Ney Matogrosso Cantor

.. . t. 4 "4 • , •. Revist{ntrevista

Entrevista com Ney de Souza Pereira, dia 8 de setembro de 2008.

Edgel - Ney, a Revista Piauí publicou tadas e no fim - da metade pra frente -, eu A decisão de entrevis- um texto seu, no qual você afirma que uma não estabelecia mais amizade nenhuma. Eu tar o Ney foi um grande desafio. Além de ser o pri- das lembranças mais remotas suas é quan- fui muito sozinho por causa disso, porque meiro das seis entrevistas, do você estava sentando em um jabuti, an- pra mim era um corte. Eu sentia muito o o trabalho seria realizado dando, aproveitando a natureza, Mas quais afastamento de pessoas com quem estava com um artista conheci- do nacionalmente, irreve- outras lembranças você tem do primeiro desenvolvendo algum tipo de amizade. No rente e ousado, que tem estágio da sua infância? (A Revista Piauí foi final, eu já não me envolvia mais. Eu resolvi anos de experiência com ançada em outubro de 2006. É uma revis- não ter que passar por isso de novo, então a mídia. a mensal, idealizada pelo documentarista não me envolvia. A última parte toda, que João Moreira Salles). foi mais em Mato Grosso mesmo, eu fiz o Ney - Eu tenho essa! Eu em cima de um ginásio ... Eu fiquei o quê? .. Três anos num abuti gigante. Porque pra mim era gigante, colégio e eu não tinha nenhum amigo. Ne- mas ele devia ser grande mesmo, porque nhum ... Eu não queria. eu sentava em cima dele e ele andava co- Célio - Essa solidão era opção? migo horas. Eu me lembro que eu fugia da Ney - É... Eu não queria. E não queria minha casa - porque isso foi na 8ahia -, eu porque sabia que ia tudo acontecer de novo. morava em Amaralina (A Amaralina é um Então eu me isolei. bairro de Salvador eminentemente habita- Lívia - Ney, em que essas mudanças cional. Durante a lI Guerra Mundial foi ali contribuiram para a formar a sua persona- que os norte-americanos instalaram o pos- lidade? o aeronáutico que, após o conflito, passou Ney - Não sei (pensativo). Devem ter para a Aeronáutica, hoje funcionando o 19º em alguma maneira sido ... Porque pra uma Batalhão de Artilharia Anti-Aérea), que não criancinha, estar aqui, estar lá... De alguma inha absolutamente nada. Tinha a minha maneira isso deve ter. .. Olha, o que eu acho casa - a casa que a gente morava no alto que foi fundamental mesmo pra mim, foi a -, o mar embaixo, o quartel do exército lá volta pra Mato Grosso com 13 anos. Isso pra a ponta. Pra trás tinha uma leiteria e um mim - que eu acho que foi - é um marco na erreiro de candomblé, e eu fugia pro terrei- minha vida, porque eu cheguei ... Nós fomos o (Religião afro-brasileira que surgiu com o morar numa vila militar recém-construída, onhecimento dos sacerdotes africanos que que era num lugar onde não tinha nada. Era oram escravizados e trazidos da África para no meio do cerrado, eles rasparam o chão e Brasil, entre 1549 e 1888). A primeira vez fizeram aquele monte de casas. Só que eu e eu fiz isto foi uma confusão, porque nin- chegava do colégio todo dia ao meio dia - eu ém sabia onde eu tava, quase chamaram tinha onze cachorros - e eu me embrenhava :: polícia. E depois disso, eu sempre ia. Não dentro desse mato e ia longe ... Muito longe! se ... Eu não sabia o que era, mas eu achava Tinha uma lagoa onde eu tomava banho ... e aquilo era Carmem Miranda. Eu ouvia Eu entrava no mato e tirava a roupa, era -a ar de Carmem Miranda e eu via aquelas uma necessidade minha. Eu entrava nesse Iheres dançando e achava que aquilo era mato e ficava nu - e meus cachorros -, e eu em Miranda (artista nascida em Portu- andava à tarde inteira. Então, como eu mo- _a que fez carreira no Brasil e nos Estados rei alguns anos lá, eu comecei a entender os dos entre as décadas de 1930 a 1950). ciclos da natureza, coisa que a escola não =: e dizia em casa que ia ver Carmem Mi- ensina, que ninguém ensina, na verdade fa- a. Então essa é a minha primeira me- lam: "Ah! Tem primavera, verão, outono, in- a. verno". Mas você não sabe o que é que é. E Célio - Você é filho de pai militar, né isso? eu entendi isso. Eu vi a vida me apresentan- - ...d•ava muito - você morou em quatro ci- do isso, eu vi a natureza me apresentando Passada a fase da escolha do entrevistado, um período curto de tempo. Como é isso. Eu entendia o ciclo de procriação dos começamos a elaboração ê idava com essas mudanças cons- passarinhos, dos animais. Eu pegava filhote da pauta, sem a certeza de do chão, botava no ninho. Eu via momentos que daria certo, devido ao pouco tempo para a apu- - E não lidava. Não tinha o que eu em que na primavera, que dava frutas, eu ração e à dificuldade no p::::r:.Esse zazer. Eu apenas, no começo, es- ia atrás de marmelos do mato (Fruta típica contato com a produção a a as amizades que eram cor- do Mato Grosso do Sul) - uns marmelos do artista.

EY MATOGROSSOI 9 Todos os dias, a pro- pretos, assim desse tamanho (mostrou com Edgel - Você tinha quantos anos? dução tentava de algum as mãos o tamanho do fruto) -, pelo faro, Ney- Eu tinha 17 anos. Eu saí na porrada modo contato com Ney. Ney passaria uma semana eu sentia esse cheiro e dizia assim: "Onde mesmo! Ele me deu um soco na cara, me em Fortaleza, por causa está?" (gesticulou como se estivesse sentin- jogou dentro da banheira. Quando ele veio de um show na cidade e do o cheiro) E ia no cheiro. E eu chegava lá. em cima de mim, eu dei-lhe um pontapé no um festival de cinema, mas, a princípio, não con- Então, pra mim, foi muito interessante esse saco, porque eu queria machucar ele, sabe? seguimos nenhum conta- contato com a natureza, porque nunca mais E aí ele me expulsou de casa e eu disse: to mais direto. eu pude viver sem isso. "Olha, saio daqui sim, porque eu não agüen- Andréa - Como é que esse contato com to ver a sua cara, eu tenho nojo de você". a natureza se reflete hoje na sua vida? O que (pausa) Falo isso porque tudo isso foi ultra- é que você sente em relação a isso hoje? passado. Depois disso, tivemos chance de Dessas lembranças que você tinha ... nos aproximar, nos entendemos e ficamos Ney - Não. Não é das lembranças. Isso muito amigos. Eu sou o único filho que ... se reflete no meu contato. Até hoje eu sinto Quer dizer, a partir de um movimento meu - a necessidade e pra mim a natureza é sagra- isso já foi bem mais tarde - eu era hippie lá da. Se existe Deus, ele está se manifestando em São Paulo e ele foi me visitar. Bom, tudo através da natureza. era estranhamento. Porque, quando ele Célio - Edurante a sua criação, Ney, como chegou, eu estava com uma calça laranja, esses valores eram passados - se eles eram eu fui no hotel dele, visitá-Io, e ele me disse passados? Por que você disse que corria e assim: "Olhe, da próxima vez que você vier ia pra um terreiro de candomblé e hoje você aqui, por favor, não venha com essa calça fala desse Deus que existe ... "Deus está na dessa cor". "Bom, se o senhor está mais natureza". Na sua criação ... preocupado com cor da calça que eu estou Ney - Não, não. Na minha criação nun- usando do que comigo, então eu não volto ca ninguém me impôs nada. Minha família mais aqui. Não se preocupe! Eu não tenho o era espírita - meu pai e minha mãe - e eu que fazer aqui, se sua preocupação é essa". ia à igreja católica porque eu queria. Eu fiz No hotel dele eu não voltei mais. Mas ele ia primeira comunhão porque eu quis (pen- me visitar onde eu morava. Eu era assim, sativo). É, nunca ninguém me impôs nada. um hippie, pobre. Eu tinha dois cômodos, Nunca ninguém me impôs nada. um onde eu trabalhava e outro onde eu dor- Célio - E como era a relação com o seu mia. Eu fazia artesanato, eu vivia disso. E ele pai? disse: "Volta pra casa que eu te arranjo um Ney - Com relação a isso? emprego pra você ganhar dois mil reais". Célio - Não só em relação a isso, mas em Dois mil reais era muito dinheiro (ele fala relação a toda a sua criação. Porque ele era em Real (R$), mas a moeda corrente da épo- militar ... ca era o Cruzeiro (Cr$)). Eu disse: "Mas você Ney - Não, a relação com meu pai sem- não está entendendo nada, a forma é pobre, pre foi conturbada desde muito cedo ... Des- mas eu sou felicíssimo. Você não está cap- de muito cedo ... Por quê? O Por que eu não tando. Eu estou buscando outras coisas, não sei. Eu não tenho memória de ter feito nada é o dinheiro". Na véspera de ele ir embora, que pudesse deflagrar a hostilidade dele. nós nos encontramos na rua, perto do Esta- Mas não era ele só que era hostil a mim, eu dão (nome popularmente conhecido do jor- era hostil a ele também. Então, todo o início nal O Estado de São Paulo, o mais antigo da da minha vida foi "brabera". Eu saí de casa, cidade de São Paulo ainda em circulação), porque eu saí na porrada com ele (pai). nos despedimos e tal e eu tive um impulso de dar um beijo no meu pai. Era uma coisa IJEusai na porrada assim que nunca tinha acontecido. Imagina, eu tinha já vinte e tantos anos. Aí, na hora mesmo. Ele me deu em que eu beijei ele, ele tomou um susto, ficou assim incomodado, olhou ao redor ... um soco na cara, Porque era um homem beijando ele. Porque o problema dele era esse. Aquela cabeça Durante a captação me jogou dentro da machista, atrasada, retrógrada ...Que todo da pauta, as informações sobre a obra de Ney fo- machismo é atrasado e retrógrado! Não há ram encontradas com banheira, quando necessidade disso. A gente pode ser mais facilidade no site oficial maleável e não perder a masculinidade, dele. Contudo, encontrar ele veio em cima de dados sobre a família de essa é a questão. Ele olhou ao redor assim ey tornou-se um desafio. mim, eu dei-lhe um e tal e, todas as vezes que eu encontrei com Acabamos indo para a en- ele ou que me despedi dele, nós nos bei- trevista sem alguns dados pessoais. pontapé no saco". jamos. Eu fui o único filho, em toda a vida dele, que ele beijou.

REVISTA ENTREVISTA I 10 -0 - Você tem quatro irmãos, não é Ate que a entre is a fosse confirmada, a equi- pe de produção passou - Eu tenho duas irmãs e dois ir· por maus momentos, com a possibilidade de todo o ia - E a sua mãe nessa estória toda, trabalho de captação ser perdido com um simples: e mediava? não! A ansiedade só ter- e - O ha, minha mãe intermediava minou com o final bem a do eu morava em casa. Claro que ela sucedido da entrevista. e a a paz da família e a opção dela era elo marido. Agora ela fazia um jogo. O [oqo dela era de me defender dele, porque senão ele me massacrava. Uma vez ele pe· gou um revólver para atirar em mim ... Mas todos se submeteram a ele. Submeteram- eu era muito desaforado. Hoje eu entendo se a ponto de estarem casados e ele dizer o isso, mas eu não podia admitir. Eu com 17 que estava errado. Na minha vida, ele nunca anos, ele dizia assim: "Você está de castigo, deu palpite. Agora também tem o seguin- você não vai sair de casa". Eu dizia: "Não te: no dia que eu saí de casa - que eu me vou sair de casa o quê? Como é que você alistei na aeronáutica, lá em Mato Grosso, vai me botar de castigo aqui? Não vou ficar transferi meu alistamento pro Rio de Ja- de castigo". Imagina, dizer isso pra um mili- neiro porque não me interessava morar no tar que esteve na guerra, que tinha neurose Mato Grosso, eu queria mais, eu queria sa- de guerra ... E saí. Quando eu saí, meu irmão ber mais do mundo - ele foi contra, disse foi correndo atrás de mim e disse: "Nev", que de jeito nenhum. Eu disse: "Agora é tar- Eu corri e peguei um atalho por dentro do de, porque eu já transferi o meu alistamen- mato. Meu irmão foi atrás e disse: "Volta to". Ele disse: "Assim então eu não vou te porque ele tá te esperando lá com um re- ajudar". "Não precisa me ajudar porque eu vólver na mão, ele vai te dar um tiro". Aí eu já consegui a passagem pelo avião da ae- voltei, porque eu também não sou louco, ronáutica". Aquele CAN, Correio Aéreo Na- né? (risos da turma). Voltei. Ele voltou com cional. Ele disse assim: "Então você nunca o revólver dele, não tocou no assunto ... Mas me peça um tostão, porque eu nunca vou te eu enfrentava muito ele, eu desacatava mui- dar um tostão". Eu disse: "Não se preocupe, to a autoridade dele, sabe? Desafiava muito não se preocupe, eu jamais lhe pedirei um a autoridade dele. tostão". Nunca pedi um centavo (voz firme). Edgel - Mas por que isso, Ney, esse es- Algumas vezes ele foi ao - foi pirito de ... me visitar -, quis me dar dinheiro, eu disse: Ney - Não sei, não sei (interrompe). Isso "Não quero. Eu não preciso do teu dinhei- oi desde pequenininho. Eu tinha cinco, seis ro, eu tenho o meu, eu ganho o meu". Eu a os de idade e ele chegava em casa do tra- achava que estava errado aceitar dinheiro alho - ele trabalhava no Ministério da Ae- dele. Se eu saí ... Foi minha opção ir viver ronáutica, no Rio de Janeiro -, e trazia um a minha vida às minhas custas, eu não ti- pacotinho de bala, (articulou com as mãos), nha que estar aceitando dinheiro. Nem dele, assim cinco balinhas dentro de um tubinho, nem de ninguém. Eu tinha que descolar o as balas buzzy. Eu era louco por aquelas ba- meu. Mesmo que eu passasse necessidade, as. Ele trazia as balas e dizia assim: "Só vai era a minha vida que eu estava bancando, hupar essas balas quem me der um beijo". sabe? Eu só podia bancar daquela maneira. Eu achava aquilo um desaforo tão grande: Então, nunca aceitei. E ele olhava pra isso ~ ter que fazer alguma coisa para ganhar muito estranhamente ... "Por que como é ma bala ... Eu não chupava bala. Então, que ele está passando necessidade e não uitas vezes eu enfrentei ele nessas coi- aceita dinheiro meu?". Não aceitava. Nem sas assim: "Não quero, eu não vou chupar dele, nem de ninguém! Eu fazia as minhas _ sas balas, não quero. Eu não tenho que coisas para vender. Quando eu vendia, eu azer nada por ninguém para que eu possa tinha, quando eu não vendia, eu não tinha. par uma bala". Agora não me pergunte Quando vendia, comia, quando não vendia, Depois de quatro ho- ras no hal/ do hotel, onde o é que eu pensava isso, porque era tinha uma padaria - que era do lado do meu a produção apurou que . . Meu pensamento era esse ... Eu não lugarzinho onde eu morava -, que eu ficava Ney se hospedaria, o can- beijar ... Eu não vou chupar bala, porque alugando os padeiros. Eu ficava lá compran- tor finalmente chegou - na noite da sexta-ferra, 5 de ão sou obrigado a beijar ninguém para do pãozinho deles. Eu tinha chá, eu tomava setembro - e recebeu em ar uma bala. chá, e era o que eu comia. Mas normal, eu mãos um envelope com E anuela - E essa postura, os outros ir- não tinha sofrimento nisso. Isso era a opção exemplares da Revista En- trevista, juntamente com ão tinham? da minha vida. Eu vivia à margem da socie- uma carta explicando o e - So comigo! Só comigo! Os outros dade por opção. Eu sempre discordei da so- projeto da revista.

NEY MATOGROSSOlll . )

Foram inúmeros os ciedade organizada. Achava hipócrita, men- neiro, para um quartel, onde existiam milha- elogios à Célio pela de- tirosa, falsa, acho até hoje (voz de desdém). res de homens ali dentro. Fui conviver com terminação de esperar a chegada de Ney no Hotel Pregam uma coisa e vivem outra escondida. esse universo exclusivamente masculino e Gran Marquise. No dia, Eu nunca fui disso. Então eu vivia à margem. tendo que ... Entendi rapidamente que você toda a produção estava Eu dizia: "Não quero nada a ver a com essa tem que estabelecer limites constantemen- ocupada e, Célio teve de arriscar sozinho. gente, não quero, não faço parte disso". E te. Não os meus, de todos. Os limites eram fui cedo viver à margem, pobremente. Ago- testados diariamente, 24 horas por dia (bate ra, tinha os meus princípios, tinha os meus a mão na mesa). E tendo que você se situar limites, embora elásticos. Claro, eu era uma dentro desse contexto e viver bem dentro pessoa livre, completamente livre para fazer disso. Em harmonia com aquilo, porque era o que quisesse da minha vida, experimentar aquilo, eu sabia que era aquilo. o que bem entendesse na minha vida. Ago- Célio - E esses conflitos que você en- ra eu tinha - e tenho - os meus limites, são frentava lá dentro, como é que você lidava além da maioria das pessoas, mas existem. com eles? E tenho princípios que sigo até hoje rigoro- Ney - Três vezes eu saí na porrada. Fo- samente. ram as únicas vezes que eu briguei na mi- Débora - Ouais são os seus limites e nha vida de sair na porrada, foi lá dentro. princípios? Com meu pai não chegou ser uma briga, foi Ney - Ética! Mas isso tudo é uma coisa um "bapapá" e tal. Mas lá dentro, foi porra- hippie que a gente tinha. Amor ao próximo, da mesmo. Ué, foi preciso, aconteceu! Mas solidariedade, sabe? Respeito ... As pessoas eu sou uma pessoa completamente contra se aproximavam naquela época, você não a violência em qualquer nível que seja. Mas perguntava o nome, você não precisava sa- ali, ou eu me defenderia na porrada, ou se- ber o nome de ninguém. Chegava, você ti- ria massacrado psicologicamente. nha comida, você podia dividir, você dividia. Alan - E você se lembra dos motivos? Essas coisas ainda me guiam. Eu sou aquele Ney - Os motivos eram os mais idiotas. ainda. É muito louco! Vocês vão chegar um Imagina, assim 17 anos, que motivos são dia à minha idade e vão entender o que eu esses? O motivo é você passar e neguinho estou falando. O corpo da gente vai enve- passar a mão na sua bunda. Eu odiava que lhecendo, mas a gente é o mesmo. Aquele passassem a mão na minha bunda. Eu dizia: lá... É a mesma pessoa. Só envelhece por "Porra, não passa a mão na minha bunda". fora, dentro você é o mesmo, sabe? Eu que- Mas tinha essa coisa, todo mundo passava ro muita coisa, quero fazer muitas coisas a mão na bunda de todo mundo. Faz par- ainda. É como se a vida fosse uma onda, te do universo ... Adolescente, né? Eu tinha uma onda que vai acabar numa praia ... Eu lá o meu armário. Chegava e encontrava não acho que eu já esteja beirando a praia, meu armário arrombado. Só que eu sabia eu ainda estou em alto mar. Eu ainda estou quem era ... Era tudo assim, feito às claras ... em onda alta. Aí, porrada de novo! E tinha um camarada Célio - Ney, você desacatava o seu pai, que desde o dia que a gente se cruzou, nós que era militar, e na opção de sair de casa não nos entendemos. Esse foi guerra do co- você foi justamente pra Aeronáutica. meço ao fim. Ele, se tiver vivo, carrega uma Ney - Sim, mas espera ai. A Aeronáutica marca minha até hoje. você vai com 17 anos, por livre e espontâ- Edgel - A fase depois da Aeronáutica, o nea vontade, vai voluntário. O Exército você que veio? tem que esperar fazer 18 anos pro Exército Ney - Eu saí da Aeronáutica, fiquei no Rio te chamar. Eu tinha urgência de sair de casa. de Janeiro e fui convidado pra ir pra Brasília Eu nunca tinha trabalhado. Não sabia fazer trabalhar num hospital que tava sendo inau- nada. Então foi a minha opção me alistar na gurado. Eles não tinham mão-de-obra. Meu Aeronáutica, transferir pro Rio de Janeiro primo era médico, morava lá, e eu fui pra pra eu ir embora. Eu queria sair de casa. Brasília. E em Brasília foi onde eu tive total Célio - Mas o ponto ao qual me refiro é liberdade de me aproximar de tudo que era a hierarquia. Como é que você lidava com a arte que me interessava, porque meu pai hierarquia dentro da Aeronáutica? não queria filho artista. Ele vetou. Minhas Ney - Olha, foi muito interessante eu vi- primeiras manifestações artísticas foram ver dentro daquilo. Primeiro não era nem vetadas, porque ele não queria um filho ar- Era 19h de sábado, pela hierarquia. Eu sair de um núcleo fami- tista. Em Brasília, eu era dono do meu na- quando Célio liga pra Lívia confirmando a entrevista. liar, em 1959, sem informação - não tinha riz, então eu fiz de tudo. Eu fiz teatro, fiz um O melhor só estava co- televisão na minha casa -, não existia infor- curso de teatro. Todo domingo fazia - em meçando. O próprio Ney mação disponível como hoje. Então, eu era lugares pra crianças, hospitais - teatro de ligara para confirmar a en- trevista: "Chico, eu tô afim uma pessoa completamente ingênua, tendo fantoches, bonecos. E, depois, trabalhando de participar do projeto". que sair do Mato Grosso pra ir pro Rio de Ja- no hospital, eu pedi pra me colocarem ... Pri-

REVISTA ENTREVISTA I 12 meiro eu fui trabalhar na anatomia patológi- vezes, é verdade, ao jardim zoológico, cir- o professor Ronaldo ca. Fiz um curso lá dentro mesmo, porque co ... Porque não tinha ajuda, não tinha uma Salgado tomou de um só gole uma lata de cerveja eu não sabia nem o que era isso, fazer lâmi- condução para eu sair com aquelas crian- ao receber a ligação da nas de biópsia. Fiz muitos anos isso. Eu e o ças. Às vezes, eu pegava - as que não an- produção confirmando meu primo, o irmão desse médico. Como davam, montava uma aqui, uma outra aqui que a entrevista acontece- ria na segunda-feira. eu desenhava bem, eles pediram pra eu me (reproduziu as lembranças com gestos, co- transferir pra cardiologia pra desenhar gráfi- locando as crianças nas laterais do corpo), cos - porque era tudo feito na mão, escrito o outro numa cadeira de rodas -, e eu saía à mão, escrito por nanquim (tinta preta em- com essas crianças e ia a esses lugares. Até pregada em desenho e aquarelas) naquelas que ficou impossível. regüinhas, naquelas letras -, e os gráficos, Andréa - Quais as experiências que você eu fB-:fa todos eles. Depois, um dia, eu fui não teve e gostaria de ter? •~---ra-r,~rlo dir~tor - que era meu amigo - e disse Ney - Ah, eu não sei. Eu sou aberto para assim: "O, eu quero trabalhar ou com louco todo tipo de experiência. Eu sou uma pessoa ou com crianças, você não tem um jeito?" com minha mente completamente aberta Ele disse: "Com loucos não tem nada, mas para tudo. Eu não tenho preconceitos con- tem com as crianças. Tem uma sala lá que tra nada, embora eu já tenha me flagrado você pode ocupar e fazer o que você qui- tendo. Quando eu me flagrei, eu falei: "Não ser com elas". E eu fui fazer recreação com terei". (voz contundente) crianças terminais, que viviam presas lá na- Célio - Que preconceitos? quele sétimo andar. Atrás do hospital tinha Ney - Preconceito contra bobagens as- um bosque enorme. Eu comecei levando sim. Por exemplo, por mais incoerente que essas crianças pra esse bosque diariamen- possa ser. .. Eu acho que homem pode tran- te. Lá, eu era o brinquedo delas. Eu ficava sar com homem, mulher pode transar com de quatro, montavam três em cima de mim mulher. Tudo pode! Agora, estereótipo me e eu saía sendo o cavalinho delas. Eu fazia incomoda. Eu acho desnecessário, sabe? E tudo que elas queriam. Eu era o brinquedo. eu me flagrei tendo um tipo de aversão à E junto a isso, com meu dinheiro, eu com- travesti, que eu acho que é uma imbecilida- prava barro de cerâmica, pra fazer escultura; de da minha parte. São seres humanos com tinta, pra eles pintarem; cartolina, pra fazer direito à própria vida, e se eles optam por máscaras. porque ninguém ajudava, aquilo isso, que é uma vida dificílima de encarar - ali não era oficial dentro do hospital. porque é visto pela sociedade como resto Edgel - Então seu estilo hippie começou -, como é que eu ainda vou alimentar pre- '!"" depois da Aeronáutica? Assim de viver por conceitos contra essas pessoas? Eu não te- si... nho preconceito contra nada mais. Eu acho Ney - Sim ... Sim, porque na Aeronáutica que tudo pode! (pausa). Desde que cada um era outra coisa e nem existia esse pensa- seja responsável por si e não faça mal a ter- mento (hippie) no mundo, né? ceiros. Lívia - Ney, e por que escolher entre Roberta - Ney, essa época em Brasília criança e louco? que você tava falando, que lhe permitiu essa Ney - Era o que eu tinha ... Era o que me experiência com arte e tudo mais. Você dis- atraía ... (parecia tentar recordar de algo) E se que na infância procurava ficar mais con- eu entendi com as crianças logo ... Quer di- centrado em si mesmo, era mais sozinho ... zer, o meu contato logo no hospital foi com a morte, porque eu fui trabalhar na sala de anatomia patológica, né? Via cadáveres. A "Por mais incoerente primeira vez que eu vi um cadáver, eu che- guei em casa e não conseguia comer, por- que possa ser, eu que eu nunca tinha visto um. No final, eu acho que homem estava completamente acostumado com aquilo. Agora, quando eu fui trabalhar na pode transar com pediatria, no primeiro dia que eu voltei e a criança - que, na véspera, eu tinha estado homem, mulher com ela no colo - não estava ali, porque tinha morrido, eu fiquei transtornado. Mas pode transar com eu entendi então, nesse momento, que a Ver Ney atuando no minha função ali era exatamente essa. Era mulher. Tudo pode: palco seria o próximo pas- tornar aqueles últimos dias daquelas crian- so. A equipe de produção ças o mais agradável possível. O mais ... É, Agora estereótipos e boa parte da turma parti- ram, sábado à noite, para o mais agradável, o mais feliz possível. Eu me incomodam" o show de Ney Matogros- conseguia levar aquelas crianças, poucas so, Inclassificáveis.

NEY MATOGROSSOl13 Edgel e Lívia curtiram Ney - Sim, sim. Débora - Onde é que você encontra esse o show de forma mais Roberta - E nessa época, você teve con- contato com a natureza hoje em dia? contida. Já Luar e Célio, por saberem todo o reper- tatos com outras pessoas, você procurou Ney - Ah, eu tenho uma reserva no Rio tório do cantor, não pou- convivência com o meio artístico? de Janeiro. Eu tenho uma reserva de Mata param energias. De longe, Ney - Em Brasília? Em Brasília, sim. Foi Atlântica, onde eu vou pra lá... Tem vários era perceptível o entusias- mo dos dois. onde eu comecei a sair de mim, a conviver riachos, tudo com água cristalina, pura, que com outras pessoas. Eu cantei num coral você pode beber todas elas, por onde você onde tinha sessenta e tantas pessoas, depois passar. Eu passo por aqui, vejo ali o riozinho cantei no Madrigal (O Madrigal de Brasília cheio de folha, limpo ... Limpo, limpo, tiro os surgiu em 1963 percorreu uma trajetória galhos e me sento e fico assistindo. E de vez pontilhada de sucessos no cenário da músi- em quando a natureza me oferece assim um ca erudita de câmara) onde éramos só seis, beija-flor que atravessa e dá um mergulho ali seis homens que cantavam. Fiz curso de te- (gesticula) ... Eu estou aqui ... Não me mexo atro, cheguei a ensaiar uma peça de teatro. (fica parado imitando a situação). Ele posa Quer dizer, eu tive uma coisa social que não lá, eu fico olhando pra ele e não me mexo. tinha tido até então. Porque ali dependia de Ele dá um mergulho de lá e posa aqui, eu mim, eu sabia que eu não ia embora. Ou, se fico olhando pra ele e não mexo (parece es- eu fosse embora, seria na hora certa. Eu não tar revivendo a cena). Fico olhando (risos). iria dali arrastado pelo meu pai, né? Então Ele vê que eu não faço nada, ai fica na mi- eu me abri para esse tipo de coisa e tenho nha frente ... Ele dá um espetáculo. Ele mer- grandes amigos de Brasília ainda. gulha, ele chia, ele pia voz alegre) ... Eu fico Lívia - E até que ponto essa solidão é fer- assim: "Não, não. Obrigado por estar assis- tilizante para a tua arte? tindo isso" 'rindo e demonstrando emoção). Ney - Eu necessito dela! Não me sinto Isso pra mim... ossa, é uma manifestação. solitário e não há sofrimento nisso (voz fir- Alan - A questão da solidão. Como é me). Eu não sou solitário, eu preciso ficar que isso afe a os elacionamentos com seus sozinho. É criativo, pra mim, estar sozinho, arniqos? sabe? É um momento em que eu encontro Ney - ão afe a os meus relacionamen- a coisa toda que me move. Eu digo em to- tos. dos os sentidos: artisticamente, em termos Alan - De alguma forma você se restrin- humanos O meu espírito. É sozinho que eu ge aos seus amigos? me sinto . Ney - Não, não. Eu não sou solitário. Não Luar - O que você faz quando está sozi- é essa a palavra. Eu gosto de estar só, mas nho? eu não sou solitário. Não sou uma pessoa (Silêncio) anti-social, eu tenho muitos amigos. Ago- Luar - Pensamentos? ra ... Não sou da noite, não sou de boate, Ney - Olha, eu fico muito sozinho por não gosto de beber, nunca gostei. Mas eu contingências da minha vida. Por exemplo, tenho amigos, saio com os amiqos. eles vão eu fico num quarto de hotel sozinho. Muitas até minha casa, eu VOL a casa deles. Eu sou horas. Eu leio muito. Agora, quando eu es- aberto a novas amizades. Eu não sou uma tou em contato com a natureza, sozinho, pra pessoa fechada, por esse fa o. Isso não é li- mim é um desfrute que vocês não têm no- mitador de nada. Isso é necessário pra mim, ção do que é. Aí é transcendental mesmo, é pro meu bem estar me al. transcendental mesmo. É uma coisa assim Célio - Ney, m da do m pouco de as- que não precisa de droga, sabe? sunto ... E com relação a sexualidade, como você lida com isso? IINão me sinto Ney - Ela é prese te na minha vida, de uma outra maneira" E era entregue ao solitário e não há sexo. Célio - Qua s a i eira experiência se- sofrimento nisso. xual? Ney - M'I"' a pr eira experiência sexual Eu não sou solitário, foi com 13 a os, 3 a os" Mas com 11 anos eu já sabia que goza a. Eu já me masturbava eu preciso ficar com 11 anos, diaria ente" Meus amigos di- Durante o show, Luar, ziam: "Nossa ocê a' ficar doente, vai ficar levantada por Célio, pôde sozinho. E criativo, jurar que foi vista por Ney. tuberculoso " E eu diz.a assim: "Como uma Enquanto Lívia, noutro coisa boa dessa va me matar, vai me deixar canto da multidão, esfor- pra mim, estar maL". Com anos, muito precoce, né? çava-se, nas pontas dos pés, para ver nem que fos- sozinho". Luar - Foi .ocê que se descobriu? sem os brilhos e paetês. Ney - Meu irmão mais velho me deu uns

REVISTA ENTREVISTA I 14 toques (risos). Ele me disse que era pos- mim era uma coisa maravilhosa e prazero- Edgel e Célio reuni- sível, sabe? E a eu fui procurar e, quando síssima. Eu podia transar com uma pessoa ram-se na cantina da Co- municação Social, antes descobr, não larguei mão mais. hoje que eu nunca mais visse, mas, naquele de todos irem ao hotel, Célio - E o "outro" como entrou na sua momento, eu a amava. para decidir qual seria vida? Célio - E quando as mulheres participa- a primeira pergunta da entrevista. Após várias Ney - O "outro" entrou muito mais tarde. ram ou deixaram de participar da sua vida? idéias, conseguiram de- Com 13 anos, entrou uma mulher, uma me- Ney - Elas já participaram mais ativamen- terminá-Ias. nina. E rapazes foram muito depois, muito te. Hoje em dia, é menos ativamente, mas depois, até eu ter coragem ... O problema não significa que, dentro de mim, isso esteja não era os outros, era eu. Eu não tinha pro- bloqueado. (Pausa) Sou uma pessoa, como blemas com o que as pessoas iam pensar já lhe disse, de mentalidade muito aberta. J a meu respeito. Eu tinha problemas com o Estou aqui no mundo, sabe? Se eu encon- que eu ia pensar. trar uma mulher muito interessante, que Célio - Pode-se dizer que era um precon- aceite uma pessoa totalmente transgresso- ceito? ra, como eu sou, louco, como eu sou - no Ney - Era um preconceito. O primeiro melhor sentido da palavra - não tenho nada homem com quem eu transei ficou duran- contra. Agora, eu não sei se eu seria capaz te muito tempo na minha vida. Eu que me de viver casado com ninguém, morando na 'l afastei dele. Foi uma história louca porque mesma casa. O ideal pra mim de qualquer eu idealizava: homem com mulher tem ci- relacionamento, com homem ou com mu- úmes; homem com homem não pode ter. lher, é cada um na sua casa. Eu acho que a PÔ,foi a pior mancada da minha vida achar coisa cotidiana é muito chata, desgastante. que isso não poderia ser. Foi um ano e meio Bruno - Mas você já passou por essa ex- que eu penei na mão de um camarada lou- periência? co, ciumento. Eu ia vestir uma calça e, na Ney - De viver junto já ... hora de sair de casa, ele metia a mão. Se Bruno - E não deu certo? a mão não passasse, ele dizia assim: "Tem Ney - Olha ... Durante alguns anos, eu de trocar essa calça porque muito aperta- consegui conviver com o fato ... da". E eu dizia: "Mas todas são. Peraí! A que Bruno - Alguns anos ... ponto nós vamos chegar? Do que se trata?". Ney - Poucos, poucos ... Aí nos desen- Eu estava no carro e olhava para rua, e ele tendemos, por alguma razão que não tinha dizia: "Já está olhando, galinhando?" E eu nada a ver com isso (o fato de viverem jun- dizia: "Estou galinhando, sim, com aquela to), ele saiu da minha casa e foi morar na porta, estou galinhando com aquela vitri- outra rua. Aí ficou ótimo! ne". Eu não estava olhando para ninguém. Bruno - E vocês continuaram? Aí, o coroamento disso é que ele tentou um Ney - Continuamos. Eu morando numa suicídio. Mas ... Eu soube depois que ele já rua e ele na outra. Foi ótimo, até que ele tinha tentado aos 12 anos, só que eu não morreu. sabia. Eu achei que tinha sido por minha Alan - Ney, quando você começou nos causa, porque eu não quis mais a história. Secos e Molhados, a sua opção sexual não E foi, mas era um problema dele. Então, eu era aberta às pessoas ... fCquei com isso muito mal resolvido. Depois Ney - Era! A imprensa é que não dizia. dele, eu não me aproximava de ninguém. Eles (jornalistas) me perguntavam assim: Se eu me interessasse por alguém, eu can- "E sexo?". Eu falava tudo que eu achava so- e ava essa pessoa, tirava da minha frente. bre sexo, quando eu ia ler tinha assim: "Ah O máximo que eu me permitia era sexo e no amor, ele pensa ...". Mas eu não falei de sexo sem perguntar nem o nome. Não me amor, eu falei de sexo, que história é essa? eressava o nome. E depois dos 30 anos, Eles não publicavam, eles tinham proble- v'via para o sexo. Eu não dormia se eu mas. ão "trepasse". Já estamos falando do tem- que eu era dos Secos e Molhados. Eu só eria esbórnia. Vivia para isso. Mas nunca e culpa. Sexo pra mim nunca foi sujeira, se o pra mim nunca foi nojento, sexo pra Antes da entrevista, irn nunca foi pecado. Nunca acreditei em eram notáveis a ansie- ecado (com ênfase nas frases). Não acre- dade e preocupação da equipe. Foram dois carros . o em pecado! Eu acho que pecado é de alunos em direção ao queio, somos nós, é preconceito. Peca- hotel. No caminho, todos a im é fazer mal a uma pessoa. Isso pareciam estar na expec- tativa de saber como serié ão faço. Pra mim isso não pode, isso o tratamento de Ney co e . o dentro do meu código. Sexo pra nosco.

NEY MATOGROSSOl15 Quando avistamos Edgel - Mas antes de você ser assim lá no Matogrosso, porque eu estou vendo o artista vindo ao nosso tão bem resolvido quanto ao sexo, você ti- aqui dois homens. Eu convivia diariamente encontro, demoramos a darnos conta de toda a nha essa questão de não querer se assumir com eles e, em nenhum momento, eu via experiência que vinha jun- gay ... nada de efeminado. Então, ali, eu já come- to daquele corpo. Alguém Ney - Claro! cei a considerar a possibilidade de realizar perguntou: "É ele?". "Quem, o Ney?". "É sim, é Edgel - Isso está atrelado à questão da uma coisa que sempre me chamou atenção ele!"."Ai meu deus!". disciplina do seu pai militar? e eu temia. Mas não foi no quartel. Ainda Ney- Não! Não era disciplina, não! Imagi- demorou ... na, eu ia considerar ele (o pai)? Uma pessoa Edgel- E foi com quantos anos? que até na porrada a gente saia. Não era ele, Ney - Foi com 21 anos, em Brasília. era eu! Eu tinha pavor (aos gays), porque Alan - Você chegou a experimentar de a minha referência era uma ... Eu conhecia tudo? um camarada, lá em Matogrosso, que ele Ney - De tudo o quê? Homens, mulhe- passava na rua e era achincalhado por todo res, drogas ...? Sim, tudo. Tudo. Tudo que mundo, porque êle era uma (pausa) Geni era disponível naquele momento. (personagem da música Geni e o Zepe/ing, Luar - Você nunca se arrependeu de de ), ele era uma ofensa à nada? cidade, e a cidade ia em cima dele ... E eu Ney - Absolutamente. Tudo para mim olhava para aquilo e dizia: "Deus me livre! foi experiência. Agora, também tem o se- Deus me livre disso!". Então, a questão era guinte: eu nunca fui dependente. Eu usei as essa. Quando eu saio de lá (Matogrosso), drogas. Os ácidos que eu tomei - eu tomei no quartel, foi o meu primeiro ... Não conta- 20 ácidos - eu usava para abrir as portas to, porque eu não fiz nada, mas eu via! Vou da percepção. Recentemente, tomei um só dizer pra vocês o que foi que eu vi e que para ver do que se tratava. Não tem nada a fez a minha cabeça mudar com relação a ver com aquilo que era lá nos anos 70. Não esse assunto ... Eu dormia num alojamento vale perder meu tempo, tomando uma por- que era fora do quartel, onde eu era da PA, caria dessa. Lá, abriam as portas da percep- Polícia da Aeronáutica, onde tinham muitos ção. Na primeira vez que tomei, eu entendi remadores, másculos, viris, machos ... Um o que era ser humano neste planeta, sabe? dia tava um calor danado, eu não conseguia Eu entendi isso. Tive um entendimento tão dormir e era um segundo andar e tinha uma grande que tive uma crise de choro, mas muretinha assim, eu sai e, quando sai, eu não era choro de sofrimento. Era choro de vejo assim: sentado na mureta, um rema- emoção por estar entendendo o porquê eu dor dessa largura (imita um homem forte) estava aqui. e aqui, encostado no meio das pernas dele, Débora - Como você conseguiu evitar a abraçado nele, outro homem dessa largura. dependência? Eu não vi nada de veadagem, eu não vi nada Ney - Olha, tomei 20 ácidos. Aí, no vigé- de efeminado! Eu vi dois homens! Você não simo, eu disse assim: "Bom, aonde eu tinha sabe o que foi isso na minha cabeça. Por- que ir, eu já fui. Não estava indo além. Tinha que.eu nunca tinha imaginado essa possi- um limite para aquilo. Bom, ficar tomando e bilidade, eu nunca tinha imaginado que isso não ir além não me interessa". Maconha. Eu existia. Quando eu vi isso, eu não sei o que adorava a maconha, porque ela me deixa- aconteceu, porque foi como se eu tivesse va introspectivo, criativo, cheio de idéias ... tomado um choque elétrico. Ai se abriu uma Mas teve um momento em que eu fumava a possibilidade dentro de mim ... Necessaria- maconha com você e conversava com você mente, não precisava ser aquilo que eu via e começava a entender uma coisa paralela. Eu ficava assim: "Ela está me dizendo isso, mas está querendo me dizer aquilo". Eu IIEu não vi nada de pensava: "Ih! Estou ficando maluco". Não estava a fim de ficar nessa, de ficar conver- veadagem, eu não vi sando com alguém e entendendo uma coisa que ela não está dizendo. Aí, eu parei. "Não, nada de efeminado! não quero isso". Cigarro foi mais difícil de me livrar, mas me livrei. O ácido era uma Eu vi dois homens! coisa muito séria. Eu tomava banho para to- mar ácido e botava uma roupa branca. Era Ney, diferentemente Você não sabe do artista performático um ritual. Eu ia para a natureza mais pura. em palco, estava trajando o que foi isso na Nunca tomei ácido para ir a uma festa. Eu roupas simples, como um nunca tomei ácido dentro de uma cidade. homem comum - calça jeans surrada, camisa bá- minha cabeça" Eu ia para as naturezas mais maravilhosas sica e tênis ali star. para tomar um ácido. E o que mais? Nunca

REVISTA ENTREVISTA I 16

}H ão gosto de álcool. ao Célio). Você deve estar me achando um Todos ficaram im- anuele - E hoje, Ney, o que te faz ficar bobo ... Né? Porque eu sou assim. (risos) pressionados com a apa- rência jovem, apesar dos ospectivo? Existe alguma coisa que Célio - Não ...(Risos de todos) 68 anos, do cantor. A e colocar nesse estado? Andréia - (Retomando) Em outras es- descontração favoreceu, e - Olha, essa história de sentar na bei- feras da sua vida, você também se impõe inclusive, o desenrolar da entrevista. A informalida- = esse rio e ver esse beija-flor era como se algum limite ou você se deixa ser livre com- de de Ney contribuiu - e _w ~ esse tomado uma droga. Eu sou tão pletamente? muito. a o com essa coisa da natureza que fico Ney - Sou livre, mas tenho meus crité- • ersensível quando estou em contato. On- rios de liberdade e de limites. Não sei exa- re ,passei o dia fora na casa de um amigo tamente a que você está se referindo, mas e em uma casa numa praia aqui. Na hora eu tenho. Como eu disse, meus limites são :: que eu me vi sozinho, porque era uma elásticos, mais do que os da maioria. As aia deserta, estávamos eu, ele e a mulher pessoas são muito rigorosas e presas den- :: e... Eu disse: "Meu Deus, como eu esta- tro de conceitos, contextos e educações. precisando disso e não estava me dando Lívia - Falando em liberdade, na fase da a". Eu estou trabalhando feito louco. Eu adolescência, você era muito inseguro com paro na minha casa. Nem naquele meu o corpo, como você se tornou tão liberto, o (se refere a sua propriedade no Rio de capaz de se soltar no palco? eiro). Chego, passo dois dias e viajo. En- Ney - Quando adolescentezinho, tinha era um prazer estar, sabe? Aquela água muita vergonha. Ninguém via a minha mão. na batendo no meu pé, aquele vento, Ela estava sempre no bolso, porque eu acha- ele sol gostoso. Não tem droga, não pre- va a minha mão horrível. Ninguém via meu cisa. Eu acho que você pode chegar a essa pé porque eu achava o meu pé horrível. Não -cepção sem droga, desde que você se tinha coragem de tirar a camisa na frente de = a para isso. E não estou te dizendo que, ninguém, porque me achava horrível. Tudo a vez por ano que role uma maconhinha, era assim. No dia em que eu caí lá naquela e eu não dê dois "tapinhas". Mas são Aeronáutica, no primeiro dia, com aqueles s "tapas" e uma vez por ano. Nem sei de 40 recrutas, e tinha que tomar banho todo e veio, sabe? Não gosto. Tenho horror mundo nu e junto, eu disse: "Meu Deus do e gente que fuma dez baseados de maco- Céu, como vou tomar banho com toda essa por dia. Eu digo: "Gente, vocês estão gente? Eles vão ver o horror que eu sou" erdiçando, dá licença. Estão jogando (risos). Aí, tirei a roupa, entrei no chuvei- - a, tão gastando dinheiro à toa. Porque fu- ro, com todo mundo. Ninguém me achou isso como vocês fumam cigarro, vocês horrível, sabe? (risos). Eu era normal, igual -; estão tirando o proveito do que aquilo a eles. Aí, comecei a me acostumar com o ; "ece". Porque oferece um proveito, sim, meu corpo. Dentro do alojamento, já tirava a sado da maneira certa. Todas essas coi- roupa na frente de todo mundo, me trocava, que a natureza oferece, ela oferece sim. e fui me acostumando. E quando fui ser ar- ão estou falando da cocaína. E cocaína eu tista, usei isso como uma arma para desafiar eio. E a cocaína não é da natureza. Eu as autoridades constituídas que era a "filha o coisas puras da natureza. da puta" da ditadura militar. Eu fiz isso para uar - Quando você está em contato desafiá-Ia! Fiz isso porque eu sabia que ela a natureza, vendo o mar, o beija-for. .. era moralista, cachorra! Eu disse: "Então, e vem à sua cabeça? agora vocês vão ver uma pessoa livre! Uma ey - Esses momentos são muitos cria- pessoa livre!". Na hora em que eu pintei a , vêm muitas idéias, muitas coisas. É minha cara ... Claro que isso não era uma o interessante. Agora, também faço coisa antecipada. Eu fui descobrindo, sabe? exercício de ficar só contemplando. É Nas minhas primeiras apresentações, ainda ontrole. Paro tudo e vou contemplar. não me maquiava daquela forma. Quando contemplando. Esse beija-flor eu con- perdi o rosto, eu disse: "Ah, agora, meu fi- ei. ão queria nenhuma informação lho, vocês vão ver a cor da chita. Eu vou - s além dele. E tinha outro que, quan- fazer loucuras. Vou desatinar nesse Brasil. o mundo estava na cachoeira, e ele Quero é ver o que vai acontecer".

- d em cima da gente. Ah! Isso a gente Célio - Você já disse, algumas vezes, em - a sendo abençoado. Um beija-flor aqui outras entrevistas, que você usava esse apa- A entrevista estava _ a cabeça, tomando banho na mesma rato de máscaras e pinturas para proteger marcada para 14h30min, c::ad"i.oe";raque você está? Ah, dá licença! um lado frágil. Que fragilidade era essa... mas, por sugestão de éia - Você estava falando de limites, Ney - Não, não. É porque eu ouvia di- Ney, que recebeu o grupo pessoalmente no hall do ê mesmo impunha com relação às zer que artista não podia andar na rua, que hotel, começou quando artista não tinha vida particular, que artista a maior parte da equipe (ele interrompe, se dirigindo não podia nada, né? Uma vez vi uma cena chegou ao hotel, às 14h.

NEY MATOGROSSOj17 Por conta da mudança mente aos 31 anos? de horário, alguns alunos chegaram atrasados, com Ney - Porque foi a hora em que a oportu- a entrevista já em curso. nidade surgiu. Foi a hora em que me procu- Felizmente, o "acidente raram para ser cantor. Foi a hora que a Luli de percurso" não pareceu afetar de forma negativa o (cantora, compositora e amiga pessoal de resultado da entrevista. Ney) , que era a minha amiga, conheceu o João Ricardo em São Paulo, e eles já tinham montado um Secos e Molhados que não ti- nha dado certo e queriam montar um outro, mas não queriam botar uma mulher. Eles queriam fazer um trio com uma voz aguda, mas não queriam mulher e não achavam no Aeroporto do Galeão (RJ), quando Ro- um homem. Aí, a Luli disse assim: "Eu co- berto Carlos estava lá, veio um bando de fãs nheço um homem que tem uma voz aguda". pra cima dele e agarraram ele. Ele é um de- Ela era a única pessoa que me ouvia cantar ficiente físico e quase caiu. Fiquei horroriza- porque ela dava aula de violão na casa dela, do e disse: "Mas que direito as pessoas têm na casa onde eu fazia meu artesanato, que de fazer isso seja com quem for?" Então, eu tinha quintal, que podia sujar - porque eu queria preservar isso. Agora, eu descobri usava colas, vernizes, essas coisas. Quando que, na medida em que eu cobria rosto, que não ia um aluno, ela me chamava lá e ficava eu não tinha rosto, eu adquiria uma liberda- tirando aqueles tons esdrúxulos que eu can- de física que eu jamais poderia ter. to, e eu cantava com ela a tarde inteira. Lívia - Qual foi a resposta da ditadura Célio - E quando foi isso? para essa transgressão? Ney - Ah, isso foi na década de 60. Ney - Ah, eu recebia muito recado. Eles Célio - Mas e o começo dos Secos e Mo- nunca me prenderam, mas tinha gente na lhados? porta da minha casa. Eu ia fazer show e ti- Ney - O começo dos Secos e Molhados nha censura dentro do camarim comigo. No foi 70. Fui apresentado a eles em 72. Ela Rio de Janeiro, na temporada dos Secos e (Luli) o chamou (João Ricardo, jornalista, Molhados, tinha uma censora. Ela chegou e compositor e criador do grupo Secos e Mo- , disse: "Estou aqui porque tenho ordens de Ihados) para o Rio de Janeiro para vir me estar aqui dentro do seu camarim o tempo conhecer. Ele me ouviu cantando e disse: todo com você". E eu disse: "Então, a se- "É a pessoa que eu quero, eu preciso dessa nhora fique aí, mas eu tenho a minha vida voz". Aí eu fui. Ensaiamos o ano de 72 in- para tocar, a minha roupa para trocar, eu te- teiro, só as músicas. E eu fui fazendo peças nho que ficar nu e vou ficar na sua frente. É de teatro em São Paulo, que era como eu problema seu. Aqui é o meu espaço". E eu sobrevivia. Nos Secos e Molhados, eu não ficava nu de propósito, eu ficava nu na fren- recebia nada. Todas as peças que eu fazia te dela, zanzando para baixo e para cima. eram musicais, onde eu tinha que cantar, Azar o dela. Ou azar dela ou ela gostava, né? dançar, me caracterizar e tal. E, em dezem- (risos) bro de 72, nós fizemos a primeira apresen- Célio - Quando criança, você dizia que tação dos Secos e Molhados onde eu estava queria ser cantor, mas esqueceu isso. Por fazendo uma peça, que se chamava "A Via- quê? gem" (peça escrita por Carfos Oueiroz Te- Ney - Porque eu falava fino quando era tes), no Teatro (teatro inaugu- criancinha. Adolescente, não. Mas quando rado em 1963), que era uma adaptação de era criança, eu falava muito fininho e as pes- "Os Lusíadas" (obra de Luís Vaz de Camões) soas pegavam no meu pé. com um elenco de 70 atores. E eu era um Célio - E você relembrou isso quando? dos portugueses que embarcavam para al- Quero ser cantor! to-mar. E era coro, eram os marinheiros que Ney - Eu relembrei isso muitos anos de- cantavam, durante a peça, tinha uma banda pois que eu já era cantor. Eu disse: "Meu ao vivo. Foi onde eu descobri que eu podia Deus, eu dizia que queria ser cantor, sim". dançar. Porque eu ficava no escuro, muito Porque eu dizia que não. Então eu dizia: tempo no escuro - só de vez em quando A escolha do local da "Não, eu não penso em ser cantor, eu pen- a gente aparecia - quando eu ouvia a ban- entrevista - o quarto do so em ser ator" - que era o que eu fiz an- da tocando, tentava reproduzir com o cor- entrevistado =, sugerido pelo próprio Ney, causou tes de ser cantor, né? Aí um dia eu disse: po. Entendi que dava - mesmo sem eu ser certa surpresa, mas foi um "Não, mas eu queria ser cantor, eu esqueci dançarino, bailarino, sem técnica nenhuma bom sinal da disponibili- disso". dade que o artista estava - mas dava para dançar. E quando fomos oferecendo para um bom Célio - Quando li isso, associei ao co- nos apresentar, eu perguntei assim: "O que diálogo. meço tão tardio da sua carreira. Por que so- é que sobra de espaço aqui pra mim?". Eles

REVISTA ENTREVISTA I 18

Ê sim: "Esse metro quadrado, aí". me limitei ao espaço mental ou permitido Era difícil não se imo ou fazer o que eu quiser, tá?", ao ser masculino. Sempre transgredi esse pressionar com a suíte onde Ney estava hospe- a". Nem eles sabiam, nem eu. limite de gestos e de atitudes, mas eu nunca dado. Via-se toda a orla ecei a me mexer e fui desce- quis ser mulher. Sempre gostei de ser do marítima da Avenida Bei- e eu podia dançar. sexo masculino. Acho ótimo. Gosto de ter ra-Mar. Mas o ambiente foi ideal para que a entre- - Como foi a criação do persona- pêlos. vista fosse feita com tran- luar - Voltando à questão da loucura, o qüilidade e conforto. - Ele só ocupou o aparelho mesmo que é ser louco para você? :: is que eu tapei a cara. No primeiro dia Ney - Olha, o meu medo da loucura era

::o que eu me apresentei, eu tinha um bi- muito relacionado com uma coisa de vio- ode enorme, porque eu era um português lência, que me assustava muito. Porque, a peça. Comprei uma grinalda de noiva - por exemplo - antes, quando essas coisas a uela coisa de botar na cabeça -, mandei aconteciam - eu entrava num ônibus no Rio azer uma calça de cetim branca, sem cueca de Janeiro com o dinheiro para pagar a pas- - porque eu queria provocar mesmo e numa sagem. Na minha cabeça vinha assim: "Eu calça de cetim você está nu - e pintei meu vou pegar esse dinheiro, vou dar para o tro- po todo com pó de purpurina dourado. cador, ele vai dizer que não tem troco, para as eu percebi que aquele bigode, ele im- ficar com aquele ..." É um golpe que eles fa- pedia que eu evoluísse numa coisa da cara, zem. Ou dá uma balinha, e o trocador não sabe? Imediatamente, tirei o bigode e com- tem balinha. Eu já imaginava o seguinte: prei aquela maquiagem de circo, de palha- "Ele vai me dizer que não tem troco, não vai ço, aquela coisa branca e preta, e comecei a querer me dar o troco, eu já me segurava na fazer, inspirada no "Teatro Kabuki", (forma "chupeta" - isso tudo na minha cabeça - eu de teatro japonês, com origem no século me pendurava na "chupeta", eu metia o pé XVII) aquela máscara. Aí, sim, não tive con- na cara dele, eu já via a cara dele ensangüen- trole sobre a coisa que vinha. E não queria tada e os dentes partidos" ... Quando eu es- ter. Era uma coisa como se meu inconscien- tava vivendo isso, eu tinha um pavor de que te se manifestasse e eu não me esforçava isso se concretizasse. Eu tinha um pavor da para conter nada. Ouso afirmar que devo a violência! E ela me dominava naquela hora! isso minha sanidade mental. Porque eu ti- Ela me dominava (sussurrando), ela tomava nha muito medo da loucura. A gente sem- conta de mim. Eu dizia: "Meu Deus do Céu, pre carrega um medo, né? Todos nós temos estou ficando louco, eu estou ficando malu- .. um medinho lá, né? Mulheres têm medo de co". Eu tinha muito medo disso . serem prostitutas. Os homens, o medo é de luar - Na ditadura, pelo que eles abusa- ser viado, mas o meu não era esse. O meu vam da violência, eles eram loucos ... era ser louco. Eu tinha medo de enlouque- Ney - Eles instauraram a violência no cer. Brasil. O Brasil não era assim. O Brasil não Emanuele - Então, a máscara não era só era um país violento assim. Eles colocaram para não ser reconhecido nas ruas ... isso dentro do País. Aí, houve a reação, é Ney - Inicialmente, sim. Mas, depois, claro. O péssimo exemplo dado pelos políti- quando eu vi o que ela provocava de catar- cos de cima para baixo, que sempre deram se em mim, (pigarro) eu mantive. péssimo exemplo. E estamos agora nessa Célio - Ney, na época (início da década situação que é salve-se quem puder, porque de 70), existia um grupo imediatamente an- se eles que comandam o País podem rou- terior a vocês, o Dzi Croquete (grupo forma- bar, por que o pobrezinho lá não pode rou- do por atores e bailarinos formado em 1972 e dissolvido em 1981. Com o lema "a força do macho e a graça da fêmea': eles faziam "Era uma coisa como uma sátira aos tradicionais blocos dos sujos se meu inconsciente do carnaval carioca) ... Ney - Não era imediatamente anterior, se manifestasse e eu era ao mesmo tempo, nós estávamos em São Paulo e eles no Rio de Janeiro. Ao chegar às não me esforçava 14h05min, Lívia estava Célio - Existia algum diálogo (entre os tranqüila, até perceber que dois grupos)? para conter nada. todos já haviam subido Ney - Eu conhecia vários deles. Mas era para o local da entrevista. Ouso afirmar que Ela tocou diversas vezes a m trabalho diferente. Eles eram homens campainha, sem obter res- estidos de mulher, fazendo esquetes e fa- posta. Já estava desistin- ando coisas que também eram muito ofen- devo a isso minha do, quando, oito minutos depois do início da aflição, as ao sistema. Nós (Secos e Molhados) sanidade mental" apareceu à porta o irmão ão. Eu nunca quis ser mulher. Eu nunca do empresário do Ney.

NEY MATOGROSSOl19

------• • , J' •.

Edgel deu a largada bar? Por que qualquer um não pode roubar? O melhor você esconde, seu otário". Mas na entrevista fazendo a Então, estamos vivendo uma situação dos ele não chegou a viver o suficiente para en- primeira pergunta e, para a surpresa de todos, a voz "últimos dias de Pompéia", sabe? tender isso. E a gente tem medo mesmo de dele estava pesada e a fi- Débora - Em entrevistas, você esperava mostrar essas coisas. Acha que é fraqueza. sionomia séria, diferente que, depois da queda da ditadura, viesse Não é fraqueza. da descontração de cos- tume. uma política mais ética. Mas você se desi- Lívia - Ney, a mídia omite sua relação ludiu porque a corrupção continuou. Em al- com o . O que vocês tiveram? O que gum momento você fez militância política? foi a amizade e o relacionamento de vocês? Ney - Jamais! A única coisa que me ma- Ney - Olha ... Nós tivemos durante três nifestei foi para as Diretas Já! Fui naquele meses uma paixão avassaladora e que de- comício lá na Candelária (comício que reu- pois se transformou numa amizade que foi niu cerca de 1,1 milhão de pessoas, segun- até o último dia da vida dele. do o jornal Folha de São Paulo, pela apro- Emanuele - E em que época foi isso, vação da emenda Dante de Oliveira) porque Ney? A paixão avassaladora? achava que era uma coisa importante e Ney - Nós nos conhecemos em 79, en- suprapartidária. Eu queria tudo funcionado tão ele não era nada, não era cantor. Era um normal, sem ditadura. Mas eu jamais me menino que dizia que era fotógrafo da Som envolveria com política. Nunca me envol- Livre (grande gravadora, pertencente ao vi e não me envolvo. Cada vez menos me chamado grupo das chamadas "Mejors"), interessa. E tenho horror quando vejo essa mas que não era. Era um pivete de praia fi- mixórdia que a política virou, eu fico decep- lho de um milionário e de um dondoca. cionado. Decepcionado! Bruno - E como você conheceu ele? Emanuela - Ney, você disse uma vez em Ney - Primeiro vi na praia. Não gostei uma entrevista ao Estado de São Paulo que (sorriso). não tem mais medo do seu lado frágil. Eu Bruno - Por quê? queria saber que lado frágil é esse. Ney - Ah ... Achei muito largado. Lindo! Ney - O lado mais frágil é o lado sensí- (sorrisos) Mas muito largado. Um dia uma vel, o lado emotivo, delicado. Eu tinha pre- amiga foi lá em casa. Eu morava num apar- conceitos. Eu achava que expor isso - que tamento de três andares. O Luizinho, que era eu sou uma pessoa sensível, delicada, cari- meu secretário, morava em baixo, no meio nhosa - me fragilizava diante do outro. E eu era uma sala e meu quarto era lá cima. Meus não tenho mais medo disso, pelo contrário, amigos iam lá pro meu quarto e a gente fi- eu acho que isso, em vez de fragilizar, me cava na loucura. A lara (amiga do cantor) foi fortalece, porque mesmo que outro não Use e a gente já tava lá, já tinha tomado mandrix isso adequadamente, ou que faça mau uso /potente indutor do sono), já ia começar a disso, eu estou sendo verdadeiro, eu estou fumar um baseado, e ela disse: "O Cazuza desfrutando. Cazuza era assim, Cazuza não tá aí". E Eu disse: "Aonde?". E ela: "Tá lá em era aquilo que todo mundo fala. Cazuza so- baixo". "E por que você não trouxe ele aqui zinho era uma flor. Vocês não têm noção do pra cima?". "Ah, não sabia se você ia que- que era. Encantador! E eu falava pra ele, eu rer, você disse que não gostava dele". "Não, já tinha passado por isso, e eu dizia assim: mas não é que eu não goste dele. Chama ele "O melhor de você, você não mostra, nin- aqui". Ficamos lá e continuamos tomando guém conhece. Só sabem que você é bêba- drogas, porque ali, meu filho, nessa época, do, que você é drogado, que você é maluco. era de tudo. Lá pras tantas, fumamos vá-

Ao iniciar a entrevista, uma aura de encantamen- to, pela figura inusitada de Ney, impregnava a sala de visitas da suíte presi- dencial do Gran Marquise. Porém, a surpresa inicial logo foi substituída por uma saudável descontra- ção.

REVISTA ENTREVISTA I 20 rios baseados, vários mandrix, ele chegou Emanuelle - Ney, numa crônica sua na Pouco tempo apos o pra mim e disse assim: "Você me dá um revista Piauí, você diz que "muito depois início da entrevista, e interrompe a pergunta beijo?". Eu disse: "Dou" ... Não me custava meu grande amor morreu nos meus braços que estava sendo feita nada. Nos demos um beijo e desapareceu (...) Eu dizia: Por favor vá, não se esforce pela Andréia e comenta o resto, não tinha mais ninguém no quarto, mais". Quem era esse grande amor? com o grupo que Célio de- via estar achando a forma ão tinha mais quarto, não tinha mais nada. Ney - Não era (famoso) ... Eu nunca na- como ele pensa o mundo ós ... Entramos numa coisa louca, um com morei artista. Era um médico, que eu co- uma bobagem. o outro ... E um beijo que a gente não se lar- nheci na praia e vivemos 13 anos juntos ... gou, e ficamos assim ... E ali, pronto, a gen- Quer dizer, cinco juntos, depois ele se mu- te ficou três meses completamente loucos dou, mas quando ele adoeceu e ficou mal pelo outro, era recíproco. Era uma coi- eu trouxe ele pra minha casa e cuidei dele que ... Nossa! (silêncio) Três meses de- até o fim ... is, ele desapareceu e apareceu dentro da Emanuelle - Que era um desses três nha casa, três dias depois, com um tra- grandes amores? ante. Ele (Cazuza)· sujo com o bandidão Ney - Era o grande amor ... Foi o grande o negão, todo esquisito. Eu disse: "Que amor! - haçada é essa? Tudo bem, nós somos li- Célio - A sua primeira experiência com ~es, mas me poupe" ... Eu não ia botar um morte foi com as crianças, depois essa ex- a-a daquele na minha casa. Ele ficou puta periência com morte foi repetida. Você mes- - eu uma cuspida na minha cara, porque mo fala que chegou a ir a três velórios em era assim ... Eu meti a mão na cara dele uma semana (na década de 80, Ney perdeu - isse: "Fora daqui! Saia daqui" ... Três dias vários amigos vitimas de AIDS) ... eoois a gente já tava junto, mas já noutra ... Ney - Velórios não ... Enterros. :; -routra ... Nunca nos separamos. De vez Célio - E você passou por tudo isso imu- quando a gente tinha uma recaída, mas ne? ~a uma coisa muito mais de amigo ... E fo- Ney - Eu não passei imune não, eu so- s amigos até os últimos dias dele. Eu ia fri muito ... Só que eu não estacionei na dor, = -ra casa dele, na casa da mãe dele, e fica- eu não estacionei no sofrimento ... Tudo que =:: lá só massageando o pé dele ... Ele já tava eu tinha que viver, vivenciar, eu vivenciei. .. reta final. Quando acabou, acabou ... Não vou te dizer Célio - Você se dava bem com a Lucinha que eu não fiquei de luto - eu precisei de _..JcinhaAraújo, mãe do Cazuza)? alguns anos para me refazer - porque eu Ney - Muito bem. Sempre nos demos perdi as minhas referências. Eu perdi ami- 'to bem. gos de trinta anos de amizade ... Não um, Célio - E quanto ao fato de você ter fica- vários! Mas eu não fiquei estacionado na de fora do filme que conta a história da dor. Na verdade, quando eu botei a mão a dele? no peito do ... (grande amor) ... E pedi pra Ney - É... Não estou nem aí (bate com ele ir e ele foi, eu disse: "Graças a Deus". mãos demonstrado desinteresse) ... Eu Porque o sofrimento era uma coisa que eu - ei tudo que eu tinha que falar, eu falei na não acreditava que o ser humano fosse ca- - oca ... Se era uma ficção, eu entendi. Por paz de suportar. Então ... Era uma alívio pra em pio, aquela amiga, não era uma ami- ele ... E pra nós todos envolvidos. Pra mãe - eram várias amigas reduzidas a uma; os dele, pro irmão dele, que estavam todos na antes foram reduzidos a um. Cinema ... minha casa. "O é uma biografia, é uma ficção. Tudo Célio - Naquela época, a camisinha era , mas fiquei puta porque me alugaram mais usada pra evitar gravidez ... to. A diretora ficou comigo uma vez, na Ney - Mas ninguém usava (interrompe) ... ha casa, quatro horas conversando ... Camisinha não fazia parte do contexto ... Um momento que eu conheci o Cazuza até homem casado com medo de fazer filho tal- timo dia que eu o vi. Então por que me ga? Já tinha um (projeto de filme) ... O "Ninquérn usava ... ::- linho Mosca já ia me fazer (no sentido e interpretar Ney Matogrosso no filme) e Camisinha não fazia a azer muito bem. Não entendi o porquê. A retora me disse que eu era tão importante parte do contexto ... ~ala isso em tom de ironia) que não cabia Ney ficou bastante "solto" durante a entre- em duas entradas no filme. Eu vou discutir? Um homem casado vista. Puxava e repuxa- Edgel - O Cazuza foi o grande amor da va a camisa, tanto pelo _ a vida? com medo de fazer calor na sala (que estava somente com as janelas ey - Não, foi um dos ... Tive três gran- filho talvez usasse" abertas) como pelo je o s amores ... inquieto e despojado.

NEY MATOGROSSOI 21 o artista ora sentava vez usasse ... Era até estranho falar em cami- tivo para se chocarem? no braço do sofá, ora es- sinha. Mau gosto. Ney - Mas naquela época da ditadura mi- tava à beira de sentar no chão. Parecia buscar uma Célio - Quando foi que você começou a litar, aquilo era uma ... Ofensa mesmo ... Para maior proximidade com o usar? uma determinada mentalidade, mas hoje em grupo de entrevistadores. Ney - Comecei a usar imediatamente dia não ... Naquela época, essa sexualidade após ter feito o primeiro teste, que eu acha- que eu falo, que eu não dormia se eu não va que estava contaminado, porque eu mo- trepasse, era verdade. Eu desejava a platéia, rava com uma pessoa que morreu da do- eu queria! Se eu pudesse sair dali e transar ença ... Quando eu fui fazer" o teste, eu tinha com aquela gente toda, eu transaria. (risos) certeza que estava contaminado. Quando Hoje em dia não é mais assim. A sexuali- deu negativo, eu não entendi nada. Eu per- dade existe, mas eu estou brincando com guntei pra médica que atendia ele (o com- a platéia. Na verdade, a platéia, pra mim, é panheiro): "Olha, você vai e me explica, eu alguém com quem eu tenho um relaciona- tenho que entender, qual é a explicação". mento de 35 anos e, portanto, eu estou brin- Ela: "Ah Ney, não tem explicação, lá na cando com ela daquilo ... Expondo a minha África algumas prostitutas que são expos- sexualidade. Mas não é mais o que era. tas diariamente não pegaram ...". Então eu Célio - Você sempre fala que seu único devo ser igual à prostituta africana ... Porque termômetro é o público. Como é que você não tem explicação. A gente transava sem acha que esse público vai reagir quando camisinha ... Camisinha não fazia parte do você decidir parar? contexto. (pigarro) A partir daí eu comecei Ney - E quem disse que eu vou parar? Eu a usar camisinha. vou parar quando eu for impedido. Lívia - Ney, você canta, dança, provoca, Célio - E o público? Como vai reagir? produz ... Você se considera um artista com- Ney - O quê? Eles me aturarem? (risos pleto? de todos) Eu achava que eu ia parar, mas Ney - Não, têm muitas coisas ... Eu ado- agora eu acho que não. Eu não tenho que raria compor. Gostaria muito de ter o dom ... parar. Eu não preciso ficar dançando o tem- Conseguir transmitir os meus pensamentos po todo ... Ainda tenho energia pra isso, mas com palavras minhas ... não pretendo ficar o tempo todo nessa. Eu Andréa - Não compõe ou não tem cora- posso fazer outras coisas. Eu posso cantar, gem de mostrar? apenas. Eu já vim testando essas possibili- Ney - Não ... Eu já fiz isso, mas eu acho dades todas e vi que posso fazer um show que eu sou muito crítico ... Esse é o meu pro- só cantando. E funciona! Enquanto tiver blema ... Crítico! (pensativo) Mas eu procuro energia eu vou usar e vou desfrutar dela, selecionar um repertório coerente com a mas eu sei que haverá um momento em que minha maneira de pensar ... vai ser impossível. .. O aparelho não vai res- Alan - Você acha que as suas performan- ponder. .. Eu sei o que é ficar velho, o pai da ces ainda chocam as pessoas? minha avó morreu com 104 anos. Você fica Ney - Tem gente que se choca, mas coi- uma coisinha que não tem domínio sobre ... tados ... Se chocar com isso, ainda ... O mun- Luar - Mas isso te incomoda? O fato de do acabando, a gente olha pro lado, guerra saber que ... pra todo lado, maremoto pra todo lado, fu- Ney - Que vou ficar velho (interrompe)? racão pra todo lado, vulcão pra todo lado, e Luar - Que um dia você não vai poder neguinho ainda tá preocupado com isso ... dançar no palco como você gosta. Débora - Mas você acha que já deu mo- Ney - Não ... Eu aceito ... Eu aceito tudo ... Eu estou no lucro, 67 anos! Estou na ativa plenamente. "Eu desejava a pla- Andréa - Ney, e o que te incentiva, o que téia, eu queria' Se te impulsiona hoje, ainda, a ir pro palco? Ney - Eu tenho um enorme prazer pelo eu pudesse sair dali palco! Tudo que eu faço é para chegar a isso. Tudo que eu faço na música é para chegar e transar com aque- no palco e me apresentar ... É o maior prazer que eu tenho. A maioria dos estu- la gente toda, eu Edgel - Ney, você acompanhou a socie- dantes estava sentada no dade em vários momentos, a mentalidade chão, em volta de uma mesa baixa. Isso garantiu transaria. Hoje em na época da ditadura, hoje ... Você acha que um clima informal à entre- a sociedade mudou muito? Evoluiu muito? vista, amenizando a ten- dia não é mais as- Ney - Olha ... Houve uma pequena evo- são de alguns em relação ao trabalho a ser desen- sim" lução, mas ainda é muito preconceituosa ... volvido ali. Não só com esse assunto (homossexualida-

REVISTA ENTREVISTA I 22 de . E muito preconceituosa com negros ... LGBT, acrônimo de Lésbicas, Gays, B sse- O Brasil tem preconceito contra negro, sim! xuais, Travestis, Transexuais e Transgêne- Tem preconceito contra pobre, sim. Só vai ros). Como você estava falando, as práticas pra cadeia pobre e preto. Eu só vou acreditar políticas muitas vezes lhe incomodam. A que o Brasil mudou quando eu vir um des- gente viu em algumas entrevistas que você ses aí (políticos) na cadeia mesmo, sendo disse que não quis em nenhum momento tra ado como qualquer outro preso. Aí, eu ser estandarte do movimento gay e disse in- p o achar que o Brasil mudou um pouqui- clusive que já lhe cobraram isso. Eu queria ... Mas com a sexualidade das pessoas saber o seguinte: você percebeu que essa a certa evolução, uma certa abertura. estandartização podia ser perigosa, podia ebora - Ney, voltando um pouco no ser indesejada? t=::::J}{). ainda nessa questão do preconcei- Ney - Essa estandartização seria reduto- ando você cantava num quarteto mu- ra! O sistema me reduziria a um estandar- - ainda no festival universitário, houve te gay, ponto. Eu não sou ... Isso. Eu tenho anifestação de um cara do público muitas outras preocupações, com muitas = -e chamou de bicha ... outras coisas em nosso País! Portanto, eu ey - Foi a primeira vez que subi no pal- não posso ficar restrito a ser um estandar- a cantar música popular brasileira. Por te gay, porque seria muito cômodo para o sa da minha voz. sistema. ebora - Você sofreu muito preconcei- Roberta - E você percebeu isso ainda no início? ey - Não ... Eu não sofri nada. Quando Ney - Eu percebi isso imediatamente, se maluco fez isso, eu mandei a banda pa- sabe? E não aceito. Agora, tudo bem, acho eu disse: "Pára!", fui pra beira do palco, que os direitos são direitos adquiridos e tal, _ei na frente dele e disse: "O que é? Qual mas, por exemplo, três milhões e meio de que você quer?". Ele ficou assustado, pessoas numa parada gay ... As pessoas u olhando e eu disse: "Toca" ... E conti- têm que ter um pouquinho mais de consci- ei cantando. Na saída - saía todo mun- ência ... Não é só ficar lá de tapa-sexo, se re- pela mesma porta - eu saí do lado dele, quebrando e dando beijo na boca. São três - == passou na minha frente, ele aqui e eu milhões e meio de votos! Exijam seus direi- . (faz gestos representando que estava tos como cidadãos! Vocês são votos que é ....atrá, s do outro) e ele com medo de mim, a única coisa que importa para esse siste- '11 medo que eu fosse agredi-Io por isso ... ma (batendo na mesinha de centro com as ão, não fiz nada. Enfrentei ele no momento mãos cerradas imprimindo o mesmo ritmo e tinha de enfrentar e pronto, encerrou o da voz). Voto! São três milhões e meio só assunto. Eu nunca sofri com isso. Eu sempre em São Paulo. Elege! Faz muita diferença! a reditei em direitos individuais. Eu sabia (ele volta a bater na mesa). Então ... Ou fi- e eu estava enfrentando uma ditadura mi- cam nesse oba-oba, ou sejam mais sérios. tar. .. Para expressar o meu pensamento ... Eu preferia que fossem mais sérios. Não te- ocê não podia. expressar o seu pensamen- nho nada contra, mas se fosse mais sério - . Três pessoas numa esquina não era per- talvez até eu me aproximasse. (Pausa) Mas . ido, vocês não têm noção ... Você sabe não em termos políticos. Eu não quero ser rigiu-se ao professor Ronaldo Salgado)! candidato a nada, jamais quereria me meter -rês pessoas numa esquina; não podia! Ex- nisso, mas acho que é a única maneira de "essa r um pensamento diferente do deles, ser respeitado, não é isso? Se nós aqui sig- ão podia! E eu cheguei seminu, todo pin- nificamos três milhões e meio de votos, vão - o, com uma pena de faisão de um metro olhar pra nós de outra maneira. Ou não? É _ ada na cabeça, fazendo o que me desse um número significativo. ra elha e toda entrevista que faziam eu fa- Lívia - Então você acredita que esses a a verdade ... Porque a primeira vez que grupos gays, eles próprios se vulgarizam? eram me entrevistar, eu disse: "Meu Deus, ue eu vou dizer pra essa gente?". Aí veio a luz: "Fale a verdade! Você não vai ter ::: o preso" ... Agora, falar a verdade tinha ônus ... Eu ia ter que me expor. Mas eu re eri, eu preferi isso; e hoje em dia eu vivo Foi hilária a cara que Edgel fez quando foi in- paz com a minha consciência ... Porque quirido por Ney se teria e optei pelo certo: falar a verdade! coragem de ir a um cru- Roberta - Ney, em relação à militância zeiro gay. Respondeu u "não", surpreso com o movimento GLBT (durante muito tem- modo que o cantor se d- esse era nome oficial do grupo, hoje é rigiu a ele.

NEY MATOGROSSOI 23 Em vários momentos Eles não valorizam o potencial deles em nú- ficam meio putos comigo, as instituições, as durante a entrevista, Ney mero? revistas e não sei o que, porque eu penso ficava em silêncio, pare- cendo tentar lembrar de Ney - Eles não têm consciência disso. Se dessa maneira, mas eu falo para eles. Eu fatos que queria contar. tivessem não ficariam só naquela bobagem, digo assim: "Olha, vocês estão usufruindo Talvez, por isso, muitas de ficar vestido de mulher, de ficar de tapa- exatamente dessa coisa". Existem revistas vezes fugia da lógica com regressões e avanços no sexo dando beijo na boca. gays, porque existe um público consumi- tempo. Edgel - Então você não freqüenta para- dor! Vocês anunciam cruzeiro gay porque das gay? é um público consumidor. É isso, também Ney - Eu não! (pausa) Não. Não freqüen- se trata disso: dinheiro ... Money! Mas não to, não freqüento ... Enquanto for essa coisa é só isso. Vamos pensar em termos mais boba, eu não freqüento! abrangentes. Roberta - E você acha que de repente Alan - Você conseguiu uma independên- não é essa coisa da festa e do oba-oba que cia na produção do seu trabalho que pouca atrai tanta gente, mais do que o movimento gente consegue. A gente queria que você político? De repente se um milhão ... falasse um pouco mais sobre isso. Como é

Ney - Eu acho que eles não têm nem que vo ê cbeqou aqui? consciência. Deveriam ter, né? Deveriam ter. Ney - Enfrentei seis gravadoras. Saí de Agora, eu não estou falando aqui de fundar seis (pausa), para que não interferissem no partido, sabe? Mas de terem consciência de meu trabalho. E eu agora gravo e, depois que significam várias coisas: poder aquisi- de pronto, eu chamo pra eles ouvirem. Mas tivo ... Porque, na verdade, a abertura para não é agora, já tem um tempo. Mas eu en- o homossexualismo (sic) é, principalmente, carei seis. E sem nenhum problema assim. porque representa um poder aquisitivo. Não Não tinha grilo, sabe? vamos nos iludir. Não é por bondade, nem Alan - Você pensou que eles pudessem por cabeças abertas, por evolução. É por- chegar a lhe boicotar? que significa um público muito interessante, Ney - Não. Não, não, não! Sabe por quê? que ganha bem, razoavelmente bem, acima Porque eu tenho uma coisa a meu favor. Eu da média, que não tem família pra susten- nunca dependi de vender disco. Meu traba- tar. Tem dinheiro ... É tudo isso! Temos que lho é focado em show ... O que nunca este- considerar todas essas coisas. Agora, eles ve abalado. Isso nunca se abalou. O público inventaram cruzeiros gays. Deus me livre! de show nunca esteve abalado. O disco dU- Quando falam num cruzeiro gay, eu fico ar- menta, vende mais, vende menos ... Acabou repiado! O quê? Você iria num cruzeiro gay? a indústria agora, mas eu estou com meu (ele pergunta para o Edgel) show lotado. Eu vivo disso. Então eu nunca Edgel - Não, Ney ... temi isso (o boicote), porque eles não po- Ney - Eu também não. (Risos da turma). dem fazer nada contra isso (os shows). Eles Eu não ia perder meu tempo num cruzeiro fizeram. O que eles puderam fazer eles fi- gay porque tudo que eu gosto não é isso. zeram. Eu lançava disco, eles não botavam Eu gosto é da mistura! O que me interes- para vender. Tudo bem. Para mim não mu- sa são todas as possibilidades ao mesmo dava nada. Eu ia pro teatro, fazia um show tempo. Tudo misturado. Eu só vou a boate e lotava [durante] minha vida inteira, sabe? gay que não é restrita. Eu vou pouquíssimo, Eu tenho 35 anos de carreira estável. Não mas eu vou a boate que eu sei que lá eu vou teve altos e baixos. Os baixos considerados encontrar heterossexual, lésbica, gay, gente por eles, que diziam assim: "Ah! Isso não é curiosa, mas está tudo ali. Tudo misturado ... comercial" - eles achavam que isso era um Isso é o que eu acho interessante na vida. baixo. Para mim não era. Para mim era um Isso é o que acho que é a coisa interessan- alto ... Eu ter poder, dentro dessa mentali- te ... De você não estar em gueto e restrito dade, e chegar com o Pescador de Pérolas a uma faixa. É por isso. Mas os gays ... Eles (disco gravado em 1986, pela CBS). E botar. E exigir. Porque eu saí de uma gravadora, IIEu gosto é da mis- porque disse que aquilo (o cd Pescador de Pérolas) não era comercial, não interessava, turar O que me in- e eu disse: "Então, tchau!". E a outra me Preocupados com o quis, e eu disse: "Só vou se lançar! Quer o ( tempo da entrevista, Edgel teressa são todas não-comercial? Se lançar o não-comercial ( e Célio não paravam de se me terá, se não, não". Então, para mim, não r olhar. Algumas perguntas as possibilidades l quebraram o andamento foi um baixo. Isso para mim foi um primeiro \ da pauta. Em alguns mo- momento de firmar minha independência, s mentos, os produtores ao mesmo tempo. foi no Pescador de Pérolas. a trocaram bilhetes buscan- v do acelerar o andamento Tudo misturado" Andréia - Ney, como é que você avalia da pauta. esses 35 anos da sua carreira? Um balanço

REVISTA ENTREVISTA I 24 ê faria da sua carreira ... eu não sou uma pessoa que vive exposta. Terminada a entrevis- - Olha, a primeira coisa que me ocor- Não me interessa isso. Quando eu tenho ta, a "tietagem" foi inevi- tável. Todos fizeram ques- a carreira estável, num país que es- um trabalho pra mostrar eu estou disponí- tão de receber autógrafos, uito rapidamente das pessoas. Se vel! Se eu não tenho um trabalho pra mos- posar para fotos do lado =-..~::",e muito facilmente das pessoas. Eu trar, não me procurem, porque eu não estou de Ney Matogrosso e dar- lhe abraços. O professor aí há 35 anos ... Produzindo regular- disponível! Eu não tenho sobre o que falar. Ronaldo, discreto, prefe- e. Eu não fico dois, três anos sem fazer Eu não vou ficar aqui opinando sobre tudo riu ficar mais distante. -;: a, mas isso é uma necessidade minha. que acontece, como quando o Chico Buar- := ~s ou sempre produzindo algo diferente, que se separou de (o casal -:'0 é pensando no público, não, é pensan- se separou em 1997, após 30 anos de casa- que) tem que ser diferente, interessan- mento). ligaram pra minha casa: "Estarnos -2 e atraente para mim! Para que eu possa repercutindo a separação de Chico, o que +ostrar isso pras pessoas com prazer de é que você tem a dizer?". Eu disse: "Nada. _ ar mostrando uma coisa diferente, sabe? Não tenho nada a dizer. É a vida deles. Eu a coisa com novidades. E é isso. não tenho que opinar, sabe? Eu não tenho Célio - Você falou agora de vendagem, que opinar. Não tenho nada pra dizer". O r e Aí eu fico me perguntando como é que cara ficou puto! O que é que tenho para ê lê essas novas formas de apropriação opinar sobre a separação de Chico e Marie- sical: a pirataria, baixar música, baixar ta? São dois adultos. São maiores de idade. eo. Como é que você ... Que direito eu tenho de opinar sobre isso? E ey - Olha, eu não sei nem o que pen- volta e meia eles telefonam pra gente opinar -~ a respeito disso. Isso pra mim já está sobre bobagens. Eu corto mesmo! Mas ... : disseminado que eu não sei nem o que quando estou disponível, estou disponí- e sar a respeito disso, porque quem tinha vel. E eles já me entendem. A mídia toda é _e tomar uma providência - e não tomou aberta pra mim assim. Não tenho queixas. -; ora certa - eram as gravadoras! Porque Só São Paulo é que ... durante muito tempo _- piratas estão ameaçando há muito tempo o Estadão me sacaneou mesmo e eu igno- - ala os dedos). Aí o que eu vi? Eu vi as- rei eles. Enquanto eles me sacanearam, eu : o Brasil tinha uma rede organizada de ignorei, ignorei, ignorei, ignorei e acabou. as (das gravadoras). Que a música brasi- Agora acabou isso. '" -a era toda colocada no Brasil ao mesmo Débora - Como foi que eles te sacanea- -:: po, porque existia uma rede organizada. ram? ão existe mais! Então eu não sei, eu não Ney - Ah! Eles só falavam mal de mim. - '. Por exemplo, esse show (lnclassificá- Tudo que eu fazia eles falavam mal. Tudo. ~ s, apresentado desde 2007), eu estreei De todos os meus trabalhos eles falavam - e em Juiz de Fora, não tinha disco - eu mal. Falavam mal de mim, falavam mal do ::-a ei o disco dois meses depois -, no dia meu show, falavam mal dos meus discos, eguinte já tinham imagens na internet... falavam mal de tudo! a a mim, isso foi muito interessante, por- Lívia - E como é que você lida com a e as imagens que eu via na internet eram crítica? Por ser um homem de atitude, você interessantes, para mim, que estava fa- também é muito criticado, como é que você ze do, e eu disse assim: "Ah! Então deve lida? _ r interessante pra quem está vendo tarn- Ney - (silêncio) Olha, eu nem escrevo

o •... Isso desperta uma curiosidade enor- carta ... Não tenho saco. Só escrevi carta rr e nas pessoas ... Então, no meu caso, em uma única vez para a Veja (revista semanal '" atando de show, para mim foi só bom, de maior circulação nacional, fundada em z: falta de controle. 1968). porque era uma coisa tão mentirosa Uvia - E como é a tua relação com as que eles publicaram a meu respeito, que eu 'as, especialmente com a Globo? achei que não podia passar ... Eu estreei o ey - Normal com todas elas: me res- em e eu respeito. (Pausa). Não me sub- ~ ·0, não bato cabeça para ninguém. Não • cabeça! Não acho que a TV Globo por :: a TV Globo, eu tenha que bater cabeça ela. Não bato cabeça, como não bato _ra nenhuma. Vou a todas. Tem um limi-

bém ... pra chegar em algum canto, Mesmo no 18Q andar eu não tenho preconceito contra pro- do Hotel Gran Marquise, as, desde que tenham um mínimo de ... na Beira-Mar, ouviam-se as buzinas dos carros e os imo de ... (ele sugere qualidade) Né? jingles dos candidatos a -- o transito muito bem ... Por exemplo, Prefeitura.

NEY MATOGROSSOI 25 r ,

Aproveitando o mo- show Bandido no presídio Lemos de Brito por conta da cabeça doente de quem editou mento de descontração, (maior complexo penitenciário da Bahia), essa nota". Foi a única vez ... O resto quan- ainda durante a despedida calorosa, Ney comentou o porque ia haver um festival de música dos do eles falam mal de mim, eu ignoro, igno- modo engraçado como detentos e fizeram uma enquete dentro do ro ... Agora isso eu não podia deixar passar, os nordestinos abraçam: presídio pra ver quem ... - nós estamos falan- porque isso aí foi maledicência ... E a revista dando um "gemidinho". do de 76, (1976) também outra mentalidade Veja ... Que se diz ... (pausa) Nada! até nos presídios, não é agora. Eles fizeram Edgel - Ney, como você avalia o grau de uma enquete que queriam que um artista qualidade do cenário musical de hoje? fosse convidado pra ir lá para o encerramen- Ney - Olha ... Há produção interessante. to. Meu nome foi o escolhido. Eu ia estrear Porque como agora tudo depende de paga- um show chamado Bandido, eu disse: "Óti- mento apenas para tocar, você sabe disso ... mo! Bandido tem que estrear dentro do pre- Então ... (pausa) Vou falar uma coisa aqui sídio Lemos de Brito, né?" (risos da turma). - eu não estou falando mal de ninguém - Eu fui lá e foi ótimo o show. Foi tudo ótimo. mas eu fiquei sabendo que as gravadoras, Me receberam bem ... Primeiro assim: a po- de uma maneira geral, agora, têm dois artis- lícia ... Me botaram lá dentro e me largaram tas que são a referência e que qualquer um sozinho lá atrás (ele faz os gestos indicando que chegar parecido com aquilo elas que- "o lá etrés") com os presos. Eu disse: "Bom, rem. Fora aquilo, eles não se interessam. vamos ver o que vai rolar aqui dentro, né?". Não estou falando mal dos dois! Apenas é Eu estava lá no camarinzinho, toda hora al- um péssimo exemplo que a indústria dá. Ou guém abria a porta, olhava, metia a cara lá Ana Carolina ou o que parece com o Djavan. dentro, olhava. Eu disse: "Faz uma coisa ... Como é o nome dele? (Jorge Vercilo, a tur- Deixa aberta, deixa aberta essa porta. Já ma diz) Jorge Vercilo! As gravadoras só se que estamos todos aqui dentro, deixa a por- interessam se for isso. A música brasileira é ta aberta". Eles entraram no meu camarim muito mais que isso. Não estou falando mal e começou a rolar uma maconha para tudo deles! Respeito cada um. Agora, a música quanto era lado, lá dentro. Eu disse assim: brasileira é muito mais que isso. A música "Ó, vem cá. Vamos fazer um negócio. Da brasileira é muito mais variada do que isso. porta pra fora, vocês fumam, vocês façam A música brasileira é muito mais rica do que o que vocês quiseram, mas não façam aqui isso. E acho uma pobreza das gravadoras dentro, porque pra neguinho dizer que eu se restringirem a isso, porque eles fecham estou fazendo, não custa. Então, por favor, para qualquer pessoa interessante que não façam dali da porta para o lado de fora". esteja dentro desse padrão, desse molde. Tudo bem ... Sem nenhum problema. Eles Não é nem padrão, é um molde. ficaram da porta, conversando comigo, fu- Célio - A gente pode até pegar sua car- mando ... A revista Veja publicou que eu saí reira, por exemplo. Se a gente olhar dos de lá cheio de marcas roxas, de beliscões, Secos e Molhados (grupo musical formado exibindo meu corpo todo cheio de hema- em 1972 por Ney Matogrosso, João Ricar- tomas (sarcástico) ... Que era uma mentira! do e Gerson Conrad) até hoje com Inclassi- Isso não aconteceu. Ninguém me beliscou, ficáveis, você já fez de tudo um pouco. Já ninguém me pegou, ninguém me tocou, gravou forró, já gravou várias coisas e você sabe? Aí, escrevi uma carta dizendo assim: tem, além da versatilidade, um interesse por "Olha, fui muito bem tratado, fui muito bem novas produções, por novos compositores. recebido. Recebi carinho lá dentro das pes- ey- Sim. soas e as marcas roxas e os beliscões estão Célio - Como é isso? Você sempre bus- ca? Você sempre está ouvindo? ey - Sim ... Sempre que eu viajo ... Cada "Era um homem viagem que faço, eu chego em casa com grandão como ele. uma quantidade enorme de CDs que vão me dando. E, quando eu vou fazer um tra- Olhou para ele. Era balho, eu ouço. Não vou te dizer que chego em casa e vou ouvir imediatamente, mas está tudo separado lá. Quando eu vou fa- Após a entrevista, já de uma extrema a caminho de casa, num zer um trabalho ... Foi nessa que surgiram Corsa 97, 1.0, com seis doçura o olhar dele alguns compositores que estão nesse traba- pessoas, dentre eles o lho, agora. avantajado Célio e o longi- líneo Edgel, Roberta, Lívia, para o filho. Nós Roberta - Ney, têm saído nos jornais al- Luar e Emanuele estavam gumas matérias de produtores que comen- em estado de euforia total. ficamos tensas. Eu tam que a postura dos músicos que estão Todas queriam comentar suas impressões ao mes- me aproximei" começando está mudando, por exemplo, mo tempo. de eles chegarem com um pouco mais de

REVISTA ENTREVISTA I 26 prcãsslo-ialização às gravadoras e de eles dando o escritório dos Secos e Molhados. ~ e a se lançar por outros meios tam- Quando nós voltamos, o empresário que Iheres a a gritando, . do e :es e- estava esperando a gente no aeroporto já jando o que supunham te e - Sim ... Porque agora também é mais era o pai do João Ricardo. "Como? Eu saio sido um sucesso, Celio ~a . gra ar em casa. Porque agora está tudo daqui o empresário era o Moracy do Vai, eu dado a responsabilidade, preferiu manter-se conti- ais democratizado. Quer dizer, você pode, volto e o empresário é o pai do João Ricar- do e crítico nos comentá- co uma pequena aparelhagem, fazer um do?". O João Ricardo disse assim: "Vocês rios tecidos. disco com qualidade. Então está mais fácil assinaram uma procuração para isso". Eu mesmo, nesse sentido. disse: "Eu não assinei uma procuração para Roberta - Então, essa postura de se isso. Eu assinei uma procuração para o que lançar, digamos: pegar o material, colocar você me disse, que era para o escritório debaixo do braço, ir à gravadora, procurar poder continuar funcionando". Então, já vi apoio e tudo mais - a gente tem visto que é a má-intenção. Ali, para mim, acabou. Fui uma tendência recente - existia isso na sua à gravadora e disse: "Não quero mais ficar saída, por exemplo, dos Secos e Molhados com essa gente, não tenho mais nenhuma para a carreira solo? afinidade com essa gente. Estou vendo do Ney - Olha, nos Secos e Molhados, nós que se trata". Todo o nosso dinheiro, nós tínhamos feito uma fita - que na época era deixamos de receber ... Muitas coisas para a única coisa possível - e distribuímos para fazer um escritório faraônico dos Secos e várias gravadoras. Ninguém se deu ao tra- Molhados ... A gravadora me pediu que eu balho de ouvir. Nós só gravamos aquele gravasse o segundo disco e que eu não dis- disco, porque um empresário ficou louco sesse que eu tinha saído antes de lançar o quando viu a gente e foi na Continental disco. Nesse meio tempo, antes de lançar (gravadora) - que eles eram todos amigos o disco, foi uma pessoa do escritório dos dele -, e disse o seguinte: "Se vocês não Secos e Molhados com um contrato para eu gravarem, eles vão gravar imediatamente assinar, para eu ser funcionário do escritório com outra gravadora". Só que eles todos ti- dos Secos e Molhados. Eu disse para o boy: nham fita da gente e sequer tinham ouvido. "Olha, eu não sou funcionário deles, porque Eles não prestam atenção, eles não ouvem. aquele escritório está sendo feito com meu Não ouvem (pausa). Eu ofereço um monte dinheiro. Eu sou dono! Então você leva esse de coisas para eles de pessoas que acho in- papel aqui e, por favor, você repita as mi- teressante, eles, "puf!", não acham. nhas palavras. Você vai chegar lá com esse Débora - Na sua opinião - hoje em dia, contrato, diga para eles que ele (nesse mo- que tem essa questão da pessoa "correr por mento, Ney se referia a ele mesmo) disse fora" mesmo, pela Internet e tal - qual o pa- que não vai assinar para vocês limparem o pel das gravadoras então? rabo com esse papel" ... (silêncio) Ninguém Ney - O papel da gravadora, a única coisa tocou no assunto mais Fomos para o Rio de útil que ela pode fazer, hoje em dia, é distri- Janeiro, o disco (Secos e Molhados, 1974, buir. E nem isso está acontecendo, porque Continental) ficou pronto, lançamos ... No a rede de distribuição também faliu. Então dia que nós lançamos eu oficializei a minha agora tem assim - aqui eu não sei se tem saída. Nem voltei para São Paulo. uma Fnac (Féderation Nationale d'Achat Edgel - Aí veio a carreira solo. Você te- des Cadres, grupo europeu distribuidor de meu perder a fama, perder o público? produtos de cultura e lazer) =, mas fica redu- Ney - Não, mas eu sabia que eu ia re- zido a uma loja grande ou duas lojas ou en- começar do zero, que o público adquirido ão vai para as Lojas Americanas (umas das não era meu, era daquele acontecimento, rneis tradicionais redes de varejo do Brasil). daquele fenômeno e que eu ia ter que dar ão tem mais a distribuição, né? Tanto que provas de que eu merecia. E fui fazer um teve gente que procurou meu disco aqui e trabalho que eu achava coerente comigo e ão tem. Eu disse: "É claro. Eles devem ter não parei. Eu fui fazer. comprado vinte, ai anunciaram que o show Débora - Ney, você já disse em várias 'nha, venderam os vinte. Até que venha entrevistas que convivia até com a idéia da ais ", Porque é tudo assim. Até que ve- morte súbita, não fazia planos para o futuro. a . Mas, antes de chegar aos 60, como é que Edgel - Ney, eu queria saber um pouco você imaginava que estaria agora com 60 Edgel ficou bastante ais sobre o fim dos Secos e Molhados. anos, com 67 no caso? surpreso com a coragem de Ney em revelar fatos da ai foi o motivo real desse fim? Ney - Olha, eu não sei. Eu nunca tive cri- vida íntima na entrevista. ey - Olha, o fim começou quando ... Nós se de idade. Nem 30, nem 40, nem 50... Mas Ficou repetindo, no carro, a os para o México e pediram para dei- foi chegando os 60. Para mim, era muito alguns termos do cantor, que considera impróprios os - eu e o Gerson - papéis assinados emblemático 60 anos, sabe? E eu fiquei um por não acreditar no q e e continuasse tudo funcionando, an- pouco assim, meio perdido, porque eu não ele havia dito.

NEY MATOGROSSOI 27 a avaliação coletiva entendia se eu tinha que mudar minha ma- da entrevista, Edgel soltou neira de vestir, se eu tinha que mudar minha o verbo e falou da pressão que sofreu antes dela. maneira de ser ... Porque para as pessoas, Razão, então, para que eu era um senhor. E eu fiquei inseguro. Eu estivesse nervoso ao en- disse: "Meu Deus, o que é que vou fazer da gatar a primeira pergunta ao Ney. minha vida? Como é que vai ser? Como é que tem que ser?". Eu não sabia, porque eu nem me sentia ... Quando eu fiz 60 anos, eu: "Ah, que nada! Não mudou nada! Eu vou continuar igual ao que eu sou. Não tem que mudar nada por causa disso, por essa coi- sa cronológica". Não tem que ser nada, eu estou aqui. Vocês acham que é anormal um homem de 67 estar vestido dessa maneira? (Ney estava usando jeans, tênis e camiseta) Eu sempre me vesti assim, então vou me vestir sempre assim ... Eu uso umas calças até mais apertadinhas do que eu usava. (Ri- sos da turma) Célio - Você disse que esgotou todas as suas crises na adolescência e que já deu provas de que chegou agora e não mudou nada. Olhando para trás, o que você mais aprendeu, o que você carrega? Ney - A verdade ... A verdade ... Comigo mesmo, sabe? Você sendo verdadeiro, você não tem rabo preso, você não está em dívi- da, você não tem susto, você não tem medo que descubram ... Antes que falassem de mim, eu já falei tudo. Eu estou falando isso com relação a tudo. Claro que a coisa da se- xualidade é a que mais desperta, mas é em todos os sentidos. Agora, tem o seguinte: eu falo tudo, mas a minha vida particular e íntima, é particular e íntima. Vocês jamais lerão no jornal, nem verão fotos minhas me agarrando com ninguém, porque minha vida particular é minha vida particular e eu preservo, defendo e não admito que ousem tentar invadir. Não mesmo.

Até o fechamento da entrevista, a equipe de produção se encontrou várias vezes, trocou deze- nas de e-mails, leu e releu a entrevista editada incon- táveis vezes, extrapolou prazos e recebeu puxões de orelha.

REVISTA ENTREVISTA I 28