santos porque apresenta uma aproximação à concepção pós-moderna da transnacionalização do território, o que diverge da concepção desenvolvida por Santos em livros publicados na mesma época, como é o caso de Por uma economia da política da cidade e Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional, nos quais destaca a escala nacional ainda como dominante. Talvez Santos tenha adotado uma perspectiva na qual o

132 território de uma modernidade incompleta de conceitos puros. Atualmente, a interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território e o papel ativo do território é o lugar do retorno do território, do estado territorial à transnacionalização do território, do território (forma) ao território usado (sistema de objetos e ações). Nesse contexto, a globalização confere ao espaço uma nova construção e ao território uma nova funcionalidade, por meio de verticalidades (pontos distantes ligados por processos sociais) e horizontalidades (domínios da contiguidade territorial, lugares vizinhos). De tal modo, “mesmo nos lugares onde os vetores da mundialização são mais operantes e eficazes, o território habitado cria novas sinergias e acaba por impor, ao mundo, uma revanche” (SANTOS, 1998, p. 15). Essa relação dialética entre a técnica e a política estabelece no território, em suas diversas dimensões e escalas, uma arena de oposição entre o mercado – que singulariza – e a sociedade – que generaliza. A partir dessas diversas dimensões do território, recorremos a Rogério Haesbaert (2014) ao tratar de uma visão integradora do conceito, considerando seu caráter natural, político, econômico e cultural. Apesar de integradas, cada uma dessas características tem suas especificidades:

• Política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativas também a todas as relações espaço-poder institucionalizadas): a mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente – relacionado ao poder jurídico do Estado. • Cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. • Econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por exemplo. • Natural (muitas vezes naturalista) mais clássica e destaca as relações entre a sociedade e a natureza, especialmente no que se refere ao comportamento “natural” dos homens em relação ao seu ambiente físico. A discussão nessa esfera se dá entre o que é inato e o que é adquirido, entre o natural e o

materialismo histórico pode iluminar os problemas pós-modernistas, ainda que de maneira marginal. Wood (1999) apresenta uma importante aceitação, por parte dos marxistas, das preocupações pós-modernistas, como identidade, as relações de gênero, raciais e outras complexidades da experiência humana. Existe aqui uma compreensão que não só a luta de classes, mas outras lutas humanas são fundamentais para o entendimento da sociedade contemporânea, abrindo uma via de diálogo que se inaugura e apresenta novas formas de olhar e enfrentar as realidades presentes. 133

cultural na noção de territorialidade humana (HAESBAERT, 2014, p.40- 41).

Para Saquet (2015), essas características são dimensões sociais fundamentais para a compreensão e constituição do território na realidade, onde o conjunto Economia-Política- Cultura-Natureza (E-P-C-N) é visto vistos concomitantemente a ritmos e temporalidades, mudanças e permanências, relações multiescalares e superpostas, buscando superar a dicotomia entre materialismo e idealismo. Nesse sentido, é importante destacar que essa itemização das dimensões do território é apenas uma forma de distinguir cada ponto e não de separá-los, porque, se assim fosse, não estaríamos considerando o território como um todo (SOUZA, 2013a). Na mesma linha dessa perspectiva abrangente sobre o tema, Santos (2002, p. 7) afirma que “o território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do ser humano plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência”. A partir desse olhar amplo e tendo como pano de fundo a noção híbrida do espaço geográfico de Santos (2006), consideramos que “o território pode ser concebido a partir de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2014, p. 79). A perspectiva integradora do território nos permite abordar diferentes dimensões. Contudo, não podemos perder de vista o âmago do conceito de território que é o poder. Marcelo Lopes Souza (2013) menciona uma primeira aproximação para definição de território como espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. Já na visão de Raffestin (1993, p. 58), “o território é a cena do poder, dos trunfos do poder”. O poder marca as relações sociais que estão na base da criação do território; é o projeto da aplicação de trabalho no espaço sob a forma de energia, de caráter mais concreto, ou sob a forma de informação, de cunho mais abstrato (RAFFESTIN, 1993). O poder só pode ser exercido com referência a um território e por meio de um território, de modo que o que define o território é o poder em seus aspectos político, econômico e cultural. Segundo Souza (2013, p. 89), o território não deve ser tomado como substrato espacial material que serve de referência à territorialização; “o território são ‘campos de forças’ que só existem enquanto durarem as relações sociais das quais eles são projeções espacializadas”. Centrando no âmago do conceito de território, o autor ainda lança a pergunta: “Quem domina, governa ou influencia quem nesse espaço, e como?” (SOUZA, 2013, p. 87). Com isso,

134 a geografia busca entender a projeção espacial das relações de poder, os recortes e fronteiras móveis e mutáveis, o território e a expressão espacial do poder enquanto dimensão das relações sociais. A partir dessa indagação, nosso trabalho busca o caminho que descola a fonte de poder atrelado ao estado nacional, vertente amplamente debatida nas ciências sociais, e migra para outras fontes de poder, nesse caso econômicas e culturais, sem restringir o espaço a uma característica uniescalar e sempre considerando as especificidades geo-históricas (HAESBAERT, 2014). Nessa dinâmica, a globalização traz uma contradição em relação ao território, pois, por meio dos seus fluxos intensos, promove a fuga do território enquanto identidade, negando-o, ao mesmo tempo que os processos globais “implantam-se” no local e este ganha divisas com essas trocas (THERY, 2008). A visão mais econômica do território está fortemente relacionada à organização das empresas no espaço. Assim, os modos de distribuição e coordenação das empresas criam redes de poder que formam territórios. Correa (1996) afirma que a integração territorial da produção pelas empresas gera elementos para gestão do território. Já Pecqueur e Zimmermann (1994) asseveram que a proximidade, em seus diversos aspectos (geográfica [distância espacial], organizacional [complementaridade técnico-produtiva] e institucional [comportamentos coletivos para busca de soluções produtivas]), funda o território pela coordenação que dela resulta. Para além dessa visão econômica do território, Saquet (2014) traz a ideia de Rullani (1997), que vê o território como enraizamento (dimensão local) e conexão (dimensão global), recursos ambientais e infraestruturas, relações cotidianas, conhecimento, experiências e lugar de vida, onde a territorialização se opera fortemente por aspectos econômicos e culturais. Diante dessa ideia, o autor conclui que somente o aspecto econômico não é suficiente para compreender a complexidade do território e destaca a importância da conexão território-rede- lugar e “novas territorialidades, como produto e condição de cada relação espaço-tempo, des- continuidades que se efetuam no movimento histórico e relacional” (SAQUET, 2015, p. 110). Nesse mesmo sentido, é necessário aplicar o conceito de território em diferentes escalas e situações, transitar entre a “visão de sobrevoo”, um olhar de longe da sociedade e do espaço, e a visão dos “mundos da vida”, um olhar de perto. Esse processo requer mergulhar nas escalas geográficas global, nacional, regional, local, até chegar ao lugar do cotidiano em seus “nanoterritórios”, que acolhem ruas, prisões, prédios ocupados por sem-teto, arquibancadas de futebol (SOUZA, 2013) ou até mesmo eventos, festivais e concursos de cerveja, além, é claro,

135 o “buteco” de esquina. Além do movimento escalar do território e da vida cotidiana, verificar como se dão essas relações é essencial para a compreensão do conceito de TC.

Relações de poder que estão nas famílias, nas universidades, no Estado em suas diferentes e complementares instâncias, nas fábricas, na igreja... enfim, em nossa vida cotidiana. Relações que são vividas, sentidas e, às vezes, percebidas e compreendidas diferentemente. Assim são os territórios e as territorialidades: vividos, percebidos e compreendidos de formas distintas; são substantivados por relações, homogeneidades e heterogeneidades, integração e conflito, localização e movimento, identidades, línguas, religiões, mercadorias, instituições, natureza exterior ao homem; por diversidade e unidade; (i) materialidade (SAQUET, 2015, p. 25).

Percorrendo o caminho do Estado ao indivíduo, passando pelas empresas, os diferentes atores da vida cotidiana “produzem” o território (RAFFESTIN, 1993). Nessa esfera da vida cotidiana, a questão da identidade é uma noção-chave para compressão de territórios formados a partir de sua dimensão cultural. Saquet (2015) discorre sobre a identidade na sociedade no campo simbólico, histórico e cultural, inerente à vida de um certo grupo social em um determinado lugar. Magnaghi (2010, apud SAQUET, 2015) define identidade como um código genético local, material e cognitivo, um produto social da territorialização e que se constitui como patrimônio territorial de cada lugar, econômica, política, cultural e ambientalmente. Assim, a identidade é formada por edificações (cidades, monumentos etc.), línguas, mitos, ritos, religião. Em outras palavras, por meio de atos territorializantes, os atores sociais e históricos sedimentam-se em determinado lugar, que evolui social e naturalmente. Para Raffestin (2003, apud SAQUET, 2015, p. 149-150), a identidade não é um estado e sim um processo de “tornar- se similar no interior de uma área territorial com as mesmas imagens, ídolos e normas [...] um processo dinâmico de identificação que se faça reconhecer ao outro”. Essa abordagem múltipla reconhece a interface entre os territórios que, ao mesmo tempo, estão sobrepostos em uma zona onde atuam as diferentes dimensões E-P-C-N. Diante dessa interrelação, surge a ideia de identidade territorial como local de coerência interna dos processos históricos sobre memórias e atitudes, local onde existe enraizamento, relações coletivas e transescalares. Segundo Damatteis e Governa (2005, apud SAQUET, 2015), a identidade é territorial e, além de pertencimento ao local, refere-se ao resultado do processo de territorialização composto de continuidade e estabilidade, unidade e diferenciação. Do mesmo modo, o território se constitui como “produto e condição social, influenciando na constituição da identidade local em virtude de ações coletivas; tem um conteúdo dinâmico e ativo, com componentes objetivos e subjetivos, nos níveis local e extra local” (SAQUET, 2015, p. 152). 136

SANTOS (2002, p. 8) também descreve relação do território com a identidade: o “território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”. De um lado, o território é cortado por relações horizontais de vizinhança, cooperação e solidariedade e, de outro lado, por relações verticais de tensão, dominação e hierarquias. Esse caráter mais simbólico do território, segundo Haesbaert (2014), está se tornando cada vez mais presente, em detrimento de sua dimensão material. Enquanto a globalização torna o espaço mais fluido, a cultura e a identidade recontextualizam os indivíduos em defesa de suas especificidades históricas, sociais e geográficas. Portanto, o território, enquanto mediação espacial do poder, resulta da interação diferenciada entre as dimensões mais política, até a simbólica e econômica, buscando superar a dicotomia material/ideal (HAESBAERT, 2014). O autor ainda afirma que “territorializar-se” significa criar mediações espaciais que proporcionem efetivo poder, de dominação e apropriação, (i)material, multiescalar e multidimensional sobre a reprodução dos grupos sociais. Esse processo pode ser concebido como de domínio (político-econômico) e/ou de apropriação (simbólico-cultural) do espaço pelos grupos humanos. Cada indivíduo necessita “territorializar-se”. Contudo, não como um determinante da vida humana, mas em um sentido múltiplo e relacional, em meio à diversidade e na dinâmica temporal do mundo (HAESBAERT, 2014). A territorialização ou desterritorialização envolve o exercício de relações de poder e a projeção dessas relações no espaço (SOUZA, 2013). Nesse ponto, podemos resgatar a denominação de território cíclicos que o autor traz, se referindo aos territórios móveis de Sack. A ciclicidade do território apresenta-se por seu caráter flexível em relação a seus diferentes usos (de família a prostitutas na mesma praça em diferentes períodos) e tempo de duração (de horas e dias até anos e séculos). Na sociedade global em que vivemos, existe uma ideia de desterritorialização avassaladora que ressignifica tudo o que encontra pela frente (IANNI, 2002). Segundo uma visão da psicanálise apropriada pela geografia, Deleuze e Guatari (1985) criticam o capitalismo como como máquina de produção de subjetividade, sistema baseado na exploração, dominação e colonização do desejo. Nesse processo, para extrair a mais valia, ocorre um grande movimento de descodificação/desterritorialização dos fluxos que, em seguida, são territorializados de forma violenta e fictícia. Assim, quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, descodificando os fluxos, mais seus aparatos burocráticos e policiais voltam a territorializar, absorvendo uma parte crescente da mais valia.

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No campo da geografia, o processo de territorialização - desterritorialização - reterritorialização (T-D-R)90 pode ser considerado metaforicamente como uma grande redoma, na qual atuam “campos de interioridade” e “linhas de fuga”, ou seja, um movimento mais centrípeto e outro mais centrífugo. Por se tratar de movimentos indissociáveis, não há desterritorialização sem reteritorrialização (HAESBAERT, 2014). A partir da noção de desteritorrialização como mito (HAESBAERT, 2014), podemos elencar quatro grandes ilusões que foram criadas a partir desse tema: a) Pós-modernidade do processo: a desterritorialização não é pós-moderna e ocorre há séculos; b) As pessoas estão desterritorializadas: não há desterritorialização sem processo imbricado de (re)territorialização; c) Naturalização do processo: a desterritorialização não é um processo natural, mas geralmente é um discurso para livre atuação do mercado; d) A globalização elimina os territórios: a sociedade global é componente indissociável da existência do território.

Os processos de desterritorialização são frequentemente associados à sociedade em rede. Porém, a rede não destituiu o território, mas reorganizou os espaços, de modo que a rede é parte do território. Nesse contexto, podemos considerar, de um lado, o território-rede como continuum entre território-zona mais tradicional e a rede em sentido restrito e, de outro lado, a rede pode, na pós-modernidade, se tornar um próprio território, sendo uma rede-território (HAESBAERT, 2014). Para Santos (2006), a rede possui sua realidade material, dos fixos e fluxos que se inscrevem no território com o seu dado social e político, das pessoas, mensagens, valores que a frequentam. Nesse conjunto, passado e presente podem ser observados por meio das redes a partir dois enfoques. O primeiro enfoque é o genético, segundo o qual as redes são formadas por troços, que são substituídos ao longo do tempo, expressando a evolução do lugar, enquanto o segundo enfoque olha para os usos e as (quali)quantidades técnicas em relação à vida social do cotidiana, observando a idade dos objetos, ou seja, a idade “mundial” da respectiva técnica e sua longevidade ou a idade “local” do respectivo objeto. Esses dois enfoques são indivisíveis e expressam duas faces (diacronia e sincronia) de um mesmo fenómeno geográfico.

90 Os processos de T-D-R da cerveja foram foco de minha dissertação de mestrado (ver MARCUSSO, 2015).

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De acordo com essa abordagem teórica de rede91, SANTOS (2006) estabelece três momentos. Em um primeiro momento, a natureza impõe contingências significantes. Trata-se da passagem do meio natural para o meio técnico, com um tempo lento e poucas trocas. Em um segundo momento, de aprofundamento do meio técnico, a modernidade é forjada através das redes físicas e o aumento da produção e consumo provocam uma “aceleração” do tempo. Por fim, no terceiro momento, da pós-modernidade e do meio técnico científico informacional, as redes fazem parte de um mercado mundial de circulação frenética de pessoas, informações e capital em um verdadeiro espaço da conectividade. “Tais redes são os mais eficazes transmissores do processo de globalização a que assistimos” (SANTOS, 2006, p. 179). Diante da complexidade do conceito de território, Haesbaert (2014) propõe a noção de multiterritorialidade para superar a visão de território unitário, destacando seu caráter multidimensional e multiescalar e estabelecendo um continuum entre o concreto e o simbólico, no qual grupos constroem (multi)territórios integrados em um conjunto de experiências culturais, econômicas e políticas em relação ao espaço. Essa multiterritorialidade se dá enquanto ação concreta (mobilidade concreta) e processo imaterial (virtual/ciberespaço) desde o nível do indivíduo até o nível de grupos/classes/instituições. Nessa mesma linha de pensamento, diante das diversas formas que o território pode apresentar, Saquet (2015) propõe uma abordagem territorial que trabalhe metodologicamente a multiescalaridade e multitemporalidade do território, buscando apreender os traços da vida social, como a genealogia das famílias, a busca em jornais, a análise dos discursos, restos arqueológicos, arquivos históricos etc. Além disso, o autor destaca a observação da distribuição das atividades (i)materiais, apropriação e dominação nas dimensões E-P-C-N e na T-D-R, as relações de poder, comunicação, identidade, entre outros fatores e processos. Nesse mundo de transformações, ao território é imposto um papel ativo (SANTOS, 1998).

o grande dilema deste novo século será o da desigualdade entre as múltiplas velocidades, ritmos e níveis de des-re-territorialização, especialmente aquela entre a minoria que tem pleno acesso e usufrui dos territórios-rede capitalistas globais que asseguram sua multiterritorialidade, e a massa ou os “aglomerados” crescentes de pessoas que vivem na mais precária territorialização ou, em outras palavras, mais incisivas, na mais violenta exclusão e/ou reclusão socioespacial (HAESBAERT, 2014, p. 372).

91 Nessa análise sobre a rede e sobre o tempo, Santos (2006) lembra fala de Musso (1994, p. 256): “as redes depositam uma camada 'geológica' suplementar às 'terras-história' acrescentando uma topologia à 'topografia', dando nascimento a um espaço 'contemporâneo do tempo real”. Essas ideias serão retomadas no debate sobre a definição dos Territórios da Cerveja. 139

A abordagem territorial é central para a construção de uma sociedade mais justa, que possa construir sua autonomia e se autogovernar, produzindo um novo território e novas territorialidades [...] um novo território para uma nova sociedade: para se ter um novo território precisamos de outra sociedade e vice- versa, valorizando os valores locais e populares, as relações de ajuda mútua, de confiança, a natureza exterior ao homem etc.; é fundamental se definir novas práticas sociais e territoriais, (i) materiais, que valorizem o patrimônio territorial de cada lugar (SAQUET, 2015, p. 176).

Essas duas passagens mostram como o território assume papel fundamental nas transformações da sociedade atual. Diante desse processo, Gottmann (2012) conclui que a evolução do conceito de território versa sobre o povo e sua organização como corpo político. Dessa maneira, o território (componentes materiais e psicológicos) se torna “um dispositivo psicossomático necessário para preservar a liberdade e a diversidade de comunidades separadas em um espaço acessível independente” (GOTTMANN, 2012, p. 543). Contudo, o debate sobre a noção de território não estaria completo se não abordássemos as questões referentes aos processos de governança, que são nascedouros de territórios, ou seja, da governança territorial no âmbito da matriz teórica das noções de território, governança e desenvolvimento. A seguir, essa discussão fecha o entendimento sobre o território e então podemos definir a noção de TC.

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4.2 O encadeamento teórico da governança, território e desenvolvimento

Nesta seção, abordaremos a explanação articulada dos conceitos de governança e desenvolvimento, a partir do território, já que é por meio desse processo de espacialização que se unem governança e desenvolvimento em uma linha teórica complementar. O conceito de governança tem ganhado cada vez mais notoriedade, mas o termo remonta da década de 1930, com o debate focado nas empresas. A partir da década de 1970, o termo aparece mais ligado aos aspectos da governabilidade. Por fim, na década de 1980, já nos documentos do Banco Mundial, a discussão passou a versar sobre a eficiência da gestão econômica de um país, também chamada de “boa governança” pelo Fundo Monetário Internacional - FMI. Atualmente, a palavra vem sendo aplicada em relação a empresas, instituições, organismos governamentais ou não governamentais e em diferentes escalas e interações dos setores da sociedade (PIRES et al, 2011a). Milani e Solinís (2002, p. 273) definem o conceito como “um processo complexo de tomada de decisão que antecipa e ultrapassa o governo”. Dessa forma, a governança não se limita à gestão estatal e pode ser expressa “através das formas de controle exercidas por diferentes agentes públicos e/ou privados, atores sociais não estatais que influenciam na coordenação social, política e econômica de importantes atividades” (BEZERRA, 2017, p. 110). Trata-se, portanto, de um conceito intermediário entre Estado e mercado e entre o global e o local, “designando as diversas formas de regulação e controle territorial implementados em diferentes tipos de redes e acordos entre atores sociais, que juntos definem mecanismos formais ou tácitos para resolver problemas inéditos” (PIRES et al., 2011b, p. 2). Assim, a governança encontra-se em um deslizamento escalar (BENKO, 2001), no qual ocorre um reforço das escalas global-supranacional e local-regional por meio da recomposição dos espaços clássicos de evolução dos sistemas econômicos, sociais e políticos do século XX, geralmente associados ao âmbito regulatório dos Estados-nação. Nesse contexto, a governança surge como processo de construção organizacional e institucional a partir de consensos formais entre os atores geograficamente próximos, que buscam diferentes modos de coordenação para resolução dos problemas enfrentados pela nova produção dos territórios (PECQUEUR, 2000). O território é, portanto, nascedouro e local de propagação da governança, o que está relacionado à noção de governança territorial. Esse conceito parte da obtenção da coerência, sempre parcial e provisória, de compromissos entre atores, que se articulam de duas maneiras: entre os atores econômicos e atores institucionais sociais e políticos; e entre as dimensões local

141 e global, por meio das mediações de atores ancorados no território e atrelados à lógica econômica e institucional global (GILLY; PECQUEUR, 1997). A Tabela 8 especifica os elementos que compõem a governança segundo a formação dos blocos socioterritoriais, ou seja, o conjunto heterogêneo de atores territoriais que, em determinado momento histórico, assume posição hegemônica, formando redes de poder socioterritorial. Os acordos resultantes dessa prática de gestão territorial geram pactos socioterritoriais (DALLABRIDA, 2007).

Tabela 8 - Elementos políticos da governança territorial

Elementos da Governança CARACTERÍSTICAS Territorial Refere-se ao conjunto de atores localizados histórica e territorialmente que, pela 1. Bloco liderança que exercem localmente, assumem a tarefa de promover a definição socioterritorial dos novos rumos do desenvolvimento do território, através de processo de concertação público-privada. Refere-se a cada um dos segmentos da sociedade organizada territorialmente, 2. Redes de representados pelas suas lideranças, constituindo na principal estrutura de poder poder que, em cada momento da história, assume posição hegemônica e direciona socioterritorial política e ideologicamente o processo de desenvolvimento. Processo em que representantes das diferentes redes de poder socioterritorial, 3. Concertação através de procedimentos voluntários de conciliação e mediação, assumem a social prática da gestão territorial de forma descentralizada. Refere-se aos acordos ou ajustes decorrentes da concertação social, que ocorrem 4. Pactos entre os diferentes representantes de uma sociedade organizada territorialmente, socioterritoriais relacionados ao seu projeto de desenvolvimento futuro. Fonte: DALLABRIDA; BECKER, 2003; DALLABRIDA, 2011.

É importante destacar que o conjunto das relações entres os atores, instituições e sociedade historicamente reconhecida definem a dinâmica territorial e a construção da governança. A partir desse entendimento, podemos falar de uma governança do território definida como a estrutura composta por diferentes atores e instituições que estabelecem regras e rotinas que determinam sua especificidade local em relação ao sistema produtivo nacional. A dinâmica da regulação do território deve analisar as estratégicas dos atores, a capacidade local de adaptação do território aos processos de aprendizagem e às lógicas externas dos ramos de atividade (GILLY; PECQUEUR, 1997). A governança se torna territorial quando se reconhece que o território é o recorte espacial de poder que permite que empresas, estados e sociedade civil entrem em contato, manifestando diferentes formas de conflitos e de cooperação, direcionando, portanto, o processo de desenvolvimento territorial. Assim a “governança territorial, enquanto conceito, 142 instrumento e processo de ação, poderia ser conhecida como novo ‘piloto’ do desenvolvimento econômico e social descentralizado” (PIRES et al., 2011a, p. 26-7). Governança territorial também pode ser entendida, também, como:

uma instância institucional de exercício de poder de forma simétrica no nível territorial. A sua prática pode incidir sobre três tipos de processos: (1) a definição de uma estratégia de desenvolvimento e a implantação das condições necessárias para sua gestão, (2) a construção de consensos mínimos, através da instauração de diferentes formas de concertação social como exercício da ação coletiva e, por fim, (3) a construção de uma visão prospectiva de futuro (DALLABRIDA, 2011, p. 18).

Estabelecemos a primeira aproximação entre o conceito de governança e desenvolvimento, através de um prisma segundo o qual as articulações visam a estruturação de ações orientadas para o desenvolvimento. Outro ponto que une governança e desenvolvimento consiste na intermediação do conceito de território que, como vimos, parte essencialmente das diferentes relações de poder (SOUZA, 2013; RAFFESTIN, 1993). Nesse processo, agentes privados, estatais e sociedade civil se relacionam para pensar em estratégias de inovação para o desenvolvimento econômico e espacial, podendo estar organizados a partir de diferentes instâncias de poder. Cada dinâmica produz formas de organização espacial que se modificam de acordo com os níveis de articulação e a maturidade dos projetos e que, nesse movimento, acarretam diferentes formas de territorialização. As estruturas de governança atuam como alavancas da competitividade e do desenvolvimento territorial das regiões e aglomerados produtivos, através de seus recursos e ativos territorializados. Antes de avançarmos no entendimento da relação entre os conceitos de governança e desenvolvimento, é importante destacar que nem todas as governanças são iguais, uma vez que há diferentes formas de organização dos atores a partir do direcionamento do desenvolvimento de um território. O território é guiado pela constituição de um bloco de poder firmado a partir de pactos em comum por meio da concertação social e das redes de poder que cerca o contexto socioterritorial (DALLABRIDA; BECKER, 2003). A partir das diferentes formas de se estruturar a governança territorial são tipificadas diferentes modelos (Tabela 9), conforme a maior ou menor cooperação dos agentes territorializados e suas origens e finalidades. Assim, podemos verificar o papel dos agentes e instituições e sua organização, bem como do Estado em suas três esferas (federal, estadual e municipal) para interpretar a sua importância na construção da governança territorial.

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Tabela 9 - Tipos de governança territorial

Tipo de Características Governança Refere-se a organizações privadas dominantes, que impulsionam e pilotam Governança dispositivos de coordenação de recursos com objetivo de apropriação privada do Privada território. Nesse caso, a grande empresa (um grande grupo) aparece como o motor do sistema que estrutura o espaço produtivo local e regional. O ator-chave é uma organização formal que agrupa operadores privados e Governança impulsiona a coordenação de recursos e estratégias. Encontram-se, nesse caso, os Privada- sindicatos patronais e empresariais que agrupam operadores privados, Coletiva estruturando o espaço produtivo local e regional. O Estado e as instituições públicas impulsionam a coordenação de recursos e Governança estratégias territoriais com o setor privado, através dos órgãos públicos, autarquias Estatal-Privada e serviços coletivos, demandados por atores públicos ou privados do território. As organizações privadas se valem de fóruns e locais privilegiados de debate com Governança o Estado para propor e guiar os processos de articulação das redes de poder com Privada-Estatal a finalidade de organizar e desenvolver seus setores e territórios. Refere-se a instituições públicas, organizações privadas e da sociedade civil, que Governança juntas impulsionam a coordenação compartilhada de recursos e estratégias Pública- territoriais, através de Câmaras, Conselhos, Consórcios, Comitês, Agências ou Tripartite Fóruns voltados à gestão das políticas públicas. São situações mistas e raras, de autonomia relativa e sem domínio unilateral - a priori ou ex-ante. Fonte: Elaboração própria a partir de COLLETIS; GILLY et al., 1999; FUINI, 2010; MARCUSSO, 2018.

A tipologia de governança define as lideranças que tomam frente na organização territorial, os atores que governam o território e qual o ator preponderante iniciou a articulação entre os agentes. Esse tipo de formulação possibilita a classificação dos modelos de governança presentes na realidade. No Brasil, o início das articulações dos atores locais territorializados ocorre um no final da década de 1980 em um momento de reposicionamento do Estado perante a sociedade em termos políticos, econômicos e sociais. Na política, o país viveu o movimento de redemocratização e ocorreram diversas ações para construir representatividades de agentes sociais – até então marginalizados pelo regime militar –, mediante a promulgação de uma nova constituição federal em 1988. No âmbito econômico, o modelo de intervenção estatal na economia levantado desde o governo Getúlio Vargas, passou a ceder lugar para as diretrizes neoliberais de redução e desregulamentação do Estado e abertura econômico-financeira, sobretudo nos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Já o âmbito social, tendo a constituição como base, vislumbrou muitos entraves e conflitos, além de maior participação e organização social, principalmente por meio dos conselhos nacionais, organizações não governamentais (ONGs), fóruns sociais etc.

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A primeira experiência de governança territorial no país, já na década de 1990, foi representada pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES) no Rio Grande do Sul e, posteriormente, pelas Câmaras Setoriais, os Arranjos Produtivos Locais, os Circuitos Turísticos Intermunicipais, os Consórcios Intermunicipais e os Comitês de Bacias Hidrográficas (PIRES et al., 2011a). Aprofundando ainda mais a análise dos modelos de governança, podemos elencamos os princípios da governança territorial para comparar o grau de compromisso dos atores com a lógica coletiva da governança territorial, demonstrando a maturidade de adesão às estruturas da governança territorial (Tabela 10).

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Tabela 10 - Princípios básicos da governança territorial: fundamentos para uma governança democrática e triparte Princípios.Básicos Características 1. Foco Clareza na definição dos objetivos da estrutura institucional, facilitando a atuação dos gestores e participantes, e o ponto para onde convergem as ações relacionadas com as políticas públicas de âmbito local/regional, estadual e nacional. 2. Mecanismos Dispositivos que buscam divulgar e operacionalizar os princípios da governança territorial (reuniões, grupos de trabalho, audiências, mesas de negociação etc.), direcionadas para atingir as expectativas dos agentes. 3. Transparência Qualidade das relações sociais entre os atores, permitindo evidência nas ações direcionadas aos objetivos, clareza na definição das funções e responsabilidades dos atores, além do compromisso dos gestores e lideranças com a publicação e acesso púbico às informações e dados. 4. Participação Qualidade e equilíbrio da composição da representação social e política, permitindo o ato ou efeito de tomar parte nos processos decisórios, respeitando-se as condições de igualdade/desigualdade dos atores, organizações e instituições. 5. Representatividade Qualidade democrática da participação social e política dos atores, garantindo aos representantes um discurso coletivo que permite saber quem participa, como se participa e as consequências da participação. 6. Accountability Qualidade da responsabilidade e obrigação de geração de informações e dados, de prestação de contas, de interação de argumentos e de justificar ações que deixaram de ser empreendidas. 7. Coerência Qualidade das ações e da integração dos agentes com o foco, estado ou atitude de relação harmônica entre situações, acontecimentos ou ideias, capazes de fortalecer a prática de gestão territorial descentralizada para promoção de acordos e ajustes relacionados ao projeto de desenvolvimento. 8. Confiança Efetividade e consenso das ações, segurança ou crédito depositado nas lideranças e gestores, que inspiram a cooperação e as boas práticas da gestão territorial descentralizada, para promoção de acordos e ajustes relacionados ao projeto de desenvolvimento da governança. 9. Subsidiaridade Recursos da estrutura para auxílios, agentes ou elementos que reforçam ou complementam outro de maior importância, ou para este convergem. 10. Autonomia Faculdade relativa da estrutura de se reger por si mesma em relação ao Estado e as políticas públicas. Fonte: PIRES et al., 2017.

A partir da visão dos princípios que norteiam a noção de governança, é possível considerar que esta é um recurso específico do território que se articula em prol de seu desenvolvimento (BENKO; PECQUEUR, 2001). Conforme o nível de compartilhamento das decisões em uma estrutura de governança territorial, maior o nível de satisfação dos integrantes da governança diante da contemplação de seus objetivos. Dessa maneira, a governança aparece como abordagem teórica justamente quando se constroem modalidades diferentes de administração político-regional/local com consensos e redes de poder entre empresas, poder público e entidades civis (PIRES et al., 2011a).

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O exercício da governança territorial aconteceria através da atuação dos diferentes atores, instituições, Estado e as organizações da sociedade civil, em redes de poder socioterritoriais. Essas redes são representações de cada liderança, seu momento histórico e seu direcionamento no processo de desenvolvimento (DALLABRIDA, 2007). Dentro dessas novas formas de organização, os territórios se transformam no “fio condutor” das estratégias de governança e de desenvolvimento territorial (VEIGA, 2002; DALLABRIDA; BECKER, 2003; ABRAMOVAY et al., 2010). Dessa maneira, os territórios se tornam “fonte de desenvolvimento” (AYDALOT, 1986), de modo que desenvolvimento e governança estão atrelados pela noção de território. As estratégias competitivas da globalização têm o território como ator principal do desenvolvimento e as políticas, as organizações e a governança são recursos a um só tempo disponível ou a ser criado. Nesse contexto de competição dos territórios para alcançar o desenvolvimento, só podemos compreender a governança se considerarmos os conceitos associados a ela. Considerando um universo de conjuntos teóricos que demonstram a configuração e organização das relações sociais entre um conjunto de atores que definem estratégias políticas que direcionam o desenvolvimento territorial (PIRES et al., 2011b), destacaremos dois conceitos associados à governança: proximidade e ativos e recursos do território. O primeiro conceito considera a existência de um território por meio da proximidade geográfica (relativa à distância espacial), da proximidade organizacional (vinculada à complementaridade técnico-produtiva) e da proximidade institucional (referente aos comportamentos coletivos para busca de soluções produtivas) (RALLET, 2002). O entrelaçamento entre os componentes da proximidade é capaz de constituir territórios.

para que haja um territorio es necesario que exista, al mismo tiempo (aunque por cierto, de maneira parcial), proximidad geográfica; proximidad organizacional (vinculada a complementaridad técnico – productivas) [RALLET, 1991], proximidad institucional (vinculada a comportamientos cógnitos coletivos de úsqueda de soluciones a problemas productivos (GILLY; PECQUEUR, 1997, p. 118).

esta conjunção [entre as proximidades] é susceptível de fundar, pela coordenação que dela resulta, um processo de reforço que lhe assegura a durabilidade (trata-se então de uma coordenação durável e não efêmera). Dessa conjunção nasce o território (PECQUEUR; ZIMMERMANN, 1994, p. 98).

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A partir desses entendimentos, podemos compreender que além de o território ser o berço da governança, esta também pode criar novos territórios a partir das noções de proximidade. Como enfatizado nas citações acima, a característica da proximidade geográfica é relativa e parcial, uma vez que estamos tratando de configuração da governança por entes territoriais que não necessariamente estariam próximos geograficamente, como veremos no caso da Câmara Setorial da Cerveja. Já o conceito de ativos e recursos está inserido no contexto de competição entre os territórios. Existem regiões “ganhadoras”, que são aquelas que conseguem territorializar fenômenos como elementos determinantes da competitividade dos sistemas territoriais de produção, enquanto outras regiões acabam perdendo (BENKO; LIPIETZ, 1994). Então, o desenvolvimento de baixo para cima é uma estratégia baseada na flexibilidade e promoção dos recursos naturais e sociais do próprio território, visando o progresso da própria região, da comunidade e da sociedade que nela vive (SANTOS, 1998). Os recursos naturais e sociais do território, de acordo com Santos (1996), correspondem ao que Benko e Pecqueur (2001) chamam de recursos e ativos territoriais, cujo contexto é o da concorrência em que se lançam os territórios para construir ou reforçar vantagens comparativas. Essa abordagem busca reinterpretar a natureza da empresa, aquela “de lugar de combinação ótima de fatores de produção genéricos, se tornaria um lugar de combinação de competências e de aprendizagem de novos conhecimentos a partir de fatores específicos” (PECQUER; ZIMMERMANN, 1994, p. 56). Os territórios concorrem entre si e, para que um desses espaços saia vitorioso, são necessários ativos e recursos, genéricos e específicos. Ativos são os fatores em “atividade”, enquanto os recursos se referem aos fatores que podem ser revelados, explorados ou organizados. Diferentemente dos ativos, os recursos constituem uma reserva ou um potencial latente. A característica de genérico define-se pelo fato que seu valor ou potencial, sendo independente de sua participação em determinado processo produtivo (BENKO; PECQUEUR, 2001). Os ativos e recursos também podem ser genéricos devido à sua condição de transferência, já que possuem um valor de troca. Já os ativos e recursos específicos são aqueles que têm no valor de uso seu principal aspecto (Tabela 11).

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Tabela 11 - Tipologia dos fatores de concorrência espacial

Genéricos Específicos Fatores de localização virtuais e Fatores de localização potenciais não incomensuráveis, totalmente intransferíveis, utilizados, suscetíveis de serem nos quais o valor que os criou depende da ativados segundo um cálculo de Recursos organização e das estratégias para resolver rentabilidade a ser introduzido no problemas inéditos, ancoradas no território. mercado. Coordenação fora do mercado, implicando

instituições, normas, regras, convenções. Fatores de localização existentes em Fatores existentes comparáveis, parcialmente atividade, totalmente transferíveis, transferíveis, onde o valor está ligado a um uso discriminados pelos preços e custos particular, discriminado pelos custos Ativos de transportes no mercado. irreparáveis de transferência e de transação. Coordenação no mercado, Coordenação de externalidade em situação de implicando a alocação ótima dos quase mercado (custo de irreversibilidade ou recursos (cálculo, otimização). de reatribuição). Fonte: BENKO; PECQUEUR, 2001, p. 44.

Os ativos e recursos, sobretudo os específicos, compõem o conjunto de ações necessárias para a ativação da governança e desenvolvimento territoriais. Dessa forma, é preciso que os atores conheçam o território a ponto de, por meio da construção dos blocos de poder e pactos socioterritoriais, colocar em funcionamento ou construir os ativos e recursos da localidade, a fim de promover o desenvolvimento do território. Assim, o desenvolvimento territorial é o resultado de uma ação coletiva intencional de caráter local, um modo de regulação territorial; portanto, uma ação associada à uma cultura e plano de instituições locais, tendo em vista arranjos de regulação das práticas sociais (PIRES; MULLER; VERDI, 2006). No encadeamento dos conceitos de território, governança e desenvolvimento, podemos considerar que, para a promoção do desenvolvimento do território, os aspectos de governança são um recurso específico. Como pudemos verificar nesta seção território, governança e desenvolvimento estão interligados pelas relações de poder criadas pelos acordos e compromissos firmados pelos atores territorializados social, cultural e economicamente. Então, como o objetivo final é o desenvolvimento territorial, este depende cada vez mais da organização social e da criação de espaços de diálogos e negociação entre os diferentes atores sociais em prol de uma meta comum, para garantir um desenvolvimento econômico territorialmente equilibrado, socialmente justo e ambientalmente sustentável (PIRES, 2016). Esse encadeamento teórico entre território, governança e desenvolvimento é a base para entendermos as construções de governanças a partir da cerveja. Entretanto, é válido ressaltar que a governança também é operada por normas que definem as regras do jogo e que podem ser mudadas, como veremos nas próximas seções. 149

4.3 Em busca da definição de Territórios da Cerveja

Inicialmente, resgataremos os principais pontos do debate sobre o território para chegar a uma primeira aproximação da definição da noção de TC e, a partir dela, analisar a realidade através da matriz metodológica que constitui como uma segunda aproximação, que também será base dessa abordagem. A partir da perspectiva híbrida do espaço território (SANTOS, 1998), buscamos buscando captar seus aspectos materiais e imateriais. O território, então, será visto como uma totalidade (SANTOS, 2000), que revela a estrutura global da sociedade e a complexidade local do seu uso, sendo considerado como território usado (SANTOS, 2006), sinônimo de espaço geográfico. Deixando pra trás a dualidade material e simbólica do território, passamos a observá-lo de forma multiescalar (internacional, nacional, regional e local) e multidimensional (econômica, política, cultural e natural) (SAQUET, 2015), atentos para as múltiplas relações de poder entre o ser humano e o espaço, nas quais o ator “territorializa” o espaço (RAFFESTIN, 1993), focando nas fontes de poder não somente advindas do Estado, mas incorporando o poder econômico e cultural, em uma visão integradora (HAESBAERT, 2014). Dessa forma, iremos segmentar primeiro para depois unir os aspectos econômicos, culturais e políticos do território, nas seções do Capítulo 6 (A caracterização dos territórios da cerveja). Os TC têm em sua origem a essência do conceito de território como poder, ou seja, o espaço delimitado e definido a partir das relações de poder (SOUZA, 2013). O poder pode ser expresso no espaço através de dominação, sendo vinculado ao aspecto político-econômico (de transformações técnicas que “brutalizam” a paisagem) ou por meio de apropriação, relacionando-se mais a questões culturais e simbólicas (que “desenham” a paisagem como uma obra de arte) (HAESBAERT, 2014). Os territórios da cerveja formam-se através de: a) relações sociais de poder da vida cotidiana nos aspectos econômicos (por meio das cervejarias) e sua materialidade, por se tratar de uma atividade econômica e de produção de um produto/mercadoria; b) aspectos culturais da cerveja, mais simbólicos em relação a indivíduos e grupos, por se tratar de uma bebida e; c) aspectos políticos, das relações de poder dos representantes do setor, que traçam estratégias políticas para governar sobre o território. A partir do processo de transição do regime de acumulação fordista para a especialização flexível (LIPIETZ, 1997; LIPIETZ; LEBORGNE, 1988), as empresas

150 estabelecem novas relações de organização entre si (aglomerados tecnológicos, artesanais ou financeiros) e de relações territoriais (divisão inter-regional do trabalho, mobilidade e proximidade geográfica e colaboração[identidade]/competição[inovação], além da especificidade do local) (SCHIMTZ, 1997; BENKO; LIPIETZ, 1997). Essa abordagem será utilizada para fazer a contraposição da cerveja de massa em relação à artesanal, observando-se esse movimento pelo viés econômico de reprodução material e socioterritorial de identificação e simbologia. Por meio desses processos, as empresas (cervejarias) formam e fundam territórios, que se apoiam nas redes sob a forma de um território-rede como continuum entre território-zona e rede, e como rede-território, que tem na rede a própria formação do território no contexto da pós-modernidade (HAESBAERT, 2014). O mundo globalizado pode ser visto de cima por uma “visão de sobrevoo”, porém é necessário também olhar para os “mundos da vida”, nos quais o cotidiano é um elemento fundamental na formação dos territórios (da cerveja) e em escalas menores “nanoterritórios” (SOUZA, 2013). Essa expressão do cotidiano no espaço mostra as relações de poder entre as diferentes instâncias da vida social. Dessa forma, os territórios são substantivados por integração e conflito, localização e movimento, identidades (línguas, religiões, tradições etc.) e mercadorias (concreto [cervejas], abstrato [conhecimento]), por diversidade e unidade, instituições, (i) materialidade etc. (SAQUET, 2015). No cotidiano, a observação dos eventos cervejeiros é importante para captar esses “nanoterritórios”, materializando, mesmo que momentaneamente, os TC. Outra forma importante de formação dos TC consiste na relação de identidade que se estabelece entre o ser humano e o espaço. A identidade não é um estado e sim um processo dinâmico e em constante transformação das coisas (edificações, cidades, monumentos etc.) e da cultura (línguas, ritos, religião etc.) que, ao se projetar no espaço, cria identidades territoriais por meio de enraizamentos, relações coletivas e transescalares (SAQUET, 2015). Assim, a identidade cria territórios (do cotidiano, das trocas, de referência, sagrados) (RAFFESTIN, 2003). A cerveja como elemento de expressão política e social é uma forma identificação importante no movimento de ascensão dos TC. A condição indissociável dos movimentos de territorialização - desterritorialização - reterritorialização (T-D-R), conduz o indivíduo a “territorializar-se” não como determinação, mas como dinâmica temporal do mundo, que cria mediações espaciais, proporcionando efetivo poder de dominação e apropriação (i)material, multiescalar e multidimensional sobre a

151 reprodução dos grupos sociais (HAESBAERT, 2014). Esses movimentos são mais claros na relação entre a cerveja mainstream e a artesanal, na qual os processos de T-D-R são constantes. Em última instância, o território é o espaço da democracia, liberdade e diversidade (GOTTMANN, 2012), no qual as relações de poder consideram os valores populares e locais. Levando em conta o patrimônio territorial de cada lugar, novas práticas sociais conduzem a novos territórios e territorialidades (SAQUET, 2015), onde uma multiterritorialidade se forma a partir de uma ação (mobilidade) concreta e um processo (virtual) imaterial, desde o nível do indivíduo até o nível de grupos, classes ou instituições (HAESBAERT, 2014). O território é também local de origem e propagação da governança (GILLY; PECQUER, 1997), processo que ocorre através das redes e acordos entre atores sociais, que definem mecanismos para resolver problemas inéditos (PIRES et al., 2011b). Nesse sentido, a gestão territorial é constituída através de pactos socioterritoriais (DALLABRIDA, 2007, 2011). A governança territorial é um conceito, instrumento e processo de ação, considerada como novo “piloto” do desenvolvimento econômico e social descentralizado (PIRES et al., 2011a). Assim, os territórios se tornam “fonte de desenvolvimento” (AYDALOT, 1986) e a configuração e a organização das relações sociais entre um conjunto de atores direcionam o desenvolvimento territorial (PIRES et al., 2011b). Nesse movimento de desenvolvimento, alguns territórios saem vitoriosos devido à ativação de seus ativos e recursos (BENKO; PECQUER, 2001), de modo que cada vez mais o desenvolvimento territorial depende da organização social e da criação de espaços de diálogos e negociação entre os diferentes atores sociais (PIRES, 2016). Diante desse cenário, consideramos que os Territórios da Cerveja são constituídos a partir das múltiplas relações de poder (surgimento de novos territórios e territorialidades) e de seus diferentes tipos e usos (multiterritorialidades) por indivíduos ou grupos sociais para os quais a cerveja é um elemento de mediação que cria e dá sentido a seus cotidianos e formas de vida, uns mais envolvidos nas questões econômicas e políticas pela produção e comercialização da cerveja, além dos aspectos de representação de poder do setor, e outros mais ligados às características culturais e simbólicas, utilizando a cerveja como forma de congregação e rituais de consumo, como em rodas de conversas, festas e eventos cervejeiros, evidenciando traços de identidade territorial nesse processo. A partir dessa definição serão guiadas as análises das relações entre o território e a cerveja no Brasil. Dessa forma, podemos estabelecer uma conexão entre a noção de TC e as seções subsequentes (Figura 33).

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5.FORMAÇÃO SOCIOTERRITORAL DA CERVEJA NO BRASIL: A Figura 33 - Esquema explicativo sobre a noção de TC produção de cerveja no Brasil (índios, holandeses, portugueses e imigrantes) Os Territórios da Cerveja são constituídos a partir das até a sua consolidação traz os processos múltiplas relações de poder (surgimento de novos de identificação do líquido com a territórios e territorialidades) e de seus diferentes tipos sociedade brasileira e usos (multiterritorialidades) por indivíduos ou grupos sociais para os quais a cerveja é um elemento de mediação 6.1. Dos aspectos econômicos: A que cria e dá sentido a seus cotidianos e formas de vida, produção é um elemento econômico que uns mais envolvidos nas questões econômicas e políticas traz materialidade ao território da cerveja pela produção e comercialização da cerveja, além dos e faz parte da vida dos envolvidos aspectos de representação de poder do setor, e outros mais ligados às características culturais e simbólicas 6.2. Dos aspectos políticos: Os elementos utilizando a cerveja como forma de congregação e de representação de poder constroem a rituais de consumo, como em rodas de conversas, festas governança territorial do setor e eventos cervejeiros, demonstrando traços de identidade territorial nesse processo. 6.3. Dos aspectos culturais: As questões simbólicas carregam a formação da identidade nos momentos e rituais de consumo Fonte: Elaboração própria.

É importante destacar que, durante a elaboração desta tese, os artigos desenvolvidos (MARCUSSO, 2017, 2018a, 2018b, 2019, 2020a, 2020b; MARCUSSO; LIMBERGER, 2018; ROTOLO; MARCUSSO, 2019; MARCUSSO; MÜLLER, 2017, 2019a, 2019b; MÜLLER; MARCUSSO, 2018; GOMES; MARCUSSO, 2021), aulas e eventos contribuíram para a construção do alicerce para a edificação da noção de TC e não o contrário. Assim, chegar nesse modelo foi um trabalho de lapidação e observação da realidade, sempre voltando às bases teóricas para moldar a noção de TC. Então, em um movimento de práxis, essa noção guia os estudos sobre produção e cultura na cerveja e estes trazem luz à abordagem teórica proposta para os TC. Em posse dessa primeira aproximação da noção de TC, agora definido, podemos estabelecer uma segunda aproximação, por meio de elementos metodológicos para visualizar na sociedade e no espaço a formação desses territórios a partir da cerveja. Para isso, desenvolvemos uma matriz metodológica (Tabela 12), nos moldes estruturados por Denise Elias (2013), expondo os temas, processos, variáveis, indicadores e fontes de busca utilizados para evidenciar os processos de formação dos territórios em torno da cerveja.

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Tabela 12 - Estrutura da matriz metodológica para formação dos TC Matriz Metodológica TEMA: História, Geografia e Produção de Cerveja Processo: A produção e a história/geografia das cervejarias na formação dos territórios Variável Lista de Indicadores Fonte de Busca Locais com cervejarias Histórico e localização da criação de Bibliografia específica no séc. XIX e XXI. cervejaria e as regiões de destaque. Evolução do número de cervejarias Número de cervejarias MAPA total. Volume de produção Evolução do volume de produção. BARTH-HAAS Panorama do número de cervejas Número de cervejas MAPA registradas. TEMA: Cultura Cervejeira Processo: Expressões culturais da cerveja no território Número de movimentos Levantamento dos movimentos sociais Documentos oficiais, sociais por meio da defendidos por meio da cerveja. sites e redes sociais. cerveja. Número de eventos Crescimento no número de eventos e Documentos oficiais e culturais. turismo cervejeiros. sites. Número de Instituições Criação de escolas e cursos técnicos e MEC/Instituições de Ensino ligadas à de nível superior. privadas. cerveja. TEMA: Política na/da cerveja Processo: A representação de poder e governança territorial do setor cervejeiro Evolução do número de entidades Número de entidades Documentos oficiais e representativas (associações, sindicatos representativas do setor. sites. etc.). Dados sobre a influência das entidades Leis e normas atingidos Evolução dos modelos nos desenvolvimentos de seus pela influência das de governança do setor. territórios. entidades. Fonte: Elaboração própria a partir de ELIAS, 2013.

A transposição de elementos teóricos para elementos da realidade é sempre uma tarefa incompleta, parcial e em constante transformação, permitindo um avanço da a discussão teórica avance. Nesse movimento, o modelo que propomos, seguindo a matriz metodológica, sempre poderá ser alterado, reformulado e testado para expressar as relações de poder e de uso do e no território. Nas seções seguintes, discutiremos todos os itens da matriz metodológica.

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CAPÍTULO 5 - FORMAÇÃO SOCIOTERRITORAL DA CERVEJA NO BRASIL: HISTÓRIA, GEOGRAFIA E ECONOMIA

O primeiro procedimento estabelecido pela matriz metodológica refere-se à busca pela história e geografia da cerveja e das cervejarias no Brasil, eventos que embasam a criação dos TC. Assim, entender como a cerveja esteve presente nas diferentes fases e locais da sociedade nacional contribui para validarmos a noção teórica com a qual estamos trabalhando. A história e da cerveja no Brasil desperta curiosidade do público em geral, uma vez que há diversos blogs, sites, reportagens e notícias sobre o tema. Contudo, a pesquisa sobre a cerveja carece de estudos aprofundados, pois a maioria das obras aborda a questão de maneira superficial ou parcial, deixando lacunas na história do desenvolvimento da cerveja no Brasil. Como já vimos na introdução desta tese, as principais obras que discorrem sobre esse tema são, em ordem cronológica: • Antarctica: Ontem, Hoje e Sempre (1966), do advogado Jorge Americano; • A cerveja e seus mistérios (1986), do enciclopedista Antonio Houaiss; • Os prazeres da cerveja (1995), do empresário da área de softwares, Octavio Augusto Slemer; • Microcervejarias e cervejarias: a história, a arte e a tecnologia (2001), do engenheiro químico e mestre cervejeiro Egon Carlos Tschope; • Os primórdios da cerveja (2004), do médico especialista em vinhos, Sergio de Paula Santos; • Larousse da cerveja (2009), do empresário Ronaldo Morado; • Cervejas, breja e birras (2014), do advogado e blogueiro Maurício Beltramelli.

Essas obras foram redigidas por autores das mais variadas áreas, que tiveram algum contato com a cerveja, em especial a artesanal na Europa e/ou nos EUA e passaram a se dedicar ao estudo da bebida, através de cursos ou até mesmo dirigindo cervejarias. Embora tais obras tenham seu valor, elas são voltadas para o público em geral e nem sempre seguem as regras da produção científica92. Assim, existe uma lacuna na literatura da área, sendo difícil estabelecer um estado da arte com relação ao tema da cerveja no Brasil.

92 Segundo Sergio de Paula Santos (2004, p. 23), a obra de Houaiss foi financiada pela cervejaria Antarctica. Assim, o intuito de escrever sobre a cerveja certamente foi a paixão, só não se sabe se pela bebida ou pelo dinheiro. 155

Dentre as obras que seguem maior rigor científico, podemos citar o artigo de Edgard Köb (2000) (Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da cerveja no Brasil desde o início até 1930) e o livro de Teresa Cristina de Novaes Marques (A cerveja e a cidade do Rio de Janeiro: de 1888 ao início dos anos 1930), publicado em 2014. No campo da geografia, merece destaque a tese de doutorado de Silvia Limberger (Estudo geoeconômico do setor cervejeiro no Brasil: estruturas oligopólicas e empresas marginais), de 2016. Como podemos verificar, a história da cerveja no Brasil ainda carece de estudos bem estruturados. Nesse sentido, esperamos contribuir para uma visão mais aprofundada do tema. Devido à escassez de literatura específica da área, foi necessário perscrutar a historiografia da cerveja no Brasil. Nosso primeiro resgate resultou na elaboração de um artigo (A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria do Brasil), publicado na revista Contextos da Alimentação (ROTOLO; MARCUSSO, 2019), além de uma notícia na Revista da Cerveja (Estudo revela nova data da 1ª cervejaria brasileira) (MARCUSSO, 2020a). Foi necessário revisitar a história e geografia da cerveja no Brasil para compreender como a ascensão dessa atividade deixou marcas no tempo e no espaço, ou seja, como as cervejarias e a cultura e beber cerveja foi criando fixos e fluxos na construção socio-histórico- espacial. A esse respeito, a Tabela 13 e o Gráfico 1 descrevem a evolução da produção de cerveja ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.

Tabela 13 - Evolução da produção cervejeira nacional (séculos XIX-XX-XXI)

Década Período Variação (mi hl) % da variação Acréscimo (mi hl) Século XIX 1870 e 1885 ~0-0,05 - 0,05 Anos 1900 1904-1911 0,3-0,7 127 0,40 Década 10 1911-1920 0,7-0,8 21 0,10 Década 20 1921-1930 0,9-1,5 64 0,60 Década 30 1931-1940 1,1-2,1 94 1,00 Década 40 1941-1950 2,0-6,3 215 4,30 Década 50 1951-1960 6,2-6,6 6 0,40 Década 60 1961-1970 6,6-9,5 44 2,90 Década 70 1971-1980 11-29,1 165 18,10 Década 80 1981-1990 29-54,5 88 25,50 Década 90 1991-2000 58-80,9 39 32,90 Anos 2000 2001-2010 83,2-128,3 54 45,10 Década 10 2011-2019 132,7-144,7 9 12,0 Fonte: Elaboração própria a partir de SUZIGAN, 1975; IPEADATA, BARTH-HAAS, vários anos, on-line.

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Gráfico 1 - Produção nacional de cerveja em milhões de hectolitros (1870-2019)

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140

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120

110

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90

80

70

60 Milhões Milhões hectolitros de 50

40

30

20

10

0

1870 1904 1912 1914 1916 1918 1920 1922 1924 1926 1928 1930 1932 1934 1936 1938 1940 1942 1944 1946 1950 1952 1954 1956 1958 1960 1962 1964 1966 1968 1971 1973 1975 1977 1979 1981 1983 1985 1987 1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 Ano

Fonte: Elaboração própria a partir de SUZIGAN, 1975, IPEADATA, BARTH-HAAS, vários anos, on-line. 157

Embora esses dados sejam analisados com maior profundidade nas próximas seções, é importante trazê-los aqui é para desenvolver uma visão panorâmica da evolução da produção de cerveja no Brasil. A Tabela 13 será retomada várias vezes conforme as décadas analisadas, enquanto o Gráfico 1 será segmentado conforme a necessidade para mostrar os aspectos mais relevantes dessa evolução. Partindo do primeiro item da matriz metodológica, atualizaremos a história da cerveja no Brasil, observando os aspectos espaciais desse processo. A escolha do termo atualizar deve- se ao fato de que a temática não tem sido muito explorada na ciência sociais, abrindo margem para que blogs e sites compartilhem informações sem comprovação de fonte segura93. Nesse caminho, iluminamos a experiência dos indígenas com suas bebidas fermentadas como elemento importante para compreender a cerveja hoje no Brasil, encontramos novas evidências sobre a produção cervejeira em nosso país e trouxemos elementos que evidenciam a história da cerveja em terras tupiniquins. Por fim, essa seção discute a consolidação do setor cervejeiro, mostrando o crescimento da produção, sua localização, a disseminação da produção pelo país e a relação das medidas econômicas com o consumo da cerveja.

5.1 A cerveja nas/das sociedades indígenas do Brasil: o cauim e as cauinagens

A contextualização das bebidas alcoólicas nas sociedades indígenas é um passo para a compreensão da evolução da cerveja no Brasil e seus espaços de uso, isso porque esse é um traço importante tanto dos povos indígenas que habitam o Brasil quanto americanos de uma maneira geral, sempre enfatizando as diferentes representações e sentidos que a bebida tem para cada comunidade. Essa passagem ajuda a colocar a noção de TC em análise e contribuir para validação dessa ideia. Apesar das tradições indígenas em relação às bebidas alcoólicas terem sido fortemente combatidas pela igreja no Brasil colonial, elas foram um elemento importante no processo de interação entre brancos e índios, estabelecendo uma linha de conexão entre as bebidas alcoólicas que vigoraram com predominância em terras tupiniquins, a saber, em sequência histórica: as bebidas alcoólicas fermentadas indígenas, as bebidas destiladas portuguesas e brasileiras e, por fim, as cervejas importada e nacional. As tradições dos nativos em torno das bebidas alcoólicas fermentadas resistem até hoje, embora tenham passado por profundas transformações. Compreender esse trajeto histórico é

93 Esse caráter de entretenimento e pouca cientificidade na cerveja já foi abordado na introdução e em trabalho anterior (ver MARCUSSO, 2016). 158 essencial para visualizar como esse comportamento indígena foi transformado pelo e para o branco e como os espaços de reprodução desse comportamento modificaram-se profundamente. Fernandes (2004) ressalta três tipos de cervejas primitivas, observando a classificação proposta por Gonçalves de Lima (1990) sobre o processo de liberação do amido para futura fermentação: a) Cervejas insalivadas: as enzimas da saliva quebram o amido (maioria das bebidas nativas do Brasil e da América); b) Cervejas maltadas: a germinação do grão expõe o amido do cereal (referenciadas pelas cervejas Europeias); c) Cervejas “claras”: o amido é quebrado pela ação de fungos (as cervejas tradicionais japonesas).

Focaremos nossa análise nas cervejas insalivadas dos índios a partir de uma longa lista de bebidas fermentadas de amiláceos insalivados, como o caxiri, cauim, tiquara94, chibé, caribé e jacuba, feitos a partir das mais variadas fontes de amidos, porém iremos nos voltar às bebidas fermentadas de mandioca95. Caxiri é o nome dado a qualquer fermentado de mandioca, mas aqueles que são preparados e consumidos em rituais simbólicos são denominados cauim (CARNEIRO, 2005). Logo, todo cauim é um caxiri, mas nem todo caxiri é um cauim. A mandioca96 apresenta estreita relação com os ameríndios, tendo sido domesticada há pelo menos 8.000 anos, provavelmente no nordeste da América do Sul. Ao chegarem ao Brasil, os portugueses já identificaram a importância da mandioca, considerada como o “pão que ali usam” por Pero Vaz de Caminha. Além de servir de alimento fundamental aos índios, a mandioca também foi vital para sobrevivência dos portugueses (SILVA, 2008).

94 No regramento brasileiro de bebidas, existe a figura da Tiquira, cujos critérios de identidade e qualidade estão descritos no Decreto 6871/2009. “Art. 59. Tiquira é a bebida com graduação alcoólica de trinta e seis a cinqüenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida de destilado alcoólico simples de mandioca ou pela destilação de seu mosto fermentado.§ 1o A destilação deverá ser efetuada de forma que o destilado tenha o aroma e o sabor dos elementos naturais voláteis contidos no mosto fermentado, derivados do processo fermentativo ou formados durante a destilação.§ 2o A bebida poderá ser adicionada de açúcares até trinta gramas por litro; quando a quantidade adicionada for superior a seis gramas por litro, a denominação deverá ser seguida da expressão: adoçada” (BRASIL, 2009, on-line). 95 Os fermentados de mandioca dividem-se nos insalivados e embolorados. Estes últimos são denominados paiauaru ou pajauaru, que são preparados com bolos de mandioca deixados para mofar, envolvidos em folhas (“moquecas”) por vários dias e depois colocados para fermentar em água. Esses bolos são chamados de beijus (CANEIRO, 2005). 96 “A mandioca é apenas um exemplo mais extremo de culturas agrícolas históricas intimamente conectadas à produção doméstica e de subsistência, que tem tido seu capital sociocultural e ecológico transformado e homogeneizado pela modernização da agricultura no Brasil” (SILVA; MURRIETA, 2014, p. 53).

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Nossa discussão será voltada ao cauim por ser a bebida mais tradicional na América do Sul97, especialmente na faixa litorânea, entre os tupinambás (Figura 34). Essa escolha também se justifica pela relação da bebida com a questão ritualística e simbólica, permitindo que se trace um paralelo com a cerveja e seus rituais modernos, além de estabelecer uma conexão entre as bebidas no Brasil.

Figura 34 - Localização aproximada dos principais agrupamentos de falantes de línguas tupi-guarani na época do contato

Fonte: ALMEIDA; NEVES, 2015.

O significado de “cauim” é controverso. O dicionário Aurélio define o termo como “bebida fermentada”. Já para o Houaiss, cauim significa “bebida qualquer”. Alguns autores relacionam a palavra a acayu-y (água de caju), em referência a uma das bebidas preferidas dos índios. Fernandes (2012) aponta a tradução de Ermano Stradelli (Vocabulário Nheêngatú, 1929), segundo a qual o ca’o-y (água do bêbado) é usado para qualquer bebida espirituosa, daí as palavras caoy-ayáb (cauim azedo) e caoy-piranga (cauim vermelho), utilizadas pelos índios para designar o vinho dos europeus, ou caoy-tatá (cauim de fogo), usado para a aguardente. O

97 As bebidas alcoólicas dos indígenas brasileiros não eram uma regra universal, pois existiam nativos no Brasil Central que não tinham o hábito de consumir qualquer bebida alcoólica, como os Tapuias da família Jê (FERNANFES, 2004). 160 cronista Simão de Vasconcelos apontou, no século XVI, 32 tipos de cauim feitos de aipim, banana, caju, milho, abacaxi, batata, mel, jenipapo, alfarroba, taioba, abóbora, mangaba etc. Já Noelli e Brochado, no final de século XX, calculavam que existam mais de 140 tipos de cauim feitos apenas de frutas (CARNEIRO, 2005). Na visão de Carneiro (2005), o nome tem origem entre os tupinambás como ka’wi e entre os guaranis como caguy. Monteleone (2019b) aponta outros povos também utilizavam essa técnica de fermentação para produzir bebidas alcoólicas em diferentes épocas históricas, como é o caso do saquê dos japoneses, produzido dessa maneira até o século V a.C. O autor ainda menciona a existência de outras bebidas insalivadas, como o aluá dos tupis, um fermentados de frutas e milho e a chica andina, cujo nome é oriundo da palavra espanhola chichal, que significa “cuspir” ou “saliva”. Também eram feitos através dessa técnica os vinhos de frutas, dentre os quais os mais apreciados pelos tupinambás era o de caju (ALBUQUERQUE, 2011). Hans Staden, viajante alemão que viveu no Brasil durante o século XVI, foi um dos primeiros a descrever a produção do cauim, destacando o protagonismo das mulheres nesse processo.

São as mulheres que preparam as bebidas. Usam raízes de mandioca e cozem- nas em grandes panelas. Quando está cozido, retiram a mandioca das panelas, despejam na em outras panelas ou vasos e deixam que esfrie um pouco. A seguir, meninas sentam-se ao redor e a mastigam; colocam o mastigado num vaso especial (STADEN, 1999, p. 98).

Monteleone (2019c) traz outros pontos do processo produtivo, destacando que os vasos especiais eram decorados com figuras místicas e desenhos geométricos, de fina inspiração artística, e eram enterrados até a metade, tampados e deixados até que a bebida fermentasse em cerca de dois dias. A Figura 35 ilustra produção da cerveja dos índios, através da representação de Ferdinand Denis, do século XIX, enquanto a Figura 36 mostra processo sendo executado no século XX, no interior do Pará, onde era comum o uso do milho ao invés da mandioca.

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Figura 35 - Preparação do cauim, de Ferdinand Denis (1837)

Fonte: ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2018, on-line.

Figura 36 - Mastigação de cauim de milho (mitähi) pelo povo Araweté do Pará (1982)

Fonte: CASTRO, 2003.

Além do processo descrito acima, que provocava a fermentação pelos microrganismos presentes nos utensílios usados para mexer, existiam tipos de cauim que utilizavam a “levedura de farinha de milho miúdo ou comum”, como descreve o capuchinho Claude d’Abbeville,

162 citado por Fernandes (2004), ao descreve a produção dos tupinambás do Maranhão no século XVI. A semelhança com a cerveja vai além da questão de fermentação. Segundo dados do Laboratório de Análise e Pesquisa de Bebidas Alcoólicas (LAB) do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), os fermentados representam uma fonte essencial de nutrientes, raramente obtidos por outros meios nos povos indígenas. De acordo com o LAB, as cervejas primitivas são suspenções opacas, efervescentes, contendo resíduos dos substratos e leveduras de fermentação, além de outros microrganismos. Assim, além de combater a deficiência calórica dessas populações, eram fontes de vitaminas do complexo B, provenientes dos substratos utilizados durante a elaboração, fermentação e das leveduras e outros microrganismos (GOUVEIA, 2020, on-line). A esse respeito, é interessante mencionar uma passagem de José de Anchieta (1988, apud FERNANDES, 2004, p. 78): “este vinho comumente o fazem grosso e basto, porque juntamente lhes serve de mantimento e quando bebem nenhuma outra coisa comem”. Isso pode ser explicado, em parte, pela elevada quantidade de amido presente na bebida após a fermentação. Além da mandioca, há inúmeras raízes e tubérculos com alto teor de carboidratos, que podem ser fermentados para a produção de bebidas alcoólicas. Nas regiões tropicais da África e da América, há várias espécies nativas como batata doce, biri, inhame, taro, araruta e batata yacon com uso real ou potencial nos processos de fermentação alcoólica (PINELI; GINANI, XAVIER, 2010). Para além do componente nutricional, o cauim também se estabelece como prática social (ALBUQUERQUE, 2011). Assim, alguns viajantes que conheceram a bebida, acabaram se adaptando a seu consumo. Segundo Monteleone (2019c), em seu relato de viagem (Viagem à Terra do Brasil), editado na França em 1958, o viajante Jean de Léry faz um alerta aos leitores que repudiam o cauim devido à prática da mastigação: assim como a fermentação purifica o vinho europeu, produzido através de uvas amassadas com os pés e muitas vezes com botas, o processo também é responsável pela purificação do cauim. O próprio autor e sua excursão haviam tentado produzir o cauim sem a mastigação, porém sem êxito e com o passar do tempo se acostumaram com a bebida indígena. Nesse contexto, Almeida (2015) lembra que o cauim poderia, tal qual na Europa Medieval, até mesmo substituir o consumo de água em algumas tribos. Todas essas formas de produção do cauim e das outras bebidas alcoólicas fermentadas indígenas ocorreram e ocorrem no território que seria o Brasil desde tempos pré-colombianos

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(SOUZA; OLIVEIRA; KOHATSU, 2005). Entre os tupinambás, a produção do cauim é um costume imemorial (ALARCON; JORGE, 2013) e desempenha papel central na estrutura social das diferentes sociedades indígenas do continente sul-americano. Langdon (2013) lembra que o álcool libera as inibições e produz um estado de ânimo e consciência. O comportamento resultante dessa liberação varia entre os grupos indígenas e expressa valores sociais diferentes que contribuem para a sociabilidade e o divertimento dos povos indígenas. Por outro lado, as bebidas fermentadas são usadas em ritos que favorecem a expressão simbólica de manifestação do divino e da consciência coletiva. Assim, olhando os povos nos quais as bebidas alcoólicas fermentadas fazem parte de sua cultura, percebemos que esse consumo tradicional assume um papel construtivo e constitutivo do grupo. Dessa forma, destaca o autor, é importante entender os valores culturais do processo histórico, da atualidade sociopolítica do grupo e das situações nas quais se aprende a beber e se continua a beber. Em determinados povos indígenas, o ato de beber faz parte das manifestações de sociabilidade e estão na rotina desses grupos. Geralmente, os rituais incluem cantigas, pinturas, ornamentos, músicas e bebidas alcoólicas fermentadas para celebrar um boa colheita ou caçada, a mudança das estações, casamentos, a primeira menstruação das moças, vitória em guerras etc. Esses elementos também estão presentes em rituais de perfuração dos lábios, consulta aos espíritos, alianças entre comunidades, reuniões familiares, rituais de canibalismo e decisões coletivas da tribo, como guerras. Fernandes (2007, p.101) aponta que o cauim é para os índios uma “cultura material corporificada”. Para os tupinambás, o consumo do cauim era frequente. Segundo o relato de Alfred Métraux, de 1950, nada acontecia de importante na vida social ou religiosa dessa etnia sem que a bebida fosse amplamente consumida (FERNANDES, 2013). Em outra abordagem, podemos olhar para as beberagens dos índios, sobretudo os tupinambás, como processo educativo. Albuquerque (2011) enxerga as práticas de beber articuladas às práticas alimentares, sendo estas partes de cada sociedade, de sua cultura e estrutura social. A partir desse entendimento, os modos de beber mediam um saber, fazendo circular valores e afirmando a identidade de cada grupo indígena. Segundo Florestan Fernandes (1989, apud ALBUQUERQUE, 2011), quando estavam embriagados, os tupinambás assumiam um estado de permissividade, no qual todas as emoções eclodiam. Nessa ocasião, ocorriam brigas e delitos, mas esses eventos eram importantes para manter o equilíbrio psíquico desse povo, permitindo também momentos essenciais de reavivamento do passado, das tradições e antepassados, sendo a memória o elo com esses tempos pretéritos. Fernandes (2007) aponta que

164 a memória era permanentemente atualizada pelos caraíbas, “senhores da fala”, e seus discursos em meio as cauinagens, atuando como verdadeiros memoriais e crónicas de suas culturas. Dessa forma, “os índios bebiam para não esquecer”, segundo as palavras de Eduardo Viveiros de Castro (ALBUQUERQUE, 2011, p. 40). Nesse sentido, as beberagens funcionavam como instâncias de socialização fundamental, uma espécie de mediadora cultural que despertava os saberes da coletividade, estruturando os principais eventos do cotidiano. As cauinagens eram acontecimentos socioeducativos que permitiam a construção de identidades e a perpetuação da cultura, uma vez que além da bebedeira, como ritual, representava elemento constitutivo da estrutura social tupinambá (ALBUQUERQUE, 2011). Para além da capacidade pedagógica, as cauinagens tinham importante papel para cimentar os laços sociais dos nativos. Os chefes tupinambás, por exemplo, dependiam fortemente das bebidas para sedimentar as relações de reciprocidades tão importante para manutenção da comunidade. O jesuíta Fernão Cardim, que viveu no Brasil no final do século XVI, ressalta a utilização das bebidas como “lubrificantes da sociedade Tupinambá” (FERNANDES, 2004, p. 115). Nesse ponto, relembramos o atual aspecto da cerveja, que pode ser considerada um verdadeiro “lubrificante social”. Para esse povo, o cauim é sagrado e, devido ao aspecto divino, não se pode comer enquanto se bebe. Esse aspecto sagrado eleva a bebida ao posto central na comunidade tupinambá e fornece as bases da sociedade, sendo considerada superior a outros tipos de alimentos (ALBUQUERQUE, 2011). Dessa forma, verificamos que os indígenas bebem por várias razões e os modos ou estilos de beber constituem características próprias de cada grupo étnico, de modo que os integrantes de cada etnia aprendem a beber seguindo os valores e comportamentos de seu grupo (LANGDON, 2013). Um exemplo desse processo é o ritual do Mapimaí do povo Paiter Suruí, que habita a autointitulada Terra Indígena Paiterey Karah (oficialmente Terra Indígena Sete de Setembro), com 248.146 hectares entre os municípios de Cocoal (RO) e Rondolândia (MT). Segundo Oliveira, Melo e Silva (2015), as formas de sobrevivência e reafirmação da cultura desse povo ocorre por meio dos rituais, nos quais a bebida alcoólica atua como veículo de transformação. A Figura 37 traz imagens da confraternização entre os povos, na qual se consome a chicha.

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Figura 37 - Ritual mapiamí do povo Paiter Suruí: a chicha e a confraternização

Fonte: OLIVEIRA; MELO; SILVA, 2015, p. 241-242.

Para os Paiter Suruís, a chicha purifica o espírito. Assim, o objetivo do consumo não é a embriaguez. O clã que oferece a chicha tenta alcoolizar os líderes dos demais clãs, que evitam demonstrar a embriaguez, uma vez que esta é motivo de grande vergonha diante dos demais membros da etnia (OLIVEIRA; MELO; SILVA, 2015). Outro exemplo dos rituais envolvendo as bebidas alcoólicas é o caso dos Mẽbêngôkre- Mẽtyktire (Kayapo) povo de língua Jê, habitantes da bacia do Xingu, Terra Indígena Kapôt Jarina, situada na divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará. A tribo foi dividida devido à posição antagônica dos antigos em relação ao consumo de álcool. A cauinagem é feita pelo ritual kwỳrỳ kangô, (bebida de mandioca), contudo as diferenças separam a tribo. De um lado da estrada, os anciões enxergam na embriaguez marcas do inimigo, que ligam o caxiri yudjá, à cachaça do garimpeiro, à cerveja do gaúcho e instruem os jovens a não consumirem bebidas alcoólicas, segundo seu ponto de vista, o álcool conduz ao esquecimento, à loucura e à morte, além de ser o caminho para se tornar branco. Do outro lado da estrada, a cauinagem ocorre de forma normal, sem desaprovação dos Mẽbêngôkre (URUETA, 2014). O autor ainda lembra que, nos dias da cauinagem, existe muita gente que atravessa a estrada. Ao desenvolver uma análise histórica e comparativa dos estudos sobre o consumo de álcool em alguns povos indígenas das américas, Langdon (2013) verificou que todos os países analisados possuem essa relação com o álcool e somente após a inserção de bebidas destiladas introduzidas pelos homens brancos, o consumo passou a ser um problema. Anteriormente, por mais que em certos rituais e povos os índios experimentassem elevado grau de embriaguez, essas situações eram controladas, pois o consumo era realizado a partir de razões bem definidas,

166 com conhecimento dos efeitos desejados e esperados, de modo que essas práticas expressam a concepção cosmológica do mundo dos povos. Fernandes (2013) lembra que existia uma demarcação cerimonial e religiosa que limitava, quando não impedia, o consumo de bebida alcoólica nas comunidades. Não se trata de “alcoolismo”, mas de um modo de vida tradicional de alguns indígenas. Contudo, as sociedades nativas perderam os controles sociais da embriaguez através do consumo de bebida alcoólica no processo de conquista europeu. As práticas etílicas dos nativos foram se alterando conforme o tecido social indígena era afetado. Darcy Ribeiro (1996) aponta que, além da escravização dos indígenas, da matança e exploração, as doenças europeias dizimaram entre 50% e 70% de seus membros, de modo que as epidemias trazidas pelos brancos desempenharam um papel central na redução drástica da população indígena, deixando brechas no tecido social geralmente sem recuperação, já que os mais velhos carregam consigo os saberes e tradições de cada tribo e, sem eles, a memória, a cultura e a identidade se perdem. Almeida (2015) lembra que existe um aspecto ecológico na sabotagem dos jesuítas nas cauinagens dos tupi-guarani. Ao abandonarem o cauim, além de perderem a questão nutricional, os indígenas voltaram a ingerir mais água, ficando sujeitos às mazelas de uma sedentarização forçada e suas impurezas, contaminando-se com um verdadeiro coquetel de doenças europeias, muitas das quais eram transmitidas pela água. Outra estratégia dos jesuítas consistiu em focar principalmente nos meninos, que não bebiam por não terem matados nenhum inimigo. Assim, suas almas livres conseguiam transitar melhor sobre os códigos culturais, recebendo aulas de leitura, escrita e canto (FERNANDES, 2007). Nesse contexto, os sistemas tradicionais de liderança e de reciprocidade econômica e social desabaram, sendo necessário à população restante daquela comunidade criar novas formas de associação e relacionamento. Diante desse panorama, muitos povos mudaram o seu comportamento e alteraram os modos de beber. Se antes bebiam ritualisticamente, de forma controlada pelos limites socioculturais determinados por cada povo, agora a relação com traz marcas negativas nessa relação, sobretudo a partir da introdução das bebidas destiladas. Langdon (2013) lembra diversos estudos que analisam as consequências do consumo elevado do álcool como a violência geral e familiar, desnutrição, danos à saúde das crianças – em casos de síndrome alcoólica fetal –, atropelamentos nas estradas etc. Os indígenas dos EUA e Canadá também experimentaram essa condição, exibindo elevadas taxas de mortalidade por cirrose hepática, enquanto no México essa doença é uma das principais causas de morte dos nativos desde a década de 1980. Somente nos EUA, o abuso de

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álcool está relacionado com 38% de mortes entre os nativos, enquanto para o restante da população representa somente 7,8%. Nesses países, a condição de importância da questão do abuso do consumo de bebidas alcoólicas entre os indígenas é alvo de programas de saúde há décadas. No Brasil, somente nos últimos anos, esse problema teve maior visibilidade para o Estado com a edição da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, em 2002, e com o estabelecimento das diretrizes gerais para a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas, em 2007, ambas normativas vinculadas ao Ministério da Saúde (LANGDON, 2013). A potência alcoólica das bebidas destiladas98, com cerca de 40% de álcool, era algo totalmente desconhecido pelos indígenas, que tinham nas cervejas insalivadas baixo teor alcoólico, como nas cervejas comuns de hoje e nos vinhos de frutas, cuja porcentagem de álcool geralmente não excedem 10% (SOUZA, 2010). A força alcoólica dos destilados99 foi considerada por Fernand Braudel com um presente envenenado dos Europeus às civilizações da América. O missionário francês Jean de Léry descreve um dos primeiros contatos dos tupinambás com as bebidas destiladas. Ao tomarem de assalto um navio português, os indígenas relataram o seguinte: “Não sei que qualidade de cauim era, nem se o tendes no vosso país; só

98 “A questão das origens dos processos de destilação ainda está em aberto. O princípio da destilação parece ter sido descoberto no século I d. C., embora existam grandes controvérsias a respeito (Tannahill, 1988). No século IX a destilação para a produção de cosméticos era conhecida por árabes e persas: os árabes produziam a partir do álcool destilado um delineador de olhos, o kohl, de onde nos vêm a palavra ‘álcool’ (de al-kohl ou al-kuhl). O que é realmente certo é que o alambique europeu foi inventado pelos alquimistas e boticários, no século XI, por razões médicas: o álcool destilado de vinho, a acqua vitae, será sempre visto como um remédio até os fins do século XV (Braudel, 1995). Segundo Fernand Braudel, a transformação se dará na passagem do século XV para o XVI: em 1496 a cidade de Nuremberg era forçada a proibir a venda de álcool em dias de festa; três anos antes um médico local alertava: ‘já que agora toda a gente tomou o hábito de beber acqua vitae, será necessário lembrar a quantidade que se pode beber e aprender a beber conforme a capacidade de cada um, para quem quiser comportar-se como um fidalgo’ (Braudel, 1995: 216). Ainda para Fernand Braudel, os países nórdicos foram mais avançados no uso das aguardentes que os latinos: Veneza só cobra impostos de importação sobre a acqua vitae em 1596, e em Barcelona só se fala nisso no século XVII. Os popularizadores do ‘vinho queimado’ entre os latinos parecem ter sido os holandeses, a partir do século XVII (Braudel, 1995). Nos séculos XVI e XVII explodiu uma verdadeira moda da bebedeira entre os povos nórdicos, no que não foram seguidos pelos latinos. Um italiano, escrevendo nessa época, agradecia a Deus, já que, ‘entre as muitas pestes que nos vêm de além das montanhas, a pior de todas ainda não nos alcançou, que é a de se considerar a embriaguez não como um assunto para gargalhadas, mas como um mérito’ (Tannahill, 1988: 243). Percebe-se, portanto, que as potentes bebidas destiladas eram, ao tempo das navegações, uma novidade até mesmo para os europeus, e ainda mais para os latinos, o que nos permite inserir, ao lado das inovações nos transportes e nos armamentos, as bebidas destiladas entre as descobertas e invenções que possibilitaram e facilitaram a conquista europeia dos novos mundos.” (FERNANDES, 2013, e-book, posição 921) 99 A grande produção de aguardente no Brasil, foi, de certa forma, obstáculo ao processo colonizatório e de catequese, uma vez que “desviaria a matéria-prima da produção do ‘útil’ açúcar, e poria em risco a saúde dos escravos e a integração dos índios. [...] Embora fosse oficialmente proibida, a fabricação da aguardente grassava quase que livremente, para grande desgosto de Mendonça Furtado, que solicitava ao rei, em 1751, que mandasse ‘demolir todos os molinetes’ dedicados à aguardente, ou ‘impor-lhes um tributo grande’, o que acabou por se tornar a opção escolhida, pela total incapacidade do Governo-Geral em executar aquela proibição” (FERNANDES, 2012, p. 45). 168 sei dizer que depois de o bebermos ficamos por três dias de tal forma prostrados e adormecidos que não pudemos despertar” (FERNANDES, 2013, posição 969, e-book). Outro ponto importante relacionado à introdução das bebidas destiladas foi a sua utilização como moeda de troca entre os indígenas de maneira totalmente desigual: os comerciantes portugueses trocavam uma frasqueira de cachaça por barcos cheiros de drogas do sertão muito mais valiosas. Essa prática comercial também levava ao boicote do processo de catequização, já que os índios ficavam agressivos com a disputava pela bebida destilada (FERNANDES, 2012). Dessa forma, as consequências do uso e abuso das bebidas destiladas, apesar de potencializarem, de certa forma, o contato com o sobrenatural, buscados nos rituais, traz consequências nocivas para as relações comunitárias, criando uma imagem negativa para os povos indígenas, que passaram a ser taxados pejorativamente de ‘alcoólatras’ pela sociedade brasileira, em uma tentativa de se justificar sua exclusão social, além de constituir uma estratégia de pacificação dos índios pela sociedade dos europeus (LANGDON, 2013). No início do contato entre índios e europeus, os jesuítas tiveram a nítida impressão de que o diabo havia atravessado o oceano e se instalado nas Américas, influenciando o comportamento dos indígenas. Como não havia templos, ídolos e sacerdotes, os inacianos viram os povos nativos como o “genus angelicum das profecias milenaristas que os inspiraram, um povo virgem sobre o qual seria possível refundar o mundo cristão” (FERNANDES, 2007, p. 100). Dessa forma, a luta contra o diabo estava centrada nos ritos que fundamentavam a vida dos indígenas. Segundo Cressoni (2013), a missão era evangelizar o Outro, transformando o diferente em semelhante, salvando-o e salvando a si próprio, já que a salvação para o cristão significava viver para e morrer com Cristo. Dessa forma, “indo ao encontro do Outro, os jesuítas previam a possibilidade de salvarem a Si Próprios” (CRESSONI, 2013, p. 147). A partir dessa ideia, Fernandes (2013) lembra que os europeus tiveram grande êxito em entrar nas estruturais sociais dos indígenas e se utilizaram da busca humana por substâncias psicoativas para exercer suas próprias ações de conquista. Assim, as bebidas alcoólicas, em especial a cachaça, serviram como verdadeiras armas utilizadas pelos agentes do colonialismo. Uma vez que, para o europeu, o demônio estava solto nessas terras, induzindo todo tipo de vício, extinguir as cauinagens era um meio de viabilizar a catequese e a expansão da cristandade (ALBUQUERQUE, 2011). Os jesuítas identificaram nos rituais que incluíam o cauim um ponto a ser atacado, por serem ocasiões em que toda a cultura indígena se expressava (FERNANDES, 2004).

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O problema das cauinagens, na visão dos catequizadores, era que nesses rituais os indígenas reavivavam suas tradições, lembrando dos tempos remotos e de seus antepassados, de modo que esqueciam a doutrinação cristã que estavam recebendo. Como já mencionamos, os indígenas bebem para não esquecer e esse fato também trouxe o cauim para os tempos atuais (ALBUQUERQUE, 2011). Os missionários católicos, lembra Albuquerque (2011), foram hábeis em decifrar o caráter pedagógico das cauinagens na coesão social, circulação de saberes e resistência ao processo colonizador. Dessa forma, por constituir um obstáculo à obra de catequização dos religiosos, esses rituais foram fortemente combatidos pelos jesuítas na missão de conversão das almas. Nesse contexto, a figura do índio como bêbado, fraco e inferior foi sendo cada vez mais propagada. Segundo Fernandes (2007), José de Anchieta foi o maior combatente das bebidas fermentadas indígenas, retratando em seu Auto de São Lourenço todos os preconceitos dos padres contra essas bebidas e todas as estratégias utilizadas para destruir as cerimônias etílicas dos indígenas. Dessa forma, o papel central do cauim e das cauinagens foi sendo reduzido à medida que a colonização portuguesa foi se estabilizando e os aldeamentos da Companhia de Jesus foram atingindo seus objetivos. Como já alertamos, uma das formas de desagregação das comunidades indígenas foi a inserção das bebidas destiladas, estratégia que se estendeu durante todo o processo de aculturação. Ainda no século XVIII, a aguardente era a principal forma de facilitar o contato com os índios, como relataram os sargentos-mor Henrique João Wilckens e Alexandre Rodrigues Ferreira, na Amazônia (FERNANDES, 2012). Outro exemplo desse processo é o caso dos Yanomámis, que tradicionalmente não utilizavam as bebidas fermentadas em seu cotidiano e hoje consumem cachaça em larga escala (SOUZA; OLIVEIRA; KOHATSU, 2005). Com relação à situação atual dos indígenas no Brasil e o consumo das bebidas destiladas100, é necessário pensar sobre o próprio entendimento do alcoolismo e os preconceitos em torno desse termo para refletirmos que os modos de beber são sempre produtos do contexto social, político e histórico e não simplesmente uma doença. Assim, Langdon (2013) reforça a utilização da expressão “processos de alcoolização” para observar as manifestações de consumo de álcool, deslocando os preconceitos existentes e como uma forma abrangente de fenômeno

100 É importante ressaltar que, por meio do art. 58º da Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, é crime: “propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados. Pena - detenção de seis meses a dois anos.” (BRASIL, 1973, on-line). 170 social construído historicamente. Portanto, se o uso de bebidas alcoólicas contribuiu de maneira positiva para os povos indígenas em seus contextos social e cultural, hoje seu consumo foge ao estilo tradicional. O abuso de bebidas alcoólicas, sobretudo a cachaça, não é novo entre os índios e, conforme relata o padre jesuíta João Daniel, que viveu como missionário na Amazônia entre 1741 e 1757, “tão feiticeira esta aguardente, que se alguém se costumou a ela, ainda que ao princípio mui regulada, e só por medicina pelas manhãs, [...] pouco a pouco se vai alargando até dar em demasia, e custa [muito] depois a largar” (FERNANDES, 2012, p, 47). Esse relato se aproxima da noção moderna de alcoolismo e expõe o quão impactante foi a introdução dessa bebida nos povos indígenas. Langdon (2013) ainda destaca que a prevenção é uma questão de educação e saúde comunitária e deve se basear nas necessidades de cada povo e em seu estilo de vida para construção de formas de bem-estar com afirmação positiva da identidade, a fim de reduzir as consequências negativas do consumo de álcool, permitindo que suas funções positivas sejam conservadas ou recuperadas. Como pudemos verificar, o cauim – a cerveja dos índios – é um elemento fundamental na estrutura da sociedade indígena do Brasil, sobretudo dos tupinambás. Esse traço marcante da cultura dos índios ainda persiste nos rincões do Brasil afora e se misturou aos costumes modernos, sofrendo algumas alterações. Sérgio Buarque de Holanda (1994) retrata as beberagens mamelucas e caipiras do catimpuera – uma bebida fermentada de milho, que herdou os processos de fabricação indígenas – e a representação que essa bebida tem para comunidade em seu entorno.

Em Minas seu fabrico era competência de mulheres, que mascavam o milho de canjica, lançando-o depois no caldo da mesma canjica: já no dia seguinte tinha seu azedo e estava perfeita. Diz o informante anônimo que, para ser mais saborosa, deveria ser mascada por alguma velha, e quanto mais velha melhor (HOLANDA, 1994, apud FERNANDES, 2013, p. 51).

É interessante notar a sobrevivência do modo de produção e do papel da mulher, mesmo que de maneira invertida em relação aos indígenas, em especial os tupinambás, para os quais essa tarefa era destinada às mulheres mais jovens. A tradição sobreviveu e foi transformada, como aponta Monteleone (2019c) ao lembrar da associação entre a cerveja dos índios e as cervejas artesanais da atualidade. A cervejaria

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Colorado101, uma das pioneiras do mercado artesanal do Brasil, iniciou suas operações em 1996, em Ribeirão Preto - SP e foi adquirida pela Ambev em 2015. A cervejaria possui uma série de cervejas que utilizam ingredientes da tradição brasileira, como rapadura, mel, café, umbu-cajá, uvaia, caju, castanha-do-pará e graviola, além da mandioca. A cerveja que leva a macaxeira como ingrediente tem o sugestivo nome da Cauim e, em suas propagandas, faz referência aos indígenas (Figura 38).

Figura 38 - Propaganda da cerveja Cauim, uma Pilsen com mandioca

Fonte: MERCADO LIVRE, s. d., on-line.

A bebida fermentada no Brasil tem no cauim dos indígenas sua versão arraigada à cultura local, tradicional e nativa. É possível afirmar que, naquele período, existiam os territórios do cauim, nos quais a bebida exercia papel econômico, político e cultural nas tribos que se utilizam desse fermentado, reforçando os aspectos teóricos dos TC. Como pudemos verificar durante essa seção, o cauim foi combatido pela igreja e uma das formas de diminuir a importância dessa bebida foi a inserção da cachaça, que provocou profundas transformações negativas no quadro social indígena. Apesar de suas consequências

101 Apesar de pertencer a um grande grupo econômico e não ser uma cervejaria independente, ela carrega a essência da cerveja artesanal, que busca valorizar os saberes locais e os elementos da biodiversidade em que está inserida. Assim, se de um lado ao se juntar à Ambev a Colorado perde a sua independência e sua relação com as microcervejarias do Brasil, como quem traiu o movimento, por outro lado, ainda mantém sua identidade ao utilizar elementos da cultura local na sua produção, como podemos verificar na expansão dos rótulos (antes seis e agora 13) (CERVEJARIA COLORADO, s. d., on-line). 172 nocivas, a bebida destilada foi aderida à cultura dos nativos e vigorou como soberana no Brasil até a primeira metade do XIX. A cerveja foi se tornando a bebida mais consumida do Brasil ao pegar carona na trajetória socioterritorial que as bebidas alcoólicas tiveram na história do país. A ingestão de bebidas alcoólicas é uma marca do povo brasileiro desde sua formação nas diferentes matrizes étnico-culturais e nas diferentes fases históricas e espaços geográficos. Então, se temos a possibilidade de tomar uma cerveja em praticamente qualquer lugar do Brasil102, devemos isso também aos índios, seus cauins e cauinagens. Na seção seguinte, discorreremos sobre a história da produção de cervejas maltadas de origem Europeia, visando compreender como essa bebida fermentada se inseriu no Brasil. A passagem da cerveja em terras tupiniquins sob o domínio holandês é um tema pouco explorado na literatura, de modo que esta tese buscar preencher, de alguma forma, essa parte da história da cerveja no Brasil, evidenciando os espaços que foram ocupados por sua produção naquele tempo.

5.2 A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria do Brasil

A cerveja no Brasil holandês pode ser considerada a primeira forma de TC no Brasil, a partir das cervejas maltadas. Sua compreensão é importante passo para a história da cerveja no Brasil, cujas informações são escassas e fragmentadas informações nesse contexto. A localização dessa produção é um elemento importante que confere a base material para a formação de primeiro território atrelado à cerveja maltada no Brasil. Esta seção busca entender a instalação da cervejaria no Recife, a partir da necessidade frugal das tropas holandesas, e como um ato que visava acalmar os ânimos holandeses em face das dificuldades advindas do projeto colonizador no Nordeste brasileiro, dificuldades essas que envolviam a resistência holandesa em se adaptar à terra, a rejeição da dieta alimentar da colônia e as dificuldades de produção e acesso a alimentos no Recife do século XVII. Em outras palavras, a empreitada de se produzir cerveja no Brasil deve ser compreendida a partir da combinação desses fatores. Nesse contexto, também serão observadas as questões espaciais da produção cervejeira no período.

102 Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), 99% dos lares brasileiros são atendidos pela indústria da cerveja (CERVBRASIL, s. d.[a], on-line). 173

Essa situação contribuiu para formar um imaginário dos brasileiros em relação à invasão holandesa. Seus componentes envolvem diretamente a relação entre os brasileiros e holandeses e a ocupação dos espaços na antiga cidade do Recife, já que, durante o governo de Nassau, o espaço urbano sofreu transformações significativas103. As criações dos imaginários holandês em relação ao Brasil e dos brasileiros em relação à invasão holandesa e seus componentes serão analisadas sob a perspectiva das relações entre o espacial e o social na chamada Geografia dos Imaginários. O desenvolvimento da receita de cerveja produzida em Recife nos leva a um capítulo da história da cerveja na Holanda, que tem no século XVII um momento importante de transformação, ao deixar de lado um know how cervejeiro construído durante toda a Idade Média na Europa. Compreender a ocupação holandesa, implica no entendimento das condições materiais dessa ocupação e na compreensão de uma parte da história da alimentação no Brasil e na Holanda. A invasão holandesa no Brasil se deu por meio da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (em holandês: West-Indische Compagnie ou WIC), criada em 1621 com o monopólio do comércio colonial dos Países Baixos e de escravos com o Caribe, Brasil, América do Norte e partes da África Ocidental. O maior objetivo dessa companhia era retomar o comércio do açúcar produzido na região Nordeste do Brasil, que já despontava com uma das principais áreas de produção do mundo (NASCIMENTO, 2008). A relação entre Portugal, Holanda e o açúcar é bem anterior à invasão do Nordeste. Furtado (2007, p. 33) descreve como os flamengos financiaram a formação da estrutura produtiva do açúcar no Brasil, uma vez que tinham uma organização comercial suficiente para distribuir o novo produto na Europa. O autor ainda afirma que “a contribuição dos flamengos - particularmente dos holandeses - para a grande expansão do mercado do açúcar, na segunda metade do século XVI, constitui um fator fundamental do êxito da colonização do Brasil”104. Essa constatação deixa claro os motivos da invasão holandesa no Nordeste brasileiro. A ocupação da região ocorreu em cinco diferentes ocasiões:

103 Segundo Claval (1999), a Geografia Cultural passou por um movimento de renovação e reforçou seu interesse sobre os aspectos “não materiais” que envolvem as questões que relacionam espaço e cultura. Segundo essa ótica, entender a criação do imaginário e a relação com o espaço é um dos objetivos da também chamada geografia dos imaginários que, em certa medida, explica alguns processos da ocupação holandesa em Recife e a construção dos imaginários em torno desse processo. 104 A colonização brasileira precisou vencer outros desafios para se fixar, como técnicas de produção, criação de mercado, financiamento, mão de obra. Os holandeses tiveram papel fundamental na criação e no financiamento do mercado de açúcar (FURTADO, 2007). 174

a) 1624 - 1625: invasão de Salvador, na Bahia; b) 1630 - 1654: invasão de Olinda e Recife, em Pernambuco; c) 1630 - 1637: resistência ao invasor; d) 1637 - 1644: administração de Maurício de Nassau; e) 1644 - 1654: Insurreição Pernambucana.

Em seu auge, o Brasil holandês se estendia, em seu litoral, por todo o Nordeste desde a Bahia até o Maranhão (Figura 39). Os primeiros invasores tentaram ocupar Salvador, capital da colônia, mas foram expulsos pela frota espanhola105. Já a tomada de Olinda e Recife foi mais duradoura. A resistência aos invasores concentrou-se no Arraial de Bom Jesus, mas não suplantou os holandeses. O período do governo do conde alemão Johann Moritz von Nassau- Siegen, mais conhecido como Maurício de Nassau (1637 - 1644) foi um tempo de relativa paz. Entretanto, após o término do período de Nassau, as disputas pela colônia se intensificaram, e o domínio holandês terminou com a Insurreição Pernambucana, que culminou na Batalha dos Guararapes106, em que os holandeses foram definitivamente expulsos do Brasil (MELLO, 2009).

105 Nesse momento, existia o que a historiografia moderna chamou de União Ibérica, com a junção das monarquias de Portugal e Espanha entre os anos de 1580 e 1640. Devido a esse fato, a Espanha expulsou os holandeses de Salvador. 106 Essa batalha, ocorrida no morro dos Guararapes, nos arredores de Recife em 1648, é considerada o marco da criação do exército brasileiro e a sua data, 19 de abril, comemorada atualmente como o Dia do Exército. Contudo, a expulsão dos holandeses se deu somente em 1654 com a rendição de seus comandantes. Ainda foi necessário que o governo português pagasse aos holandeses uma indenização pelo tratado de Haia em 1661. 175

Figura 39 - Mapa do Brasil holandês no século XVII, por P.M. Netscher, Haia 1853

Fonte: BUVE, 2011, p. 34.

Na Figura 39, a linha marcada em vermelho reproduz a fronteira da colônia durante o governo de Maurício de Nassau, em 1641. O mapa oferece uma boa perspectiva da região conquistada entre São Luis, no Maranhão e a capitania de Sergipe. A ocupação holandesa, no entanto, foi além do espaço delimitado por Netscher. Em 1641, exploraram a foz do Rio Pará e a Île de Marajó, registrada como terreno para a cultura do tabaco. O mapa faz parte da coleção Bodel Nijenhuis, da Biblioteca da Universidade de Leiden (BUVE, 2011). Dos períodos destacados acima, a permanência de Maurício de Nassau é a mais impactante em termos culturais, arquitetônicos, políticos e administrativos. Naquela mesma época, a cidade do Recife floresceu e a cervejaria foi instalada. O governo de Nassau ficou conhecido pelos avanços urbanísticos da cidade, com a criação do plano urbanístico da ilha de Antônio Vaz (atualmente o centro antigo do Recife), a liberdade religiosa, a documentação da paisagem local, além da criação do jardim botânico, do zoológico e do observatório astronômico. Nassau ainda construiu dois palácios, uma igreja, a primeira ponte107 da América

107 Na inauguração da ponte, a fim de levantar recursos, Nassau falou ao público que quem fosse ao evento veria um boi voar. No dia 28 de fevereiro de 1644, fez um boi andar por entre as casas e as pessoas. Depois, utilizou um boi fictício, moldado em couro e cheio de palha, que foi amarrado em cordas entre duas torres, sobre roldanas,

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Latina, pavimentou ruas e remodelou urbanisticamente Recife, que passou a possuir de 40 para 380 casas, número extraordinário para a época. Os imóveis compridos e estreitos da Rua Imperador Dom Pedro Segundo, no bairro de Santo Antônio, são um exemplo desse legado (SOUZA, 2018). Nassau ainda trouxe nomes das mais diversas áreas do conhecimento. Destacam-se os pintores Zacharias Wagener, Frans Post e Albert Eckhout, o cientista Willem Piso, que veio à Nova Holanda para estudar as doenças tropicais, o cartógrafo Cornelis Golijath e o astrônomo saxão Georg Marggraf, autor da História Naturalis Brasilia108 (1648), juntamente com Piso. Vieram ainda três vidraceiros e um entalhador (SOUZA, 2018). Segundo Gilberto Freyre (apud MELLO, 2009, p. 6):

Com o domínio holandês e a presença, no Brasil, do conde Maurício de Nassau [...] o Recife, simples povoado de pescadores em volta de uma igrejinha, e com toda a sombra feudal e eclesiástica de Olinda para abafá-lo, se desenvolvera na melhor cidade da colônia e talvez do continente. Sobrados de quatro andares. Palácios de rei. Pontes. Canais. Jardim botânico. Jardim zoológico. Observatório. Igrejas da religião de Calvino. Sinagoga. Muito judeu. Estrangeiros das procedências mais diversas. Prostitutas. Lojas, armazéns, oficinas. Indústrias urbanas. Todas as condições para uma urbanização intensamente vertical. Fora esta a primeira grande aventura de liberdade, o primeiro grande contato com o mundo, com a Europa nova — burguesa e industrial — que tivera a colônia portuguesa da América, até então conservada em virgindade quase absoluta. Uma virgindade agreste, apenas arranhada pelos ataques de piratas franceses e ingleses e pelos atritos de vizinhança e de parentesco, nem sempre cordial, com os espanhóis.

Para Abdala (2008, on-line), os feitos dos holandeses e principalmente de Nassau criaram marcas na cultura e no imaginário dos brasileiros, especialmente dos pernambucanos. Entretanto, a herança material sucumbiu, pois os prédios daquela época não existem mais e a ponte original suportou o tempo. Segundo Lindón e Hiernaux (2012), a chamada geografia do imaginário se debruça sobre as articulações entre os imaginários espaciais com as respectivas formas espaciais e os contextos sociais. Em outras palavras, há uma dimensão imaginária entre os aspectos social e espacial. Essa relação espaço/sociedade cria representações simbólicas que atravessam o tempo, contribuindo para a visão contemporânea que temos dos elementos do passado. A visão popular sobre a invasão holandesa gera imaginários que, na maioria dos casos, estão mais

“sobrevoando” os ares de Recife. O evento arrecadou milhares de florins e o fato ficou famoso, sendo assunto de livro (ver O príncipe Maurício de Nassau, o holandês do boi voador de Guido Heleno e Jô Oliveira) e tema de música (ver Boi voador não pode, de Chico Buarque de Holanda) (MACHADO, 2009). 108 Essa obra é considerada a primeira de caráter científico sobre a natureza brasileira. 177 associados a construções mitológicas que a uma construção real (CLAVAL, 2012). Nesse caso, observamos que há muita construção imaginária sobre a ocupação holandesa e pouco resgate dos fatos. O resgate histórico através de documentos e narrativas, especialmente em relação à ocupação holandesa é necessário exatamente porque a relação entre espaço, sociedade e imaginário no Recife holandês é muito profunda. Nassau foi responsável por transformações significativas no espaço da cidade. Até hoje, falas como “o melhor prefeito de Recife foi Nassau” ecoam no imaginário popular (TAVARES, 2018, on-line). É preciso ressaltar que o desenvolvimento urbano e social daquele período foi marcado pela exploração extensiva da monocultura, pela exploração do trabalho humano e por condições degradantes dos habitantes da região, tanto colonizadores, como os primeiros brasileiros, os diversos grupos indígenas que habitavam o lugar e africanos que vieram escravizados. A cervejaria no Recife deve ser entendida como um fruto desse processo, em que as inovações urbanas foram construídas em meio a uma situação mais caótica que idílica. Como já mencionado, o interesse da Holanda no Brasil era o comércio do açúcar. Enganam-se, contudo, aqueles que pensam que Pernambuco seria melhor se os holandeses tivessem governado por mais tempo no lugar dos portugueses109, pois o objetivo de ambos era o lucro110. Ainda que durante a administração de Nassau alguns avanços tenham sido realizados, a vida cotidiana dos habitantes de Recife e dos colonizadores holandeses não era fácil. Segundo Mello (2009), era comum ver soldados holandeses maltrapilhos pelas ruas do Recife. Além disso, os preços dos víveres eram altos, assim como dos aluguéis, causando uma crise de moradia). Eram constantes as crises de abastecimento, as doenças e a miséria entre as tropas holandesas111. Segundo o autor,

109 Vale lembrar das outras experiências coloniais holandesas. Nas Antilhas, África do Sul ou Indonésia, por exemplo, temos um legado bastante negativo da colonização holandesa. 110 Essa tese, por exemplo, é defendida pela historiadora Virginia Almoedo e pelo arquiteto José Luiz de Menezes. Menezes comenta que os holandeses tinham a Guiana Holandesa (Suriname), terras na África, e que tudo foi desaparecendo. Isto indica mais um insucesso da experiência colonial holandesa que uma experiência frutífera. É desse modo que a ocupação holandesa no Nordeste Brasileira deve ser compreendida (SOUZA, 2017, on-line). 111 Mello transcreve um trecho de uma carta datada de 1650: “é uma lástima e uma vergonha para o Estado ao qual os soldados prestaram juramento, vê-los ir pelas ruas, todos esmolambados, com os trapos arrastando, muitos sem poder cobrir o corpo, mais parecendo mendigos que soldados. Apanham as imundícies das ruas, que nem os porcos querem comer, para acalmar sua grande fome; e como lhes falta o imprescindível para o sustento são levados a condições abjetas; apanham trapos nas ruas e nos canais e consideram sorte quando encontram algum farrapo ou graveto (stockje) para lenha no caminho. Procura cada um ao romper do dia, anteceder os outros em percorrer as ruas e a praia a ver se encontra algo que lhe possa servir” (MELLO, 2000, 167). GONÇALVES DE MELLO, J. A. Templo dos Flamengos. Influência e ocupação holandesa na vida e na cultura norte do Brasil. Recife: Topbooks, 2000. 178

o período da dominação holandesa no Brasil foi uma época de altos e baixos: períodos de prosperidade em que o Recife, segundo a expressão de certo documento, era “um monte de ouro”, sucediam e antecediam outros de miséria negra, em que se morria de fome pelas ruas. A palavra “fome” é uma das mais comuns nas Generale Missiven. Apesar da remessa constante de víveres da Holanda, no Recife e em Maurícia os burgueses e o povo passaram momentos de fome (MELLO, 2000, p.157).

Em termos alimentares, os problemas se repetiam. Para Freyre (1947), o colonizador holandês não revelou no Brasil jeito especial para se adaptar ao meio diferente. Ao contrário do português, que tão logo chegou ao Brasil aprendeu com os índios como se alimentar e como cultivar a terra, os holandeses permaneceram presos aos seus hábitos mais arraigados, dentro das mesmas atitudes, com a mesma dieta e o mesmo tipo de casa. Até a dieta do exército holandês era proveniente da metrópole. Mello (2000, p.144) escreve: “Da Holanda vinha-lhes todo o necessário à subsistência: a carne de boi e de carneiro salgada, toucinho, presunto, salmão, bacalhau salgado e seco, arenque, farinha de trigo, vinhos da Espanha, francês e do Reno, cerveja, queijo, manteiga, azeite, azeitonas, alcaparras, figos, passas, amêndoas, etc.”. Os soldados do interior também eram alimentados com essa dieta. Outra situação que reforça a não adaptação dos holandeses à terra e aos costumes brasileiros está presente nos relatos dos viventes daquela época, como o do soldado da WIC, Peter Hansen Hajstrup que, em 1646, ao chegar a Recife vindo da Paraíba, recebeu apenas uma ração para o sustento de meses contendo bacalhau, farinha de trigo, azeite, vinagre. Com isso, vários holandeses passaram para o lado do inimigo ou morreram. Hajstrup ainda relata que cavalos, cachorros, gatos e ratazanas foram a melhor comida que podiam ter nos tempos de escassez (TEENSMA; MIRANDA; XAVIER, 2016). Ainda que a situação de abastecimento da cidade fosse bastante complexa, Nassau, por outro lado não desistiria de determinados luxos pessoais. Recebia os comensais com muita fartura, conforme descrito no documento de 1644, para orientar o despenseiro do Palácio de Vrijburg, uma das casas de Nassau no Recife. Assim, eram entregues diariamente na cozinha do palácio:

100 libras de carne verde ou 50 de carne salgada e 50 de carne verde; 20 ou 25 libras de toucinho, segundo a necessidade; 4 galinhas e pombos, segundo a necessidade; 2 litros de vinho espanhol; 4 litros de cerveja; 11/2 litros de azeite; 4 litros de vinagre; 14 pãezinhos brancos e para cada uma das mesas tantos pãezinhos quantas pessoas houver, exceto a mesa de S. Exa., onde

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haverá pão e bebida sem conta certa. 2 litros de aveia; 5 litros de ervilha; 12 libras de carne de fumeiro (MELLO, 2007 p. 127).

Há um evidente contraste entre a fartura do palácio de Nassau e as restrições enfrentadas pelas tropas e pelos colonos. De certo modo, as medidas tomadas por Nassau e pelo Alto Conselho se mostraram tímidas e muitas vezes inócuas. Em 1641, por exemplo, é publicada uma norma proibindo a derrubada de cajueiros112. Em 1640, torna-se norma o plantio de roça de mandioca em uma parte das terras dos engenhos com fins de alimentação da colônia, ainda que, como vimos, os holandeses resistissem ao consumo da mandioca e seus derivados. No entanto, esses esforços não foram muito frutíferos. “Apesar dos esforços de Nassau e do Alto Conselho, nunca se chegou a um período de equilíbrio em que o Nordeste pudesse atender suas próprias necessidades. A monocultura sempre foi o principal entrave a este equilíbrio. Em certa ocasião o açúcar foi distribuído a população do Recife e Maurícia em substituição a farinha, que faltara completamente. Diz a Dagelijksche que a cada morador foi distribuída 1 libra de açúcar. Açúcar no lugar de pirão” (MELLO, 2007, p. 243). A imagem que os holandeses tinham do Brasil não era das melhores, já que não conseguiram se adaptar à terra (espaço) e aos costumes (alimentação). Por outro lado, se firmou um forte imaginário na população local sobre o comando dos holandeses no Nordeste brasileiro que se mostra até hoje, sobretudo em Recife. Durante a administração de Nassau no Recife, no Palácio La Fontaine, uma das casas de Nassau, foi instalada a primeira cervejaria do Brasil. Segundo Gonçalves de Mello (1976, p. 32-33), “o cervejeiro chegou ao Recife em outubro de 1640 e trazia permissão do Conselho do XIX para instalar aqui a sua fábrica” na aldeia de Sua Excelência, utilizando para tal a casa da Companhia, com o rio e o mais que se encontra nas proximidades e a lenha de que tiver necessidade, tudo pelo tempo de seis anos próximos futuros. O cervejeiro em questão era Dirck Dicx, proveniente de uma tradicional família de produtores de cerveja da cidade de Haarlem, um dos centros cervejeiros mais importantes da Holanda na época. A casa da Companhia, que seria a La Fontaine de Nassau, foi realmente entregue pelo prazo de quatro anos e pelo aluguel

112 “Resolveu-se tornar pública a proibição de que nenhum senhor de engenho, queimadores de cal, oleiros, fabricantes de cerveja (“brouwers”) ou quem quer que seja, permita-se derrubar algum cajueiro, sob multa de cem florins” GONÇALVES DE MELLO, J. A. Tempo dos Flamengos, Rio de Janeiro, 1947b, p. 160 apud BRAGA, R. Plantas do Ceará. Revista do Instituto do Ceará, t. LXIII, 1949, p. 100.

180 global de 1.500 florins113. A cerveja começou a ser fabricada e distribuída depois de abril de 1641, constando ser “uma cerveja forte”. Diversos estudos sobre a história da cerveja no Brasil relatam a instalação da cervejaria na ocupação holandesa no Brasil (SANTOS, 2004; MORADO, 2009; BELTRAMELLI, 2014), porém apenas de maneira superficial e sem analisar o contexto da época. Nesse sentido, a partir de uma visão holística do processo, podemos inferir que a abertura da cervejaria pudesse ter a função de aplacar as necessidades das tropas, ao fornecer um produto mais fresco e de melhor qualidade, uma vez que, no século XVII, o transporte por longas distâncias provocava a deterioração da cerveja, ou para abastecer seus próprios jantares no Palácio Vrijburg. Diversos sites e fontes no Brasil denominam a cervejaria como La Fontaine, mesmo nome do palácio de Nassau onde a fábrica foi instalada. No entanto, isso não está documentado. Segundo Mello, o espaço era usado como casa de descanso de Nassau, até que em outubro de 1640, passou a abrigar a fábrica de cerveja: “Nassau provavelmente deixou de usá-la após a construção do parque de Vrijburg, de vez que desde outubro de 1640 ela passou a ser utilizada por uma fábrica de cerveja” (MELLO, 2006 p. 73). O mapa de Cornelis Golijath, a seguir, impresso em 1648 (Figura 40), traz a indicação "Het Dorp Aldea hier is een Brouwerye en Suycker Pas" (A vila Aldeia; aqui há uma fabricação de cerveja e um passo de açúcar).

113 Atualmente, junto do grande crescimento no número de cervejarias no Brasil – passando de quase 200 em 2008 para mais de 800 dez anos depois, também se verifica o aumento das chamadas cervejarias ciganas, aquelas que, sem uma indústria, alugam a planta cervejeiro de terceiros. De acordo com essa definição, a primeira cervejaria do Brasil, seria uma cervejaria cigana (MARCUSSO; MÜLLER, 2019a). 181

Figura 40 - Mapa de Cornelis Golijath, impresso em 1648

Fonte: BNDigital, s. d., on-line.

A linha vermelha em destaque no mapa mostra onde, aparentemente, se localizava a “aldeia Nassau”114 e a cervejaria de Dirck Dicx. Segundo outros mapas da época, a aldeia de Nassau ficaria entre São José do Manguinho (Atual Parque Amorim) e o antigo Sítio das Freiras (Atual Bairro dos Aflitos). Essa região viria a ser denominada de Bairro da Capunga115 no século XIX. A Figura 41 mostra o local de instalação da cervejaria no traçado urbano recente do Recife.

114 A casa de La Fontaine era também chamada de aldeia Nassau por ficar muito próxima de uma aldeia de índios Tapuias. 115 “[...] na área do primitivo sítio que começava na Camboa do Manguinho (Parque do Amorim) e se estendia até à margem do Capibaribe, em área limitada pela Estrada do Manguinho (Avenida Rui Barbosa), Rua da Baixa Verde e Rua da Ventura (Rua Joaquim Nabuco). O sítio veio a ser dividido em dois, denominados de ‘Capunga Velha’ (que tinha por eixo a atual Rua Joaquim Nabuco) e ‘Capunga Nova’, com início nos Quatro Cantos e tendo por eixo a atual Rua das Pernambucanas” (DANTAS, s. d., on-line). Em 2015, foi fundada em Recife, a cervejaria Capunga, que homenageia o bairro em função da provável localização da cervejaria de Nassau. 182

Figura 41 - Possível localização da antiga Aldeia Nassau

Fonte: Elaboração própria a partir do site MyMaps do Google.

Diversos autores relatam o consumo de cerveja durante a ocupação holandesa no Recife pelas tropas da Holanda, por habitantes holandeses ou pelos portugueses. Segundo o relatório sobre o estado das capitanias conquistadas no Brasil, apresentado pelo Senhor Adriaen van der Dussen ao Conselho dos XIX na Câmara de Amsterdã, em 4 de abril de 1640 relata-se “Ainda são procurados aqui cobre, ferro, aço, breu, óleo de peixe, mas sobretudo os seguintes gêneros alimentícios: vinhos, cervejas, azeite, manteiga, queijo, farinha de trigo fina, bacalhau, toucinho, presunto, línguas, carnes de fumeiro, peixes da Terra Nova, sardinhas e tudo de bom que aparece” (DUSSEN, s.d. apud GONÇALVES DE MELLO, 2004, p.191). Entretanto, ainda que existam relatos de procura e de consumo de cerveja no Brasil holandês, a bebida era ainda um produto caro e de difícil acesso e cuja preferência estava mais ligada aos hábitos holandeses que dos portugueses, como podemos ver nessas passagens: “O que se fornece de ração em carne e farinha é consumido muito mais rapidamente do que se a pensão [do funcionário da WIC] e o rancho [do soldado] fossem pagos em dinheiro, porque os soldados quando recebem dinheiro compram pouca carne, arranjam-se com um pouco de farinha e algumas frutas e o que podem dispensar empregam em garapa para beber, porque cerveja e vinho são caros para eles” (MELLO, 2006, p.293).

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E: “As coisas tinham subido a um preço incrível: a libra de carneiro ou de vitela estava a quarenta soldos; a de porco, que neste lugar é a mais sã e mais delicada, custava três libras; um ovo fresco, dez soldos; uma galinha, dez libras; um leitão, quinze libras; um peru, 25 libras; o par de pombos, três libras; o vinho de Espanha, da França e a boa cerveja, cinco libras a pinta, a medida de Amsterdã, que não é senão o quartilho de Dijon; o pano grosso, cinquenta soldos ou três libras (op. cit. p.293).

A vinda do cervejeiro Dirk Dicx também é um capítulo bastante curioso. Dicx era filho dos donos da cervejaria ‘t Scheepje, na cidade de Harlem, na Holanda. Seu pai era membro do conselho da cidade e fazia parte da guilda dos cervejeiros locais. Além disso, Dicx também trabalhou em outra célebre cervejaria da região, a Halve Maen’t. O cervejeiro tinha patente militar, o que talvez justifique seu aparecimento nas telas do pintor neerlandês Franz Hals116. Em 1640, Dicx autorizou a venda de sua casa em Haarlem e partiu para o Brasil117. A cervejaria ‘t Scheepje foi uma das mais duradouras e tradicionais da cidade de Haarlem. Fundada no século XVI, tornou-se uma das maiores e mais reconhecidas cervejarias da região. Sua importância histórica advém do fato de que, até 1913, quando encerrou as atividades, a ‘t Scheepje guardou processos, ingredientes e receitas do modo tradicional de se fazer cerveja na Holanda118. O século XVII, também conhecido como século de ouro na Holanda, é um ponto de virada na história da cerveja e dos processos cervejeiros neste país119. Desde a baixa Idade Média, o fabrico de cerveja no que veio a se tornar o território holandês, era atividade recorrente. Segundo o historiador R. W. Unger,

A fabricação de cerveja era rural na Holanda até o final do século XIII, quando surgiram as primeiras cervejarias urbanas. A indústria foi transformada no século XIV pelas mudanças técnicas que inauguraram a era de ouro da fabricação de cerveja no país. Esse período de prosperidade durou do final do

116 Segundo Unger (2001, p. 6): “In many cases brewers were part of civic government in Holland from the fourteenth throught the seventeenth century. The frequency of brewers taking public positions can be explained in part by their prosperity and by their being tied to the town.” 117 Consulta presencial da pesquisadora Tatiana Rotolo no Noord-Hollands Archief, em dezembro de 2017. 118 Boa parte desse material está preservado no arquivo público da Holanda do Norte. Algumas cervejarias atuais já acessaram essas receitas antigas e reproduziram cervejas de época. O caso mais conhecido é da cervejaria Jopen, situada também na cidade de Harlem. A Jopen já produziu uma versão de uma cerveja lupulada à base de maltes de cevada, trigo e aveia, cuja receita é datada de 1501. Além disso, a própria fundação da cervejaria, em 1995, se deu em função da reprodução de uma das receitas tradicionais preservadas no arquivo público, produzida para o aniversário de 750 anos da cidade de Harleem (JOPEN, s. d., on-line). 119 Pouco se conhece sobre a história da cerveja na Holanda. Tradicionalmente, a maioria dos estilos de cerveja existentes no mundo é dividida e classificada em quatro grandes escolas: a inglesa, a alemã, a belga e, mais recentemente, a norte-americana. Entretanto, é preciso considerar que a Bélgica apenas passou a existir como país em 1830 e boa parte de seu território era de domínio holandês. Além disso, a Holanda faz fronteira com a Alemanha. Ou seja, podemos afirmar que a história da cerveja na Holanda é um híbrido entre as formações da cervejaria belga e território de influência da cervejaria alemã. 184

século XIV até meados do século XVII. Embora o desempenho e a prática não fossem uniformes durante toda a idade de ouro, era uma era em nítido contraste com o longo declínio estabelecido por volta de 1650, um declínio que só foi aliviado quando a indústria passou por uma segunda grande transformação nas décadas de 1860 e 1870, estabelecendo as bases para a próspera indústria cervejeira holandesa contemporânea” (UNGER, 2001, p. 7, tradução nossa).

Unger (2001) destaca que compreender a passagem do processo de fabricação de cerveja desde o final da Idade Média até sua consolidação como atividade industrial é também entender a passagem de uma atividade doméstica para um empreendimento industrial. Esse processo teve seu auge durante os séculos XV e XVI, encontrando os primeiros sinais de esgotamento na metade do século XVII, justamente o período que Dicx veio para o Brasil. Nesse caso, a indústria cervejeira holandesa, entre os séculos XIV, XV, XVI e XVII, constituía importante atividade econômica, sendo capaz até mesmo de patrocinar parte do chamado “Século de Ouro na Holanda”120. Entre os séculos XV a XVII, a indústria cervejeira holandesa ainda vivia um crescimento expressivo. Entretanto, ainda que com um volume de produção bastante elevado, as altas taxações às cervejas produziram, em alguns momentos, crises e instabilidade no setor (UNGER, 2001). O consumo per capita na Holanda era bastante elevado e os holandeses se orgulhavam de fazer parte de um país de “bebedores de cerveja”. Segundo Unger (2001), cada adulto na Holanda consumia em torno de quatro litros de cerveja por dia121. Em muitos casos, a cerveja substituía até mesmo o consumo de alimentos à base de grãos e outros sólidos. O autor ainda destaca que boa parte das safras de grãos eram preferencialmente destinadas à produção de cerveja e não de pão. Muitos dos estilos e processos de cervejas holandesas foram ficando para traz desde o século XVI e XVII até o século XIX, quando a Revolução Industrial trouxe, além de maquinários e tecnologia, estilos ligados à escola de cerveja da Alemanha122. As cervejas tradicionais holandesas, no período do século XVII, praticamente se extinguiram, salvo

120 Segundo Unger (2001, p. 7), “They formed the basis for the prosperity of the Dutch economy in the seventeenth century, the 'Golden Age', and indeed for the prosperityof all of Europe in the years before the Industrial Revolution. Traders imported raw materials from overseas, they were worked up in combination with domestic materials by native workers and the final products were then exported by traders to markets throughout Europe. To understand the success of the Dutch economy, its character and structure, and indeed to understand the pattern of economic development from the late Middle Ages to the Industrial Revolution some appreciation of what happened in brewing is a necessity.” 121 A título de comparação em 2016, olhando a população em geral, o maior consumo per capita diário de cerveja, na República Checa, é de cerca de 400 ml e na Holanda quase 200 ml (KIRIN, 2017). 122 A Heineken, por exemplo, foi fundada em 1864.

185 raríssimas exceções, como os estilos resgatados pela cervejaria Jopen em edições especiais ou comemorativas. Estilos de cerveja como a Kuit123, as Luiks, ou cervejas claras e escuras fabricadas na Holanda já não existem mais. Há ainda relatos de cervejas tipo Witbier (também chamadas de Whitebiers). O uso de variados tipos de grãos também era comum na época. Além do malte de cevada, os mestres cervejeiros usavam malte de trigo, aveia, espelta e centeio. A adição de lúpulo, elemento praticamente obrigatório nas cervejas atuais, era de uso bastante discreto no século XVII (LOST BEERS, s. d., on-line)124. A utilização de especiarias na cerveja era prática comum na Holanda, com intuito de conferir sabor. Essa prática está na origem ao que hoje chamamos de gruit biers125. As especiarias mais comuns utilizadas, especialmente até em torno do século XVII126, eram: cardamomo, semente de coentro, anis, lavanda, alcaçuz, gagel127 e um infinidade de raízes e ervas. Unger (2001) destaca o uso de ingredientes como mel, açúcar, cravo e canela. No Brasil, não há relatos de que tipo de cerveja era fabricado na cervejaria operada por Dicx. Contudo, Unger (2001) destaca que, em Nova Amsterdam, atual Nova Iorque, algumas cervejarias que começaram a operar por imigrantes holandeses no século XVII usavam ingredientes regionais, destacando uma espécie de lúpulo desenvolvida naquela região. Sabemos que chegava trigo ao Brasil, mas não há referência em relação aos demais insumos cervejeiros. Entretanto, se somarmos as dificuldades enfrentadas para o abastecimento na colônia, a vasta produção de açúcar no Nordeste brasileiro, a experiência de um mestre cervejeiro como Dicx e a tradição de cervejas na Holanda do XVII, é possível inferir que talvez a primeira cerveja brasileira tenha contido uma quantidade de malte de trigo e algum açúcar para facilitar a fermentação, o que de certa forma justifica o fato da cerveja holandesa no Brasil

123 Esse estilo de cerveja consta no guia de estilos da Brewers Association (mais conhecido como Guia do BA), editado em 26 de abril de 2017. O Guia do BA mantém um “dutch style” que pode ser chamado de Kuit, Kuyt ou Koyt. A descrição menciona cor do ouro ao cobre (SRM 5-12.5 ou 10-25 EBC); com turbidez média por conta de proporção dos cereais utilizados; corpo de baixo para médio; aroma maltado por conta do uso de 15% de aveia e 20% de trigo, além do malte de cevada; notas de lúpulo são baixas quando utilizado no lugar do gruit, os ésteres frutados são baixos, é aceitável baixo diacetil, mas não DMS e acidez. A densidade original varia de 1.050-1.080 (12.4-19.3 °Plato) e final 1.006-1.015(1.5-3.7 °Plato); o ABV varia de 4.7%-7.9% e o IBU de 25-35 (BA, 2021, on-line). 124 Vale lembrar que, em 1516, foi promulgada na Alemanha a Reinheitsgebot, ou a Lei da Pureza, que impunha que a cerveja deveria ser fabricada apenas com malte, lúpulo e água (apenas no século XX a Lei acrescentou a levedura). Essa lei favoreceu muito o comércio cervejeiro holandês, que se tornou o principal centro exportador de cervejas com uso de gruit, proibidas na Alemanha a partir da Lei da Pureza. 125 Ainda que as Gruits não constem nos manuais de estilos, são conhecidas como as cervejas fabricadas e que não levavam adição de lúpulo, sendo usado um conjunto de ervas e especiarias para saborizar a cerveja. 126 Esse período, em alguns casos, podia se estender também para o século XVIII ou início do XIX (LOST BEERS, s. d., on-line). 127 Um tipo de erva aromática bastante comum na Holanda e no norte da Europa. Também é conhecida como Myrica Gale.

186 ser considerada uma “cerveja forte”128. As dificuldades de abastecimento em Recife podem ter sido um obstáculo à produção em larga escala por parte da cervejaria de Nassau. As bases de inclusão da cerveja no cotidiano do brasileiro aparecem como potencial elemento econômico e cultural, o que será melhor discutido na seção seguinte, na qual discutiremos a expansão da cerveja, sobretudo após o Brasil Império.

128 A produção de cerveja em La Fontaine se iniciou em abril de 1641, com uma cerveja encorpada do tipo Swaar fermentada com açúcar (ATLAS DIGITAL DA AMÉRICA LUSA, s. d., on-line).

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5.3 A cerveja no Império: os primórdios da cerveja no centro do Brasil do século XIX

O início da produção de cerveja no Brasil deixa marcado no espaço a concentração de cervejarias que se perpetuaria até os dias atuais. Como veremos, Rio de Janeiro, a capital federal, é o centro da expansão dessa cultura, mas os estados do Sul despontaram com forte vínculo com a cerveja, advindo dos imigrantes europeus, sobretudo os alemães. Nesta seção, mostraremos como as cervejarias de século XIX estavam distribuídas no tempo e no espaço as cervejarias e analisaremos o grau de influência das tradições europeias nesse processo. Após a saída dos holandeses, a cultura de se beber cerveja não fincou suas raízes no Brasil, sendo a cachaça a bebida predileta nessa época. Existiam alguns contrabandos de cerveja nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro vindos da Inglaterra, mas nada suficiente para gerar um hábito, mesmo porque, no período colonial, os portos brasileiros eram fechados para navios estrangeiros e os portugueses temiam perder o mercado do vinho para a cerveja (COLEHO-COSTA, 2015). Evidências literárias mostram que um inglês chamado Lindley tomou cerveja em um mosteiro em Salvador, no qual existia grande estoque da bebida. Por volta de 1806, muitas garrafas de cerveja foram encontradas em inventários de Porto Alegre (SANTOS, 2004). A situação mudou com a vinda da família real portuguesa ao Brasil. Na Europa, o imperador francês Napoleão travava uma guerra contra a Inglaterra e, após controlar quase todo continente Europeu, impôs um bloqueio às ilhas inglesas. Em 1807, as tropas francesas invadiram o território português em direção à Lisboa e Dom João IV decidiu pela transferência da corte para o Brasil. No ano, cerca de 10 a 15 mil pessoas embarcaram rumo ao novo continente, sob proteção inglesa (FAUSTO, 2009). Essa transferência foi o primeiro passo para a independência do Brasil por tirar o país da condição de colônia (PRADO JÚNIOR, 2004). Durante a partida, vieram todo o aparelho burocrata português, o tesouro, a imprensa, os arquivos e bibliotecas do governo e a cerveja. “D. João VI que, quando veio para cá, não se esqueceu de trazer alguns tonéis de sua bebida preferida” (HOAUISS, 1986, p.76). O primeiro ato de Dom João no Brasil, ao chegar em Salvador, até então capital do país, foi decretar, em 28 de janeiro de 1808, a abertura dos portos às nações amigas, sendo uma clara referência aos ingleses. Esse ato colocava fim a 300 anos de sistema colonial e elevava o Brasil à situação de Coroa. Nos meses seguintes, a coroa portuguesa se deslocou para o Rio de Janeiro e, em 1º de abril de 1808, Dom João editou um alvará revogando o de 1785, que proibia fábricas e

188 manufaturas, alegando que essas atrapalhavam a produção agrícola. Essa medida liberou a abertura de manufaturas, mas as condições políticas e econômicas ainda não eram favoráveis para um surto industrial (O ARQUIVO NACIONAL E A HISTÓRIA LUSO-BRASILEIRA, 2018, on-line). A abertura dos portos ao livre comércio com o Brasil favoreceu os proprietários rurais produtores exportadores, porém não aos comerciantes de Lisboa e do Rio de Janeiro. Assim, em junho de 1808, o livre comércio foi limitado aos portos de Belém, São Luís, Recife, Salvador e Rio de Janeiro e o imposto sobre produtos importados foi fixado em 24% do valor da mercadoria e 16% quando se tratasse de embarcações portuguesas. O historiador Boris Fausto (2009) descreve que, em agosto de 1808, já existiam na cidade do Rio de Janeiro um núcleo de 150 a 200 comerciantes e agentes ingleses. O autor cita a fala de John Luccock, um dos agentes, afirmando “que os ingleses se tinham tornado senhores da alfândega, que eles regulavam tudo, e que ordens tinham sido transmitidas aos funcionários para que dessem particular atenção às indicações do cônsul britânico” (FAUSTO, 2009, p. 76). A influência dos ingleses crescia cada vez mais no Brasil, influenciando os hábitos cotidianos do brasileiro. A cerveja inglesa dominou o mercado brasileiro, como a “Porter e a Pale Ale, oriunda de Burton Upon Trent, menos alcoólica” (SANTOS, 2004, p. 13). Köb (2000) aponta que, no início do século XIX, a Inglaterra criara a mais avançada indústria cervejeira da Europa e já contava com máquinas a vapor na produção de suas cervejas, em especial a Porter de Londres. Assim, “a cerveja de origem inglesa dominou por longo tempo o mercado brasileiro durante o século XIX129” (KÖB, 2000, p. 31). O avanço do domínio inglês foi consolidado em 19 de fevereiro de 1810 com os tratados de Navegação e Comércio e de Amizade e Aliança. No primeiro, a tarifa de produtos ingleses ficaria em 15% do seu valor, de modo que esses produtos se tornaram mais vantajosos que os portugueses. Mesmo após a equiparação das tarifas, a variedade dos produtos ingleses prevaleceu em relações aos portugueses. Já no tratado de Amizade e Aliança, a coroa portuguesa se obrigava a limitar o tráfico de escravos aos territórios sob seu domínio e prometia vagamente tomar medidas para restringi-lo (FAUSTO, 2009).

129 O apogeu das importações de cervejas inglesas no Brasil foi entre 1865 e 1869 com 480.000 libras, muito além do período anterior, entre 1850 e 1854 com 111.000 libras, e posterior, entre 1885 e 1889 com 91.000 libras. A queda se deve à crescente produção nacional, como veremos adiante e ao aumento da importação de cervejas alemãs que vinham em caixas e garrafas, enquanto as inglesas vinham em barris (KÖB, 2000).

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Outros pontos que buscaram maior autonomia de Portugal e jogavam o Brasil na direção dos ingleses foram a independência, em 1822, a confirmação dos Tratados de Amizade e Aliança e Comércio e Navegação, em 1827130, e a abdicação do poder real de Dom Pedro I, em 1831, em nome de seu filho. Segundo Celso Furtado (2007), esses movimentos representaram a ascensão definitiva ao poder da classe dos grandes agricultores de exportação. Em um primeiro momento, os preços dos produtos importados baixaram e houve um maior fluxo de suprimentos, facilidade de crédito e grandes vantagens aos que ascendiam ao poder. Já para Caio Prado Júnior (2004), no terreno da economia, esse movimento não somente libertou a colônia dos três séculos de entraves ao desenvolvimento, mas estimulou diversas atividades no Brasil. Embora o domínio inglês e seus produtos tenham se expandido no Brasil, a cachaça continuou sendo a preferência do brasileiro até a década de 1830, quando começaram a chegar, com mais frequência outras bebidas importadas, como licores vinhos, gim e uísque, além da cerveja (COELHO-COSTA, 2015). Segundo Köb (2000), os ingleses influenciaram o estilo de vida os portugueses, sobretudo aqueles que vieram com a família real portuguesa, de modo que a cerveja inglesa foi, aos poucos, se tornando figura mais ativa no Brasil. Em 1826, José da Silva Lisboa, o Barão de Cayrú, figura pública da época e importante personagem na independência do país, discursando na câmara dos senadores do império do Brasil relatou que os estrangeiros tinham preferência pelo que viria a ser os EUA devido à proximidade com sua alimentação, destacando a cerveja como “conforto da vida” (Figura 42).

Figura 42 - Fala do Barão de Cayrú no Senado do Império em 1826

Fonte: Diário da Câmara dos Senadores do Império do Brasil, nº 9, sessão de 20 de maio de 1826 (HEMEROTECA DA BIBLIOTECA NACIONAL), s. d., on-line.

130 “Assim, a diplomacia inglesa conseguiu a renovação e revisão do tratado de 1810 e a Convenção para abolição do tráfico de escravos, e esta foi a conta da Inglaterra pelos serviços prestados ao Brasil na questão da Independência” (MAGALHÃES, 1972, p. 473). 190

Esse relato mostra os costumes alimentares dos imigrantes e sua necessidade por cerveja. Nesse período, a cerveja já era produzida no Brasil, em um processo tímido e caseiro, realizado por imigrantes para consumo próprio e pequenas vendas. A esse respeito, há o relato do oficial Carl Seidler que, no final dos anos de 1920, encontrou no Rio Grande do Sul imigrantes teutos que tinham conhecimento para fabricar cerveja (KÖB, 2000). Nesse ponto, esta tese contribui com uma atualização importante da história da cerveja no Brasil. As principais referências (HOUAISS, 1986; SLEMER, 1996; KÖB, 2000; SANTOS, 2004; MORADO, 2009, 2017; BELTRAMELLI, 2014) sobre o início da produção de cerveja no Brasil, pós-chegada da coroa, traz a notícia do Jornal do Commercio Rio de Janeiro de 27 de outubro de 1836, segundo a qual se vendia cerveja brasileira na rua Matacavalos131 (Figura 43).

Figura 43 - “Primeira” notícia de produção de cerveja no Brasil, em 1836

Fonte: Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Ano X, quinta-feira, 27 de outubro de 1836, n. 234 (HEMEROTECA DA BIBLIOTECA NACIONAL, s. d., on-line).

Contudo, no mesmo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, há 14 menções anteriores sobre produção de cerveja, muitas da mesma cervejaria, e todas divulgadas antes da chamada “primeira” notícia de produção de cerveja no Brasil. A menção mais antiga que encontramos traz elementos mais próximos da realidade vivida na época (Figura 44) do que a bela propaganda que se faz do líquido.

131 A rua Matacavallos (1848 a 1865) é hoje a Rua Riachuelo (1865 - atual) e já teve três cervejarias em diferentes momentos: em 1848, houve uma cervejaria de propriedade de Leiden, situada no n. 78; em 1855, a cervejaria de Villas Boas situava-se no n. 27 e; em1865, a Logos tinha uma cervejaria no n. 19 de Logos (COUTINHO, 2010). 191

Figura 44 - Primeira notícia de produção de cerveja no Brasil em 24 de maio de 1832

Fonte: Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Vol. VII, quinta-feira, 24 de maio de 1832, n. 211 (HEMEROTECA DA BIBLIOTECA NACIONAL, s. d., on-line).

Diante dessa notícia podemos refletir: seria feita por escravos a cerveja que foi primeiramente noticiada no Brasil? Certamente, o dono dos escravos comandava a ação e coordenava os escravos, porém não temos dados concretos para responder à pergunta, permanecendo apenas no campo da inferência. No entanto, podemos afirmar categoricamente que a primeira notícia que fez referência à produção cerveja no Brasil estava relacionada à escravidão. A cervejaria em questão, da Rua d’Ajuda n. 67 é noticiada mais sete vezes até se mudar para rua da Mizericordia n. 29 (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Vol. VII, sábado, 03 de agosto de 1833, n. 175) e depois para a mesma rua n. 64 (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Vol. IX, terça-feira, 24 de fevereiro de 1835, n. 43). Os donos da cervejaria, Srs. Vidal e C., fizeram leilão de todos os seus equipamentos em 1835 (Figura 45) e voltam para Europa. Havia “caldeira de cobre, filtros, cerveja engarrafada e em barricas, cupulo, aniz engarrafado, genebra em barris e engarrafada, coriambo, diversas ferramentas de tanoeiro, diversos trastes, huma boma de cobre, hum carro forte de carregar pipas, etc.” (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Vol. IX, sexta-feira, 23 de abril de 1835, n. 88).

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Figura 45 - Leilão da cervejaria dos Senhores Vidal e C. em 23 de abril de 1835

Fonte: Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Vol. IX, sexta-feira, 23 de abril de 1835, n. 88 (HEMEROTECA DA BIBLIOTECA NACIONAL, s. d., on-line).

A notícia seguinte sobre cerveja no Brasil é de 1836, já se referindo à cerveja vendida na Rua Direita n. 86 (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Ano X Quarta-Feira 12 de Outubro de 1836, rio de janeiro, nº 222). Essa notícia menciona apenas a venda de cerveja e não a produção, de modo que a notícia de 1832 é realmente a primeira sobre fabricação de cerveja no Brasil, informação essa que atualiza a história da cerveja no Brasil, constituindo importante contribuição desta pesquisa. No período inicial de produção cervejeira no Brasil, de maneira geral, a cerveja era de alta fermentação e era chamada de “Marca Barbante”, modelo ganhou popularidade no país. O nome se deve ao fato de que a fermentação produzia elevada quantidade de gás carbônico, que gerava grande pressão interna sobre a rolha. Assim, esta era amarrada com um barbante para impedir que se soltasse da garrafa, não utilizando as tampas de metal comumente adotadas na época (SILVA, 1960). Outras bebidas muito consumidas eram a “Gengibirra” ou “Jinjibirra”, feita de farinha de milho, gengibre, casca de limão e água. De origem caribenha e de gosto semelhante à cerveja, a bebida sua precursora no Brasil, gozando de grande aceitação popular.

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Na época, também se consumia “Caramuru”, bebida feita de milho, gengibre, açúcar mascavo e água (COUTINHO, s. d., on-line; KÖB, 2000). Na época, a entrada de imigrantes ganhou mais intensidade e estes se concentraram principalmente nos estados do Sul. Em 1824, com a chegada dos primeiros imigrantes alemães no Rio Grande do Sul, foi criada a colônia de São Leopoldo, onde se localizava a então Real Feitoria do Linho Cânhamo132. Em 1827, havia alemães em Três Forquilhas e São Pedro de Alcântara e, em 1929, já havia registros de alemães em Santa Catarina. No Paraná, entre 1830 e 1840, os alemães formaram colônias na região de Curitiba. Em 1850, foram fundadas Blumenau e Joinville (FOUQUET, 1974 apud LIMBERG, 2016). Blumenau foi importante centro de difusão da cerveja, tendo 12 cervejarias no final do século XIX, sendo as três principais a Hosang, fundada em 1860 por Heinrich Hosang; a Rieschbieter, fundada em 1875 por Carlos Rieschbieter; e a Jennrich, fundada em 1891 por Otto Jennrich. A vendas eram realizadas diretamente em seus bares-cervejarias e amplamente consumidas pela população local (KÖB, 2000). Há relatos do primeiro ano de imigração alemã no Brasil (1824), mas não há notícia escrita como as do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Ignácio Rasch133 abriu uma cervejaria nessa época para atender a demanda e alegrar o povo nas festas de Kerb134. Não se sabe exatamente quando essa cervejaria foi aberta, provavelmente 1824 ou 1825, mas temos referencias de sua existência nesse remoto período do país, em documento do Ministério da Cultura sobre a imigração alemã no Brasil (BRASIL, 2016) e no arquivo do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo135.

132 Essa feitoria produzia, através de seus escravos, linho cânhamo, matéria-prima para velas e cordéis dos navios. Após a independência, passou a abrigar imigrantes que chegavam ao Rio Grande do Sul (WIKIPEDIA, s. d.[e], on-line). 133 Nascido em 1790, na Baviera, sul da Alemanha, região de forte tradição cervejeira, Rasch recebeu o lote nº 1 do plano diretor do núcleo urbano de São Leopoldo, quase em frente à igreja, às margens do Rio dos Sinos. Além de instalar a cervejaria, foi o primeiro a abrir um armazém de secos e molhados e o primeiro barqueiro no Rio dos Sinos, quando ainda não havia ponte. Casado com Gertrudes Heinz, foi pioneiro empresário no comércio, indústria e serviços em São Leopoldo, onde morreu em 1835 (BRASIL, 2016). 134 “Festa popular de origem alemã, trazida para Santa Catarina por colonizadores vindos do Rio Grande do Sul. O termo significa festa de inauguração da igreja e representa a confraternização dos familiares. Acontece geralmente no dia do padroeiro (quando a comunidade envolvida é católica) ou no dia da inauguração do templo (quando a comunidade é protestante). Consiste numa missa ou culto e na celebração feita nos salões de festa. Pode atingir até três dias de festividades e compreende desde confraternizações até bailes com leilões” (CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR, s. d., on-line). 135 Informações disponíveis em: https://wp.ufpel.edu.br/fototrabalho/?s=cerveja&submit=Pesquisar; https://jornalnh.com.br/_conteudo/2017/07/para_sempre/2147360-trabalho-arduo-e-com-saber.html. Acesso em: 04/03/2019. 194

Na Tabela 14, temos um levantamento das cervejarias do Brasil no século XIX advindos de imigrantes, buscando mostrar a relação entre a cultura cervejeira dos imigrantes e a abertura das cervejarias no Brasil.

Tabela 14 - Os proprietários de cervejarias no século XIX e sua descendência europeia Proprietário UF Cidade André MODENESI; Gustavo SCHMIDT ES Ibiraçu; Vitória São Vendelino; Porto Alegre Nicolai NEISS (1866); Carlos BOPP; Wilhlem BECKER; (3); Nova Petrópolis; São Frederico CRISTOFFEL; Gegorg Heinrich RITTER (1846); Paul Bento do Sul; São João de ZSCHOERPER; Gustavo JAHN; Pedro RUSCHEL; Leopoldo RS Montenegro; Feliz; Pelotas HAERTHEL; Karl e Fredrich RITTER (1876); Ignácio RASCH (2); Linha Nova; São (1824 ou 1825) Leopoldo Antonio RIGOTTI; Carlo FORNACIARI; Carlos STIEBLER Pouso Alegre; Belo (1894); Frederico WINTER (1886); José WEISS (1879); Martin Horizonte; Juiz de Fora (6); KASCHER, Francisco e Antonio FREEZ; Sebastian KUNZ (1860); MG São Sebastião do Paraíso; Silvio e Salvador GIUBILEI; Norbert Van Der KAMP; Augusto Leopoldina KREMER (1876); Irmãos SCORALICK (1880) Friedrich METZENTHIN (1892); João LEITNER; Henrique PR Ponta Grossa (2); Curitiba THIELEN (1894) Henri Joseph LEIDEN PE Recife Natal FABBRI; Antonio De PALMA e Pascoal GARGARO; Biagio e Ricardo GINI; Angelo FRANCESCHINI; Vittário e Adelemo BORETTI; Quatro BERTOLDI e Salvatore LIVI; Brodowski; Campinas (3); Augusto MOJOLA (1892); Henrique STUPAKOFF (Cervejaria Itapira; Ribeirão Preto; SP Bavária - 1892); Luis BÜCHER (Antarctica Paulista, Fábrica de Jundiaí Gelo e Cerveja - 1869); Paulo SCHMIDT e Frederico FAUST; São Paulo (6) Vitor NOTHMAN; Jean-Jacques OSWALD (1853); Henrique SCHOENBOURG (1840) Pedro Nicolau VERNER (Cervejaria Canoinhense - 1900) e Roberto BACHMANN; Carl RISCHBIETER; Henrich Canoinhas; Blumenau (3); SC FELDMANN (1898); Heinrich HOSANG; Alfred TIEDE; Albrecht Joinville (2) SCHMALZ (1852) Albano De BEAUCLAIR; George GRUNER e Otto Emil MULLER (1879); Pedro GERHARDT (1860); Carlos KRIGER; Joaquim CHIDAL (1860); Thimóteo DURIER (1859); VOEGELIN & BAGER (1848); João BAYER (1849); Henrique LEIDEN (1848); Carlos REY (1854); Luiz Augusto CHEDEL (1855); Jacob Nova Friburgo; Niterói; NAUERTH (1857); Henrique KOECHLER; Joaquim CHIDAL RJ Petrópolis (5); Rio de Janeiro (1868); Frederico EPPELSHEIMER (1867); Carlos BERNSAU (16); Mendes (1869); João HEIB; João Henrique CASPARY; Joseph VILLIGER (Cervejaria Brahma Villigar & Companhia - 1888); Preiss HAUSSLER (1896); VIDAL (1832); Henrique KREMER (1854); Carlos SCHUMAN (1877); MORA (1893) Fonte: Elaboração própria a partir de COUTINHO, 2010.

O desenvolvimento do setor cervejeiro está fundamentalmente ligado às áreas de concentração de imigrantes, sobretudo alemães (LIMBERGER, 2013). A migração trouxe uma divisão social do trabalho e conhecimento que impulsionaram o desenvolvimento e a diversificação de indústrias de pequeno porte, como fábricas de cerveja (ROCHE, 1969). 195

Esse resgate relaciona a vinda de imigrantes com o hábito de tomar e fabricar cerveja. Em 1846, Georg Heinrich Ritter, natural Hunsrück, na Alemanha, passou a produzir cerveja em Linha Nova - RS136, lançando a marca Ritter, uma das precursoras do ramo cervejeiro do país e umas das primeiras do Rio Grande do Sul (Figura 46) (COUTINHO, s. d., on-line).

Figura 46 - Cervejaria Ritter e família no Rio Grande do Sul

Fonte: BEISER, 2009.

Outro destaque de produção de cerveja no século XIX no Brasil é a Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, em Petrópolis - RJ. Em 1848137, Henrique Leiden fundou essa cervejaria, que passou ao comando de Henrique Kremer de 1858 até 1865. Após seu falecimento, foi

136 A cerveja Ritter era fabricada nos fundos da casa de Georg Heinrich Ritter e vendida em sua pequena loja durante as festas e bailes da colônia, fazendo muito sucesso na localidade e na região. O prédio onde se situava a cervejaria foi restaurado e foi inaugurado como Centro Cultural de Nova Linha - RS. A Cervejaria Ritter foi assumida pelos descendentes de Georg, passando por algumas mudanças a partir de 1894, “Henrique Ritter passou a administrar sua própria cervejaria no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Em 1906, Henrique e os filhos transferiram a fábrica para a Rua Voluntários da Pátria e a razão social passou a ser H. Ritter & Filhos. Mais tarde, em 1924, a Cervejaria Ritter uniu-se com outras duas empresas familiares com a razão social Bopp, Sassen, Ritter & Cia. Ltda. e o nome comercial de Cervejaria Continental. As três cervejarias uniram-se para enfrentar as mudanças no mercado, que começava a ser dominado por grandes empresas. A Continental instalou-se no prédio da Cervejaria Sassen, na Avenida Cristóvão Colombo, 625. No ano de 1946, a Cervejaria Continental foi adquirida pela carioca Companhia Cervejaria Brahma” (GZH ALMANAQUE, 2018, on-line). 137 A primeira referência da cervejaria é de 1851 no Almanak Laemmert. Somente em 1857, a cervejaria apontou sua fundação em 1848 (COUTINHO, s. d., on-line). 196 assumida por seus herdeiros (Augusto Kremer & Cia). Em 1867, em Juiz de Fora, foi aberta a Cervejaria Kremer & Cia, de Augusto Kremer. Em 1876, ocorreu a divisão societária entre os cunhados, ficando Frederico Guilherme Lindscheid com a fábrica de Petrópolis e Augusto Kremer com a unidade de Juiz de Fora. Em 1896, com a morte de Lindscheid, o comando da cervejaria foi assumido por sua filha Carolina Lindscheid Kremer, casada com o neto do fundador que herdou seu nome Henrique Kremer. Finalmente, em 1898, nasceu a Cervejaria Bohemia, sendo os primeiros diretores Henrique Kremer e Guilherme Bradac. Somente em 1961, o controle acionário da cervejaria Bohemia é adquirido pela Cervejaria Antarctica (COUTINHO, s. d., on-line). Em Petrópolis, a cervejaria ganhou grande expressão e prosperidade, tornando-se o seu proprietário no industrial petropolitano o mais rico do seu tempo (CUSATIS, 1996). Seu renome chegou ao governo e, em 1876, o Imperador D. Pedro II oficializou a cervejaria como a Real Fábrica de Cerveja Nacional (Figura 47) (BUENO, 2008).

197

Figura 47 - Notícia da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional-Almanak Laemmert (1857)

Fonte: CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES, s. d., on-line.

Esse crescimento foi dominado pela cerveja do tipo inglesa até os anos 70 desse século (LIMBERGER, 2016). Porém, como nos lembra Roberto Simonsen (1973), nossa política tarifária foi livre-cambista até 1844 e não trouxe bom ambiente para industrialização. Após 1888, o governo assumiu um viés protecionista mais com o intuito equilibrar as contas do governo do que fomentar a indústria. Até 1844, foi quase impossível desenvolver produção nacional no Brasil, devido à forte concorrência, poucos recursos internos e baixa organização produtiva. O “artesão brasileiro, que por força das circunstâncias e ambiente desfavorável terá ficado nos seus modestos padrões do passado, perde terreno cada vez mais” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 135). O produtor de cerveja no Brasil nada mais é que um artesão que perdeu espaço para a cerveja vinda da Inglaterra já com processos produtivos mais avançados.

198

Nesse cenário de alta dependência de produtos importados e com a impossibilidade de aumentar a arrecadação devido aos tratados com a Inglaterra, o país já independente fez da emissão de papel moeda uma forma de financiamento desse deficit, porém essa manobra causou a desvalorização do mil-réis em relação à libra esterlina entre 1822 e 1831138, afetando sobretudo a população urbana, a quem a inflação causou empobrecimento, provocando revoltas urbanas e despertando o ódio aos portugueses, que eram vistos como culpados pelos males da população por serem comerciantes (FURTADO, 2007). A partir da década de 1850, a política tarifária foi alterada, favorecendo a abertura de empresas no Brasil. O Gráfico 2 mostra a evolução das fábricas de bebidas no Brasil nos diferentes períodos do século XIX. É interessante observar que, na época em que a política tarifária não era favorável, havia apenas seis fábricas de bebida, número que saltou para 1.418 no início do século XX.

Gráfico 2 - Evolução dos estabelecimentos de bebida no Brasil de 1849 até 1913

Fonte: MARCUSSO, 2019a.

Essa virada na economia brasileira foi influenciada por dois pontos fundamentais: a pressão externa pelo fim da escravidão pelos ingleses, que culminou na lei do fim do tráfico negreiro; e a Lei de Terras, que estabeleceu normas para legalizar a posse de terras, o registro das propriedades, de modo que as terras públicas não mais seriam doadas, como nas sesmarias, mas vendidas. Ambas as leis entraram em operação em 1850, junto do aumento do fluxo de imigrantes, com a sua bagagem industrial e de trabalho livre, o que modificou a estrutura econômica do país e fez a indústria nacional florescer (FAUSTO, 2009).

138 “Em 1808 a mil-réis valia em moeda inglesa (é a equivalência oficial usada em nosso câmbio até a última guerra), 70 dinheiros; em 1822 já estava a 49; e em 1850 caíra para 28, já tendo estado antes (em 1831) a 20” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 134) 199

Esse período é chamado por Caio Prado Júnior (2004) de reajustamento, sendo a exportação de café elemento-chave para o equilíbrio da balança comercial e das contas do governo. A partir de 1860, o país promoveu uma elevação tarifária na base de 30% para os produtos importados e, junto do efeito café, começou a provocar superavits crescentes, elevando o padrão de vida de parte da população, que passou a ter um maior bem-estar material. Embora o padrão de país exportador e escravocrata ainda estivesse vigente, “data dessa época a implantação aqui dos principais estabelecimentos industriais” (SIMONSEN, 1973, p. 14). Segundo Fausto (2009) a formação econômica e a modernização capitalista foi marcada pelo seguinte panorama: era o início do mercado de trabalho, de terras, de recursos disponíveis advindos da exportação de café e da realocação dos recursos antes investidos em escravos, que passaram a tomar outros rumos. Contudo, somente na década de 1880, com o movimento mais protecionista, o país viveu o seu primeiro surto industrial. Até o final do século XIX, muitas indústrias abriram suas portas no Brasil. Entre 1880 e 1884, foram instaladas 150 indústrias e, entre 1885 e 1889, foram 248, totalizando 636 estabelecimentos industriais no último ano da monarquia 1889. “Dos capitais envolvidos na indústria, 60% estavam no setor têxtil, 15% no da alimentação, 10% no de produtos químicos e análogos, 4% na indústria de madeiras, 3% na de vestuários e objetos de toucador, e 3% na metalurgia” (SIMONSEN, 1973, p. 16). Entre 1840 e 1890, a quantidade de exportação do Brasil aumentou 214% e uma melhora de 58% no preço relativo dessas exportações geraram um incremento de 396% na renda real oriunda do setor exportador. Na época, a renda real do Brasil era dividida entre a economia do açúcar e algodão, a economia de subsistência no Sul do país e a economia cafeeira como centro desse processo (FURTADO, 2007). O período configurava o início do capitalismo no Brasil de forma muito modesta. Esse acanhado movimento de concentração de capital foi ponto de partida para nova fase de desenvolvimento das forças produtivas no país (PRADO JÚNIOR, 2004). Outro ponto importante no movimento de ascensão das cervejarias nacionais foi a forte taxação sobre as importações de cerveja em 1894, quadruplicando o seu imposto. Assim, as cervejas importadas alemãs, que dominavam o cenário no final do século XIX139, perderam seu espaço para as nacionais (KÖB, 2000).

139 Em 1904, foi decretada a limitação de importação de cerveja no Brasil. Com a extinção da importação em massa, apenas poucos lotes entravam no país, em especial as Porter e Stout inglesas para uso medicinal e que podiam ser importadas com vantagens alfandegárias (KÖB, 2000). 200

Nesse período, muitas cervejarias foram abertas no país, de modo que, no final do século XX, o Brasil contava com 98 estabelecimentos desse tipo (COUTINHO, s. d., on-line). A Tabela 15 traz os dados do século XIX referentes às cervejarias no país.

Tabela 15 - Localização, origem e concentração das cervejarias no Brasil do Século XIX

Estado Município Nacionalidade dos donos UF Número de Cervejarias Imigrante Nacional Total % Rio de Janeiro (40), Petrópolis (6); RJ 24 26 50 51,0 Niterói (2); Nova Friburgo; Mendes São Paulo (6); Campinas (3); Itapira; SP Ribeirão Preto; Jundiaí; Rio Claro; 12 2 14 14,3 Brodowski Porto Alegre (3); Pelotas (2); São Vendelino; Nova Petrópolis; São Bento RS 12 0 12 12,2 do Sul; São João de Montenegro; Feliz; Linha Nova; São Leopoldo Juiz de Fora (6); Pouso Alegre; Belo MG Horizonte; São Sebastião do Paraíso; 10 0 10 10,2 Leopoldina SC Blumenau (3); Joinville (2); Canoinhas 6 0 6 6,1 PR Ponta Grossa (2); Curitiba 3 0 3 3,1 ES Ibiraçu; Vitória 2 0 2 2,0 PE Recife 1 0 1 1,0 Total BRASIL 70 28 98 100,00 Fonte: Elaboração própria a partir de COUTINHO, 2010.

Os dados mostram que há forte concentração na capital do país, com mais da metade das cervejarias, além da origem estrangeira dos proprietários, superior a 70%. Isso gera uma tendência na distribuição espacial das cervejarias (Figura 48).

201

Figura 48 - Espacialização das cervejarias levantadas no Século XIX

Fonte: Elaborado por Orimar S. S. Sobrinho, a partir dos dados do levantamento bibliográfico.

Podemos notar que a única cervejaria situada fora do eixo Sul-Sudeste está em Pernambuco, fato que pode ser associado ao lastro histórico do local com os tempos de Nassau e da cervejaria de Dicx do Brasil holandês. Para se compreender o fenômeno da consolidação da cerveja como bebida predileta da população brasileira, é necessário considerar o contexto histórico do fim do Império e ascensão da República como forma de estruturação da conjuntura política e econômica da época. Nos anos finais do Brasil Império, havia grande pressão para o fim da monarquia que, por sua vez, sonhava com o terceiro império comandado pela princesa Isabel. O quadro A ilusão do terceiro reinado (1905), de Aurélio de Figueiredo (Figura 49) retrata essa situação. A imagem retrata a grande festa, que ficou conhecida como Baile da Ilha Fiscal. Trata-se de um banquete oferecido aos oficiais do encouraçado chileno Almirante Cochrane pelo presidente do Conselho de Ministros do Império do Brasil, Visconde de Ouro Preto, realizado em 9 de novembro de 1889. Foi o último grande evento do Império brasileiro, a seis dias da Proclamação da República.

202

Figura 49 - A ilusão do terceiro reinado, de Aurélio de Figueiredo

Fonte: LENZI, 2019.

No baile140, foram servidos pratos exóticos como badejo e bijupirá com purê, perdiz com licor, língua de boi e peru recheado com castanhas e presunto, além de 10 mil litros de chope (MACHADO, 2016, on-line), o que reforça a íntima relação de Dom Pedro II com a cerveja. A cerveja permeava a sociedade brasileira, sobretudo nas classes mais abastadas, e estava presente nos momentos de confraternização das pessoas comuns e até do imperador. A chegada do século XX representou uma guinada na indústria nacional, o que provocou um grande crescimento da atividade cervejeira no período.

5.4 A cerveja no século XX: ascensão e consolidação socioespacial da indústria cervejeira

A ascensão e a consolidação da indústria da cerveja no Brasil passam, além dos aspectos culturais já levantadas nos primeiros capítulos, pelas questões políticas, econômicas e de movimentos políticos, uma vez que por se tratar de um bem não-durável, a bebida pode ser facilmente substituída ou descartada do consumo cotidiano, conforme a situação financeira da população. Assim, seguimos Tavares (1998) na compreensão de que o crescimento do consumo

140 O baile foi uma forma de mostrar que o Império estava firme com as ostentações da festa, porém a Proclamação da República seis dias depois mostrou o contrário. O processo de deterioração do Império e do imperador já vinha ocorrendo há tempos. Em 15 de julho de 1889, ocorreu um atentado à vida de Dom Pedro II, quando Adriano Augusto do Valle, tentou matá-lo na saída do teatro. O atirador era do movimento republicano e, em seu depoimento, afirmou que se sentia horando em atirar no imperador (LENZI, 2019). 203 dos trabalhadores depende do crescente movimento de acumulação, de modo que os investimentos no setor, associados ao aumento do poder de compra dos trabalhadores permitem o crescimento da indústria cervejeira. Em última instância, há uma relação nítida entre o poder de compra e o consumo/produção de cerveja, como já foi evidenciado por Oliveira (1996), Rosa, Consenza e Leão (2006) e Marcusso (2015). A partir dessa base teórica, analisaremos as profundas transformações ocorridas no Brasil no século XX e os impactos das medidas econômicas e políticas na indústria da cerveja, no consumo da população brasileira e seu rebatimento espacial. Os dados sobre o avanço da produção de cerveja no século XIX são escassos. Encontramos apenas registros de 1870 e 1885, período em que a produção nacional chegou ao patamar de 5 milhões de litros (0,05 milhões [mi] de hectolitros[hl], medida comumente utilizada no setor cervejeiro e melhor parâmetro de comparação com outros períodos de grande crescimento na produção, como pode ser observado na Tabela 13). Já o século XX foi marcado por grande desenvolvimento da economia brasileira, crises e transições de políticas industriais e de importações e exportações. Essas variações tiveram grande impacto na produção de cerveja como veremos nessa seção. Todos os setores industriais viveram grande ascensão nesse período. Em 1907, o setor cervejeiro figurava entre os dez maiores do Brasil, com 186 fábricas de cerveja, das quais apenas três representavam 50% do mercado, 62,9% do capital, 68% da potência instalada e 47,3% da mão de obra empregada (SUZIGAN, 1975). Na primeira década do século XX, a produção de cerveja cresceu 127%, passando de 0,3 mi hl para 0,7 mi hl (Tabela 13) Apesar da concentração de capital, característica marcante do setor, as pequenas cervejarias, que empregavam de um a quatro funcionários, representavam a maioria do setor em quantidade de estabelecimentos (50,8%, em 1907) e cresceram ainda mais na década seguinte (60,7%, em 1920), chegando a 214 cervejarias (Tabela 16).

204

Tabela 16 - Estrutura da indústria cervejeira por funcionários (1907-1920)

Classes de 1907 1920 estabelecimentos (relativo ao número Estabelecimentos % Estabelecimentos % de operários) 1 até 4 93 50,2 130 60,8 5 até 9 35 19,0 28 13,1 10 até 19 34 18,4 26 12,2 20 até 49 17 9,2 11 5,1 50 até 99 3 1,6 11 5,1 100 até 499 2 1,1 6 2,8 Mais de 500 1 0,5 2 0,9 TOTAL 185 100 214 100 Fonte: Adaptado de KÖB, 2000.

Durante esse período, mesmo em meio à crise de abastecimento das matérias-primas durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o número de cervejarias cresceu, embora o malte e o lúpulo de procedência austríaca e alemã não chegassem aos locais de produção em quantidade suficiente (KÖB, 2000). Apesar da crise, a produção cresceu 21% passando de 0,7 para 0,8 mi hl (Tabela 13). No século seguinte, o mercado de cerveja no Brasil apresentou porcentagens semelhantes de empresa por faixas de operários e de número de empresas. Porém, entre 1907 e 2007, houve uma maior participação de médias e grandes empresas na primeira data do século XXI, o que denota uma grande alteração na dinâmica do setor e forte influência das cervejarias maiores, freando o avanço das pequenas empresas, como abordaremos na seção 6.3 desta tese. A Tabela 18, inspirada em Köb (2000), traz os dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério da Economia, adaptando a seleção de variáveis para uma comparação mais fidedigna.

205

Tabela 17 - Estrutura da indústria cervejeira por funcionários (2007-2019)141

Classes de 2007 2019 estabelecimentos (relativo ao número Estabelecimentos % Estabelecimentos % de operários) 1 até 4 53 31,2 478 56,4 5 até 9 17 10,0 163 19,2 10 até 19 13 7,6 100 11,8 20 até 49 11 6,5 34 4,0 50 até 99 12 7,1 14 1,7 100 até 499 43 25,3 31 3,6 Mais de 500 21 12,3 28 3,3 TOTAL 170 100 848 100 Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS.

A Tabela 17 deixa evidente que a concentração de médias e grandes empresa é alterada de 2007 para 2019, o que indica um aumento da velocidade na revolução da cerveja artesanal no Brasil, como veremos no capítulo seguinte. Outra característica que se mantém até hoje refere-se à concentração espacial. Köb (2000) apresenta dados de 1928 sobre a distribuição geográfica da produção de cerveja segundo região geográfica. A região Sudeste concentrava 86,5% da produção, com destaque para o então Distrito Federal com 47,4% e São Paulo com 35, 7%. Na região Sul, foi registrado 12,1% do total produzido no país, tendo o Rio grande do Sul com 7,7%, o Paraná com 3% e Santa Catarina com 1,3% da produção. Na década de 1920, o crescimento da produção foi de 64% passando de 0,9 para 1,5 mi hl (Tabela 13). A crise de 1929 abalou o mundo. No Brasil, a produção de café foi fortemente afetada, com perdas cambiais para o país e queda no poder aquisitivo exterior brasileiro. Isso provocou uma aceleração no processo de industrialização nacional de substituições das importações. A produção industrial, que também sofreu com a crise, passou a se recuperar em 1933, alcançando o mesmo patamar anterior à crise, assim como o setor agrícola. Os capitais que antes criaram o sistema de importações foram deslocados para produção nacional (FURTADO, 2007). Segundo Tavares (1998), por meio do cultivo de café, a economia brasileira foi criada como modo especificamente capitalista de produção, de modo que a transferência para o capitalismo industrial ocorreu de forma lenta. Em sua reinterpretação do movimento de

141 Devido às diferenças metodológicas, adaptamos as faixas de funcionário, considerando os dados atuais de zero funcionários adicionados à faixa de 1 até 4. Os dados de 100 até 249 e 250 até 499 foram somados, bem como os das faixas de 500 até 999 e 1000 ou mais. A seleção de variáveis da RAIS, bem como sua estrutura podem ser verificadas nos Anexos, no final desta tese. 206 substituição das importações, a autora relata que, somente entre 1933 e 1937, a acumulação industrial urbana e a renda fiscal do governo se desvincularam da acumulação cafeeira. Tavares (1998) distingue os anos de 1933 a 1955 como industrialização restringida e, somente após esse período, a industrialização passou a se desenvolver de forma mais intensiva. Segundo Fausto (2009), o setor industrial cresceu 11,2% entre 1933 e 1939, frente a 1,7% da agricultura. Contudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, a não renovação do equipamento industrial e as perturbações da guerra fizeram esse ritmo de crescimento cair entre 1939 e 1943. Essa transição da dependência de exportação do café para a indústria só foi possível devido à acumulação do capital. Na época, o segmento urbano da renda passou a ser determinante nas condições de demanda efetiva. Além disso, “o desenvolvimento das forças produtivas e os suportes internos da acumulação urbanas são suficientes para implantar a grande indústria de base necessária ao crescimento da capacidade produtiva adiante da própria demanda” (TAVARES, 1998, p. 131). Durante o período da primeira guerra e da grande depressão, o setor da cerveja reduziu as importações de máquina e equipamentos, tendo diminuído em quase 50% do período de 1922-1929 para 1932-1939 (SUZIGAN, 1975). Apesar dessa redução, na década de 1930, a produção aumentou em 94%, passando de 1,1 para 2,1 mi hl (Tabela 13). Já a escassez de matéria-prima, como o malte e o lúpulo, que eram importados, provocou o fechamento de muitas fábricas, enquanto outras substituíram os ingredientes por milho e arroz durante a Segunda Guerra Mundial (COUTINHO, s. d., on-line). Consequentemente, a restrição de importação de máquinas e equipamentos, além das matérias-primas, fizeram a produção de cerveja cair vertiginosamente nesses períodos (Gráfico 3).

207

Gráfico 3 - Produção nacional de cerveja (1870-1942). As siglas IaGM e IIaGM correspondem, respectivamente, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Segunda Guerra Mundial (1939 -1945)

2,5 IIª GM

2 Crise de 29

1,5 Iª GM

1

Milhões hectolitros Milhões de 0,5

0

1911 1915 1940 1870 1885 1904 1912 1913 1914 1916 1917 1918 1919 1920 1921 1922 1923 1924 1925 1926 1927 1928 1929 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939 1941 1942 Ano

Fonte: Elaboração própria a partir de SUZIGAN, 1975, IPEADATA, BARTH-HAAS, vários anos.

Na época, a restrição de importação de máquinas e equipamentos e, sobretudo, de matérias-primas impactou severamente a produção nacional de cerveja. As fábricas nacionais passaram a assumir a produção e a manutenção dos equipamentos que compunham o parque industrial das cervejarias, equipamentos esses que antes eram todos importados. Limberger (2016) destaca que a ferraria Kepler e Weber, fundada em 1925, em Panambi - RS, fornecia máquinas e assistência às cervejarias nacionais. Já a Metalurgia Liess, criada em 1946, pelo engenheiro alemão Ziemann Liess, desenvolvia equipamento para a produção de cervejas de baixa fermentação em Canoas - RS. Essa foi a primeira oficina de tecnologia nacional de produção de cerveja de baixa fermentação. A partir da recuperação da economia brasileira com o fim da Segunda Guerra Mundial, a produção de cerveja cresceu rapidamente. Nos anos 1940, o governo Vargas instituiu a Consolidação das Leis Trabalhista (CLT) e, em 1943, entrou em vigor o salário-mínimo urbano legal. Para Tavares (1998), essa política teve feito duplo na expansão industrial: por um lado, pesou nos custos diretos da mão de obra e, por outro, assegurou o poder de compra das massas urbanas semiproletarizadas e da pequena burocracia privada e estatal. Há uma forte relação entre o poder de compra da população e o consumo de cerveja, de modo que esse consumo também sofreu impactos com as crises e planos das décadas de 1980, 1990 e 2000 (seção 6.1.3). Tavares (1998, p.173) resume essa relação para o setor de bens de consumo não duráveis descrevendo-a como “comportamento previsível do consumo dos trabalhadores, que responde

208

às taxas de crescimento do emprego e do poder de compra dos salários de base, por sua vez comandados pelas taxas de acumulação urbana”. Já o governo Dutra trouxe uma orientação de política liberal para atender a demanda de importação de matéria-prima e bens de capital. Devido à valorização da moeda nacional, ocorreu uma onda de importações e, em 1947, o governo mudou sua orientação, passando a limitar as importações, sobretudo de bens de consumo, liberando apenas alguns setores prioritários, como equipamentos, maquinário e combustíveis, além de subsidiar a compra de matérias-primas fundamentais. A nova política veio para responder o problema da balança de pagamentos e da inflação, mas favoreceu o avanço da indústria. Entre 1948 e 1950, o Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceu em média 8%, apesar das perdas no poder de compra da população, sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro (FAUSTO, 2009 ). Com relação à cerveja, o malte e o lúpulo foram beneficiados e “no período de 1946- 47, pelo difícil acesso aos produtos europeus cerca de 60% das importações brasileiras se originava nos Estados Unidos” (LIMBERGER, 2016, p. 108). Em virtude desse panorama, na década de 1940, a produção nacional teve seu maior aumento percentual (em torno de 215%), saltando de 2,0 para 6,3 mi hl (Tabela 13). Na década de 1950, o país viveu intensos processos políticos e econômicos, primeiro com o segundo governo Vargas (1951 - 1954) e depois com Juscelino Kubitscheck (1956 - 1961). Vargas, ao mesmo tempo que adotava medidas impopulares para combater a crescente inflação decorrente da crise do mercado de café (de 2,7%, em 1947 para 20,8%, em 1953), preocupava-se também com as reinvindicações dos trabalhadores (FAUSTO, 2009). Na época, houve uma guinada de orientação da economia nacional do setor agrícola para o setor industrial, de modo que os anos de 1933 a 1955 foram caracterizados como industrialização restringida e os anos subsequentes de industrialização intensiva (TAVARES, 1998). Nesse contexto, o cenário do início da década de 1950 reduziu significativamente o poder de compra dos trabalhadores através da inflação. O custo de vida aumentou em 50% entre 1949 e 1952 (FURTADO, 2007), fazendo com que a produção de cerveja se estabilizasse em torno de 6,5 mi hl e na década de 1950 o crescimento foi de apenas 6% (Tabela 13). Apesar da estagnação no consumo e na produção de cerveja, o setor investiu no aumento da escala para atender o consumo das massas urbanas em expansão (TAVARES, 1998) e no melhoramento tecnológico, como característica intrínseca da atividade. O setor cervejeiro opera com a capacidade máxima no verão e com capacidade ociosa no inverno, de modo que o parque industrial deve estar preparado para suportar as oscilações de consumo, conforme a estação do

209 ano, necessitando de grandes investimentos para estocar cerveja antes do verão. Trata-se, portanto, de uma produção sazonal, na qual cerca de 40% da comercialização do produto nos pontos de venda ocorre entre dezembro e março (MARCUSSO, 2015). Já o governo JK apresentou uma estabilidade política maior que o governo anterior e foi caracterizado por altos índices de crescimento econômico, pela construção de Brasília, pelos planos de metas etc. As diversas ações de JK fizeram a economia crescer a uma taxa de 7% entre 1957 e 1961, com uma renda per capita de 4%, três vezes maior que o resto da América Latina (FAUSTO, 2009). Contudo, o boom de investimentos desse período não atingiu todos os setores industriais, restringindo-se aos ramos de material de transporte, material elétrico e metal-mecânico, de modo que não ocorreram grandes mudanças na estrutura urbana de consumo (TAVARES, 1998). Apesar de ser uma década de pouco crescimento na produção, o setor cervejeiro começou a investir para reduzir sua dependência de importação de matérias-primas. Na década de 1950, foram montadas as primeiras maltarias do Brasil para transformar a cevada em malte, ingrediente fundamental para a produção de cerveja. Em 1953, em Getúlio Vargas - RS foi criada a Cervejaria e Maltaria da Serra que, em 1957, lançou a cerveja Serramalte. Já em 1954, a Antarctica inaugurou uma maltaria em Jaguaré - SP e, em 1955, em Londrina – PR, Fausto Tavares também começa a processar cevada para produção de malte (LIMBERGER, 2016). Mais timidamente e mesmo que por um período curto, existem relatos de produção de lúpulo em 1955 na cidade de Nova Petrópolis - RS para abastecer a cervejaria Antarctica. As mudas teriam sido trazidas por imigrantes alemães. Com o passar dos anos tornou-se mais barato importar o produto e o cultivo foi deixado de lado (MARCUSSO; MÜLLER, 2018). A década de 1960 foi iniciada com grandes crises econômicas e políticas, a primeira de endividamento e inflação e a segunda com a renúncia do presidente Jânio Quadros. Em 1961, país tinha um deficit orçamentário previsto de 100 bilhões de cruzeiros, deficit na balança de pagamentos de 410 milhões de dólares e dívida externa de 3,8 bilhões de dólares. Esse cenário, aliado à inflação de 30% entre 1959 e 1960, fez com a política econômica de Jânio Quadros optasse por medidas ortodoxas de estabilização, como desvalorização cambial, contenção de gastos públicos e expansão monetária (FAUSTO, 2009). A sucessão turbulenta de Quadros para João Goulart representava uma ameaça aos conservadores e militares devido à ideia de implantação do regime comunista no Brasil, fato que se agravou com ações para atender questões sociais, tidas como de esquerda, como a elaboração do Estatuto do Trabalhador Rural de 1963, o plano trienal de Celso Furtado e as

210 reformas de Base, com previsão da reforma agrária. Em 1962, o país contava com uma inflação de 54,8% e, em 1963, houve uma redução no crescimento do PIB de 5,3% para 1,5%. Diversos fatores econômicos, políticos e sociais culminaram no golpe militar de 1964 (FAUSTO, 2009). Nesse sentido, o setor de bens de consumo duráveis viveu grande crise entre 1962 e 1967 com a diminuição do nível médio do salário real urbano. Para manter suas taxas de lucro, as grandes empresas modernizaram suas instalações, a fim de reduzir custos diretos de produção, e aumentaram o esforço de venda, por meio de lançamentos e diferenciação de produtos. Além disso, houve maior integração vertical das empresas (TAVARES, 1998). Assim, o impacto desse momento econômico e da política monetária levaram à falência das empresas menores dos setores menos estruturados em sistemas de oligopólios, ocasionando fortes movimentos de fusão/aquisição no setor cervejeiro, além de abertura de novas unidades das grandes cervejarias (LIMBERGER, 2016). O regime militar obteve êxitos econômicos não alcançados por outros governos. Devido ao autoritarismo, medidas impopulares eram mais facilmente executadas, como aumento de impostos, compressão salarial, corte de subsídios de trigo e petróleo, limitação das greves etc. Com sacrifícios forçados, sobretudo da classe trabalhadora, a economia foi reequilibrada. Os acordos com o FMI e o apoio do governo americano para provisionamento da dívida externo também foram importantes para uma melhora do panorama. Em um primeiro momento, as medidas reduziram o poder de compra da população brasileira, mas acabaram por proporcionar um maior crescimento econômico (de 2,7% em 1965 para 11,2% em 1968) (FAUSTO, 2009). O aumento da taxa de acumulação e de consumo capitalista recuperou lentamente o consumo por parte dos trabalhadores pelo efeito da expansão do emprego, embora os salários ainda estivessem em arrocho. Após um período de forte queda entre 1964 e 1967, os salários, sobretudo de até dois ou três mínimos (80% da população), passaram a se estabilizar, permitindo um aumento do consumo, de modo a gerar lucros no setor de bens de consumo não duráveis (TAVARES, 1998). Entre 1960 e 1967, o crescimento no setor cervejeiro foi baixo (pouco mais de 9%). Apenas entre 1967 e 1970, esse crescimento se elevou para 32%, fechando a década com aumento de 44% (Tabela 13). Como já mencionado, o período também foi caracterizado por uma grande integração vertical e pelo movimento de fusões e aquisições das grandes cervejarias do país. Contudo, esse fenômeno sempre presente no setor cervejeiro nacional (COUTINHO, s. d., on-line), como podemos verificar na Tabela 18.

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Tabela 18 - Principais investimentos das grandes cervejarias (Início do século XX, década de 1960)

Empresa Ano Movimento Empresa Localização 1904 Fusão Cervejaria Teutônia Mendes/RJ 1928 Aquisição Cervejaria Guanabara São Paulo/SP 1940 Aquisição Cervejaria Cruzeiro Curitiba/PR 1941 Aquisição Cervejaria Hanseática Rio de Janeiro/RJ 1944 Aquisição Cervejaria Sul-Riograndense Pelotas/RS Brahma 1945 Aquisição Fábrica de cerveja Irmãos Leonardelli & Cia Caxias do Sul/RS Bopp, Sassen, Ritter & Cia. Ltda - Cervejaria Porto Alegre e Passo 1946 Aquisição Continental* Fundo/RS 1954 Aquisição Cervejaria Vienenses Agudos/SP 1964 Unidade Fábrica Cabo/PE 1968 Unidade Estação Experimental de Cevada Encruzilhada do Sul/RS 1905 Aquisição Cervejaria Bavária São Paulo/SP 1911 Unidade Fábrica Ribeirão/SP 1913 Unidade Dubar S/A Indústria e Comércio de Bebidas** São Paulo/SP 1922 Unidade Fábrica Santos/SP 1922 Unidade Fábrica Rio de Janeiro/SP Antarctica 1929 Unidade Fábrica Recife/PE 1945 Aquisição Cervejaria Adriática*** Ponta Grossa/PR 1955 Aquisição Cervejaria Alta Paulista Indústria de Bebidas Marília/SP 1957 Aquisição Fábrica de Cerveja e Gelo Colúmbia Campinas/SP 1961 Aquisição Cervejaria Bohemia Petrópolis/RJ 1969 Unidade Indústria Pernambucana de Bebidas Antarctica Olinda/PE *Maior grupo cervejeiro do Rio Grande do Sul, com mais de 100 anos de tradição na época. Na compra, também esteve envolvida a Maltaria Floresta, ao lado da fábrica em Porto Alegre - RS. ** Divisão de bebidas finas da Antarctica. Em 1997, dispunha de uma linha de 35 produtos, entre eles uísque e outras bebidas quentes. ***Detentora da marca Original, produzida desde 1930 e que viria a se popularizar no país com a produção e distribuição pela Antarctica. Fonte: Elaboração própria, inspirado em LIMBERGER, 2016 e com dados de ZAFALON, 1997, DAL RI, 1999 e COUTINHO, s. d., on-line.

Como podemos notar, existe um longínquo movimento de investimentos em compra de cervejarias, abertura de filiais e maltarias por parte de Brahma e Antarctica. Esses investimentos tornaram essas empresas as maiores cervejarias do Brasil. Os movimentos de concentração de capital no setor cervejeiro se intensificaram nas décadas de 1970 e 1980 (Tabela 19). Entre 1969 e 1973, o país viveu o chamado “milagre brasileiro”, com crescimentos médios de 11,2%, tendo seu ápice em 1973 com 13% e com taxas de inflação relativamente baixas e controladas para época (cerca de 18%). O comércio exterior cresceu com a ampliação das importações e diversificação das exportações, além da capacidade de arrecadação do governo, contribuindo com a redução do deficit público e da inflação. Em 1973, o ingresso de capital externo no Brasil alcançou 4,4 bilhões de dólares, o dobro de 1971, com destaque para o setor automobilístico (FAUSTO, 2009). Esse ciclo de expansão se formou por meio das reformas financeiras que impulsionaram a economia baseada no capital e

212 empresas estrangeiras, além do financiamento do Estado na economia, que se havia cessado no período anterior (TAVARES, 1998).

Tabela 19 - Principais investimentos das grandes cervejarias (décadas de 1970 e 1980)

Empresa Ano Movimento Empresa Localização 1971 Aquisição Fábrica Astra Fortaleza/CE 1972 Associação Fratelli Vita Salvador/BA Aquisição Cibeb Camaçari/BA 1973 Aquisição Miranda Corrêa Manaus/AM Brahma 1974 Aquisição Cebrasa Anápolis/GO 1980 Aquisição Cervejarias Reunidas Skol/Caracu São Paulo e Londrina/PR 1984 Associação Pepsico Internacional São Paulo e Rio Grande do Sul 1987 Unidade Pesquisa Rio de Janeiro 1988/9 Unidade Fábrica Jacareí/SP Aquisição Cervejaria Polar Estrela/RS 1972 Aquisição Cervejaria de Manaus Manaus/AM Aquisição C. Bahiana e Alimentos Ciquine Camaçari/BA Fusão Cervejaria Paulista Ribeirão Preto/SP Aquisição Cervejaria Pérola Caxias/RS Aquisição Itacolomy Pirapó/MG 1973 Goiânia/GO, Montenegro/RS, Unidades Fábricas Rio de Janeiro/RJ e Viana/ES Unidade Pesquisa Manaus/AM 1975 Unidade Fábricas Teresina/PI Ampliação Maltaria São Paulo 1977 Antarctica Unidade Pesquisa Paulo de Frontim/PR Aquisição Cervejaria Serramalte Getúlio Vargas e Feliz/RS 1980 Aquisição Cia. Alterosa de Cervejas Vespasiano/MG Associação Arosuco Guarulhos/RJ Armazenagem e beneficiamento de 1982 Unidade Lapa/PR cevada 1983 Unidade Fábrica Teresina/PI 1984 Unidade Fábrica João Pessoa/PB 1988 Unidade Fábrica Rio de Janeiro Jaguariúna/SP, Canoas/RS, 1988/9 Unidade Fábricas Cuiabá/MT e RN 1989 Aquisição Cerpasa São Gonçalo/RN Fonte: LIMBERGER, 2016, p. 116 e 118.

Em apenas duas décadas, houve 29 investimentos na expansão e diversificação da produção, por meio de processos de associação, fusão e aquisição e abertura de unidades, somando quase 1,5 investimentos por ano. Em 1973, auge do milagre brasileiro, foram registrados sete investimentos (24,1% do total analisado), com duas aquisições de cada grande cervejaria, além da abertura de duas unidades e uma fusão por parte da Antarctica. Os investimentos e as unidade de pesquisa de cevada tiveram resultado e a produção nacional de malte, que oscilava em torno de 15% em relação à necessidade da indústria nacional cervejeira até 1977, alcançou seu ápice em 1987 com 64,7%, declinando por volta de 32% em 1996, com o grande aumento da produção nacional de cerveja. O parâmetro de produção de 213 malte desse período é percebido até hoje. No entanto, a média de produtividade por hectare de cevada no Brasil ainda era baixa (cerca de 1,8 toneladas por hectare) e somente entre 1989 e 1996, a produtividade superou 2 ton/ha. A título de comparação, na Europa esses números variam entre 3,5 e 6 ton/ha e, na América do Norte, entre 2,8 e 3,2 ton/ha. A baixa produtividade da cevada do Brasil torna a competitividade dessa cultura baixa, favorecendo a importação do malte (DAL RI, 1999). Esses investimentos geraram um avanço significativo na expansão territorial das grandes cervejarias no país, ou seja, novos territórios da cerveja foram criados. A Figura 50 retrata o espalhamento das grandes cervejarias no Brasil.

214

Figura 50 - Espacialização dos investimentos da Brahma (esquerda) e Antarctica (direita) no século XX

Fonte: Organização própria e elaboração de Santana Sobrinho, O. S. a partir dos dados das Tabelas 19 e 20. 215

A espacialização mostra que os investimentos de ambas as empresas se concentraram nas regiões Sul e Sudeste, acompanhando a tradição cervejeira desses locais e o volume populacional, que reflete em um maior mercado consumidor. Contudo, esse cenário político econômico tem seus lados negativos. A extrema dependência do capital externo e do sistema financeiro fez com que a dívida externa do país saltasse de 40 bilhões de dólares em 1967 para 97 bilhões em 1972 e 375 bilhões em 1980. Apesar do PIB ter avançado significativamente, o PIB per capita não apresentou alterações significativas. Houve um aumento da concentração de renda, ampliando ainda mais as desigualdades, de modo que a receita da política econômica de Delfim Neto de fazer crescer o bolo para depois distribuir, permaneceu apenas na parte do crescimento, excluindo a distribuição. O salário-mínimo também sofreu grande impacto. Tomando como referência o valor de 100 para o salário-mínimo em 1959, esse valor foi reduzido para 39 em 1973. Esse dado é relevante, uma vez que, em 1972, do total da população economicamente ativa 52,5% ganhavam apenas um salário-mínimo e 22,8% entre um e dois (FAUSTO, 2009). Mas se o salário-mínimo foi reduzido e o poder de compra está relacionado ao consumo de cerveja, como a produção cervejeira aumentou para atender à crescente demanda? Apesar da redução dos salários no período, as oportunidades de emprego aumentaram, de modo que, embora as pessoas estivessem ganhando menos individualmente, a renda familiar aumentou, já que mais membros de uma mesma família estavam empregados (TAVARES, 1998). Esse ciclo de crescimento começou a declinar no final de 1973, uma vez que a crise do petróleo afetou a economia brasileira, que importava 80% do total de seu consumo (FAUSTO, 2009). Todavia, além da crise do petróleo, o período também foi marcado pelo colapso do sistema financeiro internacional de Bretton Woods em 1971 (HOBSBAWM, 1995). Uma análise mais profunda, baseada na teoria da regulação142, aponta que essa não é uma crise pontual de natureza financeira ou de política econômica, mas uma crise do modo de produção fordista, que promoveu grande crescimento mundial nos chamados “trinta gloriosos” (1946 - 1976), sucedidos dos “vinte dolorosos” (1977 - 1997). A crise latente do paradigma industrial, com uma desaceleração da produtividade e um crescimento da relação capital/produto, conduziu para uma queda nos lucros nos anos 1960. A reação dos empresários (via internacionalização da produção) e do Estado (generalização das

142 “A Teoria da Regulação foi desenvolvida para explicar processos de desenvolvimento socioeconômico que apresentam grande variabilidade nos planos espacial e temporal [...] Nessa teoria considera-se o desenvolvimento capitalista como uma sucessão defases regulares de desenvolvimento macroeconômico, ou de regimes de acumulação, pontuado por crises, quando uma ordem desmorona e novas trajetórias e novas ordens tomam o seu lugar” (BENKO, 1996, p. 110-11). 216 políticas de austeridade) levou a uma crise nos empregos e, consequentemente, à crise do Estado-Providência. A internacionalização e a estagnação dos rendimentos detonaram, por sua vez, a crise “do lado da demanda”, no fim dos anos 1970 (LIPIETZ; LEBORGNE, 1988). Diante desses fatores e da consequente incapacidade da reprodução do modelo fordista, o movimento neoliberal tomou grande impulso nos países centrais, forçando grandes transformações nas instituições, necessárias para a saída do estado de crise. A precarização das relações de trabalho, o aumento do desemprego e uso cada vez mais intensivo das novas tecnologias são reflexos dos novos modos de regulação e dos novos regimes de acumulação que se implantam. “O colapso desse sistema, a partir de 1973, iniciou um período da rápida mudança de fluidez e de incerteza [...] caracterizado por processo de trabalho e mercados mais flexíveis, de mobilidade geográfica e de rápidas mudanças práticas de consumo” (HARVEY, 1996, p. 119). Assim, entrou em cena o processo produtivo flexível, que compreende certos elementos:

Utilização dos equipamentos (linhas) flexíveis, programáveis e informatizados, permitindo uma produção muito variada e uma atenção muito particular no tocante à demanda (mercado), com uma possibilidade de ajustamento rápido pela alternância dos procedimentos ou na variação dos participantes. As empresas tornam-se menores, porém mais especializadas (desintegração vertical), ao passo que as ligações e a sub-contratação se ampliam. Uma ordem coletiva, social e institucional toma lugar do controle hierárquico exercido pelas sociedades de produção em massa. O emprego torna-se mais temporário (e até de tempo parcial) e as regras internas das firmas, assim como as negociações mais flexíveis, atribuem aos trabalhadores e executivos tarefas mais variadas (BENKO, 1996, p. 222).

Essas transformações não se processaram imediatamente no Brasil, que vivia um período conturbado em relação à condução econômica e sua reestruturação produtiva, ocorrida efetivamente na década de 1990, quando houve a ascensão dos sistemas flexíveis de produção, promovendo o surgimento das microcervejarias, sobretudo, no centro sul do país. Apesar da crise internacional, o “milagre brasileiro” ainda criava um ambiente de euforia no mercado e na população e, entre 1974 e 1978, o PIB ainda cresceu em média 6,7%, o PIB per capita 4,2%. Entretanto, esse modelo era sustentado por frágeis artifícios, como a oferta de bens das estatais a preços baixos, tornando-as deficitárias. O ciclo de aumento da dívida externa e empréstimos não fechava e os juros da dívida começavam a afetar a balança de pagamento, uma vez que as taxas eram flexíveis. Ainda nesse contexto, o salário-mínimo foi indexado, agravando ainda mais a situação da classe trabalhadora (FAUSTO, 2009).

217

Todas as movimentações econômicas e políticas descritas até aqui podem ser relacionadas com a variação da produção de cerveja, como podemos verificar no Gráfico 4, no qual estão destacados os momentos em que as ações do governo e do mercado tiveram maior influência no setor cervejeiro.

Gráfico 4 - Produção nacional de cerveja (1943 - 1977). SM Vargas: Instituição do salário-mínimo em 1943; Importações Dutra: incentivo às importações no Governo Dutra.

25,0

20,0 Milagre Brasileiro 15,0 Importações SM Dutra 10,0 Vargas

Milhões Milhões Hectolitros de 5,0

0,0

1962 1965 1943 1944 1945 1946 1947 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1963 1964 1966 1967 1968 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 Ano

Fonte: Elaboração própria a partir de BARTH-HASS, vários anos.

O final do século XX será abordado a partir da mesma metodologia, buscando-se os pontos econômicos de influência na produção de cerveja. Contudo, antes é necessário observar a dinâmica do mercado de cerveja mundial para entender os processos que ocorreram no Brasil, sobretudo na década de 1990. Nesse período, ocorreu a internacionalização da produção nacional que sempre buscou suas influências nas escolas europeias de cerveja, como foi o caso da necessidade de formação de mão de obra especializada para a indústria cervejeira em grande ascensão no Brasil. Em 1993, foi criada a Cervejaria-Escola em Vassouras - RJ pelo SENAI - RJ, com parceria com a Fundação Hans-Seidel143, Doemens Akademie144 e com as grandes cervejarias da época (Antarctica, Brahma e Kaiser) e com base no sistema dual de ensino

143 Fundada em 1966 por Hanns Seidel, político alemão da Baviera, essa fundação de pesquisa política integra a União Social Cristã na Baviera (CSU), partido democrata-cristão e conservador (WIKIPEDIA, s. d.[f], on-line). 144 Fundada em 1895, por Albert Doemens foi a primeira escola cervejeira de Munich. Hoje é um dos principais empreendimentos educacionais, de consultoria para a produção de cerveja e sobre indústria de bebidas e alimentos do mundo com vários cursos chancelados no Brasil (DOEMENS, s. d., on-line).

218 alemão145. Essa foi a primeira escola de formação de profissional em cerveja na América Latina. Antes, os mestres cervejeiros brasileiros, sobretudo da Brahma e da Antarctica eram formados na Alemanha, Bélgica e Espanha (SENAI, 2014). Um fechamento da expansão da cerveja no século XX mostra sua consolidação a partir do salto de 0,3 mi hl em 1904 para 80,9 no final da década de 1990, tendo a produção sido multiplicada por quase 270 vezes (Tabela 13). Nesse período, já podemos verificar a nítida relação entre o poder de compra da população e o avanço da produção, aliada aos investimentos em máquinas e equipamentos, sobretudo importados. Os investimentos na produção nacional de cevada e os movimentos de fusão e aquisição do setor criaram a hegemonia de Brahma e Antarctica no mercado nacional. A história e a geografia da cerveja no Brasil é um passo importante para entendermos o surgimento das bases materiais da cerveja como elemento criador de territórios, ou seja, como as cervejarias foram se instalando, como o setor teve sua dinâmica, como a consumo de cerveja entrou na pauta das famílias brasileiras e como foi afetado pela economia em geral. Esse percurso fornece o contexto de implantação e desenvolvimento do setor cervejeiro nacional, possibilitando um aprofundamento do debate sobre os aspectos que ajudam a configurar os TC.

145 Sistema Dual, em alemão DualesBerufsausbildungssystem, que consiste na dualidade entre a qualificação teórica e a prática focado na formação profissional e tem tradição de mais de 100 anos (BRITO, 2017, on-line). 219

CAPÍTULO 6 - A CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DA CERVEJA: ASPECTOS ECONÔMICOS, CULTURAIS E POLÍTICOS

Antes de nos aprofundarmos na caracterização dos Territórios da Cerveja (TC), é necessário contextualizar cada etapa desse processo. Como já mencionado, a construção da noção de TC foi sendo edificada e aprimorada a partir do levantamento bibliográfico e das informações e análises. Assim, cada subitem tem sua contribuição na formação dessa abordagem teórica e no entendimento da cerveja como elemento econômico, cultural e político. Com relação aos aspectos econômicos (seção 6.1) da empresa como elementos constituinte de territórios atrelados à produção, podemos verificar que o grande crescimento do setor cervejeiro no Brasil e no mundo trouxe a cerveja para o campo da massificação, ou seja, a maioria da população tem acesso à cerveja e esse traço da sociedade se fortalece como uma característica importante do brasileiro. Já os aspectos culturais (seção 6.2) mostram como novas formas de consumo apontam para uma nova forma de identificação com a cerveja de modo oposto ao consumo de massa. Nesse ponto, as cervejas artesanais propiciam aparatos simbólicos que criam as estruturas culturais dos TC em uma nova fase de conexão, mesmo que restrita a uma camada da população. Por fim, os aspectos políticos (seção 6.3) deixam claro como foi e é organizada a estrutura de representação de poder no setor e como os modelos de governança criam territórios a partir dos entes e seus acordos em prol do desenvolvimento do território em torno da cerveja.

6.1 Dos aspectos econômicos: a produção cervejeira e a empresa como elementos constitutivos de territórios

Seguindo o roteiro da matriz metodológica, a verificação da organização das empresas e sua produção são elementos fundamentais para construção dos TC. Os dados sobre os fixos e fluxos da rede de produção cervejeira permitem visualizar como esse setor se estrutura no mundo e no Brasil. Uma das constatações mais claras sobre o mercado de cerveja consiste em sua estrutura oligopólica. Em estudo anterior (MARCUSSO, 2015), conseguimos esclarecer importantes características dessa estrutura. A partir de leitura de Possas (1980), verificamos as diferentes faces do oligopólio na atividade cervejeira: o concentrado (grandes economias de escala),

220 diferenciado (fortes investimentos em propaganda) e competitivo (intensa competição por preço). A partir dessa leitura, observaremos a estruturação do mercado cervejeiro e a organização das empresas em níveis mundial e brasileiro, verificando como as empresas se organizam para estabelecer relações de poder no espaço pelas características econômicas e para formar seus territórios. Os territórios formados pela cerveja operam de duas formas: pelas cervejas artesanais, formando os chamados Territórios da Cerveja “Artesanal” (TCA); e pela cerveja comum, de massa ou mainstream, organizando os Territórios da Cerveja Pilsen (TCP), domínio de apenas um espectro da variedade de cerveja possíveis, como veremos a seguir.

6.1.1 A revolução Lager e a trajetória de dominação Pilsen

A formação do cenário oligopolista foi muito favorecida pela expansão da cerveja Lager clara, popular na história da cerveja, a qual fez nascer grandes grupos cervejeiros em todo o mundo, possibilitando uma elevação no volume da produção cervejeira e causando intensas transformações territoriais nesse processo. A compreensão do contexto de surgimento da cerveja Lager de grande escala e como ela dominou o mundo é um passo importante para entender a estrutura atual do mercado de cerveja mundial. Existem diversos fatores que convergem para esse processo desde avanços tecnológicos acidentais até episódios de espionagem industrial. Até o início do século XIX, a cerveja era produzira por meio baixa tecnologia. Alguns fatores foram decisivos para inovação tecnológica da cerveja durante a revolução industrial146. A primeira grande mudança foi o processo de malteação. Antes, os fornos de malteação eram movidos a lenha e, ao secar, também torravam e até defumavam a cevada durante o processo de transformação em malte. Consequentemente, as cervejas eram mais escuras. O primeiro forno de malte com aquecimento indireto foi instalado em 1818 no Reino Unido. Como resultado dessa inovação, aos poucos, o malte mais claro foi tomando conta da Europa, abrindo caminho para cervejas mais claras lançadas nas décadas de 1830 e 1940, como a Vienna Lager

146 “One person credited as the ‘father’ of modern brewing is Benno Scharl, born in 1741 in Seefeld, Bavaria. The basis for his renown is an early textbook on brewing techniques in which he referred to lagering, although the descriptions of are vague. Scharl identified his beer as being ‘brown.’ Other references to malting at this time suggest that direct heat and high temperatures were employed in the kilning, and that would naturally produce a dark color. (JACKSON, 1996). Benno como um dos precursores da cerveja moderna descreveu, em 1814, a cerveja “Braune” da Baviera em seu livro Beschreibung der Braunbier-Brauerey im Königreiche Baiern (WIKIPEDIA, s. d.[g], on-line). 221 de Anton Dreher, na Suíça; a Märzen de Gabriel Seldmayr II, na Alemanha; e a Pilsner de Josef Groll, na República Tcheca (MEUSSDOERFFER, 2009). A Pilsen checa talvez tenha sido o estilo de cerveja que mais fez fama, propagando a cerveja clara e Lager pelo mundo. A região da Boêmia sempre foi prestigiada por sua produção de cevada e lúpulo. Lá, o famoso lúpulo Saaz era tesouro nacional e a tentativa de exportar mudas seria punida com a morte aos mandos dos Grã-duque da região. Apesar de sua tradição cervejeira do século XII, somente no final do século XVIII e no início do XIX, por meio do mestre cervejeiro alemão František Ondřej Poupe, muitas inovações vieram para sedimentar base da revolução que ocorreria mais adiante. Ainda se faziam cervejas de alta fermentação com muitas variações de sabores, até que um grupo de cervejeiros resolveu criar uma nova cervejaria com uso de baixa fermentação: a cervejaria que conhecemos hoje por Pilsener Urquell (MILLER, 1990), ou em livre tradição, Pilsen, a original. Em 1842, os líderes da nova cervejaria convocaram o cervejeiro bávaro Josef Groll, de Vilshofen para fazer uma cerveja de baixa fermentação. O rústico e rural cervejeiro foi para Boêmia levando um barril de levedura Lager, comum na Baviera, que combinou perfeitamente com os ingredientes da lá. A cevada era pobre em proteínas, contribuindo para uma coloração mais clara da cerveja. Além disso, a nova fábrica tinha os equipamentos ingleses modernos de malteação. A água da cidade de Plzen é mole, sobretudo no calcário, favorecendo a limpidez da bebida. O lúpulo Saaz era usado em grandes quantidades, o que pode ter facilitado a clarificação, além de proporcionar muito aroma à cerveja. Os grandes porões construídos para armazenar essas bebidas também contribuíram para o sucesso da fabricação da cerveja Lager de Plzen, que se espalhou para outras cidades, como Budweis (local original da cervejaria da corte real da Boêmia) e para a Bavária, onde se criaria o estilo German Pils (JACKSON, 1996). Outro ponto fundamental foi a refrigeração artificial. Antes, os cervejeiros armazenavam (Lager em alemão é guardada/armazenada) as cervejas em cavernas cavadas nas montanhas (cavas) geladas dos Alpes da Baviera durante o verão, uma vez que não conseguiam produzir “boas cervejas” quando a temperatura estava mais elevada, pois a fermentação aberta fazia com que as bactérias proliferassem, deixando a cerveja com sabores e aromas não característicos147. Existem relatos desse processo de estocagem nas cavas desde 1420, em

147 A partir dessa tradição e para preservar a “boa cerveja” feita no inverno, a Baviera emitiu diversas normas para preservação da cerveja e da coleta correta de seu imposto. Na cidade de Augsburg, em 1156, com relação à cerveja ruim, o decreto afirmava que “shall be destroyed or distributed among the poor at no charge.” Em 1363, a prefeitura de Munique tinha funcionários públicos como inspetores da cerveja. Em 1420, outro decreto exigia que a cerveja fosse maturada por ao menos oito dias e, em 1447, o duque de Albercht ordenou que os cervejeiros

222

Munique. Empiricamente, esses cervejeiros estavam fazendo cerveja de baixa fermentação, devido à maior sedimentação da levedura no fundo dos barris (JACKSON, 1996). Entretanto, somente com os avanços tecnológicos, foi possível estruturar a refrigeração artificial, que já vinha sendo desenvolvida por Willian Cullen na Escócia, em 1748, e em Carré, na França, em 1857. Em 1873, foi instalado na cervejaria Spaten o primeiro equipamento prático de refrigeração por Carl von Linde, professor de engenharia da faculdade que funcionava no mosteiro de Weihenstephan148. Linde desenvolveu o que chamou de “máquina fria de amônia”, a partir da refrigeração por compressão de vapor, com financiamento da cervejaria e incentivo de Gabriel Seldmayr II. Essa inovação inaugurou o avanço de produção, sobretudo na Alemanha, da cerveja durante o verão, já que o problema da temperatura estava controlado (DORNBUSH, 2012). Por fim, para fechar as inovações em torno da cerveja clara, os avanços no tratamento da levedura Lager tiveram impacto fundamental. Os estudos sobre as leveduras se iniciaram quando se abriu o acesso ao mundo das micropartículas, a partir da invenção do microscópio primitivo, em 1674, por Anton van Leeuwenhoek, que primeiro observou a levedura como elementos interligados. Porém, somente em 1789, Antoine Laurent Lavoisier descreveu a natureza química do processo de fermentação e, em 1815, Gay Lussac esclareceu a reação da fermentação alcoólica (WHITE; ZAINASHEFF, 2010). Entre 1820 e 1830, Gabriel Seldmayr II, que incentivara von Linde no projeto de refrigeração, estava estudando e viajando149 pela Europa em busca do conhecimento cervejeiro para aplicar na fábrica de seu pai Gabriel Seldmayr I, que fora mestre cervejeiro da corte real da Baviera e havia comprado a cervejaria Spaten em 1807 (a cervejaria existia desde 1397, em Munique), transformando-a na terceira maior da cidade em 1820. A Spaten sempre buscou

usassem apenas cevada, lúpulo e água na fabricação, já que era usado todo o tipo de “tempero” para esconder as ditas “cervejas ruins”. Contudo, essa ordem não foi seguida e, somente em 1516, o duque Wilhelm IV emitiu a Reinheitsgebot, Lei de Pureza Alemã, que trata da restrição dos ingredientes na produção. Por fim em 1553, o mesmo Albercht IV lançou lei que proibia a produção de cerveja no verão da Baviera, entre 23 de abril (Festa de São Jorge) e 29 de setembro (Festa de São Miguel), norma que teria forte influência na renovação da cerveja na Alemanha do século XIX e da criação do estilo Märzen (DORNBUSH, 2012). 148 Reconhecida como a cervejaria mais antiga do mundo, o mosteiro beneditino onde se começou a fazer cerveja em 1040, tornou-se a cervejaria do estado da Baviera a partir de 1921 e foi elevada à condição de Universidade Técnica de Munique em 1930 com diversos cursos sobre Ciência da Cerveja e Tecnologia de Bebidas (GORDON, 2012). 149 “Gabriel II noted that, as compared to the Bavarians, the Belgians and British has gentler techniques for drying the malt. The Prussians and British knew more about the extraction of fermentable sugars in the mashing. The English brewer, Bass, provided him with his first saccharometer, but elsewhere in Britain, Gabriel II and Dreher recalled that they ‘stole’ samples of wort and yeast. They even commissioned the manufacture of a metal tube, with a hidden valve, for this purpose. "It always surprises me that we can get away with these thefts without being beaten up,’ Gabriel II wrote” (JACKSON, 1996). 223 inovações, sendo a primeira fora do Reino Unido a ser movida a vapor, promovendo também avanços significativos nos estudos sobre a levedura Lager (HORNSEY, 2003). Um dos discípulos de Gabriel Seldmayr II, Jacob Christian Jacobsen, teria levado a levedura da Spaten para a Carlsberg, sua própria cervejaria, situada em Copenhague, na Dinamarca. Fundada por Jacobsen em 1845, a Carlsberg viria a se tornar uma das maiores do mundo (JACKSON, 1996). O ponto de virada na compreensão da fermentação ocorreu através da publicação de Louis Pasteur, Etudes sur la Biere (1876), que constatou a existência de microrganismos estranhos à levedura que contaminavam a cerveja: “every unhealthy change in the quality of beer coincides with the development of microscopic germs which are alien to the pure fermente of the beer”. Diante dessa constatação, Pasteur desenvolveu experimentos que mostraram que o aquecimento entre 55°C e 60°C por um tempo curto inibe o crescimento de outros organismos, permitindo que a cerveja seja consumida até nove meses após sua fabricação. Dessa forma, a pasteurização foi inventada devido à cerveja e não ao leite (PHILLISKIRK, 2012, p. 667150, grifo nosso). Em 1883, Emil Hansen isolou a primeira cepa de leveduras para cerveja no laboratório da Carlsberg, nomeando-a como Saccharomyces carlsbergensis151. O feito de Hansen foi decisivo para reprodutividade152 da cerveja sempre com o mesmo perfil de fermentação. Além disso, foi possível armazená-la e conservá-la de tal maneira que a levedura Lager pode viajar e conquistar o mundo, com sua maior durabilidade, fazendo milhares de cervejarias migrarem do fermento Ale para o Lager (WHITE; ZAINASHEFF, 2010). Limberger (2016) aponta que, após a Primeira Guerra Mundial, a cerveja Lager representava 15% do consumo mundial e passou para incríveis 70% após a Segunda Guerra Mundial, demostrando a grande capacidade de expansão de consumo e distribuição por meio da estrada de ferro, navios a vapor e com o uso da refrigeração artificial. Em 1910, a produção mundial de cerveja era superior a 200 milhões de hectolitros153 (20 bilhões de litros), chegando a quase 2.000 milhões de hectolitros (200 bilhões de litros) em 2010 (BARTH-HASS, 1910, 2010). Para se ter uma ideia desse avanço, se o aumento fosse

150 Uma das motivações de Pasteur era sua animosidade com a Alemanha, após a França ter perdido a guerra Franco Prussiana em 1870 e cedido a região da Alsace-Lorraine, tradicional em produção de lúpulo. Pasteur queria fazer uma cerveja melhor que os germânicos, na verdade ele queria fazer a “beer of National Revenge” PHILLISKIRK, 2012, p. 668). 151 Os taxonomistas atualizaram essa levedura para Sccharomyces uvarum e afirmam que atualmente todas as leveduras para cerveja devam chamar Sccharomyces pastorianus, que seria um organismo que surgiu de S. cerevisiae e S. bayanus (DALE, 2012). 152 Em 1886, um discípulo de Pasteur, Elion isolou a levedura-A nos laboratórios da Heineken e essa levedura é até hoje utilizada (WALSH, 2012). 153 O hectolitro (hl) é a unidade de medida utilizada no mundo cervejeiro e equivale a 100 litros. 224 linear, haveria um acréscimo de aproximadamente 2 bilhões de litros de cerveja a mais por ano durante 100 anos, ou seja, estamos falando de uma produção elevadíssima da cerveja clara. Esse aumento só foi possível devido aos fatos elencados e ao avanço do capitalismo. O contexto de como a cerveja clara e Lager evoluiu e dominou o mundo das cervejas em todos os países, independentemente da tradição cervejeira existente previamente, é importante para visualizarmos o espaço que a cerveja Lager assumiu no mundo. Para tanto, trouxemos duas ilustrações bem conhecidas do público cervejeiro para representar o domínio mundial de apenas um tipo de cerveja. A Figura 51 representa a diversidade de estilos de cerveja, com destaque em vermelho para Pilsen e seus derivados, mostrando que esse estilo é só uma pequena parte do total de tipos de cervejas existentes. Já na Figura 52, temos a marca de cerveja mais consumida em cada país. É interessante observar que quase todas são Pilsen ou suas derivadas como American Adjunct Lager, International Pale Lager, Light Lager etc., todas da família Lager. Algumas ainda trazem a palavra Pilsen no próprio nome da marca, como no Uruguai154.

154 A lista das marcas de cerveja por país pode ser encontrada em: . Acesso em: 25/02/2021. 225

Figura 51 - The Magnificent Multitude of Beer. Destaque para os estilos derivados do Lager/Pilsen que dominam o mundo

Fonte: POP CHART, s. d., on-line. 226

Figura 52 - As marcas de cerveja mais consumidas por país

Fonte: VINE PAIR, s. d., on-line.

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As imagens mostram a homogeneização causada pelos processos de globalização. Como vimos na parte teórica referente aos TC, os fluxos intensos das grandes cervejarias e suas marcas promovem a fuga do território enquanto múltipla representação de identidades, desterritorializando o consumidor para reterritorializá-lo em um território gigantesco de uma identidade apenas: a da cerveja Lager/Pilsen. Por outro lado, os processos globais “implantam- se” no local e este ganha divisas com essas trocas, como podemos ver no valor de vendas e de marcado das marcas nos números abaixo (Tabela 20). As dez marcas de cerveja mais consumidas e mais valiosas do mundo trazem dados para verificar o real domínio desse tipo de cerveja no espaço, denominados por nós de Territórios da Cerveja Pilsen (TCP).

Tabela 20 - As dez marcas de cerveja mais consumidas no mundo, seus valores, origens e seus estilos155

Vendas Mercado País Marca Estilo Cervejaria (país sede) (mi US$) Marca (bi US$) Marca 2018 2020 China Resources Snow Breweries Snow Light Lager China 101.2 Corona 8,1 (China) Budweiser Light Lager EUA AB Inbev (Bélgica) 49,2 Heineken 7,0 International Tsingtao China Tsingtao Brewery Group (China) 49,0 Budweiser 6,4 Pale Lager Bud Light Light Lager EUA AB Inbev (Bélgica) 44,8 Bud Light 5,8 Skol Light Lager Brasil AB Inbev (Bélgica) 35,1 Vitoria 4,6 International Heineken Holanda Heineken (Holanda) 34,3 Kirin 4,4 Pale Lager International Harbin China Harbin Brewery (China) 29,9 Snow 4,2 Pale Lager International Yanjing China Beijing Yanjing Beer Group (China) 29,7 Harbin 4,1 Pale Lager Corona Light Lager México AB Inbev (Bélgica) 28,8 Modelo 3,7 Molson Coors Brewing Company Coors Light Lager EUA 26,5 Skol 2,7 (EUA) Fonte: País de origem e volume das marcas de cervejas mais consumidas no mundo (GREABER, 2018, on-line); categorização de estilos (RATE BEER, s. d., on-line) ; valor de mercado das marcas: BRAND FINANCE, 2020, on-line).

Todas as marcas listadas na Tabela 20 são derivadas do estilo Pilsen, ou seja, esse tipo de cerveja é um vetor dos processos de globalização e avança nos diferentes países, sufocando as identidades regionais para impor os TCP. Outra forma de visualizar esse movimento global da cerveja é comparar a origem das marcas com origem das cervejarias que as detêm. Enquanto na origem das marcas mais consumidas temos países subdesenvolvidos como Brasil e México,

155 Algumas marcas com grande valor de mercado não figuram na lista de maiores vendedores, a saber: Vitoria, a quarta marca de cerveja em valor de marcado é uma International Pale Lager de origem Mexicana e pertencente ao grupo AB Inbev (Bélgica); Kirin, a quinta em valor de marcado também é uma International Pale Lager de origem japonesa e pertencente à Kirin Brewery Company (Japão); Modelo, a nona em valor de mercado é uma International Pale Lager de origem mexicana e pertencente ao grupo AB Inbev (Bélgica). 228 a origem dos grupos cervejeiros são de países centrais, representados principalmente pela China. Neste sentido, os TCP se contrapõem aos TC criados a partir da cerveja artesanal e geram estratégias de dominação e reprodução de sua lógica homogeneizadora.

6.1.2 O panorama cervejeiro mundial

A cerveja Pilsen e as cervejarias distribuídas em todo o planeta constroem relações de poder que são a base da criação de territórios. Quanto mais poder econômico os grupos cervejeiros possuem, mais fontes de criação de redes são estabelecidas, formando verdadeiros territórios-rede. Para situar essas mudanças no tempo e no espaço, elaboramos a Tabela 21 com as 40 principais cervejarias fundadas no século XIX.

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Tabela 21 - As 40 principais cervejarias do século XIX (data e local)

Cervejaria Fundação Continente Pais Cidade Krombacher 1803 Europa Alemanha Kreuztal Bitburger Brauer 1817 Europa Alemanha Bituburg Brauerei C&A Veltins 1824 Europa Alemanha Grevenstein Brouwerij De Koninck 1833 Europa Bélgica Antuérpia Marston’s PLC 1834 Europa Inglaterra Burton-on-Trend Rodenbach 1836 Europa Bélgica Roeselare Plizeñský Prazdroj 1839 Europa República Checa Pilsen Saint Sixtus Trappistenabdij 1839 Europa Bélgica Westvleteren Fuller, Smith & Turner 1845 Europa Inglaterra Londres Kulmbacher Reichelbrau 1846 Europa Alemanha Kulmbach Carsberg 1847 Europa Dinamarca Copenhague St. Austell Brewery 1851 Europa Inglaterra St. Austell Anheuser Bush 1852 América EUA St. Louis Licher Privatbra Ihring- 1854 Europa Alemanha Hessen Miller BrewingMelchior Company 1855 América EUA Milwaukee Kingfisher 1857 Ásia Índia Bangalore Coopers Brewery 1862 Oceania Austrália Adelaide Kirin Brewery Co. 1870 Ásia Japão Tóquio Duvel 1871 Europa Bélgica Breendonk Adnams PLC 1872 Europa Inglaterra Southwold Estella Damm 1872 Europa Espanha Barcelona G. Schineider & Shon 1872 Europa Alemanha Munique Coors Brewing Company 1873 América Estados Unidos Golden Riegele 1874 Europa Alemanha Augsbueg Brauhaus Faust OHG 1875 Europa Alemanha Miltenberg Sapporo Breweries Ltd 1877 Ásia Japão Tóquio Ayringer 1878 Europa Alemenha Ayinger Antarctica 1885 América Brasil São Paulo Erdinger 1886 Europa Alemanha Erdinger Heineken N.V. 1886 Europa Holanda Amesterdã Brahma 1888 América Brasil Rio de Janeiro Cervecería Cuauhtémoc 1890 América México Monterrey Hijos de(FEMSA) Casimiri Mahou 1890 Europa Espanha Madri San Moguel Corporation 1890 Ásia Filipinas Mandaluyong Unicer – Bebidas de Portugal 1890 Europa Portugal Porto Czech Shore Brewery 1895 Europa República Checa Budvar Southe African Breweries-SAB 1895 África África do Sul Johannesburgo Anchor Brewing 1896 América EUA São Francisco Haacht Brewery 1898 Europa Bélgica Haacht Brasserie-Brouwerij Cantillon 1900 Europa Bélgica Bruxelas Fonte: LIMBERGER, 2016; HAMPSON, 2014.

Muitas dessas cervejarias foram incorporadas por grandes grupos cervejeiros, mas tiveram sua importância na proliferação do consumo de cerveja pelo mundo, sobretudo na

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Europa, que detém aproximadamente 70% das principais cervejarias mencionadas na Tabela 21, devido à sua tradição cervejeira e por ser o berço da Revolução Industrial. Até a metade do século XIX, a Europa concentrou todas as cervejarias listadas acima. Somente em 1852, uma cervejaria importante foi instalada fora do continente: a Anheuser-Busch, nos EUA, fundada pelo imigrante George Schneider. Logo depois, em 1855, a Miller Brewing Company foi fundada por Frederick Miller no mesmo país. Mais tarde, em 1873, foi fundada no mesmo país a Coors Brewing Company por Adolph Coors e Jacob Schueler (OGLE, 2007). Ainda no século XIX, os ingleses iniciaram a instalação de cervejarias nas colônias britânicas. Assim, em 1857, a Kingfisher foi instalada na Índia e a South African Breweries (SAB) foi instalada na África do Sul em 1895. No Brasil, houve a instalação da Antarctica de Louis Bücher em 1885 e da Brahma por Joseph Villiger em 1888 (HORNSEY, 2003; SANTOS, 2004). A Tabela 21 mostra que as cervejarias estão mais concentradas na Alemanha (22,5%), na Bélgica (15%) e na Inglaterra156 (10%), países considerados berços de escolas cervejeiras, como já discutido no primeiro capítulo. Esse processo se espalhou pelo mundo e teve grande disseminação na América que, dessa lista, possui quase 20% dessas principais cervejarias, sobretudo nos EUA (7,5%), Brasil (5%) e com entrada do México. Em menor escala, temos a Ásia com 10% das cervejarias da lista, com destaque para o Japão (5%) e entrada de Índia e Filipinas. Se compararmos o nascimento das principais cervejarias do mundo no século XIX com os principais grupos cervejeiros atuais, verificamos as mudanças no setor e o grande movimento de fusões e aquisições que se propagou, gerando conglomerados industriais gigantescos. Entretanto, algumas cervejarias ainda se mantêm devido à tradição e à resistência ao processo de concentração do capital. A formação desses grupos (Tabela 22) se deve, sobretudo, à onda de crescimento das cervejas clara e Lager por todo o mundo, configurando-se como um consumo de massa, estandardizado e distribuído geograficamente nos TCP.

156 É importante destacar que a Alemanha detinha a maior produção de cerveja do mundo em 1820 com aproximadamente 11,0 milhões de hectolitros (1,1 bilhão de litros), enquanto a Inglaterra contava com apenas 1,1 mi hl (110 milhões de litros). Em 1880, a Inglaterra atingiu 45,6 mi hl (4,5 bilhões de litros) e a Alemanha subiu para 38,5 mi hl (3,8 bi L). Os EUA também entraram no jogo da produção em larga escala com 15,6 mi hl (1,5 bi L), assim como Bélgica e França com 10 mi hl (1 bi L) cada (POELMANS; SWINNEN, 2012 apud LIMBERGER, 2016). 231

Tabela 22 - Os 40 principais grupos cervejeiros do século XXI (volume em mi hl) Cervejaria Continente País Volume % AB InBev Europa/América Bélgica/Brasil 612.5 31.4% Heineken Europa Holanda 218.0 11.2% China Res. Snow Breweries Ásia China 126.0 6.5% Carlsberg Europa Dinamarca 113.4 5.8% Molson-Coors América EUA/Canadá 99.6 5.1% Tsingtao Brewery Group Ásia China 78.0 4.0% Asahi Ásia Japão 58.2 3.0% Yanjing Ásia China 43.0 2.2% BGI/Groupe Castel Europa França 38.8 2.0% Kirin Ásia Japão 29.9 1.5% Petrópolis América Brasil 25.0 1.3% Efes Group Oriente Médio Turquia 21.1 1.1% Constellation Brands América EUA 21.0 1.1% San Miguel Corporation Ásia Filipinas 18.3 0.9% Saigon Beverage Corp. (SABECO) Ásia Vietnã 17.2 0.9% Diageo (Guinness) Europa Irlanda 15.5 0.8% Singha Corporation Ásia Tailândia 14.5 0.7% Grupo Mahou - San Miguel Europa Espanha 12.6 0.6% Pearl River Ásia China 12.1 0.6% Radeberger Gruppe Europa Alemanha 11.5 0.6% CCU América Chile 11.5 0.6% United Brewery Ásia Índia 11.5 0.6% Damm Europa Espanha 10.6 0.5% Oettinger Europa Alemanha 8.6 0.4% Sapporo Ásia Japão 8.6 0.4% TCB Beverages Europa Alemanha 8.5 0.4% Beer Thai (Chang) Ásia Tailândia 8.5 0.4% Suntory Ásia Japão 8.2 0.4% Bavaria N.V. Europa Holanda 7.3 0.4% Bitburger Brewery Group Europa Alemanha 6.8 0.3% Polar América Venezuela 6.2 0.3% Krombacher Europa Alemanha 6.1 0.3% Paulaner Brewery Group Europa Alemanha 5.7 0.3% HiteJinro Ásia Coréia do Sul 5.6 0.3% Hanoi Beverage Corp. (HABECO) Ásia Vietnã 4.8 0.2% Obolon Europa Ucrânia 4.5 0.2% Gold Star Ásia China 4.0 0.2% Warsteiner Europa Alemanha 3.8 0.2% Veltins Europa Alemanha 2.9 0.1% Estrella de Galicia Europa Espanha 2.8 0.1% Fonte: Elaboração própria a partir de BARTH-HAAS, 2017; 2018.

Alguns grupos do século XXI foram originados a partir das principais cervejarias do século XIX, uns mais diretamente, mantendo até o mesmo nome, e outros formados por fusões

232 e incorporações. Apresentando ligação direta com a cervejaria matriz, temos grupos como a Heineken (Holanda), Carlsberg (Dinamarca), Krombacher (Alemanha) e Kirin e Saporro (Japão), que mantiveram as origens e se expandiram por todo o mundo todo, comprando diversas outras cervejarias. Contudo, o que mais chama atenção é a concentração da produção em poucas empresas. A lista dos 40 maiores grupos representa quase 90% de toda cerveja produzida no mundo, com 1.722 mi hl (172 bi L), ou seja, a gigantesca maioria das cervejas que estão no mercado, em termos de volume, fazem parte de um grande grupo econômico de cerveja. Esse movimento pode ser visualizado pela espacialização das cervejarias nos diferentes séculos a partir dos dados acima (Tabelas 21 e 22). Devido à escala global da representação, optamos pela ferramenta do My Maps do Google para facilitar a representação. As cervejarias do século XIX são representadas através ícones de fábricas (círculos verdes), enquanto as cervejarias do século XXI correspondem aos ícones de empresas (círculos azuis), já que são conglomeradas de cervejarias espalhados por todo o mundo (Figura 53).

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Figura 53 - Comparação da espacialização das 40 principais cervejarias entre os séculos XIX e XXI

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados das tabelas 22 e 23. O mapa pode ser acessado de forma virtual e interativa pelo link: . Acesso em: 25 abr. 2021.

234

A Europa concentra as principais cervejarias, porém, no século XIX, alguns países sofreram influência da produção e dos imigrantes europeus em uma primeira onda, abrindo fábricas em locais periféricos em relação ao eurocentro cervejeiro, como Filipinas, Austrália, África do Sul, Brasil, México e EUA. Já no século XXI, temos uma segunda onda de descentralização da hegemonia cervejeira, sobretudo, para Ásia (Coréia do Sul, Vietnã, Tailândia, Japão, China, Índia e Tailândia) e outros países como Ucrânia, Turquia, Chile, Venezuela e Canadá. Nesse contexto, os grupos econômicos e sua forma de organização estabelecem redes que criam territórios a todo momento e em todo o mundo. A indústria cervejeira está articulada em uma ampla rede de distribuição física que atinge grande parte dos lares onde estão situadas as cervejarias, as quais se integram pela gestão corporativa da empresa, sediada em apenas um local. Toda essa construção cria os territórios baseados nos aspectos econômicos, poder que se encontra cada vez mais concentrado. É interessante notar que quase metade de toda cerveja produzida do mundo é de responsabilidade de apenas três empresas: AB InBev (Bélgica/Brasil), Heineken (Holanda) e Snow (China). Isso também mostra uma tendência de espraiamento da produção. A Europa, outrora dominante na produção mundial de cerveja, hoje concentra 44% da lista de maiores grupos, seguida de perto da Ásia com 39%. Dos países listados, a Alemanha desponta com oito grupos, perfazendo 20% do total da lista. Porém, esses grupos somam apenas 2,6% da produção mundial, enquanto a AB InBev detém sozinha 31,4% do volume total da produção do mundo. No contexto internacional, alguns países, como o Brasil, se encontram em uma situação de liderança peculiar. Ao somarmos a produção da AB InBev e do Grupo Petrópolis, temos 32,7% da produção mundial também liderada por um grupo brasileiro. Porém, o relatório Barth-Haas considera a primeira empresa apenas como belga157. Contudo, de acordo com as informações disponibilizadas no site da empresa, na seção de líderes, temos oito brasileiros entre os 17 chefes superiores, incluindo o

157 AB Inbev, maior cervejaria do mundo, foi criada quando a InBev comprou a rival norte americana Anheuser- Busch-AB em 2008 por 52 bilhões de dólares. A própria InBev já foi resultado da fusão entre a belga Interbrew e a brasileira Ambev em 2004. A cervejaria brasileira se formou em 1999 com a fusão entre a Brahma e a Antarctica, enquanto a cervejaria belga surgiu a partir da fusão entre a Brasserie Artois e a Brasseries Piedboeuf, em 1987 (MARCUSSO, 2015). Na fusão entre a cervejaria belga e a brasileira, ocorreu um troca das mãos dos acionários das empresas. Enquanto o grupo belga tomou de forma majoritária 51% das ações da Ambev, esta adquiriu apenas 25% das ações da Interbrew, por isso, se costuma dizer que a InBev é um grupo belga, além do controle da Labatt nos Estados Unidos e Canadá, elemento importante, que permitiu que o grupo entrasse no grande mercado americano, o que resultou anos depois na compra da AB. Apesar de possuir menos ações os brasileiros, tem 50% dos votos do conselho administrativo (SPOTORNO, 2010, on-line). 235 diretor executivo Carlos Brito, o que torna evidente a centralidade do Brasil nas operações do grupo. A China é sempre um forte competidor devido ao gigantismo da sua população e economia. No setor de cerveja não foi diferente. O país apresenta cinco grupos na lista, com 13,5% da produção de cerveja no mundo. O Japão, com sua tradição na produção de cerveja, apresenta quatro grupos e produz 5,3% do total mundial. O Gráfico 5 representa a evolução da produção nos países líderes.

Gráfico 5 - Evolução da produção cervejeira em mi hl nos principais países entre 2007 e 2019

2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

500,00 450,00 400,00 350,00 300,00 250,00 200,00 150,00 100,00 50,00 - China EUA Brasil México Alemanha Rússia Japão Vietnã Reino Polônia Unido

Fonte: LIMBERGER (2016), com atualizações a partir de BARTH-HAAS, 2017-2019

No gráfico acima, verificamos uma tendência de queda nos países desenvolvidos (EUA, Alemanha, Japão e Reino Unido), ao passo que nos países em desenvolvimento (Brasil, México e Vietnã), a produção de cerveja está em crescimento. Esse movimento de concentração no mercado cervejeiro não ocorreu somente nas últimas décadas, estando presente no cenário cervejeiro desde o século XIX e intensificando-se no século XX. Na cidade de Pilsen, na antiga Tchecoslováquia, a cervejaria que inventou o estilo Pilsen, Plizeñský Prazdroj, após seu grande sucesso, passou a comprar suas concorrentes, concentrando a produção. Na década de 1920, comprou a Sociedade Anônima, produtora de Pilsen da cidade, a produtora da Prior (fundada em 1893) e depois a produtora da Gambrinus (fundada em 1869) (LIMBERGER, 2016). Como podemos notar, a maior empresa e com mais tradição, Prazdroj (1839), quando percebe que novos concorrentes ameaçam sua hegemonia

236 procura adquiri-los, muitas vezes desaparecendo com suas marcas para fortalecer a principal marca da matriz. Essa tendência também é reproduzida em outros locais. Limberger (2016) ainda destaca a forte concentração no pós-guerra. Em 1947, o setor tinha uma concentração de quase 50%, ao passo que, em 1999, esse número subiu para 87%. No caso do mercado cervejeiro, as fusões e aquisições representam uma atitude que visa: a) aumentar a variedade de produtos no portfólio da empresa visando uma redução do risco em face de escolha do consumidor; b) obter economias de escala para se tornar mais competitiva frente aos rivais e; c) ir à busca de mercados mais atrativos que possuam alto crescimento de demanda por cerveja (MOREIRA et al., 2013). A Figura 54, a seguir, ilustra as fusões e aquisições que resultaram na criação da AB Inbev.

Figura 54 - Fusões e aquisições para se formar o maior grupo cervejeiro do mundo

Fonte: Elaboração própria, a partir de MARCUSSO (2015) e sites oficiais das cervejarias.

A montagem desses grupos gigantescos pode ter origens remotas – como no caso da fundação da cervejeira que produz a Estela Artois em 1366 –, passando pela história de diversos países como Bélgica, Canadá, Brasil, Argentina, China, México, República Tcheca, Hungria, 237

República Dominicana, EUA, África do Sul, Colômbia, Austrália e Inglaterra. Esse passeio mostra a dispersão no espaço e no tempo que a formação de grandes grupos cervejeiros pode alcançar. Esse exemplo da formação da AB InBev demonstra a amplitude de territórios e territorialidades que se pode formar a partir de apenas um grupo. Todas as empresas líderes do mercado do setor se fortaleceram com fusões e aquisições, pois são movimentados bilhões de dólares quase sempre de países centrais para periféricos. A Tabela 23 apresenta os maiores movimentos do setor cervejeiros, sua origem, destino e valores.

Tabela 23 - As 20 maiores fusões aquisições do século XXI em bilhões de dólares

Comprador País-Sede Ano Vendedor País-Sede Valor AB InBev Bélgica 2015 SAB Miller Inglaterra 104,2 InBev Bélgica 2008 Anheuser-Busch EUA 52,0 AB InBev Bélgica 2013 Modelo México 20,9 Interbrew Bélgica 2004 Ambev Brasil 11,0 SAB Miller Inglaterra 2011 Foster’s Austrália 10,2 SAB Miller Inglaterra 2005 Bavaria Colômbia 7,8 Heineken+Carlsberg Holanda+Dinamarca 2008 Scottish&Newcastle Inglaterra 7,6 AB InBev Bélgica 2014 Oriental Brewey Coréia do Sul 5,8 SAB África do Sul 2002 Miller EUA 5,6 Heineken Holanda 2010 FEMSA México 5,5 Heineken Holanda 2012 Tiger Singapura 4,6 Kirin* Japão 2009 Lion Nathan Austrália 3,7 Molson-Coors Canadá-EUA 2012 Starbev Rep. Tcheca 3,5 Molson Canadá 2005 Coors EUA 3,4 Heineken* Holanda 2018 China Res. Beer China 3,1 Kirin Japão 2011 Schincariol Brasil 2,5 SAB Miller* Inglaterra 2011 Anadolu Efes Turquia 1,9 Kirin* Japão 2009 San Miguel Filipinas 1,4 Asahi Japão 2011 Independent Liquor Nova Zelândia 1,3 AB InBev Bélgica 2012 CND Rep. Dominicana 1,2 Fonte: Adaptado de LIMBERGER (2016), com inserções de MARCUSSO (2015). *A transações marcadas foram apenas de parte das ações. O caso mais emblemático é o da Heineken, que comprou 40% da líder chinesa, terceira maior cervejaria do mundo, atrás apenas da AB Inbev e da própria cervejaria holandesa. Nessa movimentação, a cervejaria chinesa adquiriu 5,2 milhões em ações da Heineken (REUTERS, 2018a, on-line)

Com exceção do África do Sul todos os países que lideram as maiores fusões aquisições do século XXI estão na tríade econômica que concentra a maior parte dos Investimentos Externos Diretos para abrir oligopólios domésticos, criando um verdadeiro oligopólio

238 mundial158 (CHESNAIS, 1996) e nas palavras de Chesnais (1996). Para ilustrar essa situação, através da Figura 55, representamos a espacialização desses movimentos de fusão e aquisição que demonstram a criação dos territórios em rede. As cervejarias compradas estão representadas por ícones de fábricas (círculos verdes), enquanto as cervejarias compradoras correspondem aos ícones de empresas (círculos azuis), já que são verdadeiros grupos econômicos/cervejeiros globais. As ações de compra e união entre cervejarias são representadas pelas linhas que unem os países.

158 Um espaço de rivalidade delimitado pelas relações de dependência mútua de mercado, que interligam o pequeno número de grandes grupos que, em uma dada indústria (ou em um conjunto de indústrias de tecnologia genérica comum), chegam a adquirir e conservar a posição de concorrentes efetivos no plano mundial. O oligopólio é um lugar de concorrência encarniçada, mas também de colaboração entre grupos (CHESNAIS, 1996). 239

Figura 55 - Movimento de aquisições no mundo da cerveja no século XXI

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Tabelas 23 O mapa pode ser acessado de forma virtual e interativa pelo link: . Acesso em: 15 abr. 2021.

240

Novamente, a euroconcentração cervejeira é marcante, sobretudo puxada pelo poderio financeiro da Carlsberg, com sede na Dinamarca; da Heineken, sediada na Holanda e da líder mundial AB Inbev, com sede na Bélgica. Desde o início de sua formação, esse grupo já esteve envolvido em movimentos que somam, somente nesse levantamento, quase 200 bilhões de dólares. A SAB Miller, antes de ser adquirida pela belgo-brasileira, movimentou US$ 25 bilhões, a Heineken US$ 20 bilhões, a Kirin e Carlsberg US$ 7,6 bilhões e a Molson-Coors US$ 6,9 bilhões. O alcance das empresas líderes multinacionais pode ser verificado por seu tamanho. A AB Inbev possui 500 marcas e tem operações em quase 50 países, com 227 plantas cervejeiras que empregam 175 mil funcionários. Já a Heineken detém 300 marcas, operando em 70 países, com 170 cervejarias, empregando 85 mil pessoas. A Carlsberg controla 17 marcas, em 25 países, com 22 cervejarias e 40 mil funcionários. A Molson-Coors detém 96 marcas, em 14 países, em um total de 27 cervejarias, com 17 mil empregados159. O poder econômico dessas empresas faz parte da vida de muitas pessoas em diversos países. Essas empresas estabelecem relações com os locais onde se fixam e com sua população, relações essas que constituem uma das bases de construção dos TC, mesmo que de forma mais econômica do que cultural. A concentração é tão grande, que apenas essas quatro empresas empregam mais de 300 mil pessoas, com cerca de 500 cervejarias e quase 1.000 marcas em seus portfólios. As aquisições não param (Figura 56) e também avançam sobre marcas locais e tradicionais, como a Brooklin Brewers (fundada em 1988), em Nova York pela Kirin, a Bosteels Brewery (1791), fabricante das importantes marcas Kwak, DeuS e Tripel Karmeliet pela AB InBev e a Griffin Brewery (1654) que produz a renomada cerveja Fuller’s pela Asahi160.

159 Dados dos relatórios anuais de 2018 de todas as empresas disponíveis nos sites. 160 Em 2016, o grupo Kirin adquiriu 25% da icônica cervejaria Brooklyn Brewery (1988), que tem como cervejeiro o já citado Garret Oliver e um dos símbolos da revolução da cerveja artesanal (BEER ART, 2016, on-line). No mesmo ano, a AB Inbev adquiriu a Bosteels Brewery (1791), que tem Antoine Bosteels na sétima geração à frente da empresa (WATERLAND, s. d., on-line). A também japonesa Asahi comprou tradicional cervejaria Griffin Brewery por R$ 327 mi, expandindo suas operações no exterior. Disponível em: . Acesso em: 23/04/2019. 241

Figura 56 - Amostra do nível de aquisições realizadas entre 2013 e 2017 pelos grandes grupos

Fonte: CB INSIGHTS, 2018, on-line.

Esse movimento de aquisição das empresas marginais pelas empresas líderes é uma tendência do século XXI, porém existem países onde as tradições e a cultura cervejeira são mais fortes que as forças centralizadoras do capital. A Alemanha, por exemplo, possui uma baixa concentração no mercado cervejeiro161 (38%) devido a tudo que a cerveja representa no país, fazendo parte da sua paisagem e do modo de vida dos alemães. Em 1614, o historiador Heinrich Knaust listou mais de 120 estilos diferentes de cerveja no país e a cultura da cerveja está fortemente arraigado à cultura local. Nesse sentido, a lealdade de seus consumidores fez com que as cervejarias menores resistissem por muito tempo aos ataques das grandes corporações por aquisições. “Cada cidade, vila ou bairro na Alemanha conta com pelo menos uma cervejaria” (MORADO, 2009, p. 93). As tradições cervejeiras germânicas são um símbolo de resistência à concentração das cervejarias e à produção em massa. As mais de 1.500 cervejarias162 do país e todo o ritual que foi se construindo em volta da cerveja faz com que essa bebida não seja meramente um líquido, mas parte essencial da cultura da Alemanha.

161 México, Venezuela, Chile, Turquia, África do Sul, Argentina, Camarões, Nigéria e Tailândia têm de 95% a 99% do mercado concentrado em apenas duas empresas, a Coréia do Sul 100% e o Equador e Colômbia apenas uma empresa (BATH-HAAS, 2012). 162 A German Brewers Association foi fundada em 1871 e tem a missão de manter a boa reputação que os cervejeiros alemães desfrutam, tanto em casa quanto no exterior, além de promover e preservar a Reinheitsgebot (GERMAN BREWERS ASSOCIATION, s. d., on-line). 242

Existe ainda movimentos de compra entre as pequenas cervejarias, como é o caso da Sierra Nevada, que comprou a Sufferfest, e a Samuel Adams, que adquiriu parte da Dogfish Head nos EUA. Contudo, as grandes não param sua concentração de mercado e inserção de novas empresas, como é o caso da compra da cervejaria artesanal Norte-americana New Belgium pela gigante japonesa Kirin Ichiban (FREITAS, 2020c, on-line). A cerveja no mundo e o mundo da cerveja são dominados pelas grandes empresas que criam seus territórios, os TCP. Porém, ainda existem locais de sobrevivências das tradições cervejeiras milenares que resistem com ancoragens territoriais, criando Territórios da Cerveja “Artesanal” (TCA). Esses dois territórios são componentes dos TC e contrapõem-se. De toda forma, o poder econômico tem grande potência de estabelecer a hegemonia no mercado, não sendo diferente no Brasil.

6.1.3 O panorama cervejeiro nacional

O Brasil é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo. Segundo estudo da FGV (2018), contratado pelo Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (SINDCERV), o setor representa 2% do PIB nacional, 14% da indústria de transformação, além de gerar 2,7 milhões de empregos diretos e indiretos, chegando a 1,2 milhões de pontos de venda, faturando R$ 77 bilhões e recolhendo R$ 25 bilhões de impostos por ano (SINDICERV, s. d.[a], on-line). Esse portentoso mercado é dominado por grandes empresas, sendo que Ambev (65%) Heineken (19%) e Grupo Petrópolis (14%) detêm 98% do total, configurando o oligopólio também presente no cenário internacional (ABRALATAS, 2017, on-line). O consumo de cerveja no Brasil é sazonal. Assim, 40% do produto é comercializado entre dezembro e março, meses de verão. Para não haver muita discrepância de produção entre as estações, as cervejarias se programam, trabalhando, muitas vezes, com capacidade ociosa para criar estoques e suportar picos de consumo como em grandes eventos (carnaval, copa do mundo etc.) (MARCUSSO, 2015). Esse consumo é fortemente afetado pelo poder de compra do brasileiro, como já explicamos em seção anterior. Essa relação fica mais evidente quando observamos a produção de cerveja em série histórica ao lado das variações do salário-mínimo, da inflação e da renda domiciliar per capita em 40 anos (Gráficos 6, 7, 8 e 9).

Gráfico 6 - Produção nacional de cerveja em mi hl de 1977 a 2017. A sigla SM corresponde à Política de Valorização do Salário-Mínimo).

243

150 140 130 SM 120 Plano Real 110 100 1994 90 80 Plano Cruzado 70 1986 60 50 40 30 20 10 0 1977 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 2004 2007 2010 2013 2016

Fonte: BARTH-HAAS, 1977-2017.

Gráfico 7 - Inflação INPC entre 1979 e 2017

Fonte: IPEADATA.

Gráfico 8 - Variação do salário-mínimo entre 1977 e 2017

244

Fonte: IPEADATA.

Gráfico 9 - Renda domiciliar per capita entre 1975 e 2014

Fonte: IPEADATA.

A partir da relação entre do salário-mínimo, inflação e renda domiciliar per capita, é possível explicar alguns saltos na produção de cerveja em alguns anos. Como vimos em seção anterior, até a década de 1970, as indústrias investiram em tecnologia, devido a normas que facilitaram as importações e expandiram sua produção em volume e distribuição geográfica, alcançando todo o país por meio de abertura de novas fábricas e aquisições de cervejarias

245 menores por parte da Brahma e da Antarctica (LIMBERGER, 2016). Dessa forma, o cenário estava montado para o crescimento no período que vamos analisar. Nos anos 1970, a produção se manteve em 20 e 30 mi hl, sendo que, em 1986, ocorreu um forte acréscimo, chegando perto de 44 mi hl. Esse aumento se deve, sobretudo, ao Plano Cruzado, editado em 1986 pelo governo Sarney que, ao lançar a nova moeda também congelou os preços dos produtos e aluguéis, além de fazer um reajuste proporcional ao salário atrelado à inflação. Esse movimento causou grande aumento na renda domiciliar, já que controlou a inflação “inercial” e aumentou os salários. Como consequência, a população começou a consumir mais e as indústrias aumentaram a produção. Apesar de um sucesso inicial, o plano fracassou por que a inflação voltou a subir nos anos seguintes (BAER, 2002). Nos gráficos podemos ver que o salário-mínimo se estabilizou após um longo período de fortes variações, a inflação teve forte queda em formato “U” e a renda domiciliar apresentou pico de elevação. Esse cenário, aliado aos investimentos anteriores da indústria cervejeira e à sua capacidade ociosa, característica do setor, permitiu um crescimento da produção de cerveja de 14 mi hl em apenas um ano. Após esse período, a produção teve leves aumentos, chegando a 58 mi hl em 1991. Porém, em 1992, perdeu 10 mi hl. Nesse período, a inflação voltou a subir de forma rápida, fazendo que o salário voltasse a oscilar, reduzindo a renda domiciliar. A situação só voltou a ser controlada depois do plano real, em 1994, adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que promoveu ajuste fiscal; indexação completa da economia, utilizando a URV (Unidade Real de Valor); reforma monetária em si, transformando a URV na nova moeda real (R$); política econômica restritiva de juros altos; controle da demanda com limitações ao crédito; controle da expansão monetária, além de adotar uma âncora cambial, deixando as taxa de câmbio valorizarem, devido sobretudo ao grau de abertura econômica (FILGUEIRAS, 2000). Essas medidas estabilizaram a inflação, permitindo que o salário também se estabilizasse, o que elevou a renda domiciliar até atingir um patamar firme no início dos anos 2000. Com isso, a produção teve um salto de 20 mi hl de 1994 para 1995, gerando um ganho muito rápido de produção devido ao aumento do consumo. Relatos da época corroboram a já mencionada tese da relação entre o poder de compra e a produção de cerveja. Por exemplo, o diretor comercial Geraldo Schreiner, da Dubar S.A, divisão de bebidas finas da Antarctica, vivenciou a associação da empresa com a Morrison Bowmore Distillers, uma destilaria escocesa fundada em 1789, para comercializar no Brasil o uísque Rob Roy. Para Schreiner, a classe C ficou mais exigente e migrou da cachaça par a

246 cerveja. Assim, a empresa apostou em uma possível migração da cachaça para o uísque (ZAFALON, 1997, on-line). A produção cervejeira estabilizou-se em 80 mi hl até meados de 2004, quando passou a subir de forma leve, porém mais sustentada, em média, 6 mi hl por ano até 2012, quando alcançou o patamar atual, cerca de 140 mi hl. Essa mudança foi resultado da política de valorização do salário-mínimo no Governo Lula, período no qual ocorreram ganhos acima da inflação por anos seguidos. Com a inflação controlada em níveis baixos, a renda domiciliar passou a sustentar patamares mais elevados de consumo das famílias. Outro fator importante foi a mudança demográfica que o Brasil viveu nesse período. Em 1980, tínhamos aproximadamente 120 milhões de habitantes. A maioria da população era constituída por pessoas de até 20 anos, com a maior parcela de crianças entre zero e quatro anos. Em 1991, a população total passou para 148 milhões de habitantes, ainda com a maioria até 20 anos e faixa etária com maior representatividade entre cinco e nove anos. Nos anos 2000, a população cresceu para aproximadamente 170 milhões de habitantes e a faixa etária mais expressiva situava-se entre 15 e 19, de modo que estavam incluídos os jovens com 18 anos já completos aos quais a venda e consumo de bebidas são permitidos no Brasil. Em 2010, o país contava com 190 milhões de habitantes, com maioria entre 25 e 29 anos. A projeção para 2020 prevê uma população de 210 milhões de habitantes, com maioria totalmente adulta, entre 20 r 39 anos (IBGE, 2013). Aliados ao crescimento da população e às mudanças na pirâmide etária, o Plano Real (1994) e a Política de Valorização do Salário-Mínimo (2004 em diante) inseriram novos consumidores ao mercado de bens de consumo não duráveis no Brasil, o que significou, para cada um dos planos, um aumento de 30 milhões de brasileiros que agora tinham dinheiro para gastar naquilo que antes não tinham condições, ou seja, são milhões a mais de consumidores de cerveja (OLIVEIRA, 1996; NERI, 2010). Durante esse movimento de ascensão da produção de consumo de cerveja, o intenso movimento de fusão e aquisição no setor se evidencia pela associação de empresas nacionais com internacionais, através de joint ventures, como foram os casos da Brahma/Miller, da Antarctica/Anheuser-Busch, da Kaiser/Heineken e da Skol/Carlsberg. Em 1999, há havia indícios da fusão entre Brahma e Antarctica, criando a AmBev (Companhia de Bebidas das Américas) para enfrentar os grandes competidores internacionais. Segundo Marcel Hermann Telles, presidente da Brahma na época: “Se a gente não se internacionalizar, alguém internacionaliza a gente” (PREZZOTTO; LAVALL, 2011).

247

Nessa construção dos TC da cerveja por meio dos aspectos econômicos, algumas questões são levantadas. Umas das principais, em se tratando das grandes empresas, refere-se às diferenças entre o território criado por uma grande cervejaria e aquele produzido por uma cervejaria de pequeno porte. Qual a diferença dos componentes dos territórios criados pela cerveja, ou seja, qual a diferença entre os Territórios da Cerveja Pilsen (TCP) e os Territórios da Cerveja Artesanal (TCA)? Os TCP, como podemos verificar na seção anterior, trabalham na lógica global homogeneizadora desterritorializante, enquanto a os TCA operam em uma lógica local heterogeneizadora territorializante. A grande cervejaria fixa seu território por meio de suas plantas fabris e centros de distribuição, criando fixos e fluxos que operam e dão corpo ao seu TC. Já as microcervejarias possuem uma ancoragem territorial maior, já que estão mais inseridas na comunidade e no espaço em que estão instaladas, criando laços identitários com as pessoas, por meio dos símbolos que despertam no imaginário coletivo. Essas posições se complementam, uma vez que ambas criam território em torno da cerveja ao seu modo. A Figura 57, de elaboração própria, traz um esquema da disposição dos fixos e fluxos dos TC conforme sua especificidade.

248

Figura 57 - Os fixos e fluxos dos TCP e TCA

249

A Figura 57 anterior trabalha com imagens e ideias muitas vezes estereotipadas – como se observa nas imagens dos consumidores – mas busca expressar cada etapa, fixo e fluxo da produção de cerveja. Apesar de apresentar a mesma estrutura de rede de produção, distribuição e consumo, a questão da escala pelo lado das grandes cervejarias e a especificidades pelo lado das microcervejarias diferenciam os fixos e fluxos formadores de cada TC. Se olharmos para os insumos, focamos no lúpulo e no malte, por serem as matérias-primas que geram mais fluxos para formar o território, mas podemos citar aqui também outros insumos importantes como máquinas e equipamentos, garrafas de vidro, latas, barris, leveduras etc. Aprofundando a análise em relação ao lúpulo e ao malte, observamos uma forte dependência de importação, gerando fluxos serem internacionais. Nas Tabelas 24 e 25, podemos verificar os dados de importação desses insumos, havendo uma necessidade de 70% do malte total utilizado na indústria nacional de cerveja e de praticamente 100% no caso do lúpulo (MRACUSSO; MÜLLER, 2018).

Tabela 24 - Importação de malte por país de origem, valor e peso (2020)

País US$ Kg Tipo US$ Kg Argentina 211.064.870 453.749.302 Malte Pilsen 531.932.780 1.139.485.537 Uruguai 163.044.833 316.575.228 Malte Especial 3.391.942 4.332.770 França 32.604.988 86.480.093 Extrato de malte 1.828.869 641.256 Alemanha 32.520.651 71.687.044 - - - Austrália 32.143.968 66.519.850 - - - Total geral 537.249.083 1.144.459.563 Total geral 537.153.591 1.144.459.563 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do COMEXSTAT/ME.

Tabela 25 - Importação de lúpulo por país de origem, valor e peso (2020)

País US$ Kg Tipo US$ Kg Estados Unidos 33.488.405 1.571.417 Extrato de Lúpulo 28.402.217 1.130.995 Alemanha 18.462.708 1.430.601 Pellets 28.586.587 2.095.027 Reino Unido 3.594.777 133.806 Lupulina 134.017 14.470 Tcheca, República 430.589 28.980 Cones de lúpulo 23.375 2.791 Austrália 392.856 14.340 - - - Total geral 57.146.196 3.243.283 Total geral 57.146.196 3.243.283 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do COMEXSTAT/ME.

O Brasil importa malte de 31 países, principalmente Argentina e Uruguai em valor e peso, com predominância do malte Pilsen. O lúpulo vem de 21 países, sobretudo EUA e Alemanha, mas o valor entre extrato de lúpulo e os pellets são semelhantes, enquanto o peso do 250 extrato é quase metade, evidenciando seu maior valor agregado. Esses dados evidenciam a grandeza desses fluxos e a predominância dos TCP nesses dados. Se voltarmos nossa atenção para os fixos criados pelas cervejarias, observamos a predominância dos TCA, uma vez que a explosão da cerveja artesanal se mostra nas microcervejarias espalhadas por todo país. A Figura 58 traz todas as cervejeiras registradas no MAPA, sem a diferenciação entre pequenas, médias e grandes. A própria legislação e o registro no ministério não preveem essa diferenciação, mas é de conhecimento geral que a maioria das unidades abaixo são microcervejarias.

Figura 58 - Espacialização das cervejarias registradas no MAPA em 2019

Fonte: BRASIL, 2020.

A forte concentração no eixo Sul-Sudeste se deve à sua já mencionada tradição cervejeira. Observa-se a presença de novos fixos, como no eixo Goiânia-Brasília, as capitais 251 nordestinas, sobretudo, as regiões metropolitanas de Recife, Fortaleza e Salvador, além de pontos mais isolados, como Cuiabá, Manaus etc. Os fluxos do trabalho são também volumosos. A partir dos dados da RAIS, em 2019, (CNAE 2.0, em anexo no final desta tese), o setor apresentava 40.114 empregos diretos, sendo que a cada emprego gerado na indústria, outros 50 são gerados na cadeia produtiva. Aqui, os TCA apresentam um fator interessante no contexto da produção, uma vez que as grandes cervejarias empregam dois trabalhadores para cada 1 milhão de litros de cerveja produzidos, enquanto as microcervejarias empregam 30 funcionários para a mesma quantia de cerveja produzida (AFREBRAS, 2013). Entretanto, as grandes cervejarias são as que mais empregam, com mais de 15 mil empregos do total, de modo que os fluxos dos TCP se mostram mais representativo quando se fala de geração e fluxos de empregos. A Tabela 26 mostra a distribuição geográfica dos vínculos.

Tabela 26 - Distribuição do emprego no setor cervejeiro por Região, UF e Município (2019)

Região Vínculos % UF Vínculos % Município Vínculo % Sudeste 22.603 56 São Paulo 14.153 35 SP-Boituva 2786s 6,9 Nordeste 7.445 19 Rio de Janeiro 5.150 13 SP-Jaguariúna 2294 5,7 Sul 5.181 13 Minas Gerais 3.197 8 SP-São Paulo 2151 5,3 Centro-Oeste 3.253 8 Pernambuco 2.519 6 RJ-Rio De Janeiro 1839 4,5 Norte 1.632 4 Bahia 2.369 6 PE-Itapissuma 1699 4,2 Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS.

A concentração na região Sudeste já era esperada, mas os dados mostram o Nordeste a frente do Sul, o que não vemos na espacialização das cervejarias (Figura 58). Isso mostra que apesar de apresentar menos cervejarias, o Nordeste apresenta grandes plantas cervejeiras. Essa situação fica mais evidente quando citamos o exemplo de Itapissuma - PE, único município situado fora do Sudeste, dentre as cinco cidades que mais empregam no setor. Em Itapissuma, há duas grandes fábricas: uma da Ambev e outra do Grupo Petrópolis. Então, de pouco representativa na distribuição espacial de cervejarias, a cidade desponta quando o foco é a geração de empregos. Em linhas gerais, o perfil do trabalhador no setor cervejeiro, sobretudo das grandes cervejarias é o seguinte: homens (82%), com o ensino médio completo (57%), recebendo entre dois e três salários-mínimos (18%), com tempo de emprego entre 60 e 119 meses (24%). Esse modelo de trabalhador poderá será comparado com os dados levantadas sobre o segmento das cervejarias artesanais e cervejeiros caseiros, que também apresentam maior concentração do

252 sexo masculino, mas com escolaridade e rendimentos muito superiores. A distribuição do emprego no setor cervejeiro segue, obviamente, a concentração de cervejarias, mas também mostra alguns pontos interessantes. Outro ponto importante dos fixos dos TC, sobretudo dos TCP, são os Centros de Distribuição (CD) de cerveja, que fazem a bebida chegar aos 1,2 milhão de Pontos De Vendas (PDV) (SINDICERV, s. d.[b] on-line). A Tabela 27 mostra a distribuição dos CD por empresas e UF e a Figura 59 traz o total especializado no Brasil.

Tabela 27 - Distribuição dos Centros de Distribuição por cervejarias e UF (2021). GP: Grupo Petrópolis; HNK: Heineken Brasil.

UF GP Ambe HNK TOTA Figura 59 - Espacialização dos CD de cerveja no Brasil SP 43 27 15 85 MG 16 12v 5 33L BA 20 7 1 28 RJ 13 13 - 26 MT 13 3 - 16 PR 5 10 1 16 GO 6 5 2 13 PE 8 3 1 12 RS 4 6 1 11 CE 6 3 1 10 ES 8 2 - 10 PA 5 4 1 10 MA 5 3 1 9 SC 1 5 3 9 MS 6 - - 6 PB 4 2 - 6 RO 5 1 - 6 AM 3 1 1 5 PI 4 1 - 5 DF 1 2 1 4 RN 2 1 1 4 SE 2 1 1 4 AL 2 1 - 3 TO 2 1 - 3 AC 1 1 - 2 AP 1 - 1 2 RR 1 - - 1 Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Tabela 27. TOTA 187 115 37 339 Fonte: Elaboração própria a partir de L informações cedidas pelas empresas.

A distribuição por empresa mostra características diferentes de estratégia de cada grupo cervejeiro. O Grupo Petrópolis possui maior número de CD (187), mas é o terceiro em participação de mercado (14%), o que aponta para uma dispersão maior de CD menores. Já a Ambev possui menos CD (115), porém mais de quatro vezes a participação de mercado (65%), o que indica menos CD de maior capacidade de distribuição. Já a Heineken Brasil possui um

253 número de CD muito abaixo dos concorrentes, devido ao seu acordo de distribuição com a Coca-Cola do Brasil (ISTO É DINHEIRO, 2019, on-line) que atende, junto da sua rede própria, o seu mercado consumidor (19%). Ficam evidentes a necessidade de dispersão dos CD para vencer todo o território nacional e a centralidade de São Paulo, com mais que o dobro de Minas Gerais, estado que ocupa o segundo lugar. Essa distribuição acompanha, em partes, a distribuição da população brasileira. Enquanto os CD são mais frequentes nos dez primeiros estados SP (85), MG (33), BA (28), RJ (26), MT (16), PR (16), GO (13), PE (12), RS (11), CE (10), os seguintes estados são mais populosos em termos de milhões de habitantes; SP (46), MG (21), RJ (17), BA (14), PR (11), RS (11), PE (9), CE (9) (IBGE, 2020). Observa-se que apenas Mato Grosso e Goiás estão na lista dos dez estados com mais CD, mas não apresentam população tão elevada, o que pode ser explicado por sua localização estratégica para distribuição para outras áreas mais remotas do Brasil, em especial no Norte do país. O tamanho da estrutura necessária na logística da cerveja mostra a importância da análise do território – nesse caso, os TCP –, com importantes fixos colocados em pontos estratégicos para alcançar os supermercados, bares e restaurantes em todo o Brasil. Em relação aos fixos dos supermercados, o número é gigantesco, pois em praticamente todos os mercados, dos pequenos aos hipermercados, ocorre a venda de cerveja. Nesse contexto, um segmento bastante representativo refere-se aos minimercados, com 415 mil estabelecimentos, representando 6% do PIB, além de responder por 35% das vendas do setor supermercadista (SEBRAE, 2015). Já os supermercados e hipermercados representam 151.859 estabelecimento, sendo que as cinco maiores redes de supermercados faturam sozinhas R$ 147 bilhões, enquanto as 500 maiores redes faturam R$ 296 bilhões. A distribuição geográfica dessas 500 maiores mostra que a maioria do faturamento (R$ 160 bilhões) e das lojas (4.413) estão no Sudeste, seguido do Sul (R$ 86 bilhões e 2.367 lojas), Nordeste (R$ 29 bilhões e 984 lojas), Centro-Oeste (R$ 13 bilhões e 527 lojas) e Norte (R$ 8 bilhões e 249 lojas) (ABRAS, 2020). Já os fixos dos bares e restaurantes também estão espalhados pelo país todo, quase sempre apresentando a cerveja como possível acompanhamento da alimentação ou para degustação. O mercado de alimentação é o setor que mais emprega, com 6 milhões de funcionários em mais de um milhão de bares, restaurantes lanchonetes etc. Estima-se que mais de 650 mil trabalhadores sejam informais. Em relação aos negócios formais (336.482), temos

254 a seguinte distribuição regional: Norte 1%, Nordeste 9%, Sudeste 60%, Sul 25%, Centro-Oeste 5% (ABRASEL, s. d., on-line). No caso dos fixos dos mercados, bares e restaurantes, a grandeza dos números e o tamanho e distâncias do Brasil fazem com que os TCP se mostrem mais presentes, chegando em 98% dos lares brasileiros por meio desses pontos de distribuição (CERVBRASIL, 2015). Como podemos verificar, os TC, sejam eles vinculados à cerveja Pilsen ou artesanal, estão distribuídos por todo o país e seus fixos e fluxos engendram um dinâmica importante para economia do Brasil. Nesse contexto, os processos de territorialização são importantes movimentos para afirmar os TC e a próxima seção expande esse debate.

6.1.4 Os processos de territorialização da cerveja

A teorização dos TC traz os processos de territorialização como fontes de promoção desses territórios. Então, verificar como a cerveja engendra processo de territorialização ajuda a compreender como são formados os territórios circunscritos à cerveja. Em trabalho anterior, já conseguimos avançar nesse debate:

Quando se toma uma budweiser, o global se coloca no local onde está se bebendo a cerveja, ou seja, a cerveja se desterritorializa. Neste momento se entra em uma rota de fuga do território onde se está inserido e se transporta para o território internacional da cerveja americana, os laços de identificação com seu território são diminuídos e as relações com o global aumentam. Do outro lado, quando se toma uma cerveja artesanal de sua região, é o local que se sobrepõe, mesmo que essa cerveja também seja importada para outros países, nesse caso o local se globaliza. Neste momento busca-se as relações identitárias com o território inserido, os agentes de promoção dessa cerveja são os agentes que vivem no seu território e não estão em salas refrigeradas a quilômetros de distância cuidados das marcas internacionais. Muitas vezes quando se toma uma cerveja artesanal de nossa região, conhecemos o local da fábrica e, por vezes, as pessoas que lá trabalham, podendo até conhecer o cervejeiro e/ou o dono. Como a parte teórica já salientou, no mundo atual, está sempre se deslocando entre o local e o global, então sempre poderemos tomar uma cerveja internacional, e se desterritorializar do seu local e se dirigir ao território da globalização, mas sempre poderemos, também, tomar uma cerveja artesanal nacional, sobretudo aquelas fora dos grandes grupos, e se territorializar dentro dos laços culturais de seu país ou região (MARCUSSO, 2015, p. 130-131).

Como podemos notar, quando assunto é cerveja, sempre estaremos em processo territorialização - desterritorialização - reterritorialização (T-D-R). Isso significa que podemos

255 transitar entre os TCP e os TCA sem perder a cerveja como foco da criação de territórios. Isso ocorre conforme a intensidade dos processos de territorialização. Os graus de territorialização estão proporcionalmente ligados ao enraizamento econômico e cultural da cerveja na localidade. As grandes cervejarias multinacionais operam em uma lógica de fluxos globais e criam seus TCP por meio vultosos investimentos e na economia de escala, de modo que sua territorialização é fraca. As grandes cervejarias nacionais também trabalham na base de investimentos e economia de escala, porém sua operação é totalmente voltada para a economia brasileira, o que as coloca em um patamar acima nos graus de territorialização. As microcervejarias, por sua vez, possuem, uma inserção importante nas comunidades em que estão instaladas e criam seus territórios a partir de suas localidades. Desse modo, sua territorialidade é mais intensa. Por fim, as pequenas cervejarias que trabalham a partir de suas localidades e se voltam para a cultura local favorecem ainda mais os processos de territorialização. Dessa forma, podemos estabelecer uma escala de territorialização da cerveja e cervejarias, conforme modelo abaixo (Tabela 28).

Tabela 28 - Níveis de enraizamento das cervejas e cervejarias

Grau de Territorialização Cervejaria Exemplos Territorialização fraca Grande empresa multinacional Ambev e Heineken Brasil Territorialização média fraca Grande e média empresa Grupo Petrópolis, Casa Di nacional Conti e Colônia Territorialização média forte Microcervejaria Bamberg, Schornstien e Klein Territorialização forte Microcervejaria enraizada AmazonBeer, Colorado e culturalmente Tupiniquim Fonte: Adaptado de MARCUSSO, 2015.

O modelo proposto leva em consideração os vínculos e os direcionamentos que as cervejarias possuem. Por exemplo, a cervejaria Bamberg, de Votorantim – SP, prioriza a produção baseada em cervejas da escola alemã, de onde veio a inspiração de seu nome. Por outro lado, a cervejaria Tupiniquim, localizada em Porto Alegre - RS, utiliza ingredientes nacionais, deixando claro, desde o nome, a forte ligação com a cultura brasileira. No caso das grandes cervejarias, a Ambev, por exemplo, é uma subsidiária da AB Inbev, maior produtora de cerveja do mundo, com 29,3% do total, e a Heineken Brasil, faz parte da Heineken matriz, com 12,6% da produção mundial (BARTH-HAAS, 2020). Esses grupos estão orientados por lógicas globais e financeiras que são vetores de desterritorialização, enquanto as microcervejarias se utilizam da cultura regional para produzir cervejas com ingredientes locais, como é o caso da premiada cerveja Amazon Beer Stout Açaí. Assim, as microcervejarias estão 256 orientadas por lógicas locais e culturais, gerando um maior enraizamento territorial e simbólico com o espaço onde estão envolvidas, de modo a promover os TCA. Dessa forma, o que define a territorialização não é o tamanho da cervejaria, mas a lógica de operação, ou seja, em qual componente dos TC eles operam (mais relacionados aos traços da cerveja Pilsen ou da cerveja artesanal). Há cervejarias muito territorializadas que foram adquiridas pelos grandes grupos cervejeiros, como é o caso da Colorado, de Ribeirão Preto - SP, que foi adquirida pela Ambev em 2015. A Colorado utiliza ingredientes locais em todas as suas cervejas, de modo que sua territorialização não estaria totalmente perdida se as diretrizes globais da grande empresa não afetam a organização da microcervejaria. Assim, o maior enraizamento das microcervejarias relaciona-se mais ao apelo à cultura local do que à ligação com grande grupo cervejeiro As microcervejarias, sobretudo independentes, têm mais liberdade de criação porque não seguem padrões determinados da produção em massa que visam atender o consumo generalizado e, por vezes, determinado pela equipe de marketing (MOSHER, 2009). Da mesma forma, apresentam maior impulso inovador, uma vez que buscam utilizar e incrementar as cervejas artesanais com hábitos, costumes e aspectos culturais da localidade em que estão inseridas, materializados no saber, nas experiências e tradição dos mestres cervejeiros (TSCHOPE, 2001). A partir dessa liberdade, os pequenos produtores buscam nos ingredientes locais, formas de se diferenciar no mercado e acabam por se territorializam de uma nova forma, ainda que de modo inconsciente, ou seja, se reterritorializam. O movimento independente das cervejarias é uma marca evidente no mercado, visto que as iniciativas nos EUA se espalharam pelo mundo, buscando diferenciar as microcervejarias que não fazem parte de grandes grupos cervejeiros mundiais, possibilitando que as cervejarias locais se mantenham enraizadas no território local. A Brewers Association, associação dos microcervejeiros dos EUA, lançou em 2018 o selo de Independent Craf Certified. No mesmo ano, a ABRACERVA, Associação dos Microcervejeiros do Brasil, também lançou seu selo de independência. Na Europa, esse movimento é mais antigo e avançou pelas fronteiras, ainda em 2018, criando a The Independent Brewers of Europe, entidade que congrega as associações das microcervejarias da França, Itália, Dinamarca, Irlanda, Suécia, Reino Unido, Espanha e Holanda. Os selos de independência (Figura 60) constituem uma forma de fugir do ataque das grandes cervejarias, o que fortalece os TCA.

257

Figura 60 - Identidades visuais do movimento das cervejarias independentes

Fonte: Sites das entidades.

As imagens das cervejarias independentes transmitem a ideia de que está fazendo algo oposto ao hegemônico. Por exemplo, a imagem à esquerda da Figura 60 traz uma garrafa em posição invertida, enquanto a imagem central reforça as características da produção em pequena escala, através da representação de equipamentos de pouca capacidade. A imagem à direita, por sua vez mostra que esse movimento é uma bandeira que deve ser mantida pelas cervejarias artesanais. Uma das formas mais destacadas de valorização do saber local e territorialização no mundo da cerveja refere-se ao caso das Cervejarias Trapistas (Figura 61), cujas cervejas são produzidas nos mosteiros católicos da ordem trapista, criada em 1664, originada a partir da ordem de Císterciense fundada em 1098. Hoje, existem mais de 170 mosteiros trapistas, nome em referência ao mosteiro de Notre-Dame de La Trappe na Normandia, mas apenas 11 produzem cervejas. Além do “pão líquido”, esses mosteiros produzem o próprio pão, queijos, biscoitos etc. O direito do uso exclusivo do nome “trapista” foi confirmado pela corte de Ghent, na Bélgica, em 1962. Em 1998, foi criada a Association Internationle Trappist (AIT) para proteger e apoiar os mosteiros trapistas (MORADO, 2009).

258

Figura 61 - Distribuição dos mosteiros trapistas produtores de cerveja e seu selo

Fonte: INTERNATIONAL TRAPPIST ASSOCIATION, s. d., on-line.

O selo de identificação das cervejas trapistas atesta a preservação de sua tradição. Embora as cervejarias trapistas estejam mais concentradas na Europa (Bélgica, Holanda e Áustria [Oostenrijk, em holandês]), sua tradição foi exportada para os EUA, onde foi estabelecido um mosteiro representante que segue toda a filosofia de produção desse tipo de cerveja. Nesse caso, os TCA estão muito bem enraizados e a cultura cervejeira milenar vista a partir da CCC é um elemento importante na configuração desses TC. Refletir sobre o território onde a cerveja é feita e usar matérias-primas da região conduz a uma forte territorialização do produto, gerando uma identificação extrema com a localidade, permitindo uma maior territorialidade com raízes as culturais, fortalecendo a identidade local. Na Alemanha, a territorialização da cerveja é tão intensa, que existe uma separação entre estilos de cerveja e regiões do país quase que sagrada. Em outras palavras, se alguém desejar consumir determinado estilo, terá que se deslocar até a região onde a cerveja é produzida, ou seja, será 259 necessário entrar em seu território163. Na Alemanha, a divisão territorial da cerveja é muito evidente (Figura 62). Um dos maiores exemplos dessa territorialidade refere-se à disputa entre Düsseldorf e Colônia. Os pouco mais de 40 km de distância entre as principais cidades do noroeste da Alemanha não são suficientes para aproximar as cervejas: em Colônia bebe-se a Kölsch, enquanto em Düsseldorf a Altbier164.

Figura 62 - Divisão territorial da cerveja na Alemanha

Fonte: MARCUSSO, 2015, p.137.

Na Alemanha, a territorialização é muito forte devido à história e inserção da cerveja na cultura. Nesse caso, os TCP não operam de acordo com as lógicas globais de fluxos de desterritorialização, uma vez que o território é uma das origens de cada tipo de cerveja junto da República Tcheca.

163 Ditado alemão, da região da Francônia: “cerveja boa é aquela que você enxerga a chaminé da cervejaria” (FONSECA, 2009, on-line).

164 A Kölsh é uma a cerveja de alta fermentação, leve e fácil de beber com espuma persistente. A Altbier também é de alta fermentação, vermelha, com alta lupulagem (BAZZO, 2011, on-line) 260

No Brasil, um aspecto interessante na territorialização da cerveja consiste na busca por ingredientes locais que fazem parte da cultura do cotidiano do brasileiro. Dessa forma, é necessário conhecer o local para dominar as características das frutas, raízes e condimentos utilizados, buscando-se como esses insumos podem ser adotados na produção de cerveja. A importância do saber local está transportada em receitas típicas locais, formas de semear, coletar, produzir, isto é, os costumes locais. Aplicar tais conhecimentos na fabricação da cerveja permite que se alcance um processo de (re)territorialização. Um levantamento rápido expõe diversas cervejas com ingredientes naturais que remetem à territorialidade, fugindo dos padrões globalmente estabelecidos. Como exemplo, temos cervejas com: café, rapadura, mandioca, mel, castanha-do-pará, açaí, bacuri, taperebá, cumaru, priprioca, manga, caju, maracujá, framboesa, amora, pitanga, cacau, coco, acerola, graviola, morango, guaraná, limão, abacaxi, cana-de-açúcar, laranja-da-terra, tangerina, erva- mate, pimenta rosa e jabuticaba. Essa elevada diversidade de ingredientes do cotidiano brasileiro conduz à realidade nacional a cerveja e serve de base para que a cerveja se enraíze e se (re)territorialize (MARCUSSO, 2015). Um exemplo do processo de territorialização da cerveja, por meio do uso das frutas brasileiras, foi a criação do estilo de cerveja Catharina Sour, que leva fruta na composição de uma cerveja de acidez láctea à base de trigo. Esse estilo foi catalogado em 2018 no BJCP. Nesse sentido, além da nítida relação entre o nome do estilo de cerveja com o território de Santa Catariana, temos a história da criação da cerveja que contou com a participação de 20 cervejarias que se uniram para lançar o estilo, intermediadas pela Associação Catarinense das Cervejas Artesanais (ACASC). A territorialização dessa cerveja é marcante e promove um movimento para o local – por meio do nome e da união das cervejarias catarinenses – e para o global, sendo reconhecida internacionalmente pelo BJCP, o que ilustra os processos indissociáveis de desterritorialização e reterritorialização. Esse exemplo mostra como os TC operam através de várias lógicas diferentes e complementares na relação entre o global e o local. Nesse contexto, as lógicas globais-econômicas-produtivista, mais associadas aos TCP, e as lógicas locais-culturais-identitárias, principalmente atreladas aos TCA, se complementam. Contudo, as grandes cervejarias também podem capturar essa lógica de caráter local-cultural- identitário, como é o caso da Colorado que, como já foi apontado, foi comprada pela Ambev em 2015 e passou a transmitir essa lógica a um gigante. Exemplo disso são os recentes lançamentos da cervejaria: a “Tropicana” (2019), em homenagem a Alceu Valença e produzida

261 com umbu e cajá; e “Do Leme ao Pontal” (2020), homenageando Tim Maia e utilizando goiabada entre seus ingredientes. Observa-se, portanto, que grandes empresas se utilizam dos braços operacionais das pequenas cervejarias que foram adquiridas para operar nas lógicas das pequenas. Além disso, a Ambev percebeu que poderia expandir essa lógica para as cervejas comuns (mainstream). Observando a cerveja produzida na África com cassava (a mandioca local), a cervejaria lançou cervejas regionais com mandioca de pequenos produtores locais, como a Legítima, no Ceará; Nossa, em Pernambuco; Magnífica, no Maranhão; e a Esmera em Goiás, além da Berrió, no Piauí, que leva caju de pequenos produtores locais. A referências a aspectos geográficos e culturais nessa estratégia de mercado captura a lógica antes apenas das pequenas cervejarias e fortalece a grande cervejaria – no caso a Ambev – nesses territórios, ou seja, em seus TC. As empresas assumem estratégias claras de atuação no espaço e na formação e gerenciamento dos seus próprios territórios. Contudo, os TC não são formados unicamente a partir relações de poder econômico, uma vez que os aspectos culturais também participam dessa noção.

6.2 Dos aspectos culturais: expressões culturais e de organização dos agentes e empresas no território por meio da cerveja

Seguindo a matriz metodológica, exploraremos os aspectos culturais que constituem fortes elementos de criação de territórios da cerveja, já que criam símbolos e identidades que, por meio da cerveja, unem pessoas e grupos em uma causa ou uma forma de pensar e ver o mundo. Os movimentos sociais estão chegando ao mundo da cerveja e se utilizando da grande comunicação que essa bebida proporciona na sociedade brasileira para passar sua mensagem e criar seus territórios, ou seja, espaços de representação de simbologias por meio da cerveja. Nesta seção, verificaremos o processo de revolução da cerveja artesanal, que oferece novas formas de poder por meio da identificação de grupos sociais através da cerveja, criando os TCA e TCP. Analisaremos também onde estão e quem são os cervejeiros e cervejarias de pequeno porte no Brasil, traçando um perfil de estrato social, fornecendo dicas importantes sobre a mudança do perfil dos consumidores. Por fim, abordaremos a cerveja como resistência, focando nos movimentos sociais, nos quais a cerveja aparece como elemento da sociedade, de Cerveja como Cultura (CCC),

262 expressando os conflitos de poder que existem na sociedade e se intensificam a partir de aspectos relacionados à cerveja. Portanto, o tema desta seção apresenta forte conexão entre a caracterização da cerveja como elemento cultural e o desenrolar dos Territórios da Cerveja (TC).

6.2.1 A revolução da cerveja artesanal e as mudanças no padrão de consumo

Um dos grandes debates no mundo da cerveja refere-se à definição de cerveja artesanal. Apesar de não haver aparato legal que a defina, existe a previsão sobre o tema na Lei nº 8.918, de 14 de julho de 1994, que dispõe sobre a padronização, a classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas, autoriza a criação da Comissão Intersetorial de Bebidas e dá outras providências. Em seu artigo 11º, temos:

O Poder Executivo fixará em regulamento, além de outras providências, as disposições específicas referentes à classificação, padronização, rotulagem, análise de produtos, matérias-primas, inspeção e fiscalização de equipamentos, instalações e condições higiênico-sanitárias dos estabelecimentos industriais, artesanais e caseiros, assim como a inspeção da produção e a fiscalização do comércio de que trata esta lei (BRASIL, 1994, on-line).

Contudo, o MAPA, órgão responsável por essa regulamentação, não dispõe de norma sobre o tema165, uma vez que não há consenso entre as entidades representativas do setor. Diante dessa indefinição, surgem diferentes termos para designar estilos e formas de fazer cerveja, como cerveja caseira, especial, artesanal, gourmet, premium, mainstream. Esses termos se confundem e dificultam a compreensão e diferenciação por parte do consumidor. Em virtude disso, as instituições representativas do setor procuram diferenciar os termos, sobretudo em relação à cerveja artesanal (Tabela 29).

165 Essa aparente inércia do executivo levou o legislativo a propor e aprovar a Lei nº 13.648, de 11 de abril de 2018, que dispõe sobre a produção de polpa e suco de frutas artesanais em estabelecimento familiar rural e altera a Lei nº 8.918, de 14 de julho de 1994 (BRASIL, 2018). 263

Tabela 29 - Diferentes definições sobre o universo da cerveja artesanal

Instituições/Normas Critérios de Classificação Brewers Association Volume de produção: Small Craf Brewer com capacidade de 6 milhões de barris/ano (7,14 mi hl) ou 61,7 milhões de litros por mês e independente quando tiver menos de 25% da empresa controlada por grandes e médias cervejarias. ABRACERVA Volume de produção: Cervejaria Artesanal com capacidade produtiva de 5 milhões de litros/ano ou 416 mil litros/mês e ter mais de 50% do estabelecimento. IBGE/SEBRAE Número de funcionários: microempresas possuem 19 empregados, enquanto pequenas empresas empregam de 20 a 99 pessoas. As médias possuem entre 100 e 499 funcionários e as grandes são caracterizadas pela presença de mais de 500 empregados. ABRABE Função qualitativa: produção de pequenas quantidades de cerveja, desenvolvidas com ingredientes especiais, maior quantidade de malte por hectolitro e microindústrias de origem familiar. Simples Nacional Receito bruta anual: empresa de pequeno porte com receita bruta anual superior de R$ 360 mil até 4,8 milhões (micro e pequenas cervejarias). Lei do estado de SC Proporção de cereais maltados: cerveja ou chope artesanal consiste em um produto elaborado a partir de mosto, cujo extrato primitivo contenha no mínimo 80% de cereais malteados ou extrato de malte, conforme registro do produto no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Regulamento lei IPI Proporção de cereais maltados: é considerada cerveja especial aquela que possui no mínimo 75% de malte de cevada em peso sobre o extrato primitivo como fonte de açúcares. Fonte: Adaptado de MARCUSSO, 2015.

Fica clara a panaceia criada em torno do universo da cerveja artesanal. Por esse motivo, as instituições de representação da cerveja artesanal focaram no termo independente, para demonstrar o caráter de pequenos e médios empreendimentos, muitas vezes, familiares. Outro debate importante refere-se à questão da qualidade da cerveja. Muitas vezes, os produtores das artesanais afirmam que a qualidade de seu produto é superior à das grandes cervejarias. Contudo, é necessário compreender o conceito de qualidade para discutirmos esse aspecto na cerveja. A sommelier de cerveja Carolina Oda, entrevistada para esta pesquisa, explora a temática a partir da visão do renomado chef de cozinha Ferran Adrià, que enxerga qualidades intrínsecas (objetivas) e extrínsecas (subjetivas) nos alimentos. No caso da cerveja, em relação à qualidade intrínseca, as grandes cervejarias encontram-se em um patamar infinitamente mais elevado do que as pequenas, já que dispõem das mais altas tecnologias de controle de qualidade e de produção, como se pode ver, por exemplo, nos 300 indicadores de qualidade utilizados pela Ambev em seus produtos (AMBEV, 2017). Por outro lado, em relação à qualidade extrínseca, há outros indicadores, como a memória dos indivíduos, suas referências de aromas e sabores, os aspectos simbólicos e identitários, de modo que uma mesma cerveja pode ter ou não qualidade, conforme a pessoa que está degustando. 264

Mais que um conceito, a cerveja artesanal é um comportamento, um hábito, uma identidade que cria pontes entre o consumidor de cerveja e as características sensoriais que essa cerveja lhe entrega, observando seu referencial subjetivo de qualidade. Assim, a produção da cerveja artesanal não está nas mãos do marketing da empresa, mas sim nos referenciais dos cervejeiros, que buscam no seu território elementos para compor uma cerveja que conte sobre a cervejaria, sobre o local e sobre a cultura ali presente (TSCHOPE, 2001; MORADO, 2009; MOSHER, 2009). Segundo Krohn (2017), a criação da identidade da cerveja artesanal em oposição à grande empresa é um ponto central nessa análise. Para a autora, a cerveja artesanal deve ser entendida como um produto cultural simbólico, construído através da interação entre diversas vertentes, que operam na lógica da qualidade e paixão pessoal em relação ao trabalho. Esse conceito, comportamento, hábito e identidade da cerveja artesanal é construído por um discurso baseado em ideias de qualidade, diversidade, inovação, criatividade, apelo local, apoio ao pequeno, exclusividade, autoralidade e independência para criar uma identidade a esse modo de fazer e pensar a cerveja. Nesse contexto, há uma ampla rede de apoio e valoração (Figura 63), que compõe o espaço da cerveja “artesanal” junto do crescimento das cervejarias, que, por sua vez, cria novas necessidades em um discurso de sustentação (KROHN, 2017).

Figura 63 - Rede de suporte (acima) e valoração (abaixo) da cerveja artesanal

265

Fonte: KROHN, 2017, p. 75 e 84.

Como fica evidente, existe uma complexa rede de sustentação do discurso e da categoria de cerveja artesanal. Esse processo requer mais conhecimento específico por parte do consumidor para se enquadrar nesse universo, sendo a cerveja “artesanal” (TCA) um bem simbólico diametralmente oposto ao das cervejas mainstream (TCP). Então, o consumidor não é aceito nesse universo sem antes deter conhecimento suficiente para ser reconhecidos por seus pares, delimitando um público e um espaço dessa categoria de cerveja.

entre os agentes e que implicam trabalho de produção e propagação de novos valores enquanto formas de reclassificar e significar produtos. Neste sentido, [...] os processos de criação de valores e símbolos sustentados através de discursos e difundidos por meio de relações entre agentes trabalham para efetivação das dinâmicas da economia. [...] (assim a) imersão dos processos econômicos e mercantis em fatores culturais, fruto de um trabalho contínuo de interação entre produtores e consumidores para a ressignificação dos bens (KROHN, 2017, p. 184, grifo nosso).

O discurso sobre a cerveja artesanal cria um TC à parte, que integra os processos gerais de criação de territórios por meio da cerveja (mainstream), mas contém características mais específicas, que configuram um ponto de identificação muito forte com o consumidor, formando os TCA. Abrindo mais perguntas do que resposta nessa discussão, ficamos com as indagações de Diego Simão, proprietário da cervejaria Cozalinda, de Florianópolis - SC, que produz cervejas 266

ácidas de fermentação aberta, mais perto da noção geral de artesanal. Para o cervejeiro, artesanal é algo de personalidade única e de processos manuais. A cerveja de muitas pequenas cervejarias não são necessariamente assim, visto que, por vezes, reproduzem as lógicas da grande cervejaria. Dentro das cervejarias artesanais, há aquelas que produzem 1 milhão de litros ao mês, enquanto a Cozalinda produz 10 mil litros por ano. Dessa forma, há fortes discrepâncias no universo da cerveja artesanal. As cervejas de Simão, por contarem com fermentação aberta, só podem ser produzidas em sua cervejaria devido aos fatores locais. O objetivo da empresa é fabricar uma “cerveja que traduz o espaço geográfico que está inserida”, que leve um pouquinho daquele território na garrafa. Nas palavras de Simão: “nossa missão é levar Florianópolis em cada garrafa [...] toda nossa comunicação é pra isso”. Simão fala até em terrior da cerveja, já que as leveduras são selvagens e sua seleção, a temperatura e época do ano são elementos próprios da natureza, conferindo especificidade na produção e na degustação da cerveja conforme a safra. Segundo o cervejeiro, as cervejas são safradas porque as condições do ano podem levar a produtos com leves diferenças. Por exemplo, “esse ano o inverno não foi bem frio então a brettanomyces deu um aroma de abacaxi maduro, já com menos frio, um abacaxi mais doce, isso possibilita safrar as cervejas e sempre convidar o consumidor a revisitar a mesma cerveja [...] nos saframos nosso produto como forma de salvaguardar o terrior do nosso produto.” A escolha da água também traz elementos locais, já que a água é mais mole que as águas duras do Bélgica (tradicional produtora de cervejas ácidas). Além disso, a inserção de insumos atrelados à cultura local, como frutas da região, mel de abelhas sem ferrão etc., também conferem especificidade à cerveja. Por fim, devemos considerar as histórias que as cervejas contam. Por exemplo, a próxima cerveja a ser lançada pela Cozalinda contém lavanda, rosas e limão galego. Mas como esses elementos se ligam ao território de Florianópolis? Antonie Saint Exupery, autor de O Pequeno Príncipe era piloto da Aeropostale, empresa de correios da França, que fazia parada em Florianópolis antes de ir para Argentina (FAPESC, 2019, on-line). Lá, conversava com os habitantes locais e gostava de tomar bebidas com limão galego, daí o uso do ingrediente, além da lavanda da história do livro e das rosas, em referência a Lyon, cidade de origem do francês, na região do Auvérnia Ródano-Alpes, tradicional por suas rosas. Simão relata: “Então contamos essa história desconhecida por meio da cerveja, nossa cerveja leva esse aspecto imaterial da cultura.”

267

Alexandre Bazzo, proprietário da cervejaria Bamberg, em Votorantim - SP, traz outro exemplo a esse respeito, ao contar que, após a ascensão de sua empresa, a produção era comercializa também para fora do estado, mas, aos poucos, a distribuição foi limitada a um raio de 200 km da fábrica por dois motivos: a garantia de qualidade do produto e a questão identitária da cerveja. Bazzo afirma que existe uma identidade da cerveja com o local e que as pessoas vão à fábrica para comemorar as medalhas que as cervejas ganham nos concursos, uma vez que a marca Bamberg construiu uma relação com os consumidores e o território em que está inserida. Esses dois exemplos trazem aspectos imateriais, simbólicos e identitários como elementos importantes para criação de cervejas e cervejarias, sendo o espaço fonte de inspiração e insumos para elaboração da cerveja. Portanto, a noção de TC e sua componente TCA atendem à demanda de entender como a cerveja cria territórios. Ao observarmos o consumo de cerveja no mundo, percebemos que existe uma inicial preponderância dos TCA, seguida de uma redução dessa forma de expressão cultural cervejeira. Na sequência, observa-se a ascensão dos TCP, com a forte redução dos números de cervejarias, e depois a revolução da cerveja artesanal, com a retomada da cerveja artesanal e seus territórios, os TCA. O número de cervejarias nos principais países produtores da Europa e nos EUA (Gráfico 10) mostra o mercado entrando na fase de maturidade e passando para o período de declínio do consumo, com uma diminuição das cervejarias a partir de 1930 e posterior retomada no final do século XX, excetuando a Alemanha, devido à sua relação histórico, geográfica e cultural com cerveja.

268

Gráfico 10 - Número de cervejarias entre 1930 e 2015 na Europa e EUA

Fonte: CARAVAGLIA; SWINNEN, 2018, p. 11

Os motivos dessa diminuição são listados por Caravaglia e Swinnen (2018) e estão calcados no progresso tecnológico promovido pela automoção, o avanço nos processos de envase, um melhor controle da brassagem, fermentação e acondicionamento da cerveja, aliados à grande expansão da distribuição, que possibilitou maiores economias de escala. Assim, os TCP são formados e estruturados. Como vimos no início da seção 6.2.1, a introdução da cerveja de baixa fermentação foi um grande impulsionador desse processo e retirou as pequenas cervejarias que não tinham capital para investir nos equipamento de refrigeração necessário para esse tipo de cerveja. Segundo Caravaglia e Swinnen (2018), as cervejas eram muito parecidas e apresentavam preços semelhantes, de modo que a propaganda foi fundamental para o avanço nas vendas, eliminando 269

ainda mais as empresas que não possuíam grandes verbas para divulgação. Todo esse processo tornou a cerveja no mundo toda padronizada e homogênea no cenário geral. A observação do consumo per capita nos países também reforça a tendência de declínio e alteração nos padrões de consumo. A Tabela 30 evidencia os diferentes estágios de consumo em que se encontra cada país ou região.

Tabela 30 - Consumo per capita de cerveja em 1986, 1995, 2008 e 2016 por localização

Europa América África, Ásia, Oceania Rep. Tcheca* 145 176 149 143 Belize - - - 85 Namíbia 31 38 - 108 Áustria 115 127 109 106 Panamá - - 68 75 Seicheles 64 83 - 90 Alemanha* 153 146 110 104 USA 97 93 82 74 África do Sul 46 58 59 - Polônia - - 92 101 Venezuela 67 76 92 70 Gabão 94 79 56 - Irlanda 155 203 124 98 México 38 53 58 62 Camarões 56 27 - - Roménia - - 91 94 Brasil 33 41 54 60 Congo 51 12 - - Luxemburgo 172 135 108 84 Canadá 88 83 69 57 Eslovênia - 105 89 80 Colômbia 59 62 36 - Coréia* 19 39 38 42 Letônia - - 67 74 Argentina 20 34 - - Japão 42 58 47 41 Países Baixos 122 146 77 69 Hong Kong 23 29 - - Reino Unido 105 95 83 68 Singapura 15 25 - -

Bélgica 139 148 82 67 Hungria - - 72 65 Austrália 119 100 85 71 Rússia - - 75 59 Nova Zelândia 122 104 75 68 Dinamarca 147 182 78 57 *Os países com asterisco tiveram separações e unificações durante o período analisado. Fonte: Elaboração própria a partir de Barth-Haas, 1986, 1995, Kirin University, 2008, 2016.

Os números relativos à Europa mostram que a maioria dos países centrais apresenta tendência de queda no consumo per capita, evidenciando a mudança do consumidor, que passou a buscar produtos mais saudáveis166 e com menos álcool. Já os países do leste europeu ainda mantêm um número elevado e alguns ainda se encontram crescimento. Os maiores índices de consumo de cerveja estão concentrados na chamada latitude da cerveja (50° Norte), onde se destacam países com larga tradição em consumo da bebida, como Áustria, Alemanha e República Tcheca (VIOTTI, 2012). Na América, os países desenvolvidos, EUA e Canadá, apresentaram queda no consumo per capita, ao passo que nos países em desenvolvimento (México e Brasil) o consumo de cerveja vem aumentando. A África também apresenta uma elevação no consumo per capita de

166 A busca por uma vida mais saudável na Europa resultou no plano de ação europeu para reduzir o uso nocivo do álcool entre 2012 e 2020, medida que foi aprovada pela Organização Mundial da Saúde (EUROSTAT, 2018, on-line). 270 maneira geral, enquanto, na Ásia, o Japão apresenta redução e a Coréia do Sul, crescimento. Por fim, a Oceania mostra forte tendência de redução no consumo da bebida. A tendência de diminuição do consumo, sobretudo nos países que tinham nível estáveis por muitas décadas, levou às grandes empresas a competir e buscar novos mercados fora de seus domínios, focando nos países de aumento no consumo, gerando um grande movimento de fusões e aquisições. Após a maturidade dos mercados de cerveja no mundo, o movimento da Revolução da Cerveja Artesanal surgiu em diferentes momentos em diversos países, fortalecendo os TCA como forma de expressão cultural-territorial. Nos EUA, o movimento tem Fritz Maytag como ícone do renascimento, com a cervejaria Anchor Brewing Company, em São Francisco, Califórnia, fundada em 1965. Na Holanda, o processo é semelhante com a cervejaria De Arcense Stoombierbrouwerij, criada em 1981. Na Itália, temos abertura de um brewpub em 1988, enquanto na Austrália as cervejarias começaram a abrir na década de 1980 e na Espanha, em 1989 (CARAVAGLIA; SWINNEN, 2018). No Brasil, como vimos na seção 6.1.3 desta tese, a Revolução da Cerveja Artesanal foi iniciada na década de 1990, tendo a Ashby em Amparo - SP como pioneira, fundada em 1993. Na Alemanha, esse processo é de difícil datação devido à histórica relação do país com os pequenos produtores locais. No Gráfico 9, por exemplo, o número de cervejarias na Alemanha nunca esteve abaixo de 1.000, enquanto em outros países, esse número chegou a poucas dezenas. Na Bélgica, país que sempre foi considerado como uma “craft beer nation”, temos uma situação semelhante à da Alemanha. A cervejaria Cantillon, por exemplo, é um símbolo da resistência da cerveja artesanal. Fundada em 1900, era umas das 100 da região de Bruxelas e uma das 12 que produziam o estilo Lambic167. Nas décadas de 1960 e 1980, quase todos os produtores de Lambic Tradicional168 fecharam e as cervejas foram substituídas por Lambic pasteurizadas e acidificadas artificialmente. Esse processo quase levou à falência a empresa que, como alternativa criou o Museu da Gueuze de Bruxelas169, cuja missão principal

167 Descrição BJCP: cerveja clara, ácida, fermentada com leveduras selvagens e envelhecida. IBUs: 0-10, SRM: 3-7, ABV: 5.0 – 6.5%. 168 A Cantillon faz a distinção entre sua Lambic tradicional e o que chama de cerveja Lambic “moderna”, sendo a primeira pouco rentável e pouco atraente ao gosto do mercado alimentar standard, onde se enquadra a segunda. Outro ponto levantado pela cervejaria é a situação de na Bélgica não existir nenhuma lei que proteja os seus produtos tradicionais, fazendo com que se torne impossível a distinção através do rótulo na garrafa a diferença entre a Lambic tradicional e a moderna (CANTILLON, 2018) O documento foi disponibilizado em viagem ao museu da Cantillon. 169 O museu foi importante para que a cervejaria sobrevivesse a tempos difíceis e hoje faz parte dos principais museus da Bélgica. Tal importância pode ser verificada pelo fato de que, atualmente, o site do Museu da Gueuze de Bruxelas é locado na página de museus de Bruxelas (ver: . Acesso em: 26 abr. 2021). 271

é promover a Lambic artesanal, sustentando a empresa nos períodos de domínio das cervejarias maiores (CANTILLON, 2018). No Reino Unido, temos uma situação semelhante, uma vez que o movimento de renascimento da cerveja artesanal sempre esteve associado com a instituição do CAMRA. Esse movimento, iniciado por quatro consumidores, congregou apreciadores e entusiastas da cerveja tradicional britânica, organizando uma estrutura de fomento para o consumo nos pubs dos estilos clássicos de cerveja britânicas, bem como nos festivais de cerveja. O movimento é responsável pelo lobby junto ao governo em buscas de mudanças e apoio para o setor. A CAMRA é considerada uma das organizações de consumidores de maior sucesso em toda a Europa e já conta com mais de 190.000 membros em todo o Reino Unido (CAMRA, s. d., on- line). Cada país apresenta uma trajetória de ascensão da Revolução da Cerveja Artesanal de uma forma, mas todos buscam resgatar uma cultura cervejeira que se perdeu devido ao grande avanço dos grupos econômicos cervejeiros. Assim, todo esse crescimento é, em parte, uma forma de reprodução do capital pelos marginalizados do processo pelo elevado poder econômico das grandes cervejarias. Por outro lado, é também uma forma de expressão cultural que cria territórios em torno da sua formação. A alteração no consumo de cerveja passa pela mudança no consumidor, o que pode ser observado em várias entrevistas realizadas nesta pesquisa. A esse respeito, destacamos o posicionamento de Diego Simão, proprietário da cervejaria Cozalinda, em Florianópolis. Para o cervejeiro, o consumidor tem sua curiosidade aguçada por aquilo que é diferente, estando aberto a novas experiências. Segundo Simão, a propaganda e a expansão da cerveja puro malte dificulta ainda mais a percepção do que é artesanal e divide o consumidor, pois, se essa cerveja é puro malte, as outras são impuras? O cervejeiro também afirma que, para fugir do padrão, é necessário apresentar para o consumidor os 180 outros estilos que existem além da Pilsen/Lager, criando nichos por meio da diversidade. Caravaglia e Swinnen (2018) elencam os principais pontos do Revolução da Cerveja Artesanal no mundo, trazendo um importante diagnóstico a respeito desse movimento, caracterizado pelos seguintes aspectos:

• Renda crescente o A cerveja artesanal é tipicamente mais cara que a cerveja Lager padrão, assim os consumidores das classes altas são mais propensos ao consumo desses produtos • Decisão de compra

272

o Os consumidores decidem pela compra influenciados pelo ambiente e pressões sociais de seus pares • Os pioneiros (primeira onda) o Os primeiros empreendedores eram de alguma forma associado com cervejarias existentes, onde eles desenvolveram conhecimento e habilidades na fabricação de cerveja ou tiveram viagens e experiências em países de forte tradição cervejeira • Os seguidores (segunda onda) o A segunda onda de empreendedores no setor cervejeiro foi fortemente influenciada pelos pioneiros que inspiraram os seguidores do movimento que muitas vezes visitam diretamente o pioneiro e são contagiados pelo entusiasmo destes • Pequenos produtores não dependem do forte apelo publicitário o As grandes propagandas midiáticas não são decisivas para os artesanais que se utilizam em técnicas de marketing de baixo custo (“marketing de guerrilha”), que incluem o uso das mídias sociais e da internet, bem como festivais locais, patrocinando eventos comunitários locais e beneficiando- se do movimento “beba local”. • Demanda por variedade o Existe uma reação do consumidor à homogeneização nos mercados tanto de alimento como de bebidas, o setor de cerveja também passa por esse processo que se afasta das cervejas de massa padronizadas e buscam as cervejas artesanais • Legitimação, Informação e Redes o O processo de “legitimação” refere-se à consolidação desse tipo de produção, a informação e o conhecimento também desempenham um papel na determinação de entrada nessa indústria, as redes, por sua vez, desempenham um papel importante como fonte de informação e conhecimento para os produtores e de ideias e criação de demanda no lado do consumidor • A regulamentação do setor o As normas geralmente procuram: aumentar as receitas do governo por meio de impostos sobre a cerveja; proteger a saúde do consumidor; proteger a sociedade do abuso de álcool; reduzir o preço das matérias- primas; e para restringir o poder de mercado, além de incentivar o segmento • A disponibilidade o O crescimento do setor artesanal e a entrada de números crescentes de pequenas cervejarias foi reforçada pela crescente disponibilidade de equipamentos, disseminação das técnicas de produção e da cultura cervejeira (CARAVAGLIA; SWINNEN, 2018, p. 18-37).

Como podemos notar, trata-se de um processo multifatorial, a partir do qual cada país possui suas especificidades no processo de expansão do setor. Dessa forma, os TC são produzidos conforme as expressões econômicas, políticas e culturais de cada localidade. Essas formas de expressão podem estar mais conectadas com a cerveja artesanal, configurando os TCA. Este processo de expansão da cerveja artesanal e seus territórios conduz e é conduzido pelas mudanças do consumo e do consumidor. Para captar melhor esse movimento, trouxemos 273 alguns trechos do questionário aplicado nesta pesquisa170. As perguntas foram dirigidas a um grupo focal de pessoas ligadas ao mundo cervejeiro, os quais foram contatados em eventos como o Copa Brasil de Cerveja (Brasília – DF, outubro de 2018), promovido pela Associação Brasileira da Cerveja Artesanal (ABRACERVA) e o Slow Brew Brasil, ocorrido em São Paulo - SP, em novembro de 2018. Os eventos foram escolhidos pelo critério de oportunidade e representatividade. O primeiro se destaca pela regra de participação, que permitia somente cervejarias independentes, excluindo os grandes grupos cervejeiros; enquanto o segundo evento relaciona-se com o movimento internacional Slow Food171, além de ser um dos principais eventos de cerveja no Brasil. Ao todo, 38 pessoas responderam ao questionário. A qualidade das respostas compensa a quantidade relativamente pequena, pois por participarem diretamente do mundo cervejeiro (representantes de cervejarias, mestres cervejeiros, sommeliers de cerveja etc.), os participantes apresentam uma visão privilegiada do processo. A resposta mais comum para a questão relativa ao que a cerveja representava para as pessoas as respostas traziam as palavras “vida” e “prazer” nas suas descrições, traduzindo uma associação muito direta entre estilo de vida e diversão e alegria. Uma resposta que chamou atenção descrevia a cerveja como “felicidade líquida”, mostrando os aspectos identitários e culturais da bebida, de modo a corroborar a noção de CCC. Quando foi perguntado se a cerveja é cultura, as respostas que mais se destacaram foram relacionadas às pessoas, à comunidade, seus costumes e regionalidades. Com relação a essa questão, duas respostas merecem ser transcritas:

170 O questionário está reproduzido integralmente nos Apêndices, ao final desta tese. 171 O movimento teve como evento simbólico o protesto organizado por Carlo Petrini, em 1986, na cidade de Roma quando a rede de restaurantes Mc Donald’s planejava abrir uma filial perto da Piazza di Spagna. Na ocasião, as pessoas protestavam com tigelas de macarrão. Com o sucesso do movimento, foi fundado o International Slow Food movement, em 1989, em Paris, a partir do Manifesto do Slow Food (KUMMER, 2002). Esse documento critica a vida rápida à qual fomos expostos pela indústria alimentícia, representada pelo fast food, e resgata o prazer em comer, a paisagem e a história cultural local associada aos alimentos. O símbolo do movimento, um caracol, representa a ideia de modo de vida segura e estável (PETRINI, 2001). Atualmente, o movimento tem mais de 100 mil membros por todo o mundo segue a filosofia de “good, clean and fair”, segundo a qual o alimento deve possuir qualidade e ser saudável, uma produção que não agrida o meio ambiente e preços acessíveis para os consumidores e justos para os produtores (SLOW FOOD, s. d., on-line). Apesar de não ter vínculo institucional, o Slow Brew se inspira no conceito do Slow Food para elaboração do seu festival e foca na “cerveja de qualidade”. Assim, a experiencia que o evento busca trazer está sintetizada no trecho: “O verdadeiro apreciador de cervejas artesanais não tem pressa para degustar. Ele é observador, está em busca de uma nova experiência de aromas e sabores. O verdadeiro apreciador de cervejas artesanais não está preocupado com quantidade; ele se dedica a experiência degustativa de cada cerveja, na sua história, no seu conceito. O Slower é um indivíduo consciente que utiliza a cerveja como forma de aprendizado e experiência de vida. Slower é o nome dado aos indivíduos que compartilham este conceito” (SLOW BREW BRASIL, s. d., on-line). 274

Sim, porque movimenta uma comunidade e muda e cria hábitos de consumo, muitos viajam para poder provar, e além dos estudos. Tudo isso pode ter características regionais.

Sim, a cultura da cerveja se difunde e se mistura de várias maneiras e em várias partes de mundo. Sendo parte fundamental em diversas tradições regionais, assim como no Brasil. A tradição brasileira leva a associação da cerveja as festas temáticas.

Esses relatos mostram que, para esse grupo de pessoas representativas do meio cervejeiro, a cerveja se torna cultura a medida que expressa o dia a dia das pessoas, suas tradições e características regionais. O líquido em si é apenas uma bebida, mas todo o trajeto percorrido da produção até o consumo traça os elementos culturais que designam a CCC e a espacialização desse processo, os TC. Com relação aos TC, temos um relato é muito interessante:

Eu sou classe média baixa, fiz USP, Química, morava do lado da cervejaria invicta, foi lá que conheci mais sobre essa cultura, meu noivo é classe média alta, fez INSPER, economia, largou essa vida e virou cervejeiro, depois de assistir a um programa na TV. A gente se conheceu por sermos cervejeiros, nossa casa é uma minicervejaria, nossos livros são sobre cervejas, nossos parentes perguntam pra gente de tendências e provam coisas novas através da gente. Nossos amigos vieram do mundo cervejeiro, e apesar de tudo é um mundo dinâmico, carente de bons profissionais. Por isso eu enxergo a relação de espaço social, econômico e cultural influenciam e muito na relação com a cerveja, se você é classe média baixa como eu dificilmente vá pagar caro por uma bebida, a minha sorte é e sempre foi o envolvimento com escolas e cervejarias, a não ser que você seja um beer influencer, a cerveja não cai do céu, nem em produção caseira (que por sinal sai caro!!).

Esse relato mostra a situação de muitas pessoas que entram no universo da cerveja que, por sua vez, é uma reprodução flexível do capital e um nicho de mercado. Porém, existem outras formas de fazer cerveja artesanal que não aquela reservada para as classes mais abastadas. A ABRACERVA propõe a divisão do mercado de cerveja quatro segmentos172: a) Massa ($): cerveja produzida em larga escala, com poucas marcas de linha, posicionadas para concorrer com as mainstream; b) Intermediário ($$): produção média, muitas cervejas de linha e alguns rótulos diferenciados;

172 Segmentação descrita em entrevista com Carlo Lapolli, então presidente da ABRACERVA. O símbolo $ será usado para representar a proporção de custo que existe em cada segmento proposto. 275

c) Nicho ($$$): produção reduzida, com algumas cervejas de linha, lançamentos constantes e produtos diferenciados; d) Supernicho ($$$$): produção bastante reduzida, lançamentos constantes e produtos superdiferenciados.

Essa segmentação mostra que existem diversas formas de posicionar a cerveja artesanal, de forma que esta não precisa ser destinada a um grupo restrito de consumidores. A cervejaria Tupiniquim173, por exemplo, já esteve posicionada como nicho e passou para o intermediário, apresentando cervejas distribuídas em grandes redes de supermercado, como Extra, Carrefour, Walmart etc.174. Outra forma de expressar essa diferenciação encontra-se no seguinte relato:

Moro em Manaus e vou muito a Boa Vista-RR. Lá apesar da dificuldade logística ser ainda maior já existem duas microcervejarias fazendo boas cervejas e vendendo ainda mais barato que em Manaus. E apesar da crise econômica-humanitária vivida por nossos irmãos roraimenses essas cervejarias estão expandindo suas produções e popularizando estilos como IPA e weizen. No Amazonas já somos 4 microcervejarias e já estão em negociação produção de cervejas ciganas que se derem certo virarão novos negócios. A cervejaria Rio negro se situa num bairro afastado e periferia da cidade. Adjacente a ela temos uma casa de shows chamada shopping do chopp onde vendemos exclusivamente cervejas e chopps artesanais. Nosso público nessa casa é classe C e D para baixo. Vendemos barris de 5 litros na bombinha manual para consumo durante as atrações a 70 reais e chopp de 300 ml a 5 reais. Sempre encontro clientes que me culpam por não conseguirem mais apreciar cervejas de produção em massa. Uma vez que você experimenta algo melhor você fará o possível para continuar nesse nível de consumo.

Novamente, percebemos que cerveja artesanal não é destinada exclusivamente às altas classes sociais, apesar de a Revolução da Cerveja Artesanal ter nesse público o seu primeiro alvo. Outro breve relato refere-se à criação dos TC: “Este território se forma naturalmente quando os apreciadores se reúnem para consumir e para produzir suas cervejas.” Apesar de muito ampla, essa descrição captura o espírito da congregação que a cerveja proporciona e os traços identitários que essa junção de pessoas traz.

173 Cervejaria de Porto Alegre fundada em 2010, que já recebeu os prêmios de melhor cervejaria no concurso do South Beer Cup em 2014, Copa Cervezas de América em 2015 e o Festival Brasileiro da Cerveja em 2015, 2016 e 2017 (TUPINIQUIM, s. d., on-line). 174 Por meio da busca pelo Google Shopping, é possível encontrar a cerveja Tupiniquim em grandes redes além das citadas, tais como Casas Bahia, Americanas, Ponto Frio, Shoptime, Submarino, entre outros. 276

As respostas do questionário ajudam a sustentar as discussões que permearam as seções da tese, articulando cerveja, cultura e território, sobretudo nos espaços de operação das lógicas impressas pela cerveja artesanal, ou seja, os TCA.

277

6.2.2 Os Territórios da Cerveja Artesanal (TCA) na formação dos cervejeiros e cervejarias de pequeno porte do Brasil

Nesta seção, verificaremos a espacialização das cervejarias e a evolução da abertura dessas empresas como resposta à mudança dos hábitos de consumo em relação à bebida. Analisaremos também como diferentes expressões culturais e o desenvolvimento da cadeia cervejeira, sobretudo as menores, ajudam a criar e a sustentar a ideia dos TC. Nesse contexto, estão em destaque os TCA, relacionados aos cervejeiros e cervejarias de pequeno porte. Mediante o crescimento do volume de produção dessa bebida, entramos em um processo de mudança do consumo do tipo de cerveja no Brasil, que passa essencialmente pelo consumidor e pela abertura de cervejarias menores. Tais estabelecimentos disponibilizam um produto diferenciado, que representa uma expressão cultural com potencial para configurar novos territórios. Antes da abertura de cervejarias, a disseminação da cultura cervejeira era feita por pequenos cursos de cerveja caseira, como relatam em entrevista Alexandre Zahn, antigo dono do Chopp do Fritz e Marco Falcone, proprietário da Falke Bier. Ambos fizeram curso de produção caseira de cerveja na década de 1980, com americanos que traziam esse hábito para o Brasil. Um dos cursos que se destacavam na época era o “Curso de Cervejaria Caseira” de Alex Sommer (SANTOS, 1985) que, além de rodar o Brasil ensinando como fazer cerveja, tinha uma pequena escola na rua Paraíso, na cidade de São Paulo, onde havia fábrica da cervejaria Brahma175. Uma passagem interessante dos primórdios da cerveja artesanal no Brasil e que mostra a ascensão de uma nova cultura arraigada à cerveja foi a presença do já citado Michael Jackson em terras tupiniquins. Em 1998, o “Beer Hunter” veio visitar pequenas cervejarias no Rio de Janeiro e São Paulo, quando passou pelo Chopp do Fritz de Zhan antes de a Ribeirão Preto para visitar a Colorado e o famoso chopp do Pinguim. Segundo o britânico, “O chope tem de ser visto como uma coisa 'viva' e, nesse sentido, a bebida do Pinguim realmente me surpreendeu” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998a, on-line). Jackson ainda teceu comentários sobre a IPA da Colorado com rapadura: “É uma das melhores cervejas que já bebi em todo o mundo” (FOLHA

175 A primeira fábrica da Brahma no estado de São Paulo ficava entre as ruas Apeninos, Vergueiro, Tupinambás e Paraíso. “A Brahma desativou a fábrica que funcionava no local em abril de 1993, depois de um acordo com a Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental). A Cetesb apontava a Brahma como poluidora do rio Tietê e exigia a construção de uma estação de tratamento de água na fábrica. Alegando não ter condições de atender a exigência por falta de espaço, a Brahma cumpriu o acordo com a Cetesb, que previa a desativação da unidade em 1993” (JOVCHELEVICH, 1994, on-line). 278

DE SÃO PAULO, 1998a, on-line). Vale lembrar que, na época, Jackson já havia visitado cerca de 40 países e catalogado aproximadamente 3.000 marcas e tipos de cerveja. Segundo ele, ainda faltava ao Brasil uma maior variedade de cervejas para o consumidor (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998a, on-line). O aumento de cervejarias teve início na década de 1990 e nos anos seguintes, com a instalação das seguintes fábricas: Ashby, em Amparo - SP (1993); Dado Bier, em Santa Maria - RS (1995); Colorado, em Ribeirão Preto - SP (1995); Brock, em Timbó - SC (1996); Chopp do Fritz, em Sumaré - SP (1996); Krug Bier, em Nova Lima - MG (1997); Cidade Imperial, em Petrópolis - RJ (1997); Baker, em Belo-Horizonte - MG (1998), Baden, em Campos do Jordão - SP (1999); Wäls, em Pampulha - MG (1999); Eisenbahn, em Blumenau - SC (2002); Bierland, também em Blumenau - SC (2003); Província, em Santa Maria - RS (2003); Farol, em Canela - RS (2003); Falke Bier, em Ribeirão das Neves - MG (2004); Coruja, em Forquilhinha - SC (2004). (MARCUSSO, 2015; LIMBERGER, 2016). Após esse período, a abertura de cervejarias se deu de forma regular, crescendo exponencialmente após 2010 (Gráfico 11). Em 2018, o número de cervejarias no Brasil chegou a 889, subindo para 1.209 em 2019 (MARCUSSO, MÜLLER, 2019; BRASIL, 2020).

Gráfico 11 - Número total de cervejarias registradas pelo MAPA nos últimos 20 anos

1300 1209 1200 1100 1000 889 900 800 679 700 600 493 500 400 332 300 257 195 157 200 114 129 74 87 94 105 100 40 41 46 53 62 65 0 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Fonte: MARCUSSO, MÜLLER, 2019; BRASIL, 2020.

Essa ascensão foi provocada pela alteração no comportamento do consumidor, que se estava aberto a experimentar cervejas diferentes. Foram realizadas entrevistas com figuras

279 importantes no mundo da cerveja, como o sommeliers Ronaldo Rossi176, Raimundo Padilha177 e Carolina Oda178, além do já citado cervejeiro André Junqueira da Morada Etílica, em Curitiba - PR. Todos relataram uma espécie de fadiga do consumidor em sempre consumir cervejas muito parecidas e em grandes quantidades. Esse mesmo movimento de diversificação também se desenvolveu em outros campos da gastronomia, como em relação ao café, ao queijo e ao , caracterizando-se como uma tendência geral no Brasil e no mundo. Em entrevista para esta pesquisa, Marco Falcone, proprietário da Falke Bier, em Belo Horizonte, relata que o Brasil, no bojo das transformações do consumo de cerveja, viveu fases da procura de novas cerveja e saiu do lugar comum da Lagers para a busca por cervejas extremas, como as IPA pelo amargor; as cervejas muito alcoólicas, como as Russian Imperial Stout; e as cervejas ácidas, como as Sours. Falcone ainda aponta que existe uma guinada para cervejas mais leves com menos álcool, amargor e acidez, muitas vezes combinando esses elementos de forma mais suave. Com um consumidor mais adepto a mudanças e novas experiências, diversas cervejarias foram abertas em locais que antes não apresentavam tradição de cervejarias, iniciando um processo de venda e transmissão de conteúdo e informação sobre a chamada cerveja artesanal. A expansão das cervejarias no país e nos estados é uma expressão desse movimento (Tabela 31).

Tabela 31 - Os dez estados com maior número de cervejarias e evolução (2017 - 2019)

UF 2017 2018 2019 Crescimento em % São Paulo 124 166 241 39,5 Rio Grande do Sul 142 184 236 28,9 Minas Gerais 87 116 163 36,9 Santa Catarina 78 104 148 37,8 Paraná 67 93 131 39,8 Rio de Janeiro 57 62 78 17,3 Espírito Santo 11 17 34 77,3 Goiás 21 25 28 15,5 Bahia 7 12 20 69,0 Rio Grande do Norte 6 9 20 86,1 Fonte: MARCUSSO, MÜLLER, 2019; BRASIL, 2020.

176 Atua na área de cerveja desde a década de 1990. Abriu a rede de bar de cervejas Cervejoteca em 2011 e, no mesmo ano, iniciou sua atuação como professor de Sommelier de Cerveja pelo SENAC - SP. 177 Sommelier de cerveja pela Doemens Akademie 2010, diretor de conteúdo do site The Beer Planet 2013, Professor da Escola Superior de Cerveja e Malte 2015 e colunista de diversas revistas. 178 Carolina formou-se em gastronomia em 2007 pelo SENAC Águas de São Pedro - SP. Além de seus trabalhos com cerveja, sua atividade principal, tem explorado outras bebidas como café, sakê, chá e cachaça e harmonizações em parceria com chefs de cozinha. Em 2016, publicou a coluna “É de birra, mas não só”, do caderno Paladar do jornal O Estado de São Paulo e, em 2018, estreou na televisão com o programa Sabor em Jogo pela GNT, junto do chef André Mifano e Andressa Cabral. 280

A concentração no eixo Sul-Sudeste se confirma com mais 80% dos estabelecimentos com sede nos estados de RS, SP, MG, SC, PR e RJ. Fora desse eixo, encontra Goiás, bem abaixo do Rio de Janeiro. O crescimento das cervejarias demonstra sustentação com os cinco estados com mais cervejarias crescendo a uma taxa superior a 30%. Já em relação ao Espírito Santo, Bahia e Rio Grande do Norte, esse crescimento foi superior girou em torno de 70%. Uma vez que a dimensão multiescalar é um elemento importante para se compreender a formação dos territórios da cerveja, também realizamos essa análise por municípios. A Tabela 32 apresenta o número de cervejarias por município e a densidade cervejeira (número de habitantes por número de cervejaria).

Tabela 32 - Cervejarias por município (2018 - 2019) e densidade cervejeira

Municípios 2018 2019 Crescimento % Município Hab/Cerv Porto Alegre-RS 35 39 11,4 Nova Lima-MG 4.313 São Paulo-SP* 9 27 200 Carlos Barbosa-RS 7.458 Nova Lima-MG 19 22 15,8 Timbó-SC 8.848 Caxias do Sul-RS 16 20 25,0 Farroupilha-RS 9.041 Curitiba-PR 14 19 35,7 Gramado-RS 9.058

Sorocaba-SP 10 17 70,0 Igrejinha-RS 9.225 Belo Horizonte-MG 8 15 87,5 Cascavel-PR 14.349 Rio de Janeiro-RJ 7 13 44,4 Nova Friburgo-RS 17.330 Juiz de Fora-MG 9 12 33,3 Santa Cruz do Sul 18.631 Petrópolis-RJ 9 12 33,3 Pinhais-PR 18.880 BRASIL 889 1209 35,9 BRASIL 173.946 * O crescimento acima da média da cidade de São Paulo foi resultado de uma ação de fiscalização que obrigou as cervejeiras clandestinas a se adequarem, registrando seu estabelecimento no MAPA. Fonte: MARCUSSO, MÜLLER, 2019; BRASIL, 2020.

A concentração ainda se mantém no eixo Sul-Sudeste, mostrando a importância da história da cerveja nessas regiões. É interessante notar que das dez cidades listadas, sete já apresentavam cervejarias no século XIX, evidenciando a forte ligação cultural que a cerveja cria em seus territórios. A densidade cervejeira também retrata alguns aspectos importantes da produção de cerveja no Brasil. Embora Nova Lima - MG seja a cidade com maior relação habitantes por cervejaria, a cerveja ali produzida atende principalmente o público de Belo Horizonte, que aparece com uma relação próxima a do Brasil. A liderança de Porto Alegre no número total de cervejaria por município reflete a elevada disseminação da cultura da cerveja no município. Em entrevista com Thiago Galbeno, cervejeiro da Perro Libre, observamos que o espaço interfere na comunicação entre empresa e cliente e na venda do produto, quando se comparam as capitais gaúcha e paulista. Segundo o cervejeiro, na primeira, existe um sentimento de comunidade em torno da cervejaria, uma 281 valorização do local e uma proximidade entre cervejeiro e consumidor, enquanto em São Paulo a relação é mais de cunho comercial e com um ticket médio maior, conseguindo se investir mais em inovação, que é o foco dos consumidores de lá. Nesse ponto, percebemos que os TC podem ser mais dominados pelos aspectos econômicos, como em São Paulo, ou pelos aspectos culturais, como no Rio Grande do Sul. Dessa forma, as trajetórias das pessoas e dos lugares é um importante fator que determina a formação dos territórios em torno da cerveja. Nesse contexto, a identidade entre cervejeiros e consumidores tem lugar especial nos festivais de cerveja, que representam “um momento específico, o lócus de performance, compartilhamento e disseminação de uma série de valores e práticas associadas com o consumo de cerveja ‘artesanal’” (THURNELL-READ, 2017, apud KROHN, 2017, p. 32). Assim, é possível considerar esses eventos como pontos de fixação dos TCA, ainda que temporários e flexíveis no tempo e no espaço. Quando verificamos os eventos espalhados pelo Brasil vemos os aspectos culturais mais aparentes na formação das relações de poder que conformam os territórios ligados à cerveja. Por meio de uma pesquisa exploratória, levantamos mais de 100 eventos em todos os estados. A Tabela 33 apresenta os principais eventos cervejeiros do Brasil, enquanto a Figura 64 ilustra a espacialização dos dados gerais, informando também o ano de fundação das Associações de Cervejeiros Artesanais (ACervAs) nos estados. Essa vinculação se deve ao fato dessas associações reunirem os cervejeiros caseiros e difundirem a cultura cervejeira, organizando e promovendo muitos eventos.

Tabela 33 - Principais eventos cervejeiros do Brasil Nome UF Cidade 1ª Ed. Público Nº Cerv. Oktoberfest SC Blumenau 1984 300 mil N/A Festival Brasileiro da Cerveja SC Blumenau 2009 40 mil 128 IPA Day Brasil SP Ribeirão Preto 2012 4 mil 25 Mondial de La Bière Rio RJ Rio de Janeiro 2013 50 mil 120 Slow Brew Brasil SP São Paulo 2014 5 mil 78 Festival da cultura cervejeira PR Curitiba 2016 4 mil 34 artesanal (FCCA) Festival da Cerveja POA RS Porto Alegre 2017 5 mil 50 Festival Sul-Americano de Cerveja RS Porto Alegre 2017 5 mil 30 Fonte: Elaboração própria a partir de levantamento exploratório em sites, revistas e mídias sociais.

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Figura 64 - Distribuição espacial dos eventos levantados e ano de fundação das ACervAs

Fonte: Organizado por Marcusso e elaborado por Luca Mammoli, a partir dos dados levantados.

O maior evento cervejeiro é a Oktoberfest de Blumenau - SC, que teve sua primeira edição em 1984. A versão brasileira da festa da Baviera é a maior fora da Alemanha. Em 11 dias de festa, em 2016, mais de 300 mil pessoas compareceram ao Parque Vila Germânica, na capital nacional da cerveja179. Lá, não são vistas diversas cervejarias, porque os grandes grupos dominam o ambiente, que já foi muito tempo patrocinado pela Brahma e hoje recebe patrocínio da Eisenbahn, marca pertencente ao grupo Heineken (MARCUSSO, 2017). A vinculação entre os eventos e as ACervAs está no fator disseminador da cultura cervejeira promovido por essas entidades. Como exemplo desse movimento, temos o estatuto da ACervA Candanga do Distrito Federal, que traz alguns dispositivos em suas finalidades, ilustrando a relação da entidade com os eventos:

I – Congregar as pessoas que produzem ou apreciam cerveja artesanal, estreitando os laços de amizade e integração entre os membros da Associação e com a comunidade em geral que se interessa pela cultura cervejeira; II – Promover a cultura, o conhecimento e a apreciação da cerveja, difundindo e aprimorando o estudo da produção artesanal de cerveja entre seus associados; IV – Promover palestras, cursos, concursos, festivais e degustações das mais variadas cervejas, muitas das quais produzidas pelos próprios associados desta associação, destinadas ao consumo em eventos da Associação, para os próprios associados ou para conhecimento e divulgação da cultura cervejeira aos membros da comunidade do Distrito Federal e aqueles que aqui estiverem.180

179 Conforme Lei nº 13.418, de 9 de março de 2017 (BRASIL, 2017). 180 Tivemos acesso ao estatuto quando me associei à ACervA Candanga em 2018. 283

A ACervA do Distrito Federal organiza o Carnaval da ACervA com o bloco “Arrota, mas não Gorfa”, no qual os associados adquirem o passaporte que dá acesso às cervejas produzidas pela entidade e cervejarias do DF. O evento possui banda e estandarte e os associados criam um território em torno da cerveja que, por sua vez, é o veículo de condensação dessas pessoas (Figura 65). Assim, o território da cerveja criado pela ACervA - DF e seu bloco de carnaval corrobora a abordagem teórica dos TC, sobretudo em relação aos TCA.

Figura 65 - Bloco de Carnaval “Arrota, mas não gorfa” da ACervA - DF

Fonte: Arquivo pessoal do autor. Brasília - DF, 2018.

Trazendo um trecho da definição dos TC elaborado nesta tese e destacamos esta passagem: “características culturais e simbólicas que utilizam a cerveja como forma de congregação e rituais de consumo, como rodas de conversas, festas e eventos cervejeiros, podendo demonstrar traços de identidade territorial nesse processo”. Assim, os integrantes das ACervAs carregam um caráter identitário nessa congregação em torno da cerveja. Esse sentimento pode ser verificado em uma pesquisa realizada pela ACervA Brasil, que une as ACervAs de todo país. De acordo com a pesquisa, 14% dos respondentes apontaram que a entidade significa para eles união/confraternização/família, enquanto para 18% a associação é importante para encontrar pessoas/fazer amizades. Por fim, 40% dos participantes responderam que a entidade fornece conhecimento/aprendizado/experiência (ACERVA BRASIL, 2020). Selecionando uma palavra de cada categoria, podemos formar a tríade 284 experiência/amizade/família, que ilustra a característica simbólica que essas entidades apresentam e ajuda a compreender como os territórios são construídos através de elementos culturais. Ao analisar todas as ACervAs do Brasil, podemos notar que existe um vínculo entre a instituição e seu espaço de criação. A esse respeito, a Figura 66 traz a representação gráfica de todas as ACervAs estaduais.

Figura 66 - Logomarca das ACervAs estaduais

Fonte: ACERVA BRASIL, s. d., on-line.

Fica clara a relação das logomarcas com aspectos relacionadas à cerveja, uma vez que estas trazem em sua representação elementos como ramos de trigo e/ou cevada, panelas e pás de cerveja, cones de lúpulo, canecas, growler181, garrafas e copos de cervejas. Além de tais

181 A utilização dos growlers vem aumento no Brasil, como pode ser notada pela descrição do produto na página da rede de supermercados Pão de Açúcar: “O growler para cerveja nada mais é do que um recipiente – ou um garrafão – feito de vidro, cerâmica ou alumínio, com um fechamento em rosca ou presilha, próprio para armazenar cervejas servidas na pressão (também chamadas de ‘on tap’) ou chopes. Esse utensílio permite que você leve para a casa aquela cerveja que você adora, mas que só encontra em bares especializados ou em lojas que contam com torneiras de cervejas especiais. A cerveja colocada no growler pode ser conservada por até uma semana, desde que armazenada da maneira e na temperatura correta. Sabe-se que o growler é uma criação americana, apesar de ser um estilo de armazenamento de cerveja também muito utilizado na Europa. Ele foi criado no século 19 para que a população americana conseguisse consumir suas cervejas em casa, já que naquela época as cervejas pasteurizadas

285 referências, 11 ACervAs também trazem representações da bandeira do estado do qual fazem parte. São elas as instituições tocantinense, mineira, gaúcha, Candanga, acreana, pernambucana, maranhense, alagoana, goiana, rondoniense e paraense. Outras duas regionais destacam o mapa do estado em sua logomarca: a piauiense e a sul-mato-grossense. De forma mais específica, seis ACervAs trazem aspectos da cultura local, questões urbanísticas, culinárias e representativas, como é o caso da tocantinense que traz acima do copo de cerveja a ponte Fernando Henrique Cardoso, localizada na capital Palmas, e o sol radiante da bandeira do estado; a paranaense, que a araucária, árvore símbolo do estado, crescendo a partir de uma garrafa de cerveja; a baiana, que representa o elevador Lacerda, ponto turístico da capital Salvador, como uma torneira da chopp servindo um copo; a potiguar, que traz o camarão, representante da culinária local, como elemento central na logomarca; a sergipana, com a imagem um papagaio e frutos do caju, em referência à origem indígena do nome da capital Aracajú (Ará = papagaio e Akaiu = cajueiro); e a amazonense que ilustra o encontro das águas do rio Negro com o Solimões dentro de um copo de cerveja, representando as cervejas escura e clara. É evidente a questão simbólica e identitária que existe nas representações gráficas das ACervAs, em sua maioria, com os elementos presentes no espaço de cada estado. Isso reforça a ideia de que essas associações são ferramentas de criação dos TCA que aliam a cultura cervejeira com a cultura local. Contudo, isso não significa que as questões de poder não estejam atreladas ao processo cultural, já que, como definimos anteriormente, os TC “são constituídos a partir das múltiplas relações de poder (surgimento de novos territórios e territorialidades) e dos diferentes tipos do seu uso (multiterritorialidades) por indivíduos ou grupos sociais que tem na cerveja um elemento de mediação que criam e dão sentido aos seus cotidianos e formas de vida” As ACervAs são instituições sem fins lucrativos, mas recebem anuidades para manter a entidade. Geralmente, o público frequentador dessas associações possui elevada renda per capita. A participação nesses núcleos requer um maior poder aquisitivo, de modo que o poder econômico constitui uma barreira à entrada de novos participantes. Esse aspecto pode ser

em garrafas não eram tão comuns. Com a popularização do consumo de cerveja em garrafa, os growlers perderam espaço, retornando a circular nas cidades americanas e europeias quando o universo das cervejas especiais – também chamadas de craft beers – voltou a efervescer nessas partes do mundo. O growler para cerveja chegou ao Brasil junto com essa nova maneira de consumir e saborear cervejas especiais. Atualmente, boa parte dos bares e lojas especializadas nessa bebida já oferecem a opção de comprar suas cervejas favoritas ‘on tap’ e levar para a casa no seu próprio growler (que pode ter capacidade que varia entre 1L e 5L)” (PÃO DE AÇÚCAR, s. d., on- line). 286 comprovado através da pesquisa feita pela Federação Brasileira das ACervAs, que estabeleceu um perfil dos participantes dessas associações (Figura 67).

Figura 67 - Perfil de modelo ideal do Acerviano

Fonte: ACERVA BRASIL, 2020.

Em linhas gerais, o perfil dos membros da acerva é o seguinte: homem, branco, com idade entre 30 e 39 anos, engenheiro, com pós-graduação ou mestrado, ganhando entre seis e dez salários-mínimos. Esse modelo ideal mostra uma aproximação com a realidade do público das ACervAs, já que na pesquisa foram computadas apenas 872 respostas, enquanto o número de cervejeiros caseiros, de acordo com o último levantamento da própria ACervA Brasil, é em média 40 mil (ACERVA BRASIL, 2020). Dessa forma, podemos afirmar que os TCA provindos das ACervAs são, em sua maioria, territórios excludentes que conversam com a parte mais abastada da população, que tem acesso a essa atividade.

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Nesse perfil, além do poder econômico, transparece uma característica social embutida na classe social privilegiada no Brasil: o homem branco e com maior escolaridade, consequentemente, tem um maior poder aquisitivo. Essas relações de poder são exercidas de maneira indireta, mas apontam para a larga desigualdade social que existe no Brasil. Essa temática da cerveja como resistência ao modelo social dominante será abordada na seção subsequente. Por outro lado, as ACervAs são verdadeiras molas propulsoras da abertura de novas cervejarias no Brasil (ACERVA BRASIL, 2020). O SEBRAE traçou um perfil das cervejarias e cervejeiros no Brasil. Esse perfil segue a tendência das AcervAs e apresenta características mais conservadoras, com 89% dos empresários de cervejarias como homens, 50% com mestrado ou pós-graduação e entre 30 e 39 anos. A maioria possui fábrica própria (67%), com sócios (79%), emprega até quatro funcionários (56% - 19% não tem funcionários), fatura até R$ 360 mil (51%) e enquadra-se no Simples Nacional (82%). A relação entre acervianos pode ser vista pelo tempo de abertura das fábricas, com 70% tendo até quatro anos, e pela realização de cursos, sendo que 81% já realizam cursos sobre produção (SEBRAE, 2019). Os cursos relacionados à cerveja (sobre produção de cerveja, cursos de sommelier, harmonizações, cultura cervejeira etc.) vêm proliferando no Brasil, havendo até mesmo cursos homologados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) (Tabela 34).

Tabela 34 - Cursos por UF, ano de início e município

UF Nº de Cursos Ano Nº de Cursos Municípios Nº de Cursos SP 16 2016 8 São Paulo 10 MG 8 2010 7 Curitiba 5 PR 6 2018 5 Rio de Janeiro 4 RJ 6 2013 4 Belo Horizonte 4 DF 4 2015 3 Brasília 4 SC 3 2017 2 Porto Alegre 3 BA 2 2014 2 Vitória 2 ES 2 2008 2 Fortaleza 2 CE 2 2019 1 Blumenau 1 RS 1 2009 1 Petrópolis 1 Fonte: levantamento pelos sites oficiais, revistas, sites e MEC.

Foram identificados 53 cursos sobre cervejas espalhados por 24 municípios. Com exceção da região Norte, todas as regiões brasileiras disponibilizam cursos sobre o tema. O eixo Sul-Sudeste concentra os dados, com mais de 60% dos cursos, dos quais a maioria abriu após 2010, quando o número de cervejarias passou a crescer exponencialmente. Em relação aos

288 municípios, a concentração é mais evidente nas capitais das regiões Sul e Sudeste, embora Brasília também apresente elevada oferta de cursos. Sobre a temática cervejeira, também há grupos de pesquisas em Instituições de Ensino Superior (IES), o que mostra o interesse que o tema desperta na academia e como o estudo acadêmico pode ajudar a compreender esse mercado em constante transformação. A Tabela 35, a seguir, apresenta os grupos de estudo sobre cerveja das IES.

Tabela 35 - Grupos de pesquisa sobre cerveja em Instituições de Ensino Superior

Data de Instituição Grupo Líder Área criação Jean Carlos Instituto Federal de Grupo de Estudos e Pesquisas Ciências 03/09/2018 Rodrigues da São Paulo em Tecnologia Cervejeira Biológicas Silva LaBCCERVa/IQD/UnB - Ciências Universidade de Julio Lemos de Laboratório de Bioprocessos 05/11/2018 Exatas e da Brasília Macedo Cervejeiros e Catálise em Terra Microbiologia das Universidade Flávio Henrique Ciências Fermentações e Tecnologia 01/04/2019 Federal de Sergipe Ferreira Barbosa Biológicas Cervejeira Tatiana de Ciências Instituto Federal de Bebidas, alimentos e cultura: 30/04/2018 Macedo Soares Sociais Brasília estudos sobre a cerveja Rotolo Aplicadas Universidade Grupo de Pesquisa em Andréia Marçal Ciências Federal de São João 12/04/2019 Cervejas Especiais da Silva Agrárias Del-Rei Fonte: Elaboração própria a partir de pesquisa realizada no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, s. d., on-line.

Embora recentes, esses grupos de pesquisa constituem formas de expressão cultural indicativas de formação dos TC, assim como os eventos, os cursos e as empresas. Todos esses elementos contribuem para a formação de territórios, uma vez que fazem parte dos modos de vida das pessoas, relacionando-se às práticas simbólicas e identitárias. Contudo, não é somente a cerveja artesanal que cria seus territórios (TCA). A cerveja mainstream também está presente nas manifestações culturais de identificação social (TCP), criando os TC associados às grandes cervejarias.

6.2.3 Os Territórios da Cerveja Pilsen (TCP) nas grandes festas culturais brasileiras

Uma das principais formas de verificação dos TC formados a partir dos aspectos culturais são as festas culturais nacionais. A esse respeito, tanto as festas populares (TCP) como os festivais de cerveja artesanal (TCA) criam seus territórios. Os grandes eventos quase sempre têm o patrocínio ou apoio das grandes cervejarias. O setor de cerveja compreende a forte relação 289 que existe entre as festividades e o seu produto e, por isso, patrocina mais de 10 mil eventos por todo o país, desde festas locais e regionais a eventos nacionais e globais182. O carnaval é uma das grandes expressões culturais do brasileiro. Esse evento sempre teve os grandes grupos cervejeiros como importante ordenador de seu espaço, desde os vendedores ambulantes até os camarotes. No Rio de Janeiro, a relação entre carnaval e cerveja remonta aos primórdios das cervejarias no Brasil. Na capital, as cervejarias floresceram e pegaram carona nas festividades do carnaval para vender suas marcas. Em 1913, o rancho183 carnavalesco Recreio das Flores (bairro da Saúde), que era composto por negros e imigrantes da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiches de Café (que mais tarde originaria a tradicional escola de samba Império Serrano), já havia sido patrocinado por uma cervejaria. A partir de 1943, o desenvolvimento da cidade levou à reestruturação do centro e mudou a localização da folia, que passou pelas avenidas Rio Branco e Presidente Antônio Carlos antes de se instalar, em 1978, definitivamente na avenida Marquês de Sapucaí (MATOS, 2005). A cervejaria Brahma surgiu em abril de 1888 nessa mesma rua (que na época tinha o nome de Visconde de Sapucahy), no nº 122B, e passou a se valer dessa localização privilegiada para promover suas cervejas (BRASIL, 2012). Em 1984, foi inaugurada a “Passarela do Samba”, mais conhecida como sambódromo, com projeto original do arquiteto Oscar Niemeyer. O local do novo centro do carnaval do Rio de Janeiro localiza-se na Rua Marquês de Sapucaí, em frente à antiga fábrica da Brahma, ainda de pé (BRASIL, 2012). Desde esse primeiro momento, a Brahma já tinha seu camarote para a diretoria e convidados. Em 1991, o camarote passou a ser chamado de “Camarote nº1”, sendo destinado a celebridades, aproveitando a boa localização dos escritórios de sua fábrica. Nesse ponto, a organização do espaço começou a obedecer a regras externas (sobretudo das emissoras de TV) e tornou-se palco da promoção de artistas famosos, minimizando a importância das próprias comunidades (MATOS, 2005).

182 Informação obtida nas reuniões da Câmara Setorial de Cerveja do MAPA. 183 “Os ranchos carnavalescos, por sua vez, constituíram uma adaptação dos Ranchos de reis nordestinos e foram formados pelos baianos moradores do bairro da Saúde, que trabalhavam na zona dos trapiches como carregadores. Portanto, 26 surgem no contexto da intensificação das atividades portuárias na cidade, quando podemos observar, através da cultura, uma re-territorialização desses nordestinos na zona portuária. O território dos ranchos correspondeu, por excelência, às freguesias centrais de Santana e Santa Rita, nas quais residiam os criadores e componentes destes ranchos. Estas freguesias urbanas apresentaram, em 1870, ano do primeiro desfile de rancho, um grande adensamento populacional, que se explica na necessidade de uma população, com pouca mobilidade espacial, de residir próximo ao local de trabalho (neste caso, próximo aos trapiches e estaleiros da zona portuária)” (MATOS, 2005, p. 25-26). 290

Esse território da cerveja Brahma é tão marcante para o carnaval no sambódromo que, ao completar 20 anos em 2010, o espaço foi homenageado pela escola de samba Grande Rio com samba-enredo “Das arquibancadas ao camarote nº 1... Um “Grande Rio” de emoção na apoteose do seu coração”, com a letra “Grande Rio, eu sou guerreiro / Sou brasileiro e faço meu ziriguidum / Vibra arquibancada, explode / O camarote nº1.” Esse TC recebeu título de patrimônio com o tombamento da fábrica da Brahma pelo Instituto de Patrimônio Arquitetônico e Cultural do Rio de Janeiro (IPACRJ), por meio da lei estadual nº 2.028/2001. Contudo, em 2009, a cidade foi escolhida para sediar os jogos olímpicos de 2016 e a pressão econômica por obras de melhoria do espaço carioca conduziu à revogação da lei, de modo que o prédio da Brahma, esse verdadeiro TC histórico, foi demolido em 2011 para ampliação do sambódromo e construção de equipamentos olímpicos. A obra da Marquês de Sapucaí foi custeada pela Ambev na ordem de R$ 50 milhões, evidenciando que “os interesses econômicos ainda decidem o que se deve ou não preservar” (BRASIL, 2012, p. 13). Fica evidente a construção do TC associada à cultura do carnaval no Rio de Janeiro. Também é possível observar que os territórios não são formados por apenas um aspecto, uma vez que diversos elementos se complementam nesse sentido. Por exemplo, a questão política foi usada para revogar a lei de tombamento da fábrica da Brahma, possibilitando investimentos econômicos, a fim de promover o melhor fluxo do capital que operou tanto na festa do carnaval quanto nas olimpíadas. Assim, podemos ver que todos os aspectos se encontram intrinsecamente relacionados. Nesta tese, apenas os segmentamos para discutir cada um deles e promover um entendimento mais didático sobre a formação dos TC. Fora da Sapucaí, o carnaval é muito disputado pelas cervejarias. Existe uma verdadeira “guerra da cerveja” pelo patrocínio da maior festa popular brasileira. Essa expressão ainda será utilizada nesta tese em referência à disputa de preços, fatia de mercado e propaganda nas seções seguintes e como já vimos no caso do Zeca Pagodinho. Essa disputa é tão ferrenha, que existe uma “divisão territorial” da cerveja no carnaval. Cada cidade e cada tipo de festa (blocos de rua, desfiles oficiais, camarotes etc.) tem sua cervejaria patrocinadora e isso muda a cada ano, conforme a estratégia de marketing das empresas. A Figura 68 ilustra a divisão do carnaval no Brasil, evidenciando as marcas de cerveja que patrocinam ao menos parte dos eventos.

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Figura 68 - O carnaval e a cerveja nos municípios da folia (2013)

Fonte: NSC TOTAL, 2013, on-line.

Como podemos observar, há uma grande aposta das cervejarias no sucesso das folias espalhadas pelo país, de modo que há vultuosos investimentos realizados pelo poder público e pelas cervejarias. Os dados da Tabela 36 mostram a dimensão da festividade e o aporte de cervejarias e iniciativa privada.

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Tabela 36 - Tamanho e o volume dos carnavais pelo Brasil (2020)

Público estimado Valor Investido (R$) Cidade Blocos Ambulantes (pessoas) Público Privado São Paulo 15 mi 678 12.000 14,5 mi 21,9 mi Ambev Rio de Janeiro 7 mi 408 10.000 9,2 mi 27 mi Salvador 3 mi 323 4.500 - - Belo Horizonte 5 mi 529 14.696 - 14,3 mi Olinda 3,7 mi 1.500 1.500 7 mi Recife 1,6 mi 1.500 549 18 mi 7 mi Fonte: G1, 2020, on-line.

Esses números mostram a quantidade de fixos e fluxos que movem o carnaval no Brasil, trazendo, por meio da cerveja, a sustentação econômica para os eventos. Dessa forma, o carnaval constitui um TC pelos vieses econômico e cultural. Os investimentos privados nos carnavais são quase sempre provenientes das cervejarias, que se beneficiam muito dessas festas. Por exemplo, em 2019, Ambev e Heineken investiram juntas mais de R$ 100 milhões no carnaval do Brasil (GUARDA, 2017, on-line), enquanto o Grupo Petrópolis destinou R$ 40 milhões (PENTEADO, 2019, on-line). Contudo nem sempre esses patrocínios trazem apenas benefícios. Como existem contratos de exclusividade de venda de cerveja no carnaval, os preços podem ser 300% mais elevados, conforme afirma a secretaria que cuida dos assuntos de concorrência do Governo Federal em 2018 (REUTERS, 2018b). Outras festas também são importantes expressões culturais populares e, do mesmo modo, recebem o apoio/patrocínio das cervejarias. É o caso das festas de São João e dos rodeios, que acontecem em todo o país. Ambas as festividades atraem milhões de pessoas e contam com milhões em investimentos das cervejarias. As festas do peão atraem um público de 30 milhões de pessoas e movimentam R$ 6 bilhões anualmente. A Liga Nacional de Rodeios e a PBR Brasil (Professional Bull Riders), filial da liga americana que realiza os maiores rodeios do mundo, são as maiores promotoras de rodeios pelo Brasil com mais de 120 em 2013 (SILVA, s. d., on-line). Já em 2018, o Mapa do Rodeio no Brasil mostra quase 1.000 eventos por todo o país, sobretudo nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e no estado do Paraná. A Figura 69 traz a distribuição espacial dessas festividades.

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Figura 69 - Mapa do rodeio no Brasil (2018)

Fonte: RODEIO S.A, 2019, on-line.

A cerveja Brahma como patrocinadora ou cerveja oficial desses eventos está há mais de 40 anos nas festas de peão. Em 2018, a Ambev, por meio do circuito Brahma, apoiou 150 eventos em 80 localidades, alcançando seis milhões de pessoas (MONTEIRO, 2018, on-line). A Festa do Peão de Barretos é a mais famosa do Brasil e também apresenta proximidade com a cerveja. A festa nasceu em 1956 e foi primeiro evento do gênero realizado na América Latina. A Brahma apoia a festa há 30 anos e, em 1993, lançou latinhas de cerveja com o design da festa (INDEPENDENTES, s. d., on-line). Em 1998, o evento bateu o recorde de público, com 1.8 milhões de visitantes nos dez dias festa (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998b, on-line), mostrando seu importante impacto econômico e cultural. Embora ocorram em todo o Brasil, as festas de São João apresentam maior destaque na região Nordeste. Como podemos verificar na Figura 69, na maioria dos estados dessa região não há festas de rodeio, já que a cultura local é mais representada pelas festas juninas. Somente a cerveja Skol, da Ambev, patrocina mais de 30 festas de São João na Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, atingindo aproximadamente 15 milhões de pessoas em todo a região Nordeste (SÃO JOÃO NA BAHIA, 2018, on-line. O Ministério 294 do Turismo lançou em 2018 o mapa interativo dos Festejos Juninos com mais 140 festas que ocorrem entre junho e julho em todos os estados brasileiros (Figura 70).

Figura 70 - Mapa interativo com os festejos juninos no Brasil (2018)

Fonte: MINISTÉRIO DO TURISMO, 2018.

Apesar da dimensão nacional é no Nordeste que as festas de São João têm maior importância cultural e econômica. Nesse contexto, as cidades de Caruaru - PE e Campina Grande - PB disputam para ver quem tem o maior evento de São João do mundo. Longe da disputa, em 2019, nos 30 dias de festa, cada cidade atraiu cerca de dois milhões de pessoas e movimentou por volta de 200 milhões para economia local de cada município, com investimentos de aproximadamente 12 milhões por festa184. Como podemos verificar, onde existem eventos de grande público, as cervejarias estão presentes como patrocinadoras ou como cerveja oficial. Essa relação é guiada pelas grandes cervejarias, que possuem capacidade de investir milhões de reais nas festas. Então, podemos afirmar que os grandes eventos populares no Brasil são também TCP que operam em lógicas

184 Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2021. 295 de escala, volume e alcance para impactar milhões de pessoas com investimento de milhões de reais. A cerveja cria seus territórios por meio da cultura, seja os TCP ou TCA, mas ela também é ferramenta para os movimentos sociais, podendo ser fonte de resistência aos entreves conservadores do nosso país.

6.2.4 A cerveja como resistência

Os TC criados com viés mais cultural são também veículos de expressão dos movimentos sociais. Assim, diversas as formas do cotidiano das pessoas, suas atividades e opiniões são expressas na cerveja. A seguir, temos alguns exemplos dessas situações. Um dos movimentos sociais mais ativos é a luta pela igualdade de gêneros e cada uma dessas expressões culturais se mostra nos espaços de consumo de cerveja. Fora do Brasil, existe um movimento feminino na cerveja há mais tempo e com uma organização mais bem estruturada. Um dos maiores exemplos é o Pink Boots Society (PBS) (Figura 71), foi fundado em 2012 por Teri Fahrendorft nos EUA. O movimento tem a missão de promover a interação entre as mulheres do ramo cervejeiro e aumentar a conscientização sobre a presença das mulheres na fabricação de cerveja. O PBS também visa aprofundar a educação cervejeira no meio feminino, oferecendo cursos técnicos de produção, além de cursos que ensinam as habilidades necessárias para se tornar juíza de cerveja. Hoje, a instituição possui mais de 1.800 membros por todo o mundo, inclusive no Brasil. Outra iniciativa da entidade é o International Women's Collaboration Brew Day (IWCBD) (Figura 71) que, no dia internacional da mulher, promove e encoraja as mulheres a fabricar cerveja. Na primeira edição, mais de 60 mulheres de cinco países diferentes produziram uma Pale Ale e, assim, o evento foi crescendo até os dias atuais (PINK BOOTS SOCIETY, s. d., on-line).

296

Figura 71 - Identidade visual do PBS e do IWCBD

Fonte: PINK BOOTS SOCIETY, s. d., on-line.

No Brasil, temos a cervejaria Japas, criada em 2016, por quatro mulheres cervejeiras: Maíra Kimura, Fernanda Ueno, Carolina Okubo e Yumi Shimada, de descendência japonesa. Essas cervejeiras criam cervejas com referência à cultura nipônica, como a Wasabiru, feita com wasabi, e a Matsurika, que leva flor de jasmim entre seus ingredientes (DUARTE, 2017, on- line). Nessa busca por autonomia, surgiu o primeiro concurso cervejeiro caseiro exclusivo para mulheres, com a união entre ØL Beer Cervejas Artesanais e Mad Jack Beer Lab, e o 1º Concurso Mestre-Cervejeira – Edição IPA (BEER ART, 2020c). No Brasil, a Perro Libre185 lançou, em 2015, o rótulo 803 (Figura 72), em referência ao dia internacional da mulher, em um movimento contrário à ideia preconceituosa de que mulheres gostam mais de cervejas leves e doces. O estilo Black Rye IPA (77 EBC, 70 IBU, 8% ABV) foi escolhido por representar a potência da mulher em sua luta contra o preconceito. No vídeo da campanha186, questiona-se como deve ser uma cerveja para mulheres. Após as respostas, as pessoas são questionadas sobre qual seria a cerveja ideal para índios, negros e homossexuais. A campanha traz uma desconstrução da imagem da mulher associada à cerveja

185 Em 2019, a cervejaria fez uma parceria com o Instituto da Cerveja Brasil (ICB) para sortear vagas para o curso de Introdução ao Universo das Cervejas Especiais, além de créditos nos bares da Perro Libre e livros relacionados ao curso. Assim, a empresa pretende que cada vez mais mulheres se tornem profissionais de cerveja, ocupando mais posições dentro desse mercado. 186 A propaganda está disponível em: . Acesso em: 17/05/2019. 297 leve e objetificada em diversas campanhas publicitárias, principalmente das grandes cervejarias nas décadas de 1990 e 2000.

Figura 72 - Campanha de cerveja como resistência ao preconceito

Fonte: PERRO LIBRE, s. d., on-line.

A ascensão da mulher em postos de maior hierarquia, como cervejeira de uma fábrica, ainda gera espanto da maioria dos aficionados por cerveja. A esse respeito Gabriela Kishi, cervejeira da Zalaz, relata: “O que sempre acontece é de alguém de fora da cervejaria chegar e querer trocar uma ideia com ‘o cervejeiro’. Quando eu me apresento como ‘a cervejeira’, rola um espanto ou uma desconfiança inicial. Ou eu dizer alguma coisa e a pessoa só aceitar/concordar depois que um homem diz a mesma coisa (homem, no caso, com o mesmo cargo que o meu). Há um sentimento de que você precisa sempre estar provando ser capaz.” (FREITAS, 2020d, on-line). Outra forma de cultura cervejeira como resistência ocorre em relação às questões políticas. A Cervejaria Rio Carioca187 tem uma série de propagandas voltadas aos assuntos políticos do momento e se posiciona claramente em seus encartes. No período das eleições, adotou uma postura conciliadora (Figura 73, à esquerda), mas, após a eleição de 2018, posicionou-se claramente contra a esfera da extrema direita (Figura 73, à direita).

187 Cervejaria criada em 2015 na cidade do Rio de Janeiro e que tem sua distribuição somente na região metropolitana da capital fluminense (CERVEJARIA CARIOCA, s. d.[a], on-line). 298

Figura 73 - Propagando de cerveja e política

Fonte: CERVEJA RIO CARIOCA, s. d., on-line.

O que mais chama atenção nessa propaganda é a recomendação ao consumidor de não comprar seu produto, caso decida comemorar o golpe de 64. Isso mostra que um ponto essencial do capitalismo, a busca pelo lucro, é negado pelas questões sociais e políticas, evidenciando que não só a luta de classes, mas outras lutas humanas são fundamentais para o entendimento da sociedade contemporânea (WOOD, 1999). A cervejaria traz em seu nome a cultura do Rio de Janeiro (Rio Carioca. O espírito carioca engarrafado). A empresa ainda destaca a história do rio que dá nome ao adjetivo gentílico do estado e que foi batizado pelos índios Tamoyo, mostrando a cultura envolvida na missão da empresa (CERVEJARIA CARIOCA, s. d.[b], on-line) e a nítida vinculação com o território carioca. Outra forma de resistência na cerveja é o movimento de representação negra. A cervejaria Implicantes foi fundada no tradicional bairro cervejeiro Anchieta de Porto Alegre, em 2018, somente por negros. A proposta da empresa é resgatar figuras históricas, bem como a ancestralidade do povo nos rótulos das latas. Iniciativas como essa incentivam o chamado Black Money (dinheiro circulando entre pessoas negras). A fábrica promove uma imersão cultural, com quadros e elementos decorativos reforçando africanidades. A ideia por trás do negócio está expressa no questionamento de um dos fundadores: “A representação dos negros sempre foi caricata e pejorativa porque, simplesmente, nomeava uma cerveja escura com, por exemplo, o nome de um jogador de basquete. Entende como é raso?” (PUMES, 2019, on-line).

299

A Figura 74a traz o logo da empresa (à esquerda); um evento promovido pela cervejaria, que foca na cultura negra com shows de samba, rap e black music (centro); e a propaganda da cervejaria do dia da mulher, com referência à luta dos negros contra o preconceito (à direita). A representatividade está presente nos rótulos e ilustrações das cervejas. A Figura 74b traz rótulos com personalidades como Maria Firmina dos Reis (à esquerda), maranhense que escreveu o romance Úrsula, em 1859, primeiro romance brasileiro abolicionista e o primeiro escrito por uma mulher no Brasil. A autora assinava como “Uma maranhense”, pois viveu em uma época de limitações e preconceitos contra as mulheres. O rótulo do meio (Figura 74b) estampa Luís Gama, homem, negro, vendido pelo próprio pai e escravizado aos dez anos, que conquistou sua liberdade e, aos 29 anos, era considerado o maior advogado abolicionista do Brasil. Por fim, na lata da direita (Figura 74b), temos Leônidas da Silva, conhecido como “diamante negro”, garoto-propaganda pioneiro do futebol brasileiro, que sofreu racismo em campo, pois não era permitido aos jogadores negros participar da foto de formação dos jogadores.

Figura 74 - Elementos visuais, rótulos da Implicantes e a luta pela cultura negra a)

300 b)

Fonte: UNTAPPD, s. d.[a, b], on-line.

Em 2020, a Implicantes sofreu ataques racistas durante uma campanha de financiamento coletivo, para sobreviver ao duro período da pandemia, uma vez que sua receita foi reduzida substancialmente, devido à paralização dos eventos ocorridos na cervejaria. Na chamada do crowdfunding, a Implicantes é designada como a primeira cervejaria preta do Brasil, o que causou os ataques racistas (FREITAS, 2020e, on-line). Em meio às agressões, o renomado cervejeiro negro Garret Oliver (fundador da Brooklyn Brewery) mandou mensagem de apoio (GUIA DA CERVEJA, 2020, on-line). O mesmo cervejeiro anunciou a criação da Michael Jackson Foundation for Brewing and Distilling, com bolsas de estudos para negros nos EUA. Oliver conta que Michael Jackson patrocinou pessoalmente sua jornada e que ele ajudará os negros a ingressar no mercado cervejeiro, contribuindo para aumentar a diversidade nesse setor (FREITAS, 2020f, on-line). A pouca diversidade no setor conduz à reprodução de um grupo dominado pelos homens brancos. Em entrevista com Thiago Rosário, um dos sócios da cervejaria vítima de racismo, foi relatada a dificuldade em vender os produtos no mercado de Porto Alegre. Por outro lado, a cervejaria criou uma espécie de território negro da cerveja, no qual eventos de diversidade racial eram promovidos antes da pandemia. Esses laços identitários ajudam a corroborar a noção de TC, que alia a parte econômica (instalação de empresas, aquisição de equipamentos, contratação de funcionários, aluguel de prédios, operações logísticas etc.), a atividade comercial e o consumo em torno da bebida, à perspectiva cultural, com as simbologias envolvidas nesse

301 processo, além da dimensão política de utilização de cerveja como resistência ao modelo vigente excludente do setor cervejeiro. Diversas formas de resistência que podem se expressar por meio da cerveja, como as questões de gênero, políticas e raciais. Esse cenário mostra como as diferentes comunidades territorialmente localizadas depositam sua cultura e seu modo de viver na cerveja. Portanto, entendemos que a cerveja é uma forma de expressão cultural e espacial, criando territórios por meio de sua afirmação cotidiana. Outra constatação é que essas formas de resistência demonstram, também, novas formas de consumo que não são somente guiadas pelo preço ou comodidade, elas estão cercadas de significações e modos de vida diferentes que fazem as pessoas se deslocar no espaço para consumir guiados por outros aspectos que não somente os econômicos.

6.3 Dos aspectos políticos: a governança e o desenvolvimento territorial no setor cervejeiro

Finalizando a itemização da matriz metodológica, debateremos os aspectos políticos dos TC que ajudam a edificar a abordagem da construção de territórios por meio da cerveja, principalmente, a partir do conceito de governança, que também pode ser a base para criação de novos territórios. Quando estamos falando de governança, somente as questões jurídicas e de regulação não são suficientes para contemplar todos os aspectos teóricos e explicativos que o termo carrega. Assim, é necessário compreender a governança além dos termos ligados ao Estado e acepções relacionadas à gestão e competências internas de órgãos públicos e privados. Nosso entendimento sobre governança ultrapassa o Estado, procurando verificar como ocorrem os acordos e compromissos entre atores para buscar as articulações necessárias em busca do desenvolvimento do território em que estão inseridos ou que estão construindo. Assim, governança, território e desenvolvimento são conceitos-chave para compreender a dinâmica de poder do setor cervejeiro.

302

6.3.1 O arcabouço institucional da cerveja no Brasil

Quando tratamos de governança, um passo indispensável é traçar os aspectos normativos envolvidos na produção da cerveja no Brasil. Contudo, como já apontamos, apenas as questões jurídicas e de regulação não são suficientes para contemplar todos os aspectos teóricos e explicativos que o termo governança carrega. Os aspectos normativos determinam as regras do jogo e, como veremos, configuram um campo de forças no qual as representações de poder do setor cervejeiro disputam influências, participam de conflitos e tecem acordos de interesses. A normatização de bebidas no Brasil é extensa, chegando a quase 500 atos. Sua listagem consta no site do MAPA188, que regula os aspectos tecnológicos, higiênicos, sobre importação e exportação, bem como padrões de identidade de qualidade. Os aspectos sanitários são de responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que regula principalmente os limites das substâncias auxiliares presentes na cerveja, como conservantes, aditivos, coadjuvantes etc. Existe, portanto, uma interface normativa entre MAPA e ANVISA, o que confere a elaboração de normas conjuntas e, por vezes, gera dificuldade de compreensão dos limites das competências entre os fiscalizados, além de haver movimentos de registros em um ou outro órgão, a depender do produto189. Os normativos desses órgãos são infralegais, ou seja, não têm força de lei, possuindo apenas caráter administrativo. No entanto, a venda e a produção de bebidas são regidas por leis e decretos produzidos pelo Congresso Nacional e sancionados pelo chefe do executivo. A área de bebidas é dividida em três leis: os vinhos e derivados da uva e do vinho são regidos pela Lei nº 7.678, de 08 de novembro de 1988 (BRASIL, 1988), regulamentada pelo Decreto n° 8.198, de 20 de fevereiro de 2014 (BRASIL, 2014). Já as bebidas em geral são regidas pela Lei nº 8.918, de 14 de julho de 1994, regulamentada pelo Decreto nº 6.871, de 4 de junho de 2009. Por fim, a Lei nº 13.648, de 11 de abril de 2018, dispõe sobre a produção de polpa e suco de

A norma interna Departamento de Produtos de Origem Vegetal – DIPOV/Secretaria de Defesa Agropecuária - SDA nº 01, de 24 de janeiro de 2019, aprova a consolidação das normas de bebidas, fermentados acéticos, vinhos e derivados da uva e do vinho, nacionais e importados a ser utilizadas pela inspeção e fiscalização agropecuária e pelos administrados, na forma do Anexo desta norma. bem como estabelece os Parâmetros Analíticos Exigíveis em função do Laudo/Certificado a ser emitido e da finalidade da análise (ANEXO À NORMA INTERNA DIPOV Nº01/2019, 2019). Nesse mesmo sentido, o MAPA publicou a Portaria n° 319, de 23 de setembro de 2020, que divulga listagem completa dos atos normativos inferiores a decreto vigentes, que disciplinam as atividades de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e sua entidade vinculada. 189 Os diferentes entendimentos do poder judiciário a respeito do tema criam essa celeuma que ainda não foi objeto de apreciação jurisdicional, conforme descreve toda essa problemática a Auditora Fiscal Federal Agropecuária – AFFA, Andréia de Oliveira Gerk em artigo escrito para ABRACERVA (GERK, 2020, on-line).

303 frutas artesanais em estabelecimento familiar rural. Essa lei é regulamenta pelo Decreto nº 10.026, de 25 de setembro de 2019. Essas leis e decretos fornecem os dispositivos gerais das atividades relacionadas à produção e comercialização de bebidas, como controle, inspeção, fiscalização, padronização, classificação, análise de fiscalização, análise de controle e pericial e registro de estabelecimento e produto. Outros aspectos relacionados às bebidas, como a rotulagem190, também são regidos por leis específicas. Os responsáveis pelos serviços de inspeção vegetal são as Superintendências Federais de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SFA) nas unidades da Federação. Na hierarquia, as unidades federativas devem seguir as diretrizes da Coordenação Geral de Vinhos e Bebidas (CGVB), que integra o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal (DIPOV), da Secretaria de Defesa Agropecuária (das), do MAPA. Dentro desse espectro legislativo, a cerveja é regida pela Lei 8.918/1994 e pelo Decreto 6.871/2009. Nas classificações existentes no referido decreto, a cerveja é considerada como bebida alcoólica fermentada (Figura 75).

190 Assuntos como produtos orgânicos, em relação ao glúten, transgênicos etc. (MAPA, 2020a, on-line). 304

Figura 75 - Classificação das bebidas conforme o Decreto 6.871/2009

Fonte: GERK, 2020, on-line.

305

No Decreto 6.871/2009, a cerveja é definida pelo art. 36º como “a bebida resultante da fermentação, a partir da levedura cervejeira, do mosto de cevada malteada ou de extrato de malte, submetido previamente a um processo de cocção adicionado de lúpulo ou extrato de lúpulo, hipótese em que uma parte da cevada malteada ou do extrato de malte poderá ser substituída parcialmente por adjunto cervejeiro” (BRASIL, 2009, on-line191). O decreto aponta ainda que aditivos e a utilização de adjuntos cervejeiros serão regulamentados em atos específicos. Os aditivos são regulamentados pela ANVISA e os adjuntos, pelo MAPA. Com relação aos adjuntos, o decreto refere-se ao Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) da cerveja, disposto pela Instrução Normativa (IN) nº 54, de 5 de novembro de 2001 (MAPA, 2001), que adota o Regulamento Técnico MERCOSUL de Produtos de Cervejaria. Nela estão dispostos os parâmetros referentes à proporção de matéria-prima, ao extrato primitivo, ao grau alcoólico, à cor e a outros ingredientes. O novo PIQ da cerveja foi publicado pela IN nº 65, de 10 de dezembro de 2019, porém as suas mudanças ainda não entraram em vigor192. Dessa forma, a definição de cerveja fica na esfera legal de decreto e o PIQ da cerveja na esfera infralegal da IN. Outros atos normativos importantes relativos à cerveja193 são as Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) da ANVISA, que dispõem sobre a permissão de aditivos alimentares e

191 É importante destacar que essa redação foi dada pelo Decreto 9.902, de 8 de julho de 2019 que alterou o Decreto 6.871/2009. Naquela época, ocorreu um erro de interpretação do grande público que acreditou que os parâmetros da bebida haviam sido alterados, principalmente aquele que limita a proporção de malte de cevada e adjuntos, limitando a utilização deste último em 45% na produção de cerveja. Contudo, mesmo o Decreto 9.902/2019 revogando o padrão da cerveja do Decreto 6.871/2009, a Instrução Normativa - IN nº 54/2001, que define esses limites, este continua em vigor e não há interesse em diminuir o atual limite para o uso de adjuntos cervejeiros. A alteração foi realizada para retirar do decreto o Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) da cerveja de norma legal (o decreto), para norma infralegal (IN), possibilitando maior flexibilidade na adequação das normas, de modo a acompanhar a velocidade das mudanças do mercado e do consumo de cerveja. Foi neste sentido que a IN nº 65/2019 estabeleceu o novo PIQ da cerveja, mantendo o limite de utilização de adjuntos em 45% e alterando outros aspectos, como a possibilidade de utilização de produtos de origem animal na formulação de cerveja. Antes, a denominação deveria ser bebida alcoólica mista. Notícias como “Governo retira de decreto limites para uso de milho e outros cereais na produção de cervejas” tiveram que ser corrigidas. Nesse caso, o portal lançou a seguinte nota: “Correção: ao ser publicada, a reportagem errou ao informar que o governo retirou limites para uso de milho e outros cereais na produção de cervejas. A informação foi corrigida às 16h41” (G1, 2019, on-line). 192 “A Cerveja produzida ou fabricada até o dia 10/12/2020, ou seja, até 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias posteriores à data de publicação da IN MAPA 65/2019, poderá atender, a critério do produtor ou fabricante, aos Padrões de Identidade e Qualidade estabelecidos pela IN MAPA 54/2001 (Padrões constantes neste documento anterior a este padrão), podendo ser comercializada até o fim de seu prazo de validade (IN MAPA 65/2019, art. 34, caput e parágrafo único) ou deverá atender aos Padrões de Identidade e Qualidade estabelecidos pela IN MAPA 65/2019” (ANEXO À NORMA INTERNA DIPOV/SDA n°01/2019, 2019, p. 214). 193 De maneira geral e indireta, sobre a cerveja, temos dentro do MAPA os regulamentos: IN nº 81, de 19 de dezembro de 2018, que trata sobre os resíduos das indústrias para alimentação animal; IN nº 75, de 31 de dezembro de 2019, que estabelece os parâmetros analíticos que devem ser utilizados para fiscalização e controle de bebidas; IN nº 72, de 16 de novembro de 2018, sobre normas de registro de estabelecimento e produto; e a IN nº 67, de 5 de novembro de 2018, que trata sobre os procedimentos de exportação de importação de bebidas. 306 coadjuvantes de tecnologia para cerveja, a Resolução RDC nº 65, de 29 de novembro de 2011 e a Resolução RDC nº 64, de 29 de novembro de 2011, respectivamente. Como podemos notar, a produção de cerveja está muito bem regulada no Brasil e apresenta ambiente jurídico seguro para atuação dos agentes econômicos. Contudo, como já alertamos, a dinâmica do setor não se faz apenas pelas normas, mas também pelas relações de poder que existem no ambiente organizacional da produção. Assim, passaremos para compreensão da dinâmica de poder do setor cervejeiro no Brasil, aplicando os conceitos e abordagens desenvolvidos sobre governança e desenvolvimento no território.

6.3.2 Governança, território e desenvolvimento no setor cervejeiro brasileiro

A representação dos interesses do setor cervejeiro junto ao governo é tão antiga quanto sua atividade. No período imperial, a política fiscal se voltava mais para relação de produtos importados e, conforme as manufaturas foram se desenvolvendo no país, houve uma pressão para taxação dos produtos estrangeiros. Já no período republicano, as importações foram fortemente taxadas e a produção local prosperou com maior ímpeto. Nesse cenário, a concorrência entre os produtos locais se acirrou. No caso da cerveja, a grande competição era entre as cervejas de alta fermentação e de baixa fermentação. A bebidas entraram no rol dos produtos taxados somente em 1896 com uma alíquota diferenciada. Entre 1896 e 1932 Marques (2014), avaliou que as cervejas de baixa fermentação pagavam 20% a mais de impostos que as de alta fermentação. Possivelmente, essa diferenciação do imposto se deve à estrutura de cada tipo de cerveja. Como já afirmamos, a cerveja de baixa fermentação necessita de grandes investimentos para o sistema produtivo resfriado, o que não existe na cerveja de alta fermentação. Essa barreira de entrada era um marco na divisão do setor na época. As indústrias de baixa fermentação eram maiores, empregavam muitos funcionários e buscavam sempre mais escala para cobrir os grandes custos e aumentar seus lucros. Já as cervejarias que produziam cervejas de alta fermentação, geralmente, eram familiares ou empregavam poucos funcionários e distribuíam a bebida nos bairros onde estavam localizadas, quando não tinham uma venda junto da fábrica para comercializar sua produção. Essa diferenciação mostra que o governo entendia sobre o produto, preservando as pequenas cervejarias e mantendo sua competitividade e permanência no mercado, já que, sem essa diferenciação de taxas, a concorrência eliminaria as cervejas de alta fermentação, como

307 realmente ocorreu e como veremos a seguir. Outro ponto fundamental para diferenciação entre os impostos era o volume de venda. Como a cerveja de baixa fermentação das grandes cervejarias tinha um volume de produção muito maior que as de alta fermentação, o imposto sobre ela era maior (MARQUES, 2014). O imposto sobre a cerveja de 1896 não fazia diferenciação entre o tipo de levedura utilizada na fermentação, o que passou a ocorrer apenas a partir da norma de 1899, com a diferença de $ 60 Mil Réis (Rs) para cerveja de alta fermentação e $ 75 Rs para cerveja de baixa fermentação. A partir desse momento, a já ferrenha disputa entre as cervejarias de alta e baixa fermentação aumentou ainda mais e as grandes cervejarias de baixa fermentação adotaram diversas medidas para combater a incômoda concorrência das fábricas de alta fermentação. “Umas delas foi pressionar o Legislativo e Executivo, para garantir tratamento diferenciado no Imposto de Consumo, justificado pela suposta melhor qualidade de seus produtos” (MARQUES, 2014, p. 99). Esse cenário começa a esboçar as relações de poder dentro da cadeia de cerveja, sendo possível verificar a formação dos blocos socioterritoriais e das redes de poder socioterritoriais (DALLABRIDA; BECKER, 2003). Os líderes das grandes cervejarias se articularam territorialmente para estabelecer um estado, sempre provisório, de concertação público-privada para direcionar política e ideologicamente o processo de desenvolvimento. Nesse contexto, foram diversos os momentos em que o setor cervejeiro, de forma individual, por meio de cervejarias, ou de forma coletiva, com grupos de empresas, se dirigiu aos formuladores de política pública. Esse movimento muito se dava pelo peso da indústria de bebidas (32,5%), sobretudo da cerveja, na arrecadação do imposto sobre consumo no país. Sobre a influência do setor cervejeiro na decisão do governo, Marques (2014) aponta as investidas do setor nos períodos de revisão das leis orçamentárias (ações foram feitas nas leis de 1916, 1919, 1922, 1924), por ação intermediada pelo Centro Industrial do Brasil (CIB)194, por visitas aos relatores das normas no congresso, documentos enviados à parlamentares etc. Os argumentos da indústria da cerveja, sobretudo das grandes cervejarias de baixa fermentação, se baseavam em três pontos principais: a defesa da indústria nacional, seu peso na economia e benefícios à sociedade; as propriedades de saudabilidade que a cerveja tinha em

194 Entidade fundada no Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1904, a partir da fusão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) e do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão. Em 12 de dezembro de 1931, transformou-se na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJ) e, em 29 de agosto de 1939, adotou o nome Centro Industrial do Rio de Janeiro (CIRJ). Constituído com o objetivo de promover o desenvolvimento e a prosperidade dos diversos ramos da indústria nacional, o CIB propunha-se divulgar projetos e leis em discussão no país que dissessem respeito à indústria (URBINATI; LAMARÃO, s. d., on-line). 308 relação a outras bebidas; e a ideia de que a cerveja de baixa fermentação era de melhor qualidade que a de alta fermentação. Os trechos a seguir, extraídos de Marques (2014) e dos documentos e falas citadas pela autora, traduzem os argumentos do setor de cerveja.

A comissão [da câmara dos deputados] recebeu numerosos memoriais e sugestões de associações empresariais e de indústrias individualmente. Redigir memoriais e entrega-los pessoalmente aos relatores das matérias era uma das formas de os empresários pressionarem os parlamentares em favor de seus interesses. Um desses documentos partiu da direção da Antárctica Paulista, datado de julho de 1920. Outro memorial, datado de 29 de maio, assinado pela Cia Hanseática e pela Cervejaria Polônia, ambas do Rio de Janeiro, seguia basicamente a mesma linha de argumentação da Antárctica, mas concluía com uma frase de efeito: “Indústria nacional é garantia de independência da Nação!” (MARQUES, 2014, p.107).

Mantendo e custeando na capital paulista [...] pontos de diversão, contribui ela para que a população encontre ao seu alcance, nesses locais de reunião e descanso, bebidas puras e sadias, ou sem álcool, ou de baixa cotação alcoólica, em vez de se envenenar com conhaques, aguardentes e álcoois fortes e impuros (MARQUES, 2014, p. 109).

A cerveja, quando deixar de ser a bebida popular por excelência, perderá o seu grande mercado em favor de bebidas outras de menor preço. Sem pretender desmerecer outras bebidas, podemos, contudo, afirmar que poucas são as que têm as propriedades nutritivas, saudáveis e estimulantes que as boas cervejas oferecem (MARQUES, 2014, p. 124).

Apesar do esforço empregado por alguns industriais de São Paulo, no sentido de elevá-la [a cerveja] o mais possível, fabricando produtos perfeitamente comparáveis às melhores marcas estrangeiras, ela continua grandemente sacrificada, não compensando os capitais nela empregados, ora lutando contra a concorrência desleal de inúmeras pequenas fábricas que produzem artigos de inferior qualidade, e mesmo nocivos à saúde, podendo assim vende-los a preços muito baixos, ora prejudicando por alguns produtos estrangeiros que, devido a certas disposições das tarifas aduaneiras conseguem fazer tenaz concorrência, conforme a seguir demonstramos (MARQUES, 2014, p. 116)

Marques (2014) aponta que essa última passagem expõe em sua plenitude a opinião das grandes cervejarias em relação às pequenas fábricas de cerveja. Um dos resultados dessa pressão das cervejarias de baixa pressão foi o Decreto nº 14.648, de 12 de janeiro de 1921, que proibiu a venda de cerveja a varejo em espaço conjugado ao da fábrica. Essa regra teria a função de impedir a sonegação de imposto, uma vez que não era necessário engarrafar e distribuir. Contudo, como destaca Marques (2014), há indícios que as cervejarias menores alteravam sua estrutura para não caracterizar a continuidade entre fábrica e salão de vendas, como é o caso da Fábrica de Cerveja União e Ultramarina, localizada na Rua Senador Eusébio, Bairro da Lapa.

309

Uma fotografia195 da época, publicada no Álbum da Colônia Portuguesa de 1929, mas mostra a separação entre as unidades do estabelecimento. Nesse período, os produtores de cervejas de alta fermentação se organizaram para defender seus interesses. Na cidade do Rio de Janeiro, essas fábricas estavam concentradas no centro, onde se situavam as áreas de lazer, como cafés, teatros, cassinos e cabarés. O comando das empresas era de predominância de imigrantes portugueses, que representavam 64,7% das fábricas levantadas no censo de 1920. Ainda em 1909, ocorreu a organização de 27 cervejarias de alta fermentação para combinar preços de vendas. Já em 1921, a Associação dos Cervejeiros de Alta Fermentação do Rio de Janeiro mostrava sua atuação, sendo caracterizada mais como uma entidade mais lobista do que como cartel. A associação enviou requerimento às autoridades fiscais, solicitando alterações na sistemática de arrecadação do imposto do selo. Em 1927, existia o Centro de Cervejeiros de Alta Fermentação, que participou de uma reunião com os empresários no centro dos proprietários de Hotéis do Rio de Janeiro para articular uma resposta ao governo do Distrito Federal, sobre a medida comunicada de redução do horário de funcionamento do comércio local. Contudo, o poder das pequenas cervejarias em influenciar as decisões políticas era limitado e proporcional ao seu tamanho (MARQUES, 2014). Um dos principais pontos de rivalidade entre os produtores de cerveja de alta e baixa fermentação era a propaganda de suas instalações e produtos e sua relação com o público consumidor. Se, por um lado, as pequenas cervejarias estavam associadas à massa trabalhadora, a qual frequentava os salões de venda junto das cervejarias, onde havia comida, música, jogos e, é claro, cerveja, por outro lado, grandes cervejarias estavam sempre tentando deteriorar a imagem das cervejas barbantes, transmitindo a imagem de que eram produzidas em locais sujos, impróprios e gerando cervejas de baixa qualidade (MARQUES, 2014). Um caso emblemático dessa oposição foi o da cervejaria Santa Maria, localizada na rua da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, e que vendia sua cerveja no salão de vendas junto a sua fábrica. Em 14 de maio de 1912, o jornal Gazeta de Notícias divulgou reportagem denunciando as péssimas condições de higiene do local sob o título “A fábrica de cerveja Santa Maria: horrorosa imundice; nos domínios das ratazanas”. No dia seguinte, 15 de maio de 1912, o jornal do Comércio saiu em defesa da cervejaria ressaltando seu meio século de existência, a benevolência de seus “fregueses modestos” e caracterizando o salão como um local para convívio de família para o lazer e com rigorosas condições de higiene na produção e matéria-

195 Não reproduzimos a imagem nesta tese, devido à sua baixa definição. 310 prima. No dia 16, o jornal Correio da Manhã também veio a público defender a cervejaria, descrevendo a ação do jornal Gazeta de Notícias como “uma acusação injusta” e relatando a visita de um médico sanitarista ao local, reafirmando a qualidade da fábrica e de seus produtos (MARQUES, 2014). Por fim, no dia 17 de maio de 1912, novamente o jornal Gazeta de Notícias destacou a operação da polícia que proibiu a prática de jogos no salão de vendas, reafirmando a necessidade de se cassar a licença de funcionamento da cervejaria Santa Maria. Porém, na mesma notícia deixou claro que aquele posicionamento não tinha ligação com o interesse das grandes cervejarias. Esse episódio reflete a disputa entre as grandes e pequenas cervejarias e, a esse respeito, Marques (2014, p. 134) expõe algumas conclusões a partir da perspectiva histórica:

Examinando-se a posição defendida pelo Gazeta no episódio da Santa Maria à luz da perspectiva histórica, encontramos dois subtextos importantes: primeiro, o peso dos imigrantes portugueses no proletariado carioca e, segundo a força do discurso de repulsa às formas de lazer acessíveis ao povo. Não há evidências que comprove, alguma ligação entre a Brahma e o jornal, mas notoriamente, ambos depreciavam o produto e as práticas comerciais das cervejarias de alta fermentação. Encontramos eco do caso Santa Maria nos relatórios da Direção da Brahma ao Conselho Fiscal. Ao avaliar o desempenho da empresa no ano comercial de 1º de julho de 1911 a 30 de junho de 1912, a Direção da Brahma reafirmou aos acionistas o discurso sobre a excelência dos critérios de produção de sua cerveja, em detrimento dos concorrentes.

Evidentemente, a disputa entre as cervejarias de alta e baixa fermentação vai além do produto e afeta o cotidiano do local. Assim, podemos verificar que as relações de poder da cadeia, ou seja, a governança da cerveja é a disputa pelo consumidor, pelos espaços de comercialização e pelas unidades produtoras, com intenso processo de fusão aquisição, como já vimos. Dessa forma, considerando a abordagem teórica levantada por Pires et al. (2011a), na cidade do Rio de Janeiro, configurou-se um TC por meio da disputa da regulação, do controle e da tentativa de excluir determinados atores do mercado de produção, comercialização e consumo da cerveja. Nesse caso, os conflitos – e não a cooperação – constituíram a forma de manifestação de poder das cervejarias, que guiaram o desenvolvimento do setor e também do território. Avançando um pouco no tempo, entramos na década de 1930, com mudanças significativas nas relações de poder entre o governo e o empresariado. O trabalho de Fonseca Filho (1998) mostrou como o setor cervejeiro estruturou sua representação política, por meio da trajetória do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (SINDICERV) no debate nas arenas 311 decisórias do governo, observando as mudanças econômicas e políticas do país, além do grande desenvolvimento do setor nesse período, verificando como a classe industrial se organizou para influenciar nas decisões do governo. Entre 1920 e 1940, o país viveu a guinada do centro econômico do setor agrícola para o industrial. Além disso, tivemos a consolidação das leis trabalhista e a formação do sistema corporativista, que aproximou governo e empresariado, fortalecendo a comunicação entre esses atores. Nesse período, as lideranças do setor, Brahma e Antarctica, observando o contexto de crescimento das greves e de acesso à burocracia estatal, criaram o Sindicato Nacional da Indústria Cervejeira (SINDICERV), que atua até os dias correntes (FONSECA FILHO, 2008). Para ampliar a compreensão da dinâmica de poder do setor cervejeiro no Brasil, é interessante notar que o primeiro nome do SINDICERV foi Sindicato da Indústria da Cerveja de Baixa Fermentação do Rio de Janeiro, fundado em 1º de outubro de 1940 pela Brahma e pela Antarctica. Somente em 1948, o nome atual foi adotado para operação em todo o território nacional, uma vez que a cervejarias fundadoras expandiram sua produção para alcance nacional. Como já salientamos, a disputa entre as grandes e pequenas cervejarias ocorre desde o início da implementação da tecnologia de resfriamento, que possibilitou o desenvolvimento da indústria cervejeira de baixa fermentação. A aliança entre os produtores para defesa de seus interesses dominou as relações de poder na cadeia cervejeira até o triunfo das cervejas de baixa fermentação e quase desaparecimento das cervejas de alta fermentação, fenômeno que ocorreu em quase todos os países de tradição cervejeira, tendo como exceção a Alemanha. Contudo, antes de avançarmos para a década de 1930, para compreender a estruturação de representação de poder das cervejarias, sobretudo das grandes, é importante descrever, mesmo que forma rápida, o que seria o embrião do SINDICERV, a Federação das Cervejarias do início do século XX. Em 19 de dezembro de 1901, se reuniram na cidade de São Paulo os dirigentes das maiores cervejarias do país, com o objetivo unir todas as empresas em uma e dominar por completo o mercado de cerveja no país. Estavam nesse encontro a Antarctica e Bavária da capital paulista e Brahma e Teutônia do estado da Guanabara. A ausência da Cervejaria Ritter de Porto Alegre já dava o tom da dificuldade dessa operação. O projeto previa racionalizar custos de produção, a redução de custos de propaganda e a centralização administrativa. Todavia, a ideia central era a eliminação da concorrência das cervejarias de alta fermentação e a expansão da comercialização para todos os cantos do país, onde se ainda encontravam produtos ingleses e alemães, sobretudo no Norte, região que contava

312 com apenas uma produtora nacional, a Cervejaria Paraense, produtora da marca Cerpa (MARQUES, 2014). O plano era lançar ações no mercado para comprar as fábricas e unificá-las. Caso essa ação fosse concretizada, a Antarctica ficaria com 37,6% do capital, a Brahma com 25,8%, a Bavária com 22,58% e a Teutônia com 13,9%. Nessa conformação, a Antarctica compraria primeiro a Bavária, depois a Teutônia e por último a Brahma. Entretanto, a oferta de ações não teve o retorno esperado, de modo que, em 1902, o plano audacioso passou para criação da Federação das Cervejarias e uma simples combinação de preços e praças de mercado. Na combinação de preços, a divisão era feita por meio das qualidades de cerveja196, sendo as de primeira qualidade (Porter, Bock e München) vendidas por $ 410 o litro, as de segunda qualidade $ 330 o litro e a de terceira qualidade por aproximadamente $ 250 o litro. Com relação à distribuição das praças de mercado, a Brahma ficou com o interior fluminense e o interior mineiro, além das regiões da Estrada de Ferro Central do Brasil, enquanto a Antarctica e a Bavária ficaram com a capital e o interior de São Paulo (MARQUES, 2014). Como podemos notar, a concertação caminhou mais para o acordo do que para o conflito, dividindo o espaço para equilibrar a concorrência. Nesse caso, podemos falar na criação dos TC das grandes cervejarias dispostas no plano econômico para desenvolvimento e controle dos territórios descritos, os TCP, como salientamos em seções anteriores. O acordo da Federação das Cervejarias consistiu em um pacto socioterritorial – adotando a terminologia utilizada por Dallabrida e Becker (2003) – e uma governança privada na tipologia de governança territorial (Tabela 9), na qual grandes empresas dominam e dividem o território para sua atuação. A Federação das Cervejarias de 1901 foi o ponto de partida da criação do SINDICERV em 1940 e da Ambev em 1999. A articulação das grandes cervejarias e sua disputa com as pequenas se intensificou nas décadas de 1920, 1930 e 1940, com importantes mudanças na estrutura do país e do setor de cerveja. Dessa forma, a diferenciação entre a produção de cervejas de baixa e alta fermentação vai além do tipo de levedura utilizado, refletindo na disputa de poder no setor, ou seja, está relacionada à governança na cadeia da cerveja no Brasil.

196 “A classificação por qualidade refletia o teor de matéria-prima contida no produto final. Como a principal matéria-prima necessária para se fabricar cerveja é o malte, uma cerveja dita de primeira qualidade correspondia a uma bebida com a maior proporção de malte por centímetro cúbico (gramas de extrato de malte por 100 cm³). Outra relação importante é que, quando maior o teor de malte, maior o teor alcoólico da bebida. As cervejas de primeira qualidade continham o mínimo de 5,6% de extrato de malte por centímetro cúbico; as de segunda qualidade apresentavam entre 3% e 5,5% de teor de extrato; enquanto de terceira qualidade, de consumo popular, continham até 2,9% de extrato. Essas características, evidentemente, afetavam os preços finais da cerveja ao consumidor por refletirem o teor de matéria-prima importada presente na bebida” (MARQUES, 2014, p.84). 313

A diferenciação entre a tributação das cervejas de alta e baixa fermentação é um indicativo das relações de poder na cadeia cervejeira. O Decreto nº 17.464, de 6 de outubro de 1926, que aprova o regulamento para a arrecadação e fiscalização do imposto de consumo no Brasil, inicia o maior detalhamento da taxação de cervejas com a diferença entre os vasilhames, a saber: por meia garrafa, por meio litro, por garrafa, por litro. A diferença de imposto cobrado entre as cervejas de alta e baixa fermentação era, em média, entre os vasilhames, $37,5 Mil Réis (Rs), quase 25% mais barato para as cervejas de alta fermentação segundo a norma de 1926. Já com o Decreto-lei nº 301, de 24 de fevereiro de 1938, que aprovou o regulamento para a arrecadação e fiscalização do imposto de consumo, a diferença aumentou, passando de 111 Rs, de modo que a cerveja de alta fermentação era 42% mais barata que a de baixa fermentação. No mesmo ano, a atualização da norma tributária trouxe uma inovação em termos de classificação de bebidas, por meio do Decreto-lei nº 739, de 24 de setembro de 1938. De acordo com esse diploma legal, a diferenciação não foi apenas entre alta e baixa fermentação. A alínea XIV do parágrafo 2º do artigo 4º da norma traz o seguinte:

1º fabricada sem resfriamento artificial para a fermentação, quer nos depósitos (tinas, tonéis ou tanques), quer nos vasilhames em que ficar engarrafada, aguardando completa maturação, não filtrada e não adicionada de gás carbônico: 2º fabricada pelo processo de resfriamento artificial, filtrada e pasteurizada, com graduação alcoólica até 3,2%: 3º fabricada pelo processo de resfriamento artificial, filtrada e pasteurizada, com graduação alcoólica superior a 3,2% (BRASIL, 1938b, on-line).

Certamente, a equipe que atualizou a norma em 1938 conhecia ou consultou conhecedores da bebida, para colocar definições dessa natureza técnica. A descrição do sistema de resfriamento artificial, dos locais de produção (tinas, tonéis ou tanques), dos vasilhames, o processo de maturação, filtração, pasteurização, grau alcoólico e gás carbônico adicionado mostram profundo conhecimento produtivo para época, se levarmos em conta que se trata de uma norma de tributação. Então, podemos inferir que as associações de cervejarias influenciaram na produção da norma. Nesse caso, é possível que as grandes cervejarias tenham exercido alguma influência na diferenciação da tributação das cervejas de terceira qualidade, aquelas de maior volume de venda, com menos malte e menor teor alcoólico, se enquadrando, portanto, em uma tributação menor. A primeira classificação, que seria equivalente a alta fermentação, ressalta a não utilização do sistema de frio e outros aspectos produtivos, tais como “aguardando completa 314 maturação, não filtrada e não adicionada de gás carbônico” (BRASIL, 1938b, on-line). Essa preocupação mostra a atenção em preservar a produção artesanal da bebida, como mínimo de interferência humana. Assim, taxar menos a cerveja artesanal da época, era também uma forma de preservar esse processo produtivo e respeitar as diferentes influências e saberes depositados no fazer cervejeiro da época, muito ligado à tradição dos imigrantes europeus. Podemos inferir também que as associações das cervejarias de alta fermentação podem ter influenciado na norma, mostrando as diferenças do processo produtivo. Outro ponto de destaque é em relação a graduação alcoólica, segundo a qual as cervejas com menos álcool são taxadas com impostos menores. Essa foi a forma de posicionar melhor a tributação que sofreu grande avanço entre a norma de 1926 e a primeira de 1938. As cervejas de alta fermentação sofreram aumento de 75% em média, enquanto as de baixa tiveram 100% de aumento. Como a tributação da norma de 1926, havia uma diferença de 25% entre alta e baixa fermentação, enquanto com a primeira norma de 1938, essa diferença era de 42%. A segunda norma de 1938 criou as três categorias citadas para melhor posicionar essa diferença, ou seja, entre a primeira categoria “1º fabricada sem resfriamento artificial para a fermentação” e a segunda “2º fabricada pelo processo de resfriamento artificial [...] com graduação alcoólica inferior a 3,2%”, a diferença ficou em 25%, como na norma de 1926. Já a diferença entre a primeira categoria e a terceira “3º fabricada pelo processo de resfriamento artificial [...] com graduação alcoólica superior a 3,2%” ficou, como na primeira norma de 1938, em 42% (BRASIL, 1938b, on-line). Acreditamos que a segunda norma de 1938 contou com apoio técnico cervejeiro para equilibrar as formas de tributação não favorecendo muito uma ou outra categoria de cerveja e preservando as pequenas cervejarias, de modo a manter sua competitividade e permanência no mercado. Porém, esse avanço normativo técnico e tributário foi derrubado pela norma do Decreto-lei nº 7.219, de 30 de dezembro de 1944, que dispõe sobre o Imposto de Consumo. A nova norma restabeleceu a diferença básica entre alta e baixa fermentação, dessa vez incluindo junto dessa última classificação o “chopp”197. A alteração da norma aconteceu apenas quatro anos após a fundação do Sindicato da Indústria da Cerveja de Baixa Fermentação do Rio de Janeiro. Embora não seja possível estabelecer uma associação direta entre os fatos, podemos afirmar e que a indústria da cerveja, devido ao contato entre seus líderes e o governo, certamente

197 Conforme parágrafo 2º do art. 2º da Instrução Normativa nº 65, de 10 de dezembro de 2019, “A expressão “chopp” ou “chope” e permitida apenas para a cerveja que não seja submetida a processo de pasteurização, tampouco a outros tratamentos térmicos similares ou equivalentes.” 315 foi ouvida nesse processo de alteração. Para se ter uma ideia da proximidade da elite cervejeira com o governo, Fonseca Filho (1998) aponta a ligação dos presidentes das empresas com os presidentes do Brasil a época:

Walter Belian e a família Bülow tinham relações estreitas com a máquina estatal. Adam Bülow fora cônsul da Dinamarca em São Paulo e tinha acesso direto ao próprio Getúlio Vargas. Walter Belian, bem relacionado socialmente, também contava com a prerrogativa de acesso ao mais alto escalão da burocracia estatal, incluindo o presidente Juscelino Kubitschek [...] A Cia Antarctica, sediada em São Paulo, já dispunha de um escritório de representação política no DF, através do qual articulava para que suas reivindicações fossem ouvidas. Do mesmo modelo, a Brahma, sediada na própria capital, também exercia atividades de representação política junto ao executivo (FONSECA FILHO, 1998, p. 30).

A criação do sistema corporativista por Getúlio Vargas trouxe para a perto do governo a elite industrial em um momento de guinada da economia brasileira da agricultura para a indústria. No ano seguinte, a atualização normativa veio por meio do Decreto-lei nº 7.404, de 22 de março de 1945, que também dispõe sobre o imposto de consumo, porém sem alterações no que tange ao setor cervejeiro, mostrando que o lobby cervejeiro conseguiu que não houvesse aumento de imposto sobre o produto. Por fim, em 1948, quando o Sindicato da Indústria da Cerveja de Baixa Fermentação do Rio de Janeiro passou a atuar em âmbito nacional, tendo seu nome alterado para SINDICERV, foi autorizada a Lei nº 494, de 26 de novembro de 1948, que altera a lei do imposto sobre consumo, extinguindo a diferenciação entre o imposto das cervejas pela utilização de tipos diferentes de leveduras, eliminando a diferença de tributação entre as cervejas de alta e de baixa fermentação. Na sexta alteração que a lei propõe são substituídas as diferenciações, trazendo a expressão “cerveja: a) de alta fermentação ou baixa fermentação e ‘chopp’” (BRASIL, 1948, on-line). Assim, sem a proteção tributária para com as cervejas de alta fermentação, as vantagens competitivas da cerveja de baixa fermentação se mostram insuperáveis e a concorrência vai aos poucos eliminando os produtores de alta fermentação. A Tabela 37, a seguir, mostra a evolução da tributação e da diferenciação entre os tipos de cerveja.

Tabela 37 - Evolução da tributação conforme tipo de fermentação e vasilhame (1896-1948). Rs: Mil Réis (1833-1942); Cr$: Cruzeiro (1942-1964); AF: Alta Fermentação; BF: Baixa Fermentação; ABV: Alcohol by Volume. 316

Tipo de Vasilhame Tipo de Ano Fermentação por meia por meio por 1/5 litro por garrafa por litro garrafa litro 1896 AF - - - - $60 (Rs) BF - - - - $60 1899 AF - - - - $60 (Rs) BF - - - - $75 1914 AF - - - - $80 (Rs) BF - - - - $90 1917 AF - - - - $150 (Rs) BF - - - - $180 1918 AF - - - - $180 (Rs) BF - - - - $240 1922 AF - - - - $240 (Rs) BF - - - - $300 1926 AF - $080 $120 $160 $240 (Rs) BF - $100 $150 $200 $300 1938a AF - $140 $210 $286 $420 (Rs) BF - $200 $300 $400 $600 AF - $140 $210 $286 $420 1938b (Rs) BF >3,2% ABV - $180 $270 $360 $540 BF >3,2% ABV - $200 $300 $400 $600 1944 AF - 0,2 0,3 0,4 0,6 (Cr$) BF e Chopp - 0,36 0,54 0,72 1,08 1945 AF - 0,2 0,3 0,4 0,6 (Cr$) BF e Chopp - 0,36 0,54 0,72 1,08 1948 AF, BF e Chopp 0,24 0,4 0,6 0,8 1,2 (Cr$) Fonte: Elaboração própria a partir de MARQUES, 2014; BRASIL, 1926, 1938a, 1938b, 1944, 1945, 1948.

Como podemos notar, as datas das alterações normativas e da estruturação do lobby cervejeiro indicam influência da elite industrial da cerveja nas decisões do governo. É interessante verificar como esses processos impactam na dinâmica de poder do setor. Köb (2000) aponta que, em 1920, a produção de cerveja de alta fermentação superou a produção de cervejas de baixa fermentação, tendo esta última uma forte queda em relação ao ano anterior (de 600.000 hectolitros para menos de 400.000 hectolitros). Já a cerveja de alta fermentação saltou de 200.000 hectolitros, em 1919, para mais de 400.000 hectolitros, em 1920. Após essa oscilação, a cerveja de baixa fermentação teve uma trajetória de alta, atingindo 1.000.000 de hectolitros em 1925, enquanto a cerveja de alta fermentação ficou estagnada na casa dos 400.000 hectolitros. Portanto, podemos perceber que, além da ascensão da produção da cerveja de baixa fermentação, o lobby foi ferramenta importante para sedimentar essa posição e eliminar a enorme concorrência.

317

Assim, a atividade cervejeira mudou após a alteração tributária da lei de 1948 e a concorrência entre as cervejarias de alta e baixa fermentação ficou favorável para as grandes cervejarias de baixa fermentação, devido ao seu tamanho, investimento e alcance, tornando a operação das pequenas cervejarias de baixa fermentação insustentável, como podemos verificar na distribuição do número de cervejarias no século XX no Brasil (Gráfico 12).

Gráfico 12 - Evolução do número de cervejarias no Brasil século XX

250

200

150

100

50

0 1907 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000

Fonte: Elaboração própria a partir de COUTINHO, s. d., on-line; IBGE, 1907, 1920, 1940, 1950, 1960, 1970 e 1980, e dados da RAIS, 1990, 2000.

O padrão ilustrado pelo gráfico também é comum em todo mundo, como podemos verificar no Gráfico 10 (Número de cervejarias entre 1930 e 2015 na Europa e EUA). Assim como aconteceu no exterior, a competição entre grandes e pequenas cervejarias levou a redução drástica das cervejarias menores (“artesanais”) no início do século XX, que ressurgiram apenas no final desse período. Aqui, cabe uma comparação anacrônica, desenvolvida por Krohn (2017): a construção da narrativa em relação à qualidade da cerveja de baixa fermentação nesse momento histórico pode ser comparada ao discurso que temos hoje em relação à cerveja artesanal, cuja qualidade seria superior à da mainstream. Retomando a discussão da norma de 1948, podemos ver que esta desferiu um duro golpe nas cervejarias de alta fermentação. Assim, a estruturação do setor se deu pelas cervejarias de baixa fermentação, como podemos verificar com a expansão de representação do SINDICERV que, após a sua primeira década de funcionamento já contava com 17 cervejarias associadas, 318 representando quase a totalidade do setor em volume de produção. Esse aumento representou maior renda e legitimação da instituição para seus pleitos (FONSECA FILHO, 2008). Após a movimentação das grandes cervejarias para alteração nas regras de tributação, a atuação do SINDICERV se justificou por quatro fatores: a) Institucionalização das negociações entre empregados e empregadores: negociação salarial acordadas entre as cervejarias na sede do SINDICERV e entre os empregados em seus sindicatos e controle das greves; b) Utilização dos canais de acesso ao Estado para representação política: o sistema corporativista possibilitou a maior atuação do sindicato para temas pontuais, como a questão tributária e sobre regulamentação da produção, sendo que o interesse das grandes cervejarias era legitimado pela reunião de diversas cervejarias na instituição; c) Criação da sede do sindicato: o local de encontro, troca de informações e negociação de comercialização seria a praça de comércio do estado de São Paulo para Antarctica e a do Rio de Janeiro para Brahma; d) Redirecionamento da contribuição sindical: por lei, a contribuição sindical era destinada à entidade de classe que representasse o setor. Então, caso não existisse o SINDCERV, as volumosas quantias seriam repassadas para sindicatos gerais de bebidas ou alimentos (FONSECA FILHO, 2008).

Durante o regime militar, intensificou-se cada vez mais a perda de centralidade do sistema corporativista, iniciada na década de 1950. A partir de então, ganharam força outras formas de comunicação com o Estado, como a comunicação própria das grandes cervejarias, Brahma e Antarctica, que enfraqueciam o SINDICERV. Outro ponto importante foi a migração dos sindicatos, amparados, centralizados e financiados por lei, para as associações, autônomas em filiação e financiamento (FONSECA FILHO, 2008). O enfraquecimento do sindicato nesse período pode ser verificado pela queda no número de filiação de novos membros. Por outro lado, o SINDICERV ganhou importância na negociação dos tabelamentos de preços, iniciando essa operação na década de 1960. O mecanismo de controle de preços para segurar a inflação mostrou-se insustentável, perdendo força no final da década de 1970. Assim, o sindicato se voltou para ações de negociação salarial e ponto de encontro (FONSECA FILHO, 2008). Naquela época, a governança na cadeia da cerveja passou a se configurar como privada coletiva de acordo com tipos de governança territorial (Tabela 9), uma vez que os atores

319 privados se organizavam e tomavam a frente do processo de estruturação dos espaços e do desenvolvimento no setor, por meio do sindicato. Paralelamente a esse processo, em 1976, por iniciativa do Ministério da Agricultura e a pedido do SINDICERV, foi criado um grupo de trabalho para formulação do Plano Nacional de Autossuficiência em Malte e Cevada (PLANACEM), lançado em 1977 (DAL RI, 1999). O plano tinha os seguintes objetivos: avanço tecnológico dos produtores, fomento à pesquisa, distribuição de sementes, garantia de compra, prêmio por qualidade e construção de maltarias e silos. Contudo, a falta de linhas de financiamento inviabilizou o plano, que foi aplicado apenas às grandes cervejarias que tinham recursos para desenvolvê-lo, abrindo maltarias no Rio Grande do Sul198 e no Paraná199. Nesse contexto, a produção de malte de cevada nacional salta de 60 mil toneladas em 1970 para 310 mil toneladas em 1990 e a atuação do SINDICERV foi fundamental para influenciar o governo em suas ações do plano (FONSECA FILHO, 2008). Fonseca Filho (2008) aponta que, no caso do PLANCEM, o poder político do SINDICERV fez a articulação necessária para que as grandes cervejarias fossem as mais beneficiadas pelo plano, aproximando os plantadores de cevadas à indústria. Então, podemos enquadrar essa articulação do plano como um pacto socioterritorial – adotando a terminologia de Dallabrida e Becker (2003) –, uma vez que houve uma concertação social em torno de um projeto de desenvolvimento territorial. Outra medida teórica é o enquadramento de uma governança Estatal-Privada (Tabela 9), na qual o Estado coordena as estratégias de desenvolvimento do setor. Com a redemocratização, a descentralização do poder estatal e o fim da política desenvolvimentista, o congresso ganhou poder no cenário político e o lobby voltou a atuar. No plano econômico, as reformas neoliberais acirraram a concorrência, intensificando os processos de fusão e aquisição, como no caso da compra da Brahma pelo Grupo Garantia200 em 1989 e a fusão com a Antarctica em 1999, formando a Ambev. Já o SINDCERV, que incluiu a Kaiser no início da década de 1990, ampliou sua atuação para o MERCOSUL e estabeleceu de modo

198 Em Porto Alegre, a Brahma criou a Maltaria Navegantes, em 1976, e reabriu a Maltaria Floresta, em 1977. Além disso, construiu silos em Passo Fundo. 199 Em sociedade com a Cooperativa Agrágria, a Antarctica criou a Maltaria Agromalte (1977/78), em Guarapuava, no distrito de Entre Rios. 200 O grupo Garantia é derivado do Banco Garantia, fundado no Rio de Janeiro pelo empresário Adolfo Campelo Gentil, que convidou Jorge Paulo Lemann na década de 1970 para ser seu sócio. Após anos de crescimento, sofreu com a crise asiática, tendo prejuízo de mais de US$100 milhões em 1998, quando foi adquirido pelo Banco de Investimentos Credit Suisse. Seguindo os caminhos, o agora GP Investimentos teve um dos sócios do banco, Marcel Herrmann Telles, presidente da Brahma na época da fusão com a Antarctica para formar a Ambev. Hoje, a empresa tem mais 30 empresas (TEIXEIRA; HESSEL; OLIVEIRA, s. d., on-line). 320 permanente o lobby do setor cervejeiro no governo, contando com corpo executivo próprio com assessoria jurídica e de impressa (FONSECA FILHO, 2008). Entre 1989 e 1992, o setor cervejeiro iniciou a “Guerra da Cerveja”, como foi chamado pelo superintendente do SINDICERV, Marcos Mesquita. Foi um período de ferrenha concorrência por mercado e por ações de marketing e publicidade, com a expansão da Schincariol e da Kaiser, acirrando a competição no mercado cervejeiro (FONSECA FILHO, 2008). Essa intensa competição gerou grande disputa por mercado, além de intensificar o movimento de fusões e aquisições (Tabela 38).

Tabela 38 - Participação de mercado e concentração das cervejarias no Brasil (1989-2019). ANT: Antarctica; BRH: Brahma; HNK: Heineken; KAI: Kaiser; BAV: Bavária; BK: Brasil Kirin; SCH: Schincariol; GP: Grupo Petrópolis.

Ano/ Ambev ANT BRH Skol HNK Molson/ BAV KAI BK SCH GP Empresa FEMSA 1989 - 40,8 37,8 12,5 - - - 7,9 - 0,2 - 1991 - 35,1 38 13,3 - - - 11,3 - 1,2 - 1993 - 31,5 35,2 15 - - - 13,6 - 3,8 - 1995 - 31,9 31,4 15,2 - - - 14,6 - 6,2 - 1997 - 20,3 24,9 23,2 - - 4,9 15,5 - 6,6 -

1999* 67,1 - - 4,0 13,8 - 8,7 1,6

2001* 68,7 - 3,3 12,1 - 10,1 3,9

2003 67,2 - 13,8 - 10,8 5,7

2005 68,2 - 10,0 - 12,6 6,2

2007* 68,4 - 8,9 - 12,2 7,8

2009 70 - 7,8 - 11,6 9,1

2011* 70,0 6,9 11,6 9,8

2013 67,9 8,4 10,8 11,3

2015 64,0 9,0 10,1 13,0

2017* 60,0 20,0 14,1

2019 59,4 21,0 15,2 *Anos de processo de fusão/aquisição, a saber: 1999 - Fusão entre Antarctica e Brahma, formando a AmBev; 2000 - a canadense Molson adquiriu a Bavária, devido à imposição do CADE para fusão da AmBev, de venda da Bavária para comprador com menos de 5% de qualquer cervejaria nacional; 2002 - Molson comprou a Kaiser; 2006 - a mexicana FEMSA comprou as ativos da Molson; 2010 - a holandesa Heineken comprou os ativos da FEMSA; 2011 - A japonesa Kirin adquiriu a Schincariol; 2017 - Heineken comprou os ativos da Brasil Kirin. Obs.: Existem muitos dados não congruentes sobre o tamanho da participação das cervejarias no mercado brasileiro de cerveja. Estes variam conforme a metodologia empregada e conforme a empresa que coordena a pesquisa, sendo as principais a Nielsen e Euromonitor. Assim, os dados aqui expostos podem diferir de outras fontes, porém estão perto da realidade do mercado cervejeiro. Fonte: FONSECA FILHO, 2008; MARCUSSO, 2011; LIMBERGER, 2013; vários sites.

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A guerra da cerveja é uma guerra de poder e faz parte governança do setor. Após a entrada da Kaiser em 1991 e a contratação de um escritório especializado nas práticas de lobby em Brasília, algumas ações se efetivaram no sindicato, como o levantamento dos projetos de lei que afetam o setor, a formulação de sugestões de atuação com os parlamentares e o levantamento do perfil desses últimos. Então, essas “mudanças tiveram impacto na forma de atuação do SINDICERV e na estrutura de poder de representação política do setor” (FONSECA FILHO, 2008). Após esse desequilíbrio, Brahma e Antarctica se mostram mais atuantes no sindicato e as tratativas de unificação das legislações sobre cerveja do bloco do MERCOSUL, criado em 1991, trouxe maior visibilidade para o SINDICERV, que passou a acompanhar o processo de perto, sendo criada a função de superintendente da entidade. A principal disputa era pelo limite mínimo de malte de cevada utilizado. No Brasil, esse limite era de 50% no mínimo201, enquanto na Argentina, o limite mínimo era de 75%. Foi criado um grupo de trabalho no qual os funcionários dos governos debatiam conforme acordado com o setor de cada país. Naquele momento, a atuação do sindicato foi importante e, no final, o acordo ficou em 55% no mínimo de utilização de malte de cevada, conforme a Resolução Grupo Mercado Comum nº 14/2001, que trata do regulamento técnico do MERCOSUL de produtos cervejeiros202. O aumento do volume de proposições nos legislativos municipais, estaduais e federais fez o SINDICERV profissionalizar sua gestão e promover atuação sistemática e contínua de lobby. A representação de poder do setor cervejeiro se alterou em 2012, quando, em 3 de maio, foi criada a Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), entidade que congregou os quatro maiores produtores de cerveja do país (Ambev, Brasil Kirin, Grupo Petrópolis e Heineken Brasil), com aproximadamente 96% do setor (CERVBRASIL, s. d.[b], on-line). A nova entidade é, também, gestada na Federação das Cervejarias, do início do século XX, e agrega o interesse das grandes cervejarias. A entidade visa a junção das maiores cervejarias do país, tendo como meta “fortalecer o segmento cervejeiro nacional, [...] contribuindo para o desenvolvimento do país, reforçando o notável impacto do setor na economia brasileira; desenvolvimento esse que se dá via recolhimento de tributos, por meio da criação de emprego e renda”. A CervBrasil ainda se propões a atuações secundárias, como “disseminação do conceito de consumo responsável,

201 Conforme item b) do inciso IV do art. 66 do decreto nº 2.314, de 4 de setembro de 1997 (BRASIL, 1997). 202 Como já vimos, no Brasil as mudanças foram interiorizadas por meio da Instrução Normativa – IN, nº 54, de 5 de novembro de 2001, que adota o Regulamento Técnico MERCOSUL de Produtos de Cervejaria e na Argentina pela Resolución Conjunta 67/2002 e 345/2002 que altera o Código Alimentar Argentino (MINISTERIO DE JUSTIÇA E DERECHOS HUMANOS, 2002). 322 apoio ao agronegócio e ações destinadas à preservação do meio ambiente” (CERVBRASIL, s. d.[b], on-line). Um movimento de destaque foi o lançamento da Anuário da entidade em 2014, reafirmando o peso do setor na economia e suas ações socioambientais. O anuário teve novas edições em 2015 e 2016, até outra importante mudança na representação de poder do setor, como veremos adiante (Figura 76).

Figura 76 - Informativo dos números do setor cervejeiro no Anuário da CervBrasil de 2016

Fonte: CERVBRASIL, 2016, on-line.

Novamente, a junção das grandes cervejarias do Brasil em uma única entidade pode ser considerada como uma rede de poder socioterritorial (DALLABRIDA; BECKER, 2003) e uma governança privada-coletiva (Tabela 9), por meio de acordo das lideranças para direcionar o processo de desenvolvimento do setor e dos territórios. Contudo, a governança territorial tem sempre uma coerência parcial e provisória que se sustenta até que os acordos consigam se manter entre os agentes envolvidos (GILLY, PECQUEUR, 1997). Então, em dezembro de 2017, Ambev e Heineken Brasil (já com os ativos adquiridos da Brasil Kirin), que representavam cerca de 80% do mercado, se desligaram da CervBrasil e se voltaram para o

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SINDICERV, devido a divergências com o Grupo Petrópolis nos temas regulatórios (CERVESIA, s. d.[b], on-line). Neste ponto da análise da governança do setor e de suas relações de poder, é importante fazer uma ponderação. Em 2016, ingressei como servidor público federal no MAPA e, devido ao tema de minha dissertação de mestrado (MARCUSSO, 2015), fui direcionado para trabalhar na área de bebidas, na CGVB. Assim, mediante o contato direto com a legislação do setor e as funções que passei a exercer no espaço de trabalho, foi possível perceber de forma mais clara as movimentações no mercado de bebidas. A partir dessa constatação, há dois pontos a serem considerados no desmanche da CervBrasil e migração da Ambev e Heineken Brasil para o SINDICERV. Um deles refere-se à situação dos créditos de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na Zona Franca de Manaus. O Polo Industrial de Manaus (PIM) atraiu os segmentos de produção de xaropes e concentrados (compostos que dão aroma e sabor aos refrigerantes) das multinacionais para, em tese, produzir com menor custo e vender para sua unidade produtoras de bebidas. No PIM, a Ambev possui a Arosuco Aromas e Sucos S.A., enquanto a Heineken Brasil herdou a Brasil Kirin Logística e Distribuição LTDA, que hoje responde por Heineken Brasil Logística e Distribuição LTDA. Entretanto, essas empresas produzem e vendem os xaropes muito acima do preço de mercado para gerar créditos de IPI. Segundo levantamento da Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (AFREBRAS), os preços médios dos produtos são de R$ 85,28 o kg, porém as empresas das multinacionais vendem a si mesmas por R$ 415,68. A alíquota de IPI dos xaropes é de 20%203, enquanto a de refrigerantes varia entre 1,56% e 4%. Assim, as grandes empresas conseguem abater seus custos tributários em toda sua cadeia produtiva, por meio dos créditos de IPI que alcançara R$ 4,1 bilhões em 2016. Somando- se esse valor aos R$ 5 bilhões de renúncia fiscal, temos um total de R$ 9,1 bilhões naquele ano entre renúncias e créditos (AFREBRAS, 2017). Essa situação gera um descompasso nas relações de poder, uma vez que o Grupo Petrópolis não possui fábrica de xarope no PIM e tem fatia pequena no ramo de refrigerantes. Por outro lado, Ambev e Heineken motivam sua saída pela questão do Compliance204, sendo

203 Em 2018, o presidente Michel Temer diminuiu a alíquota de benefício de 20% para 4%. Porém, após pressões do setor, Temer aumentou para 12%, escalonando para 8% em 2019 e 4% em 2020. Com a chegada de Bolsonaro, a taxa ficou fixa em 8% em 2019 e depois houve aumento programado para 10% (ESTADO DE MINAS, 2020, on-line). 204 “No âmbito institucional e corporativo, compliance é o conjunto de disciplinas a fim de cumprir e se fazer cumprir as normas legais e regulamentares, as políticas e as diretrizes estabelecidas para o negócio e para as atividades da instituição ou empresa, bem como evitar, detectar e tratar quaisquer desvios ou inconformidades que possam ocorrer” (WIKIPEDIA, s. d.[h], on-line). 324 aqui o segundo ponto para analisar a mudança nas estruturas de poder do setor. Em março de 2017, o Grupo Petrópolis foi acusado pelo empreiteiro Marcelo Odebrecht em depoimento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de fazer parte de um esquema de doação de R$ 30 milhões para campanha eleitorais sem que o nome da empreiteira fosse vinculado, usando a cervejaria Itaipava como “laranja” (CONGRESSO EM FOCO, 2017, on-line). O dono do Grupo Petrópolis, Walter Faria, que já foi preso em 2005 na operação Cevada por sonegar R$ 1 bilhões em impostos (GARCIA, 2005, on-line), foi novamente preso em 2019 como desdobramento das investigações de 2017 que comprovaram ser Walter Faria o operador do esquema de lavagem de dinheiro da Odebrecht e propina na Petrobras na ordem de R$ 329 milhões (EXAME, 2019, on-line). Neste contexto, as multinacionais procuraram desvincular sua imagem do Grupo Petrópolis. A esse respeito, o próprio site do SINDICERV traz uma seção sobre o tema com os seguintes dizeres: “O SINDCERV acredita que negócios devem ser realizados com responsabilidade social, ética e integridade, cumprindo integralmente e em todos os seus atos a legislação brasileira de combate à corrupção e incentivando que todos os seus associados façam o mesmo. Em breve, disponibilizaremos o nosso Código de Compliance” (SINDICERV, s. d.[b], on-line). É notório, então, que ocorreu uma cisão na representação do poder no setor cervejeiro, tendo as multinacionais de um lado no SINDICERV e o Grupo Petrópolis de outro. Este último, sob a representação da CERVBRASIL, atuou para atrair para sua entidade cervejarias menores como a Cervejaria Lund, em Ribeirão Preto - SP; a Cervejaria Krug Bier, em Nova Lima - MG; a Imperatriz Cervejaria, em Sorocaba - SP e Cerveja Bendicta, em São Paulo - SP. Nesse ponto, temos a ascensão de outra figura que há muito tempo não exerciam sua representação de poder: as pequenas cervejarias. Os últimos movimentos nesse sentido foram realizados pelas entidades de defesa da cerveja de alta fermentação, no início do século XX, como o Centro de Cervejeiros de Alta Fermentação e a Associação dos Cervejeiros de Alta Fermentação do Rio de Janeiro. Como vimos, após as mudanças normativas de 1948, que acabaram com a diferenciação entre as grandes e pequenas cervejarias pelo tipo de levedura utilizada, ocorreu a derrocada das empresas menores, que só voltaram a crescer em número de no final do século, tendo o ano de 1993 como pontapé inicial, com a abertura da Ashby em Amparo - SP e 1995 com a abertura de cervejarias referências, como a Dado Bier, em Santa Maria - RS, e a Colorado, em Ribeirão Preto - SP. Assim, os pequenos empresários do setor cervejeiro passaram quase meio século sem exercer representações de poder.

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Nesse sentido, as pequenas cervejarias conseguem competitividade quando operam em uma lógica diferente das grandes, ou seja, se as estratégias de poder são distintas das manifestas pelas megacervejarias. Em entrevista concedida para esta pesquisa, Diego Simão, dono da Cozalinda, cervejaria de estilos alternativos de Florianópolis, relata um exemplo desse processo.

A nossa cervejaria foi guiada para não jogar o jogo das grandes empresas, uma tática para sobreviver [...] as grandes cervejarias “artesanais” estão praticando as mesmas formas predatórias com as pequenas artesanais, comprando bicos, espaços de vendas, replicando o modelo das grandes [...] O nosso modelo não pode ser copiado pelas grandes que precisam de escala, mecanização para gerar lucro, nós temos atuação em nicho que não tem concorrência, já que uma cerveja ácida de fermentação natural e em qualquer outro lugar vai dar outra cerveja, já muitas artesanais fazem uma cerveja muito parecida com a cerveja das grandes, nós driblamos a concorrência com nossos produtos, as lógicas são outras.

Fica claro que as lógicas de funcionamento e condução das cervejarias pequenas operam através de diferentes caminhos: as grandes cervejarias se valem de reprodutividade e escala, enquanto as pequenas utilizam diversidade e criatividade. Em meio a essa mudança de lógica de operação, o cenário começou a mudar com o grande avanço no número de cervejarias espalhadas pelo Brasil, saltando de 53 em 2003 para 195 em 2013 (MAPA205, 2020). Esse aumento de quase 400% criou um movimento de organização dos produtores de cerveja, que reivindicavam representação. Assim, em 23 de outubro de 2013, foi criada a Associação Brasileira de Microcervejarias (ABM) durante a 5º Expobev/Confebras 2013, tendo como o presidente Marcelo Carneiro, da Colorado - SP. Já no Festival Brasileiro da Cerveja (FBC) de 2014, em Blumenau - SC, quando estavam reunidas 40% das cervejarias nacionais, realizou-se a primeira assembleia da ABM (GORONAH, 2013, on-line). A entidade das pequenas cervejarias focou na luta pela questão tributária sobre o setor, sobretudo para as pequenas empresas do ramo. Em entrevista para esta pesquisa, Carneiro explica sobre alguns pontos importantes da associação, como a definição de microcervejaria pelo volume de produção e a necessidade da maioria, do capital estar em mãos de empresários brasileiros. Em 2014, a atuação junto ao poder federal aumentou e o novo presidente da ABM, Jorge Gitzler, enviou ao Governo Federal um documento explicando o crescimento do setor e suas dificuldades, a fim de incluir as microcervejarias no Simples Nacional, sistema que reúne

205 Os dados de número de cervejarias divergem entre a RAIS e o MAPA, devido à natureza de atuação dos órgãos, sendo o primeiro de ordem trabalhista e estatística e o segundo de ordem tecnológica e higiênico-sanitárias. 326 impostos federais, estaduais, municipais, trabalhistas e previdenciários em apenas uma alíquota para pequenas empresas (BEER ART, 2014, on-line). Em 2015, a ABM passou a se chamar Associação Brasileira das Microcervejarias e Empresas do Setor Cervejeiro (ABRACERVA)206, com o nome fantasia de Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Figura 77). Em 7 de julho de 2015, a Colorado foi vendida para Ambev, o que causou revolta no meio cervejeiro artesanal, incentivando ainda mais a organização dos microcervejeiros (TURINI, 2015, on-line).

Figura 77 - Fundação da ABM e evolução da identidade visual da ABRACERVA

Fonte: BELTRAMELLI, 2013, on-line; ABRACERVA, s. d.[a], on-line. Obs.: Na imagem, à esquerda, temos a foto de formação da ABM em 2013. O presidente Marcelo Carneiro é o terceiro na fileira superior da esquerda para direita. À direta, na parte superior, temos a primeira identidade visual da ABRACERVA em meados de 2015/2016 e na parte inferior, o atual logo da entidade.

Ainda em 2015, um dos pilares de atuação da ABRACERVA começou a ganhar corpo: o debate para redução de imposto para as pequenas cervejarias. Em 30 de junho daquele ano, a entidade conclamou as cervejarias e o setor a pressionar os deputados da Câmara Federal para aprovação do projeto de lei que coloca as microcervejarias no modelo de tributação do Simples Nacional. O presidente da ABRACERVA, Jorge Gitzler, discursou a respeito da mobilização necessária e lançou uma carta modelo para ser enviada para os deputados da Comissão Especial do Supersimples.

206 Essa mudança ocorreu somente no estatuto somente em 2018, porém, desde 2016, já seu utilizava o nome ABRACERVA (ABRACERVA, s. d.[b], on-line). 327

Prezado Sr. Deputado, Venho por meio deste e-mail pedir humildemente o apoio e o seu voto para a inclusão das microcervejarias no Simples Nacional. Somos hoje cerca de 300 empresas familiares, que fomentam o trabalho e o turismo de sua região, e que hoje não representam 1% do mercado de bebidas frias do país. Além disso, sofremos uma grande pressão das 4 megacervejarias (de capital estrangeiro) que têm a clara intensão de acabar com este mercado antes que ele realmente aconteça. A Constituição Federal determina que a União, estados, Distrito Federal e municípios dispensem às microempresas e empresas de pequeno porte tratamento jurídico diferenciado e favorecido, visando incentivá-las pela simplificação, eliminação ou redução de suas obrigações administrativas tributárias, previdenciárias e creditícias. Acreditamos que uma microempresa se defina pelo faturamento e não pelo ramo de atuação. Quando o Simples foi criado, as cervejarias podiam optar, e depois foram excluídas do benefício. O setor cervejeiro é um dos que mais sofre com a carga tributária no Brasil, cerca de 60%. As grandes cervejarias fogem dessas alíquotas através de convênios específicos e incentivos a que as microcervejarias não têm acesso. O mercado brasileiro de microcervejarias tem se tornado uma referência mundial em termos de qualidade e diversidade. Nossas cervejarias são premiadas e admiradas mundo afora. Essa postura prega e fortalece conceitos de consumo consciente e responsável, como a filosofia do “Beba Menos, Beba Melhor”. Incluir as microcervejarias no Simples não se trata de um incentivo ao consumo desenfreado de álcool, e sim de um incentivo ao consumo saudável, como foco na qualidade do produto (REVISTA DA CERVEJA, 2015a, on-line).

Esse modus operandi não difere do que vimos no século XX com as grandes cervejarias, que já operam com mais recursos para esse tipo de convencimento. Contudo, em 1º de julho de 2015, esse movimento obteve parecer favorável ao requerimento do Supersimples e, em 1º de setembro de 2015, foi aprovado o Projeto de lei complementar 25/07, que reformula o Simples Nacional. É importante destacar as frases veiculadas nas mídias da instituição: “Nunca, em nenhum momento, o termo cerveja artesanal foi tão falado no centro do poder. Agora, não somos mais invisíveis. Neste dia verdadeiramente histórico, a vitória, mesmo parcial, é de TODOS!” (REVISTA DA CERVEJA, 2015b, on-line). Como fica claro, as cervejas artesanais entraram de vez no lobby com o congresso para fazer valer seus interesses, construindo suas redes de poder (DALLABRIDA; BECKER, 2003). O Senado Federal iniciou o debate do tema em 27 de outubro de 2015 e, com apoio da Frente Parlamentar do Empreendedorismo, da Frente Parlamentar Mista da Micro e Pequena Empresa e da relatora, a senadora Martha Suplicy, foram feitas diversas audiências públicas e rodadas de discussão com as duas casas do congresso, Receita Federal e governos estaduais, para que, somente em 21 de junho de 2016, fosse aprovado no Senado. Durante esse movimento, a ABRACERVA promoveu vários encontros com parlamentares e autoridades dos estados para mostrar a importância da mudança para as pequenas empresas, o que possibilitou 328 as vinícolas familiares e pequenos alambiques também entraram no texto (CERVESIA, s. d.[c], on-line). Esse movimento se caracteriza como uma concertação social (DALLABRIDA; BECKER, 2003), à medida que diferentes redes de poder nos estados se articularam para convencimento do pleito. Essa articulação pode ser verificada, por exemplo, pela ajuda financeira de bares e restaurantes com a conversão da renda da venda de cervejas doadas pelas cervejarias para financiar as idas à Brasília para conversar com os deputados, como podemos observar na fala do então presidente Jorge Gitzler: “Como temos pouco tempo em atividade, ainda estamos acertando a tesouraria da ABRACERVA, de forma que ainda não temos um caixa compatível com as necessidades urgentes que temos. Nossas viagens, até agora, estão sendo feitas com o dinheiro do próprio bolso” (ABRACERVA, 2016, on-line). Nesse período, a ABRACERVA alterou o seu estatuto, em julho de 2016, permitindo a inclusão de brewpubs, microcervejarias associadas (com receitas próprias, mas sem planta de produção – cervejarias ciganas), distribuidores, pontos de venda, empresas de consultoria, escolas, jornalistas especializados, fornecedores, entre outros que trabalham com cerveja artesanal, abrangendo mais agentes do setor cervejeiro nacional e fortalecendo a instituição para os desafios de representação do poder dos pequenos empresários. O novo estatuto ainda criou um conselho com cinco associados e elegeu Rodrigo Silveira como coordenador geral (REVISTA DA CERVEJA, 2016, on-line). A partir dessa alteração, a capilaridade da ABRACERVA aumentou e sua rede territorial passou a abranger mais entes, distribuídos no espaço e tornando o TC criador, a partir desse aspecto político mais denso e espesso. A maior adesão de associados fez crescer a representação dos cervejeiros artesanais e a sanção presidencial do Simples Nacional, incluindo as cervejarias menores, ocorreu sem vetos em 27 de outubro de 2016, mas só começaria a vigorar em 2018 (BEER ART, 2015b). A história do processo de representação política e de poder necessário para inclusão das pequenas cervejarias no Simples Nacional é um exemplo de como os blocos socioterritoriais estruturam as redes de poder socioterritoriais que se articulam para encontrar coerência em uma concertação social, a fim de promover o desenvolvimento de um setor e seus territórios, os TC. Em 28 de julho de 2017, foi eleita uma nova diretoria, assumindo como presidente Carlo Lapolli para o biênio 2018 - 2020. Após a inclusão no Simples Nacional, a ABRACERVA focou sua atuação em expandir o número de associados para fortalecer os recursos da entidade e representar os interesses da classe. Em 12 de março de 2020, Lapolli foi reeleito para o biênio

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2020-2022 e a entidade passou de 22 para 775 associados, criando mais recursos e expandindo sua atuação (STECKELBERG, 2020, on-line). Apesar de sua reeleição, Lapolli renunciou ao cargo em 3 de setembro de 2020, após o vazamento de mensagens preconceituosas em um grupo de WhatsApp intitulado “Cervejeiros Illuminati”, que reunia grande número de cervejeiros. O tema ganhou projeção nacional com a denúncia da sommelier Sara Araújo, alvo dos ataques e uma onda de revolta no meio cervejeiro, que levaram ao pedido de renúncia do presidente da ABRACERVA. Em artigo publicado no site da entidade, Lapolli assume o erro de veicular mensagens de baixo calão, pede desculpas, mas se defende: “Reafirmo que não expressei em nenhum momento e nenhum grupo mensagens racistas ou direcionadas a qualquer pessoa” (LAPOLLI, 2020, on-line). Após esse episódio, a ABRACERVA convocou novas eleições e, em 15 de outubro de 2020, nova diretoria tomou posse com Nadhine França como presidente e Marcelo Paixão como coordenador do conselho. Nadhine foi a criadora do núcleo de diversidade da entidade e é a primeira mulher a dirigir a ABRACERVA (LAPOLLI, 2020, on-line)207. Todo esse movimento fez nascer outra entidade representativa do setor, a Federação Brasileira das Cervejarias Artesanais (FEBRACERVA) que, como federação tem em seu quadro a Associação das Micro Cervejarias de Santa Catarina (ACASC), a Associação Gaúcha de Microcervejarias (AGM), a Associação Polo Cervejeiro da Região Metropolitana de Campinas, a Associação Paranaense das Microcervejarias (PROCERVA PR) e o Sindicato das Indústrias de Cerveja e Bebidas em Geral do Estado de Minas Gerais (SINDBEBIDAS MG), podendo agremiar outras associações, inclusive a própria ABRACERVA (FEBRACERVA, 2020, on-line). Nesse contexto, a FEBRACERVA aparece como uma estrutura de governança privada- coletiva (Tabela 9), por agrupar operadores privados para articular o desenvolvimento do setor e de seus territórios. Porém, enquanto a ABRACERVA não se filiar à Federação, existe uma quebra de poder na representação das cervejarias artesanais independentes, mostrando que os acordos são sempre provisórios. Por fim, podemos verificar que a representação de poder na rede de produção da cerveja possui muitos interesses em disputa que podem, conforme a concertação social, caminhar para acordos entre os detentores do poder na atividade cervejeira, como veremos na seção seguinte.

207 O machismo no setor cervejeiro e os movimentos de resistência foram alvo de seção anterior. 330

6.3.3 Modelos de governança: a Câmara Setorial da Cerveja e a Rota da Cerveja do Rio de Janeiro

Em meio a todas as disputas de poder no setor cervejeiro, foi instalada no MAPA a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cerveja, por meio da Portaria nº 201 de 2 de outubro de 2019 (MAPA, 2019b), após dois anos de debates com as instituições, convencimento das autoridades e de trabalhos acadêmicos (MARCUSSO; LIMBERGER, 2019) que sustentaram a formação da câmara cervejeira. Aqui, é necessária outra ponderação para análises dos fatos. Devido à minha atuação há quase três anos na área de bebidas do MAPA e ao desenvolvimento desta tese de doutorado sobre a temática da cerveja fui eu quem idealizou o projeto de criação da Câmara Setorial da Cerveja. Outro ponto fundamental, também, foi minha participação no projeto208 “Governança territorial no Brasil: especificidades institucionais, lógicas espaciais e políticas de desenvolvimento”, liderado pelo Prof. Elson Luciano Silva Pires, entre setembro de 2016 e novembro de 2018, no qual foram analisados diferentes modelos de governança territorial, entre eles, as câmaras setoriais. A partir dessas discussões, elaboramos um estudo sobre as câmaras setoriais do MAPA (MARCUSSO, 2018), ressaltando a inexistência da Câmara Setorial da Cerveja (CSC). Diante desse fato, iniciei conversas com as entidades do setor cervejeiro para explicar a ideia e promover os acordos necessários para criação da CSC. Após longo processo de negociação e convencimento, em 30 de outubro de 2019, ocorreu a primeira reunião ordinária e o ato de instalação da câmara contou a participação da Ministra da Agricultura, Tereza Cristina e de membros da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) e da Frente Parlamentar Mista de Defesa da Indústria de Bebidas. Esse cenário mostra como foi necessário articular com diversas redes de poder para superar as barreiras e avançar com o projeto, como a secular disputa entre grandes e pequenas cervejarias.

A composição plural da câmara cervejeira vai desde associações de produtores de lúpulo e cevada, passando pela pesquisa, produção, envase até a distribuição da bebida. Assim, do campo ao copo, a Câmara Setorial da Cerveja é um marco na história do setor unindo grandes e pequenos produtores, aliados ao governo, para trabalhar em prol da cadeia como um todo, trazendo benefícios para a sociedade brasileira (MAPA, 2020b).

208 Este projeto contou com financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, processo 15/25136-8. Disponível em: . Acesso em: 10/12/2020. 331

O que chama atenção é a união em um mesmo fórum de discussão de grandes e pequenos produtores de cerveja, algo impensável no século XX, como vimos. Contudo, essa união não ocorreu de forma imediata e, logo na primeira reunião, a disputa pela presidência da câmara colocou de lados opostos um dos representantes das grandes cervejarias, o SINDICERV e o representante das microcervejarias, a ABRACERVA. Após debate acerca da posição de cada entidade para chefiar a câmara, foi feito um acordo de revezamento da presidência209 entre os grandes e pequenos, estando a ABRACERVA na presidência da câmara nesse primeiro momento. É importante destacar que, além de quebrar essa barreira, a câmara propiciou uma aproximação entre os membros, focando em ações de interesse comum e deixando a guerra concorrencial de fora desse fórum, uma vez que não há consenso nesse ponto entre as partes (MARCUSSO, 2020b). Diante desse cenário, surgiram até ações em parceria entre a ABRACERVA e o SINDICERV, como a criação de um programa de gestão da qualidade para cervejarias, iniciativa inédita entre grandes e pequenos produtores em prol da qualidade da cerveja no Brasil210. Antes de avançarmos para análise da governança da CSC, é importante abrir espaço para entendermos como essas colegiados foram criados no Brasil e, especialmente, no MAPA. As câmaras setoriais representam uma nova forma de organização do poder e a atividade cervejeira se fortalece com esse modo de representação direto com o setor público na formulação das políticas públicas em benefício do setor e da sociedade As câmaras setoriais no Brasil nasceram no final da década de 1980 em um momento de reposicionamento do Estado perante a sociedade em termos políticos, econômicos, sociais. Nesse contexto, o governo Sarney estabeleceu o Decreto nº 96.056, de 19 de maio de 1988, que

209 Conforme pode ser verificado na memória de reunião da 1º Reunião Ordinária da câmara (MAPA, 2019c). 210 Esse acordo é também uma resposta do setor ao caso Backer, no qual pessoas foram contaminadas e morreram por presença de substância tóxicas (monoetilenoglicol - MEG e dietilenoglicol - DEG) nas cervejas da marca. O MAPA finalizou o relatório do caso Backer com as seguintes conclusões “O relatório confirma a ocorrência de contaminações desde janeiro de 2019, afastando a possibilidade deste ser um evento isolado no histórico de produção da cervejaria. Além disso, o relatório ressalta que as substâncias MEG e DEG não são produzidas pela levedura cervejeira em condições normais de produção da bebida. Tampouco foram identificadas contaminações desta natureza em análises realizadas em cervejas nacionais e importadas. Conforme revisão da literatura científica, tal contaminação é inédita em alimentos no Brasil. As apurações fiscais indicaram que a cervejaria Backer adotou práticas irresponsáveis ao utilizar líquidos refrigerantes tóxicos de forma deliberada em seu estabelecimento, utilizando-os em detrimento de alternativas atóxicas, como propilenoglicol e álcool etílico potável. As contaminações por MEG e DEG não estão restritas a lotes que passaram pelo tanque JB 10, ocorrendo também em cervejas elaboradas anteriormente à instalação deste tanque na cervejaria. A empresa também possui diversas falhas e lacunas em seus sistemas de controle e gestão internos, apresentando informações incompletas nos relatórios de produção e controles de rastreabilidade ineficientes” (MAPA, 2020d).

332 no âmbito da política de desenvolvimento industrial criou as câmaras setoriais, que já traziam a ideia do compartilhamento do poder entre órgãos governamentais e da iniciativa privada. Nessa época, as câmaras ficaram voltadas à política de incentivos e preços para os diferentes ramos da produção industrial, sendo a mais exitosa a automobilística que conseguiu avançar para o modelo tripartite para selar acordos e sair da crise do início da década de 1990211. A transição das câmaras setoriais para o Ministério da Agricultura (MA) se deu por meio da Lei nº 8.028, de 12 de abril de 1990 (BRASIL, 1990a), que, ao organizar o poder executivo, criou no âmbito do MA o Conselho Nacional de Agricultura (CONAGRI). Essa lei é regulamentada pelo Decreto nº 99.232, de 2 de maio de 1990 (BRASIL, 1990b), que dispõe em seu art. 4º sobre as câmaras “Para apoiar o Conselho, nas suas decisões técnicas serão criadas, por ato do Ministro de Estado, Câmaras Setoriais especializadas em produtos, insumos ou atividades rurais” (BRASIL, 1990, on-line). Por fim, a Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991 (BRASIL, 1991), conhecida como Lei Agrícola, instituiu o Conselho Nacional de Política Agrícola (CNPA) e lançou mão das câmaras como sua estrutura funcional, aprovando seu regimento interno e outras disposições pelas Resoluções nº 01, de 21 de março de 1991 e nº 02, de 8 de abril de 1991. Após a estruturação do CNPA, foram abertas diversas Câmaras Setoriais (CS) e sua composição envolveu entidades de representação dos setores produtivos de diversas categorias, órgãos públicos e também dos trabalhadores, apesar da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) ser a única a participar (TAKAGI, 2000). Foram criadas 36 CS até 1995, ano em que, seguindo a desarticulação do modelo tripartite, pararam de funcionar (TAKAGI, 2002). Já a Portaria nº 535, de 5 de setembro de 1996 do MA, criou o Fórum Nacional de Agricultura (FNA) que, em um modelo de parceria público privada traçou políticas públicas para as cadeias agroprodutivas. O coordenador do FNA era Roberto Rodrigues e suas palavras resumem a reformulação do estado na ótica neoliberal do presidente FHC:

211 A Câmara Setorial que conseguiu dar coesão aos agentes líderes naquele momento foi a do setor automobilístico. Nela, entidades representativas dos empresários, trabalhadores e agentes públicos das três esferas de poder puderam, entre 1992 e 1995, debater e definir acordos setoriais importantes, visando redução de preços, ajustes no sistema de tributação, questões sobre as relações capital-trabalho, mecanismos de financiamento e de inserção do mercado brasileiro no exterior (ZAULI, 1997). Esses acordos tiveram tamanha repercussão que foram considerados uma forma extremamente nova e inovadora das e nas relações capital-trabalho no Brasil, revelando inéditas capacidades de articulação entre camadas sociais distintas representantes do empresariado e dos trabalhadores (OLIVEIRA, 1993). Entretanto, o ambiente organizacional e institucional criado nas câmaras setoriais para a saída da crise e criação de políticas industriais, sobretudo no caso do setor automobilístico, foi abalado por acordos bilaterais que sobrexcederam as negociações das câmaras setoriais, como o acordo dos carros populares entre o presidente da época (1994) Itamar Franco e os altos executivos das montadoras. 333

um ambiente propício para romper com o modelo corporativista do passado, do Estado protetor e provedor, para buscar no mercado a nossa interação, a nossa energia. O FNA é fruto de uma nova atitude, da procura de novos paradigmas, formadores de uma nova consciência de parceria e cidadania para a construção compartilhada do futuro, do interesse de todos (RODRIGUES, 1997, p. 7).

Essa visão caminha para a superação da centralidade do Estado e abre espaço para maior atuação dos entes privados no diálogo com o poder público, caracterizando-se, desde sua idealização como uma governança privada-estatal (Tabela 9). Isso pode ser evidenciado no desenrolar da FNA que, em 1997, com apoio do MAPA, instalou o Núcleo Gestor Empresarial (NGE) na sede da Associação Brasileira do Agribusiness (ABAG212), que estabeleceu 34 grupos temáticos para discutir os temas relevantes para o agronegócio brasileiro. Esses grupos foram também os embriões das novas câmaras e trouxeram os aspectos de governança no seu bojo com as discussões entre as partes interessadas, havendo conflitos no processo devido à “postura reivindicatória de alguns documentos, a consciência dos conteúdos e a coerência das propostas nas relações governo-sociedade, além da resistência de setores governamentais e privados à interação” (RODRIGUES, 1997, p. 7).

212 Criada em 10 de março de 1993, a apresentação oficial da entidade ocorreu no Congresso Nacional, em Brasília, pelo presidente fundador, Ney Bittencourt de Araújo. Em 2010, a ABAG passou de Agribusiness para Agronegócio. No discurso de lançamento da entidade, Araújo deu sinais de como a governança do agronegócio planejou sua estruturação “Reconhecendo que a sociedade brasileira, e o seu Governo, não têm aplicado à cadeia de alimentos e fibras a visão sistêmica que seu aperfeiçoamento e desenvolvimento exigem; reconhecendo que esta miopia tem, nos últimos anos, deteriorado a capacidade e eficiência do sistema; e reconhecendo que o desenvolvimento sustentado do Brasil começa, necessariamente, pela Segurança Alimentar e, consequentemente, pelo fortalecimento da cadeia de alimentos e fibras, um grupo de empresas, de todos os segmentos do AGRIBUSINESS – produtores de insumos, agricultores (principalmente através de suas cooperativas), processadores, industriais de alimentos e fibras, “traders”, distribuidores e áreas de apoio financeiro, acadêmicos e de comunicação – aliados a entidades e lideranças do sistema, decidiu fundar a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGRIBUSINESS – ABAG. A ABAG nasce de uma visão e uma missão. A visão é a de que a vocação, a capacitação e os recursos brasileiros no agribusiness podem, se adequadamente administrados, contribuir de forma decisiva para vencer os quatro grandes desafios da sociedade brasileira: o desenvolvimento sustentado, a integração à economia internacional, a melhoria da distribuição de renda através da desconcentração de polos de desenvolvimento e o respeito do meio ambiente. A missão, penosa, ambiciosa e difícil, é sistêmica e se encadeia em múltiplas tarefas. A primeira, e a maior delas, é a de conscientizar os segmentos formadores de opinião e decisórios do País – os políticos, os empresários, os sindicatos, os acadêmicos, os líderes da comunicação – para a importância e a complexidade do sistema do agribusiness, a relevância do seu papel no desenvolvimento econômico e social, e a necessidade de tratá-lo sistemicamente, sem o que torna-se impossível otimizá-lo. A segunda é transformar a ABAG em importante ferramenta de apoio ao planejamento do agribusiness brasileiro. Para isso, teremos de torná-lo conhecido. É o desconhecimento mais elementar de seu funcionamento e dos seus elementos mais importantes que impedem a visão do seu conjunto e as importantes interações que ocorrem dentro do sistema. [...] Há que se estruturar um sistema integrado de informações, processá-las e digeri-las, permitindo análises e estudos que gerem políticas e projetos articulados de desenvolvimento” (ABAG, 2020, on-line). 334

Um dos produtos a serem entregues pela FNA era a reformulação do CNPA no contexto do Programa de Reorientação Institucional do Ministério da Agricultura (PRIMA), criado pelo Decreto nº 2.001, de 5 de setembro de 1996 (BRASIL, 1996). O principal objetivo do programa era “reformular o MAA a partir da visão de cadeias produtivas e adequá-lo aos novos padrões de concorrência a que o setor produtivo se encontra submetido” (IEL, CNA, SEBRAE, 2000). Como fica claro, trata-se de uma construção de discurso, ação e convencimento das autoridades públicas e privadas de orientação para o mercado, reformando nossa ideia de migração de uma governança estatal-privada para privada-estatal (Tabela 9). Nessa toada, foi criado o Conselho do Agronegócio (CONSAGRO), por meio do Decreto de 2 de setembro de 1998 (BRASIL, 1998), que define no art. 1º a composição paritária entre representantes dos setores públicos e privados e no art. 2º estabelece sua missão de articular e negociar o poder público e a iniciativa privada, com o objetivo de implementar os mecanismos, as diretrizes e as respectivas estratégias competitivas do agronegócio brasileiro, no médio e longo prazo, a partir das propostas do FNA. A primeira reunião do CONSAGRO ocorreu em 8 de abril de 2003, quando Roberto Rodrigues era ministro da agricultura. Durante a reunião, foi aprovado o regimento interno do conselho, que dá as diretrizes de atuação das câmaras setoriais, conforme a Portaria nº425, de 7 de maio de 2003. A Resolução nº1, de 14 de agosto de 2003 define as finalidades e competências do conselho, tendo no inciso VI do art.1º referências às câmaras setoriais “coordenar e organizar Conselhos Estaduais e Municipais de Política Agrícola, bem como Câmaras Setoriais e Grupos Temáticos voltados ao agronegócio brasileiro” (MAPA, 2003, on- line). Ainda no sentido de orientação para o mercado, temos o art. 9º, que coloca o setor privado como direcionador do processo e o setor público como suporte: “A Câmara Setorial ou Temática terá um Presidente do Setor Privado e um Secretário Executivo do Setor Público, e o Grupo Temático Específico terá um Coordenador do Setor Privado e um Secretário do Setor Público, escolhidos dentre seus membros e designados pelo Presidente do Conselho do Agronegócio, que podem ser substituídos ad nutum” (MAPA, 2003, on-line). O CONSAGRO teve seu regimento interno alterado pela Portaria nº 530, de 12 de junho de 2008 (MAPA, 2008), depois pela Portaria nº 231, de 21 de outubro de 2015 (MAPA, 2015) e finalmente pela Portaria nº 1353, de 16 de agosto de 2018 (MAPA, 2018). Essas alterações reafirmaram seis conceitos básicos nos fóruns de discussão entre o poder público e as instituições privadas: equidade no tratamento entre os diferentes elos das cadeias produtivas, qualidade nos serviços, garantia da segurança alimentar, competitividade, harmonização entre

335 os setores e paridade público e privado na sua gestão (VILELA; ARAUJO, 2006). Além desses fatores, as alterações expandiram o limite de 25 para 30 integrantes, mostrando o crescente interesse em fazer parte desse fórum privilegiado de discussões dentro do MAPA, estabelecer e expandir as redes de poder e os blocos socioterritoriais. Na época, muitas Câmaras Setoriais (CS) foram abertas, começando em 11 (2003), depois foram para 17 (2004), 20 (2005), 23 (2006), 29 (2017) e 31 (2019). Nesse período, nenhuma CS foi extinta, pelo contrário, ocorreu a criação das Câmaras Temáticas (CT), que iniciaram com cinco até 2005. Após certo período, novas CT foram criadas e outras extintas, como a das Ciências Agrárias, Relações Internacionais e Agricultura Competitiva e Sustentável. Atualmente, existem a Câmara Temática da Agricultura Sustentável e Irrigação, Câmara Temática de Agricultura Orgânica, Câmara Temática de Infraestrutura e Logística do Agronegócio, Câmara Temática de Insumos Agropecuários, Câmara Temática de Crédito, Seguro e Comercialização do Agronegócio (MARCUSSO, 2018). A diversidade de temáticas213 das CS e os temas transversais das CT mostram o quão importante são esses fóruns de discussão do setor privado com o poder público. O número crescente da CS mostra que o fórum funciona para os setores que têm acesso mais facilitado para colocar suas reivindicações ao poder público, chegando diretamente ao ministro por meio dos encaminhamentos tomados nas reuniões. Em entrevista com um dos membros da Coordenação Geral de Apoio às Câmara Setoriais e Temáticas/MAPA, que organiza esses fóruns no MAPA, foi relatado a proximidade da ministra com as CS e CT. Existe uma ligação burocráticas entre o ministro e as CS, uma vez que o presidente do CONSAGRO é o próprio ministro, que pode aprovar ou não a eleição de presidentes das câmaras, aprovar as pautas das reuniões, referendar a instituição ou extinção de novas câmaras, entre outras atribuições. Com a chegada de Bolsonaro ao poder, algumas pontes democráticas foram se fechando, com destaque para o Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019 (BRASIL, 2019), que extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Nessa grande revogação normativa, TODOS os conselhos foram extintos e isso incluía até o CONSAGRO, mas no CNPA, devido ao fato de este ser instituído por lei, como se fez valer o entendimento do Supremo Tribunal Federal (PONTES, 2019, on-line). Essa medida é um retrocesso para os mecanismos de maior representação da sociedade civil organizada e

213 Todas as 36 câmaras do MAPA podem ser acessadas, bem como a pauta e memória das reuniões no site do ministério: . Acesso em: 26 abr. 2021. 336 concentra poder no Governo Federal que não mais precisa debater o assunto de forma democrática. A esse respeito, a Procuradoria Geral da República questionou: “Quantas vozes são silenciadas com esse decreto? O que deixa de ser dito quando extintos os conselhos? O que não estamos querendo ouvir?”214. Com o CONSAGRO extinto, correu preocupação com a extinção das câmaras do MAPA, porém como elas estavam previstas na lei agrícola, vinculadas ao CNPA, foi apenas necessário fazer o reenquadramento das câmaras. Com isso, a Portaria nº 253, de 6 de novembro de 2019 (MAPA, 2019d) aprovou o novo regimento interno do CNPA, atualizando as especificações que ainda eram de 1991. As câmaras do MAPA estavam asseguradas, porém foi necessário revogar todas as 36 portarias de criação das câmaras geradas no âmbito do CONSAGRO para recriá-las no CNPA, o que foi feito pela Portaria nº 13, de 15 de janeiro de 2020 (MAPA, 2020c). Com isso, percebemos que as redes de poder e os consensos podem ser facilmente quebrados por decisões monocráticas e unilaterais. Porém, caso a concertação social estiver sedimentada em uma lei, a governança se mantém. Por ter seu mecanismo de governança bem estruturado, o agronegócio permaneceu, mas diversos outros conselhos e suas representação perderam seu espaço de poder do dia para noite. Mesmo antes do decreto que extinguiu os conselhos em abril de 2018, a ministra da agricultura, Tereza Cristina, já visava reduzir o número de câmaras de 35 (em janeiro de 2018) para menos de 15. O primeiro passo para essa migração foi o deslocamento da Coordenação- Geral de Apoio às Câmaras Setoriais e Temáticas (CGAC) do gabinete da ministra para a Secretaria de Política Agrícola (SPA). Em reunião com as lideranças do agronegócio do setor de proteína animal, a ministra indicou que uniria as CS de Carne Bovina, Suínos e Aves, Caprinos e Ovinos, Pescados e Leite e derivados em apenas uma câmara. A esse respeito, assessoria da ministra publicou, em 29 de janeiro, no Twitter: “A ministra Tereza Cristina vai fortalecer e aumentar a participação das cadeias produtivas na governança do Mapa. A atuação das câmaras setoriais será fundamental na construção e acompanhamento das políticas públicas” (AGRO EM DIA, 2019, on-line). Nessa postagem, a ministra se referia à governança para dento do governo, prevista no Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017 (MAPA, 2017), que dispõe sobre a política de

214 Aspas do Vice-Procurador-Geral da República, Luciano Mariz Maria que ainda ressalta “Devemos respeitar a autoridade do presidente da República de exercitar a prerrogativa de disciplinar como a administração pode se organizar, mas há a necessidade de declinar objetivamente quais as razões, os números e os nomes dos órgãos que quer extinguir” (STF, 2019). 337 governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. De acordo com essa norma, a governança pública é definida como um “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade” (BRASIL, 2017, on-line). Assim, esse conceito veio colocar para o Estado as boas práticas de gestão focadas na melhoria de seu desempenho e nas expectativas do cidadão, a chamada “Boa Governança” (MARCUSSO, 2019a). Na visão da recém-chegada ministra, reduzir o número de câmaras era uma forma de melhorar a gestão do MAPA e promover melhores políticas públicas para a sociedade. Contudo, quando se reduz o número de colegiados, muitas cadeiras são retiradas do processo de escuta e as entidades de menores pesos político e econômico acabam sendo descartadas. A criação de apenas uma câmara de proteína animal excluiria as pequenas entidades, uma vez que o regimento interno limita a participação de 30 membros. Como as cinco câmaras de proteínas animal contemplavam 150 cadeiras, a redução seria de 80%, com a eliminação de 120 vagas de membros de câmaras setoriais, diminuindo significativamente a escuta à sociedade. Após período de adaptação ao cargo e avaliações dos técnicos do MAPA, a ministra desistiu da ideia e optou por criar agendas agregadas entre as câmaras com assuntos afins, como pode ser verificado na 1ª Conferência Nacional das Câmaras Setoriais e Temáticas do MAPA, em 3 de maio de 2019, onde a ministra recebeu os 35 presidentes das câmaras para transmissão dos avisos da nova gestão, como a organização das câmaras em clusters (agrupamentos), bem como promover a oportunidade de conversa direta com a ministra sobre as demandas de cada setor agropecuário (NOTÍCIAS AGRÍCOLAS, 2019, on-line). Torna-se evidente que a ministra e sua equipe mediram o custo político da extinção de cadeiras de representação de lideranças do agronegócio, mesmo que de instituições menores. A eliminação da voz de 120 redes de poder causaria repercussão negativa e pressão para ministra, que naquele momento, de modo que foi decidida a manutenção de todas as câmaras. Esse movimento, aliado a alterações de dinamismos nas reuniões das câmaras, propiciou a abertura de ainda mais câmaras, ao invés de seus fechamentos, como foi o caso da criação da CSC no final de 2019. Voltando para análise da governança da CSC e a estruturação de suas redes de poder temos, com a nova portaria do CNPA, a definição dos representantes das entidades (Tabela 39).

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Tabela 39 - Os 24 membros da Câmaras Setorial da Cadeia Produtiva da Cerveja Membro UF Abrang. Esfera Setor ABRACERVA-Associação Brasileira de Cerveja Artesanal DF Nacional Privada Indústria SINDICERV-Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja DF Nacional Privada Indústria CERVBRASIL-Associação Brasileira da Indústria da Cerveja DF Nacional Privada Indústria ABRABE-Associação Brasileira de Bebidas SP Nacional Privada Indústria FEBRACervA-Federação Brasileira das Cervejarias Artesanais DF Nacional Privada Indústria AGM-Associação Gaúcha de Microcervejarias RS Regional Privada Indústria SINDBEBIDAS-Sindicato das Indústrias de Cerveja e Bebidas MG Regional Privada Indústria do Estado de Minas Gerais ACervA BRASIL-Federação Brasileira das AcervAs DF Nacional Privada Sociedade APROLUPULO-Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo SC Nacional Privada Agricultura AGRARIA - Cooperativa Agrária Agroindustrial PR Regional Privada Agricultura ABBA-Associação Brasileira dos Exportadores e Importadores SP Nacional Privada Comércio de Alimentos Bebidas ABRAS-Associação Brasileira de Supermercados SP Nacional Privada Comércio ABRASEL-Associação Brasileira de Bares e Restaurantes MG Nacional Privada Comércio EMBRAPA-Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária DF Nacional Privada Pesquisa CNA-Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil DF Nacional Privada Agricultura SEBRAE-Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Indústria/ DF Nacional Pública Empresas Comércio MCTIC-Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e DF Nacional Pública Governo Comunicações SAF/MAPA - Secretaria de Agricultura Familiar e DF Nacional Pública Governo Cooperativismo/Ministério da Agricultura CGVB/MAPA-Coordenação Geral de Vinhos e DF Nacional Pública Governo Bebidas/Ministério da Agricultura ABRALATAS-Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de DF Nacional Privada Indústria Alumínio ABIVIDRO-Associação Técnica Brasileira das Indústrias DF Nacional Privada Indústria Automáticas de Vidro ABRTB - Associação Brasileira dos Responsáveis Técnicos de RS Nacional Privada Trabalhador Destilados ACCERJ-TUR - Associação Turística das Cervejarias e Indústria/ RJ Regional Privada Cervejeiros do Estado do Rio de Janeiro Comércio OCB - Organização das Cooperativas Brasileiras DF Nacional Privada Agricultura Fonte: Consulta solicitada ao MAPA com dados do Sistema de Gestão das Câmaras Setoriais e Temáticas – SGCAM.

Das 24 entidades da CSC, 83% têm sede no Distrito Federal e são de abrangência federal, ou seja, estão no centro do poder, representando sua classe no país todo, sendo que 42% representam a indústria, 21% o comércio e 17% a agricultura que é o cerne do MAPA. Já a representação do governo aparece com 8% e a dos trabalhadores, da pesquisa e da sociedade figuram com apenas 4%. A partir desse panorama, podemos colocar em perspectivas as diferentes instituições que compõe a CSC para verificar a rede de poder e governança que existe na rede de produção

339 cervejeira. A Figura 78 traz os atores envolvidos na atividade cervejeira “do campo ao copo”, evidenciando o local de atuação de cada entidade.

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Figura 78 - Representação institucional da rede de produção da cerveja: “do campo ao copo”

Fonte: Elaboração própria a partir do esquema da Figura 79 e dos sites das instituições. 341

Na Figura 78, o que chamamos de ambiente de regulação e promoção da atividade cervejeira são os agentes normatizadores (MAPA) e de desenvolvimento (MCTIC, SEBRAE e OCB) do setor. A linha que traduz a produção se inicia no campo com os produtores de matéria- prima (APROLÚPULO e AGRÁRIA) e de pesquisa e promoção (EMBRAPA e CNA), passa pelos fornecedores (ABRALATAS e ABIVIDRO), cervejarias (ABRABE, ABRACERVA, SINDBEBIDAS, AGM, SINDICERV e CERVBRASIL – Federações podem receber a filiação de outras associações e sindicatos: FEBRACERVA [cervejarias] ACervA BRASIL [cervejeiros caseiros]), trabalhadores (ABRTB), supermercados e importadores (ABRAS e ABBA) até chegar no copo em bares e restaurantes e serviços de turismo cervejeiro (ABRASEL e ROTA DA CERVEJA RJ). Nessa distribuição, a disputa entre o agricultor e a indústria é um dos pontos de atenção nas câmaras do MAPA, sobretudo nas câmaras de produtos agroflorestais e de proteína animal. No caso da CSC, essa disputa é menor, uma vez que o Brasil importa 100% do lúpulo e 70% do malte para produção nacional (BEER ART, 2018, on-line). Outro ponto de destaque é a baixa representatividade dos trabalhadores e da sociedade civil. Essa constatação reforça a noção de uma governança bipartite entre governo e empresários, sem a escuta ou a fala de outros setores sociais, passando longe do ideário de uma governança tripartite democrática, como já se verificou essa tendência ao longo da história das câmaras setoriais do MAPA (MARCUSSO, 2018). Mesmo durante o processo de criação da CSC, foi difícil romper com as barreiras de entrada de uma gama maior de representações e devido a essa limitação já se abriu via de contato para inclusão de maior diversidade de representação, conforme destacamos em publicação recente.

é importante dizer que para câmara atuar de forma mais abrangente e democrática é fundamental que todos os representantes da atividade cervejeira sejam ouvidos. Contudo, nos faltam agentes que representem, em nível nacional, os trabalhadores e os consumidores desse setor. Dessa forma, fica aberto o e-mail da câmara para contato nesse sentido ([email protected]). Quanto maior o nível e a abrangência de representação dos diferentes interesses na câmara mais próximo dos pilares da constituição cidadã e participativa nós estaremos (MARCUSSO, 2020b, p. 47).

A CSC, então, é uma porta democrática para vozes que não teriam local de expressão e escuta por parte do governo. Por outro lado, é uma forma de legitimação das ações das grandes 342 empresas. Assim, a CSC constitui uma instância na qual todos ganham e onde o conflito é minimizado pelo diálogo, colocando-se os assuntos de convergência em primeiro plano. Exemplos desse processo são: o apoio geral da câmara para pedidos das grandes empresas como importação de cevada dos EUA (para aumentar a oferta e ter outra opção em caso de quebra de safra na Argentina, nosso maior fornecedor); manifestação do setor na OMS (nas consultas públicas sobre as políticas de combate ao uso nocivo de álcool, sendo o posicionamento da CSC a favor das políticas, mas contra as medidas de proibição); prorrogação do prazo de entrada em vigência da IN65/2019 (novo PIQ da cerveja, devido à questão, principalmente, de rotulagem) e revisão do Decreto 6296/2007 (BRASIL, 2007) (sobre ração animal) e da respectiva IN para destinação do bagaço de malte para alimentação animal. As medidas das pequenas cervejarias também são endossadas por todos da CSC, como o pedido de indeferimento do registro de estilo de cerveja no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), inclusão do Sommelier de Cerveja no Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), atuação do MAPA no caso Backer para provar que cerveja é um produto seguro, além de audiência com o Ministério do Turismo para expor o setor cervejeiro e seu grande potencial turístico215. A CSC já produziu diversos movimentos – ainda que alguns não tenham sido concluídos – dificilmente alcançados pelas instituições sozinhas. Há um índice de 69% de respostas positivas dos encaminhamentos da CSC, mostrando que, ao trabalhar os conflitos e consensos, é possível traçar concertações em torno do elemento em comum, a cerveja216. O modelo de governança da CSC se coloca como uma governança privada-estatal (Tabela 9), já que os entes privados guiam as discussões dentro do colegiado e traçam os caminhos para o desenvolvimento do setor e de seus territórios. A partir da constatação das redes de poder, blocos e pactos socioterritoriais e da tipologia de governança da CSC, podemos avançar na avaliação dos princípios básicos para uma governança territorial, democrática e triparte, a partir das principais características de organização desse modelo de governança, para que as relações entre os membros conduzam a condições propícias para o desenvolvimento e gestão do território.

215 Os encaminhamentos das reuniões de todas as câmaras do MAPA são público e estão nas respectivas seções das câmaras no site do MAPA. (ver: . Acesso em: 14/12/2020). 216 O índice de efetividade dos encaminhamentos da câmara é um modelo de gestão adotado pela CSC pelo autor desta tese que também é o consultor técnico da câmara, conforme Portaria 13/2019 que designa os membros da câmara (MAPA, 2020e). 343

Por meio das entrevistas e das participações das reuniões da CSC, a cada princípio foi atribuída uma nota (1-Baixa, 2-Média-Baixa, 3-Média, 4-Média-Alta, 5-Alta), sendo a nota total mínima 10 e a máximo 50. Essa avaliação coloca cada câmara em perspectiva para visualizar de modo didático a forma de organização das câmaras em relação ao conceito de governança territorial abordado neste trabalho (Tabela 40).

Tabela 40 - Avaliação dos princípios da governança territorial da Câmara Cervejeira

Nº Princípios Básicos Avaliação Nota 1 Foco Média-Alta 5 2 Mecanismos Média 4 3 Transparência Média-Baixa 3 4 Participação Média-Baixa 4 5 Representatividade Baixa 3 6 Accountability Média-Baixa 3 7 Coerência Média 4 8 Confiança Média-Alta 5 9 Subsidiariedade Média 4 10 Autonomia Média-Alta 3 Total 38 Fonte: Elaboração própria a partir da análise das reuniões da CSC.

A boa avaliação da CSC decorre dos entendimentos e acordos citados acima e promovem bom andamentos das atividades. Igualmente, em estudo anterior referente às câmaras (MARCUSSO, 2018), os princípios mais bem avaliados foram foco, mecanismos e confiança, enquanto accountability e transparência mostraram uma falta de característica democrática desse modelo de governança específico das câmaras dentro do ministério. Na CSC, há maior representatividade de pequenos produtores, estabelecendo coerência das ações junto da subsidiariedade, devido aos acordos tácitos e não tácitos do colegiado, tornando esses itens bem avaliados. Observando a dinâmica da CSC, verificamos que seu funcionamento até o presente momento está em consonância com seus objetivos, uma vez que seus acordos estão bem firmados. Porém, os conflitos mais estruturantes podem romper as concertações em prol do setor e de seus territórios. Então, as entidades, sobretudo as que representam as grandes empresas, podem optar por uma atuação por outros canais, onde não seja necessário o diálogo, como o contato direto com o congresso e os governantes das três esferas de poder. Os rebatimentos territoriais do modelo de governança da CSC se apresentam por meio das ações das instituições que fazem parte da câmara em seus territórios, sempre com vistas para seu desenvolvimento. Assim, para fechar esta seção, analisaremos a ação de uma integrante 344 da câmara, estabelecendo um claro exemplo de modelo de governança territorial que conduz ao desenvolvimento territorial: são as chamadas Rotas da Cerveja, que constituem verdadeiros roteiros a bares e cervejarias em uma região. Na Europa, essa prática já é bem desenvolvida e se alia com os promotores do turismo local. Na Bélgica e na Holanda, os mosteiros trapistas217 são rotas já aclamadas. Na Alemanha, cada região tem seu estilo de cerveja específico, como o famoso caso da Alt bier, em Düsseldrof, e a Klösh, em Colônia, cidades do oeste alemão. Na República Tcheca, a fábrica da Pilsner Urquell virou centro de peregrinação por ser o berço do estilo Pilsen. No Reino Unido, os pubs são a sensação e atraem muitos turistas. Na América, os EUA surgiram como rota cervejeira apenas há algumas décadas, mas já apresentam grande desenvolvimento. As rotas de cervejas brasileiras têm origens e desenvolvimento gradual e, especialmente, estão concentradas nas regiões Sul e Sudeste do país. No Rio Grande do Sul, a Lei nº 15.098/2018 (RIO GRANDE DO SUL, 2018) institui a Região das Cervejarias Artesanais no Estado como base a ampliar o desenvolvimento econômico e turístico em 22 municípios. No Paraná, a Lei nº 18.980/2017 (PARANÁ, 2017) institui a Rota da Cerveja Artesanal no estado, incentivando a produção e o turismo em 21municípios. Em Santa Catarina, a Lei nº 16.880/2016 (SANTA CATARINA, 2016) criou da Rota das Cervejas do estado, incentivando a cultura e a produção nas regiões turística já determinadas, além da criação do Vale da Cerveja, em 2017, abrangendo os municípios que compõem a Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí (AMMVI). Em 2019, o governo do Estado de São Paulo lançou a Rota Cervejeira Paulista com cinco regiões de referência. Contudo, falta um agente gestor definido, empoderado e com autonomia para gerir essas rotas que, por falta de uma liderança adequada, dificilmente alcançam os resultados almejados. Nesse sentido, temos como a rota mais desenvolvida no país é a Rota da Cerveja do Rio de Janeiro. A Associação Turística das Cervejarias e Cervejeiros do Estado do Rio de Janeiro (ACCERJ-Tur), que faz parte da câmara, trabalha com a Rota da Cerveja do Rio de Janeiro “Cervejas das Montanhas”, criada em 19 de novembro de 2014, data de criação da associação que gere a rota, a qual tinha os municípios a seguir como parte do roteiro turístico: Petrópolis,

217 Mosteiros católicos da ordem trapista, criada em 1664, que remonta da ordem de Císterciense, fundada em 1098. Hoje, existem mais de 170 mosteiros trapistas, nome em referência ao mosteiro de Notre-Dame de La Trappe na Normandia, mas apenas 11 produzem cervejas. Além do “pão líquido”, eles produzem o próprio pão, queijos, biscoitos etc. O direito do uso exclusivo do nome “trapista” foi confirmado pela corte de Ghent, na Bélgica, em 1962. Existe, inclusive, uma associação: Association Internationle Trappist (AIT), criada com o objetivo de proteger e apoiar os mosteiros trapistas (MORADO, 2009).

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Teresópolis, Nova Friburgo, Cachoeiras de Macaco e Guapimirim. A região está inserida na Serra Verde Imperial218, que faz parte do Programa de Regionalização do Turismo do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Assim, redes de agentes vão se juntando nesse modelo de governança para promover o desenvolvimento territorial vinculado a cerveja. O roteiro inclui mais de 70 pontos cervejeiros (Figura 80), entre bares, restaurantes e as próprias cervejarias. Entre as principais atrações, destacam-se o Museu da Cerveja, pertencente à AmBev, os monumentos históricos e a cervejaria Colonus, em Petrópolis; a grande cervejaria do Grupo Petrópolis e a Vila St. Gallen, considerada o “templo da cultura cervejeira na região serrana do Rio de Janeiro”, em Teresópolis; o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, onde se encontra o famoso Dedo de Deus, entre Petrópolis e Teresópolis; as cervejarias Barão Bier e Ranz, em Nova Friburgo, além do ponto turístico da Pedra do Cão Sentado, das cachoeiras da Guapimirim e Cachoeira do Macuco, municípios sede das cervejarias Rota Imperial e da Fábrica da Ambev, respectivamente (REVISTA DA CERVEJA, 2015c). Portanto, a rota constitui interessante rede de atrativos turísticos que contribuem para o fortalecimento da região.

Figura 79 - Localização das atrações da Rota Cervejeira do Rio de Janeiro

218 A Serra Verde Imperial conta com os municípios de Areal, Cachoeiras de Macacu, Comendador Levy Gasparian, Guapimirim, Magé, Nova Friburgo, Petrópolis, São José do Vale do Rio Preto, Teresópolis e Três Rios. Destacam-se o aspecto paisagístico diversificado, com topografia de declives acentuados, cotas elevadas e remanescentes da Mata Atlântica de beleza exuberante. Os maiores exemplos são o Dedo de Deus e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos. 346

Fonte: ROTA CERVEJEIRA RJ, s. d., on-line.

O Rio de Janeiro é o sexto estado com mais cervejarias no Brasil, com 78 ao todo (BRASIL, 2020). Dessas, cerca de metade estão localizadas na região serrana do Estado do Rio, de modo que a cerveja é um elemento importante para a região. Em entrevista com a coordenadora da rota219, Ana Pampillón, foi apontado o fator histórico da região junto da cerveja com a Real Fábrica de Cerveja Nacional de Dom Pedro II, em Petrópolis, que ainda mantém o nome de Bohemia até hoje. Diante do que foi destacado anteriormente, podemos verificar que a noção de TC tem no caráter histórico, importante para criar no imaginário das pessoas a simbologia da cerveja em relação ao lugar, criando vínculos entre as pessoas e o local por meio da identificação com a história. Dessa forma, a ideia de TC vai se mostrando adequada para entender a relação que a produção de cerveja, especialmente artesanal, tem no ordenamento do território e sua relação com o cotidiano das pessoas, sendo a noção de governança um importante aporte de articulação entre os elementos econômicos e culturais. Ana Pampillón relata que foi preciso um esforço para mostrar às agências o valor turístico e comercial da rota. Somente em 2016, a maior agência de turismo do Brasil, a CVC, incluiu em seus pacotes o turismo cervejeiro. No mesmo ano, por meio de suas cervejarias associadas, a rota criou sua própria cerveja, lançada durante o Mondial de la Biere, na cidade

219 A entrevista com Ana Cláudia Pampillón, a coordenadora do projeto, execução e acompanhamento da Rota do Rio de Janeiro, foi devidamente autorizada por sua entidade. 347 do Rio de Janeiro. Segundo Alexandre Zubaran, consultor da rota na época: “Para nós, a Cerveja das Montanhas não é um produto, é a materialização de um pensamento, fruto da visão compartilhada de tudo que representa a causa da ACCERJ-Tur como destino turístico” (G1, 2016, on-line). É possível verificar no discurso de Zubaran a nítida relação material e imaterial que o turismo da cerveja carrega na região. A descrição acima mostra como são construídos, por meio das redes de poder, uma concertação social que caminha para um pacto socioterritorial (DALLABRIDA; BECKER, 2003) no sentido de conduzir para o desenvolvimento territorial. Atualmente, as cervejarias já começam a funcionar fazendo parte da rota, uma vez que o turismo é muito mais rentável do que a estratégia comum dos cervejeiros em participar de eventos, nos quais, muitas vezes, a perda financeira pode ser grande, principalmente em dias de chuva. A visão da coordenadora da rota mostra o trabalho necessário para articulação dos entes que fazem parte da estruturação do turismo no espaço. Somente após esse processo, despertando-se o sentimento de pertencimento e identificação, é possível construir a base para a sustentação da ideia dos TC. Pampillón descreve ainda que o turismo em torno da cerveja complementa a cadeia produtiva por meio dos atrativos turísticos da região. Não é intenção da rota levar o turista para cervejarias e bares a todo momento. Por exemplo, a passagem pelo Museu Imperial pode acabar em uma feira de produtos locais, conhecida como Degusta e que movimenta a cidade de Petrópolis. Após visitas a cachoeiras, temos a degustação de chope direto da/na fábrica e, além disso, há o turismo de compras, fazendas, comidas típicas, música etc., atividades que são intercaladas à degustação de cerveja nas cervejarias da rota. A entrevistada aponta que o sentido de pertencimento das pessoas junto à rota e às cervejas ali produzidas não se deu imediatamente após a implementação do roteiro turístico. Aos poucos, a atuação da ACCERJ-Tur foi ampliando sua divulgação, intensificando a participação em eventos cervejeiros e culturais – como a Festa do Colono Alemã –, de modo a criar referências para região, unindo turismo e cerveja. Outro ponto de fixação do turismo da cerveja, e porque não do território da cerveja, refere-se à vinculação das cervejarias, bares e restaurantes como elementos de lazer e contato com o espaço220. Pampillón destaca que a cerveja assume um papel de ferramenta social, agregando pessoas e dividindo os espaços. O caso mais emblemático dessa relação é a localização e dinâmica da cervejaria Alpendorf, em Nova Friburgo. A cervejaria fica no

220 A entrevista Ana Pampillón deixa claro que, no município de Petrópolis, 40% da população local não conhece o Museu Imperial, denotando que o turismo por si só, sem uma ação coordenada, não traz crescimento e não envolve nem inclui os moradores da localidade. 348 complexo da casa Suíça, que mantém também uma queijaria, uma chocolateira, um museu da imigração suíço, além de artesanatos. Pampillón conta que, segundo o dono da cervejaria, aos finais de semana, os turistas chegam cedo, após os passeios em meio à natureza do local. A integração entre turismo, natureza e cerveja provoca nos turistas uma experiência única, criando laços de afetividade com o local, causados pelos momentos de prazer e lazer ali vividos. Isso desperta no turista o desejo de conhecer os outros pontos da rota cervejeira, lembra Ana Pampillón. Nessa interseção entre os elementos do turismo e da cerveja, o processo de identificação e a simbologia ali criadas dão forma para os TC, que são engendrado pelos movimentos de governança territorial do local em torno da cerveja Toda essa descrição da articulação entre cerveja e turismo, além do enraizamento territorial na forma do TC, encontra fixação nas normas jurídicas em dois momentos. A Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 7.650, de 14 de julho de 2017 (RIO DE JANEIRO, 2017), concedeu à cidade de Petrópolis o título de Capital Estadual da Cerveja. Com a norma, a cidade pode criar mecanismos de incentivo e desenvolvimento de ações para a divulgação do título. Na ocasião, o secretário de turismo do município ressaltou:

E certamente termos essa chancela vai impulsionar o segmento, tanto na produção como no turismo. O setor ganha mais força com essa marca, tornando Petrópolis um destino ainda mais importante, diverso e atrativo. E isso nos mostra, também, a importância da consolidação do Circuito Cervejeiro de Petrópolis, que já estamos trabalhando junto à iniciativa privada (PREFEITURA DE PETRÓPOLIS, 2017, on-line, grifo nosso).

As passagens em destaque na citação mostram a interseção entre a produção e o turismo de cerveja, por meio dos circuitos e rotas cervejeiras. Aliada ao ordenamento jurídico, essa junção confere importantes ferramentas para o desenvolvimento territorial no local, fortalecendo e empoderando os municípios e a própria rota cervejeira. Em um segundo momento, temos o desdobramento de toda essa articulação em torno dos agentes locais com a plantação de lúpulo na região. Além da plantação, o destaque na região com a cultura veio por meio do Viveiro Ninkasi, que se tornou o primeiro no Brasil a receber autorização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para a produção e venda de cinco variedades de mudas de lúpulo no país. As mudas cumpriram todo o processo de registro nos protocolos do Registro Nacional de Sementes e Mudas (RENASEM/MAPA) para garantir a identidade do material propagativo e seus atributos de qualidade para uma produção sustentável. Atualmente, o viveiro possui 32 variedades legalizadas para comercialização. A partir desse panorama, está em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de 349

Lei nº 610/2019 que confere ao município de Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro, o título de Capital Nacional do Lúpulo221. O reconhecimento por lei talvez seja uma das últimas fronteiras do engajamento local para promoção do desenvolvimento baseado no território de produção e identificação de produtos locais. Contudo, essa etapa só é alcançada após intensa articulação das empresas, por meio da produção e geração de riqueza por parte do governo, com as formas de fomento às cervejarias e ao turismo, bem como da sociedade civil organizada, na figura da Rota da Cerveja, que faz o trabalho de base com os agentes locais, a fim de criar os laços identitários e de união no mercado de cerveja e turismo. Em outras palavras, podemos afirmar que o diploma legal é um passo importante que nasce da governança territorial e só se confirma com as redes de poder operando para sua aprovação nas casas legislativas. As cervejarias, enquanto geradoras de crescimento econômico, multiplicam a geração de emprego. Segundo estudo da FGV, um emprego no chão de fábrica da cervejaria cria mais 50 empregos ao longo da cadeia produtiva (CERVBRASIL, 2016). Aliada aos ganhos derivados do turismo, a Rota da Cerveja pode constituir um vetor para o desenvolvimento territorial, uma vez que os atores locais se empoderam dos mecanismos de gestão do território e os guiam para o desenvolvimento por meio do turismo. De acordo com Demichei (2014, p. 8), é possível

perceber que ao constituírem um território cervejeiro, os empreendimentos obtêm diversas vantagens econômicas, ao reduzir os seus custos de produção. Outra questão se expressa são as redes que se estabelecem no segmento de cervejas artesanais, onde, a partir das relações estabelecidas entre as microcervejarias e cervejarias artesanais novos cenários se estabelecem, como a possibilidade da constituição de roteiro turístico no local, brassagens coletivas e a intenção de uma cerveja do polo cervejeiro.

O turismo se materializa no lugar e tem sido opção do discurso desenvolvimentista para ascensão das economias locais ou regionais. Todavia, tem contribuído apenas para o crescimento econômico, na maior parte dos casos222.

221 Até a submissão desta tese, a matéria de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ) estava na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da câmara dos deputados, aguardando designação (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, on-line). 222 A rota da cerveja atravessa um eixo de urbanização chamado “topo da serra”, onde os principais municípios são Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis. Nessa área, são destaques também as produções de hortigranjeiros, além de indústria de moda íntima e os estabelecimentos associados ao turismo rural. Nesse ponto, é importante salientar que as atividades desenvolvidas ao longo da RJ-130, as quais estão atreladas ao turismo, vêm impactando no processo de urbanização do espaço rural das imediações do que ficou conhecido como TERE-FRI, caminho de

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As rotas ou roteiros da cerveja são formas contundentes de territorialização da cerveja e isso decorre do fato que os turistas participantes vivem uma experiência diferenciada quando bebem uma cerveja artesanal fora dos padrões das cervejas de massa, conhecem onde ela é produzida e, por muitas vezes, o próprio cervejeiro que elaborou a cerveja. Nesse percurso, se estabelecem conexões intrínsecas com o território na qual foi produzida a bebida, não só pela degustação, mas também pela experimentação local das relações de produção, práticas de vida e características diversas que demonstram e deixam claras as raízes daquela(s) cervejaria(s). Podemos concluir, então, que as forma de organização dos atores locais interfere diretamente no formato do turismo que toma conta da atividade produtiva e do território, ou seja, é a estruturação da governança territorial que ditará os rumos do desenvolvimento daquele território. No caso da cerveja, podemos verificar que existe uma mescla de elementos que atendem ao grande capital, bem como pontos de resgates da cultura cervejeira comandada pelos pequenos cervejeiros. A partir dessa análise, podemos considerar o turismo cervejeiro como um território do turismo e da cerveja (GOMES; MARCUSSO, 2021). Com relação à Rota da Cerveja do Rio de Janeiro, podemos concluir que a promoção do turismo e o desenvolvimento territorial estão permeados pela ação dos agentes locais. Cada etapa do processo se complementa e a governança territorial se apresenta como orquestradora das ações e formadora do TC, transitando do cotidiano das pessoas do local, até as mais altas casas legislativas do país (GOMES; MARCUSSO, 2021). Nesse contexto, podemos afirmar que os TC são originários dos movimentos de governança territorial em torno da cerveja e que os aspectos econômicos e culturais associados a esse processo estruturam as formas de desenvolvimento a partir da atividade cervejeira. Assim, os recursos e ativos dos territórios são elementos fundamentais para alavancar toda essa concertação social em torno da cerveja. A Tabela 41 apresenta a tipologia dos fatores espaciais nos TC, a partir da abordagem de Benko e Pecqueur (2001).

Teresópolis à Nova Friburgo (MARAFON; RIBEIRO, 2006). Aqui, os integrantes desse turismo encamparam a propaganda da região, criaram esse nome e divulgam os bares, hotéis e restaurantes envolvidos. “A proliferação dessas atividades possibilitou aos produtores familiares sua inserção em atividades não-agrícolas e consequentemente o aumento da renda familiar. Porém esse processo ocorre nas áreas dos eixos de urbanização e próximo a RMRJ. Nas áreas mais distantes, os produtores familiares continuam na dependência da renda agrícola, enfrentando inúmeros problemas para a realização de suas atividades. [...] Sendo assim, cabe indagar: até que ponto as atividades do turismo rural contemporâneo beneficiam os produtores familiares, com a oferta de empregos não-agrícolas? Não seria mais uma forma de exploração da força de trabalho familiar? Isto posto, as evidências observadas no Estado do Rio de Janeiro nos permitem indicar a exploração dos produtores familiares” (MARAFON; RIBEIRO, 2006, p. 21). 351

Tabela 41 - Avaliação dos princípios da governança territorial da Câmara Cervejeira

Genéricos Específicos Recursos O potencial de novas tecnologias no O saber e cultura locais e dos cervejeiros processo produtivo e de saberes e histórias na formulação de cervejas inéditas e a não conhecidos ou agregados no saber fazer organização dos atores locais nos dos cervejeiros e cervejarias locais. modelos únicos de governança territorial. Ativos Mão de obra e insumos cervejeiros, que são A localização das cervejarias, ditada pela substituíveis e transferíveis. obtenção de vantagens fiscais, tarifárias e creditícias. Fonte: Adaptado de MARCUSSO, 2011.

A estrutura do setor cervejeiro passa pelos ativos e recursos do território, porém podemos concluir após esse capítulo os recursos específicos constroem os pilares do desenvolvimento territorial baseados nos arranjos da governança do setor. Por fim, podemos verificar que a matriz metodológica contribuiu para destacarmos os aspectos que econômicos, culturais e políticos da construção dos TC, tendo no resgate da história e da cerveja no Brasil o fio condutor dos eventos e atores que se organizaram e organizaram o setor cervejeiro nacional.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como forma de conclusão, retomaremos brevemente alguns dos principais elementos discutidos nesta tese. O primeiro capítulo traçou a trajetória dos primórdios da cerveja e humanidade, evidenciando os laços indissociáveis dessa bebida com a organização social e espacial de diferentes sociedades, nas quais a atividade cervejeira foi importante. Ao longo do tempo, a cultura cervejeira foi se desenvolvendo e criando novas técnicas, hábitos e comportamentos. No segundo capítulo, exploramos os conhecimentos advindos do caráter tecnicista da produção (insumos, etapas e processos) e consumo (degustação, estilos e escolas), como aspectos estruturantes da cultura cervejeira. No terceiro capítulo, foram exploradas as formas de estruturação da cultura cervejeira atrelada ao espaço geográfico e como essas interações podem conduzir para a formação de uma escola brasileira da cerveja. Nesse ponto, a passagem pelo universo da música e da boêmia contribuíram para compreender como a cerveja se tornou a bebida popular do Brasil, edificando a noção de Cerveja como Cultura (CCC). No quarto capítulo, o debate teórico sobre o conceito de território mostrou que existem diferentes relações de poder (econômica, cultural e política) em torno da produção e do consumo do produto, com repercussões na dinâmica dos mercados, na criação de identidades variadas e na governança dos territórios. O quinto capítulo desvendou a formação socioterritorial da cerveja no Brasil, apontando para uma construção da relação entre a bebida alcoólica e o povo brasileiro, desde os índios com seus cauins e cauinagens, passando pelos destilados brasileiros e portugueses e até chegar na cerveja nacional, que assumiu seu posto de liderança no consumo e no gosto popular. O sexto e último capítulo é o núcleo desta tese, que parte da CCC para alcançar os Territórios da Cerveja (TC). Os aspectos econômicos mostram que, no mundo e no Brasil, o mercado oligopolista da cerveja criou um verdadeiro império de dominação das cervejas Pilsen, por meio da revolução Lager. Do ponto de vista do produto, a cisão entre a cerveja mainstream (TCP) e a cerveja artesanal (TCA) criam territorialidades muitos específicas. Em meio a esse processo, os TC se dividem conforme as lógicas aplicadas à sua construção. Em outras palavras, o discurso da cerveja artesanal cria o seu território local de identificação, enquanto a cerveja mainstream cria seus territórios baseados nos processos reprodutivistas de escala, que dominam a maior parte dos TC. No que tange aos aspectos culturais, foram discutidas a revolução da cerveja artesanal no Brasil, sua distribuição no espaço e as mudanças no padrão de consumo. A partir dessa

353 perspectiva, defendemos a ideia de que a cultura da cerveja “artesanal” cria seus territórios (TCA), por meio das fábricas atreladas aos eventos cervejeiros e as ACervAs criam simbologias que são inseridas nas cervejas de cada região e nos movimentos de cerveja como resistência, transmutando a cultura cervejeira em cultura material expressa nos produtos. Por outro lado, as grandes cervejarias, através do seu poder financeiro, desenvolvem estratégias de marketing para se vincularem aos maiores eventos de expressão cultural/popular do Brasil e estabelecerem seus territórios (TCP). Por fim, os elementos políticos de construção dos TC deixam claro que as articulações dos agentes promotores da atividade cervejeira em prol dos seus interesses alteram a dinâmica do próprio setor cervejeiro nacional, como discutimos com relação às disputas entre as grandes cervejarias (baixa fermentação) e as pequenas cervejarias (alta fermentação), no início do século XX. Assim, a governança do setor cervejeiro fez morrer e nascer TC, conforme a orientação das redes de poder e pactos socioterritoriais, alterando leis e normas para favorecer seus interesses, como observamos em relação à tributação da cerveja. Os modelos de governança da Câmara Setorial da Cerveja e das Rotas da Cerveja esclarecem como as concertações sociais unem diferentes elementos para promoção do setor cervejeiro nacional, podendo atender com maior eficiência um ou outro ente, conforme seu grau de engajamento na condução desses modelos. Os processos de acordos entre os envolvidos com o projeto de desenvolvimento dos modelos de governança analisados funcionam até novos consensos serem firmados. Para sintetizar esse trajeto da tese, caminhamos para a união das noções teóricas propostas neste estudo. Esse movimento posiciona um entendimento mais claro e conclusivo sobre essa conexão entre cerveja, cultura e território. Nessa combinação teórica, entende-se que a cultura cervejeira é um componente da CCC e esse elemento cultural um aspecto da formação dos TC. Este, por sua vez, conta com seus componentes específicos: os aspectos cultural, econômico e o político. Dentro desses territórios, temos uma subdivisão clara, os Territórios da Cerveja “Artesanal” (TCA) e os Territórios da Cerveja Pilsen (TCP), como podemos verificar na Figura 81.

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Figura 80 - Encadeamento teórico das noções de CCC e TC e seus componentes

Fonte: Elaboração própria.

Como podemos observar, a cultura exerce um papel-chave nesse entendimento de aproximação entre as noções de CCC e TC, assumindo a função de elo entre essas propostas. Os componentes secundários da formação dessas abordagens teóricas ajudam a construir a argumentação da matriz cerveja/cultura/território. A partir desse constructo, podemos afirmar que as noções propostas aqui se sustentam, a partir de toda argumentação que foi até aqui desenvolvida. A CCC e os TC constituem aproximações da realidade do universo da cerveja, evidenciando as relações entre cerveja e cultura, na primeira noção e as relações entre a cerveja e o território, na segunda. Os avanços na descrição da cerveja como elemento da cultura e como formadora de territórios contribuiu para responder as perguntas norteadoras da tese. Iniciaremos pela pergunta de partida: Como o desenvolvimento da cerveja em seus aspectos econômicos e sociais afetam a cultura e os territórios envolvidos nesse processo? O caráter genérico da pergunta conduz a uma resposta com as mesmas características, porém sem perder as ideias norteadoras da tese. O desenvolvimento econômico e social da cerveja nos mostrou, desde os primórdios, que a cultura em torno dessa bebida foi se moldando através de sua relação com a história e a geografia das localidades. Os comportamentos e hábitos acumulados pelas pessoas por meio da cerveja reverberam, de forma mais ou menos intensa, nas culturas locais de hoje. Então, a noção de CCC atende ao questionamento inicial como diretriz para o entendimento da cerveja como 355 elemento cultural, guiando as discussões do primeiro bloco de capítulos (1, 2 e 3). Em relação ao modo o desenvolvimento da cerveja afeta os territórios envolvidos nesse processo, verificamos que os aspectos espaciais, temporais, econômicas, culturais e políticos, cada qual a seu modo, edificam a criação dos TC por suas expressões, seja na produção, comercialização (consumo) e formas de representação de poder do setor, como argumentamos no segundo bloco de capítulos (4, 5 e 6). Pensando nessa organização, os capítulos foram divididos a fim de melhor responder às perguntas, conforme os objetivos da tese. O primeiro bloco de capítulos voltou-se às seguintes questões: A cerveja estabelece uma cultura? Como isso ocorre? Quais seus aspectos espaciais? Para responder essa pergunta, voltamos na história e geografia da cerveja, na evolução da civilização e nas diferentes sociedades, observando o processo produtivo e de degustação da cerveja, apontando para as nuances culturais desse processo (cultura cervejeira), mostrando que essa bebida faz parte da construção de identidades nacionais, como a boêmia e a música. Assim, a cerveja se estabelece como cultura ao criar comportamentos e hábitos, que são passados para as próximas gerações conforme cada sociedade e sua identidade, sendo a cerveja um importante elemento desse processo espacialmente identitário (CCC). O segundo bloco de capítulos foi destinado à questão: Como a cerveja pode ser um elemento de formação de territórios? Em busca da resposta, analisamos os aspectos econômicos, culturais e políticos envolvidos nesse processo, explorando a história e a geografia da cerveja, em especial no Brasil (TC), o gigantismo do setor em âmbitos internacional e nacional, além das formas de expressão cultural (TC “Artesanal”) e execução do poder no setor. Concluímos que a cerveja é um elemento de formação de territórios quando a conjunção desses aspectos se constitui como ponto agregador de pessoas, instituições e do capital, organizando o espaço para a reprodução do capital, do modo de vida das pessoas e das relações de poder. Esse caminho delineado pelos questionamentos e suas argumentações de resposta nos fazem regressar para a hipótese da tese: A cerveja é um elemento importante na fundação do processo cultural da civilização desde seus primórdios e está nas expressões culturais, comportamentos e hábitos atuais do cotidiano, além de ser veículo de relações econômicas e de poder e de diversos processo (i)materiais de simbologias e múltiplos usos do espaço, promovendo o surgimento de territórios que se organizam tendo a cerveja como ponto central. A validação dessa hipótese pode ser comprovada a partir dos debates levantados nas seções dos capítulos. Percebemos que a cerveja é um elemento importante na fundação do processo cultural da civilização, ao observarmos que a história e a geografia da cerveja se

356 confundem com a as expressões temporais e espaciais do desenvolvimento da humanidade. A presença da cerveja é evidente nos movimentos culturais, comportamentos e hábitos, quando analisamos suas interseções com a boêmia e a música no Brasil. Sobre as relações econômicas e de poder, o extenso levantamento da história e da geografia da cerveja, sobretudo em terras tupiniquins, mostrou a importância desse setor como atividade econômica, elemento muito usado na representação de poder do setor cervejeiro, aspecto este que foi destrinchado na observação da governança e seus modelos de atuação. Por fim, as expressões simbólicas e (i)materiais foram exploradas no uso da cerveja como elemento de resistência e de identificação, criando territórios em torno da bebida. Todos os pontos da hipótese foram abordados para sua validação e sustentaram a ideia da matriz teórica cerveja, cultura e território nas noções aqui propostas. Neste sentido, podemos pontuar dez conclusões gerais da tese:

1. A cerveja esteve presente nos primeiros modos de aglomeração social da humanidade como forma de ritualização e conexão com os deuses cultuados e teve forte presença no desenvolvimento histórico de certos grupos, como os sumérios, egípcios, etnias que hoje compõe a China, celtas, povos da Idade Média da Europa Central, nos povos ameríndios, além de ser ponte para o desenvolvimento industrial; 2. A cultura cervejeira cria um universo de signos e significados em meio à sua atividade, sobretudo na formação de estilos e escolas de cervejas arraigadas a identidades nacionais; 3. A cerveja (CCC) teve papel importante na formação da boêmia brasileira, o que contribuiu para inserção da bebida no imaginário de identidade nacional, auxiliado pela música como forma de materialização do cotidiano do povo brasileiro e seu estilo de vida; 4. A cerveja no Brasil teve sua história marcada pela influência dos europeus, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste do país, e acompanhou o desenvolvimento econômico brasileiro, por meio do consumo da bebida em relação ao poder de investimento do setor e ao poder de compra da população; 5. A cerveja opera em um mercado oligopolista, no qual as grandes cervejarias puxam o crescimento da produção em volume (TCP) e as pequenas elevam o número de cervejarias e de rótulos lançados, essas últimas valorizando os ingredientes locais, as

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formas tradicionais de produção (savoir-faire) e a cultura cervejeira, atendendo a um nicho de mercado que constitui uma forma flexível de reprodução do capital (TCA); 6. A cerveja é veículo de representação e identidade para grupos e movimentos sociais que lidam em meio a um mercado elitista, machista e conservador; 7. A cerveja artesanal é um conceito impreciso que gera distorções no entendimento do consumidor e na apropriação da denominação pelos agentes do mercado. Nesse sentido, o termo independente consegue salvaguardar o espírito dos pequenos empreendimentos mais atrelados à escala local e agentes territorializados; 8. A cerveja foi palco de disputas entre grandes e pequenos produtores desde a estruturação desse setor no Brasil, tendo as grandes empresas mais poder econômico e organizacional para defender seus interesses, muitas vezes às custas do interesse coletivo; 9. A cerveja pode ser um recurso específico do território, a partir dos acordos e concertações sociais de agentes do setor cervejeiro que guiam o desenvolvimento de seus territórios, tendo o artesanal como ferramenta de dupla ação enquanto reprodução flexível do capital e dos saberes acumulados ao longo da história, colocando as pequenas empresas como legítimas condutoras desse processo e as grandes como capturadoras desse nicho comercial e cultural; 10. Os modelos de governança analisados demonstram que é possível dinamizar o setor cervejeiro e os territórios por ele criados por meio a junção dos diferentes grupos de representação de poder, focando nos pontos em comum e negociando o direcionamento dessa estrutura de governança territorial, ora atendendo ao interesse do grande capital, ora ao interesse dos grupos menores.

Por fim, verificamos que as noções de CCC e TC se complementam, já que as expressões culturais da CCC podem ser foco de criação de TC e estes podem gerar movimentações sociais e identitárias, que constroem comportamentos e hábitos em torno da cerveja, o que conduz à consolidação da CCC. Então, as diferentes formas de expressão econômica, cultural e política da cerveja mostram que essa bebida estabelece práticas cotidianas, podendo ser uma forma de vida para alguns indivíduos e representando traços de identidade. A partir desse entendimento, podemos afirmar que esta tese contribui principalmente em duas vertentes: uma de caráter mais teórico e ou outra em relação a aspectos práticos. Com

358 relação aos aspectos teóricos, esta pesquisa se insere na discussão sobre a construção de territórios a partir do poder não somente circunscrito ao viés político, mas também através dos poderes econômicos e culturais. Este trabalho não visou esgotar esse debate, mas mostrou que é possível operacionalizar a divisão entre os aspectos econômicos, culturais e políticos do poder no cerne da criação de territórios, sem que essa fragmentação signifique a fuga do âmago do conceito de território. Ou seja, esta tese constitui uma das diversas formas possíveis de se estruturar e compreender a formação de territórios a partir de produtos com significativa importância econômica, cultural e política para as diferentes sociedades em diferentes tempos. Nesse sentido, observamos que os aspectos econômicos impõem uma forma de poder atrelada ao poder do capital, sobretudo quando olhamos as grandes cervejarias e sua construção de fixos e fluxos na edificação da rede de produção cervejeira nos TCP. Essas relações de poder se opõem ao poder econômico criado pelas microcervejarias que se espalham por todo o Brasil, originando um território em rede conectando às pequenas cervejarias detentoras desse nicho de mercado de reprodução flexível do capital nos TCA. Nos aspectos culturais, as relações de poder criadas pelas grandes cervejarias consistem na capacidade de financiar e apoiar grandes eventos populares da cultura brasileira, configurando-se como TCP. As pequenas cervejarias, por sua vez, estabelecem relações de poder na criação dos TCA, ao passo que delimitam seu espaço de atuação e grupo social que as representa. Assim, ao mesmo tempo que preservam as características desses territórios, os processos de identificação impedem a expansão cultural da cerveja artesanal. Os aspectos políticos dos TC na cadeia produtiva da cerveja podem considerados como os responsáveis pela síntese do poder gerador de territórios por meio dos aspectos econômicos e culturais. As relações de poder produzidas pela economia e pela cultura desembocam na política como forma motriz de criação de territórios, como ficou claro na análise da governança da cadeia produtiva da cerveja. A representação de poder dos entes da cadeia produtiva da cerveja modela os territórios originados a partir da cerveja no debate com os gestores públicos, casas legislativas e processos de identificação gestados na sociedade. Esses processos se tornam evidentes com relação à questão tributária, à criação da CSC do MAPA e da Rota da Cerveja do Rio de Janeiro. Os rebatimentos territoriais desses movimentos de poder estruturam os TC em seus aspectos econômicos, culturais e políticos. Para uma melhor compreensão, dividimos didaticamente o poder emanado dos aspectos que constituem a base para a formação dos territórios, mas devemos ter em mente que todos os elementos se manifestam simultaneamente. Os aspectos econômicos estão entrelaçados aos

359 políticos, como no caso da negociação de locais de construção de empresas cervejeiras, em uma verdadeira “guerra dos territórios” que oferecem vantagens fiscais e tarifárias. As ações econômicas são permeadas por elementos culturais quando a aquisição de uma microcervejaria é também uma captura de valor simbólico. Os aspectos culturais, por sua vez, não operam sem as questões econômicas. Temos um exemplo disso quando as ações identitárias das pequenas cervejarias são também ações econômicas de reprodução flexível do capital, além do componente político que a cerveja como resistência carrega. Por último, os aspectos políticos têm seu fim, sobretudo em relação às grandes cervejarias, nos ganhos econômicos que essas ações trazem, além de apresentarem dimensões culturais quando da valorização da representação das pequenas cervejarias. A partir desse entendimento de criação dos territórios por meio das relações de poder econômicas, culturais e políticas, visualizamos outra forma de contribuição deste trabalho, em uma transição dos aspectos teóricos para os práticos. Os TC podem ser comparados entre escalas geográficas. Isso significa, por exemplo, que os TC do município de São Paulo são diferentes dos TC da cidade de Belo Horizonte. A abordagem que trazemos aqui é uma proposta que facilita essa comparação. Em nível de unidade da federação e países, essa comparação também é válida, como já fizemos no estudo Olhares cruzados entre cervejas: estudo comparativo dos territórios da cerveja do Brasil e da França, capítulo do livro Journées Jeunes chercheurs em sciences humaines et sociales: regards croisés France-Brésil, lançado em 2019 pela Embaixada da França, UnB e Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG (MARCUSSO, 2019b). Por fim, a contribuição geral da tese se concentra na estruturação de uma verdadeira Geografia da Cerveja, que conectou diversos saberes sobre a bebida através de um olhar espacial, propondo as noções de CCC e TC como forma de aproximação da realidade cervejeira nacional, a fim de amarrar na teoria e prática a relação entre cerveja, cultura e território, explorando diversos aspectos econômicos, culturais e políticos desse processo. A contribuição da tese está circunscrita no entendimento geográfico da relações histórico-sociais da cerveja. Essa construção também abre caminho para novas perspectivas de pesquisa a partir dessa estruturação teórica em relação a outros produtos com importância cultural, como o café, vinho, cachaça, outros destilados, queijo, charutos, embutidos etc. Diante de nossa argumentação e mantenho o olhar crítico fundamental à ciência, podemos afirmar que nossa tese caminha, no campo da contribuição prática, para uma sugestão final, a partir das noções de CCC e TC. As discussões sobre a cultura cervejeira e seus aspectos

360 técnicos (produção e consumo) não podem ser olhadas de forma separada da cerveja como elemento cultural do cotidiano das pessoas. Então, não basta debater sobre os estilos de cerveja e técnicas de degustação; é necessário avançarmos na pluralização e democratização da cerveja “artesanal” para o equilíbrio e sustentação da cerveja como elemento cultural e espacial. Como vimos, o público dessa cerveja é restrito e a comunicação é focada nesse nicho conservador. Dessa forma, é essencial a comunicação com outros setores da sociedade para alcançar mais pessoas e grupos distintos, para que estes se vejam representados nos produtos. É necessário discutir cada vez mais sobre símbolos culturais relacionados à cerveja e sobre diferentes identidades nas comunicações da cerveja(ria), para alcançar mais estratos sociais e econômicos e, assim, criar mais TC. Dessa forma, a cerveja artesanal pode deixar de ser voltada a um público restrito, passando abranger grupos sociais diversos, englobando mais a diversidade da sociedade brasileira, reassumindo o caráter democrático que cerveja sempre teve desde os seus primórdios. Podemos fechar essa tese a partir da matriz cerveja, cultura e território como ponto de partida para compreender como as relações de poder entre essa bebida alcoólica e as diferentes sociedades delimitam suas formas de congregação e ritualização da vida, partindo dos saberes da produção, passando pelas formas de consumo, até as expressões econômicas, culturais e políticas envolvidas no processo, configurando assim a CCC e os TC.

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Legislação

ANEXO À NORMA INTERNA DIPOV Nº 01/2019. 2019. Consolidação das normas de bebidas, fermentado acético, vinho e derivados da uva e do vinho. Disponível em: 393

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394

0a%20organiza%C3%A7%C3%A3o%20da,Minist%C3%A9rios%2C%20e%20d%C3%A1% 20outras%20provid%C3%AAncias.>. Acesso em: 27 abr. 2021.

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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Portaria nº 13, de 15 de janeiro de 2020. 2020e. Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2020. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resolução RDC no 259, de 20 de setembro de 2002. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2020. MINISTERIO DE JUSTIÇA E DERECHOS HUMANOS. Resolución Conjunta 67/2002 y 345/2002. Incorpórase la Resolución Grupo Mercado Común nº 14/2001, referida al Reglamento Técnico Mercosur de Productos de Cervcería. Disponível em: . Acesso em: 08 dez. 2020. MINISTÉRIO DO TURISMO. Turismo lança mapas de festejos juninos. 07 jun. 2018. Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2021. PARANÁ. Lei nº 18.980/2017. Institui a rota cervejeira no Paraná. Disponível em: . Acesso em: 06 jan. 2018. PARANÁ. Lei no 19.494, de 8 de maio de 2018. Disponível em: . Acesso em: 06 jan. 2021. RIO DE JANEIRO. Lei nº 7.650, de 14 de julho de 2017. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2021. RIO DE JANEIRO. Lei no 7.645, de 13 de julho de 2017. Disponível em: . Acesso em: 06 jan. 2021. RIO DE JANEIRO. Lei no 6.400, de 05 de setembro de 2018. Disponível em: . Acesso em: 06 jan. 2021. RIO GRANDE DO SUL. Lei no 14.697, de 25 de maio de 2015. Declara o município de Feliz “Capital Estadual da Cerveja Artesanal”. Disponível em: . Acesso em: 06 jan. 2021. RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 15.098 de 4 de janeiro de 2018. Institui a Região das Cervejarias Artesanais no Estado do Rio Grande do Sul e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2021.

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SANTA CATARINA. Lei nº 16.880 de 18 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a criação da Rota Cervejeira em Santa Catarina. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2021.

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APÊNDICES Questionário

Esse modelo de questionário foi elaborado a partir da ferramenta Google Forms e disponibilizado a todos os cervejeiros, sommeliers e atores envolvidos no mundo da cerveja com os quais pude ter contato durante a pesquisa, em eventos, concursos e festivais de cerveja.

Questionário: TERRITÓRIOS DA CERVEJA:

Olá, sou Eduardo Fernandes Marcusso. Esse questionário está vinculado à minha pesquisa de Doutorado em Geografia na Universidade de Brasília (UnB), sob orientação do Prof. Juscelino Eudâmidas Bezerra, intitulada “Os territórios da cerveja: análise da governança territorial e do desenvolvimento nos locais produção cervejeira no Brasil”. Espero que você possa dedicar alguns minutos para responder a esse breve questionário, contribuindo com minha pesquisa e com a divulgação de dados e análises da atividade cervejeira no Brasil. Os resultados desse questionário e da pesquisa serão apresentados em congressos, publicados em artigos e discutidos em uma tese de doutorado, todos meios públicos. Aproveito para divulgar um estudo que ajudei a realizar através do MAPA, onde sou servidor público federal, com dados atualizados do setor. Segue o link para acessar o Anuário da Cerveja 2018: http://www.agricultura.gov.br/assuntos/inspecao/produtos-vegetal/pasta-publicacoes- DIPOV/anuario-da-cerveja-no-brasil-2018

Para maiores informações estou à disposição: [email protected]

1. Qual atividade você desenvolve em torno da cerveja? 2. O que a cerveja representa para você? 3. Qual valor você atribui à importância da cerveja na sua vida? (escala de 1 a 5) 4. Como você define as ideias de cerveja artesanal e cerveja de massa? 5. Cerveja é cultura? Se sim, por quê? 6. A que você atribui o crescimento do número de cervejarias e as inovações nas cervejas no Brasil? 7. Quais os principais elementos de entrave para maior desenvolvimento do setor cervejeiro no Brasil? 8. Qual valor você atribui para importância da cerveja como elemento cultural? (escala de 1 a 5) 9. Quais são os principais motivos da mudança do comportamento do consumidor de cervejas no Brasil? 10. Em minha tese, desenvolvi a ideia de “territórios da cerveja”, buscando compreender como os aspectos de localização e a estrutura social do local influenciam na atividade cervejeira. Como você enxerga a relação do espaço social, econômico e cultural com a cerveja? 11. Cite um exemplo que você considera um Território da Cerveja. 12. De que maneira você acredita que os biomas e a cultura brasileira podem agregar na produção, comercialização e consumo da cerveja? 400

13. Cite alguma experiência que viveu, na qual a produção ou a cultura cervejeira contribuiu para o desenvolvimento socioeconômico da sociedade. 14. Em sua visão, quais são os principais atores que exercem poder no setor de cerveja no Brasil? 15. Que sensações são despertas quando você contempla a seguinte essa imagem?

Fonte: https://revistabeerart.com/eventos/tour-cervejeiro-nova-friburgo>

Este questionário está disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2021.

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Entrevista

A partir do conhecimento que tenho sobre o setor, já havia identificado alguns personagens essenciais da cena cervejeira no Brasil. Estes foram entrevistados ao vivo ou por videochamada, durante a pandemia. A seguir, encontram-se as perguntas dirigidas aos entrevistados.

1. Como você define as ideias de cerveja artesanal e cerveja de massa? 2. Cerveja é Cultura? Se sim, por quê? 3. A que você atribui o crescimento do número de cervejarias e as inovações nas cervejas no Brasil? 4. Quais os principais elementos de entrave para maior desenvolvimento do setor cervejeiro no Brasil? 5. Quais são os principais motivos da mudança do comportamento do consumidor de cervejas no Brasil? 6. Em minha tese, desenvolvi a ideia de “territórios da cerveja”, buscando compreender como os aspectos de localização e a estrutura social do local influenciam na atividade cervejeira. Como você enxerga a relação do espaço social, econômico e cultural com a cerveja? Cite um exemplo que você considera como um Território da Cerveja 7. Cite alguma experiência que viveu, na qual a produção ou cultura cervejeira contribuiu para o desenvolvimento socioeconômico da sociedade. 8. Em sua visão, quais são os principais atores que exercem poder no setor de cerveja no Brasil?

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ANEXO

Descrição da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE/IBGE. Estrutura detalhada da CNAE 2.0: seções, divisões, grupos, classes e subclasses Hierarquia utilizada na tese:

• Seção: C - INDÚSTRIAS DE TRANSFORMAÇÃO • Divisão: 11 - FABRICAÇÃO DE BEBIDAS • Grupo: 11.1 - Fabricação de bebidas alcoólicas • Classe: 11.13-5 - Fabricação de malte, cervejas e chopes • Subclasse: 11.13-5/02 - Fabricação de cervejas e chopes Disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2021.

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