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0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Alisson Costa De Faria Tradução Intersemiótica: Nos Rastros Do Film

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Alisson Costa de Faria

Tradução intersemiótica: nos rastros do filme

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO 2014 1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Alisson Costa de Faria

Tradução intersemiótica: nos rastros do filme Apocalypse Now

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção de título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, na área de concentração Signo e Significação nas Mídias, sob a orientação do Prof. Doutor José Amálio de B. Pinheiro.

SÃO PAULO 2014 2

BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Ao caríssimo Prof. Dr. José Amálio de B. Pinheiro, pela orientação atenta e disponibilidade para os atendimentos e conversas, fundamentais na construção da pesquisa.

Aos Prof. Dr. Tony de Souza e Profa. Dra. Cecília A. Salles, por todos os conselhos e sugestões que possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa por ocasião da banca de qualificação.

Ao Prof. Dr. Gabriel Chalita, por toda a atenção e incentivo aos estudos.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela oportunidade da bolsa outorgada para o desenvolvimento desta pesquisa.

A todos os amigos e colegas que tive a felicidade de conhecer durante o curso de mestrado, pelas conversas e toda a ajuda.

Aos meus familiares e amigos, pela força e apoio.

A Gabriela e Sophia, pela paciência, carinho e confiança.

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RESUMO

A presente pesquisa analisa as relações tradutórias do filme Apocalypse Now (1979), de , com suas fontes, em especial o O Coração das Trevas (2006), de e Os Despachos do Front (2005), de Michael Herr. O objetivo foi investigar como se deu a construção da obra cinematográfica a partir da tradução intersemiótica dessas fontes. O trabalho também analisa os sentidos desenvolvidos pela obra cinematográfica, apontando pontos convergentes e divergentes com suas fontes, verificando como se dá a transposição dos elementos (o tempo, o espaço, o ponto de vista, o conflito e os personagens) dos textos literários e jornalísticos para o filme. A pesquisa se fundamenta no fato de o filme de Coppola não traduzir linearmente a narrativa do romance de Conrad e dos outros textos utilizados para o cinema, mas transformar conceitos e ideias em imagens em movimento. Convencionalmente, certa crítica entende os trabalhos de adaptação por meio de critérios como fidelidade do texto fílmico em relação ao texto literário. É preciso compreender como se dá o processo de tradução entre as fontes e a adaptação, respeitando a especificidade de cada sistema semiótico, no caso o literário e o fílmico, sendo o processo de tradução intersemiótica um método de se criar uma obra nova e não apenas uma reprodução de natureza identitária, de um meio no outro. O processo de criação do filme Apocalypse Now também é objeto da pesquisa e será norteado pelos fundamentos da Crítica Genética. Foram consideradas as interpretações de autores que são referência no tema, como: Robert Stam, Julio Plaza, Sergei Eisenstein, Cecília Salles, dentre outros. Metodologicamente, foram analisadas cenas, fragmentos e frames do filme Apocalypse Now à luz do pensamento em superfície, como ensina Flusser, em contraponto ao pensamento em linha, próprio dos textos literários. Também foram avaliadas as notas da produção do filme e o documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), com os bastidores do longa, ambos realizados por Eleanor Coppola, bem como entrevistas com o diretor, o roteirista e os atores do filme.

Palavras-chave: Adaptação. Literatura. Cinema. Processo de criação. Tradução intersemiótica.

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ABSTRACT

The actual research analyzes the translational relations from the movie Apocalypse Now (1979), from Francis Ford Coppola, with its sources, especially the novel The (2006), from Joseph Conrad and Dispatches (2005), from Michael Herr. The objective was to investigate how the cinematographic masterpiece was built from the intersemiotic translations of its sources. This research also analyzes the meanings developed by the masterpiece, pointing to convergent and dissonant points with its sources, verifying how the elements transposition (time, space, points of views, conflicts and characters) of literary and journalistic texts for the movie happen to be. The research justifies in the fact that the movie of Coppola does not translate in a sequence the novel narrative of Conrad and the other texts used for the movie industry, but to change concepts and ideas into moving images. Convencionally, this kind of criticism sees the adaptation tasks by certain kind of criteria like accuracy of the movie text in relation to the literary text. It needs to be understood how the translation process happens between sources and adaptation, respecting the specificities of each semiotic system, making the intersemiotic translation a method that can create a new masterpiece and not just a identity copy, from one to another. The movie Apocalypse Now creation process is also the object of this research and will be guided by the Genetics Criticism elements. Interpretations from authors who are considered references on the theme were considered, such as: Robert Stam, Julio Plaza, Sergei Eisenstein, Cecília Salles. In terms of method, scenes, parts and frames from Apocalypse Now were analyzed, starting by the surface thoughts, as Flusser teaches us, opposing to line thoughts, that can be found in literary texts. The movie production entry were also analyzed, like the documentary Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse (1991), with its coulisse, both realyzed by Eleanor Coppola, such as interviews with the diretor, screenwriter and the actors of the movie.

Keywords: Adaptation. Literature. Cinema. Creation process. Intersemiotic translation.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Nirvana Now por , 2010...... 29 Figura 2 – Símbolo para o filme Apocalypse Now de John Milius, 2010...... 29 Figura 3 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 36 Figura 4 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 42 Figura 5 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 42 Figura 6 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 43 Figura 7 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 44 Figura 8 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 44 Figura 9 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 45 Figura 10 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 45 Figura 11 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 46 Figura 12 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 48 Figura 13 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 50 Figura 14 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 50 Figura 15 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 53 Figura 16 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 53 Figura 17 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 55 Figura 18 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 56 Figura 19 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 56 Figura 20 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 57 Figura 21 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 59 Figura 22 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 60 Figura 23 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 60 Figura 24 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 61 Figura 25 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 62 Figura 26 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 67 Figura 27 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 68 Figura 28 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 68 Figura 29 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 69 Figura 30 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 70 Figura 31 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 71 Figura 32 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 72 7

Figura 33 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 73 Figura 34 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979...... 73 Figura 35 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001...... 74

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 09

CAPÍTULO 1 – ADAPTAÇÃO, TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E CRÍTICA GENÉTICA NA SÉTIMA ARTE...... 12 1.1 Adaptação cinematográfica: da literatura ao cinema...... 12 1.2 Do processo de criação no cinema...... 17 1.3 Os documentos de processo de Apocalypse Now...... 18 1.4 As fontes do filme de Coppola...... 20

CAPÍTULO 2 – CARTOGRAFIA DE UM FILME...... 25 2.1 As locações nas Filipinas...... 26 2.2 Os atores psicodélicos de Apocalypse Now...... 29 2.3 Fotografia, edição e trilha sonora...... 33

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DO FILME APOCALYPSE NOW...... 40 3.1 O Capitão Willard num quarto de hotel em Saigon...... 41 3.2 O Coronel Kilgore e o ataque à aldeia vietnamita...... 51 3.3 As sereias da Guerra do Vietnã...... 58 3.4 Apocalipse de um personagem: Cel. Walter Kurtz...... 63

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 78

ANEXO...... 82

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INTRODUÇÃO

No ano de 1964, os Estados Unidos decidiram por uma intervenção militar no Vietnã. Até então, o governo americano acompanhava de perto a guerra, atuando nos bastidores. A Guerra do Vietnã, como ficou conhecida no Ocidente, era conhecida no Vietnã como a guerra americana, conforme a Enciclopédia Britânica (2014). Os americanos apoiavam o Vietnã do Sul contra os vietcongues, que se encontravam ao norte do país, eram ideologicamente de linha comunista e tinham o apoio dos soviéticos. Com a intervenção, foram enviados muitos soldados e equipamentos militares. Os americanos montaram uma verdadeira máquina de guerra. Contudo, essa máquina de guerra sangrenta e destruidora foi insuficiente para vencer o conflito. Muitos soldados americanos foram mortos durante os combates. Em 1975, os Estados Unidos retiraram seu aparato militar do Vietnã, tendo perdido a guerra.

As imagens cruéis de miséria e morte da guerra chocaram a opinião pública americana. Ao final da década de 1960 e início dos anos 1970, muitos protestos aconteceram nos EUA pelo fim da intervenção no Vietnã. A repercussão do conflito impactou toda a sociedade. Em 1969, John Milius, a pedido de Francis Ford Coppola, escreve um roteiro de um filme sobre o conflito. A ideia era que a obra fosse filmada durante a guerra com locações nas zonas de conflito em pleno Vietnã. O projeto, de grande risco, não conquistou apoio de nenhum estúdio e foi abandonado. Somente mais tarde e em outras condições e contexto ele foi retomado.

No ano de 1979, dez anos depois do primeiro roteiro de Milius, foi lançada no cinema a obra Apocalypse Now do cineasta Francis Ford Coppola, que naquele tempo já era reconhecido internacionalmente, em especial, pelos filmes Poderoso Chefão I e II (1972 e 1974). A obra é adaptada do romance O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, além de outros textos literários e jornalísticos. Coppola atualizou a pauta de Conrad para o contexto da Guerra do Vietnã. Na fabricação do filme foram consumidos muitos recursos em 238 dias de filmagens, tudo muito acima do planejado. O longa foi rodado nas Filipinas e a experiência de Coppola e sua equipe, inseridos na selva, e em meio a muitas adversidades, também foi decisiva para o resultado final dessa obra cinematográfica. O filme foi objeto de centenas de críticas jornalísticas e até estudos acadêmicos dos mais diversos pontos de vista. A obra tornou-se um marco no gênero e inspirou uma geração de filmes sobre a guerra.

O trabalho ora proposto pretende analisar o filme Apocalypse Now como uma técnica de adaptação passando pelo seu processo de fabricação até a análise de sequências do filme da 10 forma como foi entregue ao público. No primeiro capítulo, serão abordados teóricos que tratam das adaptações cinematográficas, tais como Robert Stam (2003/2008), o cineasta russo Eisenstein (2002), dentre outros, apontando como a relação entre o cinema e a literatura acontece desde o invento daquele. As adaptações cinematográficas a partir das ficções literárias respondem por uma parte considerável de toda a produção cinematográfica mundial. Uma das funções do cinema desde o seu surgimento ao final do séc. XIX o aproxima da arte literária, que é a de narrar histórias.

Essa relação na história nem sempre foi harmoniosa com diversos autores abordando o tema a partir de conceitos de fidelidade e traição entre a fonte e sua tradução. Contudo, a forma como o cinema se propõe a narrar histórias é por meio da imagem em movimento. Além disso, o processo de fabricação cinematográfico envolve, normalmente, uma grande quantidade de recursos humanos e materiais. Diferentemente, é claro, da criação de uma obra literária. Essa visão entre as obras, a partir de conceitos de fidelidade, entretanto, é uma visão superada importando na discussão quais elementos são traduzidos e como foi feita a sua tradução.

Ainda no primeiro capítulo, serão localizadas as adaptações cinematográficas como um processo de tradução intersemiótica, conforme os ensinamentos de Jakobson (1999) e Plaza (2003). Dentre os textos que serão demonstrados, apontando a tradução feita no filme, estão: O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad; Odisseia (2011), de Homero e Despachos do Front (2005), de Michael Herr. A pesquisa compreende o resultado de um processo de tradução intersemiótica como sendo a produção de uma obra nova. Portanto, a análise do processo criativo dessa obra nova, no caso o filme Apocalypse Now, será norteada pelos fundamentos da Crítica Genética, como ensina Salles (2008).

No segundo capítulo, serão tratados os bastidores das filmagens de Apocalypse Now. A primeira versão do roteiro do filme foi escrita por John Milius no ano de 1969, quando os Estados Unidos ainda estavam em guerra com o Vietnã. O filme só seria finalizado e lançado nos cinemas dez anos mais tarde. Nesse longo período, o longa passou por muitas mudanças, sendo a mais crucial o envolvimento de Francis Ford Coppola com o projeto, que de produtor passou também a diretor e corroteirista, fazendo intervenções em todas as fases de produção do filme, seja na fotografia, na trilha sonora, dentre outras. Os bastidores do filme com a experiência de Coppola e de sua equipe, enfrentando condições muito atribuladas nas locações nas Filipinas, foram registrados em dois documentos que servem de subsídio a esse capítulo. O primeiro é o diário de Eleanor Coppola, esposa do cineasta, que se tornou uma 11 espécie de diário de produção do filme e foi publicado com o título Notas a Apocalipsis Now – Diario de una filmacion (2002) e o documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), concebido a partir do diário de Eleanor e material filmado por ela durante a gravação do filme, e com a adição de entrevistas de membros da equipe do filme.

No terceiro capítulo, por fim, serão analisadas algumas sequências do filme Apocalypse Now. As partes escolhidas, além de sua importância para o desenvolvimento da narrativa do filme, possibilitam a comparação de como as fontes foram traduzidas para o cinema. Além disso, a decomposição das cenas permite descobrir os mecanismos da linguagem cinematográfica na construção das imagens em movimento. Procedimento necessário para desenvolvimento do “pensamento em superfície”, proposto por Flusser (2007) e que seria adequado ao cinema. Serão analisados ao todo quatro episódios do filme. A sequência inicial com o Capitão Willard num quarto de Hotel em Saigon aguardando uma nova missão; o Capitão Kilgore e o ataque dos helicópteros a uma aldeia vietnamita; o show das playmates em meio à selva; e o encontro do Cap. Willard com o Cel. Walter Kurtz, personagem que sintetiza os temas do filme.

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CAPÍTULO 1 – ADAPTAÇÃO, TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E CRÍTICA GENÉTICA NA SÉTIMA ARTE

1.1 Adaptação cinematográfica: da literatura ao cinema

O registro do movimento e a consequente invenção do cinematógrafo, com a incrível capacidade de filmar e projetar numa mesma máquina, ao final do séc. XIX, foi possível a partir de muitas descobertas e experimentos de pesquisadores e inventores. Num primeiro momento, até a sua invenção, a possibilidade do registro do tempo em movimento era objeto de pesquisadores e de empreendedores, como Thomas Edison, que via nessa ideia de cinema a possibilidade de uma indústria lucrativa, conforme historiadores como Georges Sadoul (1983) e Robert Sklar (1975). Também os irmãos Auguste e Louis Lumière foram motivados em suas pesquisas, que culminaram na invenção do cinematógrafo, com o intuito de ganhar dinheiro, como ensina Costa (1988).

Segundo Sklar (1975), o primeiro grande público de cinema nos Estados Unidos encontrava- se na periferia. Eram os operários das fábricas os frequentadores das sessões de cinema. O historiador aponta ainda que as possibilidades de lazer para essa classe eram reduzidas e que as sessões de cinema eram rápidas e baratas. Na obra Kino, História do Filme Russo e Soviético, Leyda (1965) afirma que também na Rússia o público mais pobre das cidades e das aldeias constitui os primeiros frequentadores de cinema. O autor explica que os pequenos filmes produzidos na França foram um sucesso para um público carente de opções de lazer e entretenimento. Como assegura Sklar (1975), rapidamente o cinema se popularizou entre a população mais pobre e periférica da cidade e a sua exibição, muito diferente dos grandes teatros, inseriu-se no cotidiano dessa população.

Os programas duravam, quando muito, quinze ou vinte minutos, tempo suficientemente curto para deixar a dona-de-casa deixar o carrinho no vestíbulo e entra com o filho, para as crianças darem uma espiada depois da escola, para os operários das fábricas se deterem e assistirem ao espetáculo a caminho de casa depois do trabalho. À noite e nos sábados à tarde famílias inteiras se reuniam e lá iam, aproveitando para assistir a todos os programas do bairro. (SKLAR, 1975, p. 27).

Contudo, com a produção dos primeiros filmes, o interesse pelo cinema deixou de ser exclusividade dos homens de negócios e começou a ser objeto de interesse de uma nova corrente de pensadores e artistas. A partir disso, a relação do cinema com as outras linguagens 13 artísticas tem sido explorada e extremamente fértil. O fascínio pelo cinema passa a atrair indivíduos de diversas áreas do conhecimento como assegura Sklar (1975, p. 64):

Uma nova geração de pensadores e artistas começara a estudar os princípios dos filmes cinematográficos, à procura de analogias com suas próprias inovações na filosofia, na ciência, na pintura e na literatura. O que interessava a esses modernistas do início do séc. XX era o movimento, a relatividade, e a multidimensionalidade do espaço e do tempo.

Dentre as diversas relações possíveis, o diálogo entre a literatura e o cinema é um dos mais frutíferos. Inúmeros roteiros cinematográficos foram criados a partir de narrativas literárias. As adaptações na criação dos filmes abrangem todos os gêneros literários, como o drama, a comédia, o romance, dentre outros. Também a linguagem cinematográfica despertou novas possibilidades para a literatura. A escritora Gertrude Stein chega a afirmar, sobre a sua forma de escrever, “que ela fazia o que fazia o cinema” (STEIN apud SKLAR, 1975, p. 64).

A própria “ideia” de cinema já parece contida em obras literárias antes do invento do cinematógrafo. Como aponta Brito (1996) em seu artigo Literatura, Cinema e Adaptação, o “pai da linguagem cinematográfica” David W. Griffith assegura ter se inspirado na literatura de Charles Dickens na concepção da linguagem cinematográfica de seus filmes. É notório o fato de que, apesar de ser considerado um dos realizadores mais importantes da história do cinema e ser responsável por muitos fundamentos da linguagem cinematográfica, Griffith era um escritor desconhecido e se aproximou do cinema não como um realizador, mas sim para atuar, como assegura Sklar (1975).

Em sua obra A Forma do Filme o cineasta russo Sergei Eisenstein (2002) dedica um capítulo para tratar dessa relação entre a obra de Dickens e o cinema norte-americano de Griffith. “Disto, de Dickens, do romance vitoriano, brotam os primeiros rebentos da estética do cinema norte-americano, para sempre vinculada ao nome de David. Wark Griffith.” (EISENSTEIN, 2002, p. 176). O cineasta russo revela ainda em sua obra A Forma do Filme (2002) que a experiência da montagem cinematográfica de seus filmes, apesar de outras inspirações, encontra na literatura de Flaubert a sua melhor referência:

os alicerces se cravaram mais profundamente na tradição. É estranho, mas foi Flaubert quem nos deu um dos melhores exemplos de montagem-cruzada de diálogos, usada com a mesma intenção de dar ênfase expressiva à ideia. É o caso da cena em Madame Bovary, em que Emma e Rodolfo se tornam íntimos. Duas linhas de fala são interligadas: a fala do orador na praça embaixo, e a conversa dos futuros amantes. (EISENSTEIN, 2002, p. 21). 14

Eisenstein (2002, p. 22) não trata dessas relações como casos isolados, mas afirma que “a literatura está cheia de tais exemplos.”. Da mesma forma, o cineasta Andrei Tarkovsky (1990), em sua obra Esculpir o Tempo, assinala a relação dos romances de Proust, como Em Busca do Tempo Perdido1, com a linguagem cinematográfica. Já o cineasta Alexandre Astruc, que criou o conceito de caméra-stylo2, “aponta a „cinematograficidade‟ imanente em Balzac, em Chateaubriand, em Meredith, em Hardy e em Conrad.” (BRITO, 1996, p. 12).

São muitos os exemplos de teóricos, críticos, literatos e cineastas que apontam na arte literária, antes do invento do cinematógrafo, qualidades cinematográficas. Como assegura Brito (1996, p. 12), a relação entre a arte literária e a cinematográfica “já foi suficientemente demonstrada pelos estudiosos do assunto como, muito antes da sua invenção, o cinema estava virtualmente „prometido‟ pela ficção romanesca dos séculos XVIII e XIX.”. Contudo, Stam (2008, p. 198) em sua obra A Literatura Através do Cinema: Realismo, Magia e Arte da Adaptação anota que “o conceito de romance „cinematográfico‟ tem sido empregado de forma abusiva e com tanta imprecisão que chega a significar qualquer coisa [...]”. Todavia, apesar dos exageros e análises superficiais das características cinematográficas de um romance, é certo que a “ideia” de cinema encontrava-se presente na literatura. O próprio Stam (2008, p. 198) admite que “apesar do emprego relativamente problemático do conceito, ainda assim é válido abordar um romance como Madame Bovary como „protocinematográfico‟”.

Essa relação entre cinema e literatura torna-se ainda mais frutífera com o estabelecimento da arte cinematográfica. Na obra Hitchcock/Truffaut – Entrevistas (2004), na qual o cineasta francês entrevista Hitchcock sobre toda a sua filmografia, fica patente como a literatura, na maioria dos casos, foi quem forneceu o argumento para os filmes do cineasta inglês. Esse fato também é interessante por ser Hitchcock um especialista em filmes e sequências totalmente visuais, mas quase sempre a partir de roteiros adaptados de textos literários (TRUFFAUT; SCOTT, 2004).

O diálogo entre a literatura e o cinema confere novas possibilidades e inovações a ambas as linguagens. Dessas possibilidades, a adaptação, termo que tradicionalmente designa a construção de enredos cinematográficos a partir das narrativas literárias, tem sido a mais explorada pelo cinema. As adaptações cinematográficas de textos literários, apesar de

1 Em Busca do Tempo Perdido foi publicado pela primeira vez entre 1913 e 1927 em 7 volumes. 2 A expressão caméra-stylo foi forjada, de uma perspectiva polêmica, pelo jovem Alexandre Astruc, ao intitular, em 1948, um artigo de L´Écran Francais: “Nascimento de uma nova vanguarda, a câmera-caneta” (AUMONT; MARIE, 2006). 15 intensas, sempre sofreram questionamentos partindo do ponto de vista da “fidelidade” ou não do filme em relação ao texto literário. Contudo, tal discussão já se encontra superada, visto que a relação entre as duas linguagens é dialógica. Como assegura Souza (2009, p. 55), “Como conceito, a adaptação já tem uma fortuna crítica que a libera da ideia de fidelidade, em geral, entre um texto de partida (texto literário) e um texto de chegada (o filme).”

Também Robert Stam, um dos estudiosos sobre a adaptação fílmica mais citados na atualidade, em suas obras, como A Literatura Através do Cinema: Realidade, Magia e Arte da Adaptação (2008) e Teoria e Prática da Adaptação: da Fidelidade a Intertextualidade (2006), traça um panorama de como, erroneamente, as adaptações seriam hierarquicamente inferiores à literatura e mesmo ao cinema “puro”. Esse conceito de superioridade do texto literário em relação à adaptação já parece ultrapassado, libertando a adaptação de qualquer critério de “fidelidade” ao texto fonte. Embora ainda na atualidade exista certa crítica que analisa as adaptações sobre esses critérios arcaicos de originalidade e fidelidade. Como assegura o próprio Stam (2008, p. 20):

Uma adaptação é automaticamente diferente do original devido à mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeria qualificar até mesmo de indesejável.

Além disso, apesar de se partir de uma obra literária (com enredo, personagens delineados, tempo e espaços delimitados), a adaptação fílmica trabalha com outros recursos linguísticos, muitas vezes, outro contexto espacial e temporal e até mesmo outras fontes. O processo de adaptação entre as duas mídias pressupõe muitas outras variáveis que impossibilitam uma análise superficial e reducionista a critérios de “fidelidade” e “traição”. Como assegura Xavier (2003, p. 62), “[...] livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar, que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro”.

O teórico Vilém Flusser em sua obra O Mundo Codificado: Por uma Filosofia do Design e da Comunicação (2007), dedica um capítulo à relação entre a linha escrita e a superfície da imagem. Para o filósofo, a respeito do entendimento dos filmes, a problemática está no fato de “[...] ainda os lemos como se fossem linhas escritas e falhamos na tentativa de captar a qualidade da superfície inerente a eles.” (FLUSSER, 2007, p. 106). Na comparação entre 16 ambas as linguagens, escrita e cinematográfica e mesmo na tradução de uma à outra, faz-se necessário, segundo o filósofo, compreender como se dá a passagem do pensamento em linha para o pensamento em superfície. Portanto, não é possível pensar a “leitura”, a interpretação, a crítica e a composição de um filme da mesma forma que se faz nos textos literários. Da mesma forma, não se pode pensar a literatura pelos critérios de avaliação e composição da cinematografia.

Assim, no processo de adaptação, o que de fato interessa é como o texto fonte ou textos são traduzidos para o outro meio. Não menos importante é também o estudo do que é traduzido e o que é cortado nesse processo de criação de uma nova obra por meio de uma adaptação. Por isso, ainda como afirma Stam (2006, p. 27):

O termo para adaptação enquanto “leitura” da fonte do romance, sugere que assim como qualquer texto pode gerar uma infinidade de leituras, qualquer romance pode gerar um número infinito de leituras para adaptação, que serão inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos. A metáfora da tradução, similarmente, sugere um esforço íntegro de transposição intersemiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos típicos de qualquer tradução.

Um processo de adaptação é antes de tudo um processo de tradução. As adaptações fílmicas de textos literários pertencem a uma das três formas diferenciadas de tradução elaboradas pelo semiótico e linguista russo Roman Jakobson, que seriam:

1) A tradução intralingual ou reformulação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. 2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. 3) A tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. (JAKOBSON, 1999, p. 64-65).

No caso, as adaptações pertencem assim à terceira forma de tradução vislumbrada por Jakobson que seria a Tradução Intersemiótica. Essa forma de tradução trabalha com campos semióticos distintos. No caso das adaptações, o campo semiótico literário (verbal) e o campo semiótico cinematográfico (visual). A partir desse estudo de tradução de Jakobson, Plaza (2003) compõe a sua obra Tradução Intersemiótica, na qual estrutura um modelo para essa forma de tradução, inspirado na semiótica de Charles Sander Pierce. Plaza também afasta a possibilidade de as traduções intersemióticas serem analisadas pelo critério da fidelidade.

A criação neste tipo de tradução determina escolhas dentro de um sistema de signos que é estranho ao sistema original. Essas escolhas determinam uma dinâmica na construção da tradução, dinâmica essa que faz fugir a tradução do traduzido, intensificando a diferença entre objetos imediatos. A TI é portanto avessa à ideologia da fidelidade. (PLAZA, 2003, p. 30). 17

A tradução intersemiótica, como as outras formas de tradução, possibilita a criação de uma nova obra traduzindo forma e conteúdo de suas fontes. Além disso, essa forma de tradução recria os signos de suas fontes em um campo semiótico diferente. Por isso, como assegura Plaza (2003, p. 30):

numa tradução intersemiótica, os signos empregados têm tendência a formar novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria característica diferencial, tendem a se desvincular do original. A eleição de um sistema de signos, portanto, induz a linguagem a tomar caminhos e encaminhamentos inerentes à sua estrutura.

Assim sendo, no caso das adaptações fílmicas, o sistema de signos do cinema vai direcionar e modelar a fonte literária na criação de um novo objeto. Portanto, para compreender e analisar esse novo objeto, fruto da operação de tradução intersemiótica, faz-se necessário analisar o seu processo de criação.

1.2 Do processo de criação no cinema

Diversas questões surgem durante a análise de um processo de tradução intersemiótica. No caso das adaptações fílmicas é preciso investigar como o cineasta direcionou a tradução, que elementos da fonte ele utilizou e como os traduziu. Além disso, o processo de construção cinematográfico envolve uma grande quantidade de recursos materiais e humanos para sua execução. Sendo a tradução, nesse caso, resultado também das escolhas do cineasta conforme os recursos a sua disposição. Esse caráter “industrial” do cinema torna ainda mais relevante a investigação do seu processo de fabricação na compreensão do resultado da obra e de como se constituiu a sua criação.

Os processos de criação de uma obra de arte são objetos de estudo da Crítica Genética. Em seu livro Crítica Genética – Fundamentos dos Estudos Genéticos sobre o Processo de Criação Artística, Salles (2008, p. 28) assegura que: “O interesse da Crítica Genética está voltado para o processo criativo artístico. Trata-se de uma investigação que indaga a obra de arte a partir de sua fabricação. Como é criada uma obra? Essa é sua grande questão.”

Assim, o percurso delineado pelo artista na construção da sua obra é extremamente importante para a compreensão do seu processo criativo e consequentemente da obra entregue ao público. 18

Ainda como ensina Salles (2008), a Crítica Genética, num primeiro momento, estava voltada ao estudo do processo de criação das obras literárias. Contudo, como explica a autora, essa ciência tem por objeto registros deixados pelo artista, durante o processo de criação, que “são independentes da materialidade na qual a obra se manifesta e independentes, também, das linguagens nas quais essas pegadas se apresentam” (SALLES, 2008, p. 30). Por isso, a criação de um filme, a partir do seu processo de fabricação, é também do interesse da Crítica Genética:

Logo começaram a surgir pesquisadores interessados em estudar esboços e cadernos de artistas plásticos, roteiros de cineastas, anotações de coreógrafos e esboços de arquitetos. Hoje, os estudos genéticos abarcam os processos comunicativos em sentido mais amplo, a saber, artes plásticas, cinema, dança, teatro, música, arquitetura, literatura, fotojornalismo, publicidade, jornalismo, etc. (SALLES, 2008, p. 31).

O filme Apocalypse Now (1979) que serve de corpus à presente pesquisa tem um histórico de dez anos desde o seu primeiro roteiro, elaborado em 1969 por John Milius e depois modificado por Francis F. Coppola, até a versão exibida nos cinemas em 1979. Durante esse período, as ideias e concepções do que seria o filme foram mudando. Estudar essas mudanças por meio da Crítica Genética confere uma nova abordagem diferente da crítica cinematográfica convencional, pois, como afirma Salles (2008, p. 21), “A Crítica Genética pretende oferecer uma nova possibilidade de abordagem para as obras de arte: observar seus percursos de fabricação. É, assim, oferecida à obra uma perspectiva de processo.”

1.3 Os documentos de processo de Apocalypse Now

Essa nova abordagem, possibilitada pela Crítica Genética, deve definir e delimitar bem os “documentos de processo” (SALLES, 2008, p. 38) a serem utilizados na pesquisa. Ressalte-se a importância de compreender a pesquisa não apenas do ponto de vista da obra final, mas sim de sua criação. Portanto, ao se apontar que o filme Apocalypse Now serve de corpus à pesquisa, se está dizendo do ponto de vista do seu processo de criação. Assim, o objeto de estudo é o processo criativo de Francis Ford Coppola, corroteirista, diretor e produtor do filme, por meio dos registros deixados durante a germinação da obra e entrevistas posteriores ao seu lançamento nos cinemas em 1979.

O filme Apocalypse Now conta com dois excepcionais registros de seu processo de fabricação: o diário de Eleanor Coppola, esposa do cineasta, que foi realizado durante as 19 filmagens do filme nas Filipinas e que foi publicado em livro, Notas a Apocalipsis Now – Diario de una filmacion (2002) e o documentário Apocalypse de um Cineasta (1991) realizado a partir do diário de Eleanor com filmagens de entrevistas com atores e profissionais envolvidos na produção do filme. Apesar de o documentário ter sido lançado em 1991, a maior parte do material foi realizado ainda durante as gravações do filme.

Em Notas a Apocalipsis Now, na carta intitulada 13 de março de Manila, Eleanor conta que a ideia para que ela filmasse um documentário durante as filmagens nas Filipinas partiu de Francis. O documentário seria para o departamento de publicidade da United Artists. Ela também revela em seu diário que esta seria uma forma de mantê-la ocupada durante as gravações do filme Apocalypse Now. Foi por meio da ousadia de Eleanor de, por exemplo, filmar seu marido a respeito do filme sem que ele o soubesse, que foi possível um registro de alta qualidade do percurso criativo do filme Apocalypse Now.

Além desses dois documentos reveladores da fabricação de Apocalypse Now com detalhes únicos da intimidade do cineasta, o lançamento de uma edição de luxo do filme em Blue-ray, Full Disclosure Edition (2010), conta com um valioso material especial, como, por exemplo, uma entrevista entre Coppola e John Milius, que foi o primeiro roteirista do filme. Outro documento que será utilizado na investigação do processo criativo do filme é uma carta (Anexo A) de Coppola ao ator , antes da ida deste às Filipinas, para as filmagens do clímax do filme com o aparecimento do personagem Cel. Walter Kurtz, interpretado por Brando.

Apesar dessa importante documentação do processo de fabricação de Apocalypse Now, ela tem, evidentemente, seus limites. Contudo, ela fornece índices importantes para a interpretação de como aconteceu o processo de criação do filme e de como, ao longo do tempo, os dez anos entre o roteiro de Milius e do filme apresentado ao público, a concepção do vir-a-ser da obra foi mudando. Como ensina Salles (2008, p. 39), é tarefa do crítico genético atuar entre os limites do que foi registrado e a grandeza do processo:

As fronteiras materiais desses registros, no entanto, não implicam delimitações do processo. O crítico genético trabalha com a dialética entre os limites materiais dos documentos e a complexidade do processo; em outras palavras, os limites daquilo que é registrado e de tudo o que acontece, porém, não é documentado ou preservado.

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1.4 As fontes do filme de Coppola

Das diversas fontes utilizadas por Coppola no processo de criação de Apocalypse Now, destaca-se sem dúvida o romance O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. A importância da obra é evidente, sendo a única das fontes que aparece nos créditos do filme. Além disso, como se verificará, o livro vai aparecer em diversos momentos desde a construção da primeira versão do roteiro até a gravação das últimas cenas do filme.

A história de O Coração das Trevas é num primeiro momento muito simples. O narrador, o marinheiro Charlie Marlow, consegue um emprego por meio de uma companhia que atuava no Congo africano. A princípio, seu trabalho será o de assumir o comando de uma embarcação, contudo as circunstâncias levam-no a seguir o rio para resgatar um funcionário da mesma Companhia, Kurtz, que se encontra doente em meio à selva africana. Durante o seu percurso pelo rio, Marlow se depara com situações e personagens inusitados e uma crescente obsessão por encontrar o misterioso Kurtz acende em sua alma. O clímax da obra se dá com a longa subida pelo rio e o encontro de Marlow e Kurtz. Esse enredo principal, todavia, é combinado com outras histórias singulares e com a descrição de cenas que surgem ao longo da narrativa. Essas outras narrativas e cenas, aparentemente deslocadas do enredo principal, são apresentadas através das impressões de Marlow e dá à obra um tom alucinante, produzindo mais imagens sugestivas do que verdades objetivas.

Joseph Conrad (ABRIL..., 1971), antes de se dedicar à literatura e criar obras importantes, como , O Coração das Trevas, Nostromo, dentre outros, foi um homem do mar. Dentre suas experiências como marinheiro, uma das aventuras mais desejadas por Conrad era a de conhecer o continente africano. A oportunidade lhe apareceu ao ser contratado pela Sociedade Anônima Belga para o Comércio no Alto Congo. O Congo era uma colônia da Bélgica, e esta era governada à época por Leopoldo II, que liderou a vexaminosa exploração daquela colônia e de seu povo. A sua experiência naquele ponto do continente africano, como capitão de um barco no ano de 1890, deixou-o transtornado. Além das adversidades da viagem, das dificuldades da navegação e até da malária, ele viu as consequências terríveis da exploração colonizadora europeia no continente africano. Dessa investida pelo Congo nasceria um de seus mais importantes romances, O Coração das Trevas, publicado primeiramente em 1899 em três partes na Blackwood’s Magazine e editado em livro em 1902. 21

A obra, além de sua importância para a literatura e a história do gênero do romance, recebeu as mais adversas críticas e interpretações de natureza política e sociológica. Muitos autores colocam O Coração das Trevas como obra preconceituosa e que não consegue fazer a devida crítica ao imperialismo europeu no continente africano. O romance aparece em obras importantes, como Cultura e Imperialismo, de Edward Said, O Local da Cultura, de Hommi K. Bhaba, no artigo de Chinua Achebe, : Racism in Conrad's Heart of Darkness. A novela foi inclusive objeto de análise do programa de computador Word Smith Tools, para uma tese de doutorado3, que contabiliza e faz associações comparativas entre substantivos e adjetivos utilizados, o que supostamente poderia comprovar o preconceito do romance e de seu autor, demonstrando, por exemplo, que, para designar os negros, que aparecem no romance, são utilizados, muitas vezes, nomes referentes a partes do corpo humano. Segundo essa lógica, tais descrições para designar os negros seriam provas do preconceito de Conrad. Por outro lado, após a publicação de O Coração das Trevas, foi criado um movimento contra a exploração europeia na África, conforme o documentário a respeito de Conrad e sua obra exibido no programa Grandes Livros do canal de TV Discovery Civilization. Conrad, apesar de convidado, não quis se envolver muito no movimento, pois não tinha interesse em participar de associações de natureza política.

Antes do filme de Coppola Apocalypse Now, o romance de Conrad O Coração das Trevas já havia chamado a atenção de outros cineastas. Dentre os cineastas que tentaram adaptar O Coração das Trevas para o cinema, estão Richard Brooks e . De acordo com o documentário Apocalypse de um Cineasta, Wells, em 1939, levou a ideia adiante, realizando inclusive alguns testes no papel de Kurtz. O filme não foi realizado em razão do alto custo de produção. O fascínio pela obra foi tanto que Orson Welles chegou a gravar o áudio do romance para o rádio. O roteirista John Milius, em sua entrevista a Coppola, menciona que essas tentativas fracassadas de filmar O Coração das Trevas serviram de inspiração e como desafio para que escrevesse o roteiro de Apocalypse Now: “Algo impossível. Foi a primeira coisa que tentei.” (MILIUS, 2010).

As obras de Conrad são extremamente sensoriais. O que não é diferente em O Coração das Trevas, que também é uma história de viagem, aventura, alegoria e sobre a condição humana. Sua literatura é profundamente visual, como ele mesmo afirma no prefácio de sua obra The

3 ASSIS, Roberto Carlos. A representação de europeus e de africanos como atores sociais em Heart of darkness (O coração das trevas) e em suas traduções para o português: uma abordagem textual da tradução. Apresentada na Faculdade de Letras da UFMG em 2009. 22

Nigger of the ―Narcissus‖ (1897): “A tarefa que procuro cumprir é, através do poder da palavra escrita, fazê-lo ouvir, fazê-lo sentir – acima de tudo fazê-lo ver. Isso – e nada mais – já é tudo. Se for bem sucedido, acharão aqui aquilo que desejarem: encorajamento, consolo, medo, delicadeza.”4 (CONRAD, 2006b, p. 68-69, tradução nossa).

Também nas suas obras é possível reconhecer uma literatura com qualidades cinematográficas, como se discutiu na primeira parte deste capítulo.

Essa intenção de Conrad em “fazer ver”, por meio da literatura, é recorrente em diversos momentos de O Coração das Trevas. O romance é elaborado valorizando a impressão de atmosferas e relações sinestésicas. Sem dúvida, essas impressões visuais interessam aos cineastas ao longo da história do cinema. Além de Apocalypse Now, outra adaptação do romance foi feita em 1994, por Nicolas Roeg. O filme é uma adaptação literal do romance de Conrad, inclusive no título. Entretanto, apesar de atores renomados, como John Malkovich, no papel de Kurtz, e Tim Roth, como Charlie Marlow, o filme não expressa como Apocalypse Now os temas propostos por Conrad. Em diversos artigos, resenhas e comentários sobre o livro de Conrad, o filme de Coppola é citado e raramente se menciona a obra de Nicolas Roeg.

Apocalypse Now também possui outras fontes importantes que serão apreciadas sempre indicando como o cineasta se utilizou delas na criação de sua obra. Dentre essas fontes, destaca-se o livro Despachos do Front (2005) de autoria do jornalista Michael Herr. O livro é uma junção de diversos artigos escritos por Herr durante a Guerra do Vietnã. O jornalista passou dois anos no Vietnã cobrindo o conflito para a revista Esquire. Herr também é o responsável pelas falas em off do personagem Cap. Benjamin Willard, interpretado por Martin Sheen, em Apocalypse Now.

Na edição em português dos Despachos do Front, a tradutora Ana Maria Bahiana, na sua apresentação do livro, conta que Coppola, após ter lido o livro de Herr, convidou-o a colaborar em seu filme. Para Bahiana (2005, p. 10), “[...] não é muito exagero dizer que a estética inteira de Apocalypse Now vem em linha direta de Despachos do Front, é sua mais perfeita tradução em movimento.”. Sem dúvida, o livro de Herr e o filme de Coppola são marcos na temática da guerra pela ousadia com que trataram o tema. John Milius também

4 ―My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word to make you hear, to make you feel—it is, before all, to make you see. If I succeed, you shall find there according to your deserts: encouragement, consolation, fear, charm […]‖. (CONRAD, 2006b, p. 68-69). 23 afirmou que conhecia os artigos de Herr (que deram origem aos Despachos do Front) em sua entrevista a Coppola acerca da construção do primeiro roteiro do filme. “Acredito que quando li algumas das reportagens de Michael Herr, eu realmente pude começar a colocar algo no papel e pensar sobre isso.” (MILIUS, 2010).

Entre as obras de Herr e de Conrad é possível traçar outro paralelo, além do fato de terem sido utilizadas como fontes para o filme de Coppola. As duas obras são tiradas da experiência direta de seus autores. Enquanto Conrad escreve o seu romance, O Coração das Trevas, com base na da sua experiência pessoal como marinheiro no Congo, Herr escreve seus textos a partir de sua experiência no Vietnã, na cobertura da Guerra. Também Coppola, na construção de Apocalypse Now, insere-se nas Filipinas, com toda a sua família e equipe, para realizar o seu filme. Desde o início das filmagens nas Filipinas, ele procurou criar uma atmosfera similar à que os soldados americanos enfrentaram no Vietnã, guardadas as devidas proporções, que envolvesse toda a equipe. Na abertura do documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), mostra o discurso de Coppola na estreia de seu filme no Festival de Cannes de 1979. Na ocasião ele declara:

Meu filme não é um filme. Meu filme não é sobre o Vietnã. Ele é o Vietnã. É como foi, uma loucura. E nós o fizemos do modo como os americanos estavam no Vietnã. Estávamos na selva. Éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento e pouco a pouco ficamos loucos. (APOCALYPSE DE..., 1991).

No segundo capítulo, será novamente abordado o tema de como os longos 238 dias de filmagens nas Filipinas participaram no processo de fabricação de Apocalypse Now. De fato, Conrad, Herr e Coppola constroem assim suas obras, também, com base nas suas experiências pessoais marcantes. Note-se que a construção das obras desses autores acontece a partir de experiências em outra cultura que não a deles.

Outras fontes utilizadas no filme são Odisseia (2011) de Homero e o poema The Hollow Men (2006) de T. S. Eliot. John Milius afirma a Coppola que pelo menos dois trechos de seu roteiro foram inspirados na epopeia de Homero, o episódio em que Ulisses enfrenta o ciclope, e o das sereias (MILIUS, 2010). O poema de Eliot, por sua vez, aparece visualmente no filme e compõe um dos monólogos do personagem de Marlon Brando o Cel. Walter Kurtz.

Certamente, outras fontes colaboraram no processo de criação do filme Apocalypse Now. Contudo, na presente pesquisa o recorte priorizará as fontes que se relacionam diretamente com o filme e que foram creditadas por seus autores, Coppola e Milius (corroteirista do 24 filme), como fontes utilizadas. Além disso, o uso dessas fontes pode ser averiguado na análise do filme Apocalypse Now, como se verificará no terceiro capítulo desta pesquisa.

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CAPÍTULO 2 – CARTOGRAFIA DE UM FILME

O filme Apocalypse Now tem uma das histórias de bastidores mais impactantes da história do cinema. Se não fosse a qualidade do filme e sua força como arte, linguagem e significado, provavelmente o seu processo de criação teria se tornado mais célebre do que a obra. Não por acaso, os bastidores das filmagens e as entrevistas com Coppola e sua equipe realizadas durante e após as gravações permitiram a elaboração do documentário Apocalypse de um Cineasta (1991). O documentário foi possível a partir do registro feito em um diário durante as gravações pela esposa de Coppola, Eleanor. O diário também foi publicado posteriormente como um diário da produção do filme intitulado Notas a Apocalipsis Now – Diario de una filmacion (2002).

Esses dois importantes registros são utilizados na pesquisa como documentos de processo da fabricação do filme. Por meio deles, tem-se acesso a alguns índices do caminho percorrido por Francis F. Coppola e sua equipe na construção de sua obra. Graças a esses índices dados pelos documentos de processo é possível constatar as dificuldades decorrentes do percurso que não foram previstas na pré-produção do filme. Mais que isso, podem ser observadas as escolhas tomadas por Coppola ao longo da fabricação de Apocalypse Now. Como ensina Salles (2008, p. 114-115):

[...] os documentos dos processos criativos deixam transparecer um percurso permanente de tomadas de decisão. [...] Muitas das escolhas são resultado de decisões tomadas sem critérios explícitos ou conscientes. Estamos focalizando a criação como um inegável fazer consciente e não consciente e um trabalho sensível e intelectual.

Em seu documentário, Apocalypse de um Cineasta (1991), Eleanor revela que o sonho de Coppola era ter uma produtora independente, a , para poder produzir filmes fora do circuito e do sistema hollywoodiano. O primeiro projeto da Zoetrope seria exatamente o filme Apocalypse Now. O roteiro encomendado a Milius, que como Coppola estudou na UCLA (Universidade da Califórnia), foi redigido ainda em 1969. A ideia inicial era rodar o filme durante a Guerra do Vietnã, tendo George Lucas como seu diretor. Coppola iria se ocupar mais como produtor do filme. Contudo, a Warner desistiu do projeto e todos os outros estúdios também rejeitaram a ideia. George Lucas, em entrevista ao documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), relata que isso aconteceu pelo fato de ainda estarem em guerra, na qual nenhum estúdio queria se envolver, afora o perigo de se tentar gravar o filme em meio ao conflito, como eles gostariam. 26

O projeto, então, é abandonado e retomado somente depois que Coppola concluiu os dois primeiros filmes da trilogia O Poderoso Chefão (1972 e 1974). Os dois filmes foram grande sucesso de público e crítica e juntos ganharam nove Oscars, incluindo o de melhor filme e diretor. Com eles, Coppola ficou milionário e tornou-se um diretor conhecido internacionalmente. Também foi nesses dois filmes que trabalhou com os atores Marlon Brando e , que atuariam em Apocalypse Now. Antes das filmagens de Apocalypse Now, filmou também A Conversação (1974), estrelado por Gene Hackman e Robert Duvall. Os atores Frederick Forrest e Harisson Ford também atuaram no filme e estariam presentes em Apocalypse Now. Ford faria uma ponta como o personagem Major Lucas.

Segundo ainda o documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), no ano de 1975 a Zoetrope renasce, e Apocalypse Now é o seu primeiro projeto. Por essa época George Lucas estava filmando na Inglaterra Star Wars e não poderia mais ser o diretor do filme. Coppola assume inteiramente o filme como seu produtor e diretor e durante as filmagens iria reescrever muitas partes do roteiro original de Milius, tornando-se também corroteirista. Em suas Notas a Apocalipsis Now (2002), Eleanor explica que seu marido procurou levantar, ele mesmo, o recurso financeiro para o filme para ter o controle total sobre ele. O filme foi orçado em catorze milhões de dólares e Coppola, para poder realizá-lo, deu seus bens como garantia. Coppola tornou-se assim, desde o começo, obstinado em realizar esse filme. Essa sua obsessão acabou por levá-lo a uma profunda crise durante as gravações, mas que ele soube como artista catalisar na produção da sua obra.

2.1 As locações nas Filipinas

“O diretor de cinema ainda é uma das poucas profissões ditatoriais, que ainda existe” (APOCALYPSE DE..., 1991) diz Coppola durante as filmagens de Apocalypse Now. De fato, Coppola fez de tudo para dominar o roteiro, equipe e toda a produção do filme. Além de ser o diretor, ele era o grande financiador de tudo aquilo e não queria perder o domínio. Contudo, apesar de sua grande experiência e personalidade, as enormes dificuldades e adversidades fariam o filme sair do controle. Analisando o documentário Apocalypse de um Cineasta (1991) e as Notas a Apocalipsis Now – Diario de una filmacion (2002) é possível aferir, como se verá adiante, que as decisões tomadas por Coppola eram de fato extremamente arriscadas para a produção de um filme. O próprio Coppola, ao entrevistar Milius sobre o filme, anos 27 mais tarde, fala de certa ingenuidade sua a respeito de como seriam as gravações (MILIUS, 2010).

Ainda na introdução de suas Notas a Apocalipsis Now (2002), Eleanor conta que as Filipinas foram escolhidas como cenário para as locações para rodar o filme, pelo fato de o país se assemelhar bastante geograficamente ao Vietnã. Coppola fez um acordo financeiro com o presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos. Pagou para poder utilizar os helicópteros e outros equipamentos militares. Além disso, os custos de mão de obra nas Filipinas eram baratos. Eleanor (1991, 2002) também informa que o exército americano se negou a qualquer tipo de parceria com seu marido. De fato, a guerra, ainda mais uma guerra derrotada, era um tema que o governo americano queria esquecer. Além do mais, Coppola pretendia com o filme “iluminar os fatos, o que os causou e como afetaram as pessoas” (APOCALYPSE DE..., 1991). A escolha das Filipinas, apesar de trazer realismo ao filme, mostrou-se extremamente arriscada. Em primeiro lugar, era muito dispendiosa e o país estava em guerra civil. Na sua nota datada de 2 de abril de Baler, Eleanor conta que o governo filipino tinha medo do que poderia acontecer a Coppola, revelando como a situação era delicada: “Francis tem seguranças permanentemente, fornecidos pelo governo. Em nossa casa há guardas. O governo parece pensar que se os rebeldes sequestrarem Francis criará um problema que atrairia a atenção internacional.”5 (COPPOLA, 2002, p. 18, tradução nossa).

Devido ao conflito, muitas vezes acontecia de as filmagens serem interrompidas, pois o governo filipino solicitava os helicópteros para a guerra.

Durantes as filmagens, as Filipinas foram atingidas por um forte tufão. Todo o país sofreu rigorosamente com o ciclone. A chuva durou muitos dias causando problemas, como falta de água e luz para toda a equipe do filme, o que prejudicou extremamente o filme. Além da impossibilidade de filmar, vários cenários do filme e o set de filmagens foram alagados e estragados. Por causa do forte Tufão e da destruição nas locações de filmagens, a produção do filme foi interrompida e grande parte da equipe de filmagem, atores e até Coppola e sua família deixaram as Filipinas por seis semanas, conforme Eleanor (2002).

O processo de criação de Apocalypse Now também passou pela escolha das locações nas Filipinas. Provavelmente, se o filme fosse realizado em algum estúdio ou em alguma locação

5 “Francis lleva guarda espaldas permanente, proporcionado por el gobierno. En nuestra casa hay guardias de seguridad. El gobierno parece pensar que si los rebeldes secuestraran a Francis crearían un problema que atraería la atención internacional.” (COPPOLA, 2002, p. 18). 28 mais próxima dos Estados Unidos, até os atores poderiam ser outros. Nesse caso, os rumos do próprio filme seriam diferentes, visto que Coppola construiu as cenas a partir de muitas discussões com os atores. Em sua introdução em as Notas a Apocalipsis Now, Eleanor (2002) conta que um dos primeiros atores procurados para interpretar Willard foi Steve McQueen, que se interessou pelo papel, mas desistiu pelo fato de ter que passar muito tempo na selva nas Filipinas. O mesmo aconteceu com Al Pacino, que desistiu de filmar Apocalypse Now por não estar disposto a permanecer tanto tempo num país tão distante. Além desses, outros atores foram procurados como Jack Nicholson e James Caan, mas todos desistindo mais pelas condições de filmagens do que pelos papéis de Kurtz ou Willard. Caso um desses atores estivesse no papel de Willard, por exemplo, dificilmente se teria a cena de abertura do filme realizada num quarto em Saigon, onde o ator Martin Sheen estava alcoolizado e realizou, sob a regência de Coppola, uma estranha e única performance, que será analisada no terceiro capítulo. Também sem Marlon Brando, para o papel de Kurtz, Coppola não teria procurado a solução de “esconder” a gordura do ator que chegou às Filipinas extremamente fora do peso. Solução essa que acabou por criar um Kurtz ainda mais misterioso e sombrio e permanentemente nas trevas. A ideia inicial era filmar com um Kurtz magro, como o da novela de Conrad (APOCALIPSE DE..., 1991).

A escolha de Coppola pelas Filipinas teve grande impacto no resultado do filme, em especial naquilo que se vê na tela: a selva, grande parte dos figurantes, os equipamentos militares, como os helicópteros, que pertenciam às Forças Armadas daquele país. Mais do que isso, foi durante as muitas semanas nas Filipinas, sob condições adversas, que já foram apontadas, que o processo criativo do autor se desenvolve. Em sua nota de 4 de setembro, Eleanor (2002) enfatiza como as Filipinas (leia-se, a permanência em um país longínquo e com clima, geografia e cultura diferentes dos de grande parte da equipe do filme) afetaram Coppola e, sem dúvida, seu processo criativo e os outros envolvidos com o filme.

Ele disse que, aparentemente, todos os envolvidos na produção estão sofrendo algum tipo de transição pessoal, uma “viagem” em sua vida. Todos os que vieram para as Filipinas parecem estar passando por algo que os afeta profundamente, mudando sua perspectiva do mundo ou de si mesmos, enquanto supostamente a mesma coisa está acontecendo no filme com Willard. Definitivamente, algo está acontecendo conosco eu e Francis.6 (COPPOLA, 2002, p. 73, tradução nossa).

6 “Me dijo que al parecer todos los que participan em La producción están sufriendo algún tipo de transición personal, algún «viaje» em su vida. Todos los que han venido a Filipinas parecen estar pasando por algo que los afecta profundamente, cambiando su perspectiva del mundo o de ellos mismos, mientras que supuestamente lo mismo le está sucediendo a Willard em la película. Definitivamente, algo nos está ocurriendo a mí y a Francis.” (COPPOLA, 2002, p. 73). 29

2.2 Os atores psicodélicos de Apocalypse Now

O Soldado Psicodélico, este seria o primeiro título do filme dado por John Milius antes de nomeá-lo de Apocalypse Now (MILIUS, 2010). Na sua entrevista a Coppola (2010), ele comenta que teve a ideia do nome para o filme por causa de uma expressão usada pelos hippies: Nirvana Now. Para os budistas, o nirvana é um estado de paz plena. A insanidade da guerra retratada pelo filme seria exatamente o oposto desse nirvana, o fim de tudo, o apocalipse. A Guerra do Vietnã foi a primeira guerra americana com imagens televisionadas e, tanto pelo custo envolvido e pelas mortes de soldados americanos, tornou-se uma guerra que mexeu com a opinião pública. Ainda durante a entrevista, Milius revela também que criou uma espécie de signo para o filme. Ele redesenhou o símbolo do Nirvana Now (figura 1), também usado pelo movimento hippie, e criou um ícone com o bombardeiro de guerra B-12 (figura 2).

Figura 1 – Nirvana Now por John Milius, 2010

Fonte: Milius (2010).

Figura 2 – Símbolo para o filme Apocalypse Now de John Milius, 2010

Fonte: Milius (2010). 30

De fato, a Guerra do Vietnã foi uma guerra psicodélica. O jornalista Michael Herr (2005), em sua obra Despachos do Front, explica que os soldados, abusavam constantemente de entorpecentes e de álcool. Além disso, Herr (2005) relata os atos alucinados dos indivíduos na guerra. As convenções da civilização são postas à margem e dão lugar a verdadeiras sandices.

Caras fantasiados de Batman, vi um esquadrão inteiro vestido assim, aquilo lhes dava algum tipo de ânimo imbecil. Caras que punham ases de espadas em seus capacetes, que tiravam relíquias de um inimigo morto, uma pequena transferência de poder; [...] um homem carregou um biscoito de aveia durante o tempo todo do seu serviço, embrulhado em papel de alumínio e plástico e três pares de meia. (HERR, 2005, p. 63).

Segundo o documentário, Apocalypse de um Cineasta (1991), Coppola queria “colocar todos numa situação que refletisse a ideia do filme” (APOCALYPSE DE..., 1991). Certamente a escolha das Filipinas, os obstáculos nas filmagens e o clima das gravações parecem ter afetado, profundamente, muito dos atores envolvidos. A atuação desses atores no filme também é resultado desse processo de inserção nas Filipinas durante as gravações. Essa atitude em que o diretor cria condições para que os envolvidos tenham uma experiência e possam refletir sobre os temas do filme tem consequências diretas no processo de fabricação da obra. Esse é mais um índice importante do processo de criação de Coppola na construção de Apocalypse Now. Coppola conhecendo a arte cinematográfica, que necessita de muitos profissionais na sua construção, quer toda a sua equipe envolvida como ele na produção de seu filme.

Coppola conseguiu reunir para seu filme um elenco profissional e reconhecido internacionalmente. Dos personagens adaptados da novela de Conrad, tem-se o Capitão Benjamin Willard, estrelado por Martin Sheen, que corresponde a Charlie Marlow de Conrad, Cel. Walter Kurtz, vivido por Marlon Brando, que corresponde ao Kurtz, comerciante de marfim da novela e o fotojornalista americano, o ator Denis Hooper, baseado no Russo de O Coração das Trevas. Além desses, o filme conta com outros personagens, como o Cel. Kilgore, interpretado Robert Duvall, e os soldados liderados por Willard na sua missão de assassinar Kurtz. Esses soldados são Jay “Chef” Hichs, interpretado por Frederick Forrest, Lance B. Johnson, estrelado por , Chefe Phillips, vivido pelo ator e Tyrone “Clean” Miller, representado pelo ator Lawrence Fishburne. Esses personagens formam a equipe de Willard e o acompanham até o final do filme. Com o desenvolvimento da história de Apocalypse Now, pode-se observar nesses soldados o impacto dos horrores da guerra. 31

Mas não foram apenas os personagens que se transformaram durante o filme. Coppola teve grandes problemas com os atores que também tiveram suas crises, problemas com álcool e drogas. Em seu diário, Eleanor (2002) conta que, após as primeiras filmagens, Coppola decide trocar o ator Harvey Keitel por Martin Sheen que estava interpretando Willard. Além da dificuldade da decisão, pois o filme já estava sendo rodado, ele precisava rapidamente encontrar um novo ator para o papel de Willard, que, além de protagonista, é o narrador do filme.

Martin Sheen também viveu um pesadelo nas Filipinas. Segundo Eleanor (2002), durante as filmagens do quarto em Saigon, Marty, como era conhecido na produção, filmou alcoolizado, improvisando e chegou a se ferir ao socar um espelho. No documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), pode-se ver, contudo, que Coppola sabia do estado do ator, durante a cena, e o incentivava em sua performance. O próprio ator confirma o seu estado alcoolizado para gravar a cena: “Eu estava tão bêbado para a cena do quarto em Saigon, que mal parava de pé.” (APOCALYPSE DE..., 1991). Além disso, em seu diário, Eleanor (2002) descreve as muitas dificuldades enfrentadas por Martin Sheen no cotidiano das filmagens, como o calor. O ator chegou até a ter uma parada cardíaca, permanecendo semanas sem filmar. No documentário (1991) aparece uma gravação de Coppola furioso por uma funcionária ter avisado um dos produtores sobre a parada cardíaca de Martin Sheen. Coppola chega a dizer que “alguém só estaria morto, se ele o dissesse.” (APOCALYPSE DE..., 1991). A atuação de Marty como Willard é muito expressiva e forte, e, conhecendo os problemas que enfrentou nas gravações, percebe-se que o seu personagem também é resultado dessa grande pressão pela qual ele passou.

Conforme Eleanor (1991, 2002), fica patente a tensão e loucura vividas por toda a equipe. O ator Sam Bottoms, que viveu o soldado californiano Lance, diz que seu personagem “se fez sob o efeito de maconha” (APOCALYPSE DE..., 1991), ele diz ainda que usou drogas mais fortes, como ácido, e que tomou anfetaminas para ficar “ligado” durante as filmagens à noite. Muitas cenas foram gravadas inúmeras vezes por Coppola. O ator Frederick Forrest declara que o que eles viveram nas Filipinas foi uma verdadeira loucura (APOCALYPSE DE..., 1991). Além disso, o ator Lawrence Fishburne fingiu ter 16 anos de idade para poder filmar, mas tinha apenas 14, conforme o documentário Apocalypse de um Cineasta (1991).

O ator Denis Hopper parece ter tido problemas com drogas durante as filmagens. O crítico de cinema Sellers (2004), num artigo para o jornal The Independent, sugere inclusive que em 32 determinado momento das gravações Hopper teria dito a Coppola que só conseguiria continuar se tivesse uma dose diária de cocaína. Sellers (2204) afirma ainda, em seu artigo, que Coppola teria aceitado a condição e a droga teria sido fornecida pela produção. O artigo aponta ainda que as gravações foram um verdadeiro caos. Independentemente da veracidade do artigo de Sellers, no documentário Apocalypse de um Cineasta (1991) se vê que o ator após dias nas filmagens tinha dificuldades de memorizar suas falas para o filme. Além disso, o documentário revela que Marlon Brando não quis contracenar diretamente com Hopper durante as gravações devido ao seu mau comportamento. Apesar de os personagens de ambos se relacionarem no filme, Coppola precisou filmar as cenas com os dois atores em horários diferentes no set de filmagens.

Por sua vez, o ator Marlon Brando, que passou apenas cerca de três semanas nas Filipinas para as gravações, também, representou muitos problemas para Coppola e o filme. Conforme Eleanor (1991), Brando cobrou cerca de três milhões de dólares pelo pouco tempo de filmagem e recebeu um milhão adiantado. Num dos grandes momentos de crise de Coppola e com o filme atrasado, o ator chegou a pensar em desistir do filme e ainda não reembolsar o dinheiro pago previamente. Brando também não havia se preparado para as filmagens: não leu O Coração das Trevas, não conhecia seu script e estava muito fora do peso, condições solicitadas por Coppola antes do início das filmagens. Segundo Eleanor (1991, 2002), tudo isso agravou ainda mais a crise de Coppola, que não encontrava um final satisfatório para o seu filme.

A qualidade de uma obra cinematográfica depende em parte, também, da atuação inspirada, ou não, do elenco. Pela forma como Coppola conduziu as filmagens de Apocalypse Now e seu roteiro, a atuação de seu elenco é ainda mais importante para o resultado do filme. Coppola, além de criar um ambiente para que os atores e toda a equipe refletissem sobre os conceitos desenvolvidos pelo filme, fez com que muitas cenas e falas dos personagens fossem somente conhecidas durantes as gravações. O ator Frederick Forrest confirma isso ao dizer que muitas “cenas eram desconhecidas, eles não sabiam o que iriam filmar” (APOCALYPSE DE..., 1991). O ator também fala da importância dos improvisos para Coppola: “Ele (Coppola) dava as linhas gerais e nós improvisávamos o resto” (APOCALYPSE DE..., 1991).

Essa forma de conduzir os atores e as filmagens é como se dá o processo de criação de Coppola em Apocalypse Now. Ele afirma isso a respeito de fazer seus filmes: “Fazer um filme para mim não é só escrever o roteiro e segui-lo. Sua vida e experiências pessoais durante as 33 filmagens são elementos fortes.” (APOCALYPSE DE..., 1991). Desde que assumiu o controle do filme, Coppola começou a reescrever o roteiro de Milius e com a ida para as Filipinas o processo de criação de Apocalypse Now esteve em constante movimento. O cineasta George Lucas, que seria o diretor do filme, na primeira tentativa de realizá-lo, ainda durante a Guerra do Vietnã, confirma esta forma peculiar de criar de Coppola: “Francis trabalha interiormente. Gosta de aproveitar os acasos, durante o filme” (APOCALYPSE DE..., 1991).

Esse método de Coppola é o responsável pela construção de cenas que não estavam previstas no roteiro original, mas que marcaram o filme. Algumas dessas escolhas são extremamente arriscadas, como as da montagem do exército de Kurtz. Na narrativa do filme, o Cel. Kurtz cria para si um exército particular que o venera como um deus. O exército é formado tanto por americanos como vietnamitas. Segundo o documentário Apocalypse de um Cineasta, Coppola contratou uma tribo, chamada Ifugão, que vivia nas montanhas nas Filipinas, para compor o exército do Cel. Kurtz. Havia rumores de que os membros da tribo eram caçadores de cabeças. Durante as filmagens, a tribo realizou rituais com músicas e até sacrifícios de animais. Um desses rituais foi presenciado por Coppola e sua mulher e acabou inspirando uma cena do filme. Nas cenas em que Kurtz é assassinado por Willard dentro do seu templo, o seu exército realiza um ritual, do lado de fora do templo, em que um búfalo é sacrificado. As imagens do ritual são muito fortes e a cena é realizada por membros da tribo Ifugão, que representavam o exército de Kurtz.

Por outro lado, esta forma de criar de Coppola com as constantes mudanças no script do filme e as improvisações agravou as dificuldades encontradas durante as gravações. O atraso nas filmagens e mesmo a crise que Coppola enfrentou por não saber exatamente como concluiria o filme são consequências do método adotado na criação de Apocalypse Now. “Um filme longo demais, sem uma linha narrativa que prenda a atenção.” diz George Lucas sobre as filmagens de Apocalypse Now (APOCALYPSE DE..., 1991). Apesar dos inúmeros problemas de toda ordem durante as gravações, ao final de 238 dias de filmagens, Coppola conseguiu enfim terminar o seu ousado filme.

2.3 Fotografia, edição e trilha sonora

Além da escolha das locações do filme e o truncado trabalho sobre o roteiro de Apocalypse Now, que teve sua primeira versão escrita por John Milius em 1969 e foi reescrito por Coppola exaustivamente até o final das filmagens em 1977, outros aspectos da produção são 34 importantes para o resultado final da obra. Como foi visto, a atuação dos atores, com seus improvisos, foi decisiva na construção do filme. Contudo, não menos importante foi o trabalho de fotografia, edição e montagem e do desenho sonoro, todos fundamentais para se chegar à obra como foi entregue ao público. No diário de produção do filme, Notas a Apocalipsis Now – Diario de una filmacion (2002), e no documentário Apocalypse Now (1991) percebe-se que todas essas funções e atuações, fundamentais na produção do filme, passaram pelo crivo de Coppola e receberam influência de seu processo criativo.

O diretor de fotografia do filme foi o italiano que, além de Apocalypse Now, trabalhou posteriormente com Coppola em outros filmes, como O Fundo do Coração (1982), Tucker: um Homem e o seu Sonho (1988) e Histórias de Nova Iorque (1989). Em seu diário, Eleanor (2002) revela que Storaro ficou bem próximo de Coppola durante as gravações, frequentando muitas vezes a casa onde a família Coppola ficou hospedada. Storaro também fala desse bom relacionamento com Coppola e como este acreditou em sua capacidade e forma de trabalhar nessa primeira parceria entre eles: “Eu me senti muito próximo a Francis – como um irmão – em um espaço de tempo muito curto. Quando nós conversamos, ele me fez sentir que respeitava meu julgamento e que me daria a liberdade de me expressar.”7 (DAVIAU; FISHER, 2000, tradução nossa).

O trabalho de Storaro à frente da fotografia de Apocalypse Now foi posteriormente aclamado pela crítica e público e rendeu um dos dois Oscars conquistados pelo filme, o outro foi de som.

A fotografia de Apocalypse Now foi capaz de descrever visualmente os temas e a narrativa a que o filme se propõe. As imagens fortes e antagônicas entre a selva filipina (representando o Vietnã) e os equipamentos bélicos americanos permeiam todo o filme. Com essas imagens, pode-se ver como foram traduzidos os temas desenvolvidos em O Coração das Trevas, como o imperialismo europeu na África do século XIX. Essa fina composição das imagens entre a máquina de guerra e a natureza selvagem representa o choque cultural, levado ao extremo pela guerra. Essa forma de compor a fotografia do filme era intenção de Storaro, como ele mesmo explica:

Nós queríamos mostrar o conflito entre a energia natural e a técnica. Por exemplo, a escuridão, a selva sombria com energia natural comparada à base militar americana,

7 “I felt very close to Francis — like a brother — in a very short time. When we talked, he made me feel he respected my judgement and he would give me the freedom to express myself.” (DAVIAU; FISHER, 2000). 35

onde grandes e poderosos geradores e enormes “luzes de sonda” forneciam a energia. Havia um conflito entre a tecnologia e a natureza, assim como diferentes culturas.8 (DAVIAU; FISHER, 2000, tradução nossa).

Storaro também esclarece como se utilizou, em Apocalypse Now, da cor e da luz para sugerir o conflito, a guerra. “Principalmente, nós tentamos usar cor e luz para criar o humor de conflito de maneiras sutis.”9 (DAVIAU; FISHER, 2000, tradução nossa). Os contrastes nas imagens de Apocalypse Now são recorrentes. Storaro chega a afirmar como a composição desses contrastes importa na narração visual do filme.

A maneira como o fogo vermelho contrastou com a arma azul ou preta em primeiro plano. Ou a maneira com que a cor da arma ficava contra o por do sol. Ou como um soldado americano com um rosto enegrecido foi visto contra a selva verde ou o céu azul – tudo isso ajudou a criar o humor e contar a história.10 (DAVIAU; FISHER, 2000, tradução nossa).

Essa explanação do diretor de fotografia de Apocalypse Now elucida como se deu a tradução intersemiótica de temas propostos pelo O Coração das Trevas para o filme. As escolhas da composição visual das cenas do filme, como o contraste entre cores e os efeitos de luz e sombra, traduzem as descrições da presença imperialista europeia na África selvagem de O Coração das Trevas. Essa tradução não procura, contudo, apenas representar a narrativa conradiana, mas criar uma obra nova.

O crítico de cinema (1999) comenta que um dos efeitos visuais mais marcantes do filme dá-se na cena em que Chef sai do barco e segue em meio à floresta, onde ele acaba por se deparar com um grande tigre e por pouco não é pego por este. Ebert (1999, p. 2, tradução nossa) aponta que na cena “Storaro os mostra como pequenos humanos que se parecem minúsculos aos pés de árvores muito altas, e isto é um momento de Joseph Conrad, mostrando como a natureza nos diminui.”11 (figura 3). O ataque do tigre ao soldado americano também segue esta linha de se contrapor natureza e civilização, um dos temas conradianos traduzidos pelo filme de Coppola. É importante assinalar que, além das escolhas técnicas proposta por Storaro, a fotografia sofreu outras influências, como o atraso das

8 “We wanted to show the conflict between technical and natural energy. For example, the dark, shadowy jungle with natural energy compared to the American military base where big, powerful generators and huge, probing lights, provided the energy. There was a conflict between technology and nature as well as between different cultures.” (DAVIAU; FISHER, 2000). 9 “Mainly, we tried to use color and light to create the mood of conflict in subtle ways.” (DAVIAU; FISHER, 2000). 10 “The way that red fire contrasted to a blue or black gun in the foreground. Or the way the color of a weapon stood against the sunset. Or how an American soldier with a blackened face was seen against the green jungle or blue sky — all of that helped create the mood and tell the story.” (DAVIAU; FISHER, 2000). 11 “Storaro shows them as little human specks at the foot of towering trees, and this is a Joseph Conrad moment, showing how nature dwarfs us.” (EBERT, 1999, p. 2). 36 filmagens. “O visual do dia a dia em desenvolvimento por mais de 15 longos meses trabalhando nas Filipinas. Ele usou a luz em transformação e as estações do ano para estabelecer um fluxo de tempo.”12 (DAVIAU; FISHER, 2000, tradução nossa). Assim, pode-se afirmar que o filme seria diferente, pelo menos em parte, caso tivesse sido gravado nas cinco semanas conforme o planejamento oficial.

Figura 3 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

A fotografia de Apocalypse Now é fruto das escolhas técnicas de Storaro, o longo tempo de permanência nas Filipinas e a orientação do diretor do filme Francis F. Coppola. No documentário Apocalypse de um Cineasta, Storaro aponta para outra característica da fotografia do filme dada por Coppola. Este não queria que Apocalypse Now parecesse um documentário sobre a guerra, mas sim que mostrasse a forma como se dá a imposição da cultura americana. Coppola fala dessa manifestação americana como um show: “Isto não é um documentário sobre o Vietnã. Mas sim um show. O show que os americanos fazem aonde vão.” (APOCALYPSE DE..., 1991). Esse é mais um índice do processo criativo de Coppola em Apocalypse Now: a presença inusitada de elementos da cultura americana ao longo da travessia feita por Willard e seus tripulantes. A cena do show noturno, em meio à selva, para os soldados americanos, com as playmates são o exemplo dessa orientação de Coppola a Storaro. A cena mostra grandes palcos, equipamentos de som, centenas de lâmpadas elétricas, soldados bêbados ao som de rock and roll. A fotografia do filme, construída por Coppola e Storaro, trabalha com a hibridização de signos da cultura americana e signos culturais vietnamitas. A fusão desses signos, na produção de imagens cinematográficas, demonstra

12 “The look of evolved day-by-day over 15 long months working in the Philippines. He used the changing light and seasons to establish a flow of time.” (DAVIAU; FISHER, 2000). 37 visualmente como se deu a tradução intersemiótica das fontes do filme, que será apreciada no terceiro capítulo.

Além da fotografia, o trabalho de edição de imagem e som de Apocalypse Now traz inovações que são fundamentais na compreensão do processo criativo do filme. Nesse processo da montagem destaca-se o montador , vencedor de três Oscars, sendo um por edição de som por Apocalypse Now. Murch trabalhou em muitos filmes com Coppola, como Loucura de Verão (1969), O Poderoso Chefão I e II (1972/1974), A Conversação (1974), dentre outros. Em sua obra Num Piscar de Olhos: A Edição de Filmes sob a Ótica de um Mestre, Murch (2004, p. 13) conta o desafio único da pós-produção para editar e mixar Apocalypse Now:

Apocalipse Now foi, por qualquer critério que se tome – cronograma, orçamento, ambição artística, inovação tecnológica – o equivalente cinematográfico do vapor e do gelo. Considerando apenas o tempo que levou para finalizar o filme (eu editei a imagem durante um ano e passei mais um ano preparando e mixando o som), essa foi a pós-produção mais longa de um filme no qual trabalhei.

Mais uma vez as condições em que foram concebidas as gravações do filme, com todas as escolhas de Coppola, têm consequências diretas no resultado do filme. Murch (2004) explica que esse trabalhoso processo de pós-produção de Apocalypse Now se dá pela enorme quantidade de filme rodado durante as gravações.

Um dos motivos dessa demora foi simplesmente a quantidade de material filmado: 1.250.000 pés, o que significa um pouco mais de 230 horas. O filme pronto tem 2 horas e 25 minutos de duração, portanto, temos aí uma escala de 95 para 1, isto é, 95 minutos “não exibidos” para cada minuto que entrou no produto final. A título de comparação, a média em filmes comerciais é de 20 para 1. (MURCH, 2004, p. 14).

As mais de 230 horas de filme rodado exigiram de Murch e equipe um minucioso trabalho de preparação para encontrar o melhor caminho dentre as inúmeras possibilidades que o material permitia. A crítica e estudiosa de cinema Ana Maria Bahiana, em seu livro Como Ver um Filme (2012), comenta essa árdua tarefa de Murch em Apocalypse Now, diante do complexo material produzido por Coppola durante as gravações:

O que chegou às mãos de Murch foi uma massa caótica de imagens capturadas ao longo dos 16 meses de filmagem, resultado de várias versões do roteiro, muitas brigas no set e todo tipo de problema pessoal, logístico, profissional, financeiro e até médico (Sheen teve um ataque do coração logo após a filmagem dessa sequência de abertura). Foi o paciente trabalho de Murch e sua equipe que devolveu a Coppola a visão inicial de seu projeto e, mais que isso, deu-lhe uma forma. (BAHIANA, 2012, p. 41). 38

Essa grande quantidade de material filmado nas Filipinas é efeito da obsessão de Coppola por seu filme, com o seu constante retrabalho do roteiro, as improvisações, além dos problemas que surgiram ao longo das filmagens. Murch também é o responsável pela montagem de som de Apocalypse Now. Por causa do seu trabalho nessa montagem, ele foi creditado, pela primeira vez no cinema, como sound designer, que se tornou um profissional importante na produção de um filme, como aponta Eduardo Mendes em seu artigo Walter Murch: a Revolução da Trilha Sonora Cinematográfica (2006): “É também em Apocalipse que Murch criou a denominação de sound designer, ou projetista de som. Esse profissional passa a ser o responsável não só pela unidade de produção da trilha sonora, mas, também, por toda a sonoridade de uma obra.” (MENDES, 2006, p. 196).

Desde o início do filme, a sonoridade é uma aliada importante das imagens no desenvolvimento da narrativa de Apocalypse Now. A cena inicial do filme já aponta para esta característica da sonoridade do filme de Coppola. Antes de qualquer imagem na tela, Apocalypse Now abre com uma superfície escura e o som forte e vibrante das hélices de um helicóptero. O primeiro efeito assim é sonoro. Após alguns segundos, a tela escura se transforma em um plano geral com a imagem de uma selva densa. Assim, com Apocalypse Now, Murch desenvolve uma sonoridade que complementa as imagens do filme. A trilha sonora musical do filme, por sua vez, foi composta por e seu filho Francis F. Coppola. Carmine foi um compositor que, além de Apocalypse Now, compôs as trilhas para os filmes: O Corcel Negro (1979), Sangue da Terra (1989), O Poderoso Chefão III (1990), dentre outros. Apocalypse Now abre com a música The End do grupo de rock The Doors e encerra com a mesma música do grupo. Milius (2010) afirma a Coppola que ouvia as músicas do The Doors e que elas também o inspiraram na construção de seu roteiro. Milius e Coppola estudaram na mesma universidade que o cantor Jim Morrison e afirmam tê-lo conhecido. (MILIUS, 2010).

As ações de Coppola desde o momento em que assumiu o filme, em especial durante as gravações, demonstram a sua necessidade de controlar todo o filme. No documentário de Eleanor (1991), o próprio Coppola fala do diretor de cinema como uma das últimas profissões ditatoriais que ainda existem. A criação de uma produtora independente corrobora essa ideia de controle de suas obras, não precisando sujeitá-las à aprovação dos grandes estúdios. Ele procura assim ter total liberdade de criação em Apocalypse Now e vai agir dessa forma durante toda a gravação: alterando o roteiro de John Milius a ponto de se tornar corroteirista, trocando um dos atores (Hervei Ketel por Martin Shenn) protagonistas da história depois de 39 iniciadas as filmagens, participando da composição da trilha sonora, indicando a Storaro, o diretor de fotografia, como deveria ser a fotografia do filme e filmando incessantemente ao longo dos 238 dias de gravação produzindo um material monstruoso para a pós-produção. Mas são justamente essas alterações durante a fabricação de seu filme que revelam o autor. Como assegura Salles (2008, p. 111): “É nas decisões, ou melhor, nos critérios das decisões tomadas que se pode flagrar a presença do autor.”. Nas decisões de Coppola pode-se observar o aproveitamento dos acasos, como no caso da utilização do ritual da tribo Ifugão ao final do filme. Ele age, por vezes, de forma intuitiva não se fixando unicamente no roteiro e no planejamento da obra. Essa sua forma de produzir foi um dos fatores responsáveis pelo atraso do filme e que quase colocou toda a produção em risco. Mas essa sua forma de criar com sua necessidade de se colocar como um ditador, suas decisões arriscadas, aproveitamento dos acasos e improvisações revelam o autor, o artista em ação.

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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DO FILME APOCALYPSE NOW

Como foi visto até aqui, o filme Apocalypse Now é uma obra que se utilizou de muitas outras fontes na sua construção, mantendo com esses textos uma relação intertextual que culmina na produção de uma obra nova. A maior parte das fontes utilizadas no desenvolvimento do filme de Coppola são de natureza literária, tanto literatura ficcional quanto de caráter jornalístico e documental. No entanto, apesar de tais fontes, a obra Apocalypse Now pertence a outro sistema semiótico, que não o da linha escrita, mas o cinematográfico, em que a matéria-prima é a imagem, mais acertadamente, a imagem em movimento.

O cinema como linguagem possui seus próprios códigos que, evidentemente, não são os da literatura. O que deve ser analisado no cinema é a superfície da tela e não a linha escrita, como ensina Flusser (2007). No presente caso, em que se tem um processo de tradução intersemiótica, para que este seja mais bem compreendido, é imprescindível a análise de superfícies do filme de Coppola. Essa microanálise das superfícies do campo fílmico também revela como se dá a construção visual dessa nova obra que surge do processo de tradução. Para tanto, foram selecionadas algumas partes do filme que são marcantes tanto para o desenvolvimento da narrativa do filme quanto pela qualidade visual dessas superfícies.

As partes do filme selecionadas, além da qualidade visual das cenas, possuem uma relação direta com suas fontes utilizadas na construção do filme e que merecem ser analisadas. Ademais, cada uma dessas partes é, de certa forma, como um microcosmo da própria obra completa, como um resumo dos temas do próprio filme. O horror da guerra, a imposição imperialista de uma nação à outra, o choque cultural e suas implicações no seres, em meio a essas forças, aparecem recorrentemente do início ao fim do filme.

Contudo, é importante ressaltar que chegar a essa síntese e a essa sistemática parece não ter sido tarefa simples. O próprio Coppola chegou a dizer que se encontrava perdido em relação aos rumos do filme, além dos inúmeros problemas com a filmagem, com os atores e com as locações, que já foram abordados em outro capítulo. Não é por acaso que, no ano de 2001, foi possível uma nova versão do filme de 1979, intitulado Apocalypse Now Redux. Essa última versão traz episódios inteiros que foram retirados da versão de 1979. Apesar de uma narrativa coesa, o filme, em especial a versão Redux, possui alguns episódios que, embora ilustrem os temas que o filme quer desenvolver, não necessariamente importam para o desenlace da 41 narrativa. Também nisso é possível traçar um paralelo com O Coração das Trevas, de Conrad, com suas impressões para além do enredo.

A partir dos documentos de processo (analisados em especial no segundo capítulo.), pode-se observar como aconteceu esse processo de criação do filme. Essas observações e o conhecimento parcial das escolhas do cineasta, durante a produção cinematográfica, possibilitam uma análise mais profunda e atenta de como se deu a tradução das fontes. Assim, além de apontar o que das fontes foi traduzido, é possível investigar como o artista recriou o conteúdo das mesmas. Tem-se, portanto, uma análise do filme sob a óptica da sua criação, e do artista por trás dela, e não apenas de uma visão como a da crítica cinematográfica convencional. Como ensina Salles (2008, p. 108): “O estudo dos registros do processo revela- nos um universo sob o ponto de vista do artista. Observamos como ele se relaciona com o mundo e como constrói a sua obra no âmbito de seu projeto ético e estético.”.

3.1 O Capitão Willard num quarto de hotel em Saigon

Coppola, desde o início de Apocalypse Now, revela o interesse profundo pela construção visual e simbólica de cada cena. O filme abre com a imagem de um plano fixo de uma selva e, lentamente, o som vibrante de helicópteros seguido de suas respectivas imagens invadem esse plano fixo, como que dançando diante da câmera (figura 4). A trilha sonora que acompanha essa exposição é a música The End, do grupo The Doors. Logo, a selva começa a ser bombardeada (figura 5), algo que foi uma constante durante a Guerra do Vietnã, quando o produto napalm era utilizado para devastar a mata e o inimigo. Apesar do espetáculo da destruição visual, a câmera permanece quase imóvel e tem-se um longo plano em sequência sugerindo ao expectador a contemplação da cena. Após essas cenas iniciais, lentamente se dá a simbiose entre a selva se destruindo e o rosto, de cabeça para baixo, do personagem do ator Martin Sheen, o Capitão Benjamin L. Willard, um oficial do exército americano, que se encontra deitado em um quarto de hotel, em Saigon (figura 6). Sua face invertida simboliza o transtorno pelo qual passa o personagem e que a sequência das cenas irá desenvolver. Com a entrada da imagem de Willard, compreende-se, então, que toda essa primeira exposição se dá na sua imaginação. A experiência destrutiva da guerra o acompanhará, onde quer que ele se encontre.

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Figura 4 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Figura 5 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

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Figura 6 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Nessa exposição inicial, já se tem em síntese o que será desenvolvido no filme, das chagas que as guerras encerram nos homens, e da impossibilidade de esses homens, expostos à plena barbárie e à violência de uma imposição cultural, e no caso uma imposição bélica, retornarem à civilização como pessoas normais. Na cena do quarto, em Saigon, compreende-se que o Capitão Willard, que é apresentado como um herói de guerra, está de volta ao Vietnã, pois, como se verá, está impossibilitado para sempre de uma vida normal fora da guerra. Conhecem-se os pensamentos de Willard pelo recurso da narração em off, solução que será utilizada durante todo o filme para revelar o que ele está pensando e auxiliar no desenvolvimento da narrativa. Contudo, o mais interessante é como Coppola, dispondo dos meios cinematográficos, demonstra isso visualmente.

Assim, as imagens decupadas de dentro do quarto de hotel, em Saigon, revelam um Willard em um ambiente asfixiante, no qual o personagem está pensativo, angustiado, ocioso e perturbado. Essas cenas do quarto alternam imagens estáticas do personagem, mostrando-o sentado, deitado, fitando o ventilador, olhando pelas frestas da persiana o movimento da cidade (figura 7) e mesmo imagens como pinturas de natureza morta (figura 8). Esse conjunto de cenas é feito com a câmera passeando lentamente pelo quarto e sem nenhuma trilha sonora. Por outro lado, no mesmo recinto, por meio de imagens fortes, vê-se um Willard demente e transtornado, como lutando sozinho, chorando e até golpeando um espelho, tudo ao som de guitarras estridentes (figuras 9, 10 e 11). Cabe ressaltar que, nessa cena, o ator Martin Sheen estava mesmo transtornado e golpeou violentamente o espelho e acabou se ferindo, enquanto 44 a câmera de Coppola registrava tudo13. Portanto, o que se vê nessas cenas são imagens que vão além da representação do ator Martin Sheen como Willard.

Figura 7 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Figura 8 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

13 No documentário Apocalypse de um Cineasta (1991), de Eleanor Coppola, pode-se ver como Martin Sheen ficou transtornado durante as filmagens. Ele chegou inclusive a ter um infarto, o que atrasou mais ainda o filme. 45

Figura 9 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Figura 10 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

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Figura 11 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Essa sequência do filme tem forte inspiração na obra Os Despachos do Front (2008) do jornalista Michael Herr, que foi o responsável pela construção do monólogo do personagem de Martin Sheen no filme. O primeiro capítulo dos Despachos, intitulado Inspirando, inicia com o jornalista falando de forma íntima em Saigon. A primeira aparição de Willard, em Apocalypse Now, também se dá justamente num quarto em Saigon. “Tinha uma mapa do Vietnã na parede do meu apartamento em Saigon e algumas noites, voltando tarde para a cidade, eu deitava na minha cama e olhava para ele cansado demais para fazer qualquer coisa além de tirar minhas botas.” (HERR, 2005, p. 15).

Também Willard no filme aparece deitado, em seu quarto em Saigon, ora pensativo, ora atormentado por suas experiências na guerra. A propósito, essa é mais uma diferença entre Willard e Marlow, de O Coração das Trevas, enquanto este tem na sua incursão pela selva africana sua iniciação com o lado sombrio, irracional do qual é capaz um ser humano, aquele, por sua vez, já inicia sua jornada conhecendo o seu lado sombrio. Marlow se interessa pela figura de Kurtz, sente-se atraído por ele, mas jamais em toda a novela pensa em assassiná-lo. Diferente dele, Willard tem justamente a missão de assassinar o Cel. Walter Kurtz, é essa missão que ele aguarda ansiosamente em Saigon.

As imagens com Willard alucinado fazendo poses estranhas diante do espelho (figuras 9 e 10) e toda sua performance enquanto aguarda sua nova missão são a tradução cinematográfica de outro trecho dos Despachos do Front, na qual Herr (2005, p. 32) relata mais uma de suas experiências no Vietnã: “Eu a usara uma vez antes, na manhã anterior em Saigon, trazendo-a 47 de volta do mercado negro para o hotel, mas vestindo todo em frente ao espelho e fazendo caras e gestos que nunca farei de novo. E adorando.”

A tradutora do livro de Michael Herr, Ana Maria Bahiana, atesta em sua obra Como Ver um Filme (2012) como essa sequência de Apocalypse Now evoca as páginas de Herr nos Despachos do Front.

É uma tradução visual das páginas de abertura do livro que foi uma das inspirações para Coppola, Despachos do Front, do correspondente de guerra Michael Herr, um fluxo de consciência febril, colagem de memórias terríveis e líricas, água, fogo, selva, napalm, lama, excremento, sangue, o “tat tat tat” dos helicópteros, o umf surdo das explosões, maconha, anfetamina, ópio. Willard/Sheen bebe e delira, delira e cambaleia, bebe e recorda, bebe e tenta esquecer, flutua no limite da inconsciência, corta-se ao dar um soco no espelho e finalmente vai até a janela. “Saigon! Merda! Ainda estou em Saigon” é tudo o que ele diz, levantando, de relance, as réguas da persiana. (BAHIANA, 2012, p. 42).

Na figura 11, o corpo do ator Martin Sheen está perfeitamente enquadrado e emoldurado, de um lado, por um lençol branco desarrumado e manchado de sangue, contrastando com o outro lado que está na sombra. A cena construída fotograficamente dá força ao drama desse soldado que está entre a luz e a escuridão. Além disso, a câmera percorre o quarto revelando a foto de uma mulher – a esposa que Willard deixou na América – um revólver sob o travesseiro, bebidas e documentos. Enfim, objetos que se relacionam com o universo do personagem.

O ritmo das imagens, da atuação de Martin Sheen e da sonoridade alternam-se drasticamente numa mesma sequência de tomadas e no mesmo local. Essa alternância no ritmo da filmagem e das imagens na superfície da tela dá conta da ambiguidade do personagem e da ação destruidora da guerra no ambiente e nos homens, tema, como já foi dito, recorrente no filme. Os quadros que compõem toda essa cena no quarto são muito ricos em detalhes e informações visuais a respeito do Cap. Willard, que é também o narrador do filme. Nessas imagens tem-se a descrição visual do personagem, revelando seu exterior físico, um pouco da sua história de vida e até o seu estado de espírito atual. Tudo faz referência e memória às “trevas” da guerra naquele homem que não pode mais ter uma vida junto ao “mundo civilizado”. “Toda hora acho que vou acordar de volta na selva”, diz Willard, pela técnica da narração em off. O clímax cinematográfico dessa primeira parte do filme é atingido pelo inteligente trabalho de montagem em que o som das hélices de um helicóptero de guerra se funde com a imagem de um ventilador de teto e a face de Willard (figura 12). A montagem confere à cena, como em outras partes do filme, imagens quase que surrealistas. 48

Essa primeira exposição do filme, que funciona como um prólogo da história que será contada em Apocalypse Now, mantém uma relação de tradução entre hipotexto e hipertexto com o romance O Coração das Trevas, de Conrad. Aparentemente, romance e filme estão bem distantes tanto no tempo quanto no espaço e mesmo o personagem-narrador possui grandes diferenças, como se averiguou no capítulo anterior. Contudo, ideias centrais e temáticas desenvolvidas por Conrad em seu preâmbulo são traduzidas e aparecem no filme.

Figura 12 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Assim sendo, ainda no início de O Coração das Trevas, o personagem-narrador Charlie Marlow, que, como foi visto, tem no Capitão Willard do filme o seu correspondente, está a bordo de uma embarcação no rio Tâmisa, em Londres, mais alta capital da civilização moderna do séc. XIX. De lá, passa a relatar ao resto da tripulação a sua aventura no Congo, onde trabalhou para uma companhia de exploração de marfim. História essa que serve como pano de fundo à narrativa do romance.

No início do romance o narrador Charlie Marlow, ainda a bordo de uma embarcação no rio Tâmisa, menciona que as trevas também estão ali: “E este também, disse Marlow repentinamente, tem sido um dos lugares sombrios da terra.” (CONRAD, 2006a, p. 25). Essa citação, dentre outras possibilidades, significa também que Conrad foge de pronto ao maniqueísmo de que o mundo branco europeu, que tem na Londres industrial e urbana do séc. XIX seu grande símbolo, representa a civilização moderna ante um mundo cultural bárbaro e inferior, no caso, representado pela selva africana. Não é, pois, apenas no Congo africano e selva adentro que se encontram as trevas, mas elas também estão ali: em Londres e, 49 consequentemente, no mundo europeu colonizador, dito civilizado. Elas estão na ação dominadora do homem “civilizado” em sua ação imperialista sobre outras nações, na busca por poder e por riquezas.

Esta ideia, de que as trevas estão também no mundo “civilizado”, contida no começo do romance de Conrad é traduzida também para o início de Apocalypse Now, com Willard no quarto de hotel, em Saigon. Assim, o oficial e herói norte-americano, num quarto de hotel em Na Thang, região próspera de Saigon, revela um comportamento paranoico e tribal. As “trevas” não pertencem, pois, unicamente à selva. Outro evento traduzido, para o início do filme, é o fato de o marinheiro Charlie Marlow ser descrito por Conrad como uma divindade pagã: “Marlow sentava-se à popa de pernas cruzadas, recostando-se no mastro de mezena. Ele tinhas as faces chupadas, uma tez amarela, a coluna bem ereta, um aspecto ascético, e os braços caídos com as palmas das mãos viradas para fora davam-lhe a aparência de um totem.” (CONRAD, 2006a, p. 24).

Essa descrição o relaciona com outro personagem, o Sr. Kurtz, comerciante de marfim da companhia belga, a mesma que contratou Charlie Marlow. Ao subir o rio, é Marlow quem encontra Kurtz, que é venerado como uma divindade pagã, em meio à selva no interior do Congo.

Após as primeiras cenas de Apocalypse Now, descritas no início deste capítulo, a imagem do rosto do Cap. Willard se funde, também, num mesmo frame, à figura de uma divindade pagã (figura 13). Essa mesma divindade será retomada ao final do filme e associada visualmente à face do Cel. Kurtz (figura 14) que também é venerado como um deus por um grupo formado de nativos vietnamitas e soldados americanos.

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Figura 13 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Figura 14 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

A rápida aparição da imagem do ídolo de pedra, no preâmbulo de Apocalypse Now, e mais tarde, ao final do filme, indica essa conexão entre os personagens de Willard e Kurtz. A ligação entre os personagens é dada pela imagem, no caso, do ídolo de pedra. Tem-se, portanto, uma ideia da narrativa de Conrad, que é desenvolvida e transmitida visualmente pela superfície da tela, sem a necessidade da explanação linear das palavras.

Verifica-se um exemplo de tradução intersemiótica de grande qualidade e significado. O filme de Coppola consegue, assim, traduzir da narrativa de Conrad a relação entre Charlie Marlow e Kurtz, descrito como um totem e que remete a Kurtz, que é venerado no coração da selva como uma divindade. Aqui a ideia de divindade/totem é compartilhada por ambos os personagens, Marlow e Kurtz. Em Apocalypse Now, por sua vez, isso se transforma na 51 imagem de Willard fundindo-se à de um ídolo de pedra pagão, ídolo este que, ao final do filme, aparece novamente num mesmo plano com a imagem do Cel. Kurtz. Importa observar que Coppola aproveita na sua tradução do romance de Conrad não apenas a estrutura narrativa, mas também, como no caso descrito acima, traduz para o cinema conteúdo e forma, significado e significante de signos do romance.

3.2 O Coronel Kilgore e o ataque à aldeia vietnamita

Outra importante parte de Apocalypse Now e que se tornou uma das cenas mais fortes e marcantes dos filmes de guerra produzidos é a do ataque realizado a uma aldeia vietnamita pela frota de helicópteros norte-americanos. A frota é conhecida no longa-metragem como a Primeira Divisão da Nona Cavalaria do Ar, uma referência direta aos westerns, filmes que exaltam os típicos heróis americanos, os cowboys. A Cavalaria é liderada pelo Cel. Kilgore, vivido pelo ator Robert Duvall, que se revela um personagem bastante simbólico e alegórico, mas que não encontra paralelo no romance O Coração das Trevas. Apesar da utilização da estrutura narrativa desenvolvida por Conrad, o filme Apocalypse Now vai além da mera representação do romance em outra mídia. Ao filme não falta a liberdade de reinventar o romance e se relacionar com outros textos, o que configura uma obra nova que dialoga com esses textos fontes e ao mesmo tempo é inovadora.

Nesse episódio do filme, o Capitão Willard já está ciente de sua missão, dada pelo alto- escalão do exército, de encontrar o Cel. Kurtz. O coronel acusado de desertar refugiou-se em meio à floresta, liderando uma tropa formada de vietnamitas e soldados americanos, momento em que faz a sua própria guerra e é capaz das maiores atrocidades. A missão de Willard e sua pequena tripulação é encontrar Kurtz e eliminá-lo.

Esse trecho do filme, com a aparição do Cel. Kilgore, inicia-se aos 23 minutos com a chegada de Willard e sua tripulação ao acampamento da Cavalaria do Ar. Para alcançarem a altura do rio desejada, Willard e seus homens necessitam da ajuda do Cel. Kilgore, pois se trata de um território perigoso e que recebe constante ataque dos vietcongues. O roteirista de Apocalypse Now John Milius, em entrevista ao diretor e corroteirista Francis Ford Coppola14, relata que Kilgore, além de outras influências, é também uma alegoria do ciclope, da mitologia grega. No mito, Ulysses e seus tripulantes ficam presos na caverna do ciclope. Ulysses por meio de

14 COPPOLA, Francis Ford. An Interview with John Milius. In: Apocalypse Now: Full Disclosure Edition. 2010. Blu-ray. 50 min. 52 uma artimanha engana o ciclope e consegue fugir da caverna e segue adiante. Da mesma forma, Willard e seus tripulantes precisam de uma artimanha para que o Cel. Kilgore os escolte até o ponto do rio a partir de onde seguirão adiante com sua missão. A ironia da história é que Kilgore, também um signo do cowboy americano, somente se propõe a ajudar Willard por causa do surfing. Dentre os tripulantes de Willard está o famoso surfista californiano Lance Johnson, vivido pelo ator Sam Bottoms, e o ponto do rio onde eles querem chegar é precisamente um lugar de excelentes ondas.

O Cel. Kilgore é o típico herói americano com seu caminhar imponente, chapéu de cowboy, óculos de piloto, lenço em volta do pescoço (figura 15). Como aponta Wood (1979, p. 17-18, tradução nossa), ―Ele usa um chapéu de cavalaria fora de moda, como se ele estivesse no velho oeste, com um traço de tafetá amarelo”15. Ele domina toda a cena dando ordens, lançando cartas de baralho, que nomeia de “cartas da morte”, sobre os vietcongues mortos, para que os inimigos saibam que foi ele o responsável por aquelas baixas. Em meio ao conflito com bombas e tiros explodindo por todos os lados é o único que anda em pé dando ordens, posando para fotos como uma celebridade. Na figura 16 o enquadramento da cena revela uma batalha em andamento com explosões, soldados caídos e helicópteros em meio à fumaça. Todos esses elementos que compõem a cena são menores e estão em posição inferior à imagem de Kilgore, que não se intimida nem diante da explosão de um morteiro. O próprio Willard reconhece nele esse heroísmo americano: “Você se sente seguro perto dele”, “É um desses caras que tinha uma aura estranha ao seu redor” e ainda “Você sabia que ele não sofreria nenhum arranhão”, exatamente como os cowboys americanos interpretados, por exemplo, pelo ator John Wayne. Num dado momento de sua caminhada imponente, ele chega a brigar com um soldado vietnamita, que apoia os americanos, que se nega a dar água limpa a um vietcongue ferido, mas logo esquece o moribundo ao saber da presença de Lance B. Johnson. Kilgore é também signo da própria ação imperialista americana, maquiada de uma incursão messiânica e civilizatória.

15 “He wears an old-fashionable cavalry hat, as if he were in a western, and dashing yellow foulard.” (WOOD, 1979, p. 17-18). 53

Figura 15 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Figura 16 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

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Em uma entrevista16, o ator Robert Duvall, que interpretou o Cel. Kigore no filme, fala que esse era um personagem maior do que ele. O personagem foi tão bem elaborado que algumas de suas frases se tornaram célebres. O ator, que já havia trabalhado com Coppola nos filmes Poderoso Chefão I e II, em 1972 e 1974 respectivamente, conta que chegou a discutir com o diretor sobre uma cena que foi cortada na versão do filme de 1979. O Cel. Kilgore aparecia salvando uma mãe e seu filho em um gesto humanitário. Essa cena reforçava a ambiguidade do personagem e o tornava ainda mais surpreendente. Provavelmente a cena foi cortada pela preocupação de que o personagem de Duvall tornasse menor o encontro de Willard com Kurtz. De fato, todo o episódio com o Cel. Kilgore encerra em si, mais uma vez, todos os temas do filme: a ação imperialista, o choque cultural, a insanidade e o despropósito da guerra.

Então, por causa do surf, uma obsessão do Cel. Kilgore, ele resolve atacar uma aldeia vietnamita e ajudar Willard e sua tripulação a seguir caminho. Kilgore se anima em escoltar Willard até a boca do rio Nung ao saber que, próximo daquele local, haveria ondas de até seis pés e poderia surfar com Lance. Coppola com esse complexo personagem demonstra a farsa do heroísmo e do messianismo americano na guerra do Vietnã. A máquina de guerra norte- americana com todo tipo de aparato será utilizada ali pelo capricho de um coronel. Ao ser interpelado por um soldado dizendo que aquele local não seria bom para surfar, pois estava cheio de vietcongues, Kilgore esbraveja: “Vietcongues não surfam!”.

A partir disso, toda a Primeira Divisão da Nona Cavalaria do Ar se prepara para destruir uma aldeia e, enfim, escoltar o Cap. Willard e seus homens. A cena é muito bem construída com longos planos com o voo dos helicópteros (figura 17), signos da destruição. Ao se aproximar da aldeia, Kilgore manda ligar o alto-falante instalado em sua aeronave com a música A Cavalgada das Valquírias, da ópera As Valquírias de 1854, de Richard Wagner. Os “garotos adoram”, diz Kilgore, explicando que usa Wagner para espantar o inferno dos soldados. Coppola, mais uma vez, questiona a intervenção norte-americana e os próprios filmes clássicos hollywoodianos repletos de ação ao som de orquestras grandiloquentes. O cinema e o modo de se produzi-lo é mais uma vez tema do filme. Em contraponto, as imagens panorâmicas, com os assustadores helicópteros rasgando os céus, ao som das Valquírias, mostram a aldeia que estará sob ataque. Nesse momento, a câmera desliza lentamente revelando casas simples e camponeses trabalhando sem nenhuma trilha sonora. A cena revela

16 Entrevista com Robert Duvall. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2014. 55 um ambiente inofensivo. Na sequência, vê-se um longo pátio com um salão no final de onde saem muitas crianças (figura 18). Corta-se para os helicópteros novamente, quando iniciam o bombardeio (figura 19).

Figura 17 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

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Figuras 18 e 19 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Após o bombardeio e muitas cenas violentas de guerra, como a de mulheres levando tiros, uma granada explodindo dentro de um helicóptero, a Cavalaria do Ar pousa no local. As cenas que se seguem são repletas de ironia com o ciclope americano, Kilgore, ordenando aos soldados para pegarem as pranchas, transportadas nos helicópteros, e mandando que eles surfem sob o ataque de morteiros advindos da selva. A insanidade da situação tem seu clímax quando diante da recusa de Lance em surfar, devido aos tiros incessantes, Kilgore aciona aviões bombardeiros para liquidar os vietcongues na selva. Novamente, como a primeira imagem do filme, a floresta é atingida violentamente por bombas de napalm. Após isso, pela primeira vez parece que Kilgore vai ter um lapso de consciência. As imagens vão sugerir um momento mais intimista com o Kilgore mostrado agachado, falando com serenidade, e é possível ver seus olhos despidos dos óculos escuros. A câmera vai se aproximando dele trazendo intimidade para o expectador. Contudo, o monólogo que ele está a proferir não 57 passa, mais uma vez, de uma sandice. É nesse pequeno monólogo que vem uma das frases mais emblemáticas do filme e que se tornou cult: “Eu adoro o cheiro de napalm pela manhã.”

Esse episódio do filme não encontra paralelo com a narrativa de O Coração das Trevas. Porém, a narrativa conradiana, como já foi apontado, também se utiliza de episódios com personagens e situações que não têm uma relação direta com a narrativa principal. Além disso, Conrad também se utiliza de personagens e contos da mitologia na construção de seu romance. A única ligação do enredo principal de Apocalypse Now com o episódio do Cel. Kilgore e sua cavalaria aérea, que dura cerca de 30 minutos de filme, é a necessidade de Willard alcançar um determinado ponto do Rio Nung. Isso vem corroborar a ideia de pequenos filmes dentro do próprio filme, o cinema como metalinguagem. Não é por acaso que também, nesse trecho do filme, o próprio Coppola aparece filmando a Guerra do Vietnã e pedindo inclusive para os soldados ignorarem a câmera, para tornar a cena, supostamente, mais realista (figura 20). Tem-se, então, o diretor, corroteirista e produtor de Apocalypse Now, Francis Ford Coppola, atuando como cinegrafista, dentro de seu próprio filme, e documentando a Guerra do Vietnã a partir do filme. Assim, inverte-se a ordem do real e da encenação. Tal aparição de Coppola como cinegrafista o aproxima muito da política dos autores proposta pelos cineastas e críticos dos Cahiers du Cinema. A própria imagem do diretor de um filme dentro do filme era vista por esses cineastas e críticos como uma forma de assinar a película, reafirmando a posição do cineasta como um autor, como se tem nas outras formas de arte.

Figura 20 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001). 58

O episódio serve bem para construir e/ou desconstruir o mito do herói americano, propagado ostensivamente pelo cinema hollywoodiano clássico. Reforça, mais uma vez, os temas que o filme propõe, além de ser uma oportunidade de refletir sobre a linguagem cinematográfica. Em sua entrevista com Milius (2010), Coppola fala de sua ingenuidade ao imaginar que as filmagens de Apocalypse Now seriam simples. A cena dos helicópteros17, em particular, foi filmada com uma dificuldade extra, pois em várias tomadas eles não voavam suficientemente sincronizados para serem filmados pela câmera. A construção da obra cinematográfica e seu resultado são, além do roteiro e das diversas fontes utilizadas, decorrentes do processo e das condições da filmagem a que estão sujeitos o diretor e toda a sua equipe. Ao menos é assim no filme Apocalypse Now.

3.3 As sereias da Guerra do Vietnã

Após Willard e seus tripulantes terem alcançado o rio que os levará ao encontro de Kurtz, eles vão se deparar com situações pelo caminho que retratam o absurdo da presença militar americana. Também durante o caminho de subida do rio, Willard vai lendo e refletindo o dossiê sobre o Cel. Walter Kurtz. As reflexões sobre o dossiê, somado ao que Willard vai presenciando no caminho até o final da sua jornada, fazem com que ele, assim como Kurtz, passe a questionar a guerra e sua condução. Também em O Coração das Trevas, Charlie Marlow, ao subir o rio continente adentro, toma conhecimento de como se dá a exploração do território africano por parte dos europeus e, pouco a pouco, vai se sentindo atraído pela figura de Kurtz e compreendendo a sua forma de atuação. A subida do rio funciona com um caminho iniciático para os personagens narradores Marlow/Willard, que após sua travessia nunca mais serão os mesmos. As muitas cenas em Apocalypse Now do barco trafegando pelo rio revelam episódios e personagens pitorescos, dão ao filme um caráter de road movie, no qual a estrada é o rio.

Uma das sequências mais inusitadas que surge ao longo do caminho se dá com a presença das playmates no meio da selva. A cena abre com o barco do Cap. Willard navegando à noite. A escuridão envolve o barco, quando os tripulantes percebem centenas de luzes brilhando. Um dos tripulantes sorri e diz: “Que visão estranha no meio dessa merda” (figura 21). O local se revela mais um posto do exército americano. No local, Willard e seus companheiros notam motos dos mais diversos tipos e ficam sabendo que está para acontecer um show. Em meio à

17 Os helicópteros utilizados nas filmagens faziam parte do exército das Filipinas. 59 selva repleta de inimigos, do outro lado do mundo, os americanos vão realizar um grande evento com as playmates, as garotas da revista Playboy. “Querem assentos para o show?” pergunta tranquilamente um soldado ao Cap. Willard e seus companheiros.

Figura 21 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Na próxima cena aparece um palco enorme repleto de soldados na plateia, uns segurando cartazes, outros com bebidas, todos entusiasmados aguardando a grande atração da noite (figura 22). Nada menos do que um helicóptero surge vindo dos céus trazendo as musas da Playboy para delírio do público (figura 23). O show começa com as garotas em trajes sensuais rebolando e seduzindo os soldados americanos. Millius (2010) em sua entrevista a Francis Coppola explica que a ideia de colocar as playmates foi assim como a sequência com Kilgore, o ciclope americano, tirada da Odisseia (2011) de Homero. As ninfas da revista americana vindas do céu e dançando para os soldados seriam a atualização do mito das sereias. No mito elas seriam mulheres de uma beleza única que da cintura para baixo são peixes, elas seriam capazes de prever o futuro. Os navegantes que ouviam o seu canto eram seduzidos por elas e acabavam por naufragar e morrer. Na Odisseia o herói Odisseu coloca cera no ouvido de seus tripulantes e, como tinha sido aconselhado a respeito delas, para resistir ao seu canto sedutor, pede para ser amarrado no mastro do seu navio. Milius chega a afirmar a Coppola (2010) que na construção do seu roteiro combinou O Coração das Trevas e a Odisseia.

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Figura 22 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Figura 23 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

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Numa das sequências da cena tem-se dois soldados americanos carregando a playmate do ano como se fosse uma rainha e, ao fundo, vê-se a plateia alucinada com a atração (figura 24). A cena é extremamente irônica e trágica. Afinal, dois soldados, em situação de guerra, carregando uma mulher em traje, curto e azul, de pistoleira do velho oeste, e um bando de homens alucinados babando diante de algo que não vão possuir, não passa de ilusão de liberdade, retorno ao lar e uma vida normal, que não pode ser mais alcançada. Esses homens têm de um lado a própria nação que os colocou naquela situação, ofertando-lhes entretenimento com show, bebidas, cigarros, revistas e até entorpecentes. De outro lado, está Charlie, como chamavam os vietcongues, à espreita, de tocaia, esperando a melhor oportunidade para atacar.

Figura 24 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Ao final da sequência, os soldados estimulados resolvem invadir o palco e se apossar das sereias (figura 25). Contudo, elas são retiradas dali no mesmo helicóptero. Alguns soldados ainda tentam a todo custo ir com elas, dependurados na aeronave. A música vai diminuindo, o show acabou e os soldados continuam ali no meio da selva. Tudo financiado com o imposto dos cidadãos americanos. A câmera, então, foca em close-up no rosto do Cap. Willard, que acompanhou todo o evento. Pela técnica do voiceover conhecem-se mais uma vez os seus pensamentos, ele parece ser o único naquele lugar capaz de refletir com lucidez. “Os vietcongues não se divertem muito. Eles se escondiam fundo demais ou corriam depressa demais. A ideia deles de descanso era arroz frio e carne de rato. Eles só tinham duas formas de voltar para casa, a morte ou a vitória.” (APOCALYPSE NOW, 1979).

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Figura 25 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Herr (2005), que também foi o responsável pelo monólogo de Willard, conta que muitos militares sabiam que, muito antes da guerra terminar, o Vietnã não podia ser vencido e a única coisa que se podia fazer era destruí-lo. Ao final da sequência, mostra o outro dia após o show com o palco vazio e sendo limpo por alguns soldados. As reflexões de Willard continuam agora a respeito do Cel. Walter Kurtz e apontam mais uma crítica à forma como a guerra vem sendo conduzida. Willard assim se aproxima cada vez mais de Kurtz e de suas motivações que conduziram a sua revolta contra todos, assumindo seus instintos e se entregando totalmente às trevas. “Não é de se estranhar que Kurtz tenha contestado o comando. A guerra estava sendo comandada por um bando de palhaços de 4 estrelas, que iam acabar entregando o circo.” (APOCALYPSE NOW, 1979).

Essa sequência do filme é marcada pela presença de elementos da cultura pop americana presentes na guerra e também pela transposição do mito das sereias para a Guerra do Vietnã, como explicou Milius. Esse episódio não encontra paralelo direto com O Coração das Trevas, de Conrad. Dos Despachos do Front ele se aproxima não de um episódio em especial, mas das descrições que o jornalista com seu estilo despojado retrata a presença americana na guerra.

Nessa sequência também é possível encontrar visualmente uma das orientações mais interessantes de Coppola a seu diretor de fotografia Storaro, a de que eles não estavam filmando como se fosse um documentário sobre a Guerra do Vietnã, “mas sim um show. O show que os americanos fazem aonde vão.” (APOCALYPSE DE..., 1991). Por isso a presença inusitada de muita luz, música, palcos decorados, motos arrojadas, mulheres seminuas em trajes curtos e brilhantes, gritos e até um helicóptero extravagante com o logo da 63

Playboy. Ainda no documentário de Eleanor (1991), Coppola aparece falando, por exemplo, que a ideia de colocar Richard Wagner durante o ataque da Cavalaria do Ar faz parte da ópera, da “fantasia primordial” que os americanos têm de si mesmo, de sua presença no mundo. Faz parte da ilusão do Império. Essa ideia de show à maneira dos americanos é mais um índice do processo criativo de Coppola em Apocalypse Now, que pode ser verificado em diversos momentos do filme.

3.4 Apocalipse de um personagem: Cel. Walter Kurtz

O grande personagem do romance de Conrad, O Coração das Trevas, é Kurtz. Nele se encerram todos os temas do romance e toda a busca da narrativa com a subida do personagem narrador Charlie Marlow. Em Apocalypse Now é também no Cel. Walter Kurtz, interpretado por Marlon Brando, que se tem a síntese das concepções e ideias desenvolvidas pelo filme. No trecho que passa a ser estudado pretende-se analisar como o personagem Kurtz do romance O Coração das Trevas foi traduzido para o filme Apocalypse Now. Mais do que isso, a intenção é compreender o que aproxima ambos os personagens, como também o que os distancia no processo de tradução.

Assim, por sua vez, o Cel. Kurtz é o anti-herói do filme Apocalypse Now (1979), do cineasta Francis Ford Coppola. E o Kurtz, marinheiro e comerciante, é o que aparece originalmente no romance O Coração das Trevas (1902), do escritor Joseph Conrad. Contudo, o Cel. Kurtz de Coppola não é simplesmente uma adaptação literal do Kurtz do romance de Conrad. É antes um personagem novo, em transformação, deslocado para outro contexto, da África colonizada para a Guerra do Vietnã, e para outro sistema semiótico, da literatura para o cinema.

Na novela, Conrad procura com sua narrativa não apenas contar uma história, mas criar impressões. Para isso, utiliza-se de um narrador, Charlie Marlow, que, no tempo presente do romance, passa a relatar a outros marinheiros suas impressões e lembranças de algo que vivenciou no passado. Muitas dessas lembranças são inconclusivas, muitos lugares e personagens aparecem como que saídos de uma névoa e se vão da mesma forma, não aludindo obviamente ao desenvolvimento da história. Além disso, o Marlow, narrador do tempo presente do romance, muitas vezes se confunde com o Marlow do tempo passado, da história que está sendo contada. O leitor se depara assim com um enredo que se desenvolve repleto de impressões, que não o levam apenas a seguir a história, mas que, aguçando a sua imaginação e os seus sentidos, induzem a uma experiência sensível. 64

É em meio a essas lembranças do narrador, em uma atmosfera de impressões e altamente sugestiva, que se apresenta o Kurtz do romance. Apenas depois da metade da novela é que ele aparece de fato. Antes disso, ele é apresentado somente por meio de frases incompletas, evasivas e, mais uma vez, impressões de outros personagens. As percepções sobre Kurtz demonstram a ambivalência do personagem. O personagem Russo, seu assistente, vê nele um homem iluminado e sensível. Os funcionários da companhia belga, por sua vez, não gostam dele, e alguns acham que ele deveria ser enforcado. Ao final da obra, já de volta à Inglaterra, o narrador, Marlow, encontra-se com a mulher de Kurtz. Para ela, este é visto como um homem profundamente gentil e virtuoso.

Quando Marlow chega com sua tripulação ao posto comandado por Kurtz, toda uma imagem de selvageria é apresentada. Em volta da cabana de Kurtz, por exemplo, há inúmeras cabeças humanas espetadas. Ao mesmo tempo, Kurtz aparece como um homem idolatrado por todos no local. É interessante que, de todos os personagens brancos apresentados no livro, ele é o que trata os negros africanos com mais respeito. Também é notório que os únicos personagens de todo o romance que possuem nome são Charlie Marlow e o próprio Kurtz. Apesar de atroz, selvagem e tribal, ele tem nome, sendo, portanto, mais humano que os outros personagens. Ele fala tanto pela língua civilizada, quanto pela língua dos nativos. Conrad cria em volta desse homem, imerso no coração da selva, uma atmosfera de profundo mistério. Cria um herói que, apesar de imerso em trevas, tem em si certa consciência. O próprio Charlie Marlow, narrador pelo qual se conhece toda a história, e que conhece todos os crimes de Kurtz, mostra-se compassivo dele e se coloca como defensor de Kurtz e de sua reputação. Na verdade, Marlow, de certa forma, admira Kurtz e se sente atraído pela figura dele, mesmo antes de encontrá-lo.

O autor desenvolve, por meio das impressões, das sensações e por toda a narrativa do romance, este homem duplo que é Kurtz, mas não como uma polarização, uma dicotomia. A escolha clara por um narrador que relata antigas lembranças, as muitas cenas do livro e personagens quase que oníricos e deslocados da história criam esse herói tão complexo e misterioso. Não é possível saber a exata verdade sobre Kurtz e o que, de fato, aconteceu lá no Coração das Trevas. O leitor é envolvido num ambiente de incertezas, que lhe possibilita abstrair da própria narrativa e refletir sobre a condição humana, alienação, insanidade, choque entre culturas, que são temas do romance. O autor, assim, apesar da linguagem escrita e sua linearidade, não aponta verdades estabelecidas, mas antes prefere sensibilizar o leitor com as impressões criadas. Corrobora isso a afirmação do próprio Conrad de “que desejava, em sua 65 literatura, pelo poder da palavra, „fazer ouvir, fazer sentir e, acima de tudo fazer ver” (CONRAD, 1897 apud MANZANO, 2008, p. 178).

O Kurtz de Coppola situa-se num contexto histórico e geográfico diferente do de Conrad. Todavia, esse novo contexto, a Guerra do Vietnã, facilita a imersão desse personagem nos temas conradianos, como a loucura, a alienação e a ação imperialista. O agora Cel. Kurtz é apresentado na história como um homem extremamente capaz, mas que, enlouquecido, precisa ser eliminado. Tudo isso também é dado pelo filme de forma rasa e sugestiva. Até o aparecimento do Cel. Kurtz, o que somente acontece depois de 110 minutos de filme, muitas outras histórias acontecem e não se relacionam diretamente com a aparição dele. A única menção a ele são os momentos de narração em off de Willard quando ele vai tomando conhecimento do dossiê sobre Kurtz, que foi passado pelo seus superiores. De certa forma, ele também passa a admirar o Cel. Kurtz, nesse sentido ele se aproxima de Charlie Marlow. Apesar de este não ter a missão de matar Kurtz, como Willard, antes faz de tudo para levá-lo com vida de volta à Bélgica. O dossiê sobre Kurtz, que só existe no filme, é uma solução e tem a função de criar uma imagem de Kurtz na mente de Willard e também na dos espectadores. Essa imagem de Kurtz, na novela, apresenta-se para Marlow e os leitores pelas impressões dos outros personagens que o narrador encontra ao longo da subida pelo rio.

Os últimos 40 minutos do filme podem ser vistos como uma obra à parte. Ao analisar as imagens que compõem esse fragmento do filme, é possível compreender como se dá na superfície da tela a tensão, a insanidade do Cel. Kurtz, descrita e desenvolvida pela novela O Coração das Trevas. Essa parte do filme possibilita a análise de como, por meio de um processo de tradução semiótica, o cinema, com suas imagens em movimento, dá conta de adaptar o conteúdo e a forma da literatura. Muitos são os desafios do cineasta e sua equipe para não apenas reproduzir o romance, mas traduzi-lo para outro sistema semiótico.

Assim, um dos primeiros obstáculos enfrentados por Coppola na construção de seu Cel. Kurtz se deu com a chegada do ator Marlon Brando às Filipinas para as filmagens. Conforme Eleanor (1991), o ator, extremamente genioso, não cumpriu com nenhuma das condições previamente combinadas com Coppola para o início das filmagens. De tal modo, ele não tomou conhecimento do roteiro do filme, também não havia lido O Coração das Trevas e estava muito obeso, sendo que o Kurtz de Conrad havia sido descrito como alguém extremamente magro: “Vi quando o homem da maca sentou-se, esguio e com o braço erguido. [...] A sua coberta caíra, e seu corpo emergira miserável e apavorante como que dentro de 66 uma mortalha. Eu enxergava as suas costelas que se agitavam todas, os ossos de seu braço acenando.” (CONRAD, 2006a, p. 95).

Além disso, o filme já estava muito atrasado e Coppola não desejava finalizar o filme como estava no roteiro de John Milius. Ele queria que o filme se aproximasse mais do final do romance de Conrad, com suas questões filosóficas e existenciais. Todas essas adversidades e dificuldades importam para a compreensão do processo de tradução e para o resultado final do filme. As discussões com Brando sobre Kurtz acabaram sendo muito proveitosas e a opção por esconder ao máximo sua obesidade exigiu um trabalho de excelência do uso da técnica cinematográfica. O trabalho de fotografia, luz e sombra, edição, sonoplastia aliado à célebre atuação de Marlon Brando conseguiram criar imagens em movimento que traduzem o Kurtz do romance ao mesmo tempo que inventam algo novo.

As primeiras imagens do posto na selva onde se encontra o Cel. Kurtz, e que antecedem sua aparição, revelam uma paisagem coberta por um nevoeiro. A partir daí, apresenta-se um ambiente místico e o filme passa a ter outro ritmo, com a câmera filmando mais lentamente. Na sequência, vai se revelando um espaço formado por ruínas de uma civilização, coberta em parte pela selva (figura 25) como em O Coração das Trevas: “Com a ajuda do binóculo eu podia ver [...] um comprido edifício, caindo aos pedaços, no topo estava meio enterrado atrás do mato; os grandes buracos no telhado de palha pareciam negros quando vistos de longe; a selva e o matagal faziam o pano de fundo.” (CONRAD, 2006a, p. 85).

Ainda na cena (figura 26), uma grande cortina de fumaça envolve tudo. Metáfora de que algo está oculto e que é necessário ir além da imagem para compreendê-lo.

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Figura 26 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

O primeiro habitante daquele lugar a interagir com o Capitão Willard e seus companheiros tripulantes, tomados pelo medo, não é nenhum nativo, como seria o esperado, mas sim um fotojornalista americano (figura 27), vivido pelo ator . A imagem do civil americano coberto de câmeras fotográficas, braços abertos e grande sorriso, no meio da selva, evidenciam a construção desta fusão entre civilização e natureza, razão e insanidade, não como realidades dicotômicas, mas ambivalentes e que culminam na aparição do Cel. Kurtz. Na cena seguinte (figura 28), tem-se o diálogo entre esse jornalista americano, acendendo o seu precioso cigarro, e o Capitão Willard. O personagem de Hopper também é inspirado no personagem Russo de Conrad. Na novela ele também funciona como uma espécie de anfitrião do posto na selva, comandado por Kurtz, para Marlow e sua tripulação. O fotojornalista é uma figura trágico-cômica que fala e gesticula rapidamente e vê o Cel. Kurtz como um oráculo, um guru. Na novela, Marlow o descreve como um Arlequim: “Com o que se parece esse sujeito? De súbito lembrei-me. Ele se parecia com um Arlequim. Suas roupas eram feitas de um linho cru, provavelmente, mas tinha remendos por toda a parte, com tecidos coloridos, azuis, vermelhos e amarelos.” (CONRAD, 2006a, p. 86).

No documentário de Eleanor (1991), nota-se que Coppola se apropriou dessa ideia do Arlequim de Conrad: “É a hora em que o Patrão morre. Onde ele vê a figura desse Arlequim no meio das pessoas. Na verdade, Dennis Hopper. Entende?” (APOCALYPSE DE..., 1991). De fato, a inusitada figura do fotojornalista/Russo funciona como uma espécie de bobo da corte de Kurtz, que se colocou como uma verdadeira divindade e realeza. Ainda como se vê 68 no documentário de Eleanor (1991), o papel do personagem de Hooper é demonstrar a Willard a grandeza de Kurtz, para que ele não o julgue, mas sim o compreenda.

Também na cena do encontro entre Willard e o fotojornalista (figuras 27 e 28), mais ao fundo, tem-se um corpo pendurado e, mais abaixo, uma chama que queima na água. Existe no conjunto dessas cenas uma ironia sombria. O cadáver dependurado que ninguém parece notar, o civil americano que acolhe a tripulação naquele ponto da selva e até o fogo queimando na água revelam uma tensão paradoxal.

Figura 27 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Figura 28 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Essa tensão se desenvolve pelas cenas seguintes, com a combinação de imagens de soldados americanos, vietnamitas, cadáveres jogados, crianças, ruínas, selva, tudo envolvido por uma cortina de fumaça. Após todo o percurso enfrentado pelo Capitão Willard e sua tripulação, o que eles veem ali, junto ao Kurtz, é que a dicotomia aparente dos bons, americanos e 69 ocidentais, versus os maus, os vietcongues, não existe. Em uma dessas cenas (figura 29), vietnamitas e soldados americanos posam para uma fotografia, aqueles com vestimentas civis e estes seminus, pintados, exibindo suas armas. Novamente, essa conexão entre civilização e barbárie, do choque entre culturas, faz-se presente imageticamente. Também se tem, mais uma vez, a presença de uma câmera fotográfica registrando e midiatizando a guerra.

Figura 29 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

Até aqui, apesar de Kurtz ainda não ter aparecido fisicamente, o que se vê é a sua própria visualidade, é o que ele se tornou, é o próprio paradoxo. Kurtz representa o absurdo da guerra, o absurdo da invasão e imposição militar, cultural da superpotência norte-americana. O condecorado Cel. Walter Kurtz é o grande símbolo da falsidade da missão civilizatória que levou o governo americano à Guerra do Vietnã. Na sua carta a Brando (anexo A), Coppola fala da necessidade de se passar essa guerra a limpo, de colocá-las às claras, de “não escondê- la sob o tapete”. Assassinar Kurtz, a missão delegada ao Cap. Willard pelo alto escalão das Forças Armadas americanas, é justamente esconder a verdade que se revela na figura de Kurtz, do absurdo da guerra e das intenções da superpotência que são a ganância e o poder. O surto do Cel. Kurtz passando a conduzir a guerra como bem entende é a prova de que as trevas não estão no diferente, no oriente, mas nos corações que optaram pela guerra, em qualquer época ou tempo. Kurtz vai apontar essa hipocrisia ao dizer, por exemplo, que as mensagens jocosas e de mau gosto pintadas pelos soldados americanos, nos mísseis e bombas, eram consideradas pelos superiores como um ato obsceno, mas lançar essas bombas sobre inocentes não era considerado obsceno. Contudo, o filme de Coppola, ao condenar a ação militar americana no Vietnã, não sugere que a ação dos vietnamitas do norte, os vietcongues, 70 foi melhor e mais civilizada. Na sua carta a Brando (anexo A), Coppola explica que Kurtz assume sua condição selvagem, passando a lutar de forma cruel e não mais se importando com as ordens de seus superiores, porque viu a forma ilimitada com que os vietcongues estavam lutando aquela guerra. No filme, Kurtz revela isso a Willard, contando que fez parte de uma missão humanitária com a vacinação de crianças vietnamitas. Note-se que Kurtz até então é a imagem do soldado humanitário e justo, um verdadeiro herói. Ao entrar em uma tenda, viu a cena horrenda em que os braços das crianças, por eles vacinadas, eram decepados e empilhados. As trevas em Apocalypse Now, assim como na novela de Conrad estão em todo lugar. Filme e novela fogem assim da superficialidade e do maniqueísmo do mundo dividido entre bem e mal.

Na primeira aparição de Marlon Brando como Cel. Kurtz, vê-se um trabalho meticuloso de fotografia e iluminação. O claro-escuro, tão caro à arte barroca, será explorado brilhantemente em todas as cenas em que Kurtz aparece. No primeiro encontro entre o Capitão Willard e Kurtz, a cena do ambiente, onde se dá o encontro, já revela essa configuração entre luz e sombra (figura 30). A análise da cena revela também toda a expectativa que o filme cria em volta do Cel. Kurtz. A câmera vai se aproximando devagar atrás da sombra do Capitão Willard, que se coloca de joelhos, como um súdito diante do trono real. Exatamente à sua frente, ao fundo, pelo vão de uma porta, entra uma luz dourada, celestial, mas tênue. Toda a atmosfera do lugar é semelhante à de um templo, na qual Kurtz é a divindade. A câmera, suavemente, e sem corte, vira-se e na penumbra da cena revela um homem deitado (figura 31). Ainda não é possível ver o rosto de Kurtz, mas se ouve pela primeira vez sua voz, a voz de um oráculo.

Figura 30 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

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Figura 31 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

A ideia de Kurtz também como uma divindade faz parte da construção de um personagem profundo e misterioso. Mesmo essa suposta divindade é ambivalente, pois é boa e má ao mesmo tempo. Decompondo as cenas, e até mesmo montando-as de outra forma, pode-se compreender como se dá visualmente a ideia de divindade. Como o cinema transforma um conceito, uma ideia, em imagem em movimento. Nas cenas seguintes, após o primeiro encontro entre Willard e Kurtz, em muitas das quais o próprio Kurtz fisicamente não aparece, também revelam isso. Para o pensamento em superfície, como ensina Flusser (2007), é preciso estar atento até ao que não se mostra, ao que propositalmente não está visível na cena. No decorrer dos últimos 30 minutos do filme, uma divindade pagã esculpida em pedra (figura 32), iluminada sobre um fundo escuro, aparece algumas vezes. Essa imagem esculpida tem um semblante sereno como um Buda e alude a uma divindade do bem. Note-se que a iluminação e o close-up na escultura a tornam semelhante ao rosto de Marlon Brando, como Kurtz (figura 32). Além disso, é possível pensar na imagem de pedra como o Kurtz do bem, apolíneo. Corroboram isso as imagens dele lendo poesia, iluminado por feixes de luz solar.

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Figura 32 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

O filme também trabalha com a imagem de outra divindade (figura 33). Essa, por sua vez, tem um aspecto sombrio e o um semblante demoníaco, uma mistura entre ser humano e animal. Essa divindade pagã demoníaca, por sua vez, refere-se ao Kurtz das trevas (figura 34). Numa cena noturna, Willard acorda com a presença de Kurtz, que tem seu rosto pintado como uma máscara. Ele permanece em silêncio por alguns instantes diante do assustado capitão. Antes de desaparecer nas trevas, lança no colo de Willard a cabeça de um de seus tripulantes que acabou de decapitar. É intrigante a semelhança alcançada entre o rosto pintado de Marlon Brando, com seu queixo empinado, com a imagem do ídolo das trevas mostrada no filme. A relação entre as duas cenas se dá pelo que se vê e é intuitiva, não necessitando de nenhuma explicação argumentativa. A iluminação, a expressão sombria, a verticalização das figuras, de Kurtz e do ídolo de pedra, sobre fundos abstratos das duas cenas, revelam essa relação entre elas, que se dá na superfície da tela e não pelo encadeamento lógico de premissas e conclusões da linha escrita.

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Figura 33 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979 Figura 34 – Cena do filme Apocalypse Now, 1979

Fonte: Apocalypse Now (1979).

O movimento das cenas com o Kurtz iluminado, Kurtz sombrio, selva, Capitão Willard, vietnamitas, vietcongues, soldados americanos e divindades pagãs alternam-se em alguns momentos de forma lenta e silenciosa. A trilha sonora fica bem ao fundo, semelhante ao movimento de um sonho. A fumaça/névoa ainda está presente e colabora para essa visualidade de incertezas e de mística. Nota-se que muitas dessas cenas não estão sendo narradas por nenhuma voz e nenhum narrador convencional. Também não estão sendo conduzidas por diálogos, que são fundamentais às narrativas clássicas. A composição das cenas não é pensada de maneira linear, mas sim em superfície. São os elementos que compõem a cena, a iluminação, a sonoridade, a edição, a duração de cada cena, dentre outros, que desenvolvem o filme e permitem uma experiência visual e polissensível ao espectador.

No filme, a tensão e a coexistência entre bem e mal, civilização e barbárie, é o próprio apocalipse, mas não de um tempo futuro, mas que se faz no presente. Ali, no coração das trevas, está o fim do mundo, é o lugar onde ele é possível, daí o título do filme Apocalypse Now. A expressão “Ourmotto: Apocalypse Now” (figura 35) está lá cunhada em branco nas ruínas daquele templo. Esse é o slogan daquele lugar. 74

Figura 35 – Cena do filme Apocalypse Now Redux, 2001

Fonte: Apocalypse Now Redux (2001).

Enfim, as cenas do filme até aqui analisadas apresentam essa transformação radical que se opera na figura do Cel. Kurtz, que era considerado como o melhor soldado e o mais humano da suposta nação mais avançada do mundo ocidental, mas que agora é deslocado para outro contexto, muito além da guerra e de suas motivações, e colocado como um ídolo pagão antigo que paira acima do bem e mal. As últimas palavras do Cel. Kurtz encontram as do Kurtz de Conrad: “O Horror, o horror!”. É esse horror que o Capitão Willard irá encontrar lá no final do rio. Ele cumpre sua missão ao eliminar Kurtz. Em nome da civilização é preciso eliminá- lo, o próprio Kurtz sabe disso. Ele o faz conforme a obediência e a disciplina de um soldado, mas o faz de forma ritualística e tribal, assumindo a condição da selva.

A tradução proposta pelo filme de Coppola tem nessa última parte do filme seu maior encontro com a novela O Coração das Trevas. Em ambas as obras, o templo de Kurtz é construído com a hibridização entre civilização e natureza. Essa hibridização não se restringe ao cenário, mas também aos que ali habitam, sendo que na figura de Kurtz é onde o encontro entre o civilizado e o selvagem tem seu clímax. Também Coppola se apropria da ideia de divindade, não só do local, mas assumida por Kurtz perante seus seguidores. Tanto na novela quanto no filme ele é adorado como um deus. A figura do arlequim com sua fala rápida tem essa missão de preparar Marlow/Willard, os leitores e os espectadores para o encontro com essa divindade. Também em ambas as obras Kurtz morre. Na novela morre enfermo no navio de Charlie Marlow regressando à Bélgica. No filme de Coppola é assassinado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa iniciou um percurso procurando situar as adaptações cinematográficas como uma forma de tradução, mais especificamente uma tradução intersemiótica. Nessa forma de tradução interessa conhecer como os signos de um campo semiótico foram traduzidos em outro campo. A pesquisa teve como corpus o filme Apocalypse Now, sendo o seu processo de criação também tema da pesquisa, que, para tanto, utilizou-se das noções e fundamentos da Crítica Genética. No desenvolvimento do projeto algumas questões foram surgindo dada a complexidade do tema: Quais elementos são traduzidos? Como eles foram traduzidos? A tradução pode ser julgada por critérios de fidelidade e traição? Como se deu na história a relação entre cinema e literatura? Tendo em vista o seu caráter industrial, com o envolvimento de muitos recursos humanos e materiais, como se dá o processo de fabricação na arte cinematográfica?

A pesquisa voltou-se primeiramente para os primórdios da sétima arte, tendo ficado patente que a relação entre o cinema e a literatura sempre existiu. Grandes cineastas, como o russo Sergei Eisenstein, já apontavam em grandes romances literários certas características cinematográficas. O cinema até a atualidade se utiliza de textos literários na construção de seus argumentos. Também a literatura, como se viu, apropriou-se de características cinematográficas na sua construção. Cinema e literatura se aproximam, pois são dois meios excelentes para contar histórias. Na obra Apocalypse Now, procurou-se compreender como as fontes foram traduzidas e o que delas foi traduzido. Assim, em alguns momentos, o filme de Coppola se aproxima da história de O Coração das Trevas e também de os Despachos do Front. Tanto os temas conradianos e a narrativa com a subida do rio à procura de Kurtz dialogam com o filme como os relatos impactantes de Herr a partir da sua experiência na cobertura jornalística da Guerra do Vietnã.

Contudo, para uma melhor compreensão do resultado desse processo de tradução intersemiótica, a pesquisa procurou compreender como se deu o processo de fabricação do filme. O cinema tem na sua produção o envolvimento de uma série de recursos. A disposição e a execução desses recursos dependem diretamente de um orçamento. Essas são peculiaridades próprias da arte cinematográfica em boa parte dos casos, em especial, nas grandes produções, como no filme que serve de corpus à pesquisa. Investigar como o processo de criação do cineasta dialoga e resolve esse complexo contraponto com os limites 76 impostos pela indústria é talvez a grande chave para a compreensão e adequada análise da obra.

Em Apocalypse Now, como foi visto, os recursos à disposição foram abundantes. Porém, o planejamento realizado na pré-produção do filme não conseguiu contemplar a apoteose que seria a produção do filme. Fato que tornou essa produção uma convulsão que quase levou o cineasta Francis Ford Coppola à falência e à insanidade. O processo de fabricação do filme foi devidamente registrado pela esposa do cineasta, Eleanor Coppola, que acompanhou todas as gravações. Esses registros realizados por ela atuaram como documentos importantes do processo de criação da obra. Esses documentos de processo revelam que, além do processo criativo de Coppola, que se envolveu profundamente com toda a produção, o filme é também resultado da longa permanência nas Filipinas, de improvisações dos atores, de problemas com a equipe, como a obesidade de Marlon Brando, das catástrofes climáticas, das mudanças no roteiro de John Milius, da inclusão de elementos da cultura local, como a inserção do ritual da tribo Ifugão, dentre outros.

Todas essas notas da criação do filme demonstram como é complexa a compreensão da gênese desse filme. Fez com que se questionasse em determinados momentos da pesquisa o quanto a obra é fruto da criação do artista e o quanto é fruto dos acasos e improvisos durante a sua produção. A aparição do Cel. Walter Kurtz, em Apocalypse Now, ilustra bem a complexidade dessa criação no cinema. As sequências com Kurtz são produto do roteiro de Milius, dos diálogos de Coppola e Brando, do final do roteiro reescrito por Coppola, da solução usada por Storaro (diretor de fotografia) com a técnica do claro e escuro para esconder a obesidade do ator. Entretanto, amparado nos estudos de Crítica Genética, observa- se que perante os problemas e imprevistos que surgem ao longo da produção da obra está o artista com suas decisões. São suas escolhas que possibilitam o aproveitamento dos acasos e as soluções criativas diante dessas dificuldades. No caso do filme objeto da pesquisa está o cineasta Francis F. Coppola. Observar pelos documentos de processo o seu movimento criador com suas escolhas, questionamentos, equívocos, insights e, no caso de Coppola em Apocalypse Now, até uma profunda crise pessoal, resgata a noção de autoria da obra de arte. Como assegura Salles (2008, p. 107): “O artista ocupa lugar de destaque como criador e artesão que vamos conhecendo pelo itinerário de seu caminho criativo”.

Por fim, a compreensão de uma obra cinematográfica e do processo de tradução deve ser constatada a partir da matéria-prima produzida pelo processo, que são suas imagens em 77 movimento. A pesquisa procurou analisar essas imagens apontando as soluções criativas realizadas na tradução das fontes. A análise dessas imagens, todavia, não procurou apenas encontrar os paralelos com as obras fontes, mas compreender o resultado da tradução como uma obra nova. A pesquisa buscou assim também pensar as imagens produzidas pelo filme com os seus novos significados, considerando na análise das cenas os paralelos entre o filme, suas fontes e seu processo criativo.

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ANEXO A – Carta de Francis F. Coppola ao ator Marlon Brando

Transcript

Friday.

Dear Marlon,

I got a note from Debbie saying that she brought you the retyped script and spent a little time with you. I am sorry that I was so elusive those few weeks I was in California. That time was like a dream to me, and I was so anxious to get the script done, and solve all its problems, that 83

I kept putting off sending it and meeting with you, thinking I would break its back any day. Before I knew it, I had run out of time, and the whole enormous machinery started up again. Essentially, what I tried to do, and am still working on was to rethink the character of Leighley from a doped-up madman, to a sincere, rational -- maybe even great officer who finds himself totally at odds with the Generals in command, and gives way to his own instincts about the way to wage this war. The reason he is in the field, commanding is by his own choice -- he was called in to settle a Montagnard revolt, and chooses to 'revolt' with them, to go off, across the border, where he can follow his own inclinations. He believes the war must be fought with everything, that it cannot be limited war insofar as the V.C. are not fighting a limited war. Consequently, he gives way to his irrational parts, the 'savage' parts in all of us -- sort of like opening a Pandora's box -- like teaching innocent natives how to kill with modern weapons, and reawaking almost forgotten lusts for killing and savagery. But in doing that, he is also kindling those near forgotten lusts in himself as well. Leighley is an extraordinary man, because he always tells the truth -- but he goes too far, and he is consumed by it. I guess that's what this movie is really about. About facing the truth, and then rising beyond it. We will never get past Viet Nam if we sweep it under the carpet -- we must face it, head on, as ugly and horryible as it will seem out in the open. And then by facing it, we can put it behind us. We do not have to feel guilty -- guilt is a destructive emotion -- we have only to judge ourselves, and go on. And we can't beat ourselves to death about those contradictory parts of us: the fact that we want things the way we want them, the fact that we lust after things, and enjoy satisfying those lusts -- even the lust to kill. The truth is that those things do exist -- but in balance with instincts of tenderness, compassion, charity -- The interesting thing about this character is that he is whole, he is irrational and rational all in one, and that is what people are like.

I'm writing this note to you to let you know that I am still working on this thing, and will continue to work. I have new pages, maybe they have progressed, maybe not. But, as you know, I have an open mind and a hunger to make this be good, and to move people, and to help put this war in perspective. Naturally, I welcome your collaboration. When you come here, I know -- we will relax and take it one step at a time, and find the way to make the scenes work. The things I have shot already -- especially the briefing scene, I think work very well, and are much more complex than indicated in the script -- I will show it to you if you think it helpful. 84

This movie has been a nightmare for me, but I am trying to take it slowly, one step at a time, letting my intuitions guide me.

I really think you're help at this point, will push me where I want to go. Please don't worry about anything, nothing is impossible, and together we can accomplish anything, even make a movie about Viet Nam.

Sincerely, FRANCIS

(Signed)

Tradução Sexta-feira.

Caro Marlon,

Eu tenho uma nota de Debbie dizendo que ela trouxe o script e que passou um pouco de tempo com você. Eu sinto muito por ter sido tão evasivo naquelas poucas semanas em que eu estava na Califórnia. Esse tempo foi como um sonho para mim, e eu estava tão ansioso para começar com o roteiro feito, e resolver todos os problemas, que eu continuei adiando em enviá-lo e me reunir com você, pensando que eu iria atrasar a sua volta a qualquer dia. Antes que eu percebesse, eu tinha perdido o tempo, e toda a enorme “máquina” começou a subir novamente. Essencialmente, o que eu tentei fazer, e ainda estou trabalhando é em repensar o caráter de Leighley (Kurtz) de um louco e dopado, para um homem sincero e racional, - talvez até mesmo um grande oficial que se encontra totalmente em desacordo com os generais que estão no comando, dando lugar a seus próprios instintos sobre a maneira de travar esta guerra. A razão pela qual ele está no campo, comandando é por sua própria escolha - ele foi chamado para resolver uma revolta Montagnard, e escolhe participar da 'revolta' com eles, ir para fora, do outro lado da fronteira, onde ele poderá seguir suas próprias inclinações. Ele acredita que a guerra deve ser travada com tudo, que não pode ser uma guerra limitada na medida em que a VC (Vietcongues) não estão lutando uma guerra limitada. Por isso, ele abre caminho para o seu lado irracional, as partes "selvagens" em todos nós - algo como abrir uma 85 caixa de Pandora - como ensinar os nativos inocentes a matar com armas modernas e despertando paixões, quase esquecidas, por matar e pela selvageria. Mas, ao fazer isso, ele também acende essas paixões escondidas em si mesmo. Também. Leighley (Kurtz) é um homem extraordinário, porque ele sempre diz a verdade - mas ele vai longe demais, e ele é consumido por isso. Eu acho que isso é o que este filme é realmente. Sobre enfrentar a verdade, e, em seguida, subir para além dela. Nós nunca iremos passar o Vietnã se o varrermos para debaixo do tapete - é preciso enfrentá-lo, na cabeça, com toda feiura e horror que ele vai parecer quando estiver às claras. E então, enfrentando-o, podemos colocá-lo atrás de nós. Não precisamos nos sentir culpado - a culpa é uma emoção destrutiva - temos apenas que nos julgar, e seguir em frente. E não podemos nos bater até à morte, sobre as nossas contradições: o fato de que nós querermos as coisas da nossa maneira, o fato de que cobiçarmos as coisas, e desfrutamos em satisfazer esses desejos - até mesmo o desejo de matar. A verdade é que essas coisas não existem -, mas em equilíbrio com instintos de ternura, compaixão, caridade - A coisa interessante sobre este personagem é que ele é um todo. Ele é irracional e racional ao mesmo tempo, e é isso que as pessoas são.

Estou escrevendo esta nota para você para que você saiba que eu ainda estou trabalhando em tal coisa, e vou continuar a trabalhar. Tenho novas páginas, talvez elas têm progredido, talvez não. Mas, como você sabe, eu tenho uma mente aberta e muita vontade de fazer este filme ser bom, de mexer com as pessoas e para ajudar a colocar essa guerra em perspectiva. Naturalmente, congratulo-me com a sua colaboração. Quando você vier aqui, eu sei que iremos relaxar e darmos um passo de cada vez, e encontrar a maneira certa de fazer as cenas de trabalho. As coisas que eu já tiro - especialmente a cena do briefing, eu acho que o trabalho muito bem, e são muito mais complexos do que o indicado no script -. Vou mostrá-lo a você, se você acha que é útil.

Este filme tem sido um pesadelo para mim, mas eu estou tentando levá-lo devagar, um passo de cada vez, deixando minhas intuições me guiarem. Eu realmente acho que você é a ajuda necessária neste momento, vai me empurrar onde eu preciso ir. Por favor, não se preocupe com nada, nada é impossível, e juntos podemos realizar qualquer coisa, até mesmo fazer um filme sobre o Vietnã.

Atenciosamente, FRANCIS