Ney Matogrosso Cantor
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Ney Matogrosso Cantor .. t. 4 "4 • , •. Revist{ntrevista Entrevista com Ney de Souza Pereira, dia 8 de setembro de 2008. Edgel - Ney, a Revista Piauí publicou tadas e no fim - da metade pra frente -, eu A decisão de entrevis- um texto seu, no qual você afirma que uma não estabelecia mais amizade nenhuma. Eu tar o Ney foi um grande desafio. Além de ser o pri- das lembranças mais remotas suas é quan- fui muito sozinho por causa disso, porque meiro das seis entrevistas, do você estava sentando em um jabuti, an- pra mim era um corte. Eu sentia muito o o trabalho seria realizado dando, aproveitando a natureza, Mas quais afastamento de pessoas com quem estava com um artista conheci- do nacionalmente, irreve- outras lembranças você tem do primeiro desenvolvendo algum tipo de amizade. No rente e ousado, que tem estágio da sua infância? (A Revista Piauí foi final, eu já não me envolvia mais. Eu resolvi anos de experiência com ançada em outubro de 2006. É uma revis- não ter que passar por isso de novo, então a mídia. a mensal, idealizada pelo documentarista não me envolvia. A última parte toda, que João Moreira Salles). foi mais em Mato Grosso mesmo, eu fiz o Ney - Eu tenho essa! Eu em cima de um ginásio ... Eu fiquei o quê? .. Três anos num abuti gigante. Porque pra mim era gigante, colégio e eu não tinha nenhum amigo. Ne- mas ele devia ser grande mesmo, porque nhum ... Eu não queria. eu sentava em cima dele e ele andava co- Célio - Essa solidão era opção? migo horas. Eu me lembro que eu fugia da Ney - É... Eu não queria. E não queria minha casa - porque isso foi na 8ahia -, eu porque sabia que ia tudo acontecer de novo. morava em Amaralina (A Amaralina é um Então eu me isolei. bairro de Salvador eminentemente habita- Lívia - Ney, em que essas mudanças cional. Durante a lI Guerra Mundial foi ali contribuiram para a formar a sua persona- que os norte-americanos instalaram o pos- lidade? o aeronáutico que, após o conflito, passou Ney - Não sei (pensativo). Devem ter para a Aeronáutica, hoje funcionando o 19º em alguma maneira sido ... Porque pra uma Batalhão de Artilharia Anti-Aérea), que não criancinha, estar aqui, estar lá... De alguma inha absolutamente nada. Tinha a minha maneira isso deve ter. .. Olha, o que eu acho casa - a casa que a gente morava no alto que foi fundamental mesmo pra mim, foi a -, o mar embaixo, o quartel do exército lá volta pra Mato Grosso com 13 anos. Isso pra a ponta. Pra trás tinha uma leiteria e um mim - que eu acho que foi - é um marco na erreiro de candomblé, e eu fugia pro terrei- minha vida, porque eu cheguei ... Nós fomos o (Religião afro-brasileira que surgiu com o morar numa vila militar recém-construída, onhecimento dos sacerdotes africanos que que era num lugar onde não tinha nada. Era oram escravizados e trazidos da África para no meio do cerrado, eles rasparam o chão e Brasil, entre 1549 e 1888). A primeira vez fizeram aquele monte de casas. Só que eu e eu fiz isto foi uma confusão, porque nin- chegava do colégio todo dia ao meio dia - eu ém sabia onde eu tava, quase chamaram tinha onze cachorros - e eu me embrenhava :: polícia. E depois disso, eu sempre ia. Não dentro desse mato e ia longe ... Muito longe! se ... Eu não sabia o que era, mas eu achava Tinha uma lagoa onde eu tomava banho ... e aquilo era Carmem Miranda. Eu ouvia Eu entrava no mato e tirava a roupa, era -a ar de Carmem Miranda e eu via aquelas uma necessidade minha. Eu entrava nesse Iheres dançando e achava que aquilo era mato e ficava nu - e meus cachorros -, e eu em Miranda (artista nascida em Portu- andava à tarde inteira. Então, como eu mo- _a que fez carreira no Brasil e nos Estados rei alguns anos lá, eu comecei a entender os dos entre as décadas de 1930 a 1950). ciclos da natureza, coisa que a escola não =: e dizia em casa que ia ver Carmem Mi- ensina, que ninguém ensina, na verdade fa- a. Então essa é a minha primeira me- lam: "Ah! Tem primavera, verão, outono, in- a. verno". Mas você não sabe o que é que é. E Célio - Você é filho de pai militar, né isso? eu entendi isso. Eu vi a vida me apresentan- - ...d•ava muito - você morou em quatro ci- do isso, eu vi a natureza me apresentando Passada a fase da escolha do entrevistado, um período curto de tempo. Como é isso. Eu entendia o ciclo de procriação dos começamos a elaboração ê idava com essas mudanças cons- passarinhos, dos animais. Eu pegava filhote da pauta, sem a certeza de do chão, botava no ninho. Eu via momentos que daria certo, devido ao pouco tempo para a apu- - E não lidava. Não tinha o que eu em que na primavera, que dava frutas, eu ração e à dificuldade no p::::r:.Esse zazer. Eu apenas, no começo, es- ia atrás de marmelos do mato (Fruta típica contato com a produção a a as amizades que eram cor- do Mato Grosso do Sul) - uns marmelos do artista. EY MATOGROSSOI 9 Todos os dias, a pro- pretos, assim desse tamanho (mostrou com Edgel - Você tinha quantos anos? dução tentava de algum as mãos o tamanho do fruto) -, pelo faro, Ney- Eu tinha 17 anos. Eu saí na porrada modo contato com Ney. Ney passaria uma semana eu sentia esse cheiro e dizia assim: "Onde mesmo! Ele me deu um soco na cara, me em Fortaleza, por causa está?" (gesticulou como se estivesse sentin- jogou dentro da banheira. Quando ele veio de um show na cidade e do o cheiro) E ia no cheiro. E eu chegava lá. em cima de mim, eu dei-lhe um pontapé no um festival de cinema, mas, a princípio, não con- Então, pra mim, foi muito interessante esse saco, porque eu queria machucar ele, sabe? seguimos nenhum conta- contato com a natureza, porque nunca mais E aí ele me expulsou de casa e eu disse: to mais direto. eu pude viver sem isso. "Olha, saio daqui sim, porque eu não agüen- Andréa - Como é que esse contato com to ver a sua cara, eu tenho nojo de você". a natureza se reflete hoje na sua vida? O que (pausa) Falo isso porque tudo isso foi ultra- é que você sente em relação a isso hoje? passado. Depois disso, tivemos chance de Dessas lembranças que você tinha ... nos aproximar, nos entendemos e ficamos Ney - Não. Não é das lembranças. Isso muito amigos. Eu sou o único filho que ... se reflete no meu contato. Até hoje eu sinto Quer dizer, a partir de um movimento meu - a necessidade e pra mim a natureza é sagra- isso já foi bem mais tarde - eu era hippie lá da. Se existe Deus, ele está se manifestando em São Paulo e ele foi me visitar. Bom, tudo através da natureza. era estranhamento. Porque, quando ele Célio - Edurante a sua criação, Ney, como chegou, eu estava com uma calça laranja, esses valores eram passados - se eles eram eu fui no hotel dele, visitá-Io, e ele me disse passados? Por que você disse que corria e assim: "Olhe, da próxima vez que você vier ia pra um terreiro de candomblé e hoje você aqui, por favor, não venha com essa calça fala desse Deus que existe ... "Deus está na dessa cor". "Bom, se o senhor está mais natureza". Na sua criação ... preocupado com cor da calça que eu estou Ney - Não, não. Na minha criação nun- usando do que comigo, então eu não volto ca ninguém me impôs nada. Minha família mais aqui. Não se preocupe! Eu não tenho o era espírita - meu pai e minha mãe - e eu que fazer aqui, se sua preocupação é essa". ia à igreja católica porque eu queria. Eu fiz No hotel dele eu não voltei mais. Mas ele ia primeira comunhão porque eu quis (pen- me visitar onde eu morava. Eu era assim, sativo). É, nunca ninguém me impôs nada. um hippie, pobre. Eu tinha dois cômodos, Nunca ninguém me impôs nada. um onde eu trabalhava e outro onde eu dor- Célio - E como era a relação com o seu mia. Eu fazia artesanato, eu vivia disso. E ele pai? disse: "Volta pra casa que eu te arranjo um Ney - Com relação a isso? emprego pra você ganhar dois mil reais". Célio - Não só em relação a isso, mas em Dois mil reais era muito dinheiro (ele fala relação a toda a sua criação. Porque ele era em Real (R$), mas a moeda corrente da épo- militar ... ca era o Cruzeiro (Cr$)). Eu disse: "Mas você Ney - Não, a relação com meu pai sem- não está entendendo nada, a forma é pobre, pre foi conturbada desde muito cedo ... Des- mas eu sou felicíssimo. Você não está cap- de muito cedo ... Por quê? O Por que eu não tando. Eu estou buscando outras coisas, não sei. Eu não tenho memória de ter feito nada é o dinheiro". Na véspera de ele ir embora, que pudesse deflagrar a hostilidade dele. nós nos encontramos na rua, perto do Esta- Mas não era ele só que era hostil a mim, eu dão (nome popularmente conhecido do jor- era hostil a ele também. Então, todo o início nal O Estado de São Paulo, o mais antigo da da minha vida foi "brabera". Eu saí de casa, cidade de São Paulo ainda em circulação), porque eu saí na porrada com ele (pai).