UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO - CAMPUS BAIXADA SANTISTA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL E POLÍTICAS SOCIAIS

PRISCILA LEMOS LIRA

MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS E O SERVIÇO SOCIAL

SANTOS 2019 1

PRISCILA LEMOS LIRA

MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS E O SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, Mestrado Acadêmico, da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Renata Gonçalves.

SANTOS 2019 2

Lira, Priscila Lemos.

L768m Movimento de mulheres negras e o Serviço Social. / Priscila Lemos Lira; Orientadora: Renata Gonçalves. - - Santos, 2019.

169 p. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado – Pós Graduação em Serviço social e Políticas Sociais) - - Instituto Saúde e Sociedade, Universidade Federal de São Paulo, 2019.

1. Mulheres negras. 2. Feminismo negro. 3. Serviço social. I. Gonçalves, Renata. II. Título.

CDD 361.3

3

PRISCILA LEMOS LIRA

MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS E O SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, Mestrado Acadêmico, da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Renata Gonçalves.

BANCA EXAMINADORA

______Profa. Dra. Renata Gonçalves (Orientadora)

______

Profa. Dra. Maria Lygia Quartim de Moraes (UNIFESP)

______

Profa. Dra. Máricia Campos Eurico (FAPSS)

______

Profa. Dra. Rachel Gouveia Passos (UFRJ)

______Profa. Dra. Magali da Silva Almeida (Suplente – UFBA) 4

Às minhas Ancestrais que ousaram sonhar! 5

Meus sinceros agradecimentos

À Profa. e orientadora, Renata Gonçalves, pela generosidade e empatia; Às mulheres negras que me ensinaram a marchar; Ao amor pelo companheirismo de todas as horas; Ao bonde da carona SPxBS: valeu pela partilha; Às mestras e aos mestres que me forjaram até aqui; À Universidade Pública e de qualidade; Às políticas de ações afirmativas; Às minhas ancestrais; Asé!

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RESUMO O presente estudo propõe-se a examinar a relação entre o Movimento de Mulheres Negras e o Serviço Social por meio da análise dos artigos referentes ao tema publicados na principal revista da área de Serviço Social, a Serviço Social & Sociedade entre os anos de 1988 e 2016. Esse período foi marcado por acontecimentos significativos para os Movimentos de Mulheres Negras no Brasil, como o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988) e a Marcha das Mulheres Negras (2015), dentre outras destacadas movimentações políticas que ocorreram nesse intervalo. Historicamente as mulheres negras são silenciadas, invisibilizadas e negligenciadas pelas políticas públicas e pelas produções acadêmicas. Embora sejam protagonistas de relevantes articulações, nacionais e internacionais, que alcançam conquistas significativas para a população negra como um todo, o Serviço Social não tem se apropriado das pautas levantadas pelos Movimentos de Mulheres Negras. Isto fica explícito na sua forma de não pesquisar, não elaborar formulações conceituais e não produzir conhecimento sobre essa parcela majoritária da população. Considerando o projeto ético-político da profissão e seu comprometimento com os movimentos sociais, esta falta de engajamento teórico e político com o movimento de mulheres negras é, no mínimo, contraditório e o que se verifica é que a pauta do Movimento fica a cargo somente das militantes e profissionais negras. Os índices de desigualdades sociais apresentam o racismo, o sexismo, a heteronormatividade, dentre outras formas de opressão, como fundamentais à reprodução da exploração capitalista. As mulheres negras, que compreenderam esta articulação, denunciam em suas ações as desigualdades das quais são alvo privilegiado e apresentam a necessidade de um novo pacto civilizatório, baseado no Bem Viver – princípio que se aproxima do objetivo nuclear à profissão: o fim da sociedade de classes. Qual será o engajamento do Serviço Social neste processo?

Palavras-chave: mulheres negras; Serviço Social; racismo; classes sociais.

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ABSTRACT

This study aims to examine the relationship between the Black Women's Movement and Social Work by analyzing the articles on the subject published in the main journal of the Social Work area, Serviço Social & Sociedade, between 1988 and 2016. This period was marked by significant events for Black Women's Movements in Brazil, such as the First National Meeting of Black Women (1988) and the Black Women's March (2015), among other prominent political movements that occurred in this interval. Historically, black women are silenced, invisible and neglected by public policies and academic productions. Although they are protagonists of relevant national and international articulations that achieve significant achievements for the black population as a whole, Social Work has not appropriated the guidelines raised by the Black Women's Movements. This is explicit in its way of not researching, elaborating conceptual formulations and not producing knowledge about this majority of the population. Considering the profession's ethical-political project and its commitment to social movements, this lack of theoretical and political engagement with the black women's movement is, at the very least, contradictory, of black activists and professionals. The indices of social inequalities present racism, sexism, heteronormativity, among other forms of oppression, as fundamental to the reproduction of capitalist exploitation. Black women, who understood this articulation, denounce in their actions the inequalities of which they are the privileged target and present the need for a new civilizing pact, based on the Good Living - principle that approaches the nuclear objective to the profession: the end of the society of classes. What will be the Social Work engagement in this process?

Keywords: black women; Social Work; racism; Social classes

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABEPSS Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social AMNB Articulação de Mulheres Negras Brasileiras ANM Aliança Nacional de Mulheres BPC Benefício de Prestação Continuada BS Baixada Santista CEBs Comunidades Eclesiais de Base CECF Conselho Estadual da Condição Feminina CEDAW Convenção para Eliminação das Formas de Discriminação contra a Mulher CEDENPA Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará CEMUFP Coletivo Estadual de Mulheres de Favela e Periferia CERD Convenção Internacional para a Eliminação da Desigualdade Racial CFEMEA Centro Feminista de Estudos e Assessoria CFESS Conselho Federal de Serviço Social CNM Confederação Nacional de Municípios CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CONAPIR Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial CRAS Centro de Referência de Assistência Social CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social CRESS Conselho Regional de Serviço Social CUT Central Única dos Trabalhadores EFLAC Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe ENF Encontros Nacionais Feministas ENMN Encontro Nacional de Mulheres Negras FBPF Frente Brasileira de Progresso Feminino FBSP Fórum Brasileiro de Segurança Pública FNB Frente Negra Brasileira IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH Índice de Desenvolvmento Humano INFOPEN Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias IPCN Instituto de Pesquisa da Cultura Negra IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LEIM Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher MCV Movimento Contra Custo de Vida MMM Movimento Mulheres Municipalistas MMN Marcha das Mulheres Negras OAB Ordem dos Advogados do Brasil 9

OIT Organização Internacional do Trabalho ONG Organização Não-Governamental ONU Organização das Nações Unidas PBF Programa Bolsa Família PCB Partido Comunista Brasileiro PNAD Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PRF Partido Republicano Feminino PSOL Partido Socialismo e Liberdade SBPC Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência SECONCI Serviço Social da Construção Civil SMADS Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social SMDHC Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania SMPM Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres SMPP Secretaria Municipal de Participação e Parceria SS Serviço Social SUAS Sistema Único de Assistência Social TCC Trabalho de Conclusão de Curso TEN Teatro Experimental do Negro TSE Tribunal Superior Eleitoral UBM União Brasileira de Mulheres UNIBAN Universidade Bandeirantes UNIFESP Universidade Federal de São Paulo UPP Unidade de Polícia Pacificadora 10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 11 1. Eu e elas: nós, mulheres negras, 12 2. Em dados e estatísticas: ainda nós, as mulheres negras, 20

CAPÍTULO 1 FEMINISMOS E LUTAS DAS MULHERES NAS PERIFERIAS, 26 1.1. Mulheres, mulheres negras e lutas: alguns antecedentes históricos, 27 1.2. Os turbulentos anos 1960 e as pautas feministas, 49

CAPÍTULO 2 SAINDO DA INVISIBILIDADE: MOVIMENTOS DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL, 62 2.1. Enegrecendo a pauta feminista: debates e tensões, 63 2.2. Sobre cisões e adesões: os Encontros de Mulheres Negras, 74 2.3. Marcha de Mulheres Negras 2015, 89

CAPÍTULO 3 O SERVIÇO SOCIAL E A PAUTA DAS MULHERES NEGRAS, 98 3.1. Trajetórias de exclusão das mulheres negras, 99 3.2. O Serviço Social e a pauta das Mulheres Negras, 114 3.3. A Pauta das mulheres negras na Serviço Social & Sociedade, 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 152

REFERÊNCIAS, 158

11

INTRODUÇÃO

12

1. Eu e elas: nós, mulheres negras

Poderiam estar nos terreiros, em quilombos, nas universidades. Mas indago, Me pergunto, onde estão as outras? Aquelas vozes que não foram habilitadas… Mulher Negra - Cristiane Mare

O presente estudo visa analisar a relação entre o movimento de mulheres negras e o Serviço Social, fundamental para um exercício profissional pautado pelo engajamento com o projeto ético-político da profissão, especialmente no tocante ao compromisso que a categoria tem com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais, o que passa, conseqüentemente, por um projeto profissional vinculado “a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero” (NETTO, 1999, p. 105).

É oportuno iniciar este texto enfatizando que fui estimulada, como meta final na minha formação educacional, apenas à conclusão do ensino médio, sendo a primeira da minha família a cursar e concluir o ensino superior. Concluir o mestrado hoje para mim significa a conquista e superação de um imenso desafio. E, por isto, esta introdução se mescla com minha própria trajetória, uma forma de compartilhar com tantas outras mulhres negras. Por esta razão também a escrita é feita na primeira pessoa.

Minha adolescência foi marcada pela construção de um imaginário alicerçado por uma lógica racista e segregadora. Assim, meu lugar nunca seria em uma universidade, principalmente pública, pois a imagem que eu tinha desses espaços era de que se restringiam somente a pessoas brancas e ricas. No entanto, em 2004 ingressei na Universidade São Francisco no curso de Serviço Social, tratava-se de uma turma constituída de alunos cotistas do movimento negro EDUCAFRO1, quando me inseri no movimento negro a convite de uma

1 A Educafro é uma Organização Não-Governamental (ONG) que tem a missão de promover, em especial, a inclusão da população negra e pobre nas universidades públicas e particulares, por meio de bolsas de estudos impulsionadas por seus voluntário(a)s associada(o)s. Dentre as 13

amiga do ensino médio. Fui uma das estudantes a obter uma bolsa parcial de 50% dentre 120 alunos oriundos de cursinho pré-vestibular comunitário. O ensino básico na rede pública não me ofertava condições para vislumbrar o acesso ao Ensino Superior e, portanto, entrar na faculdade, mesmo privada, foi muito importante em minha trajetória, sobretudo por causa da concorrência.

Com a necessidade de pagar a bolsa parcial, eu trabalhava durante o dia e estudava à noite, rotina completamente exaustiva, porém necessária. Mesmo assim, a renda não era suficiente para custear a mensalidade, transporte, alimentação, material. Então, em todos os finais de semestre vinha a dureza de fazer acordos financeiros para prosseguir com a rematrícula. Sempre era o momento de refletir o porquê de continuar, se valeria a pena etc. E eu sempre me convencia de que era melhor continuar, apesar de ser tão sofrido, ainda mais sem referências anteriores ou apoio familiar. No segundo ano da graduação, iníciei o estágio na área da saúde no ambulatório do Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (SECONCI), com atendimento aos trabalhadores e a seus familiares, onde permaneci por 02 (dois) anos até a conclusão da graduação no final de 2007.

Logo em seguida, no início de 2008, fui contratada, como Assistente Social, por este ambulatório. No mesmo ano, prestei concurso para a Prefeitura Municipal de São Paulo e conquistei uma vaga. Fui nomeada, em 2009, na Secretaria Municipal de Participação e Parceria (SMPP), na Coordenadoria do Negro. Atuei nesse setor por 06 (seis) meses. Considerando a gestão política municipal naquele momento, minha atuação profissional na Coordenadoria era muito limitada. Solicitei a permuta para a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Nesta secretaria, permaneci por 05 (cinco) anos, sendo esta atuação profissional a mais complexa que já tinha realizado até então, quando o município ainda estava (e continua) se adequando ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Aprendi muito nesse período.

atividades da Educafro, encontra-se a exigência de que o Estado crie políticas públicas e ações afirmativas na educação, voltadas para negros e pobres, com vistas à também com promoção da diversidade étnica no mercado de trabalho, a defesa dos direitos humanos, o combate ao racismo e a todas as formas de discriminação. Ver: https://www.educafro.org.br/site/conheca-educafro/ 14

Atuei com atendimento à população, supervisão de serviços de Proteção Social Básica, Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, nos CRAS/CREAS de São Mateus e Vila Formosa, periferia da região leste da cidade de São Paulo. Nesse período, realizei uma pós-graduação lato sensu na Universidade São Francisco, em Políticas Públicas, Diversidade e Inclusão Social (2009/2010), também como cotista pela EDUCAFRO. Logo depois, realizei outra pós-graduação, esta foi ofertada pela Prefeitura Municipal de São Paulo em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), na Universidade Bandeirantes (UNIBAN), em Gestão Pública da Política de Assistência Social.

As inquietações em torno do debate das questões raciais na atuação profissional começavam a fazer sentido para mim. A temática de meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) foi “A Questão racial na política de Assistência Social”. Naquele momento, a SMADS não realizava a coleta sobre o quesito cor, não havia coleta de dados sobre o pertencimento racial da população atendida. E quando foi uniformizado o prontuário, com o preenchimento sobre as questões de raça/etnia passando a ser obrigatório, não houve qualquer formação para orientação da importância do preenchimento deste item, tampouco como fazê-lo de forma qualificada.

No que se refere ao campo da militância em movimentos sociais, embora sempre participasse de diversos espaços de discussões e formações como EDUCAFRO, UNEAFRO2 dentre outros, em 2014 me filiei ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e comecei a atuar na militância partidária, pois atualmente acredito que devemos tomar os espaços que, como a política, nos foi historicamente negados e que determinam nossas vidas.

Em 2015 tive o privilégio de participar de uma das maiores movimentações de Mulheres Negras que minha geração vivenciou até o momento: a Marcha de Mulheres Negras de Brasília. A marcha mobilizou no mês de novembro de 2015,

2 A Uneafro é uma rede de articulação e formação de jovens e adultos moradores de regiões periféricas do Brasil que se organiza em torno de núcleos: de cursinhos pré-vestibulinhos, pré- vestibulares, pré-concursos, formação para o mercado de trabalho, cursos de formação política, de gênero, antirracista, diversidade sexual, combate às drogas e aperfeiçoamento jurídico. A este respeito, consultar a página da UneafroBrasil em: http://uneafrobrasil.org/ 15

em torno de 50 mil mulheres negras de todas as regiões do Brasil, que marcharam em protesto contra o racismo, a desigualdade social e de gênero no país, com o tema “Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver”. Após a marcha de Brasília e também pela urgência da temática, as representantes de São Paulo resolveram dar continuidade à potência desse encontro. Nos anos seguintes, organizamos a Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, na data de 25 de julho, que marca o dia Internacional da Mulher Negra Latina e Caribenha, reunindo em torno de 05 (cinco) mil mulheres a cada 25 de julho dos anos de 2016, 2017 e 2018. Foram períodos de duros golpes políticos e midiáticos, em que os ataques aos direitos sociais foram largamente postos em prática, precarizando ainda mais a vida da população negra, sobretudo das mulheres negras.

Sentindo a necessidade de maior aprendizado, em 2016 realizei nova permuta entre secretarias da Prefeitura Municipal de São Paulo. Desta vez, na então Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres (SMPM), realizava-se o atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, atividades de prevenção e formações, na Unidade Móvel, conhecida como “Ônibus Lilás”, e também em atividades de supervisão aos serviços desta Secretaria. Infelizmente, a Secretaria foi extinta pela atual gestão municipal, sendo reorganizada como Coordenadoria de Políticas para as Mulheres dentro da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Atuei neste setor até início de 2017.

Nas eleições municipais de 2016, com e eleição da vereadora Sâmia Bomfim3, recebi a proposta de trabalhar na sua assessoria com as pautas de gênero e etnia. Proposta e desafio aceitos por mim, considerando ser uma área de grande contribuição de profissionais de Serviço Social. Atividades desenvolvidas na perspectiva da construção de uma política pública comprometida com a equidade e apontando as nuances das extremas desigualdades sociais postas em uma megalópole como a cidade de São Paulo; na elaboração de projetos de leis, fiscalização do poder executivo, audiências públicas e acompanhamento das demandas da população e movimentos sociais.

3 Sâmia Bomfim disputou as eleições em 2018 e elegeu-se Deputada Federal por São Paulo, o que mudou o caráter de minha assessoria, agora à distância, levando as pautas do município. 16

A pós-graduação stricto sensu, para mim, sempre foi algo ainda mais inacessível, sobretudo por causa dos horários diurnos das aulas, da exigência de uma segunda língua como pré-requisito para o ingresso; dentre outras questões de ordem pessoal, tais como não se considerar capaz, baixa autoestima, novamente não me ver como pertencente a este espaço etc. Ainda assim, ao me deparar com o edital do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da UNIFESP-BS, me senti encorajada. Ousei indagar: por que não? Cheguei a estudar para o primeiro processo seletivo, mas não tinha um projeto de pesquisa definido que me mobilizasse, além da idéia de não dar conta de conciliar trabalho e pesquisa.

Resolvi participar primeiramente como aluna ouvinte em alguma disciplina deste programa. Realizei contato com a professora Andréa Torres, que iria iniciar a disciplina optativa “Estado Penal, Justiça e Direitos Humanos”, que prontamente me acolheu e autorizou minha participação. A matéria foi muito importante para que eu pudesse elaborar melhor minhas inquietações e organizar o pré-projeto de pesquisa. Além disso, me coloquei em contato com estudantes da primeira turma, como a Kajali Lima Vitório e o Adeildo Vilanova, que me mostraram ser possível sim, que eu deveria tentar, afinal, diziam eles, “o não eu já tinha”. Este apoio foi fundamental para encontrar coragem e fazer a inscrição no edital da segunda turma e, para minha surpresa, aqui estou eu. Foi uma realização muito grande integrar esta segunda turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais do Campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo, pois eu acreditava que pessoas como eu, jamais poderiam igressar numa pós-graduação, principalmente em uma universidade pública, com compromisso com uma educação de qualidade.

Um dos grandes desafios dessa minha trajetória de estudos diz respeito à questão psicológica. Como não adoecer, ao tomar cada vez mais conhecimento sobre o tamanho da violência a que minhas antepassadas foram submetidas? Tamanhas violência e injustiça, que não ficaram no passado, pois, de forma ressignificada, perdura até hoje. Além disso, há sempre o peso do significado de ocupar esse espaço, pois não faltaram motivos para pensar em desistir. Aos poucos, percebi que esta trajetória não é só minha e, portanto, não poderia cogitar desistir quando as que me antecederam deram a vida ou uma vida de luta para 17

que eu pudesse estar aqui hoje. Assim, não estou apenas por mim, estou por todas nós, pelas mulheres negras que vieram antes de mim e pelas que ainda estão por vir.

Outros desafios com os quais tive de me deparar foram as questões de ordem prática e objetiva: conciliar estudos, aulas, atividades extracurriculares e trabalho (e, no meu caso, também a militância). A forma como se organizam os currículos nas universidades faz com que a pós-graduação não esteja a serviço da classe trabalhadora ou de mulheres que precisam conciliar maternidade, trabalho e estudos. Principalmente, se levarmos em consideração horários das disciplinas ofertadas, tanto obrigatórias como optativas, quantidade de créditos a ser cumprida, distância, custos, falta de bolsa de estudos etc.

Apesar destas dificuldades, as disciplinas foram de suma importância para o desenho de minha pesquisa. Tive um primeiro contato com muita(o)s autora(e)s que eu ainda não conhecia. Participei de debates e reflexões com docentes e colegas, que foram aprimorando meu olhar sobre a pesquisa. O simples exercício de falar em público, a maneira de expressar ideias que surgem ao ler os textos das disciplinas foram práticas importantes que, podem parecer pouco, mas para muita(o)s é uma barreira imensa a ser superada. E, por isso, quero agradecer a todas as professoras que ministraram as disciplinas. Por meio delas, ocorreram os primeiros contatos com esse espaço acadêmico, tão estranho para muita(o)s de nós. A acolhida e o comprometimento de todas vocês foram essenciais para mim e, com certeza, para muita(o)s de nós.

Aos poucos, minha pesquisa foi ganhando mais densidade e agora passo a apresentar as questões que me levaram ao interesse pela temática porpriamente dita. O ponto de partida dessa pesquisa se deu justamente nos espaços de militância de mulheres negras, mulheres que carregam duplas, triplas ou mais opressões em uma sociedade tão desigual e violenta como o Brasil. A partir destes espaços comecei a indagar se o Serviço Social tem conseguido se apropriar das demandas dessas mulheres. Será que conhece suas produções? Acompanha suas reivindicações? Escreve sobre elas? Apropria-se da produção negra na formação, na atuação profissional ou na pós-graduação? Um receio 18

norteava a investigação: o de que as respostas não eram exatamente afirmativas, como apontam as pesquisas de Márcia Campos Eurico (2013).

Pode-se exemplificar a ausência de diálogo do Serviço Social com o movimento de mulheres negras pelo irrisório número de publicações nas revistas de referência da área sobre essa temática. Chama a atenção o silenciamento dos órgãos de representação da profissão (o conjunto CFESS/CRESS) em relação à histórica mobilização desse movimento, ocorrida em Novembro de 2015, quando em torno de 50 mil mulheres negras de todo o país marcharam até Brasília: a “Marcha das Mulheres Negras 2015 – Contra o Racismo e pelo Bem Viver”. Em manifesto, publicizado um ano antes do ato, a marcha vislumbrava “denunciar a ação sistemática do racismo e do sexismo com que somos atingidas diariamente mediante a conivência do poder público e da sociedade, com a manutenção de uma rede de privilégios e de vantagens que nos expropriam oportunidades de condição e plena participação da vida social”.

É de se estranhar o silêncio sobre tamanha mobilização4, sobretudo porque estas mulheres são maioria nos atendimentos cotidianos da(o)s profissionais do Serviço Social, nas filas de espera dos serviços públicos, em busca da cesta básica, denunciando as mortes de seus filhos e filhas, beneficiárias dos programas de transferência de renda, recebendo visita fiscalizatórias de agentes do Estado. São elas as principais atendidas pelas políticas sociais, em cujos espaços de atuação profissional está inserida a maioria de Assistentes Sociais.

Dessa forma, tornava-se de suma importância compreender como o debate interseccional que concebe classe social, gênero e raça/etnia como estruturantes do sistema capitalista, se desenvolve no Serviço Social, considerando que esta intersecção é (ou deveria ser) fundamental para uma atuação profissional pautada na construção de uma nova ordem societária não sexista e antirracista.

Para tanto, foi utilizado como caminho metodológico, uma investigação bibliográfica em uma das principais revistas acadêmicas da categoria: a Serviço Social & Sociedade, a mais antiga, com surgimento em 1979, numa conjuntura política de fortes lutas populares e sindicais que exigiam o fim da ditadura militar e

4 Aqui não se ignora a série Assistente Social no combate ao preconceito elaborada pelo CFESS, em especial o Caderno 3 sobre o combate ao racismo, organizado por Roseli Rocha (2016). 19

a volta das liberdades democráticas; trata-se do maior veículo de circulação dos resultados de pesquisas e ensaios da(o)s principais autora(e)s da categoria.

Esta dissertação de mestrado procura apresentar uma linguagem compreensível às mulheres, militantes, matriarcas, referências de família5, estudantes, griôs6, jovens, periféricas, trabalhadoras domésticas, idosas, lésbicas, transexuais, transgêneros, heterossexuais, quilombolas, mulheres negras do campo, das florestas e ribeirinhas, moradoras das palafitas e favelas, sem teto, em situação de rua e muitas outras. Enfim, mulheres que estão na base da pirâmide social e econômica, que, em sua maioria, não experimentaram a vivência dos espaços acadêmicos. Este olhar sobre a pesquisa é possível ao se considerar que a linguagem baseada na branquitude7 pode se configurar como instrumento de manutenção de poder, político, econômico e cultural, reforçando o epistemicídio de determinada cultura e povo.

5 Referências de família ou responsável pela família ou ainda pessoa de referência são utilizados em substituição ao termo “chefe” de família. 6 O griô se baseia na tradição oral para a transmissão de vivências e saberes culturais de uma comunidade. 7 São muita(o)s a(o)s autora(e)s que se debruçaram sobre o estudo da branquitude e suas múltiplas definições. Aqui a utilizo no sentido empregado por Du Bois, em 1935. Branquitude diz respeito aos privilégios destinados à população branca, que acabam por estruturar as relações de poder na sociedade. Segundo o autor, os benefícios de ser branco fazem com que as pessoas brancas, inclusive dentro da classe trabalhadora, aceitem e reproduzam o racismo, havendo um compadecimento do racismo, que se torna cúmplice da própria ação racista. Branquitude é vivida como modelo universal de humanidade, alvo da inveja e do desejo dos outros grupos raciais não- brancos e encarados como não tão humanos. No caso do Brasil, Maria Aparecida Bento (2002) observa que o branqueamento foi um processo inventado e mantido pela elite branca, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro. 20

2. Em dados e estatísticas: nós, as mulheres negras

A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. Conceição Evaristo

O Brasil é o país com a maior população negra fora do continente Africano. No último recenseamento, somando preta(o)s e parda(o)s, 54%8 de brasileira(o)s se autodeclaram negra(o)s9.As mulheres negras representam 27% da população brasileira, um quarto da população. Somos mais de 59 milhões de pessoas que vivenciam a perversidade do sexismo e do racismo, justamente por sermos mulheres e negras. Se as mulheres negras brasileiras constituíssem um país, seríamos um pouco maior que a população da Colômbia, por exemplo. Mesmo assim, ainda somos subrepresentadas em diversos setores da sociedade. Nós não estamos nas posições de decisão sejam de órgãos públicos ou de empresas privadas; não temos espaços em cargos eletivos na política e no judiciário. Ao contrário, desempenhamos as mais precárias atividades; recebemos as mais baixas remunerações; somos depreciadas até mesmo nos livros didáticos.

A imagem colonialista, sexista e racista que se veicula sobre a mulher negra, nacional e internacionalmente, é a de objeto sexual, de produto disponível ao consumo e ao descarte. Em outras palavras, tal imagem corresponde à sintese que Lélia Gonzalez (2018) fez do imaginário social: a preta pra trabalhar, a mulata pra fornicar e a branca pra casar. Mas esse lugar subalternizado, de acordo com a autora, é onde nos situamos e interpretamos sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo, e que caracteriza a “neurose cultural brasileira”, em uma sociedade que impõe o mito da democracia racial, ao mesmo tempo em que inviabiliza e violenta essa majoritária parcela da população.

As violências a que estamos expostas são de ordem objetiva e subjetiva, física e epistêmica. Muitas de nós nos descobrimos negras antes mesmo de nos

8 Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA), em 2013 o Brasil tinha uma população de 59.4 milhões de mulheres negras, correspondendo a 51,8% da população feminina e 27,7% d o total da população brasileira. (IPEA, 2013). 9 A categoria “negro” é utilizada pelo IBGE e diz respeito à soma das categorias preto e parda. 21

descobrirmos mulheres, em decorrência do racismo enfrentado no ambiente escolar, já nos primeiros anos de vida educacional.

O projeto genocida contra a população negra não cessou em 1888, continua a nos matar de todas as formas e com relação às mulheres negras, foram empurradas à invisibilidade pelo império do silêncio mobilizado com armas e estratégias ainda mais poderosas (BORGES, 2009), como o aprisionamento de nossos conhecimentos e nosso saber. Estamos diante de um epistemicídio acadêmico, entendido como violência e a não compreensão de outras formas de conhecimento que não estejam baseadas na branquitude, no colonialismo e na formalidade escrita, pois, para as mulheres negras existem outras maneiras de produzir, compartilhar conhecimentos e saberes, como a oralidade, a descolonização de corpos e mentes, a incorporação da cultura negra e indígena como personagens de grande importância na construção da nossa sociedade. Sobre essa questão, Beatriz Nascimento, enfatiza que

Não podemos aceitar que a História do Negro no Brasil, presentemente, seja entendida apenas através dos estudos etnográficos, sociológicos. Devemos fazer a nossa História, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os enganando. Só assim poderemos nos entender e fazer-nos aceitar como somos, antes de mais nada pretos, brasileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africanos, pois nossa História é outra como é outra nossa problemática (NASCIMENTO, 2018, p.42).

É intencional, portanto, a escolha de autoras, principalmente as negras, considerando a necessidade de valorização dessa produção de conhecimento, por vezes identificada como marginal e não legítima, já que a presença dessas referências nos currículos acadêmicos de graduação e de pós-graduação são quase nuloa. Aqui se faz a opção teórico-política pelos referenciais baseados em teorias do feminismo negro10 e do pensamento antirracista, pois a linguagem formal, erudita e academicista, não acessível à maioria da população, pode ser um

10 Utilizar o termo “feminismo negro” desestabiliza o racismo inerente ao feminismo, apresentado como uma ideologia e um movimento político, que por décadas desconsiderou as mulheres negras ao tomar as mulheres (brancas) como categoria universal. O adjetivo “negro” desafia a brancura presumida do feminismo e interrompe o falso universal desse termo para mulheres brancas e negras. Uma vez que muitas mulheres brancas pensam que as mulheres negras não têm consciência feminista, o termo “feminista negra” destaca as contradições subjacentes à brancura presumida do feminismo e serve para lembrar às mulheres brancas que elas não são nem as únicas nem a norma “feministas” (COLLINS, 2017). 22

instrumento de opressão; além disso, a língua portuguesa ainda não foi desmontada em seus colonialismos, ainda mais difícil compreender as demandas das mulheres, sobretudo sobre as mulheres negras (KILOMBA, 2019).

Embora atualmente tenhamos um número maior de pesquisas alicerçadas no feminismo negro, no pensamento antirracista e nas mulheres negras produzindo conhecimento em diversas áreas, estas ainda são invisibilizadas e desautorizadas a falar. Se as publicações sobre a população negra são escassas, a produção historiográfica e técnica sobre a articulação de classe, gênero e raça/etnia é ainda menor. Aqui, adota-se a posição de que não é possível pactuar com “as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno11 silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde posso falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido” (SPIVAK, 2018, p.14).

Assim, os movimentos de mulheres negras, ativo e vivo historicamente, adotaram a posição de sair da subalternidade, do silenciamento. Entenderam nos últimos anos que a intersecção entre gênero, raça e classe atinge diretamente suas vidas, suas experiências enquanto mulheres, negras e trabalhadoras. Para a jurista estadunidense, Kimberlé Crenshaw, a “intersecionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos” (2002, p.10).

Teria o Serviço Social uma compreensão semelhante? Partindo da constatação de que há pouca ou uma frágil produção de estudos sobre as relações raciais no Serviço Social brasileiro (DIÁZ, 2016), o que dizer quando se acrescenta as relações gênero e de classe social a essa indagação?

Gênero e raça-etnia são sistematicamente apropriadas pelo modo de produção capitalista e, logo, são estruturantes das desigualdades. Incorporar a interseccionalidade como uma categoria de análise em nossas produções não como uma opção, mas uma proposição metodológica ética que caminha na contramão do histórico pacto que articula capitalismo, patriarcado e racismo no Brasil. É nessa perspectiva que serão examinados os artigos publicados na mais importante revista do Serviço Social e, de modo algum, tem-se a intenção de

11 Grifo meu. 23

desqualificar quaisquer autora(e)s que ali publicam. A pertinência deste estudo parte da (in)compreensão da importância de visualizar as mulheres negras como protagonistas da história, formuladoras de conhecimento e estrategistas, além de articuladoras em importantes movimentações sociais e políticas. Para além de analisá-las apenas como “objetos de estudos” ou como a “demanda atendida”, considera-se fundamental a devida identificação de sua origem étnico-racial, como parte de todo o processo sócio-histórico em que foram alijadas de seus direitos básicos, de cidadania e até de humanidade.

Enquanto metodologia, aqui se faz a opção de revisão bibliográfica, nas edições da revista Serviço Social & Sociedade, a partir do ano de 1988, ano que marca importantes acontecimentos em torno da redemocratização no país, como por exemplo: a reorganização dos movimentos sociais, negros e de mulheres negras, além do centenário da (falsa) abolição da escravatura, até o ano de 2016, um ano após a Marcha das Mulheres Negras de 2015.

Foram analisados os artigos de 29 revistas publicadas nesse período, com o objetivo de analisar a produção teórica do Serviço Social sobre a especifidade da Mulher Negra.

A pesquisa visa analisar a trajetória dos movimentos de mulheres negras no Brasil, suas históricas reivindicações, os percalços encontrados em outros espaços de organização. Uma das questões que embasam esta pesquisa é: de que modo o racismo e o sexismo as colocam em um lugar de silenciamento e opressão? Responder a esta questão é essencial à organização em torno de suas pautas, enquanto mulheres e negras, mas também é fundamental para um exercício profissional pautado, como mencionado, pelo engajamento com o projeto ético-político do Serviço Social.

Cabe enfatizar que a experiência de assistente social, integrante do movimento da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo12, com uma trajetória, já apresentada, que se mescla com a maioria das histórias das mulheres negras que compõem esse movimento, é a razão dessa escrita que se dá a partir do olhar de

12 A Marcha das Mulheres Negras de São Paulo é uma articulação de mulheres autônomas e que atuam em coletivos diversos, nascida do potente processo que levou dezenas de milhres de mulheres negras à Brasília em 18 de novembro de 2015 e que, desde então, realiza no estado, pelo quarto ano consecutivo, a Marcha do 25 de Julho. 24

quem vivencia por dentro uma determinada realidade: a de mulher negra no interior de um movimento. Desde 2014, foram construídas ações de preparações das Marchas, como as do Julho das Pretas junto com as manas de diversas regiões da cidade de São Paulo, além da participação ativa dos encontros Estadual e Nacional de Mulheres Negras de 2018. Este se constituiu como um espaço de fortalecimento mútuo, de aprendizado, de resgate das tradições ancestrais e do legado da luta e resistência das Mulheres Negras de São Paulo e do Brasil.

Aqui cabemos todas que acreditamos na ação auto-organizada, suprapartidária, mas autônoma e independente de partidos e governos, com referencial progressista e na busca por outra relação com a natureza que é parte nós. Aqui só não cabem preconceitos de nenhum tipo. Essas são as bases da nossa luta contra o racismo, machismo, a violência e pelo Bem Viver (MARCHA DAS MULHERES NEGRAS DE SÃO PAULO, 2019).

É justamente este o ponto de partida dessa pesquisa, dos espaços de militância de mulheres negras, mulheres que carregam duplas, triplas ou mais opressões em uma sociedade tão desigual e violenta como o Brasil. Foi a partir dali que comecei a indagar se e como o Serviço Social se apropria dos debates e pautas das mulheres negras. Acompanha suas reivindicações? Produz pesquisas a este respeito? Quais formulações aparecem no principal veículo de produção acadêmica da área?

Esta dissertação está estruturada em três capítulos. O primeiro deles denomina-se “Feminismos e lutas das mulheres nas periferias”, cuja intenção consiste em abordar o movimento social que se tornou uma grande novidade no cenário político brasileiro da segunda metade dos anos 1970: o movimento feminista13. Embora as mulheres negras pudessem circular neste meio, elas não se sentiram parte atuante, na medida em que o movimento feminista apresentava uma pauta para mulheres muito distantes da realidade da maioria das mulheres negras. Neste capítulo, serão apresentados igualmente alguns dos antecedentes

13 Além do movimento feminista, outro movimento importante para as mulheres negras foi Movimento Negro Unificado (MNU). Neste, apesar de bandeiras comuns em torno da agenda antirracista, a participação feminina era prejudicada em decorrência do machismo. Nesta dissertação, optou-se por não fazer uma abordagem específica do Movimento Negro Unificado. Todavia, o movimento estará presente, sobretudo no Capítulo II, quando se apresentará o surgimento da organização das mulheres negras na segunda metade do Século XX. 25

do protagonismo feminino ao longo da história, sobretudo o das mulheres negras que foram silenciadas tanto pela História dos dominantes como pelo feminismo hegemônico.

No segundo capítulo explora-se a necessidade das mulheres negras saírem da invisibilidade e se organizarem em seus próprios movimentos. O contexto é o cenário político-cultural do final dos anos 1980. Neste período, as mulheres negras organizam encontros, apoiam trabalhadores em greve e se voltam para uma agenda autônoma. Serão examinados os Encontros Nacionais de Mulheres Negras, desde o primeiro Encontro, em 1988, até a Marcha de Mulheres Negras, em 2015.

Para o terceiro capítulo, apresenta-se a complexa relação entre as pautas das mulheres negras e o Serviço Social. A hipótese que norteia esta discussão é a de que a democracia racial, que se disseminou no Brasil nos anos 30, contribuiu para que não houvesse na profissão uma sensibilidade ao tema.

Recentemente, até por pressão de um número significativo de estudantes negra(o)s que adentraram às universidades no curso de Serviço Social, muitas tensões foram explicitadas e contribuíram para que houvesse uma maior conscientização de que o tema é fundamental para a categoria, que começou a organizar debates e promover ações de combate ao racismo. Estaria esta conscientização refletida nas publicações do principal periódico da área? O que aparece a este respeito na revista Serviço Social & Sociedade, entre os anos de 1988 e de 2016, marcados por intensos acontecimentos para os movimentos negros14 e, sobretudo, para os movimentos de mulheres negras15?

14 As nuances, estratégias e referenciais teóricos distintos exigem que se aborde no plural os “Movimentos Negros”. 15 Aqui também a diversidade implica em um tratamento no plural para os “Movimentos de Mulheres Negras”. 26

CAPÍTULO 1

Feminismos e lutas das mulheres nas periferias

27

1.1. Mulheres, mulheres negras e lutas: alguns antecedentes históricos

O sistema pode até me transformar em empregada Mas não pode me fazer raciocinar como criada Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo As negras duelam pra vencer o machismo, o preconceito, o racismo. Yzalú - Mulheres Negras

A produção sobre as teorias feministas são categorizadas como “ondas feministas” períodos em que as reivindicações das mulheres são colocadas em diversas frentes e prioridades. Todavia, a história de lutas das mulheres é muito anterior do que é possível perceber nas três ondas feministas. Ao longo da história, as mulheres sempre lutaram pela proteção de suas vidas; pelo direito de exercerem determinadas culturas, rituais e crenças; pelo direito à instrução e por maior participação social e política na sociedade.

Estiveram nos principais momentos de transformação social, como foi a transição da Idade Média para a Idade Moderna. Com a chamada “caça às bruxas” queria-se acabar com um importante período na história de resistência das mulheres. Elas ousavam acumular saberes, conhecimentos advindos da natureza, como a cura etc. Estas ações questionavam a própria ideia de patriarcado. E, não por acaso, as mulheres foram perseguidas, torturadas e assassinadas em muitas fogueiras da inquisição por aqueles que preferiam a manutenção da ordem vigente.

Essas mulheres eram acusadas de terem feito um “pacto com o demônio”, ao organizarem grupos ou quando reuniam-se para o escambo de ervas medicinais, saberes de cura e o acesso a informações e notícias. Se jovens e se consideradas bonitas, eram acusadas de enfeitiçar e praticar crimes sexuais contra homens. Se idosas e se tidas como feias ou com algum tipo de deficiência física ou mental, eram consideradas bruxas e, portanto, responsáveis por acontecimentos como catástrofes naturais, por difundir epidemias e problemas de saúde física ou mental na população.

Com o início da ascensão do que conhecemos hoje como medicina, já dominada pelos homens, as bruxas representavam um perigo ao progresso dos 28

lucrativos negócios. Elas eram acusadas de possuírem “poderes mágicos”, que eram exercidos por meio da cura de diversos males. Ou seja, as mulheres que concentravam qualquer forma de conhecimento, eram vistas como perigo às estruturas de poder de sua época e, logo, era (e ainda é) preciso eliminá-las.

Silvia Federici (2017), questiona o porquê de este verdadeiro massacre ter sido ignorado pela imensa maioria dos historiadores (quase todos homens), inclusive do campo marxista. Segundo a autora, somente as feministas reconheceram que as torturas mais cruéis e o massacre de milhares de mulheres tinham uma relação direta ao que elas representavam como entrave para a nova estrutura de poder. As feministas também

se deram conta de que essa guerra contra as mulheres, que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto decisivo na história das mulheres da Europa, o ‘pecado original’ no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a chegada do capitalismo, o que o conforma, portanto, como um fenômeno ao qual devemos retornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres (FEDERICI, 2017, p. 292).

No século XVIII, Mary Wollstonecraft foi considerada uma das pioneiras da teoria feminista, com a publicação do livro Reivindicação dos Direitos da Mulher, de 1792. Ela foi precursora dos debates em torno dos papéis masculino e feminino, que mais tarde conhecemos como parte das relações de gênero, compreendidos como construção social. Sua defesa intransigente da igualdade entre os gêneros, “pode ser considerado o documento fundador do feminismo” (MORAES, 2016, p. 7). Trata-se de uma resposta à Constituição Francesa de 1791 que não atribuía às mulheres o direito à cidadania.

Wollstonecraft se inspirava nos preceitos da revolução francesa para denunciar os prejuízos da clausura das mulheres no espaço doméstico e impossibilidade aos direitos básicos, sobretudo a educação, que para ela, era central para a desconstrução da natureza da mulher predestinada aos cuidados, ao culto à beleza, ao sentimentalismo, entre outras características marcadas como inerentes à mulher. Assim, ela considerava que o casamento para as mulheres era uma espécie de “escravidão conveniente” e que, para construção de sua autonomia, as mulheres deveriam afastar-se dessa instituição. 29

A autora rejeitava o confinamento da mulher no âmbito doméstico, bem como a falta de participação social e política delas. E observava que tal feito somente seria possível após rupturas severas nas estruturas da sociedade. Para a revolucionária, passava da hora de fazer uma revolução nos modos de vida das mulheres, era hora de devolver sua dignidade perdida e fazer com que, como parte da raça humana, trabalhassem reformando a si mesmas para reformar o mundo (WOLLSTONECRAFT, 2016).

Esta forma de concepção da mulher não considera que somos resultado de uma realidade na qual estamos inseridos, como classe social, gênero, raça/etnia, idade, dentre outros. Reflexão muito próxima daquela feita por Simone de Beauvoir (1967), quando a filósofa afirmou em sua obra clássica, O segundo sexo, de 1949, que “não se nasce mulher, torna-se”. Uma das afirmações mais difundidas pelo movimento feminista que ganhou visibilidade, sobretudo a partir dos anos 1960, e levando o movimento a questionar a forma como a sociedade nos impõe um padrão de masculinidade e feminilidade.

No Brasil, no século XVII, muitas mulheres também estiveram envolvidas em inúmeras lutas que representaram uma forma de alterações das estruturas de poder existentes. Eram lutas que combatiam a violência do patriarcado e a violência racista. Porém, não as encontramos nas páginas da literatura de certo feminismo hegemônico, que nos apresentam as lutas das mulheres como “ondas feministas”.

A este respeito, Dandara de Palmares é um exemplo, pois, embora existam pouquíssimas informações sobre sua ascendência africana ou sobre o local de seu nascimento, ela é reconhecida como liderança do primeiro Estado Livre das Américas: o Quilombo dos Palmares (GONZALEZ, 2018). Sabe-se que foi uma das maiores lideranças femininas negras: pegou em armas, lutou capoeira, teve papel importante na construção, defesa e manutenção do Quilombo de Palmares, que vigorou em pleno regime escravagista, por mais de 100 anos, acolhendo mais de 20 mil negras e negros fugitivos. A líder não era apta apenas “aos serviços domésticos da comunidade, como todos, plantava, trabalhava na produção da farinha de mandioca, aprendeu a caçar, mas, também aprendeu a lutar capoeira, 30

empunhar armas e, quando adulta, a liderar as falanges femininas do exército negro palmarino” (HENRIQUE, 2011, n.p.16).

De acordo com o historiador Kleber Henrique (2011), Dandara participou de todos os ataques e defesas da resistência palmarina. Ela discordou do tratado de paz feito entre Ganga-Zumba e o governo português.

Sempre perseguindo o ideal de liberdade, Dandara não tinha limites quando estavam em jogo a segurança de Palmares e a eliminação do inimigo. Chegando perto da cidade do Recife, depois de vencer várias batalhas, Dandara pediu a Zumbi que tomasse a cidade, isso é uma prova da valentia e mesmo um certo radicalismo dessa mulher. Sua posição era compartilhada por outras lideranças palmarinas. Para Dandara, sobre a paz em troca de terras no Vale do Cacau, que era a proposta do governo português, ela preferiu a guerra constante, pois via nesse acordo a destruição da República de Palmares e a volta à escravidão (HENRIQUE, 2011, n.p.).

Zeferina, Aqualtune, Tereza de Benguela, Maria Filipa de Oliveira, dentre outras guerreiras quilombolas, também são referências de mulheres que lutavam por liberdade. Estavam à frente de seu tempo travando lutas que hoje outras mulheres não precisam mais enfrentar, como a luta pela liberdade ou por ser reconhecida como ser humano. As ondas feministas também ignoram suas histórias e lutas. E apagaram igualmente outras que contribuíram nas lutas por liberdade de homens e mulheres.

A literatura feminista das ondas continua a ignorar, por exemplo, a força e a ousadia de Esperança Garcia, mulher negra escravizada que denunciou os maus tratos a que era cotidianamente submetida. Ela não obteve, até o momento, relevância para a literatura feminista. Esperança Garcia vivia em uma fazenda de algodão na cidade de Oeiras, no estado do Piauí. Em 06 de setembro de 1770, ela escreveu uma carta ao então governador da capitania de São José do Piauí, denunciando os maus tratos e violência, sofridas por ela, seus filhos e suas companheiras.

Em uma época em que nem mesmo as mulheres brancas, as sinhazinhas, ou suas filhas, tinham o direito de serem alfabetizadas, Esperança Garcia foi

16 Será utilizada a sigla n.p. para se referir aos textos não paginados, em especial, mas não exclusivamente, os que se encontram em disponíveis na rede web. 31

autodidata e com tamanha coragem, rompeu com a lógica de opressão de seu tempo. Apesar de ser mulher, negra, objetificada como peça, como um bem material de seu senhor, Esperança ousou questionar a violência a que ela e os seus estavam sendo submetidos. Após 247 anos deste feito, Esperança Garcia, em título simbólico, foi reconhecida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Piauí, no ano de 2017, como a primeira advogada daquele estado (VALENTIN, 2017). Na ocasião, houve o reconhecimento de que sua carta cumpria todos os requisitos da época para ser considerada uma petição.

Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia (MOURA, 2013, p. 171).

Para Elio Ferreira de Souza, a Carta de Esperança Garcia, se transformou no que ele denomina um paradigma de resistência, isto é “como a luta em favor da equidade de direitos entre negros e brancos e contra o preconceito racial, a construção da identidade e da autoestima de homens e mulheres negras no Piauí” (SOUZA, 2018, n.p.). O autor enfatiza que o “manuscrito de Esperança Garcia faz desmoronar os estereótipos raciais, a ideia enganosa ou a falácia acerca da ‘submissão natural’ do negro escravizado, propagado pelo discurso colonial e a história oficiosa” (SOUZA, 2018, n.p.). Além disso, segundo o autor, a Carta faz desmoronar o falso mito da convivência pacífica, da cordialidade ou da propalada democracia racial.

Angela Davis (2016), filósofa estadunidense, ressalta que as mulheres negras tiveram um papel fundamental na luta contra a escravidão. Examinando a trajetória das mulheres negras em seu país, enfatiza que nenhuma discussão sobre a resistência estaria completa sem uma homenagem à Harriet Tubman “por seu extraordinário ato de coragem ao conduzir mais de trezentas pessoas pelas 32

rotas da chamada Underground Railroad”17 (DAVIS, 2016, p. 35). Com uma vida igual à de todas as mulheres escravizadas, ela trabalhava na lavoura e, como tal, percebeu que era igual a qualquer homem. Com o pai, aprendeu a cortar árvores e fazer trilhas e, enquanto trabalhavam juntos, “ele lhe transmitiu conhecimentos que mais tarde se mostraram indispensáveis nas dezenove viagens de ida e volta que ela realizaria ao Sul” (2016, p. 35). Harriet Tubman aprendeu a caminhar em silêncio, conheceu com o pai as plantas e raízes que serviram de remédio e alimento a todos e todas que ela, sem nunca ter fracassado, conduziu. Angela Davis observa que Tubman foi uma mulher extraordinária. Ela foi a única representante do sexo feminino que, durante a Guerra Civil, liderou tropas em uma batalha nos Estados Unidos (2016, p. 35).

No Brasil, como representante feminina de grande liderança, encontra-se Luíza Mahin, de origem africana Nagô, quituteira de tabuleiro, que utilizava a profissão para fazer trocas de mensagens em árabe para articulação de insurreições como a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). Mahin seria reconhecida como rainha da Bahia, caso a Revolta dos Malês tivesse êxito (GENNARI, 2011). Hoje, ela é reconhecida pelas mulheres negras e, mais especificamente, pelo feminismo negro como uma mulher rebelde, batalhadora, determinada, independente e, sobretudo, dotada de uma inteligência ímpar.

Um dos poucos livros sobre a revolucionária negra foi escrito por Ana Maria Gonçalves (2010). Em um defeito de cor, a escritora mineira explica nas primeiras páginas que o romance muito provavelmente foi escrito por Luiza Mahin, cujo verdadeiro nome, recebido da mãe e da avó, era Kahinde, de origem africana e significava “os eminentes vêm depois”, em alusão ao fato de a protagonista ser gêmea e ter sido a segunda a nascer (GONÇALVES, 2010). O livro percorre 84 anos da vida de Mahin e tem como pano de fundo inúmeros contextos históricos, como a independência do Brasil, o fim do tráfico negreiro, o envolvimento com a Revolta dos Malês e o retorno à África. As muitas formas de resistência que aparecem no romance demonstram que os cativos jamais deixaram de lutar, jamais se acomodaram à condição de escravo.

17 Underground Railroad era o nome dado ao conjunto de rotas secretas e pontos de parada clandestinos que escravas e escravos usavam para conseguir chegar ao Canadá e ao México, contando com a ajuda de abolicionistas. Ver nota do tradutor em Davis (2018, p. 35). 33

Dona de uma inteligência aguda, Mahin soube superar os obstáculos impostos pela escravidão e conquistar sua liberdade e fazer dela instrumento para libertar outros homens e mulheres escravizada(o)s. Luíza Mahin é esta personagem que luta, que levanta, que mobiliza. Trata-se de uma imagem positiva em que as mulheres negras podem se espelhar. Para Dulci Lima, (2014), a maneira como Mahin fazia a conciliação entre maternidade e luta anti- escravagista, a coloca bem próxima do cotidiano das incontáveis mulheres negras que cuidam dos filhos e ao mesmo lutam pela sobrevivência deles e sua. Neste sentido, Mahin é um símbolo que se desdobra no transcorrer da história, ou seja, persiste na história e se atualiza diante da luta contemporânea (LIMA, 2014).

Sem a valentia revolucionária de Luíza Mahin, nascia em 1822, em São Luís, capital das terras maranhenses, Maria Firmina dos Reis, revolucionária literária. Afro-descendente pelo lado materno, filha bastarda do pai, foi criada pela mãe na casa da avó materna, junto com uma irmã. A família era de poucos recursos e mais tarde Maria Firmina foi viver na casa de uma tia. Com uma trajetória rara, “teve acesso à educação formal, publicou poesias, contos e novelas em revistas literárias maranhenses. Foi uma das primeiras professoras aprovadas em concurso público na província do Maranhão, em 1847. Em 1880, fundou uma das primeiras turmas de ensino mista e gratuita” (SILVA, 2017, p. 3). Reservada, quanto à sua vida íntima, e ousada no que tange seu trabalho literário, foi pioneira em várias frentes. Úrsula, publicado em 1859, é um dos primeiríssimos romances brasileiros publicados por uma mulher e é também o primeiro romance brasileiro escrito por autor afro-descendente, sendo homem ou mulher (PINTO-BAILEY, 2018).

O texto, de feição ultra-romântica, inaugura em nossas letras a representação do negro em sua condição de escravo, apresentando criticamente o regime escravagista e a sociedade patriarcal do século XIX. A escravidão, nesta época, era bastante intensa, sendo impossível desvencilharmos o enredo de Úrsula da real situação predominante no país neste mesmo período. Há, claramente, a condenação de toda a instituição do cativeiro e, juntamente com ela, a crítica à condição submissa da mulher. Vale ressaltar que Maria Firmina viveu em uma época onde a mulher era socialmente marginalizada. A escrita, a leitura e o raciocínio, não eram consideradas como pertencentes ao mundo feminino, pois os homens a julgavam inferiores intelectualmente. No romance, a mulher e o escravo são alçados à condição de vítimas deste sistema, situação 34

vivida pela própria autora, mulher mestiça e pobre (MOLINA, 2018, n.p.).

Diferentemente da literatura abolicionista da época que, embora fosse contra a escravidão, era também contra o escravo. Este é o caso, por exemplo, do romance A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, que apresentava Rosa, a personagem negra, como a erva daninha para a Casa-Grande e não cativava a mesma compaixão que os leitores nutriam por Isaura, a escrava branca que, vista com o olhar do eurocentrismo, merecia a abolição por ser branca demais. Maria Firmina, ao contrário, apresentava o escravo em sua dimensão humana e conferia ao negro o estatuto de sujeito do discurso, revelando, portanto, uma identificação e solidariedade com o escravo negro.

Em Úrsula o negro tem vida própria e explicita suas indagações sobre a miserável condição de subalternidade em que vive. Isto tudo “é demonstrado sob o ponto de vista interno do negro, do qual Maria Firmina usufrui para pautar sua crítica e condenação à sociedade patriarcal, da qual ela é vítima tanto quanto os personagens de sua ficção” (MOLINA, 2018, n.p.). Assim, ela se colocou “na contramão do discurso dominante do nosso Romantismo, inaugurando ela, em meados do século dezenove, a narrativa afro-brasileira, ao fazer de sua ficção um veículo de intervenção política, estabelecendo um vínculo com a diáspora africana” (PINTO-BAILEY, 2018, n.p.). O romance de Maria Firmino dos Reis intenciona construir uma consciência negra em um país profundamente racista. Ela também procura propagar a imagem da mulher como razão e não apenas como sentimento. Sua obra é pura ousadia que causa o incômodo que ela sentia ser necessário na época (MOLINA, 2018, n.p.).

À mesma época de Luiza Mahin e Maria Firmino dos Reis, existiu, em solo estadunidense, outra mulher negra também forte e audaciosa para o período: Sojourne Truth18. Em discurso proferido em 1851, ela foi contundente ao ilustrar

18 Sojourne Truth - nasceu escravizada em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em 1797. Tornou-se livre em 1827, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravidão nos Territórios do Norte dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio). A escravidão nos Estados Unidos, entretanto, só foi abolida nacionalmente em 1865, após a sangrenta guerra entre os estados do Norte e do Sul, conhecida como Guerra da Secessão. Sojourner viveu alguns anos com uma família Quaker, onde recebeu alguma educação formal. Tornou-se uma pregadora pentecostal, ativa abolicionista e defensora dos direitos das mulheres. Em 1843 mudou seu nome para Sojourner Truth (Peregrina da Verdade). Na ocasião do discurso, já era uma pessoa notória e 35

de maneira didática e intrépida para sua época, como os modelos de opressão perpassam de maneira diferenciada a depender da classe social, do gênero e da raça/etnia a que pertence cada indivíduo. Truth expõe o que hoje se denomina interseccionalidade19, de forma que não é possível o debate sobre as relações de gênero sem considerarmos as demais opressões que atingem outras mulheres.

Para o aniversário de 135 anos de morte de Sojouner Truth, a filósofa estadunidense Angela Davis (2018) escreveu que, sozinha, Truth teve a coragem de responder aos homens que zombavam das mulheres na Convenção pelos Direitos das Mulheres, ocorrida em Akron, Ohio. Respondeu com altivez e a agressividade necessária aos argumentos dos homens que afirmavam a supremacia masculina. Davis enfatiza que Truth, com seu inegável carisma e suas poderosas habilidades como oradora, “derrubou as alegações de que a fraqueza feminina era incompatível com o sufrágio – e fez isso usando uma lógica irrefutável” (2018 n.p.). O desejo de votar pautado pelas mulheres foi ridicularizado, pois, segundo os homens agitadores que ali estavam, as mulheres nem conseguiam pular uma poça d’água sem a ajuda masculina. Com determinação e simplicidade persuasiva, Sojourner Truth, “apontou que ela mesma nunca havia sido ajudada a pular poças de lama ou a subir em carruagens” (DAVIS, 2018, n. p.). Assim surgia o seu discurso “Não sou eu uma mulher?”, cuja voz soava como o estrondo de um trovão.

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. tinha 54 anos. A versão mais conhecida foi recolhida pela abolicionista e feminista branca Frances Gage e publicada em 1863. A este respeito, ver: Geledés (2009). 19 Para Kimberle Crenshaw (2002, p.177), a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. 36

Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? (GELEDÉS, 2009).20

A presença de Sojouner Truth nesta Convenção e “os discursos que proferiu em encontros subsequentes pelos direitos das mulheres simbolizavam a solidariedade das mulheres negras com a nova causa. Elas aspiravam ser livres não apenas da opressão racista, mas também da dominação sexista” (DAVIS, 2018, n. p.). O discurso de Truth teve implicações ainda mais profundas. Era igualmente uma resposta ao racismo que as mulheres brancas, as mesmas que estavam naquela convenção, que posteriormente louvaram sua irmã negra. Segundo Angela Davis, “não foram poucas as mulheres reunidas em Akron que inicialmente se opuseram a que as mulheres negras tivessem voz na convenção, e os opositores dos direitos das mulheres tentaram tirar vantagem desse racismo” (DAVIS, 2018, n.p.).

O que Angela Davis demonstra é que no período que ficou conhecido como “primeira onda feminista”, entre os séculos XIX e XX, as principais obras se ocupam da trajetória de mulheres com realidades sociais bem distintas do que foi apresentado nas páginas acima. Realidade não muito diferente daquela que se encontra na literatura feminista brasileira.

A principal característica da “primeira onda feminista” foi construída em torno do sufrágio feminino, o direito da mulher ao voto, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido. As mulheres que lutaram pelo direito de votar ficaram conhecidas como sufragistas ou, de modo pejorativo, como “sufragetes”, uma forma de deslegitimar o movimento, considerando-o algo sem relevância ou ainda como “frescuras de mulheres”.

Bertha Lutz é o nome mais lembrado e a ela é atribuído o protagonismo da luta pelo direito ao voto feminino no Brasil. Mas existe uma lacuna. Boa parte da literatura feminista recupera Nísia Floresta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, como a pioneira feminista no Brasil, sobretudo a partir de seu primeiro

20 Esse discurso foi proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851. Em uma reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora. Ver: Geledés (2009). 37

livro, Direitos das mulheres e injustiça dos homens, escrito em 1832. Nísia nasceu em uma família burguesa, em Papari, no Rio Grande do Norte. Seu livro é considerado uma versão do que foi escrito por Mary Wollstonecraft e foi esta ligação que a colocou em contato com as vozes em defesa dos direitos das mulheres no decorrer do século XIX.

O livro publicado por Nísia Floresta provocou a reflexão sobre o status social das mulheres, já que defendia a participação feminina em postos de comando. Em uma sociedade patriarcal, escravocrata e recém-saída da condição de colônia, Nísia Floresta foi mulher incomum, atuante e de certa forma ‘desajustada’ se forem levadas em conta as expectativas que a sociedade brasileira tinha em relação às mulheres do seu tempo, afinal, a valorização intelectual do gênero feminino inexistia (CAMPOI, 2011, p. 199).

À frente de seu tempo, Nísia Floresta, como dona de escola e professora, defendeu suas posições educacionais em textos dedicados à temática feminina. Ela se valeu de dados oficiais que haviam acabado de serem publicados “para tecer duras críticas ao sistema de ensino, posicionando-se contrariamente ao governo sobre a falta de um direcionamento educacional, em específico sobre o ensino feminino” (CAMPOI, 2011, p. 203). Sua proposta curricular incomodava, saía do âmbito da futilidade doméstica, do agrado aos pais e maridos patriarcas.

No entanto, para Mônica Karawejczyk (2014), a precursora do verdadeiro feminismo pátrio teria sido Leolinda Figueiredo Daltro. Foi ela que liderou os primeiros passos de um movimento organizado feminino no Brasil, que tomou a forma peculiar de um partido político, o Partido Republicano Feminino (PRF) e, portanto, foi uma das pioneiras do movimento sufragista brasileiro (KARAWEJCZYK, 2014). Antes de ser feminista, Leolinda defendeu a educação dos povos indígenas sem conotação religiosa. Viu na sua condição feminina o grande empecilho para continuar seu trabalho de alfabetização, que acontecia no momento em que os debates da sociedade brasileira no tocante à questão indígena oscilava entre a catequização, acompanhada da completa aculturação das tribos e a aniquilação destes povos originários.

A sua tentativa infrutífera de obter um cargo oficial junto ao governo para atuar na área de educação indígena parece ser o que contribuiu de forma decisiva para a conscientização de que a sua condição de mulher é que estava sendo um empecilho para atingir seus objetivos (KARAWEJCZYK, 2014, p. 68). 38

Mais tarde, em 1909, Leolinda foi impedida de apresentar um trabalho com suas propostas para a política indigenista oficial no Primeiro Congresso Brasileiro de Geografia. Segundo Mônica Karawejczyk, o “motivo alegado para vetar a sua participação foi novamente a sua condição sexual” (2014, p. 69).

De modo que parecem ter sido a sua condição de mulher e a maneira como ela era tratada perante a sociedade os principais entraves para a realização de suas metas e ideais. Essa teria sido a mola propulsora que teria levado Daltro a refletir sobre a situação de inferioridade da mulher e a buscar mudá-la através de alguma ação. Interessante apontar que a ação proposta por ela fosse a busca pela participação ativa das mulheres no mundo político, iniciando a sua luta pelo reconhecimento do sufrágio feminino (KARAWEJCZYK, 2014, p. 69).

Desde o final do século XIX, as lutas das mulheres nos Estados Unidos e na Inglaterra deslocava o voto para o centro das grandes transformações sociais. As mulheres não mediram esforços para convencer os parlamentares a reformarem a lei. Para Mônica Karawejczyk, havia no Brasil algumas particularidades na luta pelo sufrágio feminino. Segundo a autora “as discussões sobre a possibilidade de se estender o voto para as brasileiras já ocorreram no final do século XIX, durante a feitura da carta constitucional republicana, em um momento em que o voto para as mulheres não era concedido em lugar algum do mundo” (2014, p. 70).

Outro aspecto que a autora destaca é o fato de que a redação final do artigo 70 na Constituição declara que “São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na forma da lei” e isto “permitiu que contestações fossem feitas pelas mulheres que queriam participar do mundo político, pois o referido artigo não deixou explícita a exclusividade masculina na participação eleitoral” (KARAWEJCZYK, 2014, p. 71). Aqui, diferentemente dos Estados Unidos e da Inglaterra, não havia uma menção explícita ao sexo “masculino”, o que deixava uma brecha para a reivindicação feminina.

Leolinda Daltro se lança efetivamente na vida política ao fazer campanha para a “candidatura de Hermes da Fonseca à presidência do Brasil, no ano de 1909, com a fundação da Junta Feminil pró-Hermes” (2014, p. 71), conhecida como a primeira organização com o intuito de promover a emancipação feminina no Brasil. No ano seguinte, essa associação feminina foi rebatizada por Leolinda 39

com o nome de Partido Republicano Feminino. Em Uma história do feminismo no Brasil, Céli Pinto (2003) observa que esta associação merece atenção especial pelo fato de ser composta por pessoas que não dispunham do direito de votar e, logo, agiam em alguma medida fora da lei.

Desde a criação do Partido Republicano Feminino (PRF), Leolinda se dedicou cada vez mais à vida pública, fundando em 1910 o jornal A Política, cuja proposta era bastante ampla, abordando “desde a questão da catequese laica e do direito das mulheres à educação e ao voto, até propostas para promover o saneamento moral da sociedade, além de servir, mais tarde, para fazer propaganda do PRF” (KARAWEJCZYK, 2014, p. 72). No país se disseminava os periódicos que faziam campanha contra as chamadas “sufragetes”, frequentemente enfatizando que este não era um exemplo a ser seguido pelas brasileiras.

Embora reconhecessem a relação entre Leolinda e as sufragistas inglesas, o PRF era apresentado como uma instituição depurada de qualquer resquício sufragista e que se propõe somente ao progresso intelectual e coletivo da mulher. Esta desvinculação das sufragistas não deu certo e “tudo leva a crer que foi devido à militância de Leolinda Daltro e do seu inusitado partido que o tema do voto feminino voltou à agenda da imprensa e do Parlamento” (KARAWEJCZYK, 2014, p. 77).

Nos anos seguintes, as ações do PRF se ampliaram. Além da busca pelo sufrágio feminino, também se dedicava a:

fundar fábricas, oficinas e ateliês; manter um centro profissional de empregadas domésticas; fundar farmácias; organizar uma exposição de produtos enviados pelos diversos estabelecimentos agrícolas e fabris fundadas e mantidas pela instituição em todo o território nacional; instalar restaurantes e cooperativas vegetarianas, considerada como alimentação higiênica (KARAWEJCZYK, 2014, p. 76).

Leolinda Daltro tentou conquistar o título eleitoral inúmeras vezes e todas foram frustradas. Em 1919, lançou sua candidatura ao cargo de intendente municipal pelo 1º distrito da cidade do . Para ela, seria um primeiro 40

passo no sentido da verdadeira emancipação política feminina, mas não conseguiu se eleger.

No ano seguinte, surgia a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher – LEIM, sob a liderança de Bertha Lutz, com representantes da classe mais alta e intelectualizada do Brasil. Lutz, diferentemente de Daltro, vinha de uma família bem relacionada nos meandros do poder tendo recebido uma educação esmerada e diferenciada. Para Karawejczyk, o “que pode ter ajudado na rápida inserção de Bertha foi que o círculo social da família Lutz era muito extenso, o que teria proporcionado seu livre acesso a um meio social que lhe seria negado, caso fosse de outra classe” (2014, p. 79).

O fim da Primeira Grande Guerra contribuiu para uma mudança de posição no que diz respeito ao voto feminino. Rui Barbosa manifestou-se favorável à inserção das mulheres como eleitoras.

Barbosa pronunciou-se pela constitucionalidade do sufrágio feminino durante uma das conferências, por ele concedida, durante a sua campanha presidencial, quando percorreu o país de março a abril de 1919. Na ocasião ele pedia a intervenção do Estado em favor dos trabalhadores e incorporava em seu programa ideias em voga nas principais nações desenvolvidas e, dentre essas ideias, a do sufrágio feminino (KARAWEJCZYK, 2014, p. 79).

A década de 1920 merece destaque no tocante às lutas e propostas de mudanças, devido a importantes acontecimentos políticos, sociais e culturais. De acordo com Maria Amélia de Almeida Teles, a “república dos coronéis não dava mais conta da ebulição social e política do país. Só no ano de 1922. Tivemos a Semana de Arte Moderna, a Revolta do Forte de Copacabana e a fundação do Partido Comunista do Brasil” (2017, p. 51).

Neste mesmo ano de 1922 foi fundada no Rio de Janeiro a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, sob a liderança de Berta Lutz. A Federação, diferentemente da organização liderada por Leolinda Daltro, não tinha vínculo partidário e era constituída majoritariamente por mulheres das classes mais abastadas. A entidade fez valer as relações pessoais de suas associadas com homens que tinham proeminência política para defender suas posições e propostas. Talvez por esta inserção, Céli Pinto (2003) tenha considerado este 41

período como o de um feminismo “bem comportado” e conservador uma vez que não abordava outras temáticas como a repressão que as mulheres sofriam.

O calendário das comemorações do Centenário da Independência possibilitou que as feministas fossem ouvidas também em fóruns de prestígio. Em outubro de 1922, um grande congresso jurídico propôs o exame de teses para revigorar as instituições do país. Aos poucos se consolidava a legitimidade do direito ao sufrágio feminino. O feminismo passava a ser amplamente noticiado e comentado no prestigioso jornal Correio da Manhã, que também cobriu com boa vontade o congresso feminista, em dezembro daquele ano (MARQUES, 2016, p. 23). Mas o debate se enfraquece nos anos seguintes.

Em 1927 o voto feminino volta a ser discutido e, desde outubro daquele ano, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino iniciara uma nova etapa da propaganda sufragista, publicando de forma regular uma seção chamada Feminismo no jornal O País.

Nesse espaço da imprensa, faziam publicar artigos defendendo o voto feminino e lançavam às leitoras a pergunta inquietante: “As mulheres já votam em 36 países. Por que não hão de votar no Brasil?”. Também publicavam manifestações favoráveis à causa, a exemplo da plataforma eleitoral que Washington Luís apresentou ao concorrer à Presidência da República, da qual constava seu apoio ao sufrágio feminino (MARQUES, 2016, p. 25).

Os ventos da Revolução de 1930 pareceram turbulentos demais para a Federação, que preferiu manter-se distante das agitações políticas. Potrém, Natércia da Silveira, nova componente da entidade, resolveu saudar os ventos do Sul. Expulsa do grupo, Natércia fundou, em 1931, a Aliança Nacional de Mulheres (ANM), que

valia-se de uma política mais à esquerda, capaz de responder às inquietações das mulheres trabalhadoras, sem, no entanto, pleitear a revolução social. O discurso da Aliança enfatizava a palavra trabalho e vinha combinado à prática do auxílio mútuo dentro do grupo. Tal proposta não era propriamente uma novidade no campo do feminismo, especialmente na Europa, onde a palavra era entendida por muitos como uma forma de mutualismo, mas abalou a posição política ocupada pela federação, onde tais práticas não eram usuais (MARQUES, 2016, p. 33). 42

Celi Pinto (2003) observa que esta foi a terceira tendência da luta pelo voto. Trata-se do “menos comportado dos feminismos”, que aglutinava mulheres com ideários ainda mais radicais, as comunistas e anarquistas, que confrontavam diretamente as desigualdades de gênero.

A causa feminista ganha um aliado: o próprio Getúlio Vargas que, em 1931, considerou “belas” as propostas do feminismo e sugeriu que estas deveriam ser acolhidas com simpatia. Apesar do debate tenso, o decreto publicado em 24 de fevereiro de 1932 acomodava as demandas de três grupos distintos: “a Igreja, ao permitir o voto de religiosos; os tenentistas, ao instituir a representação classista; e as feministas, por permitir o voto feminino” (MARQUES, 2016, p. 38). Em 1932, portanto, as mulheres conquistaram o direito ao voto com o Código Eleitoral Provisório.

Contudo, a conquista do direito de votar se restringiu às “mulheres solteiras, com economia própria, às viúvas em iguais condições e às casadas que tivessem renda própria, fruto de atividade profissional, desde que autorizadas pelo marido” (MARQUES, 2016, p. 37). Outro detalhe importante é que havia requisitos de escolaridade e idade mínimas, que se aplicavam aos dois. Isto significa que, embora as mulheres tenham conquistado o direito ao voto nesse período, na prática, elas continuavam sem votar, pois faziam parte da imensa parcela populacional analfabeta que estava proibida de exercer este direito político. É possível perceber a que classe social e a qual identidade étnico-racial pertencia os homens e as mulheres que podiam votar.

A interdição do voto ao analfabeto existia desde 1881, quando a Lei Saraiva, percebendo a proximidade da abolição da escravatura, considerou necessária a criação de mecanismos para alijar a população negra dos direitos mais básicos. A exigência do letramento veio de Ruy Barbosa, para quem “escravos, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum” (WESTIN, 2016, n.p.).

José Murilo de Carvalho observa que à época “mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal” (2001, p. 32). A Lei atingiu 80% da população 43

masculina que, de imediato, foi excluída do direito de voto (CARVALHO, 2001, p. 39).

Esta medida dificultou o exercício da cidadania não apenas para as mulheres, mas, sobretudo para a população negra que, embora tenha saído do cativeiro formal em 1888, permaneceu acorrentada pela falta de políticas públicas destinadas à sua inserção na nova sociedade. Em razão dos elementos ideológicos de barragem social apoiados no preconceito de cor, as egressas e os egressos das senzalas foram incorporados à franja marginal da sociedade (MOURA, 1988).

Sem políticas públicas que pudessem inserir a população recém-liberta no projeto nacional e diante de um ideário que propalava a inferioridade da população não-branca, negras e negros não tiveram acesso à cidadania plena. Para Petrônio Domingues (2008), um dos problemas centrais era o analfabetismo, tornando a Educação uma das bandeiras prioritárias que abriria as portas do mercado de trabalho para a população negra. As portas permaneceram cerradas.

Nesse processo destacaram-se duas mulheres negras, Almerinda Farias Gama e Maria Rita Soares. A primeira, datilógrafa alagoana e militante da Frente Brasileira de Progresso Feminino (FBPF) articulou uma importante estratégia, juntamente com Bertha Lutz (mentora da criação da FBPF) e outras mulheres, criando o Sindicato das Datilógrafas do Distrito Federal, uma categoria numerosa e que poderia influenciar no processo constituinte. A articulação foi tão bem- sucedida que Almerinda, presidente do Sindicato das Datilógrafas, foi a única mulher indicada como delegada eleitoral, que votou na eleição de 20 de julho de 1933 para a escolha da representação classista dos trabalhadores na Constituinte.

Ainda no Período Constitucional da Era Vargas (1934-1937) outro exemplo de conquista de uma mulher negra no meio político, foi a Catarinense Antonieta de Barros, também conhecida como Maria da Ilha. Além de ser fundadora do Jornal A Semana aos 21 anos, ser professora de Português e Psicologia e integrar a Frente Negra Brasileira (FNB), foi a primeira negra a assumir um mandato popular, Pelo Partido Liberal Catarinense, sendo eleita deputada estadual em 1934. Com a interrupção do período democrático pelo Estado Novo (1937-1945), Antonieta 44

voltaria a Assembleia Legislativa de Santa Catarina em 1947 continuando a ser a única negra eleita no país.

Outras lideranças negras foram fundamentais para a constituição da consciência da importância da participação da mulher negra na política, dentre elas a baiana Maria Brandão dos Reis (1900-1974), a maranhense Maria José Camargo Aragão (1910-1991) ambas filiadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Por sua atuação na defesa das questões sociais e militância política, Maria dos Reis chegou a ser indicada para o título de “Campeã da Paz”, premiação que aconteceria em Moscou, mas que por decisão do PCB foi substituída por um jovem intelectual. Já Maria Aragão chegou a concluir o curso de medicina, dedicando significativa parte de sua vida à defesa da democracia e a liberdade. Maria Aragão foi três vezes presa e torturada pela ditadura militar.

Outras tantas mulheres negras, derrubaram barreiras e foram eleitas para diferentes espaços legislativos pelo Brasil:

- Theodosina Rosário Ribeiro, advogada e pedagoga, depois de conquistar a cadeira de vereadora em 1969, foi a primeira deputada negra eleita, em 1971, para Assembleia Legislativa de São Paulo; - Lia Varela, que eleita vereadora em São Luiz do Maranhão em 1971, manteve-se no cargo por quatro mandatos sendo que no segundo, por ser presidente da Câmara de vereadores, assumiu a condição de Prefeita da cidade por trinta dias (14/08 a 15/09/78) , quando o cargo ficou temporariamente vago , tornando-se assim a primeira negra a ocupar este posto em uma capital brasileira; - no Senado Federal, a médica baiana Laélia de Alcântara , radicada no Acre foi a primeira senadora negra no Brasil em 1981, ao ocupar a vaga após a morte do titular do cargo; - Maria José Rocha Lima elegeu-se em 1990 a primeira deputada estadual negra na Bahia, sendo reeleita em 1994, ainda que este estado tenha sua população majoritariamente afrodescendente; - em 1992 Ester Fernandes de Castro foi eleita a primeira vereadora quilombola no Brasil pelo município de Teresina de Goiás, permanecendo no cargo por mais dois mandatos; 45

- Jurema Batista foi outra importante líder comunitária eleita vereadora pelo município do Rio de Janeiro em 1993, reelegendo-se por três mandatos, chegando pelo voto a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2002, no meio do terceiro mandato como vereadora; - a piauiense Francisca Trindade , ocupou as três esferas do poder legislativo , líder comunitária, foi eleita vereadora em Teresina em 1996 , em 1998 conquistou uma vaga para a Assembleia Legislativa do estado e em 2002 , aos 37 anos elegeu-se como para a Câmara Federal como a deputada mais votada da história do estado até então; - em Araçuaí , , outra mulher negra viria a assumir o cargo de prefeita por dois mandatos em 1977, a assistente social e advogada Maria do Carmo Ferreira da Silva; - outra quilombola, oriunda do quilombo Conceição das Crioulas, em Salgueiro Pernambuco, foi Givânia Maria da Silva eleita vereadora no ano de 2000 , tendo como outra conquista ser a primeira mulher do local a frequentar uma universidade.

Nesse período merecem destaque duas mulheres negras que alcançaram projeção nacional e que tiveram trajetórias de superação, cada uma com características dos seus lugares, e que chegaram aos postos mais altos, ocupados por mulheres negras na república até os anos 2000. Uma delas é Benedita da Silva. De vendedora ambulante, doméstica e operária fabril superou todas as barreiras imposta pelo sistema. Com forte atuação comunitária foi Fundadora e Presidente do Departamento Feminino da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro e Membro da Comissão de Saúde Associação de Moradores da Favela Chapéu Mangueira. Formou-se como Assistente Social e com sua militância aguerrida atingiu o respaldo popular e a projeção necessária para eleger-se vereadora em 1982. Foi duas vezes deputada federal (1986-1990), senadora em 1994 e vice-governadora em 1998, ocupando o Cargo de Governadora do Rio de Janeiro em 2002, voltando a ser eleita deputada federal em 2011, cargo que ocupa até o momento, estando na sua terceira reeleição consecutiva. Além da representação Legislativa foi Ministra do 46

Desenvolvimento Social (2003-2004) e Secretária de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos no Rio de Janeiro (2007-2010).

A trabalhadora doméstica e seringueira, nascida no Acre, é outra expressão negra que se tornou referência nacional. Tendo aprendido a ler apenas na adolescência, foi a vereadora mais votada em Rio Branco no ano de 1998. Líder ambientalista, companheira de militância de Chico Mendes, em 1984 fundou a Central Única dos Trabalhadores (CUT) em seu estado. Marina Silva conquistou a cadeira de deputada estadual em 1990 e aos 36 anos foi a mais jovem senadora eleita da história do Brasil, tendo sido reeleita em 2002. Em 2003 ocupou o Cargo de Ministra do Meio Ambiente onde permaneceu até 2008. Foi candidata a presidência da República por três vezes, 2010, 2014 e 2018, chegando a atingir nas duas primeiras eleições o terceiro lugar.

Em aspectos gerais, considerando as eleições de municipais de 2016, o "Mapa Étnico Racial das Mulheres na Política Local Brasileira", elaborado pela Confederação Nacional de Municípios (CNM), constata que das 649 prefeitas eleitas para 5.568 municípios, 459 se declararam brancas (70,7%), 174 pardas (26,8%), 10 negras (1,5%), 5 amarelas (0,7%). Apenas a chefe do Executivo em Marcação, na Paraíba, Eliselma Silva de Oliveira (PDT), se declarou indígena.

Nas Câmaras de Vereadores, as mulheres negras têm uma maior representatividade. Dentre as vereadoras atualmente no poder, 36,7% são negras (32,5% autodeclaradas como pardas e 4,21% como pretas). As brancas representam 62,4%, as amarelas 0,4% e as indígenas 0,2%. Para chegar a esses números o Movimento Mulheres Municipalistas (MMM), criado pela CNM em 2017 cruzou bases de dados dos registros de candidatos e eleitos a prefeitos e vereadores, do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), referentes às eleições municipais de 2016 sendo que a(o)s candidato(a)s fazem uma autodeclaração racial à Justiça Eleitoral.

Ainda que tenham ocorrido mudanças no legislativo que paulatinamente buscou ampliar a participação das mulheres no processo de representação institucional por meio de leis que garantiam cotas às candidaturas de mulheres e mais tarde como cota de gênero, essas conquistas não refletiram diretamente nas eleições de mulheres. A Lei 9.100/1995, que regulamentou as eleições municipais 47

de 1996, previu que para o cargo de vereador(a), 20% das vagas de cada partido ou coligação daquela eleição deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres. Já a lei eleitoral em vigor até hoje, Lei 9504/1997, indicou a reserva (não exatamente seu preenchimento) de 30% das candidaturas dos partidos ou coligações para cada sexo em eleições proporcionais (ou seja, para vereador/a, deputado/a estadual e deputado/a federal), com um dispositivo transitório que definia um percentual de 25% apenas para as eleições gerais de 1998. Além disso, em maio de 2017, por unanimidade, o Plenário do TSE confirmou que os partidos políticos deveriam, já para as Eleições de 2018, reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, conhecido como Fundo Eleitoral, para financiar as campanhas de candidatas no período eleitoral.

Cabe destacar que a falta de uma legislação sobre aspectos étnicos no âmbito eleitoral é um dos fatores que levam a um cenário absolutamente desproporcional na representação real da população. A importante conquista das cotas para candidaturas de gênero e mesmo a garantia de recursos, trabalha com a lógica da garantia de direitos e não a da garantia de condições. A construção da história brasileira sobre bases racistas, patriarcais, machistas e patrimonialistas colocam as mulheres e, em especial, as mulheres negras em condições absolutamente desfavoráveis num processo eleitoral que requer, recursos, visibilidade, disponibilidade de tempo, espaços de liderança, formação, equipes preparadas, apoio partidário e que dialogue com uma sociedade em que os estereótipos construídos no imaginário popular tendem a associar competência política ao perfil masculino, branco, heterossexual, casado e de boa posição socioeconômica.

Em números absolutos, das 7.808 vereadoras, 2.543 se declararam pardas. O número de pretas, por sua vez, caiu de 329 para 328, com a morte de Marielle Franco (PSOL) em 14 de março. Mulher negra, nascida na Favela da Maré, lésbica e defensora dos direitos humanos, Marielle foi a 5ª vereadora mais votada do Rio em 2016. Um exemplo de que para além das dificuldades, econômicas e sociais, em muitos casos (e o de Marielle é emblemático) as mulheres negras ao alcançarem espaços de representação e enfrentarem o sistema na defesa das 48

diferentes causas do povo negro, não estão apenas disputando ideias e buscando conquistas, mas estão colocando suas vidas em risco em nome dessas causas.

Essa luta só reafirma o que dizia Maria do Nascimento, ex-empregada doméstica, atriz e uma das fundadoras do Teatro Experimental do Negro (TEN) em meados do século XX:

Se nós mulheres negras do Brasil, estamos mesmo preparadas para usufruir os benefícios da civilização e da cultura, se quisermos de fato alcançar um padrão de vida compatível com a dignidade de nossa condição de seres humanos, precisamos sem mais tardança fazer política (NASCIMENTO apud SILVA, 2006, p. 2).

Apresentar este feito na história das mulheres no Brasil é de suma importância, considerando a ausência de registro do protagonismo das mulheres negras nas lutas dos movimentos sociais. Em especial para o movimento feminista, é imprescindível que o registro da história não esteja pautado apenas pelo ponto de vista da branquitude, européia, burguesa e heteronormativa. Esperança Garcia, Luiza Mahin, Maria Firmino dos Reis, Antonieta de Barros, Maria Nascimento e tantas outras são um grande exemplo da necessidade de se contar a história por outro viés, de extrema importância para a história, mas, sobretudo para a construção de uma narrativa da cultura negra brasileira que não esteja associada às submissão, servidão e subordinação de forma pacífica dos escravizados e das escravizadas pelos brancos escravistas.

Com a introdução aos antecedentes da pauta feminista, pode-se agora abordar o período que se convencionou chamar de segunda onda feminista. Embora seja possível reconhecer as intensas mudanças que as turbulências impulsionadas pelos movimentos sociais, que emergiram nos anos 1960 e ganharam força no Brasil nos anos 1970 e 1980, uma questão permanecerá como um espectro: qual o lugar das mulheres negras nos movimentos que emergiram naquele período? É possível que a resposta não esteja exatamente na efervescência feminista. 49

1.2. Os turbulentos anos 1960 e as pautas feministas

Em 31 de março de 1964 os militares instalaram uma ditadura civil-militar no Brasil. As mudanças sociais, políticas e culturais que pautavam desde os anos de teriam de recuar. Foram proibidas as organizações coletivas com viés político contrário ao regime. Quaisquer movimentos sociais precisavam atuar de modo silencioso e na clandestinidade. Com o movimento feminista não foi diferente. A violenta repressão fez com que muitos jovens estudantes se lançassem à resistência, inclusive armada, e vários tiveram de deixar o país, dentre os quais muitas mulheres militantes que atuavam em organizações de esquerda (PINTO, 2003). O que se seguiu foram anos marcados pela arbitrariedade e repressão. Foi na dura realidade do exílio que muitas mulheres enfrentaram o machismo de seus companheiros de luta, ali perceberam que estes eram tanto ou mais machistas que seus pais burgueses.

Ao participar da luta armada de 1969 até 1974, as mulheres puderam sentir as discriminações por parte de seus companheiros, tanto pela superproteção como pela subestimação de sua capacidade física e intelectual. Quando caíram nas mãos do inimigo, enfrentaram a tortura e seus algozes aproveitaram-se delas para a prática de violência sexual. (TELES, 2017, p. 81).

Depois de uma passagem pelo Chile, o destino quase sempre foi a Europa, em especial a capital francesa. A agitação social e cultural parisiense marcaria profundamente as jovens mulheres brasileiras. Naquele país, “a realidade era bem diferente daquela da classe média brasileira, de onde saíra a maioria destas jovens, que sempre recorreu às empregadas para o desempenho das tarefas domésticas, permitindo camuflar os problemas ligados à desigualdade presente na divisão sexual do trabalho” (GONÇALVES, 2009, p. 99).

As jovens mulheres encontraram refúgio junto ao ativo movimento feminista francês. Logo, fundariam os Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris (ABREU, 2014). Tratava-se de tornar-se feminista, uma espécie de rito de passagem que contribuiria para que elas adentrassem à causa feminista. O que causou bastante desconforto no interior dos grupos de esquerda. Céli Pinto, a este respeito, enfatiza que “a esquerda exilada, marxista e masculina, via no feminismo uma dupla ameaça: à unidade da luta do proletariado para derrotar o capitalismo e ao próprio poder que os homens 50

exerciam dentro dessas organizações e em suas relações pessoais” (2003, p. 53). A tensão entre os exilados brasileiros do sexo masculino e os grupos feministas era grande, “chegando ao extremo de a Frente de Brasileiros no Exílio ameaçar retirar o apoio financeiro às famílias cujas mulheres freqüentassem essas reuniões” (2003, p. 53). Taxadas como atividades apolíticas e de em nada ajudar na luta contra a ditadura no Brasil, a pressão para que as mulheres não participassem funcionou em muitos casos, sendo que o maior problema talvez residisse no fato de que os grupos feministas estavam “politizando a vida dentro de casa” (PINTO, 2003, p. 53).

Enquanto as jovens mulheres exiladas viviam a experiência do feminismo, aqui no Brasil, a situação era outra, mas também colocava as mulheres no centro da vida política. As mudanças no cenário econômico do período ditatorial empobreceram mais ainda as camadas populares. O Brasil deixava de ser predominantemente rural e as cidades estavam cada vez mais superlotadas.

A profunda crise econômica que se instalou atirou inúmeros trabalhadore(a)s para fora do mercado de trabalho e no tocante às mulheres, assistimos a uma importante mudança: a feminização precária do mercado de trabalho. Elas se concentraram em guetos ocupacionais como o comércio, as instituições bancárias, os serviços (estes compreendendo sobretudo as empregadas domésticas)... mas também, e principalmente, no setor informal que desde então não parou de se ampliar. Além disso, se consolidaram as chamadas “especificidades” do trabalho feminino: desigualdade de salários, má qualificação, maior desemprego, etc. (GONÇALVES, 2009, p. 101).

Foram estas dificuldades econômicas que contribuíram para que muitas mulheres buscassem alternativas para assegurar a sobrevivência delas e de suas famílias e, portanto, se lançassem cada vez mais no mercado de trabalho, o que expôs as grandes falhas da mentalidade tradicional machista brasileira, que via a esfera doméstica como o pertencimento “natural” do sexo feminino.

Os inúmeros problemas ligados às precárias condições de vida levaram muitas mulheres dos setores populares a buscarem auxílio espaços das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no interior da Igreja Católica, que passava por profundas mudanças naquele período, sobretudo a partir das teses inovadoras do Concílio Vaticano II, que colocava o povo como Sujeito de sua 51

própria história (DOIMO, 1995). A Igreja desempenha um papel decisivo na organização política destas mulheres. Elas não eram consideradas um perigo para os militares, que as viam como a-políticas. Mas, no interior das Comunidades Eclesiais de Base a partir de atividades ligadas à esfera doméstica, tais como cursos de costura, de pintura, de tricô, etc., elas desenvolveram uma capacidade de organização política. Ao falarem de seus problemas, perceberam que o problema das péssimas condições de vida afligia a todas que ali estavam, não era um problema apenas individual. A este respeito, Renata Gonçalves observa que, estas

atividades transformaram não somente suas vidas, mas também elas próprias se colocaram em movimento. Criaram, por exemplo, o movimento contra a carestia, reuniram mais de um milhão de assinaturas contra as medidas econômicas tomadas pelos militares... Enfim, neste processo se politizam (2009, p. 101).

Em 1972, as mulheres das periferias de São Paulo, nas Comunidades Eclesiais de Base, iniciaram muitas mobilizações tendo como reivindicações centrais a criação de creches, a instalação de luz elétrica, o encanamento de água nos bairros periféricos etc. A profunda crise e o aumento constante da inflação também a conduziram a se organizarem para questionar a alta dos preços dos alimentos e do custo de vida com um todo.

Surgiria, mais tarde, no final dos anos 1970, o Movimento Contra Custo de Vida (MCV), cujas participantes, as autodenominadas "mães da periferia", levariam mais de 20 mil pessoas à Praça da Sé, em ato público para protestar contra a política econômica do governo, colheram mais de 1 milhão de assinaturas em abaixo-assinado protocolado no Congresso em pleno regime militar. Na década de 1970 há uma grande evolução dos movimentos reivindicativos, como os movimentos de moradia, de luta contra o desemprego, de saúde, de transporte coletivo etc. Todos estes movimentos se mostraram de suma importância para a luta pela redemocratização do país e também contribuíram para ampliar os debates e pautas feministas.

O país começava também a sofrer alguma pressão externa no tocante à condição feminina. O ano de 1975 abriu a década da Mulher na Organização das Nações Unidas (ONU), o que contribuiu para que muitas associações de mulheres 52

fossem criadas. A pauta dos direitos das mulheres passou a ser uma prioridade. A data foi considerada um marco do feminismo no Brasil e no mundo, em razão daquele ter sido considerado o Ano Internacional da Mulher, estabelecido pela ONU, com uma conferência ocorrida no México.

O reconhecimento oficial pela ONU da questão da mulher como problema social favoreceu a criação de uma fachada para um movimento social que ainda atuava nos bastidores da clandestinidade, abrindo espaço para a formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamente, como o Brasil Mulher, o Nós Mulheres, o Movimento Feminino pela Anistia, para citar apenas de os São Paulo (PINTO, 2003, p. 53).

A representação da delegação brasileira nesta conferência foi de extrema importância para a pauta dos movimentos de mulheres, devido ao contexto político de ausência de um Estado democrático de direitos. Também naquele ano ocorreu a fundação do Movimento Feminino pela Anistia, tendo à frente a assistente social, advogada e ativista pelos direitos humanos Terezinha Zerbini, representante da delegação brasileira no congresso, que encaminha moção pela anistia, imediatamente aprovada pelas demais delegações presentes na conferência. Inicia-se ali uma intensa campanha em prol do retorno ao país dos exilados pela ditadura militar. Com relação ao significado do Ano Internacional da Mulher, Maria Amélia Teles observa que:

Graças ao desempenho das mulheres, 1975 tornou-se de fato o marco histórico para o avanço das ideias feministas no Brasil. Sob uma ditadura militar, mas com o apoio da ONU, a mulher brasileira passou, então, a ser protagonista de sua própria história, em que a luta por seus direitos específicos se fundia com as questões gerais. Respondia de maneira forte aos anseios da época: de se expressar, de falar, de enfrentar, de agir (TELES, 2017, p. 95).

Desde então, cresce o movimento pelo retorno da democracia no Brasil, culminando no Comitê Brasileiro pela Anistia que, em 28 de agosto de 1979 resultaria na Lei da Anistia. O país cantava a volta do irmão do Henfil21 e recebia suas lideranças políticas forçadas ao exílio.

21 Em referência à música interpretada por Elis Regina - “O bêbado e a equilibrista” (1979), um hino do Brasil na época da ditadura e da anistia. É um “Brasil que sonha… com a volta do irmão do Henfil” (apelido de Henrique de Souza Filho, cartunista, quadrinista, jornalista e escritor que foi exilado), o Herbert de Souza, o Betinho, sociólogo e ativista de direitos humanos, também perseguido e exilado, como tantos outros brasileiros. 53

Este período também marcou o retorno de muitas mulheres que foram exiladas pelo regime militar. Parte delas tiveram uma aproximação com os movimentos feministas da Europa e a volta ao solo brasileiro as colocou em contato com as experiências das mulheres dos setores populares que permaneceram no país. Havia entre ambos os grupos, o de mulheres populares e o das feministas que estiveram no exílio, um ponto de ligação que era o enfrentamento à ditadura. Além disso, embora com pautas às vezes distintas, predominava entre elas o reconhecimento de que eram mulheres e, como tais, compartilhavam muito mais pontos em comuns do que propriamente divergências.

O encontro entre as mulheres foi marcado por grandes mobilizações de massa e levou muitos sociólogos, como Eder Sader (1988), por exemplo, a considerarem a participação feminina como sendo a novidade por excelência dos movimentos sociais do período. Elizabeth Souza-Lobo (1991) denomina esta presença feminina como um feminismo revisitado, expressão utilizada para diferenciar as ações dos anos de 1970 daquelas das lutas feministas pelo direito ao voto e à educação, ocorridas no início do século XX. Vera Soares (1998), identifica um Movimento de Mulheres com uma dupla face: a das mulheres das camadas populares e as feministas oriundas das camadas médias da sociedade brasileira.

Havia, portanto, uma articulação entre as demandas das feministas, que colocavam na agenda as pautas relativas à sexualidade, aborto, divórcio, participação política e as reivindicações das mulheres das organizações de bairro, como demanda por creches, escolas, transportes públicos etc. Embora distintas, não eram pautas divergentes (SARTI, 2004). À exceção do aborto, assunto considerado tabu pela Igreja Católica, o que se viu foi uma junção entre as agendas.

E, neste sentido, deram impulso aos debates acerca das discriminações no trabalho, da violência doméstica, do direito ao divórcio. a contramão da exaltação da maternidade, refletiram sobre o péssimo acompanhamento de mulheres no período de gestação e/ou dos partos, os perigos de infecções hospitalares, morte das mulheres por falta de cuidados médicos; questionaram o laço “natural” entre maternidade e sexualidade, ao mesmo tempo em que denunciaram a violência que as mulheres sofrem dentro do casamento, inclusive o estupro; compreenderam e questionaram a existência da 54

domesticação do corpo, o controle da sexualidade e a exaltação da função materna como único destino possível para as mulheres (GONÇALVES, 2009, p. 102).

As lutas políticas foram acompanhadas pelas leituras obrigatórias que se fazia nos grupos de reflexões no interior das Comunidades Eclesiais de Base ou nos salões comunitários dos bairros ou na casa de alguma camarada de luta.

Maria Lygia Quartim de Moraes (2004) observa que era leitura obrigatória o livro de Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, que fornecia os pilares para a compreensão da origem da subalternidade feminina. Também se lia o livro que marcou as mobilizações feministas nos Estados Unidos, A mística feminina, de Betty Friedan, em que a autora se dirige a um público feminino da conservadora classe média estadunidense, que enclausurava as mulheres impedindo-as de trabalhar fora de casa, de serem donas de seus corpos etc. O clássico O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, era igualmente uma leitura importante, sobretudo no ambiente por onde circulavam as feministas, em especial as que estavam na academia. Eram poucas as contribuições brasileiras sobre o assunto. Talvez por isso o livro A mulher na sociedade de classe, de Heleieth Saffioti, teve tanta repercussão no Brasil.

Em todas estas leituras buscava-se compreender a origem da subalternidade feminina e, sobretudo, como construir as ferramentas para sua superação com vistas à emancipação humana. E muitos estudos se propagavam em diálogo com o marxismo.

A discussão ontológica do ser mulher, inspirada por feministas marxistas, como Alexandra Kollontai, e por Simone de Beauvoir, entre outras, tornou-se uma decorrência do que havia sido vivido. Na busca de uma articulação entre a luta contra as condições objetivas de opressão social e a reflexão em torno das relações interpessoais, o feminismo brasileiro, como argumentou Maria Lygia Moraes, enfrentou-se com a questão de articular à sua base marxista a questão da subjetividade, introduzindo, por essa via, também a psicanálise como sua referência (SARTI, 2004, p.38).

O reconhecimento oficial pela ONU da questão da mulher como problema social favoreceu a criação de uma fachada para sair dos bastidores. Foi aberto um espaço para a formação de grupos de mulheres que puderam sair da clandestinidade. Também possibilitou discutir como retirar as mulheres do 55

confinamento doméstico, com estratégias que acabaram por propiciar “a emergência de um novo sujeito político, ao questionar, de diferentes maneiras, a condição da mulher e pôr em discussão a identidade de gênero” (SARTI, 2004, p. 40).

Com o passar dos anos, crescia a participação de mulheres das mais diferentes inserções que passaram a se organizar e a participar com outras organizações, de movimentos de base aos movimentos de feministas, promovendo encontros e congressos. Neste contexto ocorre o 1º Congresso da Mulher Paulista, em 1979. Este congresso foi fundamental porque ali se

comprovou a existência do movimento feminista mesmo para setores que negava a importância ou necessidade da organização específica das mulheres. A partir desta data, as forças políticas atuantes no país passaram a considerar a participação feminina e, em consequência, incorporar reivindicações feministas a seus programas e objetivos (MORAES, 2017, p. 218).

E as pautas feministas não pararam mais de crescer no cenário nacional. A violência doméstica, por exemplo, foi amplamente discutida. Sob o lema “O pessoal é político”, o debate saiu do âmbito privado e ganhou visibilidade em escala nacional. O principal canal de televisão brasileira, por exemplo, exibiu em sua programação semanal duas séries Malu Mulher e Quem ama não mata! Assistida em quase todos os lares, a violência doméstica foi exibida na maioria dos lares brasileiros (dos mais abastados aos mais populares). Em 1980, o mesmo canal colocou no ar, em programação diária, o TV Mulher. Os temas ditos “femininos” passaram a frequentar o cotidiano das famílias brasileiras. Violência doméstica, sexualidade, diversidade sexual, trabalho feminino etc, eram alguns dos assuntos abordados pela televisão brasileira (TELES, 2017).

Tais temas também foram abordados pela imprensa feminista do período. Com efeito, no livro Da guerrilha à imprensa feminista – a construção do feminismo pós luta armada no Brasil (1975-1980), escrito por Amelinha Teles e Rosalina Santa Cruz Leite (2013), é possível perceber a efervescência de um jornalismo feminista do período. As autoras enfatizam que, em plena ditadura civil- militar, o feminismo era mais ousado e criativo. Desta ousadia e criatividade, surgiram em São Paulo dois jornais feministas, que funcionaram entre 1975 e 1980: o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. 56

Defendiam ideias e princípios relacionados ao contexto político do movimento nacional feminista pós-luta armada, quando a oposição buscava espaços de atuação. Ambos estavam comprometidos com uma nova linguagem e com a difusão de reivindicações e propostas vinculadas diretamente às condições das mulheres e às novas formas de fazer política (LEITE; TELES, 2014, p. 59).

O primeiro jornal, o Brasil Mulher, tinha como objetivo principal a defesa da Anistia estendida a todos os presos políticos. Rapidamente, o jornal tornou-se uma das principais forças políticas na oposição à ditadura militar. Era veiculado em vários estados da Federação e as mulheres se organizavam não apenas para fazer a leitura, mas também para fazer a distribuição e sugerir notícias à edição seguinte. Com relação ao segundo periódico, o Nós Mulheres, Maria Amélia Teles considera que sua publicação “contribuiu de maneira decisiva para o avanço das ideias feministas e para o combate à discriminação” (TELES, 2017, p. 101).

Maíra Kubik (2014) destaca que a leitura de ambos os jornais possibilita perceber o tom da preocupação política de aliar a conjuntura de enfrentamento à ditadura civil-militar ao debate feminista e de mulheres. Juntos conseguiram fortalecer as reivindicações femininas e ajudaram as mulheres a tomar consciência de sua condição. Estiveram ao lado das mulheres das camadas populares e trouxeram para o debate a urgência de se discutir as transformações econômicas e sociais com vistas às melhores condições de vida e de trabalho tanto para os homens como para as mulheres. Os principais assuntos abordados em ambos são:

1) a luta pela anistia às/aos presas/os e perseguidas/os políticas/os – o Brasil Mulher tem entre suas fundadoras Terezinha Zerbini, líder do Movimento Feminino pela Anistia; 2) o aumento do custo de vida, a inflação e a ausência de equipamentos públicos, em especial de creches, assuntos frequentes nas redes de mulheres e clubes de mães que se formavam nos meios populares; 3) as articulações das mulheres trabalhadoras, como as costureiras e as metalúrgicas, em especial o Congresso de Metalúrgicas, realizado em São Bernardo em 1978, somando-se à ebulição na região, tomada pelas greves do ABC; 4) denúncias contra os programas de controle de natalidade em larga escala implementados pelo governo, ao mesmo tempo em que se discutia o impacto da pílula anticoncepcional na saúde; 5) as estudantes queimadas na invasão da PUC-SP em 1977, criticadas por Erasmo Dias por usarem “calcinhas e sutiãs de náilon” em uma manifestação “ilegal”; e 6) a reivindicação de uma Constituinte livre e 57

soberana; 7) o racismo como opressão; dentre outros (KUBIK, 2014, p. 260).

Um pouco mais tarde, em 1980, é fundado em São Paulo o jornal Mulherio, com sede no Departamento de Pesquisas da Fundação Carlos Chagas22. Segundo Maria Amélia Teles, “foi uma iniciativa extremamente oportuna, já que era a única publicação nacional que podia responder a algumas indagações sobre as atualidades do feminismo na época” (2017, p. 101). O jornal abordava temas23 mais diretamente feministas, como por exemplo, a extensão da licença- maternidade para os pais, questionava a manutenção do trabalho doméstico sob a responsabilidade das mulheres, ocasionando a dupla jornada de trabalho.

Este último tema, sobre a dupla jornada de trabalho, permanece com poucas alterações. As mulheres continuam com uma dupla ou tripla jornada de trabalho, em especial neste momento de ampliação da crise econômica no Brasil. Os trabalhos mais precários são as mulheres que exercem, levando-as a jornadas de trabalho cada vez mais longas com ritmos cada vez mais intensos, levando ao empobrecimento das trabalhadoras.

O que se vê é uma verdadeira ligação entre feminização do trabalho e pobreza (GONÇALVES, 2009a), demonstrando que a opressão das mulheres é para os capitalistas um instrumento que permite gerir o conjunto da força de trabalho. Não é por acaso que esta feminização do trabalho precário ocorre em escala mundial. Foi o tema do trabalho feminino, de acordo com Bruschini (2006), que abriu o caminho para o campo dos estudos de gênero no Brasil.

as pesquisas sobre o trabalho feminino tomaram realmente um novo rumo quando passaram a focalizar a articulação entre o espaço produtivo e o reprodutivo, ou a família, pois, para as mulheres, a vivência do trabalho implica sempre a combinação dessas duas esferas, seja pelo entrosamento, seja pela superposição. Hoje é possível afirmar que qualquer análise sobre o trabalho feminino, procurando romper velhas dicotomias, estará atenta à articulação

22 A Fundação Carlos Chagas desempenhará um importante papel no desenvolvimento de pesquisas sobre a “questão da mulher”, como se dizia na época, e também na difusão dos resultados dos estudos. 23 O jornal foi um dos únicos a discutir a situação da mulher negra, como será abordado no próximo capítulo, sobretudo a partir da análise de artigos e entrevistas de Lélia Gonzalez, publicados no Mulherio. 58

entre produção e reprodução, assim como às relações sociais de gênero (BRUSCHINI, 2006, p. 322).

Para a autora, as pesquisas sobre o trabalho feminino tomaram um novo rumo quando passaram a focalizar a articulação entre o espaço produtivo e o reprodutivo. Para as mulheres, a vivência do trabalho implica sempre a combinação dessas duas esferas, seja pelo entrosamento, seja pela superposição. Com efeito, cresceu no período uma área dentro da Sociologia do Trabalho que trazia para a reflexão novas questões relativas à inserção das mulheres no mercado de trabalho. Cristina Bruschini (2006) fez inúmeras pesquisas que demonstravam a existência de uma sexualização das ocupações, em que a divisão sexual do trabalho impõe os lugares que as mulheres podem ocupar na esfera produtiva, configurando uma maior concentração em algumas categorias ocupacionais específicas.

Segundo Elizabeth Souza-Lobo, “observou-se a permanência de ocupações tradicionalmente femininas: trabalho doméstico, remunerado ou não, trabalho domiciliar ao lado de processos clássicos de proletarização” (SOUZA- LOBO, 1991, p. 160). Ao mesmo tempo, a autora enfatiza que as mulheres assumiram o trabalho produtivo ou o trabalho improdutivo, como o emprego doméstico remunerado, sem que, no entanto, tivessem sido abolidas as tarefas domésticas cotidianas em suas casas, ocasionando uma dupla jornada de trabalho. Situação que se agravou em função da falta de políticas sociais impulsionadas pelo Estado naquele período marcado pela crise do desemprego e elevação do custo de vida. Nesta perspectiva, Hildete Pereira de Melo, considera que:

As mudanças no mercado de trabalho, em paralelo com o desmonte das estruturas públicas de assistência social, que ofereciam parcialmente soluções para algumas das funções femininas no cuidado das crianças, criaram maiores obstáculos para a construção de uma sociedade onde homens e mulheres sejam iguais. Como encontrar soluções de mercado para essas obrigações? Assim, as mulheres além de não terem resolvidos esses problemas, porque faltam creches, escolas em tempo integral, lavanderias e refeitórios coletivos, hospitais e postos de saúde, equipamentos essenciais para minimizar as tarefas domésticas, ainda têm de enfrentar a precarização do emprego, aliada ao fantasma do desemprego (MELO, 1998, p. 67). 59

E as mulheres que conseguiram se inserir na esfera produtiva, de acordo com as pesquisas de Souza-Lobo (1991), além das dificuldades apontadas acima, também encontravam muitos entraves para serem aceitas no espaço fabril, considerado um ambiente estritamente masculino e onde predominava um pensamento conservador que integrava “os papéis tradicionais do homem na esfera de produção e os da mulher na reprodução” (1991, p. 35). A autora também enfatiza, que por esta razão, também havia uma exploração mais intensiva da força de trabalho feminina pelos patrões e, ao mesmo tempo, estes utilizavam a subordinação das mulheres para impossibilitar a organização sindical do conjunto dos trabalhadores. Aliás, no interior dos sindicatos, instituições que resultam da organização da classe trabalhadora, o mesmo ocorria, ou seja, as mulheres ou não participavam ou eram vistas como “fora do lugar” ou ainda estava ali para dividir a organização da classe. Estas constatações as conduziram a enfatizar que a classe operária tem dois sexos.

Os movimentos de mulheres das periferias e as feministas deram uma resposta. Para aqueles e aquelas que achavam que as mulheres poderiam minar o movimento operário, sinalizaram a necessidade de estimular o debate sobre a oposição entre lutas gerais e lutas específicas e a urgência de se estabelecer prioridades nas reivindicações (SOUZA-LOBO, 1991). Diante do reconhecimento de que os espaços de organização sindical são masculinos, com práticas masculinas (e machistas), começava a haver algumas mudanças com a entrada das mulheres na dinâmica das lutas sociais que ganhavam visibilidade tanto nas ruas como no interior das fábricas. E havia muito o que mudar. Era preciso:

lutar pela sua emancipação econômica e social, pelo seu direito ao trabalho, com todas as especificidades que isso implica, como, por exemplo, salários iguais para trabalhos iguais, além da reivindicação de uma divisão mais justa no trabalho doméstico, na esfera reprodutiva, libertando, ao menos parcialmente, a mulher da dupla jornada (NOGUEIRA, 2004, p. 37).

Assim, no Congresso Nacional dos Metalúrgicos, em 1979, sem se referir às mulheres, havia a reivindicação de “para trabalho igual, salário igual”. Pouco tempo depois, em 1981, a pauta já era mais inclusiva. Finalmente na lista de reivindicação do sindicato, encontrava-se a solicitação da “estabilidade de 60

emprego durante o período de gravidez e até 90 dias após a licença obrigatória” (SOUZA-LOBO, 1991, p. 39). Segundo a autora,

A participação das mulheres no movimento durante o período que se seguiu ao Congresso foi importante, porém diferenciada. O número de grevistas mulheres era significativo e em certas fábricas, onde a porcentagem de mulheres é alta, foram elas que desencadearam o movimento (convém assinalar que as greves ultrapassaram o quadro sindical, pois as assembleias reuniam, durante a greve, cerca de 80 mil trabalhadores, enquanto que os sindicatos não atingiam mais de 30 mil). Nessas circunstâncias, a combatividade das mulheres, impressionou seus companheiros masculinos e segundo o testemunho de algumas operárias, travar essa luta juntos começou a modificar o esquema da relação homem-mulher (SOUZA-LOBO, 1991, p. 39).

Da mesma maneira em que é possível perceber mudanças significativas do ponto de vista da inserção das mulheres na esfera produtiva, são visíveis também as alterações que ocorrem no que diz respeito à presença feminina como sujeito político coletivo ou individual que,

só emergiu com o surgimento de um movimento de mulheres com caráter feminista a partir dos anos 1970, no bojo de um processo internacional de ressurgimento do movimento, marcado por mudanças na área do trabalho, na educação, no acesso à anticoncepção e por enormes mudanças culturais pressionadas por fortes movimentos sociais e culturais (GODINHO, 2004, p. 150).

Embora ainda em percentuais bastante reduzidos, no bojo desse processo ocorre um aumento importante da presença das mulheres nos espaços parlamentares e do Executivo. Com a anistia e o retorno ao voto, a pauta feminista ganha mais visibilidade. O governo de São Paulo eleito em 1982 abriu caminho para a criação do Conselho Nacional da Condição Feminina, que foi um importante instrumento de luta pelo direito das mulheres. Naquela década foram criadas as Delegacias Especializadas da Mulher e ocupava o centro do debate a inserção das mulheres no aparato de Estado. Concebia-se a proposição de que era possível alterar o cotidiano das mulheres por meio da implementação de políticas públicas.

Iniciava-se a institucionalização do movimento feminista, que viu, nos anos 1990, inúmeras feministas se inseriram no aparelho de Estado para, a partir de dentro, impulsionar uma política voltada para a promoção do direito das mulheres. 61

Outras, no entanto, consideraram que, com esta adesão ao Estado, seriam devoradas pela dinâmica política dos governos. Foi o que aconteceu. O “caráter combativo do movimento feminista começou a desaparecer gradativamente. O receio de perder as formas não hierárquicas de organização e de serem cooptadas pelo sistema patriarcal tornou-se realidade” (GONÇALVES, 2009, p. 106). Os laços que haviam unido feministas e mulheres dos setores populares foram afrouxados, diminui a militância não-profissional e, ao mesmo tempo, o debate sobre o ponto de vista feminino se deslocou cada vez mais para os espaços acadêmicos.

Houve, ao longo desse percurso do movimento feminista, uma invisibilidade com relação a especificidades que não podem ser dissolvidas pela categoria universal de “mulher”. Como veremos a seguir, as mulheres negras não se viram inseridas nem representadas por este movimento que priorizava a ruptura com certo “modelo” feminino. Sueli Carneiro (2003), a este respeito, reconhece os ganhos que as mulheres em geral tiveram a partir das lutas feministas, mas observa que o feminismo ficou prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres e, portanto, foi incapaz de “reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade biológica” (CARNEIRO, 2003, p. 118). As outras formas de opressão, não foram percebidas, tiveram suas vozes silenciadas e seus corpos estigmatizados. As especificidades das mulheres negras foram invisibilizadas, uma vez que não podiam (e não podem) ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica do combate ao sexismo.

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CAPÍTULO 2 Saindo da invisibilidade: Movimentos de Mulheres Negras no Brasil 63

2.1. Enegrecendo a pauta feminista: debates e tensões

Marcha contra o racismo, eu vou Marcha contra violência, Marcha pelo bem viver Eu sou Tereza de Benguela, eu sou Carolina de Jesus, eu sou Minha resistência aqui não para Eu sou filha de Dandara. Negras em Marcha - Mc Luana Hansen24

As lutas das mulheres negras não começaram agora. Elas remontam ao território africano quando fizeram o que podiam para impedir que fossem sequestradas. Todavia, as décadas de 1970 e 1980, no Brasil, foram um período de suma importância para o avanço das lutas das Mulheres Negras em decorrência das condições políticas nos cenários nacional e internacional, quando identificaram a necessidade de se organizarem como um movimento autônomo (MOREIRA, 2006). Com efeito, até aquele momento elas não haviam se organizado autonomamente25. Ao contrário, sempre estiveram organizadas em diferentes movimentos e formas associativas, como em quilombos, comunidades, irmandades religiosas, religiões de matriz africana, associações de bairros, movimentos de favelas, saúde, estudantis, feministas, negros, sindicatos, partidos políticos, culturais etc.

Seria simplista e superficial, como escreve Lady Christina de Almeida (2014), caracterizar que o motivo do surgimento do movimento de mulheres negras se deu apenas pelo fato destas não encontrarem espaço no movimento negro e no feminista26. Se você olhar a história das mulheres negras, você vai descobrir que elas sempre se organizaram. Na África você vai encontrar organizações de mulheres negras e quando as mulheres começam a chegar ao Brasil, como escravas, começam a chegar as

24 Composição feita especialmente para a Marcha das Mulheres Negras de 2015 como uma homenagem às mulheres negras, que ao longo da história resistiram à opressão do racismo e do patriarcado. 25 As mulheres negras sempre estiveram organizadas e, enquanto tais, denunciaram situações de violências que as afligiram ao longo da história. Destacam-se, dentre outras, a primeira Associação de Empregadas Domésticas no Brasil (1936), criada por Laudelina de Campos; o Conselho Nacional de Mulheres Negras e o Congresso Nacional de Mulheres Negras, ambos datados de 1950 e ligados ao Teatro Experimental do Negro. Como escreveu Joselina da Silva, “já éramos mulheres e negras, do ponto de vista argumentativo e da construção identitária” (2014, p. 36). 26 Entrevista com a intelectual/ativista Ana (nome fictício), do Rio de Janeiro, fundadora e coordenadora da Organização Criola (ALMEIDA, 2014). 64

organizações. Já havia essa história, essa trajetória. Elas já se organizavam à parte dos homens e também juntamente com os homens. Então, o que nos leva à organização na década de 1990 é essa própria história. Apesar de nas literaturas recentes você ouvir e ler que o Movimento de Mulheres Negras se organiza pela falta de espaço entre os negros e entre as mulheres parece que somos um movimento de mulheres que foi levado a isso pela impossibilidade política dos outros movimentos, essa é a primeira leitura que se faz. Mas, na verdade, isso indica que as mulheres negras demandavam um tipo de protagonismo que elas reconheciam em si, ou seja, já havia uma certeza de que a posição de uma mulher negra tem de ocupar em uma organização política não é a uma posição subsidiária. Isso não é porque as mulheres negras das décadas de 1970 e 1980 acordaram, e disseram: Eu quero ser protagonista! Mas é por que existe uma cultura que foi mantida, e eu acredito que não é o ressentimento em relação a um movimento misto ou um movimento feminista, é porque a gente faz organização desde sempre. (ALMEIDA, 2014, p. 108-109).

Um debate polêmico. A este respeito, Joselina da Silva (2014), por exemplo, faz um contraponto destacando que a ausência de discussão política e compromisso de luta contra o racismo no interior do Movimento Feminista, de um lado, e falta de uma abordagem de gênero dentro do Movimento Negro, teriam dado lugar ao surgimento do Movimento de Mulheres Negras. Nesta perspectiva, as mulheres negras se organizavam no interior de outros movimentos sociais, ainda que suas pautas estivessem secundarizadas. O acúmulo da discussão no meio desses dois principais movimentos sociais teria levado as mulheres negras a gestarem sua organização de forma autônoma.

Núbia Moreira (2018) identifica o final da década de 1970 como o momento em que ocorrem os primeiros embates no movimento feminista e no movimento negro. As mulheres negras estavam lá “criando caso”, isto é, problematizando o fato de que havia uma ausência de debate em torno do sexismo dentro do movimento negro e um distanciamento sobre as questões étnico-raciais e classe social no movimento feminista (BAIRROS, 2006). O machismo, o sexismo, o silenciamento ou até mesmo a invisibilidade das mulheres negras dentro do Movimento Negro, culminava em um papel secundarizado, tarefeiro, apartado das instâncias decisórias e de poder do movimento, pois, para o homem negro, em uma sociedade atravessada pelo racismo, esse espaço significava um dos poucos momentos para o seu protagonismo, ou seja, não seria viável dividi-lo com as mulheres negras (LEMOS, 1997). 65

quem tem informação tem poder. Esse poder, porém, era de propriedade dos homens do Movimento Negro e não das “xeretas”, como eram classificadas as mulheres negras que queriam participar ativamente da discussão política e não apenas passivamente, confeccionando cartazes, recepcionando, fazendo comida e desempenhando tantas outras tarefas conferidas à mulher como atividades “naturais” (LEMOS, 1997, p. 54).

Além disso, existia o reforço da objetificação em relação ao corpo da mulher, sobretudo ao corpo da mulher negra. Algumas militantes do movimento negro não conseguiram permanecer nesta organização em virtude do machismo explícito. A fala da militante Vânia Santana27 ilustra muito bem isso: O assédio sexual era um problema gravíssimo. Não sejamos nem um pouco ingênuas a respeito. O espaço de realização das mulheres tinha que ser à sombra de um homem, eu ficava bastante impressionada que o papel das mulheres. Evidentemente não vou estar falando aqui de Lélia González e nem de Beatriz Nascimento porque elas não se prestavam a esse papel, pelos menos nunca vi isto publicamente; num fórum íntimo, já não sei. Aí você ajeita a mesa, você poe o microfone e alguém vai falar. Isso realmente, já com meu passado em casa, com minha iniciante trajetória política, achava isso uma prática inconcebível para mim pessoalmente, porque também fiz muita coisa, muito trabalho de secretaria sendo feito, quer dizer, qual é a possibilidade de você tomar para si o microfone. Eu acho que isso também fizesse com que as mulheres negras viessem buscar seu espaço, tomar o microfone (LEMOS, 1997, p. 53).

As mulheres negras tinham a convicção da necessidade de organizar-se em separado, considerando as experiências da organização no Movimento Negro e no Movimento Feminista. Em ambos, as discussões sobre suas especificidades foram secundarizadas ou desconsideradas (BAIRROS, 2008). Portanto, é necessário pontuar a importância do protagonismo dessas mulheres, no apontamento para que as questões de gênero, raça e classe fossem incorporadas no debate desses movimentos. Tratava-se de uma “tomada do microfone” e, como dizia Lélia González, “o lixo vai falar, e numa boa” (2018, p. 193).

Neste período, de acordo com Ribeiro (1995), se ampliam as discussões sobre as “especificidades” das mulheres em diversos setores da sociedade, como sindicatos, associações de moradores, conselhos etc. Ressalte-se a participação

27 Entrevista disponível na dissertação de mestrado de Rosália Lemos (1997). 66

nas Comunidades Eclesiais de Base, na organização de mulheres ligadas à igreja católica ou como moradoras das regiões periféricas. O debate político, intelectual ou ativista girava em torno do “universo” da mulher e, naquela conjuntura, não cabia a discussão sobre a racialidade na sociedade brasileira e, ainda menos, a abordagem da interseccionalidade entre raça e gênero, que, aliás, ocupava espaço ínfimo na agenda feminista (SILVA, 2014). Situação bem diferente do que ocorria no movimento feminista internacional, quando grandes referências do feminismo negro, como Angela Davis, Audre Lorde, bell hooks28 dentre outras, já teorizavam sobre a mulher negra, considerando as intersecções entre gênero, raça e classe29. Por aqui, o movimento feminista custou a considerar a relevância do protagonismo das mulheres negras, o que explica o fato de que o feminismo negro passou ser pauta de debates somente a partir da década de 1980, quase uma década de atraso em comparação com as feministas estadunidenses.

Segundo Moreira (2018), o marco histórico das organizações de mulheres negras, definido como feminismo negro nas décadas de 1970 e 1980, é fruto da intersecção entre movimento feminista e movimento negro para mobilização política em torno das exigências e demandas das mulheres negras. Em virtude do cenário internacional em relação ao reconhecimento aos Direitos das Mulheres, a I Conferência da Mulher foi organizada em 1975, no México. Na ocasião, foi aprovado um plano de ação que apontava as diretrizes aos países para os dez anos seguintes, período consagrado como Década das Nações Unidas para a Mulher (1975-1985), culminando, em 1979, na Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, configurando-se como o primeiro tratado internacional a dispor de maneira mais ampla sobre os direitos humanos das mulheres, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, entrando em vigor a partir de 1981, ao qual o Brasil adere, tornando-se estado- parte da Convenção, em 198430.

28 bell hooks, nome adotado por Gloria Watkins, nome de sua avó e pede que o usem assim em minúsculo, pois acredita que o enfoque deve ser dado ao conteúdo da sua escrita e não à sua pessoa. 29 Ainda que não tivesse essa denominação naquele momento. 30 Decreto nº 89.460, de 20 de Março de 1984 - Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, 1979. 67

O ano de 1975, abertura do Ano Internacional da Mulher promulgado pela ONU, também foi um indicador das divergências e perspectivas entre mulheres negras e não negras no interior no movimento feminista brasileiro. Durante o Congresso de Mulheres Brasileiras, ocorrido em julho de 1975, foi apresentado o Manifesto das Mulheres Negras: A apresentação do Manifesto das Mulheres Negras durante o Congresso de Mulheres Brasileiras em junho de 1975 marcou o primeiro reconhecimento formal de divisões raciais dentro do movimento feminista brasileiro. [...] Porém, como o Manifesto de Mulheres Negras sugeriu, qualquer suposta unidade entre mulheres brasileiras de raças diferentes já era alvo de debate. O manifesto chamou atenção para as especificidades das experiências de vida, das representações e das identidades sociais das mulheres negras e sublinhou o impacto da dominação racial em suas vidas. Além disso, ao desmascarar o quanto a dominação racial é marcada pelo gênero e o quanto a dominação de gênero é marcada pela raça, o manifesto destacou que as mulheres negras foram vítimas de antigas práticas de exploração sexual (CALDWELL, 2000, p. 97-98).

Ao final daquela década, houve o início da reorganização das instituições de mulheres negras que, de acordo com Domingues (2009), compreedem que eram prejudicadas pelo machismo de um modo geral, isto é, não apenas de homens brancos, mas também de negros – inclusive ativistas. Esta compreensão as levou a perceberem tambem que dispunham de pouco espaço dentro dos movimentos negros. Desse modo, parte delas resolveu criar grupos específicos de mulheres negras, ainda em 1978.

Nesta fase, surgiram os primeiros grupos de mulheres negras: o Aqualtune (RJ), de 1978, um grupo de estudos vinculado ao Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN); o Luiza Mahin, de 1980; o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras (RJ), e o Coletivo de Mulheres Negras (SP), ambos criados em 1983 (DOMINGUES, 2009, p. 39).

Implicadas com a proximidade do processo de redemocratização do país e já envolvidas com os movimentos negros e os movimentos feministas, as mulhres negras se articulam em torno da organização do I Encontro Nacional Feminista, que ocorreria na cidade de Fortaleza no Ceará, em 1979, que marca o início de um ciclo de Encontros Nacionais Feministas (ENF) realizados durante as reuniões anuais da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência (SBPC)31 entre os anos

31 Embora estes encontros tenham sido entitulados como “Encontros Nacionais Feministas”, se tratavam de encontros de mulheres, pois reuniam determinados segmentos do movimento feminista. 68

de 1979 e 198532. No I ENF (1979), mulheres militantes de vários estados dialogaram sobre diversos temas, principalmente saúde, violência e a participação das mulheres na política. Temas prioritários naquele momento em que havia uma incidência de denúncias de práticas abusivas de controle da natalidade, violência doméstica e sexual, sem as devidas punições. No entanto, a questão racial passa ao largo das discussões, embora o controle da natalidade assumisse contornos nitidamente genocidas à medida que eram as mulheres pobres, a maioria negra, que passavam pela violência da esterelização.

Outro marco das tensões das mulheres negras com os movimentos feministas ocorreu, em 1983, com a constituição do Conselho Estadual da Condição Feminina do Estado de São Paulo (CECF). Ao criar por decreto o CECF, o governo do estado simplesmente esqueceu da diversidade da categoria mulher e nomeou somente mulheres brancas para as 32 cadeiras de representação neste órgão33. Sem dúvida alguma, a criação desse Conselho representou uma vitória histórica para a luta feminista no estado. Todavia, também “mostrou, com a total ausência de mulheres negras no corpo das conselheiras, de qual janela esse organismo nascente via o mundo feminino” (BORGES, 2009, p.66).

Mesmo sob o abrigo do rótulo de mulher, as mulheres negras tinham demandas específicas que não podiam ser contempladas apenas pela perspectiva de gênero. Esta constatação fez com “que um grupo de mulheres negras mudasse definitivamente o viés político do Conselho” (BORGES, 2009). Diante de tal fato inconcebível, mulheres negras ativistas de São Paulo, criaram em 1984 o Coletivo Estadual de Mulheres Negras.

O Coletivo tinha a missão de constituir uma instância política de mulheres negras, com a tarefa de questionar um órgão recém-criado, o Conselho Estadual da Condição Feminina, nascido em princípio para traçar políticas públicas para as mulheres. Não era por acaso que o recorte racial deixara de integrar os horizontes do Conselho (BORGES, 2009, p. 67).

32 A partir de 1986, o ENF passou a ser realizado fora da SBPC com formato mais diversificado e com maior pluralidade das participantes. 33 Segundo Silva e Wolff (2019), a formação do CECF de São Paulo era constituída majoritariamente de mulheres brancas e de classe média. Sua composição inicial, além de não considerar as especificidades das mulheres negras, tampouco considerou a presença de mulheres lésbicas, apesar da importante participação das lésbicas na história do movimento feminista. 69

Somente em 1984, Thereza Santos e Vera Lúcia Freitas Saraiva, duas intelectuais e militantes negras, tornaram-se conselheiras (uma como titular e outra como suplente). Esta entrada das mulheres negras no CECF representa, sem dúvidas, um grande passo, mais ainda assim é muito pouco para o universo de 32 delegadas. Vale enfatizar “que foi preciso efetuar várias críticas, questionamentos, queixas e exercer forte pressão durante quase um ano inteiro para que as mulheres negras pudessem se inserir nesse espaço governamental” (SILVA; WOLFF, 2019, p. 14).

Posteriormente, em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que a partir de 1987 foi coordenada por Sueli Carneiro, reconhecida filósofa e militante negra. Esse órgão empreendeu ações no âmbito do combate à discriminação racial com o Programa Nacional da Mulher Negra. Thereza Santos e Sueli Carneiro realizaram ações em conjunto nas esferas estadual e federal. Foram assinados pelas duas os projetos que visavam analisar as consequências da Lei Áurea (a falsa abolição) para a população negra e, principalmente, para as mulheres negras, representando um marco histórico dos movimentos de mulheres negras. Elas também elaboraram em 1985 dois importantes documentos sobre a situação da mulher negra no Brasil: A mulher negra brasileira na década da mulher e Mulher negra: política governamental e a mulher (SILVA; WOLFF, 2019).

Pela Comissão da Mulher Negra, houve em 1986 outra importante publicação: o documento Mulher Negra: dossiê sobre a discriminação racial. As nove autoras34 que assinam o documento denunciam as experiências cotidianas do racismo, nas mais diversas esferas, e propõem três alternativas de ação contra o racismo: reconhecer a situação, ou seja, perceber as diferentes formas pelas quais ele se manifesta no dia a dia e, consequentemente, as atitudes e emoções perante cada cenário; divulgar sistematicamente todos os atos de racismo ou discriminação de raça e cor; combater, sobretudo a partir da denúncia que é considerada uma prática suscetível de conscientizar o conjunto da sociedade e mobilizar os negros (SILVA; WOLFF, 2019, p. 24).

34 Deise Benedito, Elza Maria da Silva, Ilma Fátima de Jesus, Maria Lúcia Silva, Maria Lúcia da Silva, Solimar Carneiro, Sonia Maria P. Nascimento, Sueli Carneiro e Vera Lúcia Benedito. 70

Desde o II Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Lima, no Peru, em 1983, que algumas mulheres negras iniciam um grupo para dar visibilidade a suas questões. Participaram também de outros encontros que puderam possibilitar trocas de experiências e conhecimento como a I Conferência de la Mujer Negra de las Américas, na Costa Rica, em 1984, e do African American Women’s Political Caucus em Baltimore - Maryland. No mesmo período ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, a organização do I Encontro de Mulheres de Favela e Periferia, culminando na formação do Coletivo Estadual de Mulheres de Favela e Periferia (CEMUFP).

Todavia, foi a partir do III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado na cidade de Bertioga no litoral paulista, em 1985, que as mulheres negras começaram a organizar os primeiros Coletivos de Mulheres Negras, concomitantemente, visando articularem-se para a realização dos primeiros Encontros Estaduais de Mulheres Negras. Ribeiro (1995) e Moreira (2006) identificam que a partir do encontro em Bertioga foi consolidado, de fato, um discurso feminista entre as mulheres negras, o que resultou no estranhamento do discurso do feminismo tradicional. A relação racismo e feminismo foi uma das temáticas abordadas e os depoimentos das participantes evidenciam “que a dificuldadade de tratamento da realidade vivida pelas mulheres negras é um traço comum” (RIBEIRO, 1995, p. 449).

Ainda que sempre estivessem organizadas, como mencionado, as mulheres negras não se denominavam propriamente feministas, haja vista o distanciamento das pautas do movimento feminista com as demandas das mulheres negras em consonância com as questões étnico-raciais e a condição de classe social. O rótulo de feminista “não pegava bem”, pois era coisa de mulher branca de classe média. As mulheres negras não se reconheciam no discurso da “mulher universal” e o rechaçaram ao pautar suas questões, com base no seu cotidiano de violência racista, em suas identidades construídas na dor de ser um corpo negro e em suas reivindicações por melhores condições básicas de vida. Nesta perspectiva, uma das militantes da época em entrevista feita por Moreira (2006), observa que:

O feminismo da década de 80 no Brasil era o feminismo do direito ao corpo; nosso corpo nos pertence e as mulheres negras sempre 71

reivindicavam para além dessas coisas sem discutir o valor dessas questões, mas a inclusão do discurso racial, ou melhor, a presença do racismo dentro do feminismo. Reivindicavam uma outra questão que não essa das mulheres de classe média brancas, ou seja, o direito ao trabalho, direito à creche, direito à casa, direito à autoimagem, direitos sociais, direito à vida. As feministas não estavam procurando esse tipo de coisas, sequer estavam considerando isso pauta do feminismo (MOREIRA, 2006, p. 4).

Faltava a compreensão de que “uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressão a partir de um lugar que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista” (BAIRROS, 1995, p. 461). Dificuldade que resultava da falta de uma prática de trabalho conjunto entre feministas brancas e negras no Brasil.

O III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, não sem tensões, será responsável por construir essa ponte. Ali se explicitaram diversas questões, tais como: “quem é ou não feminista, que cara tem ou deveria ter o movimento feminista brasileiro, a possibilidades de aliança e rumos do movimento feminista” (RIBEIRO, 1995, p. 449). Desde então, é possível observar uma maior aproximação das mulheres negras com o movimento feminista, a começar pela proporção de participantes: das 850 mulheres que participaram do Encontro, 116 se declararam negras e mestiças (RIBEIRO, 1995). E muitas participavam pela primeira vez de uma atividade desta natureza, sem nem mesmo se inscrever, como foi o caso do ônibus que vinha do Rio de Janeiro lotado de mulheres negras que não estavam inscritas no evento e não haviam feito o pagamento da taxa, causando tensão entre as participantes (MOREIRA, 2006).

Por que que a gente teve o embate? Porque teve a história da taxa antecipada e que, na verdade, a maioria das mulheres negras não tinha aquela taxa para pagar. Mas fora disso, tinha a questão de tentar criar um fato consumado de que, “olha a gente não vai entrar, mas a gente veio aqui, na verdade para fazer um encontro aqui do lado de fora mesmo. Hoje eu tenho essa análise a gente queria mesmo dar o pontapé no racha do movimento feminista35 (LEMOS, 1997, p.79).

35 Entrevista de Jurema Batista, disponível na dissertação de Rosália Lemos (1997). 72

As oficinas sobre feminismo e racismo realizadas no III Encontro Feminista em Bertioga foram, para a autora, um marco para o fortalecimento e estruturação do Feminismo Negro brasileiro, pois colaborou para a incorporação de mulheres negras na organização do VIII Encontro Nacional Feminista, que ocorreria no ano seguinte, 1986, na cidade de Nogueira-RJ.

O momento da virada veio em 1987, quando houve na cidade de Garanhuns/PE o IX Encontro Nacional Feminista, que foi palco de críticas e pressões acerca da ausência das mulheres negras nas mesas de debates e da falta de uma discussão étnico-racial no decorrer do Encontro. Havia também uma cisão de classe social que separava as feministas brancas de classe média das feministas negras de perfil periférico (suburbano e favelado), como revela a feminista negra Sandra Bello em entrevista a Joselina da Silva (2014, p. 21), vinte anos depois: já não aceitavam que as feministas brancas definissem uma cota de participação para as mulheres negras; não aceitavam o eurocentrismo feminista; não aceitavam as teses distanciadas da maioria das mulheres.

E, ao invés de reclamarem, se organizaram. Quebraram “os sorrisos simpáticos do maternalismo” e, por esta razão, foram “chamadas de agressivas, malucas etc” (2014, p. 21). Sem pedir licença, se organizaram em uma oficina em um local de ampla visibilidade: na pérgula da principal piscina do hotel. Segundo Joselina da Silva, para muitas, “era a primeira oportunidade de publicizar experiências de dor ou júbilo, ocultadas ou silenciadas por razões as mais diversas, tendo sempre a raça como subsidiária” (SILVA, 2014, p. 22). Chocava a todas

perceber que faixa etária, posição geográfica, lugar social, formação acadêmica, ou mesmo tom de pele (mais claras ou mais escuras), enfim, nada obstaculizava a ação dos racismos e dos sexismos sobre cada uma de nós. As histórias eram muito assemelhadas. Mesmo quando o relato se referia a tenras idades. Lágrimas de tristeza, contentamento, emoção ou revolta foram vertidas em grande quantidade, naquelas manhãs ou tardes no ano de 1987, em Garanhuns (SILVA, 2014, p. 22).

Os encontros nas oficinas paulatinamente foram criando o caldo de cultural e político para o surgimento do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (IENMN), que viria a ocorrer no ano seguinte, em 1988, data que marcava o 73

centenário da (falsa) abolição. O estado do Rio de Janeiro foi indicado como polo de interlocução nacional do movimento, visando à organização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras na cidade fluminense de Valença. A escolha do estado do Rio de Janeiro resultou do fato de aglutinar uma maior articulação de organizações de mulheres negras e, sobretudo, do trabalho de militantes que já realizavam debates em torno das questões de gênero, raça e classe social em suas comunidades.

A participação das mulheres negras aumentou no X Encontro Nacional Feminista, realizado novamente em Bertioga, litoral paulista, em 1989, contando com a participação de 200 mulheres negras. Neste X Encontro, as mulheres negras participaram de discussões com diversas temáticas e também realizaram grupos de trabalho para debaterem a organização das mulheres negras e o feminismo.

Dois anos mais tarde, aconteceria o XI Encontro Nacional Feminista, em 1991, na cidade de Caldas Novas-GO. Os debates desse encontro foram centrais para a compreensão da discussão étnico-racial e classe social por outra parcela das participantes não-negras. Matilde Ribeiro enfatiza que conhecer “de perto a realidade das mulheres negras, a insegurança em que vivem devido à discriminação racial e ao mesmo tempo vê-las felizes apesar dos medos e da solidão, foi uma referência muito importante” (1995, p. 449).

Porém, nem tudo foram flores. O movimento feminista, de um modo geral, apresentou resistência em lidar com a diversidade do “ser mulher”, considerando questões étnico-raciais, cultural, regional, faixa etária, classe social, orientação sexual etc. Coincidência ou não, foi justamente no início dos anos 1990 que as feministas migraram para a academia ao mesmo tempo em que acontecia a institucionalização do feminismo. As mulheres negras, que não ocupavam ou não tinham acesso a esses espaços, à contracorrente emergência como movimento autônomo organizado e articulava-se para debater e implementar suas pautas. 74

2.2. Sobre cisões e adesões: os Encontros de Mulheres Negras

nós, mulheres negras, já nos convencemos de que temos que nos reunir, em separado, e não vamos gastar muita energia para tentar pensar como essa relação vai acontecer, ou seja, fazer com que essas coisas evoluam a um ponto tal que possamos desembocar numa luta um pouco mais próxima, um pouco mais solidária. Luiza Bairros, 2008, p. 139.

A efervescência política dos anos 1980 é lembrada pela campanha das Diretas Já, pela Constituinte de 1985, pela construção da redação dos textos da Constituição Federal de 1988, pelas eleições livres, em 1989, para eleger quem ocuparia a Presidência da República após 21 longos anos de ditadura militar. De fato, foram muitos acontecimentos políticos.

O período também foi palco do centenário da Abolição da Escravatura. Para os movimentos negros, nada havia a ser comemorado. Ao contrário, aquele era o momento de organizar uma contranarrativa, pois após 100 anos da libertação do povo negro, ainda era preciso enfrentar as consequências do racismo no cotidiano, denunciar o mito da democracia racial e lutar pelas necessidades da população negra para a conquista de uma autonomia de fato.

Nada a comemorar. No Brasil, último país a abolir a escravidão, esta “foi decretada por brancos, em doses homeopáticas, de modo a evidenciar em cada gota o caráter de violência que revestiu esse conjunto de leis” (COELHO; LUNA, 1988, p. 22). Mesmo considerada como uma instituição desmoralizada, um atraso para as ideias capitalistas do período, os setores conservadores seguraram a escravidão como puderam. Recusavam-se a extinguir o regime lhes dava o poder quase absoluto de senhor. Aceitaram a abolição, não sem antes garantir a permanência de uma estrutura que tornou o negro como cidadão de segunda categoria, isto é, a uma condição inferior, pagando pelo crime de ser negro (NASCIMENTO, 1982). Como enfarizaram Elizabeth Coelho e Regina Luna (1988), livres do cativeiro legal da escravidão, os negros foram aprisionados pelo cativeiro da cor e, neste sentido, celebrar a abolição da escravidão no Brasil, significa mascarar “a violência cultural, econômica e física da discriminação social, é cometer um crime maior contra o negro neste país” (COELHO; LUNA, 1988, p. 27). 75

Foi nessa ebulição de acontecimentos na política brasileira que as mulheres negras, sobretudo as envolvidas nos demais movimentos sociais, encontraram fôlego para a organização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, realizado entre os dias 02 e 04 de dezembro de 1988, em Valença (RJ). O Encontro foi o desdobramento das experiências das mulheres com o movimento feminista, com o movimento negro e também foi fruto de intensas organizações de seminários de sensibilização, de reuniões e de Encontros Estaduais de Mulheres Negras, dos quais foram indicadas as representantes de seus respectivos estados.

O I ENMN contou com a participação de 450 mulheres negras de 17 estados. Sua importância se dá pela urgência no aprofundamento da discussão do feminismo através de uma articulação da questão étnica-racial com as questões de gênero e classe, além da necessidade da construção do papel das mulheres negras como sujeito central no processo de reivindicação por uma sociedade justa, igualitária e sem discriminação a partir de suas vivências. O Encontro surgiu do reconhecimento da necessidade de organização e da compreensão de ser mulher negra na sociedade brasileira, como se lê em seu Boletim:

nós Mulheres Negras somos cidadãs, crianças e trabalhadoras e estamos tendo nossos direitos usurpados por este Modelo Econômico que já tem muito e exclui todos aqueles que realmente produzem a riqueza deste país, alugando nossa força de trabalho em troca de um salário que nos nega os direitos básicos de cidadãos. Todas nós, Mulheres Negras, devemos entender que somos fundamentais nesse processo de transformação reivindicando uma sociedade justa e igualitária onde todas as formas de discriminação sejam erradicadas. (I Encontro Nacional de Mulheres Negras,1988, p.1).

Diferentemente dos Encontros Nacionais Feministas, agora as mulheres negras pautavam questões abrangentes, mas fundamentais, tais como: As mulheres Negras e as Organizações da Sociedade Civil; As Mulheres Negras e o Trabalho; As Mulheres Negras e a Educação; As Mulheres Negras e a Legislação; As Mulheres Negras e o Mito da Democracia Racial; As Mulheres Negras e a Sexualidade; As Mulheres Negras e a Ideologia do Embranquecimento; As Mulheres Negras e os Meios de Comunicação; As Mulheres Negras na Arte e na Cultura;As Mulheres Negras e a sua História na África e no Brasil; As Mulheres Negras e as Políticas de Controle de Natalidade; As Mulheres Negras e a Saúde; 76

As Mulheres Negras e a Violência; As Mulheres Negras e a Estética; As Mulheres Negras e o Sexismo.

Para cada tema supracitado, havia uma descrição sobre qual abordagem deveria ser dada pelo grupo que fizesse a discussão desse assunto. Por exemplo, com relação à temática “As Mulheres Negras e a Sexualidade”, seriam abordados os temas da Adolescência, da Vida reprodutiva – enfatizando as questões da ovulação, fecundação, menstruação, gravidez, métodos contraceptivos, como pílula, DIU, esterilização, coito interrompido, tabela; do Aborto; do Climatério e menopausa; do Prazer e da Homossexualidade. A abrangência de temas sugere que as mulheres negras tinham muitas inquietações a serem debatidas e que este espaço reunia as condições tão almejadas para discutirem suas questões de forma ampla com suas iguais, ainda que plurais.

Chegar ao I Encontro levou cerca de um ano de organização de reuniões preparatórias, debates, seminários, oficinas, mesas redondas, festas, minicursos etc. que consistiam tanto em sensibilizar as participantes como em buscar recursos para a estrutura de um evento desse porte. Além disso, as mulheres negras tiveram de lidar com outras questões para reafirmar a legitimidade do encontro. Era a primeira vez no país que haveria um evento com a participação apenas de mulheres negras. Conseguiram conquistar essa autonomia tanto do ponto de vista econômico como político. Mesmo assim, foram alvo de críticas de homens ligados ao Movimento Negro, que queriam se certificar que tal organização não teria repercussões negativas; e de mulheres brancas do Movimento Feminista; que queriam acompanhar os debates.

O “sair da sombra” veio acompanhado de desconfianças por parte dos movimentos que, supostamente, as representavam, sobretudo os movimentos negro e feminista. Elas foram acusadas de provocarem uma cisão no interior das organizações políticas que se proclamavam o sujeito da transformação social, ao lado do movimento operário (GONÇALVES, 2019, p. 151).

Por serem responsabilizadas por provocar cisões no movimento feminista hegemônico como no Movimento Negro, as mulheres negras colocaram já no I Boletim do ENMN sua concepção acerca da necessidade de sua organização autônoma: 77

Gostaríamos de deixar claro que não é nossa intenção provocar um ‘racha’ nos movimentos sociais como alguns nos acusam. Nosso objetivo é que nós, mulheres negras, comecemos a criar nossos próprios referenciais, deixando de olhar o mundo pela ótica do homem, tanto o negro quanto o branco, ou da mulher branca. O sentido da expressão ‘criar nossos próprios referenciais’ é que queremos estar lado a lado com as(os) nossas(os) companheiras(os) na luta pela transformação social, queremos nos tornar porta-vozes de nossas próprias ideias e necessidades. Enfim, queremos uma posição de igualdade nessa luta (BOLETIM..., 1988, p. 2).

Foram constituídas duas comissões para a organização do I ENMN. A primeira era a Comissão Executiva, que tinha a encubência de organizar a infraestrutura do local, os recursos humanos e elaborar projetos para o financiamento do Encontro. A segunda era a Comissão Organizadora, responsável por deliberar sobre a política a ser levada para o Encontro. Como não poderia ser diferente, as barreiras estruturais e organizacionais foram grandes. Dado o ineditismo da ação, “as dificuldades para a preparação do I ENMN iam desde o financeiro, como também político e cultural” (SILVA, 2014, p. 27). A esse respeito, o trecho abaixo extraído do Boletim Informativo do I Encontro Nacional da Mulher Negra, detalha os percalços enfrentados.

Desde que nos constituímos como Comissão Executiva estivemos batalhando para que todas as mulheres participantes do Encontro pudessem contar com um lugar agradável e tranquilo para as suas discussões; que nós como organizadoras também pudéssemos dispor de uma secretaria que atendesse às nossas necessidades e que todas nós pudéssemos aprender que sim, somos capazes de gerenciar nossas decisões. Foi muito difícil encontrar um lugar capaz de abrigar 500 mulheres. Não eram, sobretudo, 500 mulheres quaisquer e sim 500 mulheres negras. Obtivemos muitas recusas, algumas devidamente justificadas e outras nem tanto. Arranjar um local adequado foi uma ‘via crucis’. É verdade que não queríamos ter as nossas mulheres alojadas em qualquer escola… nada contra as escolas, que sempre estiveram abertas às nossas reuniões de mulheres, mas é que depois de 488 anos de Brasil e um primeiro encontro nacional, creditamos o dinheiro a algo melhor e tranquilo para nossa discussão. Nós merecemos isso e muito mais!!! (BOLETIM..., 1988, p. 3).

Para além de debates de cunho político ou sobre a perversa realidade desigual cotidiana em que vivem as mulheres negras, o Encontro decidiu falar também da sexualidade e do prazer, dentre outras ações de maior leveza e de conexão ancestral entre as participantes, que observaram que aprenderam “a 78

trançar nossos cabelos, a envolver nossos corpos com alegres tecidos coloridos, confeccionar bonecas de pano, soltar o corpo no ritmo da dança e voltamos a ser crianças ouvindo estorias que mães e avós nos contavam” (RIBEIRO, 1995). Estas atividades reforçavam a necessidade de que as mulheres negras tinham de se conectarem para trocas das mais diversas possíveis, como expressos nos objetivos centrais do ENMN, que consistiam em:

a) denunciar as desigualdades sexuais, sociais e raciais existentes, indicando as diversas visões que as mulheres negras brasileiras têm em relação ao seu futuro; b) fazer emergir as diversas formas locais de luta e autodeterminação face às formas de discriminação existentes; c) elaborar um documento para uma política alternativa de desenvolvimento; d) encaminhar uma perspectiva unitária de luta dentro da diversidade social, cultural e política às mulheres presentes no Encontro; e) realizar diagnóstico da mulher negra; f) discutir as formas de organização das mulheres negras; g) elaborar propostas políticas que façam avançar a organização das mulheres negras, colocando para mundo a existência do Movimento de Mulheres Negras no Brasil de forma unitária e de diferentes vertentes políticas (MOREIRA, 2018, p.80).

A construção de uma agenda de luta embasada no que se pode denominar hoje de uma análise interseccional, estava presente nos objetivos do I ENMN, em especial no item b, ao perceber que assim como as formas de resistência são diversas, as discriminações que as atingem também poderiam ser diversas, sendo necessário que todas estas sejam consideradas. A metodologia do Encontro visava esta concepção, com as abordagens em formatos “de painéis, debates, oficinas, salas de conversas, outras técnicas e salas de reflexão e avaliação. Com este procedimento, as organizadoras se propunham a dar voz às mulheres com diferentes origens sociais, acadêmicas e políticas” (SILVA, 2014, p.32).

O coletivo de mulheres negras, o Nzinga, do Rio de Jnaiero, na publicação do seu jornal36 fez uma avaliação após Encontro. Sob a energia do I ENMN, a mulheres do Nzinga decidiram registrar as experiências e as emoções das mulheres que lá estiveram. Para elas, esta tarefa era um compromisso assumido junto às mulheres, guerreiras anônimas, que sempre tiveram negado o direito de

36 Jornal Nzinga nº 5, Ano IV, Março de 1989. 79

falar. Eis uns poucos trechos das impressões de algumas das participantes do Encontro:

Pela primeira vez, nós organizamos um evento onde estavam presentes mulheres oriundas dos Partidos Políticos, das Comunidades de Base, dos Sindicatos, dos Grupos Religiosos, do Movimento de Mulheres e de todas as correntes do Movimento, negro onde foi garantida a todas elas, espaço para suas denúncias plenário para a defesa de suas propostas e tribuna para discordar de todos os encaminhamentos.

Do ponto de vista da autonomia, conseguimos muito. Realizamos um Encontro de Mulheres Negras, totalmente financiado por organizações não governamentais, que não interferiram em momento algum na nossa linha política (Helena Maria de Souza)37.

HISTÓRICO porque, após mais de 400 anos de lutas no Brasil, as descendentes das quilombolas estavam juntas para tratar da sua problemática específica (raça, sexo e classe) e para traçar os rumos das suas lutas. Foi o resultado de uma conquista. HIstoricamente significa um marco” (Maria de Fátima Oliveira Ferreira)38.

As várias tendências do Movimento de Mulheres Negras apareceram no Encontro. Agora temos que nos compreender como uma força política capaz de transformar esta sociedade sexista, racista classista. Nós Mulheres Negras somos fundamentais neste processo (Sandra Helena Torres Bello).39

De um modo geral, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras cumpriu um papel de extrema importância na pauta de reivindicações dos movimentos sociais, não somente para as mulheres negras, considerando sua inédita abordagem, protagonismo, abrangência e no apontamento da urgência de um olhar plural para a recente reconstrução democrática do país. Joselina da Silva (2014, p. 28) afirma que “o I ENMN era uma oportunidade coletiva e política de recolocar as questões de gênero e de raça no cenário crítico nacional”. O Encontro abriu caminho para a criação de outros grupos, núcleos e fóruns estaduais de mulheres negras, ou sejam as mulheres negras continuaram organizadas.

37 Feminista, Poetisa, coordenadora do Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras RJ e integrou a Comissão Executiva do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras. 38 Médica, Tesoureira da União Brasileira de Mulheres (UBM), de Belo Horizonte. 39 Membro do Centro de Mulheres de Favelas e Periferia; feminista; integrou a Comissão Executiva do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras. 80

Em 1991 foi realizado o II Encontro Nacional de Mulheres Negras, na cidade de Salvador-Bahia, com o tema central: Organização, Estratégias e Perspectivas. Estiveram presentes 430 mulheres de 17 Estados brasileiros. Segundo Matilde Ribeiro (1995), painéis, oficinas, plenárias e mesas abordaram o Histórico e a Avaliação do Movimento de Mulheres Negras; discutiram o tema Mulher Negra e o Poder; debateram a relação entre Mulheres Negras e a Procriação; analisaram os casos de Extermínio de Crianças e Adolescentes; refletiram Por que Mulher Negra?

Este Encontro permitiu o aprofundamento de discussões iniciadas no I ENMN e a avaliação dos trabalhos. Mais uma vez os debates foram intensos demonstrando as diversas concepções políticas como consta no relatório final. A nossa sociedade é plural, racista e machista. Todas nós somos frutos desta estrutura social e educacional que nos conduz a práticas e ações às vezes determinadas por nossa formação. A organização de mulheres negras não esta isenta destas interferências. Por isso, não constituímos um grupo unitário tanto a nível de concepção política quanto de metodologias de trabalho (RIBEIRO, 1995, p.452).

Essa afirmação corrobora com a análise a respeito da complexidade do processo organizacional do ponto de vista político para a construção e reestruturação do movimento de mulheres negras em âmbito nacional, considerando a pluralidade destas e suas mais diversas visões políticas. Uma das decisões do II Encontro foi a indicação de Seminários Nacionais de Mulheres Negras. Para tanto, era preciso promover seminários regionais e estaduais, visando a intensificação da discussão sobre os rumos da organização de mulheres negras e dos próximos encontros nacionais (RIBEIRO, 1995). Outras propostas surgiram ao final do II ENMN, tais como:

revisar os currículos e as avaliações escolares; garantir o acesso e a permanência de estudantes com baixo poder aquisitivo e negros na escola; assegurar a formação continuada dos processos em História da África; confeccionar materiais didáticos com sentido antirracista e antimachista; denunciar, por meio da mídia, o extermínio de crianças e adolescentes negros e a esterilização das mulheres negras etc. Essas sugestões ainda estão na agenda atual de reivindicações do movimento de mulheres negras (SANTOS, 2016, p. 7).

Cabe observar que os apontamentos finais do II ENMN ainda são demandas atuais do movimento de mulheres negras. Os relatórios finais e a carta aberta das últimas atividades desse movimento em nível nacional, como a Marcha 81

das Mulheres Negras (2015) e o Encontro Nacional - 30 anos (2018), continuam denunciando, por exemplo, o genocídio da juventude negra e a violência obstétrica. Contudo, é preciso também frisar que houve importantes conquistas desse movimento nas últimas duas décadas, como a aprovação da Lei 10.63940, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (2010), a Lei de Cotas No Ensino Público Federal, a instituição do Dia Nacional de Teresa de Benguela e da Mulher Negra (2014) e a aprovação da PEC das Domésticas (2013)41.

No cenário internacional, a agenda de mobilização em torno das pautas sobre os direitos das mulheres, sobretudo com a especificidade da mulher negra, emergia de forma organizada em diversos países, o movimento de mulheres negras brasileiras estava presente e acompanharam essas atividades, como em 1992 no I Encontro Latino Americano e do Caribe de Mulheres Negras, na República Dominicana, que instituiu o dia 25 de Julho como Dia Internacional da Mulher Afro-Caribenha e Afro-Latina Americana.

Ao longo da década de 1990 os Movimentos de Mulheres Negras, compreendeu que a intervenção, via organismos internacionais, poderia ser uma estratégia para lançar luz a questões que estavam sendo debatidas de maneira local, mas que se alinhavam ao debate internacional sobre as opressões que interseccionavam gênero, raça e classe. Envolveram-se fortemente nas discussões das Conferências Mundiais da ONU, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e na IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995). A intervenção das Mulheres Negras nesses espaços contribuiu de forma decisiva para ampliar e fortalecer a abordagem e a discussão da questão racial em âmbito internacional (RIBEIRO, 1995).

40 Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que tornam obrigatório, respectivamente, o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, e indígena na educação básica. As Leis têm como objetivo promover um ambiente escolar democrático, cujas diversidades etnicorraciais e indígenas sejam contempladas, desde a organização do currículo até ações efetivas contra as práticas racistas, preconceituosas e discriminatórias. 41 Demanda histórica das mulheres negras, tendo Laudelina de Campos Melo como principal militante da luta por direitos das trabalhadoras empregadas domésticas Laudelina foi criadora do sindicato das domésticas de , em 1936, o primeiro do Brasil; ela teve uma trajetória que combinou, de forma singular, a luta pela valorização do emprego doméstico, o feminismo e ativismo pela igualdade racial. 82

De lá para cá, dentre tantas atividades nacionais e internacionais em que as mulheres negras brasileiras estiveram presentes articulando a denúncia sobre o racismo e o sexismo, estabelecendo parcerias, trocas de experiências e proposituras, destacam-se: I Seminário Nacional de Mulheres Negras (1993); a I Marcha Nacional Contra o Racismo e pela Vida (1995); III Encontro Nacional de Mulheres Negras (2001); III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, ocorrida em Durban/África do Sul; Seminário Nacional de Saúde da População Negra (2004); I Seminário Nacional de Negras e Negros LGBT (2012); I Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas (2014); Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver (2015); Encontro Nacional de Mulheres Negras, 30 anos: Contra o Racismo e a Violência e Pelo Bem Viver – Mulheres Negras Movem o Mundo (2018).

Uma temática sempre presente nas atividades dos coletivos de mulheres negras diz respeito às “Respostas Organizativas”. Assim, o final da década de 1980 e início de 1990, viram surgir importantes organizações de mulheres negras como o Geledés42 e o Criola43. A este respeito, Nubia Moreira (2018, p. 113) contextualiza que,

A organização Geledés surge com o propósito de criar uma instituição autonôma em relação ao poder estatal, já que algumas de suas fundadoras tiveram assento no Conselho da Condição Feminina, especificamente na Comissão de Mulheres Negras que era responsável pelas questões e demandas das mulheres negras.

E nesse mesmo sentido, em relação à criação da Ong Criola no Rio de Janeiro, Núbia Moreira (2018, p. 115) acrescenta,

42 Geledés-Instituto da Mulher Negra foi fundado em 30 de abril de 1988. É uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros por entender que esses dois segmentos sociais padecem de desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira. Posiciona-se também contra todas as demais formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, tais como: a lesbofobia, a homofobia, os preconceitos regionais, de credo, opinião e de classe social. (fonte: www.geledes.org.br). 43 Fundada em 1992, a organização atua na construção de uma sociedade onde os valores de justiça, equidade, solidariedade são fundamentais. Durante quase três décadas, a Criola reafirma que a ação transformadora das mulheres negras é essencial para o bem viver de toda a sociedade brasileira. (fonte: www.criola.org.br). 83

O Grupo Criola surge em 1992, no Rio de Janeiro, no interior de um Programa de Mulheres do Centro de Apoio às Populações Marginalizadas (CEAP). Uma das ações mais significativas desse Programa foi a Campanha Contra a Esterilização em Massa encampada juntamente com o Fórum Itinerante de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. Essa instituição existe para trabalhar e instrumentalizar mulheres, meninas e adolescentes negras para enfrentar o racismo, sexismo e homofobia por todos os meios necessários.

Cabe destcar que na gênese das organizações de mulheres negras, especificamente da Ong Criola, encontra-se a Assistente Social negra Lúcia Xavier, que participou da fundação dessa instituição considerada uma das mais importantes e respeitadas nacionalmente e internacionalmente no combate ao racismo e ao sexismo. O Criola luta contra as violações de direitos humanos e levanta a bandeira da igualdade e da equidade, como ponto chave de sua atuação. Lúcia Xavier também foi atuante como uma das organizadoras na preparação e, posteriormente, participou do processo de revisão da histórica “Conferência de Durban”, bem como do seu Plano de Ação (JUNIOR, 2015).

Com sua trajetória, Lúcia nos convida a olhar para os sofrimentos oriundos da exploração econômica, da discriminação pelo racismo, das assimetrias entre homens e mulheres, da discriminação motivada pela orientação sexual e pela identidade de gênero, da intolerância religiosa, da violação dos direitos das crianças e adolescentes, do distanciamento das políticas sociais, da discriminação por ter HIV/Aids… com sua trajetória, Lúcia nos convida a enfrentá-las. Enfrentá-las, pressupõe habilidade e criticidade para a reinvenção permanente da profissão (...) (JUNIOR, 2015, p. 342).

O Instituto Geledés44 e a Criola são pioneiros nesse formato de institucionalização de organizações de mulheres negras. Foram essenciais na articulação da especificidade da mulher negra brasileira no eixo internacional, sobretudo na construção da delegação brasileira para a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (Durban, África do Sul, 2001).

A articulação de ONG’s de Mulheres Negras Brasileiras nasce a partir de um seminário organizado pelas ONG’s Geledes - Instituto da Mulher Negra (SP), Criola (RJ) e Maria Mulher (RS), cujas 25

44 Geledés é originalmente uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existentes nas sociedades tradicionais iorubás. Expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem-estar da comunidade. (BORGES, 2009, p. 77). 84

participantes eram mulheres negras pertencentes a ONG’s de mulheres negras de todas as regiões do país. Além dessas mulheres participaram algumas especialistas em conferências da ONU. Assim surge a Articulação de ONG’s de Mulheres Negras Brasileiras e que produz uma Declaração de Mulheres Negras Brasileiras, documento com uma análise preliminar sobre as condições de vida e saúde das mulheres negras brasileiras, que serviu como subsídio para vários encontros regionais, nacionais e latino-americanos para a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (MOREIRA, 2018, p. 115).

A década de 1990 apresentou uma especificidade para os movimentos sociais de maneira geral no Brasil, pois foi um período de avanços neoliberais com uma perceptível onda de “onguização” de determinados setores sociais, como resposta à crescente demanda por parcerias, por financiamento de projetos, de subsídios para que as militantes pudessem se organizar, se profissionalizar, realizar formações com outras mulheres etc. Tais ações que demandaram recursos deram outro caráter a essas organizações. Por outro lado, alguns setores do movimento colocavam ressalvas a essa nova forma de organização. Consideravam que fortalecer financeiramente , poderia impedir a tarefa do “movimento enquanto tal, porque o movimento quer fazer revolução. Ninguém financia a revolução!”45 (MOREIRA, 2018, p. 117).

Rosane Borges (2009), a respeito da importância dessas instituições de mulheres negras, como o Geledés, apresenta a seguinte observação,

Geledés é a concretização das reflexões e propostas formuladas ao longo de duas décadas pelo conjunto das mulheres negras brasileiras, para transpor as dificuldades relacionadas à demarcação de um lugar próprio, sem se tornar, no entanto, êmulo do movimento feminista, tampouco do movimento negro. Ao contrário. Toda essa engenharia política visando construir um agente político autônomo, que fosse ao mesmo tempo partícipe das lutas coletivas de mulheres e negros, impulsionou a existência da organização, tornando decisivas essas duas vertentes (do racismo e do sexismo) para emergência de outra (BORGES, 2009, p. 76).

O Geledés, nesta perspectiva, deu outra relevante contribuição para a organização de mulheres negras no final da década de 1990 com a primeira experiência de ação afirmativa do país: o projeto “Geração XXI”, realizado em

45 Entrevista de liderança do Rio de Janeiro (Moreira, 2018). 85

parceria com poder público federal, por meio da Fundação Cultural Palmares, e o setor privado, com o Bank Boston, e sociedade civil, com o Geledés.

Portanto, as mulheres negras participantes desses movimentos, estavam conscientes da importância dessa atuação para a história do movimento, objetivavam descortinar as situações de conflito e exclusão a que estavam cotidianamente expostas. Assim, “não só contribuíram para a conquista de maior visibilidade como sujeitos políticos perante esses movimentos e a sociedade, como trilharam um caminho próprio através da construção do movimento autônomo de mulheres negras” (RIBEIRO, 1995, p. 457).

Como parte do processo preparatório para III Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (Durban, 2001)46, foi realizado o III Encontro Nacional de Mulheres Negras, em Belo Horizonte(MG), entre os dias 26 e 29 de Julho de 2001. O Encontro teve como objetivo a organização das mulheres negras no 3o milênio para o combate ao racismo e à discriminação de gênero. A metodologia utilizada adotou os formatos de palestras, painéis, dinâmicas de grupos e vivências, propiciando a troca de saberes entre as participantes47. O Encontro foi realizado em parceria com o Fórum Nacional de Mulheres Negras, Ministério da Justiça, Ministério da Cultura, Fundação Palmares e Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, além de apoios como o CNDM e o CFEMEA.

O ano de 2001 foi agitado em torno das atividades para a agenda dos movimentos negros e de mulheres negras para articular a participação em atividades nacionais e internacionais que pautavam a questão racial. Estes movimentos estavam mobilizados para apresentarem suas pautas nestes espaços. Contudo, havia uma sobrecarga ainda maior para as militantes negras,

46 Partindo da Carta das Nações Unidas e os princípios de igualdade e não discriminação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em Durban tratava-se de superar a negação a esses documentos expressa pelas diversas formas de discriminação e intolerância. Realizada no período entre 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, A Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul, foi a terceira conferência mundial sobre o racismo. Houve duas anteriores que ocorreram em 1978 e em 1983, e trataram de temas isolados, como a aplicação da política do “apartheid”, exercida pelo governo da África do Sul aos cidadãos sul-africanos, e o sionismo. Delegações de 173 países, 4 mil organizações não-governamentais e mais de 16 mil participantes discutiram o combate ao preconceito. (Fonte: Fundação Cultural Palmares). 47 Fonte: Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). 86

considerando que concomitantemente estava em curso a preparação para o III Encontro Nacional de Mulheres Negras (MG) e a preparação da delegação brasileira para a III Conferência Mundial contra o Racismo.

No país, foi criado o Fórum Nacional de Entidades Negras Pró- Conferência contra o Racismo, onde participam várias entidades organizadas do movimento negro e de mulheres negras. A discussão das propostas das mulheres negras, em nível da Conferência, basicamente passa por esse espaço, pela Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras e pela Articulação Nacional de Mulheres Negras Pró III Encontro Nacional de Mulheres Negras. Nesses Fóruns as mulheres negras têm buscado discutir as políticas de ações afirmativas e estratégias para participar dos Fóruns preparatórios da Conferência (MATOS, 2001, p. 3).

A criação da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (atualmente conhecida como AMNB)48, fortaleceu os movimentos de mulheres negras, no sentido de viabilizar uma mobilização nacional para uma maior participação na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (Durban, 2001). Para Sueli Carneiro (2002), em “A Batalha de Durban”,

A III Conferência constituiu um momento especial do crescente protagonismo das mulheres negras no combate ao racismo e à discriminação racial, tanto no plano nacional como no internacional. Entre as diferentes iniciativas desenvolvidas, destaca-se a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras Pró Durban, composta por mais de uma dezena de organizações de mulheres negras do país e coordenada pelo Criola, organização de mulheres negras do Rio de Janeiro, pelo Geledés/ Instituto da Mulher, de São Paulo, e pelo Maria Mulher, do Rio Grande do Sul (CARNEIRO, 2002, p. 210).

A adoção dessa estratégia foi assertiva na medida em que o Brasil foi o país com a maior delegação de Durban e se sobressaiu na defesa de seus posicionamentos, “concorrendo decisivamente para a aprovação dos parágrafos relativos aos afrodescendentes, as mulheres ofereceram contribuições originais que sensibilizaram várias delegações de países da América Latina” (Carneiro, 2002, p. 211), embora houvesse um clima de permanente tensão de que países colonialistas como Estados Unidos e países da Europa abandonassem a

48 Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) - congrega organizações de mulheres negras em todo o território nacional. Criada em 2000, a rede tornou-se uma das atuais referências para o movimento. 87

Conferência, não garantindo o consenso, pois se posicionavam contrários ao reconhecimento pela ONU da escravidão como um crime de lesa humanidade, acarretando assim a possibilidade de medidas de ações afirmativas à população descendentes dos escravizados, como medidas indenizatórias.

O que se viu em Durban foi, em primeiro lugar, mais uma demonstração de unilateralismo dos Estados Unidos ao abandonar a Conferência em apoio ao Estado de Israel, acusado pelo Fórum de Ongs e por representantes das delegações oficiais de práticas racistas e colonialistas contra o povo palestino; e, em segundo lugar, uma evidente disposição dos países ocidentais, em seu conjunto, de fazer naufragar a Conferência caso esta caminhasse no sentido da condenação do colonialismo e suas consequências. Entre as questões mais polêmicas destacaram-se a exigência de reconhecimento do tráfico transatlântico como crime de lesa- humanidade e de reparações pelos séculos de escravidão e de exploração colonial do continente africano.

Questões de natureza jurídica e de princípios são subjacentes à intransigência dos países ocidentais em admitir a escravidão africana como crime de lesa-humanidade, pois tal reconhecimento daria suporte para demandas por reparações, por parte de africanos e de afrodescentes, contra os países que se beneficiaram direta ou indiretamente do tráfico negreiro, da exploração da escravidão e das riquezas do continente africano (CARNEIRO, 2002, p. 212).

Para a autora, ainda que em meio a toda essa problemática de tentativa para que países historicamente colonialistas reconhecessem as atrocidades cometidas contra escravizados, afrodescendentes e países africanos colonizados, a aprovação da Declaração e do Plano de Ação da Conferência, foi uma vitória, “dada a intensidade dos conflitos e disputas ali presentes, havendo sim motivos a serem comemorados pelos afrodescendentes das Américas e afro-brasileiros em particular” (CARNEIRO, 2002, p. 213). A enérgica atuação das ativistas negras brasileiras demonstra a urgência de que fosse introduzida ao plano de ação, as especificidades vivenciadas pelas mulheres negras nos sistemas de produção e de reprodução, além da reflexão sobre as abordagens que invisibilizam as mulheres racialmente discriminadas, do contrário tal temática seria secundarizada, como historicamente sempre foi.

No parágrafo 9 do Plano de Ação se postula aos Estados que “reforcem medidas e políticas a favor das mulheres e jovens afrodescendentes, tendo em vista que o racismo os afeta mais profundamente, colocando-os em situação de 88

maior marginalização e desvantagens” (Carneiro, 2002, p. 213). Assim, os documentos finais de Durban invocam os Estados a adotarem medidas que visam a eliminação da desigualdade racial49, a serem consideradas na implementação de políticas públicas de viés universalista, reconhecendo a problemática em torno da questão de raça e gênero, elementos que no Brasil representam o mais alto grau de desigualdade. No parágrafo 176 do Plano de Ação de Durban, de acordo com as metas internacionais de desenvolvimento convencionadas nas Conferências da ONU da década de 1990, se estipula que até 2015 tais metas sejam alcançadas50.

com o fim de superar de forma significativa a defasagem existente nas condições de vida com que se defrontam as vítimas do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e das formas conexas de intolerância, em particular no que diz respeito às taxas de analfabetismo, de educação primária universal, à mortalidade de crianças menores de 5 anos, à saúde, à atenção à saúde reprodutiva para todos e acesso à água potável; a aprovação dessas políticas também levará em conta a promoção da igualdade de gênero. (CARNEIRO, 2002, p. 213).

Todavia, como em tantas outras instâncias de participação social, seja nas esferas municipais, estaduais, federais ou até mesmo internacionais como foi Durban, após o desafio para que as propostas fossem aprovadas nos relatórios finais e planos de ação, a batalha seguinte consiste em fazer com que as propostas apresentadas saiam do papel e se tornem políticas públicas de fato e que resultem na eliminação da histórica desigualdade racial e de gênero no Brasil, visando esse horizonte, retomando as conquistas das mulheres negras brasileiras em Durban. E eis que chegava 2015... E as mulheres negras brasileiras se colocaram em marcha.

49 A Conferência de Durban foi um dos marcos para a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), em 21 de março de 2003, uma conquista das lutas históricas dos movimentos contra o racismo. 50 Grifo meu. 89

2.3. Marcha das Mulheres Negras 2015

E eis que chegava 2015! A “Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem-viver” aconteceu em 18 de Novembro de 2015 e congregou cerca de 30 a 50 mil mulheres negras de todas as regiões do Brasil. Tratou-se, portanto, de mais um marco da organização autônoma de mulheres negras, evidenciando sua expressiva abrangência em nível nacional e o fortalecimento como sujeito político desse movimento social.

Das mais diversas partes do país chegavam ônibus repletos de mulheres negras das mais variadas idades, lésbicas, heterossexuais, transexuais, transgêneros, quilombolas, do campo, da cidade, ribeirinhas, das favelas, periféricas, de palafitas, sem tetos ou em situação de rua; com cabelos trançados, raspados, soltos, com turbantes, torços, black power, pretos ou coloridos; com vestimentas da religião de matriz africana, roupas coloridas, de chita ou com camisetas coloridas que estampavam o logotipo da Marcha; com faixas e bandeiras de todo tipo. Elas cantavam, dançavam, bradavam palavras de ordem, corriam de tiros e de gás lacrimogêneo. Resistiram. Muitas mulheres negras passaram horas ou dias na estrada para fazer parte desse dia histórico.

A carta das Mulheres Negras 2015, já em seu início demarcou a diversidade desse movimento e, principalmente, as opressões vivenciadas por esse setor da sociedade:

Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha. Inspiradas em nossa ancestralidade somos portadoras de um legado que afirma um novo pacto civilizatório.

Somos meninas, adolescentes, jovens, adultas, idosas, heterossexuais, lésbicas, transexuais, transgêneros, quilombolas, rurais, mulheres negras das florestas e das águas, moradoras das favelas, dos bairros periféricos, das palafitas, sem teto, em situação de rua.

Somos trabalhadoras domésticas, prostitutas/profissionais do sexo, artistas, profissionais liberais, trabalhadoras rurais, extrativistas do campo e da floresta, marisqueiras, pescadoras, ribeirinhas, empreendedoras, culinaristas, intelectuais, artesãs, catadoras de materiais recicláveis, yalorixás, pastoras, agentes de pastorais, 90

estudantes, comunicadoras, ativistas, parlamentares, professoras, gestoras e muitas mais.

A sabedoria milenar que herdamos de nossas ancestrais se traduz na concepção do Bem Viver, que funda e constituí as novas concepções de gestão do coletivo e do individual; da natureza, política e da cultura, que estabelecem sentido e valor à nossa existência, calcados na utópica de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os).

Na condição de protagonistas oferecemos ao Estado e a Sociedade brasileiros nossas experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica de vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da humanidade de mulheres e homens negros.

Declaramos que a construção desse processo se inicia aqui e agora51.

Para Nilma Bentes, uma das idealizadoras da Marcha de Mulheres Negras (MMN) 2015, uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), na época coordenadora da AMNB, relata que a iniciativa foi sendo construída entre diferentes setores e organizações de mulheres negras. De 2011 a 2015, foram realizadas diversas ações entre debates, oficinas, passeatas, eventos formativos, articulações em âmbito local, regional, nacional e internacional, sendo definida como: Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver. Foram cerca de quatro anos de trabalho duro com Comitê Impulsor em, praticamente, todos os Estados e Distrito Federal, desenvolvendo ações: reuniões, torneios esportivos, rodas de samba/de conversas, bingos, cartas, e-mails etc. A mobilização ficou mais adensada em 2015, quando dezenas de lideranças negras, usando suas sabedorias e canalizando as da ancestralidade, entraram de cabeça na mobilização, o que acabou por contagiar milhares de outras mulheres negras de todas as idades, profissões/ocupações, afiliações partidárias, seguidoras de diferentes religiões e em situações diversas (BENTES, 2015, p. 9).

A ideia de organizar a Marcha surgiu no Fórum Afro XXI, em 2011, que celebrava o Ano Internacional dos Afrodescendentes, declarado pela Assembleia

51 Trecho inicial da Carta das Mulheres Negras. A íntegra nos Anexos pode ser encontrada em: . Acesso em 21 ago. 2019. 91

Geral das Nações Unidas em 2009. Em entrevista sobre o processo de articulação da Marcha, Nilma Bentes enfatiza o seguinte:52 a gente estava decidida a ir mesmo que fosse com cem mulheres. Depois, muitas outras organizações arregaçaram as mangas e as pessoas se desdobraram nos seus estados para fazer a marcha acontecer. Eu não imaginava que a adesão fosse tão grande. Havia uma demanda reprimida, pessoas que não estavam ligadas a nenhum movimento, mas que ouviram falar do evento e acabaram indo pra lá. A realização da marcha mostrou que a gente venceu o medo. A gente quer mudar, mas não passar de oprimido a opressor. Queremos igualdade, equidade.

A proposta para a realização da Marcha das Mulheres Negras (2015) foi oficializada na III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), em 2013. A ideia central da Marcha era a de dar visibilidade às temáticas raciais e de gênero, abordando questões como a violência, diversidade e reparação histórica à população marginalizada no Brasil. Não por acaso a marcha aconteceu justamente no marco temporal da “Década Internacional dos Afrodescendentes” (2015-2024) e no mês da Consciência Negra.

Duas concepções presentes no título e na proposta da Marcha merecem atenção. A primeira diz respeito à enfase á violência. Embora não houvesse dúvidas de que o racismo é uma violência, “o termo foi incorporado para ressaltar a impunidade na matança de negros, sobretudo da juventude, pela mão da polícia; pelo sistema de saúde (assassinatos de mulheres negras vêm sendo praticados principalmente quando grávidas e idosas); e, ainda, porque o feminicídio tem atingido mais as negras” (BENTES, 2015, p. 9). Com relação ao “Bem Viver”, foi adotado pela Marcha em contraposição ao modelo colonialista, capitalista e neoliberal. A colonialidade que determina o padrão de relações baseadas na colonização européia nas Américas e ainda se constitui como modelo de poder na contemporaneidade. O termo, segundo Bentes, foi incorporado para sinalizar a “necessidade de mudança do chamado ‘modelo de desenvolvimento’, combatendo, portanto, a mercantilização-financeirização dos recursos naturais/bens comuns, o consumismo exacerbado, o lucro insano, o capitalismo neoliberal, enfim (2015, p. 9).

52 Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/nilma-bentes-visibilidade-as-mulheres-negras/ Acesso em 02 ago. 2019. 92

A utilização do termo “Bem Viver” remonta à compreensão que os povos originários têm de “Buen Vivir”, sobretudo em países como o Equador e a Bolívia, cujas populações têm forte composição indígena e que incorporaram o termo em suas constituições federais, explorando o questionamento sobre o atual padrão produtivista, consumista e individualista que regulam os contatos entre as pessoas, os meios de produção e as relações com o meio ambiente. O Bem Viver pode ser considerado como outra forma de sociabilidade. Sintetiza vivências, a partir das culturas indígenas e andinas das Américas e da cultura Africana, em especial a bantu, sob a forma do “Ubuntu”: eu sou porque nós somos. Portanto, não representa uma maneira única de pensar e atuar dos povos originários, mas incorpora outros grupos étnicos das mais variadas partes do mundo. Sobre esse pertencimento étnico-racial e suas implicações sobre o modo de ver o mundo, Lélia Gonzalez (2018) assinalava a existência de uma cultura amefricana, isto é, a contribuição dos povos ameríndios e africanos, cuja consciência da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pela experiência do racismo.

Isso implica na necessidade de contato com novas formas de aprendizagem, rejeitando o modelo baseado na colonialidade e no eurocentrismo, no epistemicídio, na opressão e massacre de outros povos e suas culturas, contrapondo esse modelo insustentável à reaproximação de culturas e sabedorias ancestrais, sejam indígenas ou africanas, que se baseiam na coletividade, na valorização do conhecimento, na oralidade, no bem comum, no cooperativismo, na solidariedade, na horizontalidade, na autonomia, na reciprocidade, na circularidade, sobretudo quando esses modos de vidas não são relacionados ao que é conceituado como modernidade, sendo fundamental a reconsideração do próprio conceito atual de progresso ou até mesmo de desenvolvimento. Na perspectiva do bem viver, os povos indígenas originários questionam o termo desenvolvimento e tudo o que ele implica, já que para nossos povos e comunidades, ele têm significado a degradação da natureza e a destruição das nossas comunidades. O termo desenvolvimento está ligado à exploração, à marginalização, à depredação e à dependência, pois segundo a lógica ocidental, o desenvolvimento implica em ganhar, em desfavor do outro (MAMANI, 2010, p.36).

O atual tipo de desenvolvimento capitalista neoliberal, exploratório, predador e genocida, é um modelo econômico fracassado, gerador de crises 93

sistêmicas, violências epidêmicas, impondo o ser humano (branco, macho e sis), como o “ser supremo” em relação a demais seres humanos, e outras espécies presentes na natureza. Este modelo hierarquiza, colocando em cheque a vida em nome da lógica da acumulação de riqueza; impõe a dicotomia de ricos e pobres; apresenta o consumismo como referencial de felicidade; utiliza recursos naturais limitados de maneira irracional; edifica a urbanização das cidades como lugar principal da reprodução da noção de desenvolvimento em detrimento do campo.

Nesta perspectiva, Netto (1991) salienta que o estilo de vida burguês, de acordo com suas áreas mais modernas e avançadas, “vem engendrando um ethos em que o consumismo compulsivo se insscreve numa constelação ideal de alienação e individualismo; florescem o privatismo, o intimismo, a agressividade e o cinismo debruçados, apenas com verniz de “modernidade” (NETTO, 1991, p.37). Essa forma de sociabilidade, baseada no modelo de crescimento e desenvolvimento infinito, não se sustenta já que a fonte da exploração, seja a natureza ou o capital especulativo, são finitos e, logo, é inevitável a proliferação de crises e guerras.

A visão de mundo dos marginalizados pela história, particularmente dos povos e nacionalidades indígenas, é uma oportunidade para construir outros tipos de sociedades, sustentadas sobre uma convivência harmoniosa entre os seres humanos consigo mesmos e com a Natureza, a partir do reconhecimento dos diversos valores culturais existentes no planeta. Ou seja, trata-se de bem conviver em comunidade e na Natureza (ACOSTA, 2016, p. 24-25).

O modo de viver ancestral, por sua vez, baseado no Bem Viver, pressupõe romper com a lógica capitalista e buscar apoio em outro modelo econômico e de democracia onde a natureza seja o centro, repensando com óticas das lutas feministas e antirracistas, em que as pessoas possam desenvolver sua potencialidade plenamente, livre de qualquer forma de discriminação, violência, negligência ou opressão. O que pressupõe pensar também na Amefricanidade dessas mulheres (negras e indígenas). Para Lélia Gonzalez (2018), essa categoria de análise, em que o racismo subordina índias e negras, tem origem em uma visão deturpada de latinidade, que legitima a inferiorização de determinados sujeitos, em que a origem de sua cultura e história não têm a Europa como principal modelo. 94

É preciso insistir que, no contexto das profundas desigualdades raciais existentes no continente, se insere de maneira muito bem articulada, a desigualdade sexual. Esta é uma dupla discriminação contra as mulheres não brancas da região: as mulheres africanas e ameríndias. O duplo caráter de sua condição biológica - ou racial e sexual - as torna as mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região dependente de um capitalismo patriarcal-racista. Precisamente porque esse sistema transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de classe: os ameríndios e afro-americano fazem parte, em sua grande maioria, do imenso proletariado afro-latinoamericano. (GONZALEZ, 2018, p. 314).

Na avaliação das mulheres negras proponentes da MMN 2015, nos últimos anos houve uma tentativa de reformulação, de mudanças, de ampliação de direitos, de acesso a políticas públicas e a bens e serviços. Porém, ao fazer essa análise com recorte racial e de gênero, observa-se que as mulheres negras, que são um quarto da população, ainda estão em condição de vulnerabilidade, sofrem maior violência e têm seus direitos básicos negados. Dessa forma, é essencial pensar sob a perspectiva da Amefricanidade e do Bem Viver se pretendermos alterar as desiguais estruturasi da sociedade.

Mulheres negras “marcham” há séculos e em princípio as razões permanecem quase as mesmas. Nossos passos vêm de longe! Esta frase foi sintetizada por Jurema Werneck (2010) em O livro da saúde da mulher negra, obra de referência na construção de políticas públicas de saúde para as mulheres negras no Brasil. E a MMN 2015 apontou como reivindicações em seu manifesto o seguinte:

Estamos em Marcha para exigir o fim do racismo em todos os seus modos de incidência, a exemplo da saúde, onde a mortalidade materna entre mulheres negras estão relacionadas à dificuldade do acesso aos serviços de saúde, à baixa qualidade do atendimento recebido aliada à falta de ações e de capacitação de profissionais de saúde voltadas especificamente para os riscos a que as mulheres negras estão expostas; da segurança pública cujos operadores e operadoras decidem quem deve viver e quem deve morrer mediante a omissão do Estado e da sociedade para com as nossas vidas negras. (Trecho do Manifesto MMN - 2015, 2014).

A marcha reivindicava o direito à vida, à liberdade, ao respeito, à justiça, à memória das que não sobreviveram e pelas vidas das sobreviventes. Seguindo os eixos principais da Carta das Mulheres Negras (2015), as mulheres estavam em 95

marcha, pelo “Direito à Vida e à Liberdade, Promoção da Igualdade Racial, Direito ao Trabalho, ao Emprego e à Proteção das Trabalhadoras Negras em Todas as Atividades, Direito à Terra, Território e Moradia/Direito à Cidade, Justiça Ambiental, Defesa dos Bens Comuns e a Não Mercantilização da Vida, Direito à Seguridade Social (Saúde, Assistência Social e Previdência Social), Direito à Educação, Direito à Justiça, Direito à Cultura, Informação e à Comunicação, Segurança Pública.

O trajeto da marcha consistiu na concentração a partir das 8h30 no ginásio Nilson Nelson, com percurso até o Congresso Nacional. Durante o percurso, dois homens policiais civis que estavam acampados em frente ao Congresso em defesa do retorno de militares ao poder e ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff53, dispararam quatro tiros para o alto. Alegaram que se sentiram “ameaçados” pelas integrantes da marcha. A cobertura da MMN 2015 pelos principais meios de comunicação teria passado despercebida, se não fosse esse episódio, pois as notícias enfatizaram a confusão, em detrimento da pertinência da pauta de reivindicação do movimento.

No decorrer da semana da MMN 2015 a presidenta da República, Dilma Rousseff, teve audiência com um grupo de representantes de diversas organizações que compunham a Marcha. Estas entregaram um manifesto que reivindicava do Estado Brasileiro, além de outras pautas, a adoção urgente de medidas para redução da mortalidade de mulheres, pois segundo o Mapa da Violência 2015, houve um aumento 54,2% de assassinatos de negras em 10 anos (2003-2013), enquanto que número de homicídios de mulheres brancas no mesmo período caiu 9,8%. Apesar do maior rigor das punições para crimes contra mulheres do ambiente familiar, o estudo mostra que, mesmo após a promulgação da Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, a violência doméstica contra a mulher negra aumentou 35% e entre as vítimas brancas caiu 2,1%.

Na ocasião, a presidenta Dilma Rousseff escreveu em sua conta da rede social Twitter, sobre o encontro que teve com um grupo de mulheres representantes das organizações que faziam parte da MMN 2015: “Reafirmei

53 O ano de 2015 marcou o início do processo de impeachment que levou à queda o governo democraticamente eleito de Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar a Presidência da República do Brasil. 96

nosso compromisso com o combate ao racismo, contra a violência e pela garantia de direitos e oportunidades às mulheres negras”. A presidenta ainda elogiou o movimento e disse ser solidária com as milhares de mulheres de todo o país que se reuniram na Marcha. “Temos a responsabilidade de aperfeiçoar nossas políticas de promoção da igualdade racial, contra a violência e pela valorização da mulher”.54 As postagens da Presidenta da República relacionadas à MMN 2015, foram:

— Dilma Rousseff (@dilmabr) 19 novembro 2015

(...) contra a violência e pela garantia de direitos e oportunidades às mulheres negras. #MarchaDasMulheresNegras

— Dilma Rousseff (@dilmabr) 19 novembro 2015

Recebi no Planalto um grupo de mulheres e reafirmei nosso compromisso com o combate ao racismo (...)

— Dilma Rousseff (@dilmabr) 19 novembro 2015

A #MarchaDasMulheresNegras cria uma força de contenção dos preconceitos. Viva a cidadania da mulher negra!

— Dilma Rousseff (@dilmabr) 19 novembro 2015

A luta da #MarchaDasMulheresNegras é contra o racismo, a violência e a desigualdade social e de gênero, pauta q tbm é do meu governo.

— Dilma Rousseff (@dilmabr) 19 novembro 2015

Parabenizo e me solidarizo c/ as milhares de mulheres negras de todo o País q se reuniram hoje, em Brasília, na 1ª #MarchaDasMulheresNegras

Dilma Rousseff se manifesta em relação à Marcha e se diz “contra a violência e pela garantia de direitos e oportunidades às mulheres negras”, “A luta da #MarchaDasMulheresNegras é contra o racismo, a violência e a desigualdade social e de gênero, pauta q tbm é do meu governo”, “reafirmei nosso compromisso com o combate ao racismo”. E cabe a indagação sobre quais mecanismos institucionais o Estado brasileiro se utilizou ou desenvolve atualmente para que as demandas trazidas nesta Marcha pelas mulheres negras seja passível de resolução com a urgência que a problemática requer.

54 Ver: http://www.brasil.gov.br/noticias/cidadania-e-inclusao/2015/11/dilma-reafirma-compromisso- com-a-luta-das-mulheres-negras Acesso em 02 jun. 2019. 97

Mulheres negras não gozam do exercício de sua cidadania plena, do acesso universal a bens e serviços, da negação de direitos básicos e compondo a base da pirâmide social e econômica, as medidas a serem adotadas precisam ser de ordem estrutural, o reconhecimento do racismo praticado pelo Estado brasileiro desde que o primeiro negro foi sequestrado do solo africano, os prejuízos da reprodução do racismo institucional, o genocídio e a falta de políticas afirmativas e reparatórias. Para tanto, independente do governo a frente da elaboração das políticas públicas. O movimento de mulheres negras nesse processo acumulou autonomia, conhecimento, estabeleceu redes e conexões, experiências na organização nacional de diferentes setores, sai desse processo fortalecido, congregando mulheres plurais, mas que estão em marcha pelo “Bem Viver” de todos e todas.

E independentemente do cenário político (retrocessos, autorismo, fascismo, retirada de direitos, etc,), “assim como as histórias e memórias de lutas protagonizadas por mulheres negras em suas vidas cotidianas para garantir o direito de existir e de (re)existir, pois tenho a certeza de que ocuparemos as ruas com protestos e marcharemos em Brasília quantas vezes se fizerem necessárias.” (FIGUEIREDO, 2018, p. 219).

Desse modo, pode-se compreender que mulheres negras estiveram e estão presentes em diversas mobilizações e transformações da sociedade brasileira, organizadas de forma autônoma, até que a sociedade, o Estado e demais movimentos sociais, compreendam e somatizem na luta contra as opressões de modo interseccional, em que gênero, raça/etnia e classe social sejam eixos fundamentais na construção de um novo modelo societário.

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CAPÍTULO 3 O Serviço Social e a pauta das Mulheres negras

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3.1. Trajetórias de exclusão das mulheres negras

A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da Casa Grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. Escrevivências - Conceição Evaristo.

As mulheres negras representam pouco mais de um quarto da população brasileira, constituem 27% do conjunto de habitantes e mais da metade das mulheres brasileiras são negras, ou seja, elas são o maior grupo do país, com aproximadamente 50 milhões de mulheres negras em um universo de 191,7 milhões de pessoas. Em 2008 havia quase 70 mil mulheres negras a mais que mulheres brancas; em 2009 esse número avançou para quase 600 mil conforme dados do IBGE disponíveis nos estudos de Marcondes et al. (2013). Todavia, ainda que essa seja a maior categoria de pessoas no Brasil, as mulheres negras são o segmento que historicamente vivenciam as mais perversas situações de desigualdades.

Em que pese, as denúncias dos Movimentos de Mulheres Negras sobre a gravidade de tal situação, fica evidente que o Brasil não conseguiu avançar no enfrentamento do racismo e do sexismo a que esse grupo é exposto. Fica explícito o fracasso do Estado brasileiro em dar respostas a essas desigualdades, o que não ocorre por ausência de informações sobre essa realidade, mas sim pela própria reprodução do sexismo e do racismo que são estruturantes das desigualdades em sociedades capitalistas. Segundo dados do PNUD (2015), o Brasil ocupa a 10ª posição entre os países mais desiguais do mundo em um ranking de 140 países, e é o quarto da América Latina ficando à frente apenas do Haiti, Colômbia e Paraguai.

O resultado do Censo de 2010 expõe a persistência de “dois Brasis”, de um lado a região centro/sul, branco, com taxas de crescimento econômico e IDH próximos de países desenvolvidos e, na outra ponta, na região norte/nordeste, negra, com IDH e taxas de desenvolvimento semelhantes à de países subdesenvolvidos. São inúmeras as pesquisas que apresentam este cenário e grande parte delas foram produzidas pelo próprio Estado, por Ong’s, Movimentos 100

Negros, Movimentos Feministas e também pelos Movimentos de Mulheres Negras.

Segundo o relatório “A distância Que Nos Une”, da Ong Oxfam-Brasil (2017), o Brasil deve levar dois séculos, desde a abolição da escravatura, para equiparar a renda entre negros e brancos, ou seja, esta possível igualdade pode chegar somente em 2089. Porém, esse cenário só seria alcançado se as políticas públicas de redução da desigualdade dos últimos 20 anos fossem mantidas, mas com os atuais severos cortes, “contingenciamentos” e retrocessos das políticas de proteção social, essa distância ainda se manterá vergonhosamente por mais séculos.

Quando se introduz um recorte de gênero sobre a questão racial no Brasil, pode-se verificar que a situação das mulheres negras é mais complicada, pois carrega a somatória das opressões do machismo, racismo, além da exploração de classe social. A este respeito, Sueli Carneiro observa que:

a conjugação do racismo com o sexismo produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida, que se manifestam em sequelas emocionais com danos à saúde mental e rebaixamento da autoestima; em uma expectativa de vida menor, em cinco anos, em relação à das mulheres brancas, em um menor índice de casamentos; e sobretudo no confinamento nas ocupações de menor prestígio e remuneração (CARNEIRO, 2011, p. 127-128 ).

As mulheres negras encontram-se em situação de maior desigualdade em relação aos demais segmentos da sociedade brasileira desde a abolição da escravatura. O Estado pouco ou nada se empenhou em reduzir o fosso social que separa a população negra da branca. Desde o Brasil colônia, elas são submetidas aos trabalhos forçados, à acumulação de tarefas domésticas, enquanto, trabalhadora, companheira e genitora. Posteriormente, nas cidades, passaram a executar serviços domésticos, trabalhando como cozinheiras, empregadas domésticas, quituteiras, amas de leite, prostitutas, lavadeiras, babás, entre outras tarefas. Este lugar no mercado de trabalho, ao lado da falta de políticas educacionais e de capacitação profissional, coloca as mulheres negras sistematicamente na base da pirâmide social e econômica. 101

Segundo o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida de mulheres negras no Brasil, organizado por Marcondes et al. (2013), em 2009, 51,1% famílias se declararam chefiadas por mulheres negras; estas recebiam 51,1% do rendimento das mulheres brancas. O dossiê também mostrou que de cada cem mulheres negras “responsáveis pela família”55, onze estavam desempregadas, e entre as brancas este número era de apenas sete. Em relação à renda per capita, as famílias que possuem mulheres negras como pessoa de referência, ganhavam cerca de 40% do que recebiam as mulheres brancas; entre 1995 e 2009, as famílias das mulheres negras mantiveram-se na posição com os piores rendimentos, atrás dos homens negros, mulheres brancas e por fim, pelos homens brancos.

A situação das mulheres negras exemplifica isso: recebem os mais baixos salários, são empurradas para os “trabalhos improdutivos” - aqueles que não produzem mais-valia, mas que são essenciais, a exemplo das babás e empregadas domésticas, em geral negras que, vestidas de branco, criam os herdeiros do capital -, são diariamente vítimas de assédio moral, violência doméstica e do abandono, recebem o pior tratamento nos sistemas “universais” de saúde e suportam, proporcionalmente, a mais pesada carga tributária. A descrição e o enquadramento estrutural dessa situação revelam o movimento real da divisão de classes, e dos mecanismos institucionais do capitalismo (ALMEIDA, 2018, p.146).

E mesmo em seguimentos como o funcionalismo público e ou militares, em que o sistema de seleção não esteja atrelado à questão da “boa aparência”, fator que automaticamente exclui as negras de determinados postos no mercado de trabalho, em 2009, o acesso a este sistema por gênero e raça era de 10,9% das mulheres brancas e 8,5 % de mulheres negras. Ainda que consigam ultrapassar essa barreira “invisível”, a ocupação dessas vagas se dá de maneira diversa e com rendimentos díspares. As funcionárias públicas negras em 1999 recebiam cerca de R$ 624 contra R$ 1.450 dos homens brancos, em 2009, os valores eram de R$ 830 e R$1.800 respectivamente, revelando um quadro de desigualdade praticamente inalterado.

55 Utiliza-se aqui também os termos “pessoa de referência” ou “pessoa responsável” pela família, em substituição ao termo “chefe de família” adotado por determinadas pesquisas e recenseamentos, mas que podem indicar a noção de chefia como indivíduo do sexo masculino, hetero normativo, o que não contempla a realidade de outras pessoas/famílias. 102

Mesmo em outras categorias como o emprego doméstico, onde predominam as mulheres negras, a disparidade de rendimentos é notória: estas, em 2009, recebiam cerca de R$ 600 enquanto os homens brancos ganhavam R$ 920. Embora com menor distância de renda neste grupo, a discrepância se mantem entre homens e mulheres, sobretudo em relação às mulheres negras, pois recebem 73% dos rendimentos dos homens brancos; enquanto homens negros e mulheres brancas estavam igualmente com 85% com relação ao salário dos homens negros.

Em relação a exclusão digital, o estudo evidencia que os domicílios sem computador em que a referência da família eram mulheres brancas 85% não tinham este bem, ao passo que as famílias de referência de mulheres negras representavam 95,3%.

Sobre as condições habitacionais e de saneamento básico, como esgoto sanitário para a população branca de modo geral, essa cobertura compreende 77,1%, enquanto somente 60% da população negra dispõe do serviço de saneamento sanitário adequado. Mas essa comparação em relação às famílias cuja pessoa de referência são mulheres, a cobertura nos domicílios de referência de mulheres brancas é de 78,4%, e de apenas 61,8% para domicílios em que mulheres negras eram responsáveis pela família.

Consequentemente, as condições habitacionais são díspares entre esses dois grupos em relação às questões raciais. As moradias consideradas oficialmente em condições de “assentamento subnormais” 33,9% eram de pessoas brancas como referência da família, contra 66% de pessoa negra como pessoa de referência da família. No Dossiê Mulheres Negras ficou caracterizado que, no que diz respeito aos assentamentos subnormais há cada vez mais desigual proporção com uma maior e crescente vulnerabilidade nas condições de habitação das famílias chefiadas principalmente por mulheres negras (MARCONDES et al., 2013).

A pobreza que pode ser conceitualmente compreendida por diferentes aspectos e categorias de análises, como por exemplo, a insuficiência de renda, é um dos parâmetros de avaliação de linhas administrativas para o acesso a políticas e programas sociais como o Programa Bolsa Família (PBF) que, em 103

2010, a linha de corte era de R$ 70,00 para delimitar as famílias em situação de extrema pobreza. Em 2009 a situação de extrema pobreza atingia 48% de homens, 52% de mulheres e aproximadamente 74% de pretos, pardos e indígenas.

O Cadastro Único56 em 2014 revelava a preocupante “feminização da pobreza” ao mostrar que o percentual de mulheres responsáveis por domicílios que recebiam os benefícios do PBF eram em torno 88% de todas as famílias inscritas no programa e que 73% dessas eram famílias negras, das quais 68% eram as mulheres negras as pessoas de referência.

Nesse mesmo sentido, a taxa de desemprego em relação às mulheres negras excede em mais de 130%, em comparação às mulheres brancas. Esse índice é de 70% comparado à taxa de empregos de homens brancos. Quando empregadas, as mulheres negras estão sobrerrepresentadas no trabalho doméstico, ocupando 57,6% dos postos. Elas têm menor presença em ocupações de maior proteção social, como o emprego com carteira assinada, acarretando por exemplo a pífia cobertura da previdência social, com 73% dos rendimentos de aposentadoria e pensão pagos a pretos e pardos, que corresponde a um salário mínimo, enquanto que para a população branca esse rendimento corresponde a 48% dos beneficiários. Quando se analisa somente os dados em relação à renda e perfil das mulheres responsáveis pela família, fica notório que a pobreza tem cor e gênero no Brasil.

Em relação à violência de gênero, ainda que haja uma aparente democracia no que se refere, sobretudo, à violência doméstica, pois a violência atingiria as mulheres indiferentemente da classe social, tendo em vista que estas teriam em comum o sexo e os prejuízos que a sociedade patriarcal reproduz. Existe uma maior exposição de mulheres negras a esse tipo de violência, conforme aponta o Mapa da Violência (2015). No período entre 2003 e 2013, as principais vítimas da violência de gênero foram meninas e mulheres negras, com

56 Cadastro Único é a porta de entrada para vários Programas Sociais do Governo Federal, como o Bolsa Família, a Tarifa Social de Energia Elétrica, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Minha Casa Minha Vida. Ele também funciona como um mapa para o governo identificar as necessidades da população. (Fonte: http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/mds-pra-voce/carta-de- servicos/usuario/cadastro-unico-1 104

queda na evolução das taxas de homicídio de mulheres brancas – de 3,6 para 3,2 por 100 mil – e crescimento nas taxas de mulheres negras – de 4,5 para 5,4 (por 100 mil), com prevalência entre 18 e 30 anos de idade e maior incidência de mortes causadas por força física, objeto cortante/penetrante ou contundente e menor participação de arma de fogo. Esses índices permanecem inalterados em relação à maior mortalidade entre as mulheres negras, com taxas de 5,3 de mulheres negras assassinadas, contra 3,1 entre as não negras – a diferença é de 71%. Em relação aos dez anos da série desses estudos, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres, entre negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%.

Outra forma brutal de violência, que acomete principalmente meninas e mulheres negras, é o estupro. No Brasil, a cultura do estupro contra o corpo negro está presente desde o período colonial, quando mulheres negras (e indígenas) eram objetificadas, estupradas, gerando ainda mais lucro aos seus senhores, pois, os frutos dessa violência, as crianças, eram incorporadas aos bens e futuramente também eram exploradas como mão de obra escravizada. Essa cultura do estupro no Brasil contribuiu para o que ficou conhecido como a “democracia racial”, ideologia forjada nos anos 1930, no início do século XX, que imprimiu na sociedade a falsa ideia de que a miscigenação no Brasil, foi fruto do harmonioso convívio entre indígenas, brancos e negros. Esta ideia foi difundida mundialmente, sobretudo por meio da obra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.

Em contraponto a essa narrativa, que expressa o ponto de vista somente da “Casa Grande”, Lélia Gonzalez apresenta o ponto de vista das mulheres negras e indígenas, enfatizando que o “cruzamento de raças” foi fruto da violência e estupro praticados pelos portugueses contra essas mulheres no período colonial, porém os dados atuais demonstram que a cultura do estupro e a hiperssexualização desses corpos ainda é presente, sobretudo contra as mulheres negras. Para Lélia Gonzalez (2018, p.109):

É por aí que a gente deve entender que esse papo de que a miscigenação é a prova da “democracia racial” brasileira não está com nada. Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava. Por isso existem os preconceitos e os mitos relativos a mulher negra: de que ela é mulher fácil, de que é boa de cama. 105

A violência de gênero está presente no cotidiano de diversas maneiras, como: assédio, violência doméstica, feminicídio, cultura do estupro, machismo, entre outros. No Brasil, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada57. Esse dado preocupante é resultado de uma sociedade patriarcal e misógina. Para Saffioti (2004), a violência de gênero é uma forma particular de violência com a finalidade de preservação da organização social de gênero que se fundamenta na hierarquia, como nas desigualdades sociais e sexuais.

Outra forma de violência de gênero é a violência doméstica, com manifestações distintas, como a violência psicológica, moral, patrimonial, sexual, além da agressão física. Sobre a vitimização de mulheres por esse tipo de agressão, as mulheres negras se sentem mais inseguras em seu domicílio que mulheres brancas. Os dados apontam 3 p.p. de diferença entre elas: as primeiras que declaram sentirem-se seguras no seu domicílio representam 78,7%, enquanto as segundas 75,7%. Esta diferença, embora pequena, indica de imediato que estas mulheres não se sentem protegidas nem mesmo no próprio lar.

Das mulheres que sofreram agressão física, em média 54% das mulheres brancas procuraram a polícia, contra 50% das mulheres negras. Neste universo as que conseguiram efetivamente formalizar a denúncia da violência, 47% são mulheres brancas e 44% mulheres negras; do total que procuraram a polícia, 82% das brancas e 89,4% das negras registraram a queixa, configurando maior disposição da mulher negra em registrar a denúncia, ainda que seja mais difícil, considerando que neste serviço sua queixa é percebida com maior descrédito, as dificuldades de acesso do ponto de vista objetivo como informação, transporte e o racismo institucional reproduzido nesses locais, resultante de uma sociedade racialmente desigual.

É fundamental considerar os aspectos da violência racial especificada por gênero que acomete as mulheres negras brasileiras. Esta experiência tem sido profundamente invisibilizada e negligenciada, seja pelas políticas públicas, seja pelos trabalhos acadêmicos e pelas instituições de pesquisa, que geralmente não costumam avaliar o fenômeno por raça/cor e gênero, que se conforma apenas com uma das características - ser o negro ou o ser a mulher. (ROMIO, 2013, p. 155).

57 FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2015). 106

É fato que as desigualdades de gênero e raça58 organizam fatores fundamentais de agravamento das condições de desproteção e exclusão em que estão expostas imensas parcelas da população brasileira, cabendo ao Estado e à sociedade empenho para seu enfrentamento e não é possível falar de mecanismos de proteção social sem a garantia de uma política educacional básica que alcance a população negra e não negra sem distinção.

Porém, conforme IPEA (2011), no ano de 2009 na média de estudos da população com 15 anos ou mais, a população negra tinha 6,7 anos de estudos, contra 8,4 anos da população branca. Na fase pré escolar, crianças brancas entre 0 e 3 anos estavam matriculadas em creches 20,2%, contra apenas 16,7% de crianças negras. A taxa de escolarização das mulheres no ensino superior era de 23,8% de mulheres brancas, enquanto mulheres negras esta taxa, é de apenas 9,9%. Apesar de um relativo avanço no âmbito das políticas educacionais no Brasil com a implementação de ações afirmativas, como as políticas de cotas no ensino superior nas instituições federais, o desafio de garantir uma educação básica e de qualidade para toda(o)s ainda é um longo caminho a ser percorrido para a população negra brasileira. Um país que não tem como prioridade a educação para a maioria da sua população, tende a tratar essa problemática de outra forma, como o encarceramento em massa e o genocídio da população negra e pobre, como resposta às expressões da questão social, conforme é possível constatar em dados do INFOPEN (2015)59. O número de mulheres encarceradas cresceu 576,4% entre os anos 2000 e 2014, enquanto o aumento entre os homens foi de 220% nesse mesmo período, sendo possível confirmar um acelerado encarceramento das mulheres, em especial as mulhrres pretas, pois em cada 03 mulheres presas, 02 são negras.

58 Segundo Guimarães (2003, p. 96), ”as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. Podemos dizer que as “raças” são efeitos de discursos; fazem parte desses discursos sobre origem (Wade 1997). As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem. Usando essa idéia, podemos dizer o seguinte: certos discursos falam de essências que são basicamente traços fisionômicos e qualidades morais e intelectuais; só nesse campo a idéia de raça faz sentido’. 59 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. 107

No encarceramento de mulheres na maioria das vezes existe uma relação direta entre a criminalização de mulheres e o patriarcado. Já que as mulheres, de forma geral, possuem uma vulnerabilidade específica, muito bem definida por sua condição de gênero em uma sociedade que é estruturada a partir de desigualdades entre homens e mulheres. Por esse motivo, o perfil da criminalização das mulheres está caracterizado no alto índice de envolvimento de mulheres no tráfico como “microtraficantes” ou “aviãozinhos” (aquelas que revendem, entregam ou guardam), esse universo representa 62% das causas de detenção feminina (INFOPEN, 2016). Essas mulheres não representam o topo da hierarquia dessas organizações, seu envolvimento nesses crimes, se dá na maioria das vezes devido ao envolvimento de parceiros nesses crimes ou à mera possibilidade de subsistência na ausência de demais opções.

O perfil das mulheres encarceradas aponta também a seletividade desse sistema, quando 68% das mulheres encarceradas são negras, 57% são solteiras, 50% têm apenas o ensino fundamental e 50% têm entre 18 e 29 anos. A maioria parte delas é mãe e cumpre pena em regime fechado, não tinha antecedentes criminais e tem maior dificuldade de acesso a empregos formais. O encarceramento pode ocorrer também em função do envolvimento com atividades relacionadas ao tráfico e ao transporte nacional e internacional de drogas (ALVES, 2017).

Em relação À criminalização e ao genocídio da população negra, em um país que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, também recai sobre as mulheres negras mais esse flagelo, pois esse jovem é filho, irmão, companheiro, pai, enfim, quando um jovem negro é assassinado esse ataque é estendido à sua família. E, nesse sentido, geralmente a mulher negra é quem irá carregar esse luto.

Então, por que essa luta não sensibiliza? Por que a morte de negros não sensibiliza? Não sensibiliza porque nós somos vistos pela sociedade capitalista como marginais, como seres com menos valor, portanto, alvos fáceis dos aparelhos de repressão, da violência. Isto está no imaginário das pessoas. (ALMEIDA, 2013, p. 236).

A conclusão do estudo de Batista, Escuder e Pereira (2004), sobre causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo entre 1999 e 108

2001, revela que “a morte tem cor”, a morte entre pessoas não negras tem como motivo as doenças de modo geral, enquanto as causas da morte negra são em decorrência de complicações da gravidez e no parto, transtornos mentais e causas mal definidas, e com maiores índices também a mortalidade infantil e por HIV- Aids. Sendo assim,

Há uma morte negra que não tem causa em doenças; decorre de infortúnio. É uma morte insensata, que bule com as coisas da vida, como a gravidez e o parto. É uma morte insana, que aliena a existência e transtornos mentais. É uma morte de vítima, em agressões de doenças infecciosas ou de violência de causas externas. É uma morte que não é morte, é mal definida. A morte negra não é um fim de vida, é uma vida desfeita, é uma Átropos ensandecida que corta o fio da vida sem que Cloto o teça ou que Láquesis o meça. A morte negra é uma morte desgraçada. (BATISTA; ESCUDER; PEREIRA, 2004, p.635).

O genocídio da população negra ainda não foi reconhecido pelo Estado brasileiro, embora os números dessa letalidade sejam índices semelhantes ao das nações em situação oficial de guerra. Mas para pesquisadores sobre a temática e os próprios movimentos negros, não restam dúvidas: no Brasil, atualmente, está em curso um processo de genocídio do povo negro. Um exemplo das repercussões do genocídio, sobretudo da juventude negra, é a condenação principalmente de suas mães e familiares ao luto sem fim, já que na maioria das vezes, são assassinatos cometidos pelo Estado, por meio de agentes de segurança pública, geralmente sob alegação de “auto de resistência”60, isto se os corpos não são ocultados, quando denunciados, na maior parte da vezes os inquéritos quando não são arquivados, os réus são absolvidos por falta de provas.

É o que muitos movimentos sociais, como as “Mães de Maio”61, denunciam. Essas mulheres, como muitas outras negras, tiveram seus filhos ou

60 “Auto de Resistência” é uma classificação rotineiramente utilizada para se evitar que os policiais sejam responsabilizados pelos homicídios, já que eles alegam ter atirado em legítima defesa. O problema é que ninguém tem o direito de tirar uma vida com base apenas na chamada "resistência à prisão". Hoje essas mortes são denominadas "mortes em decorrência de ação policial", e continuam sendo uma prática comum da polícia. Conteúdo disponível no documentário “Ato de Resistência”, Ganhador de melhor documentário no Festival É Tudo Verdade 2018. 61 O movimento é uma rede de mães, familiares e amiga(o)s de vítimas da violência do Estado, situado em São Paulo, sobretudo na capital e na Baixada Santista. Formado a partir dos Crimes de Maio de 2006, o grupo tem como missão lutar pela verdade, pela memória e por justiça para todas as vítimas da violência discriminatória, institucional e policial contra a população pobre, negra e os movimentos sociais brasileiros, de ontem e de hoje. 109

familiares assassinados e desde então estão em busca de justiça e reparação desse crime. Porém, muitas não resistem a essa “dor da alma” e falecem nesse percurso por situações ligadas ao sofrimento, sobretudo psicológico, como depressão, síndrome pós-traumática, doenças cardíacas, dentre outras. Em audiência pública62 sobre a necessidade de reparação psíquica e econômica aos familiares de jovens negros mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, Débora Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, enfatizou que:

O Estado mata nossos filhos, abandona os familiares e não dá nenhum apoio. Essa reparação psíquica é necessária. E a gente também vem com a reivindicação da reparação econômica, porque muitas mães são mãe e pai, vítimas do machismo. Ela cria o filho sozinha e depois os filhos são executados e essas mulheres não têm uma dignidade, não podem trazer o sustento porque a depressão e a impunidade matam essas mães lentamente.

Sobre essas vidas recai o racismo estrutural, pois quando esses jovens são mortos pelas “mãos do Estado”, são mortos pela estrutura racista da sociedade, quando determina parâmetros de superioridade e inferioridade, hierarquias, que de acordo com Sílvio Almeida (2018), não ficaram isoladas no século XIX com o fim da política de escravidão, mas adquiriram novos formatos de dominação política com o passar do tempo, somados aos poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico. O que antes era tido como modelo colonial de dominação, na contemporaneidade é incorporado na institucionalidade Estatal, nas políticas de segurança pública, como a guerra às drogas, o grande investimento na implantação de Unidades Polícia Pacificadora (UPP)63 é um exemplo da presença do Estado para tal “disciplinamento”.

O racismo, mais uma vez, permite a conformação das almas, mesmo as mais nobres da sociedade, à extrema violência a que populações inteiras são submetidas, que se neutralize a morte de crianças por “balas perdidas”, que se conviva com áreas inteiras sem saneamento básico, sem sistema educacional ou de saúde, que se se exterminem

(Fonte: https://www.fundobrasil.org.br/projeto/maes-de-maio/). Assim como, mães e familiares vítimas de outros crimes como chacinas em Osasco e Barueri (Mães de Osasco), e por mulheres que perderam maridos e filhos vítimas da violência cometida pelas polícias Civil e Militar, na zona leste da cidade de São Paulo, o coletivo Mães em Luto da Zona Leste ou Mães da Leste. 62 Entrevista, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/10/11/maes-pedem-reparacao- psiquica-e-economica-por-filhos-mortos-pela-pm-de-sp/ Acesso em 02 jul 2019. 63 Trata-se de um projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro. 110

milhares de jovens negros por ano no que vem sendo denunciado há anos pelo movimento negro como genocídio. (ALMEIDA, 2018, p. 94).

O projeto genocida em curso mata de diversas formas, conforme pesquisa do Ministério da Saúde (2018) e a tendência da taxa de mortalidade por suicídio entre adolescentes e jovens negros demonstrou um crescimento estatisticamente significativo no período de 2012 a 201664. No entanto, a taxa de mortalidade por suicídio entre os jovens e adolescentes brancos permaneceu estável, ou seja, a variação não foi significativa estatisticamente65. Observando esses dois grupos em 2016, nota-se que a cada 10 suicídios em adolescentes e jovens, em torno de seis são envolvem jovens negros e quatro foram de jovens brancos. Além disso, as principais causas associadas ao suicídio em negros são: o não lugar, ausência de sentimento de pertença, sentimento de inferioridade, rejeição, negligência, maus tratos, abuso, violência, inadequação, inadaptação, sentimento de incapacidade, solidão, isolamento social. Entre outros fatores relacionados como a não aceitação da identidade racial, sexual e afetiva, de gênero e de classe social.

Para Grada Kilomba (2019), no contexto da vivência do racismo, o suicídio é quase a visualização, a performance da condição do sujeito negro em uma sociedade branca na qual ele é invisível. Essa invisibilidade é performada através da realização do suicídio e pode significar o grau máximo de dor, ou ainda o desejo de exercer o que provavelmente seja sua única autonomia, que é determinar sua própria existência. Qualquer ser humano exposto a estas opressões e desigualdades seculares, traz repercussões de ordem subjetiva, identificadas ou não, no aspecto psicológico e afetivo, ao longo de sua vida.

Do mesmo modo, as mulheres negras também estão expostas ao que os Movimentos Negros denominam “Solidão da Mulher Negra”, em que as questões de raça/etnia se mostram determinantes até nas escolhas de nossos parceiros sexuais e afetivos, revelando a farsa da “democracia racial brasileira”, sendo esta na verdade um verdadeiro mito, desconstruindo o consenso de que somos uma nação altamente “miscigenada” e sem preconceitos na construção de seus

64 A taxa de mortalidade por suicídio em 2002 foi de 4,88 óbitos por 100 mil entre adolescentes e jovens negros e aumentou 12%, alcançando 5,88 óbitos por 100 mil entre adolescentes e jovens negros em 2016 (MS, 2018). 65 A taxa de mortalidade por suicídio entre estes em 3,65 de óbitos por 100 mil, e em 2016 essa taxa foi de 3,76 óbitos por 100 mil em 2012 (MS, 2018). 111

relacionamentos, quando na verdade se parte da ideia que mulheres negras são sexualmente usáveis e descartáveis. O Censo de 2010 revelou que as mulheres negras são as que menos se casam, sendo a maioria na categoria de “celibato definitivo”, isto é, que nunca tiveram um cônjuge. Apesar da máxima popular “o amor não tem cor”, percebe-se que a solidão tem cor e é negra.

Além disso, o padrão estético de beleza vigente é eurocêntrico e é constantemente imposto pela mídia como o ideal de beleza a ser alcançado. Este não engloba as características das mulheres negras, ao contrário, no decorrer da história, seus traços, cabelos, vestimentas as transformaram em telespectadoras de nossa própria ausência, até mesmo na religiosidade alvo de total invisibilidade e sucessivas violências para seu silenciamento e anulação.

Essa anulação, até mesmo da vida, resulta da conjugação do sexismo e racismo no Brasil e incide como determinante sobre a vida e a morte, pois enquanto as mulheres brancas tinham a expectativa de vida de 73,8 anos, as mulheres negras tinham esta expectativa reduzida para 69,5 anos. A expectativa de vida da população branca em comparação à negra está relacionada ao maior ou menor acesso a bens e direitos básicos; assim como à inserção laboral mais ou menos precária e precoce; sem ou com garantias de proteção social e benefícios como, por exemplo, a aposentadoria. Logo, a desigualdade racial e de gênero no Brasil determina quem vive e quem morre, e é ela própria resultante e reprodutora de uma estrutura social hierarquizada e racializada.

As mortes maternas (evitáveis) são outra categoria de uma necropolítica66 a que estão sujeitas as mulheres negras, pois elas representam 62,8% das vítimas de morte materna, mulheres que teriam suas vidas poupadas, caso o acesso à informação e atenção no pré-natal e parto lhes fossem assegurados conforme diretrizes básicas do Sistema Único Saúde (SUS). As violências na oferta de atendimento de saúde, quando não letais deixam outras marcas como a violência

66 Achille Mbembe conceitua que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Demonstra que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. A noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2018, p. 71). 112

obstétrica, e novamente as mulheres negras são mais submetidas a essa forma de violência institucionalizada 65, 9% delas afirmam já ter sido vítimas de violência obstétrica (IPEA, 2014). Somente 27% das mulheres negras tiveram acompanhamento durante o parto, já para as mulheres brancas esse percentual sobre para 46,2% e 62,5% das mulheres negras receberam orientações sobre a importância do aleitamento materno, enquanto 77% das mulheres brancas tiveram acesso a essa informação básica. A discriminação e o racismo se manifestam na trajetória de determinadas pessoas antes mesmo do seu nascimento.

Em consequência dos reiterados resultados de estudos, pesquisas, recenseamentos que evidenciam todos os anos a preocupante realidade de desigualdade da população negra brasileira é que o Estado brasileiro foi forçado a reconhecer, ao menos formalmente, diante da Organização Internacional do Trabalho (OIT) na década de 1990, a existência de racismo, de discriminações baseadas na cor da pele ou na origem étnica dos indivíduos. E, objetivando eliminar, coibir e proibir as discriminações fundadas em gênero e raça, o Brasil assinou e ratificou vários compromissos internacionais, como a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). O Protocolo Facultativo da CEDAW e convenções da OIT, além da Convenção Internacional para a Eliminação da Desigualdade Racial (CERD).

A Constituição Federal (CF) de 1988 é enfática e traz em seu texto uma série de preceitos que afirmam a garantia da igualdade entre todas e todos e a não discriminação. O artigo 5º da CF, por exemplo, estabelece que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...” (art. 5º, caput). A Constituição também evidencia que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações...” (art. 5º, I). E no art. 7º, inciso XXX, aponta a “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil67".

Portanto, qualquer forma de preconceito e discriminação não é legalmente permitida no Brasil. Contraditoriamente, o próprio Estado apresenta dados,

67 Grifo meu. 113

pesquisas e indicadores que embasam formulações sobre as gigantescas desigualdades a que as mulheres estão submetidas, e em particular as mulheres negras, de modo que a pretensa igualdade, na prática, é mera formalidade. Mas e quando é o Estado o agente violador desses direitos humanos? Quando se omite na elaboração de políticas públicas que eliminam ou mesmo amenizam tais desigualdades, na não destinação e priorização de orçamento público para esta finalidade, ou quando os próprios serviços públicos cometem discriminações e racismo, ou reproduzem racismo institucional? O que fazer quando o próprio ente que deveria promover proteção violenta a maior parcela da população?

No lançamento de uma pesquisa sobre Indicadores de Referência de Bem Estar da cidade de São Paulo (2017), os resultados indicaram que: "As mulheres negras deveriam ser a população prioritária de todas as políticas públicas”. Ou seja, é coerente a afirmação de que as políticas sociais, bem como os serviços públicos são espaços privilegiados de promoção da igualdade racial e de gênero, do mesmo modo, em que podem ser locais de reprodução dessas históricas desigualdades, com ações sexistas e racistas por ação ou até mesmo por omissão.

O ordenamento jurídico brasileiro não adota medidas que visem ações discriminatórias e preconceituosas, mas também não há esforços para que os operadores das políticas públicas contribuam para a eliminação dessas persistentes desigualdades. Para Márcia Eurico (2013, p. 291), “as formas como as instituições públicas estão estruturadas pode reforçar o racismo contra amplas parcelas da população, em virtude de sua origem étnico-racial”. E que nesse mesmo sentido, “a complexidade das relações raciais no Brasil revela o campo de disputas em que o Serviço Social é chamado a intervir, pois o projeto ético-político que orienta o trabalho profissional do Assistente Social é portador de uma direção social na perspectiva de emancipação dos sujeitos coletivos”.

114

3.2. O Serviço Social e a pauta das Mulheres Negras

O Serviço Social, segundo Iamamoto (2006), é uma especialização do trabalho. Trata-se de uma profissão particular inscrita na divisão social e técnica do trabalho coletivo da sociedade e que tem na questão social o centro de sua fundamentação como especialização do trabalho. Sendo a questão social compreendida como o conjunto das expressões das disparidades da sociedade capitalista madura. O modelo de produção da sociedade capitalista tem como eixo comum a produção social, que é cada vez mais coletiva, ao passo que a apropriação dos seus frutos mantem-se cada vez mais privada, restrita apenas a uma parcela da sociedade. (IAMAMOTO, 2006).

É nessa contradição entre modelo de produção capitalista e questão social que está inserido o trabalho da (o) Assistente Social, mediante as mais variadas expressões da questão social, nas políticas sociais e públicas conforme exposto no início deste capítulo.

Questão social que, sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõem. É nesta tensão entre produção da desigualdade e produção da rebeldia e da resistência, que trabalham (as)68 os assistentes sociais, situados (as) nesse terreno movidos por interesses sociais distintos, aos quais não é possível abstrair ou deles fugir porque tecem vida em sociedade. Exatamente por isso, decifrar as novas mediações por meio das quais se expressa a questão social, hoje, é de fundamental importância para o Serviço Social em uma dupla perspectiva: para que se possa apreender as várias expressões que assumem, na atualidade, as desigualdades sociais - sua produção e reprodução ampliada - quanto projetar e forjar formas de resistência e de defesa da vida. (IAMAMOTO, 2006, p. 28).

No Brasil, o Serviço Social tem sua gênese e institucionalização no início da década de 1930, conforme Iamamoto (2011), sobretudo como resultado do contexto de mobilizações da classe trabalhadora, relacionada à “questão social”, requisitando um posicionamento do Estado, dos segmentos dominantes e da Igreja.

68 Grifo meu. 115

Assim, a origem do Serviço Social brasileiro está imbricado à ação da Igreja Católica, tal como suas estratégias de adequação frente às mudanças econômicas e políticas da época. Em outros termos, a profissão emerge com objetivos evidentes de dar “soluções” à “questão social” e consequentemente dar resposta ao movimento da classe trabalhadora, mas não no sentido de seu fortalecimento e sim de sua contenção, em moldes conservadores e moralizantes. Tal institucionalização do Serviço Social insere-se numa ofensiva estatal em que, como forma de canalizar o potencial de mobilização dos trabalhadores urbanos e manter rebaixados os níveis salariais (IAMAMOTO, 2004).

Vale frisar, que na ocasião da instalação do primeiro curso de Serviço Social no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1936, o Brasil estava apenas há 48 anos da assinatura da “Lei Áurea”, que instituiu “formalmente” o fim do período escravocrata brasileiro, após mais de três séculos de violência e exploração da mão de obra sequestrada do continente Africano. Camila Manduca (2010, p. 55) observa que “quer fossem os trabalhadores ativos quer fossem os pobres os usuários do Serviço Social nas décadas de 1930 e 1940, deve-se levar em conta que os negros respondiam por uma parcela significativa (se não massiva) desses usuários”. Contudo, os estabelecimentos de assistência social foram alvo de denúncias dos jornais negros da época, como “O Clarim d’Alvorada” que denunciou a ordem do bispo de Botucatu proibindo “a entrada de crianças negras no Orfanato Armando de Barros, daquela diocese”. (MANDUCA, 2010, p. 134).

Essas atitudes elitistas e preconceituosas no atendimento ofertado pelo Estado expressa(va)m o imaginário racista da sociedade brasileira, em que a(o) assistente social sendo parte dessa estrutura poderia (ou pode) ser reprodutora de preconceitos, discriminações e racismo. Assim, é de suma importância a constante reflexão dessa categoria profissional acerca da histórica questão étnico- racial brasileira, sem desconsiderar as questões de gênero, classe social e demais interseccões que sejam pertinentes.

Na história do Serviço Social foram raras as vozes que interromperam o “silêncio” do mito da democracia racial brasileira para denunciar e posicionar-se sobre a emblemática questão étnico-racial, seja em caráter de denúncia ou posicionamento. E, quando presentes, tais vozes não foram ampliadas. Ao 116

contrário, são vozes que costumeiramente foram invisibilizadas e, desse modo, houve um reforço do racismo na sociedade. No caso da mulher negra, sua história e trajetória ainda não foi narrada com a devida seriedade e essa invisibilização não deve ser a marca da profissão. Ou rompemos ou compactuamos com ela.

Para Xavier (2016), a trajetória de Maria Nascimento é um exemplo da história ainda não contada de mulheres negras na profissão. Principalmente, considerando seu pioneirismo ao articular em suas denúncias a intersecção de gênero, raça e classe. Maria de Lurdes Vale Nascimento, mulher negra, foi Assistente Social, ativista e jornalista, uma das fundadoras do Teatro Experimental do Negro (TEN) no Rio de Janeiro em 1944; foi colunista do Jornal Quilombo (1948-1950) na coluna Fala Mulher e presidenta do Conselho Nacional das Mulheres Negras (1950). Tinha entre as principais propostas do Conselho a criação imediata de uma Escola de Artes Domésticas, de um Abrigo do “Negrinho Abandonado” e do Jardim de Infância, Teatro Infantil (curso de dança, canto e música), Teatro de Bonecos. As propostas do Conselho Nacional das Mulheres Negras, assim como do Jornal Quilombo, são parte de um contexto maior relacionado às lutas históricas da população negra pelo acesso à educação.

A população negra tinha como necessidade a alfabetização, instrução, visando o desenvolvimento de capacidades para se destacarem também em áreas como; o social, cultural, educacional, político, econômico e artístico.

Numa batalha de gêneros, mediada por damas e cavalheiros da raça, é fascinante e verossímil pensar que o nome “Fala Mulher” dizia respeito à capacidade de transformar em texto escrito os clamores femininos por dias melhores. Dona de ótima relação com a gramática, conforme evidenciam seus escritos, Maria usou perspicácia para, de alguma forma, denunciar e criticar o silêncio a que mulheres negras estavam passíveis em “espaços negros” conduzidos majoritariamente por homens, (XAVIER, 2016, p. 122).

Embora seus feitos tenham tamanha magnitude, por seu pioneirismo, essa assistente social e militante teve sua história completamente invisibilizada na categoria profissional e pelos próprios movimentos negros, que apresentam sua trajetória apenas como a companheira do ator e jornalista Abdias Nascimento69. Maria Nascimento até hoje não foi reconhecida pela relevância de seus estudos,

69 Referência intelectual e política dos movimentos negros. 117

de seu trabalho desenvolvido, de suas publicações e de seus posicionamentos políticos bastante avançados para a época.

Além da dedicação à escrita, ela se destacou no Serviço de Assistência Social da Guanabara como árdua defensora da “infância negra”. Não por acaso, sempre que tinha oportunidade apontava a educação infantil como um das “dificuldades sociais que [nós negros] teremos que enfrentar. A fim de construir soluções concretas para a superação da desigualdade racial que se refletia no campo educacional, a escritora usava a coluna “Fala a Mulher” como um espaço para o diálogo com público específico: as mulheres negras, leitoras a quem chamava de “patrícias de cor” ou, simplesmente amigas. (XAVIER, 2015, p.2).

Joselina da Silva (2010), enfatiza que Maria Nascimento foi atuante e que “sua crítica social assumia um tom de reivindicação e denúncia” (2010, p. 33), como a criação de leis que protegessem as empregadas domésticas, um dos clamores presentes nos documentos finais do I Congresso do Negro Brasileiro, ocorrido em 1950 no Rio de Janeiro. De acordo com Joselina da Silva, entre “as pessoas que mais arraigadamente as defendiam, tínhamos Maria Nascimento” (2010, p. 34). E os debates repercutiam no Jornal Quilombo.

É inacreditável que numa época em que tanto se fala em justiça social possa existir milhares de trabalhadoras como as empregadas domésticas, sem horário de entrar e sair do serviço, sem amparo na doença e na velhice, sem proteção no período de gestação e pós- parto sem maternidade e sem creche para abrigar seus filhos durante as horas de trabalho. Para as empregadas domésticas o regime é aquele mesmo regime servil... pior do que nos tempos da escravidão. (Jornal Quilombo, ano I, n. 3, Rio de Janeiro, julho de 1949 apud SILVA, 2010, p. 34).

Maria Nascimento naq já denunciava o que ainda hoje é difícil alguns setores conseguirem enxergar: que a pobreza tem cor e gênero. Que nos uniformes das empregadas domésticas e nas roupas brancas das babás, nos contingentes de crianças e adolescentes nas instituições de acolhimento, existem resquícios do período escravista brasileiro que ainda não foram suficientemente examinados.

A mesma invisibilização ocorreu com Virgínia Leone Bicudo: mulher negra, socióloga, educadora e sanitarista; foi a única mulher a obter o bacharelado em Ciências Políticas e Sociais em 1938 e a tornar-se uma das primeiras professoras 118

negras no ensino superior brasileiro ao atuar como assistente de Durval Marcondes, professor titular das disciplinas de Higiene Mental e Psicanálise da ELSP, com papel crucial na institucionalização da Psicanálise no Brasil, sendo um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise em 1945 (DAMACENO, 2014, p. 48).

Virgínia Bicudo atuava como visitadora psiquiátrica, profissionais que faziam a conexão entre escola e família, atravessavam a cidade e suas periferias, tendo como principal função visitar e orientar as famílias de crianças “desajustadas”. Como chefe das visitadoras psiquiátricas da Seção de Higiene Mental Escolar, Virgínia teve seu trabalho citado na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Anteriormente criou um programa na Rádio Excelsior e uma coluna na Folha da Manhã, ambos chamados Nosso Mundo Mental, nesses canais dava orientação a jovens casais, famílias e pais para o reconhecimento e tratamento de suas neuroses. (DAMACENO, 2014.).

A importância dos estudos de Virgínia Bicudo em um contexto social de debates em torno do movimento de eugenia no Brasil e o mito da democracia racial se dá pelo ineditismo e sobretudo pela pertinência ao responder a questões sobre o racismo do ponto de vista da população negra. Entre seus estudos estão o Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (1945), tese publicada na Revista Sociologia (1947) e Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação à cor dos seus colegas (1953), artigo publicado como protocolo de pesquisa do projeto Unesco pela Revista Anhembi.

Seus estudos contrariaram a visão de seu orientador, Donald Pierson70, que afirmava a inexistência de preconceito racial e de consciência racial entre negros baianos. Para Bicudo, na cidade de São Paulo existia preconceito racial, sendo observado por meio da criação de organizações políticas negras autônomas, a exemplo a Frente Negra Brasileira, em resposta ao preconceito de cor, fundamentando assim a hipótese sobre a existência de preconceito de cor no Brasil (DAMACENO, 2014).

Embora sua obra seja pequena, sua importância se deve ao fato que ela faz parte da reflexão da primeira geração de brasileiros, formados

70 Negroes in Brazil: a study of race contact at Bahia (1942). 119

por pesquisadores estrangeiros, que vão pensar sobre relações raciais no Brasil a partir da influência direta da Escola de Chicago. A primeira tese sobre relações raciais no Brasil foi escrita por uma socióloga negra71, que acreditava, a despeito da orientação teórica das Ciências Sociais daquele momento, na inexistência de preconceito racial no Brasil, o que foi tido como evidente somente dez anos depois da publicação de seu trabalho, em outra empreitada da qual fez parte: a publicação do relatório do Projeto Unesco, coordenado, em São Paulo, por Roger Bastide e Florestan Fernandes na década de 1950 (DAMACENO, 2014, p. 60).

A tese de Virgínia Bicudo é pioneira por afirmar a existência de preconceito racial em São Paulo nos anos 1940, mas também porque foi a “primeira cientista social a ouvir, compreender e transformar, em tese, esta denúncia do Movimento Negro Brasileiro”. Contudo, nas principais produções sobre relações raciais no Brasil, especificamente sobre o Projeto Unesco, praticamente não há menção à obra de Bicudo. Tal ausência conduz à questão: quantas “Virginias Bicudos” e “Marias Nascimentos” existem na história da produção intelectual brasileira? Qual o destino de suas produções? São consagradas como a grande maioria dos autores homens e brancos ou relegadas à subalternidade e invisibilidade?

Do mesmo modo, é preciso indagar: qual o lugar da mulher negra na produção teórica-intelectual do Serviço Social seja na formação na graduação, na pesquisa de pós-graduação ou na atuação profissional? Qual o lugar de “Marias Nascimento” e “Virgínias Bicudo” na produção de conhecimento no interior dessa categoria profissional? Elisabete Pinto (2003) considera que no Brasil, as relações de produção são marcadas por um caráter racista e sexista. Nesta sociedade, o negro e a mulher passam por um processo de pseudo-integração, contudo, relegados à margem da participação sócio-política-econômica.

Na história mais recente, podemos exemplificar essa invisibilização do corpo negro no espaço acadêmico e, sobretudo, o apagamento de seu pensamento como referência na construção de conhecimento. No movimento organizado no ano de 2018 por estudantes do curso de Serviço Social72 da PUC-

71 Grifo meu. 72 Esse movimento foi articulado após o XI Seminário Anual de Serviço Social promovido pela Cortez Editora, no mês de maio de 2018: "Questão social, sexismo, racismo e lgbtfobia: Que país é esse?". Seminário realizado no mês em que se comemora o Dia da(o) Assistente Social. 120

SP, conhecido como “Márcia Fica”73, ao denunciarem que após 80 anos do curso nessa instituição, até o presente momento não houve professor(a) negra(o) em seu quadro permanente de docentes74. Esse movimento coloca em discussão que a entrada de estudantes em decorrência das cotas raciais não atingiu de forma conjunta a inserção de professoras (es) negras (os) nos quadros de docência das instituições de ensino no país, e em que pese a se apresentar como essencial e de suma relevância, as cotas reservadas exclusivamente à discência, podem passar a mensagem enganosa “de que agora finalmente os jovens negros e indígenas terão a oportunidade de aprender com os brancos o saber que importa, ou o único saber válido de fato: o saber eurocêntrico” (CARVALHO, 2019).

Em outras palavras, as cotas étnico-raciais sem cotas epistêmicas afirma, pela segunda vez e pelo avesso a ideologia da superioridade do saber eurocêntrico, moderno, o movimento estudantil do curso de Serviço Social da PUC-SP, mostra que é necessária e urgente a descolonização do conhecimento, ou seja, a ruptura de fato com a colonização epistêmica. (CARVALHO, 2019).

Essas contradições são apontadas também pelas profissionais mulheres negras do Serviço Social, ao menos desde a década 1980, conforme demonstra Elisabete Pinto (2003), Questiono então a teoria e a prática do Serviço Social, especialmente do Serviço Social realizado em uma linha de atuação de transformação social, cuja prática se dá em meio a relações sociais geradas por uma estrutura econômico-política comprovadamente racista. Assim, não se justificam a omissão e a neutralidade profissional diante da questão étnico-racial.

73 A nota publicizada pelos estudantes destacou que: “o Curso de Serviço Social da PUC/SP é pioneiro no País, com mais de 80 anos de existência, e em toda sua história nunca houve em seu quadro de docentes efetivos um/uma docente negro/a. Ressaltamos ainda que as orientações da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS, bem como do Conjunto CFESS/CRESS (2016-2018) é direcionada para a imediata inclusão de disciplinas e núcleos de pesquisas que discutam as opressões, e entre elas, o racismo e as determinações étnico-raciais, e neste sentido, a reivindicação das/os alunos/as é legítima e, portanto, reafirmamos #MARCIAFICA”. Disponìvel em: https://exame.abril.com.br/brasil/alunos-da-puc-ocupam-faculdade- por-contratacao-de-professora-negra/ Acesso em 02 ago. 2019. 74 Ainda que a instituição no caso a PUC-SP, em algum momento já tenha realizado a contratação de professoras(es) negras(os) no curso de Serviço Social, o debate principal aqui é em torno do referencial teórico desse profissional em torno da discussão étnico-racial, pois uma professora ainda que negra mas que não estivesse comprometida com os estudos sobre essa questão, não seria o suficiente, pois trata-se do enegrecimento da academia como um todo, não apenas enquanto pertença étnico-racial, mas enquanto produção teórica. 121

Uma vez que o racismo e o preconceito fazem parte das relações de dominação e exploração, é o assistente social - que tem como principal função trabalhar as relações sociais através de uma ação educativa, visando à consciência e à participação - um profissional indispensável para eliminação das situações de discriminação em que vivemos. (PINTO, 2003, p. 28).

Além disso, conforme Iamamoto (2006), a partir da década de 1980 compreendendo a importância de considerar as dinâmicas institucionais e as relações de poder ao se pensar a profissão, portanto,

A prática social seria uma categoria central e, no seu entorno, a dinâmica institucional, as políticas sociais, os movimentos sociais como fatores relacionados ao exercício profissional. Mas, geralmente, ao se falar em prática, referia-se, exclusivamente, à atividade do Assistente Social. Os demais elementos citados eram tidos como condicionantes dessa prática, com certa relação de externalidade em relação a ela. (IAMAMOTO, 2006, p. 61).

Ruby León Díaz (2016) observa que nos anos oitenta, o marxismo surge como opção teórica mais radical para sustentar uma reformulação do Serviço Social brasileiro. Mas desde os anos noventa passa a ocorrer uma “unificação” das diversas correntes críticas dentro da profissão. A autora enfatiza que o movimento de ruptura no Serviço Social provocou uma negação do passado clássico da profissão e, em decorrência, acabou por contribuir com o apagamento da produção acadêmica da área anterior aos anos oitenta. Tal rompimento com todo o passado do Serviço Social teve impacto profundo nos estudos das “questões raciais” (DÍAZ, 2016).

Ora, se o Brasil é conhecidamente um país com maioria da população negra, com movimentos sociais negros e de mulheres negras organizados, sendo essa população majoritariamente atendida nos serviços e políticas sociais, como a categoria enxerga essa questão? Conforme mostrou Elisabete Pinto (2003), após observação no seu campo de estágio (1982-1985),

a maioria dos usuários que acorriam às instituições assistenciais eram negros e favelados. Observei também que o assistente social trabalhava com a população negra sem, contudo, ter conhecimento de sua história, de sua cultura e dos seus problemas, desencadeados pelo racismo camuflado, consequente da falsa democracia racial. Ideologia essa que a classe dominante faz questão de manter, pois potencializa a alienação da população negra, bloqueando a sua conscientização, participação e organização. (PINTO, 2003, p. 58). 122

Entretanto, mesmo após o período reconceituação75 a produção do Serviço Social, em relação a temáticas acerca da questão étnico-racial e sobretudo com caráter interseccional considerando questões de raça, gênero e classe, foram incipientes, principalmente se observarmos a efervescência da década de 1980 e 1990 em relação às intensas pautas de debate dos movimentos sociais, em especial dos Movimentos de Mulheres Negras (conforme capítulo anterior). Para Iamamoto (2006), a década 1980. …herdeira da ditadura militar e de seu projeto de modernização conservadora, a categoria dos assistentes sociais emerge na cena social no processo de transição democrática com um novo perfil profissional e acadêmico. Novo elenco de problemáticas passou a constar da pauta do debate, submetidas a tratamento teórico- metodológicos e prático-político distintos. (IAMAMOTO, 2006, p. 204).

Nesse mesmo sentido, em relação ao movimento de reconceituação, “tal como se expressou em sua tônica dominante na América Latina, representou um marco decisivo no desencadeamento do processo de revisão crítica do Serviço Social no continente.” (IAMAMOTO, 2006, p. 205). Do mesmo modo, observa-se na “primeira aproximação do Serviço Social latino-americano à tradição marxista se impõe como um contraponto necessário à análise do debate brasileiro contemporâneo”. (2006, p. 205).

Sobre esse movimento, Márcia Eurico (2013) destaca que, “pela própria história da profissão e o conservadorismo que marca sua gênese, o debate sobre a questão racial não encontrou terreno fértil para ser incorporado pelo Serviço Social até a década de 1980” (2013, p. 306). Ainda assim, a renovação e a recusa ao conservadorismo causam profundos impactos nas reformulações de ordem teórica e organizativa da profissão, como expressa nas atualizações posteriores dos códigos de ética de 1986 e 1993.

A sociedade brasileira no atual momento histórico impõe modificações profundas em todos os processos da vida material e espiritual. Nas lutas encaminhadas por diversas organizações nesse processo de transformação, um novo projeto de sociedade se esboça, se constrói e se difunde uma nova ideologia. Inserido neste movimento, a categoria de Assistentes Sociais passa a exigir também uma nova ética que reflita uma vontade coletiva, superando a perspectiva

75 O Movimento de Reconceituação é o período compreendido pela aproximação do Serviço Social à teoria marxista, entre o final da década de 1960 à 1980, a formatação de um Serviço Social mais alinhado com a realidade brasileira e a intenção de ruptura com o conservadorismo na profissão. 123

a‐histórica e a‐crítica, onde os valores são tidos como universais e acima dos interesses de classe. (CFAS, 1986).76

Lúcia Barroco (1993) apresenta a concepção ética posta no novo código da profissão, que pressupõe um projeto profissional articulado a uma projeção social capaz de assegurar aos trabalhadores a plena realização e recriação de valores, o que implica a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação. Logo no início da década de 1990 se apresenta a necessidade de revisão do código anterior, considerando a ampliação do acúmulo da categoria profissional sobretudo em relação aos referenciais teórico- metodológicos e ético-políticos, expressos no atual Código de Ética de 1993:

Considerando a posição amplamente assumida pela categoria de que as conquistas políticas expressas no Código de 1986 devem ser preservadas;

Considerando os avanços nos últimos anos ocorridos nos debates e produções sobre a questão ética, bem como o acúmulo de reflexões existentes sobre a matéria;

Considerando a necessidade de criação de novos valores éticos, fundamentados na definição mais abrangente, de compromisso com os usuários, com base na liberdade, democracia, cidadania, justiça e igualdade social (CEP, 1993, p.17).

Embora tenha havido importante avanço no processo de revisão de ruptura com o conservadorismo, como o repúdio em relação a situações de opressão e exploração, nos causa estranheza a não incorporação do conceito “raça”, ficando reduzido apenas à questão sobre “etnia”, como podemos observar, que de acordo com os princípios fundamentais da profissão, expressos em seu código de ética (1993);

Art. XIII - “a opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero;

XI - “Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física”77. (CEP, 1993, p. 24).

76 Ver: http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_1986.pdf Acesso em 02 ago. 2019. 77 Disponível em http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf. Acesso em 02 ago. 2019 124

A não contemplação do termo “raça”78 em um importante documento norteador da profissão não significa a opção de usar essa ou aquela palavra, haja vista que “a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade”, da mesma maneira, “através de suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana”. (KILOMBA, 2019, p.14).

Sem o entendimento das categorias raça e racismo, a sociedade contemporânea não pode ser compreendida, o racismo foi e continua pilar da nacionalidade brasileira (ALMEIDA, 2018). Desse modo, “em um mundo em que raça define a vida e a morte, não tomá-la como elemento de análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso com a ciência e a resolução das grandes mazelas do mundo” (ALMEIDA, 2018, p.44).

Para o autor, “as desigualdades salarial ou relativa às condições de trabalho com base na raça ou no gênero são tidas como efeitos de comportamentos irracionais de alguns agentes econômicos”. Revelando assim, uma concepção individualista do racismo. “O uso da palavra preconceito ao invés do racismo serve para reforçar a visão psicologizante e individualista do fenômeno.” (ALMEIDA, 2018, p.127).

Considerando o exposto, a publicação “Subsídios para o debate sobre a questão Étnico-Racial79 na formação em Serviço Social” (ABEPSS, 2018, p.15), aponta: A apropriação das categorias raça e etnia para as análises e reflexões nas ciências sociais é fundamental, sobretudo, no Serviço Social, que atua no âmbito das expressões da questão social, que, por sua vez, atingem prioritariamente, na realidade brasileira, as populações negras e indígenas.

Além disso, de acordo com COSTA (2017), O Serviço Social, por sua vez, com sua perspectiva de defesa de direitos do “cidadão”, necessita estar constantemente atento a este aspecto, com o risco de estar referendando, em seus processos de

78 Raça como definição como apontada em nota anterior. 79 Grifo meu. 125

trabalho, o engodo da noção legalista. Sob o viés da “defesa dos direitos”, numa perspectiva legalista formal, massificam-se, portanto, identidades, desconsidera-se a realidade ainda díspar como a vivenciada pela população negra e com mais afinco pelas mulheres negras. (COSTA, 2017, p. 239).

A compreensão acerca da classe é de suma importância, mas é necessário o entendimento de que raça, assim como gênero, é o modo como a classe vive o cotidiano. Para Davis (1997)80, é preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe”. Na busca de uma perspectiva contra-hegemônica da categoria profissional faz-se necessário à apropriação do termo raça, pois etnia não é suficiente para dar visibilidade à questão estrutural que é o racismo, além de não possuir conteúdo crítico na luta contra o pacto da democracia racial que naturaliza os papéis raciais. (Peres, Penha, 2016, p. 11).

Em outra perspectiva, Ribeiro (2004), destaca que, a história do Serviço Social no Brasil tem demonstrado uma abordagem conservadora das relações raciais, refletida nas formulações teóricas, que até recentemente, desconsiderava o racismo enquanto elemento estruturante desse processo. Cabe pontuar que mesmo no processo de reconceituação do Serviço Social, onde se destaca a abordagem dialética, as relações raciais são invisibilizadas no bojo das análises de classe. (2004, p. 151).

Concordamos com a análise da autora, e para além da abordagem conservadora no que compete as questões raciais, acreditamos que as questão de gênero, sobretudo de forma interseccional, considerando abordagens como gênero, raça e classe, por exemplo, podem ser um campo privilegiado de reformulação teórica do Serviço Social.

80 Conferência realizada no dia 13 de dezembro de 1997, em São Luís (MA), na Iª Jornada Cultural Lélia Gonzalez, promovida pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão e pelo Grupo de Mulheres Negras Mãe Andreza. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na- construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/. . 126

3.3. A pauta das mulheres negras na Serviço Social & Sociedade

A pesquisa se debruçou na análise das temáticas e conteúdos preliminares dos artigos publicados na revista Serviço Social & Sociedade do ano 1988 a 2016, destacando aquelas edições publicadas nos anos significativos onde a temática em torno da questão étnico-racial e de gênero, em especial da mulher egra, tiveram protagonismo na cena política, cultural e social no Brasil. Nesse caso, interessa conhecer como a categoria introduziu o debate em relação á “Mulher Negra” neste espaço de socialização de conhecimento.

A revista Serviço Social & Sociedade é o principal periódico a que essa categoria profissional tem acesso nas mais diversas regiões do país e de forma ininterrupta. A escolha desse meio de publicação, ocorreu devido ao protagonismo que esse periódico representa, colaborando com o desenvolvimento acadêmico e técnico-científico do Serviço Social, desenvolvendo espaço de mediação entre a produção científica da profissão e os diversos momentos conjunturais que a sociedade brasileira atravessou nesse período.

A Revista Serviço Social & Sociedade surge numa conjuntura de profunda efervescência da sociedade brasileira (1979), quando já tornava madura a luta para a derrubada da ditadura militar implantada no país em 1964. Conjuntura de ampliação do movimento sindical e popular independentes; de criação do Partido dos Trabalhadores; de grande expressão da organização dos assistentes sociais, manifesta pela atuação das organizações locais, estaduais e nacionais e pelas alianças com os trabalhadores e com o movimento popular, cuja maior expressão foi a realização do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, “Congresso da Virada”, realizado em São Paulo, e a XXI Convenção Nacional da então Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social (ABESS), realizada em Natal; pelo rompimento com o conservadorismo do Serviço Social e pela consolidação de um projeto profissional de ruptura configurado nas três dimensões da profissão: acadêmica, organizativa e de intervenção da prática profissional na sociedade. (SILVA, 2009, p. 2).

Além disso, o periódico possui determinada abrangência que facilita o diálogo com os diversos setores da categoria, como: estudantes da graduação e pós-graduação, profissionais (atuantes ou não), docentes, pesquisadora(e)s, inclusive com outras áreas de conhecimento, mas que possuem alguma interlocução com o Serviço Social. 127

Optou-se pela década de 1980, especificamente o ano de 1988, que a marca a histórica mobilização em torno do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, Centenário da (Falsa) Abolição da Escravatura, Movimento de Redemocratização - Constituinte, posteriormente, os impactos na produção pós III Conferência Mundial de Combate ao Racismo a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas de 2001, aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, de 201081, finalizando em 2015 com a Marcha das Mulheres Negras, em Brasília, todas articulações importantes para compreender se impactaram na produção do Serviço Social por meio das publicações na referida revista.

Ressalta-se que na década de 80 processa-se na profissão uma importante revisão da formação profissional, com a adoção de novo currículo que opera uma inflexão no perfil de profissional tecnocrata, cuja intervenção se fazia através de métodos de caso individual, grupos e comunidade, com o que se desencadeia um processo de construção de uma cultura crítica, tendo na pesquisa82, o seu fundamento, e na produção do conhecimento inovador e contribuição com outras áreas do conhecimento, a sua expressão. (GUERRA, 2011, p. 133).

Tomou-se como processo metodológico a análise inicial da edição número 26, do ano 1988 ao número 127 de 201683, totalizando X edição da revista, em um período de 28 anos. As temáticas dos artigos foram examinadas com o oobjetivo de identificar questões relativas às Mulheres Negras, sobretudo de modo interseccional, contemplando as questões de gênero, raça e classe social em consonância com o debate nacional em torno das pautas do Movimento de Mulheres Negras brasileiro.

O ano é 1988 integra a década que ficou conhecida como a “década perdida”, mas apesar disso, no final da década de 1980 o país viveu a esperança, de um novo momento político, após a promulgação da Constituição Federal (1988), marcando o fim “dos anos de chumbo”, que comandaram o país por mais de duas décadas após o golpe militar de 1964. No cenário político, os movimentos

81 Lei Nº 12.288, de 20 DE Julho de 2010. 82 É no currículo de 1982 que a pesquisa passa ser disciplina obrigatória na formação profissional. (GUERRA, 2011, p. 133). 83 Embora a referência seja o ano de 2015 como marco da realização da Marcha das Mulheres Negras de Brasília (MMN - 2015), a análise compreende o ano de 2016 considerando o tempo para publicação posterior à mobilização. 128

sociais em plena efervescência, articulando-se para incidirem suas pautas no texto da constituinte. Os movimentos negros tinham a preocupação que a Constituição não fosse o segundo parágrafo da “Lei Áurea”, a lei mais curta do ordenamento jurídico brasileiro, revogando a escravidão e ponto final. Esse momento político foi fundamental para os movimentos feministas, indígenas e movimentos negros, provávelmente o maior período de articulação a nível nacional, sem precedentes de uma interlocução tão forte – 9 milhões de pessoas passaram pelo Congresso Nacional durante 1987 e 1988, ou seja, foi um momento de efervescência bastante grande (NÉRIS, 2018).

Devido à possibilidade de incidência desses movimentos na redação da Constituinte, por meio de audiências públicas nas subcomissões específicas. Na subcomissão para debate sobre a questão racial, Benedita da Silva84 (PT-RJ), na ocasião deputada federal pelo Rio de Janeiro, teve papel decisivo na condução das reivindicações, desse setor que ficou conhecido como “bancada negra”85, composta por 04 deputado(a)s negro(a)s. Marcaram presença também nesse processo, outras mulheres negras que compunham a base de outras organizações importantes e dos Movimentos Negros como: Lélia Gonzalez, Helena Teodoro, Lígia Melo, Maria das Graças Santos, dentre outras.

Em matéria sobre o “Centenário da Abolição: A causa negra na constituinte”, o Jornal Magazine de 14 de maio de 1988, ilustrava a luta travada entre deputada(o)s da bancada negra e outros deputados, inclusive também negros, que se opunham a demandas apresentadas por esse setor, pois acreditavam que “o problema era a discriminação social, muito mais que a racial. Racismo é uma questão flutuante, de acordo com a circunstância e a condição social. Um negro entra em qualquer lugar e faz o que quer”, de acordo com o deputado negro Eraldo Trindade (PFL/AP).

Nessa mesma reportagem, a deputada Benedita da Silva (PT- RJ), observa ser "muito difícil conseguir esses pequenos avanços" sobre a emenda que definiria a prática do racismo como um crime inafiançável, conhecida como

84 Benedita da Silva - Assistente Social, Auxiliar de Enfermagem, Professora, Líder Comunitária, Evangélica, participante dos movimentos negros, de favelas e mulheres do RJ. 85 Deputados: Carlos Alberto Caó, Paulo Paim, Edmilson Valentim e Benedita da Silva. 129

“Lei CAÒ”. Nas palavras da deputada:, "Não posso dizer que houve grandes conquistas. O que há agora são elementos novos, já que nas constituições passadas não havia nada''.

Em um ano tão crucial para esses movimentos sociais, em especial o movimento de mulheres que buscava conquista de direitos em relação ao campo de gênero e das relações étnico-raciais, a revista Serviço Social & Sociedade, na edição número 26 abre as publicações do ano de 1988 debatendo as seguintes temáticas: Dominação e resistência operária; Participação e gestão popular da cidade; A cidadania dos trabalhadores informais: uma questão de política pública; Participación mitos y alternativas; A mediação na prática profissional do assistente social; Apontamentos para análise do PNRA-NR; A questão do assistente social enquanto intervenção; Política de Estado e prática social; Uma nova legitimidade para o serviço social de pesquisa; Homenagem.

Nesses artigos, mesmo em assuntos que poderiam envolver a questão racial, como a resistência operária, participação popular, trabalho informal e todos em relação a prática profissional, não houve menção sobre as temáticas étnico- raciais ou de gênero.

Seguindo no mesmo ano, cabe frisar que a Constituição “Cidadã” foi aprovada em 22 de Setembro de 1988, promulgada um mês depois. Nesse mesmo período foi publicada a edição número 27 de Outubro de 1988, abordando os seguintes temas: Divergências político-ideológicas no processo de profissionalização do serviço social nos Estados Unidos (Maria Durvalina Fernandes Bastos); Agricultura e expansão capitalista (Uma reflexão sobre os planos de governo) (Anita Aline A. Costa); A questão do bem-estar do menor no contexto da política social brasileira (Ensaio de interpretação) (Poyara A. P. Pereira); Os juristas e o aconselhamento de ajuda (José Alberto Barbosa); Assistência técnica e supervisão de programas em serviço social (Vera Maria Ribeiro Nogueira); Dependência de empregada (O espaço da exclusão) (Leda Teles); PLIMEC: em busca de uma interpretação (Maria Lucia Rodrigues e Sandra Maria Lapeiz); Considerações sobre um programa de implantação e assistência à AIDS (Maria Helena Yugulis); O “Programa do Bom Menino” ou de como preparar mão de obra barata para o capital (Pedrinho A. Guareshi). 130

Sobre o conteúdo do artigo “Dependência de empregada (O espaço da exclusão)”, Leda Teles, escreve:

Nessa perspectiva, pode-se dizer que se gestando como forma/espaço de segregação dos serviçais domésticos, no próprio seio das relações senhor/escravo (casa grande e senzala), a dependência de empregada torna-se traço característico das construções de “casas de famílias”, como apêndice necessário que reproduz, a vigência do trabalho livre e sob novas determinações, o espaço da senzala. (TELES, 1988, p. 102).

Em relação à mulher negra destaca que “as acomodações das mucamas, das negras86 da cozinha e dos moleques de recados, se resumiram no quartinho da empregada doméstica, última remanescente ou testemunha social de nosso regime escravocrata (...), supõe que em relação a esse modelo de arquitetura esse cômodo representa “o seu quartinho abrindo porta para o terraço do tanque de lavagens, ainda é a senzala” (TELES, 1988, p.108).

Na última edição do ano, em Dezembro de 1988, o número 28, ano IX, traz as seguintes temáticas: Estado e políticas sociais no capitalismo: uma abordagem marxista (Eduardo Mourão Vasconcelos); Participação e cooptação (Rita Cássia Pires); Ação Coletiva, atores sociais e cultura política (Pedro Jacobi); Associações e mutirões comunitários (Maria da Glória Gohn); Recursos públicos, movimentos comunitários e democracia (José Augusto Drummond); Relato de uma prática no Bairro da Vila Embratel (S. Luís do Maranhão) (Antonia Eliane Santos Costa); Serviço social em instituição: algumas reflexões a partir da prática (Maria Manuela Leitão Fernandes); A produção acadêmica do assistente social (Ursula S. Karsh); A crítica romântica da civilização capitalista e sua relação com a cultura católica (Michael Löwy).

Nesta edição não houve referência alguma às demandas das mulheres negras. Contudo, na publicação “A produção acadêmica do assistente social”, de Ursula S. Karsh, chama a atenção a seguinte frase:

Um dos poucos profissionais que , por causa de sua prática, tem a experiência institucional de um lado, e a vivência com o povo, por outro, de antemão, é um profissional privilegiado para a atividade de investigação. “Não se pode pesquisar o que se desconhece, pelo

86 Grifo meu. 131

contrário, é uma exigência da investigação social que se investigue o que se sabe, o que se conhece e se tem estudado” (Urrutia, 1985). (KARSH, 1988, p.122).

É preciso investigar o que se sabe. Desse modo, pode-se indagar o que a categoria conhecia ou conhece sobre as mulheres negras? Que “se investigue o que se sabe”, mas o que se sabe?

O jornal Nzinga, do coletivo de mulheres negras do Rio de Janeiro, na edição n. 5, em 1989, em sua avaliação do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988), na seção O que as mulheres disseram do Encontro, nos aponta que:

As várias tendências do Movimento de Mulheres Negras aparecem no Encontro. Agora temos que nos compreender como uma força política capaz de transformar esta sociedade sexista, racista e classista. Nós Mulheres Negras somos fundamentais nesse processo. (BELLO, 1989, p.13).

No artigo “Questão Racial e Serviço Social: um olhar sobre a produção teórica antes e depois de Durban”, de Marques Júnior (2013), faz a revisão da produção dos Congressos Brasileiros de Serviço Social (CBAS) a partir de 1989, período em que se registram os primeiros trabalhos sobre a temática étnico- racial87, e aponta que a conjuntura expressiva daquele ano contribuiu para a inserção desse debate na ordem do dia, devido àenorme mobilização no Brasil, em torno da Constituinte. A ascensão do movimento negro na sociedade brasileira era de tal modo que as assistentes sociais que introduziram essa discussão na produção do CBAS, estavam de algum modo relacionadas com a militância no movimento negro (MARQUES JUNIOR, 2013). Destacando que para entender a exploração de classe, era necessário compreender a opressão racial e outras formas de tirania que atravessam a questão da classe.

Para o autor, a questão racial já permeava o fazer profissional desde os seus primórdios88, mas foi em 1989 que ela passou a ser reivindicada por algumas

87 No VI CBAS foram apresentadas as teses: “A questão racial enquanto elemento de uma prática transformadora” (Maria José Pereira, Matilde Ribeiro, Suelma Inês Alves de Deus); “O Serviço Social e os bastidores do racismo” (Magali da Silva Almeida, Fátima Cristina Rangel Sant’Anna). 88 Nota do autor: Em seu inquérito social Maria Isolina uma das pioneiras do Serviço Social, já utilizava o dado cor na sua descrição do “menor infrator”, donde se conclui que a profissão fazia uma avaliação de seus casos também, baseada na categoria “raça”, apenas esse não era um conceito levado para a discussão profissional enquanto elemento de sua prática. 132

assistentes sociais como uma categoria de análise. Contudo, a recente incorporação dessa categoria e análise no CBAS não impactou na produção da revista Serviço Social & Sociedade, ao menos nesse período.

Nos anos seguintes, do mesmo modo, não houve publicações com a temática da mulher negra ou que considerasse a intersecção entre classe, gênero e raça. Nesse interím, destaca-se a edição número 32, ano XI, de maio de 1990 que na capa traz a imagem de uma mulher negra com um tecido envolto a sua cabeça. Entretanto, a revista não apresentou artigos sobre tal questão, as publicações debateram: O serviço social e o setor informal; Formação profissional e currículo de serviço social: referências para debate; O drama do cotidiano e a teia da história - direito, moral e ética do trabalho;Sobre o conceito de sociedade civil, Profesiones femininas: la reprodución de la desigualdad; Comunidade: a volta do mito e seus significados; Grupo operativo em instituição: análise de uma experiência; Documento: Lei Orgânica da Assistência Social.

Já a edição de número 33 do corrente ano, também nos chamou atenção o artigo: “Administração da produção doméstica e reprodução da força de trabalho as famílias inseridas no setor informal de Natal-RN89, nesta pesquisa dados sobre a inserção de famílias no mercado de trabalho, como faixa etária, ocupação, escolaridade, renda, contudo, sem mencionar a pertença étnica-racial das famílias pesquisadas. A mulher contribui para a produção social, seja participando de atividade não-capitalistas, seja dedicando-se apenas à produção doméstica

[...] Por analogia, poder-se ia inferir que, para as famílias de baixa renda engajadas no setor informal, o trabalho extradoméstico da mulher, tal como na classe proletária, seria uma necessidade mais urgente de reprodução da força de trabalho familiar. (COSTA; CAVALCANTI, 1990, p. 72- 73).

Em 1991, ano que marca o II Encontro Nacional de Mulheres Negras (Salvador), nas edições n. 35, 36 e 37, ano XII de Agosto de 1991, particularmente na edição n. 36, a revista discutia as seguintes temáticas: Seminário Nacional de Desenvolvimento de Comunidade - Síntese; As relações Sociedade Civil e Estado

89 Em nota das autoras: O presente trabalho é fruto de uma dissertação de mestrado e de uma pesquisa sobre “O Setor Informal na Grande Natal: Estudo Diagnóstico.” (COSTA, CAVALCANTI, 1990, p.67). 133

no anos 90: perspectivas sobre a participação; Democracia, cultura e desenvolvimento de comunidade; A menos institucionalizada: aspecto da dupla opressão; Identidade e mulher no Serviço Social; O espaço público sócio-político da educação em Saúde; Liberalismo; neoliberalismo e políticas sociais; Uma representação conceitual da pobreza; Jackson de Figueiredo e a restauração católica; Movimentos Sociais: unidade na diversidade.

Aqui as temáticas “A menor institucionalizada” e “Identidade da Mulher no Serviço Social” chamam a atenção, por tratarem de demandas específicas de gênero, porém ainda que interseccionadas a duplicidade de opressões acerca de classe e idade em relação às meninas pobres institucionalizadas, não houve menção sobre a pertença étnico-racial dessas meninas, já que a priori o que se pretendeu foi “aprofundar alguns aspectos referente à questão da menor90, institucionalizada, considerando que esta vivencia uma situação de dupla opressão: a) com menor; b) como mulher” (SILVEIRA, ALMEIDA, 1991, p. 33).

No ano de 199, na edição número: n. 38 embora nessa edição houvesse um homem negro, trabalhador, sem camisa, empurrando um carrinho, não houve publicações que discutissem temáticas relacionadas as questões étnicas-raciais, de mulheres negras, tampouco das articulações desse movimento social.

Posteriormente a revista número 46 (1994), abordou questões que envolveram a temática de gênero, como; “A mulher migrante nordestina e a organização do cotidiano na dinâmica do seu grupo familiar” (CLEMENTES, 1994); “Das famílias “desestruturadas” às famílias “recombinadas”: transição, intimidade e feminilidade” (LOPES, 1994). Porém, ainda que tais artigos tenham abordado questões importantes da questão de gênero e classe, estes não fizerem qualquer menção a questão étnico-racial.

Nesta mesma edição, no artigo “Família: a crise de um modelo hegemônico” (GUIMARÃES; CALDERÓN, 1994), não é utilizada qualquer

90 O termo “menor” é empregado neste estudo por se tratar de uma categoria conceitual amplamente utilizada no discurso institucional e na sociedade, em geral, para designar crianças e adolescentes carentes, abandonados e/ou de conduta antissocial. Trata-se, no entanto, de expressão discriminatória, confirmativa do estigma que diferencia e marginaliza e que reserva para este “menor” um espaço limitado na sociedade, reproduzindo-se assim, uma identidade social historicamente determinada. (nota original das autoras). 134

categoria de identificação de pertença étnica-racial dessas famílias, ao se referir a população negra, expõe:

No Brasil colonial, de forma paralela coexistem as famílias dos escravos e as de seus senhores. E um aspecto curioso quanto às famílias dos escravos é que, devido ao tráfico, chegavam ao Brasil totalmente fragmentadas. Depois, dificilmente os escravos internalizavam as normas sexuais e familiares de seus senhores (Slenos, 1993).

[... ] se por um lado, o peso da escravidão e o desequilíbrio numérico entre os sexos, contribuíram para que os cativos dificilmente constituíssem famílias estáveis, por outro lado, estes mesmos fatores não destruíram a família negra como instituição”. (GUIMARÃES; CALDERÓN, 1994, p. 23).

A partir da edição do número 50, ano XVI, ano 1996, a revista Serviço Social & Sociedade passou a ter dossiês temáticos. Nesta edição, por exemplo, a discussão era “O Serviço Social no século XXI”. E passada a década de 1990 não se pode encontrar discussões que pautavam demandas referentes às mulheres negras brasileiras.

A década de 1990 a 1999, última década do século XX, é caracterizado pela opção do governo brasileiro pelo projeto neoliberal em desenvolvimento na Europa e em alguns países da América Latina, apresentando uma nova conjuntura, marcada pela abertura econômica do país para inserção na economia globalizada; hegemonia do capital financeiro em detrimento do capital produtivo; reforma do Estado e elevação do desemprego estrutural. (SILVA, 2009, p. 4).

A década de 1990 também marcou um padrão universalizante das políticas sociais, o avanço da consolidação da Constituição Federal de 1988 e a organização do modelo de Seguridade Social brasileira, porém significou na mesma medida, a “focalização da proteção social nos pobres e nos extremamente pobres, inaugurando um padrão minimalista que demanda profundas reformas nas políticas sociais com perdas significativas de direitos anteriormente conquistados.” (SILVA, 2009), mas sabe-se que a população negra e pobre é o setor da sociedade mais prejudicado com modelos econômicos neoliberais e retirados de direitos básicos. 135

[...] após a queda do muro de Berlim91, as Conferências Mundiais convocadas pelas Nações Unidas tornaram-se espaços importantes no processo de reorganização do mundo e vêm se constituindo em fóruns de elaboração de diretrizes para as políticas públicas [...] ao longo dos anos 1990, as várias Conferências deram visibilidade a temas essenciais, tais como direitos humanos, meio ambiente, direitos reprodutivos, gênero e pobreza, entre outros. Por isso, a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas foi motivo de grandes expectativas e esperanças para o Movimento Negro do Brasil e para o conjunto da população negra. (CARNEIRO, 2018, p. 186).

Por outro lado, a produção da categoria no CBAS, também foi tímida nessa questão. Na década de 1990, no CBAS de 1992 não houve publicação sobre a temática étnico-racial em um universo de 90 teses92. Já no CBAS de 1995, foram 205 teses apresentadas. Destas, 03 teses tinham como temática a questão étnico-racial, sendo que a tese 139 “Serviço Social Gênero e Etnicidade: Tecendo as Primeiras Aproximações”, de Marlise Vinagre Silva, se expõs “a dificuldade de engajamento teórico do serviço social junto às questões de gênero e etnia, mas também relata como a primeira vem ganhando espaço em relação a segunda” MARQUES JUNIOR, 2013).

A publicação de 1997 trouxe entre seus artigos, na edição número 55, o estudo: “Mulher: trabalha mais, ganha menos, tem mais fatias irrisórias de poder” (AMMANN, 1997) A pesquisa refere-se a um detalhado estudo sobre a condição de desigualdade econômica da mulher na américa-latina em relação ao homem, contudo, sem destacar seja a origem negra ou indígena dessas mulheres ou mesmo a desigualdade entre as próprias mulheres.

Posteriormente, a pesquisa “Famílias chefiadas por mulheres: relevância para uma política social dirigida” (CARVALHO, 1998), conclui que as políticas, “devem ter um caráter não só de gênero, mas acima de tudo devem ser concebidas dentro de uma especificidade regional e, dessa forma, atender as exigência de idade, qualificação profissional, perfil demográfico da população

91 O “Muro de Berlim” (cisão entre Alemanha Oriental - Socialista e Alemanha Ocidental - Capitalista) começou a ser derrubado na noite de 9 de Novembro de 1989 depois de 28 anos de existência. 92 O autor destaca que, no eixo: Serviço Social e o Movimento dos Trabalhadores na Sociedade Civil: 1 teses - As escolas de samba enquanto Organizações Populares - Análise do seu potencial político-ideológico, contudo, sem relação as origens ou representatividade desse espaço com a população negra. 136

feminina e infantil e estarem atentas as demandas e possibilidades do mercado de trabalho local”. (CARVALHO, 1998, p. 94). O artigo “Adoção: da maternidade à maternagem” (SANTOS, 1998), aborda o mito do amor materno e adoção, assim como artigo anterior sem menção a questões étnico-raciais, embora o cerne da discussão seja a questão de gênero.

Com a entrada do século XXI, os anos 2000 apresentam-se com o projeto neoliberal instalado no país, certa redução da pobreza e redução de desigualdades muito em razão da estabilização da moeda, e política de reajustes do salário mínimo nacional acima da inflação, programas de transferência de renda (SILVA, 2009). Sobre esse período a autora Maria Ozanira Silva e Silva, sintetiza da seguinte forma: Nesse momento da conjuntura brasileira, as políticas sociais já consolidaram sua gestão descentralizada nos municípios e o padrão da focalização na pobreza e na extrema pobreza, ressaltando-se a prevalência dos programas de transferência de renda, com especial destaque ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), instituído em 1996 por força da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e o Bolsa Família, criado pelo governo federal em 2003 com alcance de mais de 11 milhões de famílias desde 2006. Nesse campo, merece ainda destaque o avanço da Política de Assistência Social com uma nova Política Nacional desde 2004 e com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a partir de 2005. Esses são os campos privilegiados da prática do Serviço Social nesse início de século e é para atender aos desafios postos que o Projeto Profissional precisa ser constantemente realimentado e redimensionado no seu conteúdo teórico-metodológico para dar conta dos desafios que seu compromisso, já histórico, de mudança e de apoio às demandas das classes sociais subalternizadas ganhe força e desenvolva respostas adequadas nessa conjuntura. (SILVA, 2009, p. 5).

Para os Movimentos de Mulheres Negras, além dessas novas configurações políticas internas, a virada do século significou avanços profundos em relação às articulações nos níveis nacional e internacional.

A III Conferência reconhece a problemática específica das mulheres afrodescentes e as múltiplas formas de discriminação que enfrentam. O parágrafo 9 do Plano de Ação pede aos Estados que “reforcem medidas e políticas a favor das mulheres e jovens afrodescentes, tendo presentes que o racismo os afeta mais profundamente, 137

colocando-os em situação de maior marginalização e desvantagens”. (CARNEIRO, 2018, p. 193)

Os anos 2000 a 2010 foram um marco para as primeiras publicações da revista Serviço Social & Sociedade em relação às questões étnico-raciais. Segundo Marques Júnior (2013), em relação à produção teórica do Serviço Social pós-Conferência de Durban (2001), a publicação “As abordagens étnico-raciais no Serviço Social”, de Matilde Ribeiro em 2004, inaugura a temática no periódico. A autora apresenta uma reflexão sobre a inserção das questões étnico-raciais na área do Serviço Social, com base na análise da produção dos assistentes sociais apresentada nos CBAS, a partir de 1989, aborda também o papel dos movimentos sociais, em particular os movimentos negros e de mulheres negras, e sua participação na elaboração de políticas públicas.

Os movimentos negros, de mulheres negras e os feministas têm sido frequentes fontes de produção crítica de nossa realidade social do ponto de vista das desigualdades sociais, raciais e de gênero, além de constituírem espaços fundamentais na proposição de políticas públicas de promoção da igualdade racial e dos direitos das mulheres mais frequentemente (RIBEIRO, 2004, p. 149).

O texto é apresentado em três sessões “As necessidades de revisões críticas do Serviço Social”; “Os focos de elaboração da categoria sobre as questões étnico-raciais” e “Promoção da igualdade racial como componente das políticas públicas” traz uma contextualização sobre indicadores sociais e a realidade da população negra, identificando como público principal de políticas sociais como por exemplo, na Política de Assistência Social, além do levantamento da produção 0do CBAS sobre trabalhos apresentados que abordaram questões étnicos-raciais, apresenta relatos de profissionais que participaram desse processo. E nos coloca a seguinte reflexão.

A partir dessas e outras formulações é possível visualizar que a coletivização dessas reflexões não podem e não devem ser objeto de análise apenas das assistentes sociais negras e/ou vinculadas ao movimento negro, mas da categoria como um todo, como um área investigativa e de conhecimento (RIBEIRO, 2004, p. 159).

Logo em seguida no ano de 2005, no número 81 a revista traz o artigo: “A questão racial na Assistência Social: um debate emergente” de Sarita Amaro, a autora situa as formas como o racismo se manifesta no Brasil, faz uma análise sobre as diversas políticas de ação afirmativas adotadas pelo governo nas esferas 138

federal, estadual e municipal e como a política de Assistência Social tem se furtado desse debate. Para uma política que destaca a equidade como um princípio de sua ação, não considerar a questão étnico-racial, seria no mínimo contraditório; Diante dessa nova conjuntura institucional, nos intriga observar que na política de assistência social, em que vulnerabilidade social, pobreza e empobrecimento são matéria central, a questão racial não venha recebendo significativa atenção. (AMARO, 2005, p. 62).

A Revista número 86, de 2006, traz em um de seus artigos o tema: “Gênero, políticas públicas e centralidade na família” (CARLOTO, 2006), a autora introduz a pesquisa da seguinte forma: “[...] É importante esclarecer que estamos nos referindo não só as ações dirigidas diretamente às mulheres, mas também à inserção de ações e diretrizes no âmbito das políticas amplas ou estratégicas que visam alterar a lógica das desigualdades, contemplando as dimensões de classe, gênero e raça/etnia93.” (CARLOTO, 2006, p.140).

Posteriormente, na edição número 99, de 2009, a revista traz a publicação “A questão étnico-racial no processo de formação em Serviço Social”, de Roseli da Fonseca Rocha. Neste artigo a autora analisa “a inserção da temática étnico-racial no processo de formação em Serviço Social e sua implicação para a intervenção profissional com a consolidação do projeto ético-político”. Também aponta que, “embora a discriminação racial seja histórica no Brasil, e o Serviço Social e considere um fenômeno a ser combatido. Essa discussão não tem tido muita relevância junto à categoria profissional, bem como no processo de formação”.

Outro importante apontamento refere-se a “dificuldade por parte desses profissionais em perguntar a cor/raça à população atendida, bem como por parte do usuário que, além da dificuldade de se autodeclarar, desconhece a importância e finalidade dessa informação”, ainda que este artigo tenha sido publicado a exatamente uma década atrás, esta problemática ainda é contraditoriamente atual.

Se considerarmos que a revista Serviço Social & Sociedade é publicada há quase trinta anos, e com grande aceitação por parte da categoria profissional, de fato, sob o ponto de vista quantitativo, o número de publicações relativas a temática étnico-racial é inexpressivo. (ROCHA, 2009, p. 554).

93 Grifo meu. 139

Ao final dessa década, em 2010, mesmo com aprovação de um marco legal importante como o Estatuto da Igualdade Racial, a revista não abordou essa temática em suas edições nesse período, diferentemente de outras legislações como no período de aprovação do Estatuto do Idoso (2003), Sistema Único de Assistência Social (SUAS/2005). No ano de 2003, ano da aprovação do Estatuto do Idoso, a edição especial número 75 tinha como tema: “Velhice e Envelhecimento”, contando com 15 artigos com essa temática. Nenhum deles abordou a questão étnico-racial ou de gênero na velhice.

Do mesmo modo, em 2004 a revista abordou a temática Política de Assistência Social, na edição número 80, bem como em 2006 a edição número 87 tratou da temática SUAS e SUS. Outra importante legislação fruto da histórica mobilização dos movimentos negros e de mulheres negras, a lei de cotas94 nas universidades federais foi aprovada em 2012, entretanto, assim como não houve produção acerca do Estatuto da Igualdade Racial a Lei de Cotas também não foi tema das publicações nesse período.

No ano de 2010, foram publicados artigos em relação a questões de gênero como: “Com açúcar e sem carinho: a trajetória da vida amorosa das mulheres das classes sociais mais baixas de Aracaju/SE”, nesta publicação a autora aponta a necessidade de “articulação entre as políticas setoriais, a formulação e a implementação de serviços sociais voltados para orientação, apoio e proteção de mulheres vitimizadas pelas diversas expressões da violência”. (TAVARES, 2010, p.144). Ainda que o artigo faça a abordagem interseccionando gênero e classe social, todavia não houve menção a questão étnica-racial deste segmento.

A edição número 102, do mesmo ano, trouxe o artigo “Morte materna: expressão da “questão social”, que resultou de “estudo acerca dos determinantes sociais, econômicos e culturais da morte materna, realizado no período de julho de 2007 a dezembro de 2008, [...]. O resultado aponta para a relação da morte materna com as condições materiais de existência, resultantes de múltiplos

94 Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. 140

fatores, entre os quais estão a falta de acesso ao SUS, o misticismo, a prática do aborto e o isolamento social”. (CARDOSO; SOUZA; GUIMARÃES, 2010, p.44).

O estudo traça o perfil de quinze mulheres que se encontravam no período gravídico-puerperal e que, nos meses de julho de 2007 a dezembro de 2008, foram atendidas pelos profissionais de saúde na unidade em que foi realizada a pesquisa, com base nos seguintes indicadores:

● Sociais: etnia95, idade, estado civil, número de filhos, escolaridade, história de prostituição, uso de drogas, número de abortos anteriores; ● Econômicos: inserção no trabalho, renda familiar, local de residência, rede de apoio, origem de classe; ● Indicadores culturais: tipo de família, história de violência intrafamiliar, contato com o mundo subterrâneo (prostituição, narcotráfico), vivência nas ruas, rede de apoio. (CARDOSO; SOUZA; GUIMARÃES, 2010, p.54).

Diante dos dados analisados, nesta pesquisa “conclui-se que tanto os casos aqui analisados quanto aqueles presentes nas estatísticas oficiais apontam que no Brasil a morte materna se relaciona à etnia, à classe social e à estrutura da rede de proteção social”.96 Portanto, nesta obra, é possível identificar a intersecção étnica-racial, de gênero e classe social, bem como suas interfaces na realidade dessas mulheres.

Posteriormente, a publicação “Entre muros e redes: lugar de mulheres em famílias pobres”, da edição número 103, ainda de 2010, discorre sobre “em que medida a desigualdade de gênero pode incidir sobre a condição de pobreza e as formas de proteção das famílias?” Além da reflexão sobre “qual o lugar da mulher nas famílias pobres”. (AZEREDO, 2010, p.576). A autora corrobora com a ideia de que apesar “dos avanços obtidos em termos de igualdade jurídica para mulheres e homens, no plano social e político verifica-se que ainda prevalecem as desigualdades de oportunidade”. (AZEREDO, 2010, p.580).

95 Grifo meu. 96Grifo meu. 141

Todavia, não se pode identificar na análise a intersecção entre gênero, étnica-racial e classe social, embora a única menção sobre a questão racial na seguinte citação:

O fato é que em geral, ao tomar como referência a renda per capita, os dados quantitativos encobrem evidências qualitativas, que por sua vez não capturam variáveis importantes do ponto de vista da multidimensionalidade da pobreza e do gênero. Nesse sentido, Costa considera que deve se tomar como referência analítica as características individuais, como "o uso do tempo, a inserção no mundo do trabalho, o acesso a títulos de propriedade, que evidenciam a heterogeneidade da pobreza e indiquem que a posição dos indivíduos na família, sua idade, sexo, raça97, determinam formas diferenciadas de enfrentar o fenômeno" (COSTA et al., 2005, p. 37, apud, AZEREDO, 2010, p.583).

No início de 2015, na primeira edição da Revista (edição 121), destacamos o artigo: “Desigualdade racial nos espaços escolares e o trabalho do assistente social” (FREITAS, ENGLER, 2015), as autoras analisam o “processo histórico de desigualdade no Brasil e seus rebatimentos no sistema educacional, para apontar a escola enquanto instituição reprodutora de desigualdade, mas também, espaço privilegiado para o enfrentamento [...]”, bem como o papel do assistente social nesse processo.

Antes da Marcha das Mulheres Negras em 2015, apenas outras três marchas foram proporcionalmente significativas para os movimentos negros e movimentos de mulheres negras no Brasil, a primeira em 1988 a “Marcha Contra a Farsa da Abolição”, que denunciava a falsa abolição em contrapartida as comemorações ao centenário da abolição da escravatura, em 1995 a “Marcha Zumbi dos Palmares: contra o racismo, pela igualdade e vida” em alusão ao tricentenário da morte de Zumbi e a “Marcha Zumbi + 10: II contra o racismo, pela igualdade e vida”, em 2005.

Figueiredo (2018, p. 204), ressalta “o protagonismo do movimento de mulheres negras no Brasil atual, que sem sombra de dúvidas tem sido o movimento social mais atuante e criativo dos últimos anos”, pois quando “Uma sobe, puxa a outra”, essas eram palavras de ordem ditas por diversas vezes no decorrer da marcha (MMN-2015), fazendo” referência à atuação coletiva das

97 Grifo meu. 142

mulheres negras e aponta para a necessidade de ações políticas conjuntas” e rejeita “os princípios individualistas que caracterizam as sociedade capitalistas”.

Com palavras de ordem, denunciávamos os desmandos do governo, a violência policial, a falta de acesso à saúde, à educação e ao trabalho; enfim, denunciávamos a não existência das mínimas condições de sobrevivência, e reclamávamos pela construção de um novo projeto civilizatório para a sociedade brasileira. (Figueiredo, 2018, p. 205).

Nos meses que antecederam a marcha ou posteriormente98, não se identifica produções na revista Serviço Social & Sociedade que fizessem menção a este movimento, sua repercussão ou debate em torno das pautas apresentadas pelos movimentos de mulheres negras. Mas afinal por que marcham99 as mulheres negras? Os objetivos dessa marcha deveriam ser alvo de estudos, pesquisas e reflexão do Serviço Social?

Durante séculos, décadas, na semana passada, amanhã e hoje, marchamos porque sabemos que as transformações não virão como presentes. Marchamos porque sabemos da invisibilidade em torno de nossas imagens, representação e representatividade. Marchamos porque não dá mais para esperar pelo filho, marido, sobrinho ou pai que não voltarão após um dia de trabalho. Marchamos porque reverenciamos a força de nossas ancestrais. Marchamos na tentativa de interromper o extermínio da juventude negra. Marchamos porque nosso corpo é violentado cotidianamente, nossa alma dilacerada e, por mais que trabalhemos, nos instrumentalizamos, ainda assim, teremos reconhecimento e remuneração menores. Marchamos porque a tentativa de genocídio da população negra não parou em 1888. Marchamos porque as feridas custam a fechar. Marchamos porque temos muitas coisas para contar, netos para embalar, filhos para criar, bocas para beijar, profissões para descobrir e corpos para amar. Marchamos pelo direito ao nosso corpo e a escolha de nossa identidade de gênero, assim como, para quem devemos direcionar o nosso desejo. Marchamos porque ter liberdade de culto não é um favor, é um direito. Marchamos porque terreiros de Umbanda e Candomblé têm sido incendiados, crianças têm sido agredidas e identidade racial, destruída. Marchamos. Marchamos. Marchamos porque não dá mais para levar a pirâmide nas costas, está pesada, está injusta, está desumana. (MARTINS, 2015, n.p.).

98 Entre os anos 1988 e 2016. 99 A Marcha das Mulheres Negras - 2015 desdobrou-se em marchas anuais, sempre nos meses de Julho em alusão ao Dia Internacional da Mulher Afro-latinoamericana e caribenha, em grandes capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, dentre outras. 143

Em que pese, a moção de apoio à marcha das mulheres aprovada no

Encontro CFESS/CRESS “Ofensiva conservadora e Serviço Social no cenário atual” (CFESS, 2015), não é possível identificar na produção da categoria outras menções a esse movimento, nesse período.

As pautas da marcha se articulam à defesa de um projeto de sociedade sem exploração de classe, gênero, raça e etnia, dando visibilidade aos múltiplos determinantes da questão social. Nesse contexto, considerando que as mulheres negras representam 25% da população brasileira e compreendendo a importância do combate à dupla opressão racista e sexista, declaramos que o Serviço Social brasileiro também se coloca em marcha na denúncia contra a violência simbólica e física contra as mulheres negras (CFESS/CRESS, 2015, p. 67).

Além dessa manifestação de apoio à Marcha das Mulheres Negras (2015), o Encontro CFESS/CRESS (2015) também manifestou apoio ao “Movimento de Estudantes da Unifesp100”, à Marcha Internacional contra o Genocídio do Povo Negro, convocada pelo “Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta”, desencadeada por uma chacina na periferia de Salvador”101 e declarou “repúdio às chacinas ocorridas na região metropolitana de São Paulo (SP), nos municípios de Osasco, Barueri e Itapevi, e a toda forma de criminalização da pobreza e da vida cotidiana” e “contra a militarização da vida, da polícia e da política”102.

O encontro aprovou também moção de repúdio ao “possível retrocesso na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, materializado a partir do iminente rebaixamento do status de ministério da Secretaria Especial de Políticas

100 Moção de apoio e solidariedade à luta travada pelo Movimento de Estudantes de Serviço Social contra o processo de perseguição política e ações racistas impetradas dentro da Unifesp - Campus Baixada Santista. Colocamo-nos, enquanto categoria profissional, lado a lado ao movimento estudantil da Unifesp na luta contra a política autoritária da universidade, que reproduz racismo institucional e criminaliza os/as estudantes. (CFESS/CRESS, 2005, p.68). 101 O apoio ao movimento REAJA legitima a importância da presença da categoria de assistentes sociais na articulação política e participação ativa nas campanhas, atos e audiências públicas que publicizam, bem como atuam, o enfrentamento das constantes violações dos direitos fundamentais da população jovem, negra e periférica e o extermínio perpetrado direta ou indiretamente pelos poderes de Segurança Pública. (CFESS/CRESS, 2005, p.68). 102 Por meio de chacinas da juventude negra e periférica, comprovadas pelos dados revelados no “Mapa de Mortes Matadas por Armas de Fogo de 2015”, que denunciam o número de 42.416 mortes de jovens ao ano, em sua maioria negros/as e das regiões periféricas do Brasil. (CFESS/CRESS, 2005, 74). 144

de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir/P)”, (CFESS, CRESS, 2015, p.89)103.

Destaca-se também o repúdio aprovado em relação ao “massacre contra os povos indígenas”, o não cumprimento e a demora para demarcações de terras indígenas, o assassinato de lideranças indígenas, “e a violência que sofrem os povos indígenas no marco de suas reclamações estão entre as principais razões de enfrentamentos violentos com outros atores na região” (CFESS/CRESS, 2015, p. 81). A este respeito Kajali Lima Vitório (2019), escreve que:

As deliberações que abrangeram o debate racial continuaram a expressar a contrariedade ao racismo e o apoio a equidade racial, a política de igualdade racial e a inserção do quesito raça/cor nos instrumentais (CFESS/CRESS, 2015). Merece destaque as moções de apoio e repúdio que sintonizadas com os movimentos sociais e a realidade dimensionam os desafios postos pela conjuntura.

A última revista analisada nesse período, a edição nº 127 de 2016, traz a trajetória de vida e profissional da assistente social e sambista “Dona Ivone Lara”, mulher negra e uma das pioneiras dessa categoria profissional. O artigo “Serviço Social e Dona Ivone Lara: o lado negro e laico da nossa história profissional” de autoria de Graziela Scheffer, que descreve essa narrativa de forma ímpar, onde destaca Dona Ivone Lara como sendo “uma das primeiras assistentes sociais negras do Brasil, [...] ou ainda, umas das primeiras mulheres negras a adquirirem educação no nível de terceiro grau” (SCHEFFER, 2006), em um contexto histórico que o mercado de trabalho para mulheres era tolerado somente enquanto profissões ligadas aos campos da educação, saúde e serviços sociais, ou seja, que demandavam acesso a uma educação especializada, não acessível à maioria da população, sobretudo para mulheres negras.

Dona Ivone Lara andava entre dois mundos: de um lado a realidade da classe média vivenciada na escola e na universidade; de outro, o da família pobre de tradição cultural negra. Portanto, era fruto de diferentes influências de classe e de tradição cultural. (Scheffer, 2006, p.488).

103 A Moção destaca ainda que, “a redução do status de ministério da Seppir afetará a condução da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a articulação, planejamento e execução de políticas públicas aos povos e comunidades tradicionais (comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana e povos ciganos)”.(CFESS/CRESS, 2005, p.89). 145

Pode-se compreender neste estudo que o “entre muros” vivenciado por Dona Ivone Lara sintetiza o que autora Collins (2018) denomina de outsider within104, o lugar que ocupou entre esses dois contextos, espaço privilegiado de análise, porém infelizmente ainda invisibilizado.

As realidades de mulheres negras são negadas por todos os pressupostos nos quais se baseia o pertencimento pleno a um grupo: a branquitude como condição para integrar o pensamento feminista, a masculinidade como condição para integrar o pensamento social e político negro, e a combinação de ambas para fazer parte do setor dominante da academia. Impedidas de ocupar uma posição plenamente interna em qualquer uma dessas áreas de pesquisa, as mulheres negras permaneceram em uma situação de outsiders internas, como indivíduos cuja marginalidade proporcionou um ângulo de visão específico sobre essas entidades intelectuais e políticas. (COLLINS, 2018, p. 14).

Para Scheffer (2016), é justamente desse lugar que Dona Ivone elabora seu referencial teórico-metodológico, que vai embasar seu fazer profissional, “Acreditamos que seu diferencial seja principalmente na origem de classe social, articulada à sua condição de mulher negra, aliada à cultura negra de sua família (música, religião, dança etc.)” (2006, p.492).

A conjuntura do ano de 2016 foi favorável ao debate étnico-racial no Serviço Social, o CFESS lança a série de cadernos “Assistente Social no combate ao preconceito” com o objetivo de “orientar e estimular assistentes sociais a uma compreensão crítica das variadas situações de preconceito que podem acompanhar os encaminhamentos cotidianos do exercício profissional” (CFESS, 2016)105. Inicialmente os cinco cadernos lançados abordaram os seguintes temas: O que é preconceito, O estigma do uso de drogas, Racismo, Transfobia e Xenofobia. A ação tem o intuito de “provocar a categoria a refletir sobre sua responsabilidade ética na defesa do projeto ético-político”. (CFESS, 2016).

A publicação tem importante papel na formação da categoria profissional, sobre temas relacionados a questões conceituais como; raça, etnia, cor, racismo,

104 O termo outsider within não tem uma correspondência inquestionável em português, por isso optamos por manter o termo original. Possíveis traduções do termo poderiam ser “forasteiras de dentro”, “estrangeiras de dentro”. (n.da.t.), de acordo com nota disponível em: Aprendendo com a outsider Whitin: a significação sociológica do pensamento feminista negro. (COLLINS, 2016, p. 99). 105 Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1300. Acesso em 02 jun. 2019. 146

preconceito racial, discriminação racial, intolerância religiosa, políticas de ações afirmativas, indicações de filmes e bibliografias. Na seção “O que assistentes sociais têm a ver com isso?”, destaca-se que:

É no âmbito da defesa de direitos que a/o profissional de Serviço Social é convocada/o a intervir. E nesse terreno arenoso da intervenção, constituído de tensões e possibilidades de garantir direitos nos marcos da sociedade de classes. Nesse sentido, faz-se necessária a apreensão crítica acerca dessa realidade e a apropriação de conhecimentos sobre o fenômeno do racismo e de suas diversas expressões na vida social. Esse processo contribuirá para o fortalecimento do projeto ético-político profissional, sobretudo no que tange à sua direção política, que busca construir outra sociabilidade, com valores emancipatórios, cujas relações humanas sejam livres de qualquer exploração, opressão e discriminação de classe, racial e patriarcal. (Caderno 3, CFESS, 2016, p.16).

Portanto, embora não tenha sido possível identificarmos no referido período, publicações na Serviço Social & Sociedade, publicações que se debruçasse sobre a temática da mulher negra, é possível considerar certo avanço no que diz respeito ao debate sobre as questões étnicas-raciais.

Kajali Vitorio (2019), em sua dissertação de mestrado sobre “O debate racial na agenda política do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), conclui que:

A demarcação dos temas do debate racial na agenda política do CFESS dinamizou e foi dinamizada pela luta política dos movimentos negros e de mulheres negras, pela produção acadêmica sobre a temática racial e o crescente ingresso de estudantes negras nos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social. No percurso realizado, constatou-se que o debate racial adentrou a agenda política da categoria profissional e paulatinamente vem ampliando o espaço e significado na construção do projeto ético- político profissional, alicerçado na contemporaneidade, na análise do racismo estrutural e seus desdobramentos no âmbito institucional. [...] No caminho a ser trilhado, coloca-se a necessidade de aprofundar a análise do racismo com os fundamentos da profissão e as categorias centrais da tradição marxista para revigorar as alianças entre a luta antirracista e anticapitalista no seio profissional. (VITORIO, 2019, p. 154).

Nesse mesmo sentido, Diaz (2016) enfatiza sobre a produção no Serviço Social; A produção da literatura sobre as ‘questões raciais’ no Serviço Social após o Congresso da Virada teve um ritmo lento, sem muito 147

afiançamento na área. Com a ‘hegemonia’ do marxismo, o Serviço Social restringiu o conjunto de temas pesquisados ao contexto sócio- histórico e econômico no capitalismo, adiando o estudo das ‘questões raciais’ até a primeira década de 2000, pressionado talvez, pelo relativo sucesso do movimento negro no agendamento de políticas de igualdade racial no Estado brasileiro. Esse reconhecimento se materializou, por exemplo, na instalação da SEPPIR, o primeiro ministério especializado na temática racial chefiado pela assistente social Matilde Ribeiro (2003-2008). (DIAZ, 2016, p. 218).

Compreendemos que o papel da mulher negra na sociedade brasileira sempre foi e ainda é um lugar peculiar de análise, segundo Thereza Santos, uma referência do movimento de mulheres negras da década de 1980, sintetiza da seguinte forma o lugar da mulher negra na história do Brasil;

Outra coisa que é muito importante colocar pra nós é que apesar dessa grande luta da mulher negra, essa falta de reconhecimento da sociedade brasileira no papel da mulher negra dentro dessa estrutura social. Por que, outra coisa que também é muito importante que, a mulher negra, hoje e sempre, ela sempre foi a base da estrutura familiar também da família branca, porque era ela que dava condições na época da escravidão, pra que a sinhá se enfeitasse pro senhor. Foi ela que deu condições quando começa já toda uma revolução industrial no Brasil, pra que a mulher branca procure caminhos fora de casa, porque ela consegue segurar o núcleo familiar também da mulher branca. Ela de repente passou toda a vida assumindo duas famílias, a família negra e a família branca. (Entrevista Thereza Santos, 1985)106

É desse mesmo lugar que se pode destacar o papel dessas precursoras na produção do Serviço Social, mulheres negras, militantes, trabalhadoras, pesquisadoras, idealizadoras de conhecimento. Articuladoras das categorias gênero, classe e raça de modo original em suas análises teóricas, e no seu fazer profissional. Ou mesmo, do lugar de outsider within, ou o estar “entre muros” essas assistentes sociais negras, introduziram a temática racial na agenda dessa categoria, na década de 1980 em consonância com os movimentos negros e de mulheres negras, até os dias atuais.

Os Movimentos Negros (MN) se organizam nacionalmente com intuito de desmascarar a falácia da “democracia racial”, reforçando seu caráter de mito, e denunciam de forma organizada o racismo antinegro perpetrado pelo Estado e suas

106 Transcrição de entrevista disponível no Canal Cultne: https://www.youtube.com/watch?v=WDgGLJ3TPQU 148

instituições. E nós – aqui coloco-me como militante do MN nos engajamos na construção da Marcha Contra a Farsa da Abolição. Quando os MN assumem essa bandeira, essa agenda, eu estava militando no Conselho Regional de Serviço Social no Rio de Janeiro (na época CRAS-RJ), no cargo de vice-presidenta. Lembro-me que coloquei em pauta na reunião do conselho pleno do então CRAS a necessidade da entidade assumir essa bandeira de luta, ou seja, a luta contra o racismo e suas mazelas. Assim, assumimos essa luta. Então, a nossa entidade é uma das entidades dos trabalhadores que, em conjunto com o MN, organiza a Marcha de 1988, participando do núcleo de organização estadual. Por conta dessa participação, passamos a ser uma referência para as outras entidades de classe no Rio de Janeiro sobre esse tema. (ALMEIDA, 2013, p. 231).

Assim como, na introdução da temática étnica-racial nas publicações do VI CBAS (1989), quando assistentes sociais, negras, militantes do eixo Rio de Janeiro e São Paulo, apresentam suas teses, as primeiras relacionadas a essa temática (ALMEIDA, 2013). Em entrevista sobre o “pioneirismo da discussão étnico-racial no Serviço Social”, Magali Almeida (2013), destaca os resultados da inserção dessas pioneiras na agenda política do conjunto CFESS/CRESS, bem como na produção teórica da categoria, e conquistas como o eixo temático no CBAS, as publicações no CFESS Manifesta no 20 de Novembro, a campanha nacional de 2003 do CFESS/CRESS - “Campanha Nacional de Combate ao Racismo - O Serviço Social Mudando o Rumo da História”, a criação dos GTP’s107 da ABEPSS, a abertura da Serviço & Sociedade para essa temática, “os programas de pós graduação mais sensíveis ao tema, abrindo suas pesquisas para o campo, embora a produção científica seja incipiente, Mas já existe!” (ALMEIDA, 2013).

Portanto, a reflexão de Eurico (2018), nos coloca adiante dessa questão, qual o papel de toda a categoria na luta antirracista, na produção teórica sobre o tema e no enfrentamento ao racismo em seu cotidiano profissional? Seria esta tarefa, fardo exclusivo das assistentes sociais, militantes e negras?

Ora, se o Serviço Social é parte e expressão da sociedade, a intervenção protagonizada por várias mulheres negras, militantes, que ingressaram na profissão tem grande impacto no sentido de ampliar o debate e exigir respostas institucionais acerca do racismo. A partir desta década o coletivo profissional será provocado a repensar suas

107 Grupos Temáticos de Pesquisa: Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Geração, Sexualidades. 149

referências teóricas e ampliar o debate para apreender os desdobramentos do racismo institucional no trabalho profissional. (EURICO, 2013, p. 517).

Nesse sentido, é inegável a contribuição das pioneiras na introdução da temática étnica-racial e gênero na categoria, contudo é preciso avançar, enquanto mulheres negras estiverem na base de indicadores sociais, econômicos e de violência, é preciso que toda a categoria consiga compreender que em um país tão desigual, a intersecção classe, gênero e raça não é opção, deve ser um dos fundamentos básicos de sua atuação profissional. Rocha (2014), sintetiza do seguinte modo:

Mas o que a questão étnico-racial e de gênero têm a ver com o Serviço Social? De forma simplista, a partir dos índices apresentados sinteticamente, evidenciou-se o componente racial da maior parte da população cingida pelas expressões da “questão social”. Assim, a constatação de que nossos usuários são majoritariamente negros “(...) já seria suficiente para que nos debruçássemos a buscar conhecer os determinantes sociais que constituem essa realidade” (ROCHA, 2014, p.143).

Para Sueli Carneiro (2001), é necessário enegrecer o feminismo e feminilizar a raça. Aqui se sinaliza no mesmo sentido para a urgência do enegrecimento do Serviço Social dado seu compromisso ético-político, pois não é possível a homogeneização da classe, omitindo o caráter central da questão da raça nas hierarquias de gênero. Conciliando sua base marxista, como proposta política que visa responder à emancipação humana como um todo. Com potencialidade de ser instrumento para a libertação dos também oprimidos; sejam negras (os), LGBT+s, ou pertencentes a qualquer outro grupo discriminado, não somente os explorados (SILVA, 2016).

E ainda temos como tarefa, descolonização dos currículos, desconstruir a branquitude como referência do saber, como vimos as mulheres negras tem produzido sobre sua realidade, e seu ponto de vista como intelectuais “forasteiras de dentro”, merece nos debruçarmos sobre o que estão falando com mais atenção e, sobretudo, que suas vozes ecoem mais alto, em mais espaços, com maior periodicidade.

Considerando que somente, no ano de 2018 a Revista Serviço & Sociedade, em edição especial, número 133, teve como temática: questão étnico- 150

racial e serviço social. Concomitantemente, ano em que o conjunto CFESS/CRESS traz como tema de campanha da atual gestão, o combate ao racismo e ABEPSS publiciza o caderno de subsídios para o debate sobre a questão étnico-racial na formação em Serviço Social (2018).

Nesta edição da revista, destacamos que a maior parte dos artigos explicitam ou interseccionam as categorias gênero, raça e classe, ainda que 130 anos pós abolição e 30 anos pós I Encontro Nacional de Mulheres, identificamos motivos para almejar que esta abordagem não seja “temática”, mas sim prioridade para as categorias de análise das futuras pesquisas do Serviço Social e de suas publicações.

Considerando que a questão étnico-racial se constitui como um elemento estruturante das relações sociais e, assim, deve ser apreendida com profundidade e em toda a sua complexidade histórica, é subjacente a necessidade de materializar nos currículos e nas propostas pedagógicas (PPCs) um conjunto de disciplinas e atividades de ensino, pesquisa e extensão que promovam na graduação e pós-graduação uma gradativa e efetiva superação da secundarização ou “tematização” da questão étnico-racial na formação, muitas vezes apreendida no viés culturalista e/ou como um segmento a ser abordado no conjunto da sociedade. Vários estudos apontam para os riscos desta fragmentação e silenciamento/ secundarização do debate na formação no Serviço Social no âmbito da graduação e da pósgraduação e, nesse sentido, podemos citar Rocha (2014), Almeida (2016), Dias Almeida (2015), dentre outras. (ABEPSS, 2018).

Não se pode optar por qual opressão se irá lutar, mulheres negras e periféricas acordam diariamente encarando o racismo, sexismo e o ódio de classe, que são estruturantes de desigualdades sociais, na sociedade de produção capitalista, não apenas em 8 março ou 20 de novembro, a luta antirracista e antisexista não pode ser um tema, tem que ser cotidiana, até a sua superação.

Para nós mulheres negras, pressupõe-se que a resistência e lentidão na incorporação da interseccionalidade na produção teórica do Serviço Social mesmo pós movimento de reconceituação e todo o acúmulo de reivindicações dos Movimentos de Mulheres Negras no Brasil apresentados até aqui, nas palavras da pesquisadora Carla Akotirene, negra, assistente social, se dá devido seu lugar de origem; 151

A interseccionalidade é a autoridade intelectual de todas as mulheres que um dia foram interrompidas. A interseccionalidade é sofiscada fonte de água, metodológica, proposta por uma intelectual negra, por isto é tão difícil engolir os seus fluxos feitos mundo afora. (AKOTIRENE, 2018, p. 109).

Por hora, é necessário continuar em “marcha”, como movimento político de mulheres negras, que usam seus corpos, vozes e saberes como espaço de intervenção política, “apoiadas na utopia de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os), contra o racismo, machismo e pelo Bem Viver”.

152

CONSIDERAÇÕES FINAIS 153

Sinto muito Agora que comecei a ler, quero entender O porquê, por quê? E o porquê Existem coisas Eu li, e li, e li Eu até sorri E deixei o feijão queimar… Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto Considere que os tempos agora são outros… Não vou mais lavar os pratos-Cristiane Sobral

O Brasil é um país marcado pelo sistema racista, colonialista e sexista, embora não se reconheça como tal, o que contribui para que o “racismo à brasileira” se apresente como uma complexa engenharia, pautada no “mito da democracia racial”, branqueamento, o genocídio, a meritocracia, a recusa do Estado em reconhecer as atrocidades cometidas contra o povo negro ao longo da sua histórica, e a morosidade na elaboração e implementação de políticas reparatórias. Sendo essa “dor cunhada pela escravidão, A escravidão deixou marcas profundas, marcas que ainda vivenciamos. E, séculos depois da “Abolição”, sentimos … a Dor e a nem sempre delícia de se saber ou de não saber quem é … quem somos numa sociedade mascarada pelo mito da democracia racial” … (PIEDADE, 2017, p.18).

Se no Brasil a população negra é atualmente 54% das pessoas, temos como compromisso ético e político nos indagar em todos os espaços que ocupamos, onde estão as negras e negros desse lugar? Se não estão, por que não estão? E se estão, estão em que condição? As respostas não darão pistas do ainda árduo caminho a ser trilhado rumo a uma sociedade democrática de fato.

Enquanto mulheres negras estiverem impedidas, silenciadas, desautorizadas a manifestar seus posicionamentos, e a ocupar espaços de decisão, seus corpos e dos seus estiverem sendo “arrastados pelo asfalto” e sendo alvo de “balas perdidas”, não teremos uma sociedade verdadeiramente igualitária. “Só resolvemos um problema quando o entendemos completamente. …enquanto houver injustiça social haverá condições para sobrevivência dos preconceitos mais fortemente condenados pela razão e pelos sentimentos humanos. Lutar pela justiça social, por um 154

mundo onde não haja exploradores nem explorados, é o caminho para evitarmos, repetir a história - que está aí, no cotidiano, como uma trágica farsa.” (CHIAVETO, 2012, p.228).

Não é possível a naturalização de que, historicamente as mulheres negras não gozem do exercício de sua cidadania plena, do acesso universal a bens e serviços, da negação de direitos básicos, e componham a base da pirâmide social e econômica. É urgente a revisão de privilégios, de imposição da branquitude como referência única de humanidade, de colonialismos e a manutenção de desigualdades que estruturam a super e reinventada exploração da classe trabalhadora. As mulheres negras que são a maioria demográfica no Brasil, porém seguem invisibilizadas, no que a grande cantora Elza Soares vai clamar “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Após analisarmos os dados oficiais dos governos sobre desigualdade social, violência, mortes evitáveis, sofrimento psicológico, as dores das mais variadas possíveis, é impossível não concordar com Elza e acrescentar “a carne mais barata do mercado é a carne negra e feminina”. Assim, o debate sobre a questão racial e de gênero de modo interseccional na formação, pós-graduação e atuação e profissional do Serviço Social se torna incontornável. “Um dos desafios que o Assistente Social vive no presente é desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e não só executivo” (IAMAMOTO, 2006, p. 20).

As expressões da questão social, que articuladas com as questões raciais e de gênero se intensificam ainda mais, precisam ser seriamente debatidas, refletidas, apropriada pelos diversos setores da sociedade, e que o conhecimento invisibilizado e subalternizado seja reconhecido, o debate não sexista e antirracista deve ser encarado de maneira coletiva, que não seja somente uma tarefa de mulheres negras, mas de todos que se declaram marxistas.

… o racismo e o patriarcado estruturam as classes sociais e as relações de exploração entre elas e, também, em seu interior. Ou seja, como são estruturantes, o racismo e o patriarcado atravessam todas as relações sociais e dão substâncias às relações de opressão e exploração inter e entre classes. (CISNE, 2018, p.76). 155

O Serviço Social brasileiro em seu projeto ético-político profissional após o movimento de reconceituação deixa evidente na sua fundamentação o compromisso com a classe trabalhadora e os processos emancipatórios na perspectiva de uma sociedade igualitária. Resultante de um processo histórico de construção coletiva, devendo os profissionais promover estratégias técnico- políticas nos diversos espaços sócio-institucionais que concretizem princípios como a defesa da eqüidade e da justiça social, universalizando o acesso a bens e serviços, entre outros, porém não é possível fomentar ações que objetivem a equidade, sem realizar o devido enfrentamento ao racismo, apropriado pelo sistema de produção capitalista com as crises econômicas cada vez mais frequentes, próprias desse modelo de produção predatória, mas são os corpos racializados que sofrem cada vez mais os efeitos dessas sistêmicas “crises”.

Para além de posicionamentos, cartas de repúdio, moções de apoio, são necessárias, a adoção de medidas práticas cotidianas para o combate a opressão advinda da conjugação do racismo e sexismo na vida das mulheres negras. A ampliação do debate étnico-racial no Serviço Social e em seus espaços sociocupacionais, devem ser pautados para além de 20 de novembro e 8 de março e em campanhas “temáticas”, afinal somos negras ao longo de todo ano, estamos expostas ao racismo e sexismo e suas consequências por vezes mortais ao longo da vida, portanto pautar essas questões deve ser de forma cotidiana até sua superação.

A homogeneização da classe trabalhadora, logo da população atendida pelo Serviço Social, deve ser superada, não podemos tolerar por exemplo o desconforto para a indagação sobre o quesito raça-cor em nossos instrumentais de trabalho, e fomentar dados sobre a identidade da população atendida. Um compromisso de toda a categoria, não exclusiva de assistentes sociais negras e militantes dos movimentos negros, feministas e de mulheres negras.

[...] é imprescindível que mecanismos, soluções e remédios atuem sobre as experiências e necessidades específicas deste grupo populacional, incorporando a perspectiva de enfrentamento ao racismo patriarcal heteronormativo, ao racismo institucional e seus impactos sociais, econômicos e psíquicos na vida das mulheres e meninas negras. (IRACI, 2016). 156

Nas publicações da Serviço Social & Sociedade, analisadas nesta pesquisa, periódico de maior circulação e abrangência nacional, de grande importância para essa categoria profissional, apesar disso, não se evidenciou de forma contundente o comprometimento da categoria profissional na produção/publicação de pesquisas que se debruçassem sobre a temática da mulher negra. Tampouco há uma identificação da pertença étnica-racial da maioria dos estudos sobre o público atendido pelas políticas públicas. Muito pelo contrário, mesmo em temáticas específicas como crianças e adolescentes, pessoas em situação de rua, idosos, maternidade, questões de gênero, famílias, pobreza, movimentos sociais, classe trabalhadora, entre outras, no intervalo de 1988 a 2016, período de importantes conquistas para os movimentos negros e de mulheres negras, ficando perceptível a uniformização da classe trabalhadora nesses estudos. É como se fossemos toda(o)s iguais, em um país de população de origem étnica-racial única, homogeneizada, sem presença de racismo, discriminação ou preconceito, que as únicas agruras que essa população vivência tem como origem a pobreza.

De outro modo, um referencial teórico-metodológico baseado na “intersecionalidade oferece uma oportunidade de fazermos com que todas as nossas políticas e práticas sejam, efetivamente, inclusivas e produtivas”. (CRENSHAW, 2004, p.16). Cabe a reflexão de que modo a teorias racistas como o mito da democracia racial, tem impactado a atuação profissional das(os) assistentes sociais, a individualização e psicologização do racismo, e a reprodução do racismo institucional de forma sistemática inconsciente (ou não).

Portanto, faz-se coro com as assistentes sociais, mulheres negras e militantes, que estão produzindo, pesquisando, se debruçando sobre a pertinência das temáticas étnico-raciais e de gênero em torno das políticas públicas e sociais. Como as mulheres negras têm acesso a experiências que acumulam o ser negra e ser mulher, uma epistemologia alternativa utilizada para rearticular o ponto de vista delas deve refletir a convergências desses dois conjuntos de experiências. Raça e gênero podem ser até analiticamente distintos, mas na vida cotidiana das mulheres negras eles operam conjuntamente” (COLLINS, 2016, p.165). 157

Ora, se o movimento de mulheres negras estão historicamente produzindo conhecimento, são denunciantes, articuladas nacionalmente e internacionalmente, atendidas nos serviços públicos majoritariamente, onde estão suas vozes e demandas na produção do Serviço Social brasileiro? Sobretudo nas publicações da Serviço Social & Sociedade no último período que se apresentou de extrema importância para a reconfiguração da sociedade democrática brasileira.

Assim como o movimento de mulheres negras enfatizam que o feminismo “deve colar na favela”, assim como o feminismo hegemônico, entende-se que o Serviço Social deve feminilizar e enegrecer suas pautas, pois, na atual conjuntura, não basta se dizer não racista é preciso atuar como uma antirracista.

Acredita-se aqui que a fala das que vieram antes de nós, como Maria Nascimento, Virgínia Bicudo, Lelia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Matilde Ribeiro, Elizabete Pinto, Edna Muniz, Magali Almeida, Sarita Amaro, Marcia Eurico, Mabel Assis, Renata Gonçalves, Rachel Gouveia, Roseli Rocha, dentre muitas outras, que ainda ecoam, reverberam nas (re)ações de diversas profissionais assistentes sociais, evidenciando que nossos passos vem de longe! Portanto, Brasil, já passa da hora de ouvir as Marias, Mahis, Marielles e Malês108 ...

108Trecho do samba enredo: “História pra Ninar Gente Grande”, da Estação Primeira de Mangueira, vencedor do Carnaval 2019 do Rio de Janeiro, enredo que contou “a história do Brasil pela ótica dos heróis populares”uma narrativa de “páginas ausentes” da história do Brasil. 158

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