UNIVERSIDADE FEDERAL DE INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

TESE DE DOUTORADO

A Prelazia de São Félix do Araguaia e a luta pela terra em Porto Alegre do Norte/Mato Grosso (1970-1980): migração e conflito no campo

LUCIENE APARECIDA CASTRAVECHI

CUIABÁ-MT

2017

LUCIENE APARECIDA CASTRAVECHI

A Prelazia de São Félix do Araguaia e a luta pela terra em Porto Alegre do Norte/Mato Grosso (1970-1980): migração e conflito no campo

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação, do Instituto de Geografia, História e Documentação – IHGD, da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em História.

Orientador: Prof. Dr. Vitale Joanoni Neto.

Cuiabá-MT

2017

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

C355p Castravechi, Luciene Aparecida. A PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA E A LUTA PELA TERRA EM PORTO ALEGRE DO NORTE/MATO GROSSO (1970-1980): MIGRAÇÃO E CONFLITO NO CAMPO / Luciene Aparecida Castravechi. -- 2017 317 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientador: Vitale Joanoni Neto. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós- Graduação em História, Cuiabá, 2017. Inclui bibliografia.

1. Prelazia de São Félix do Araguaia. 2. Porto Alegre do Norte. 3. Violência no Campo. 4. Posseiros. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

CASTRAVECHI, L.A. A Prelazia de São Félix do Araguaia e a luta pela terra em Porto Alegre do Norte/ Mato Grosso (1970-1980): migração e conflito no campo. 317p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2017.

RESUMO

Este trabalho analisa a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, no nordeste do estado de Mato Grosso, entre as décadas de 1970 e 1980. Tem como objeto de estudo os conflitos e as violências decorrentes da expulsão de posseiros pelas empresas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu, estabelecidas naquele município durante a década de 1970, através das políticas de ocupação da Amazônia pelo Governo Ditatorial. Estes empreendimentos foram sobrepostos em meio às terras de trabalhadores rurais que residiam na região desde a década de 1940, assim, ocorreram as disputas por terras entre estes indivíduos e os empresários rurais provenientes do Centro-Sul do país. A Prelazia de São Félix do Araguaia, juntamente com os agentes de pastorais, leigos, religiosos e o bispo Dom Pedro Casaldáliga, agiu como mediadora no processo de luta pela terra, recorrendo aos poderes públicos (Polícia Militar e Federal e ao INCRA), bem como aos proprietários das fazendas e funcionários para que estes pudessem entrar em acordo para demarcar as terras dos posseiros de Porto Alegre do Norte. Este processo acarretou, num primeiro momento, uma negociação pacífica intermediada por Dom Pedro Casaldáliga junto à FRENOVA, posteriormente as resistências e os conflitos dos posseiros contra a expulsão das suas posses colocaram a área da Prelazia de São Félix do Araguaia sob suspeita de manter elementos subversivos na sua jurisdição e estar aliada à Guerrilha do Araguaia, descoberta no ano de 1972 na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e norte de Goiás (atual Tocantins). Desse modo, no ano de 1973, religiosos, leigos e agentes de pastorais foram sequestrados e presos no Quartel da 14ª Polícia do

Exército na cidade Campo Grande/MS, onde vivenciaram dias de horrores e torturas. A luta pela terra também envolveu pistoleiros, Polícias Militar e Federal, Exército e Igreja Católica, produzindo na questão agrária em Porto Alegre do Norte uma espacialidade demarcada pela resistência e estratégias dos trabalhadores rurais para a permanência nas suas posses.

Palavras-chave: Prelazia de São Félix do Araguaia. Porto Alegre do Norte. Violência no Campo. Posseiros.

ABSTRACT

This paper analyzes the struggle for land in Porto Alegre do Norte in northeastern Mato Grosso, between the 1970s and 1980. Its object of study conflicts and violence resulting from squatter eviction by agribusinesses - FRENOVA and Piraguassu established in that city during the 1970s, through the Amazon occupation policies by the Government Dictatorial. These projects were overlapping among the lands of rural workers living in the area since the 1940s, so there were disputes over land between these individuals and rural entrepreneurs from the Central South. The Prelature of São Félix do Araguaia, together with pastoral agents, lay, religious and Bishop Pedro Casaldáliga, acted as a mediator in the process of struggle for land, using public powers (Military and Federal Police and the INCRA) and as to the ranch owners and employees so that they could enter into an agreement to demarcate the lands of squatter Porto Alegre do Norte. This process resulted initially in a peaceful negotiation brokered by Dom Pedro Casaldáliga next to FRENOVA, posteriorly the problems and conflicts of squatters against the expulsion of his possessions put the area of the Prelature of São Félix do Araguaia under suspicion this keep subversive elements in their jurisdiction and be combined with the Araguaia guerrilla movement, discovered in 1972 in the region Parrot's beak between southern Pará and northern Goiás (now Tocantins). Thus, in 1973, religious, laity and pastoral agents were kidnapped and imprisoned in the barracks of the 14th Army Police in the city Campo Grande / MS, where experienced days of horror and torture. The struggle for land also involved gunmen, Police Military and Federal Army and the Catholic Church, producing the agrarian issue in Porto Alegre do Norte one spatiality marked by resistance and strategies of rural workers to stay in their possessions. Keywords: Prelazia de São Félix do Araguaia. Porto Alegre do Norte. Violence in the Countryside. Squatters.

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Benedito e Dalva, por todo amor e esforços dedicados à minha educação.

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Mato Grosso e ao seu corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História. Ao IFPA Campus Marabá Rural pela flexibilização do meu horário de trabalho e consentimento do afastamento para o término do doutorado. À Capes pelo financiamento da pesquisa via bolsa entre os anos de 2014 e 2016. Ao meu orientador, Vitale Joanoni Neto, que ao longo desses dez anos contribuiu para o meu crescimento acadêmico e profissional. Pelas longas horas de conversas vivenciadas no NPH regadas por muita descontração e dedicação, atribuindo leveza às minhas análises sobre a violência no campo. Ao Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia e sua colaboradora, Zilda, que me ajudou na coleta da documentação e esclarecimento sobre a composição do acervo. Ao Paulo Coutinho Soares, que me auxiliou no deslocamento em São Félix do Araguaia para entrevistar algumas testemunhas, visitar Dom Pedro Casaldáliga e me enviar cópias de documentos. Ao professor de geografia do IFMT, Campus , Flávio Antônio Lucio Alves, pela confecção gratuita dos mapas expostos nesta tese. À professora de história Maria Cantuário pela gentileza e acolhida em Porto Alegre do Norte. Ao professor de história da educação básica de Porto Alegre do Norte, Justiniano Pereira Sales, pela ajuda no levantamento das testemunhas que se dispuseram a me ceder entrevistas para a escrita desta tese. Ao agente de pastoral José Gomes Vieira pela ajuda imprescindível durante a minha estadia em Porto Alegre do Norte, no deslocamento pelo município e pelas cidades de e para a coleta das entrevistas, convivência na sede paroquial de Porto Alegre do Norte, acolhida e

hospitalidade direcionadas no período em que realizei a pesquisa de campo na região. Às testemunhas que cederam os seus relatos, tempo e confiança, que me auxiliaram na composição das narrativas que expressam a luta pela terra em Porto Alegre do Norte. Aos meus pais, Benedito Castravechi e Dalva Moraes Castravechi, por todo incentivo, amor e cuidado direcionados durante o processo de escrita da tese. Às minhas irmãs, Márcia e Rozeene, e aos meus sobrinhos, Jeferson, Mayara, Anderson, Alison e Bárbara, pela compreensão da minha ausência nas reuniões familiares. Ao meu namorado, André Vitto, por todo companheirismo, amizade, compreensão, cuidado e incentivo durante a finalização desta tese. A sua presença foi imprescindível para a concretização deste trabalho. À minha amiga Natalia Madureira por sua cumplicidade, serenidade e compartilhamento de amor na forma de sabedoria e apoio. Pelas longas horas de conversas que contribuíram para o meu crescimento pessoal e espiritual. Ao meu amigo Rafael Adão pela amizade que construímos no início do meu doutorado. O seu modo de agir, a sua postura acadêmica e política me fazem acreditar que um mundo melhor é possível. Aos amigos Alexandre, Beatriz, Fernanda Nicoli e Ruan pela amizade e pelos memoráveis momentos que compartilhamos, especialmente na UFMT e na casa do nosso querido Rafa.

EPÍGRAFE

“Quem relembra o passado sofre duas vezes” Ana Felicia de Araújo

Lista de Abreviaturas

ABIN – Agência Brasileira de Inteligência

AGROPASA – Agropecuária do Araguaia

AESI – Assessoria Especial de Segurança e Informação

AEA – Associação de Empresários da Amazônia

ALN – Aliança Libertadora Nacional

BASA – Banco da Amazônia

BNM – Brasil Nunca Mais

Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CIA – Agência Central de Inteligência

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CODEARA – Companhia de Desenvolvimento do Araguaia

CODEMAT – Companhia de Desenvolvimento de Mato Grosso

COREBRASA – Colonizadora e Representações do Brasil S.A

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

CPT – Comissão Pastoral da Terra

DDL – Departamento de Desenvolvimento Local

DOPS – Departamento de Ordem Política e Social

DRH – Departamento de Recursos Humanos

DSIs – Divisões de Segurança e Informações

DSN – Doutrina de Segurança Nacional

DTC – Departamento de Terras e Colonização

FAPEMAT – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso

FMI – Fundo Monetário Internacional

FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura

FRENOVA – Fazendas Reunidas Nova Amazônia S/A

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

GEA – Ginásio Estadual do Araguaia

GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins

GPHTT – Grupo de Pesquisa em História Terra e Trabalho

IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária

IFMT – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso

IFPA – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INDECO – Integração, Desenvolvimento e Colonização

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

INTERMAT – Instituto de Terras de Mato Grosso

IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

KGB – Comitê de Segurança do Estado

MO – Movimento Operário

MOBRAL – Movimento Brasileiro em Prol da Alfabetização

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

ONG – Organização Não Governamental

NPH – Núcleo de Pesquisa em História

PAC – Projeto de Assentamento Conjunto

PAN – Porto Alegre do Norte

PC do B – Partido Comunista do Brasil

PIBIC – Programa de Iniciação Científica

PIN – Programa de Integração Nacional

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

POLOAMAZÔNIA – Programa Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia

POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados

PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária

PPGHIS – Programa de Pós-Graduação em História

PROBOR – Superintendência da Borracha

PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste

SERVAP – Serviços Auxiliares da Agropecuária Ltda.

SFA – São Félix do Araguaia

SINOP – Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná

SISNI - Sistema Nacional de Informações

SNI – Serviço Nacional de Informação

SPI – Serviço de Proteção ao Índio

SPVA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia

STRs – Sindicato dos Trabalhadores Rurais

STZ –

SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste

SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus

UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso

VIC – Voluntário de Iniciação Científica

VPR – Vanguarda Popular Revolucionária

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 18

1. MIGRAÇÕES E OCUPAÇÕES NO ARAGUAIA MATO-GROSSENSE ...... 56

1.1 Histórico de Ocupação de Porto Alegre do Norte: o cenário da vida dos posseiros antes da chegada das empresas agropecuárias ...... 70

1.2 A constituição do patrimônio de Porto Alegre do Norte: uma espacialidade traçada pela mobilidade e história de famílias...... 90

2. OS PROJETOS AGROPECUÁRIOS E DE COLONIZAÇÃO NA AMAZÔNIA LEGAL DURANTE A DÉCADA DE 1970 ...... 104

2.1 O estabelecimento dos empreendimentos agropecuários no nordeste de Mato Grosso ...... 112

2.2 A venda de terras no estado de Mato Grosso ...... 116

2.3 Dom Pedro Casaldáliga e a sua missão no Araguaia ...... 119

2.4 A Implantação da FRENOVA em Porto Alegre do Norte ...... 128

2.5 Porto Alegre do Norte sob suspeita de atos guerrilheiros ...... 142

2.6 A intensificação da exclusão social através da violência ...... 158

3. A REPRESSÃO MILITAR COMO RESPOSTA AOS CONFLITOS DE TERRA ...... 170

3.1 O violento ano de 1973 e os relatos de torturas na Prelazia de São Félix do Araguaia ...... 176

4. AS TÁTICAS DE ENFRENTAMENTOS E A RESISTÊNCIA DOS POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA EM PORTO ALEGRE DO NORTE .... 224

4.1 A “limpeza da área”: o histórico de constituição da Agropecuária Piraguassu ...... 226

4.2 “Época branda” e as táticas de resistências dos posseiros ...... 229

4.3 “Época violenta”: expulsão de posseiros e o assassinato do jagunço Capixaba ...... 266

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 282

BIBLIOGRAFIA ...... 292

Periódicos e Anais de Eventos ...... 299

Webgrafia ...... 301

Dissertações, Teses e Monografias ...... 302

Documentos ...... 304

Jornais e Revistas ...... 307

Sites ...... 308

Entrevistas ...... 309

Filmografia ...... 310

ANEXOS ...... 311

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INTRODUÇÃO

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvidas, somente a sociedade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a sociedade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos1.

Inicio este texto com a escrita na primeira pessoa do singular, mas sempre fui orientada a utilizar a terceira pessoa ou o infinitivo verbal. Entretanto, na introdução, escolhi o uso da primeira pessoa para descrever o percurso traçado dessa pesquisa, pois o interesse pela temática é resultado dos meus vínculos pessoais, primeiramente com o histórico das cidades de colonização, logo após sobre as relações de trabalho naquelas espacialidades e, por fim, a violência expressa no processo de (re)ocupação2 recente da Amazônia. Após a apresentação, a escrita dos capítulos que compõem esta tese estará na primeira pessoa do plural, tendo em vista que esta investigação é fruto de um lugar, ou seja, do PPGHIS/UFMT, em que estabeleci relações com os professores, assim como com os autores que me ajudaram a pensar o tema, o convívio no NPH e a orientação do professor Vitale Joanoni Neto na constituição deste estudo como um trabalho em conjunto. A presente pesquisa é resultado de uma trajetória traçada desde o início da Graduação em História (2007), perpassando o Mestrado (2010) e resultando no tema da tese em questão. Estudar a história recente de Mato Grosso possui relação com a atividade trabalhista que o meu pai desempenhava como gerente de uma fazenda no município de Itanhangá, a 458 km de Cuiabá. Ao

1BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 223. 2Remetemos ao processo de (re)ocupação para demonstrarmos que a Amazônia já era ocupada por etnias indígenas e povos da floresta, antes da entrada das empresas agropecuárias e projetos de colonização implantados durante a ditadura civil militar no Brasil, a qual alegava que o interior do país, ou seja, a Amazônia Legal era considerada como espaços vazios. A respeito, consultar: GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 1986. 19 viajar para o norte de Mato Grosso, pude perceber que as configurações urbanas daquelas cidades eram bem diferentes da capital do Estado. As ruas são largas e planejadas, com praças e jardins nos centros das cidades, as pessoas em sua maioria tinham origem dos Estados do Sul do Brasil. Com apenas dezessete anos, aquelas particularidades me chamaram muito a atenção. Assim, ao entrar no curso de História, conheci o Professor Vitale Joanoni Neto, que me convidou para fazer parte de uma viagem a campo, financiada pela FAPEMAT, juntamente com o professor João Carlos Barrozo e a equipe de pesquisadores da professora Júlia Adão Bernardes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Passamos quinze dias do mês de julho de 2007 conhecendo e pesquisando os municípios3 ao longo da BR 158. Em decorrência das inquietações e curiosidades que eu tinha desde adolescente sobre o processo de (re)ocupação recente do estado de Mato Grosso, a viagem realizada pela BR 158 direcionou o meu olhar primeiramente como pesquisadora VIC para o Projeto de Colonização da cidade de Canarana na década de 1970. Como bolsista PIBIC no ano de 2008, passei a pesquisar sobre a violência no uso do trabalho análogo ao de escravo pelas empresas agropecuárias estabelecidas no Araguaia mato-grossense a partir da década de 1970. A violência contida nas relações trabalhistas no nordeste de Mato Grosso também foi aprofundada na dissertação de Mestrado em História, intitulada: ―Correntes do Araguaia: A exploração de trabalhadores migrantes no nordeste de Mato Grosso durante a década de 1970‖4. Essa temática me chamou a atenção, pois na fazenda

3A viagem a campo ocorreu nos seguintes municípios do nordeste de Mato Grosso: Água Boa, Canarana, Confresa, Porto Alegre do Norte, Ribeirão Cascalheira, Santa Terezinha e Querência. 4Após a defesa da dissertação no ano de 2012, ingressei como bolsista no Projeto Ação Interinstitucional para a Qualificação e Reinserção Profissional dos Trabalhadores Resgatados do Trabalho Escravo e/ou Situação de Vulnerabilidade, parceria entre Ministério do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT), Ministério Público do Trabalho, através da Procuradoria Regional do Trabalho 23ª Região (PRT/MT), e UFMT, representada pelo GPHTT, coordenado pelo professor Vitale Joanoni Neto. Ao ingressar no Doutorado em História no ano de 2013, participei do ―Projeto de Inclusão Produtiva para o uso de mão de obra de egressos do trabalho análogo ao escravo em atividades de construção civil a partir da experiência da Arena Pantanal em Cuiabá, MT‖, juntamente com os Professores Vitale Joanoni Neto, Beatriz dos Santos Oliveira Feitosa e Adriano Knippelberg Moraes.

20 que o meu pai gerenciava havia o contrato temporário de trabalhadores migrantes para a catação de raízes presentes no solo após o desmatamento da área da fazenda destinada ao plantio de soja. Essa atividade era desempenhada a duras penas, sob o sol escaldante, com alojamentos improvisados em meio à mata e a alimentação realizada em barracas armadas próximas aos córregos no espaço de preservação da floresta do empreendimento rural. Quando me deparei com tal situação no ano de 2005, meu pai e eu não tínhamos a dimensão de que aquela relação trabalhista se configurava como trabalho análogo ao de escravo. Desse modo, ao analisar a documentação da Prelazia de São Félix do Araguaia5 no ano de 2007, tomei conhecimento dos vários casos de trabalho escravo contemporâneo nas companhias agropecuárias da região e, então, decidi analisá-los e entender a permanência de condições arcaicas e degradantes de trabalho6 no estado de Mato Grosso. Diante das leituras realizadas para a escrita da dissertação, também pude conhecer o histórico da migração de trabalhadores rurais7 para o nordeste de Mato Grosso no início do século XX, e as lutas desempenhadas por estes pela permanência na terra no final da década de 1960, com a entrada das empresas agropecuárias na Amazônia. Dentre os quatorzes municípios que compõem a

5Conforme informações contidas da carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, o decreto de criação da Prelazia de São Félix do Araguaia, denominado de "Quo commodius", foi assinado por Paulo VI, no dia 13 de março de 1970, estabelecendo os limites estritos da Prelazia de São Félix: "Ao norte, os confins da Prelazia de Conceição do Araguaia, que atualmente delimitam os estados do Pará e Mato Grosso; ao leste, os confins da Prelazia de Cristalândia, e ao oeste os da Prelazia de , ou seja, os rios Araguaia e Xingu; ao sul, a linha traçada em direção noroeste desde a confluência dos rios Curuá e das Mortes; e daí em linha reta até a confluência dos rios Couto de Magalhães e Xingu". A Prelazia de São Félix abrange 150.000 km² dentro da Amazônia Legal, no nordeste de Mato Grosso, e com a Ilha do Bananal. CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 1971, p. 4. 6No ano de 2010, em que eu escrevia a minha dissertação de Mestrado, o estado de Mato Grosso ocupava o sexto lugar do ranking na lista de empregadores que contratam trabalhadores em situação análoga à de escravidão. A chamada ―lista suja‖ possui 12 casos registrados em municípios mato-grossenses: em Várzea Grande, Poconé, Novo São Joaquim, Alto Garças, Santa Terezinha, , Confresa, Porto dos Gaúchos, , Nova Ubiratã e . Disponível em: . Acesso em: 08 jan. 2016. 7Ao longo da escrita desta tese iremos utilizar o termo trabalhador rural para designar de modo geral, os homens e as mulheres que participaram na luta pela terra em Porto Alegre do Norte.

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Microrregião8 do Norte Araguaia9, a cidade de Porto Alegre do Norte aguçou o meu interesse em estudar a trajetória das migrações para a Amazônia, o processo de luta pela terra e a mediação da Prelazia de São Félix do Araguaia10, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga11 na resolução dos conflitos entre os empreendimentos rurais e os posseiros12. Em relação à espacialidade descrita acima, é importante destacar que ao longo da tese utilizarei o termo região para denominar as áreas tanto de deslocamento migratório de famílias quanto a de estabelecimento das empresas agropecuárias na Amazônia e Araguaia mato-grossense. Apoio-me nas categorias espaciais de região formuladas pelo IBGE, que define o nordeste de Mato Grosso

8Em 1987, o IBGE elaborou o estudo da Divisão Regional do Brasil em Mesorregiões e Microrregiões Geográficas para fins estatísticos em substituição à Divisão Regional em Microrregiões homogêneas editadas pelo Instituto em 1968. Na década de 1990, o IBGE definiu as Mesorregiões Geográficas como conjuntos de municípios contíguos, pertencentes à mesma Unidade da Federação, e as Microrregiões Geográficas como conjuntos de municípios contíguos integrantes das mesorregiões que apresentam especificidades, quanto à organização do espaço do quadro natural e sobre as relações sociais e econômicas que compunham a vida de relações locais. IBGE. Divisão Regional do Brasil em Mesorregiões e Microrregiões Geográficas, v.1. Rio de Janeiro, 1990. 9A Microrregião do Norte Araguaia é composta pelos municípios de , Vila Rica, Confresa, Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu, São Félix do Araguaia, Canabrava do Norte, Luciara, Alta Boa Vista, , , Novo Santo Antônio e Ribeirão Cascalheira. A Mesorregião do Nordeste Mato- Grossense é uma das cinco Mesorregiões do estado de Mato Grosso. É formada pela união de 25 municípios agrupados em três Microrregiões que são: Canarana, Médio Araguaia, Norte Araguaia. Ver em anexos: Mapa (Figura 1) de Mato Grosso com as Mesorregiões e Microrregiões. 10A Prelazia é composta por quinze municípios: Santa Cruz do Xingu, Vila Rica, Confresa, Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu, São Félix do Araguaia, Canabrava do Norte, Luciara, Alta Boa Vista, Serra Nova Dourada, Bom Jesus do Araguaia, Novo Santo Antônio, Ribeirão Cascalheira e Querência (este último faz parte da Microrregião Canarana). Ver anexo o Mapa (Figura 2) com o destaque dos municípios. 11Dom Pedro Maria Casaldáliga nasceu em Balsareny, cidade da Província Catalã de Barcelona, no dia 16 de fevereiro de 1928; Casaldáliga ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões, onde foi ordenado sacerdote em 1943. No ano de 1968, Dom Pedro Casaldáliga veio para o Araguaia mato-grossense como missionário para assumir as responsabilidades pastorais. Sentiu-se convocado, diante dos problemas encontrados, além das diligências religiosas, investiu tempo e energia na organização de indígenas e posseiros e nas denúncias das violações dos direitos humanos que estes e os peões sofriam. Em 1971, ordenaram-no Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldáliga apresentou seu pedido de renúncia à Prelazia, como exige o Vaticano de todos os Bispos, exceto ao de Roma, o papa. 12Para Miranda, o conceito de posseiro, no Direito brasileiro, é todo trabalhador rural que, independente de justo título e boa-fé, apossa-se de imóvel rural, público ou privado, tornando-o produtivo com o seu trabalho e nele tiver morada habitual. MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito Agrário e o Posseiro. Revista da Faculdade de Direito UFG, Goiânia, v. 12, n. ½, p. 113-123, jan./dez. 1988, p. 122.

22 como a Microrregião Norte do Araguaia, bem como o norte do Estado com os municípios que integram a Amazônia Legal. A delimitação de uma região é um processo delicado para a geografia, pois a sua organização implica a homogeneização de determinados aspectos que sejam distintos de outros. Para Pierre Bourdieu13, a região é uma representação que depende do conhecimento e reconhecimento daqueles que a projetaram. O autor ainda demonstra que existem diversos elementos que estabelecem a divisão, classificação e interação dos espaços, assim, a definição científica de região está atrelada a políticas governamentais de ―organização do território‖ ou de ―regionalização‖. Para Bourdieu o conceito de região é uma representação que implica um conjunto de pressupostos, por vezes ocultos nos diferentes usos do termo. Em relação à Amazônia, várias representações foram formuladas no imaginário brasileiro a respeito da região, tendo-se como exemplo as propagandas governamentais difundidas pelo governo de Getúlio Vargas e no período da ditatura militar que anunciavam um plano de desenvolvimento para aquela área. Neste sentido, o conceito de região, especificamente da Amazônia, parte de uma formulação entre os discursos da mídia, do governo e da academia, já que a sua conceituação abrange uma série de lutas e interesses. No que se refere ao período de estudo, a Amazônia cumpriu um papel fundamental para os ideais políticos e econômicos do governo ditatorial, tendo em vista que a criação da Amazônia Legal legitimou a (re)ocupação da região respaldada pela Doutrina de Segurança Nacional e expansão capitalista no campo.

13BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: DIFEL, 1989. (Grifo do autor).

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Mapa 1: Prelazia de São Félix do Araguaia em relação ao estado de Mato Grosso e ao Brasil. 24

Os estudos sobre os processos migratórios para o nordeste de Mato Grosso14 apontam que estes foram realizados ao longo do início do século XX, criando diversos povoados, tais como: Furo de Pedras (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Luciara (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949). A respeito dos povos indígenas que ocupavam a região, Soares15 demonstra que, até o final do século XIX, o Vale do Araguaia, entre os rios Tapirapé ao norte, Araguaia ao leste, Xingu ao oeste e o das Mortes ao sul, era território ocupado pelos povos Karajá, Kayapó, Xavante e Tapirapé16. A partir da primeira década do século XX, ocorreu um complexo contato interétnico entre os posseiros e as sociedades indígenas ali estabelecidas. As sociedades indígenas Xavante, Karajá, Tapirapé e Kayapó eram rivais e entraram em constantes conflitos. Os Kayapó são muito temidos pelos Karajá e Tapirapé. Na década de 1940, os Kayapó atacaram a grande aldeia dos Tapirapé, saquearam e mataram a população. Os seus sobreviventes procuraram abrigo junto à população não indígena do Vale do Araguaia. A partir da década de 1950, os Tapirapé reestruturaram a sua sociedade e obtiveram um aumento populacional de 629 pessoas no ano de 2010, conforme os dados apresentados por SOARES17. Os Tapirapé atualmente vivem em duas áreas indígenas situadas no nordeste do estado de Mato Grosso: Terra Indígena Urubu Branco, onde estão localizadas seis aldeias, e Terra Indígena Tapirapé-Karajá, como também uma aldeia na qual a maior parte da população se identifica como Apyãwa (Tapirapé) e

14A respeito, consultar: NUNES, Carla Soraya Ribeiro. Novos olhares sobre a colonização de Confresa (1970-1980). In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010. SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos: povoamento não indígena no Vale do Araguaia, parte Nordeste do Estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010. SOUZA, Maria Aparecida Martins. A luta pela permanência na terra: a resistência dos posseiros de Santa Terezinha. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010. 15SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos: povoamento não indígena no Vale do Araguaia, parte Nordeste do Estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010, p. 269. 16Sobre os índios Tapirapé: IRMÃNZINHAS DE JESUS. O renascer do povo Tapirapé: O diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld - Irmãzinhas de Jesus. São Paulo: Salesiana, 2002. RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no cotidiano da aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais). Cáceres: Universidade Estadual de Mato Grosso, 2014. 17SOARES, op. cit., p. 271. 25

algumas famílias pertencentes ao povo Iny (Karajá), havendo também outras aldeias em que moram homens Apyãwa casados com mulheres Iny18. A Terra Indígena Urubu Branco possui 167.533 hectares, situada nos municípios de Santa Terezinha, Confresa e Porto Alegre do Norte, no estado de Mato Grosso, sendo reconhecida como território tradicional dos Tapirapé em 1996, por intermédio da Portaria nº 599, de 02 de outubro, e homologada pelo Decreto Federal não numerado em 08 de setembro de 199819. A vinda das Irmãzinhas de Jesus20 e do padre Francisco Jentel foi o que protegeu os Tapirapé da extinção. As missionárias juntaram-se aos Tapirapé e atualmente vivem entre eles, contribuindo para o processo de reconstituição dessa etnia. Em relação aos deslocamentos migratórios para a Amazônia, estes decorrem de vários fatores, tais como: a seca, a libertação dos laços de dependência das propriedades de latifundiários/coronéis, as técnicas da agricultura camponesa, como a roça de coivara, que depende de mudanças constantes, relações sociais de ordem pelo parentesco e determinação estrutural em relação à propriedade da terra, entre outros. Dentre os diversos motivos, objetivos e subjetivos, para se empregar a migração, Maria Antonieta da Costa Vieira21, em sua tese ―À procura das Bandeiras Verdes‖, analisou o processo migratório de trabalhadores rurais para a Amazônia Oriental, nas décadas de 1960 e 1970, demonstrando que os grupos religiosos: Missão da Maria da Praia e Romaria de Padre Cícero se pautavam na ocupação da fronteira por meio de um ponto de vista religioso e camponês. Essa mobilização em busca das ―Bandeiras Verdes‖ – que se caracterizava pelas matas, se dava pela procura dos camponeses de um lugar prometido permeado por crenças espirituais.

18RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no cotidiano da aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais). Cáceres: Universidade Estadual de Mato Grosso, 2014, p. 15. 19Disponível em: . Acesso em 08 jan. 2016. 20A irmãzinha Genoveva (morreu na Aldeia Tapirapé em 2013), uma das fundadoras que chegou em 1952, Elizabeth e Odile vieram em 1956. Saíram com os índios da Barra do Tapirapé, onde ficaram algumas famílias e começaram a viver numa nova aldeia, Tapi'itawa. Disponível em:< http://www.hermanitasdejesus.org/brasil/tapirape2.htm>. Acesso em: 08 jan. 2016. 21VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes: Viagem, Missão e Romaria. Movimento Sócio-religioso na Amazônia Oriental. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001.

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Desse modo, a autora demonstra que as migrações destes indivíduos podem ser identificadas como uma metáfora do campesinato da fronteira em busca do seu lugar social. Estes lavradores queriam se desprender da sujeição de ter que trabalhar em terras alheias, em não ter liberdade sobre o uso do seu tempo, bem como conquistar o poder de decisão sobre as atividades laborais que iriam desenvolver e as mudanças que deveriam empregar na produção agrícola e pecuária. Para estudar o processo de (re)ocupação da Amazônia, torna-se importante citar o sociólogo José de Souza Martins22, o qual afirma que definir e caracterizar a fronteira no Brasil é apresentar a sua situação de conflito social. Ela é configurada pela presença de índios de um lado e não índios por outro; com os grandes proprietários de terras de um lado e os camponeses pobres de outro. O conflito se configura na descoberta e desencontro do outro, ou seja, o desencontro da temporalidade histórica, pois cada um desses grupos está situado de maneira diversa no tempo histórico. Dentre estes grupos é essencial demonstrar o tempo histórico do pistoleiro, que mata índios e camponeses a mando do patrão e do latifundiário. Assim, o seu tempo é o do poder pessoal da ordem política patrimonial e não o de uma sociedade moderna, igualitária e democrática que atribui à instituição neutra da justiça a decisão sobre os litígios entre seus membros. Ainda de acordo com Martins23, a frente de expansão em que se moviam juntos ricos e pobres ocorria no sentido de que estes se deslocavam com base nos direitos da sesmaria. O posseiro na Amazônia invoca o seu direito sobre a terra pelo trabalho que nela foi desempenhado, reclamando o seu direito de cedê-la ou vendê-la, partindo da concepção de que era preciso ocupar a terra com trabalho (derrubada da mata e o seu cultivo), antes de obter o reconhecimento das garantias, conforme ocorria no sistema da sesmaria. A migração forçada pela expulsão do local de origem impõe a esta população o estabelecimento em áreas de fronteira, e quando não tem ―perspectiva de encontrar novas terras nem há perspectiva ou disposição de entrar na economia

22MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social, São Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996. 23Ibidem. p. 42.

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da miséria no interior da fronteira econômica, geralmente começa a luta pela terra, o enfrentamento do grande proprietário e seus jagunços‖24. E não somente isso, pois os camponeses ameaçados optam pela luta da terra, seja para questionar os supostos direitos alegados pelos proprietários ou a legitimação desse direito assegurado pela Lei de Terras de 1850, em que o direito à posse (usucapião) advém da comprovação do posseiro em morada habitual e cultura efetiva na posse. O plano de governo para (re)ocupar a Amazônia advém da política dos militares, que após o golpe de 1964 destituiu em seus fundamentos a ordem e as tradições-estatistas que João Goulart representava. Assim, de acordo com Daniel Aarão Reis25, o regime ditatorial colocou em prática a política internacionalista-liberal, cuja ideia estava associada à abertura econômica para o mercado, no estímulo aos capitais privados, até mesmo os estrangeiros, em um ponto de vista distinto do papel do Estado na economia, mais regulador do que intervencionista. É importante destacar que estas perspectivas foram elaboradas no IPES26, juntamente com lideranças civis e militares que desempenharam um importante papel na concretização do golpe. A presidência da República assumida por Castelo Branco (1964-1967) englobava um perfil e um programa, como, por exemplo, o internacionalismo que tinha como proposta se alinhar aos Estados Unidos, culminando na chamada abertura do Brasil aos fluxos do capital internacional. Este projeto estava pautado na estabilização da economia e das finanças, assim como no estímulo às exportações e na atração de consideráveis investimentos de capitais privados, fazendo com que o processo de modernização conservadora tomasse corpo27.

24Idem. 25REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 34. 26As articulações para a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais iniciaram em 1961, a partir da posse de João Goulart; os empresários passaram a ver o governo com desconfiança e associá-lo aos movimentos sindicais, comunistas e ao aumento da intervenção estatal, intensificando assim, as suas ações para a criação de uma organização que apoiasse os seus interesses. Em 2 de fevereiro de 1962, o IPES foi fundado no Rio de Janeiro, originado da associação de empresários de São Paulo e Rio de Janeiro que passaram a contestar as ―reformas de base‖, relacionando as propostas do governo ao comunismo. O IPES contribuiu para a derrubada do governo Goulart, em 31 de março de 1964, pelos militares, por meio de um trabalho propagandístico. PAULA, Christiane Jalles de. Na presidência da República: o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – IPES. Rio de Janeiro: CPDOC, 2004. 27REIS, op. cit., loc. cit.

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Neste contexto, o nacionalismo também foi uma característica forte do governo ditatorial, onde civis (empresários) queriam a liberalização da economia e militares defendiam o nacionalismo, como um modelo de desenvolvimento que tentava reunir dois elementos profundamente contrários: o nacionalismo e os interesses de grupos internacionais. Diante da política de modernização e da guinada na economia brasileira, os olhares do presidente Emílio Garrastazu Médici foram direcionados para o Nordeste do país. De acordo com Thomas Skidmore28, nenhuma região do Brasil podia comparar-se à escala de miséria em que viviam mais de 30 milhões de nordestinos na década de 1970 como resultado da seca e da estrutura fundiária. O presidente Médici instituiu uma política que via a Amazônia e o Nordeste como problemas únicos, os quais deveriam ser sanados pela construção da rodovia Transamazônica, que abriria o ―vazio demográfico‖ da Amazônia e suas terras férteis aos trabalhadores rurais miserabilizados do Nordeste. O excedente populacional do Nordeste seria levado para o espaço amazônico por meio do PIN criado pelo Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970, tendo como emblema de governo ―Terras sem homens para homens sem terras‖. O PIN deveria incluir três elementos: (1) abertura do vale amazônico através de uma nova rodovia que facilitaria a colocação de 70.000 famílias; (2) irrigação de 40.000 hectares no Nordeste no período 1972-74; e (3) criação de corredores de exportação no Nordeste29. A migração nordestina, que antes tinha como rota o Centro-Sul, passou a ter como destino os projetos de colonização que foram se formando ao longo das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém. A (re)ocupação da Amazônia não tinha apenas como objetivo atenuar as tensões sociais e econômicas existentes no Nordeste do país, mas também criar estratégias geopolíticas no que dizia respeito à tomada da região por estrangeiros e elementos considerados subversivos pelo governo ditatorial. Com a descoberta das riquezas minerais, especialmente das jazidas de ferro, a preocupação com esta área foi aumentada.

28SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 202. 29Idem.

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Entretanto, havia uma contradição no discurso geopolítico de proteger a Amazônia da exploração dos seus recursos por grupos externos, tendo em vista que o Projeto Jari estabelecido na fronteira entre os estados do Pará e Amapá foi concedido ao norte-americano Daniel Luwig. Da mesma forma, as distribuidoras de petróleo e derivados continuaram no país, as montadoras ampliaram seu parque industrial. Essa presença, como a do Projeto Jari, foi vista como investimento que traria divisas para o país. O discurso político era o de proteger por meio da integração à nação e esses empreendimentos, como os de colonização, os agropecuários, e tantos outros aprovados pela SUDAM, SUFRAMA, SUDECO, foram caracterizados, dessa forma, como aplicações financeiras que trariam desenvolvimento. Segundo Skidmore30, os investimentos do governo militar no setor público, como no caso da Amazônia, devem ser analisados dentro do contexto de uma estratégia econômica em que o objetivo consistia em potencializar tanto as aplicações financeiras privadas como públicas. A esfera privada era beneficiada por uma política que conferia aos empresários a maior quantia dos resultados de produtividade e de incentivos tributários, especialmente na agricultura e no setor de exportações. Os empreendimentos públicos obtinham facilidades por políticas de preços de custo total, bem como dos empréstimos conferidos por instituições estrangeiras como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, os quais se tornaram os principais financiadores de recursos para o Nordeste e a Amazônia. O governo militar na década de 1970 instituiu a Operação Amazônia, com o objetivo de eliminar sob vários modos os problemas sociais e econômicos da região. Para tanto, foram criados os seguintes órgãos e programas federais: SUDAM, INCRA, BASA, POLOAMAZÔNIA, POLONOROESTE, POLOCENTRO e PROBOR com o intuito de promover a ocupação produtiva e a integração da Amazônia e do Centro-Oeste ao restante do Brasil. O governo ditatorial disseminava a ideia de que a Amazônia era um ―espaço vazio‖, em que não havia produção e integração com o resto do país. Por meio destes órgãos e programas, o governo passou a coordenar a ocupação da terra, garantindo e

30Idem.

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incentivando o desenvolvimento e a propagação do capitalismo no campo, de modo a criar bases sólidas para a política de segurança nacional31. Sob essas medidas, Octávio Ianni afirma que:

O governo colocou à disposição de latifundiários e fazendeiros (através da SUDAM, BASA e SUDECO) estímulos e favores fiscais e creditícios, políticos e econômicos para a formação e crescimento de latifúndios, fazendas e empresas agropecuárias, de extrativismo e mineração. Deste modo, desde 1966, intensificaram-se a colonização espontânea na região32.

Os empreendimentos rurais financiados pela SUDAM asseguraram a criação de gado como o carro chefe da política de (re)ocupação da Amazônia, em detrimento da população tradicional e migrante que estava estabelecida na região muito antes da entrada das agropecuárias. Neste mesmo contexto, foram implantados em Mato Grosso os projetos de colonização privada, em que predominavam os agricultores do Sul do Brasil. Dentre eles, podemos destacar: Projeto Sinop, ao longo da rodovia Cuiabá-Santarém, Alta Floresta no vale do rio Teles Pires33 e os Projetos Canarana34 (Água Boa e Querência), no Araguaia. Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira35, o processo de ocupação da Amazônia advém de dois mecanismos interligados, o primeiro, pelas políticas territoriais do Estado (aberturas das rodovias, incentivos fiscais e créditos), bem como a consequente implantação dos projetos agropecuários, e de outro lado, o acesso dos grupos econômicos nacionais e/ou internacionais aos recursos minerais da região. Dessas políticas resultaram o caráter contraditório da formação da

31Esta política estava baseada na Doutrina de Segurança Nacional que consiste no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica antisubversiva contra o inimigo comum. Desse modo, a Doutrina converte o sistema social em sistema de guerra. BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia, de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 32IANNI, Octávio. Ditadura e agricultura: desenvolvimento e capitalismo na Amazônia – 1964- 1978. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979C, p. 12. 33Sobre estes projetos ver: BARROZO, João Carlos. Políticas de Colonização: as políticas públicas para a Amazônia e o Centro-Oeste. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EDUFMT/Carlini&Caniato, 2008. 34Sobre o Projeto Canarana, consultar: MORAES, Adriano Knippelberg. Projeto Canarana: trajetórias de famílias em busca de terras no Mato Grosso (1971-1981). Dissertação (Mestrado em História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2015. 35OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos. Campinas: Papirus, 1987, p. 17.

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estrutura fundiária brasileira, em que o Centro-Norte de Mato Grosso, conforme o autor citado, é formado pela presença de grandes projetos agropecuários, por áreas de posseiros regularizadas ou não pelo INCRA, por projetos privados de colonização e pelas terras indígenas. Com a entrada das atividades agropecuárias a partir da década de 1960 na Amazônia Legal36, o seu território, que antes era composto basicamente por posseiros vindos de Goiás e dos estados do Nordeste, passou a ―compartilhar‖ o espaço com novos agentes sociais, ou seja, com os grupos de empresários nacionais e internacionais que estabeleceram as empresas rurais, principalmente as agropecuárias. As linhas de crédito chegavam a cobrir até 70% do capital dos empreendimentos, através dos incentivos fiscais e da isenção de impostos. Diante deste cenário, os projetos agropecuários tinham que ampliar e instituir novos empregos na região, formar e criar determinado número de cabeças de gado e construir obras de infraestrutura para o desenvolvimento regional. Entretanto, o fato mais expressivo foi a ocupação por meio da ―grilagem legalizada‖ das terras de posseiros e indígenas, ou seja, a conivência por parte do Estado na venda de terras da população que já habitava a Amazônia37. A partir da implantação do Estatuto da Terra de 1964, o governo militar se orientou em uma política deliberada de concentração fundiária e de constituição de grandes empresas no campo. Ao mesmo tempo, implantou uma política de redistribuição de terras nos lugares em que as tensões sociais eram definidas como perigo à segurança nacional e, consequentemente, à estabilidade do regime militar. Desse modo, estudar a história da fronteira se pauta na expulsão e destruição de etnias indígenas e de posseiros na Amazônia38.

36A Lei nº 5.173 de 27 de outubro de 1966 extingue a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e cria a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que, através do Plano de Valorização da Amazônia, estabelece que a Amazônia brasileira passe a ser denominada ―Amazônia Legal‖, compreendida pelos estados do Acre, Pará e Amazonas, pelos Territórios Federais do Amapá, Roraima e Rondônia, e ainda pelas áreas do estado de Mato Grosso a norte do paralelo de 16º, do estado de Goiás a norte do paralelo de 13º e do estado do Maranhão a oeste do meridiano de 44º. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2015. 37OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos. Campinas: Papirus, 1987, p. 17. 38O Relatório da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) apontou que 1.196 camponeses foram assassinados ou desapareceram em disputas no campo, entre setembro de 1961 a outubro de 1988. Disponível em:< http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/durante-a-ditadura-1-196-pessoas-foram- mortas-no-campo/>. Acesso em: 06 jan. 2016.

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Diante das problemáticas que os projetos de colonização e os agropecuários causaram na Amazônia, torna-se importante destacar o conceito de conflito, elaborado pela Ciência Política, em que este é visto como ―uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica choques para o acesso e a distribuição de recursos escassos‖39. Como podemos observar, na concepção de Dominko Barillaro, o conflito é exposto de modo geral, como um embate para ter aquisição e divisão de fundos insuficientes. Tal entendimento não difere essencialmente do conceito de conflito elaborado pela CPT para o espaço rural brasileiro:

Conflitos são as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas. Os conflitos são catalogados em conflitos por terra, conflitos pela água, conflitos trabalhistas, conflitos em tempos de seca, conflitos em áreas de garimpo, e em anos anteriores foram registrados conflitos sindicais. Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a seringais, babaçuais ou castanhais, quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros40, indígenas, pequenos arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc.41

A criação da CPT ocorreu em meio aos conflitos agrários vivenciados principalmente no Norte do Brasil, configurados pela presença incipiente do Estado na solução das problemáticas do campo; assim, uma série de bispos, religiosos e leigos organizados basicamente por Dom Pedro Casaldáliga passaram a cobrar uma posição da Igreja diante daqueles problemas. Em 1975, numa Assembleia da CNBB em Goiânia, decidiu-se criar uma Comissão Pastoral permanente cujo objetivo seria acompanhar os principais focos de tensão das regiões Norte e Centro–Oeste do país, com o propósito de defender os posseiros

39BARILARRO, Dominko. Conflito. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1998, p. 225. 40Populações tradicionais que vivem nos cerrados do norte de Minas Gerais. 41CANUTO, Antônio; LUZ, Cássia Regina da Silva; LAZZARIN, Flávio. Conflitos no Campo – Brasil 2012. Goiânia: CPT Nacional, 2013, p. 10.

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da expropriação dos latifundiários. A CPT passou a trabalhar com boias frias, sem terras e pequenos proprietários, com o auxílio dos leigos na resolução dos problemas agrários. Esta entidade tinha a finalidade de servir de apoio aos movimentos populares, grupos e associações que lutavam direta ou indiretamente em áreas de conflitos agrários através de um ―serviço educativo‖ pelo uso de denúncias e no apoio político pedagógico aos grupos que se organizavam na luta pela terra42. O nordeste de Mato Grosso, a exemplo da cidade de Porto Alegre do Norte, passou por um processo migratório de pessoas provenientes principalmente do Maranhão, norte de Goiás e sul do Pará no início do século XX. Transformando aquela espacialidade através do estabelecimento das famílias de trabalhadores rurais que constituíram um novo ambiente assinalado por experiências sociais, culturais e políticas diversificadas. Diante do histórico do processo de migração para o nordeste de Mato Grosso, destacamos como hipótese desta tese a constatação de que as famílias de agricultores rurais estabelecidas em Porto Alegre do Norte possuíam laços fortalecidos pelas relações de parentesco, compadrio e amizade. Sendo assim, torna-se importante assinalar que esta sociabilidade criada na fronteira foi fundamental na luta pela terra naquela espacialidade, pois as famílias passaram a desenvolver um sentimento de pertencimento a Porto Alegre do Norte que se fez significativo nos momentos de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu durante a década de 1970. Os projetos de colonização e agropecuário implantados durante o governo militar na Amazônia Legal deixaram de lado a população que já habitava aquele espaço, dando abertura para o uso ilegal da violência através de pistoleiros e jagunços guiados por uma política patrimonial que culminou na definição dos litígios por terras no Araguaia. A presença da Prelazia de São Félix do Araguaia, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga, padres, leigos e agentes de pastoral43, foi importante na

42VILLALOBOS, Jorge Ulisses Guerra; ROSSATO, Geovanio. A Comissão Pastoral da Terra (CPT): Notas da sua atuação no estado do Paraná. Boletim de Geografia, Maringá, v. 14, n. 1, p. 19-32, 1996. 43Para se tornar agente de pastoral na Prelazia de São Félix do Araguaia, o ingressante deveria conviver nas casas comunitárias com pessoas de diversas origens sociais, faixa etária, estado civil e religioso. Os agentes de pastoral viviam em casas semelhantes às dos moradores locais e tinham

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resolução dos conflitos de terra existentes no nordeste de Mato Grosso, especialmente em Porto Alegre do Norte, que também contou com o apoio dos padres Eugênio Consoli e Francisco Jentel na intermediação da demarcação das terras dos posseiros junto à FRENOVA e à Piraguassu. Essa situação aumentou a tensão social e, consequentemente, ocorreu a intervenção militar nos problemas agrários, bem como o envolvimento de múltiplos grupos nos conflitos por terra, tendo a inclusão de diversos agentes sociais da Igreja Católica, sendo estes ligados a CPT, ao CIMI e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Já na esfera do Estado, pode-se destacar a atuação do INCRA, da Polícia Militar, do Exército e da Polícia Federal, estando estes muitas vezes ligados a um trabalho conjunto com os pistoleiros e jagunços das empresas agropecuárias. Busco assinalar nesta tese que o Estado representado em Porto Alegre do Norte, principalmente pelo INCRA, pelas polícias Militar e Federal, se instituiu como enviado e defensor das empresas agropecuárias. E, assim, atuou de modo arbitrário nas disputas legais pelo direito à terra, envolvendo a população anteriormente estabelecida (índios, posseiros, entre outros) e as agropecuárias, em muitos momentos, participando e efetuando, ao lado dessas empresas, atos de violência contra trabalhadores rurais, peões, índios, posseiros e pessoas ligadas à Prelazia. Mas em outras ocasiões, este teve que negociar com os trabalhadores rurais apoiados pela Prelazia de São Félix do Araguaia na demarcação das suas posses, a exemplo da luta pela terra em Santa Terezinha (1967-1972) em que os posseiros, ao empreenderem atos de resistência, conseguiram o direito sobre suas áreas amparados pelo Estatuto da Terra de 1964. Pude perceber que no Araguaia a disputa pela terra não ocorreu apenas entre trabalhadores rurais e fazendeiros, como também contou com a participação de diversos agentes sociais, engendrados por relações de enfrentamentos, resistências e mediações. Para entender a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, é necessário ter a consciência de que diferentes atores sociais estiveram presentes neste processo, ou seja, não se deve nortear apenas na oposição – empresários rurais x posseiros, porém, é preciso destacar que

suas carteiras de trabalho assinadas com o valor de um salário mínimo no desempenho das atividades eclesiásticas.

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instituições mediadoras da Igreja Católica e do Estado estiveram envolvidas nos conflitos por terras. Entretanto, é válido especificar que não tenho a visão dos trabalhadores rurais como vítimas ou passivos neste contexto, pois estes criaram diversas formas de resistência e enfrentamentos contra os agentes do Estado e jagunços das fazendas. Assim, os trabalhadores rurais são vistos como atores políticos que estabeleceram alianças junto aos padres, freiras, leigos e agentes de pastoral para o embate direto e negociações das áreas em litígios, confrontando em muitos casos com armamentos e emboscadas as milícias dos proprietários rurais, bem como movendo ações e contestações para que o Estado reconhecesse os seus direitos. As análises desta tese têm como propósito compreender a luta pela terra empreendida pelos grupos sociais estabelecidos no nordeste de Mato Grosso, a qual se configura por diversas táticas de enfrentamentos, disputas e negociações. Elegi como recorte espacial o município de Porto Alegre do Norte, cortado pela BR-158 e pelo rio Araguaia no sentido Sul-Norte, distante 1.119 km de Cuiabá, capital do Estado. Diante de uma espacialidade tomada pela hidrografia do rio Araguaia, bem como por histórias e lugares que se interlaçam com a minha área de estudo, ao longo deste trabalho, o leitor irá se deparar com as seguintes denominações que se referem ao recorte espacial: Araguaia mato-grossense, Vale do Araguaia, nordeste de Mato Grosso, Prelazia de São Félix do Araguaia e Amazônia. O recorte temporal estabelecido contempla o período do início da década de 1970 até o final da década de 1980. O marco inicial justifica-se pela instauração dos dois maiores projetos agropecuários do Araguaia mato-grossense: Suiá-Missu e CODEARA, que propiciaram os primeiros conflitos intermediados pela Prelazia de São Félix do Araguaia, entre as empresas contra os índios e posseiros. O marco final desta pesquisa tem relação com o assassinato do jagunço Capixaba pelos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, pois este fato encerrou um período de enfrentamentos traçado pelos posseiros, e deu lugar às reivindicações por reforma agrária efetuadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, permitindo assim uma nova configuração à luta pela terra.

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Mapa 2: Município de Porto Alegre do Norte/MT na Prelazia de São Félix do Araguaia. 37

Este trabalho visa entender e apresentar estratégias de lutas e resistências adotadas pelos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, denominados como posseiros44, contra a tomada das suas terras pelos empresários do Centro-Sul do país, ou seja, uma reivindicação pelo direito das suas posses ocupadas pela instalação dos projetos agropecuários das fazendas FRENOVA e Piraguassu. Estes conflitos, que ocorreram ao longo das décadas de 1970 e 1980 envolveram diversas instituições do Estado, como o INCRA, a Polícia Militar, a Polícia Federal e o Exército; e a Prelazia de São Félix do Araguaia, na qualidade de entidade de mediação45 com o envolvimento de padres (especialmente Francisco Jentel e Eugênio Consoli), agentes de pastorais, leigos, freiras e o bispo Dom Pedro Casaldáliga, como expressão maior por meio das suas denúncias públicas que questionavam os órgãos administrativos em relação às políticas de integração e desenvolvimento da Amazônia, as quais lesavam os direitos primordiais da população do campo. Desse modo, não entendo a mediação apenas como o ato de mediar, interceder, ser representante em dada situação, inferir em meio à ocasião, mas no sentido de atuar, conforme Dom Pedro Casaldáliga, atribuindo publicidade e visibilidade à luta dos trabalhadores rurais da Prelazia de São Félix do Araguaia, bem como à violência contra os religiosos, leigos, índios, peões e posseiros daquela região. A mediação da Prelazia de São Félix do Araguaia nos conflitos por terra em Porto Alegre do Norte está relacionada às transformações políticas e sociais que a Igreja Católica vivenciou após as resoluções do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, e das Conferências do Episcopado Latino-

44Conforme o Estatuto da Terra de 30 de novembro de 1964, Art. 98, posseiro é todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua morada, trecho de terra com área caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo lavrador e sua família, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões fixadas por esta Lei, para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença declaratória devidamente transcrita. Disponível em:. Acesso em: 13 jan. 2016. 45Ver: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993. 38

Americano, ocorridas no ano de 1968 em Medellín (Colômbia) e no ano 1979 em Puebla (México). A partir desses acontecimentos, surgiu a chamada Igreja Católica Progressista, cujos membros passaram a se envolver com as situações locais, sobretudo da Amazônia em um período que a região foi invadida por diversos projetos de colonização e agropecuários que culminaram na presença massiva de empresários rurais, expulsão de posseiros, povos indígenas, violência e trabalho análogo ao de escravo. De acordo com Novaes46, os mediadores podem ser vistos como um meio de campo, algo que faz ponte ou medeia determinada situação, sendo estas ações tanto para o bem quanto para o mal, ou seja, elas são capazes reproduzir ou questionar a dominação. A mediação pode ser exercida por diversos atores e entidades, como ONGs, Igrejas, Sindicatos e órgãos do Estado. Entretanto, nesta pesquisa designamos o termo de mediadores para a Igreja Católica Progressista da Prelazia de São Félix do Araguaia, e seus membros do clérigo, especialmente Dom Pedro Casaldáliga, agentes de pastorais e leigos. As mediações das instituições como CPT e STRs, segundo Medeiros e Esterci47, ―podem ser pensadas como ações que tiram movimentos e grupos de sua dimensão local e particular e os relacionam a outras instâncias e grupos‖. Essas ações atribuem visibilidade à atuação política dos trabalhadores rurais, acarretando assim a potencialização desses acontecimentos não apenas no âmbito local, mas também em uma rede regional, estadual e nacional, propiciando que eventos locais tomem dimensões globais. Desse modo, é possível entender a mediação no espaço rural brasileiro, especialmente no Araguaia mato-grossense, a partir da atuação da Prelazia de São Félix do Araguaia no apoio e representação dos trabalhadores rurais na luta pela terra em Porto Alegre do Norte durante a década de 1970. Segundo Almeida48, a Igreja Católica passou a tomar frente dos conflitos agrários

46NOVAES, Regina Reys.‖A mediação no campo: entre a polissemia e a banalização‖. In: MEDEIROS, Leonilde et al (Org). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994, p.177-183. 47MEDEIROS, Leonilde Servólo e ESTERCI, Neide.―Introdução‖. In: MEDEIROS, Leonilde Servólo de et al (Org.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: EDUNESP, 1994, p. 19. 48ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese

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na Amazônia, pois já vinha desenvolvendo o seu trabalho pastoral junto às comunidades de posseiros, suscitando assim uma atuação que supria a presença incipiente do Estado no campo:

A atuação das instituições religiosas desenvolveu-se a partir do que estava à margem da cena política e sem possibilidades imediatas de representação. É por esta brecha que se insinua a ação mediadora, quando as reivindicações dos trabalhadores, quaisquer que fossem, não eram facilmente assimiladas por aparelhos de poder que se impuseram tão só pela repressão e que tinham sua legitimidade contestada.49

Os conflitos agrários que até então não eram reconhecidos pelo Estado passaram a ser institucionalizados pela Igreja, a qual foi vista como um problema e não uma interlocutora dos posseiros. O Estado não concordava com o trabalho político e social da Igreja Católica no campo, pois esta era considerada subversiva e incentivadora dos conflitos por terras. Entretanto, a presença da Prelazia de São Félix do Araguaia como mediadora na luta pela terra em Porto Alegre do Norte fortaleceu a resistência dos posseiros. De acordo com Airton dos Reis Pereira50, o termo posseiro é um conceito que foi e é forjado na luta e no conflito. O autor entende que o posseiro do sul e sudeste do Pará não é somente aquele trabalhador rural ocupante de terras devolutas de áreas denominadas antigas e é expropriado pelas grandes empresas do Centro-Sul do Brasil, mas também um agente social que disputa uma mesma área de terras com empresários/fazendeiros de outros Estados do país e a eles resistem. Esta palavra que antes designava os ocupantes de terras devolutas na Amazônia passou a ter novos significados e sentidos na luta pela terra naquele momento (1970/2000). Do mesmo modo, em Porto Alegre do Norte, os trabalhadores rurais, a partir do envolvimento com a Prelazia de São Félix do Araguaia, passaram a se designar como posseiros, conferindo assim o direito de contestarem a permanência nas suas posses.

(Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993. 49Ibidem, p. 42. 50PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará: migrações, conflitos e violência no campo. Tese (Doutorado em História) Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2013, p. 50.

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Os acervos utilizados nesta pesquisa compreendem os documentos constantes no Núcleo de Pesquisa em História (NPH/ICHS-UFMT) e no arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Buscando prioritariamente identificar situações de violência contra posseiros e agentes religiosos da Prelazia de São Félix. O acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia possui cerca de 250 mil documentos, divididos em grandes setores: posseiros, peões, CPT nacional e regional, informes paroquiais, ações judiciais, entre outros, e mais de 50 mil cartas, as enviadas a Dom Pedro e as respondidas por ele. As mensagens são de gente simples e de autoridades militares, sendo estas públicas e de teor sigiloso na época. Não há correspondências íntimas, nem confessionais. O acervo encontra-se em sua maior parte digitalizado e acessível ao público. Possui imagens, fitas cassetes, objetos, incluindo prêmios e títulos que Dom Pedro acumulou e doou ao Arquivo51. O arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia com os seus diversos registros é constituído como um lugar social, e por ser atrelado à Igreja Católica, não quer dizer que seja apenas um lugar religioso, mas também político. O arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia foi organizado pela Irmã Irene Fraceschini, religiosa da Congregação São José que chegou a São Félix em 1971 e estruturou a documentação que ia se avolumando em caixas. A religiosa fez um curso de arquivista por correspondência e formou colaboradores. Obteve ajuda voluntária da ONG catalã Arquivistas Sem Fronteiras. O acervo também conta com documentos anteriores à chegada de Dom Pedro Casaldáliga ao Brasil, dentre eles os primeiros diários das Irmãzinhas de Jesus da ação Missionária de Charles de Foucauld estabelecidas na região desde a década de 1950. Estes diários escritos em francês retratam a vida das Irmãzinhas junto aos Tapirapé, povo este que foi quase dizimado pelos índios Kayapó52. Esses documentos são de grande relevância histórica, pois retratam a luta pela terra no Brasil, a repressão militar, a exploração de trabalhadores, a violência contra posseiros, peões, agentes de pastorais e índios.

51GREENHALGL, Laura. As veredas de Pedro. Os arquivos de D. Pedro Casaldáliga. Estado de São Paulo, 2006. Disponível em: < http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=331>. Acesso em: 11 mai. 2011. 52Idem.

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Carlos Bacellar53 tece uma crítica de modo geral às problemáticas existentes em grande parte dos arquivos brasileiros, os quais, em sua maioria, encontram-se abandonados pelo poder público. Tem-se o desafio de trabalhar em ambientes precários, com documentos mal acondicionados e preservados, e mal organizados, administrados por funcionários problemáticos. Felizmente o acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia encontra-se em perfeita organização, com todas as suas informações digitalizadas, disponíveis ao público por meio de cópias em CD Rom, pois não é possível gravar a documentação em pen drive devido ao risco de prejudicar os computadores do arquivo com possíveis vírus que possam danificar ou destruir os documentos da Prelazia. As acomodações são singelas, mas acolhedoras, e os funcionários são muito prestativos e solícitos. O historiador deve ter consciência de que os arquivos são resultados daqueles que os constituíram, da mesma forma que nenhum documento é neutro, e sempre carrega consigo a opinião da pessoa ou da instituição que o escreveu, os arquivos não foram pensados para atender as necessidades dos historiadores, e sim de órgãos e pessoas em específico. Desse modo, podemos fazer a relação com a elaboração dos documentos do passado que não foram feitos para os historiadores, mas para responder as determinações intrínsecas do momento histórico em questão.54 Sob esta ótica, devemos pensar a organização do acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia como um mecanismo de ―guardar provas‖ da violência que a população estava vivenciando na década de 1970 a partir do estabelecimento dos projetos agropecuários na região. Este acervo documental também tinha um caráter de denúncia das arbitrariedades nos conflitos pela terra no Araguaia mato- grossense, tendo como meios acionar a imprensa e as diversas mídias locais, estaduais e no exterior, bem como organizações em prol dos direitos humanos. Se não fossem os esforços de Dom Pedro Casaldáliga em relatar e dar publicidade aos eventos repressivos que tomaram a Prelazia no final da década de 1960, provavelmente aqueles indivíduos não teriam os seus direitos a terras

53BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 49. 54Ibidem, p. 69.

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reconhecidos e a repressão por parte do poder público e privado tomaria conta daquele espaço em dimensões incalculáveis. Acredito que o acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia carrega a insígnia da luta pela terra travada por trabalhadores rurais, bem como o registro da repressão do governo ditatorial através dos relatos de torturas dos padres, leigos e agentes de pastorais vivenciadas no ano de 1973. Portanto, este arquivo é um local a que os historiadores devem recorrer para discorrerem sobre as arbitrariedades do período ditatorial no Brasil, tendo em vista que a maioria dos arquivos que contêm estes documentos ―sensíveis‖ estão fechados ao público. Os documentos da Prelazia estão acessíveis para que a memória da luta pela terra e as atrocidades da ditadura militar não caiam no esquecimento. Neste sentido, temos que ter consciência de que os documentos da ditadura não são um testemunho da verdade, mas a memória do arbítrio. ―Se nós entendermos ‗verdade‘ em seu sentido relativo, como um esforço contínuo de esclarecimento e explicação dos fenômenos, então podemos afirmar que a ―verdade‖ que os documentos da ditadura registram é mobilizadora‖.55 Um documento importante para a escrita desta tese é a Carta Pastoral intitulada ―Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social‖, elaborada por Dom Pedro Casadáliga. O texto foi divulgado em 10 de outubro de 1971 e publicado em 23 de outubro do mesmo ano, dia da consagração episcopal de Dom Pedro Casaldáliga como bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. O documento possui 123 páginas e traz importantes elementos acerca das características sociais, econômicas e políticas do território que compõe a Prelazia de São Félix do Araguaia. Dom Pedro intitula de ―panorama-sócio pastoral‖ o item que descreve as modificações ocorridas pela entrada do grande capital na região, bem como uma descrição dos problemas que marcavam o Araguaia, dentre eles o aumento do número de latifúndios; a concentração do poder e política local centradas nas mãos de empresários da região Sul e Sudeste do Brasil, fraudes eleitorais e roubo do dinheiro público; a má distribuição da administração pública, a qual ficava a cerca de 700 km de São Félix do Araguaia,

55FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro. Varia Historia, vol. 28, nº 47, p.43-59, jan/jun 2012C, p. 58.

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no município de Barra do Garças; a falta de qualquer tipo de assistência social básica como coleta de lixo, saneamento básico, hospitais e escolas, sendo estes criados e administrados pela Prelazia; os meios de transportes eram precários e as vias mais usadas para chegar à região eram as fluviais – através do rio Araguaia – ou aérea. Dentre as inúmeras pastas disponíveis no acervo da Prelazia, selecionei a pasta com o código de identificação A.17 que contém 223 documentos datados de 1970 a 1989, pois apresenta uma série de fontes sobre os conflitos de Porto Alegre do Norte. Nesta pasta encontrei relatos, bilhetes, abaixo- assinados, recortes de jornais locais e nacionais, cópias de processos judiciais e cartas que relatam a luta pela terra dos posseiros do povoado de Porto Alegre do Norte contra a FRENOVA e a Piraguassu. Outra pasta importante que foi selecionada tem como título ―A.08 – Repressão e Arbitrariedades policiais‖. Trabalhei com a subpasta A08.2, que contém 102 páginas de relatos dos agentes de pastorais, leigos e padres torturados no ano de 1973, cujos testemunhos estão expostos e analisados ao longo do capítulo três desta tese. Como se pode constatar, utilizei neste trabalho as fontes que expressam a resistência dos posseiros e da Igreja na luta pela terra em Porto Alegre do Norte, privilegiando a documentação do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Esta atitude não tem como objetivo exaltar unicamente os atos destes agentes, mas não tive acesso aos arquivos das agropecuárias ou da polícia local para que estes pudessem ser contrapostos com a documentação da Prelazia. Entretanto, as notícias divulgadas pelos jornais locais e nacionais me ajudaram a demonstrar como a política de ocupação da Amazônia excluiu os direitos dos posseiros que há anos ocupavam morada habitual e cultura efetiva nas terras devolutas e/ou improdutivas, sob o respaldo da Lei de Terras de 1850 que consagrou o instituto do ―usucapião‖, dificilmente reconhecido pela justiça no Brasil. Realizei doze entrevistas, sendo seis delas com antigos moradores do Araguaia (Erotildes Milhomem, São Félix do Araguaia), João Souza Lima – o João da Angélica e Maria Gomes da Silva (Porto Alegre do Norte), dois posseiros

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e ex-vereadores de Canabrava do Norte56 – Itamar Lucas de Oliveira e Rafael Souza do Nascimento), com a ex-posseira Ana Felicia de Araújo (esposa do posseiro e delegado de Porto Alegre do Norte – Alexandre Quirino) e com a sua filha – Maria Zenaide de Araújo Silva, uma com o leigo da Pastoral de Porto Alegre do Norte (Ataíde da Silva – o Altair), com um integrante do movimento popular ―Terra Viva‖ de Porto Alegre do Norte (Valdivino Moreira da Silva), com a agente de pastoral – Odile Eglin (Irmãzinha de Jesus que vive na aldeia Tapirapé desde a década de 1980), entrevista com a advogada da Prelazia de São Félix do Araguaia (Maria José Souza Moraes) e com o suposto pistoleiro e ex-prefeito de Porto Alegre do Norte – Luiz Carlos Machado, conhecido como Luiz Bang. A escolha destas pessoas está relacionada ao fato de que elas são antigas moradoras da região e de algum modo presenciaram os conflitos entre posseiros e as agropecuárias FRENOVA e Piraguassu. Utilizei sete entrevistas na construção da narrativa desta tese (Erotildes Milhomem, João Souza Lima, Ana Felicia de Araújo, Maria Zenaide de Araújo Silva, Ataíde da Silva, Odile Eglin e Luiz Carlos Machado). A entrevista com Erotildes Millhomem foi realizada em sua residência na cidade de São Félix do Araguaia. Ela me recebeu no seu ateliê que fica nos fundos da sua casa, mostrou-me um álbum de fotos, suas pinturas em telas e os romances de sua autoria. O seu testemunho demonstrou como ocorreu o processo de migração do estado do Maranhão para o Araguaia mato-grossense, descrevendo o percurso realizado, as motivações que impulsionaram sua família a migrar, bem como o misticismo das ―Bandeiras Verdes‖. Ao final da entrevista, Erotildes me pediu que assinasse um livro de presença das pessoas que a visitam e me presenteou com quatro livros que escreveu sobre o Araguaia: Meu querido Araguaia, Maria Rita da Serra do Roncador, Folclore do Araguaia e Barreira do Araguaia. O relato de João Souza Lima foi cedido em sua propriedade rural no assentamento ―Vila Angélica‖, no município de Porto Alegre do Norte. A entrevista ocorreu embaixo de um pé de manga povoado por várias maritacas que

56O município fica 40 km de distância de Porto Alegre do Norte. No período do nosso recorte temporal, era um núcleo de ocupação afastado do núcleo urbano (Porto Alegre do Norte), assim este se referia a uma área considerada de sertão por estar distante do núcleo urbano.

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emitiam os seus cantos, assim como cigarras e galinhas que tiveram os seus sons propagados por toda a narrativa. O entrevistado descreveu a trajetória da sua família de Barreira dos Campos/PA para o Araguaia mato-grossense, o estabelecimento da sua família nas posses do núcleo de Cedrolândia, o cotidiano, a cultura, a religião, as festas, os mutirões, a chegada das empresas agropecuárias, as resistências e os conflitos vivenciados pelos posseiros, entre outros. A entrevista de Ataíde da Silva ocorreu na residência do professor da rede estadual de Porto Alegre do Norte – Justiniano Pereira Sales, pois ele me ajudou a contatar todos os entrevistados pelo fato de ser antigo morador do município e filho do posseiro José Pereira dos Santos. A narrativa foi realizada na varanda, onde nos sentamos em volta de uma grande mesa acompanhados pelo professor Justiniano, que interferiu em pequenos momentos para esclarecer questões contextuais relatadas pelo seu pai. Ataíde da Silva expôs sobre a sua trajetória de militância na cidade de São Paulo, a sua migração para Porto Alegre do Norte e o seu trabalho como leigo e professor da Prelazia de São Félix do Araguaia, descreveu os conflitos entre as empresas agropecuárias e os posseiros, assim como os atos de resistência. A entrevista de Ana Felicia Araújo foi dada em frente à sua casa com vista para o rio Tapirapé. Ela estava se sentindo um pouco doente, mas concordou prontamente em ceder o relato em que descreveu a trajetória de migração da sua família do Piauí ao Mato Grosso, o período em que morou em Luciara e se casou com Alexandre Quirino (ex-delegado de Porto Alegre do Norte), a mudança para ocupar as terras de Porto Alegre do Norte, a chegada das empresas agropecuárias e os conflitos. A sua narrativa foi marcada por muitas lembranças dolorosas que a fizeram chorar, principalmente quando perguntei sobre Dom Pedro Casaldáliga. Ao iniciar a entrevista, eu falei: ―vamos falar do passado, lembrar-se de algumas alegrias, e quem sabe algumas tristezas‖ e Ana Felícia sorriu e respondeu: ―sim, mais tristezas, pois quem relembra o passado sofre duas vezes, né?‖. Essa frase que marcou o início do seu testemunho e que emitiu muitos significados foi utilizada na epígrafe desta tese para expressar a importância da luta pela terra em Porto Alegre do Norte.

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O testemunho de Maria Zenaide de Araújo Silva não tinha sido programado, mas em decorrência do mal-estar sentido durante a entrevista da sua mãe (Ana Felicia Araújo), ela começou a me relatar as suas impressões e vivências de quando era criança no decorrer dos conflitos de terra em Porto Alegre do Norte. Essa narrativa foi muito importante, pois pude descrever a participação das crianças na luta pela terra. A entrevista de Odile Eglin foi dada em sua casa, que fica situada na Aldeia dos Tapirapé no município de Confresa. No momento do seu relato, os Tapirapé estavam construindo uma estrutura que seria utilizada em uma cerimônia, assim a gravação está permeada pelos sons dos martelos e motosserras utilizados na construção. A entrevistada descreveu sua chegada à aldeia dos Tapirapé, o seu trabalho junto aos índios, a atuação da Prelazia de São Félix do Araguaia e os métodos de mediação e apoio pastoral nos conflitos por terra na região. O relato de Luiz Carlos Machado foi cedido na sua chácara às margens da BR 158 no município de Confresa. A narrativa elucidou sua migração para Mato Grosso, seus diversos trabalhos como peão e empreiteiro nas fazendas da região, principalmente na FRENOVA, descreveu os conflitos de terra, o seu mandato como prefeito de Porto Alegre do Norte, seu posicionamento em relação à atuação de Dom Pedro Casaldáliga, os crimes dos quais foi acusado e o período que passou na prisão. Ao término das entrevistas, solicitei aos entrevistados que assinassem um termo de cessão de direitos sobre voz cujas cópias estão disponíveis no PPGHIS/UFMT. O uso das fontes orais nesta tese não tem a pretensão de realizar uma história que ―dá voz aos vencidos‖, em que o testemunho oral tem um valor imediato de verdade e de verdade alternativa, conforme as críticas tecidas por Joutard57. As entrevistas foram realizadas com aqueles que vivenciaram a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, pois segundo Alberti a escolha dos entrevistados é guiada pelos objetivos da pesquisa, assim convém selecionar as

57JOUTARD, Philippe. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

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testemunhas que ―participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos‖58. Estas entrevistas59 foram realizadas de acordo com o método de pesquisa60 da história oral, caracterizado por Verena Alberti como uma metodologia que:

[...] privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de aproximar do objeto de estudo. Como consequência, o método da história oral produz fontes de consultas (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, conjunturas, etc. à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam61.

O uso dos relatos orais nesta tese tem relação com as concepções elaboradas por Regina Beatriz Guimarães Neto, que os aponta como ―fontes privilegiadas da arte de investigação do presente e do discurso sobre o passado; as fontes orais oferecem rastros, vestígios, discursos reveladores da diversidade de formas de inserção social e da produção das identidades sociais‖62. As entrevistas orais viabilizam a identificação das construções que os entrevistados possuem de si e do seu ambiente social. Compreendidos como narrativas, os testemunhos orais permitem a construção de um relato histórico acerca do passado vivido, revelados a partir das memórias de experiências e percepção da realidade pelos diferentes grupos sociais contemplados no presente trabalho, quais sejam: os posseiros,

58ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 31-32. 59As entrevistas foram ajustadas às normas gramaticais, pois de acordo com Alberti, os ―erros‖ cometidos na linguagem falada não possuem peso equivalente na linguagem escrita. Assim, mantê-los na entrevista transcrita iria imprimir uma ênfase que não se adquire na conversa. Ibidem, p. 216. 60Michel de Certeau, no seu texto ―A operação Historiográfica‖, demonstra que o historiador através do campo teórico e metodológico produz e atribui significado a determinado acontecimento histórico. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 61ALBERTI, op. cit., p. 18. 62GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Relatos Orais e Pesquisas Históricas. In: Anais do VII Encontro Nacional de História Oral: História e Tradição Oral. Goiânia: ABHO/ UFG/UCG/UEG, 2004, p. 3.

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agentes de pastorais, leigos e religiosos. Neste sentido, o trabalho com a história oral através dos depoimentos elege a questão a respeito da ―noção de tempo e busca analisar as possibilidades de sua atualização no presente, onde adquirem legibilidade, além de problematizar a reflexão sobre o lugar e o tempo do historiador e a sua relação com o lugar e o tempo daqueles que testemunharam, entendendo a história como mediação crítica‖63. Esta pesquisa parte da perspectiva de Walter Benjamin de que articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ―como ele de fato foi‖64, pois de acordo com Michel de Certeau65 a escrita da história não reconstitui a verdade, mas desenvolve uma análise em relação às versões do passado que os indivíduos que o vivenciaram puderam criar. Em outras palavras, a ―operação historiográfica‖ se pauta em interpretar os documentos, atribuindo-lhes significados que respondam as inquietações do presente, uma vez que o passado continuará como uma incógnita. Nesta perspectiva, Jeanne Marie Gagnebin66 nos lembra que a tarefa do historiador consiste no papel constrangedor da luta contra o esquecimento e a denegação, deve-se lutar contra a mentira, mas sem cair em uma definição dogmática de verdade. Este trabalho é delicado, pois parte da premissa que o historiador necessita transmitir o inenarrável, conservar viva a memória dos ―sem- nomes‖, como afirma Benjamin, ―o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo dos historiadores convencidos de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer‖.67 Trazer à tona a memória da luta pela terra em Porto Alegre do Norte implica o trabalho de que estes fatos não caiam no esquecimento. Apresentar os relatos de tortura vivenciados pelos agentes de pastoral no Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo Grande (atual capital do estado de Mato Grosso do

63GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho, vol. 6, n. 11, p. 129-146, jan/jun. 2014, p. 146. 64BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 224. 65CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 67. 66GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 44. 67BENJAMIN, op. cit., p. 225.

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Sul) no ano de 1973 remete ao ato de lutar contra a repetição do horror e quebrar o silêncio imposto pelos vencedores. Remete-se, assim, à temporalidade da história do tempo presente, em que uma das principais peculiaridades é ―a pressão dos contemporâneos ou a coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse conhecimento histórico ser confrontado pelo testemunho dos que viveram os fenômenos que busca narrar e/ou explicar‖68. Esta história se estrutura no que Walter Benjamin chamou de ―documentos da barbárie‖, propagada em um novo tempo, um ―tempo dos agoras‖, pois ―a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‗agoras‘‖69. A constituição da trama histórica que tem como ator político o trabalhador rural na luta pela terra em Porto Alegre do Norte parte de um estudo que privilegia as práticas deste grupo social, em detrimento dos discursos oficiais que não levam em consideração as suas estratégias de lutas e resistências, como fatos cuja exposição nos registros oficiais é válida. Estes indivíduos não possuem papel central na História, pois suas vidas são marcadas por características relegadas pela sociedade, como a marginalidade e a exclusão destes ao acesso à terra. Desse modo, segundo Gagnebin, cabe ao narrador (historiador) que:

[...] não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer. [...] aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste — aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus nomes.70

Apresentar a memória dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte não implica em lembrarmos sempre o que aconteceu de mais violento e injusto na vida daquelas pessoas, mas com o intuito de servir de precedente para que não permitamos que algo semelhante aconteça novamente, principalmente as sessões de tortura e terror que estes vivenciaram ao longo das décadas de 1970 e

68FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro. Varia Historia, vol. 28, nº 47, p.43-59, jan/jun 2012C, p. 44. 69BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 229. 70GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 54.

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1980. Ao montar os restos/rastros que sobram da vida e da história oficial, os historiadores não realizam apenas um rito de protesto, como também desempenham o trabalho silencioso, anônimo, indispensável do legítimo narrador.71 Desse modo, de acordo com Elizabeth Jelin72, a memória é estabelecida por um ―trabalho‖ que desempenha a tarefa de transformar o mundo social. No plano coletivo, o desafio se pauta em superar as repetições e os esquecimentos, bem como os abusos políticos, tomando distância e ao mesmo tempo promovendo o debate e a reflexão ativa sobre esse passado e o seu sentido para o presente/futuro. Nesta perspectiva, Reinhart Koselleck73, apresenta duas categorias históricas: a ―experiência‖ e a expectativa‖ que ―entrelaçam passado e futuro‖. O ―campo de experiência‖ é uma categoria histórica que pertence ao passado e se concretiza no presente, como, por exemplo, através da memória.

A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é preservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias.74

A expectativa se direciona para o futuro, como, por exemplo, os desejos, as certezas e os descobrimentos. Assim, o presente é o ponto de interseção em que o passado é o campo de experiência e o futuro é o horizonte de expectativas, onde se reproduz a ação humana. Neste sentido, recorrer à memória significa reportar ao ―campo da experiência‖ no presente, o qual, conforme Koselleck, diante a uma complexidade do tempo, a experiência humana incorpora as próprias sabedorias, bem como os conhecimentos que os outros tenham transmitido. O passado pode condensar-se ou expandir-se, dependendo do modo

71Ibidem, p. 118. 72JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A., 2002, p. 16. 73KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC - Rio, 2006, p. 308. 74Ibidem, p. 309-310.

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que essas experiências passadas são incorporadas, pois é impossível localizar uma memória, um ponto de vista e uma interpretação singular do passado. A luta política ocorre sobre o significado do passado e, muitas vezes, esta se posiciona contra o esquecimento: ―lembrar para não repetir‖75. A presente tese está divida em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado ―Migrações e ocupações no Araguaia mato-grossense‖, procuro contextualizar de um modo geral como ocorreu o histórico de ocupação não indígena do nordeste de Mato Grosso durante a primeira metade do século XX. Pelas narrativas dos antigos moradores de Porto Alegre do Norte, em especial do senhor João Souza Lima (João da Angélica), pude descrever o processo de migração para aquela localidade no final da década de 1940, conhecida como Cedrolândia, e, concomitantemente, a chegada de Domingos Medeiros da Silva, chamado pelos vizinhos de ―Domingão‖, e de sua família, que se instalaram na beira do rio Tapirapé, formando o patrimônio de Porto Alegre do Norte. A narrativa de João da Angélica traça o percurso da sua família do Pará ao Mato Grosso, com a intenção de procurar terras livres e praticar a agricultura familiar de subsistência, bem como a criação de gado. Apresentei a vida dessas famílias em comunidade antes da entrada das empresas agropecuárias na década de 1970. Estes indivíduos viviam em uma relação de parentesco marcada pela sociabilidade de compadres e vizinhos. O cultivo das suas roças e a construção de casas, currais, celeiros, etc. se davam por meio da prática do mutirão, que consistia na ajuda mútua entre os membros de Porto Alegre do Norte. A composição do núcleo urbano do povoado de Porto Alegre do Norte foi traçada pelos trabalhadores rurais e no centro deste havia o bebedouro público do gado. As pessoas dos núcleos de ocupações próximos ao patrimônio de Porto Alegre do Norte se reuniam em comemorações, como festas de santos, batizados e casamentos durante o período das desobrigas76. A inexistência de postos de saúde

75JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A., 2002, p. 6. 76Visitas que os missionários faziam, em princípio a cada ano, aos locais remotos. Levando os sacramentos às populações que não dispunham de assistência religiosa regular, devido ao próprio isolamento em que viviam ou ausência de padres na região. O nome desobrigas refere-se ao antigo preceito da Igreja de que o católico é obrigado ao menos uma vez por ano a confessar-se e

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na localidade fazia com que a população procurasse na natureza os remédios para os problemas de saúde. A migração dos trabalhadores rurais para Porto Alegre do Norte advém de um histórico de exploração e dominação dos latifundiários nos seus lugares de origem. O deslocamento destes indivíduos implica várias questões e motivos, como a busca das ―Bandeiras Verdes‖, o trabalho na terra tendo como fruto a sua produção, destinada principalmente para a subsistência familiar, a conquista da liberdade de poder escolher o que e quando plantar, ou seja, ser dono do seu próprio trabalho. Assim, a mobilidade resulta em diversas motivações subjetivas e objetivas, o que significa essencialmente a constituição de uma cidadania na fronteira. No segundo capítulo ―Os projetos de colonização e agropecuários no nordeste de Mato Grosso‖, apresento uma breve descrição da implantação dos projetos de colonização e agropecuários em Mato Grosso e, em consequência dessa política pública do governo militar, analiso a instalação do projeto agropecuário da fazenda FRENOVA em Porto Alegre do Norte no ano de 1970. Descrevo a forma violenta com que os trabalhadores rurais foram notificados pela agropecuária para deixar suas posses, sendo que no primeiro momento estes avisos foram realizados por cartas de notificações, pedindo que estes se retirassem das terras, tendo em vista que elas tinham sido adquiridas por grupos de empresários de São Paulo. Com a resistência dos posseiros em não deixar as propriedades, a segunda estratégia foi o uso de ameaça e violência por parte de jagunços, pistoleiros e polícia militar na expulsão daqueles indivíduos. Entretanto, os empresários talvez não imaginassem que aquela situação seria mediada pelos religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia, especialmente por Dom Pedro Casaldáliga. A empresa não poderia desconsiderar o direito à posse das pessoas que estavam estabelecidas na área há mais de trinta anos, isto é, muito antes da Amazônia se tornar uma fronteira agrícola. Essa população teve o seu direito de ir

comungar. Nas desobrigas, além dos padres celebrarem as missas, também realizam batizados, confissões e casamentos em grande quantidade. VALÉRIO, Escorsi Mairon. Entre a cruz e a foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia. Dissertação (Mestrado na área de concentração de História Cultural). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007, p. 34.

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e vir limitado por uma cerca que cortou o povoado ao meio e dificultou o acesso ao bebedouro público do gado, mas estes resistiram e cortaram a cerca, dando início a uma série de disputas pelo direito à terra em Porto Alegre do Norte. Diante desses conflitos, vivenciados entre os anos de 1970 e 1972, o Exército empreendeu diversas operações militares na região, com destaque para as missões comandadas pelo Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, que se infiltrou na Prelazia como um padre e passou a investigar os trabalhos dos religiosos, principalmente sobre a vida de Dom Pedro Casaldáliga e do padre Francisco Jentel. Após ser questionado sobre a sua presença na Prelazia de São Félix, o Capitão Ailson afirmou que as autoridades estavam convencidas de que a região era um foco de subversão e guerrilha. Alegou ainda ter reconhecido em Porto Alegre do Norte um guerrilheiro do Vale do Ribeira que em 1970 tinha lhe arrancado as unhas numa ação e que estava na região acobertado pelo professor que a Prelazia lá mantinha. Revelou que se as coisas continuassem como estavam, os padres e leigos seriam expulsos, e ao Pe. Jentel, presente à conversa, que o decreto de sua expulsão estava para ser publicado. Apresentou ainda detalhes da correspondência familiar do bispo. Todos estes acontecimentos não impediram Casaldáliga de mediar a situação dos posseiros e enviar diversas cartas para várias autoridades, questionando o não cumprimento do Decreto 70.430 de 1972 que estabelecia a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito. No capítulo três, intitulado: ―A repressão militar como resposta aos conflitos de terra‖, dedico-me a analisar os acontecimentos repressivos que ocorreram na Prelazia de São Félix do Araguaia após a região ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, tendo como justificativa, principalmente, os conflitos por terras em Porto Alegre do Norte e Santa Terezinha que culminaram na prisão e expulsão do padre Francisco Jentel do Brasil. O Vale do Araguaia passou a ser considerado um foco de subversão, pois o regime militar desconfiava que os agentes de pastorais, padres e leigos tinham relação com a Guerrilha do Araguaia, devido à proximidade geográfica com esta última. No ano de 1973, a área da Prelazia de São Félix do Araguaia vivenciou uma forte e violenta intervenção

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militar na região que culminou no sequestro, prisão e tortura de alguns agentes de pastorais e religiosos. A operação foi dirigida pelo Secretário de Segurança do Estado, juntamente com a Polícia Militar, agentes do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e da Polícia Federal. Os agentes de pastorais e religiosos foram acusados de incitar os posseiros a lutarem contra o estabelecimento das empresas agropecuárias na região, pois estes não teriam capacidade para organizar tais atos de resistências, sendo influenciados pelos mentores intelectuais ligados à Igreja Católica. Na madrugada de 4 de junho de 1973, os militares começaram a empreender os atos de violência contra a população da Prelazia. Foram presos e espancados no dia 08 de julho de 1973 o leigo Tadeu e os padres Antônio Canuto, Eugênio Consoli (padre do povoado de Porto Alegre do Norte), Leopoldo Belmonte e Pedro Mari para delatarem o paradeiro do leigo José Pontim. No dia 04 de junho de 1973 na casa das Irmãzinhas de Jesus foram presos Edgar e Thereza Adão, visitantes do Rio de Janeiro que estavam na região para conhecer o trabalho dessas religiosas na Aldeia dos Tapirapé. Em 5 de junho de 1973, a caminho da Cooperativa Agrícola de Santa Terezinha, a leiga Thereza Salles foi sequestrada por policiais que estavam à paisana. As análises dos relatos de tortura têm como propósito não apenas relembrar as atrocidades da ditadura militar, como também conscientizar para que estes atos nunca se repitam. No quarto capítulo, intitulado ―As táticas de enfrentamentos e a resistência dos posseiros na luta pela terra em Porto Alegre do Norte‖, apresento o contexto de instalação da Piraguassu, pertencente ao grupo YANMAR do Brasil, entre os anos de 1975 e 1976. A empresa se instituiu em Porto Alegre do Norte ciente de que nas terras havia trabalhadores rurais com direito a posse, entretanto o seu gerente, Keizo Tukuriki, empreendeu uma série de ameaças para que os posseiros aceitassem o acordo em receberem apenas 50 hectares, sendo que estes, conforme o Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974, teriam que ser indenizados em 100 hectares. A Prelazia de São Félix do Araguaia passou a esclarecer a população de Porto Alegre do Norte sobre os seus direitos, estimulando para que permanecessem e resistissem na luta pela terra. Esse período foi caracterizado pela Prelazia em dois momentos: 1976/1977 – considerado

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―Época branda‖ – e 1978/1979 – tida como ―Época violenta‖. A ―época branda‖ consistiu nos mecanismos de expulsão dos posseiros, tendo estes resistido nos enfrentamentos diários, realizando o corte de cerca e denunciando as arbitrariedades da agropecuária. A ―época violenta‖ assinala os enfrentamentos dos posseiros para demarcação e titulação das suas áreas, bem como pela delimitação do espaço urbano de Porto Alegre do Norte, tendo dentro dessas ações o assassinato de um jagunço da Piraguassu pelos trabalhadores rurais. Neste capítulo, retrato as formas de resistências cotidianas efetuadas pelos posseiros, bem como a participação de mulheres e crianças na luta pela terra em Porto Alegre do Norte. A constituição da escrita foi desenvolvida pelas narrativas de João da Angélica, Altair e Ana Felicia como testemunhas do processo de instalação das empresas agropecuárias no município. Os entrevistados nos apresentaram relatos da violência que vivenciaram, assim como os mecanismos de enfrentamentos que ambos utilizaram para permanecerem na terra.

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1. MIGRAÇÕES E OCUPAÇÕES NO ARAGUAIA MATO-GROSSENSE

A década de 1970 fez repercutir as mais variadas análises da questão agrária no Brasil, especialmente no que tange aos projetos de colonização da Amazônia Legal. Estes estudos foram realizados, sobretudo por pesquisadores das Ciências Humanas, como os sociólogos José de Souza Martins77 e Octavio Ianni78, pelos antropólogos Alfredo Wagner Berno de Almeida79 e Neide Esterci80. Estas pesquisas demonstram que a expulsão e expropriação de posseiros por empresas e proprietários rurais do Centro-Sul do país, em particular na região Amazônica, ocasionaram violência e conflitos pela disputa por terras. Os posseiros eram migrantes estabelecidos naquelas áreas desde o início do século XX, viviam das lavouras de subsistência (arroz, feijão, mandioca, milho, abóbora e hortaliças), juntamente com a criação de animais (gado, porcos e galinhas), produção extrativista, caça e pesca, destituídos de documentação que os legitimassem como proprietários das suas terras. José de Souza Martins, em ―Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano‖, demonstra que a frente de expansão caracteriza o espaço, além da ação da frente pioneira, onde a terra não tem valor, não existe legalidade na posse da terra, o Estado não se apresenta de forma legítima ou, em geral, nem

77Cf. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contraste da intimidade contemporânea. Vol. 4, 4ª reimp., São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p.659-726; Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975; Expropriação e Violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1984; Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009; Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. 78Cf. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979; Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979; Ditadura e agricultura: o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1984. 79ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993. 80ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.

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se apresenta. É o espaço além da zona de desenvolvimento, em que as relações são atrasadas, não existe infraestrutura e a violência faz parte do cotidiano. O conceito de frente pioneira traz consigo a ideia de formulação de um novo espaço social, baseado no mercado e na contratualidade das relações sociais. Não é apenas a aquisição de novos territórios, ou um simples deslocamento populacional; é também a condição espacial e social que convida ou induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança social. Ela constitui o ambiente oposto ao das regiões antigas, esvaziadas de populações, rotineiras, tradicionais e mortas81. As análises de Octavio Ianni, no seu trabalho ―A luta pela terra‖82, discute a transformação das terras amazônicas em mercadoria. Para tanto, o autor expõe três grupos de campesinato, ou seja, trabalhadores e pequenos produtores autônomos que viviam da economia familiar e vendiam o excedente da produção no mercado amazônico. Dentre estes estavam os seringueiros e caucheiros que com o fim do ciclo da borracha se tornaram sitiantes, não vendo a necessidade de assegurar o direito da propriedade. Os posseiros que chegaram na década de 1960 se mesclaram com os sitiantes e formaram outros núcleos de ocupação. Eram migrantes oriundos do Pará, Maranhão, Goiás, Minas Gerais e estados do Centro- Sul, atraídos pela notícia de terras livres que constituíram povoados onde se sobreviveria da economia de subsistência negociando o excedente da produção familiar. E, por último, o grupo dos colonos que era todo o camponês, sitiante ou posseiro que recebeu do INCRA títulos provisórios ou definitivos de propriedade para aqueles que desenvolviam cultura efetiva e tinham moradia habitual (benfeitorias) nas terras. A terra que antes era tida como meio de subsistência para a população migrante que se estabeleceu no sul do Pará no início do século XX viu essa lógica ser modificada a partir da implantação dos projetos agropecuários naquela região durante a década de 1970, pois esta foi transformada em mercadoria, provocando assim, a alteração da estrutura fundiária que culminou nos conflitos pela posse da

81MARTINS. José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009. 82IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979A.

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terra entre o proprietário legal versus ocupação de diversos grupos ao longo dos anos. Para Ianni83, os conflitos e a violência no campo foram provocados pelo discurso de desenvolvimento econômico da Amazônia, o qual acarretou os embates entre posseiros x proprietários rurais e grileiros84. As ações de grileiros, em conjunto com fazendeiros, aceleraram a privatização da terra e transformaram- na em mercadoria, destituindo, assim, os seus antigos ocupantes que foram expulsos por meio de ameaças e violência ou pela venda das suas propriedades por preços abaixo do mercado. Situação que assume proximidade com a realidade exposta acima diz respeito às pesquisas desenvolvidas por Neide Esterci em Conflito no Araguaia85, antropóloga que se debruça em suas análises sobre a luta pela terra no nordeste de Mato Grosso, especificamente no povoado de Santa Terezinha. A partir de 1966, a área foi vendida pelo governo do estado para a CODEARA que adquiriu as terras da região, ciente de que nelas haviam ocupantes com direito a posse. Entretanto, a agropecuária os ignorou, gerando assim o conflito pela posse da terra entre posseiros e a empresa. A empresa tinha um prazo a cumprir para receber os incentivos facultados pela lei. Então, o ritmo para a implantação do seu projeto foi acelerado, o que gerou um atrito com os antigos moradores. A companhia propôs aos ocupantes, ou seja, os posseiros, que fossem remanejados para locais mais distantes, removendo-os das suas antigas terras de trabalho. Esse fato deu início, em 1967, à disputa entre posseiros e a agropecuária que durou até 1972. A partir da intervenção do padre Francisco Jentel como mediador dos interesses do grupo de posseiros no conflito de Santa Terezinha, o Estado teve que tomar medidas decisivas para amenizar o conflito entre a CODEARA e os antigos ocupantes do

83Idem. 84Falsificador de documentos para tomar posse de terras devolutas ou de terceiros. De acordo com Miranda, o grileiro é o maior inimigo do posseiro. É aquele que tem apenas a terra como mercadoria, para vender, e não para trabalhar. No âmbito agrário existem duas formas dessa figura: o grileiro de propriedade e o grileiro de posse. O primeiro falsifica títulos, prepara documentos, sem existir a terra, enquanto que o segundo é a pessoa alheia na esfera agrária que busca a terra, através do apossamento, para depois vendê-la. MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito Agrário e o Posseiro... 85ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.

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espaço. Assim, o governo federal, junto aos órgãos competentes, acelerou o processo de demarcação das áreas, reconhecendo o direito de posse nos termos definidos pelo Estatuto da Terra de 1964 à população que já habitava o povoado antes da chegada do empreendimento. As pesquisas de Neide Esterci são de fundamental importância para o desenvolvimento desta tese, tendo em vista que o seu trabalho sobre os conflitos em Santa Terezinha contêm um material riquíssimo de fontes documentais, orais e um extenso trabalho de campo na região. As suas investigações de caráter pioneiro contribuíram para os avanços e divulgação de novos resultados de pesquisas acerca do Araguaia mato-grossense. Alfredo Wagner Berno de Almeida86, em sua tese ―Conflito e Mediação‖, discute a ocupação de terras da Amazônia Legal por meio do termo colonização espontânea87 que ocorria diferentemente das ocupações planejadas e coordenadas pelo Estado para a apropriação das terras devolutas na década de 1970. Este contexto é marcado pelo alto índice de desemprego no Nordeste e Sudeste do Brasil, pela abertura de rodovias e da propaganda política das terras fartas e de fácil acesso na Amazônia, assim como a divulgação do PNRA, de modo que estes fatores contribuíram para o aumento do fluxo migratório de trabalhadores rurais em busca de terras nas regiões Centro-Oeste e Norte do país, os quais passaram a ocupar as áreas devolutas juntamente com as famílias já estabelecidas sem os documentos de posse das terras. Os ocupantes de terras devolutas são caracterizados por alguns autores como posseiros:

[...] pequenos produtores agrícolas que compõem unidades de trabalho familiar, detentores de benfeitorias, roçados e animais de tração. Não se encontram subordinados por modalidades de trabalho assalariado. Constituem-se em camponeses livres, que abriram áreas próprias de cultivo em terras devolutas e disponíveis, à margem das grandes explorações agropecuárias. Mantém ligações com os circuitos de mercado de produtos agrícolas (arroz, farinha, feijão) independentemente de

86ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação... 87Sobre a ―colonização espontânea‖ ver também: IANNI, Octavio. A luta pela terra...

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plantations, agroindústrias ou projetos agropecuários incentivados.88

Para José de Souza Martins:

O posseiro é lavrador pobre, que vende no mercado os excedentes agrícolas do trabalho familiar, depois de ter reservado uma parte de sua produção para o sustento da sua família. O que ganha com a venda desses excedentes é para comprar remédios, sal, querosene, às vezes roupa e mais uma ou outra coisa necessária à casa ou ao trabalho. Como não possui título de propriedade da terra em que trabalha, raramente tem acesso ao crédito bancário, à assistência agronômica ou qualquer outro tipo de apoio que lhe permita saber que, a rigor, o posseiro não é um invasor da propriedade de outrem. Invasores são os grileiros, fazendeiros e empresários que o expulsam da sua posse.89

Dom Pedro Casaldáliga expõe na ―Carta Pastoral‖ a figura do posseiro, considerado por este como desbravador da região nordeste de Mato Grosso e um indivíduo que vivia à margem da sociedade que atribuía à migração uma alternativa para uma vida melhor em um lugar distante. Desse modo, Casaldáliga nos mostra que:

A maior parte do elemento humano na região é o sertanejo: camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Piauí, ou passando por Goiás. Desbravadores da região, ―posseiros‖. Povo simples e duro, retirante como por destino numa forçada e desorientada migração, com rede de dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro e uns quatro ―trens‖ de cozinha carregados na sacola.90

De modo geral, o posseiro é o trabalhador rural migrante que ocupa terras devolutas, destituído de documentação que o caracterize como proprietário da terra em que reside. O posseiro não se estabelece em áreas que tenham títulos de propriedade. Assim, ele é o agente que sofre a violência daqueles que os expulsavam das terras, como pistoleiros e policiais que serviam aos empresários rurais. Desse modo, a luta pela terra é considerada uma forma de resistência das ações violentas de expulsão, sendo, de acordo com os autores apresentados, um

88ALMEIDA, op. cit., p. 290. 89MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 104. 90CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 6.

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dos fatores cruciais para entender a questão agrária brasileira pautada em conflitos e violência nos espaços de ocupação recente na Amazônia. É importante levarmos em consideração que a denominação ―posseiro‖ era um termo utilizado pelos trabalhadores rurais para se referirem a si mesmos, como também pela mídia, pelos empresários rurais, órgãos governamentais e, principalmente, pela Igreja Católica, a partir da atuação da CPT, dos agentes de pastorais e Sindicatos dos Trabalhadores Rurais que igualmente utilizavam essa designação. Ser posseiro no Araguaia mato-grossense implicava o fato de ter direitos legítimos sobre as terras que ocupavam muito antes da entrada das empresas agropecuárias, conforme o relato abaixo de João Souza Lima91:

Naquela época, a gente não falava que era posseiro. Depois que a fazenda chegou, a gente começou a falar em posseiro. Nós falávamos que éramos moradores ou compadres. Lavrador já tinha. O compadre já tinha o nome do lugar, por exemplo, Santo Antônio, Bela Vista do Sebastião Pereira, era assim que era. O posseiro começou quando a fazenda chegou. A fazenda falava ―posseiro‖. ―Nós viemos aqui para tirar esses posseiros.‖ Aí nós tomamos conhecimento e passamos a nos chamar de posseiros. E somos posseiros. Resistíamos no nosso lugar, na nossa posse, na sua terra se dá o nome de posseiro, porque ele é resistente ali. [...] a Igreja falava isso para a gente. Naquele tempo o padre estava desobrigado daquelas questões, porque não tinha nada. Depois que começou a FRENOVA, os padres investiram e falavam: ―não sai, porque o direito de vocês é aqui!‖ Aí ficamos92.

Essa caracterização legitimava a luta pela terra e assinalava a sua condição de desapropriado das suas posses pelos empresários do Centro-Sul do país, também qualificados pela população local como ―paulistas‖ ou ―tubarões‖, este último muito utilizado por Dom Pedro Casaldáliga em seus escritos, em

91João Souza Lima, conhecido como João da Angélica, veio com a sua família para Porto Alegre do Norte na década de 1950. Seu pai saiu de Barreira do Campo/PA à procura de terras para a criação de gado e encontrou no nordeste de Mato Grosso uma localidade próxima ao rio Tapirapé, onde atualmente é Porto Alegre do Norte. A maior parte da trajetória da família foi realizada de canoa pelo rio Araguaia e depois adentraram o rio Tapirapé para se estabelecerem no povoado de Cedrolândia. O entrevistado chegou com a sua família no Araguaia mato-grossense em 6 de janeiro de 1950, tendo, na época 10 anos de idade. 92João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015, no município de Porto Alegre do Norte.

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analogia ao tubarão como um peixe grande (o latifúndio) que devora os peixes pequenos (os posseiros). Desse modo, de acordo com Reinhart Koselleck93, torna-se necessário compreender que é atribuição tanto da ―história dos conceitos quanto da história social, saber a partir de quando os conceitos passam a poder ser empregados de forma tão rigorosa como indicadores de transformações políticas e sociais de profundidade histórica‖. Ao criarem uma nova característica política e social para o termo ―posseiro‖94, este toma para si uma categoria social que conferiu novos significados aos seus usos, como demonstramos acima. Assim, a aplicação de outros sentidos e definições para antigas palavras remete-nos às mudanças de conteúdo e interpretações dos conceitos. O trabalhador rural ou lavrador é denominado por José de Souza Martins95 como camponês, pois se trata de um termo político que procura dar unidade à situação de classe e, sobretudo, procura dar identidade à luta camponesa. Desse modo, entendemos a categoria camponês como sinônimo da designação de posseiro, tendo em vista, como apontamos acima, que este personagem acionou a condição de posseiro para legitimar a luta pela terra na Amazônia. Neste sentido, o termo posseiro não designa apenas um novo nome, mas um indivíduo que está inserido em determinada espacialidade geográfica e que também deve ser visto como um novo agente histórico. Caracterizar o posseiro como um agente histórico é entendê-lo como uma contradição do capitalismo, pois de acordo com Martins, a mesma sociedade que tira proveito do seu trabalho também deseja eliminá-lo, sobretudo, no que diz respeito ao fato de que a expansão capitalista ocorre geralmente sobre as terras ocupadas pelos posseiros, expropriando-os e expulsando-os das suas posses. A empresa rural via a ocupação como um empecilho na extração da renda sobre a terra, tanto que as propagandas de venda dos imóveis anunciavam propriedades

93KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... p. 101. 94O posseiro é uma designação utilizada para os trabalhadores rurais presentes na Amazônia Legal. José de Souza Martins demostra que em outras partes do Brasil os trabalhadores do campo possuem diversas nomenclaturas, tais como: caipira (SP, MG, GO, PR e MS), caiçara (no litoral paulista), tabaréu (Nordeste) e em outras localidades de caboclo. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... 95Idem.

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―livres de posseiros‖. A posse era qualificada como uma ―negação da propriedade‖96. Este trabalho, portanto, parte da análise de movimentos migratórios para o nordeste de Mato Grosso desde o início do século XX, especialmente, tendo como foco de pesquisa o povoado de Porto Alegre do Norte, que passou a ser ocupado por uma população não indígena, ou seja, por trabalhadores rurais a partir do final da década de 1940. O trabalho irá demonstrar alguns aspectos do modo de vida dessas pessoas antes da chegada dos empreendimentos agropecuários na região durante a década de 1970, e como consequência deste fato, problematizaremos a luta pela terra entre posseiros e as empresas rurais, bem como a mediação da Igreja Católica na resolução desses conflitos. É válido destacarmos que não é propósito desta investigação analisar os conflitos por terras entre os fazendeiros da região97, assim como os conflitos que envolveram os diversos povos indígenas do nordeste de Mato Grosso. Podemos analisar a história da região do Araguaia a partir de dois aspectos diferentes, ou seja, das localidades que se formaram à beira do rio Araguaia: São Félix do Araguaia, Santa Terezinha, Santo Antônio e Luciara, sendo estas originadas de migrações nordestinas datadas do início do século XX. E, daqueles municípios mais diretamente ligados à esfera de influência da BR 158, como, por exemplo, Ribeirão Cascalheira, Vila Rica e Confresa. O processo de (re)ocupação daquele espaço se deu a partir dos projetos agropecuários, principalmente por empresas privadas, e pela implantação de assentamentos do PNRA. A (re)ocupação da região nos permite compreender alguns dos conflitos vivenciados na década de 1970, desde a implantação dos projetos de colonização voltados para a Amazônia durante o período ditatorial, bem como a instauração de empresas agropecuárias com incentivos de órgãos estatais, como a SUDAM, a SUDECO e o Banco do Brasil, que perduram até os dias atuais.

96Ibidem, p. 116. 97Dentre as disputas por terras podemos destacar: A Fazenda Tamakavy do Grupo Sílvio Santos contra a fazenda Brasil Novo (1975); CODEARA X Fazenda Santa Lúcia (1976); Fazenda Santa Cruz de propriedade de Antônio José Matoso teve a sua área contestada pelo senhor Amaury acompanhado por 13 jagunços para expulsá-lo da área (1975).

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O Araguaia era habitado por diversas sociedades indígenas, como Xavante, Tapirapé, Karajá e Kayapó. De acordo com o João Carlos Barrozo98, a história de colonização daquele espaço ocorreu a partir da Marcha para Oeste do governo de Getúlio Vargas. Na década de 1940, as concessões de terras aliadas aos incentivos para as empresas colonizadoras e aos projetos governamentais de reforma agrária fizeram com que a população na região crescesse de forma substancial. Conforme Dom Pedro Casaldáliga, o fluxo de migração para o Araguaia se deu em três momentos distintos, sendo que esta dinâmica da população de adentrar e ocupar a região está na base dos problemas de luta e posse da terra, desde a sua ocupação no início do século XX, que persistem até os dias de hoje. Casaldáliga nos mostra que primeiramente a região teve o contato dos migrantes oriundos dos estados do Nordeste do país, fenômeno que durou até a década de 1950, quando, por exemplo, chegavam atravessando o rio Araguaia em busca da ―Bandeira Verde‖ (grupos de seguidores da profecia de Padre Cícero), a qual dizia que os nordestinos deveriam ir para um hipotético ―sertão verde‖, que foi relacionado no período às matas do Araguaia, entre outras partes do Brasil. Para aquelas pessoas, a Amazônia seria o ―Vale da Promissão‖, como foi dito anteriormente. Pelo fato de aquele território não ser um ―espaço vazio‖, como alegavam as propagandas políticas, essa população migrante logo se deparou com os grupos indígenas que residiam no local. Soares fez um estudo acerca dos primeiros movimentos migratórios datados do início do século XX para o nordeste do estado de Mato Grosso. O autor descreve os caminhos percorridos por estes migrantes e demonstra que sua origem era predominantemente o sul do estado do Pará e o norte do estado de Goiás (atual Tocantins). Esse fluxo migratório ocorreu concomitantemente em dois rumos, ―um pelo rio Araguaia no trajeto Sul do Pará, Nordeste de Mato

98BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia. In: HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (Org..). História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e Resultados de Pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009.

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Grosso, e outro, um traçado terrestre, atravessando a Ilha do Bananal99 no sentido Leste-Oeste‖100. A partir da crise do comércio da borracha em 1914 e, consequentemente, a queda do seu preço no mercado internacional devido à concorrência com o Oriente (Ásia: Ceilão, Indonésia e Malásia), o cotidiano dos povoados do sul do estado do Pará, principalmente de Conceição do Araguaia experimentou uma mudança acentuada na esfera econômica devido à redução da produção do látex na Amazônia. Como alega Guimarães Neto, os garimpos de diamantes no leste mato-grossense, atual município de , atraíram grande número de ex- seringueiros que subiram o rio Araguaia nas primeiras décadas do século XX em busca de novas atividades laborais. Muitas dessas pessoas que estavam de passagem para os garimpos do leste de Mato Grosso formaram famílias no Araguaia.

Levavam em sua bagagem não só a miséria que se restringia à penúria econômica e à exploração degradante do trabalho, mas a que também pode ser vista em outra dimensão: aquela que pressiona grupos sociais pobres a se deslocarem de um lado ao outro, aprisionados a incessantes construções míticas101.

De acordo com Soares102, o estabelecimento das primeiras pessoas que migraram para o povoado de Mato Verde (atual Luciara) provém principalmente do sul do estado do Pará: Barreira do Santana, Conceição do Araguaia, entre outros. Estes migrantes tiveram como principal via de acesso para Mato Grosso a navegação pelo rio Araguaia e seus deslocamentos eram realizados geralmente com as famílias.

99A Ilha do Bananal é considerada a maior ilha fluvial do mundo, situa-se no estado do Tocantins, na divisa com Mato Grosso. Formada pelo rio Araguaia, estende-se por 320 km com uma largura máxima de 55 km. Um terço da área corresponde ao Parque Nacional do Araguaia, fundado em 1959, e o restante cabe à reserva indígena, onde vivem os índios Javaé e Karajá. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2011. 100SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 255. 101GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da Mineração: memória e práticas culturais – Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato/EDUFMT, 2006, p. 90. 102SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos...

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O segundo trajeto usado para chegar ao povoado de Mato Verde foi utilizado a partir de meados da década de 1940 pelas diversas famílias do norte do estado de Goiás (atual Tocantins), sendo este movimento realizado a pé ou em tropa, seguindo as trilhas nas matas e campos da Ilha do Bananal. Os migrantes vieram principalmente das cidades de Pium, Cristalândia e Porto Nacional, a viagem ocorria ―durante a época do verão (seca), pois os córregos e lagos da Ilha do Bananal enchem muito no inverno (período de chuva), dificultando a travessia‖103. A principal atividade desenvolvida nos primeiros anos do povoado de Mato Verde foi a criação de gado desenvolvida pelo Sr. Lúcio da Luz104 e agricultura familiar de subsistência cujo excedente era trocado por mercadorias como o sal, querosene e tecidos. Na década de 1940, deu-se a ocupação do Araguaia, a partir de seus afluentes: às margens do Tapirapé surgiu Porto Alegre do Norte, e às margens do rio das Mortes emergiu Santo Antônio. Seus moradores eram sertanejos oriundos de Goiás, Maranhão e Pará em busca de terras para cultivar onde pudessem criar seu rebanho. Viviam essencialmente da ―agricultura de subsistência, da pesca, da caça, da coleta de frutos e da troca entre a vizinhança. Entre eles não havia delimitação do espaço com marcos e não tinham a preocupação do registro de posse‖105. Constatamos a atração de migrantes nordestinos num primeiro momento, ludibriados pelos apelos propagandísticos políticos do governo de Getúlio Vargas, bem como a conquista da terra prometida e anunciada pelas profecias das ―Bandeiras Verdes‖ de Padre Cícero. Como uma forma da busca de um lugar promissor, impulsionados também por crises sociais como a fome, seca, procura por terras livres, melhores condições de vida e a questão mística de que na Amazônia havia a possibilidade de enriquecimento fácil. Na primeira metade do século XX o nordeste do estado de Mato Grosso já apresentava a criação de vários povoados na margem direita do rio

103Ibidem, p. 257. 104Considerado o fundador da cidade de Luciara, cujo nome é atribuído em sua homenagem e ao rio Araguaia. 105GONÇALVES, Judite; NICOLA, Rafaela. Araguaia – do tranquilo balanço das águas à turbulência anunciada: lutar é preciso. Campo Grande: ECOA, 2002, p. 20.

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Araguaia: Furo de Pedra (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Mato Verde (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949), estando esse último localizado às margens do rio Tapirapé. Estes povoados se constituíram ao longo do rio Araguaia e ocasionaram ―um complexo contato interétnico entre os sertanejos/posseiros e as sociedades indígenas Kayapó, Xavante, Karajá e Tapirapé‖106. Em meados da década de 1960, tem-se o segundo fluxo migratório com a entrada das empresas agropecuárias no Araguaia, gerando conflitos ainda hoje não resolvidos pela posse da terra, com posseiros e índios que estavam fixados na área muito antes da chegada das primeiras migrações nordestinas datadas do início do século XX. Exemplo disso é o povoado de Furo de Pedras, no atual município de Santa Terezinha, cuja fundação no ano de 1910 contou com a presença das Irmãzinhas de Jesus, escola e Igreja Católica. Antes da abertura dos empreendimentos agropecuários, também se tem na região o estabelecimento de outros dois povoados, hoje municípios, quais sejam Luciara e São Félix do Araguaia. No final dos anos de 1970, tinham sido aprovados para os principais municípios da região Araguaia – Barra do Garças e Luciara – sessenta e seis projetos do Governo Federal e, posteriormente, outros foram criados, como o da Bordon S/A (Frigorífico Bordon); Nacional S/A (Banco Nacional de Minas Gerais), cujo presidente era o então ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto; o da Uirapuru S/A (do jornalista-latifundiário, David Nasser), entre outros107. O terceiro fluxo se deu por meio da instauração dos projetos de colonização e assentamento, estimulando a migração de pessoas da região Nordeste e Sul do Brasil. Tais projetos se estabeleceram nos atuais municípios de Confresa108 (empresa de colonização particular de mesmo nome), Água Boa, Canarana e Querência (COOPERCANA), Santa Cruz do Xingu (COREBRASA) e Vila Rica (SERVAP). Nos projetos de colonização localizados no extremo

106SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 270. 107CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 9. 108A empresa colonizadora era formada por três grandes agropecuárias: CODEARA, FREVOVA e SAPEVA. Criou o projeto Tapiraguaia, junção dos nomes dos povos indígenas Tapirapé e rio Araguaia, com o objetivo de acolher os colonos do Sul.

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nordeste de Mato Grosso – Confresa, Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, as colonizadoras não cumpriram com os acordos estabelecidos durante a compra das terras no que diz respeito à disponibilização de maquinários agrícolas, sendo que algumas nem mesmo possuíam máquinas. Não havia escolas, nem estradas de acesso aos lotes dos colonos. Muitos foram abandonados pelas empresas sem dinheiro para retornar para o Sul do país. Vale lembrar que muitas dessas pessoas vieram para essas novas áreas de fronteiras acreditando nas mensagens publicitárias sobre a fertilidade da terra, da inexistência de qualquer tipo de conflitos e do apoio de infraestrutura básica para o estabelecimento destas nas chamadas novas ―fronteiras agrícolas‖. Durante a década de 1960 foi construída a estrada BR-158, ligando São Félix do Araguaia a Cuiabá, e posteriormente ao Pará, passando por Porto Alegre do Norte, Confresa e Vila Rica. Na década de 1970 foi aberta a BR-80 atravessando as terras indígenas no Parque Nacional do Xingu, conectando essa região a São Félix e Cuiabá. Com a abertura dessas rodovias, muitas empresas apropriaram-se de grandes áreas de terras no Araguaia, e muitas pessoas vindas de diversas partes do país também passaram a ocupar as faixas de terras ao longo das estradas. A primeira cidade proveniente desse processo foi Ribeirão Bonito (atual Ribeirão Cascalheira); na década 1970, muitos povoados foram se formando às margens das rodovias ou próximos, muitas vezes em terras devolutas, como é o caso de pequenas cidades como: Bom Jesus do Araguaia e Serra Nova Dourada. O território da Amazônia atraiu um grande número de projetos agropecuários. Foram mais de 580 projetos, a maioria concentrada na região do Araguaia mato-grossense e paraense e no atual estado do Tocantins. Os estados de Mato Grosso e do Pará foram os que receberam maior número de projetos agropecuários aprovados pela SUDAM – mais de 400, 72% do total109. Dentre estes projetos, houve muitos que sequer chegaram a ser implantados, como, por exemplo, a Agropecuária Suiá-Missu, em São Félix do Araguaia aprovado pela SUDAM em 1966, foi vendida a um grupo multinacional italiano em 1972. Este projeto previa a construção de duas cidades: Liqüilândia e

109OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. BR-163 Cuiabá – Santarém: Geopolítica, grilagem, violência, mundialização. In: TORRES, Maurício (Org.). Amazônia Revelada: Os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 91.

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Suiá. Na futura cidade de Suiá seria construído um aeroporto internacional para transportar a carne bovina para a Itália. Nada foi construído e ―no lugar de Liqüilândia havia apenas um curral e no lugar de Suiá só a sede da fazenda‖110. Como alega Barrozo, nos povoados do Araguaia, como, por exemplo, em Santa Terezinha, os habitantes eram agricultores e pequenos criadores de gado, os quais praticavam a pesca e a caça como atividades complementares. ―Desde o início da ocupação, até hoje, parte das terras utilizadas para a criação de gado são terras de uso comum, localizadas nos ‗varjões‘, ou áreas alagadiças nas várzeas do rio Tapirapé‖111. Os empreendimentos agropecuários estabelecidos na região, merecendo destaque as empresas CODEARA, FRENOVA, Suiá-Missu, Bordon S/A, Tamacavy, Tapiraguaia112, entre outras, demandavam um número significativo de trabalhadores que passaram a ser buscados em outros lugares, especialmente em razão da falta de mão de obra na região para o atendimento de suas necessidades, de tal sorte que tiveram de procurar trabalhadores no estado de Goiás e no Nordeste brasileiro. Nesse contexto de grande fluxo de pessoas que chegavam de mudanças culturais e físicas, vinham os trabalhadores aliciados dos estados de Goiás, Maranhão e Piauí. Os que partiam pela primeira vez do Maranhão e do Piauí se depararam com uma fauna, flora e uma geografia diferentes do seu local de origem. Em contrapartida, para os que vinham de Goiás havia menos estranhamento, pois se estabeleceram em uma área muito semelhante daquelas que estavam habituados, tendo em vista que o referido estado faz divisa com o Mato Grosso e, assim, possuem aspectos geográficos parecidos. Este processo de ocupação das terras no Araguaia ocasionou o aumento da violência do campo, mortes, torturas de líderes comunitários e militantes da Igreja Católica. Durante esse período, o Araguaia ficou tomado pelo cenário dos conflitos entre os interesses do capital sob o respaldo do Estado, contrapondo-se àqueles que defendiam os interesses dos excluídos na região.

110Ibidem, p. 92. 111BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia... p. 93. 112Disponibilizamos uma relação dos projetos agropecuários aprovados pela SUDAM no Araguaia mato-grossense. Ver Anexos: Tabela 2.

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Como resultado de tal processo, foram construídas estratégias de resistência e lutas pelo território. Foi de grande importância a atuação dos movimentos sociais, tais como a CPT, CIMI e Sindicato dos Trabalhadores Rurais em conjunto com a Igreja Católica, estes se organizaram e passaram a atuar junto aos posseiros, pequenos proprietários, trabalhadores, migrantes e grupos indígenas.

1.1 Histórico de Ocupação de Porto Alegre do Norte: o cenário da vida dos posseiros antes da chegada das empresas agropecuárias

Porto Alegre do Norte pertencia a Luciara, comarca de Barra do Garças/MT. Situada na BR 158, a 240 km da sede do município, na beira do rio Tapirapé. Segundo os dados da Prelazia de São Félix do Araguaia113, a sua população na década de 1970 era de 2.500 habitantes, formada por lavradores e pequenos comerciantes, além de uma população instável, composta por peões que moravam temporariamente no patrimônio de Porto Alegre do Norte à procura de trabalho na região114. O povoado era estruturado pelo núcleo urbano e pela zona rural115 e começou a ser ocupado a partir da margem direita do rio Tapirapé por migrantes vindos, sobretudo, do norte de Goiás, do sul do Pará e Maranhão, alguns tendo passado por Mato Verde (Luciara), apossaram de parte das matas e dos campos, onde passaram a residir. As famílias viviam dispersas pelas áreas do sertão116.

113A Prelazia de São Félix do Araguaia foi criada no dia 13 de maio de 1970 pela Bula ―Ut comodius‖ pelo Papa Paulo VI, desmembrada da Prelazia de Registro do Araguaia (a atual Diocese de Guiratinga) Mato Grosso, Prelazia do Santíssimo Conceição do Araguaia, Pará e da Prelazia de Cristalândia, Tocantins. Até 2005 esteve ligada à Diocese de Goiânia, Regional Centro-Oeste da CNBB. Com a posse de Dom Leonardo Ulrich Steiner, passou a integrar a Diocese de Cuiabá, Regional Oeste 2. 114 Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A 17.4.11, 1980, p. 01. 115Porto Alegre do Norte é considerado o núcleo urbano, enquanto os núcleos de ocupação como: Azulona, Canabrava do Norte, Rio Sabino, Ponte, Mutum, Passagem da Vaca, Landi, Gameleira, Xavantino, Grota Bonita, Cedrolândia, Barra do Tapirapé, Capão Redondo, Brejo Empastado, Boa Vista, Bom Jardim, Varjão e Salvador, são considerados áreas de sertão, ou seja, ocupações distantes do núcleo urbano. 116A historiadora Lylia da Silva Guedes Galetti demonstra que o conceito de sertão era e continuaria por muito tempo, em múltiplos sentidos, a negação do espaço já conquistado pela Metrópole. Espaço em estado bruto, primitivo, deserto, inculto, lugar que está fora da ordem (colonial), o que acolhe o desertor, o que não se deixa conhecer, bem como é caracterizado pelo ―outro geográfico‖ do espaço já conquistado, e o lugar do Outro – o selvagem, o bárbaro.

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Algumas pessoas se agruparam em um local a que deram o nome de Cedrolândia, por haver abundância de cedros, a uns três quilômetros da margem do rio117. Os moradores vieram conhecer a região no ano de 1949 – Leandro Souza Pinto118, José Pereira dos Santos119 e Dionel Martins de Almeida. Saíram do sul do Pará, da cidade de Barreira dos Campos, pelo rio Araguaia, passando por Santa Terezinha e adentraram o rio Tapirapé juntamente com seus familiares que instituíram moradia no povoado de Cedrolândia no ano de 1950120. Outras famílias se estabeleceram às margens do rio onde havia um bom lugar para o porto, como é o caso do posseiro Domingos Medeiros da Silva, conhecido como ―Domingão‖, e a sua família, que se instalaram na beira do rio Tapirapé, dando início ao povoado de Porto Alegre do Norte. A localidade recebeu este nome devido ao fato de que algumas vezes por ano atracava um barco com mercadorias para negociar com a população. Um dos produtos mais vendidos era a pinga. E entre um gole e outro a animação aumentava e o porto se tornava alegre121. Entre 1950 e 1960 outras famílias de posseiros provenientes dos estados de Goiás, Pará e Maranhão migraram para o Araguaia mato-grossense à procura de terras com a finalidade de desenvolverem a cultura de criação de gado. Já nas décadas de 1970 e 1980, os migrantes foram atraídos pela conquista da terra nas áreas dos grandes projetos de ocupação do governo ditatorial, a partir da abertura da BR 158 em 1974. Assim, o histórico de migração destas populações é marcado pelo processo de expansão do capitalismo no campo, tendo sido expulsas dos seus locais de origem por pressões de latifundiários. Consequentemente,

GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: Imagens de Mato Grosso no mapa da civilização. Cuiabá: Entrelinhas/EDUFMT, 2012, p. 58. 117A DURA, conquista da terra: Porto Alegre do Norte – uma conquista dramática, Alvorada, São Félix do Araguaia, jan/fev-2000, nº 214. 118Pai do trabalhador rural e entrevistado, João Souza Lima (João da Angélica). 119De acordo com as informações fornecidas por Justiniano Pereira Sales (Professor da rede pública de Porto Alegre do Norte), o seu pai, José Pereira dos Santos, conhecido como Zé Dimiciano (pelo fato da sua mãe se chamar Maria Domiciana), chegou a Cedrolândia no ano de 1950. A sua família naquele momento estava em formação, juntamente com a sua esposa Maria Luiza Pereira Sales e seus filhos ainda com pouca idade, João Manoel Pereira Sales, Emilio Pereira Sales e Marcelino Pereira Sales. 120João Souza Lima (João da Angélica). Entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 121A DURA, conquista da terra...

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foram desapropriadas e passaram a buscar novas terras, até mesmo na condição de posse ou de trabalhos temporários nas fazendas da região.

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Mapa 3: Rota Fluvial a Porto Alegre do Norte/MT. Em destaque o percurso percorrido pelos posseiros que migraram de Barreira do Campo/PA ao povoado de Porto Alegre do Norte/MT. 74

Estes migrantes se organizavam em terras ditas devolutas, em que pudessem explorar uma posse sem que isto lhes gerasse maiores problemas. Desse modo, esses posseiros adentraram em espaços desabitados, muitas vezes encobertos pela mata, distantes das regiões densamente povoadas. A mobilidade dos migrantes para a Amazônia é objeto de estudo de diversos autores com perspectivas teóricas variadas. José de Souza Martins caracteriza o campesinato brasileiro da seguinte forma: ―[...] o camponês brasileiro desenraizado, é migrante, é itinerante. A história dos camponeses- posseiros é uma história de perambulação. A história dos camponeses- proprietários do sul é uma história de migrações‖122. Ao estudar a formação do campesinato maranhense, Francisca Isabel Vieira Keller demonstra que:

[...] no universo do lavrador, a transitoriedade é uma constante. Seu mundo é um mundo de bens escassos e fugazes. E é por isso que em sua estória de vida não há marcos temporais, mas espaciais: ele saiu de um local x para outro y e desfila toda uma série de deslocamentos de povoados e centros agrupados por regiões, critério mais abrangente.123

Os movimentos migratórios para a Amazônia possuem diversos fatores como elementos explicativos, tais como: a expulsão das antigas terras, a seca, a fome, a busca pelo místico através da profecia das ―Bandeiras Verdes‖, o sonho do El Dourado da Fronteira, a libertação da sujeição do trabalho nas grandes propriedades, etc.; assim, Neide Esterci assinala a migração dos posseiros para o nordeste de Mato Grosso, como:

[...] restabelecer o equilíbrio entre necessidades e recursos disponíveis através do deslocamento espacial. A questão remete à condição mais genérica do pequeno produtor em situações que se caracterizam pela existência de espaços abertos, de terras livres, e talvez seja uma sugestão para pensar noções tanto do tipo que leva a caracterizar o homem do campo como naturalmente nômade, como noções de que sempre que migra, o pequeno produtor o faz em função de pressões exercidas por

122MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 17. 123KELLER, Francisca Isabel Vieira. O homem da frente de expansão: permanência, mudança e conflito. Revista de História, v. 51, 102, p. 665-709, abr/jun. 1975, p. 699. 75

outros grupos sociais. É possível ser o deslocamento no espaço também uma regra social interna ao grupo.124

A migração tem como fator primordial a ocupação de áreas em que os trabalhadores possam se instalar novamente como pequenos produtores, assegurando, assim, a preservação da família de lavradores, pois a sobrevivência desse grupo advém de um modo específico de trabalho. O acesso à terra é que assegura a subsistência dos membros pela agricultura e criação de animais, tendo a sua história definida, conforme Maria Nazareth Baudel Wanderley como ―o registro das lutas para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade‖125. O deslocamento para a fronteira ocorre como um mecanismo de desprendimento da submissão provocada pelas relações de trabalho nos latifúndios. Sob esta ótica, Vieira126, constata que do ponto de vista macroestrutural a migração possui relação com as dificuldades de reprodução dos trabalhadores rurais em determinadas regiões, já os migrantes veem o deslocamento como algo que lhes confere autonomia. Neste aspecto, a autora assinala a valorização do trabalhar para si, ser dono do seu tempo, ser liberto, em oposição a trabalhar em terra de dono, trabalhar de alugado, ser cativo. A ocupação de terras livres com recursos abundantes tornou-se um fator significativo para obter-se a sobrevivência por meio da agricultura familiar e a liberdade da dominação da grande propriedade. Diferentemente dos migrantes que partiam para o Sudeste do país em busca de trabalho no parque industrial ou para os seringais da Amazônia, os pequenos produtores se deslocaram para o nordeste de Mato Grosso sem muita noção do que lhes esperava, pois estes iam à busca de terras para trabalhar, conferindo assim um significado para a ocupação daquele espaço. De acordo com

124ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 80. 125WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro. XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, outubro. 1996, p. 8. 126VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes: Viagem, Missão e Romaria. Movimento Sócio-religioso na Amazônia Oriental. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001, p. 115-116.

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Martins, ―A noção de posse é uma noção que privilegia não a terra mas o trabalho: a terra entra como o instrumento do trabalho, como mediador do trabalho‖127. É importante destacar que outro fator que impulsionou a vinda destes trabalhadores rurais para Porto Alegre do Norte está relacionado com a questão da religiosidade popular propagada pelo mito das ―Bandeiras Verdes‖ criado supostamente pelo Padre Cícero. Desse modo, os nordestinos deveriam migrar para a Amazônia, considerada uma grande área desabitada, um lugar mítico depois da travessia do grande rio128. Já na concepção de Vieira129, as ―Bandeiras Verdes‖ expressam de um ponto de vista místico a trajetória do campesinato nordestino em direção à Amazônia, em busca do seu lugar social na fronteira. O relato abaixo de Erotildes Millhomem130 nos ilustra este fato:

A minha avó era menina quando veio com os pais e doze irmãos. Chegaram e já havia Conceição do Araguaia e lá se estabeleceram, então depois eles foram para o sertão, pois eles eram trabalhadores e foram fazer os engenhos de cana, plantar cana, foram trabalhar para lá. A família da minha mãe veio a pé do Maranhão com as trouxas na cabeça. A família da minha mãe era muita gente e trazia um pouco de gado também, trazia as coisas e chegou com Inocêncio Costa, porque ele estava doente e lá [Maranhão] não tinha jeito de tratar e já tinham gastado muito dinheiro com ele; e ele não veio correndo dos cangaceiros, ele estava doente e se encontraram, acho que lá em Carolina, me parece, e ele disse: ―Eu estou indo a mando do padrinho padre Cícero, para que a gente atravesse o rio à procura das Bandeiras Verdes no Araguaia‖. As Bandeiras Verdes eram do lado de cá do Araguaia, e que não ia ter peste, cangaceiros, que não ia ter nada de mau. Eles vieram e plantaram as roças na estrada, colhiam e distribuíam para os outros, porque não podia trazer, então distribuía. Assim, a cada

127MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 131. 128MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira... p. 53. 129VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes... p. 152. 130A família da entrevistada é oriunda do Maranhão e chegou a Luciara em 1939. Nascida em Luciara/MT no dia 03/03/1939, filha de João Irineu da Silva e Enedina de Almeida. No final da década de 1960 começou atuar como professora no GEA a pedido de Dom Pedro Casaldáliga. Ex vice Prefeita de São Félix do Araguaia, no período de 1982/1989. Faz parte da Academia de Letras, Cultura e Artes do Centro Oeste, Cadeira 21. Co-fundadora do Museu Histórico e Cultural Municipal de São Félix do Araguaia.

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ano eles ficavam em uma ponta de mata daquela e vinham até que chegaram à beira do rio Araguaia e atravessaram.131

Esse relato nos ajuda a compreender as formas de deslocamentos de famílias pobres para o nordeste de Mato Grosso na década de 1940. Essas famílias eram compostas de trabalhadores rurais que fugiram da seca do Nordeste do país e das ameaças dos cangaceiros. Porém, muitas delas já haviam migrado para os garimpos de diamante ou de cristal, na divisa do norte de Goiás (atual Tocantins) com o Pará, ou já tinham trabalhado em atividades extrativistas, tais como a coleta de castanha-do-pará e látex, como também constituído posses em Conceição do Araguaia, Barreira do Araguaia e Santa Maria das Barreiras no sul do estado do Pará. Estas pessoas migraram em busca da promessa das ―Bandeiras Verdes‖, ou seja, uma terra sem males e abundância, vindo a convite de parentes, amigos, ou encontraram com estes durante o percurso para o Araguaia, como foi o caso da família da entrevistada. O trajeto era feito a pé nas picadas pela mata, pois não havia estradas, outros andavam a cavalos por meio das trilhas nas matas ou por vias fluviais. Ainda sobre o relato das ―Bandeiras Verdes‖ e em relação ao fluxo migratório para Porto Alegre do Norte, torna-se importante apresentarmos a trajetória de vida do antigo posseiro João Souza Lima, mais conhecido como João da Angélica, em referência ao nome da sua mãe – Angélica Lima Gonçalves. O entrevistado veio para o Araguaia com os seus pais em 1950, e se estabeleceu em uma área denominada de Cedrolândia nos arredores de Porto Alegre do Norte:

Meu pai [Leandro Souza Pinto] veio caçar um lugar particular em Porto Alegre do Norte, junto com o Dionelo132 e o Zé Dimiciano133. E naquele tempo eles achavam o seguinte: tinha que ser uma mata boa que tivesse água que dava para colocar o gado. Naquele tempo eles andavam atrás de um lugar assim que era para colocar o gado. O meu pai achou isso aqui e ficaram.

131Erotildes da Silva Milhomem, entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em 06/12/2014 na cidade de São Félix do Araguaia. 132Dionel Martins de Almeida. 133José Pereira dos Santos.

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Então, quando nós viemos de Barreira dos Campos viemos de canoa, um monte de canoas. E de lá viemos para São Pedro e para cá viemos de cavalo e canoa também. Como tinha uma árvore muito grande com o nome de Cedro, então colocaram o nome do lugar de Cedrolândia, porque deu muito Cedro. Meu pai junto com o Dionelo fizeram uma roça, umas casinhas beirando o chão e nós mudamos. Nossa mudança chegou em Cedrolândia no dia 6 de janeiro de 1950. Eu tinha dez anos de idade, justamente naquela época. Daí continuamos a morar e chegar gente, daqui e de lá. Teve até umas quinze ou dezesseis casas em Cedrolândia. [...] Eles falavam um seguinte: em Barreira dos Campos, o pai desse Justiniano era irmão do meu pai e também o meu padrinho. Aí chamou ele [José Pereira dos Santos] mais o Dionelo para serem vaqueiros do Lúcio da Luz. E tinha aquela história mesmo, antiga que o padre Cícero Romão encomendava o povo a pegar as Bandeiras Verdes e ir para a beira do rio Grande que era o rio Araguaia, não é? Pegar as margens pequenas. Aí viemos e ficamos aqui. Chegamos a Porto Alegre do Norte no dia 6 de janeiro de 1950.134

Como podemos observar, ambas as famílias dos entrevistados acima migraram para o Araguaia em busca de terras férteis e agricultáveis, tendo a criação de gado como a principal atividade econômica e de subsistência. Estas vieram para o Mato Grosso atraídas pelo imaginário das ―Bandeiras Verdes‖. Esta migração pode ser entendida como um mecanismo de resistência ao domínio do latifúndio predominante nos estados de origem dos entrevistados: Maranhão e Pará, áreas de colonização mais remotas permeadas pelo domínio dos antigos coronéis. Saíram em busca de espaços não ocupados, que passaram a se chamar sertões ou gerais até que se tornassem patrimônios com o estabelecimento de outras famílias. No relato de João da Angélica, podemos perceber que a migração respeitava uma lógica de planejamento para o deslocamento familiar que se dava em dois momentos distintos: primeiro, um membro do grupo familiar (o pai) se deslocava para conhecer as condições das terras e sob a possibilidade de ocupação; depois do reconhecimento da área escolhida por este indivíduo (o pai juntamente com os amigos/parentes), é que se instituía a migração de toda a

134João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

79 família. Ainda conforme as observações da testemunha, ―Naquela época Porto Alegre do Norte não tinha ninguém, era toda desocupada. Então, ficamos lá morando, porque tinha mata e fazia as rocinhas que cultivava, e tinha um gadinho e tudo‖135. Esta afirmação dialoga com os dados do censo do IBGE de 1950136, em que a distribuição percentual da população no censo demográfico em Mato Grosso era de 0,4%, enquanto que nos estados de Goiás (1,9%), Maranhão (3%) e Pará (2,2%), de onde vieram a maioria dos migrantes de Porto Alegre do Norte, havia uma população bem maior do que a do estado de Mato Grosso. Sob esta ótica, a constatação de João da Angélica se torna compreensível. A falta de um número elevado de pessoas e de empreendimentos rurais em Porto Alegre do Norte foi uma prerrogativa encontrada para se ocupar as terras e desenvolver a agricultura familiar de subsistência. Partir em busca de novas terras não significava somente encontrar um lugar para estabelecer a família e viver do sustento que as atividades laborais proviam. Temos que considerar que por trás das falas dessas testemunhas há implícita a violência do processo migratório. Essas pessoas não deixaram os seus locais de origem apenas para seguir uma profecia religiosa; pois precisamos lembrar que elas foram expulsas dos seus espaços de sociabilidade pela expansão do capitalismo, pela seca, fome e miséria que assolavam a sua sobrevivência. Diante desses fatos, é válido assinalarmos que esses indivíduos deixaram para trás todo um trabalho desenvolvido nas suas antigas moradias, quando perderam o acesso à terra juntamente com suas benfeitorias, as áreas desmatadas, as roças, as criações, as casas, etc., todas feitas com muito sacrifício se levarmos em consideração o baixo nível tecnológico dos seus instrumentos de trabalho. Desse modo, a violência contida no processo migratório decorre do prejuízo de muitos anos de trabalho desempenhado para a instalação e

135Idem. 136Disponível em: . Acesso em: 04 jan. 2016.

80 subsistência familiar, acarreta a perda dos laços de pertença com o antigo lar, bem como na destituição da sua história com o espaço que lhe conferia identidade. O estabelecimento desses migrantes se deu principalmente às margens do rio Araguaia, na divisa dos estados do Tocantins, Goiás, Pará e Mato Grosso. As famílias que migraram para Porto Alegre do Norte passaram um período de estadia na Ilha do Bananal. Portanto, do outro lado do rio Araguaia, formaram vilas, patrimônios e sertões; plantavam roças e criavam gado em posses de 50 a 100 hectares, dando origem, principalmente aos municípios de Porto Alegre do Norte, Luciara, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia, entre outros. Ao se instalar em Porto Alegre do Norte e se apropriar de um pedaço de terra, a família passava a trabalhar na área, conforme as suas necessidades, cabendo a ela escolher como, quando e o que cultivar de acordo com os limites impostos pela natureza, bem como pelo acesso aos instrumentos de trabalho necessários à plantação e o elemento característico da subsistência familiar – a força de trabalho de seus membros. Entretanto, temos que levar em consideração que o processo de estabelecimento nas novas áreas não era tão simples como parece ser, pois estas famílias tinham que começar os trabalhos de desmatamento, construções e plantio das roças tudo novamente, com o agravante de que elas não conheciam a nova espacialidade, a fauna, a flora, o calendário climático para a cultura da lavoura e das criações. Neste sentido, torna-se importante destacar que segundo Maria Cantuario, o cultivo da mandioca e a técnica de plantar a raiz que era a base da alimentação dos lavradores, decorreu da produção em área de capão137 a partir da observação dos conhecimentos dos povos indígenas que habitavam a região138. Então, a concretização para a instalação em Porto Alegre do Norte implicava o conhecimento das características da região, o que demandava tempo até que os

137Extensão do cerrado, constituído de faixas de mata que não alagam no tempo das chuvas, então chamadas de terras altas e usadas para plantar todas as culturas locais. CANTUARIO, Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de fora! Vamos chegando e vamos entrando”: lavradores às margens do Araguaia Mato-grossense (1950 – 1990). Dissertação (Mestrado em História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012, p. 36. 138Ibidem, p. 114.

81 indivíduos reconhecessem os períodos das chuvas e das secas, as frutas e hortaliças que poderiam ser cultivadas, os locais ideais para a criação de pastos do gado, etc., ou seja, novamente essas pessoas sofriam com o processo violento da migração. As famílias que chegavam tinham que se dirigir aos antigos moradores para que estes lhes indicassem os locais onde eles poderiam se estabelecer. Um novo posseiro não poderia demarcar uma gleba já formada sem a permissão do seu proprietário, assim os novos moradores se direcionavam até Domingos Medeiros da Silva, conhecido como Domingão para acertar o local pretendido da posse, conforme o relato de Ana Felicia Araújo139:

As pessoas chegavam e conversavam que iam morar aqui. Ele dizia que podia morar aqui e que apoiava. As pessoas diziam: ―Domingão eu vou morar aqui mais você‖. Ele dizia: Está bem! Ele era como se fosse o líder da comunidade. Aí o povo vinha e morava aqui. Então, ele como o morador mais velho vinha e conversava com ele para morar aqui.140

A terra não tinha proprietário, era de todos, desde que respeitassem as regras para apropriação do espaço. As pessoas viviam em comunidade devido ao isolamento natural e a falta de estradas, sendo o rio Araguaia o único meio de acesso à região que no tempo da seca se tornava inavegável. As roças de subsistência eram cultivadas coletivamente durante o período das chuvas que vai de outubro a abril. De acordo, com o relato de Ana Felicia Araújo, os posseiros plantavam: ―arroz, feijão, mandioca, milho, banana, batata, melancia. [...]. Nós

139No final da década de 1950, Ana Felicia, conhecida como dona Nininha, migrou com a sua família do Piauí para Cristalândia em Goiás (atual Tocantins), pois tinha um irmão que já morava na localidade. A trajetória para Cristalândia foi realizada a pé. Depois de cinco anos ela se mudou com uma irmã casada para Luciara/MT, onde posteriormente Ana Felicia se casou com Alexandre Quirino de Sousa. Em 1962 se mudaram para Porto Alegre do Norte, porque ficaram sabendo que havia terras para se ocupar e assim o seu esposo foi trabalhar nas fazendas da região. Sobre a constituição da sua família, ela diz que: ―Meus filhos nasceram em Porto Alegre. Todos filhos de Porto Alegre. Todos alegres [Risos]. Com todas as tristezas, mas é alegre‖. 140Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.

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éramos sustentados por aquilo que dava na roça. Porque não tinha outro lugar para buscar nada. Então, tínhamos que comer o que a roça dava‖141. As terras apropriadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte deveriam ser exploradas logo que possível, pois não era permitido manter a área sem produção à espera da regularização das posses. O posseiro conferia valor a terra no momento em que esta passava a ser trabalhada, visto que não era a posse que tinha maior importância, mas sim os frutos do trabalho que ela rendia, conforme podemos verificar no relato a seguir:

Naquele tempo eu falo para os meus meninos que em toda a roça os bichinhos eram criados soltos. A rocinha cercada. Nós limpávamos e fazíamos a coivara com a enxada e queimava. Quando era para plantar o arroz a gente fazia o mutirão. E aí vinha o Zé abrindo as covas e as mulheres semeando o arroz naqueles buraquinhos e nós atrás fechando. Eh, mas dava um legume bom! As coisas todas sadias!142

Para entendermos como ocorriam os mutirões, nos pautamos no estudo de Antonio Candido sobre o caipira paulista, em que o autor observou várias propriedades campesinas no interior de São Paulo, e percebeu que a sociabilidade dos trabalhadores rurais ia além dos laços domésticos e se estendia de forma muito expressiva nas relações estabelecidas com a vizinhança. As atividades das lavouras eram solucionadas pela convocação do mutirão que supria o problema da mão de obra individual ou familiar. Esse chamado ocorria na reunião de vizinhos e o seu trabalho consistia no auxílio de determinada tarefa: derrubada, roçada, plantio, colheita, dentre outros. O trabalho não era remunerado, pois consistia em uma obrigação moral em que o favorecido iria ―pagar‖ tal assistência participando das futuras convocações daqueles que lhe auxiliaram. Este chamado sempre seria cumprido, visto que era praticamente impossível um

141Ibidem. 142João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte, grifo nosso.

83 agricultor que só dispunha da mão de obra familiar cumprir com todas as obrigações agrícolas sem a ajuda dos vizinhos143. Em relação às análises tecidas por Antonio Candido sobre o caipira paulista, empregamos uma associação com as práticas de agricultura dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, mas tendo a consciência dos aspectos que diferenciam as pesquisas sobre o campesinato do interior de São Paulo, especialmente no que se refere ao tempo e espaço. No entanto, buscamos destacar que os posseiros de Porto Alegre do Norte também se utilizavam da técnica do mutirão para o desmatamento, plantio e colheita nas suas roças. O mutirão como forma de auxílio mútuo entre a vizinhança ocorria devido à noção de pertencimento a uma localidade, a qual conferia coesão às relações sociais além das existentes entre o grupo familiar. Sobre o mutirão, Antonio Candido expõe que:

Um bairro poderia, deste ângulo, definir-se como o agrupamento territorial, mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela participação dos moradores em trabalhos de ajuda mútua. É membro do bairro quem convoca e é convocado para tais atividades. A obrigação bilateral é aí elemento integrante da sociabilidade do grupo, que desta forma adquire consciência de unidade e funcionamento. Na sociedade caipira a sua manifestação mais importante é o mutirão.144

De acordo com Antonio Candido145, o bairro era o conjunto de vizinhança que constituía o principal espaço da sociabilidade camponesa. Era composto pelo agrupamento de algumas ou muitas famílias, de certo modo vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas. A organização desse lugar era disposta por casas, umas próximas das outras ou isoladas por terrenos extensos distantes das outras moradias. Mas, este fato não impedia a sociabilidade entre os

143CANDIDO, Antonio. Os parceiros do rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, p. 81-82. 144Ibidem, p. 81, grifo do autor. 145Ibidem, p. 76.

84 vizinhos que era tão importante quanto a exercida com os familiares, pois entre estes indivíduos predominava uma relação amistosa, assinalada pelo autor como ―o universo imediato da vida caipira, e em função da qual se configuram as suas relações sociais básicas‖146. A sociabilidade entre os vizinhos era regida pelo ―sentimento de localidade‖ que não dependia apenas da sua posição geográfica, como também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas, delineado pela proximidade física e pela necessidade de cooperação. Sob essa ótica, o relato de Ana Felicia Araújo pode ser esclarecedor:

Às vezes a gente ajudava os vizinhos e depois eles nos ajudavam nas roças. Era assim. Pois, sempre tinha um vizinho mais amigo que ajudava. Eram os compadres e as comadres que iam pegar o arroz e colher na roça do compadre e depois colhia na minha roça, assim que eram as coisas. Era um pessoal bem unido. Não tinha desunião nesse meio. Podia confiar nos vizinhos. Uns criavam boi outros não criavam. Uns criavam porcos e galinhas. E quando matava as criações, às vezes se comprava, dividia ou trocava com os vizinhos. O certo era que a gente convivia junto, todos muito juntos e todo mundo amigo.147

Para Sá148, o camponês é definido pela prática econômica individual, isto é, a família como componente expressivo no desempenho de tal atividade; ajustada em um modelo ideal de autonomia e autossuficiência, o trabalho na roça pode ser definido, sobretudo, pela valorização de uma independência que se opera apesar de todas as dificuldades e precariedades advindas da natureza, a qual, em última instância, impõe a estes indivíduos a constituição de relações cooperativas extrafamiliares. Sob a lógica de se precisar da ajuda do outro, o lavrador vê sua autonomia destituída ao ter que dar e pedir auxílio. Desse modo, é válido

146Ibidem, p. 72. 147Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte. 148SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural. In: ESTERCI, Neide (Org.). Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da Igreja Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008, p. 15.

85 destacarmos que a prática dos mutirões em Porto Alegre do Norte, não ocorria exclusivamente pelo ―sentimento de localidade‖, e que os laços de parentesco, compadrio e vizinhança na ajuda mútua não era algo de todo objetivo, mas sim fruto de uma atividade laboral desprovida de sofisticadas ferramentas de trabalho e tecnologia, ou seja, de uma agricultura traçada pela precariedade. No início da década de 1950, as famílias de migrantes oriundas principalmente dos estados do Maranhão, sul do Pará e norte de Goiás começaram a empreender a ocupação de Porto Alegre do Norte pela abertura das posses para a sobrevivência e manutenção dos familiares. Durante os anos que se seguiram até a década de 1970, a forma de propriedade na região era a posse, intensificada pela propagação dos núcleos de ocupações através da chegada dos parentes, amigos e conhecidos dos primeiros habitantes do local. A base territorial de Porto Alegre do Norte é configurada pela instalação das famílias próximas aos rios, córregos e riachos, sendo que o núcleo urbano se formou às margens do rio Tapirapé, acarretando a formação de um novo mapa das posses pelas referências das suas comunidades de origem, como as posses de João da Angélica, dos Glórias - do senhor José Bento do povoado de Canabrava do Norte, dos Guimarães e dos Fernandes149. A chegada desses grupos familiares contribuiu para a constituição de novos grupos de indivíduos na fronteira que passaram a desenvolver o ―sentimento de localidade‖, tendo como referência os nomes dos patriarcas das famílias. A disposição das posses seguia uma lógica instituída pelos antigos moradores, em que o ―chegante‖ tinha que se dirigir aos antigos moradores e perguntar onde ele poderia demarcar a sua gleba150. O ―sentimento de localidade‖ e os laços de sociabilidade emitidos pela relação entre a vizinhança impulsionavam as atividades do mutirão. Entretanto, devemos considerar que a ajuda mútua disponibilizada de modo esporádico nos

149Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora, em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 150ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia...

86 mutirões também era reflexo de uma agricultura precária com poucos instrumentos de trabalho e desprovida de maquinários, bem como pelo fato destes indivíduos viverem em condições semelhantes de trabalho e de terem em comum o contexto histórico imposto pelo processo violento da migração. Mas, além disso, desejamos assinalar que o mutirão não tinha como expressão exclusiva a manutenção da agricultura de subsistência, pois o ato de criarem uma consciência de pertencimento à determinada localidade e ao grupo que estava ao seu redor, demonstra que a conservação desses laços de sociabilidade foi fundamental para as ações de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias que vieram se instalar na região a partir de década de 1970, conforme descritos nos capítulos dois e quatro desta tese. De acordo com Wanderley151, a agricultura familiar desenvolvida pelo campesinato brasileiro pode ser expressa pela capacidade de prover a subsistência do grupo familiar, em dois níveis complementares: a subsistência imediata, ou seja, o atendimento das necessidades domésticas, e a reprodução da família pelas gerações subsequentes. A produção camponesa se configura na denominada ―policultura-pecuária‖, a qual combina diferentes técnicas para desenvolver um grande número de atividades agrícolas e de criação animal, pois essa diversidade de produtos poderia fornecer uma segurança contra possíveis adversidades da natureza ou desigualdade das colheitas. Neste sentido, vemos que a família de João da Angélica estava inserida na lógica da ―policultura-pecuária‖, pois produziam vários alimentos, tais como: o arroz, o milho, a mandioca e a melancia, criava-se porco, galinha e o gado. Entretanto, observamos que este fato não estava apenas relacionado ao método de assegurar a alimentação familiar durante uma possível intempérie, mas também para guarnecer a família com diversos gêneros alimentícios na sua nutrição. Em entrevista concedida pelo antigo morador da região, João da Angélica, podemos perceber que a apropriação da terra ocorria de forma individual, em que cada família trabalhava de modo autônomo na sua posse, isto

151WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro...

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é, escolhendo o que produzir a partir dos ciclos da natureza, do estabelecimento na terra, da disposição dos instrumentos de trabalho e a força laboral dos familiares e da vizinhança. Este fato dialoga com Woortmann152, em que a terra para a campesinidade não era vista como objeto de trabalho, mas como expressão de moralidade, via-se nela a projeção de um patrimônio familiar, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a família enquanto valor; a terra não era simples coisa ou mercadoria. O objetivo fundamental da produção dos posseiros era a subsistência, garantindo autonomia em relação à vida que tinham nos seus lugares de origem, tendo em vista que antes o seu trabalho na terra tinha como finalidade atender os anseios dos grandes proprietários, mas na nova espacialidade a sua produção se dava de maneira autossuficiente para o seu consumo interno. Portanto, os posseiros de Porto Alegre do Norte passaram a criar e fazer as suas próprias reproduções. A venda dos excedentes não ocorria, pois os trabalhadores rurais plantavam alimentos com pouca expressão no mercado. Assim, apenas o gado era vendido nas raras vezes em que aparecia um atravessador na região, e com a venda compravam-se os produtos que não se produziam nas posses, tais como querosene, sal e tecidos. Nas atividades laborais dos lavradores, não havia o emprego da mão de obra assalariada, contava-se com a ajuda da família e dos vizinhos através dos mutirões para o plantio das suas roças. Estes indivíduos organizaram a exploração do meio natural para atender as suas necessidades. Nas perguntas que realizamos sobre os grupos indígenas do Araguaia, as testemunhas apontaram que os índios das etnias Karajá e Tapirapé153 eram os mais dóceis; já os Kayapó e os Xavante foram caracterizados como os índios mais violentos. Desse modo, as casas dos moradores de Porto Alegre do Norte foram

152WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se neguceia”: o campesinato como ordem moral. Brasília: Ed. Universidade de Brasília/Tempo Brasileiro, 1987, p. 11. 153José de Souza Martins alega que a região do Norte de Mato Grosso recebeu uma ―certidão negativa‖ da FUNAI, alegando que naquela área não havia grupos indígenas. Desse modo, as empresas agropecuárias conseguiram ocupar o território em que os índios Tapirapé viviam há dezenas de anos, na confluência do rio Tapirapé e Araguaia. Na falta de uma providência oficial, os Tapirapé decidiram demarcar a sua reserva. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 107-108.

88 construídas umas próximas as outras por medo do ataque dos povos indígenas presentes naquele espaço:

Mas o índio naquela época era o índio Xavante, o índio Kayapó que aperreavam muito, mas o Tapirapé não. Era um índio manso que lidava com a gente. Era um índio bom. Mas o Kayapó..., mas eu dou razão ao índio Kayapó, pois eles vieram de lá do Pará muito embaixo, já corrido, pois o pessoal matava muito eles e foi indo e eles vieram fugido para cá, então ficaram na Água do Peixinho, que é o Xingu. Eles ficavam revoltados para fazer vingança. E estavam certos. Isso que os índios passaram eu passo com esses netos meus e filhos, e nós estamos passando. Naquela época o índio sofria na mão de todo mundo e hoje os pequenos estão nas mãos dos grandes154.

Nos relatos dos moradores locais, os índios Tapirapé são vistos como pacíficos cuja convivência era amistosa; já os índios Kayapó eram tidos como índios violentos, dos quais as pessoas da região tinham muito medo, pois eles quase chegaram a dizimar a etnia Tapirapé na disputa por territórios. Em Luciara, a presença dos Kayapó é demonstrada por meio de narrativas bem violentas acerca das suas ações contra os posseiros:

Então, mudamos para o sertão, mas havia índios que queriam matar a gente, mas matou gente. Os Kayapó e os Xavante que botavam para correr e matavam a gente. Então, fomos morar lá no sertão. Meus pais, minha avó e os meus tios, então ficaram todos lá, nesse lugar chamado Dois Irmãos, umas três léguas de Luciara, eles ficaram morando lá. Um dia chegou um homem todo caceteado de índio Karajá, Karajá não, Karajá é manso, é o outro índio, Kayapó. Kayapó que mata com borduna, então chegou um homem no couro de vaca, eles colocaram o homem naquele couro e amarraram as quatros pontas assim, e quatro homens carregando, chegaram lá em casa e colocaram no terreiro e eu vendo aquilo, eu tinha sete anos e fiquei apavorada. Então, meu pai disse: ―Nós vamos embora daqui!‖. Pegamos nossas coisas e fomos para a Rua.155

154João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 155A palavra Rua significa que foram morar no núcleo urbano. Erotildes da Silva Milhomem, entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em 06/12/2014 na cidade de São Félix do Araguaia.

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A família da entrevistada resolveu deixar o sertão para morar em um núcleo urbano, considerado mais seguro dos ataques dos índios Kayapó. Ela relatou que a população dos arredores de Luciara não reagia contra os índios, mas em São Félix do Araguaia os moradores se armavam e matavam os povos indígenas. Em Porto Alegre do Norte não encontramos relatos de violência contra os Tapirapé, pois justificaram que estes índios se retiraram passivamente e se deslocaram para outros territórios. As outras etnias presentes no Vale do Araguaia causavam medo nas pessoas, conforme podemos verificar no relato do senhor João Lima, um antigo morador do povoado:

O índio era muito perigoso. Quando os velhos nossos pais iam para um canto da roça ou outro lugar, tinha que ficar um barqueiro, junto com as mulheres, porque senão os índios matavam. Naquele tempo todo mundo andava armado. Os Xavante era de passagem feito chuva, agora os Kayapó aperreavam muito nós. E os Tapirapé vivia nesse Urubu Branco, mas não mexia com ninguém não.156

Os Tapirapé não causavam preocupação, visto que desde a década de 1950 passaram a conviver com as Irmãzinhas de Jesus na Aldeia Tapi'itawa. Já as etnias Kayapó e Xavante provocavam medo nos posseiros, pois estes resistiam à ocupação da área que tinham como suas, assim, essa territorialidade sobreposta (índios e posseiros) provocava conflitos. Neste sentido, os posseiros desenvolveram técnicas de amparo às mulheres na ausência dos seus maridos, como também a busca da proteção aos ataques dos grupos indígenas por meio de uso de armas. Desse modo, torna-se importante destacarmos que de modo geral, a memória dos trabalhadores rurais não leva em consideração que eles invadiram as terras indígenas e, por isso, os índios contra-atacavam tal ação. Diferentemente, tem-se o relato de João da Angélica, que vê a violência dos povos indígenas como uma vingança contra a tomada e expulsão das suas terras em temporalidades e espacialidades diversas ao longo das suas histórias.

156Relato de João Lima, morador antigo do povoado de Porto Alegre do Norte. Entrevista realizada por Maria do Rosário S. Lima, em junho de 2001, em Porto Alegre do Norte, para a elaboração da sua monografia do curso de História/UNEMAT, 2002.

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1.2 A constituição do patrimônio de Porto Alegre do Norte: uma espacialidade traçada pela mobilidade e história de famílias

O espaço estudado demonstra que o fluxo migratório para o Araguaia mato-grossense ocorreu desde o início do século XX e que este processo foi intensificado na década de 1970, pela construção das rodovias federais que interligavam a Amazônia aos outros pontos do Brasil. Assim, Ianni indica que:

Desde 1970, intensificou-se a execução do programa do governo federal de construir rodovias na Amazônia [...] essas rodovias não podem ser tomadas sempre como ―precursoras‖ da chegada de posseiros, grileiros, latifundiários e empresários, agentes do poder público, igrejas e seitas, bancos e outros indícios da metamorfose de ―terras virgens‖ em roças, criações, fazendas, posses, domínios, empresas, colônias. Em muitos casos a rodovia caminha de par em par, depressa ou devagar, com a ocupação da área. Outras vezes, a ocupação precede a rodovia.157

O trajeto das famílias provenientes do Nordeste do país, sul do Pará e norte de Goiás para o nordeste de Mato Grosso foi realizado a pé ou em lombos de animais, como também em batelões pelo rio Araguaia no início do século XX. Desse modo, a (re)ocupação da região antecede a implantação das principais rodovias da Amazônia: Cuiabá-Santarém (1976), BR 158 (idealizada em 1944, mas efetivamente aberta na década de 1970) e Transamazônica (1972), pois os principais povoados da região foram formados até a primeira metade do século XX: Furo de Pedra (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Santa Terezinha, Mato Verde (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949), ou seja, antes da inauguração das citadas rodovias. Entretanto, não podemos desconsiderar que o deslocamento de famílias de trabalhadores rurais para o Araguaia mato-grossense tornou-se mais intenso em meados da década de 1950 a partir da construção da rodovia Belém-

157IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979B, p. 13.

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Brasília (BR 010). Este trajeto possibilitou também a (re)ocupação do sul do Pará e norte de Goiás, atual Tocantins, bem como a instauração da rodovia TO 336 que liga a cidade de Guaraí a Couto Magalhães às margens do rio Araguaia, da mesma maneira que as rodovias inauguradas a partir da década de 1970, como a Cuiabá- Santarém, a BR 158 que atravessa o país de Norte a Sul e a Transamazônica, que passa por sete estados brasileiros: Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e Amazônia, permitindo, assim, um maior fluxo migratório de pessoas provenientes de diversos estados do Brasil para o nordeste de Mato Grosso. Os migrantes procuravam áreas de mata fechada providas de água por meio de rios, fontes e córregos. Desse modo, as primeiras famílias de Porto Alegre do Norte se organizaram próximas ao rio Tapirapé, um dos principais afluentes do rio Araguaia, em uma distância média de 100 a 150 km nos varjões adentro. Estes também partiam em busca de terras férteis, tendo em vista que não possuíam meios financeiros para recuperação do solo através de fertilizantes ou adubos sintéticos. A (re)ocupação da região não teve um projeto programado. Foi feita a partir do que Ianni158 chama de ―colonização espontânea‖, pois não houve um planejamento elaborado por órgãos públicos ou privados. Os posseiros se estabeleciam nas áreas, construíam suas moradias e benfeitorias, formavam vilas e delimitavam os espaços de acordo com a chegada de novas famílias. A formação do povoado de Porto Alegre do Norte foi constituída através da (re)ocupação daquele espaço pelas primeiras famílias que, com o tempo, foram avisando parentes, amigos e conhecidos sobre a existência de terras devolutas. Dessa forma, com o aumento da população se formou um conjunto rural e urbano denominado por seus habitantes de patrimônio. A lógica dos deslocamentos e ocupação dos espaços para a constituição das moradas em Porto Alegre do Norte possui relação com a instauração dos novos povoados estudados por Francisca Isabel Vieira Keller na formação do campesinato maranhense. Em Porto Alegre do Norte a área ocupada

158Idem.

92 pelos posseiros era denominada de patrimônio, já no interior das ocupações ao longo da rodovia Belém – Brasília, conforme Keller atribuía-se o nome de ―centros‖, sendo estes originados pela instalação de um ou mais indivíduos, ligados por laços de parentesco, amizade ou compadrio, os quais entraram pela mata e se instalaram em um ―sítio‖. Após a escolha do local, traziam os seus familiares e iniciavam a abertura das roças. Depois de certo período, a notícia se espalhava e outras famílias juntavam-se, aumentando o número de casas. Nesse momento inicial, o centro era habitado por famílias unidas por laços de parentesco ou compadrio, oriundas do mesmo local de origem, as quais desempenharam juntas ou após o conhecimento da notícia de terras devolutas o deslocamento e estabelecimento na mesma espacialidade159. O espaço urbano de Porto Alegre do Norte foi construído pelos posseiros sem o apoio ou ação dos órgãos governamentais. A área urbana passou a ser a sede de várias atividades coletivas como celebrações de rezas, batizados, casamentos160 e festas religiosas, as quais podemos identificar na entrevista de João da Angélica:

As festas eram boas! Esse povo inventava santo não sei de onde vinha. Todo dia tinha uma festa de um santo diferente. O santo fulano de tal, o santo do Bom Jesus da Lapa, São Sebastião, São Pedro, então tinha aquela festa, dois, três dias de festas. Aí os padres vinham para a desobriga. Eles ficavam na Idalina. Eles vinham de canoa ou barco e parava lá. Mandavam avisar que tinham chegado. Nós saíamos de Cedrolândia para batizar os meninos, celebrar os casamentos. Aquele tempo era tão bom! Não é que nem hoje não161.

159KELLER, Francisca Isabel Vieira. O homem da frente de expansão... p. 674. 160Essas cerimônias eram realizadas através das visitas das desobrigas dos missionários no princípio de cada ano, aos locais remotos. Levando os sacramentos às populações que não dispunham de assistência religiosa regular, devido ao próprio isolamento em que viviam ou ausência de padres na região. O nome desobrigas refere-se ao antigo preceito da Igreja de que o católico é obrigado ao menos uma vez por ano a confessar-se e comungar. Foi muito comum no Brasil desde o período colonial em razão das grandes distâncias e do pequeno número de padres para atender, principalmente, as comunidades mais distantes do interior. 161João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

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As festas de santos, as celebrações de batizado e de casamento eram os momentos propícios para que a população dos núcleos de ocupação, como Cedrolândia, próxima ao núcleo urbano de Porto Alegre do Norte, se reunissem e partilhassem desses momentos de descontração, oportunizada pelas atividades das desobrigas. Esses acontecimentos contribuíam para o enriquecimento cultural pelo fato de se encontrarem diversas culturas oriundas de diferentes estados do país, como também a troca e a criação de novos elementos culturais. Desse modo, o núcleo urbano era considerado um ponto de referência para os moradores da localidade, pois era onde os posseiros faziam suas compras, participavam das festas religiosas – batizados e casamentos, e vivenciavam as mais variadas experiências culturais. Esses núcleos de ocupação estavam muito distantes dos centros de saúde, sendo que a Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, publicada em 1971, aponta que a saúde era um problema para 80% da população do Araguaia mato- grossense. Naquele período só existia o Hospital do Índio de Santa Isabel na Ilha do Bananal, que passou a funcionar no ano de 1969162. Se a saúde ainda continuava precária na década de 1970, com a chegada dos empreendimentos agropecuários, imagine na década de 1950 quando os posseiros criaram diversos núcleos de ocupações próximos ao núcleo urbano de Porto Alegre do Norte. Neste sentido, em relação às doenças é válido apresentarmos a descrição de João da Angélica:

Naquele tempo a febre que hoje chamamos de maleita, chamava de ―fezão‖. Maleita está com maleita. Se curava com a casca de pau e fedegoso. Você bebia o chá de vereda, carrapicho de ovelha, melão de São Caetano. Ficava tudo bom e forte, pois a casca do Cedro cura tudo! Era uma benção. Você tomava um chá meio reforçado hoje à noite e amanhã cedo a febre passava. Continuava dois, três dias, pronto, não vinha mais. Cadê a febre? Cortou. Não vinha mais não. Dava um banho quente nos

162CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 31.

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meninos, aí embrulhava os meninos com as cobertas e quando suava sarava.163

A doença mais comum na região era a malária. A inexistência de postos médicos fez com que os moradores desenvolvessem vários métodos caseiros para a cura dessa doença. Do mesmo modo como a saúde, a educação também foi desenvolvida por meio de algumas práticas peculiares ao espaço da nossa análise, conforme podemos identificar no relato abaixo:

Chamava-se Escola Particular. O Zé, hoje é finado Zé Moura, ele vivia assim nas áreas dando aulas contratado pelos pais de família. Ele passava seis meses aqui dando aulas. Saia daqui uma comparação ia para Porto Alegre, outros seis meses saia de lá e ia para outro lugar. Depois voltava e fazia o ciclo. No nosso caso, os nossos pais, contratavam ele por um ano de escola. Mas era assim, tinha que dar aula seis meses aqui, seis meses ali, pois tudo era contrato, né? Aí fechava o ano. Era assim.164

O método de ensino exposto por João da Angélica assemelha-se ao caso analisado por José de Souza Martins165 no povoado de Floresta no Maranhão. As crianças daquela região frequentavam as aulas particulares de um mestre- escola. Essas aulas ocorriam em um largo cômodo de uma casa construída de pau a pique. Os alunos iam para a escola levando cada um o caderno, o lápis e um tamborete. Nestas salas de aula, geralmente lotadas, sentavam no tamborete e escreviam sobre os joelhos, usando-os como carteiras. Por este trabalho, o professor recebia um pagamento mensal dos pais das crianças que, em geral, eram trabalhadores rurais pobres em localidades onde o dinheiro era escasso. Os habitantes da região construíram as casas, as ruas, a escola e o bebedouro público do gado, bem como o empreendimento do trabalho coletivo de desmatamento para a constituição do patrimônio. O patrimônio era formado por

163João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 164Idem. 165MARTINS, José de Souza. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil. V.4, São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 710.

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áreas comuns, ou seja, espaços de uso comunitário. Estas áreas conhecidas como ―reserva de mata‖ eram os locais em que se buscavam a matéria-prima para a construção das benfeitorias, como a madeira, a palha, o barro para os tijolos (―olaria‖), bem como o seu uso para pastos, caça, pesca, etc.:

O barro tirava e fazia as casas de taipa. A palha era de piaçaba. A madeira tinha muito na mata. A coisa mais bonita do mundo. Isso era chamado de mata de reserva. Aquela mata tinha a madeira que era de reserva. O povo derrubava pouquinho coisa que era para não estragar a mata e plantava uma roça de dois, três, quatro anos. Não fazia esses aribê166 que faz hoje.167

Nesse local de uso comum também se encontrava a aguada, uma área entre o cerrado e a mata de coqueiros. As palhas dos coqueiros eram utilizadas para fazer a cobertura das casas, além de prover outros recursos, tais como: frutos silvestres e ervas medicinais168. Já a aguada e o cerrado serviam de abrigo para o gado que deveriam ser retirados dos varjões nos períodos de chuva para o cerrado, bem como para o cultivo de alguns alimentos em determinados períodos do ano:

A mata de aguada é aquela mata alagada. Aí não dá para produzir, pois no inverno ele enche e no verão ela seca. A gente sabendo do tempo dá para plantar a melancia, o milho, essa coisa, não dá para a mandioca, porque ela dá com um ano e a água já vem. Agora o milho e o arroz dão.169

De acordo com Maria Cantuario, os varjões que são terras com superfícies de areia com pequenas manchas dispersas de argila eram de suma importância, pois nessas áreas os trabalhadores rurais encontravam grande parte das frutas que compunham a sua dieta alimentar: o murici, buriti, buritirana, piqui, pratudo, anajá de raposa, ariticum (fruto da quaresma), oiti, maçaranduba/cruviola e outras espécies menos consumidas. Este espaço também era utilizado para a

166O entrevistado explicou que naquela época não se desmatava sem necessidade. 167João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 168ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 16. 169João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

96 criação de gado, extrair as minhocas usadas na pescaria, adubo aplicado nos canteiros e nas plantações do quintal, os capins para encher os sacos, que eram usados como colchões, retiravam o barro de louça (argila) para a construção de paredes, adobes, fornos, fogões de lenha, potes, panelas, cachimbos e outros utensílios domésticos170. O espaço desmatado dava lugar à vila/patrimônio, mas no seu interior, ou seja, no sertão, se formaram casas, sítios, roças e áreas de trabalho das famílias. Alguns possuíam casas nos patrimônios ou se mudavam definitivamente para o sertão. Desse modo, o povoado se organizou em unidades domésticas sob determinada liderança, unidos através de laços de parentescos, compadrio e afinidade intermediada por uma relação à base de trocas, reciprocidade e cooperação nos trabalhos171.

Naquele tempo tudo era compadre. Chamava o compadre e a comadre para plantar a minha roça amanhã. Então, a comadre vem e tudo. Juntava aquelas comadres e plantavam o arroz na cuia, porque na bacia era dura para socar e na cuia era mole. Mas aquilo era uma vida boa, rapaz! Todo mundo era amigo do outro. Era compadre. Olha vou te contar, não sei como mudam todas as coisas, porque naquele tempo a amizade era para a vida toda. Também era pouquinha gente. Então, foi evoluindo. Ah, menina. Eu tenho essa cabeça chata de carregar a cuinha de osso de uma casa para outra que se chamava vizinhança, porque repartia tudo com os vizinhos. O que matava dividia, era assim. A vizinhança era compartilhar esses alimentos.172

O modo de vida dos posseiros se dava pela ajuda mútua caracterizada, por exemplo, pelo plantio das roças coletivas. Os alimentos eram partilhados entre os vizinhos, pois estes não eram apenas considerados pessoas que habitavam a mesma espacialidade. Criavam-se laços de amizade duradoura sinalizada pela relação do compadrio, ou seja, davam-se os filhos para serem batizados pelos amigos, e dessa ação surgia uma espécie de ligação de parentesco e intimidade, a

170CANTUARIO, Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de fora!... p. 48. 171ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 15. 172João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

97 qual podemos identificar no relato de Ataíde da Silva173, mais conhecido como Altair: ―O compadrio tinha mais força do que ser irmão. O compadre era uma coisa muito forte e tinha mais força que o irmão. Era tão importante que passavam a conviver essa situação de isolamento, de resistência e tudo era o compadrio‖174. De acordo com Laís Mourão Sá, os três sistemas (parentesco, compadrio e vizinhança) determinam as relações em todas as instâncias da vida social camponesa. Estas relações de produção possibilitam às disposições básicas imprescindíveis as exigências do trabalho. A família camponesa deve ser entendida ao mesmo tempo como unidade de produção e unidade de consumo, pois na roça familiar se obtém a sua produção econômica que tem por finalidade atender as necessidades de consumo doméstico. Já a unidade de produção, se pauta na propriedade dos meios de produção. Esta decorre da divisão do trabalho, definida pelo parentesco, o qual se assenta nos critérios do sexo e da idade. O trabalho familiar também é composto por um sistema de colaboração mais amplo, o da troca-de-dia, reguladas pelo parentesco, compadrio e vizinhança175. A unidade doméstica tem como foco de autoridade os propósitos do chefe da família no controle do processo produtivo, a apropriação e uso do trabalho. Assim, este procedimento ocorre pelo sistema de parentesco que codifica as relações de trabalho. Neste sentido, ―é o chefe de família que decide sobre o trabalho de cada membro; é ele quem decide sobre a redistribuição do produto, feita apenas no momento do consumo (na casa) e de acordo com as necessidades reprodutivas da unidade doméstica‖176. Ainda sobre o sistema de produção familiar, Neide Esterci afirma que é sempre o homem, o pai, que ―trabalha‖, e os demais membros do grupo ―ajudam‖. O chefe da família é considerado a autoridade máxima e encarregado pela alimentação dos familiares. O pai é quem

173Chegou a Porto Alegre do Norte em 1972 para compor a equipe de leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia e atuar como professor da escola do povoado. 174Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora, em 2 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 175SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural... p. 16. 176Ibidem, p. 17.

98 decide o que plantar, quanto, e o que vender, como também atribui os serviços da roça; e a mãe é quem divide os afazeres domésticos177. A disposição geográfica do patrimônio de Porto Alegre do Norte era composta da seguinte forma: o núcleo urbano localizado próximo ao rio Tapirapé, formado pelas casas dos habitantes compostas por quintais providos de criações domésticas e árvores frutíferas; os comércios, a escola, a Igreja Católica e o bebedouro público do gado; as áreas de uso comum: aguada, cerrado, mata, e por fim, o sertão. Os núcleos de ocupação direcionavam-se dos sertões para a vila, ou seja, do patrimônio ou núcleo urbano, através de estradas ou caminhos que iam sendo construídos ao longo das idas e vindas dos seus habitantes. As famílias viviam basicamente do que produziam, muitos produtos e principalmente medicamentos eram trazidos geralmente da cidade de Belém por meio de embarcações através dos rios Tocantins e Araguaia:

Além dos índios, os primeiros habitantes da região, os sertanejos, chegaram por volta de 1920. Pacíficos e perdidos no meio dos gentios e da natureza hostil, adotaram o modo de vida dos nativos, criando seus filhos como eles. A terra foi progressivamente desmatada e as roças, pouco a pouco, avançaram pela floresta. Assim, desenvolveu-se uma agricultura de subsistência, à base de milho, mandioca, arroz e feijão. A pesca nas águas piscosas do Araguaia tornou-se importante complemento da alimentação, juntamente com os produtos da caça. Cada camponês possuía uma espingarda para caçar.178

No final da década de 1950, tem-se a conclusão da BR Belém-Brasília e, consequentemente, a criação de outras estradas ligadas àquela rodovia, este fato, segundo Velho179, contribuiu para que a produção dos trabalhadores rurais

177ESTERCI, Neide. Roças comunitárias: projetos de transformação e formas de luta. In: ESTERCI, Neide (Org.). Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da Igreja Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008B, p. 25. 178DUTERTRE, Alain; CASALDÁLIGA, Pedro e BALDUÍNO, Tomás. Francisco Jentel: defensor do povo do Araguaia. 2. ed. Belo Horizonte: O Lutador, 2004, p. 13. 179VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em movimento. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009, p. 186.

99 provenientes de regiões de fronteiras fosse integrada ao mercado nacional por meio dessas estradas. Entretanto, conforme o relato acima, no Araguaia mato- grossense a população praticava a agricultura de subsistência, impossibilitando, assim, uma vinculação comercial com outros locais, tendo em vista que, por exemplo, em Porto Alegre do Norte, a produção era voltada para produtos pouco valorizados no comércio, como: o milho, a mandioca, a farinha e o arroz. Desse modo, quando ocorria a venda dessas mercadorias, estas recebiam um valor muito baixo, limitando o poder de compra dos posseiros, bem como dificultando a integração do seu cultivo ao mercado nacional sob a perspectiva de colaborar no seu abastecimento, haja vista que a agricultura era de subsistência tendo a sua maior parte destinada ao autoconsumo, sendo apenas o gado, o item mais importante numa possível comercialização, segundo podemos identificar no relato abaixo:

Não se vendia nada. O arroz era para o uso nosso, assim como o milho, a mandioca, tudo, tudo, tudo. A agricultura era de subsistência. E criava um gadinho, cavalo, porco, jumento e galinha. Era a maior riqueza aquele tempo. Tudo era para comer e nada vendia. Até porque naquele tempo não tinha para quem vender, tudo era uma coisa só, né? Aí quando vendia, vendia um gado, um boi grande para uns homens que hoje a gente chama de atravessador que vinha aí e comprava. Aí nossos pais compravam o sal, compravam a roupa.180

A (re)ocupação de Porto Alegre do Norte diverge dos projetos de colonização programados pelo governo militar, pois os núcleos de ocupações do povoado foram constituídos antes das políticas de ocupação que atraíram os colonos que se dirigiram para a Amazônia Legal, e instalados nessas áreas através de órgãos públicos ou empresas particulares. Desse modo, Ianni apresenta um documento do INCRA, de 1973, a respeito das condições necessárias para a ocupação das áreas de colonização oficial:

180João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

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Para melhor atender as necessidades sociais, culturais e econômicas do meio rural, idealizamos três tipos de ‗urbs‘ rurais: a agrovila, a agrópolis e a rurópolis, formando uma hierarquia urbanística segundo a infraestrutura social, cultural e econômica e tendo cada qual sua função específica. A agrovila é um pequeno centro urbano destinado à moradia dos que se dedicavam a atividades agrícolas ou pastoris e tem por finalidade a integração social dos habitantes do meio rural, oferecendo-lhes condições de vida em moldes civilizados. É um verdadeiro bairro rural ... [...] A agrópolis é um pequeno centro urbano agroindustrial, cultural e administrativo destinado a dar apoio à integração social no meio rural. Exerce influência sócio- econômica, cultural e administrativa numa área ideal de mais ou menos 10 km de raio, na qual podem estar situadas de 8 a 12 agrovilas, que são comunidades menores e dela dependentes. A rurópolis é um pequeno pólo de desenvolvimento, o centro principal de uma grande comunidade rural constituída por agrópolis e agrovilas [...]. A rurópolis é um núcleo urbano-rural diversificado nas atividades públicas e privadas, possuindo comércio, indústria, serviços sociais, culturais, religiosos, médico-odontológicos e administrativos, não apenas de interesse local, mas sobretudo, para servir à sua área de influência.181

Diante do exposto, podemos perceber que os projetos de colonização posteriores à ocupação de Porto Alegre do Norte possuíam alguma semelhança com os núcleos de ocupações do povoado, como, por exemplo, a descrição da agrovila que pode ser comparada ao núcleo residencial criado pelos posseiros, denominado por estes como ―patrimônio‖, pois ambos exercem a função de suscitar a interação social dos habitantes. Também é válido apontar que o conjunto de agrovilas se equiparava à organização do núcleo de posseiros, tendo em vista que nas regiões próximas a Porto Alegre do Norte (considerada o núcleo urbano) tinham-se os núcleos de ocupação: ―Azulona, Canabrava do Norte, Rio Sabino, Ponte, Mutum, Passagem da Vaca, Landi, Gameleira, Xavantino, Grota Bonita, Cedrolândia, Barra do Tapirapé, Capão Redondo, Brejo Empastado, Boa Vista, Bom Jardim, Varjão e Salvador‖182, denominados de sertões. Mas somente

181INCRA, 1973 apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 61. 182Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A 17.3.16, 1978, p. 3.

101 com a instalação da Prelazia de São Félix do Araguaia no final da década de 1960 que se fortaleceu uma maior relação entre esses núcleos. No entanto, as descrições dos empreendimentos rurais só se assemelhavam aos modos de vida dos posseiros, isto é, da organização dos núcleos de ocupação dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, pois na prática o posseiro não tinha relações com o INCRA, não possuía meios financeiros para comprar as terras nas áreas dos projetos de colonização, bem como não podia fazer financiamentos nos bancos. Assim, estes não eram considerados ―colonos ideais‖, aptos a ocuparem a Amazônia Legal. Os posseiros foram destituídos do apoio de órgãos governamentais que pudessem direcionar as suas vidas para os empreendimentos de colonização e acesso à terra. Ao contrário destas políticas de ocupação, o trabalhador rural estava desprovido da documentação registrada em cartório das terras que ocupava, não tinha saldos e créditos aprovados no banco, a sua carteira de trabalho não era assinada, ou seja, este personagem era oficialmente um anônimo, a sua existência advinha somente da posse que ocupava e do trabalho de subsistência que nela desenvolvia. Entretanto, o fato de os trabalhadores rurais não estarem ligados oficialmente aos órgãos que conferiam legalmente o acesso à terra na Amazônia, estes, de forma mais liberta, puderam ocupar em caráter espontâneo áreas, nas quais recriaram suas vidas, sendo importante destacar que esta atitude de colonização espontânea foi vista por Ianni como uma reforma agrária.

Era e continua a ser um fato de existência de largas extensões de terras indígenas e devolutas na Amazônia. E foi essa a base do crescente e extenso afluxo de trabalhadores rurais e seus familiares, principalmente para o sul do Pará, o norte de Mato Grosso, Rondônia, Acre e outras áreas. Foi assim que se deslocaram para essas áreas, contingentes de trabalhadores desempregados ou subempregados em outras regiões do país. Isso significa que, na prática, as migrações de trabalhadores rurais para a Amazônia ou o processo de colonização espontânea configurava uma reforma agrária realizada por esses mesmos trabalhadores e os seus familiares. Estava em

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curso uma reforma agrária espontânea ou de fato, sem a interferência de governantes, burocratas ou técnicos.183

Em relação ao exposto, é necessário apontarmos que a dita reforma agrária efetuada pelos trabalhadores rurais na Amazônia Legal tem uma particularidade temporária, pois a ocupação daquelas áreas era instável até aparecerem os ―legítimos‖ proprietários com a documentação da terra e a consequente expulsão de muitos posseiros. O deslocamento de diversas famílias para Porto Alegre do Norte, a exemplo do relato de vida de João da Angélica, nos mostra que esta dinâmica estava centrada na constituição de um espaço familiar para se viver e trabalhar, bem como no estabelecimento de uma memória que seria reproduzida para as futuras gerações. A mobilidade da sua família adveio de constantes e sucessivos deslocamentos territoriais, resultado direto contra a dominação dos latifundiários ao resistir e migrar para áreas distantes, consideradas devolutas, longe desses problemas e repleta de fertilidade e perspectiva. O espaço para a constituição da agricultura familiar foi direcionado para a fronteira, a qual, de modo temporário, como iremos ver nos capítulos dois e quatro desta pesquisa, pôde conferir aos trabalhadores rurais a tão almejada autonomia de vida nas terras livres e acessíveis para a formação de posses. Se instalar em um local desconhecido significava se libertar dos laços dos latifundiários, da seca, da pobreza e da falta de terras. Entretanto, esta fronteira tida como utópica para os posseiros logo se tornou o espaço essencialmente da violência e da degradação do outro, conforme Martins184 ou, ainda, na mesma lógica, como o lugar da exclusão social, segundo José Vicente Tavares dos Santos185, que também a via como um ambiente de refúgio e recomeço, de decepção e fracasso, mas apesar de tudo, a fronteira era também a concretização de um sonho – a conquista da terra.

183IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 14, grifos nossos. 184MARTINS, José de Souza. Fronteira... 185TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 37, jun. 1993A.

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Como demonstra Tavares dos Santos, ―acontece que havia entre os camponeses das regiões de origem, de certa forma acuados pela falta de terras, um desejo de reproduzir-se como camponeses, quer tratando-se deles mesmos em melhores terras ou em áreas mais extensas, ou de seus filhos em condições semelhantes‖186. Desse modo, a fronteira possibilitou a busca por terras livres como um projeto de vida para a constituição de uma espacialidade familiar, mesmo em um local distante das suas origens. É importante levarmos em consideração que os migrantes não buscavam somente a conquista da terra. Eles também almejavam ter uma cidadania na fronteira, ou seja, constituir a dignidade que lhes era negada nas suas regiões de origem. A migração garantiria a manutenção dos seus padrões rotineiros de produtividade, bem como a perspectiva para a realização da agricultura de subsistência familiar sob melhores condições. Estes desejos impulsionaram a chegada dos trabalhadores rurais em Porto Alegre do Norte constituindo, assim, um novo grupo de indivíduos na fronteira.

186TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos exclusão e luta: do Sul para a Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1993B, p. 258.

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2. OS PROJETOS AGROPECUÁRIOS E DE COLONIZAÇÃO NA AMAZÔNIA LEGAL DURANTE A DÉCADA DE 1970

Durante os anos do Governo de Getúlio Vargas (1930-1945) foram criados programas de expansão econômica como o ―Marcha para Oeste‖ que tinha como objetivo ocupar as áreas consideradas vazias do Centro-Oeste, bem como levar o progresso e o desenvolvimento econômico e social, através da política de atração de migrantes para o Centro do Brasil. Esta política trazia como lema de campanha: ―O verdadeiro sentido de brasilidade é a marcha para o Oeste‖187. Tal discurso demonstra as pretensões do governo de Getúlio Vargas que apresentava habilidade para superar os conflitos sociais, a partir da construção de uma imagem homogênea da Nação, e do Estado, no qual o uso de propagandas foi de fundamental importância para provocar a mobilização de migrantes para o Oeste, considerado uma região com espaços vazios. Dessa forma, o governo Vargas se apropriou da figura mítica da Amazônia como o Vale da Promissão188 para o deslocamento de migrantes provenientes dos estados do Nordeste, os quais, segundo Getúlio Vargas, eram dotados de um povo promissor apto a ocupar as vastas áreas da Amazônia, tendo em vista que este conquistara o Acre no final do século XIX através de uma onda migratória, e assim, teria competência para repetir tal ato. No início da década de 1970, o governo civil-militar implantou no Brasil novamente uma política de (re)ocupação da Amazônia, área considerada

187VARGAS, Getúlio. Discurso: Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1937. In: D‘ARAÚJO, Maria Celina (Org.). Getúlio Vargas. Brasília: Centro de Informação e Documentação/Edições Câmara, 2011, p. 370. 188Desde as viagens dos naturalistas, estes já predisseram que a Amazônia seria o celeiro do mundo. Durante o governo de Getúlio Vargas, a ideia da Amazônia como Vale da Promissão foi muito disseminada, como uma forma de representá-la como paraíso, contrapondo-se a imagem desta como um lugar inóspito, ou uma representação infernal. Para exemplificar, ver: GUILLEN, Isabel C. Martins. Errantes da Selva: História da Migração Nordestina para a Amazônia. Recife: EdUFPE, 2006, p. 30-59.

105 espaço vazio. Assim, sob o pretexto de promover a Segurança Nacional, os militares instauraram na região os Projetos de Colonização e Agropecuários em favorecimento do grande capital estrangeiro, sendo desenvolvidas naquela área atividades econômicas ligadas principalmente aos setores agrícolas e pecuários. Para a instituição dos projetos, as empresas receberam do governo grandes extensões de terras e incentivos fiscais para expansão das novas ―fronteiras agrícolas‖ da Amazônia189. Segundo Golbery do Couto e Silva:

Com vistas à humanização, integração e valorização do território imenso, ainda em grande parte inaproveitado e deserto, o esquema tripeninsular [...] está, por certo, a indicar- nos [...] três fases sucessivas na ampla manobra geopolítica a realizar [...] 1ª. Fase - articular firmemente a base de nossa projeção continental, ligando o Nordeste e o Sul ao núcleo central do país, ao mesmo passo que garantir a inviolabilidade da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das possíveis vias de penetração; 2ª. Fase - impulsionar o avanço para o Noroeste da onda colonizadora, a partir da plataforma central, de modo a integrar a península Centro-Oeste no todo ecumênico brasileiro; 3ª. Fase – inundar de civilização a Hileia amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base avançada construída no Centro-Oeste [...]190.

Para efetivação desse projeto foram transferidas para o território amazônico centenas de famílias de trabalhadores rurais pobres de várias regiões do Brasil, sobretudo do Nordeste, para se estabelecerem às margens das rodovias federais, como, por exemplo, a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém. Como podemos observar para Couto e Silva, essa política iria ajudar a solucionar as tensões e os conflitos agrários, especialmente no Nordeste e no Centro-Sul do país, ao passo que a disposição de grupos sociais do campo, desprovidos de terras

189A região Norte está inserida na Amazônia que compreende os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins. A Amazônia Legal é acrescida pelo estado de Mato Grosso e parte do Maranhão. 190COUTO e SILVA. Golbery. Conjuntura polícia nacional: o poder executivo & geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 13.

106 e entregues à pobreza, auxiliaria no desenvolvimento econômico, político e social da Amazônia. Durante o governo militar a política de colonização foi definida como:

A colonização é toda atividade oficial ou particular destinada a dar acesso à propriedade da terra e a promover seu aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agroindustriais, através da divisão de lotes ou parcelas, dimensionadas de acordo com as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através de cooperativas de produção nela previstos.191

Os empresários adquiriram junto ao INCRA grandes extensões de terras e tinham que apresentar um plano de ocupação que possibilitasse a fixação de pequenos proprietários em lotes de terras que variavam entre 100 a 500 hectares. Os projetos de colonização continham uma planta com a distribuição dos lotes, especificação dos subnúcleos e dos núcleos urbanos. Também deveria constar o planejamento executivo para a composição de infraestrutura viária, saúde, escola, estudo de solo e climático, fauna e flora, hidrografia, topografia com os rendimentos econômicos, previsão de produção e comercialização. Após a aprovação do INCRA, a empresa poderia dar início aos trabalhos de abertura da área e comercialização da terra192. Entretanto, a maioria destes projetos executados no estado de Mato Grosso não cumpriu com os objetivos estabelecidos, deixando em muitos casos os colonos desamparados e desprovidos da infraestrutura prometida, como também o desconhecimento do solo, clima e regime pluvial inibiram ou impediram a fixação desses indivíduos na terra. Os projetos de colonização privada e os projetos agropecuários obtinham estímulos do governo através de órgãos como a SUDAM193 e a

191Disponível em: . Acesso em: 31 jan. 2016. 192JOANONI NETO, Vitale. Amazônia na década de 1970. A fronteira sob o olhar do migrante. Revista Eletrônica da ANPHLAC, São Paulo, n. 19, p. 186-206, jan./jul. 2014, p. 190. 193A SUDAM foi criada no governo de Castelo Branco no ano de 1966, sendo um importante órgão de fomento para projetos agropecuários implantados no Centro-Oeste e em toda a região

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SUDECO e programas governamentais como o PIN e o PROTERRA, e os pólos de desenvolvimento – o POLOAMAZÔNIA, o POLOCENTRO194 e o POLONOROESTE, entre outros. Estes disponibilizavam aos empresários incentivos fiscais, linhas de financiamentos, juros subsidiados e prazos longos, o que despertou o interesse em muitos proprietários de empresas distantes do ramo rural para a implantação de projetos agropecuários, agroindustriais, e, consequentemente, o de colonização da região. A SUDAM foi o principal órgão responsável pela aprovação dos projetos agropecuários e de colonização na Amazônia. Segundo Ianni:

A SUDAM passou a ser, desde sua criação em 1966, provavelmente o principal órgão do governo federal para a dinamização da economia amazonense. Além de coordenar e supervisionar (e mesmo elaborar) programas e planos de outros órgãos federais atuando na região, a SUDAM criou incentivos fiscais e financeiros especiais para atrair investidores privados, nacionais e estrangeiros. Foi a partir da criação da SUDAM que começaram a ganhar dinamismo os empreendimentos dos setores agrícola, pecuário, industriais e de mineração.195

A partir dos subsídios oferecidos pelo governo militar, bem como os incentivos fiscais e o crédito com juros e taxas muito baixas disponibilizados pelo Banco do Brasil e pelo BASA, muitos empresários se interessaram pelos projetos de colonização, agropecuários, madeireiros e minerais na Amazônia. Esses projetos deixaram de lado a população local: posseiros, índios, ribeirinhos, caboclos, pequenos extrativistas e agricultores que foram expulsos de seus antigos territórios para darem lugar à entrada do grande capital nacional e estrangeiro.

amazônica em meados da década de 60. Substituiu outra autarquia, a SPVEA, criada por Getúlio Vargas, em 1953, com objetivos semelhantes aos da SUDAM. 194POLOCENTRO foi criado no governo do general Geisel através do Decreto nº. 75.320, de 29/01/1975 para transformar os cerrados em área de expansão de frentes comerciais a partir do Centro-Oeste e do Oeste de Minas Gerais. Como meta deveria incorporar cerca de 3,7 milhões de hectares ao setor produtivo nas áreas de agricultura, pecuária e florestas. Suas ações preconizavam apoio à infraestrutura (armazenamento, estradas rurais, eletrificação e assistência técnica, pesquisas de sementes de soja apropriadas para o cerrado). 195IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 60.

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O governo disponibilizou a oferta de incentivos fiscais, conforme expõe Martins:

Para lograr esse resultado, o governo federal concedeu às grandes empresas, nacionais e multinacionais, incentivos fiscais, isto é, a possibilidade de um desconto de 50% do imposto de renda devido pelos seus empreendimentos situados nas áreas mais desenvolvidas do país. A condição era a de que esse dinheiro fosse depositado no Banco da Amazônia, um banco federal, e, após aprovação de um projeto de investimentos pelas autoridades governamentais, fosse construir 75% do capital de uma nova empresa, agropecuária e industrial, na região amazônica. Tratava-se de uma doação, e não de um empréstimo.196

A política de colonização da Amazônia ocasionou grandes mudanças na região, bem como a expulsão de índios e posseiros para dar lugar aos pastos e a concretização de uma nova economia ancorada sob a ótica do capitalismo excludente. Portanto, as novas atividades econômicas implantaram o latifúndio moderno, ligado a importantes conglomerados econômicos nacionais e estrangeiros. O trabalho de abertura e desmatamento desses novos empreendimentos resultou na demanda de um grande número de trabalhadores, sendo estes buscados principalmente nos estados do Nordeste do Brasil. Esses trabalhadores ficaram conhecidos como peões, subjugados pelos grandes proprietários rurais ou funcionários intermediários, como demonstra Martins:

O fato de que os novos proprietários rurais viessem de uma tradição urbana, moderna e propriamente capitalista não impediu que em suas fazendas se reproduzisse com facilidade o tipo de dominação, repressão e violência característicos da dominação patrimonial. Em parte, porque, absenteístas, embora coniventes e beneficiários, delegaram a intermediários, como os agentes e capatazes, educados na tradição do poder pessoal, a responsabilidade pelas decisões e pela administração de seus bens. Esse poder multiplicou-se também com dinheiro que

196MARTINS, José de Souza. Fronteira... p. 75.

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chegou às mãos de proprietários tradicionais, educados na tradição oligárquica da dominação pessoal e da violência.197

José de Souza Martins alega que os projetos agropecuários na Amazônia transformaram o espaço rural e, consequentemente, ocasionaram a concentração de terras e os conflitos por estas pelos diversos grupos sociais presentes naquela região. Isso porque:

A tendência à concentração fundiária não tem se dado impunemente. [...] o Estado tem a sua política em relação à questão, as empresas têm a sua, mas eles não estão sozinhos [...]. Existem os interesses daqueles que não estão na terra e que precisam de terra para trabalhar. Portanto, a tendência à concentração fundiária tem sido, ao mesmo tempo uma tendência ao aumento dos conflitos pela terra.198

Os projetos oficiais de colonização ocuparam 7.104.285,3 ha representando 73,4 % da terra apropriada para essa finalidade, enquanto os projetos particulares 2.573.485,6 ha e 26,6% do total, respectivamente199. O estado de Mato Grosso desenvolveu programas ligados ao PAC, sendo estes em sua maioria de iniciativa privada, concentrados em duas áreas de destaque: parte norte da rodovia Cuiabá-Santarém e parte leste, na bacia do Araguaia. Para Becker200, foram criadas algumas estratégias para a instauração de redes de integração espacial através do investimento público, dentre elas a ampliação das redes rodoviárias a partir da implantação de grandes eixos transversais como a Transamazônica e a Perimetral Norte, e intra-regionais como Cuiabá-Santarém e Porto Velho – Manaus. Cerca de 12 000 km de estradas foram construídos em menos de cinco anos e, por conseguinte, a rede urbana, sede das instituições estatais e privadas. Instituiu-se uma rede telefônica muito eficiente,

197Ibidem, p. 77. 198MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 68. 199BECKER, Bertha; MIRANDA, Mariana; MACHADO, Lia. Fronteira amazônica. Questões sobre a gestão de território. Brasília/Rio de Janeiro: Ed. UNB/ Ed. UFRJ, 1990, p. 35. 200Idem.

110 bem como a rede hidroelétrica, que foi gerada para fornecer energia, o insumo básico à nova fase industrial do país. Os projetos de colonização se distribuíram ao longo dos principais eixos de circulação rodoviária e fluvial. Em sua maioria, estão localizados na Amazônia Oriental, situada nas proximidades da rodovia Belém-Brasília, distribuindo-se mais esparsamente pela rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR 364) entre Vilhena e Ji-Paraná, Vale do rio Amazonas e na Transamazônica entre Itaituba, Santarém e Altamira no Pará. Na BR 153 entre e . A política de colonização para a Amazônia adotou uma extensão que se relacionava às questões de segurança e de posse e uso da terra numa escala sem precedentes, tendo em vista que com os fluxos migratórios para a Amazônia ansiava-se reduzir ou ao menos controlar os problemas sociais ligados à terra em outras áreas do país. Os projetos de colonização oficial e particular foram muito questionados e assinalados como executados por motivos de segurança interna, que tinham como pretensão aliviar tensões e conflitos em outras partes do Brasil, principalmente nos estados do Nordeste, os quais possuíam estruturas agrárias favoráveis para a expansão capitalista. Becker201 demonstra que a inserção do Brasil no capitalismo global estimulou a capitalização da agricultura cuja articulação com a indústria foi viabilizada pelo Estado de duas formas: pela integração vertical, com subsídios à produtividade, e pela integração horizontal, com subsídios à ocupação da fronteira. No governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) foi criado o PIN com o objetivo de integrar a região amazônica ao restante do país. O PIN foi instituído em 16 de junho de 1970, com recursos previstos de incentivos fiscais, doações, e contribuições de empresas privadas ou públicas, cujo imposto de renda seria deduzido em 30% e destinados somente para o projeto.

201Idem.

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O governo começou a executar projetos como a construção da Rodovia Transamazônica e a Rodovia Cuiabá-Santarém; o monitoramento aéreo da Amazônia pelo Projeto RADAM; e a implantação dos Projetos de Colonização às margens da Transamazônica, nas faixas de terra até 100 km às margens das Rodovias Federais; para além da viabilidade dos projetos de colonização e agropecuários, a rede de rodovias na Amazônia serviu para reorientar o fluxo migratório nordestino, desviando-o do Sul para o Norte e Centro-Oeste. Na década de 1970, foi criado também o INCRA, que tinha como objetivos: executar a reforma agrária, a colonização e promover o desenvolvimento rural. O INCRA garantia o título de posse aos colonos depois do assentamento e, por conseguinte proporcionava às empresas colonizadoras a rentabilidade do negócio empreendido. Em 1971 foi instituído o PROTERRA que restabeleceu a regra de prévia indenização das terras desapropriadas em dinheiro; e na ―Amazônia, abriu possibilidades de crédito agrícola para as empresas privadas de colonização, com a liberação de fundos para a modernização das propriedades agrárias e agroindustriais recentemente estabelecidas‖202. A partir dos projetos de colonização e agropecuários, a agricultura no Brasil toma outro perfil, com as seguintes características: concentração fundiária, a utilização de processos mecânicos e insumos químicos e biológicos, aumento na capacidade de armazenamento, transportes, comercialização, logísticas, expansão dos créditos agrícola. A entrada dos empresários urbanos nas áreas de fronteira brasileira acarretou na apropriação de terras pelos novos agentes econômicos que adentraram nessa região de tal sorte que estes junto aos órgãos como o INCRA demarcaram os novos espaços a serem utilizados (reservas ecológicas, sociedades indígenas, extrativismo vegetal e mineral, áreas para projetos agropecuários e de colonização, etc.). Estes espaços que antes pertenciam às comunidades antigas como: ribeirinhos, caboclos, posseiros e índios foram ocupados pelos projetos de

202TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos... p. 53.

112 colonização ocasionando assim, os vários conflitos e a violência presentes até hoje na Amazônia203.

2.1 O estabelecimento dos empreendimentos agropecuários no nordeste de Mato Grosso

A transformação do espaço social e físico do nordeste do estado de Mato Grosso é resultado de uma política de incentivos fiscais, instaurada pelos governos militares em direção às novas ―fronteiras agrícolas‖ com apoio de programas estaduais e federal para o desenvolvimento e integração do Araguaia mato-grossense com as demais regiões do país. Esta política teve como objetivo suprir as necessidades de acesso às regiões periféricas do Brasil, bem como impulsionar o avanço do capitalismo para a Amazônia mato-grossense, através de apoios financeiros concedidos para empresários nacionais e internacionais, para que estes se instituíssem naquelas áreas por meio do estabelecimento de agropecuárias. Essas atividades foram essenciais para o avanço da frente pioneira que se instalou em áreas ocupadas por sociedades indígenas e posseiros onde se constituíram os grandes empreendimentos agropecuários. Em meados da década de 1960, os municípios que compõem a Prelazia de São Félix do Araguaia tiveram o seu território tomado pelo avanço do capital. Sua área antes ocupada por populações tradicionais se viu absorvida por tal processo, no qual a grande propriedade se constituía na mais nova ―fronteira agrícola‖ – a Amazônia Legal. Os posseiros tiveram suas terras de trabalho desapropriadas pelas empresas agropecuárias; já as sociedades indígenas adentraram em direção as

203CASTRO, Sueli Pereira de. et. al. A colonização oficial em Mato Grosso: ―a nata e a borra da sociedade‖. Cuiabá: EDUFMT, 1994.

113 matas virgens, ou acabaram entrando em conflito204 com os invasores que se apropriaram de seu território. Em muitas situações, os desapropriados, depois de perderem a terra, seu principal e único meio de produção, tiveram que vender sua força de trabalho para os expropriadores, que passaram a explorá-los como força de trabalho. Assim, o processo de expropriação liberou a terra para o expropriador, criando a força de trabalho que a empresa precisava, e o consumidor, que já não produzia mais a sua alimentação. Com uma política voltada para atender os interesses da elite brasileira, o processo de (re)ocupação da Amazônia, ao invés de proporcionar para essa região um lugar para conter os conflitos agrários, tornou-se o ambiente da violência e da impunidade. Desse modo, o projeto do governo ditatorial se configurou da seguinte forma: de certa maneira ―integrou‖ a região amazônica por meio das rodovias e estradas a outros pontos do país, bem como viabilizou a expansão do capital através das empresas agropecuárias; mas em contrapartida, esses projetos agropecuários geraram os conflitos e a violência sob as camadas mais vulneráveis, que foram e continuam sendo as vítimas das atrocidades cometidas pelo capital. É diante deste contexto, que as frentes de expansão e as frentes pioneiras estudadas por Martins205 como categorias de análises, em certo momento se encontram e se contrastam na dinâmica das temporalidades históricas da fronteira, impostas pela expansão do capital. Nestas novas áreas, as relações sociais foram alteradas para atender os interesses dos latifundiários, assim, os trabalhadores rurais, posseiros, e índios que ocupavam a região antes da implantação dos projetos do governo, desempenhavam atividades mercantis, baseados em produtos naturais e o cultivo de pequenas roças para a sobrevivência, tornaram-se as vítimas da reprodução do capital. Em decorrência da entrada do capitalismo como forma de levar o desenvolvimento para esses espaços distantes

204Entre os conflitos de expropriação de posseiros e indígenas podemos citar: Santa Terezinha (CODEARA x posseiros); Suiá-Missu (Xavantes); Tapiraguaia x Tapirapés. 205MARTINS, José de Souza. Fronteira...

114 do centro do Brasil, estas populações tradicionais foram excluídas desse processo, sendo violentadas de várias formas, seja física ou moral para ceder lugar à exploração de recursos naturais, bem como propiciar a instalação dos empreendimentos agropecuários. A inserção do capitalismo no Araguaia mato-grossense o transformou em uma das regiões com extrema concentração de terra sob o domínio de uma minoria cuja prática da pecuária é a atividade que ainda predomina naquela região. Neste sentido, o que podemos verificar no nordeste de Mato Grosso como em outras partes do seu território, é a preponderante relação de poder que se firmou nessas regiões de ―fronteira agrícola‖ como uma característica sólida, a qual beneficiou os donos do capital. Para ilustrar tal situação, Martins assinala que:

O tempo da reprodução do capital é o tempo da contradição; não só a contradição de interesses opostos, como os das classes sociais, mas temporalidades desencontradas e, portanto, realidades sociais que se desenvolvem em ritmos diferentes, ainda que a partir das mesmas condições básicas.206

Portanto, analisar estas contradições que são empregadas pelo sistema capitalista consiste em avaliar os múltiplos contrastes que se refletem na estratificação dos grupos sociais em Mato Grosso, como o lugar de predominância da atividade agropecuária e das relações de poder que foram propiciadas pelos governos durante a ditadura militar. Deve-se ressaltar que os problemas com as empresas agropecuárias, e, consequentemente com a titulação das propriedades fizeram com que ainda grande parte dos posseiros que estão fixados no Araguaia mato-grossense desde as primeiras migrações de famílias do sul do Pará, dos estados do Nordeste e de Goiás, não possuam o documento de propriedade daquelas terras. A falta de títulos e os conflitos agrários envolvendo índios, posseiros e os grandes proprietários, dificultam o desenvolvimento da região, pois ainda são

206MARTINS, José de Souza. Fronteira... p. 80.

115 comuns os casos de tensão e violência pela ocupação daquele território, merecendo destaque a disputa pelas terras da antiga fazenda Suiá-Missu da empresa italiana AGIP Petroli situada no município de . Após o reconhecimento oficial do governo brasileiro de que o território era indígena, este se comprometeu em devolver as terras para os Xavante. No entanto, em 1992, depois da identificação da terra pela FUNAI, os fazendeiros e políticos da região passaram a incentivar a invasão das áreas indígenas por posseiros, que continuam nas terras207 sob os recursos da justiça. Vale referir ainda, o importante papel da Igreja Católica e dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais na intermediação dos conflitos agrários e no próprio processo de (re)ocupação, por meio da organização das comunidades rurais. Outra instituição importante na região é a CPT, atuante naquele espaço desde a década de 1980, e que ainda desempenha ações de fiscalização, denúncias de trabalho escravo e a violência no campo no Araguaia mato-grossense. Pode-se constatar que as ações governamentais realizadas durante a ditadura militar colaboraram para a intensificação dos conflitos agrários, ao beneficiar, especialmente, grupos de grandes empresários e latifundiários. Deste modo, a distribuição de terras no Brasil deveria proporcionar a expansão da fronteira cuja finalidade seria evitar a violência rural, tendo em vista que os projetos de ‖ocupação‖ deveriam, pelo menos em tese, promover o estabelecimento de pessoas sem acesso às propriedades em seus locais de origem nas terras devolutas da Amazônia. Porém, tais projetos favoreceram especialmente os grupos com alto poder aquisitivo e prestígio político, os quais puderam ter

207Diversas negociações foram realizadas desde o ano de 1992 para que os posseiros e fazendeiros fossem retirados das terras indígenas Marãiwatsédé. Em setembro de 2012 foi iniciada a desocupação da área Xavante que terminou no dia 27 de janeiro de 2013. Entretanto, algumas pessoas voltaram a ocupar a área no dia 26 de janeiro de 2014, após a saída das Polícias Federal e Rodoviária Federal do local. Um grupo de cerca de 50 posseiros fechou a rodovia no Posto da Mata e invadiu a localidade, expulsando servidores da FUNAI que ali trabalhavam. O cacique Damião Paridzané foi perseguido quando tentava se aproximar do local. Disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2016. A respeito consultar: ROSA, Juliana Cristina da. A Luta pela Terra Marãiwatsédé: Povo Xavante, Agropecuária Suiá Missú, Posseiros e Grileiros do Posto da Mata em disputa. (1960-2012). Dissertação (Mestrado em História). Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2015.

116 acesso aos títulos de propriedade, provocando assim, os conflitos com os posseiros que estavam estabelecidos naquelas áreas muito antes da chegada do grande capital. Em decorrência disso, os posseiros expulsos de suas terras, deslocam-se em direção às florestas, abrindo novas áreas para trabalhar, consequentemente, ―empurrando‖ a ―fronteira agrícola‖ para o ―centro‖ da Amazônia. Contudo, verifica-se que o discurso da integração através da ocupação, proferido pelo Estado, deixa aclarar indistintamente a existência de objetivos conflitantes que explicitam os problemas no planejamento estatal para a (re)ocupação da Amazônia.

2.2 A venda de terras no estado de Mato Grosso

A política de colonização oficial instituída pelo governo de Vargas da década de 1930 não atingiu diretamente o estado de Mato Grosso, como ocorreu no Mato Grosso do Sul208 com a criação das colônias agrícolas. Mato Grosso teve a presença de órgãos especiais como, a Expedição Roncador Xingu (1940) que deu origem a Fundação Brasil Central (1943)209, com o intuito de explorar e colonizar os ―espaços vazios‖. A expedição Roncador Xingu atuou no Vale do Araguaia e do Xingu estabelecendo contato com alguns grupos indígenas e iniciando a colonização da região. Assim, o posto-base criado nas margens direita do rio das Mortes deu origem ao povoado de Xavantina (1944). A Fundação Brasil Central formou sítios

208É importante lembrarmos que a decisão de dividir o estado de Mato Grosso em dois foi tomada no ano de 1977 e efetivada em 1979 com a criação de Mato Grosso do Sul. 209Devemos destacar que neste ano foi constituído o Território Federal do Guaporé, com capital em Porto Velho, mediante o desmembramento de áreas de Mato Grosso e do Amazonas. No extremo Sul de Mato Grosso, o governo Vargas criou o Território de Ponta Porã, ocupando a área explorada pela Cia Mate Laranjeira. Ver: LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha (A especulação com a terra no Oeste brasileiro nos anos 50). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 6, n. 12, p. 47-64, mar/ago. 1986.

117 em torno de Xavantina, restritos basicamente aos funcionários do órgão e sem expansão dos mesmos. Entretanto, em 1963 a vila foi transformada em distrito com o nome de Ministro João Alberto e em 1980, elevado a município com o nome de . Em 1946 foi criado o DTC, pois os governos estaduais210 tinham como propósito a política de vendas de terras públicas/devolutas, executando concomitantemente a colonização em primeiro plano e em segundo, a regularização fundiária. Desse modo, entre 1950 e 1964, o estado de Mato Grosso passou a vender indiscriminadamente as suas terras devolutas, bem como a sua utilização em interesses políticos, sendo empregada como premiação ou pagamento de préstimos eleitorais211. Para Lenharo, os políticos locais e os grupos econômicos de fora, formaram alianças empresariais e eleitorais com a finalidade de controlar a distribuição de terras devolutas do estado de Mato Grosso. Assim, o governo estadual não se ajustava por nenhum critério fixo para a concessão das terras. ―Não se promovia a concorrência para um estudo das melhores ofertas, nem eram exigidas garantias mínimas de execução dos contratos nem continuidade e permanência das obras‖212. Sobre a venda indiscriminada das terras de Mato Grosso, o jornal O Estado de S. Paulo, traz a seguinte matéria:

O volume de aquisição de fazendas no vizinho Estado é verdadeiramente impressionante. Em todos os jornais do interior deparamos com anúncios tentadores de ‗corretores autorizados‘, circunstancia que demonstra ter o caso ultrapassado os limites do razoável e entrou no domínio do extraordinário. [...] As glebas em Mato Grosso são quase sempre imensas. Se em Minas Gerais o alqueire já é a dobra do alqueire paulista, lá então as medidas usuais se fazem por

210Durante os anos de 1946 a 1964, Mato Grosso teve os seguintes governadores do Estado: José Marcelo Moreira, Arnaldo Estevão de Figueiredo, Jari Gomes, Fernando Corrêa da Costa, João Ponce de Arruda, Fernando Corrêa da Costa. 211MORENO, Gislaene. O processo histórico de acesso à terra em Mato Grosso. Geosul, Florianópolis, v. 14, n. 27, p. 67-90, jan./.jun. 1999, p. 77. 212LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha... p. 54.

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léguas quadradas. Núcleos e empresas colonizadoras aparecem nos mais estranhos e distantes lugares, [...] Os preços contrastam-se violentamente com os que vigoram entre nós, e pode-se adquirir terras devolutas, na região das dúvidas, na Barra do Garças, do Bugre, em Diamantino ou Aripuanã, por mais ou menos 25 cruzeiros o alqueire paulista! Paga se o corretor, o despachante, paga-se o engenheiro que deve fazer a divisão e fica-se latifundiário de um instante para o outro com menos de dois contos de réis. [...] Qualquer jornal do interior paulista, ou da periferia mineira insere sempre um aviso das colonizadoras ou dos concessionários autorizados.213

Além do governo do Estado não desenvolver nenhum critério para a venda de terras em Mato Grosso, as mesmas eram vendidas a preços irrisórios e muitas vezes grandes extensões para uma mesma empresa, como é o caso da Colonizadora Norte de Mato Grosso Ltda. que obteve uma área de provavelmente 3.600.000 hectares. A especulação mobiliária também tinha o interesse em desmembrar o Projeto do Parque Indígena do Xingu, pois mais de 500 mil hectares foram vendidos a diversos grupos, como: Construções e Comércio Camargo Correia S.A e Colonizadora Norte de Mato Grosso. A intenção era ocupar o dito espaço vazio e tornar inviável a criação do referido Parque214. Entre 1950 e 1964, a política de colonização foi convertida em um lucrativo comércio de terras para a maior parte das empresas colonizadoras, que não cumpriram com os acordos estabelecidos com o Estado e utilizaram a terra para especular em benefício próprio. Assim, sob denúncias de corrupção e fraudes na venda de terras, o DTC foi fechado em 1966. Mas, este fato contribuiu ainda mais para a especulação e a transição de documentos falsos das propriedades, bem como a perda de controle pelo Estado das mesmas e o enfraquecimento das elites agrárias que conduziam o processo de apropriação de terras por intermédio de alianças político-partidárias na região. De acordo com Moreno, a decisão de fechar o DTC conferiu confiabilidade aos empresários que desejavam investir nos empreendimentos de colonização na Amazônia. O governo federal colocou a maior parte das terras

213O Estado de S. Paulo. O Estado de Mato Grosso: Cuiabá. 21.01.1954, p. 1 214LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha... p. 54.

119 devolutas dos Estados pertencentes à área da Amazônia Legal sob a tutela da União e do Conselho Nacional de Segurança. Sendo destinado menos de 40% da área total do território do estado de Mato Grosso, às ações fundiárias a partir de 1971 que foram desenvolvidas pelo INCRA; pela CODEMAT, e após 1978 pelo INTERMAT215. Entre as décadas de 1970 e 1980 foram implantados em Mato Grosso 268 projetos de atividades empresariais (projetos agropecuários, agroindustriais e minerais), sendo 84,9% direcionados para a prática agropecuária; 87 projetos de colonização particular e 14 projetos de colonização oficial216.

2.3 Dom Pedro Casaldáliga e a sua missão no Araguaia

O propósito desse subtítulo é traçar o histórico de Dom Pedro Casaldáliga na Prelazia de São Félix do Araguaia, pois ao longo deste texto iremos nos reportar as ações do Bispo na luta pela terra em Porto Alegre do Norte, assim torna-se importante demonstrar a sua trajetória e trabalho no Vale do Araguaia. Pedro Maria Casaldáliga Plá nasceu em Balsareny, cidade da Província de Barcelona na Catalunha no dia 16 de fevereiro de 1928. Ingressou na Ordem Claretiana em 1943, sendo consagrado sacerdote em Montjuic em 31 de maio de 1952. Ao final dos anos de 1960 a congregação dos Claretianos da qual Pedro Casaldáliga faz parte estava precisando de voluntários para duas missões na América Latina: uma no Brasil e outra no Altiplano da Bolívia, assim Casaldáliga foi enviado para o nordeste de Mato Grosso com outro missionário Claretiano, Manoel Luzón.

215MORENO, Gislaene. O processo histórico... p. 80. 216Ibidem, p. 81.

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Chegar a São Félix não foi fácil. Foram sete dias de viagem num caminhão, a maior parte deles no meio da mata. Sete dias e sete noites, de Rio Claro, passando por Goiânia e Barra do Garças, até chegar em São Félix do Araguaia. Os últimos quilômetros foram os mais duros, porque a estrada, que ainda estava sendo feita, era praticamente inexistente em muitos trechos. Casaldáliga viajava acompanhado por Manoel Luzón, outro missionário Claretiano. Ambos iam compartilhar a aventura de fundar a missão de São Félix e, na medida em que se aproximavam de seu destino, aumentavam a sensação de chegar a um mundo de onde o retorno era impossível217.

A vinda desses dois religiosos no final de julho de 1968 concretizou maior presença da Igreja Católica em São Félix do Araguaia que antes era realizada pelo trabalho das desobrigas, diferentemente de Santa Terezinha que contava com o apoio das Irmãzinhas de Jesus desde a década de 1950 e do padre Francisco Jentel. Com a chegada do padre Pedro Casadáliga na região do Araguaia mato-grossense, o Vaticano criou oficialmente no ano de 1970, a Prelazia de São Félix do Araguaia. Passado um ano, o religioso recebeu o título de Bispo, porém, diferente dos demais, seria um bispo com chapéu de palha, sem mitra, báculo, nem pompa, para assemelhar-se às pessoas da região218 Conforme as informações da Carta Pastoral, a Prelazia de São Félix do Araguaia abrange 150.000 km² de extensão dentro da Amazônia Legal no nordeste do estado de Mato Grosso. Nesta região encontram-se os rios Araguaia e Xingu, de Sul e à Norte a Serra do Roncador. Cruzam o território duas rodovias: a BR-158 e a BR-080. A Prelazia compreendia todo o município de Luciara, ao Norte, e ao Sul, mais da metade do município de Barra do Garças, além da Ilha do Bananal219. Casaldáliga se deparou com uma realidade social muito diferente da Europa. O espaço do Araguaia era necessitado de infraestrutura básica, a

217ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha. São Paulo: Ed. Unicamp, 2000, p. 14. 218Ibidem, p. 46. 219CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito... p. 4.

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distância da capital do Estado colocava muitas barreiras na comunicação e na administração política, visto que ―a própria extensão dos municípios já é uma estrutura de desequilíbrio social. A distância da sede do Município traz consigo o máximo desinteresse esquecimento por parte das autoridades, a impossibilidade de recurso e protesto por parte do povo‖220. Ainda sobre este cenário Dom Pedro descreve da seguinte forma:

O contraste era brutal. De um lado, uma natureza incrível, de uma beleza primitiva [...]; de outro uma sensação de abandono total: não existia lá nem correio, nem telefone, nem energia elétrica. A prefeitura estava a mais de 700 km ao Sul, em Barra do Garças. O povoado de São Félix era somente um punhado de casinhas na beira do rio. Apenas 600 habitantes que para quebrar o isolamento, contavam com três jipes velhos desmantelados. Não havia um único médico em toda a região. Mas ao menos tinha uma professora: uma senhora com apenas um ano e meio de estudo, que mal podia cumprir suas obrigações porque estava freqüentemente embriagada221.

No Araguaia o Estado se fazia pouco presente e naquele momento a Igreja foi a instituição que passou a orientar a vida daquela população através da criação de escolas, postos médicos, Igrejas, espaços de lazer e educação com a construção do Ginásio Estadual do Araguaia. Foram adotadas quatro linhas de atuação: saúde, educação, justiça, e fé, por meio das quais se instituíram os primeiros fundamentos dessa noção de política comunitária, tendo em vista que em São Félix este trabalho teve que partir do zero pela ausência de uma comunidade organizada. ―Era preciso estimular a participação e a organização do povo, que era nenhuma. Então resolvemos buscar um modelo pastoral que atuasse de maneira completa, e não apenas com o trabalho de evangelização‖222. O modo como a fé era praticada no Araguaia antes da chegada de Casaldáliga demonstrava uma mescla de sincretismo religioso, o uso de ervas

220Ibidem, p. 35. 221ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 15. 222CASALDÁLIGA apud VARGAS, Rodrigo. Atuação social ganhou simpatia dos fracos e a ira de poderosos. 2003. Disponível em:< http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=131553>. Acesso em: 22 jun. 2011.

122 medicinais para prevenção e a cura de doenças como a única alternativa acessível para aquela população, bem como o hábito de recorrer a benzedeiras e curandeiros. Ao chegar a São Félix, Pedro Casaldáliga se preocupou com a fé daquela população que confiava aos seus filhos como padrinhos de batismo, pessoas distantes do núcleo familiar ou da Igreja, o critério de escolha estava atrelado a interesses econômicos e sociais.

[...] tive a sensação de que era um povo dominado: sim senhor, sim senhora. A famosa política de cabresto, como diziam por aqui. Nós lutamos muito para mudar os critérios de escolha de padrinhos de batismo. As pessoas sempre escolhiam para padrinhos de seus filhos o comerciante, o político... Tivemos de lutar muito para convencê-los a escolher padrinhos que significassem alguma coisa, que fossem padrinhos de fé de seus filhos. [...] para se sair dessa cultura de dependência dos poderosos.223

Para conquistar a confiança da população local, Casaldáliga afirma que o trabalho era realizado em grupo de três ou quatro agentes de pastoral, foram empregadas campanhas missionárias nos lugares mais isolados de posseiros na Prelazia, a equipe se instalava nas casas das pessoas e procuravam compartilhar, simplesmente, a vida do lugar, do cotidiano, do trabalho, nas escolas, entre outros. Durante o período de campanha davam aulas de alfabetização ou Círculos de Cultura; aulas de complementação para adultos e crianças. ―Acompanha-se e complementa-se o trabalho das professoras locais. Dá-se assistência de enfermagem e se promove uma ação permanente por todos os meios e em todas as ocasiões de higiene e saúde‖224. A partir de 1968 com a Conferência de Bispos em Medelín na Colômbia uma parte da Igreja passou a sensibilizar-se com os problemas dos povos latino-americanos, esta tomou para si a opção pelos pobres, assim Casaldáliga em uma entrevista ao um jornal demonstra que:

223ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 16, grifos do autor. 224CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 39.

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A Igreja Católica desta região tinha sido durante séculos, ou uma igreja dependente das metrópoles, fundamentalmente Portugal e a Espanha, ou uma igreja muito romanizada. Não tinha o rosto latino-americano. Medelín abriu espaço para esta opção pelos pobres, pela cultura, pela América Latina225.

Esta nova corrente de interpretação colaborou para uma Igreja comprometida com os problemas sociais e políticos; a conferência fez aflorar um sentimento de apoio aos povos latino-americanos voltando-se para os problemas locais no que diz respeito à reforma agrária e as causas indígenas. No Araguaia, Dom Pedro associou-se com os diversos grupos sociais daquele espaço marcado por uma dicotomia extremamente declarada, de um lado a população marginalizada (posseiros, índios e peões) e de outro os favorecidos pelo capital (fazendeiros e governo militar), assim Casaldáliga teve que se posicionar, e a sua opção foi pelos oprimidos:

A igreja desta região assumia uma posição bem clara ao lado do lavrador e com ele se comprometia ao mesmo tempo em que se descomprometia dos fazendeiros e seus aliados. A luta dos lavradores se tornou a luta da igreja. A luta pela terra se tornou o centro da ação pastoral da igreja; abertura de escolas, cursos de alfabetização, atuação na área de saúde, a presença do padre visava ao apoio ao pequeno na defesa de seu pedaço de chão. [...] primeiro era necessário defender o homem para depois formar o cristão.226

O trabalho de Dom Pedro foi essencial para estruturar a permanência dos posseiros nas terras. Com a ajuda da Prelazia começaram a se formar os patrimônios, pequenas vilas onde se construía a escola e a Igreja, contribuindo para a reunião das famílias que estavam dispersas pela região, e, consequentemente organizando os posseiros ameaçados pelo latifúndio. Nestes patrimônios instalava-se uma organização popular básica através dos ―Conselhos

225CASALDÁLIGA apud VARGAS, Rodrigo. Atuação social ganhou simpatia dos fracos e a ira de poderosos. 2003. Disponível em:< http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=131553>. Acesso em: 22 jun. 2011. 226CASALDÁLIGA, 1970 apud CANTUÁRIO, Maria Raimunda dos Santos. Descalço sobre a terra vermelha – D. Pedro Casaldáliga. In: Igreja Católica e os cem anos da Arquidiocese de Cuiabá (1910 – 2010). PERARO, Maria Adenir (Org.). Cuiabá: EDUFMT, 2008, p. 193.

124 de Vizinhança‖ – autoridade popular de uma equipe livremente eleita, conhecida também como os ―Grupos de Liderança‖ que em Pontinópolis elaboram a ―Lei do Posseiro‖227. Com as denúncias de Dom Pedro sobre a existência de trabalho escravo nas fazendas da região a partir da divulgação da Carta Pastoral, os fazendeiros locais proibiram a entrada dos agentes pastorais nas suas fazendas, e assim os peões ficaram desprovidos do atendimento da Prelazia, segundo Casaldáliga ―Não era possível ir às fazendas sem coonestar exteriormente a conduta dos donos, gerentes e capatazes. Nem era possível agir com liberdade. Os peões por outra parte, nunca poderiam ser atingidos pelo padre‖228. Muitos trabalhadores ao saírem das fazendas se dirigiam para a Prelazia de São Félix do Araguaia ou para as pastorais locais para pedirem ajuda aos membros da Igreja. Estes trabalhadores inconformados com as suas condições de trabalho fugiam das fazendas, e, sem dinheiro procuravam a Prelazia para denunciar tais irregularidades trabalhistas. Dom Pedro se preocupou em documentar todas estas denúncias e arquivá-las em seu acervo pessoal, que posteriormente foi doado à Prelazia. Estes documentos encontram-se na pasta com o código B08 do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, relatam as más condições de trabalho nas fazendas, a falta de contrato trabalhista, a falta de assistência médica, o não pagamento, as falsas promessas dos gatos229, o acúmulo de dívidas dos trabalhadores nos armazéns das empresas, além de contabilizar o número de mortes destes trabalhadores. Um importante trabalho de Dom Pedro junto a estes trabalhadores migrantes foi instruí-los que as suas condições de trabalhos eram inaceitáveis,

227Sobre este documento consultar: CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 122- 123. 228Ibidem, p. 38. 229Empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado, trabalha com parentes e com uma rede de ―fiscais‖, e são acusados de diversos crimes, inclusive homicídios. Em geral os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem prestar serviço por anos consecutivos para as maiores empresas. FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 17.

125 pois estavam submetidos a situações de superexploração sem os devidos direitos garantidos pelas leis trabalhistas, bem como o amparo dos direitos humanos.

O peão, depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua personalidade. Vive, sem sentir que está em uma condição infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram os peões como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os ―desbravadores‖. Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada. É incrível a resignação, a apatia e paciência destes homens, que só se explica pelo fatalismo sedimentado através de gerações de brasileiros sem pátria, dessas massas deserdadas semi-escravos que se sucederam desde as Capitanias Hereditárias.230

Escribano231 afirma que uma das principais contribuições que Dom Pedro Casaldáliga deu à Igreja Católica do Brasil foi o impulso à criação de comissões mistas de religiosos, camponeses e índios, para a resolução dos conflitos de terra e estruturação das áreas indígenas. Esse religioso foi um dos principais promotores do CIMI e também da CPT, duas instituições tidas como referências na organização dos camponeses e dos índios, disponibilizando inclusive auxílio técnico e subsídios financeiros que não existiam. São entidades que surgem a partir da Teologia da Libertação232, com o propósito de apoiar o homem do campo, e têm a finalidade de combater as injustiças.

230Ibidem, p. 28. 231ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 85. 232A Teologia da Libertação é uma corrente teológica de interpretação do cristianismo que enfatiza a atuação político-social do cristão em prol da transformação das estruturas de exploração da sociedade capitalista (causadora de injustiça, pobreza, violência, sofrimento e etc.) como em decorrência do amor ao próximo. Desenvolvida após o Concilio do Vaticano II (1962-1965) e a Conferência Episcopal de Medellín (1968), principalmente por teólogos latino-americanos, a Teologia da Libertação ganhou nome e corpo com a publicação da obra Teologia da Libertação, do peruano Gustavo Gutiérrez, em 1971, na qual se formalizou e se estruturou essa leitura mais social da fé cristã. Os teólogos (Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodóvis Boff, Jon Sabrino, Enrique Dussel, entre outros) afirmavam fazer teologia a partir da realidade (de subdesenvolvimento, dependência, violência e etc.) vivida no Terceiro Mundo e defendia o engajamento social e político dos cristãos com base em conceitos como o da caridade política. A Teologia da Libertação não se restringiu às especulações teológicas, mas difundiu-se no plano pastoral (ao qual se alinharam diversos bispos e padres, entre eles: D. Paulo Evaristo Arns, D. Pedro Casaldáliga, D. Helder

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Casaldáliga não se calou diante das injustiças que vivenciou (e vivencia) no Araguaia. Mesmo em um período de repressão ele denunciou a desigualdade social, a violência e a morte, suscitados em um contexto político social cujos indivíduos não são sujeitos da história, mas apenas um dos elementos que movem a sociedade, os quais tiveram as suas vidas modificadas pelos interesses das forças políticas que estavam direcionadas naquele espaço para elite agrária. A Prelazia de São Félix do Araguaia ―atrelou‖ o evangelho à política e aos movimentos sociais, o trabalho desta Igreja passou a ser caracterizado como político-partidário e apontado como distante do ideal evangelizador, visto que lutar pelo acesso à terra e por condições dignas de vida não são tidos como um trabalho exclusivo da Igreja, ―a missão da Igreja segundo ele [Coronel da Polícia Militar de Mato Grosso] não se deve imiscuir em problemas sociais e sim no plano espiritual‖233. Esse fato está vinculado de maneira inequívoca à falta de desenvolvimento da região, responsabilizando D. Pedro como o símbolo do atraso do Araguaia, tendo em vista que este considera como sinônimo de desenvolvimento a preservação ambiental, a conservação das áreas indígenas, a defesa dos posseiros e assentados, o trabalho digno livre do trabalho escravo, entre outros. Em uma entrevista a um jornal local, Casaldáliga afirma que é preciso proporcionar um desenvolvimento harmônico a região toda, e há possibilidades disso. ―Há 40 anos reivindicamos estradas. Agora estão fazendo algum asfalto, mas nos dias de chuva fica tudo difícil. Os políticos já poderiam ter feito muito mais nas áreas de saúde, educação e comunicação, ainda muito precárias‖234.

Câmara, D. Thomaz Balduíno, D. Oscar Romero, etc.). A Teologia da Libertação se tornou hegemônica em boa parte da Igreja Latino Americana até meados dos anos 80. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1975. 233Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08.2.20, 1973, p. 01. 234CARVALHO, Vanessa. Casaldáliga critica abandono do Araguaia, o genocídio dos índios e a agressão ao meio ambiente, 2011. Disponível em: < http://www.aguaboanews.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=13641: casaldaliga-critica-abandono-do-araguaia-o-genocidio-dos-indios-e-a-agressao-ao-meio ambiente&catid=1:notas&Itemid=24> . Acesso em: 23 jun. 2011.

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No altar da catedral de São Félix do Araguaia e nas outras Igrejas, sedes e paróquias, existem pinturas conhecidas como ―Murais da Libertação‖235, de autoria do pintor espanhol Maximino Cerezo Barredo, produzidos entre os anos de 1977 e 2001. São onze murais distribuídos pelas cidades de Luciara, Querência, Ribeirão Cascalheira, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia, São José do Xingu e Vila Rica. Segundo Joanoni:

Na gravura do altar da Catedral de São Félix, Cristo guia seu povo, rompe as cercas do latifúndio e abre as terras devastadas para que os seus filhos possam nela viver. Eles vêm logo atrás, carregando a pesada cruz, uma única levada por todos, homens, mulheres e crianças, pés descalços confiantes e aplicados na tarefa.236

As imagens dos murais retratam o sofrimento da população do Araguaia, aspectos que demonstram o cotidiano e associam a fé. É uma mescla de motivos religiosos e crítica social, denunciando os sofrimentos e as dificuldades que peões, posseiros e índios tiveram que enfrentar com a ajuda da Igreja. Os Murais da Libertação difundem todo o conteúdo teológico-político essencial para a materialização da ação de ressignificação bíblica e religiosa dos conflitos e histórias do Araguaia, permanecendo nítida também a identidade da Prelazia de São Félix do Araguaia como Igreja dos Oprimidos. A criação da Prelazia de São Félix do Araguaia e a chegada de Dom Pedro Casaldáliga transformaram os rumos da Igreja e a percepção de que dela possuíam a população local. Esse episcopado, seu clero, os demais religiosos e os

235Para visualizar os Murais da Libertação, consulte: BARREDO, Cerezo; CASALDÁLIGA, Pedro. Murais da Libertação na Prelazia de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, Brasil. Fotografias: José María Concepción. São Paulo: Edições Loyola, 2005; ALVES, Leonice Aparecida de Fátima; GOMES, Maria Henriqueta dos Santos. Murais do Araguaia: Uma primeira aproximação. In: História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e Resultados de Pesquisas. HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (orgs). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009 ou acesse: http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/MURAIS_DA_LIBERTA%C3%87%C3%83O/ 236JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da crença: ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: Ed. UFMT/Carlini Caniato, 2007, p. 108.

128 leigos se tornaram referências na luta pelos direitos humanos, na defesa dos posseiros, peões e das causas indígenas.

2.4 A Implantação da FRENOVA em Porto Alegre do Norte

Diante do contexto descrito no item 2.2 A venda de terras no estado de Mato Grosso desta tese, que em 1971 a agropecuária FRENOVA – Fazendas Reunidas Nova Amazônia S/A, grupo formado por seis fazendas: Piraguassu237, Tapiraguaia238, Sapeva239, Codebra, Agrosselva e Campo Verde240, adquiriram cerca de 400 mil hectares no povoado de Porto Alegre do Norte. Estas fazendas

237Piraguassu Agropecuária S/A. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em: 18/10/1971 no valor de Incentivo Recebido de Cr$7.006.405,00. Tamanho da Propriedade: 42.673,75ha. Composição Acionária: Délio Rodrigues Cardial (21,46%), Geraldo Antônio de Medeiros Neto (21,44%), José Augusto Leite de Medeiros (21,16%), João Carlos de Souza Meirelles (11,13%), João Galdino da Silva Neves (11,1%), Abílio Antônio Motta Filho (8,02%), Jorge Alberto Veiga de Medeiros (2,3%), Milton Leopoldo Endres (1,52%), Renato de Souza Meirelles (1%), Yara Hungria de Souza Meirelles (0,87%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva. 238Tapiraguaia – Agrícola e Pecuária. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em: 05/07/1967 no valor de Incentivo Recebido de NCr$2.566.140,00. Tamanho da Propriedade: 21.923ha. Composição Acionária: José Augusto Leite (50%), José Carlos Pires Carneiro (25%) e Antônio Peres Carneiro (25%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva. 239Sociedade Agropecuária Vale do AraguaiaS/A. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em: 11/07/1969 no valor de Incentivo Recebido de NCr$6.208.686,00. Tamanho da Propriedade: 72.587,92ha. Composição Acionária: Clóvis Galante (34,12%), José Augusto Leite Medeiros (17,29%), Antônio Carlos Peres de Oliveira (8,23%), Jean Jacques Faure (6,71%), Frederic Paul Grover (6,71%), Emile Besson (6,71%), Auguste Le Diagon (6,71%), Rodolfo Autonelli (5,38%), Herbert Gauss (3,19%), Azael Magalhães Rodrigues (2,26%), Radamés Sangiorgi (2,26%), Moacyr Carneiro (0,46%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva. 240Agropastoril Ltda. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em: 12/11/1970 no valor de Incentivo Recebido de NCr$6.565.129,00. Tamanho da Propriedade: 15.000ha. Composição Acionária: Antônio Carlos Peres de Oliveira (58,53%), Firmino Rocha Freitas (20%), Joaquim Antônio Bittencourt Couto (20%), Tereza Moraes Bittencourt (1,2%), Moema Ribeiro de Lima Freitas (0,15%), José Mauro de Freitas (0,07%), Kalil Rocha Abdala (0,05%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva.

129 eram de propriedade das Empresas Tapetes ITA, representada pelos empresários José Carlos Pires Carneiro e Silvana Carraro Carneiro, e pelos Cartórios Medeiros, sob administração de José Augusto Leite Medeiros e Maria Lúcia Medeiros. A implantação da FRENOVA foi executada por um dos seus diretores, o engenheiro João Carlos de Souza Meirelles241, vereador na cidade de São Paulo (1964-1972), e que mais tarde chegou a ser Secretário de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (1998 - 2002), Secretário de Turismo do Estado de São Paulo (2003 - 2005) e Secretário da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (2003 - 2006)242. Toda a área adquirida se situava no município de Luciara, MT. Em seu interior havia um pequeno povoado, às margens do rio Tapirapé, Porto Alegre do Norte e uma nação indígena, a Tapirapé. A Fazenda Tapiraguaia se situava na área da aldeia Tapirapé, nas margens do Araguaia. Os proprietários doaram ao SPI na pessoa do Sr. Ismael Leitão, chefe da Inspetoria de Goiânia, uma gleba de pouco mais de 9.000 hectares. Porém, as referidas terras doadas, próximas à aldeia, ficam alagadas praticamente de dezembro a junho em quase sua totalidade, sendo o restante das terras composto de cerrado ou mata arenosa de pouca fertilidade. O restante das terras indígenas foi incorporado ao patrimônio da fazenda. Como forma de comprovar os investimentos do governo ditatorial para o ―progresso‖ da Amazônia, o jornal Folha de São Paulo, assim anunciou a aquisição de gado pela agropecuária FRENOVA:

Já estão na sede da Frenova - Fazendas Reunidas Nova Amazônia, empreendimento agropecuário na área da Sudam, as

241Foi proprietário do projeto particular de colonização da empresa ― Empreendimentos de Colonização LTDA‖, no município de Juruena na região noroeste de Mato Grosso. No dia 24 de setembro de 1978 foi instalado o projeto particular de colonização Juruena sendo fundada a Vila Juruena, núcleo urbano do projeto que lhe serviria de apoio básico. Sua extensão territorial do projeto inicial era de 200.000 hectares. Disponível em: < http://www.pmjuruena.com.br/novo_site/index.php?nivel=1&exibir=secoes&ID=1>. Acesso em: 31 jan. 2016. 242Informações disponíveis em: . Acesso 14 jul 2014.

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primeiras mil cabeças de gado adquiridas dos melhores plantéis de São Paulo. Os diretores da empresa comprovaram pessoalmente o excelente estado sanitário deste lote, que inclui 80 cabeças de touros puro-sangue zebuíno da variedade Nelore.243

Os projetos de colonização dirigidos para o nordeste de Mato Grosso tiveram como atividades principais a implantação de empresas agropecuárias e a instalação de projetos de colonização particulares: Confresa e Vila Rica. Como proposta de ocupar os ditos ―espaços vazios‖ da Amazônia, o General Emílio Garrastazu Médici em seu discurso proferido no dia 6 de junho de 1970 na cidade de Recife, reconheceu que a região Nordeste ainda era uma região-problema e que a população nordestina deveria ser assentada nos projetos de colonização da Amazônia Legal para sanar a problemática da terra. Para a concretização dessa política pública, no dia 16 de junho de 1970, por meio do Decreto-Lei nº 1.106, o governo criou o PIN, implementando a construção das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, bem como a colonização e a reforma agrária, na faixa de 10 quilômetros as margens das rodovias. Mas, em 1 de abril de 1971, a dimensão da faixa de ocupação foi alterada pelo Decreto-Lei nº 1.164 e estabeleceu que as terras devolutas situadas na faixa de 100 quilômetros244 de largura em cada eixo de rodovia da Amazônia Legal fossem utilizadas para os projetos de colonização. Outro fato importante para a realização da reforma agrária na Amazônia foi a criação do INCRA, no dia 9 de julho de 1970, sob o Decreto-Lei nº 1.110. O governo Médici passou a incentivar a vinda de trabalhadores rurais dos estados do Nordeste para ocupar os ―espaços vazios‖ da Amazônia, sob o slogan ―Terra sem homens para homens sem terra‖. O objetivo era reduzir as tensões sociais no Nordeste e ocupar as terras da Amazônia, além de garantir a segurança interna daquele espaço. Para tanto, os militares resolveram não alterar a

243ISTO é o novo Brasil! Folha de São Paulo, São Paulo, 23 jan. 1971, p. 18. 244Na BR 158 no Trecho – Barra do Garças, Xavantina, São Félix do Araguaia foram direcionados 650 km, conforme o Decreto-Lei nº 1.243 de 30/10/1972. No trecho – Barra do Garças, Xavantina, São Félix do Araguaia, Altamira, a extensão de 1600 km, segundo o Decreto-Lei nº 1.473 de 13/07/1976.

131 estrutura fundiária do Nordeste, mantendo intactas as estruturas políticas e econômicas do Nordeste e Centro-Sul do país, favorecendo a expansão do capitalismo na Amazônia. Assim, iniciaram uma política de colonização dirigida nas terras indígenas e devolutas, acarretando na migração de populações desempregadas ou subempregadas, ―contabilizando até 30 de junho de 1973 a seleção e a instalação pelo INCRA de 2.550 famílias no projeto Altamira e 675 famílias em Marabá‖245. Entre 1970 e 1973, o governo ditatorial instituiu a política de colonização oficial para diversas áreas da Amazônia, dentre elas, podemos destacar no ano de 1972: o Pará com três polos de ocupação: Estreito, Marabá e Altamira; um núcleo em Rondônia, outro no Maranhão e Goiás. Entretanto, a partir de 1974, os militares diminuíram os seus interesses em incentivar a colonização oficial, logo, o INCRA passou a estimular a colonização particular/dirigida e a implantação de projetos agropecuários. Sob esse aspecto, Ianni mostra que em 1970 o INCRA parecia ter certo comprometimento com a distribuição de terras na Amazônia, porém este órgão ao longo do tempo demonstrou que o seu interesse era em ―distribuir alguma terra para não distribuir as terras‖246. Os trabalhadores rurais constataram que o INCRA não tinha como finalidade principal defender e promover os seus interesses garantidos pelo Estatuto da Terra de 1964, pois este passou a vender e regularizar áreas para grandes projetos agropecuários e de colonização particular em detrimento da distribuição e assentamento de famílias na Amazônia. Diante do fato apresentado, é importante destacarmos que no nordeste de Mato Grosso não houve a implementação da política de colonização dirigida para o assentamento de trabalhadores rurais durante a década de 1970. As empresas agropecuárias se instalaram na região em meados da década de 1960, e a FRENOVA que é o nosso objeto de análise, foi instituída em 1971, ou seja, no ano em que os projetos de colonização oficial estavam recebendo famílias de

245IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 51. 246Ibidem, p. 77.

132 agricultores, principalmente do Nordeste do país, como também do Norte, Centro- Oeste, Sul e Sudeste para ocuparem as terras da Amazônia. O estado de Mato Grosso teve 80% dos seus projetos de colonização realizados por empresas privadas com experiência em colonização nos estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul247. O processo de vendas de terras em Mato Grosso, desencadeado principalmente na década de 1950, contribuiu para a formação de imensas propriedades sob a lógica da especulação imobiliária. Por meio da facilidade de adquirir e regularizar as terras devolutas no Estado, muitos empresários fizeram dessa prática uma atividade altamente lucrativa, sob propriedades muitas vezes obtidas por ―terceiros‖ com sobreposição de terras e ―títulos voadores‖248. A grilagem deu origem a vários empreendimentos de colonização (projetos agropecuários, agroindustriais, minerais e projetos de colonização), sendo a maioria implantada, como é caso da FRENOVA, em áreas indígenas e de posseiros, com pleno consentimento dos órgãos oficiais. O discurso proferido por Médici em 6 de junho de 1970 na cidade de Recife para se ocupar os vazios demográficos da Amazônia, caiu em contradição como o ideal da nação de se estabelecer naquela região, pois os projetos de colonização oficial pouco se empenharam em assentar famílias de trabalhadores rurais direcionando a sua política para o desenvolvimento dos empreendimentos de colonização, como bem demonstrou Ferreira, ―sabe-se que os planos da SUDAM privilegiaram o boi. Do montante de recursos aplicados nos cinco anos iniciais da criação do órgão, apenas 1,4% foram destinados à colonização‖249. A instalação da FRENOVA, assim como outros empreendimentos de colonização financiados pela SUDAM, implicou na intensificação da migração

247SOUZA, Edison Antônio de. Mato Grosso: a (re)ocupação da terra na fronteira amazônica. Estado e políticas públicas. Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, v. 16, n. 2, p. 137-144, set. 2012, p. 137. 248Protocolos sem valor legal, procurações falsas. FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade: a luta pela terra em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1984, p. 64. 249Ibidem, p. 49.

133 espontânea que já vinha sendo realizada para o Vale do Araguaia desde o início do século XX. Entretanto, essas famílias de migrantes não foram beneficiadas pelos recursos financeiros e técnicos disponibilizados pelo governo, os quais foram direcionados para a implantação de projetos agropecuários em detrimento da política de colonização oficial para o assentamento de trabalhadores rurais na Amazônia. Dom Pedro Casaldáliga, em depoimento à CPI da Terra, relata que:

No início da década de 60, o Departamento de Terras do Estado (MT) começa a vender adoidamente [sic] as terras que estavam sob o seu domínio. A venda é feita tão indiscriminadamente que os títulos expedidos incluem até áreas urbanas e indígenas, como a aldeia Tapirapé e os povoados de Santa Terezinha e Santo Antônio, este no rio das Mortes. Pode-se dizer que o processo de vendas era de ―gabinete‖. Os interessados podiam comprar até 10.000 ha, por preços baixíssimos (CR$ 7,00 ha). Muitas vezes uma mesma família conseguia vários títulos. [...] o atual governador, Sr. Garcia Neto, reconheceu que seria preciso invadir os Estados vizinhos se quisesse cumprir com os compromissos assumidos.250

Diante desse processo das vendas de terras em Mato Grosso, em janeiro de 1971, esteve presente no povoado de Porto Alegre do Norte, o senhor João Carlos de Souza Meirelles, em reunião na escola da comunidade, informou que veio à localidade para comprar aquela área251. Este fato ajuda-nos a entender que o empresário adquiriu as terras ciente da existência de índios e posseiros com direito a posse. A primeira estratégia utilizada pela FRENOVA para a retirada dos posseiros foi o envio de notificações de despejos aos habitantes de Porto Alegre do Norte.

Prezado Senhor, Na qualidade de proprietário da fazenda ―Lado de Pedra‖, cadastrada no ex IBRA, agora INCRA [...], com impostos quitados, localizada no município de Barra do Garças, Estado

250SEDOC, 1977 apud FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade... p. 65. 251Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A 17.2.25, 1972, p. 1.

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de Mato Grosso, tendo a necessidade e o interesse de explorar pessoalmente e diretamente o imóvel de que tenho pleno domínio, envio-lhe esta/ carta-notificação para que desocupe a parte da minha propriedade que ocupa sem justo título e a explora sem autorização e sem pagar qualquer retribuição, dando-lhe o prazo de 90 dias, a partir da data que tomar conhecimento, para desocupar o imóvel.252

A falta de conhecimento dos direitos sobre o uso e posse da terra garantidos pelo Estatuto da Terra, fez com que os trabalhadores rurais abandonassem as suas posses sem serem restituídos financeiramente pelas benfeitorias instaladas nas propriedades253. O tom emitido pela notificação impõe ao posseiro uma condição de inferioridade e de ilegalidade ao ocupar uma área que tem proprietário devidamente cadastrado no INCRA e com o pagamento dos seus impostos em dia. Dessa forma, o ocupante é caracterizado como um invasor que não possui título da área e que usufrui de vantagens sobre a terra sem pagar qualquer tipo de retribuição sobre ela. Em relação às ameaças e violências praticadas por Plínio Ferraz, gerente da FRENOVA, João da Angélica nos relatou da seguinte forma:

Tinha um gerente por nome Plínio Ferraz, ele chegava aqui, faz de conta que você morava aqui, aí ele chegava aqui e dizia: o que você está fazendo aqui? Eu estou aqui há oito, dez anos. Pois é: você sabia que essa terra que você está usando é da fazenda FRENOVA? Não. Chegamos aqui e não tinha ninguém. Meus pais que cortaram esses paus aqui, não tinha ninguém, não existia fazenda. É, mas a gente já tem um documento velho de muitos anos e agora que viemos usar a fazenda. Aí dizia: eu vou lhe dar dez cruzeiros para você desocupar isso aqui. Então eu dizia: mas nós não podemos, porque tem a minhas coisas, a minha roça. Não, se você birrar, você vai pagar o estrago que você fez. Derrubou a roça e tudo que não era para derrubar, porque é nosso. Aí tinha que assinar um caderno e me dizia: se você não sair eu coloco a polícia e os homens daqui vão tirar vocês e queimar tudinho, e vocês não

252 Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.1.02, 1971, p. 1. 253José de Souza Martins afirma que uma vaca amazônica expulsa uma família inteira de posseiros, pois ela ocupa a mesma área que o posseiro precisaria em um ano para sustentar a família e produzir excedentes para o mercado. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 122.

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recebem nada. [...] Você tinha que pegar aqueles dez cruzeiros, pois ele vinha com o caminhão e tirava a sua mudança e colocava fogo na casa, porque era tudo de palha, então acaba e tinha que ir para outro lugar. Era assim.254

As notificações era o primeiro mecanismo para expulsar os posseiros das propriedades, ao passo que se estas não fossem cumpridas usava-se de outros tipos de pressões, tais como, o envio de jagunços até as posses com avisos ameaçadores ou com o uso da violência física, a queimada das roças, das casas e das benfeitorias, o sacrifício das criações: porcos, vacas e galinhas. Sob esta perspectiva, estes atos podem ser considerados ―moderados‖, se levarmos em consideração que muitas vezes a vida dos trabalhadores rurais são ceifadas para dar espaço as relações capitalistas na fronteira amazônica. O prefeito de Luciara, José Liton Luz juntamente com o seu advogado Olímpio Jaime, fizeram uma reunião em 30 de julho de 1970 para que a população colaborasse com os gastos do processo da desapropriação. Desse modo, os posseiros entregaram ao prefeito mais de 170 animais entre reses e cavalos, como também uma grande soma em dinheiro255. Em 17 de setembro de 1970, em sessão extraordinária na Câmara Municipal de Luciara, foi aprovada a desapropriação de uma gleba de 4.500 hectares para o povoado de Porto Alegre do Norte. Na ata da sessão encontramos as seguintes informações:

Ata da sessão extraordinária da Câmara Municipal de Luciara, convocada pelo exmo. sr. Prefeito Municipal, conforme Ofício nº 233/70 de 16 de setembro de 1970 e realizada às 14 horas do dia 17.9.70. [...] O expediente constava de solicitações do sr. Prefeito no Decretos ns. 58, 59 60/70. O de nº 58 solicitava a autorização da Câmara para desapropriação de uma gleba de 2.446, 83ha onde se encontra localizado o povoado de Santa Terezinha, neste município, de propriedade da Cia. de Desenvolvimento do Araguaia (CODEARA). O de nº 59/70

254João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte. 255Esses dados podem ser encontrados na Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga. CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja na Amazônia... p. 87-90.

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solicitava ainda a autorização para desapropriação de uma gleba de 4.500ha onde se encontra localizado o povoado de Porto Alegre do Norte, neste município, de propriedade da FRENOVA – Nova Amazônia Ltda. O de nº 60/70 solicita a abertura de crédito no valor de Cr$ 40.000,00 destinado à desapropriação dos referidos imóveis.256

Entretanto, nenhuma providência foi tomada em prol dos trabalhadores rurais, pois o próprio prefeito José Liton Luz ordenou que os mesmos deixassem as suas posses e as entregassem à FRENOVA. O prefeito, juntamente com o gerente da agropecuária, Sr. Plínio Ferraz, tentou transferir os posseiros para uma área denominada de ―Mata de Coco‖, um terreno alagadiço, já em poder de outros posseiros e sob a reclamação de outra fazenda, mas os trabalhadores do povoado de Porto Alegre do Norte se recusaram a deixar as suas terras257. Em agosto de 1971, a FRENOVA derrubou 11 casas do patrimônio, sendo que além do prefeito de Luciara, também estiveram presentes nesse acontecimento o gerente da empresa, Sr. Plínio Ferraz, juntamente com seis pistoleiros ostensivamente armados, derrubaram a escola do povoado e levaram o material da mesma para a sede da fazenda258. Na ocasião, o gerente da FRENOVA, Plínio aconselhado pelo advogado Olímpio Jaime (ex-deputado cassado) contratou dois capangas, Sebastião Ferreira e João Souza Lima259 para matarem o padre Henrique Jacquemart que estava visitando Porto Alegre do Norte e esclarecendo a população a respeito dos seus direitos sobre as terras. Os conflitos gerados pela posse da terra em Porto Alegre do Norte entram em contradição com os ideais de modelo de propriedade rural instituídos pelo Estatuto da Terra de 1964, pois no mesmo, de acordo com Leonilde Medeiros:

256Ibidem, p. 90-91. 257Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A 17.2.25, 1972, p. 2. 258Ibidem, p. 1. 259Estes eram posseiros de Porto Alegre do Norte, falaremos deste caso com maior detalhe no quarto capítulo desta tese.

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[...] tipificam-se os imóveis rurais existentes em minifúndios, latifúndios por exploração, latifúndio por dimensão e empresas rurais. O objetivo da reforma agrária seria a gradual extinção de minifúndios e latifúndios, fontes de conflitos. A empresa, definida como empreendimento caracterizado pela exploração ―econômica e racional‖, dentro das condições da região em que se situasse e pela utilização de uma área mínima segundo padrões estabelecidos em lei, tornava-se o modelo ideal de propriedade.260

Diferentemente dos anseios proferidos pelo Estatuto da Terra, o modelo de empresa rural instituído a partir dos projetos de colonização da Amazônia provocou inúmeros conflitos por terras naquele espaço, visto que, no caso analisado da agropecuária FRENOVA, esta se estabeleceu em áreas ocupadas por povos indígenas e trabalhadores rurais com direito a posse. O discurso de que as antigas estruturas agrárias do país, como o minifúndio e o latifúndio eram exclusivamente geradoras de conflito no campo, e que a solução seria a eliminação destas, entra em contradição quando nos deparamos com os inúmeros casos de violências provocados no espaço rural brasileiro a partir da implantação dos empreendimentos rurais na Amazônia Legal261. Os projetos de colonização foram artifícios geopolíticos sem comprometimento com o assentamento de trabalhadores rurais em terras devolutas, já que o seu principal objetivo era obter uma ocupação controlada e dirigida nas áreas de fronteira amazônica. A implantação da FRENOVA no Araguaia mato-grossense ocorreu por meio dos incentivos fiscais e facilidades governamentais que fizeram com que empresas de outras áreas como, a agropecuária em análise cujos proprietários desenvolviam atividades no ramo da fabricação de tapetes e administração de um cartório em São Paulo migrassem para Amazônia, bem como o estabelecimento de empresas estrangeiras como o Grupo Yanmar – Equipamentos Agrícolas que comprou parte da FRENOVA em 1975 para a implantação da Agropecuária

260MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989, p. 87. 261Estes dados podem ser verificados nos Cadernos da CPT sobre os conflitos no campo.

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Piraguassu, que será discutida no quarto capítulo desta pesquisa. Sob esta perspectiva Bernardo Sorj, demonstra que a política de colonização da Amazônia estava centrada no desenvolvimento do complexo agroindustrial conduzido por grandes empresas internacionais e nacionais que buscavam o aumento dos seus lucros tanto em áreas diferentes de atuação, como pela internacionalização do mercado interno262. Entre os anos de 1970 a 1972, a FRENOVA tentou implantar sua sede no centro do povoado de Porto Alegre do Norte, pois o espaço era bem localizado em frente ao rio Tapirapé a única via de transporte na época das chuvas. Neste período foram realizadas muitas negociações entre os posseiros e a empresa com a intervenção do INCRA e da Prelazia de São Félix do Araguaia. O representante da agropecuária entrou em contato com Dom Pedro Casaldáliga e o padre Francisco Jentel para que os mesmos se reunissem para definir as demarcações das áreas e os posseiros que tinham direitos a posses. Assim, em abril de 1972, o diretor João Carlos de Souza Meirelles foi até ao povoado com um topógrafo para demarcar as terras, entretanto, houve resistências dos posseiros que se negaram a receber os funcionários da fazenda, dado que só fariam a medição da área com a presença do bispo Casaldáliga. De acordo com os relatos dos posseiros, o senhor Meirelles achou ruim aquele fato e assim disse:

A missão do padre é outra. [Com resposta mal educada nos disse]: o padre não é brasileiro, ele é bom lá onde a mãe dele pariu ele. Respondemos: agora o senhor sabe disto, mas quem escolheu o padre como nosso representante foi o senhor. Então ele disse que no dia 30 de abril estaria de volta e é para ser resolvido, mas se não vier com o senhor nada feito.263

As exigências dos posseiros em ter a presença de Dom Pedro Casaldáliga nas negociações com a FRENOVA tinham como propósito a garantia

262SORJ, Bernardo. Estado e Classes Sociais na Agricultura Brasileira. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 69. 263Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.57, 1972, p. 2.

139 de todos os seus direitos, bem como a demarcação exata das suas posses sem que estes fossem lesados pela empresa. Em maio de 1972, um mês após da visita do senhor Meirelles em Porto Alegre do Norte, a FRENOVA passou ameaçar os posseiros e forçá-los abandonar as suas posses, cercando todo o povoado. Diante destes fatos, os posseiros enviaram um abaixo-assinado ao Presidente do INCRA, Dr. José de Moura e Cavalcanti, para que o órgão pudesse intervir nos acontecimentos, pois a empresa estava impedindo a sobrevivência da população local264; assim, as medidas deveriam ser tomadas a partir do Decreto 70.430 de 17 de abril de 1972265. É papel do INCRA fiscalizar o cumprimento do Decreto 70.430 de 17 de abril de 1972 cujo artigo número 1 informa que ―Na execução dos planos de desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito‖. E o artigo dois expõe que ―As pessoas domiciliadas na área dos empreendimentos a que se refere o artigo anterior, formem elas ou não, coletividades urbanas, não poderão ser deslocadas de suas moradias ou da posse de terras por elas cultivadas sem audiência prévia do Ministério da Agricultura‖. No povoado de Porto Alegre do Norte os direitos garantidos pelo Decreto citado não foram direcionados à população local, visto que após o envio do abaixo-assinado ao INCRA o mesmo não interviu nos problemas dos posseiros, haja vista que nos deparamos na documentação do acervo com cartas para diferentes órgãos/pessoas, tais como: Capitão Moacir Couto - delegado regional da polícia militar de Barra do Garças, Manuel Fernandes – Encarregado de Assuntos Sociais do SNI, Dom Fernando Gomes – Arcebispo de Goiânia, ao Secretário de Segurança do Estado de Mato Grosso, José de Moura e Cavalcanti –

264Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.56, 1972, p. 1. 265Estabelece a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito. Publicado no D.O de 18 de abril de 1972. Disponível em:. Acesso em: 26 dez. 2014.

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Presidente do INCRA, e por fim, ao senhor Jacintho – Gerente da fazenda FRENOVA, para que estes solucionassem os problemas de terras. Em uma carta enviada a Moacir Couto, delegado regional da polícia militar de Barra do Garças, Dom Pedro Casaldáliga relatou os acontecimentos violentos que aterrorizavam a vida dos posseiros de Porto Alegre do Norte:

Se além de um problema de terras, houver também ―um caso policial‖, a indiciada, em tal caso, deveria ser, evidentemente, a fazenda ―Frenova‖. Ela invadiu a terra dos posseiros, moradores antigos. Ela os forçou a sair de suas posses, com ameaças de gerentes e outros funcionários, com a presença da Polícia, com promessas, intimações e argúcias do Sr. João Carlos Meirelles – dono e diretor – cercando com estacas a própria rua e até as moradias e quintais do povoado, ou pagando indenizações fraudulentas. Ela, por meio de seu gerente, Sr. Plínio, comprou supostos capangas para matar o Pe. Henrique Jacquemart, simplesmente porque o padre, cumprindo a sua missão, esclareceu ao povo a respeito dos seus direitos. Ela foi conivente da trágica espoliação de que o povo de Porto Alegre foi vítima por parte do Prefeito de Luciara, Sr. José Liton Luz. Ela ultimamente, contrariando o Decreto 70.430 de 17 de abril deste ano de 1972, vem cercando a terra do povo, nos arredores imediatos, e, recentemente, fechou os bebedouros e a estrada pública.266

A polícia, que tem como função garantir o poder do Estado, quanto à preservação da vida dos cidadãos passou a desempenhar na fronteira um papel contrário ao seu trabalho, pois como vimos, alguns policiais atuavam ao lado dos grupos de empresários no Araguaia para fortalecer e garantir o domínio destes, bem como faziam operações utilizando veículos dos grandes proprietários (empresários) e, não raro participavam dos trabalhos os jagunços das fazendas. O aparato repressor (policial) nas áreas de fronteira, em geral estava a serviço dos empresários rurais, para reprimir os trabalhadores rurais. Com a instalação das empresas agropecuárias no Araguaia mato- grossense, a violência passou a ser considerada um mecanismo de legítima defesa por parte dos grupos empresariais detentores de dois elementos-chaves: o primeiro

266Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.36, 1972, p. 1.

141 econômico através do mercado e o segundo social, a partir da justiça, cabendo a estes legitimar os seus atos de violência como suporte para solução de conflitos ali presentes. Na documentação levantada no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, podemos constatar que o ano de 1972 foi um período muito conturbado para a população de Porto Alegre do Norte, dado que mesmo com a instauração do Decreto 70.430 de 17 de abril de 1972 que incumbia ao INCRA e as empresas rurais prestarem assistência às pessoas domiciliadas em áreas de projetos agropecuários, a Lei não era respeitada e os moradores daquela localidade passaram pelas mais variadas formas de violência. Para tentar solucionar os conflitos por terras, Dom Pedro Casaldáliga enviou uma carta com data de 20 de outubro de 1972 para o senhor Osmar Jacintho, gerente da FRENOVA, na qual se expunha o seguinte texto:

Prezado senhor; Depois de uma longa série de tensões entre a Companhia ―Frenova‖ e o Patrimônio de Porto Alegre; depois de promessas e intentos de conciliação, mais ou menos ambíguos, feitos a mim e ao povo do Patrimônio, por parte do Sr. J. Carlos Meirelles, em nome da empresa, nesses últimos meses a ―Frenova‖ vem cercando materialmente o povoado e o seu futuro. Como a realidade do dia a dia a cerca tão próxima ao povoado, as indenizações injustas ou ―estratégicas‖, etc. – expressam tristemente o contrário das manifestações de convivência e de paz feitas pela Fazenda e pelo senhor, pessoalmente, nem eu nem o povo de Porto Alegre podemos aceitar a sinceridade de tais manifestações. [...] Quero lembrar ao senhor, como gerente, e aos donos da ―Frenova‖ os termos e a validade do Decreto presidencial 70.430 de 17 Abr 72. Somente o INCRA pode resolver, segundo lei, um problema de posseiros. E o INCRA já se manifestou oficialmente designando para cada posseiro, nesta área, o direito de um módulo de 100 ha (20 alqueirões) de terra de lavoura. Recorreremos ao INCRA quantas vezes for preciso. Por consciência de homem e de cristão a par do dever pastoral do bispo desta região, eu acompanharei o direito do povo de

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Porto Alegre até o fim, com todas as conseqüências. Não desafio; apelo à Lei e à consciência dos senhores.267

O apelo de Dom Pedro Casaldáliga decorre de um enfretamento não direto, o mesmo utiliza dos termos garantidos em Lei para resolver e assegurar os direitos dos moradores de Porto Alegre do Norte. Recorrer ao INCRA era o único meio de conseguir a demarcação das terras dos posseiros, entretanto este órgão não dava respostas concretas aos problemas daquela população, pois apenas designou o direito de um módulo de 100 ha para os lavradores, mas não exigiu de fato que a FRENOVA destinasse a área a eles. O Decreto 70.430/17.04.72 traz em seu texto ações que o INCRA e as empresas rurais devem tomar para auxiliar os posseiros, mas não diz especificamente o tipo de assistência que estes têm de prestar aos trabalhadores rurais. A única concretude assistencial que a referida Lei apresenta, diz respeito ao fato de que as pessoas domiciliadas em áreas de projetos agropecuários não poderão ser deslocadas das suas moradias ou posses sem uma audiência prévia com o Ministério da Agricultura. No entanto, conforme a documentação analisada, a população de Porto Alegre do Norte foi expropriada das suas áreas de forma violenta ou com indenizações injustas, sem que a mesma tivesse os seus direitos atendidos pelos órgãos competentes.

2.5 Porto Alegre do Norte sob suspeita de atos guerrilheiros

O ano de 1972 se tornou uma fase difícil para a população de Porto Alegre do Norte, pois foi o período em que o governo militar descobriu a Guerrilha do Araguaia na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e o norte de Goiás (atual Tocantins), assim, a área que compreende o município de Barra do

267Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.50, 1972, p. 1, grifos nossos.

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Garças em Mato Grosso até o a divisa com o estado do Pará, abrangendo toda a extensão da Prelazia de São Félix do Araguaia se tornou uma zona de segurança nacional, e, toda equipe pastoral, incluindo o Bispo, foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional e acusada de subversão. As denúncias de Dom Pedro Casaldáliga e a visibilidade que os seus escritos ganharam dentro do Brasil e no exterior fizeram com que entre os meses de setembro e outubro de 1972 o Exército realizasse em São Félix do Araguaia uma Ação Cívico-Social – uma espécie de treinamento antiguerrilha com assistência social para a população daquele espaço. Os militares associaram a resistência armada dos posseiros de Santa Terezinha268 e os conflitos dos posseiros de Porto Alegre do Norte contra a FRENOVA às ações organizadas pelo PC do B no Bico do Papagaio. Diante deste contexto, no dia 28 de outubro de 1972, apareceu em São Félix do Araguaia um homem de 30 anos de idade, suposto professor assistente da Universidade Federal do Paraná. Este senhor, com nome de Ailson Loper, trouxe uma carta de apresentação do padre claretiano Vicente Fernandez, da cidade de Curitiba/PR. O suposto missionário logo começou a se relacionar com a sociedade de São Félix (comerciantes, fazendeiros e políticos locais). Participou de uma reunião na casa do Dr. Jamil Thomé com a presença do Sr. Carlos Alves Seixas, proprietário, diretor técnico da CODEARA e presidente da AEA, o José Bens, militar aposentado por corrupção e empreiteiro geral da FRENOVA, e o Dr. Antônio que havia chegado há poucos dias a São Félix do Araguaia. Nesta reunião os presentes fizeram questão de informar ao Ailson Loper que sabiam que ele era da Polícia Federal e ofereceram os serviços, pessoal e conduções das respectivas

268Em 1967, a CODEARA adquiriu as terras do povoado de Santa Terezinha ciente da existência de posseiros com direito à posse. A empresa não deixou que estes trabalhadores rurais permanecessem em suas terras praticando a agricultura de subsistência. Iniciou-se a luta pela terra entre posseiros e a empresa até o ano de 1972, quando o INCRA demarcou as propriedades dos trabalhadores rurais.

144 fazendas. O Dr. Antônio, por sua vez, se declarou como agente do DOPS de Mato Grosso. Ailson Loper conviveu cerca de 20 dias com a equipe da Prelazia, mas se relacionava com pessoas contrárias às ações da Igreja Católica local. No dia 13 de novembro, foi realizada uma reunião na biblioteca da Prelazia de São Félix do Araguaia, na qual estiveram presentes Dom Pedro Casaldáliga, padre Francisco Jentel, padre Pedro Mary Sola e os professores da equipe da Prelazia, pois haviam recebido a notícia de que Ailson Loper esteve em Porto Alegre do Norte e empreendeu ações violentas. Nesta reunião, Loper foi pressionado a revelar a sua verdadeira identidade. Ele informou que era o Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, membro do Comando de Repressão da Amazônia. O militar informou que as autoridades – o Exército e o Governo Federal – estavam convictos de que a casa pastoral de São Félix era um foco de subversão de guerrilha269. Diante do clima de terror instalado na Prelazia, o militar disse aos religiosos que eles que criavam tal situação. Negou energicamente que existisse tortura no Brasil e que houvesse inocente nas cadeias do país. Assim, com a chegada do Capitão Ailson Loper, instalou-se um forte sistema de pressão e terror, por parte da FRENOVA, sobre os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte. O padre Eugênio Consoli, os posseiros João de Souza Lima, José de Souza Costa e Alexandre Quirino de Souza foram levados e detidos na sede da FRENOVA e ali submetidos a interrogatórios, humilhações e vexames durante mais de duas horas, sob a vigilância armada do empreiteiro José Bens e dos seus capangas ―Raimundo Motorista‖, ―Cícero Custeleta‖, ―Jurandi‖ e ―Farmacêutico‖. Os religiosos da Prelazia foram impedidos de deixar São Félix enquanto o Capitão ainda estivesse presente no povoado. O padre Francisco Jentel foi proibido de celebrar missas e Dom Pedro Casaldáliga foi impedido de relatar na missa sobre os incidentes recentes. Os pilotos dos táxis aéreos foram proibidos de transportarem as pessoas ligadas à Prelazia, enquanto o militar Ailson Loper

269BRASIL. Comissão Camponesa da Verdade. Relatório Final Violações de Direitos no Campo – 1946 a 1988. Brasília: CNV, 2014A, p. 125.

145 estivesse em São Félix. Ameaçou o padre Jentel caso pretendesse fugir, e o submeteu, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga, a um interrogatório270. Essa ação deixou claro que o governo militar era conivente com tais medidas que visavam excluir aquilo que era considerado um entrave social para o desenvolvimento da Amazônia. A presença dos posseiros, dos povos indígenas, de pequenos povoados e vilarejos foi considerada sério obstáculo à implantação das empresas agropecuárias a partir de 1970, e mesmo que a legislação em vigor garantisse a esses grupos o direito de permanecerem em suas terras (alguns posseiros haviam chegado no local em meados da década de 1940), o fato de não possuírem documentos legais serviu de pretexto para que as empresas alegassem sua propriedade e exigissem que a população local se retirasse. O Estado se fez presente para aquela população através da força repressiva que culminou em torturas e humilhações, inclusive de pessoas ligadas à Prelazia de São Félix do Araguaia. Após a retirada do Exército de Porto Alegre do Norte, a população ainda estava atemorizada e esperava a qualquer momento pela volta dos militares, tanto que quando pousava um avião na sede da FRENOVA, os trabalhadores e os agentes de pastoral enviavam cartas a Dom Pedro Casaldáliga para colocá-lo a par da situação, conforme o relato a seguir:

Chegamos 8 horas. Avião conduzindo dois policiais chegou antes de nós, porém parou na Frenova. Supõe-se que logo estará aqui. O povo de Porto Alegre está disposto a enfrentar a situação e ir até as últimas conseqüências. Se preciso for irão para a mata por quanto tempo for necessário. Eles mantêm posição firme e cortarão arame quantas vezes for necessário. [...] No entanto, nossa posição é de expectativa. São imprevisíveis as atitudes da polícia e da fazenda. Fique tranquilo Pedro, povo sabe o que quer. Vale a pena lutar.271

A intervenção do exército em Porto Alegre do Norte fortaleceu ainda mais as ações violentas da FRENOVA contra os posseiros. A inoperância do

270Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.24, 1972, p. 1-3. 271Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.60, 1972, p. 1.

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Estado brasileiro na resolução dos conflitos por terra na Amazônia advém de uma política pautada no estabelecimento de empreendimentos rurais de capital nacional e internacional, em contraposição às antigas formas de manejo da terra praticada por trabalhadores rurais pobres através da agricultura de subsistência. O capitão Ailson Loper disse à população local que a sua atuação não tinha relação com os conflitos de terras e que este trabalho competia ao INCRA. Sua missão era acabar com os focos de guerrilha e subversão no Araguaia. Porém, este discurso entra em contradição, quando se considera o sequestro dos posseiros João de Souza Lima, José de Souza Costa e Alexandre Quirino de Souza e o padre Eugênio Consoli para serem interrogados e humilhados na sede da FRENOVA. Em contrapartida, a agropecuária tomou para si o uso da violência com apoio de uma parcela da polícia militar para garantir a sua supremacia sobre as terras dos posseiros, controlando sistematicamente a contestação da legitimidade dos direitos dos trabalhadores rurais na luta pela terra. Os trabalhadores rurais empreenderam a luta pela terra por necessidade em tê-la como um instrumento de trabalho, assim, ao resistirem às desapropriações e expulsões, estes buscavam o reconhecimento dos seus direitos e amparo social que o Estado lhes deve. Entretanto, o governo militar tentou de todos os modos abafar esses conflitos a partir da desmobilização de grupos sociais, como a Prelazia de São Félix do Araguaia, impondo a estes uma série de perseguições e torturas, bem como a sua desmoralização (acusavam os padres e agentes de pastoral de práticas subversivas, de serem comunistas, inimigos da pátria) e o enquadramento destes na Lei de Segurança Nacional. A estratégia dos militares se embasava em desviar um problema de cunho político e social para um foco simplesmente econômico, o qual seria resolvido a partir das desapropriações das terras quando estas fossem de interesse de ambas as partes, ou melhor, no momento em que não lesasse os interesses dos latifundiários. Conforme Martins272, a intervenção do exército nos conflitos por

272MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.

147 terras na Amazônia configura-se como a militarização da questão agrária, pois algumas ações do governo ditatorial foram estrategicamente criadas para conter a resistência dos trabalhadores rurais na luta pela terra. Desse modo, a intervenção do Estado sobre as vidas das populações em conflitos na Amazônia se deu por meio de mecanismos da inserção de ações como a Operação Cívico-Social273 ocorrida em São Félix do Araguaia no ano de 1972, com o propósito de estabelecer uma relação entre o exército e a população local como um modo de controlar os conflitos sociais provenientes da política econômica e agrária que incentivou a entrada dos investimentos dos empresários do Centro-Sul do país e do exterior em atividades rurais na Amazônia Legal. Para conquistar a confiança dos habitantes de Porto Alegre do Norte, o capitão Ailson Loper reuniu-se com estes com o intuito de acalmá-los quanto a sua presença e avisá-los que o INCRA iria regularizar os problemas da demarcação de terras na região. Assim, em uma carta direcionada a Dom Pedro Casaldáliga pelo padre Eugênio Consoli, temos a descrição da reunião do militar junto aos posseiros:

Caríssimo Pedro, ―Ele está no meio de nós‖ Domingo, dia 12-11-72, esteve aqui o capitão Ailson. Conversou uns cinco minutos comigo e quis falar ao povo. A reunião foi feita na escola. Ele se apresentou como seu amigo e todos nós, dizendo até que estava hospedado na casa dos padres em S. Félix. Pedro, o assunto da reunião foi, entre outros, que o INCRA viria aqui. Que tudo seria resolvido. Disse que o povo não precisava de temê-lo, assim como ele também não temia o

273Dentre outras ações, podemos citar o MOBRAL, criado em 1971, cujo objetivo era a erradicação do analfabetismo no Brasil, sendo extinto em 1985. Projeto Rondon, elaborado em 1967, tinha como propósito levar estudantes universitários, especialmente da área da saúde, para prestar assistência à população de áreas carentes do interior do Brasil. GETAT, idealizado em 1980, tinha como finalidade coordenar, promover e executar as medidas necessárias à regularização fundiária no sudeste do Pará, norte de Goiás e oeste do Maranhão. Martins aponta que o GETAT não foi instituído no norte de Mato Grosso, pois os empresários viam a situação da região estável, sendo esta considerada pós-pioneira, mas não para os trabalhadores rurais pobres cercados pelos latifundiários. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil...

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povo, pois a força de que dispunha, poderia ocupar Porto Alegre em dois minutos. Dizia ao povo que podia falar.274

A relação imposta pelo capitão Ailson junto à população de Porto Alegre do Norte assinala que este não deveria ser temido, pois seria um ―aliado‖ para a resolução dos conflitos de terras, ou seja, a sua ação assemelhava-se ao perfil da polícia inglesa criada no século XVIII, a qual em linhas gerais, de acordo com Tavares dos Santos275, demonstrava que o seu poder dependeria da aprovação do público e desta forma ganharia a sua colaboração voluntária, e não necessitaria da utilização da coerção física. Entretanto, caso não houvesse a sua aceitação naquele local, seu aparato repressivo seria o suficiente para recriminar qualquer movimento contestatório à sua presença. Desse modo, num primeiro momento, o capitão Ailson tentou conquistar a confiança dos trabalhadores rurais informando-os que ele era amigo de Dom Pedro Casaldáliga, se apresentando como uma pessoa confiável e que não precisava ser temida, porém se houvesse revoltas contra ele, estas seriam sanadas com o uso da força. Conforme Tavares dos Santos276, o ato de violência vem sempre anunciado ou justificado, como podemos verificar no discurso relatado no documento acima. A ameaça de repressão contra os lavradores está posta em termos claros e por meio de justificativas racionais. O fato de o Capitão falar em nome do Estado e de projeto de estabelecer um modelo de desenvolvimento econômico que priorizava a grande propriedade tornavam os posseiros e povos indígenas alvos das intimidações, por serem vistos como incapazes de promover esse ideal. Por isso, a violência atingiu em maior grau mais alguns grupos sociais, acarretando uma série de exclusões e arbítrios, aplicados majoritariamente sobre os mais pobres. Os projetos agropecuários instituíram uma grande transformação no espaço rural brasileiro, os quais destruíram antigas relações e práticas sociais do

274Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.59, 1972, p. 1. 275TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial, consenso e violencia. Tempo Social, São Paulo, v. 09, n. 1, p. 155-167, maio de 1997. 276Ibidem, p. 164.

149 cultivo da terra pelos trabalhadores rurais, excluindo esses agentes da cena política e retardando a proposta de reforma agrária, estabilizando, assim, a estrutura fundiária dominante do país até os dias atuais. De acordo com Sorj277, os investimentos em grandes projetos agropecuários não asseguravam altas taxas de lucros, mas as aquisições de terras na Amazônia contribuíram para a supervalorização destas, tendo em vista que estas áreas eram inexistentes em termos mercantis e ganharam valor através da utilização de créditos subsidiados e incentivos fiscais. Portanto, a compra de terras por empresas do Centro-Sul distantes de atividades rurais, como a FRENOVA, possibilitou a apropriação de grandes lucros diferentemente da lógica tradicional de ocupação da terra, a qual para os trabalhadores rurais tinha como finalidade a subsistência familiar, e, para os empreendedores era caracterizada como um negócio de alta rentabilidade. Desse modo, a política de modernização do campo se converteu em uma prática de estímulo à concentração de terras, ao passo que os incentivos fiscais conferidos pelo governo colaboraram para a valorização das propriedades, não significando assim, que houve necessariamente uma extrema mudança na modernização da agricultura; mas o que ocorreu de fato, foi a concentração de terras para fins especulativos. Os recursos da SUDAM foram destinados à expansão de atividades para exportação como a mineração e a pecuária. O setor da agropecuária obteve grande investimento do governo, pois em 1974 criou-se o POLAMAZÔNIA, com o objetivo de desenvolver as atividades de pecuária, principalmente, no norte de Mato Grosso, norte de Goiás e sul do Pará, em áreas de cerrado, cerradão e mata fina, possibilitando aumentar o rebanho da Amazônia para 5.000.000 de cabeças até o final da década de 1970. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o programa levou em consideração dois pontos estratégicos, ―sua adequada

277SORJ, Bernardo. Estado e Classes Sociais... p. 109.

150 localização no espaço amazônico e a crescente tecnificação do setor‖278. Dessa forma, tornou-se interessante para bancos, empresas automobilísticas, mineradoras, empresas de construção civil e transportadoras do Centro-Sul investirem na criação de gado na Amazônia, através dos subsídios do Governo Federal. No Centro-Oeste entre os anos de 1970 a 1980 houve um crescimento das áreas dos empreendimentos agropecuários de 44,9%, com o aumento de 16.008.922 cabeças na pecuária bovina para corte279. A SUDAM passou a dar apoio econômico e incentivos ficais para as grandes empresas que tinham o interesse de ampliar os seus negócios no espaço rural. Esta política fez com que praticamente o governo doasse recursos públicos aos empreendedores que quisessem se dedicar à atividade agropecuária na Amazônia, e, concomitantemente, o Estado aumentou seu poder repressivo no campo com o intuito de garantir a implantação dos empreendimentos econômicos criados com seu apoio. A rentabilidade econômica oferecida pelo governo ditatorial para as empresas que desejassem investir em atividades na Amazônia mudou a lógica de se adquirir terras naquele espaço. Antes, esperava-se que os posseiros fizessem a ocupação da terra e a desbravassem, logo após vinham as grandes empresas que compravam um pedaço de terra, frequentemente se apropriando de outros à sua volta. No entanto, com o advento das políticas públicas em benefício do capitalismo no campo, os empresários passaram a expulsar simultaneamente os índios e posseiros das terras, como fez a FRENOVA com os Tapirapé e os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte. Esses fatos demonstram que na Amazônia o poder público se tornou uma simples extensão do poder privado. Para aferir isso, basta que levemos em consideração que uma ação de despejo que em tese deveria estar sob a

278O Estado de S. Paulo, de 26 jan. 1974, apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979B, p. 225. 279HESPANHOL, Antônio Nivaldo; TEIXEIRA, Jodenir Calixto. A Região Centro-Oeste no contexto das mudanças agrícolas ocorridas no período pós-1960. Revista Eletrônica da Associação dos Géografos Brasileiros, Três Lagoas/MS, v.1, nº3, p. 52-65, mai. 2006, p. 58.

151 responsabilidade de um oficial de justiça, muitas vezes era efetuada por jagunços das empresas. De acordo, com Martins280 as políticas de ocupação do governo ditatorial fizeram aflorar na Amazônia três tipos de violências distintas; inicialmente, a violência física do policial e do pistoleiro contra o posseiro e o peão, para o estabelecimento da estrutura privada em detrimento da ordem pública. Em segundo, a violência da justiça, desacreditada pela execução de sentenças de despejos por jagunços, uma política pautada na expropriação territorial em benefício dos interesses da empresa privada em prejuízo dos direitos dos índios e posseiros. Em por último, a violência direta realizada pelo Poder Executivo, através da ação militar e policial nos problemas fundiários. Sobre os tipos de violência na Amazônia, os relatos de Dom Pedro Casaldáliga são elucidativos:

Chegaram um general, o CORONEL RAMALHO – a quem Deus perdoe! -, quatro caminhões do Exército e dois jipes. Soldados, armas, munições. Vêm procurar terroristas, vêm fazer ‗pesquisas‘?! O coronel interpelou a vários [sic] de nossa casa em termos grosseiros, idiotas. A mim, por exemplo: ‗Se ouvi falar em Rio de Janeiro‘, ‗se estou assustado‘, ‗se gosto do exército‘... [...] Eles fazem força para dizer e mostrar que estão aqui para ajudar, para fazer umas leves pesquisas. Sabemos que na realidade estão buscando fantasmas: terroristas, guerrilheiros, subversivos. E que toda área está sendo ‗enquadrada‘ no férreo esquema da ‗Segurança Nacional‘. [...] O exército, como supúnhamos, veio efetivamente em exercício antiguerrilha. E o capitão João Evangelista, cínico e vendido, aproveitou a situação para novamente fazer intrigas contra mim, no que se refere ao conflito posseiros-fundiários.281

Os advogados da Prelazia de São Félix do Araguaia que recorriam à justiça para a aplicação do Decreto 70.430 de 1972, bem como afim do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores rurais pelo Estatuto da Terra, eram taxados de comunistas e subversivos pelo Conselho de Segurança Nacional. Como podemos observar, mesmo com o respaldo de leis que em tese deveriam

280MARTINS, José de Souza. A militarização... 281CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 67-68.

152 conter as tensões sociais no campo. Conforme o documento acima, verificamos que a luta pela terra em Porto Alegre do Norte se dava na esfera privada tendo como auxiliar o poder do Estado com a atuação da polícia local em prol dos interesses da FRENOVA. Este fato é caracterizado por Martins como a ―militarização da questão agrária‖, ou seja, esta é entendida como uma atitude de violência, uma vez que ―a interferência direta do Poder Executivo, através da ação militar e policial, na questão fundiária, mediante o alijamento da justiça no processo decisório, o alijamento das entidades de representação de classe dos interessados, como o sindicato e o partido político‖282. Desse modo, o ato de se privilegiar os interesses de uma empresa privada em detrimento dos direitos de posseiros denota uma política de expropriação territorial estruturada no princípio de dominação que entrelaçam o público e o privado, desconsiderando a legislação existente e utilizando da violência para instituir o poder. Tavares dos Santos nos mostra que ―a luta pela terra, a violência política e costumeira dos proprietários fundiários e a seletividade do Estado nos conflitos agrários, indicam a continuidade do processo de dilaceramento da cidadania no campo‖283. Desse modo, temos atrelada aos conflitos no campo uma condição social de limitada cidadania e a imperante violência como prática social corriqueira, a qual segundo o mesmo autor ―atinge mais a algumas classes sociais do que outras, algumas raças mais do que outras, e as mulheres e os homossexuais mais do que os homens‖284. A violência no campo não se restringe apenas a expulsar os posseiros das suas terras, mas principalmente, reprime os movimentos sociais e as manifestações políticas dos trabalhadores rurais, por esse motivo assassina os homens e mulheres em idade de trabalhar para dificultar o trabalho familiar285.

282MARTINS, José de Souza. A militarização... p. 59. 283TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil: agentes sociais, lutas pela terra e reforma agrária. Pontificia Universidad Javeriana. Seminario Internacional, Bogotá, Colômbia. Ago. 2000, p. 1. 284Ibidem, p. 2. 285ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação...

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De acordo com Tavares dos Santos286, os processos de exclusão social e econômica, introduzem o uso da violência como preceito social exclusivo de diversos grupos da sociedade, presentes em várias dimensões da violência social e política. As diversas formas de violências existentes configuram-se como um processo de dilaceramento da cidadania, e conforme o mesmo autor, a prática da violência em áreas de fronteira, geralmente orientada por mandantes e executadas individualmente ou por milícias privadas é caracterizada como violência política, a qual em muitos casos consiste no extermínio físico dos opositores nos conflitos agrários, assim como na perspectiva ostensiva dos assassinatos, sem a penalização dos mandantes e executores287. Sob essa ótica, o documento abaixo é elucidativo:

Eu, abaixo assinado, BENEVENUTO GONÇALVES NETO, declaro para os devidos fins que no dia 12 (doze) de novembro do corrente ano, fui violentamente agredido no Patrimônio de Porto Alegre, Estado do Mato Grosso, por um senhor que se apresentou perante o povo desse lugar como sendo CAPITÃO AILSON, DO EXÉRCITO BRASILEIRO. Na reunião que fez com o povo disse: ―Não adoto a Policia [sic] do Estado de Mato Grosso, eu sou da Policia Federal e tenho 3 estrelas‖. Afirmou que era da Policia Federal e armado com uma arma que pertence ao senhor José Bens, empreiteiro geral da Fazenda FRENOVA, - por varias [sic] vezes ameaçou-me, dizendo que dispararia em caso de eu reagir. Disse ao piloto que o transportou: ―Vigie estes dois homens e se eles correrem, você atire‖, entregando em seguida um revolver [sic] calibre 38 nas mãos do Moacir Ferreira (Pilôto). Junto comigo levou prêso [sic] um outro peão que trabalha comigo na FRENOVA. O nome desse peão é Dorileo, tem por apelido, Cabore. Nos [sic] dois fomos muito humilhados e ameaçados. Atesto que lá na Sede da FRENOVA, este ―Capitão Ailson‖ disparou um tiro sob a rêde [sic] onde dormia o referido peão, obrigando-o a caminhar de um lado para o outro até de madrugada. Aterrorizou com sua violência até uma senhora grávida.288

Na medida em que os investimentos econômicos no campo deviam ser assegurados é que a violência contra os trabalhadores rurais se tornou legítima

286TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Novos processos sociais globais e violência. Perspectiva, São Paulo, v. 13, nº. 3, p. 18-23, jul./set. 1999. 287TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada... p. 136. 288Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.07, 1972, p. 1.

154 para que estes não colocassem em risco os empreendimentos agropecuários. O Estado que deveria garantir a segurança dos cidadãos, aparece em Porto Alegre do Norte através do excesso de poder que decide sobre o direito à vida daquelas pessoas. A violência empregada de forma racionalizada e burocratizada pelo governo militar se impõe por meio da coerção social para o controle dos lavradores, cerceando os seus direitos e contribuindo, assim, para a manutenção das estruturas produtivas em detrimento da economia de subsistência dos lavradores. A constituição de milícias privadas, juntamente com o poder legal se tornou uma prática comum na Amazônia, sendo importante considerar que o capitão Ailson delegou a um civil (Moacir Ferreira – Piloto da FRENOVA), que este poderia atentar contra a vida dos trabalhadores apreendidos na agropecuária, denotando assim, o uso da violência ilegítima para justificar a preservação dos projetos econômicos no espaço rural. Este fato entra em contradição com a constatação de Tavares dos Santos de que ―a polícia tem sua positividade no favorecer tanto do vigor do Estado, quanto a vida dos cidadãos‖289. Em Porto Alegre do Norte, o Estado não se preocupava em preservar as mínimas condições de vida daquela população, pois estas pessoas eram tidas como empecilhos para o desenvolvimento do capitalismo no campo. A violência no Araguaia é aqui caracterizada como um dispositivo de poder para garantir o exercício da dominação. Porém, esta deveria ser usada em última instância para obter os fins esperados, ou seja, a força só poderia ser empregada para a manutenção da segurança do cidadão e para a vigência do Estado. Entretanto, os posseiros eram vistos como executores de uma agricultura atrasada e irracional, bem como tachados de invasores, desordeiros, aproveitadores, entre outros termos. Ao afirmar que eles haviam invadido terras privadas, criava-se a justificativa para toda a forma de violência utilizada contra os mesmos, isto é, os culparam de se apossarem de bens alheios e, por conta disso, muitas vezes, tiveram suas vidas ceifadas.

289TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor... p. 158.

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Para demonstrar que a área da Prelazia de São Félix do Araguaia estava tomada por guerrilheiros, e que a mesma deveria estar sob constante segurança com a finalidade de garantir o seu desenvolvimento econômico, o capitão Ailson Loper em meio a uma reunião com os posseiros de Porto Alegre do Norte apontou três possíveis suspeitos e partiu na captura desses elementos alegando que um deles era um guerrilheiro, o qual tinha assassinado um colega tenente. O militar chamou o padre Eugênio para ir em busca dos acusados, mas o religioso se recusou e logo após voltou dizendo não os ter alcançado. Armado no meio da rua, ele disse ao povo que entregasse as armas imediatamente. Assim, durante esta encenação, ―o povo ficou indecentemente coagido, sentia-se oprimido de repente sem saber porque, pois, nem entendem de guerrilha e guerrilheiros. As armas foram chegando. O capitão disse que as levaria para a sede da Frenova e depois devolveria‖290. O palco estava montado e os três supostos guerrilheiros foram capturados e levados para o avião da agropecuária, sendo vigiados sob ameaça de um revólver pelo piloto Moacir com a autorização do capitão Ailson Loper de atirar caso estes reagissem. Entretanto, os três suspeitos eram empregados da FRENOVA, demonstrando que toda essa representação foi elaborada pelo militar juntamente com os empregados da agropecuária para tentar convencer os trabalhadores rurais sobre a presença de ameaça subversiva na região, bem como legitimar o uso excessivo da violência naquele espaço. O religioso Eugênio Consoli, juntamente com os posseiros João da Ponte291, acusado de ter ajudado a cortar a cerca da FRENOVA no povoado de Porto Alegre do Norte, em companhia de outros dois vizinhos, Zequinha e Alexandre, foram levados para a sede da agropecuária, onde todos passaram a ser interrogados em um quarto fechado, pois eram considerados suspeitos de subversão. Assim, foram questionados sobre quem instigava o povo a se revoltar,

290Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.28, 1972, p. 1. 291A alcunha advém do fato deste posseiro morar próximo a uma ponte. João da Ponte é o segundo apelido de João Sousa Lima também conhecido como João da Angélica. O documento da Prelazia de São Félix do Araguaia trouxe o nome João da Ponte, então resolvemos mantê-lo conforme a descrição do mesmo.

156 e sobre uma possível participação do padre Consoli nesses atos. Este último já havia se pronunciado sobre essa acusação e afirmado que ninguém persuadia a população local a se rebelar, esta apenas queria se libertar da opressão da FRENOVA. O posseiro João da Ponte foi humilhado ao máximo para confessar em que lugar estava a trincheira e os insufladores dos lavradores, caso não revelasse o padre Eugênio seria levado preso. O capitão Loper convidou o trabalhador rural para um duelo oferecendo-lhe um revólver calibre 38 carregado o qual foi negado. O militar jogou a arma no chão e pediu que o empreiteiro José Bens a quebrasse junto com as armas apreendidas dos posseiros. Ainda sobre este episódio, Consoli descreve que ―O capitão, a cada momento, me olhava e dizia: Eugênio, você está vendo, não está tendo coação moral com vocês e vocês desde que chegaram aqui estão sendo tratados muito bem‖292. De acordo com Yves Michaud293, a prática da tortura não se destina apenas a colher informações, ela também deve humilhar, fazer mal e quebrar as vítimas. A violência empregada contra o padre Eugênio decorre de uma administração do terror alicerçada não apenas em uma carnificina, pois o capitão Loper o induz a uma chantagem psicológica afirmando que o mesmo foi muito bem tratado e não sofreu nenhum tipo de coação moral. Como Eugênio Consoli poderia contrariar tal fala? Após presenciar toda uma farsa acerca da existência de guerrilheiros em Porto Alegre do Norte, assim como testemunhar a tortura e as humilhações que passou o posseiro João da Ponte. Contradizer as afirmações do militar seria provavelmente assinar a sua sentença de morte, pois ainda, conforme Michaud294, o terrorismo de Estado pratica em escala mundial a despolitização da vida. Neste sentido, o relato de João Souza Lima pode ser esclarecedor:

Uma vez eles vieram, o avião tinha baixado e o velho Plínio tinha dito que vieram buscar eu, o Alexandre, o Zeca e o padre Eugênio, pois era para levar as armas para registrar. Nos pegaram e colocaram no avião e levaram para a FRENOVA.

292Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.28, 1972, p. 2. 293MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989, p. 57. 294Ibidem, p. 58.

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Quando foi a tarde vieram trazer o finado Alexandre e o Zeca. Eu fiquei com o padre Eugênio passando a noite nos ameaçando. Quando foi de manhã quebraram as armas. Nós não fomos mais ameaçados. Eles só diziam: Zé amanhã eu vou comer o fígado daquele boi preto assado, e o outro dizia: eu quero daquele branco, que era o padre. Aí eu chamei o padre, meu amigo eu não disse para você como era? Eu dei muito conselho para você. Porque ele era meio novato. Ele ficava com medo, aí eu falava assim para ele. Os outros revólveres foram todos quebrados, mas o dele não. Eu falei: olha, eles vão entrar aqui amanhã cedo, chamava de capitão Ailson que era chefe dos pistoleiros, e não tinha nada a ver com capitão. Ele vai entrar aqui e abrir a porta para pegar a gente. Na hora que ele abrir a porta, eu fico de cá e você de lá, na hora que ele colocar a cara eu atiro nele, você toma a carabina velha. Aqui você tem que virar bandido também, padre Eugênio. Não pensa na batina não. Pensa na carabina. Só que era o que nós queríamos, mas Deus foi tão bom que não precisou.295

A narrativa acima, nos faz perceber que ocorre uma desordenada monopolização da violência para se obter a submissão e aceitação da desapropriação ou invasão das terras dos posseiros, ou seja, os espaços não pacificados, conforme César Barreira296 dão lugar às práticas radicais de resolução dos conflitos, assim os problemas agrários são solucionados por meio da agressão física não mediadas pelo poder judicial ou negociadas. Na fronteira amazônica inexiste uma dimensão entre o espaço público e o privado, pois é comum entre aquelas instâncias o emprego da violência para resolver questões interpessoais ou com a finalidade de preservar o poder. No contexto da luta pela terra a violência surge como, contraposição de negociações e acordos, demonstrando que as antigas práticas da manutenção da propriedade pelo mando e dominação, como por exemplo, dos coronéis da República Velha, floresce em novas circunstâncias sociopolíticas, como durante a ditadura militar e que ainda estão presentes na realidade do campo brasileiro. O uso de milícias privadas e pistoleiros foi naturalizado no espaço rural como meios

295João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte. 296BARREIRA, César. Massacres: monopólios difusos da violência. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 57/58, p. 169-186, jun/nov. 2000.

158 legais para se manter as terras limpas de invasores. Quando as empresas falavam em limpar a área da presença dos posseiros, estava caracterizando-os como invasores que deveriam ser despejados daquelas terras. Estas ações se tornaram um símbolo da violência no campo como elemento imprescindível na instauração de um novo modelo econômico na Amazônia e aos poucos, da tomada do poder político local, estadual e mesmo do estabelecimento de redes de influências junto às esferas de poder nacional. A repressão em Porto Alegre do Norte se deu à revelia do Estado de Direito, ou na ilegalidade.

2.6 A intensificação da exclusão social através da violência

Em maio de 1971, os funcionários da FRENOVA, acompanhados pelo Sargento Abdias da Polícia Militar de Mato Grosso, fardado e armado, passaram pelos quintais, casas e ruas uma cerca de arame farpado no povoado de Porto Alegre do Norte. O militar também intimou os posseiros, submetendo-os a interrogatórios e ameaçando-os de morte297. No espaço rural amazônico, jagunços e pistoleiros se confundem em meio à polícia local, nos casos de averiguação policial em relação às denúncias do patronato rural das atitudes contestatórias dos posseiros contra a tomada das suas terras. Desse modo, tanto os seguranças particulares da empresa como a polícia local se classificam como defensores e representantes da ordem, os quais se restringiam a preservação e manutenção do patrimônio particular, estabelecendo assim, um perfeito acordo entre ambas as partes na defesa dos bens privados. Neste sentido, a ―Violência e ameaça se apoiam mutuamente: trata-se de manifestar suas intenções e de afirmar ao adversário a credibilidade delas‖298, ou seja, a presença destes dois grupos em meio aos conflitos por terras demonstra que o monopólio da violência possui legalidade ao ser exercido para a resolução

297Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.24, 1972, p. 5. 298MICHAUD, Yves. A violência... p. 60.

159 dos problemas agrários. Sob essa lógica as atitudes violentas ou ameaças poderão ser cumpridas, caso os trabalhadores rurais não acatem os comandos desses agentes. Além destes atos de violência serem justificados em prol dos empreendimentos rurais, estas atitudes decorrem de pessoas que estão apenas cumprindo ordens, conforme o documento a seguir:

A esposa do conhecido valentão empregado da FRENOVA, ―Cícero Costeleta‖ disse aos moradores do povoado: ―Vocês os posseiros têm raiva do Zé Bens, mas quem manda ele fazer o que faz é o Dr. Meirelles. Toda vez que o Meirelles chega à fazenda ele pergunta para o Zé Bens: Esse povo de Porto Alegre ainda está aí? Você dê um jeito para tirar daí esse povo‖.299

A justificativa do uso da violência estabelecida no espaço rural tem em si regras sociais e fundamentos básicos da moral que não se respaldam na oposição de se evitar tais ações. Este fato relaciona-se, por exemplo, ao caso exposto por Hannah Arendt300 sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um oficial do exército alemão designado ao aniquilamento dos judeus daquele Estado. Arendt demonstra que Eichmann não apresentava características antissemitas com caráter destorcido ou doentio. Seu trabalho tinha como propósito prosperar na carreira militar e as suas atitudes decorreram do cumprimento de ordens superiores, ou seja, seus atos eram realizados sem a racionalização das suas consequências. Entretanto, a conduta de Eichmann, não era passível de absolvição e nem sequer ele era inocente, mas estes procedimentos não foram executados por um indivíduo dotado de enorme propensão a perversidade, e sim por um funcionário burocrata inserido no interior de um sistema fundamentado em práticas de extermínio. Ao analisar o trabalho de Adolf Eichmann, a filósofa Hannah Arendt elaborou a expressão ―Banalidade do Mal‖ para assinalar que alguns sujeitos

299Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.21, 1972, p. 2. 300ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia da Letras, 1999.

160 atuam de acordo com as normas da instituição que estão vinculados sem problematizar os seus comportamentos, não se preocupando com as suas sequelas, e sim com o cumprimento das ordens. Neste sentido, podemos relacionar este episódio com o trabalho dos jagunços e pistoleiros, os quais conforme a documentação acima, apenas executam suas tarefas de acordo com que lhes era ordenado por João Carlos de Souza Meirelles, diretor da FRENOVA sem se questionarem sobre as suas ações. Diante deste contexto, é importante destacarmos que o totalitarismo possui outras formas de violência, como, por exemplo, os campos de trabalho forçado e extermínio em massa, enquanto a repressão ditatorial se deu por meio de prisões, torturas e assassinatos. Todavia, a ―Banalidade do Mal‖ esteve presente em ambas as situações com delineamentos mais expressivos no caso do nazismo, mas a ditatura civil-militar deixou as suas marcas na América Latina sendo válida a comparação no que diz respeito ao uso da violência para a manutenção dos interesses do Estado. Ao legitimar a concentração da terra para os grupos econômicos que passaram a se instalar na Amazônia a partir da década de 1970, o governo militar consentiu que esta elite agrária impossibilitasse as lutas pela ―desconcentração da terra‖. Este fato como podemos notar em Porto Alegre do Norte, contribuiu para a intensidade dos conflitos e assassinato dos trabalhadores para assegurar a ampliação do latifúndio, bem como acentuar as desigualdades sociais e econômicas. A modernização do campo colaborou na ampliação da exclusão social, pois os trabalhadores rurais eram rejeitados e até mesmo intolerados, ao passo que os latifundiários tinham resistência em reconhecer nestes agentes os direitos que lhes eram próprios. Este fato dialoga com o conceito de ―nova exclusão‖ cunhado por Elimar Nascimento301, o qual aponta que não-reconhecimento vai além da negação ou recusa dos direitos, uma vez que ao não serem reconhecidos como

301NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Hipóteses Sobre a Nova Exclusão: dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários. Cad. CRH. Salvador, nº 21, p. 29-47, jul./dez. 1994, p. 32.

161 semelhantes têm-se a propensão de caracterizá-los como objetos suscetíveis de extermínio dos espaços sociais. Quanto ao uso atual do conceito ―exclusão‖, Elimar Nascimento, distingue dois traços característicos: o primeiro se relaciona com o chamado desemprego estrutural e reporta-nos aos ―excluídos‖ que se tornaram desnecessários economicamente; o segundo traço diz respeito aos ―excluídos‖ desnecessários não apenas econômico, mas, sobretudo, socialmente: mais do que isso, tornaram-se ―socialmente ameaçantes e, por isso, passíveis de serem eliminados‖302. A sociedade capitalista ―tem como lógica própria tudo desenraizar e a todos excluir porque tudo deve ser lançado no mercado‖303. Ela desenraiza e exclui para depois incluir segundo as suas próprias regras. É justamente aqui que reside o problema: nessa inclusão precária, marginal e instável. O período de passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão implica certa degradação e, segundo Martins, a sociedade moderna vem criando uma grande massa de população sobrante que tem poucas chances de ser novamente incluída nos padrões atuais de desenvolvimento, ou seja, o período de passagem entre exclusão e inclusão que deveria ser transitório, vem se transformando num modo de vida permanente e criando uma sociedade paralela que é includente do ponto de vista econômico e excludente do ponto de vista social, moral e até político. ―É um modo de vida dominado pela concepção de não pertencimento‖304. Ambos os autores citados veem a exclusão como fruto do processo de modernização da sociedade capitalista. A mecanização das indústrias e do campo provocaram alto índice de desemprego e a aceitação de formas degradantes de trabalho tornando estes agentes ―desnecessários economicamente‖. Este fato pode

302Ibidem, p.36. 303MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 120. 304Ibidem, p. 148.

162 ser evidenciado nos relatos de trabalho análogo ao de escravo na FRENOVA305, é claro que esse aspecto não é objeto primordial de análise desta tese, mas iremos citá-los como mais um exemplo das atrocidades cometidas pela empresa em Porto Alegre do Norte. A sociedade contemporânea impõe aos chamados excluídos formas humilhantes de inclusão, na qual a pessoa se degrada e o seu trabalho perde o valor, para que esta possa se inserir na sociedade. Logo, uma das consequências dessa inclusão, sobretudo no Brasil, está na propagação do trabalho escravo, ou seja, a inserção degradante do ser humano para a ampliação do capital. Entretanto, estes trabalhadores migrantes conhecidos como peões só estavam inseridos na primeira fase da instalação e abertura da fazenda por meio das atividades de desmatamento, construção de cercas e limpeza da juquira306, após esta etapa, os peões juntamente com os posseiros eram tidos como desnecessários economicamente, assim discriminados socialmente e caracterizados como ameaçadores aos projetos e empreendimentos do campo, tendo desse modo, justificada a eliminação destes grupos do espaço rural. Nascimento307 demonstra que a nova exclusão social resulta da transformação do ―incluído incômodo‖, ou seja, o pobre que alcançou o estatuto de eleitor, no ―excluído perigoso‖, irrelevante de acordo com a perspectiva econômica, e, ameaçador, sob a ótica social, isto é, desnecessários para o êxito do capitalismo no campo. Neste sentido, tanto os peões como os posseiros podem ser caracterizados como os novos excluídos que é uma categoria social que se torna economicamente dispensável, politicamente inconveniente e socialmente hostil, justificando o seu extermínio físico.

305Para aprofundamento na questão, ver: CASTRAVECHI, Luciene A. Correntes do Araguaia: A exploração de trabalhadores migrantes no Nordeste de Mato Grosso durante a década de 1970. Dissertação (Mestrado em História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012. 306Brotação das árvores e arbustos cortados. Em geral há predominância de uma espécie – Palmeiras, Babaçu ou Embaúba. 307NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Hipóteses Sobre a Nova Exclusão: dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários. Cad. CRH. Salvador, nº 21, p. 29-47, jul./dez. 1994, p. 44.

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A propagação dos conflitos em Porto Alegre do Norte gerou a violação dos direitos humanos, a desigualdade social rural e a exclusão social reproduzidas pela violência através da conivência do Estado que fechou os olhos para os abusos da FRENOVA naquela espacialidade. Esta atitude colaborou com aquele grupo empresarial para a imposição dos seus projetos em áreas ocupadas por trabalhadores rurais, bem como no favorecimento de garantias para o acesso ao mercado de capitais, acarretando assim, o descumprimento dos direitos essenciais daqueles indivíduos. Em relação à propagação da violência no campo é importante salientar que esta possui três grandes características, segundo José dos Reis Santos Filho:

1. violência física: manifesta nos atos de grilagem, expulsão, tortura, assassinato, queima de casas, destruição de roças, cercas, instrumentos de trabalho, etc.; 2. violência judicial: localizável no enfrentamento com uma justiça comprometida com interesses econômicos e governamentais; 3. violência governamental: perceptível nos atos de governos em níveis municipal, estadual e federal. É uma interferência que tem como objetivo enfraquecer a organização dos trabalhadores, desmoralizá-los e impedir que seus direitos sejam atendidos.308

Desejamos assinalar nesta tese que o estabelecimento da FRENOVA no nordeste de Mato Grosso possibilitou o emprego da ―violência física, judicial e governamental‖309 com um nítido caráter instrumental para apropriação de terras. A justiça passou a ser menos acionada e os empresários passaram a ter a posse da violência através de milícias privadas, jagunços, capangas, ―seguranças‖, vigilantes e pistoleiros. Podemos compreender a violência presente nas relações estabelecidas em Porto Alegre do Norte como um ato que não é percebido como tal, ou seja, naquele espaço reduzir o indivíduo à condição de coisa, violando-o interior e exteriormente, bem como instituir ações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural ganham um tom de naturalidade, tendo

308SANTOS FILHO, José dos Reis. Violência e projetos de vida em conflitos pela posse da terra. Estudos de Sociologia, Araraquara, v.6, n. 11, p. 145-159, jul./dez. 2001, p. 147. 309Idem.

164 em vista que estão arraigadas na sociedade brasileira. Marilena Chauí310 afirma que esta estrutura não é percebida como violenta relegando frequentemente como um fato momentâneo. Com isso, os procedimentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser percebida, e, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização conserva o mito da não-violência na sociedade brasileira. A violência está atrelada ao cotidiano do trabalhador rural assinalado pelo sentimento de medo e insegurança constante, pois afinal, a força é utilizada para manter uma dita ordem social que afeta a sobrevivência deste indivíduo no campo. É diante desse cenário que temos uma efetiva demonstração do não reconhecimento dos direitos dos trabalhadores do campo, os quais estão sujeitos a diferentes formas de subordinação que têm a repressão como uma variável mais aparente, como podemos observar no relato abaixo de Dom Pedro Casaldáliga:

A FRENOVA vem cercando toda a área rural do Patrimônio, inclusive os 3 bebedouros públicos e a única estrada do lugar. Depois de reclamar quatro vezes pela provocação da cerca que fechava os bebedouros e a estrada, os posseiros, perante testemunhas da própria fazenda, cortaram a referida cerca. Este ato demais do que legítima defesa foi aproveitado pela FRENOVA para intimar por meio da sempre conivente polícia estadual, a cinco posseiros. A ordem de intimação vinha assinada pelo capitão Moacir Couto, delegado regional da PM de Mato Grosso, sediado em Barra do Garças, sendo entregue em Porto Alegre pelo Sargento Cesar Augusto Bastos, acompanhado do escrivão de Polícia senhor João Lázaro de Carvalho e do (veterinário da fazenda) José Carlos Vieira, trazidos pelo piloto Moacir Ferreira.311

No tocante à violência no campo brasileiro, Stédile312 demonstra que esta é praticada pelos latifundiários como uma violência estrutural que marginaliza os trabalhadores do campo, submetendo-o muitas vezes, como vimos,

310CHAUÍ, Marilena. Ética e violência, 1998. Disponível em: < http://www.teoriaedebate.org.br/?q=materias/sociedade/etica-e-violencia>. Acesso em: 09 out. 2015. 311Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.24, 1972, p. 5. 312João Pedro Stédile é membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do qual também é um dos fundadores.

165 ao trabalho análogo ao de escravo, a exclusão e a desigualdade social, bem como a repressão aos posseiros que lutam por seus direitos de permanência na terra313. Dessa forma, ao constatarem a resistência dos trabalhadores contra a violência estrutural, estes agem no sentido de eliminarem as lideranças, geram o medo e o pânico com o intuito de extinguir as suas reivindicações, como também denunciam falsamente os lavradores por práticas não efetuadas, contratando pistoleiros e tendo a conivência de parte da polícia no extermínio do trabalhador rural. O nordeste de Mato Grosso, a exemplo do povoado de Porto Alegre do Norte se tornou um espaço de conflito armado em decorrência da luta pela terra entre empresários do campo e trabalhadores rurais, não apenas estes segmentos se armaram para garantir a preservação da propriedade, mas a presença da polícia estadual junto à FRENOVA, do Exército no combate à Guerrilha do Araguaia e do Comando de Repressão da Amazônia por meio da ação do Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, nos problemas agrários, de alguma maneira contribuíram para o uso da violência por parte dos proprietários da agropecuária através dos seus jagunços e pistoleiros. Estes atos dialogam com a ―violência da mentira‖, conforme Stédile314, que passa a ser acionada para justificar a repressão utilizada pelos latifundiários e pelo Estado como legítimas em benefício da manutenção da propriedade privada, assim, a violência da mentira passa ser proferida por várias vezes até que se torne uma verdade. Dessa Forma, qualificar os posseiros como invasores e guerrilheiros torna a prática violenta dos grupos empresariais justificável, ao passo que a estigmatização dos lavradores fortalece o discurso que para manter o progresso e desenvolvimento da região se faz necessário o domínio sobre grandes extensões de terras em detrimento da agricultura atrasada exercida pelos posseiros.

313STÉDILE, João Pedro. A luta pela terra no Brasil. Ervália: Ed. Página Aberta LTDA, 1996, p. 71-77. 314Ibidem, p. 80.

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A agropecuária FRENOVA que chegou na década de 1970 violou ―leis escritas e códigos morais‖ da sociedade tradicional, sobretudo no que diz respeito ao uso e posse da terra. Para os posseiros a terra é um bem de uso, não é uma mercadoria para ser vendida e comprada. Não havia necessidade de documentos para garantir o uso da terra pelas famílias e por gerações. A empresa guiada por outros princípios quebrou esse princípio ao expulsar moradores, baseando-se no pressuposto de que a terra não tinha proprietário porque não era registrada. Logo, era terra ―devoluta‖, que seria propriedade de quem a registrasse. O povoado de Porto Alegre do Norte estava dividido entre os interesses dos sócios da FRENOVA, pistoleiros e policiais estaduais e federais contra os trabalhadores rurais na luta pela terra. Os espaços públicos passaram por uma privatização por parte dos empresários através de uma organização efetiva da violência contra os posseiros. Para a concretização das práticas repressivas surtirem efeito contra os lavradores, a polícia foi contratada para efetuar expulsões, assassinatos, intimidações e executar intimações oficiais na área da agropecuária, de acordo com a narrativa de Dom Pedro Casaldáliga:

Os dias que se seguiram foram de constantes ameaças, de pressão e terror por parte da FRENOVA sobre o povo de Porto Alegre. Novamente foram intimados a comparecer na sede da fazenda o Pe. Eugênio e o posseiro Alexandre, que se negaram a intimação; e em sinal de represália, o avião do Capitão [Ailson Loper] sobrevoou várias vezes em vôo rasante o povoado.315

Barreira316 demonstra que no final do século XIX e início do XX, o uso de milícias privadas, de policiais locais, de jagunços e de pistoleiros, poderia ser explicado pela ausência ou fragilidade de um poder judicial. Entretanto, na segunda metade do século XX este ato tornou-se desnecessário e injustificável, tendo em vista o aparato militar que o Brasil passou a dispor. Portanto, o uso da

315Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.21, 1972, p. 4-5. 316BARREIRA, César. Massacres... p. 169.

167 violência por parte dos grandes proprietários de terras não é consequência apenas de um Estado inoperante, mas também em decorrência da imposição de um poder paralelo que existe de forma simultânea no presente com vistas de atitudes do passado, em meio ao desenvolvimento e ao atraso de práticas retrógradas para instituir o exercício da dominação. É importante observamos na narrativa acima que espaços privados, como a agropecuária FRENOVA, passavam a ser locais de função pública à medida que os interrogatórios do padre Eugênio Consoli e do posseiro Alexandre Quirino iriam ocorrer na sua propriedade, configurando, desse modo, a interpenetração entre o público e o privado nas áreas de fronteira na Amazônia. Também é significativo percebermos que uma ação oficial, a qual deveria ocorrer em uma delegacia (espaço público) foi direcionada para uma propriedade privada que está em litígio com os moradores locais. Digamos que este fato já demonstra a imposição de poder por parte da FRENOVA, que além de deter um grande prestígio econômico, igualmente possuía importância política, evidenciando o seu poder intimidatório ao ter a polícia estadual e federal à sua disposição na resolução dos problemas de terras. Por que estes indivíduos não puderam ser interrogados nos seus espaços de sociabilidade que lhes conferiam identidade e pertencimento, tais quais: a Igreja, o centro comunitário ou a escola? O fato de serem intimados a comparecerem na FRENOVA para possíveis esclarecimentos impõe intimidação e coerção, isto é, se deslocar até o território dos seus opositores e encontrar naquele ambiente grupos armados tanto da polícia quanto dos seguranças particulares da fazenda, impõe a estes agentes o medo e a recusa em cumprir com a intimação. Desde a instalação da FRENOVA em 1970 até o ano de 1972, constatamos neste capítulo algumas formas de violência contra a população do povoado de Porto Alegre:  A tentativa de negação dos direitos sobre suas posses ocupadas há cerca de 30 anos, sendo estas terras trabalhadas por meio da agricultura

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de subsistência por famílias de migrantes provenientes em sua maioria das regiões Norte e Nordeste do Brasil;  A limitação sobre o direito de ir e vir, provocada pela construção de cercas de arame farpado sobre os espaços comunitários dos trabalhadores rurais, dificultando assim, o uso do bebedouro público do gado, o acesso à ―mata de reserva‖, espaço para retirada de madeira, barro, palha de coco etc.;  O não cumprimento do Decreto 70.430 de 1972 que estabelece a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito;  Persistentes e consecutivas ―intimações policiais‖, dissimuladamente produzidas com o objetivo de atemorizar os posseiros e religiosos em relação a uma possível prisão ou sofrer atentados violentos. Com base nos fatos acima, este capítulo procurou demonstrar que os conflitos por terra assumiram maiores dimensões em Porto Alegre do Norte a partir da década de 1970 e, por conseguinte, em decorrência dos investimentos de capital estimulados pelo Estado com o intuito de ampliar as relações capitalistas de produção no campo através dos projetos agropecuários. Por meio dessa política pública, a terra passou por um acentuado processo de valorização, sobretudo no que diz respeito às aplicações de créditos para o desenvolvimento da criação de gado. Neste contexto os conflitos por terra se tornaram inevitáveis, pois os proprietários buscavam formas de valorizar ou obter novas terras, e até pessoas e empresários que atuavam em outros ramos, a exemplo dos sócios da FRENOVA – comerciantes do setor de tapetes e donos de Cartório no estado de São Paulo, pretendiam nas aquisições de terras a oportunidade de terem acesso aos abundantes empréstimos financiados a juros baixos pelo governo. Diante deste cenário, o modo de vida dos posseiros foi visto como atrasado, não civilizado, não desenvolvido, por ter sido ‗medido‘ com a régua do

169 desenvolvimento, da civilização ocidental, no caso brasileiro, ‗litorânea‘, que sempre desdenhou o ‗sertão‘, no final das contas, reproduzindo sobre essa fronteira a visão da qual é vítima quando o europeu olha para o Brasil; sendo estes passíveis de eliminação no espaço rural. A agropecuária FRENOVA passou a representar a proposta de desenvolvimento imprescindível para a expansão capitalista na Amazônia, em contraposição ao modo de vida dos trabalhadores rurais baseado na produção para a subsistência, em que o excedente era vendido ou trocado na região. As práticas dos posseiros passaram a ser ameaçadas, e estes por medo ou até mesmo por um mecanismo de resistência à tomada das suas terras através da repressão, venderam as suas benfeitorias para a fazenda, migraram para outros lugares ou se proletarizaram. Já os que permaneceram em suas posses lutaram contra a ocupação ―legal‖ ou ilegal317 das suas áreas. Nesse processo é válido destacar a conivência do Estado em legitimar o uso da violência em prol dos anseios econômicos em detrimento destes agentes marginalizados pela exclusão e desigualdade social, como também pela negação dos seus direitos fundamentais enquanto cidadãos.

317Como, por exemplo, a ação de grileiros, principalmente do senhor Lucio da Luz, ―fundador de Luciara‖ e grande criador de gado da região.

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3. A REPRESSÃO MILITAR COMO RESPOSTA AOS CONFLITOS DE TERRA

Como resposta aos conflitos de terra desencadeados na área de jurisdição da Prelazia de São Félix do Araguaia, em fins da década de 1960 e início de 1970, têm-se os maiores enfrentamentos: a CODEARA contra os posseiros de Santa Terezinha e a FRENOVA contra os posseiros de Porto Alegre do Norte; no ano 1973 ocorreu uma forte e violenta intervenção militar na região que culminou no sequestro, prisão e torturas de alguns agentes de pastorais e religiosos, sendo estas ocorrências censuradas pela imprensa brasileira. No Relatório final da Comissão Camponesa do Campo, Antônio Canuto318 alega que a operação foi dirigida pelo Secretário de Segurança do Estado, juntamente com a Polícia Militar, agentes do Exército, da Marinha, da Aeronáutica da Polícia Federal. Os agentes de pastorais e religiosos foram acusados de incitarem os posseiros a lutarem contra a instalação das empresas agropecuárias na região, pois estes não tinham capacidade para organizarem tais atos de resistências, sendo influenciados pelos mentores intelectuais ligados a Prelazia de São Félix do Araguaia. A título de compreensão do leitor sobre estes acontecimentos, iremos descrever brevemente os conflitos de terra em Santa Terezinha319 que contribuíram para a intervenção militar no Araguaia, sendo válido assinalar que este município não faz parte do nosso recorte espacial, mas juntamente com Porto Alegre do Norte desencadeou lutas pela terra no mesmo período, como vimos no capítulo dois desta tese.

318CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças a posseiros pela Codeara. In: BRASIL. Comissão Camponesa da Verdade. Relatório Final Violações de Direitos no Campo – 1946 a 1988. Brasília: CNV, 2014, p. 120. 319Já trabalhamos com este episódio na dissertação de Mestrado, mas para que esta memória de tortura e repressão não seja esquecida, falaremos brevemente deste fato afim de contribuir para o não silenciamento destas vítimas da ditadura civil-militar no Brasil. Além disso, iremos trazer novas análises aos relatos de tortura e acrescentar outros documentos.

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Santa Terezinha está situada no nordeste de Mato Grosso, banhada pelo rio Araguaia fazendo divisa com o estado de Tocantins. Com o estabelecimento das empresas agropecuárias no Vale do Araguaia a partir de meados da década de 1960320 têm-se uma mudança nas relações sociais da população que já habitava aquela região desde o início do século XX. Dentre elas podemos citar o povoado de Santa Terezinha, que teve parte de sua área ocupada pela agropecuária CODEARA. A CODEARA teve a área do seu projeto de 195.000ha aprovada pela SUDAM. O empreendimento se instituiu no distrito de Santa Terezinha, e tanto as casas quanto o espaço de trabalho dos agricultores foram postos sob o domínio da empresa. A agropecuária adquiriu as terras da região e mesmo ciente de que nelas havia ocupantes com direito a posse ignorou esse fato sumariamente, tendo em vista que estes estavam estabelecidos em um ponto geograficamente estratégico, próximo ao rio: única via de transporte naquela época e de fácil acesso ao porto fluvial. A empresa propôs aos ocupantes, ou seja, os posseiros, que fossem remanejados para locais mais distantes, removendo-os das suas antigas terras de trabalho. Isso deu início, em 1967, à disputa entre posseiros e a empresa, o que durou até 1972. Sobre o conflito entre a CODEARA e os posseiros, ocorrido no dia 3 de março de 1972, Esterci, o descreve da seguinte forma:

Um grupo de posseiros defrontou-se com membros da força policial de estado e empregados da CODEARA, ferindo sete componentes do grupo de policiais e empregados da empresa. O confronto se deu no lugar onde o vigário de Santa Terezinha, padre Francisco Jentel, mandara construir um ambulatório, obra contestada pela empresa que alegava não estar a mesma localizada de acordo com o plano de urbanização da futura cidade. Na ocasião, o oficial de polícia levava consigo uma

320A partir de 1968 o nordeste do estado de Mato Grosso passou por diversos conflitos violentos pela posse da terra, dentre eles podemos citar: Serra Nova Dourada (Posseiros x BORDON/S/A), Porto Alegre do Norte (Posseiros x FRENOVA), Santa Terezinha (Posseiros x CODEARA), São Félix do Araguaia (Posseiros x SUIÁ MISSÚ). Para um estudo detalhado acerca dos conflitos, consultar: Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Pasta A.17 a A.19 e CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia...

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ordem de prisão contra membros da Missão Religiosa Católica de Santa Terezinha e se dirigia ao local da obra a pretexto de averiguar um suposto depósito de armas, arsenal do movimento subversivo que, segundo denúncia do pessoal da empresa, o vigário comandava. Em conseqüência do confronto, tropas do exército ocuparam a área e praticamente todos os homens adultos do povoado tiveram que refugiar-se na mata por mais de cem dias para escapar à perseguição que então se fez. A ―briga do ambulatório‖ como ficou conhecido o episódio, foi a culminância de uma série de disputas que vinham sendo travadas entre posseiros e empresas desde 1967, quando esta viera a implantar-se nas terras de Santa Terezinha.321

O conflito gerado a partir da instalação da empresa nas terras de antigos posseiros fez aflorar uma violência acentuada naquela localidade. Uma vez que, a forma pela qual a agropecuária se apropriou daquelas terras impediu que os posseiros pudessem desenvolver sua agricultura de subsistência, sua caça e pesca, ou seja, a empresa inviabilizou o modo de vida que já vinha sendo realizado há anos, na medida em que empregou a violência contra essas pessoas e suas posses. A Igreja Católica já vinha efetuando trabalhos naquela região desde a década de 1950 com a presença das Irmãzinhas de Jesus322. Em 1954 chegou ao Araguaia o Padre Francisco Jentel, que viveu junto aos povos Tapirapé por dez anos; a presença desses missionários foi de fundamental importância para o aumento e proteção daqueles povos, bem como a (re)conquista de suas terras:

A vinda providencial das Irmãzinhas de Jesus e do Padre François Jentel à Aldeia Nova é que salvou os Tapirapé da desorganização total e provavelmente extinção. Nem o missionário nem as freiras operaram milagre. Contudo, a intervenção das irmãzinhas, persuadindo os Tapirapé a abandonar a prática do infanticídio, foi crucial. No mais, tanto o padre como as irmãs tentaram interferir o mínimo possível na vida Tapirapé. [...] Nunca soube que estes missionários tentassem converter os índios. [...] Nos anos 60, o Padre François realizou inúmeras viagens à Brasília, onde tentou obter

321ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 3. 322Sobre o trabalho das Irmãzinhas de Jesus junto ao povo Tapirapé, ver: Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, 2002.

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com o SPI e, depois, com FUNAI, a demarcação das terras dos Tapirapé.323

A pedido de Tomás Balduíno, pároco de Conceição do Araguaia, em 1964 o padre Francisco Jentel foi morar em Santa Terezinha para trabalhar com os posseiros. Junto com a população local, construiu um ambulatório médico e uma escola para as crianças do povoado. A partir da intervenção do padre Jentel como mediador dos interesses do grupo de posseiros na luta pela terra em Santa Terezinha, o Estado tomou medidas decisivas para amenizar o conflito entre a CODEARA e os antigos ocupantes do espaço. O Governo Federal, junto aos órgãos competentes, acelerou o processo de demarcação das áreas, reconhecendo o direito de posse nos termos definidos pelo Estatuto da Terra de 1964, à população que já habitava o povoado antes da chegada da empresa. Após o conflito de Santa Terezinha o governo militar passou a apontar o padre Jentel como o mentor intelectual dos acontecimentos contestatórios e violentos naquele povoado. As denúncias contra o religioso foram efetuadas em jornais pelo diretor da Associação dos Empresários Agropecuários da Amazônia, Sr. Carlos Alves Seixas, o qual acusou Dom Pedro Casaldáliga e o Padre Francisco Jentel como responsáveis pela campanha difamatória contra o governo brasileiro e por usarem os posseiros para depredação e invasão das propriedades. O diretor ainda afirmou que com a chegada dos novos leigos e agentes de pastorais na Prelazia, o trabalho foi intensificado junto à população local com a entrada de armas automáticas que estariam escondidas em Santa Terezinha e que o conflito pela construção do ambulatório foi desnecessário, visto que há mil metros existia um hospital. O empresário Carlos Alves denunciou os fatos à polícia militar do estado de Mato Grosso que, sob o comando do Capitão Evangelista, foi até Santa Terezinha apurar as acusações. ―Acompanhados pelo gerente e funcionários da CODEARA a guarnição que estava desarmada foi surpreendida por uma

323WAGLEY, 1998 apud SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 272.

174 emboscada dos moradores através do comando da ação guerrilheira liderada pelo bispo de São Félix e pelo padre Jentel‖324. Diante dessas acusações, os bispos de Goiás se manifestaram em defesa do padre Jentel divulgando uma carta da versão esclarecida por Dom Pedro Casaldáliga que demonstra os responsáveis pela crise em Santa Terezinha: 1 – a CODEARA, pela sua descontrolada ambição; 2 – as autoridades municipais de Luciara e as autoridades estaduais de Mato Grosso, pela conivência pelos desmandos da companhia; 3- Alguns elementos de órgãos federais, pela grave omissão no caso325. O padre Jentel estava no Rio de Janeiro em uma reunião com o secretário geral da CNBB – Dom Ivo Lorscheiter, e logo após prestou depoimento à imprensa repudiando as acusações de subversão, bem como ―as perseguições sistemáticas da polícia para capturar os líderes civis do suposto movimento que não existe em Santa Terezinha‖326. Não só os empresários acusaram o padre Jentel como sendo responsável pelo conflito em Santa Terezinha, como também o governador do estado de Mato Grosso, José Fragelli. O governador esteve em São Paulo para manter uma série de contatos com as autoridades municipais, estatuais, militares e empresários. Nessa oportunidade, concedeu entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, em 2 de maio de 1972, com o título ―Fragelli acusa padre e bispo‖. José Fragelli declarou que

[...] tanto o padre Jentel como o bispo de São Félix, dom Pedro Casaldáliga, estavam incitando os posseiros daquela região contra as companhias agropecuárias que estavam se instalando na área do Araguaia. De acordo com as investigações feitas depois do incidente de Santa Terezinha, quando oito funcionários da CODEARA foram feridos à bala, chegou à conclusão de que o mentor intelectual da revolta tinha sido o padre Jentel, que, no momento, se encontra foragido (...) Esses

324GUERRILHA, Empresários Acusam Padre, 11/03/1972. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – R06. 2.37, p. 2. 325Idem. 326Idem.

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dois religiosos, de tendências puramente esquerdistas, mantêm em ação um bem caracterizado plano de agitação, orientados provavelmente, por agentes de outros países.327

A mídia foi um importante instrumento utilizado para difamar trabalho de leigos e religiosos da Prelazia de São Félix, com a intenção de construir uma imagem de uma instituição que estava impedindo o avanço e o progresso da Amazônia e estimulando posseiros e peões a se revoltarem contra as empresas e que, consequentemente, contava com a ajuda de grupos políticos internacionais para destruir o governo brasileiro. Com a prisão de Francisco Jentel após 1972, sua condenação e posterior expulsão do Brasil, outras pessoas tomaram frente nos trabalhos realizados por este padre integrando-se à equipe pastoral de Santa Terezinha, dentre elas: Padre Antonio Canuto, Terezinha [Tereza Salles] e Tadeu, Pontim, Tereza, Aparecida, Eli e Edgar prosseguiram com os projetos de Jentel pensados para a região, como saúde, educação e a garantia pelos direitos de terra328. Após a prisão de Padre Jentel, os agentes pastorais, leigos e padres que passaram a efetuar o seu trabalho sofreram uma violenta perseguição pelos militares. Os relatos que descrevem as atrocidades cometidas pelo aparato militar contra a equipe da Prelazia de São Félix estão disponíveis na pasta de código A.08, intitulada ―Repressão e Arbitrariedades Policiais‖. O documento que expõe a invasão da Prelazia de São Félix do Araguaia pela polícia militar, juntamente com oficiais do exército e da aeronáutica no início de junho de 1973, foi elaborado por Dom Pedro Casaldáliga para informar os acontecimentos violentos na Prelazia. Foi uma forma de dar visibilidade para os problemas da região, bem como chamar a atenção de órgãos comprometidos com os direitos humanos e buscar junto a estes, soluções para o sofrimento daquela população.

327Ibidem, p. 1. 328SOUZA, Maria Aparecida Martins. A luta pela permanência na terra: a resistência dos posseiros de Santa Terezinha. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010, p. 246.

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Com a sentença conferida ao Padre Jentel em 28 de maio de 1973, julgado em Campo Grande (atual capital do estado do Mato Grosso do Sul) e condenado a 10 anos de prisão, Dom Pedro Casaldáliga considerou que a vinda do destacamento militar permeada por atos repressivos estaria vinculada possivelmente à condenação do religioso, pois os militares pretendiam impedir uma eventual reação da população de Santa Terezinha ou da região. Intencionavam ainda atemorizar o bispo e a equipe da Prelazia. Para Casaldáliga os militares não estavam satisfeitos apenas com a condenação de Jentel, mas queriam o extermínio da Prelazia e, consequentemente, o fim das ações de justiça e liberdade desencadeadas por esta Igreja329.

3.1 O violento ano de 1973 e os relatos de torturas na Prelazia de São Félix do Araguaia

A Doutrina de Segurança Nacional formulou um dito inimigo interno que deveria ser perseguido, torturado ou eliminado, dando assim respaldo à instauração dos regimes ditatoriais na América Latina. A DSN dita desse modo é brasileira, forjada na Escola Superior de Guerra nos anos de 1950 e sua matriz foi a Guerra Fria, com o ideário da luta em oposição ao comunismo, desdobrada na América Latina, o combate contra o inimigo interno e a subversão. Então, o que deu suporte às ditaduras latino-americanas foi a Guerra Fria e o perigo comunista. Para viabilizar tal prática, o golpe civil-militar de 1964 criou em junho daquele ano o SNI, órgão composto por civis e militares a fim de localizar, prender e exterminar as pessoas contrárias ao regime ditatorial. Nesta mesma linha de atuação, ocorreu em 13 de dezembro de 1968, o estabelecimento do Ato Institucional nº 5, no qual o presidente da República poderia decretar o confisco de bens dos cidadãos e suspender garantias de habeas corpus, nos casos de crimes

329Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08. 2.03, 1973, p. 1.

177 políticos contra a segurança nacional, fortalecendo assim a prática da tortura como aparelho essencial da ditadura. Em janeiro de 1968, o Conselho de Segurança Nacional aumentou as funções do SNI e implementou as DSIs. Este fato caracterizava uma ampla rede de espionagem, instaurada em todo o país, nas seguintes instâncias: ministérios civis, pastas militares, autarquias, fundações e órgãos públicos. Nestas esferas o órgão assumiu o nome de AESI, sendo importante destacar que era conveniente para o mesmo, lotar militares linha-dura que almejavam pouco trabalho e gratificações. Jayme Portella iniciou a constituição de um planejamento nacional de espionagem, então providenciou a aprovação do ―Conceito Estratégico Nacional‖, assim com base nesta definição que o SNI aprovou, em junho de 1970, o Plano Nacional de Informação, sob a coordenação do general Carlos Alberto da Fontoura (1969-1974), deliberando todos os ofícios a serem desempenhado pelo órgão que passou a integrar o SISNI330. Dentre as principais atividades desenvolvidas pelo SNI tinha-se a elaboração de relatórios para a presidência da República e autoridades centrais. As informações eram advindas do próprio serviço, além de serem disponibilizadas pelas DSIs, sendo que cada Divisão contava com cerca de trinta funcionários. O historiador Carlos Fico denomina os órgãos de informações, o SNI, as DNIs e outros331 como integrantes da comunidade de informações, a qual detinha informações a respeito de quaisquer questões ou pessoas relevantes para o regime. Estes documentos tinham classificação em relação ao seu sigilo: ―reservado‖, ―confidencial‖ ou ―secreto‖. Entretanto, Carlos Fico alega que o Sisni não se

330FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012B, p. 177. 331CIE (Centro de Informações do Exército), Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica), e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Entre 1967 e 1971 foram reformulados com o intuito de combater a ―subversão‖. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012B, p. 178.

178 pautava apenas em prestar informações ao Presidente da República para que este tomasse decisões, mas agia, sobretudo, como um sistema temerário de incriminação de pessoas, conduzido pela desconfiança geral, tendo em vista que se fundamentavam na ideia que todos poderiam ser acusados de subversão ou de corrupção. Tal situação foi denominada por Fico, como técnicas de suspeição, ou seja, o método para ―atestar‖ que alguém era acusado de ―subversão‖332. Diante do contexto imposto pela lógica da Doutrina de Segurança Nacional e do SNI, é que a Prelazia de São Félix do Araguaia foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional, a partir das técnicas de suspeição, assinalando os religiosos e agentes de pastorais daquela área como elementos subversivos ligados a um suposto movimento comunista internacional, criado pelos ―peritos em suspeição‖ por meio dos seus mecanismos de ―comprovação da verdade‖, contribuindo assim, para o emprego justificável da prisão e tortura daqueles sujeitos, como veremos nos relatos descritos ao longo deste capítulo. Os atos de tortura, a prisão ilegal, os desaparecimentos forçados e morte, nos cárceres e fora deles, foram instrumentos instituídos para garantir a vigência da Doutrina de Segurança Nacional333. Entretanto, é válido lembrar que mesmo o Brasil sendo um Estado de exceção, naquele período já havia a condenação da tortura como um crime contra a humanidade, sistematizada na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo V afirma: ―Ninguém será submetido à tortura, nem tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante‖334. É neste contexto de negação dos Direitos Humanos e instauração da Doutrina de Segurança Nacional que os agentes de pastorais e religiosos da Prelazia de São Félix foram sequestrados, presos e torturados no ano de 1973.

332FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda... p. 180. 333BARBOSA, Marco Antonio. Aspectos relativos aos Direitos Humanos e suas violações, da década de 1950 à atual e o processo de redemocratização. In: BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010. 334Ibidem, p. 23-24.

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Fábio Konder Comparato aponta que a tortura tem como finalidade obter informações ou confissões, o castigo e a intimidação ou coação de determinadas pessoas. Além disso, para o autor, o mundo pós-segunda guerra mundial propiciou um clima de terror generalizado pelas autoridades governamentais, como o extermínio aos movimentos subversivos335. Para a psicóloga Tania Kolker, a violência do Estado no período ditatorial foi direcionada a toda a sociedade, difundindo o medo, tecendo laços de aceitabilidade e destruindo qualquer contestação a sua prática. O governo militar utilizou da violência implícita e explícita para reproduzir o terror, a impotência e o silenciamento, como também a tortura que ao mesmo tempo pretendia atingir o máximo de indivíduos e gerar uma forma de subjetividade submissa, individualizada e despolitizada, apta a justificar as práticas de exceção, a omitir as sequelas provocadas pelo terror de Estado e a restringir os males nos diretamente atingidos336. Diante deste cenário de negação dos Direitos Humanos através do sequestro e tortura dos agentes de pastorais e religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia, se torna importante destacarmos que a repressão instaurada naquela região no ano de 1973 não esteve apenas ligada aos conflitos de terras e à prisão do padre Francisco Jentel, pois concomitante com este episódio estava ocorrendo a Guerrilha do Araguaia no sul do Pará e norte de Goiás (atual estado de Tocantins). Os primeiros militantes do PC do B começaram a chegar à região no ano de 1966 e se sociabilizarem com os moradores locais a fim de formarem a guerrilha. A partir de abril de 1972 os militares se instituíram no sul do Pará para investigar o foco do movimento guerrilheiro na Amazônia. A organização foi descoberta em 1972, possivelmente delatada por uma militante que tinha ido fazer

335COMPARATO, Fábio Konder. A tortura no direito internacional. In: BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010, p. 81. 336KOLKER, Tania. Tortura e Impunidade – danos psicológicos e efeitos de subjetivação. In: BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010, p. 174. 175.

180 tratamento médico em São Paulo e foi presa pelos militares. Apesar dos guerrilheiros serem em número menor e com um armamento relativamente inferior ao do exército, os militares precisaram efetuar três campanhas para enfim, conter os conflitos na região do Araguaia em dezembro de 1973337. A Guerrilha do Araguaia está dividida em três fases distintas. A primeira campanha338 teve início em 12 de abril de 1972, em que utilizaram grupos de seis a trinta homens, sendo estes contratados pelo Exército como informantes e conhecidos como ―mateiros‖. O primeiro combate entre os guerrilheiros e os militares ocorreu em fins de abril de 1972339. A segunda campanha começou em setembro de 1972 com a denominação de ―Operação Oxixá‖. Foram utilizados 12 aviões pela aeronáutica e 3.000 militares. A partir de outubro de 1972, as Forças Armadas se retiraram da área de conflito. Assim, o período que compreende outubro de 1972 a setembro de 1973 é caracterizado como um momento de trégua. Em 07 de setembro de 1973 começou a terceira e última fase da Guerrilha do Araguaia. Esta campanha foi comandada pelo General Hugo de Abreu e denominada de ―Operação Sucuri‖, com a participação direta de 3.202 militares e o reforço de 250 paraquedistas do Exército e da Aeronáutica. Entre as ações das Forças Armadas estava o uso de bombas Nalpalm, as mesmas utilizadas pelos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Em dezembro de 1973 o movimento guerrilheiro no Bico do Papagaio foi desmantelado340. A descoberta da Guerrilha do Araguaia fez com que toda área da Prelazia de São Félix do Araguaia com divisa com os estados do Pará e Goiás (atualmente Tocantins) passasse a ser um território de domínio da Segurança Nacional, sob suspeita que os grupos daquela Igreja estavam ligados com os

337GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987, p. 208. 338Grande contingente de soldados/tropa. 339NASCIMENTO, Durbens Martins. A Guerrilha do Araguaia: paulistas e militares na Amazônia. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento). Belém: Universidade Federal do Pará, 2000, p. 130. 340Ibidem, p. 145.

181 movimentos guerrilheiros para um golpe contra o governo. Desse modo, como já foi tratado no capítulo dois desta tese, a região entre setembro e outubro de 1972 recebeu a Ação Cívico e Social do Exército, como também contou com a presença do Capitão Ailson Loper que aterrorizou os posseiros e religiosos de Porto Alegre do Norte. O bispo Dom Pedro Casaldáliga era acusado de auxiliar os guerrilheiros que passavam pelo nordeste de Mato Grosso rumo ao sul do Pará, Dom Pedro Casaldáliga (Jornal Movimento, 17/7/78):

Lembrou que o conflito foi muito além da área conflagrada: ―A guerrilha do Araguaia sempre se concentrou mais no sul do Pará, e estendeu seu raio de ação ao norte de Goiás. No entanto, durante os anos de 1972 e 1973, o Exército e a Aeronáutica também realizaram operações antiguerrilha na margem mato- grossense do rio Araguaia, nos municípios de Luciara e Barra do Garças, concentrando-se, sobretudo no então distrito de São Félix. Nós estávamos a cerca de mil quilômetros da guerrilha. Em nossa região, nunca houve, ao que se saiba, nem a sombra de guerrilheiros. O povo mesmo da região não sabia bem o que era isso. E a ACISO, realizada pelo Exército em São Félix em 1972, e também em 1973, se deu com técnicas e solenidades de operação antiguerrilha‖.341

Provavelmente, Dom Pedro Casaldáliga nunca tenha ouvido falar ou visto algum guerrilheiro na área da Prelazia de São Félix do Araguaia, mas a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos indica que José Huberto Bronca, um militante ligado ao PC do B passou pela região em maio de 1972 a procura de emprego:

Chegou ao Araguaia em meados de 1969. Foi vice-comandante do Destacamento B, sendo conhecido como Zequinha ou Fogoió, até ser deslocado para a Comissão Militar, onde fazia parte da guarda. No dia de Natal de 1973, estava no acampamento atacado pelo Exército. Consta em certidão enviada pela ABIN à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos que, em maio de 1972, ―pediu emprego em uma fazenda de nome Suiá Missu, mas como não conseguiu uma vaga, se deslocou para São Félix do Araguaia e de lá para

341CASALDÁLIGA apud ANTERO, Luis Carlos. Araguaia: Presente! Centro de Documentação e Memória, São Paulo, n. 64, fev/abr. 2002.

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Santa Terezinha. Era guerrilheiro ligado ao PCdoB, em Xambioá/PA‖. O Relatório do Ministério da Marinha registra que Bronca foi ―morto em 13 de março de 1974‖.342

Diante do exposto no documento acima, não podemos negar o fato que a área da Prelazia de São Félix do Araguaia possivelmente foi uma rota utilizada pelos guerrilheiros do PC do B para chegarem até o Bico do Papagaio (norte de Tocantins e divisa com o sul do Pará). A procura de emprego na maior agropecuária de Mato Grosso – a Suiá-Missu, nos faz presumirmos que José Huberto Bronca provavelmente partiu do seu destino efetuando trabalhos temporários para adquirir recursos financeiros com a finalidade de chegar até o local da guerrilha, ou talvez resolveu passar pelo nordeste de Mato Grosso para conhecer o cotidiano de luta pela terra daquelas pessoas denunciado por Dom Pedro Casaldáliga, tendo em vista que a Suiá-Missu desde 1966 estava em conflito com os posseiros dos povoados de Pontinópolis e Serra Nova noticiados nos jornais de alcance nacional. Além do mais, aquela espacialidade dispunha de dois trajetos para se chegar ao Bico do Papagaio, o primeiro caminho pela BR 158 que estava sendo construída desde 1970, e o outro pelo rio Araguaia, o qual atravessa as cidades de São Félix e Santa Terezinha, citadas no relato como percurso efetuado pelo militante, nos fazendo pressupor que o mesmo se deslocou para o seu destino pelo rio Araguaia, inclusive porque aquele rio era a via de acesso mais comum de deslocamento daquela região. De acordo com Antônio Canuto343, no dia primeiro de junho de 1973 chegou a São Félix do Araguaia, um contingente de quase 100 homens sob a supervisão do Comandante da Polícia Militar, Euro Barbosa de Barros344, então elevado à condição de Coronel e com participação de outras forças militares.

342BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 247. 343CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 122. 344Este encontra-se na lista dos 377 apontados pela Comissão da Verdade como responsáveis por crimes na ditadura militar. Disponível em: . Acesso em 10 dez. 2014.

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Na madrugada de 4 de junho de 1973 os militares começaram a empreender os atos de violência contra a população da Prelazia. O povoado de Serra Nova foi invadido por cerca de sessenta soldados armados de metralhadoras que iniciaram a operação com descargas de tiros na entrada do patrimônio, passando em seguida a revistar todos os ranchos. A casa pastoral foi invadida e os agentes da Igreja foram violentamente despertados com as metralhadoras apontadas para eles; em seguida todos foram revistados, seus pertences foram vasculhados e apreenderam todo material escrito (cartas, livros, revistas, documentos). Os moradores também sofreram os atentados dos militares, com suas casas invadidas, chefes de famílias sendo violentados fisicamente e as crianças intimidadas com as armas no momento em que se efetuavam a busca por revólveres, armas de caça, facões e facas de cozinha. As casas das Irmãzinhas da missão Tapirapé também foram invadidas por militares que chegaram até o local de avião, com a presença de um Tenente da polícia militar de Cuiabá e três soldados armados com metralhadoras. Os policiais alegaram ter recebidos ordens da Capital para verificar os documentos do local345. Assim, como os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia, as prisões e a tortura dos religiosos e leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia foram proibidas de serem noticiadas pela imprensa local e nacional. A ideia era não deixar que este fato fosse divulgado, pois isto iria enfraquecer a imagem do regime político, que vivia o período final do ―milagre econômico‖ (1967-1973)346. Desse modo, era necessário combater os opositores ao governo e impedir que a sua versão fosse publicada, através de uma fiscalização sistemática que barrava qualquer notícia ou comentário contrários aos militares347.

345Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.03, 1973, p. 2. 346PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O ―milagre‖ brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 347FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda... p. 190.

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Portanto, a censura foi um mecanismo fundamental para que a ditadura militar se legitimasse e construísse uma representação positiva do país, conforme Antônio Canuto expõe no relato a seguir:

Enquanto as rádios internacionais divulgavam os acontecimentos da região, os jornais e emissoras brasileiras silenciavam. A Censura proibiu qualquer notícia sobre os conflitos na Prelazia de São Félix, e sobre o bispo Casaldáliga. O Jornal Nacional, da TV Globo, foi utilizado para repassar notícias falsas ou forjadas sobre a Prelazia, para justificar a repressão e a desejada expulsão do bispo. Para o controle das informações, os militares criaram a Rádio Nacional da Amazônia, a emissora mais potente da América Latina, ligada ao sistema Radiobrás, que se tornou a emissora mais ouvida na Amazônia. Por imposição dos militares, a Radiobrás criou o Projeto Cigano, uma emissora montada em furgão. Em tempo recorde, a primeira emissora teve como destino São Félix do Araguaia. Em 8 de setembro de 1981, entrava no ar a Rádio Nacional de São Félix do Araguaia. Fazia parte da estratégia para a expulsão do bispo Pedro. Tiveram os direitos violados em torno de 200 famílias de posseiros de Serra Nova, hoje município de Serra Nova Dourada, além do bispo Pedro Casaldáliga, os padres e agentes de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. O caso teve repercussão mais internacional que nacional, pois a imprensa estava sob censura. O embaixador brasileiro na Inglaterra, Roberto Campos, reclamou à BBC de Londres por dar cobertura ao que acontecia na região, informou um funcionário da rádio.348

Ainda sobre a memória local em relação à repressão dos acontecimentos da Prelazia de São Félix Araguaia, o leigo de Porto Alegre do Norte nos expôs a seguinte informação:

O lugar mais isolado da Prelazia era Porto Alegre do Norte. E ainda tinha o problema da Guerrilha do Araguaia que era transmitida pela Voz de Tirana. Nessa emissora de rádio é que escutavam as notícias. Os militares ficavam doidos atrás dessa emissora de rádio. Que rádio gente? Eles iam atrás do Bispo. Se estava errado estava com o Bispo, pois tudo que tinha de errado se encontrava na Prelazia, mas nunca ninguém soube onde ficava essa emissora de rádio. Eu sei que essa rádio dava notícia a noite: a Voz de Tirana, então passava as notícias de todo o

348CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 126.

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Araguaia. Essa rádio misteriosa ninguém nunca soube. Toda a noite você podia ligar que a notícia estourava. Nós ouvíamos a BBC, a Voz de Tirana, e a notícia caia mesmo.349

Em Porto Alegre do Norte, as notícias sobre as problemáticas da Amazônia, principalmente a respeito da Guerrilha do Araguaia eram transmitidas para a população por meio de emissoras de rádio internacionais ou clandestinas. A procura desesperada pela rádio na Prelazia de São Félix do Araguaia decorria do fato de se combater o inimigo e impedir que o seu discurso fosse divulgado. A censura foi o mecanismo utilizado como um dos pilares da repressão para evitar que qualquer crítica ao governo fosse publicada. A ideia era suprimir esses discursos negativos e consolidar a imagem positiva de uma nação desvinculada dos atos de violência, repressão e tortura como elementos característicos da ditadura militar no Brasil. Entretanto, para mobilizar a opinião pública, a descrição desses acontecimentos aterrorizantes foi enviada por Dom Pedro Casaldáliga a Dom Tomás Balduíno, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Aluísio Lorscheider e outros para denunciar a invasão da residência episcopal a mão armada por militares da polícia de Barra do Garças, que os obrigaram a abrir os arquivos. Revistaram todo o recinto à procura do leigo José Pontim, professor em Pontinópolis cuja casa foi invadida pela polícia militar, onde roubaram pertences pessoais (gravador, máquina fotográfica, coleção de alfabetização de Paulo Freire, livros, facão, foice, machado, apostila dos Salmos de Ernesto Cardenal onde destacava as instituições SNI, CIA, KGB, FMI, e o rascunho da última reunião da Prelazia). Todo este material foi considerado altamente subversivo, conforme os interrogatórios prestados pelo leigo posteriormente na cidade de Campo Grande350. Além destes atos, foram presos e espancados no dia 8 de julho de 1973 o leigo Tadeu, e os padres Antônio Canuto, Eugênio Consoli (padre do povoado de Porto Alegre do Norte), Leopoldo Belmonte e Pedro Mari para

349Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida a autora, em 892 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 350PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 2.

186 delatarem o paradeiro do agente de pastoral José Pontim. Essas informações foram reproduzidas por um grupo que se identificou como leigos e religiosos de São Paulo, um mecanismo utilizado para driblar a censura e dar publicidade aos fatos ocorridos na Prelazia como em outras localidades vítimas da repressão daquele momento351. O padre Antônio Canuto fez um relatório a respeito da sua prisão e espancamento, ocorrida no dia 8 de julho de 1973 quando a casa pastoral foi invadida violentamente por um grupo de militares que estavam à paisana. Ele descreveu que, primeiramente, foi agarrado pela camisa por um indivíduo armado, recebeu socos, pontapés e foi levado para o interior de uma viatura onde interrogaram-no a respeito de José Pontim, sob fortes tapas no rosto e na boca. Em seguida, o padre Canuto e o padre Eugênio foram conduzidos à fazenda AGROPASA, onde encontraram os padres Pedro Mari e Leopoldo Belmonte, sendo este último espancado por vários indivíduos, recebendo tapas no rosto e na boca352. Os escritos de Dom Pedro Casaldáliga e o Jornal Alvorada353 foram apontados como atos injuriosos às forças armadas, sendo o bispo acusado de incitar o povo contra o regime militar. Depois de muitos questionamentos e humilhações os padres foram levados de volta para a casa pastoral, com ordens para não se retirarem até que o Capitão os liberasse. O AI5 assegurou o uso da tortura contra aqueles que se opuseram à Segurança Nacional, bem como possibilitou aos encarregados de inquéritos políticos efetuarem a prisão de qualquer cidadão por 60 dias, dentre os quais 10 dias em regime de incomunicabilidade para corroborar com o trabalho dos torturadores, e garantir a estruturação dos crimes da ditadura354. A tortura era

351Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.23, 1973, p.1. 352Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.11, 1973, p.1. 353A Prelazia de São Félix possui o jornal Alvorada, criado desde o início da década de 1970 e está disponível no site: http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/documentos/index.html#1. Ainda sobre o histórico do Jornal Alvorada ver: SCALOPPE, Marluce de Oliveira Machado. Práticas midiáticas e cidadania no Araguaia: o jornal Alvorada. Cuiabá: KCM Editora, 2012. 354GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 357.

187 justificada como um método indispensável para se obter a confissão do torturado, assinalada na ideia de defender o regime militar aos que colocavam em ameaça a ordem política e a segurança do Estado. Em relação às prisões que ocorreram durante o regime militar, Myrna Coelho355 as caracteriza como sendo na verdade atos de sequestros, pois havia uma demora no registro dos presos o que os configuravam como desaparecidos tanto para os seus familiares e amigos quanto legalmente. Este mecanismo tinha como objetivo favorecer o trabalho dos torturadores. O desaparecimento ou sequestro destes indivíduos instituía um presente contínuo nas suas vidas, haja vista que o futuro de retornar para casa era muitas vezes incerto, estando destituídos do poder sobre si mesmos e restringidos da sua liberdade. A experiência de violência e tortura a qual foram submetidos os leigos e agentes de pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia, conferiu a estes indivíduos a condição de testemunhas com o domínio de relatar o sofrimento vivenciado na prisão durante o ano de 1973. Assim, para compreendermos as diferentes características do conceito de testemunha, nos apoiamos no trabalho de Giorgio Agamben intitulado ―O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha‖, onde o autor demonstra que em latim há dois termos para representar a testemunha. O primeiro testis que significa etimologicamente aquele que se coloca como terceiro (terstis) em um processo ou em um litígio entre dois opositores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso356. Posto isto, enquadramos os relatos dos agentes de pastorais como supérstites, ou seja, estas pessoas vivenciaram tal evento e possuem condições de cederem testemunhos, mas isso não significa que as suas narrativas serão pautadas na objetividade, pois

355COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura: Brasil (1964-1979) e Argentina (1976-1983). Tese (Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina) São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010, p. 112. 356AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 27.

188 os seus relatos estão carregados pela subjetividade da interioridade do acontecimento vivido. Dentre os relatos mais impactantes que expõem a violência militar contra a população do Araguaia, estão àqueles presentes nas cartas dos leigos e agentes de pastorais presos durante a ação violenta na Prelazia no dia 4 de junho de 1973. Na casa das Irmãzinhas de Jesus foram presos Edgar e Thereza Adão, visitantes do Rio de Janeiro que estavam na região para conhecer o trabalho das Irmãzinhas na Aldeia dos Tapirapé. Em 5 de junho de 1973, a caminho da Cooperativa Agrícola de Santa Terezinha, a leiga Thereza Salles foi sequestrada por policiais que estavam à paisana. Naquele dia, Thereza não imaginava que a sua realidade iria mudar de estatuto.

Estava a caminho da Cooperativa Agrícola; firme da qual colaborar com o trabalho da Prelazia de São Félix; quando vi um carro passar para o Aeroporto, dentro estava o Capitão Monteiro de Cuiabá e o motorista Olímpio de Stª Terezinha. [...] os mesmos estavam a paisana e menos de um minuto voltam em uma caminhoneta.357

Naquele momento começou o processo de transformação do corpo da agente de pastoral em coisa, esta se tornou uma espécie de invólucro, tendo as suas mãos e pés amarrados, assim como a sua cabeça encapuzada, logo ela deixou de ser uma pessoa com os seus direitos garantidos, e se tornou uma presa política que como um pacote enlaçado seguiu em direção a um destino desconhecido. Tereza Salles provavelmente tinha consciência que o desrespeito e a tortura a aguardavam, e o medo que trazia dentro de si a consumia pela experiência que ela estava começando a vivenciar como um rito de passagem rumo ao desconhecido. A sensação da perda dos seus laços de sociabilidade entre familiares e amigos despertou o horror do vazio. Até mesmo a noção de espacialidade também lhe foi tomada:

357Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.14, 1973, p. 1.

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No dia 26/6/73, fui transferida para a PF de Brasília, ficando incomunicável até o dia 12/7/73. Obs: ao ser transferida nada me falaram, ao não ser que me encapuzasse, e que iria sair. Lembro-me que ao sair não andamos mais 40 minutos, pressenti que percorri outra estrada a fim de desnortear quanto o local da casa onde permanecera do dia 8/6/1973 a 26/6/73. [...] continuei na PF de Brasília até o dia 12/7/73, quando novamente viajei, só sabendo para onde quando cheguei ao local. Esta viage [sic] [realizada no dia 12/07/1973] foi feita com os companheiros que também haviam ido para Brasília. Todos de óculos de borracha, e algemados, entramos em 1 avião vindo chegarmos a Campo Grande – MT. Obs. A sempre uma incógnita, p/ onde vamos, quem nos leva, etc.358

Será que para a Tereza Salles, somente a localização geográfica era realmente importante? As suas dúvidas em relação a sua espacialidade estavam apenas atreladas a preocupação quanto ao seu destino final? A percepção que temos ao lermos o seu relato nos induz a pensarmos que o teu paradeiro era irrelevante, sendo significativo assinalarmos o exílio com a destituição da sua comunidade, ou seja, do trabalho desempenhado no povoado de Santa Terezinha junto à Prelazia de São Félix do Araguaia, devido ao rompimento da sua rede social que lhe conferia proteção e apoio. Assim, a distância espacial e o lugar que ela seria levada não são os únicos fatores que a incomodava ou impunha o medo, mas se sentir desamparada em um local estranho e sem o conhecimento dos seus amigos e familiares é que possivelmente lhe causava maior sofrimento. Esses relatos foram redigidos logo após a soltura dos presos a pedido de Dom Pedro Casaldáliga. São páginas longas relatando torturas, ameaças, violência física e psicológica, expressões de um regime de exceção voltado à implementação do terror no campo. O ato de narrar estabelece uma sobrevida para aqueles que voltam de uma experiência traumática, como, por exemplo, dos campos de concentração ou de outra forma acentuada de violência que excita a

358Relato de Prisão de Terezinha – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.14, 1973, p.16-18, grifos nossos.

190 necessidade de relatar tais fatos. Desse modo, ―Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de renascer‖359. Os agentes pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia foram presos e conduzidos para Cuiabá onde prestaram seus primeiros depoimentos. Todos eram questionados sobre o paradeiro de José Pontim, sendo este considerado pelos militares como ―criminoso, jagunço do Padre Francisco‖360. A busca por José Pontim tinha relação com a sua trajetória de trabalhos pelos povoados da região, pois ele chegou com a sua esposa Selme Lima Pontim no conturbado ano de 1972, em que os patrimônios de Santa Terezinha e Porto Alegre do Norte enfrentavam conflitos com as empresas agropecuárias e a área estava sob constante intervenção militar. Pontim veio incumbido pela missão de assumir a direção do GEA, em São Félix do Araguaia, pois este possuía nível superior. José Pontim, por estar em Santa Terezinha no momento em que o exército chegou para prender os posseiros envolvidos no conflito contra a CODEARA, foi acusado juntamente com outros agentes de pastorais: Altair, Terezinha, Tadeu e padre Francisco Jentel como mentores da luta dos trabalhadores rurais. Já no final do ano de 1972, Pontim foi para Porto Alegre do Norte ajudar o padre Eugênio Consoli na substituição do leigo Altair que estava doente, impossibilitado de lecionar na escola do patrimônio. Em janeiro de 1973, José Pontim e a sua esposa Selme Pontim mudaram-se para o povoado de Pontinópolis, onde estabeleceram junto com a Equipe Prelazia a linha de atuação da pastoral361. Portanto, o fato de José Pontim não ser oriundo da região, possuir nível superior e estar presente nos principais povoados em que ocorriam os conflitos pela posse da terra, foi considerado pelos militares como um suspeito de atividades subversivas, tendo a sua prisão e tortura como atos justificáveis pelo regime político ditatorial.

359SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma – A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. PSIC. CLIN., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008, p. 66. 360Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08. 2.03, 1973, p. 5. 361PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.

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No dia 8 de junho de 1973 os agentes de pastorais foram levados para Brasília e interrogados: ―os interrogatórios eram a base de choque elétrico, alguns levavam socos na cabeça ou mesmo os famosos telefones, que são socos nos ouvidos‖362. A prática da tortura era um mecanismo para se obter informações dos torturados, assim, ao serem sequestrados e presos os agentes de pastorais tinham a consciência que a qualquer momento iram ser violentados e que esta violência seria exacerbada durante o período em que permanecessem desaparecidos. Desse modo, estes indivíduos ficavam permanentemente inseguros enquanto não tivessem revelados os seus paradeiros, pois viviam constantemente o medo da intensificação das torturas como também um possível assassinato. Passar por esta experiência em si já é torturante, dado que perder o controle do seu corpo e tê-lo submetido como objeto de espoliação impõe uma situação angustiante e provoca um temor incessante em relação à morte, bem como a incerteza a respeito do futuro. Nos interrogatórios havia muitas perguntas e solicitações de descrições a respeito da postura política da Prelazia de São Félix do Araguaia, dentre elas podemos destacar: Qual a organização que a Prelazia fazia parte? Falar politicamente sobre o Padre Francisco Jentel e Antônio Canuto; Quais as atividades políticas eram realizadas na Prelazia? Em que lugar ocultavam os depósitos de armas e rádio transmissor? Falar sobre os códigos de cartas e siglas utilizadas para os agentes se identificarem como elementos da Prelazia; O que o Padre Jentel pensava politicamente, o que fazia ao sair de viagem? Como recebia dinheiro e por parte de quem? Se havia participado de movimento estudantil; O que era ideologia? Como havia conhecido o padre Jentel? Os presos políticos são vistos apenas como portadores de informações que devem ser extraídas de qualquer modo. Essa coisificação imputa aos torturados o sentimento de humilhação e degradação, bem como a perda da sua dignidade através da negação dos seus direitos enquanto cidadãos por um Estado

362Relatório de Prisão de Terezinha – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.14, 1973, p.19.

192 de exceção. Relegando a estes indivíduos a sensação de vulnerabilidade destituídos das suas convivências entre seus familiares e amigos, ao passo que foram inseridos em um ambiente desumano e indiferente, assinalando os agentes de pastorais como instrumentos da repressão tendo a sua humanidade rejeitada por aqueles que os viam como ameaças de uma ordem política, conforme podemos identificar no documento que se segue:

Dissesse o que dissesse a gente apanhava. Apanhava pelo sim, pelo não e pelo silêncio. A experiência desta e de outras formas de tortura além do desconforto físico se experimenta uma grande frustração pessoal e psicológica pela sensação de inutilidade e incapacidade que temos de poder ter qualquer reação positiva a não gritar e de compreender de como pode um ser humano, fundamentado em princípios ou ideologia, torturar o seu semelhante algemado, encapuzado, enfim totalmente indefeso. Um ato totalmente irracional, antiético, incompatível com o que deve ser uma criatura humana. Esta atitude longe de ser um predicado do homo sapiens, liga-se radicalmente ao homo demens. A tortura é um instrumento dos mais vergonhosos utilizados pelos humanos, como meio e, sobretudo, no que diz respeito aos seus fins: extrair confissões, inculcar faltas indevidas, utilizando a via da dor física e psíquica. É a irracionalidade exacerbada.363

A extração de confissões dos torturados por meio do uso da violência física e/ou psicológica é qualificada por Marilena Chauí como ―teatralização da tortura‖364. Entretanto, esta ocorre de forma clandestina, pois a imprensa e a sociedade são proibidas de disseminar a notícia dos casos de tortura, como também os torturadores e torturados não possuem nomes e nem o local exato do seu ―espetáculo‖. O indivíduo submetido a tortura sabe dos seus direitos advindos de ser humano e sujeito político, mas na situação-limite este é despossuído dos seus direitos e passa a ser culpado pela perda dos mesmos.

363PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 01 de maio de 2007, p. 3. 364CHAUÍ, Marilena. A tortura como impossibilidade da política. In: I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais: Depoimentos e debates. ELOYSA, Branca (Org.). Petrópolis: Vozes, 1987, p. 34.

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Neste cenário, almeja-se a insanidade do torturado, e o torturador deseja ter a imagem de portador de uma dita ordem social ao eliminar os elementos contrários daquele regime político. Dessa forma, o principal objetivo da tortura, para Chauí365, advém do ato de destituir o torturado da sua humanidade e subjetividade, reproduzindo outro sujeito através de um teatro que imputa na pessoa a ideia de não ter direitos e extinguindo a sua humanidade por meio da tortura sob a farsa desumana da ditadura no Brasil como sinônimo de república. O ato de relatar uma experiência trágica é caracterizado por Seligmann-Silva como um ―testemunho auricular‖, isto é, uma atitude que advém do trauma de ter escapado da morte, em que a vítima é impelida a verbalizar a sua história de modo que o indivíduo compreende e desafia os limites da sua narrativa ao relembrar situações traumáticas366. Assim, o autor assinala estas pessoas não apenas como sobreviventes, mas, sobretudo, ―sobremorrentes‖, ou seja, as suas narrativas não devem somente se reportarem ao trauma passado, como também precisam se pautar numa espécie de fórmula política. Detectamos este ato na fala de José Pontim que repudia e rejeita a repressão injustificada dos seus torturadores, não devendo esta ser repetida, pois ela tende a se reproduzir de modo recorrente e disfarçado caso deixemos a violência se naturalizar, transformando- nos em alvos dela. Desse modo, temos que analisar o testemunho do agente de pastoral, José Pontim como um exercício de rememoração da injustiça sofrida e como uma oposição a toda forma de violência que fere os direitos humanos e com isso evitar o seu potencial retorno367. O fato de não deixar essa memória escondida ou silenciada tem como propósito dialogar com as ideias do filósofo Castor Bartolomé Ruiz368, no que diz

365Ibidem, p. 37. 366SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico: por um novo tribunal como espaço de rememoração e elaboração dos traumas sociais. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Orgs.). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 108. 367Ibidem, p. 109. 368RUIZ, Castor Bartolomé. A testemunha e a memória: O paradoxo do indizível da tortura e o testemunho do desaparecido. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 48, n. 2, p. 70-83, mai./ago. 2012, p. 72.

194 respeito ao fato dos vitimários ou torturadores suprimirem as consequências das suas barbáries através das estratégias de esquecimento com a ocultação histórica e política das vítimas. Esta atitude implica na legitimação de uma nova ordem social, bem como na garantia da impunidade dos carrascos naturalizando a violência; acarretando assim, em dois resultados desumanos: o escamoteamento da vítima provocando a negação histórica da violência sofrida; e a negação da injustiça que produz na vítima uma espécie de morte histórica. A estratégia do esquecimento histórico empregada pelos vencedores tem como consequência a naturalização e conservação da violência. Desse modo, os diversos Estados de exceção criaram narrativas que legitimassem as atrocidades cometidas através de alguns mecanismos que caracterizavam as vítimas como terroristas, subversivas, criminosas, ou seja, como indivíduos perigosos que ameaçavam a sociedade, os quais dessa forma, estavam passíveis de serem eliminados. Para que esta ótica não seja perpetuada e que as injustiças da tortura sejam reparadas Ruiz369 convalida a narrativa da testemunha sobrevivente como uma verdade interna aos acontecimentos que expõe o significado da violência para a vítima, a qual narra o ocorrido de maneira abstrata diferentemente do observador externo. Portanto, sob esta lógica, o narrador torna-se parte do acontecimento, uma dilatação do fato, isto é, um fato novo. Entretanto, faz necessário apontarmos que ao acionar esta memória não se tem a pretensão de gerar ódio e ressentimento, mas de conferir às vítimas a restauração da alteridade lesada, bem como a não naturalização e repetição destes atos dolorosos. Os presos ficaram detidos em Brasília até o dia 12 de julho de 1973 e foram transferidos para o Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo Grande, que na época pertencia ao estado de Mato Grosso. José Pontim havia sido preso em São Félix do Araguaia no dia 9 de julho e também levado para Campo Grande. Neste Quartel os agentes pastorais da Prelazia vivenciaram os piores dias de suas vidas, o medo e a sensação da morte eram constantes; as acusações que

369Ibidem, p. 78.

195 lhes pesavam decorriam do simples fato de se comprometerem na luta pela justiça e liberdade de uma população desamparada pelo Estado, ato este considerado como subversivo pelos militares que viram tal ação como decorrente de movimentos políticos que tinham a pretensão de extinguir o governo brasileiro. Os agentes de pastorais ficaram detidos em Brasília por mais de um mês em regime de incomunicabilidade que, de acordo com Coelho370, é tido como um modus operandi da tortura para que os sequestrados sintam ainda mais a dor do sofrimento causada pela ampliação da solidão e do desamparo. O isolamento e a falta de comunicação provocam a experiência do desaparecimento, a qual é acompanhada pela sensação de vulnerabilidade por não possuir laços assistenciais, bem como pelo fato de deixar de existir legalmente. O testemunho abaixo expressa, de modo chocante e trágico, o que significava autoridade e poder para as forças militares do Estado de exceção brasileiro no período em estudo:

A primeira vez levei choque todo o tempo, ficava deitado de bruços no chão e colocaram os terminais dos fios no glúteo. Os choques causavam uma contração violenta dos músculos da perna, causando uma dor horrível. A segunda vez não levei choque, só um pontapé na perna e um tapa na cabeça, juntos com ameaças de choque novamente. Desta vez eu estava sentado. Na terceira vez estive sentado, e me fizeram deitar três vezes no chão com ameaças de choques, sendo que realmente me aplicaram só uma destas vezes. Nesta vez ainda fui estonteado com um murro na cabeça.371

São marcas que certamente estas pessoas levarão pela vida toda, sem contar que foram também destituídas dos seus familiares e da sua comunidade e tiveram as suas vidas roubadas enquanto, vivenciavam dias de terror e de violência. Seus direitos foram ceifados como se não fossem seres humanos e cidadãos. Neste aspecto, de acordo com Myrna Coelho372, a funcionalidade da

370COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura... p. 117. 371Relatório de Prisão de Tadeu – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.15, 1973, p. 13. 372COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura... p. 79.

196 tortura sustenta-se na confusão entre interrogatório e suplício, sendo que o primeiro se pauta em perguntas e respostas, já o segundo almeja a submissão. O ato da tortura não projeta apenas a prestação de informações ao carrasco, mas também impõe que o torturado identifique no executor o dominador da sua fala, da sua humanidade e dignidade. Assim, este indivíduo além de suportar a dor física ao mesmo tempo tem que se sentir submisso ao poder do torturador. No Araguaia mato-grossense vemos que o Estado, que em tese deveria garantir os direitos e a segurança dos indivíduos, bem como atenuar as práticas de violência contra estes, aparece naquele momento como um Estado de terror. A sua incipiente presença foi quebrada pelo uso exacerbado da violência, a qual pode ser analisada de acordo com Yves Michaud, segundo o qual a ―intensidade e ferocidade da repressão estão na verdade ligadas à vontade do Estado de afirmar sua supremacia e seu monopólio do poder‖373. O depoimento abaixo é, uma vez mais, a expressão nua e crua destas premissas de intensidade e ferocidade aplicadas pelo Estado contra os seus próprios cidadãos, por ele considerados inimigos a serem combatidos:

Enquanto sucediam-se as sessões de tortura (choques elétricos pelos corpos e socos tipo telefone nos ouvidos) éramos inquiridos sobre nossa participação na Guerrilha do Araguaia da qual apenas tínhamos notícias, sobre a história de material escolar, brincadeira que conversávamos na Prelazia e que insistiam ser um código de armas por nós utilizadas. E assim, noite após noite as grades das celas abriam-se rangendo seus ferrolhos e saia um para a cela de torturas. Os que ficavam, rezavam. Quando as torturas extrapolavam a resistência já bastante precária aplicavam injeção não se sabe do que para recobrar a resistência. Muitos choques elétricos nas costas, órgãos genitais, evitando choques na parte da frente pois poderia levar a óbito e pelas costas forçava a coluna no sentido contrário o que causava muita dor e stress.374

Atingir o corpo do torturado não denota apenas um terror físico, mas a necessidade de eliminar este indivíduo está relacionada ao fato de extinguir uma

373MICHAUD, Yves. A violência... p. 28. 374PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.

197 dita ameaça que abalava a manutenção do poder naquele contexto, assim Norberto Bobbio expõe que:

A definição do poder político como o poder que está em condições de recorrer em última instância à força (e está em condições de fazê-lo porque dela detém o monopólio) é uma definição que se refere ao meio de que se serve o detentor do poder para obter os efeitos desejados.375

Como podemos perceber no relato acima, o Estado de exceção brasileiro utilizou em primeira instância a violência como prerrogativa necessária para a obtenção de informações a respeito da participação dos leigos e religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia em atividades consideradas subversivas por parte do governo. Esta atitude inviabilizou o uso legítimo da violência pelo Estado, tendo em vista que este ao invés de utilizá-la como princípio fundamental para a segurança dos cidadãos, a empregou na desumanização daqueles indivíduos, além do mais até um regime ditatorial, para Yves Michaud376, deve usar a violência de acordo com as limitações jurídicas. Passar pela experiência traumática da tortura significa suportar a morte em vida sem contar com a certeza do futuro, assim têm-se um presente contínuo de uma violência que se acentua cada dia mais com a finalidade de se obter informações das atividades subversivas. O relato de José Pontim é elucidativo quanto a preocupação técnica em se aplicar a tortura de modo científico e eficiente, afim de que esta não leve a óbito os prisioneiros. Este fato é um caso exemplar do que seria a morte em vida, ou seja, não ter domínio sobre o seu próprio corpo e tê-lo diariamente sujeito a dor e a submissão condicionada aos desejos do carrasco. Sob esta perspectiva, Yves Michaud demonstra que ―os torturadores são cada vez menos carniceiros, e sim técnicos com seus eletrodos,

375BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007, p. 82. 376MICHAUD, Yves. A violência... p. 56.

198 médicos psiquiatras com suas drogas, até especialistas da ação psicológica, do condicionamento, da chantagem efetiva ou da privação sensorial‖377. No século XX a tortura tornou-se um instrumento corrente no governo. Passou a ser praticada em inúmeros países, principalmente na América Latina, sendo esta implícita e o seu caráter de clandestinidade lhe conferia eficiência, entretanto os cidadãos tinham ciência de que se fossem presos corriam o risco de serem torturados. A tortura não decorria apenas no ato de obter informações, mas também estava incumbida de humilhar, fazer mal e violentar a vítima, bem como aterrorizá-la, ameaçar parentes e amigos, enfim a sociedade de um modo geral. A força repressiva empregada pelo regime de exceção advém do princípio jurídico que confere ao Estado a sua institucionalização pelo poder e substitui o arbítrio pela regra. Assim, a violência aplicada pelo Estado é exercida segundo as leis, a força é exercida ―com certa regularidade e uma certa uniformidade conforme regras conhecidas‖378, ou seja, a violência empregada pelo Estado, mesmo por um Estado autoritário, está submetida a restrições legais. Mais uma vez, o Estado autoritário brasileiro implementou com rigor estas premissas, como podemos observar no documento abaixo, o qual relata mais procedimentos de tortura:

Ao colocarem as ―pegas‖ do eletro-choque nas costas quiseram saber o que eram as marcas encontradas nas costas. Fiquei quieto pois estavam bem claras serem as marcas dos choques. Então disseram que não adiantava me fazer de vítima arranhando as costas.379

Os sinais deixados pelos choques nas costas do agente de pastoral - José Pontim são as marcas da banalização da violência que ele vivenciou durante a sua prisão em Campo Grande, e que com o passar do tempo foram apagadas do

377Ibidem, p. 58. 378Ibidem, p. 56. 379Relatório de prisão de Pontim – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.17, 1973, p. 2.

199 seu corpo, mas as lembranças dessa experiência de morte em vida podem assombrá-lo durante toda a sua existência. Contestar que os ferimentos nas suas costas foram em decorrência da tortura, seria como assinar a sua sentença de morte. Portanto, não contradizer o seu carrasco era um dispositivo para se manter vivo, pois tinha-se a consciência de que a justiça não iria reparar tal impunidade. Esta constatação ampliava ainda mais a angústia de ser assassinado, tendo em vista que regime ditatorial dilacerou toda a dignidade dos indivíduos considerados subversivos, assim possivelmente, José Pontim passou a compreender por meio da convivência com o seu torturador, que a sua vida para aquele sistema político era passível de ser descartada a qualquer momento, uma vez que este indivíduo teve a sua condição humana desprezada. Ao depararmos com a documentação do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, nos perguntamos se o que a vítima falava nos seus interrogatórios tinha realmente alguma importância? Ouvia-se o torturado? De fato, almejava-se a obtenção de informações? Ou o objetivo da tortura era simplesmente alcançar a submissão e o sofrimento do torturado? São dúvidas que permeiam a nossa imaginação ao lermos os relatos de tortura dos agentes de pastorais, pois ao analisarmos as questões que lhes foram levantadas durante o inquérito, os militares já tinham como certeza dada que a população da área da Prelazia de São Félix do Araguaia apresentava um claro envolvimento com os movimentos subversivos ligados à Guerrilha do Araguaia. Desse modo, podemos sugerir que as falas dos torturados que destoavam da versão dos torturadores eram desconsideradas, tendo em vista que o carrasco tinha o poder de decisão sobre a vida daquelas pessoas, ou seja, cabia a ele determinar se aquele indivíduo era passível de morrer ou viver. O que os torturadores desejavam efetivamente era obter a assinatura que comprovasse o discurso dos militares, e com isso, constatamos que a tortura, além de fazer falar, também foi utilizada para silenciar a história dos oprimidos e perpetuar a narrativa da ditadura militar. Diante do exposto, o documento abaixo é muito elucidativo:

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Após os primeiros dias, isto eu ficava em 1 quarto fechado, sem saber com quem estava, depois deste tempo a coisa amenizou mais para mim. Mas continuaram o interrogatório; sôbe, [sic] em que lugar ocultava o depósito de arma, o rádio transmissôr [sic] coisa que não existe na prelazia. Códigos de cartas, bem como siglas que usávamos para nos identificarmos como elementos da Prelazia. [...] Foi obrigada a identificação de fotografias; nomes, cartas, etc. Senti, que o interesse era arrancar da gente algo mesmo que não fôsse [sic] verdadeiro p/ comprometer a Prelazia de São Félix. Confesso, que cheguei a um estado psicológico, em que temia por tudo; pois existia ameaças de sempre possuírem meios de arrancar tudo que queria. Mas a verdade mesmo não os interessavam, pois nosso trabalho na Prelazia não esta baseado em partido politico, nem mesmo existe abuso moral por parte dos leigos e Padres por isto era uma preocupação marcante em nossas vidas comunitárias; perante ao respeito que devemos ter em relação ao povo e a Igreja universal, representada p/ S. Félix.380

Esta memória é construída em torno da violência que Tereza Salles vivenciou, isto é, em sua face irrepresentável. Algumas pessoas não conseguem expressar as suas experiências traumáticas, mas como podemos observar no documento acima, a agente de pastoral relatou o seu sofrimento com muita dor e esforço para trazer à tona o indizível e irretratável, ou seja, o uso da tortura pelo regime civil-ditatorial no Brasil, assim como os escritos de Primo Levi381 em relação a sua experiência no campo de concentração em Auschwitz. Os testemunhos dos agentes de pastorais são tidos como formas de desumanização representadas através das suas descrições das seções de torturas que estes vivenciaram no Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade de Campo Grande. Estas experiências certamente deixaram marcas indeléveis nas vidas destes sujeitos, como podemos verificar abaixo:

380Relato de Prisão de Terezinha – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.14, 1973, p. 12-14, grifos nossos. 381LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

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Após uma ou duas sessão [sic], colocaram-me assistindo ao meu noivo [Tadeu Escame] sendo interrogado c/ choques, foi horrível p/ mim psicologicamente, pois eu já não estava mais aguentando. Confesso que foi horrível mas, assumi com êle [sic] o que foi colocado; pois meu noivo ainda se lembrava da ata e pode explicar o que significava as anotações. Fomos obrigados a dizer que o Bispo era contra o Governo, que nosso trabalho era politico, e que o objetivo da Prelazia era de conscientização política. Nossas confissões a base de choques e pancadas foram gravadas, temos quase certeza; agora éramos levados para o interrogatório sempre algemados e encapuçados, não sabemos quem nos interrogou. [...] Gente, a verdade é que fiquei psicologicamente arrazada [sic], sinto que se assumimos no Brasil a Palavra do Evangelho, nós teremos que sofrer humilhações e até a morte, pois significa subversão.382

Os requintes de crueldade praticados pelos torturadores não se davam apenas sobre a dor e o suplício no corpo do torturado, mas, igualmente no emprego da violência psicológica submetendo uma pessoa a presenciar o seu ente querido ser violentado, como, por exemplo, no relato acima em que a agente de pastoral Terezinha [Tereza Salles] foi obrigada a assistir uma sessão de tortura do seu noivo, Tadeu Escame. A técnica da tortura, de acordo com Marilena Chauí383, se estabelece entre dois humanos (ou como na narrativa exposta, com a ocorrência de três pessoas), numa associação não-humana, isto é, o resultado primordial da tortura consiste na desumanização das vítimas, visto que o torturador se caracteriza em nível superior da condição humana e obriga o torturado a se inferiorizar em relação a mesma. Posto isto, é válido apontarmos que a tortura não almejava somente a dor e a angústia, sendo essencial a esta prática a imposição da humilhação cujo fator fundamental é a desumanização. Ainda em relação ao relato acima, torna-se importante ressaltarmos, conforme Marcelo Viñar que a experiência da tortura pode ser distinguida em três momentos sucessivos:

382Relato de Prisão de Terezinha – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.14, 1973, p. 20-22. 383CHAUÍ, Marilena. A tortura... p. 33.

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- o primeiro momento, o mais conhecido, visa a aniquilação do indivíduo e a destruição dos seus valores e de suas convicções; - o segundo momento desemboca numa experiência de desorganização da relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, o que chamei, a demolição; - o terceiro momento é a resolução desta experiência limite.384

Diante do exposto, entendemos que a tortura, além de eliminar fisicamente um dito inimigo da nação, também tinha como objetivo reprimir os seus ideais e princípios. O fato de Terezinha e Tadeu terem sidos obrigados a delatarem Dom Pedro Casaldáliga como opositor ao governo, bem como afirmarem que a Prelazia de São Félix do Araguaia tinha como trabalho a conscientização política, tem relação com o segundo momento da experiência de tortura, caracterizada por Marcelo Viñar como a demolição. A atribuição de uma culpa forçada sobre Casaldáliga é compreendida como um ato de resistência, a qual almeja se livrar das agressões físicas do torturador, assim percebemos que o casal de noivos desejava preservar a sua integridade contrapondo-se aos atos de violência e humilhação ao persistirem em constituir-se como humanos e detentores de corpos livres da dor. Neste sentido, o conceito de demolição insere-se no contexto em que o torturado está submerso em uma realidade marcada pela exacerbação da dor física, pela espoliação dos sentidos, como, por exemplo, ficar em meio à escuridão usando capuz ou óculos de borracha escuros, com a movimentação dos braços impedida pelas algemas; além da destituição da rede afetiva e protetora da família e dos amigos. Então, é nesta situação de demolição, que os indivíduos executam as suas ações por atitudes não lúcidas, apenas se pautando na vontade de se libertarem da condição desumana em que estavam inseridos, procurando se restituírem das suas sociabilidades que lhes foram suprimidas, conforme podemos evidenciar no relato do Antônio Carlos Moura:

384VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Exílio e Tortura. São Paulo: Escuta, 1992, p. 45, grifo do autor.

203

Quando cheguei à sala, no primeiro dia, puseram-me sentado numa cadeira, de costas para os interrogadores, e começaram a me perguntar por que fora trabalhar na Prelazia. Após algumas indagações, me disseram: ―Agora você vai abrir o jogo, porque seus colegas já falaram: O que é ‗material escolar‘?‖. Respondi q [sic] não sabia, e ele me mandou deitar no chão. Depois e alguns choques, confessei que era um código para designar armas. Fui torturado seguidamente para dizer o que não sabia, isto é, o desenrolar dos acontecimentos de 3 março de 72, em Santa Terezinha. Expliquei que estava a 500 km de distância de STZ, naquela ocasião, em Campos Limpos, mas ele disse que eu sabia de tudo, porque eu era amigo do Bispo. Inventei um monte de coisas, como, p. ex., que fora você, Pedro, quem inventara esse código e que me contara como tinha sido o tiroteio em STZ. Na verdade, não me lembro como fiquei ciente dos fatos, mas os torturadores não queriam ouvir respostas negativas. A cada ―não sei‖ que eu dizia, a manivela girava. Dessa forma, tive que inventar muitas coisas, procurando, com a narração de diálogos e fatos inexistentes, evitar a continuação das torturas. Nesse primeiro dia fiquei realmente apavorado (o que não ocorreu no dia seguinte). Entretanto, inventar não resolvia. [...] Ele tornou a perguntar no que eu era contra a Revolução. Repeti a resposta do dia anterior, e ele insistiu, com choques: ―Que mais?‖ Eu estava sem fôlego, e ofegava fortemente. Mas ainda consegui responder: ―Eu sou contra esse tratamento que os senhores estão nos dando‖. Incrivelmente, eles não reagiram a essa minha única ousadia. (Algumas pessoas, a quem relatei estes fatos, posteriormente, me disseram: ―Mas porque você não os xingava, ou lhes respondia assim ou assado ...‖ – A explicação é muito simples: sob tortura, só se pensa em responder aquilo que vá agradar os torturadores, que faça interromperem-se os choques. Se se consegue aguentar sem ter que inventar algo comprometedor, podemos dar graças Deus).385

A tortura divide o ser humano ao meio entre o corpo e a mente. Pois, de acordo com Hélio Pellegrino386, a dor impõe ao corpo maltratado que este fale contra a sua vontade e se alie aos desejos do torturador. Este fato é caracterizado pelo autor como ―identificação com o agressor‖, a qual ocorre de forma inconsciente no momento do esfacelamento do seu corpo, então este indivíduo

385Relato de Prisão de Antônio Carlos Moura – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.18, 1973, p. 4-6. 386PELLEGRINO, Hélio. Um regime que destrói. In: I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais: Depoimentos e debates. ELOYSA, Branca (Org.). Petrópolis: Vozes, 1987, p. 99.

204 passa a identificar-se com o seu algoz. Entretanto, não propriamente de forma heroica, mas como um ato inconsciente em que a própria pessoa passa a se torturar, assim como Antônio Carlos Moura que para diminuir a dor das agressões teve que mentir e incriminar Dom Pedro Casaldáliga. Neste contexto o que confere força e poder ao torturador é a imposição da violência para a eliminação do outro, ou seja, para ele se sentir eficiente, necessita retirar do torturado a informação que precisa. No entanto, se o torturador não consegue extrair as confissões do torturado, este é considerado um derrotado. Dessa forma, podemos considerar que os torturadores do agente de pastoral foram ―eficazes‖ ao arrancar dele as suas confirmações de ―subversão‖ na Prelazia de São Félix do Araguaia. Mas outro fato nos chamou atenção no documento acima, uma vez que mesmo Antônio Carlos Moura tendo que mentir e incriminar os religiosos da Prelazia de São Félix como uma forma de resistência contra os maus tratos sofridos pela tortura, este impôs aos seus torturadores que era contra o tratamento que ele estava recebendo na prisão. Então, nos perguntamos: Esta atitude foi realmente consciente? A sua fala adveio de uma espontaneidade ou do sofrimento causado pela tortura que acarretou neste indivíduo o anseio por explanar a sua indignação? Ao expor a sua revolta, entendemos que o agente de pastoral empregou um ato de oposição contra toda a brutalidade que vinha sofrendo no cárcere. Mesmo que estas fossem as suas últimas palavras, este sujeito não estava mais disposto a ser conivente com aquela experiência de morte em vida, e, nem muito menos atribuir sentimentos de poder e submissão aos seus carrascos. A tortura, como podemos perceber, é algo ligado a um projeto político que para a sua manutenção e imposição do poder passou a ser disseminada, ou seja, a população tinha consciência da existência dos espaços de extermínio e do uso da violência. Assim, consequentemente, o ato de se obter informações e confissões não estava somente atrelado ao fato de submeter e aterrorizar determinada vítima, mas na difusão do terror coletivo. Desse modo, a tortura almejava eliminar as convicções dos torturados e despojá-los dos seus laços identitários que os caracterizavam como sujeitos de certa comunidade, de tal

205 modo como a agente de pastoral que assinala a importância da lembrança dos seus amigos em orações para que a mesma pudesse resistir:

Gente, se aguentei, alguma coisa foi porque sentia a oração de tôdos [sic] que no momento acompanhavam o trabalho. Nestas alturas, de 43 kilos foi para os 35 kilos [sic], pois não conseguia mais raciocinar direito, estava cansada dos artifícios, ameaças empregadas a fim de confessar o que chamou de trabalho subversivo.387

A narrativa de Tereza Salles nos reporta aos fatos como se estes estivessem acontecendo no atual momento do seu relato, isto ocorre, porque de acordo com Márcio Seligmann-Silva, o testemunho sempre se dá no tempo presente. Ainda conforme o autor citado, ―o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa‖388. Deste modo, se nos atentarmos para os escritos da agente de pastoral, iremos notar que ela sublinhou a palavra ―subversivo‖, que de certa forma nos faz pressupor, o quanto a mesma deve ter ouvido esta expressão por parte dos seus algozes como um termo de acusação das atividades ―criminais‖ que esta, juntamente as pessoas ligadas à Prelazia de São Félix do Araguaia cometiam naquela espacialidade. Expor estas lembranças pode trazer à tona a reprodução do sentimento de dor e reviver a experiência de proximidade com a morte. A sua fala é delineada pela perplexidade e pelo medo, mas o ato de narrar confere uma sobrevida à vítima que busca verbalizar as suas dores e identifica-las em meio aos conflitos e nos casos de impunidade contra a população da Amazônia que ansiavam pela conquista da terra. O medo era uma arma importante contra os indivíduos considerados subversivos de forma que se disseminava a ideia da existência de centros de tortura que culminavam no ocultamento de pessoas, e que, consequentemente, qualquer um estava sujeito ao desaparecimento e a tornar-se alguém que nunca havia existido. Neste sentido, o relato de José Pontim é bem elucidativo: ―As

387Relato de Prisão da Terezinha – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A08. 2.14, 1973, p. 17, grifo da autora. 388SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma... p. 69.

206 notícias chegavam de todos os quadrantes da Prelazia, agentes, líderes de posseiros, presos com paradeiro desconhecido (...) eles (diziam) ―seria fácil em caso de óbito levar o corpo e soltar no meio de uma pista, passar uma viatura por cima e dizer que foi fuga e suicídio‖389. A ameaça foi um mecanismo coercitivo que impunha ao torturado o temor desta ser cumprida, pois esta geralmente era proferida com a mensagem ―implícita‖ de que o regime político vigente estava ajustado em exterminar todos os movimentos revolucionários que fossem contrários a sua imposição através do regulamento do AI 5. Neste sentido, forjar provas quanto uma fuga ou o suicídio de algum preso político era um ato simplesmente exequível, principalmente pelo fato deste indivíduo ser uma ameaça para a sociedade e ordem pública, e além do mais o torturado estava em uma situação de total degradação humana assinalada pela sua condição de desaparecido, como também em decorrência do seu estado inumano reduzido as vontades do seu torturador. Como consequência desta violência ocorreu a atomização do campo social, a desintegração da vida pública, a desconfiança e o medo entre os cidadãos, resultado de uma política de um Estado de terror que culminou na eliminação de vidas. ―Depois disso tudo ficaram as conseqüências, o medo de qualquer elemento fardado e a possibilidade de ser preso novamente‖390. Para Castor Bartolomé Ruiz391, a vítima está sempre submetida a uma condição de sofrimento e de uma violência injusta. Desse modo, a injustiça que os agentes de pastorais sofreram durante o período de cárcere na cidade de Campo Grande, gerou para estes a condição de vítimas suscitada pela injustiça vivenciadas naquele espaço. O autor ainda expõe que toda injustiça opera como forma de violência, sendo importante destacar que toda violência e qualquer injustiça tem duas faces: a do vitimário e a da vítima. Assim, na maioria das vezes o vitimário carrega a insígnia de vencedor através do poder instituído pela

389PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 3-4. 390Ibidem, p. 5. 391RUIZ, Castor Bartolomé. A testemunha e a memória... p. 71.

207 violência legítima, e a vítima caberá em se empenhar na sua posição de vencida em produzir uma narrativa da violência sofrida. Ainda conforme Ruiz392, a narrativa do sofrimento confere um novo acontecimento até então desconhecido, o qual estava oculto ao observador externo e inserido na interioridade da vítima só sendo possível existir como acontecimento político se for testemunhado. Este relato expõe a banalização da violência demonstrando o seu lado camuflado e trazendo à tona a desumanização dos atos de tortura. Deste modo, ao narrar a experiência de sofrimento se instaura um novo acontecimento.

Amarraram as minhas pernas na cama. O que me pediam eram detalhes sobre o trabalho da Prelazia, sendo que sempre sôbe [sic] ameaças e alguns socos, mais para fazer pressão psicológica. Inclusive a ameaça de aplicar o sôro [sic] da mentira. Obs. isto no momento deixou-se completamente abalada pois muito falam sôbe o sôro [sic] da verdade hoje aplicado em casos de tortura no Brasil. [...] Neste dia (26/06/1973), eu fui ameaçada de morte, pois lembro-me que o interrogador, dizia quero informação cêrto [sic]. Lembre-se que você está em nossas mãos, em lugar não identificado, não sabe qual a organização dele; [organização política que pertencia o Padre Francisco Jentel] portanto que eu pensasse bem antes de responder.393

Como podemos observar, Terezinha fala do interior do acontecimento, o qual institui um novo ponto de vista para o fato, sendo este somente possível de se realizar pela vítima, pois apenas ela vivenciou aquela experiência e pode falar como testemunha. A sua narrativa se torna uma revelação de algo que estava oculto nos bastidores da ditadura brasileira, expondo a crueldade da tortura e que confere a memória relatada um mecanismo para desconstruir a banalização da violência na nossa sociedade.

392Ibidem, p. 78. 393Relato de Prisão de Terezinha – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.14, 1973, p. 10-15.

208

Desse modo, de acordo com Elizabeth Jelin394, a testemunha pode ser caracterizada como alguém que viveu uma experiência e consegue em momento posterior narrar ou dar o testemunho, que ocorre na primeira pessoa pelo fato dela ter vivido o que se intenciona relatar. Nessa perspectiva, torna-se importante mencionar a testemunha, conforme Primo Levi com a função de delação para aqueles que não puderam ou não conseguiram falar das suas experiências no campo de concentração:

Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autenticas testemunhas. Esta é uma noção incômoda, da qual tomei consciência pouco a pouco, lendo as memórias dos outros e relendo as minhas muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são eles, os ―muçulmanos‖, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo o depoimento teria significado geral. [...] Os que submergiram, ainda que tivessem papel e tinta, não teriam testemunhado, porque a sua morte começara antes da morte corporal. Semanas e meses antes de morrer, já tinham perdido a capacidade de observar, recordar, medir e se expressar. Falamos nós em lugar deles, por delação.395

O ato de testemunhar para alguns sobreviventes ocorre como um mecanismo para se manter vivo, ou seja, ao colocar para fora todo o horror vivenciado pela experiência da desumanização, estes possuem o sentimento de se libertarem da carga de dor que trazem daqueles momentos vivenciados no cárcere. Dessa forma, as testemunhas encontram-se no dever de relatar pelo fato de terem sobrevivido ao sofrimento e violência e se sentem com a ―missão‖ de não deixar oculto esses eventos que assombraram a vida de muitos indivíduos. Mas, devemos levar em consideração que a necessidade de falar pode cair no silêncio quando não há pessoas dispostas a ouvi-las396.

394JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 80. 395LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes... p. 72-73. 396JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 82.

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Devemos ter em mente que toda narrativa do passado decorre da escolha dos acontecimentos, pois a memória é seletiva como também é impossível a sua total reprodução. Assim, de acordo com Elizabeth Jelin397, a memória implica em um primeiro momento no esquecimento ―necessário‖ para a sobrevivência e atuação do sujeito individual e da sua comunidade. No entanto, não existe um único tipo de esquecimento, mas uma multiplicidade de situações nas quais se manifestam esquecimentos e silenciamentos, com diversos usos e sentidos, conforme podemos constatar no relato do enfermeiro do povoado de Serra Nova, Edgar Serra. A narrativa de Edgar Serra de um modo geral não apresentou os fatos com maiores detalhes sobre a sua prisão e tortura no Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo Grande. Basicamente o seu relato se sistematizou na descrição do sequestro empregado pelo Comandante da Polícia Militar, Euro Barbosa de Barros, na sua condução a Brasília, pouco expôs sobre o inquérito policial, e nada falou a respeito da tortura física e psicológica que sofreu, ou seja, diferentemente dos outros agentes de pastoral que expuseram de forma descritiva toda a tortura vivenciada no cárcere, Edgar Serra apontou que sofreu pressão física e moral sem descrever o trauma que foi aquele acontecimento.

Nêsse [sic] mesmo dia à tarde, [12/07/1973] começaram os interrogatórios. Era chamado um de cada vez encapuzado e algemado. Alguns foram chamados 2, 3, 4 vêzes [sic]. Eu fui o último a ser ouvido. Aí, debaixo de pressão física e moral, queriam que eu dissesse a minha participação em movimentos subversivos a serviço da Prelazia.398

O silenciamento ou esquecimento de Edgar Serra dos momentos de tortura na prisão também podem ser vistos como um mecanismo de não ferir ou transmitir sofrimentos, pois no plano da memória individual, o medo em não ser

397Ibidem, p. 29. 398Relato de Prisão de Edgar Serra – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.19, 1973, p. 5.

210 compreendido também leva a silêncios399. Outra questão que também envolve o silêncio dos fatos, diz respeito em senti-los como traumáticos, assim o agente de pastoral no momento da sua narrativa reprimiu e negou aqueles acontecimentos, mas que poderão ser acionados posteriormente no momento em que a vítima julgar ter uma distância entre o passado e o presente de modo que se possa recordar o evento ocorrido, e ao mesmo tempo reconhecer a vida presente e os projetos do futuro. Entretanto, é válido destacar que o tempo da memória não é linear, cronológico ou racional, o que justifica de certo modo os esquecimentos de Edgar Serra. Testemunhar sobre o trauma culmina em obstáculos e entraves para que a narrativa se reproduza naqueles que viveram e sobreviveram a situações limites como a tortura. Narrar o sofrimento também implica em causar certos impactos sob a sociedade, no modo em que essas narrativas serão apropriadas e os diferentes sentidos que o público irá atribuí-las ao longo do tempo. Além do mais, para Primo Levi:

A recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque evocá-la dói ou pelo menos nos perturba: quem foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; quem feriu expulsa a recordação até as camadas profundas para dela se livrar, para atenuar os seus sentimentos de culpa.400

Podemos entender os silêncios e os nãos ditos de Edgar Serra como expressões de fissuras traumáticas, ou como estratégia para marcar a distância social com o receptor da sua narrativa, bem como na tentativa de restaurar a sua dignidade humana e o esquecimento do trauma sofrido ao redesenhar e assinalar espaços de intimidade/privacidade, pois ele não tem porque se expor a avaliação do outro relatando com detalhes os momentos de angústia e tortura vivenciados durante o cárcere401.

399JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p.31-32. 400LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes... p. 20. 401JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 96.

211

Ainda sobre o relato de Edgar Serra, nos questionamos o fato de como ele iria negar a Dom Pedro Casaldáliga o pedido de narrar sobre a sua prisão? Teria ele condições de não atender esta demanda, tendo em vista que os outros agentes de pastoral a fizeram prontamente? E, se pautando na lógica que Casaldáliga ao longo da sua presença no Araguaia, utilizou do mecanismo de dar publicidade aos fatos violentos ocorridos na região documentando e arquivando as ―provas‖ dos conflitos; de que forma Edgar Serra poderia contrariar tal estratégia? Assim, podemos imaginar que talvez, não acatar esta solicitação seria não dar importância e contribuição às lutas empreendidas pelos agentes de pastorais, leigos e religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia. Outro elemento importante que notamos na sua narrativa, diz respeito ao fato de que provavelmente Edgar Serra poderia estar sentindo medo de sofrer algum tipo de repressão ao relatar os momentos que vivenciou na prisão:

Finalmente no dia 20/08 mandaram que arrumássemos as malas. Fomos entregues à Polícia Federal que nos levaram ao Hospital Militar para exames de corpo delito e após a um médico civil para as mesmas finalidades. Nos dois lugares constataram a nossa perfeita forma de saúde. Logo após, os próprios Federais nos entregaram em liberdade no local que indicamos.402

Afirmar que a sua saúde e dos seus companheiros estava em perfeita forma após um mês de prisão sob ameaças e torturas, nos chama muita atenção pelo fato de que nas narrativas que expusemos de Antônio Moura, José Pontim, Tadeu Escame e Thereza Salles, estes descreveram um cenário de horror tomado pelo extremo uso da violência física e moral que acarretou em incalculáveis danos nas suas vidas, conforme podemos verificar no documento abaixo:

Dia 16 de agosto completou-se mês de prisão oficial. Mas fomos liberados somente no dia 20. Nesse dia, as 9 da manhã o cabo do dia veio avisar-nos que iríamos sair. Fomos levados por

402Relato de Prisão de Edgar Serra – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.19, 1973, p. 7, grifos nossos.

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três agentes da Polícia Federal ao Hospital Militar, para exame médico, que constatou queimaduras de choque em Tadeu, Pontim e Edgar, e debilidade física generalizada na Terezinha. Constou em alguma das seis fichas a existência de sinais de tortura, mas nós não assinamos nada... Após o exame no Hospital Militar, fomos levados a um médico ―civil‖- na verdade, um militar reformado – que também nos examinou, inventando um monte de doenças para cada um, e nem se referindo às marcas de torturas. Nesse último (Dr. Simplício, cujo consultório fica num sobrado velho à Rua Maracaju) não vimos nenhuma ficha ou laudo a ser feito.403

Diante da exposição do relato acima, continuamos a nos questionar por que Edgar Serra ocultou a real condição física e psicológica em que se encontravam depois de deixarem o presídio? Não temos respostas para tal questionamento, mas de acordo com a Elizabeth Jelin404, a vítima de um trauma como o da tortura talvez só se sentirá segura e tranquila para falar de tal acontecimento, quando for grande a distância de anos que separa seu testemunho do fato ocorrido. Assim, é válido lembrarmos que o relato do agente de pastoral foi redigido logo após a sua soltura da prisão, e que provavelmente por medo de sofrer novamente as represálias do governo militar, Edgar Serra tenha evitado expor a violação dos direitos humanos que foram perpetradas no Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo Grande; ou ainda sob um posicionamento mais sensível da nossa análise, seria levar em consideração que ao relatar sobre um episódio de dor e sofrimento que faz aflorar uma memória traumática vivenciada tão recentemente é que tornam as lembranças inacessíveis para se narrar o inenarrável. Após um mês de prisão os agentes pastorais tiveram o seu regime de incomunicabilidade quebrado e passaram a poder escrever cartas para seus familiares, a tomar banho de sol uma vez ao dia e a receber visitas duas vezes por semana, dentre as quais vieram os bispos de Campo Grande, Dourados, Cáceres, Cuiabá e Rondonópolis, além de vários padres e leigos.

403Relato de Prisão de Antônio Moura – Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.18, 1973, p. 9, grifo nosso. 404JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 96.

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Dom Pedro Casaldáliga não se calou diante do cenário de violência que tomou a Prelazia de São Félix do Araguaia, pois se calar significaria atribuir naturalidade para tal ato compreendido naquele momento como algo corriqueiro e característico do espaço da Amazônia. Casaldáliga não deixou que esta noção se petrificasse na sociedade brasileira e indignou-se com a ação do governo em reduzir o ser humano à condição de coisa violando-o fisicamente e psicologicamente. Assim, a forma como o Bispo encarou essa siatuação se resolveu a partir do mecanismo de dar publicidade aos acontecimentos no Araguaia, utilizando da sua habilidade política de um não enfrentamento direto e apelando para instituições nacionais e internacionais, as quais se sensibilizaram com os problemas da Prelazia e abraçaram a causa junto ao bispo, conforme podemos identificar na notícia do Diário Ya de Madri, reproduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo:

Ya, que é muito moderado, publicou um artigo violento, sob o título: ―A perseguição ao bispo espanhol dom Casaldáliga‖. O subtítulo diz: ―Continua a detenção de seculares colaboradores do bispo e a invasão das casas dos sacerdotes‖. O artigo afirma: ―Tudo se pode temer, conhecendo-se os procedimentos da polícia nos Estados do Brasil. A polícia militar age às vezes em cada Estado com independência das autoridades supremas da Republica [sic], sendo muito provável que, neste caso, se deixe conduzir pelos donos e gerentes das companhias latifundiárias da região. Nestas circunstâncias, nada garantirão as chamadas ―investigações oficiais‖, nem as negociações em alto nível.405

Perante a conjuntura política que o Brasil vivenciava, com a supressão dos direitos políticos dos seus cidadãos, coube a Dom Pedro Casaldáliga como uma estratégia de enfrentamento político, instituir uma espécie de ―rede solidária‖ nacional e internacional na ajuda dos problemas que o mesmo sofria juntamente com a população da Prelazia de São Félix do Araguaia. Portanto, diante o domínio de um regime autoritário que se utilizava da censura aos meios de comunicação do país, somente um jornal estrangeiro poderia elaborar tais queixas contra o governo

405BISPO. São Paulo, O Estado de S. Paulo, 03/08/1973, p. 12.

214 ditatorial brasileiro e ao seu aparato militar. Sendo que este apresenta a sua notícia com um tom de alerta e contestação ao modo violento que a polícia opera sobre a sua população, com a ideia de dar publicidade internacional aos fatos que ocorriam no Araguaia, e com isso, passar a mensagem de que o mundo estava vigilante sobre a detenção dos colaboradores de Dom Pedro Casaldáliga. Não perpetuar a imagem de que a fronteira era o lugar comum de práticas da violência, foi um mecanismo usado por Dom Pedro nas suas cartas/denúncias ao demonstrar que a Igreja do Araguaia juntamente com os seus adeptos estava sendo perseguida e que este fato não poderia permanecer camuflado pela censura, assim, como aconteceu com a Guerrilha do Araguaia que culminou na morte de 59 guerrilheiros406 devido o silenciamento e ocultamento deste horror na Amazônia. Dom Pedro Casaldáliga, estando ciente do poder repreensivo dos militares, não se calou em relação a prisão dos agentes de pastoral e publicou o documento abaixo:

Dia 7 de julho [1973], publiquei outro documento – Operações da Polícia Militar e outras Forças Armadas na área da Prelazia de São Félix, MT - que terminava com estas palavras: ―Nesta hora, com maior consciência e com vontade total de compromisso com o povo oprimido da região – particularmente os posseiros, os peões e os índios -, por amor do Evangelho do Nosso Senhor Jesus Cristo e em solidariedade com todos os que, neste país economicamente opressivo sofrem perseguição por causa da Justiça: Declaramo-nos, com humilde gratidão para aquele que nos fez dignos da sua Cruz libertadora, uma Igreja perseguida. E continuamos, caluniados, controlados, presos, continuaremos o nosso trabalho de conscientização e evangelização – um só e mesmo trabalho em plenitude para a Igreja de Cristo – que se preocupa com o homem todo e não somente com os espíritos (contrariamente à opinião do pretenso teólogo Coronel Euro). [...] A todos que nos acompanham com sua amizade e com sua oração, pedimos que nos ajudem a dar graças, por que cremos sinceramente que são bem-aventurados aqueles que sofrem perseguição por causa da Justiça‖.407

406Dados disponíveis no site do PCdoB: . Acesso em 22 dez. 2015. 407CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança... p. 84-85, grifos do autor.

215

O tom que Dom Pedro Casaldáliga imprime nos seus documentos/denúncias é de inconformidade diante das injustiças que a Igreja do Araguaia vinha sofrendo por se colocar ao lado daqueles indivíduos marginalizados pelo processo de (re)ocupação da Amazônia. Aceitar tal situação se consistiria em apoiar a exclusão daquela população que estava descartada dos projetos políticos e econômicos do Araguaia, sobretudo, no que diz respeito ao plano de evangelização que se organizava na conscientização de que o homem deveria ter as suas necessidades atendidas no plano terrestre e não em um fim escatológico, conforme Casaldáliga aponta ironicamente quando se refere ao Coronel Euro Barbosa de Barros como um pretenso teólogo que julga as suas ações como atividades subversivas/políticas desvinculadas da esfera espiritual. No dia 19 de agosto de 1973 houve uma grande celebração e manifestação em São Félix do Araguaia com a presença de quinze bispos, inclusive representantes do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns – que se fez representar no encontro pelos arcebispos de Vitória e João Pessoa, Dom João Batista da Mota e Dom José Maria Pires408, bem como alguns enviados da CNBB. Esta cerimônia repercutiu em toda imprensa nacional e internacional – Espanha, França, Alemanha, Itália, repudiando a ação repressiva do governo militar e pressionando para a soltura dos agentes pastorais da Prelazia409. Este ato resultou na soltura dos presos410 na manhã seguinte: Antônio Carlos Moura, Thereza Salles, Tadeu Escame, José Pontim, Edgar Serra e Thereza Adão, que foram encaminhados para exames médicos e obrigados a assinar um documento

408A celebração também contou com a participação dos Bispos: Dom Candido Padim (Bauru/SP), Dom Antônio Fragoso (Crateús/CE), Dom Hélio Campos (Viana/MA), Dom Gilberto Pereira Lopes (Ipameri/GO), Dom Tomaz Balduíno (GO), Dom Luiz Perez (Jales/SP), Dom Aldo Gerna (São Mateus/ ES), Dom Celso Pereira, bispo-auxiliar de Porto Nacional/GO e Dom Estevão Cardoso Avelar (Marabá/PA). IGREJA desagrava seu bispo. São Paulo, O Estado de São Paulo. 23/08/1973, p. 11). Disponível em: . Acesso em 22 dez. 2015. 409PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 5. 410Antonio Canuto no seu texto para o Relatório Final da Comissão da Verdade, aponta que além das pessoas que citamos na tese, também foram interrogados o posseiro de Serra Nova - Luiz Barreira de Souza, conhecido como Lulu por 3 vezes e a leiga Adauta Batista Luz por 2 vezes. CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 125.

216 afirmando que não haviam sido torturados. Entretanto, José Pontim afirma que esta assinatura decorre de uma ―atitude burra dos militares pois nossas costas eram testemunhos da tortura pela evidencia [sic] das queimaduras dos choques elétricos. Os socos chamados telefones custou-me em um dos ouvidos deficiência de + 25% da audição, hoje já alterado para mais de 35%‖411. De acordo com Dom Pedro Casaldáliga, a Polícia Federal fotografou, gravou e anotou tudo o que se passou durante a celebração litúrgica, como também espalhou panfletos com os símbolos da foice e da cruz, supostamente assinados pelo ―Partido Comunista‖ e pela ―Igreja Progressista‖412, bem como difundiu boatos e ameaças contra os participantes do evento. Mas, estes fatos não desanimaram ou amedrontaram a população local que participou numerosamente da concelebração intereclesial413. Um mês após a celebração intereclesial, os militares empreenderam um novo trabalho da ACISO na região com a presença da Aeronáutica, Exército e Polícia Militar. Estes juntamente com os universitários do Projeto Rondon, ―arrancaram dentes a granel e querem arrancar também admirações‖414. O coronel José Meirelles e o general Tasso Villar de Aquino (Comandante da 9ª Região Militar, com sede em Campo Grande) em companhia de outras autoridades assistencialistas do Estado fizeram uma visita aos povoados do Araguaia, em que se projetou para a população uma série de slides da estrada Cuiabá-Santarém da qual o coronel Meirelles era o responsável pela obra, com o objetivo de mostrar a outra face dos militares através dos serviços do Exército. A ideia era criar uma espécie de ―Operação Araguaia‖ permanente, assistencialista e repressiva para atuar contra a influência do Clero, mais especificamente para minimizar as ações de Dom Pedro Casaldáliga, tal como demonstra o documento a seguir de uma

411PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4. 412A cópia deste panfleto encontra-se no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia com a identificação: A2.2.16 P1.1. 413CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança... p. 90. 414Ibidem, p. 92.

217 reunião ocorrida no dia 4 de setembro de 1973 entre o Bispo e o general Tasso Villar de Aquino, em que este expressa que:

[...] visitaria muitas vezes a região e que iria trabalhar em defesa dos desprotegidos ―quer queiram ou não‖ e que tudo faria para o progresso da região. Afirmei-lhe ser isto mesmo que esperávamos e que precisava ser feito, pois até agora nada tinha sido feito. Exaltou-se mais ainda dizendo e repetindo que trabalharia na região, e em favor dos desprotegidos não aceitando privilégios de ninguém. Disse-lhe então que isto se tornasse realidade, não só palavras. Então, zangado mesmo, disse-me que meu conceito não lhe interessava (repetiu umas três vezes) e que iria trabalhar usando o diálogo, o entendimento e a compreensão como armas e não a pregação do ódio e da violência como fazem alguns.415

Mesmo após a prisão e tortura dos agentes de pastorais, a área da Prelazia de São Félix do Araguaia ainda continuava sob a presença constante do aparato militar como forma de conter possíveis ações ―subversivas‖, utilizando-se do mecanismo de aproximação da população local por meio dos ―mutirões de cidadania‖ realizados pela ACISO. Desse modo, entendemos o acompanhamento dos militares na região, devido ao fato desta estar localizada na extensão dos conflitos da Guerrilha do Araguaia que só seriam findados em dezembro de 1973. Interessante apontar que nos relatos dos agentes pastorais, estes demonstram que não haviam perdido a esperança de lutar pelos problemas presentes na Prelazia de São Félix do Araguaia. Passar por aquela experiência trágica os havia fortalecido mais, pois estavam envolvidos com uma Igreja comprometida com a libertação do seu povo e que não se calava diante as ameaças de violência. Caminhava sim para denunciar as estruturas de dominação que empregavam ações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural, como impor o poder por meio do uso da violência e o terror de Estado, seja ele expresso pelas forças militares do Governo Federal ou do Estado de Mato Grosso.

415Relatório da Entrevista com o general Tasso Villar de Aquino – Campo Grande MT. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.21, 1973, p. 3.

218

Ao analisarmos as narrativas traumáticas dos agentes de pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia, estas nos fizeram lembrarmos o texto ―Experiência e Pobreza‖ de Walter Benjamin, em que o autor expõe uma discussão sobre a miséria de experiência vivenciada pela sociedade moderna após a Primeira Guerra Mundial. Este fato é representado pela mudez que as pessoas enfrentaram após este acontecimento, a qual culminou na desmoralização das experiências coletivas dos indivíduos, bem como na incapacidade de comunicar e transmitir os seus ensinamentos através da tradição oral de contar narrativas, conforme o fragmento a seguir:

Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes.416

Walter Benjamin demonstra no seu texto que as experiências sempre foram transmitidas dos mais velhos para os jovens por meio das narrativas ou histórias. Entretanto, a experiência avassaladora provocada pela Primeira Guerra Mundial, imprimiu na nossa sociedade o retraimento da transmissão de experiências como produtos de ensinamento, pois não eram capazes de narrar o sofrimento da guerra, e assim, gerando o que o autor chamou de ―pobreza de experiência‖. Diante desta constatação, o historiador não pode deixar que o silêncio camufle as experiências de um acontecimento violento como a Ditadura Civil Militar no Brasil. Torna-se importante trazermos essas narrativas da violência com o objetivo de apresentarmos para a sociedade os ensinamentos advindos destes episódios narrados pelas vítimas da tortura no nosso país. O presente

416BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas... p. 115.

219 estudo se apoiou nos relatos da repressão arquivados no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, justamente para não deixar que estes caiam no esquecimento e acabem involuntariamente reproduzindo uma dita ―pobreza de experiências‖ de um modo contrário trabalhado por Benjamin417. Neste sentido, se estas narrativas não forem apresentadas por pesquisadores que se preocupem com a problemática da memória e do silenciamento dos casos de tortura no período ditatorial como uma experiência que deve ser problematizada/narrada, essas falas serão tão mudas quanto aquelas que não foram proferidas após os horrores da Primeira Guerra Mundial. Assim, os casos de tortura que ocorreram com os agentes da Prelazia de São Félix do Araguaia devem ser apresentados como um ensinamento para a sociedade com a finalidade de que estes fatos não ocorram novamente. Cabe ao historiador o trabalho de recuperar as narrativas e transmitir a experiência dos narradores como uma lição de vida, conforme podemos observar no texto ―O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov‖ de Walter Benjamn. O autor aponta que a modernidade fez desaparecer a figura do narrador, e desse fato resultou a nossa incapacidade de trocar experiências.

O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. [...] Ela [a narrativa] tem em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se ―dar conselhos‖ parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser algo comunicáveis. [...] O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar esta definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.418

O narrador está apto a dar conselhos, pois a sua sabedoria advém da experiência de toda uma vida, assim como o conhecimento adquirido das experiências alheias. A narrativa se detém em estabelecer a ―moral da história‖.

417Idem. 418Ibidem, p. 200-201.

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Entretanto, o esfacelamento da transmissão das experiências coletivas provocada pela incomunicabilidade do pós-guerra ocasionou o fim da narração tradicional, ou seja, ou indivíduos ficaram desorientados da ação de dar e receber conselhos. O diálogo da obra do filósofo Walter Benjamin tem relação com a historiografia progressista e burguesa, conforme Jeanne Marie Gagnebin expôs no prefácio do livro ―Obras Escolhidas‖, pois segundo Benjamin, tanto a historiografia ―progressista‖ quanto a ―burguesa‖ se apoiam na mesma concepção de um tempo homogêneo e vazio, um tempo cronológico e linear. De acordo com Gagnebin, para Benjamin, o historiador ideal seria o ―materialista‖, capaz de estabelecer um novo conceito, o do ―tempo de agora‖. Sendo importante destacar que a mesma elabora uma análise da obra de Benjamin em torno do conceito de experiência coletiva. Para Benjamin, o advento da informação ocasionou a morte da narrativa. A informação se tornou incompatível com a narrativa, pois ela só tem validade no momento em que é nova, já a narrativa nos proporciona subsídios para a reflexão e nunca se esgota. Assim, o autor diferencia o historiador que redige histórias do cronista que narra histórias, visto que ―O historiador é obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representa-los como modelos da história do mundo‖419. Jeanne Marie Gagnebin420 demonstra que Walter Benjamin ao constatar o fim da narrativa tradicional oferece meios para percebermos uma outra narração transmitida entre os cacos de uma tradição em migalhas, ou seja, uma renovação da problemática da memória. Para tanto, ela compara o narrador a um sucateiro (como também o historiador sendo um Lumpensammler, isto é, o catador de sucatas e lixos das grandes cidades modernas), mas que não tem por alvo recolher os grandes feitos. O historiador deve se apegar aquilo que é deixado de lado e não tem significação, algo que a história oficial não saiba como trabalhar. A autora

419Ibidem, p. 209. 420GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer... p. 53.

221 aponta para o fato do sofrimento indizível que a Segunda Guerra provocou, bem como para aqueles que não têm nome, o anônimo ou apagado pelo esquecimento da memória oficial, elementos com os quais o narrador e o historiador teriam que trabalhar para transmitir o que a tradição dominante estreitamente não se lembra. Essa atividade está baseada na atitude de difusão do inenarrável, em um compromisso com o passado e com as suas vítimas. Partindo da premissa que o historiador deve se guiar por aquilo que a história oficial não problematizou, torna-se importante para este estudo, assim como para a sociedade brasileira, a apresentação dos relatos dos agentes de pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia que foram torturados no ano de 1973 na cidade de Campo Grande. De acordo com Carlos Fico421, o nosso enfrentamento com a nossa história de um passado traumático encontra-se retraído pelo fato de os presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco terem praticamente ignorado a ditadura militar. Quando o tema voltou na pauta de discussões já haviam se passado dez anos do término do regime, sendo a questão retomada no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação em 1995 da Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos. Recentemente temos os trabalhos da Comissão da Verdade cuja instauração foi negociada com os militares, não se supondo o julgamento dos repressores assegurados pelo pacto da anistia de 1979. De qualquer forma, esta não deve ser usada para se vingar dos atos de violência cometidos durante a ditadura militar, e sim, estabelecer uma cultura da memória como vemos nos outros países da América Latina. Essas narrativas estão submergidas por uma política do esquecimento que impedem o acesso irrestrito aos acervos da ditadura militar, como também pelo negacionismo de que de ocorreram casos de tortura durante o período ditatorial na América Latina. Assim, o negacionista elimina novamente as vítimas e toca na ferida da memória do sobrevivente, a qual só será amenizada quando a

421FICO, Carlos. Brasil: a transição inconclusa. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Org..). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012A, p. 33.

222 esfera pública estiver disposta a ouvir essas pessoas, e, a sociedade se manter engajada na busca pela reparação dessas injustiças históricas, que de certa forma irão trazer de volta a sua dignidade422. Tendo como referencial o regime de historicidade da Historia Magistra Vitae423, na fundamentação do lembrar para não repetir, torna-se significativo apontarmos que esta lembrança deve ser orientada, por exemplo, na inserção dos testemunhos dos sobreviventes como parte do currículo escolar, na abertura irrestrita dos arquivos, no debate e construção de mais memoriais, na abertura dos tribunais às testemunhas da ditadura. Desse modo, quando as vítimas poderem expor as suas lembranças e tensões como um mecanismo para evitar que o decorrer do tempo faça desaparecer estes agentes históricos, irá garantir a elas um processo libertador acerca da impunidade vivenciada na história recente do Brasil424. Os testemunhos das vítimas de tortura são tidos como indícios indesejáveis, pois negam-se a estas o direito de acusação. A ditadura militar conseguiu silenciar as testemunhas e caracterizá-las como agentes vingativos que, inconformados por sua prisão punitiva, trazem à tona lembranças que deveriam ser esquecidas, tendo em vista que a sociedade está enveredada a resistir contra a tríade memória-verdade-justiça425. Desse modo, nos colocamos como o historiador Lumpensammler, ou o catador de papeis que não se vincula aos grandes feitos, e, busca dar visibilidade aos fatos postos como secundários que a memória oficial delegou ao esquecimento. A história do Brasil em todos os seus aspectos, inclusive quanto à ditadura militar, é mais que a repressão aos grupos armados nas grandes capitais litorâneas. A Guerrilha do Araguaia demorou décadas para se tornar alvo das investigações por parte da imprensa, e quase cinquenta anos para receber

422SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico... p. 113. 423KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... p. 43. 424SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3-20, jan./jun. 2010, p. 15. 425Ibidem, p. 16.

223 expressivos trabalhos acadêmicos que lhe fizessem referência. Em Mato Grosso essa memória foi aparentemente apagada, e pouco se retrata a sua relação com os casos de repressão armada durante o governo ditatorial. Apenas recentemente apareceram os relatos da repressão no campo, principalmente com a divulgação do documento ―Retrato da Repressão Política no Campo (1962-1985)‖426 lançado em dezembro de 2010, como também o ―Relatório Figueiredo‖427, desaparecido há 45 anos e encontrado em abril de 2013, que a Comissão Nacional da Verdade passou analisar no segundo semestre de 2013, mas pouco se tem escrito sobre ele. Diferentemente do enorme volume de material que é produzido sobre a luta armada nos grandes centros litorâneos, notamos que o estado de Mato Grosso não possui expressão notória a respeito dos trabalhos historiográficos sobre a Ditadura Militar no Brasil. Assim, nos questionamos se é possível conhecer a História do Brasil apenas pela espacialidade Rio – São Paulo? É possível a compreensão da extensão dos atos dos governos civis-militares apenas olhando para São Paulo ou Rio de Janeiro? Acreditamos que essas ―grandes narrativas‖ ditas nacionais não podem prescindir das outras narrativas, que as compõe, que lhes dão formas, limites, que fazem parte dessa história que se quer nacional, sem as quais não se entenderá a História do Brasil.

426A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que a partir de uma iniciativa do Executivo federal, assumiu a responsabilidade para reconhecer formalmente, caso a caso, a responsabilidade do Estado pela morte de opositores ao regime militar em decorrência da ação de seu aparelho repressivo, aprovar a reparação indenizatória e buscar a localização dos restos mortais. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2016. 427O Relatório Figueiredo, apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país — principalmente por latifundiários e funcionários do extinto SPI. A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os executores que ceifaram diversas etnias e culturas milenares. Documento disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2016.

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4. AS TÁTICAS DE ENFRENTAMENTOS E A RESISTÊNCIA DOS POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA EM PORTO ALEGRE DO NORTE

Por muito tempo a história não tratou as ações dos camponeses como advindas de sujeitos históricos, estes eram tidos apenas como dados estatísticos sobre densidade populacional, migrações de trabalhadores, informações a respeito das propriedades de terras e produção rural. Neste sentido, esta tese busca dar visibilidade para os conflitos e resistências dos posseiros de Porto Alegre do Norte no reconhecimento das suas áreas de produção, e, consequentemente a obtenção dos títulos das suas propriedades como uma atitude resultante destes indivíduos como agentes históricos na luta pela terra no Araguaia mato-grossense. Nos estudos de Edward P. Thompson428, sobre a Economia moral da multidão inglesa no século XVIII, o autor tece uma crítica aos pesquisadores que embasam as suas análises sobre os movimentos populares na Inglaterra do século XVIII, relacionando-os ao fato de que a fome provocada pela escassez de alimentos gerava naqueles sujeitos atitudes contestatórias. Para Thompson, esses autores desprezam o fato de que aqueles agentes históricos estavam pautados na lógica das relações morais e éticas que a multidão tinha como justas e legítimas ao se revoltar ou realizar motins durante os períodos de baixa produção de alimentos. Pensando nos estudos de Thompson, buscamos uma relação com as resistências empregadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte, mas tomando cuidado com os aspectos que diferenciam as pesquisas sobre a economia moral no que diz respeito ao tempo e espaço, porém sendo importante destacar que os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, vinculados por princípios morais, sobretudo em relação ao significado da terra, sendo esta para a manutenção da sobrevivência familiar, também desenvolveram estratégias de lutas em oposição à

428THOMPSON, Eduard P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

225 lógica da terra de negócio das empresas agropecuárias que agiram violentamente contra aquela população, muitas vezes até com a conivência do aparelho estatal. Para compreendermos os posseiros de Porto Alegre do Norte como agentes históricos e resistentes ao processo de desapropriação das suas terras, nos embasamos também nos estudos realizados por James C. Scott429, o qual analisa os atos de resistências empregados por camponeses malaios do povoado de Sedaka. Estes contrários a suas substituições na colheita do arroz por maquinários passaram a empreender ―atos revoltosos‖ contra os fazendeiros que utilizavam as máquinas colheitadeiras. Estas atitudes podem ser evidenciadas desde os incidentes de sabotagem, os incêndios premeditados e os esforços de greves contra aqueles que possuíam máquinas em suas plantações. Desse modo, a partir das pesquisas de Scott, pudemos ter sustentação teórica para demonstrar que, assim como os camponeses de Sedaka, os posseiros do Araguaia mato-grossense também não foram figuras passivas na luta pela terra, efetuando ações de resistências cotidianas. Como referencial teórico para entendermos e caracterizarmos as formas de resistências empreendidas pelos posseiros, utilizamos dois métodos apresentados por James C. Scott430, mas certamente tendo consciência de que as realidades estudadas pelo autor divergem em relação ao tempo e espaço da nossa pesquisa. A primeira é a resistência cotidiana, e a segunda diz respeito à confrontação direta; assim, partindo da análise destes conceitos, demonstraremos ao longo do texto como os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte resistiram à ocupação das suas terras pelas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu.

429SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia: discursos ocultos. Mexico: Ediciones Eras, 2000. 430SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. Raízes, Campina Grande, v.21, n. 01, p. 10-31, jan./jun. 2002, p. 13.

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4.1 A “limpeza da área”: o histórico de constituição da Agropecuária Piraguassu

No ano de 1971 foi implantada a agropecuária FRENOVA no patrimônio de Porto Alegre do Norte e como podemos observar no capítulo dois desta tese, esse fato gerou vários conflitos e tentativas de negociações para que os posseiros pudessem permanecer nas suas áreas. Em outubro de 1972, padre Eugênio Consoli enviou uma carta a Dom Pedro Casaldáliga relatando o desespero dos trabalhadores rurais em relação à criação da nova sede da FRENOVA, composta por três casas e um retiro de gado a três quilômetros do povoado de Cedrolândia. O nome da nova sede de 72.340 hectares era Piraguassu431. Os anos se passaram e os conflitos continuaram acirrados entre a população local e os empreendimentos agropecuários. Assim, entre 1975 e 1976, a Piraguassu Agropecuária S.A começou a sua independência da FRENOVA, fazenda matriz, e iniciou-se a transferência gradual do controle acionário para o grupo YANMAR432 – Equipamentos Agrícolas433. Naquele momento ocorreu uma nova fase de lutas para a permanência na terra, trazendo à cena novos sujeitos responsáveis pela ―limpeza da área‖434. A ―limpeza da área‖ não se limitou ao espaço de (re)ocupação do Araguaia mato-grossense, sendo importante destacar que esta prática foi utilizada em outros projetos de colonização em Mato Grosso, a exemplo de Sinop, situada no norte do Estado, onde os conflitos pela posse da terra gerou contradições em sua colonização, o avanço da agropecuária, a expulsão de colonos e índios, o uso do trabalho análogo ao de escravo, dentre outras formas de violência para a

431Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.08, 1972, p.9. 432O primeiro escritório da YANMAR Diesel do Brasil Ltda. foi fundado em 1957, em São Paulo (SP), na Avenida Rio Branco, onde teve início a comercialização de motores com a série NT65-K importado da Matriz no Japão. Disponível em: < http://www.yanmarsp.com.br/empresa>. Acesso em 30 mar. 2017. 433 Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.4.11, 1980, p. 2. 434Termo utilizado para a retirada de posseiros e populações tradicionais de áreas adquiridas pelos empreendimentos agropecuários.

227 instauração do projeto SINOP435. No município de Alta Floresta, localizado no extremo norte de Mato Grosso, o projeto de colonização da empresa privada INDECO, tendo como proprietário Ariosto da Riva, fez uso da violência contra índios, posseiros e garimpeiros, expulsando-os violentamente das áreas do projeto, assim, em seus relatos o proprietário nega a existência de índios na região, fato este contestado por um funcionário da empresa: ―Nós aqui domamos os índios e fizemos a limpeza‖436. Os projetos de colonização tinham como propósito formar novas cidades na Amazônia Legal e foram parte da estratégia política dos governos militares de controle dos conflitos agrários no Sul, Sudeste e Nordeste do país, mas em contraposição, o governo ditatorial para a criação dos mais de cem municípios em Mato Grosso foi conivente com a prática da ―limpeza da área‖ contribuindo no impedimento do acesso à terra por trabalhadores rurais e restringindo sociedades indígenas dos seus territórios. O grupo YANMAR adquiriu a área ciente de que havia trabalhadores rurais com direitos de posse, pois em um boletim de imprensa redigido pela CNBB, a mesma relatou a seguinte situação:

Visando encaminhar soluções justas para uma das áreas conflitivas na Prelazia de São Félix do Araguaia, o Bispo assinou um Protocolo com a Piraguassú Agro Pecuária [sic] S.A. Reconhecendo a boa vontade existente entre as partes e no intuito de encaminhar uma solução para os moradores de Porto Alegre do Norte e arredores no município de Luciara-MT, reuniram-se nos dias 28 e 29 de dezembro de 1972. D. Pedro Casaldáliga Bispo de São Félix e Padre Francisco Jentel como representantes dos interêsses [sic] dos referidos moradores, com o superintendente da PIRAGUASSÚ – Agro Pecuária S/A. Engº JOÃO CARLOS DE SOUZA MEIRELLES.437

435SOUZA, Edison Antônio de. O poder na fronteira: hegemonia, conflitos e cultura no norte de Mato Grosso. Tese (Doutorado em História) Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008. 436GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 1986, p. 83. 437Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Boletim de Imprensa, 1973, p. 1. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Grifos do autor.

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Para a resolução dos conflitos, alguns órgãos foram solicitados com o objetivo de realizar um levantamento de estudos na área. Em agosto de 1975, a SUDECO e os seus departamentos, o DDL e o DRH, elaboraram o seguinte documento: ―Levantamento Socioeconômico, Tabulação e Análise de Dados da Área de Porto Alegre do Norte (Luciara-MT)‖. De modo geral, a pesquisa apontou que Porto Alegre do Norte dispunha de possibilidades para soluções pacíficas, tendo em vista que ―as partes conflitantes estão dispostas a encontrar um ponto comum, que leve um acordo definitivo‖438. Como conclusão da investigação, esta demonstrou que o problema mais urgente da região era o da posse da terra, necessitando assim de lotes urbanos e rurais, sendo este último estabelecido de acordo com os critérios do INCRA para regularização de terras públicas. Entretanto, mesmo com as conclusões da equipe de pesquisa, os lotes rurais não foram disponibilizados para os trabalhadores do campo de acordo com os critérios do INCRA no Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974 que discorre sobre a dimensão da área a ser titulada. Diante deste contexto, a Agropecuária Piraguassu contratou novos funcionários no segundo semestre de 1976, o gerente Keizo Tukuriki e o empreiteiro geral Samiyoshi Nito. Nesta fase, os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia demonstram que, ―Inicialmente, não agiram com a típica violência para tirar os posseiros, pelo contrário, usaram de inúmeras tretas, jogaram uns posseiros contra os outros‖439. Este período foi dividido pela documentação da Prelazia em dois momentos: 1976/1977 – considerado ―Época branda‖ e 1978/1979 como ―Época violenta‖.

438BRASIL. Levantamento Socioeconômico, Tabulação e Análise de Dados da Área de Porto Alegre do Norte. [S.l.: s.n.], 1975. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.21, 1975, p. 6. 439Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.4.11, 1980, p. 2.

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4.2 “Época branda” e as táticas de resistências dos posseiros

A ―Época branda‖ é caracterizada pelo mecanismo de pressionar os posseiros para sair e vender as suas terras. As intimidações eram realizadas pelo gerente da Piraguassu, Keizo Tukuriki. Ele oferecia um preço abaixo do valor real de mercado ou coagia os trabalhadores rurais a assinar o direito de posse com apenas 50 hectares. No entanto, de acordo com os critérios adotados pelo INCRA no Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974440 para regularizar a dimensão da área a ser titulada, traz as seguintes indicações: 1) módulo mínimo de 100 hectares para exploração agrícola; 2) um acréscimo de 2 hectares por cabeça de gado, quando houver exploração agropecuária. Porém, a Piraguassu, adotou um sistema particular: a) módulo de 50 hectares para exploração agrícola; b) módulo de 110 hectares para quem tinha exploração agropecuária, conforme podemos observar no relato abaixo:

Querido amigo Pedro e Pedrito. [...] Olha aqui tudo bem só que o Japonez [sic] é sempre envestino [sic] com um e com outro para asinar [sic] ou direito de posse mais diz que o direito é só 50 ectare [sic]. Nós dizemos porque que em Santa Terezinha o direito foi de 100 ectares [sic]. Ele Japonez [sic] respondeu que lá em Santa Terezinha só tiveram aquele direito porque teve aquele bangui bangui. Mais diz ele que o coronel disse que aqui a lei é essa 50 ectare [sic]. E a raimunda [sic] disse que não temos armas mais temos cacete.441

Os apelos no documento acima dos trabalhadores rurais João Manoel Rodrigues, João Souza Lima e Pedro Azevedo Guimarães se direcionavam ao corpo eclesiástico da Prelazia de São Félix do Araguaia, pois, ainda cientes de que tinham direito a 100 hectares de lote para a sua produção, eles não possuíam forças política e social para contrariar os valores estipulados pela Piraguassu, ou

440Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.20, 1974, p. 2. 441Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.13, 1976, p. 1-2.

230 seja, pelo gerente Keizo Tukuriki, conhecido como Japonês e também pela suposta autoridade citada como Coronel. Ao questionarem o porquê de os posseiros de Santa Terezinha terem adquirido 100 hectares de terra, o gerente esclareceu que aquele povoado se envolveu em conflitos, mas que em Porto Alegre do Norte não teria contestações quanto o tamanho das áreas, tendo em vista que o suposto ―Coronel‖ já havia mensurado a dimensão de 50 hectares. As intimidações e pressões marcaram o cotidiano dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte. O discurso dos empreendimentos rurais atrelados à polícia local conferia àqueles indivíduos a negação da sua cidadania assinalada pela falta de assistência técnica do INCRA e garantia dos seus direitos sob as posses. Em contrapartida, havia a resistência daqueles que não se deixavam abalar pelas ameaças e falsos dados em relação ao tamanho das suas áreas de cultivo, como é o caso da posseira Raimunda que de certo modo alegou não ter armas de fogos, mas que possuía outros instrumentos de enfrentamento para permanecer na sua terra. Podemos assinalar essa resistência ao fato de que esses sujeitos históricos, provenientes em sua maioria dos estados do Nordeste do país, já vivenciavam o modelo agrário concentrador nos seus lugares de origem, e a migração foi um ato de resistência contra aqueles que os subordinavam. Assim, a permanência na terra em Porto Alegre do Norte era um meio para se tornarem trabalhadores libertos dos laços impostos pelos latifundiários, sendo que para alcançar esse ideal, eles poderiam utilizar da resistência direta442, ou seja, o confronto direto para garantir o acesso à terra e ao trabalho familiar. Se levarmos em consideração que o lugar é o fragmento de um espaço em que os indivíduos estabelecem significados, características e heranças culturais, bem como a constituição dos laços de pertencimento, identidade e história. O patrimônio de Porto Alegre do Norte, ao longo dos trinta anos de ocupação pelos posseiros passou a representar para estes uma espacialidade assinalada pela caracterização de um lugar, ou seja, era onde ocorriam as relações

442SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistência...

231 sociais delineadas pela interação e socialização política na qual os trabalhadores rurais se reconheciam e adquiriam uma visão crítica da sua realidade. A criticidade e o conhecimento dos posseiros em relação aos seus direitos sob as suas posses, adivinha de reuniões realizadas com os agentes de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia, composta por ministros ordenados, religiosos, religiosas, leigos, leigas e animadores e animadoras das comunidades443. Os objetivos e as linhas básicas da Pastoral da Prelazia têm as seguintes definições:

A Igreja Particular da Prelazia de S. Félix, MT, em comunhão a Igreja do Terceiro Mundo - por causa do Evangelho - e interpretada pela realidade local, - opta pelos oprimidos e em, conseqüência, define sua Pastoral como evangelização libertadora, [...] destacamos, da realidade de opressão em que vive o Povo desta região, os seguintes postos: - superstição, fatalismo e passividade; - analfabetismo e semi-analfabetismo; - marginalização social; - latifúndio capitalista responsável pela permanência desta situação de opressão. Objetivo: A Prelazia tem como objetivo desencadear e acelerar no Povo da região o processo de libertação total com que Cristo nos libertou (CF. Gal. 5). Meios: 1. Encarnação na pobreza, na luta e na esperança do Povo. 2. Educação libertadora pela conscientização e promoção humana. 3. Denúncia profética.444

Por ser uma instituição ligada às concepções da Teologia da Libertação, a Prelazia de São Félix do Araguaia, como observamos na citação acima, se organizava em uma evangelização libertadora cuja população era carente de infraestrutura básica e oprimida pelo avanço do capitalismo do campo, necessitando, assim, de uma Igreja que atuasse junto aos seus fieis não apenas no

443PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA. Manual Prelazia de São Félix do Araguaia: objetivos, atitudes normas. São Félix do Araguaia: [s.n.], 2002, p. 9. 444CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça... p. 73-74.

232 sentido espiritual, mas também na resolução dos problemas sociais das suas comunidades. A dinâmica de discussão das problemáticas, tais como: saúde, educação, política, economia e religiosidade dos povoados que compunham a Prelazia de São Félix do Araguaia, era realizada num primeiro momento em uma reunião dos agentes de pastoral intitulada de ―bolão‖445. Posteriormente ocorria a Assembleia do Povo ou Assembleia Popular que ―tinha os seus problemas levados para o Bolão. A reunião da equipe era para marcar os rumos das definições das atuações446‖. Ainda sobre o trabalho de esclarecimentos dos direitos dos trabalhadores rurais, Dom Pedro Casaldáliga, em uma carta direcionada para os leigos Altair, Teca e Hélio os orientou sobre a importância de lembrar aos posseiros que estes tinham o direito de permanecer nas suas posses e que somente o INCRA possuía autoridade para resolver os assuntos das áreas em conflitos. É importante destacar que o Bispo também alertava que o ―módulo‖ oficial do INCRA para Mato Grosso era de 20 alqueirões ou 100 hectares de terra. Desse modo, Casaldáliga também estimulava as pessoas em não desistirem de ter as suas terras regularizadas. Assim, ele diz que:

Precisa que ninguém esmoreça, que ninguém se venda por uma besta indenização que não vai resolver o problema de ninguém, que não se dê pé as ―piranhas‖ ou traidores. E que todo mundo trabalhe, sem medo e sem preguiça, sem bebedeiras, unidos, com esperança. ―A união faz a força‖.447

As narrativas orais também demonstram a atuação de Dom Pedro Casaldáliga junto aos posseiros para que estes permanecessem em suas posses. O relato cedido por Ana Felicia Araújo, viúva do posseiro Alexandre Quirino, ex- delegado de Porto Alegre do Norte, esboça o trabalho de mediação da Prelazia de

445Odile Eglin entrevista de uma hora e vinte minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 na Aldeia Tapirapé no município de Confresa. 446Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida a autora, em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte. 447Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.1.11, 1972, p. 1.

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São Félix do Araguaia juntamente com a sua equipe e com o apoio de Casaldáliga:

[...] a Prelazia toda ajudou. Principalmente o bispo Pedro. Tinha dia que a gente estava fraquinho pensando: será que nós vamos vencer? E tinha um apoio e quando pensava que não, o padre Pedro chegava. Ali foi um homem de Deus. Aí ele chegava, reunia todo mundo e conversava. [Forte emoção expressada por choro]. [Pausa para a entrevistada tomar água] [...]. A Igreja foi muito importante para nós. Eles faziam reuniões para conversar. Dava uma força para nós. O bispo explicava. Era igual estar doente e tomar uma injeção que o ânimo voltava. [Risos]. Nas reuniões ele explicava os nossos direitos sobre a terra. Explicava quais eram os nossos direitos. Ele ajudava muito, mas não dizia eu vou fazer isso. Ele ajudava de uma maneira, por causa das perseguições contra ele. Ele era muito perseguido. O bispo foi muito perseguido. Já tentaram matar o bispo por muitas vezes, mas aqui não.448

Ao perguntarmos da atuação de Dom Pedro Casaldáliga na luta pela terra em Porto Alegre do Norte, a entrevistada Ana Felicia Araújo teve uma forte emoção ao lembrar-se das visitas do Bispo na sua comunidade. Ela chorou por muito tempo e teve dificuldade em retomar a fala, pois a narrativa se tornou algo incômodo à medida que as lembranças trouxeram à tona o sofrimento vivenciado nos conflitos. A testemunha deixa claro que a presença de Dom Pedro era o que motivava a permanência na terra, por meio das suas orientações em relação aos direitos dos trabalhadores rurais sob as suas posses. Essas memórias são semelhantes àquelas relatadas pelos agentes de pastorais que foram torturados no ano de 1973, visto que essas lembranças envolvem conflitos, mortes, ameaças, tensões, tempos difíceis que marcam tanto quanto as torturas. Quanto a Dom Pedro Casaldáliga, ele é figura marcante em razão de sua presença ao lado daquelas pessoas, devido a sua coerência, seu carisma, sua coragem e seus testemunhos. É importante destacarmos que ao falarmos de Dom Pedro, a entrevistada conferiu a este, de certo modo, a responsabilidade pela articulação política, ou seja, Casaldáliga não atuou no confronto direto ou na resistência

448Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 na cidade de Porto Alegre do Norte.

234 cotidiana449, mas a sua participação se deu por meio das suas instruções, às quais Ana Felicia conferiu grande importância e tomou como sinônimo de coragem, uma vez que esta atitude lhe rendeu muita perseguição e até mesmo atentados contra a vida do religioso. A partir das reuniões realizadas pelos membros da Prelazia com os posseiros de Porto Alegre do Norte, estes tinham conhecimento dos seus direitos em relação ao tamanho da indenização das suas posses e da permanência nas suas áreas de cultivo e criação. Entretanto, para se respaldar frente às intimidações do gerente da Piraguassu, o posseiro Pedro Azevedo Guimarães, solicitou o seguinte documento:

Pedro e Pedrito pesso [sic] que se aquele fotocopio que o coronel da Sudeco mandou para nós aqui estiver aí. Pesso [sic] mandar me. Haxando [sic] portunidade [sic] certa para nós reprezentar [sic] para o Incra e o Japonez [sic] da Piraguassu ele diz que nós não temos esse documento e a estoria [sic] é aquela de 50 hectario [sic] e dentro da haria [sic] hurbana [sic].450

As fotocópias solicitadas por Pedro Guimarães são o Levantamento Socioeconômico, Tabulação e Análise de Dados da Área de Porto Alegre do Norte (Luciara-MT) e o Ofício Circular 32/nº279 do INCRA de 13 de novembro de 1974, em que constam os dados do tamanho das áreas a serem indenizadas em Mato Grosso em 100 hectares. Os documentos seriam as provas necessárias para contestar a indenização da sua posse em apenas 50 hectares pela Piraguassu. Em posse desses instrumentos de comprovação dos seus direitos, Pedro A. Guimarães poderia exercer uma estratégia de resistência na luta pela terra, tendo em vista que a sua palavra e conhecimento não valeriam como provas, este apelou para os dados comprobatórios elaborados por órgãos governamentais e, assim, se resguardar nas próximas investidas de desapropriação da sua área. No

449SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia... 450Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.13, 1976, p. 3.

235 entanto, o seu enfrentamento não teria eficácia de forma individual, conforme podemos observar no relato abaixo:

Pedro Eu ja tou cansado de dizer para os poceiros [sic] que os seus direitos é 100 hect mais não tam [sic] me atendendo o Incra e o Japonez [sic] tão levando na conversa e tão feichando [sic] os contratos de 50 hectares. Mais já foram só os Deonels e os Angélicas451. Tou [sic] pedindo para mandar chamar o Pedro Bispo e o cenhor [sic] prefeito para todos combinar de acordo como foi falado desde o prinsipe [sic] e Bispo traz aquele esclarecimeto [sic] de 100 hect mais hectares por cabeça de animal pastivo.452

O trabalhador rural Pedro A. Guimarães, ao identificar que alguns grupos de familiares estavam aceitando a proposta oferecida pela Agropecuária de 50 hectares, solicitou uma reunião com Dom Pedro Casaldáliga e Lídio Limeira Brito, prefeito de Luciara, para esclarecerem que o tamanho da indenização das suas posses era de 100 hectares. Provavelmente, Pedro A. Guimarães estava receoso por duas situações: 1) ter que aceitar uma área de 50 hectares, o que inviabilizaria a prática da agricultura de subsistência e a criação de animais; 2) se todos os posseiros cedessem à venda das suas áreas, este ficaria com a sua família isolada e futuramente teria que vender a sua terra por um preço abaixo do mercado ou seria expulso dela por pistoleiros, pois não teria como resistir sem o apoio dos seus vizinhos. De acordo com a documentação da Prelazia de São Félix, esse processo de aceitação do número reduzido de hectares de terras a que os posseiros tinham direito ocorreu por meio de artimanhas do INCRA que ―conscientizou‖ uma família para aceitar a proposta em uma reunião, onde cerca de vinte pessoas também concordaram com o tamanho da área indenizada pela Piraguassu. Desse modo, os agentes de pastoral se articularam para que os posseiros fossem ressarcidos conforme os direitos estabelecidos pelo INCRA.

451Grupos de familiares em que se identificavam os membros pelos nomes dos pais. 452Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.13, 1976, p. 4.

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O INCRA voltará dentro dia 3/11/76 para firmar os acordos, enquanto isso fizemos a nossa reunião com o povo explicando direito que tem de 100 ha e 2 ha por cabeça de gado segundo lei do próprio INCRA. Agora o povo está disposto a lutar e não aceitar a proposta de 50 ha. Formou-se também uma equipe de 4 elementos que são os representantes dos posseiros.453

É compreensível o fato dos posseiros aceitarem a demarcação das suas posses em um tamanho inferior ao estipulado pelo INCRA, tendo em vista que o histórico das suas trajetórias na busca pela terra é marcado por um intenso processo de migração à procura da profecia das ―Bandeiras Verdes‖, bem como se libertar da dominação e exploração dos latifundiários nos seus lugares de origem, ou seja, ser dono do seu próprio trabalho, além de fugir da seca e entre outros motivos subjetivos que impulsionaram os seus deslocamentos. Provavelmente a não aceitação dos 50 hectares significaria a perda integral das suas posses, mesmo que a extensão da área não atendesse as suas necessidades em relação ao cultivo e a criação de animais. A equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia454, pelo convívio diário junto aos posseiros, de certo modo conseguia visualizar que estes tinham a necessidade de uma propriedade que atendesse as suas demandas em relação ao trabalho na terra. Desse modo, ela passou a mobilizar os trabalhadores rurais para que eles tomassem conhecimentos dos seus direitos, e passassem a reivindicar uma área que suprisse os seus reais interesses. A Igreja criou um trabalho de mobilização interna dos posseiros, elegendo lideranças que tomassem a frente das denúncias e fortalecessem a ideia de permanência nas áreas que tinham direito, pois o mecanismo mais eficiente de defesa da terra era por meio do plantio, da colheita e do trabalho da instauração de

453Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.17, 1976, p. 1. 454A Prelazia de São Félix do Araguaia orientava os agentes de pastoral e leigos para que estes observassem o modo de vida dos patrimônios afim de absorver alguns conhecimentos em relação aos seus costumes, saberes e crenças. Neste sentido, conhecer o cotidiano da população local era fundamental para o início das atividades, bem como trabalhar ao lado dos trabalhadores rurais, morar em casas semelhantes as suas moradias, ou seja, compartilhar do universo cultural daquelas pessoas para que a equipe da Prelazia ganhasse a confiança daqueles indivíduos no desenvolvimento dos seus trabalhos junto às comunidades.

237 benfeitorias nas posses para assegurar a demarcação das suas áreas. Assim, quanto maior o número de habitantes, maiores seriam as chances de permanência em Porto Alegre do Norte, sobretudo nas situações de conflitos em que os homens compareciam para o embate com as suas armas rústicas ou com o uso de estratégias de sabotagens em algumas atividades, como, por exemplo, no cercamento das propriedades. Em relação à mobilização no âmbito externo, a Prelazia de São Félix do Araguaia atuava por meio das denúncias455, principalmente no que diz respeito à divulgação e assistência na luta pela terra. A Igreja estava assentada em uma organização institucional, que através dos seus agentes de pastoral, se apresentava frente aos posseiros como uma entidade que tinha condições concretas para tornar pública a sua luta, reconhecendo o seu status de posseiro, ou seja, o modo de relação que o trabalhador rural desenvolvia com a terra. Neste sentido, o fato de esse sujeito ocupar-se com a posse e dela retirar o seu sustento familiar era o argumento utilizado pela Igreja para legitimar a luta pela terra. As lideranças e os agentes de pastoral procuravam impedir a venda das terras ou o aceite de posses menores, realizando visitas e reuniões nas comunidades, principalmente naquelas em que os posseiros estavam dispostos a desistirem da luta perante as pressões do gerente da Piraguassu, conforme o documento abaixo:

Para efetivar os seus instrumentos ilegais, a Fazenda tem usado de toda sorte de instrumentos para fazer com que os posseiros assinem um acordo com a mesma. Agrupamos abaixo os instrumentos utilizados (todos com provas concretas de cada um): 1. Intimidações e ameaças frequentes de expulsão, feitas pessoalmente pelo Sr. Tokuriki. 2. Intimidações através de presença policial na casa dos posseiros (soldado vulgo CARIOCA).

455A carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga: ―Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social‖ é o exemplo mais significativo dessas denúncias, tendo em vista que o documento possui 123 páginas e foi lançado em 10 de outubro de 1971, após a consagração de Casaldáliga como Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.

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3. Pressões e ameaças de perda da posse, feitas através do advogado do INCRA de São Félix, Sr. WANDERLEI456. 4. Desonestidade, na medida que se aproveitou da ignorância que os posseiros tem, dos seus direitos.457

Os conflitos por terra em Porto Alegre do Norte configuram claramente a violação dos direitos humanos, a desigualdade social rural, a formação de núcleos de miséria e concentração de grandes propriedades nas mãos das agropecuárias. Visualiza-se o confronto entre o novo e o arcaico, entre o latifundiário e o lavrador, cenas que são vivenciadas em um cenário traçado pela violência e anomia legislativa, ocasionando, assim, a exclusão social daqueles que almejavam o acesso a terra. Essa violência também pode ser definida, segundo Elisabete Maniglia458, como uma violência judicial, estabelecida por magistrados atrelados ao tecnicismo jurídico, formados no respeito restrito à lei, e vinculados com o poder. Esta violência não deixa de ser do Estado, porém com particularidade maiores, ao passo que na busca por soluções dos litígios, os trabalhadores rurais se esbarram em liminares que protegem o latifúndio em prejuízo dos seus interesses. De acordo com o Estatuto da Terra de 1964 ambos os grupos estabelecidos na Amazônia tinham direito à propriedade da terra, porém este contato entre a população já assentada nas áreas de colonização e os empresários do Centro-Sul do país, a ideologia da segurança nacional e a falta de infraestrutura na região são exemplos de situações que ocasionaram a resolução das divergências sobre a posse da terra com o uso da violência. Entretanto, conforme podemos identificar em Porto Alegre do Norte, não apenas as agropecuárias – com o consentimento do poder público –, mas também a articulação do Estado

456Encontramos a seguinte grafia e referência ao nome Vanderlei Rodrigues, Advogado – Chefe da Unidade Fundiária – UF – 1 PF Vale do Araguaia, INCRA OS. N.020/77. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 4, 1979, p. 1. 457Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 3.09, 1977, p. 4-5, grifos do autor. 458MANIGLIA, Elisabete. Criminalidade e violência no âmbito rural: críticas e reflexões. Revista Jurídica do Curso de Direito da Faculdade de Educação de São Luís, São Luís, v. 1, nº 1, p. 1-17, dez. 2005, p. 8.

239 com os grandes proprietários, e até mesmo por conta das ações diretas realizadas pelo INCRA e polícia local, havia toda uma estrutura contra os trabalhadores rurais. Para Rossana Rocha Reis459, os movimentos sociais, tais como a CPT e o CIMI contribuíram para a ideia da terra como um direito humano, pois esta é pautada na concepção e relação que as comunidades estabeleciam com as posses. A Igreja passou a realizar críticas às propriedades privadas e ao capitalismo em negação ao ato da sua apropriação coletiva. Assim, os escritos de Dom Pedro Casaldáliga, as denúncias dos agentes de pastorais e leigos tinham como mecanismo dar publicidade e garantir os direitos da população do campo sobre as terras. As denúncias também eram realizadas pelos posseiros como uma forma de resistência para a permanência nas suas terras. Desse modo, uma comissão formada por trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte se reuniu com o governador de Mato Grosso, José Garcia Neto, para solicitar a sua mediação nos conflitos460. O governador se dispôs a encontrar uma solução justa, conforme relatado no jornal Diário de Mato Grosso:

Para tal pretende o Governador aproveitar um levantamento da situação sócio-econômica da área, feito pela SUDECO, em que uma equipe de pesquisadores abordou, com profundidade, os problemas dos posseiros, com identificação dos moradores, numero de dependentes, grau de instrução, faixa etária, tempo de residência no local, benfeitorias realizadas, área ocupada, tipos de cultura e/ou criação. Esses dados, somados aos que possuem os órgãos do Estado, possibilitará ao Governo o encaminhamento do problema para uma solução pacífica.461

459REIS, Rossana Rocha. O direito à terra como um direito humano: a luta pela reforma agrária e o movimento de direitos humanos no Brasil. São Paulo, Lua Nova, v.86, p. 89-122, 2012, p. 108. 460Em 20 de outubro de 1977, os posseiros Domingos Medeiros da Silva e Manuel José Rodrigues já tinham enviado uma carta coletiva com a assinatura de 200 famílias ao governador José Garcia Neto, na qual solicitavam que o governante interviesse nos conflitos com a Fazenda Piraguassu. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 3.09, 1977, p. 1. 461GOVERNO, manifesta-se interessado no problema dos posseiros. Cuiabá, Diário de Mato Grosso, 1/11/1977. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 3.11, 1977, p. 1.

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Havia diversos documentos que amparavam os trabalhadores rurais, desde o Estatuto da Terra de 1964, o Decreto 70.430 de 1972, o Ofício Circular 32/nº279 de 1974 e a pesquisa da SUDECO de 1975, mas a morosidade do Estado em resolver os conflitos por terras em Porto Alegre do Norte vinha se arrastando desde o ano de 1971, com a implantação da FRENOVA no povoado. O documento da SUDECO citado por Garcia Neto já tinha dois anos da sua publicação, e, mesmo assim, nenhuma orientação foi seguida no que diz respeito à desapropriação das terras dos posseiros. Pois, se levarmos em consideração que o seu mandato iniciou-se em 1975 e finalizou em 1978, um ano após a reunião com os posseiros em Cuiabá, notamos que ao invés de ocorrerem soluções para finalizar os conflitos de terras, de acordo com os dados da Prelazia de São Félix do Araguaia, estes se acirraram ainda mais nos anos de 1978 a 1979, caracterizados como ―Época violenta‖, devido às mortes de posseiros e pistoleiros. Como uma forma de resistência, os trabalhadores rurais continuavam apelando para instâncias que em tese deveriam assegurar os seus direitos. Em março de 1978, estes enviaram uma carta ao INCRA de São Félix do Araguaia para que o órgão tomasse conhecimento das ameaças que o gerente da Piraguassu, Keize Tokuriki, fez ao posseiro Francisco Pereira da Silva por meio de uma carta:

Sr. Francisco Pereira da Silva [...] Caso você, encrencou com a fazenda e resolveu nada até agora, única solução é de juiz de direito. Se você esteja certo o que você pensa, você ganhará em processo de juiz e poderá receber a sua terra. Caso contrário, você perderá tudo. No momento, nós não podemos fazer nada para você. Vamos aguardar chegada de Notificação de Juiz e conversamos em frente do Juiz.462

As ameaças eram feitas carregadas da intenção de pôr em xeque a veracidade do direito do posseiro sobre a terra que ocupava. Essa atitude configura o que José Tavares dos Santos463 caracterizou como violência

462Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.3.23, 1978, p. 1. 463TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil... p. 2.

241 costumeira, ou seja, a presença de empresas capitalistas no campo envolvidas em casos de conflitos sociais. O fato de o gerente Keize Tokuriki alegar que a situação de litígio só seria solucionada perante o juiz nos faz refletir sobre o fato de que a violência emitida pela carta representa o caráter simbólico do poder empregado pela agropecuária, pois esta detinha condições econômicas e políticas para contratar o serviço de um advogado, enquanto que Francisco da Silva era desprovido de tais recursos. Outro aspecto que detectamos no fragmento do documento acima diz respeito à relação exercida entre a empresa e as instituições locais, tais como o INCRA, a polícia militar e a prefeitura, o que lhe conferia tranquilidade para resolver as questões da terra diante do juiz local. Essa situação é definida por Tavares dos Santos464 como uma violência política em que o Estado é o agente da violência por meio da polícia, e por outro lado existe uma parcela do judiciário que detém a responsabilidade pela difusão da violência no campo, como, por exemplo, pela emissão de títulos em áreas de posse e omissão em processos criminais. Outro mecanismo de resistência dos posseiros, era demonstrar para o poder público que estavam cientes dos seus direitos, assim nas suas cartas com assinaturas coletivas, estes citavam a lei 5.868 de 12 de dezembro de 1972, que lhes conferia o direito de 110 hectares, bem como apontavam que ―o INCRA é o órgão a quem pertence a nossa defesa, para que a fazenda não repita mais uma treita contra os nossos direitos‖465. Ao citarem a lei que os amparava, de certo modo proferiam uma imagem do trabalhador rural como um indivíduo instruído por uma Igreja atuante em prol dos direitos da função social da terra. O discurso expresso na carta acionava o INCRA como uma instituição defensora dos interesses da população do campo, assim, pesava-lhe a responsabilidade de solucionar os conflitos agrários de forma que atendesse as necessidades de ambas as partes. Ao relatar as problemáticas que envolviam a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, os

464Ibidem, p. 4. 465Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.3.23, 1978, p. 1.

242 posseiros estavam se inserindo como atores sociais na cena política com o objetivo de legitimar a ―terra de trabalho‖ em contraposição à ―terra de negócio‖ que excluía as práticas da agricultura familiar de subsistência. Entretanto, a resistência dos trabalhadores rurais não deve ser configurada apenas como um ato executado na intenção de que esses sujeitos históricos se tornassem proprietários das suas posses, mas também como um mecanismo de luta contra o processo violento da migração forçada. A maior parte desses indivíduos já estava estabelecida em Porto Alegre do Norte há cerca de 30 anos e vieram se deslocando dos estados do Piauí, Maranhão, Pará e Goiás (atual Tocantins), sobretudo para se libertarem dos laços de exploração dos latifundiários existentes nos seus lugares de origem. Desse modo, a permanência na terra implicava ir contra as novas expulsões, empreender a busca por outras áreas e correr o risco de serem expulsos novamente. Estes indivíduos provavelmente estavam cansados das suas condições de errantes na Amazônia, e diante disso Porto Alegre do Norte passou a configurar uma espacialidade que lhes conferia identidade, ao passo que já tinham constituído uma rede familiar, amigos, novos parentescos por meio da vizinhança e compadrio, bem como o vínculo com a posse formada por suas benfeitorias, criações e plantio. A história de vida dessas pessoas naquele lugar estava permeada por memórias e novas práticas culturais, pois seus filhos e netos nasceram no patrimônio, desenvolveram novos saberes para entender o período de cultivo, o regime pluviométrico, as plantas e ervas medicinais, como caçar e preparar os animais da região, etc. Dessa forma, não lutar pela terra significaria perder a gama de conhecimento adquirido naquele espaço, bem como todas as lembranças que lhes proporcionavam sentido e a ideia de pertencimento a um grupo por meio da convivência de momentos históricos similares, além da herança cultural que se constituiu ao longo dos anos de permanência no Vale do Araguaia.

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De acordo com Regina Bruno466, o perfil das classes e grupos dominantes no campo está delineado por duas formas: a defesa da propriedade como direito absoluto e a violência como prática dessa classe. Essa dimensão engloba os conflitos de modo estruturante, em que o valor da terra nas áreas de fronteira passou a ser associado ao surgimento de disputas de terras. Dessa forma, para garantir os direitos sobre a propriedade, a Piraguassu moveu uma ação reivindicatória contra os posseiros Alexandre Quirino de Souza e sua esposa Ana Felicia Araújo.

Os réus acima qualificados, burlando a vigilância, invadiram sorrateiros a fazenda Piraguassu [...], alojando-se no lugar conhecido por ―Varjão Redondo‖ [...], e ali ocupando uma área correspondente a 10 ha de terra. Além de invasor, é conhecido o réu varão nas circunvizinhanças, como elemento agitador, avalentado, arruaceiro, contraventor, useiro e vezeiro no hábito de invadir e vender ―direitos‖ sobre imóveis alheios. Elemento, enfim, de péssimos antecedentes. No lugar da invasão, fez derrubadas, roçou, mas nada construiu.467

A defesa da propriedade como direito absoluto implica inferiorizar os trabalhadores rurais designando-lhes termos pejorativos que depreciam a sua imagem, e, deste modo, legitimam a violência contra esses indivíduos. Já os empresários rurais eram portadores de uma posição econômica, simbólica e cultural distinta do posseiro que sofria a estigmatização de forma racionalizada com o objetivo de empregar o controle social, e, portanto, manter as distâncias e as diferenças sociais entre os grupos. Essa prática buscava enfatizar a representação do posseiro como um elemento desonesto que se apropriava de espaços particulares. Entretanto, os trabalhadores rurais visualizavam as categorias dominantes (fazendeiros, grileiros, empresários rurais) como os sujeitos que expropriavam e invadiam determinada área. Essa visão advinha do fato de que o uso da terra era destinado à sua subsistência, tendo assim, a resistência e a

466BRUNO, Regina Angela Landim. Nova República: a violência patronal rural como prática de classe. Sociologias, Porto Alegre, v.5, n. 10, jul/dez 2003, p. 285. 467Mandado de Citação. Documento da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 3.17, 1978, p. 2.

244 ocupação de terras como mecanismos de oposição em relação à lei e a legitimidade na posse da terra. De acordo com Woortmann468, as organizações dos camponeses estavam constituídas sob uma ordem moral, em que os valores sociais permeavam todas as relações sociais. Nesta concepção, a terra era vista como pertencente a Deus e não aos homens, assim havia uma conexão entre os conjuntos de significados que estabeleciam uma vinculação cujo sentido não separava terra, trabalho e família. Nessa espacialidade, afloravam valores éticos que se configuravam como qualidade, enquanto uma realidade singular que se ajustava na organização familiar. Desse modo, a migração era vista como o primeiro ato de resistência, e posteriormente, a tentativa dos posseiros em permanecerem em suas posses pode ser considerada como um esforço para a preservação dos seus valores tradicionais uma vez que estavam sendo desprezados. As formas de resistência cotidianas realizadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte podem ser caracterizadas, por exemplo, pelo fato de estes se recusarem a saírem das suas propriedades, mesmo com a notificação469 por escrito para que deixassem as áreas ou até mesmo com a ameaça verbal dos jagunços da FRENOVA ou da Piraguassu. Outro mecanismo utilizado diz respeito à coleta de assinaturas para a elaboração de ―abaixo assinado coletivo‖, com o objetivo de pedir intervenção do INCRA na resolução do conflito da agropecuária contra os posseiros470. Por fim, havia o corte das cercas que a empresa fez sobre o espaço urbano do povoado de Porto Alegre do Norte, impedindo os moradores de ter acesso ao bebedouro público do gado. ―A Frenova fez cerca passando quase atrás de Porto Alegre. Vários cortaram a cerca‖471. De acordo com a análise da documentação, esta última atitude não apresenta a designação do nome de um agente em específico que tenha realizado o corte das cercas, pois, conforme

468WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se neguceia”... 469Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.1.02, 1971, p. 1, já utilizado nesta tese. 470 Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.38, 1972, p. 1. 471Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.58, 1972, p. 1.

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Scott472, os atos de resistências cotidianas não possuem autores que assumam a responsabilidade pública por sua realização. Essa resistência é empreendida contra o avanço do capitalismo no campo: a perda do acesso ao meio de produção, ou seja, a terra como forma de se obter o sustento familiar através da economia de subsistência, e, o seu excedente vendido no mercado local. Assim, entendemos que a resistência sem autor definido ou explícito tem relação com o fato de consequentemente terem que sofrer os efeitos da repressão, tanto por parte dos jagunços da agropecuária, como pelo próprio Estado por meio de alguns policiais locais coniventes com as atitudes violentas da FRENOVA e da Piraguassu. As formas de resistências são mecanismos cotidianos contínuos realizados por agentes sociais que vivem em condições de vidas difíceis, as quais continuarão a existir enquanto a estrutura agrária brasileira se conservar exploradora e desigual. Para resistirem à invasão das suas terras, os posseiros passaram a impedir a navegação de barcos da FRENOVA pelo rio Tapirapé, que era a única via de acesso ao povoado de Porto Alegre do Norte:

Chegou a Porto Alegre o Sargento de Luciara e 3 praças. Com voz de prisão sobre o Alexandre Quirino de Sousa, Nilo Pereira da Silva, Célio Manuel Azevedo Guimarães, Josias Nonato. Sargento disse que fora mandado pelo Secretário de Segurança Pública abrir um inquérito [sic]. Porque o povo disse que o barco não subiria novamente. [...] José Benz falou ao Josias, irmão do Altaídes, e outros que o dinheiro que eles deram ao prefeito gasto em carabina e munição já teria resolvido o seu problema.473

O ato de resistência de impedir que os barcos da FRENOVA trafegassem pelo rio Tapirapé, pode ser caracterizado, segundo Scott474, como um confronto direto dos posseiros contra a agropecuária, tendo em vista que estes foram identificados e acusados pela empresa para que fossem autuados pela

472SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa... p. 14. 473Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.62, 1972, p. 1. 474SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa...

246 polícia local. Ao contrário da resistência cotidiana empregada geralmente sem a identificação dos agentes sociais, a resistência direta torna explícita a participação destes, mas em contrapartida eles têm que arcar com as consequências perante a justiça, diferentemente, por exemplo, conforme ainda o documento acima do empreiteiro geral da FRENOVA, José Benz – ex militar aposentado por corrupção, o qual proferiu diante de várias testemunhas que eliminaria facilmente o problema de terras com uso de armamentos, porém este não chegou a responder por suas ameaças legalmente. Com a tolerância e conivência do Estado, as empresas agropecuárias formaram milícias privadas para garantir a defesa das propriedades, contrariando os preceitos de Max Weber475, em que o Estado toma para si o ―monopólio da violência física legítima‖. Entretanto, no Araguaia mato-grossense, assim como na fronteira amazônica, o uso da violência foi dividido entre empresários e os seus pistoleiros, que não eram legitimados socialmente, tampouco validamente instituídos. A luta pela terra impunha aos posseiros que estes ficassem atentos à chegada dos pistoleiros ou militares em suas posses, mas as atividades no plantio e cultivo das suas roças os impossibilitavam de aguardarem vigilantes os seus ―adversários‖; em vista disso o padre da comunidade, Eugênio Consoli, desempenhava esta tarefa:

Por aqui está correndo a notícia (ou boato) que o ―Capitão Ailson‖ chega amanhã na sede da Frenova, justamente com o Zé Benz. Veja o movimento por aí. Aqui, estamos firmes, prontos pra tudo, conforme nos tratarem, trataremos. Mano, é fogo, os posseiros estão agora no tempo do plantio, não podem estar aguardando todo dia o desconhecido sem nenhuma segurança humana. Tenho ficado só no patrimônio o dia inteiro, aliás, com as comadres e crianças.476

475WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 2009. 476Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.58, 1972, p. 2.

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O trabalho da Prelazia de São Félix do Araguaia se constituía no apoio ao lavrador para que este permanecesse na posse, portanto ela passou a ser uma aliada na conquista da propriedade rural e da organização comunitária a partir da realidade local. Como instituição legal, a Igreja denunciava de acordo com o documento acima, e precavia os posseiros de possíveis processos de expulsão, além de legitimar a luta pela terra. Outra forma de resistência praticada pelos posseiros de Porto Alegre do Norte diz respeito à mobilização da comunidade para a preservação das áreas de trabalho comum, bem como à melhoria do povoado a partir da construção de casas, horta comunitária, campo de futebol, escola e barracões. Houve ainda uma atividade mobilizadora de viés político pautado no enfrentamento para a resolução dos problemas do patrimônio por meio de reuniões e mutirões, os quais podemos observar no trecho da carta do Padre Eugênio Consoli a Dom Pedro Casaldáliga:

Oi, Pedro, por aqui bastante atividades, vários mutirões. ―Casa do Povo‖ já iniciada, horta comunitária quase terminada, casa do professor em projeto. Ambulatório??? Rua capinada, campo de futebol logo que possível, aulas funcionando, posseiros plantando e fazendo farinha, hoje mataram uma vaca aqui, almoção para todos, rio dando peixe e crescendo com as chuvas, hoje ajudamos na construção de mais uma casa, reunião com os posseiros no próximo dia 13. Mano, a Frenova continua a mesma. Diário irá com toda a segurança, de breve. Tem material para os necessários, dignos e justos escândalos proféticos.477

Os mutirões tinham como finalidade planejar e organizar a infraestrutura do povoado, haja vista que o Estado não tinha tal preocupação. Após as atividades coletivas ocorriam as reuniões para averiguar as denúncias dos posseiros sobre a invasão na área da mata ou o cercamento da zona urbana do patrimônio. As reações deveriam ser rápidas para que as ameaças não se concretizassem e culminassem na expropriação dos trabalhadores rurais das suas posses, assim, estes se reuniam para verificar a veracidade das notícias e traçar

477Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.3, 1972, p. 3.

248 estratégias de enfrentamentos como um modo de resistência contra a ocupação das suas terras pelas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu. Os atos de resistências foram descritos por Justiniano Pereira Sales478, filho do posseiro José Pereira dos Santos, um dos primeiros moradores de Cedrolânida (núcleo de Porto Alegre do Norte), da seguinte forma:

Porto Alegre e Cedrolândia era um núcleo, mas se juntarmos a Gameleira, a Azulona, Mutum, São João, Canabrava esse contexto faz parte de Porto Alegre do Norte. O que acontecia aqui refletia lá, e vice e versa. Porque eles tinham um laço de amizade, mas é claro que a participação da Prelazia é inegável, porém os laços dessas pessoas como uma irmandade também prevaleceram muito, pois se você perceber em quase todos os movimentos estavam presentes os filhos daqueles que chegaram primeiro e a Prelazia trabalhou com quase todos. Por exemplo, o João da Angélica, tudo que ele aprendeu foi aqui, a base dele é aqui, conheceu o território. O Altair tem uma leitura assim, por ali são oito ou nove irmãos, mas o Altair fala: um serve para conversar, o outro para articular e o outro para fazer tal coisa, mas o que aparece mais é ele [João da Angélica], e tem o homem que é de confiança que aparece na hora da pesada, quem é a liderança, não é o fulano, quem faz tal coisa é o beltrano. E isso não é só no João da Angélica, pois se você for nos Glórias que é no João Bento em Canabrava, a mesma questão, se você fosse nos Guimarães e nos Fernandes você iria observar a mesma questão. Por isso, eu vou por essa questão deles se considerarem garotões na época, e serem como uma espécie de irmandade de um pelo outro, por exemplo, se aconteceu alguma coisa com outro, então nós temos que ir lá. Uma das resistências foi essa, por exemplo, poderiam aceitar ser roubados, mas ser humilhado e passar por pistoleiro isso de jeito nenhum.479

478Professor da rede pública de ensino do município de Porto Alegre do Norte. De acordo com a entrevista concedida por João Sousa Lima em Porto Alegre do Norte no dia 3/12/2015, relata que José de Pereira dos Santos, pai de Justiniano Pereira Sales migrou para o Araguaia mato-grossense no início da década de 1950. 479O trecho exposto acima foi concedido na entrevista realizada com Ataíde da Silva, em Porto Alegre do Norte no dia 2/12/2015. Tentamos formalizar uma entrevista exclusiva com o Justiniano Sales, mas ele se recusou e disse que só acompanharia as entrevistas, nos ajudando a localizarmos e contatarmos as testemunhas, e assim, nos fornecer informações e esclarecimentos sem o uso de uma entrevista formal. Ele também nos relatou a fala descrita acima, de modo informal em meio a uma conversa numa reunião festiva que ocorreu na sua residência no dia 5/12/2015.

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O relato nos mostra que a resistência na luta pela terra adveio das relações traçadas ao longo do tempo nos núcleos de ocupações em torno de Porto Alegre do Norte pelos diversos grupos familiares. Visto dessa forma, podemos imaginar que as reações dos posseiros a partir deste universo formado pela concepção de vizinhança, compadrio ou irmandade, foi o que criou uma noção de grupo e a compreensão sobre o direito à terra, e desse modo, fez com que essas pessoas se colocassem como agentes políticos na intervenção da questão agrária no Araguaia mato-grossense. Nos núcleos de ocupações é onde se delinearam os atos de solidariedade, evidenciados por meio dos mutirões como um processo de organização coletiva que estabeleceu as bases sobre as quais aqueles indivíduos puderam vivenciar a luta e os processos de enfrentamento contra os empreendimentos rurais instituídos nas suas posses. Os núcleos familiares citados pelo entrevistado demonstram que a espacialidade de Porto Alegre do Norte era o que conferia unidade e consciência de agrupamento em vizinhança. As famílias organizadas territorialmente formaram os espaços em que se articulavam para permanecerem na terra. O sentimento de localidade adquirido ao longo das experiências em comum, evidenciados nas ações de solidariedade e ajuda mútua através dos mutirões no primeiro momento da ocupação das posses, foram responsáveis pela criação de estratégias para resistirem ao processo de expropriação das suas terras. Os posseiros que estavam estabelecidos na divisa com a agropecuária eram os mais atingidos pelas ações violentas. Desse modo, para a defesa das suas terras, surgiu a necessidade de resistências por parte dos trabalhadores rurais que passaram a constituir lideranças480, as quais conduziam as lutas e agiam como porta-vozes da comunidade. Estes traçaram duas estratégias de enfrentamento: a primeira, contra a fazenda e sua pretensão de se apropriar dos limites das áreas

480Na documentação da Prelazia de São Félix do Araguaia encontramos os seguintes nomes: Alexandre Quirino de Sousa, Nilo Pereira da Silva, Célio Manuel Azevedo Guimarães e Josias Nonato, envolvidos nos atos de resistências contra a FRENOVA. Já na mediação dos conflitos entre posseiros e a empresa em Porto Alegre do Norte tinha a ajuda da Igreja através do padre Eugênio Consoli e dos Agentes de Pastoral José Pontim e Altair.

250 dos posseiros, e a segunda em oposição à ação violenta dos jagunços, pistoleiros e milícias privadas dos empresários. Estas mobilizações tinham como objetivo a ocupação efetiva daquele espaço por meio da construção de benfeitorias, pois legitimavam suas posses e reafirmavam a apropriação desses espaços muito antes da chegada das empresas e, dessa forma, obtinham o direito de permanecerem nela. Nesse universo marcado pelas estratégias de lutas, nos deparamos com as narrativas sobre as resistências em Porto Alegre do Norte permeadas por atos heroicos, conforme o relato de Altair:

O primeiro confronto quem fez contra a FRENOVA foi o Alexandre e eu. Eles estavam subindo o rio Tapirapé para formar a Piraguassu, então o Alexandre e eu fizemos esses barcos voltarem. Esses barcos voltaram em um inverno danado, numa muriçoca, mas fizemos voltar. Foi um sufoco, mas fizemos voltar. Aí eles foram por baixo e criaram a Piraguassu, mas eu ainda me lembro que o Alexandre e eu fizemos isso. O Alexandrão era um homem respeitado. Ele com um revólver na mão, grandão e velho. O Alexandre era uma liderança folclórica. Muito interessante, porque ele foi o nosso primeiro delegado e não sabia ler. Era o nosso delegado [Risos]. Mas quando saia alguma coisa aqui para caçar no rastro, não tinha igual o Alexandrão. Com a diferença que ele não atuava para a FRENOVA, ele era justiceiro mesmo.481

A narrativa do entrevistado nos leva a uma encenação de uma resistência heroica, em que somente ele e o delegado Alexandre Quirino de Sousa fizeram retornar os barcos que estavam sendo utilizados para dar suporte na abertura da fazenda Piraguassu. Ele não relata quais foram os mecanismos usados para que esses barcos voltassem e seguissem por outro caminho, sobretudo se portavam armas para tal atitude. Então, para ilustrar os seus protagonismos como os primeiros moradores a traçarem estratégias contra a FRENOVA e a Piraguassu, Altair descreve Alexandre Quirino como um homem dotado de características que impunham o respeito, devido à sua altura, idade e ao fato de possuir porte de

481Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora, em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.

251 arma. Assim, seus atributos elevavam a sua imagem, e ele não se deixava abalar pelo fato de que exercia uma função pública e não sabia ler. A memória de Altair talvez de forma inconsciente esboce um protagonismo que introduz os atos de resistências no povoado de Porto Alegre do Norte. Assim, nos questionamos por que esses sujeitos históricos que chegaram à região por volta do início da década de 1970 se colocam como os iniciantes no processo de enfrentamento na luta pela terra em Porto Alegre do Norte? Lembrando que outras famílias se estabeleceram naquela espacialidade no final da década de 1940, então, por que elas também não iniciaram essa ação? Algumas considerações podem ser esclarecedoras para entendermos o ―enquadramento da memória‖482 de Altair483 que pode ser vista como uma tentativa de definir e reforçar o sentimento de pertencimento social. Primeiramente, a memória individual do entrevistado ao ser acionada passou a estabelecer relações com a memória coletiva, então, este quis demonstrar a sua importância no contexto histórico de ocupação do município. Entretanto, por ele ter atuado como leigo da Prelazia de São Félix do Araguaia notamos que nos documentos elaborados por aquela instituição religiosa, Altair também aparece como peça fundamental nos conflitos, pois o mesmo exercia a função de professor do povoado e ajudava os posseiros avisando-lhes sobre a chegada da polícia e dos agentes das agropecuárias que iam em busca daqueles indivíduos para prendê-los ou ameaçá- los. Já Alexandre Quirino, também é citado no corpus documental da Prelazia e nas narrativas da sua esposa, Ana Felicia de Araújo e sua filha Zenaide Araújo

482POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 483Esta constatação advém do fato de que na entrevista cedida por Altair, o mesmo afirma que nasceu em São Paulo, contexto social diferente da população local que era majoritariamente proveniente dos estados do Nordeste do país. Relata que participou de movimentos sindicalistas em São Paulo, atuou como militante da ALN na guerrilha urbana, colaborando com a ação do sequestro do Cônsul japonês Nobuo Okuchi. Depois foi enviado para Rondônia e Bolívia para conhecer umas áreas de treinamento e posteriormente migrou para o Araguaia mato-grossense. Devido a sua militância, Ataíde da Silva assumiu o codinome Altair com o intuito de driblar a sua procura pelos militares. Nos documentos da Prelazia encontramos os seguintes nomes: Altair, Ataíde e Atayde, em referência ao leigo de Porto Alegre do Norte e professor da escola do povoado.

252 como uma liderança que tinha o respeito dos moradores locais. Neste sentido, a trama que eleva os atos de Altair e Alexandre é tecida por diversos discursos que os indicam como personagens essenciais na execução da resistência e permanência na terra. De certo modo, o testemunho de Altair nos leva a imaginar que as experiências possivelmente adquiridas nos movimentos sindicais e militância na guerrilha urbana em São Paulo o fizeram possuir uma carga de conhecimento para tecer as estratégias de enfrentamentos na luta pela terra em Porto Alegre do Norte. O entrevistado alega ter participado do sequestro do Cônsul japonês Nobuo Okuchi484, tendo a responsabilidade de esconder o suposto chefe de Estado das autoridades brasileiras, assim: ―Nós não tínhamos onde pôr o japonês. [...] Onde põe o japonês? Na favela? Onde põe? Nós não tínhamos. Então entrávamos no cinema durante o dia, naquele cinema de dois reais e ficávamos o dia inteiro lá‖485. Neste sentindo, a sua migração para o Araguaia foi resultante da provável perseguição do aparato militar pelos seus atos como militante em São Paulo. Antes de iniciarmos a entrevista, Ataíde da Silva nos relatou que passou a usar o codinome Altair para despistar a sua procura pelo aparato militar. Ele nos informou que o seu exercício como militante na guerrilha urbana em São Paulo não foi revelada a equipe e a população da Prelazia de São Félix do Araguaia para poder manter em sigilo o seu histórico de atuação na luta armada,

484Em buscas realizadas em sites e acervos online, não encontramos os nomes dos sequestradores do Cônsul, mas localizamos o nome de Ataíde Silva nos documentos do BNM digital como integrante da VPR, grupo acusado de ter sequestrado Nobuo Okuchi. O auto de qualificação e interrogatório da Delegacia Especializada de Ordem Social de São Paulo também relaciona Ataíde Silva como membro do MO, tendo a sua descrição física semelhante a Ataíde da Silva, fato este que só nos leva a ter alguma suposição do seu envolvimento com a luta armada urbana em São Paulo, pois Ataíde Silva foi descrito como ―um rapaz de côr [sic] mulata, tendo um metro e sessenta e cinco de altura, cabelos carapinhos, olhos escuros‖. Entretanto, essa descrição assemelha-se a vários brasileiros e não nos dá base para confirmar a sua participação no sequestro do Cônsul japonês, além disso, a grafia do nome do entrevistado é Ataíde da Silva e o nome que aparece no BNM é Ataíde Silva; enfim, são constatações que nos levam a pressupor a sua atuação como militante. BNM_042 (11). Disponível em: . Acesso em: 4 mai. 2017. 485Ataíde da Silva (Altair), entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora, em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.

253 que de acordo com o relato cedido a um jornal, o mesmo descreveu que: ‖Infelizmente a guerrilha abortou, com a repressão em São Paulo nós ficamos desorientados aqui e tentávamos era sobreviver"486. Diante deste contexto, um dos mecanismos utilizados pelo entrevistado para driblar a investigação sobre si foi migrar para o Araguaia mato-grossense não utilizando o transporte aéreo, conforme a narrativa abaixo:

O Câmara Ferreira falou para eu vir de avião, mas eu me neguei e disse que iria no trecho, que um dia eu chegaria lá, pois eu ia do jeito que o povo andava, e o povo não andava de avião. Peguei o ônibus e cheguei em Anápolis que eu não conhecia. Perdi o ônibus e cheguei em São Miguel do Araguaia, chegando lá aportou um barco de peões, e eu pensei: é nesse que eu vou. Foram seis dias de barco de São Miguel a Santa Terezinha, porque o rio Araguaia estava seco. Esse barco era do velho Décio, um gato feroz. Eu fui junto. Cheguei em Santa Terezinha [...] por volta de setenta e pouco, em 1972. Eu cheguei lá e aí como é que faz? O problema não era ficar no lugar, onde tem gente eu fico, não ficava em cima, mas na base eu aguento o tranco. Agora eu tenho que me enquadrar aqui no meio da Igreja, mas eu não tenho nada de Igreja. Aí colega eu vivi no meio da Igreja, no meio de padre e feira sendo rejeitado. Mas era aqui que tinha que ficar.487

Ainda em 1972, Ataíde da Silva se mudou para Porto Alegre do Norte e passou a atuar como professor da escola administrada pela Prelazia de São Félix do Araguaia, na qual estabeleceu estratégias de lutas com os seus alunos para que o avisasse quando ouvissem o barulho da chegada de aviões, pois Ataíde possui dificuldade na audição. A testemunha descreve que os meninos falavam: ―professor o avião, o avião professor! E eu custava para escutar esse avião. Quando eu saia para esconder, eu chegava lá e já encontrava o Alexandrão

486FIM, da Ditadura: 50 anos depois do golpe militar, ex-guerrilheiro mora em Porto Alegre do Norte e relembra a repressão. Confresa, Agência da Notícia, 01/04/2014. Disponível em: < http://www.agenciadanoticia.com.br/noticias/exibir.asp?id=596¬icia=Fim_da_Ditadura_50_an os_depois_do_golpe_militar_ex- guerrilheiro_mora_em_Porto_Alegre_do_Norte_e_relembra_a_repressao>. Acesso em: 4 mai. 2017. 487Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora, em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.

254 escondido, esperando o avião descer, porque chegava o padre ou a polícia. Nunca se sabia quem era‖. No contexto da luta pela terra em Porto Alegre Norte, Altair aciona duas identidades, uma política e outra social. A política advém do fato da testemunha ter atuado como leigo da Prelazia de São Félix do Araguaia, e consequentemente, auxiliava os posseiros no que diz respeito aos seus direitos em permanecerem na terra. A social pode ser visualizada a partir do momento que o mesmo se tornou um posseiro, buscando para si um lote que garantisse a sobrevivência da sua família que estava em formação.

Na verdade, eu simplesmente era um ativista, um revolucionário em que todo espaço eu estava, mas eu sou, mas não estou, estou, mas não sou. Eu posso dizer que eu era um leigo dentro da Prelazia, um leigo engajado. Eu era oficioso, não era oficial, porque eu não tinha as regalias. [...] O que eu fiz foi na marra, na marra. [...] Então, eu sempre trabalhei essa questão e hoje eu tenho trezentos alqueires de terra, uma légua de rio, e isso é o patrimônio dos meus filhos. Se for olhar lá atrás a terra não valia nada aqui. [...] Quando a Piraguassu acordou eu já estava lá. Eu sabia onde era a divisa das terras, então o Pedro me deu quarenta bolas de arame e eu meti a cerca doida bem em cima da divisa. Eu sabia que daqui para cá era a área do INCRA. Então, eu segurei essa terra para os meus filhos. Naquele tempo eu era tido como louco, maluco, porque as terras não tinham valor, mas eu tinha que segurar aqui, pois o pessoal só dava valor ao gado. O mundo era da pecuária. Aí neste momento eu me tornei um posseiro [...].488

Essas identidades são resultado da constituição de estratégias sociais, políticas e econômica, pois, como vimos, se originaram da sua identificação como grupo. O espaço de Porto Alegre do Norte conferiu a Altair uma relação com o lugar, em que o convívio com os trabalhadores rurais estabelecidos há mais anos possibilitou tal identificação para empreender a luta conjunta com a finalidade de também se tornar um posseiro e ter direito a terra. Diante do universo de estratégias de resistências, o ato de derrubada das cercas era ação mais comum no cotidiano dos trabalhadores rurais,

488Idem.

255 principalmente daqueles que estavam próximos ao rio Tapirapé e na divisa da agropecuária. Outro procedimento criado por estes sujeitos diz respeito aos acordos estabelecidos com os peões das empresas, conforme o relato a seguir:

Cerca levantou e o povo derrubou. E a fazenda naquela de sempre, fazendo onças e ameaças. Agora ela encheu de gado búfalo o pasto onde o povo tem seu gado é só para atentar. O avião está chegando, mas vou escrever mais um pouco. Olha estamos em contato direto com os peões e muitos deles já se manifestaram em público que estão com a gente. Nós aqui estamos com alguns planos bolados, mas estamos esperando a fazenda partir. Pois o Eugênio faz a frente, com as mulheres e as crianças e eu fico com os quentes a seguir com eles para um retiro489.

A afirmação de relações com grupos sociais que também vivenciavam a exploração e violência pelas agropecuárias pode ser considerada o fator que impulsionou alguns peões a se unirem aos posseiros, tendo em vista que a FRENOVA e a Piraguassu utilizavam o trabalho escravo nos seus empreendimentos rurais. Desse modo, caberia aos peões o consentimento em não reagirem e nem denunciarem os lavradores que empregassem ações de resistência contra o patrimônio das empresas, como, por exemplo, o corte de suas cercas. De acordo com Santos Filho490, a resistência do trabalhador rural é ação-resposta frente às ameaças sofridas em relação aos seus bens essenciais como a terra ou a vida. São métodos desses sujeitos históricos para garantir a sua sobrevivência em três dimensões: física, social e política. Assim, ao se contrariarem com os processos de expropriações, estes organizam uma nova conjuntura assentada na elaboração de atos coletivos, conforme descrita por João da Angélica: ―A luta armada, esse foi o jeito da gente fazer isso, porque eles

489Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17.2.03, 1972, p. 2. 490SANTOS FILHO, José dos Reis. Condição e resistência camponesa: práticas de construção e demolição da heteronomia da vontade do trabalhador rural. Perspectivas, São Paulo: 11, 65-81, 1988, p. 69.

256 vieram e mataram, então porque a gente não ia também. Aí fizemos isso e foi o modo que nós vencemos491‖. Novamente o protagonismo na luta pela terra é exposto nos relatos orais, mas com a sua encenação voltada para uma espécie de ―malandragem‖ contra o gerente da FRENOVA. Na entrevista concedida por João da Angélica, este nos narrou um fato em que ele e seu colega Sebastião Ferreira foram contratados por Plínio Ferraz (gerente da FRENOVA) para assassinarem o padre Henrique Jacquemart492, pois o religioso interferiu na venda de uma posse por um preço que julgava ser irrisório, em que Plínio Ferraz já havia fechado o negócio com o posseiro Sabino. O gerente deu ordens para que os posseiros João da Angélica e Sebastião matassem o padre Henrique e os deixassem enterrado numa localidade conhecida como Ribeirãozinho. Por este serviço, os trabalhadores rurais, que também eram empregados da fazenda FRENOVA, iriam receber sete mil cruzeiros.

Aí eu disse assim: rapaz vamos pegar o dinheiro do homem, e ele disse então vamos. Aí eu disse nós vamos pegar uns animais e tirar o sangue. Vamos contar que só batemos, mas que não matamos. [...] Então chegamos lá de noite [Casa de Plínio Ferraz]. [...] Mataram aquele desgraçado do padre? Mataram mesmo? Quer ver? Vamos lá. O Sebastião falou: Rapaz esse homem está preparado para matar a gente com veneno. Não vai comer nada dele e nem beber nada. [...] seu João conte o caso. Eu disse: Olha, nós não chegamos a matar o padre, mas batemos muito nele. Ele está lá naquele brejo que passava as onças do Landim. Ele ficou lá, mas não ficou morto. Ele está bem machucado. Oh desgraça agora vai embora para os infernos! [Plínio] Oh rapaz será que as onças não comem ele? [Risos] Capaz que come! O padre nem sabia de nada [Risos]. A onça vai comer ele agora à noite. [...] Aí ele disse vamos jantar, pois a Linda e eu não jantamos ainda esperando vocês. Aí ele colocou no prato tudo e puxou, e ela também já puxou. Aí eu pensei: não tem veneno não [Risos]. [...] Jantamos bem e depois

491João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte. 492No Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A 17.2.25, 1972, p. 1, encontramos a denúncia de Dom Pedro Casaldáliga sobre o pagamento dos posseiros Sebastião Ferreira e João Souza Lima para assassinarem o padre Henrique Jacquemart. Este fato também é citado no capítulo II desta tese.

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contamos o caso para ele. Oh seu João eu fui no Balduíno e estou com o dinheiro aqui de três mil e quinhentos. [...] Aí eu disse: não seu Plínio nós vamos fazer o seguinte, você junta esse dinheiro que nós vamos ficar no mato escondidos [...] Nós passamos três dias escondidos. E o boato... A gente mandou o compadre Chico ir à rua. Ih rapaz! Lá ninguém quer saber de notícias de vocês. Está feio! Vocês mataram o padre e tudo. [...] Então fomos lá. Chegamos lá e o povo estava tudo com a cara torcida com a gente. [...] Aí o Sebastião velho pegava o dinheiro e jogava assim: aqui o dinheiro [Risos] que o Plínio Ferraz pagou para a gente matar o padre e nós deixamos ele vivo.493

A memória de João da Angélica elegeu o fato descrito acima como provavelmente as lembranças menos dolorosas de serem narradas, pois o que perguntamos em relação aos conflitos de terras em Porto Alegre do Norte, principalmente sobre os casos de violência e as estratégias de lutas que os posseiros utilizaram no enfrentamento, o entrevistado dispensou poucas palavras e a sua narrativa não foi tão longa e rica em detalhes como o acontecimento descrito acima. Possivelmente, a experiência do trauma provocada pela política de ocupação da Amazônia pelo governo militar em detrimento dos direitos dos posseiros situados nas áreas dos empreendimentos rurais, veio estimular uma memória heroica marcada por características que expressam a capacidade de enfrentamento, coragem, organização e até mesmo atos de esperteza como forma de resistência. A experiência da violência resultou em um exercício de significação política da resistência empregada pelos posseiros de Porto Alegre do Norte, e, no caso da narrativa de João da Angélica, como um mecanismo de relatar o indizível e expressar que a sua atuação de esperteza contra a proposta de assassinato do padre Henrique pelo gerente da FRENOVA, adveio das diversas violações que os trabalhadores rurais foram submetidos, e assim, modificando uma possível memória traumática em uma memória heroica. Muitas narrativas e documentos que elegemos ao longo desta tese privilegiam apenas o universo masculino, e, de certo modo, faz com que o leitor

493João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.

258 imagine que as mulheres não tiveram participação na luta pela terra em Porto Alegre do Norte. Este fato pode ser justificado pelo número de mulheres494 que conseguimos entrevistar, pois muitas já se mudaram do município, faleceram ou por motivos variados não puderam nos dar o seu testemunho. Porém, na introdução desta pesquisa alertamos que ao utilizarmos o termo trabalhador rural estaríamos nos remetendo aos homens e mulheres que atuaram na resistência pela terra. Não pretendemos realizar uma discussão sobre os estudos de gênero, pois este não é o propósito da investigação, e além do mais não possuímos dados significativos para demonstrar a atuação das mulheres nos conflitos. Portanto, iremos nos reportar às narrativas de Ana Felicia Araújo com o intuito de apresentar as suas ações como um sujeito histórico na conquista pela terra e que provavelmente representam a história de outras mulheres de Porto Alegre do Norte às quais não tivemos acesso. Os trabalhadores rurais, ao falar dos conflitos, também expressam o papel da sua família e isso inclui mulheres e crianças, assim, às vezes é possível encontrar, nos relatos, de forma indireta, essa presença na luta pela terra. Nas narrativas apresentadas por Neide Esterci495 sobre Santa Terezinha, os homens ficaram escondidos e as mulheres fizeram toda a estratégia de logística, levando comida, roupas, informações para eles na mata, e no vilarejo, mantendo as aparências de normalidade na casa e nas rotinas diárias, mesmo sozinhas enfrentando a presença dos jagunços que estavam à procura dos seus maridos. Outro caso exemplar contra as mulheres ocorreu no povoado de Ribeirão Bonito (atual Ribeirão Cascalheira) em 1976, a população revoltou-se contra a polícia militar que acumulava um histórico de arbitrariedades e violências culminando com a prisão arbitrária de duas mulheres (seus maridos haviam sido acusados de

494Entrevistamos seis mulheres, dentre elas: Erotildes Milhomem (atuou como professora em São Félix do Araguaia), Maria José Souza Moraes (advogada da Prelazia, mas chegou à região no início da década de 1980), Odile Eglin (Irmazinha de Jesus que chegou a Confresa na década de 1980), Maria Luiza Silva (moradora de Porto Alegre do Norte, mas não obtivemos êxito na entrevista devido o avanço da sua idade), Ana Felicia Araújo (moradora de Porto Alegre do Norte desde 1962) e Maria Zenaide Araújo (filha de Ana Felícia Araújo). 495ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia...

259 desentendimentos com um fazendeiro local). Na delegacia elas foram torturadas sem que os policiais se preocupassem impedindo-as de pedir ajuda. Esse episódio culminou com o assassinato do padre João Bosco Burnier, como também provocou uma onda de violência que obrigou o destacamento a sair da cidade e a delegacia foi demolida por um grupo de pessoas. De acordo com Erik Marcelo de Moura496, ao estudar o papel das mulheres na luta pela terra no espaço do assentamento junto ao MST, este demonstra que a identificação da participação da mulher possui um percurso distinto junto aos trabalhadores do campo, no que diz respeito às formas de exclusão política, social, econômica e cultural que esses trabalhadores e trabalhadoras passaram ao longo das suas trajetórias históricas. Neste sentido, é importante frisarmos a função da mulher como essencial, sendo um dos sujeitos históricos nesse processo, pois a sua presença se encontra em várias etapas, seja na ocupação e posse da terra, ou na articulação e concretização das famílias em determinada espacialidade. Sob esse aspecto se torna válida a narrativa de Ana Felicia Araújo:

As mulheres ajudavam, porque nós avisávamos quando a polícia estava chegando, e então nós o recebíamos. Aquilo que nós ouvíamos da polícia e o que a polícia nos falava, nós falávamos para eles. Era assim. De qualquer forma a gente ajudava. Nós ficávamos em casa para cuidar dos filhos, da casa e da roça quando eles saíam. E no meu caso eu os enfrentava.497

A participação da mulher ocorria desde a ocupação da terra, ajudando na sua limpeza para a formação de roça e pastos, plantio e colheita dos alimentos. Conforme nos relata Ana Felicia, a mesma não participou do enfrentamento direto por meio de articulações e luta armada, mas sua ajuda se pautou em executar as tarefas domésticas e cuidar dos filhos durante a ausência do marido, como

496MOURA, Erik Marcelo de. A mulher e a luta pela terra no Brasil: uma abordagem sócio- cultural da constituição simbólica no MST no que concerne o estudo de gênero. Anais do V Encontro de Pesquisa em Educação de Alagoas: Pesquisa em Educação: Desenvolvimento, Ética e Responsabilidade Social, Maceió, agosto 31 a 03 de setembro, 2010. 497Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.

260 também não delatá-lo as autoridades, tendo a coragem de não se calar e enfrentar as ameaças que os polícias lhes direcionavam quando iam à procura de Alexandre Quirino.

Eu disse: agora eu quero fazer uma pergunta para o senhor. [...] E eu com toda a calma perguntei: qual a razão que o senhor está deixando uma intimação para o meu marido? Porque eu penso assim: ele não matou, ele não roubou, ele não desonrou, então por que ele está sendo intimado? Ele disse: ―ah, porque ele é muito valente. Que ele não sai daqui nem que o sangue esteja no meio da canela‖. Eu disse: nós não vamos sair daqui mesmo não! Nós não temos para aonde ir. [...] Ele disse: ―mas, essa terra é da fazenda e ela não aceita agregado‖. Eu disse: pois vai aceitar a gente aqui, porque nós não vamos sair daqui. Quando ela chegou nós já estávamos aqui. Por que ela não foi procurar outro lugar para fazer a fazenda? [...] Nós não temos para aonde ir, nós vamos ficar aqui parados. [...] Aqui ninguém tem medo da polícia, pois desde que seja polícia a gente até gosta, pois nos dá forças. Sendo polícia, né. Aí ele ficou olhando assim para mim e disse: ―eu fiquei sabendo que vocês brigam muito aqui‖. Eu falei: não, nós brigamos, porque a gente não tem condições de comprar armas. [...] Nós brigamos só se for com faca, facão, enxada e machado, porque as armas nossas são essas. Mas se o governo desse, essas armas que vocês têm, se ele também desse para nós, aí nós brigaríamos também. [...] E nós não vamos sair da nossa roça de onde nós tiramos os nossos alimentos para comer. [...] Isso é verdade que ele te falou que nós não vamos sair, porque a gente não tem para aonde ir. [...] Eu não demonstrava medo. Na hora eu fiquei com medo, mas eu falava e brigava mesmo, porque a boca era minha. Eu era muito resistente, graças à Deus. Eu ajudava o meu marido assim enfrentando os policiais498.

Ao nos relatar esse fato, Ana Felicia mudou a expressão facial e o tom da sua voz, pois parecia estar vivenciando a presença do policial na porta da sua casa, já que a nossa entrevista ocorreu em sua varanda em frente ao rio Tapirapé, ou seja, no mesmo lugar que se constituía a sua posse, em frente à rua que era usada como pista de pouso dos aviões e na divisa territorial com a agropecuária FRENOVA, assim, era como se aquele espaço tivesse contribuído para ativar a sua memória e trazer à tona os mais ricos detalhes daquele episódio.

498Idem.

261

A narrativa tecida por Ana Felicia nos mostra como foi importante a presença da mulher na luta e manutenção da terra na história de Porto Alegre do Norte, pois evidenciamos na sua fala um enfrentamento diário, físico e psicológico, momentos de adversidades junto com o seu cônjuge e demais integrantes da comunidade. Observamos que a conjuntura marcada pela desigualdade, expropriação e exploração que impossibilitou o trabalho e a subsistência de base familiar, inibindo a sua identidade e dignidade, fez com que Ana Felicia encontrasse força e coragem para assegurar os seus direitos sob o que estavam lhe retirando: a terra. Para garantir a sua sobrevivência e dos seus familiares, a entrevistada passou a questionar as formas de ocupação e uso da terra pela FRENOVA, dado que a conquista da terra era a garantia de um espaço de produção. Portanto, a organização e resistência pela permanência na terra advêm de uma identidade social criada ao longo do período que a entrevistada vivenciou em Porto Alegre do Norte, tendo em vista que a sua trajetória marcada por diversas migrações a impulsionou a não sair da sua posse mesmo com as constantes ameaças, uma vez que a consciência dos seus direitos era repassada pelos religiosos, agentes de pastorais e leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia. O testemunho de Ana Felicia é permeado por atos de coragem, a mesma cita que em muitos momentos sentiu medo, mas o sentimento de proteger o seu esposo lhe dava força para ser uma mulher combativa mesmo que isso significasse apenas se posicionar verbalmente contra a desapropriação da sua posse, questionar o porquê seu marido estava sendo intimidado sem ter cometido algum tipo de delito, bem como demonstrar que a resistência dos posseiros não era mais eficaz pelo fato dos mesmos não possuírem armas de fogo da mesma qualidade que o governo fornecia ao aparato militar. O seu enfrentamento pode ser caracterizado pelo fato de não se calar e contestar as ameaças sofridas, sendo importante destacar que a sua luta era considerada legítima, e, essa legitimidade é o que assegura o seu papel de agente naquele contexto. A sua coragem também se manifestava ao ajudar os vizinhos que estavam vivenciando situações de

262 intimidação, como foi o relato de violência que Anália Souza Lima, esposa de João da Angélica, passou para contar o paradeiro deste último, que estava escondido da polícia.

[...] eles estavam procurando o compadre João, e aí ela [Anália] disse que não sabia. Ela estava até de dieta, tinha acabado de ganhar um bebê. Eles entraram dentro do quarto e ameaçaram ela dizendo: ―você vai dar conta dele! Diz onde ele está, aonde ele foi‖! Aí deram um tiro no quarto perto dos pés dela. Quando eu escutei o tiro, pensei: estão matando a Anália! Eu fui para lá, ela morava ali [apontou com o dedo a localização da casa próxima a sua residência], porque eu sabia que ela era muito esmorecida [medrosa]. Eu fui até lá e a polícia estava lá. E ela tremendo, na hora de cair da cama, levantou com o menininho nos braços e tremendo. Aí eu briguei com eles. Falei tanta coisa lá com eles. Eu disse: se essa mulher adoecer, nós vamos processar vocês! Vocês estão pensando que não? Nós vamos! Vocês acham que a gente vai ficar aqui? Nós vamos botar para tirar a faca de vocês. [...] Vocês são todos vagabundos por humilhar uma mulher desse tipo de resguardo! Mas briguei, mas xinguei. Eu virei doida lá. Eles também calaram e saíram. Eles nos humilhavam muito.499

Entendemos a coragem de Ana Felicia como uma forma de resistência contra as ameaças de alguns elementos da polícia local. As suas lembranças são marcadas por esses enfrentamentos, e a imagem que constrói de si é de alguém que tinha coragem de confrontar o aparato militar em momentos que a mesma julgava juntamente com a sua família e vizinhos estarem sendo injustiçados. Suas atitudes podem ser consideradas ousadas, desprendida de submissão e passividade. A memória da entrevistada deseja expressar a representação de uma pessoa que era apta a contestar a violência policial que humilhava a si e sua comunidade. Observamos que a luta pela terra em Porto Alegre do Norte é exaltada pelas testemunhas em virtude da sua capacidade em organizar resistências e enfrentamentos, assinalados pela união e coragem contra o poder

499Idem.

263 público e os funcionários das agropecuárias FRENOVA e Piraguassu. Sob esse aspecto, a relação em grupo foi fundamental, conforme a narrativa500 abaixo:

Um dia eles chegaram na casa da Anália outra vez. A Anália estava na cozinha e quando viu eles entrando, ela correu para o fundo da casa. Tinha uma menininha sentada no chão da cozinha. Eles voltaram e não viram ninguém, porque os meninos maiores correram também. Aí ficou uma sentada no chão e eles derramaram um balde de água e emborcaram o balde na cabeça da bichinha. E ela sentada. Aí remexeram na casa caçando arma. E ela correu e deixou a menininha. Depois eles saíram e a vizinha escutou a menina chorar e disse: a Anália não está aí para escutar essa menina chorar. E a bichinha com um balde emborcado na cabeça. A vizinha foi e tirou. Nessas horas ela correu pelo mato e de repente estava aqui em casa.501

Em relação à fuga empreendida por Anália, deixando a sua filha para trás, esta possivelmente imaginou que os policiais não seriam capazes de violentar uma criança, pois a sua atitude advém do ato de assegurar a sua integridade física, ou seja, de acordo com Menezes, ―[...] os indivíduos podem se utilizar de diferentes estratégias nas interações sociais, de modo a resguardar a sua dignidade‖502. Neste contexto de mecanismos tecidos para preservação da vida é que a casa de Ana Felicia foi descrita como o porto seguro para a vizinha Anália Souza Lima, que estava fugindo da polícia. Ela é citada pela entrevistada como uma mulher muito medrosa, e por isso, tinha que ter o apoio e coragem de Ana Felicia para superar as ameaças e violências sofridas, pois, se elas se deixassem abater pelo medo, não teriam os seus direitos garantidos sobre as terras que ocupavam. Portanto,

500Esse acontecimento também foi relatado por João Souza Lima (João da Angélica) em entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte. 501Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte. 502MENEZES, Marilda Aparecida de. O cotidiano camponês e a sua importância enquanto resistência à dominação: a contribuição de James C. Scott. Raízes, v. 21, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2002, p. 42.

264

Agora a Anália, coitada. O compadre João não ficava em casa, então acontecia qualquer coisa e ela corria. Ela dizia: só me conforto de estar perto da senhora, porque se eu não ficar perto da senhora eu até morro. Aí eu chegava e animava ela e dizia: não é assim não minha filha! Vamos ter coragem, vamos confiar em Deus! Ela dizia quando conversava comigo tinha mais força. Ela era esmorecida, pobre, coitada. Todo mundo é de um jeito, né?503

O medo poderia ser um grande rival para a preservação da luta pela terra, mas este também pode ser caracterizado pela ideia de permanência e garantias dos direitos sob a posse. Portanto, o medo deveria ser anulado para continuarem lutando, pois além de ter o conforto e motivação de Ana Felicia, Anália deveria confiar na bênção de Deus para a conquista efetiva da terra. Esse ideal nos faz lembrar que sem esforço e dificuldade não se alcança a vitória, ou seja, uma justificativa para acreditar nos propósitos de Deus, já que a terra a ele pertence e os posseiros podem ter acesso a ela através do trabalho504. Outra compreensão seria de que os princípios morais, os quais relacionamos com a concepção da economia moral tecida por Eduard Thompson505, em que a terra é vista pelo posseiro como essencial para a sua subsistência e se esta estiver em risco, eles irão empreender formas de resistências para garantirem direito à sobrevivência como senso moral que regulamentava o cotidiano dos trabalhadores rurais. O ato de ocupar não resulta apenas de coragem, é também uma ação baseada na necessidade econômica e no desejo de gerir um espaço para a agricultura familiar sob os preceitos da economia moral. De acordo com o relato tecido por Maria Zenaide Araújo506, as crianças também tiveram participação na luta pela terra, conforme a narrativa abaixo:

503Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte. 504WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se neguceia”... 505THOMPSON, Eduard P. Costumes em comum... 506Professora da Rede de Educação Básica do município de Porto Alegre do Norte. Filha dos posseiros: Ana Felicia Araújo e Alexandre Quirino de Sousa. Nascida em Porto Alegre do Norte em 14 de agosto de 1963.

265

Nós fomos criados assim, o pai dizia: olha, se a polícia chegar aqui você não diz nada, fica caladinho, senão eles vão prender o seu pai e vão matar. [...] Eu me lembro de quando criança a minha mãe disse que não era para a gente falar nada. Então, caiu o tijolo com o barro lá que a parede estava desmontando. Aí minha mãe falou para o policial que mexeu na arma lá: olha foi um tijolo que caiu, se vocês quiserem ir lá ver, mas eles não foram não. Meu irmão e eu estávamos sentados e eu me lembro de que a minha mãe falou que era para a gente não falar nada. Então, nós crescemos nesse movimento o tempo todo de tensão, de medo, né? A infância das crianças aqui foi essa. [...] As crianças também ajudavam nas estratégias, pois elas se ofuscavam de falar alguma coisa, né? Todos têm papel na luta pela terra. Era uma forma de se organizar para resistir. Porque a criança não tem noção do que está acontecendo e se pergunta onde está o seu pai, ela diz: o meu pai está ali.507

A narrativa de Maria Zenaide Araújo sobre a participação das crianças na luta pela terra em Porto Alegre do Norte é elucidativa para entendermos que de alguma forma os sujeitos históricos, sejam estes homens, mulheres e crianças, estavam juntos nas estratégias de resistência para a conquista da terra. Assim como a sua mãe Ana Felicia, Maria Zenaide Araújo também quis demonstrar a sua atuação enquanto criança nos momentos de tensão que a sua família vivenciou, mesmo que essa ação consistisse apenas em se calar e não delatar o paradeiro do seu pai à polícia quando esta lhe questionasse. A entrevistada demonstra que ela e seu irmão foram instruídos pelo pai a não se comunicarem com os policiais, pois isso iria ocasionar a prisão e morte do mesmo. Novamente o medo marca a vida de toda a comunidade, estendendo uma grande responsabilidade às crianças que diante a presença de autoridades deveriam permanecer em silêncio, carregando com elas a angústia de não poder falar, e se necessário, provavelmente teriam que mentir sobre a localização do pai. Fato este que contraria os princípios morais de uma educação, em que a mentira de uma criança é algo vergonhoso para os pais, mas no caso relatado pode ser entendida como uma estratégia de sobrevivência e manutenção da família.

507Maria Zenaide de Araujo Silva entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.

266

4.3 “Época violenta”: expulsão de posseiros e o assassinato do jagunço Capixaba

A ―Época violenta‖ é caracterizada pela Prelazia de São Félix do Araguaia entre os anos de 1978 a 1979, devido aos enfrentamentos dos posseiros para demarcação e titulação das suas áreas, bem como pela delimitação do espaço urbano de Porto Alegre do Norte, tendo dentro dessas ações o assassinato de um jagunço da Piraguassu pelos trabalhadores rurais. Na década de 1970 foi aprovada a lei municipal para a desapropriação de 4.500 hectares para Porto Alegre do Norte508. Entretanto, os prefeitos posteriores, Manoel Costa e Lídio Limeira Brito definiram a demarcação de 3.600 hectares para a área urbana, mas a Piraguassu não aceitou a proposta e cercou todo o espaço. Para agravar ainda mais a regularização fundiária do patrimônio509, o prefeito Sebastião Gomes de Souza, realizou um acordo em 13 de julho de 1977 aprovando 1.500 hectares para o espaço urbano do povoado. Essa delimitação contribuiu para o acirramento de novos conflitos, pois a localidade estava recebendo uma média de 5 a 10 famílias por semana510, que vinham principalmente de Luciara, e de outras vilas como Pontinópolis511 e Serra Nova Dourada512, fugindo do processo de expulsão e conflitos513. Diante do contexto da abertura da BR 158 em 1974, intensificou-se o número de migrantes para o Vale do Araguaia, e Porto Alegre do Norte, por estar na área de influência da rodovia, passou a receber muitas pessoas atraídas pelos

508CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 90. 509Porto Alegre do Norte se emancipou de Luciara em 13 de maio de 1986. 510Não encontramos dados oficiais sobre o número de habitantes de Porto Alegre do Norte na década de 1970, mas para termos uma ideia o Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 3.5, 1977, p. 1, informa 1000 moradores na área urbana em 1977. Em 1988 a estimativa era de 15 mil habitantes no município, com 6 mil na sede e 2000 no distrito de Canabrava do Norte. o restante encontrava-se nas fazendas e núcleos rurais. CASCÃO, Rodolfo. Democratização do poder local: uma experiência no Araguaia. Rio de Janeiro: FASE, 1992, p. 49- 50. 511Conflito dos posseiros com a fazenda Suiá-Missú. 512Conflito dos posseiros com a agropecuária BORDON S/A. 513A DURA, conquista da terra...

267 projetos de colonização propagados pelo governo ditatorial, bem como a procura de terras e emprego nos empreendimentos rurais. Neste processo, chegaram ao povoado trabalhadores rurais de localidades próximas ou de outros estados (Piauí, Maranhão, Goiás e Pará), assim, a partir daquele momento, o patrimônio se constituiu entre os antigos posseiros e os novos posseiros, contribuindo para uma nova configuração espacial e engajamento na luta pela terra. Com a aprovação do prefeito Sebastião Gomes de Souza de 1.500 hectares514 para a área urbana do povoado, os posseiros se mobilizaram por meio de uma carta coletiva direcionadas ao presidente Ernesto Geisel, representante do INCRA (Cuiabá), Prefeito de Luciara e Dom Pedro Casaldáliga, alegando que o espaço não era suficiente para a sobrevivência das famílias de Porto Alegre do Norte, conforme o documento abaixo:

Será que o I.N.C.R.A como órgão oficial para os problemas de terra vai aceitar esse acordo que beneficia somente a fazenda, prejudicando os 1000 moradores e o sertão? Existe um acordo assinado no tempo do prefeito anterior Sr. Manoel Martins da Costa sobre a área permitida pela lei e que não está sendo respeitado pela fazenda e pelo prefeito atual. Nós não temos condições de vida numa área tão pequena para as nossas famílias. Esperamos do Sr. atendimento e justiça dentro da lei que nos defende. Não queremos chegar a situação lamentável e irreparável.515

A população reclamava por seus direitos, mas desde dezembro de 1976 o INCRA já tinha designado o número de posseiros que receberiam o título da propriedade e a dimensão das áreas. De acordo com o Ofício do INCRA nº 37 de 1976 elaborado por Antônio Pio da Silva, Chefe da Unidade Fundiária de São Félix do Araguaia direcionada a Dom Pedro Casaldáliga, este demonstra que apenas 47 posseiros poderiam adquirir as terras de acordo com os seguintes parâmetros: 110 hectares para a pecuária, 50 hectares para a agricultura e 5

514Segundo os dados do IBGE (2015), a área da unidade territorial em km² de Porto Alegre do Norte é de 3.972,247. 515Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 3.5, 1977, p. 1.

268 hectares para as atividades hortigranjeiras. O documento cita os nomes de oito516 posseiros que aceitaram 50 hectares e três517 posseiros que receberam 110 hectares. Em relação aos posseiros que receberam 50 hectares, traz a seguinte justificativa: ―os que aceitaram 50 hectares, não sofreram a menor coação por parte dos dirigentes da empresa, muito menos, por parte deste órgão‖518. O funcionário do INCRA só não informou que de acordo com Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974, a área que os posseiros receberam estava abaixo da metade do tamanho estipulado pelo documento citado. Assim, dos 180 posseiros que existiam no início de 1970, no final da década foram reduzidos a pouco mais de 40 para obter a regularização das suas posses junto ao INCRA. Em julho de 1978 a agropecuária Piraguassu moveu uma ação de notificação judicial contra 51 posseiros. O Oficial de Justiça, Wolfgang Dankmar Gunther519, que segundo os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia e o Jornal Alvorada520 se aproveitou do analfabetismo dos posseiros para que treze pessoas aceitassem 50 hectares de terra, 9 conseguiram 110 hectares, 14 venderam as suas posses, 4 ficaram sem nenhum direito, 8 trabalhadores rurais não entraram em acordo, 1 trocou o lugar da posse e recebeu Cr$ 5.000,00 e 1 posseiro recebeu 90 hectares e mais Cr$ 5.000,00521. A luta pela terra em Porto Alegre do Norte se arrastou por toda a década de 1970, e os posseiros aos poucos foram perdendo os seus direitos sob as posses, sendo alguns não reconhecidos pelo INCRA, outros aceitaram uma área menor do que a garantida por lei ou venderam as suas terras. Mas, a população

516Cícero Rufino Guimarães Lima, José de Souza Lima, Rita Pereira Santiago, Raimundo Souza Parente, Adauta Luz Batista, Raimundo Pereira Mendes, José Pereira Campos e Sebastião Ferreira de Figueiredo. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.15, 1976, p. 2. 517Dionel Martins de Almeida, Alexandre Quirino de Souza e Clarindo Pereira Nonato. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.15, 1976, p. 2. 518Ofício INCRA /CR-13/T4/UF-1 nº 37/76 de, 22/12/1976. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 2.15, 1976. 519Tentamos entrar em contato para realizarmos uma entrevista, mas o mesmo não atendeu as nossas ligações e mensagens por redes sociais. 520Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 4, 1980, p. 3 e A DURA, conquista da terra... 521Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 4, 1980, p. 3.

269 reagiu em julho de 1977 às tentativas da Piraguassu em diminuir a área urbana do povoado passando uma cerca para estabelecer os limites da agropecuária. Já em setembro do mesmo ano, aproximadamente quarenta trabalhadores rurais pararam o trator que estava abrindo uma estrada e impediram por duas vezes que os pedreiros construíssem um posto de combustível em uma quadra do patrimônio. Mesmo assim, em julho de 1978 a fazenda tentou novamente construir a cerca e milhares de estacas amanheceram queimadas pelos moradores522. Notamos que em muitos documentos da Prelazia, jornais e testemunhos orais, o ato de se construir a cerca como um exercício de poder sobre as supostas terras da FRENOVA e Piraguassu era algo constante, bem como o corte destas pelos trabalhadores rurais como uma ação de resistência aos limites impostos pelas agropecuárias. Muitas vezes essas delimitações ocorriam de modo absurdo, prejudicando a sociabilidade das famílias em Porto Alegre do Norte, conforme o relato a seguir:

Ele [Plínio Ferraz] veio conversar com um filho do Domingão que cortou um arame, pois a fazenda já tinha cercado tudo. Fez o arame ali na casa do compadre João que tinha uma casa grande e a cozinha separada. Eles passaram o arame no meio da casa. Então a cozinha ficou para cá e casa para lá separada ao meio pelo arame. Dividiu a casa dele ao meio, porque antigamente o povo gostava de fazer a casa assim: a casa de morar separada da cozinha, pois se o fogo pegasse na cozinha não iria pegar na casa, porque era tudo de palha, né? [...] Eles passaram a cerca no meio da casa. A cozinha ficou para lá e compadre João ficou sem poder acender o fogo na cozinha. Mas, chegavam aqueles malcriados que tacavam o facão e cortavam a cerca. O compadre João não cortava, porque ele era muito calmo. Esse não é o João da Angélica. Este é o João Manoel. As pessoas iam lá e perguntavam: como faz o café? Então, meteram o facão e cortaram a cerca. O Julinho foi e cortou o arame da empresa. Então, a fazenda marcou o dia de buscar a polícia. [...] Aí fizemos uma farofa e quando foi meia noite eles saíram e foram avisar o prefeito que eles levaram o Júlio preso. Porque ele tinha cortado a cerca [...].523

522Idem. 523Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.

270

As cercas utilizadas pelos posseiros tinham um sentido inverso do dispositivo de dominação empregado pelas agropecuárias. Estas possuíam a finalidade de impedir que o gado criado solto invadisse as lavouras, e não detinha a ideia de impor limites entre as propriedades. A construção das cercas pela FRENOVA e Piraguassu não levaram em consideração a organização espacial estabelecida há anos pelos trabalhadores rurais, seus caminhos que levavam até as áreas de uso comunitário, como a ―reserva de mata‖, ao bebedouro público dos animais, enfim ao núcleo urbano do patrimônio. A delimitação do território tinha como um dos objetivos privilegiar o trânsito das empresas, já que esta necessitava da via do rio Tapirapé para transportar os seus materiais, bem como da rua principal do povoado que era usada como pista de pouso dos aviões. As vias de acesso ganharam outras funções e expressaram a sensação de invasão, pois as estradas da população local passaram a ser frequentadas por pessoas estranhas que não respeitavam as regras de convivência do patrimônio. Em relação ao relato de Ana Felicia Araújo, podemos entender a ação da FRENOVA como a expressão da força poder que a mesma exercia, tendo em vista que a sua atitude em delimitar a área da casa de João Manoel sem lhe restituir os seus direitos sob a posse não foi vista como crime, mas o corte da cerca como forma de resistência ocasionou a prisão do seu executor. As estratégias de Keizo Tokuruki, gerente da Piraguassu também consistiam em ludibriar os posseiros em relação aos acordos para a delimitação das suas posses. O caso exemplar, é de Izídio Gonçalves dos Santos, morador da região há cerca de vinte anos, que supôs estar assinando o documento de doação de 34 alqueires, mas pelo fato de ser analfabeto, foi enganado em relação à proposta e assinou um contrato de empreitada524 como vigia da mata do rio Sabino Norte, com o salário de Cr$ 200,00 mensais525.

524Disponível no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – Documento A17. 3.25, 1978, p.1- 2. 525Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 4, 1980, p. 3.

271

O fato que assinala o início da ―época violenta‖ é a expulsão de Alberto Gomes de Abreu da sua posse pela agropecuária Piraguassu. O trabalhador rural morava em Porto Alegre do Norte há mais de trinta anos e a partir do dia 27 de fevereiro de 1979, o gerente Keizo Tukuriki, acompanhado de jagunços, solicitou a retirada da família da área, mas esta se recusou a sair. Com a negativa, o funcionário da empresa propôs uma troca, em que a fazenda iria ceder outra propriedade com benfeitorias. O posseiro aceitou, porém a fazenda não cumpriu com o acordo e as ameaças continuaram. Em março de 1979 ocorreram novas investidas para a expulsão de Alberto Gomes de Abreu e da sua família. O gerente Tukuriki acompanhado pelo Oficial de Justiça de Barra do Garças, Wolfgang Dankmar Gunther, cabo Torres e por jagunços armados, foram a posse de Alberto Gomes para realizar o despejo, entretanto, só encontram mulheres e crianças na casa, facilitando assim, a expulsão destes que tiveram a sua residência invadida e os seus pertences carregados por um trator e despejados na posse vizinha. Logo após, as moradias foram derrubadas e queimadas, cortaram as cercas para que o gado da fazenda entrasse nas plantações. A família composta por nove pessoas perdeu os seus bens, assim como o fruto do trabalho desempenhado há anos na posse: ―um alqueire de mandioca, uma tarefa de banana, 1 de cana, 40 pés de laranja, 26 pés de manga, uma tarefa de arroz maduro, meio alqueire de arroz plantado e outras frutíferas e serviços‖526, além de animais como patos e galinhas. Diante da expulsão violenta sofrida, o grupo familiar teve que morar com outro posseiro em Porto Alegre do Norte, e essa situação ocasionou uma série de necessidades, já que a família perdeu a terra de onde retirava o seu sustento através da agricultura de subsistência. Desse modo, Alberto Gomes viajou duas vezes a Barra do Garças para denunciar o caso as autoridades, mas estas o ignoraram. Depois de quatro meses, o trabalhador rural resolveu voltar para a sua posse com o apoio dos vizinhos, os quais ajudaram a construir uma nova casa e novos serviços.

526Ibidem, p. 4.

272

No mês de dezembro de 1979, a Piraguassu retomou as ameaças a Alberto Gomes de Abreu, cercando a sua posse com arame farpado, assim, o posseiro e sua família ficaram encurralados e, então, Alberto Gomes denunciou o fato ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Luciara. Sob essa situação, Luiz Carlos Machado527, conhecido como Luiz Bang, nos relatou da seguinte forma:

Quando foi em 1980528 o Nito era o gerente529 da fazenda Piraguassu. Nito Japonês. Lá moravam o seu Augusto e o seu Alberto530, e ele queria tomar e tirar os posseiros por tudo. Eu conversei com o Raimundo, com o Zé Gonzalez e com o Domingos Chicote. Se pagar para nós, nós saímos. Eu falei para o Nito e ele pagou para eles e eles saíram. Aí ficaram o seu Alberto e o seu Augusto. O Nito queria que eles saíssem. Eu falei: esses aí não saem. Mas tem que sair! Eu falei: eu não vou tirar eles não. Eu não vou ameaçar eles, não vou deixar eles inibidos, pois esse pessoal mora aqui há mais de trinta anos e eles não querem sair daqui e o direito é deles. Quando você chegou aqui encontrou eles aqui. Aí ele pegou e veio falar para mim: então você vai fazer uma cerca passando bem na porta do seu Augusto e do seu Alberto. Eu peguei e falei para ele: eu não vou fazer essa cerca. Então o senhor pega o trator e derruba toda essa mata que está na frente da casa do seu Augusto e do

527Narrou a sua trajetória de vida por meio de diversas migrações entre os estados de Goiás e Mato Grosso. Chegou a Porto Alegre do Norte no final de 1977, e entre 1978 a 1979 trabalhou como empreiteiro da FRENOVA. Entre 1985 a 1986 trabalhou para a Piraguassu como empreiteiro geral na limpeza da área e plantação de cana de açúcar para a implantação de uma Destilaria (Gameleira que teve seu nome alterado em 2005 para Destilaria Araguaia devido os casos de exploração de trabalho análogo ao de escravo). Seu apelido foi dado por Silvana Carraro Carneiro (proprietária da FRENOVA), pois segundo Luiz Carlos Machado, na década de 1970 era comum as pessoas portarem armas como um acessório e o fato do mesmo ser alto, magro, usar chapéu, cinto e bota lembrava os personagens dos filmes de Bang-Bang. Em 1992 foi eleito prefeito de Porto Alegre do Norte. Já foi considerado o 5º pistoleiro mais perigoso do país, por envolvimento na prática de grilagem de terras da União, e por isso prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pistolagem entre 1991 e 1993 na Câmara Federal. O ex-prefeito, também foi envolvido com o assassinato do ex-senador Olavo Pires (1990), morto num hotel de São Paulo, que era pré- candidato a governador de Rondônia. Em 2006, Luiz Bang foi julgado e absolvido no caso em que era acusado de mandar matar o ex-prefeito Rodolfo Alexandre Inácio, o Cascão, a esposa Fernanda Macruz, e o amigo Avelino Pereira Coelho, em novembro de 1988. Em 2003 O ex- prefeito também foi preso por exploração de trabalho escravo na Fazenda Cinco Estrelas, em Novo Mundo (MT). Ele chegou a ser preso, mas solto logo em seguida. Foi preso em 2009 durante Operação Pluma que combatia a prática de grilagem de terras no Vale do Araguaia. No mesmo ano, voltou a ser preso sob suspeita de envolvimento em fraudes ao INSS. No dia 27/01/2017 foi assassinado em sua chácara no município de Confresa/MT. 528O fato narrado aconteceu em 1979. 529O gerente era Keizo Tukuriki e o empreiteiro geral Samiyoshi Nito. 530O caso narrado se refere ao posseiro Alberto Gomes de Abreu.

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seu Alberto e vamos fazer um quadrado só para ficar fechada a casa deles. Também não vou fazer. Aí ele pegou o trator para ir desmatar. Eu me lembro disso como se fosse hoje. [...] Ele [Alberto] sentado aqui em cima e eu sentado mais ele aqui, e o Nito derrubando os matos. O seu Alberto com um revolverzinho 22 na cintura. Ele rangia os dentes assim [fez a expressão dos dentes rangidos]. Eu estou numa vontade de dar um tiro daqui. Eu disse: não faz isso não. Ele vai embora e esse mato que ele está desmantando fica para o senhor. O senhor planta mandioca, planta capim. Deixa ele desmatar, pois ele está gastando dinheiro da fazenda e não do senhor. Se o senhor der um tiro nele as pessoas vão prender o senhor e o senhor já está velho. Deixa ele fazer o que ele quer. [Alberto disse] Você sabe que é mesmo.531

A narrativa de Luiz Bang o retrata como uma pessoa trabalhadora que lutou muito na vida, tendo executado diversos serviços em diferentes lugares. O seu propósito era se tornar rico por meio do seu trabalho; ele afirma ter se transformado em um homem bem-sucedido, e assim conseguir formar os seus filhos em diversas profissões. O entrevistado alega que ao propagar para os posseiros que estes deveriam se desvincular da miséria através do trabalho, provocou na equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia, sobretudo em Dom Pedro Casaldáliga, uma objeção aos seus valores, pois aquela Igreja pregava a pobreza entre os seus fieis. Neste sentido, Luiz Bang atribuiu a Casaldáliga as seguintes situações: ―porque ele me perseguiu muito [...] acusado por ele mesmo de ter mandado matar aquele senador Olavo Pires lá em Rondônia, acusado de ter cortado gente com motosserra lá no meu serviço, tudo pelo Pedro Casaldáliga por esse pessoal da Prelazia‖. Ao nos demonstrar que ao longo dos anos foi perseguido pela equipe da Prelazia e, especialmente, por Dom Pedro Casaldáliga, em seu relato, Luiz Bang se coloca como um mediador nos conflitos entre a Piraguassu e o posseiro Alberto Gomes, mesmo que isso supostamente implicasse ter que contrariar as ordens do empreiteiro geral, Samiyoshi Nito. A sua memória se entrelaça com a memória coletiva para nos evidenciar que a partir do momento em que chegou a

531Luiz Carlos Machado (Luiz Bang) entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.

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Porto Alegre do Norte, este possuía consciência de que os trabalhadores rurais estabelecidos na região há mais de trinta anos tinham o direito sob as suas posses, e a empresa deveria levar isso em consideração. Quando o entrevistado se reporta a Alberto Gomes, este o descreve em um momento tomado pela raiva, possivelmente tendo como objetivo atirar com o seu revólver no empreiteiro da Piraguassu, mas Luiz Bang diz ter aconselhado o posseiro a não fazer tal ato e aceitar como positivo o desmatamento da sua área pelo funcionário da agropecuária. A testemunha se enaltece por mediar os conflitos e não se envolver em agressões ou atos de expulsão dos posseiros, pois o seu papel era interceder ou se abster junto às partes conflitantes para um resultado pacífico. Em relação aos crimes dos quais foi acusado, bem como as suas prisões, Luiz Bang se declarou inocente e injustiçado pelo poder judiciário e pelas denúncias de Dom Pedro Casaldáliga. Neste sentido, as lembranças de Luiz Carlos Machado são acionadas em um presente que traz à tona toda a sua trajetória no Vale do Araguaia, assim, a sua memória também quis nos demonstrar uma atuação heroica junto à população de Porto Alegre do Norte. Para nos evidenciar a sua relação de mediador, ele expôs sobre a sua atuação como prefeito de Porto Alegre do Norte, apresentando-nos uma gestão preocupada com a saúde, educação e infraestrutura do município, diferentemente dos propósitos de pobreza disseminados pela Prelazia de São Félix do Araguaia. Desse modo, nos questionamos, cientes de que conforme Regina Beatriz Guimarães Neto532 temos que estabelecer uma relação de criticidade aos testemunhos orais, já que estes possuem diversos usos e interesses na construção crítica da memória histórica. Esse ato implica em refletir se Luiz Bang tinha a intenção de se afirmar na cena política e histórica do Araguaia como um sujeito histórico que possui os mesmos atributos que Dom Pedro Casaldáliga, pois o mesmo alega ter atuado na mediação dos conflitos entre os posseiros, tendo consciência de que os trabalhadores rurais tinham direito sob as posses, da mesma forma que a Igreja, realizou uma gestão municipal com mais competência que as

532GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política...

275 administrações anteriores desempenhadas pelo agente de pastoral Rodolfo Inácio Cascão e posteriormente pelo posseiro Pedro Fernandes. Dessa forma, Luiz Bang mostra que a sua história tem tanto protagonismo e mérito político quanto a imagem propagada pela mídia sobre Casaldáliga, tal fato pode ser relacionado à concepção de Guimarães Neto533, de que os testemunhos devem ser analisados através da ideia de tempo e sua possibilidade de atualização no presente, tornando-os compreensíveis e delegando a história a mediação crítica. Ainda sobre o caso de Alberto Gomes de Abreu, o Sindicato de Trabalhadores Rurais reuniu os posseiros no dia 16 de dezembro de 1979 juntamente com o Sr. Nito, empreiteiro geral da Piraguassu para discutir as situações dos trabalhadores rurais, sobretudo de Alberto Gomes, cuja posse estava encurralada por uma cerca construída pela agropecuária. Foi exigido que a empresa suspendesse os serviços, mas não houve acordo. No dia 17, solicitaram uma nova reunião, na qual os representantes da fazenda foram contrários à suspensão das cercas534. Diante da falta de acordo entre a empresa e os trabalhadores rurais, estes resolveram no dia 18 de dezembro de 1979 realizar um mutirão para suspender os serviços de cercamento da posse de Alberto Gomes. Quinze posseiros utilizaram de uma caminhonete dirigida pelo agente de pastoral, Rodolfo Inácio Cascão e foram em busca de uma resolução para os conflitos, o empreiteiro Laudelino Evangelista aceitou o acordo, porém o jagunço Gildo Mendes de Almeida, conhecido como Capixaba, não concordou, sendo então assassinado pelos posseiros535. A redação do jornal Equipe assim descreve o fato:

Quando os posseiros chegaram à área, encontrava-se os empreiteiros do serviço e o ―fiscal‖536 ―Capixaba‖, que se recusou a atender o pedido, dizendo que só acatava ordens da fazenda. Houve uma discussão entre as duas partes, com

533Idem. 534Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 4, 1980, p. 5. 535Idem. 536A palavra está entre aspas, porque a agropecuária Piraguassu o considerava ―fiscal‖ e não pistoleiro.

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―Capixaba‖ sendo baleado, após sacar uma arma, com capa e tudo para atirar contra os posseiros. Segundo os próprios envolvidos no episódio, o segundo tiro foi dado em Capixaba depois que o ―fiscal‖ já tinha caído para o solo. Em seguida ao entrevero, os posseiros retornaram à sede do distrito e, temerosos de que os companheiros de Capixaba tentassem vingá-lo, embrenharam-se na mata. Desde o dia do episódio, os participantes do assassinato ficaram escondidos só retornando a Porto Alegre depois que as autoridades policiais, que enviaram reforços para o local, asseguraram que ninguém seria molestado.537

Entretanto, o testemunho de Luiz Bang descreve a morte de Capixaba da seguinte forma:

[...] tinha um cara trabalhando comigo que se chamava Capixaba [...]. Aí ele [Nito] falou: Capixaba eu vou te empreitar para você fazer 1 km de cerca para o seu Alberto não passar aqui. O Capixaba falou para mim: o que você acha seu Luiz? Se você for fazer essa cerca você vai morrer! Não eu não morro não, porque eu também tenho coragem. Eu disse: você vai morrer! Vamos supor 1 km de cerca na época custava R$ 1.000,00, uma hipótese, então ele pagava R$ 10.000,00 para fazer 1 km de cerca. O cara doido para ganhar dinheiro pegou a cerca para fazer. Eu sai daqui em um Jeep que eu tinha que até eu tinha comprado deles [Piraguassu] e vou para Porto Alegre do Norte. Quando eu cheguei, pode ir reto e vai reto que vai ter uma curva e naquela curva encontrei com a caminhonete do Cascão que era o primeiro prefeito de Porto Alegre do Norte, cheinha de posseiros! João da Angélica, João Ferreira, Chicão, Terezino, Laranjinha. Eram uns doze dentro da caminhonete uma C10. E o homem lá fazendo a cerca. Eles chegaram e deram mais ou menos uns duzentos tiros nele e matou ele [Capixaba]. Na época quem comandava, o povo fala a Prelazia isso e aquilo, mas o que mais mandou matar gente aqui foi a Prelazia.538

O relato de Luiz Bang se difere dos fatos narrados pelos jornais e documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia. Novamente, a memória do entrevistado o apresenta como um mediador nos conflitos em Porto Alegre do

537LUTA, pela terra em Porto Alegre. Polícia já ouviu 14 indiciados mas não sabe quem matou Capixaba. Equipe, Cuiabá, 10/01/1980, p. 3. 538Luiz Carlos Machado (Luiz Bang) entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.

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Norte, pois alertou Capixaba sobre o perigo em executar o serviço da cerca na posse de Alberto Gomes. A testemunha tem objeções em relação à imagem vinculada da Prelazia como uma instituição mediadora na luta pela terra, acusando-a de estar envolvida nos crimes praticados na região, ou seja, tal posicionamento pode ser visto como mecanismos do depoente que possivelmente são utilizados para engrandecer o seu discurso e dar uma maior importância e foco a sua pessoa, em detrimento dos demais sujeitos históricos. No dia seguinte, Porto Alegre do Norte foi tomada pela polícia civil representada pelo delegado Estevão, escrivão de polícia, Waldemar e dois policiais, todos vindos de Luciara. Instalou-se um clima de terror no povoado, pois o aparato militar passou a desfilar armado no carro da agropecuária Piraguassu conduzido pelo empreiteiro Samiyoshi Nito. Nessa ação prenderam o agente de pastoral Rodolfo Inácio Cascão, acusando-o indiretamente de assassino, já que o seu carro foi utilizado para levar os posseiros até a posse de Alberto Gomes que culminou no assassinato de Capixaba. Foram realizadas buscas em diversas casas com a ajuda do ―peão‖ Raimundo, que presenciou o fato, logo após, prenderam o Sr. Moacir, irmão de um dos posseiros envolvidos no enfrentamento. Ele se recusou a ser preso e foi espancado pelos policiais539. Nesse processo de intensificação das ocupações de imóveis improdutivos por parte dos trabalhadores rurais e de resistência dos proprietários e empresários rurais, foi, talvez, a fase em que a violência atingiu com maior intensidade as lideranças mais expressivas dos trabalhadores rurais. Como afirma Medeiros, ―é sobre essas personagens que a violência incide mais fortemente e atinge maiores requintes de crueldade‖540. Conforme a notícia do jornal Diário de Cuiabá, o deputado estadual Dante de Oliveira relatou que a polícia atuou com o propósito de fazer uma investigação, além de empreender uma ―ligação dos posseiros com a Prelazia de

539Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia – A17. 4, 1980, p. 6. 540MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, p. 126-141, 1996, p. 137.

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São Félix. Agiram baseados única e exclusivamente nos dados fornecidos pela fazenda com o apoio da Associação dos empresários da Amazônia, para tentar amedrontar os posseiros na sua luta pela terra‖541. Concomitantemente, cerca de cinquenta posseiros de Canabrava do Norte vieram prestar apoio aos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, assim estes solicitaram uma reunião de emergência com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e exaltados tentaram derrubar a cadeia para retirar os companheiros presos. Então, propuseram uma reunião com o delegado, mas ele recusou e mandou soltar dois presos, tomando o depoimento do motorista da caminhonete como testemunha da morte do jagunço Capixaba. Diante da dessa situação, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais foi a Barra do Garças e em Cuiabá para denunciar os fatos aos jornais e procurar apoio de deputados542 e da FETAGRI que se comprometeu a dar assistência com um advogado. Conforme, Airton dos Reis Pereira543, por mais que a luta fosse localizada, no entendimento da CPT e dos STRs, deveria exceder os interesses locais e divulgar a resistência dos trabalhadores rurais pela terra não apenas em âmbito local, mas também expressá-la em rede regional, estadual e até nacional. Dez dias após o assassinato de Capixaba, chegou a Porto Alegre do Norte um corregedor ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado, um tenente de Barra do Garças e quinze soldados. Eles vieram investigar o caso e registrar o depoimento dos posseiros. Diante desse contexto, os trabalhadores rurais resolveram permanecer foragidos na mata e a prestação dos depoimentos ficou para o dia 5 de janeiro de 1980. Os depoimentos foram tomados sem violência e até os soldados dispuseram das suas armas. Entretanto, cerca de cento e cinquenta pessoas se colocaram vigilantes próximas à cadeia, dentre estas: os

541TENSÃO, social se agrava em Porto Alegre do Norte. Cuiabá, Diário de Cuiabá, 10/01/1980, p. 10. 542São citados nos documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia, o deputado federal Carlos Bezerra e o deputado estadual Dante de Oliveira. 543PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará... p. 93.

279 presidentes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de São Félix do Araguaia, Nova Brasília544 e Luciara, equipe da Igreja, CPT e da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo545. De acordo com Medeiros546, o ato dos trabalhadores rurais em reivindicar os seus direitos tem como princípio colocá-los na cena política como iguais, ou seja, portadores de direitos. Neste sentido, a atitude de empreender resistências através de manifestações implica que os latifundiários, assim como o governo têm que designar agentes onde apenas tinha espaço para o controle e a dominação. A emergência dos trabalhadores rurais, com as suas reivindicações, colocando-se na cena pública como iguais, como portadores de direitos, implica que os proprietários de terra tenham que aceitar outro interlocutor, pois de acordo com Medeiros ―significa ter de reconhecer um ‗outro‘, abrir espaço para a negociação e colocar em risco os privilégios e a capacidade de mando que se assentam sobre a propriedade da terra‖547. Esta seja, talvez, uma das principais razões dos conflitos e da violência no campo, nessa parte do território amazônico. Sob a ótica de João da Angélica, a morte de Capixaba pode ser compreendida da seguinte forma:

Capixaba era o fiscal da fazenda. O Alberto morava mais o velho Izídio. Eles iam à Barra e passava umas duas semanas e vinham. Difícil, naquele tempo as estradas eram todas de chão, o ônibus era difícil. Aí ia lá e não arrumava nada. O padre Eugênio disse para ele: Rapaz ir lá não adianta. Vocês devem se unir aqui mesmo. Então foi indo e a gente se unindo. E lá esse Capixaba foi o seguinte: se reuniu todo mundo, eles [Piraguassu] iam fazer uma cerca ao redor da casa do Alberto que media uns cem metros. Ele [Alberto] ficava com os animais e as galinhas tudo ali. Ele foi lá para suspender a cerca, para não fazer. Então, eles [posseiros] agiram também. Derrubaram ele

544Distrito de Nova Xavantina que fica distante 151 km de Barra do Garças. 545Foi fundada pelo Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns em 1972. Vinculada à Arquidiocese de São Paulo, sua atuação visava dar proteção aos perseguidos e familiares por meio da esfera jurídica, ou, quando não era possível, direcionar conforto e esperança as vítimas. 546MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo... p. 133. 547Idem.

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[Capixaba]. Defesa pura, mas naquela época a justiça não via as nossas ações como defesas. Tinha a gente como uns bandidos, e os bandidos vinham de fora, era a autoridade, os peões que eles [agropecuárias] contratavam para trabalhar, mas chegavam aqui eles colocavam para serem pistoleiros. [...] A polícia era pior ainda! Naquele tempo era duro, porque o governo era ele que decidia a história. Era assim, daquele jeito. Se nós não tivéssemos se unido, botado mesmo junto, homem e mulher, não tinha Porto Alegre. Eles iam fazer a sede da Piraguassu lá na beira do rio.548

A narrativa de João da Angélica traça relações com as concepções tecidas por Medeiros549, em que os trabalhadores rurais surgem na cena política exigindo reconhecimento de direitos em diferentes circunstâncias, como é o caso da ocupação de terra em Porto Alegre do Norte que culminou em fatos políticos que tornaram visíveis essa necessidade, e para isso, estes sujeitos históricos tiveram que confrontar as forças de jagunços e da polícia. O entrevistado alega que as ações dos posseiros era apenas um ato de defesa, mas os métodos de resistências eram caracterizados pelas autoridades como formas de bandidagem, tendo uma agricultura atrasada e irracional, pois ser posseiro já carregava em si um vocabulário preconceituoso como: ―invasores‖, ―bandidos‖, ―vagabundos‖, ―aproveitadores‖, entre outros. Assim, de acordo com James Scott, ―[...] muitos dos esforços dos camponeses serão vistos pelas classes apropriadoras como truculência, fraude, vagabundagem, furto ou arrogância – em resumo, todas as etiquetas planejadas para denegrir as muitas faces da resistência‖550. A testemunha ainda afirma que sem a união de homens e mulheres, não haveriam conseguido defender a área urbana de Porto Alegre do Norte. De acordo com Karl Monsma551, a resistência cotidiana também provoca mudanças sociais tão eficazes quanto os movimentos organizados.

548João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte. 549MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo... p. 5. 550SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa... p. 30. 551MONSMA, Karl. James C. Scott e Resistência Cotidiana no Campo: uma avaliação crítica. BIB, Rio de Janeiro, n. 49, jan/jun, 2000.

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As narrativas tecidas ao longo desse capítulo demonstram que os posseiros considerados antigos, ou seja, há mais de trinta anos estabelecidos na região do Araguaia e os novos posseiros que chegaram a partir da década de 1970, atraídos pelos slogans do governo militar em relação aos projetos de colonização na Amazônia, passaram atuar em conjunto para garantir a permanência na terra. A experiência desses indivíduos adveio do apoio da Prelazia de São Félix do Araguaia, sobretudo de Dom Pedro Casaldáliga que por meio das suas denúncias contribuiu para que a divulgação desses conflitos tomasse dimensões extra-locais, essas ações os colocaram como sujeitos políticos e possuidores de direitos dignos de serem amparados pelo Estado. A modernização do campo implicou na aceleração da expropriação dos trabalhadores rurais, esta entrou naquele espaço sem deixar de lado antigas práticas, ou seja, o uso da violência, pois mesmo com o advento do Estatuto da Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural, estes direitos não foram concretizados de fato no meio rural, tendo em vista que eles não foram respeitados e desconsiderados pela elite agrária que desempenhou em demasia o uso da força e do poder nas relações sociais da fronteira. A partir da reação dos posseiros contra a tomada das suas terras pela FRENOVA, e posteriormente pela Piraguassu, estas tiveram que reconhecer os seus protestos e abrir espaço para negociação, abalando assim o longo histórico da relação de mando e dominação dos latifundiários no meio rural brasileiro. A atitude de resistir em suas terras e empreender uma luta para a sua posse efetiva, denota a presença destes agentes no cenário político munidos pelo fato de serem ouvidos a partir das redes que apoiavam as suas insatisfações, como: a Prelazia de São Félix do Araguaia, sobretudo por Dom Pedro Casaldáliga, os agentes de pastorais das comunidades eclesiais de base através do trabalho da CPT e dos STRs dando visibilidade política as suas reivindicações.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ofício do historiador consiste em questionar o passado para entender o presente, isto é, a narrativa da história ocorre por meio das indagações que fazemos no presente. As análises e reflexões que tecemos ao longo desta tese tiveram como propósito apresentar as condições sociais dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte através de fragmentos significativos que se opõem às explicações causais e deterministas. Diante das diversas experiências sociais é que observamos as suas táticas de resistências na luta pela terra na Amazônia como um território de disputa, em que nos leva a compreender como o espaço fundiário do Brasil se delineia pela prática de violência contra os trabalhadores rurais, tendo as suas ações como atores sociais, pertinentes de historicidade e válidas para a composição da história do tempo presente. Ao se tratar do período da ditadura-civil militar no Brasil, muitas vezes são eleitos os sujeitos que constituíram a luta armada urbana, e as ações da população do campo, a exemplo dos trabalhadores rurais, são silenciadas. Sob essa perspectiva, buscamos demonstrar que esses agentes despontaram na cena política como protagonistas, não apenas entendendo esses atos no passado, mas demonstrando a sua persistência no presente. Este estudo traçou o histórico de (re)ocupação da Amazônia, em especial do Araguaia mato-grossense, bem como a possibilidade de análise da violação dos direitos humanos como elementos que contribuem para a compreensão da História do Brasil. Este trabalho se constituiu na análise da atuação dos diversos sujeitos históricos de Porto Alegre do Norte – trabalhadores rurais, religiosos, leigos, agentes de pastorais, empresários rurais, funcionários das agropecuárias, jagunços, pistoleiros, instituições do Estado e mediadores envolvidos na luta pela terra entre os anos de 1970 a 1980 no Araguaia mato-grossense. Procuramos compreender os conflitos, as estratégias traçadas, as resistências empreendidas pelos grupos

283 sociais estabelecidos no nordeste de Mato Grosso. Esta pesquisa não se delimitou apenas na apresentação de uma narrativa histórica de posseiros versus empreendimentos rurais, mas também no envolvimento de membros do Estado e instituições de mediações na questão agrária de Porto Alegre do Norte, ampliando a dimensão do conflito por meio da assimilação de diversos grupos em uma espacialidade composta por múltiplas culturas, práticas e concepções. Neste sentido, podemos perceber os significados tecidos sobre a luta pela terra e como esta é representada pelos atores sociais que a vivenciaram. Neste contexto, o termo posseiro ganhou novos significados políticos e sociais como um mecanismo para legitimar a luta pela terra, pois os enfrentamentos empregados contra a violência no processo de expulsão dos trabalhadores rurais podem ser vistos como uma forma de resistência que auxilia na compreensão da questão agrária durante o projeto de (re)ocupação da Amazônia na década de 1970, e, que ainda tem os seus resquícios na atualidade. O histórico de ocupação não indígena (posseiros, peões, jagunços, padres, capatazes, agentes públicos, empresários rurais, etc;) no nordeste de Mato Grosso remete ao início do século XX com os seguintes povoados: Furo de Pedra (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Santa Terezinha, Mato Verde (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949). As análises direcionadas a Porto Alegre do Norte nos aguçaram o interesse em entender como aquela localidade desenvolvia o seu cotidiano de trabalho antes da chegada das empresas agropecuárias: FRENOVA e Piraguassu na década de 1970. Entretanto, a maioria dos documentos utilizados nessa tese é proveniente do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, e devido ao fato deste ter sido constituído somente após a chegada de Dom Pedro Casaldáliga a região no final da década de 1960, o mesmo não possui relatos sobre a sociabilidade dos trabalhadores rurais, o histórico de migração, os modos de cultivo e criação, suas práticas culturais, entre outros. Desse modo, recorremos aos testemunhos orais para nos dar a dimensão de como Porto Alegre do Norte se constituiu em uma espacialidade desprovida de vias de acesso terrestre até os anos de 1970.

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Muitos migrantes instituídos em Porto Alegre do Norte no final da década de 1940 são provenientes do sul do Pará, norte de Goiás (atual Tocantins) e Maranhão. De acordo com os relatos orais e com a Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga de 1971, esses indivíduos migraram para o Araguaia em sua maioria atraídos pela profecia das ―Bandeiras Verdes‖, fugindo do processo de expulsão das terras nos seus locais de origem, desejando se libertar dos laços de dependências dos latifundiários, efetuando o emprego das suas técnicas de agricultura que exigiam constantes mudanças, abandonando a fome e a seca, se tornando dono do seu próprio trabalho, possuindo as suas terras, entre outros motivos objetivos e subjetivos que impulsionaram os movimentos migratórios. A migração implicou em um processo de violência, pois estes indivíduos em sua maioria foram expulsos pelo o avanço do capitalismo no campo dos lugares de origem que lhes conferiam identidade. Sendo válido lembrar que ao migrar deixaram para trás todo um histórico de trabalho desenvolvido na antiga posse e o estabelecimento em um novo espaço significava ter que abrir novamente as áreas de criação e plantação, trabalho executado com alto grau de dificuldade, tendo em vista que os trabalhadores rurais eram desprovidos de equipamentos tecnológicos que auxiliassem na derrubada da mata, como por exemplo, motosserras ou roçadeiras552, como também ter que conhecer e se habituar à nova fauna e flora local, identificar um novo calendário climático para o plantio e colheita dos alimentos, entre outros. Os deslocamentos dessas famílias seguiam geralmente uma lógica de planejamento traçada pela procura do patriarca por novas terras, este poderia migrar juntamente com irmãos, cunhados e amigos para verificar a disponibilidade de terras devolutas, ao encontrarem a área retornavam em busca da família para o estabelecimento na nova posse.

552A motosserra foi criada por Andreas Stihl, no ano de 1926 e pesava 56 quilos, sendo operada por duas pessoas. Na década de 1930 passou a ser comercializada em toda a Europa. Em 1959 esta foi aperfeiçoada e passou a pesar 12 quilos, nesse período também foi inventada a roçadeira. Na década de 1950 esses produtos já eram vendidos no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 9 de abril de 2017.

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Ao se constituírem nesses espaços passaram a desenvolver novos laços de parentescos assinalados pelo compadrio e vizinhança, em que ocorria uma afinidade mediada por uma relação à base de trocas, reciprocidade e cooperação nos trabalhos, a exemplo dos mutirões no plantio e colheita do arroz. A noção de pertencimento a uma localidade conferia aos trabalhadores rurais a ideia de cooperação e ajuda mútua, como algo inerente ao fato de estarem próximos fisicamente. Entretanto, é válido lembrarmos que a ação do mutirão não está ligada exclusivamente ao sentimento de localidade, mas também a realidade daqueles indivíduos em não possuírem ferramentas de trabalho avançadas, necessitando assim da força coletiva. Além disso, procuramos assinalar nessa pesquisa que o mutirão não foi algo exclusivo para a prática da agricultura, sendo importante destacar que o desenvolvimento do sentimento de pertencimento a Porto Alegre do Norte e ao grupo que estavam próximos, evidencia que a manutenção desses laços de sociabilidade de compadrio e vizinhança foi essencial nos atos de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias – FRENOVA e Piraguassu, polícia local e outras instituições na luta pela terra no Araguaia mato- grossense. A (re)ocupação do nordeste de Mato Grosso ocorreu em três momentos distintos: o primeiro no início do século XX por migrantes nordestinos atraídos principalmente pela profecia das ―Bandeiras Verdes‖, bem como a procura de terras férteis em que se pudesse praticar a agricultura de subsistência, e assim, se libertar do domínio dos latifundiários dos seus locais de origem. O segundo fluxo de ocupação ocorreu no final da década de 1960 por meio da instalação das empresas agropecuárias no Araguaia (CODEARA e Suiá-Missu) e a terceira movimentação migratória se deu por meio da instauração dos projetos de colonização e assentamento, estimulando a migração de pessoas da região Nordeste e Sul do Brasil. Tais projetos se formaram nos atuais municípios de Confresa553 (empresa de colonização particular de mesmo nome), Água Boa,

553Originalmente Vila Tapiraguaia. Confresa é referência à Colonizadora FRENOVA Sapeva. Esta empresa era proprietária das Fazendas Reunidas Nova Amazônia, que abrangiam inúmeras

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Canarana e Querência (COOPERCANA), Santa Cruz do Xingu (COREBRASA) e Vila Rica (SERVAP). Os subsídios oferecidos pelo governo militar, como também os incentivos fiscais e o crédito com juros e taxas muito baixas oferecidas pelo Banco do Brasil e pelo BASA, fizeram com que muitos empresários, até mesmo distantes do ramo rural se interessassem pela a execução de projetos de colonização, agropecuários, agrominerais, entre outros, na Amazônia. Assim, em 1971 a FRENOVA se estabeleceu em Porto Alegre do Norte, culminando em uma série de conflitos marcados por ameaças e violências. A empresa que adquiriu a área ciente de ocupantes com direito a posse se recusou a reconhecê-los, traçando diversos mecanismos para a expulsão dos trabalhadores rurais que ocupavam as terras há mais de trinta anos. No primeiro momento, Plínio Ferraz, gerente da agropecuária passou a enviar notificações de despejos aos habitantes do povoado. Muitos trabalhadores por não terem conhecimento dos seus direitos abandonaram as suas posses ou venderam por preços abaixo do valor de mercado. Entretanto, se as notificações não fossem acatadas utilizavam-se outras formas de pressões, como, por exemplo, o envio de jagunços até as posses com avisos ameaçadores ou com o uso da violência física, a queimada das roças, das casas e das benfeitorias e o sacrifício das criações. A Prelazia de São Félix do Araguaia tomou a frente das negociações e passou a esclarecer aos posseiros que estes tinham direitos sob as posses de acordo com o Estatuto da Terra de 1964 e pelo Decreto 70.430 de 17 de abril de 1972. Dom Pedro Casaldáliga juntamente com o padre Francisco Jentel passaram a negociar com o prefeito de Luciara, José Liton Luz e o Diretor da FRENOVA, João Carlos de Souza Meirelles a demarcação dos lotes dos posseiros. Assim, Mesmo com a aprovação da desapropriação de uma gleba de 4.500 hectares para o povoado de Porto Alegre do Norte, nenhuma providência foi tomada em prol dos

propriedades agropecuárias, além de uma destilaria. Atualmente a empresa denomina-se FRENOVA Agropecuária Ltda. A Colonizadora Confresa era dirigida por José Carlos Pires Carneiro e José Augusto Leite de Medeiros, mineiros estabelecidos em São Paulo.

287 posseiros, pois o próprio prefeito de Luciara ordenou que os mesmos deixassem as suas posses e as entregassem à FRENOVA. Diante da negativa dos trabalhadores rurais em abandonarem as suas posses, a agropecuária passou uma cerca por todo o povoado limitando o direito de ir e vir da sua população. Perante essa situação, os posseiros enviaram um abaixo-assinado ao Presidente do INCRA, Dr. José de Moura e Cavalcanti, para que o órgão pudesse interferir nos acontecimentos, pois a empresa estava impedindo a sobrevivência da população local. O INCRA não interviu nos conflitos, e, Dom Pedro Casaldáliga enviou cartas para diferentes órgãos/pessoas, tais como: Capitão Moacir Couto - delegado regional da polícia militar de Barra do Garças, Manuel Fernandes – Encarregado de Assuntos Sociais do SNI, Dom Fernando Gomes – Arcebispo de Goiânia, ao Secretário de Segurança do Estado de Mato Grosso, José de Moura e Cavalcanti – Presidente do INCRA, e por fim, ao senhor Osmar Jacintho – Gerente da fazenda FRENOVA, para que estes solucionassem os problemas de terras. Dom Pedro Casaldáliga desenvolveu um enfrentamento não direto por meio das denúncias na sua Carta Pastoral de 1971, das suas cartas enviadas a diversas entidades/pessoas e a divulgação dos acontecimentos dos conflitos tanto no âmbito interno e externo, como forma de assegurar aos trabalhadores rurais os seus direitos sob as posses. Recorrer ao INCRA era o único meio de conseguir a demarcação das terras dos posseiros, entretanto este órgão não dava respostas concretas aos problemas daquela população. No ano de 1972, o governo militar descobriu a Guerrilha do Araguaia na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e o norte de Goiás (atual Tocantins), assim a área que compreende o município de Barra do Garças em Mato Grosso até o a divisa com o estado do Pará, abrangendo toda a extensão da Prelazia de São Félix do Araguaia se tornou uma zona de segurança nacional, e, toda equipe pastoral, inclusive, o Bispo, foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional e acusados de subversão. Os conflitos entre os posseiros e a FRENOVA foram associados às ações organizadas pelo PC do B no Bico do Papagaio. Desse

288 modo, em outubro de 1972, o Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, membro do Comando de Repressão da Amazônia, se infiltrou na Prelazia como um padre. Ailson Loper passou a se relacionar com a sociedade de São Félix (comerciantes, fazendeiros e políticos locais), e essa atitude despertou a desconfiança da equipe da Prelazia que pressionou o militar a revelar a sua verdadeira identidade. Durante a sua estadia na região, o Capitão instaurou atos de terror em Porto Alegre do Norte ao prender três posseiros e o padre Eugênio Consoli, que foram levados e detidos na sede da FRENOVA e ali submetidos a interrogatórios, humilhações e vexames. O padre Francisco Jentel foi proibido de celebrar missas e Dom Pedro Casaldáliga foi impedido de relatar na liturgia sobre os incidentes recentes. Para garantir os investimentos dos grupos econômicos constituídos em Porto Alegre do Norte, a violência passou a ser empregada contra os trabalhadores rurais para que estes não impedissem o desenvolvimento das empresas rurais. O Estado até então inoperante, apareceu para aquela população com o uso legítimo da violência em prol dos interesses da FRENOVA, assim o poder militar foi utilizado para efetuar expulsões, ameaças, intimações e assassinatos como práticas repressivas aos posseiros. Os conflitos de terras desenvolvidos no Araguaia desde o ano de 1967 (posseiros de Santa Terezinha x CODEARA) e durante o início da década de 1970 dos posseiros de Porto Alegre do Norte contra a FRENOVA fizeram com que a área da Prelazia de São Félix do Araguaia, devido a proximidade com a região do Bico do Papagaio se tornasse suspeita de envolvimento com a Guerrilha do Araguaia no sul do Pará. Em junho de 1973, o exército passou a empreender os atos de violência contra a população da Prelazia de São Félix do Araguaia. A casa pastoral foi invadida e revistada pelos militares, os moradores foram violentados e leigos e agentes de pastorais sequestrados e torturados no Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo Grande/MS. A exposição das narrativas de tortura foi importante para que a história oficial não silencie essas experiências que envolvem a face da violência emitida pela Ditadura Militar no Brasil. Desse

289 modo, o Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia é aberto aos pesquisadores, diferentemente de outros espaços que não permitem o acesso aos documentos ―sensíveis‖. Se os historiadores não se preocuparem com a divulgação da memória e o silenciamento a respeito da repressão militar, estes estarão colaborando para a política de esquecimento e negação em relação às ocorrências de casos de tortura durante o período ditatorial na América Latina. Os testemunhos das vítimas são indesejáveis, pois de acordo com a memória oficial, estas almejam apenas se vigarem ao trazer à tona um período que deveria ser esquecido. Entretanto, o pesquisador que oportuniza as testemunhas apresentarem as suas narrativas, estabelece uma sobrevida para aquelas que voltam de uma experiência traumática. A presente tese também deseja assinalar que a história do Brasil trata a ditadura militar, preferencialmente em relação à repressão dos grupos armados nas grandes capitais, sobretudo do Sudeste do país. Neste sentido, a Guerrilha do Araguaia ainda tem pouca expressão no âmbito acadêmico, e a sua relação com Mato Grosso provavelmente pode ser nula. Assim, voltamos a questionar se é possível conhecer a História do Brasil apenas pela espacialidade Rio-São Paulo. Imaginamos que as narrativas ditas nacionais devem tecer um diálogo com outras narrativas que lhes auxiliam na compreensão da História do Brasil. A Prelazia de São Félix do Araguaia foi uma instituição legitimadora das resistências dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte como providos de direitos sob as suas posses. Entretanto, esta Igreja, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga, passou a ser vista pelo Estado não como mediadora na luta por terra e sim como um problema de segurança nacional, tendo em vista que o governo ditatorial a considerava subversiva e incitadora dos conflitos no campo. Os conflitos não se deram apenas entre os posseiros e as agropecuárias, mas também entre as instituições de mediação e os órgãos do Estado no Araguaia. A Igreja tinha dois objetivos: a) manter o trabalhador rural na terra, legitimando o seu acesso à mesma por meio da agricultura familiar de subsistência; b) uma comunidade cristã em que os problemas sociais, políticos e econômicos estavam

290 ligados à atuação das suas pastorais. As denúncias realizadas por Dom Pedro Casaldáliga deram amplitude e divulgação extra local dos conflitos por terra no Araguaia, assim os trabalhadores rurais imergiram na cena política como agentes reivindicantes por acesso a terra. As estratégias de resistências traçadas pelos trabalhadores rurais na luta pela terra em Porto Alegre do Norte foram essenciais para a conquista da posse, mesmo que esta muitas vezes não tenha contemplado a delimitação que o INCRA lhe conferia como de direito, ou seja, o módulo mínimo de 100 hectares para exploração agrícola. Muitos posseiros obtiveram a demarcação das suas posses em 50 hectares devido as artimanhas empregadas pelos funcionários da Piraguassu juntamente com a conivência do Estado (prefeitura, INCRA, oficiais de justiça, polícia estadual e militar). Identificamos ao longo dos relatos orais e da documentação da Prelazia de São Félix do Araguaia que os atos dos mutirões guiados pelas concepções de vizinhança e compadrio auxiliaram na disseminação de um sentimento de grupo, bem como a compreensão de que estes possuíam direito sobre as terras os colocaram como agentes políticos na luta pela terra em Porto Alegre do Norte. Podemos observar que os núcleos de ocupações propiciaram as ações de solidariedade, demonstrados pelos mutirões; assim, a manutenção desses laços de sociabilidade foi essencial para a constituição dos enfrentamentos contra as empresas agropecuárias que se estabeleceram na região a partir da década de 1970. Após a abertura das rodovias federais, a exemplo da BR 158 em Porto Alegre do Norte, o fluxo de migrantes à procura de terra e trabalho para a região aumentou. Esses indivíduos caracterizados como novos posseiros assumiram a luta pela terra junto com os antigos posseiros. Entretanto, conforme os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia, somente os posseiros estabelecidos no povoado antes da instalação da Piraguassu, em 1975, tiveram direito à demarcação das suas posses.

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Diversas estratégias de resistências foram traçadas na luta pela terra pelos trabalhadores rurais, dentre elas: o corte das cercas das agropecuárias, as denúncias em jornais e órgãos, o conhecimento das leis que resguardavam os seus direitos como mecanismos de contestação quanto à delimitação das suas posses, empreender fugas na mata, atos de espertezas, e, por fim, o enfretamento direto que culminou no assassinato do jagunço da Piraguassu. Portanto, os trabalhadores rurais não devem ser vistos como agentes passivos e vítimas desse contexto, pois desenvolveram variadas formas de resistências pressionando o Estado em relação aos seus interesses. A violência também foi um mecanismo para se defender das ameaças dos empresários rurais, dos pistoleiros e da polícia local conivente com as ações das agropecuárias, ou seja, nesse cenário o conflito e a violência tomaram nuanças de atos políticos para a conquista da terra.

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Entrevistas

ARAÚJO, Ana Felicia (Nininha). Entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 na cidade de Porto Alegre do Norte.

ARAÚJO, Maria Zenaide. Entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 na cidade de Porto Alegre do Norte.

EGLIN, Odile. Entrevista de uma hora e vinte minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de 2016 na Aldeia Tapirapé no município de Confresa.

LIMA, João Souza (João da Angélica). Entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

310

MACHADO, Carlos (Luiz Bang). Entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.

MILHOMEM, Erotildes da Silva. Entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em 06/12/2014 na cidade de São Félix do Araguaia.

SILVA, Ataíde da (Altair). Entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora, em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.

Filmografia

CAMPONESES do Araguaia: a Guerrilha vista por dentro. Direção: Vandré Fernandes. 2010. 01:13:00.

DESCALÇO sobre a terra vermelha. Direção: Oriol Ferrer. 2012. 02:36:00.

HUMILHAÇÃO e a dor, A. Direção: Renato Tapajós. 1996. 0:31:38.

MEMÓRIA para uso diário. Direção: Beth Formaggini. Documentário. 4 ventos, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, União Europeia: Brasil, 2007. 01:20:47.

QUE bom te ver viva. Direção: Lúcia Murat. 1989. 00:48:42.

311

ANEXOS

312

Figura 1: Mapa do Estado de Mato Grosso com destaque para as Mesorregiões e Microrregiões.

Fonte: https://www.google.com.br/search?q=meso+microrregioes+mt&source=lnms&tb m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwj- xeuoks_TAhUEyyYKHbIHAjsQ_AUIBygC&biw=1366&bih=613#imgrc=kolKt 9MWnL2WlM:. Acesso em: 1 mai. 2017.

313

Figura 2: Mapa com destaque dos municípios que compõem a Prelazia de São Félix do Araguaia.

Fonte: . Acesso em: 1 mai. 2017.

314

Tabela 1. Municípios que formam o território do Araguaia Mato-grossense e ano de criação.

Município Ano de Criação Distância para Cuiabá (Km)

Alto Boa Vista 1993 1.063,50

Bom Jesus do Araguaia 1999 1.027,90

Canabrava do Norte 1993 1.132,50

Confresa 1993 1.165,50

Luciara 1963 1.166,50

Novo Santo Antônio 1999 1.118,00

Porto Alegre do Norte 1986 1.127,50

Querência 1993 912,70

Ribeirão Cascalheira 1989 877.60

Santa Cruz do Xingu 1999 1.021,00

Santa Terezinha 1980 1.313,50

São Félix do Araguaia 1976 1.143,00

São José do Xingu 1993 1.158,00

Serra Nova Dourada 1999 1.046,00

Vila Rica 1986 1.260,50

Distância Média -- 1.106,20

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315

Tabela 2. Projetos Agropecuários aprovados pela SUDAM no Araguaia Mato-grossense.

Nome da Fazenda Área em Incentivos fiscais Cr$ hectares

Agropecuária Suiá-Missu 695.843 7.878,000

CODEARA (Cia. De Desenvolvimento do Araguaia 129.497 16.066,900

SAPEVA (Sociedade Agropec. Vale do Araguaia 72.567 6.208,686

Agropecuária Campo Verde 64.819 6.565,129

COREBRASA (Colonização e Representação do Brasil) 52.272 3.130,000

AGROPASA (Agropecuária do Araguaia) 48.165 7.122,208

Agropecuária Bela Vista 36.125 4.390,924

Agropecuária Santa Silvia 35.574 3.028,000

Sociedade Agropecuária Brasil Central 31.110 3.729,142

Buritizal Agropecuária 30.621 3.939,638

Tracajá Agropecuária 29.880 3.798,133

AGROINSA (Agropec. Califórnia Com. E Indústria) 29.831 3.142,165

APEME (Agropecuária Alvorada Mato Grosso 29.703 4.332,496

Elagro Pecuária 29.466 6.459,426

Agropecuária Tapirapé 27.614 3.109,694

Cia. De Desenvolvimento Agropecuário de MT 26.824 2.342,725

Agropecuária Guanabara 25.800 4.398,889

Agropecuária Tamakavy 24.999 5.144,623

COLBRASA (Coloniz. e Representações Brasileiras 24.969 6.774,833

316

Agropecuária Roncador 24.251 5.369,188

Cia. Agro-Pastoril Sul da Amazônia 24.200 4.288,877

Agropecuária Duas Âncoras 23.005 4.191,575

Tapiraguaia Agrícola e Pecuária 21.923 2.519,404

Rancho Santo Antônio 21.780 4.788,884

Agropecuária São Francisco do Xingu 21.000 3.921,364

Agropecuária Três Marias 20.000 3.505,768

Agropecuária Tatuibi 19.936 5.973,970

Tabaju Agropecuária 19.931 3.019,474

Agropecuária São José 19.915 4.960,318

Companhia Agropecuária Sete Barras 19.360 6.320,477

Agropecuária Santa Rosa 19.360 3.968,033

Agropecuária 7 de Setembro Ltda 18.582 2.025,620

Rio Fontoura Agropecuária 14.864 3.754,920

AGROPEMA (Agropecuário Médio Araguaia) 11.370 4.288,877

FAASA (Fazenda Associadas do Araguaia) 10.000 1.413,188

Joçaba Agropecuária 9.744 1.417,255

CODESGA (Cia. de Desenvolvimento Garapu) 9.000 3.207,265

Empresa Agropecuária Ema 8.952 1.514,838

Agropecuária Colorado 5.413 1.526,140

Santa Luíza Agropecuária 4.930 1.959,037

Agropecuária Duas Pontas ------812, 719

FRENOVA (Agropecuária Nova Amazônica) ------4.872,318

317

Agropecuária Cocal ------4.235,909

Agropecuária São João da Liberdade ------6.213,140

Agropecuária Rio Manso ------2.307,809

Agropecuária Remanso Açu ------2.989,015

Cia. Agrícola e Pastoril São Judas Tadeu ------5.955,380

CIAGRA (Cia. Agro-Pastoril Aruanã ------5.975,784

Fazenda Nova Quênia ------2.115,148

Independência Agropecuária ------1.460,546

Noideri Agropecuária ------2.66,771

Nativa Agropecuária ------1.593,654

Norte Pastoril Mato-Grossense ------5.881,454

Paubrelândia Agro-Pastoril do Brasil Central ------1.913,721

TOTAIS 2.166.189 261.647,972

Fonte: SUDAM apud BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia. In: HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (Orgs.). História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e Resultados de Pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009, p. 108-109.