UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA DOUTORADO EM MÚSICA

MARIA CLARA DE ALMEIDA GONZAGA

MÚSICA CÊNICA PARA PIANO NO RIO DE JANEIRO

RIO DE JANEIRO 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA DOUTORADO EM MÚSICA

MARIA CLARA DE ALMEIDA GONZAGA

MÚSICA CÊNICA PARA PIANO NO RIO DE JANEIRO

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Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Música do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Orientadora: Profª. Drª. Vânia Dantas Leite.

RIO DE JANEIRO 2013

À Nair Pedrozo Duarte, que tornou tudo isso possível.

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de bolsas no período de estágio doutoral na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), nos dois semestres de 2010. À UNIRIO, promotora do Dinter, especialmente aos professores do Programa de Pós- Graduação em Música (PPGM) que abraçaram a causa e a Aristides, Cristina e Leandro pelo suporte necessário na Secretaria, bem como aos funcionários da recepção, da segurança e da limpeza que me acompanharam durante todo o período de estudos na Instituição. À Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e à sua Pró-Reitoria de Pós- Graduação nas pessoas dos Profs. Drs. Edna Maria e Rubens Marimbondo, pela atenção a nós dispensada. Aos Profs. Drs. da Escola de Música da UFRN (EMUFRN), Prof. Dr. Zilmar Rodrigues pelo empenho na implantação do Projeto Dinter e à toda sua Secretaria, sempre pronta a nos ajudar. Aos funcionários da Biblioteca Pe. Jaime Diniz (BPJD), pelo atendimento, sempre ágil, às nossas solicitações. Ao grande amigo Prof. Dr. André Luiz pelo enorme incentivo e incansável colaboração. À orientadora, Profa. Dra.Vânia Dantas Leite, pela paciência de se repetir inúmeras vezes em favor deste trabalho. À aluna Brígida Bessa Paiva, pela carinhosa assistência. Aos colegas de turma e de trabalho, pelo companheirismo, apoio e generosidade. Aos pais, Dilma de Almeida Gonzaga e Genilson Alves Gonzaga (in memorian), que me conduziram ao mundo maravilhoso da palavra escrita. Aos filhos muito amados – Amanda, Caio, Fidja, Kadja e Rafael – pela enorme resignação em aguardar longamente pela atenção da mãe. Ao esposo querido, Franklyn Nogvaes, que abriu mão de seus próprios afazeres para me auxiliar em todos os sentidos e em todos os momentos, doando-se inteiramente a essa causa. Ao compositor Luciano Garcez, que me inspirou a fazer do cotidiano e da música cênica uma poesia itinerante.

Aos compositores e intérpretes que colaboraram nesta pesquisa com materiais e depoimentos: Luiz Carlos Csekö, Tim Rescala, Jocy de Oliveira, Marisa Rezende, Tato Taborda e Maria Teresa Madeira.

"[...] tudo o que é bom no mundo vem de dentro e portanto lhe vem de fora - mas só relampeja através. [...]". Novalis (2009, p. 31).

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo desvelar – através de pesquisa bibliográfica, análise de obras e entrevistas a autores e intérpretes – aspectos técnico-interpretativos de seis peças de música cênica de compositores atuantes no Rio de Janeiro a fim de fornecer subsídios a estudantes, professores de música, compositores, críticos – e outros interessados no tema – para a interpretação, análise e apreciação. A produção de música cênica, intensificada no Brasil e no mundo a partir da década de 1960, possui repertório ainda pouco divulgado. O presente estudo, que inclui a contextualização dos termos utilizados nas práticas do gênero tais como teatro musical, música-teatro, teatro instrumental e ópera contemporânea, conclui que experiências de interação entre intérpretes e compositores no exercício de um novo virtuosismo apontam caminhos para novos olhares não apenas no sentido da realização de repertórios que demandam ações e atuações diversificadas de execução musical, mas também no que se refere às práticas interpretativas tradicionais.

Palavras-chave: Música cênica. Piano. Música-teatro. Teatro instrumental.

ABSTRACT

The objective of this work is to reveal – through bibliographic research, analysis of works and interviews with authors and performers – technical and interpretative aspects of six music theater pieces by composers who work in Rio de Janeiro. The goal is to provide assistance to students, music teachers, composers, critics – and others interested in the theme – for interpretation, analysis and appreciation. The production of music theater has intensified in and around the world since the decade of the 1960s and its repertoire has still been little exposed. The present study includes the contextualization of terms used in the practices of the genre such as musical theater, new music theater, instrumental theater and contemporary opera. It concludes that experiences of interaction between interpreters and composers in the exercise of a new virtuosity suggest paths to new perspectives, not only in performing repertoires that demand varied actions and performances in musical execution, but also in regard to traditional interpretative practices.

Keywords: Music theater. Piano. New music theater. New virtuosity.

RESUMÉ

Ce travail a pour objectif de révéler – à travers de recherches bibliographiques, d‟analyses d‟oeuvres et d‟entrevues d‟auteurs et d‟interprètes – les aspects techniques et d‟interprétations de six pièces de théâtre musical de compositeurs actuants à Rio de Janeiro afin de fournir des subvention à des étudiants, à des professeurs de musique, à des compositeurs, à des critiques – et autres personnes intéressées par le thème – pour interprétation, analyse et appréciation. La production de théâtre musical, intensifiée au Brésil et dans le monde à partir des années 1960, a un répertoire encore peu divulgué. Cette étude, qui inclut la contexture des termes utilisés dans les pratiques du genre tout comme le théâtre musical, la musique d‟action, le théâtre instrumental et l‟opéra contemporaine, conclut que des expériences d‟interaction entre interprètes et compositeurs dans l‟exercice d‟une nouvelle virtuosité montrent des chemins pour de nouveaux regards non seulement dans le sens de la réalisation de répertoires qui demandent des actions et des actuations diversifiées dans l‟exécution musicale, mais aussi en ce qui concerne les pratiques interprétatives traditionnelles.

Mots-clés: Théâtre musical. Piano. Musique d‟action. Théâtre instrumental.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Relações entre práticas de música cênica...... 47 Figura 2 – Partitura/texto original de Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö...... 63 Figura 3 – Fragmento da partitura original de Estudo para piano, de Tim Rescala..... 77 Figura 4 – Fragmento inicial da partitura de Estudo para piano, de Tim Rescala...... 82 Figura 5 – Análise, da própria autora, da parte de piano da versão de Dueto I+1 realizada por Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar em colaboração com a obra de Milton Machado...... 89 Figura 6 – Fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite para o Dueto I+1...... 90 Figura 7 – Outro fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite, para o Dueto I+1...... 92 Figura 8 – Desenho/partitura de Milton Machado (imagem digitalizada)...... 94 Figura 9 – Disposição dos quatro teclados ao redor do intérprete na peça Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira...... 100 Figura 10 – Texto introdutório da partitura de One player and four keyboards, de 102 Jocy de Oliveira...... Figura 11 – “Nota repetida – última altura nos dois manuais...... 104 Figura 12 – “Começa bem devagar com o cotovelo e todod o braço até os dedos”...... 104 Figura 13 – “Com a palma da mão primeiro e depois os dedos, como uma massagem 105 no teclado”...... Figura 14 – Uma nota qualquer...... 105 Figura 15 – Indicação de direção...... 105 Figura 16 – “Várias notas, rápido”...... 106 Figura 17 – “O mais agudo possível no instrumento” ou “O mais grave possível no instrumento”...... 106 Figura 18 – “Pressionar a tecla e retirar dela quase todo o peso bem levemente e devagar (o mais agudo possível)”...... 107 Figura 19 – “O cluster mais agudo possível em teclas pretas”...... 107 Figura 20 – “O som mais agudo com cluster em notas pretas e brancas”...... 108 Figura 21 – “De uma nota a outra, lentamente, pressionando a tela e retirando levemente o peso do dedo sobre a mesma”...... 108

Figura 22 – “Bater nas cordas com a palma da mão”...... 109 Figura 23 – “Pressione a tecla, tocando o dedo [de outra mão] na corda correspondente para produzir harmônico”...... 109 Figura 24 – “Use um objeto de metal e friccione-o ao longo da corda”...... 110 Figura 25 – “Com a mão em forma de concha, pressione teclas pretas e deslize para brancas”...... 110 Figura 26 – “Com o braço do cotovelo ao dedo, pressione e retire certas partes do braço”...... 111 Figura 27 – “Segure todo o teclado com uma régua – ligue e desligue o instrumento”...... 111 Figura 28 – “Segure uma régua entre o teclado e a tampa sem som. Pressione e retire a régua”...... 112 Figura 29 – “Muitas notas, rápido, ad libitum”...... 112 Figura 30 – “Segure esta nota”...... 113 Figura 31 – “Pressionar o teclado com o braço do cotovelo aos dedos”...... 113 Figura 32 – “Cluster com pressão do braço sem som”...... 113 Figura 33 – “Cluster com braço”...... 114 Figura 34 – Fragmento que exemplifica alturas definidas na partitura principal de One player and four keyboards, de Jocy de Oliveira...... 114 Figura 35 – Fragmento que exemplifica alturas inexatas na partitura principal de One player and four keyboards, de Jocy de Oliveira...... 115 Figura 36 – Quadro que faz parte das cartelas de eventos sonoros das partes anexas à partitura principal para que o(a) intérprete escolha o que vai executar ...... 116 Figura 37 – Quadro de parte anexa (cartela de eventos sonoros a serem escolhidos pelo(a) pianista) que indica livre improvisação musical/cênica para o(a) intérprete ...... 120 Figura 38 – Texto O espítito da qoisa de Luciano Garcez...... 139

LISTA DE SIGLAS

BPJD - - Biblioteca Pe. Jaime Diniz CAPES - - Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior CCBB - - Centro Cultural Banco do Brasil EMUFRN - - Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte FAPERJ - - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro FUNARTE - - Fundação Nacional de Artes NuMEXI/RJ - - Núcleo de Música Experimental e Intermídia do Rio de Janeiro OMLs - - Oficinas de Linguagem Musical OSESP - - Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo PPGM - - Programa de Pós-Graduação em Música SEM - - Eletronic Music Studios SESC - - Serviço Social do Comércio UFBA - - Universidade Federal da Bahia UFRJ - - Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRN - - Universidade Federal do Rio Grande do Norte PPGM - - Programa de Pós-Graduação em Música SEM - - Eletronic Music Studios SESC - - Serviço Social do Comércio UFBA - - Universidade Federal da Bahia UFRJ - - Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRN - - Universidade Federal do Rio Grande do Norte UNESP - - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNICAMP - - Universidade Estadual de Campinas UNIRIO - - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO……………………………………………...... ………………… 21 2 MÚSICA CÊNICA: DENOMINAÇÕES E CONTEXTOS.....…...... ……… 27 2.1 MÚSICA CÊNICA, MÚSICA-TEATRO, TEATRO MUSICAL, MÚSICA DE AÇÃO, TEATRO INSTRUMENTAL...... 27 2.2 O PIANO NA MÚSICA CÊNICA: UMA NOVA NOÇÃO DE VIRTUOSISMO...... 49 3 RIO DE JANEIRO: COMPOSITORES E OBRAS...... 56 3.1 ES(X)TRO(A)VERSÃO, DE LUIZ CARLOS CSEKÖ...... 61 3.1.1 Instrumental...... 62 3.1.2 Notação...... 63 3.1.2.1 Partitura...... 63 3.1.2.2 Texto de instruções ou bula...... 63 3.1.2.3 Gráficos ou desenhos...... 64 3.1.3 Manipulação dos parâmetros sonoros...... 64 3.1.3.1 Alturas...... 64 3.1.3.2 Durações...... 64 3.1.3.3 Texturas, timbres e dinâmica...... 65 3.1.3.4 Articulação do som no espaço...... 66 3.1.4 Interdisciplinaridade...... 66 3.1.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas...... 66 3.1.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...... 66 3.1.5 Cena...... 66 3.1.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica...... 67 3.1.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas...... 67 3.1.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena...... 68 3.1.5.4 Iluminação artística...... 68 3.1.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical...... 68 3.1.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho...... 68 3.1.6 Narrativa...... 69

3.1.6.1 Linearidade...... 69 3.1.6.2 Texto...... 69 3.1.6.3 Relação entre palavras e sons...... 70 3.1.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)...... 70 3.1.8 Tecnologias (uso de equipamentos)...... 71 3.1.9 Intérprete...... 71 3.1.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 71 3.1.9.2 Novo virtuosismo...... 71 3.1.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado...... 72 3.1.10 Realização...... 72 3.1.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas...... 72 3.1.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais...... 72 3.1.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos...... 73 3.1.10.4 Relação com as plateias...... 73 3.2 ESTUDO PARA PIANO, DE TIM RESCALA...... 73 3.2.1 Instrumental...... 74 3.2.2 Notação...... 74 3.2.2.1 Partitura...... 74 3.2.2.2 Texto de instruções ou bula...... 74 3.2.2.3 Gráficos ou desenhos...... 74 3.2.3 Manipulação dos parâmetros sonoros...... 74 3.2.3.1 Alturas...... 75 3.2.3.2 Durações...... 75 3.2.3.3 Texturas, timbres e dinâmica...... 76 3.2.3.4 Articulação do som no espaço...... 76 3.2.4 Interdisciplinaridade...... 77 3.2.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas...... 77 3.2.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...... 78 3.2.5 Cena...... 78

3.2.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica...... 78 3.2.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas...... 79 3.2.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena...... 79 3.2.5.4 Iluminação artística...... 80 3.2.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical...... 80 3.2.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho...... 80 3.2.6 Narrativa...... 80 3.2.6.1 Linearidade...... 80 3.2.6.2 Texto...... 81 3.2.6.3 Relação entre palavras e sons...... 83 3.2.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)...... 83 3.2.8 Tecnologias (uso de equipamentos)...... 83 3.2.9 Intérprete...... 83 3.2.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 84 3.2.9.2 Novo virtuosismo...... 84 3.2.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado...... 85 3.2.10 Realização...... 85 3.2.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas...... 85 3.2.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais...... 85 3.2.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos...... 85 3.2.10.4 Relação com as plateias...... 86 3.3 DUETO I+1: PARA EXECUTANTES EXTREMAMENTE ATENTOS E ISOLADOS UM DO OUTRO...... 86 3.3.1 Instrumental...... 86 3.3.2 Notação...... 87 3.3.2.1 Partitura...... 87 3.3.2.2 Texto de instruções ou bula...... 87 3.3.2.3 Gráficos ou desenhos...... 87 3.3.3 Manipulação dos parâmetros sonoros...... 87

3.3.3.1 Alturas...... 88 3.3.3.2 Durações...... 91 3.3.3.3 Texturas, timbres e dinâmica...... 93 3.3.3.4 Articulação do som no espaço...... 93 3.3.4 Interdisciplinaridade...... 93 3.3.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas...... 93 3.3.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...... 94 3.3.5 Cena...... 95 3.3.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica...... 95 3.3.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas...... 95 3.3.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena...... 95 3.3.5.4 Iluminação artística...... 95 3.3.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical...... 95 3.3.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho...... 96 3.3.6 Narrativa...... 96 3.3.6.1 Linearidade...... 96 3.3.6.2 Texto...... 96 3.3.6.3 Relação entre palavras e sons...... 96 3.3.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)...... 96 3.3.8 Tecnologias (uso de equipamentos)...... 97 3.3.9 Intérprete...... 97 3.3.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 97 3.3.9.2 Novo virtuosismo...... 97 3.3.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado...... 98 3.3.10 Realização...... 98 3.3.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas...... 98 3.3.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais...... 98 3.3.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos...... 99

3.3.10.4 Relação com as plateias...... 99 3.4 DIMENSÕES PARA QUATRO TECLADOS, DE JOCY DE OLIVEIRA...... 99 3.4.1 Instrumental...... 100 3.4.2 Notação...... 101 3.4.2.1 Partitura...... 101 3.4.2.2 Texto de instruções ou bula...... 101 3.4.2.3 Gráficos ou desenhos...... 103 3.4.3 Manipulação dos parâmetros sonoros...... 114 3.4.3.1 Alturas...... 114 3.4.3.2 Durações...... 115 3.4.3.3 Texturas, timbres e dinâmica...... 116 3.4.3.4 Articulação do som no espaço...... 116 3.4.4 Interdisciplinaridade...... 117 3.4.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas...... 117 3.4.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...... 117 3.4.5 Cena...... 117 3.4.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica...... 117 3.4.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas...... 118 3.4.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena...... 118 3.4.5.4 Iluminação artística...... 118 3.4.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical...... 118 3.4.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho...... 118 3.4.6 Narrativa...... 119 3.4.6.1 Linearidade...... 119 3.4.6.2 Texto...... 119 3.4.6.3 Relação entre palavras e sons...... 119 3.4.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)...... 119 3.4.8 Tecnologias (uso de equipamentos)...... 120 3.4.9 Intérprete...... 120 3.4.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 121

3.4.9.2 Novo virtuosismo...... 121 3.4.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado...... 121 3.4.10 Realização...... 121 3.4.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas...... 122 3.4.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais...... 122 3.4.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos...... 122 3.4.10.4 Relação com as plateias...... 122 3.5 CAPRICHOSA VOZ QUE VEM DO PENSAMENTO, DE TATO TABORDA 123 3.5.1 Instrumental...... 123 3.5.2 Notação...... 124 3.5.2.1 Partitura...... 124 3.5.2.2 Texto de instruções ou bula...... 124 3.5.2.3 Gráficos ou desenhos...... 124 3.5.3 Manipulação dos parâmetros sonoros...... 124 3.5.3.1 Alturas...... 125 3.5.3.2 Durações...... 125 3.5.3.3 Texturas, timbres e dinâmica...... 125 3.5.3.4 Articulação do som no espaço...... 125 3.5.4 Interdisciplinaridade...... 126 3.5.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas...... 126 3.5.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz...... 126 3.5.5 Cena...... 127 3.5.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica...... 127 3.5.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções técnicas...... 128 3.5.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena...... 128 3.5.5.4 Iluminação artística...... 128 3.5.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical...... 128 3.5.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho...... 128 3.5.6 Narrativa...... 129

3.5.6.1 Linearidade...... 129 3.5.6.2 Texto...... 129 3.5.6.3 Relação entre palavras e sons...... 130 3.5.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)...... 131 3.5.8 Tecnologias (uso de equipamentos)...... 132 3.5.9 Intérprete...... 132 3.5.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra. 132 3.3.9.2 Novo virtuosismo...... 132 3.5.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado...... 132 3.5.10 Realização...... 133 3.5.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas...... 133 3.3.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais...... 133 3.3.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos...... 134 3.3.10.4 Relação com as plateias...... 134 4 COMPOSITOR E INTÉRPRETE: EXPERIÊNCIA DE COLABORAÇÃO NA MÚSICA CÊNICA...... 135 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 146 REFERÊNCIAS...... 151 APÊNDICE A - Luiz Carlos Csekö: cena experimental de sons e luzes (Interfaces). 157 APÊNDICE B - Tim Rescala: humor e ecletismo...... 178 APÊNDICE C - Vânia Dantas Leite: a escultora de sons...... 194 APÊNDICE D - Jocy de Oliveira: dramaturgia musical multimídia...... 215 APÊNDICE E - Tato Taborda: um inventor de instrumentos...... 236 APÊNDICE F - Luciano Garcez e “O espírito da qoisa”...... 254 APÊNDICE G – Maria Teresa Madeira: intérprete de música e cena...... 265 21

1 INTRODUÇÃO

A produção de música cênica, no Brasil e no mundo, se intensificou a partir da década de 1960. Mesmo após aproximadamente cinco décadas, no século XXI, o repertório de música cênica é ainda pouco conhecido e estudado. O principal objetivo dessa pesquisa foi contribuir para a divulgação desse repertório brasileiro, subsidiando intérpretes, compositores, críticos, produtores, pesquisadores e outros interessados na apreciação, realização e estudo do gênero. Há muito tempo venho pesquisando esse assunto. Desde o início de minha formação como pianista, a partir de 1976, quando ainda contava dez anos de idade, na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), demonstrava especial inclinação para a interpretação de peças de autores brasileiros. Havia ali certo encantamento pela sensação de que estava realizando o trabalho de artistas que, de alguma forma, eram próximos, se não pela relativa contemporaneidade, pela conterraneidade e pela herança cultural. Essa inclinação e encantamento permaneceram ao longo de toda a minha carreira como pianista. Ainda pouco antes das primeiras aulas de piano, tive a oportunidade de praticar dança e, em seguida, essas experiências ocorreram paralelamente aos estudos da música, porém em períodos curtos e isolados e em diversas modalidades – clássica, moderna e contemporânea. Ao fim do Curso Técnico em Música (nível médio), vivenciei também fora da Escola de Música exercícios teatrais que me fascinaram pela forte vocação interdisciplinar destes no envolvimento com a música, a dança, as artes plásticas e a literatura. Em 1994, logo após a conclusão do Curso de Bacharelado em Música, fui contratada, através de concurso, como professora de piano pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Em 1998, comecei a reunir materiais e publicações a respeito da Música Brasileira para dar início à elaboração de um pré-projeto, com a finalidade de concorrer a uma vaga em algum programa de pós-graduação em nível de Mestrado. Já estava investigando o repertório de compositores brasileiros contemporâneos quando me deparei com uma publicação recente na época, intitulada 36 compositores brasileiros – obras para piano (1950/1988), de autoria da pesquisadora Salomea Gandelman. Catalogadas em categorias específicas, algumas das obras foram classificadas como peças “com atuação cênica” (GANDELMAN, 1997, p. 334). Os compositores e peças com atuação cênica da citada catalogação elaborada por Gandelman são os seguintes: / 22

Música para piano n. 2 – Recado a Schumann, de um velho caderno de notas (1983); Willy Corrêa de Oliveira / Cinco Kitschs (1968); Jorge Antunes / Redundantiae – variações para um arabesco e um suspiro (1979); Henrique Morozowicz / Comentários sobre uma obra de Mozart (1976); Dawid Korenchendler / XI Variações (1983) e Ernst Widmer / Entroncamentos sonoros op.75 (1972). Ao examinar esse trabalho, percebi, perplexa, que após longo período de formação regular em importante centro de ensino da música no Brasil ainda não havia estudado e nem sequer presenciado a execução desse gênero musical. Isso me levou a procurar pelos compositores e obras catalogados. Infelizmente, Ernst Widmer já havia falecido em 1990. Tive contato, então, com os demais compositores. Realizei entrevistas que me proporcionaram material riquíssimo para pesquisa, sobre o qual construí o que viria a ser uma dissertação de Mestrado. Música cênica para piano: cinco peças brasileiras foi um trabalho orientado pelo pianista Professor Dr. Mauricy Martin e co-orientado pelo sociólogo Professor Dr. José Roberto Zan na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), concluído em 2002. O tema foi considerado inédito pela banca da defesa. Através do Programa de Doutorado Interinstitucional promovido através de convênio entre a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), a UFRN e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), dei continuidade às investigações a respeito da música cênica, concentrando foco no repertório brasileiro. Sob a orientação da Professora Dra. Vânia Dantas Leite, já iniciando a presente pesquisa – e dando continuidade ao tema – procurei por compositores de música cênica atuantes no Rio de Janeiro. Comecei por autores que já havia citado na dissertação de Mestrado: Jocy de Oliveira, Tim Rescala e depois, Tato Taborda (GONZAGA, 2002). Durante esse processo, tive a oportunidade de conhecer a obra de Luiz Carlos Csekö e de Vânia Dantas Leite. Procurei por muitos outros compositores, mas esses foram os compositores que apresentaram relação mais forte com o gênero estudado. O fato de os compositores estudados serem atuantes no Rio de Janeiro faz parte da delimitação do tema na conveniência, inclusive, da minha permanência na cidade durante do ano de 2010, afastada de minhas atividades profissionais como professora para dedicação exclusiva à pesquisa. Compositores atuantes em São Paulo tais como Arrigo Barnabé e Flô Menezes foram investigados, mas descartados da pesquisa em razão da necessidade dessa delimitação. 23

No Brasil, o aumento significativo da produção de música cênica ocorreu principalmente a partir da obra de Gilberto Mendes e do Movimento Música Nova. Na Europa, a obra de Maurício Kagel exemplifica o aumento significativo dessa produção. Nos Estados Unidos, John Cage e o Movimento Fluxus – ocorrido também na Europa e Japão – foram importantes fomentadores desse repertório. A música cênica não é tão escassa quanto o reconhecimento das instituições que ensinam e promovem a música. A sua exclusão dos programas de ensino não se deve à quantidade e qualidade de obras produzidas no gênero. Poucas escolas de música, emissoras de rádio e televisão e outras instituições promotoras de arte promovem e/ou divulgam a música cênica, embora haja profissionais ativamente envolvidos nessa área de produção musical:

Poucos conservatórios, organizações artísticas, instituições de fomento, universidades, editores, publicações ou organizações [de comunicação] de mídia possuem departamentos ou especialistas em música cênica, embora haja criadores ativos de música cênica e obras de música cênica sendo criadas todos os dias, em várias partes do mundo. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. vii, tradução nossa).1

Neste trabalho, utilizamos a pesquisa bibliográfica complementada por pesquisa de campo. Entre a escassa bibliografia que comenta e detalha aspectos importantes para a compreensão do tema, foram escolhidos os acima citados Salzman e Dési (2008), além de Bosseur; Bosseur; Autral (1979) e Nyman (1974) por responderem, em suas obras, às nossas principais indagações: Quais são as características fundamentais da música cênica? De onde surgiu e como se configurou esse gênero musical? Como compreender as diversas denominações e classificações que são frequentemente utilizadas no meio musical? Quais os diferenciais que marcam a atuação dos artistas e músicos em geral e, mais especificamente, dos pianistas de formação tradicional nesse universo musical de perfil interdisciplinar? Quais as dificuldades na interpretação e na realização das peças características? Como entender a enorme diversidade de práticas e peculiaridades no âmbito desse repertório? Quem são os compositores cujo conjunto de obras transparece um pensamento cênico/interdisciplinar?

1 “Few conservatories, art organizations, funders, universities, publishers, publications, or media organizations have music-theater departments or music theater specialists although there are active music-theater works being created every day and in many parts of the world.” (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. vii). 24

Ao constatarmos que termos e denominações eram utilizados de maneira confusa mesmo pelos profissionais diretamente envolvidos nas atividades do gênero, resolvemos propor certa organização das categorias da música cênica, a saber: música-teatro, teatro musical, música de ação, ópera contemporânea, ópera multimídia, entre outros. Para organizar essas ideias, foi necessário discriminar práticas diferenciadas entre si tais como movimentação cênica, ação cênica e atuação cênica. O primeiro capítulo pretende minimizar as confusões causadas por tantas denominações da música cênica através de consultas a diversos tipos de publicação e através de entrevistas com compositores e intérpretes. Este capítulo estuda, ainda, as peculiaridades na realização das peças do gênero e comenta formas de atuação que conduzem a uma nova noção de virtuosismo. As demandas para os intérpretes, nesse tipo de repertório, são diferenciadas das atividades desenvolvidas na música tradicional de concerto. Instrumentistas da música de concerto são induzidos, na música cênica, a desenvolver suas capacidades de invenção e a experimentarem outros instrumentos musicais além de suas especialidades. Geralmente, os pianistas de concerto não são preparados, durante o período de formação, para as especificidades da música cênica. Como em outros repertórios de música contemporânea, as peças não são, em alguns casos, editadas ou mesmo escritas. Para que as obras sejam difundidas, compositores e intérpretes precisam se comunicar. Nem todas as instruções são disponíveis através de documentos. O compositor torna-se, então, a própria – ou, pelo menos, parte da – partitura. A transmissão do teor musical/artístico das obras é, nesse caso, oral. A pouca promoção de interação com outras linguagens artísticas frequentemente dificulta aos intérpretes, desde a formação até as atividades profissionais, a incursão na música cênica, que exige práticas teatrais, uso da voz e desenvolvimento de práticas de improvisação. No segundo capítulo, ao contrário do primeiro, a pesquisa de campo é complementada pela pesquisa bibliográfica. Na intenção de divulgar e auxiliar intérpretes, professores e alunos de música, compositores, produtores e outros artistas – além de outros possíveis interessados na realização de música cênica – um repertório composto entre os anos de 1979 e 2012, que consta de cinco peças de compositores atuantes no Rio de Janeiro, é detalhado e analisado em seus aspectos musicais/cênicos. Houve o contato direto com os compositores através de entrevistas em suas residências, por telefone e por correio eletrônico. Os autores cederam materiais e prestaram 25

esclarecimentos a respeito das peças, bem como a respeito de suas trajetórias e conjuntos de obras. As peças em questão são as seguintes: Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö, Estudo para piano, de Tim Rescala, Dueto I +1, que é co-criação do artista plástico Milton Machado, Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar, Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira e Caprichosa voz que vem do pensamento, de Tato Taborda. Entrevistas que foram realizadas para este trabalho e aspectos da vida e obra destes compositores constam nos apêndices. A peça intitulada Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö, não possuía qualquer tipo de relato ou registro gravado, pois não havia ainda sido estreada. Além de produzirmos registro audiovisual, a experiência na execução foi utilizada como exemplo de realização que pudesse ser subsídio para análise. Cada peça analisada possuía algum tipo de gravação. O Estudo para piano, de Tim Rescala, teve a interpretação de Maria Teresa Madeira. Nesse caso, além da gravação audiovisual, a análise foi feita sobre dados revelados na entrevista que a pianista nos concedeu, que consta em apêndice. O Dueto I+1 contou com o relato de Vânia Dantas Leite, que atuou como intérprete, assim como Dimensões para quatro teclados, que teve depoimento também da própria compositora/intérperete, Jocy de Oliveira. Esta possui gravação em áudio de execução da própria autora. A análise de Caprichosa voz que vem do pensamento foi baseada em gravação audiovisual e depoimento do intérprete e autor, Tato Taborda. Os critérios de análise das peças foram construídos a partir das características da música cênica apresentadas no primeiro capítulo. Não encontramos modelos prévios de análise no gênero que pudessem servir de modelo. O terceiro capítulo descreve minha atuação na estreia da peça O espírito da qoisa, de Luciano Garcez, compositor também atuante no Rio de Janeiro, e revela uma experiência de interação entre compositor e intérprete na realização de música cênica. A entrevista concedida pelo autor se encontra nos apêndices desta tese. A aproximação com a obra de Garcez ocorreu na disciplina Tópicos Especiais em Música, que abordou o tema Redimensionando o papel do compositor e do intérprete na música contemporânea, no semestre 2010.1. Na proposta da disciplina ministrada pela Professora Dra. Vânia Dantas Leite, os compositores participantes escreveram para os instrumentistas e cantores da mesma turma. As obras foram apresentadas ao final do semestre. A partir daí, intenso diálogo com o compositor Garcez resultou na formação de equipe de músicos e técnicos que pudessem realizar um projeto de música cênica. O espírito da qoisa foi adaptado para aquele contexto. 26

A troca de experiências e interesses, entre a minha pesquisa na música cênica e as tendências interdisciplinares do compositor Garcez, que além de músico e regente é poeta, foi extremamente enriquecedora e empreendedora. Estimulou todos os envolvidos a desbravarem novos repertórios e proporcionou a prática de requisitos do novo virtuosismo e de algumas outras importantes características na realização de música cênica, que são o trabalho dos intérpretes como co-criadores e co-produtores e o enfrentamento dos desafios na utilização de multimeios. No quarto capítulo, apontamos para as questões levantadas neste trabalho na intenção de que futuros estudiosos do assunto possam explorá-las em seus inúmeros desdobramentos. Acreditamos que o tema abordado se constitui em um dos principais focos da música na atualidade.

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2 MÚSICA CÊNICA: DENOMINAÇÕES E CONTEXTOS

A música cênica permanece em desenvolvimento e auto-renovação. Dessa forma, está também em constante processo de redefinição. A história do gênero ainda está por ser escrita mesmo porque ainda há poucos conservatórios, organizações, fundações, universidades, editores, publicações e mídia especializada, embora já seja expressiva a quantidade de compositores e obras de música cênica em todo o mundo. (SALZMAN; DÉSI, 2008).

2.1 MÚSICA CÊNICA, MÚSICA-TEATRO, TEATRO MUSICAL, MÚSICA DE AÇÃO, TEATRO INSTRUMENTAL

A música cênica é um gênero de música que inclui aspectos cênicos em suas composições. Tal gênero teve suas práticas intensificadas a partir dos anos de 1960 tendo como referência obras de compositores como John Cage e Mauricio Kagel. No Brasil tivemos Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira como precursores. Embora tenha ocorrido tal processo durante o século XX, Salzman (1997, tradução nossa)2 adverte, a respeito da música cênica: “A música cênica é a mais antiga e a mais moderna das artes; a mais esotérica e experimental; e, ainda, ao mesmo tempo, a mais popular. É repleta de contradições - o que a torna interessante e relevante. [...].”3 Segundo Salzman e Dési (2008), óperas, operetas e musicais não deixam de ser, de alguma forma, música cênica, uma vez que promovem interação entre artes diversas, mas diferenciam-se do the new music theater que se define como a música que se relaciona com formas de ópera, teatro e dança contemporâneos, característicos dos movimentos artísticos do século XX. Evidencia-se, nesse repertório, o desejo de aproximação com as plateias em espaços menores, alternativos e a exploração dos conjuntos instrumentais reduzidos e de sonoridades expandidas, tanto das vozes quanto dos instrumentos. Há, na música cênica, permanente questionamento e pesquisa a respeito do formato e função das casas de ópera, das salas de concerto, do formato das apresentações musicais e das tradicionais hierarquias do meio musical/social. A música cênica – à qual Salzman e Dési (2008) se referem e da qual também trata o presente trabalho – absorveu as revoluções musicais e artísticas do início do século XX tanto quanto as inovações relativas a maquinário

2Documento online não paginado. 3 “Music theater is the most ancient and the most modern of the arts, the most esoteric and experimental, and yet, at the same time, the most popular. It is full of these contradictions which is what makes it exciting and relevant. […]”. (SALZMAN, 1997). 28

de palco e iluminação. A partir dos anos de 1980, incorporou novas tecnologias de áudio e vídeo, além do diálogo com gêneros populares e formas de expressão não ocidentais. Para Salzman e Dési (2008), o cinema e a televisão instigaram as apresentações de música e teatro a se tornarem mais dinâmicas e impactantes. A utilização de meios tecnológicos desde a elaboração até a apresentação do repertório de música cênica pode fazer parte da realização tanto dos aspectos sonoros quanto dos aspectos cênicos. A propósito do uso de microfone, por exemplo, Kagel afirmou:

Chamo macrofone ao microfone na minha linguagem [...]. Assim, revelo pensar no microfone como lupa. Hoje, é muito importante empregá-lo como forma de descobrir todo um mundo sonoro que, sem ele, desaparece (UNE PANIQUE...,1973, p. 43 tradução nossa).4

A microfonação dos instrumentos e vozes – externa ou interna, sem fio – proporcionou maior liberdade de posicionamento dos intérpretes no palco, independente das condições acústicas do ambiente. Isso possibilitou a exploração de outros espaços, não tradicionais, de apresentação musical. Facilitou também experiências de interações com as plateias e dos artistas entre si. Projeções holográficas e de filmes 3D, programas de processamento de som e luzes através de computadores, de acordo com o movimento dos músicos, atores e até da própria plateia, em sistemas interativos, caracterizam a música cênica que surge a partir dos anos de 1980, quando formas recentes de design com luzes e cores foram introduzidas com grande importância no repertório do gênero. (SALZMAN; DÉSI, 2008). Os efeitos das novas tecnologias no palco contribuem muitas vezes para romper as fronteiras entre artistas e público, uma vez que dissipam as mesmas fazendo o espectador se sentir em cena e colocando elementos da cena na plateia. Isso faz com que velhos hábitos dos ouvintes/espectadores comecem a se modificar. Essas práticas são também encontradas no teatro contemporâneo e são bastante recorrentes nas obras de teatro instrumental de Kagel. (SALZMAN; DÉSI, 2008). Na música cênica, as características extra-musicais que interagem com os sons podem ser indicadas em partitura. Podem ser relatadas e discutidas com os intérpretes pelos próprios compositores durante os ensaios no processo de produção artística ou podem ser mera

4“J‟appelle le microphone, dans mon langage […] le macrophone. C‟est-à-dire que je pense que le microphone, c‟est une loupe. Et aojourd‟hui, c‟est três important de l‟employer de façon à decouvrir tout un monde sonore qui sinon disparaît.” (UNE PANIQUE…, 1973, p. 43). 29

decorrência – resultado – das ações e movimentações dos intérpretes na realização das peças. Nessa interação, as outras artes não estão a serviço da música – como na ópera tradicional, por exemplo – e sim em nível de igualdade de importância e destaque. Alguns aspectos podem ser considerados como movimentação cênica, ação cênica e atuação cênica. Diferenciam-se aqui esses termos a fim de que as diversas formas de apresentação de música cênica possam ser denominadas. Por movimentação cênica entenda-se o deslocamento funcional de pessoas e/ou objetos no palco. Por ação cênica, o gesto cênico que pode ser predeterminado ou sugerido na partitura, e todo tipo de movimentação produzida por intenções expressivas durante a execução do instrumento musical. Dessa forma, a ação cênica pode produzir uma cena natural resultante da atuação dos instrumentistas ou forjá-la, sublinhando e acentuando os gestos cênicos que são habituais dos músicos. A atuação cênica, por sua vez, é a representação teatral. Exige dos instrumentistas um trabalho que desenvolva ao mesmo tempo suas habilidades como músicos e atores. As peças de música cênica têm movimentação, ação e atuação cênica apenas como alguns entre outros tantos aspectos cênicos possíveis como cenário, figurino, iluminação e texto. Nelas ocorrem relações interativas entre música – podendo incluir diálogos entre gêneros musicais diversos – e demais linguagens artísticas: artes plásticas, literatura, teatro, dança, vídeo. Essas relações não requerem a produção de significado, num processo de dessemiotização da arte. (SALZMAN; DÉSI, 2008). Dessemiotização é a superação da necessidade compulsiva da sociedade civilizada em exigir que as obras de arte tenham sentido e significado explícitos. Através desse processo de dessemiotização, a música cênica declarou não ter intenção de sempre produzir sentido e significado através de suas obras. A música cênica, muitas vezes, não pretende contar estórias. (SALZMAN; DÉSI, 2008).

Muitas peças são difíceis de entender somente com base na estória escrita porque o texto é frequentemente inaudível, fragmentado ou então distorcido. O conceito de meta-texto abrange toda a concepção/composição de uma peça de música cênica. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 322, grifo nosso, tradução nossa).5

Ainda com relação à convivência entre música e texto na música cênica, Mauricio Kagel (Argentina, 1931 – Alemanha, 2008), por exemplo, escrevia seus próprios textos:

5“Many pieces are difficult to understand solely on the bases of a written story because the text is often inaudible fragmented, or otherwise distorted. The concept of meta-text embraces the whole concept/composition of a music-theater piece”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 322). 30

Eu tive muita dificuldade de encontrar um escritor com quem trabalhar e comecei, depois de muito tempo, a escrever meus próprios textos. Muitos contatos mal sucedidos ocorreram entre compositores e escritores ao longo de três séculos, de Monteverdi a Verdi, de Mozart a Debussy! [...] Eu sempre fui fascinado pelas palavras (elas são para mim tão valiosas quanto os sons) [...]. O alfabeto, os fonemas podem são tratados como séries de alturas dos sons (BOSSEUR, 1971, p. 103, tradução nossa).6

Os compositores de música cênica frequentemente atuam como intérpretes, autores, diretores, coreógrafos, figurinistas, cenógrafos, designers de cena, luz e som. (SALZMAN; DÉSI, 2008). A propósito dos diálogos entre gêneros musicais e linguagens artísticas – e propondo experiências dos instrumentistas com a voz e com outros instrumentos que não são sua especialidade, Kagel comenta:

[...] nesse gênero [música cênica], onde todas as possibilidades individuais são solicitadas, um trabalho coletivo da ordem quase „terapêutica‟ é indispensável. Justamente porque a estrutura tradicional, hierárquica, da ópera se quebra, os participantes deveriam aproveitar as formas não convencionais de realização e de trabalho, enquanto artistas e seres humanos. Parece necessário prever para isso um trabalho didático que, por fim, abolirá totalmente os especialistas (MAURICIO..., 1975, p. 71, grifo nosso, tradução nossa).7

Kagel é certamente um dos compositores que melhor mostraram os aspectos teatrais embutidos nos fenômenos musicais. Suas obras cênicas se pautam nos aspectos sonoros e contextuais das apresentações musicais: aspectos da preparação e da realização das mesmas, do que acontece no palco ao que acontece nos bastidores.8 Salas de concerto, compositores, intérpretes, público, produtores, diretores, técnicos e colaboradores fazem parte desse mundo

6 “Il m‟a été trop difficile de trouver un écrivain avec qui collaborer et j‟ai commencé depuis longtemps à écrire des textes moi-même. Trop de mauvais contacts ont existé entre compositeurs et ecrivains depois trois siècles, de Monteverdi à Verdi, de Mozart à Debussy. [...] j‟ai toujours été fascine par les mots; (ils ont pour moi autant de valeur que lês sons) [...]. L‟alphabet, lês phonèmes peuvent être traités comme des séries de hauters de sons”. (BOSSEUR, 1971, p. 103). 7“[...] dans um tel genre [le théâtre musical], où toutes les possibilites individuelles sont sollicitées, um travail collectif d‟ordre presque „thérapeutique‟ est indispensable. Justement parce qui la structure tradicionelle, hiérarchique, de l‟Opéra est eclaté, des participants devraient profitée, des formes non conventionelles de réalisation et de travail, à la fois en tant qu‟artistes et êtres humanis. Il semble nécessaire de prevoir pour cela um vrai travail didactique, qui aboutira finalement à um effacement total des spécialistes [...]”. (MAURICIO..., 1975, p. 71). 8A produção de filmes de Kagel foi intensa entre os anos de 1960 e os anos de 1970. Ele realizou, em média, um filme por ano, muitos deles para tela pequena. A tecnologia de produção de vídeo ainda não era acessível na época. Ainda enquanto morava na Argentina, o compositor relacionava-se intensamente com cineastas amigos, com os quais fundou a Cinemateca Argentina. 31

musical. Nenhum outro compositor explorou de forma tão sistemática os detalhes característicos das práticas da música de concerto aliados aos da indústria cultural e a situação da música do passado na época em que viveu. No filme Ludwig Van (1969), Kagel “[...] celebrou o bicentenário de Beethoven em 1970 com uma representação burlesca de um kitch turístico cultural da indústria na qual, efetivamente, Beethoven se tornou um mero produto de consumo”.9 (JACK, 2008).10 Sobre o filme, explicou:

Eu já havia dito que ele [o filme Ludwig van] era uma declaração de amor por Beethoven. [...] é muito difícil dizer exatamente o que Beethoven é para mim... porque eu o amo de tal maneira... Eu nasci numa tradição... tradicional, digamos assim! Mas justamente, esse contato tão forte com a música do passado é, para mim, sempre, o motivo de repensar o que a música do passado é [significa] para mim. [...] A música do passado é tão mais próxima de nós à medida em que nós a interpretemos de maneira diferenciada [de acordo com as nossas próprias experiências, levando em consideração novos contextos]. (UNE PANIQUE...,1973, p. 43-44, tradução nossa).11

As preocupações políticas de Kagel perpassam sua obra:

[...] não tenho como influenciar a política, mas tenho muitas possibilidades de influenciar a política cultural. Agora, minha função é de influenciar as formas culturais para atender a um grande anseio por maior liberdade. Meu objetivo agora é muito pequeno, mas eu quero persegui-lo com o maior rigor possível. É a minha contribuição a uma <>, por assim dizer (UNE PANIQUE..., 1973, p. 54, tradução nossa).12

9“[…] celebrated the bicentenary of Beethoven's birth in 1970 with a burlesque representation of the kitsch cultural tourist industry in which, effectively, Beethoven became a mere consumer product.” (JACK, 2008). 10Documento online não paginado. 11“J‟ai dit qu'il [o filme Ludwig van] était une déclaration d‟amour pour Beethoven. […] Et c‟est très difficile de dire exactment ce que Beethoven est pour moi... Parce que je l‟aime tellemen… Je suis né dans une tradition... traditionelle, disons comme ça! Mais justement, ces rapports très forts avec la musique du passé, c‟est pour moi la raison toujours de repenser ce qu‟est la musique du passé pour moi. […] La musique du passé est plus proche de nous dans la mesure ou nous l‟interpretons d‟une façon differénte!” (UNE PANIQUE..., 1973, p. 43-44). 12 “[...] je n‟ai pas de possibilité d‟influencer la politique, mais j‟ai beaucoup de possibilités d‟influencer la politique culturelle. Alors, ma fonction, c‟est d‟influencer les formes culturelles, pour aboutir à une plus grand souplesse, à une plus grande libéralité. Alors, mon bout, c‟est très petit. Mais je veux le faire avec la plus grande rigueur que je peux faire. Et c‟est ma contribuition à une <>, si jê peux dire ça”. (UNE PANIQUE..., 1973, p. 54). 32

As relações humanas – dentre estas, a relação dos compositores com instrumentistas, cantores e público, músicos e plateia – fazem parte do trabalho de Kagel: “Um compositor dificilmente pode permanecer sozinho em sua torre de marfim. Mesmo nos casos em que escreve uma obra que não tem nada a ver com um fato político ou sociológico [...] possui qualquer posição político-cultural” (BOSSEUR, 1971, p. 102, tradução nossa).13 As relações entre músicos dentro do próprio meio musical são retratadas frequentemente por esse compositor: “É necessário abordar esse trabalho direto, diário, com a sociedade musical que me rodeia.” (UNE PANIQUE..., 1973, p. 64, tradução nossa).14 De acordo com Salzman e Dési (2008), no limite entre a seriedade e o ridículo, a teatralidade da execução musical chama atenção para a corporalidade e visualidade dessa atividade artística que seria prioritariamente sonora. Na peça Match, de Kagel, composta em 1964 para dois violoncelos e percussão, uma situação teatral decorre de uma situação originalmente extra-musical – embora tal situação não pareça óbvia ao espectador/ouvinte: dois violoncelistas estão em combate enquanto o percussionista se coloca como árbitro. No conjunto da obra de Kagel, outras situações teatrais são encontradas em Sur scène (1959) para locutor, cantor (baixo), mímico e três instrumentistas-atores; Le Bruit (1960) para fontes sonoras diversas; Journal de Thèâtre (1960) para instrumentos, atores e equipamentos; Prima Vista (1962-64) para slides e número indeterminado de fontes sonoras; Phonophonie (1963-64) para 2 vozes e outras fontes sonoras; Camera Oscura (1965) para fontes luminosas e atores; Tremens (1965) na qual o compositor se baseou nas próprias experiências com alucinações acústicas que anotou como em um diário; Kommentar und Extempore15 (1966- 1967), que é um monólogo com indicação de figurino e gestos – inclusive expressões ofensivas; Variationen für Sänder und Schauspieler (1967) para músicos e atores; Synchronstudie, (1969) com a tentativa de sincronização de um cantor e um sonoplasta com determinado filme; Mare Nostrum, (1975) sobre fictícia descoberta, pacificação e conversão de região mediterrânea por uma tribo da Amazônia; Umzug (1977) com a arrumação do palco por encarregados – contra-regras, assistentes; Eine Breise (1996) para 111 ciclistas; Duodramen (1997-1998) para soprano, barítono e orquestra; entre outras.

13“Un compositeur peut difficilement rester seul dans sa tour d‟ivoire. Même dans le cas où Il écrit une oeuvre qui n‟a rien à position politico-culturelle”.(BOSSEUR, 1971, p. 102). 14 “Il faut aborder ce travail direct, journalier, avec la societé musicale que m‟entoure”. (UNE PANIQUE..., 1973, p. 64). 15Kagel criou cerca de 1800 cartas com indicações de gestos e palavras que funcionam como uma espécie de gerenciador de ações. A sequência de utilização das cartas não é predeterminada, deve ocorrer aleatoriamente, pela sorte de qual for tirada a cada momento. 33

John Cage (EUA, 1912-1992) é outro importante representante da música cênica. Esse compositor fomentou, em sua época, “um movimento artístico que visa considerar as experiências visuais e auditivas como mais e mais necessariamente ligadas [...].” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 129, tradução nossa).16 Ele trafegou constantemente entre diversas linguagens artísticas: música, poesia, teatro, dança, artes plásticas. Cage foi o precursor do piano preparado. Sobre sua obra de música cênica, Bosseur; Bosseur; Autral (1979, p. 129) escreveram: “Muito dinâmica nos Estados Unidos, essa tendência considera como teatral tudo o que nos cerca e desafia a cisão entre disciplinas artísticas e suas especializações [...].”17 Toda apresentação artística que se baseia no acaso – performances, por exemplo – refere-se, de alguma maneira, à obra de Cage. O acaso foi uma tônica da obra de Cage e do Movimento Fluxus. Jogos de probabilidades – como os de cartas e I Ching, comandando as ações dos artistas – se apresentaram como construção de música cênica com seus aspectos tanto visuais quanto sonoros. Cage, “a fim de assimilar o aleatório à criatividade, passou a jogar „cara ou coroa‟ para estabelecer os caminhos da composição ([Ex:] Music of Changes, 1951)”, (CAGE..., 1994, p. 155). Segundo Bosseur; Bosseur; Autral (1979), na obra de Cage a linguagem teatral está sempre envolvendo a música, assim como a música está sempre ao redor do teatro. Como exemplos de sua obra cênica pode-se citar, ainda, as seguintes peças: 4‟33‟‟ (1952), em que o(s) músico(s) não tocam seu(s) instrumento(s) – os ruídos que emergem do que acontece no ambiente do concerto e a cena natural que ocorre em suposto silêncio são a própria música; Watermusic, (1952) em que o pianista despeja água num pote e sopra, dentro da água, um apito; Indeterminancy: new aspects of form in instrument and electronic music (1958) em que noventa anedotas podem ser declamadas pelo(a) cantor(a) ou ator (atriz), cada uma devendo durar um minuto, acompanhada por piano e sons eletrônicos; 0˙0¨ (1962), ou 4˙33¨II composta dez anos após 4‟33‟‟, em que o intérprete descasca vegetais, coloca-os no liquidificador e toma-lhes o suco; Pas de cinq (1965) em que cinco intérpretes de óculos escuros, com bengalas ou bastões caminham por um pentágono, num labirinto com rampas, executando ritmos diversos e Variações, de I a IV (1958-1966), com inserções cênicas.

16“La Theatre Piece de John Cage (1960) apparaît particulièrement representative d‟unmovement artistique qui vise à considerer les experiences visuelles et auditives comme de plus em plus nécessairement intriquées [...].” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUBRAL, 1979, p. 129). 17 “Très dynamique aux États-Unis, cette tendance à prendre le théâtre comme tout ce qui nous entoure, à défier lês scissions entre disciplines artistiques et leur spécialisation [...]”. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 129). 34

No processo histórico que encaminhou a chamada música cênica, Erik Satie (França 1866-1925) e Charles Ives (EUA 1874-1954) foram considerados por Cage como compositores que definiram a tendência da música que interage com outras artes, pois já revelavam em suas obras concepções artísticas extra-musicais. (NYMAN, 1974).18 Entretanto, a interação entre linguagens artísticas é inerente à natureza humana. Ainda são muitas as culturas que não fazem clara distinção entre música e outras artes além de não pensarem nas atividades artísticas como algo à parte, na vida social do ser humano (SALZMAN; DÉSI, 2008). Entre as décadas de 1960 e 1970, no Japão, Estados Unidos e Europa, o Movimento Fluxus, que teve Cage como um de seus principais integrantes junto a György Ligeti (Hungria, 1923 - Áustria, 2006)19 e Henry Flynt20 (EUA, 1940), entre muitos outros artistas, desenvolveu intensamente suas atividades. O movimento se caracterizou pela proposta de integração entre diversas linguagens artísticas – especialmente música, artes visuais e literatura. Segundo as propostas do grupo que liderou o Movimento Fluxus, a arte se expande de maneira a não compartimentar os diferentes tipos interligados de percepção, especialmente no que diz respeito às percepções visual e auditiva. Nessas propostas artísticas, tais percepções se associam em obras que colocam em evidência e questionam relações não apenas musicais, mas também psico-sociais entre intérpretes segundo comportamentos e funções típicas dos instrumentos e dos instrumentistas no meio musical. O Fluxus propunha experiências relativas à apreciação dos ouvintes/espectadores21 – com a finalidade de estimular-lhes a participação através dos sentidos além da audição. As propostas sugeriam, inclusive, uma mútua apreciação entre público e artistas. Enquanto Cage apresentava em Musicircus (1967) múltiplos eventos em um, com vários grupos musicais independentes tocando rock, jazz, música eletrônica, piano, canto além de dança através de projeção de videos e slides simultaneamente no mesmo espaço, o compositor La Monte Young (EUA, 1935), também atuante no Movimento Fluxus, procurava reduzir ao mínimo um único e conciso conteúdo artístico – material musical – a ser apreciado,

18É importante ressaltar, entretanto, que algumas das primeiras obras de referência no processo que levou à nova música cênica foram A história do Soldado (1918) e Renard (1916), de Igor Stravinsky (Rússia,1882 - EUA, 1971) (além de Pierrot Lunaire (1912), de Arnold Schoenberg). 19Ligeti criou ações dramáticas dedicadas à plateia: Aventures (1962) e Nouvelles Aventures (1962- 1965) para três cantores e sete instrumentistas. 20Compositor, músico e filósofo ligado ao Movimento Fluxus principalmente através de seus trabalhos em colaboração com La Monte Young e George Maciunas. 21Kagel também realizava tais experiências (Con Voce para três instrumentos sem som, 1973). 35

por exemplo, em Compositions (1960), em que, na primeira de uma série de seis peças, o pianista empurra o instrumento no palco até se cansar e, na quinta peça, uma borboleta é solta no palco e a música acaba quando ela se vai. Segundo George Brecht (EUA, 1926-2008), os integrantes do Movimento Fluxus não tentaram criar regras ou métodos comuns. Apenas se reuniam para executar e publicar trabalhos situados na “fronteira da arte” 22 , onde as ações do cotidiano encontram-se intrincadas às atitudes artísticas. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 131). Nesse contexto que questiona a função dos instrumentos musicais, a peça Un vase sur le piano (1962), de Brecht, apresenta um piano usado apenas como aparador para um vaso de flores. Ocorre também na performance criada pelo artista George Maciunas (Lituânia 1931- 1978) – um dos principais fundadores do Movimento Fluxus – o destaque de um gesto como o polir de um violino em Solo pour violon. O instrumento, após polido, é progressivamente maltratado e, depois, destruído. Quanto às questões que dizem respeito à relação dos artistas com o público: em Pièces de public (1964), de Ben Vautier (Itália, 1935), o autor tem intenção de provocar – e até mesmo agredir – a plateia para que haja algum tipo de reação não usual da mesma. Conteúdos políticos se manifestam através da obra de Luigi Nono (Itália, 1924-1990)23 que compôs, por exemplo, Intolleranza (1960), que consiste em uma ação teatral em dois tempos num protesto contra a intolerância e a violência contra a dignidade humana. Temas violentos revelavam certa tendência, na época, a um cinismo que questionava os valores culturais do momento. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979). Nam June Paik (Coréia, 1932-2006) pôs em pauta a sexualidade no fazer musical. Uma abordagem por vezes agressiva da sexualidade é evidente, por exemplo, na Ópera Sextronique (1967), do referido autor, que foi um dos pioneiros na videoarte. Sua estreia em Nova York apresentou a violoncelista Charlotte Moorman com os seios à mostra. Os temas tentavam denunciar “a hipocrisia pré-freudiana da vanguarda musical que criticava, através de seus pretensos movimentos de emancipação, serialismo, indeterminação e música cênica, um

22“Frontière de l‟art” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 131). 23Exemplos: Non consumiamo Marx (1969), Siamo La giuventù Del Vietnam (1973) e A floresta é jovem e cheia de vida (1966) para soprano, três declamadores, clarinete, thunder sheets (instrumento de percussão que simula sons de trovão) e gravação em oito canais. 36

puritanismo ultrapassado e doentio.” (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 131, tradução nossa).24 A obra de Sylvano Bussotti (Itália, 1931) é carregada de erotismo (La passion selon Sade, 1969) e repleta de ritualismos. Segundo ele, todo concerto, mesmo em se tratando dos mais tradicionais, comporta um tipo de ritual na execução que exibe. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979). O compositor Peter Schat (Holanda,1935-2003), em sua obra Labyrinth (1966), dá um exemplo de interação entre filme, música e dança, numa construção cênica extremamente complexa onde atividades autônomas coexistem no mesmo espaço com os artistas e o público, que é convidado a participar da obra, tomando uma posição em sua apreciação pluridimensional. Outros autores, não diretamente ligados ao Movimento Fluxus, compuseram peças cênicas. Segundo Griffiths (1971, p. 169):

[…] por volta de 1970, raros eram os compositores de vanguarda que não introduziram elementos teatrais em sua música. Alguns podem ter visto na música de teatro a oportunidade de estabelecer com o público uma relação mais estreita que a existente nos anos 50, quando as declarações e ensaios teóricos de muitos compositores, senão mesmo suas obras, pareciam concebidos para desencorajar as platéias.

Karlheinz Stockhausen (Alemanha, 1928-2007) criou Musikalishses theater – Originale (1961) em resposta a Theater piece, de Cage, organizando aspectos teatrais numa composição serial. Criou também Momente (1962-1969) para soprano, coro misto, quatro trompetes, quatro trombones, três percussionistas, dois teclados eletrônicos; Trans (1971) para orquestra, com iluminação artística e cenário; Herbstmusik (Autumn Music) para quatro instrumentistas (1974); Inori (1974) para orquestra e um ou dois solistas mímicos; Musik im bauch (Music In The Belly) (1975) para seis percussionistas e alto-falantes, Sirius (1977) para quatro músicos e tape, com indicação de figurino e Licht (1977-2003) que consiste em um ciclo de sete óperas, uma para cada dia da semana, combinando elementos da cultura germânica e oriental. Hans Werner Henze (Alemanha, 1926-2012) criou Actions for music – we come to the river (1976) com libreto do dramaturgo inglês Edward Bond em três palcos com teatro, canto e orquestra atuando simultaneamente.

24“Nam June Paik denónça alors l‟hypocrisie pré-freudienne de l‟avant-garde musicale que demeure, à traversses prétendus mouvements d‟emancipation, sérialisme, indetermination et musique d‟action, enfermée dans un puritanisme suranné.” (BOSSEUR; BOSSEUR, AUTRAL, 1979, p. 131). 37

Luciano Berio (Itália, 1925-2003)25 compôs Circles (1960) para voz feminina, harpa e dois percussionistas, com movimentação cênica, Laborintus II (1965) para vozes, instrumentos, narrador e tape, Recital I (For Cathy) (1972) para mezzo-soprano e dezessete instrumentos.26 Salvatore Sciarrino (Itália, 1947) compôs óperas de apenas um ato, a exemplo de Amore e psiche (1972). Na Inglaterra, Alexander Goehr (Alemanha, 1932), Peter Maxwell Davis (Inglaterra, 1934) e Harrison Birtwistle, fomando o Manchester Group, estabeleceram relações entre música e cena chegando a criar peças que estariam no limite entre o que poderia ser uma peça de concerto ou uma peça de teatro como, por exemplo, Eight songs for a mad king (1968- 1969). Nos Estados Unidos, Eric Salzman (EUA, 1933) compôs peças de rádio-teatro além de The true last words of Dutch (1997) para barítono, mezzo-soprano, violino, tuba e percussão com libreto de Valeria Vasilevski; La prière du loup (1997) para voz, teclados e dois percussionistas, com texto do autor em parceira com Michel Rostain; Cassandra (2001) para soprano, piano e sons digitais, com texto do autor; A William Meredith bestiary (2004) para mezzo soprano e piano, que é um ciclo de canções com poesia de William Meredith Vox (2006) para atriz e violinista, com atuação cênica; e Suite from strike up the band (2006) para orquestra de câmara, baseada no musical Strike up the band, de George e Ira Gershwin. Dieter Schnebel (Alemanha, 1937)27 compôs Visible music I (1961-1962) na qual o regente se movimenta cenicamente (propositadamente) e Nostalgie (1962) para regência solo, em que se ouve apenas a respiração do maestro. Hans Joachim Hespos (Alemanha, 1938) criou Fulaar (1989) para coisas de algum lugar com diversas interações entre músicos e performers e Black beauty (1993) para caixa clara, ator, trabalhador, homem com diversas tarefas, piano, técnico em iluminação e assistente de iluminação.28 Steve Reich (EUA, 1936) produziu peças multimídia em parceria com sua esposa, a videoartista Beryl Korot, usando texto, imagens e música vocal/instrumental: The cave (1990-1993) e Three tales (2002). Philip Glass (EUA, 1937) compôs Einsten on the beach (1976) em colaboração com Robert Wilson – ópera em

25Berio, assim como Kagel, traz em sua obra questões relativas à música e apresentações musicais em seus contextos sociais dentro do próprio meio musical e fora dele. 26Luigi Nono e Luciano Berio foram fortemente influenciados por grupos experimentais de teatro que se estabeleceram também na década de 60. Incorporaram elementos daquelas produções em suas obras de música-teatro. 27Dieter Schnebel criou o que seria uma subcategoria de música cênica que prescinde de atores e de sons: música para ser lida. A peça No-No (1969) é um livro com ilustrações – símbolos musicais. 28De acordo com Salzman e Dési (2008), o meio acadêmico não sabe como classificar esse compositor e sua obra. 38

quatro atos para pequeno grupo de cantores não operísticos, violino, teclados eletrônicos, flauta amplificada, saxofones, clarinetes e voz amplificada (que constituem o Philip Glass Ensemble), 1000 airplanes on the roof (1988) em parceria com o dramaturgo David Henry Wong, The photographer (1984, 1996), que é peça multimídia composta em parceria com JoAnne Akalaitis e Monsters of Grace (1999) em mais uma colaboração com Robert Wilson. Meredith Monk (EUA, 1942) possui obra fortemente cênica que inclui Education of the girlchild (1973), Quarry (1976), Specimen days (1981), The games (1983) em colaboração com Ping Chong, Atlas (1991). Além desses, outros compositores como, Vinko Glokobar (França, 1934) e Heinz Holliger (Suíça, 1939) produziram música cênica. No Brasil, ao mesmo em tempo que a produção internacional de música cênica se intensificava, surgia o Movimento Música Nova, fundado em 1963 por Gilberto Mendes (Santos/SP, 1922) e Willy Corrêa de Oliveira (Recife/PE, 1938), entre outros artistas. O Movimento Música Nova buscava aliar ao serialismo e às experiências com microtons os processos eletroacústicos e a música concreta, também rompendo as fronteiras entre as artes visuais, música, poesia, dança e teatro.29 Mendes ([2006]) relatou que, nos anos de 1960,

A gente queria fazer uma música que não tivesse nada a ver com a música européia. Nós viemos de Darmstadt decididamente dispostos a não fazer aquela música. Não que nós tivéssemos algo contra aquilo: de jeito nenhum! Aquela música nos impressionou muito, foi até um choque: um choque no bom sentido da palavra, porque abriu as nossas mentes mais ainda, porque já estavam abertas nesse sentido, para o novo. A missão deles era fazer o novo .

Gilberto Mendes, Rogério Duprat (Rio de Janeiro/RJ, 1932 - São Paulo, 2006), Willy Corrêa de Oliveira, Régis Duprat (Rio de Janeiro/RJ, 1930), Júlio Medaglia (São Paulo/SP, 1938), Damiano Cozzella (São Paulo/SP, 1929), Sandino Hohagen [19--] e Alexandre Pascoal [19--] haviam lançado o manifesto Música Nova em 1963. Queriam romper com o nacionalismo dominante, firmando, assim, “um compromisso total com o mundo contemporâneo.” (MENDES, [2006]). Segundo Régis Duprat ([2006] apud MENDES, [2006]) , “a música estava nas mãos do nacionalismo”, de um grupo que ergueu para si uma torre de comando da qual manipulavam orquestra e escolas de música antiquadas:

29Essa comunicação entre diversas linguagens artísticas já estava em pauta, no Brasil, na Semana de 22. 39

[...] a vanguarda ainda era uma postura modernista. [...] a pós- modernidade traz, na realidade, um reflexo do mundo contemporâneo que é a característica da pluralidade. [...] É justamente, eu diria, nas vertentes que se sucederam à Música Nova: são vertentes pós-modernas e muitas coisas que a gente, ao ler com a inteligência o Manifesto Música Nova, nós aprendemos... muita coisa que o Manifesto já indicava para o futuro que era, justamente, essa necessidade de haver um respeito pela pluralidade. (MENDES, [2006]).

O grupo pretendia fazer uma reavaliação dos meios de informação, da “[...] importância do cinema, do desenho industrial, das telecomunicações, da máquina como instrumento e como objeto: cibernética”.30 (COZELLA, et al., 1963).31 Na obra cênica de Gilberto Mendes constam: Cidade (1964) para tape e músicos ou atores; Beba Coca-cola (1968) para coro, com ação cênica; Son et Lumière (1968), música cênica para piano, que utiliza luz e ruído proveniente de máquinas fotográficas (a pianista é um personagem inspirado na figura de um manequim ou modelo fotográfico32 e a execução da peça não exige uma pianista profissional: uma bonita mulher que se senta ao piano, mas não toca – é uma celebridade assediada e fotografada e sob as luzes e os ruídos dos flashes parece perdida no palco, sem saber o que fazer); Santos Football Music (1969) para orquestra, tape e público, com participação do público; Atualidades: Kreutzer 70 (1970) para coro, piano e violino; Asthmatour (1971) para coro, Objeto musical - uma homenagem a Marcel Duchamp (1972) para ventilador e barbeador elétrico e dois músicos ou atores; Ópera Aberta (1973) para uma cantora lírica e um halterofilista e pequeno coro; Página musical para ser olhada (1973) para coro, com projeção de slides; Pausa e menopausa (1973) para xícaras e colherinhas de chá ou café e três musicistas ou atrizes, com projeção de slides; Der Kuss (1976), para dois músicos ou atores e percussionistas, com sonorização; Música para piano n.2 - Recado a Schumann, de um velho caderno de notas (1983); Grafito (1985) para qualquer instrumento e tape, com um vaso sanitário com um pensador sentado com as calças arregaçadas; O último tango em Paris (1987) para regente, um violinista, uma violinista e

30 No âmbito das artes cênicas, por exemplo, Samuel Beckett, precursor do chamado teatro do absurdo, aliava às artes cênicas o cinema, as artes plásticas e até a arte do circo. A comunicação entre música cênica e teatro experimental é evidente. 31Documento online não paginado. 32Inspirado na figura da jornalista, modelo, atriz e apresentadora de televisão Márcia Mendes, que faleceu aos 34 anos no ano de 1979, Gilberto Mendes dá importância ao aspecto visual da própria pianista em detrimento da sonoridade que ela emite. Não é a pianista a responsável pela sonoridade de Son et lumière. Sua execução é uma simulação, constituída apenas de movimentos que acompanham sons pré-gravados.

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orquestra; Vers les joyeux tropiques, avecune musique vivante, théatrale (1988) para piano e dois atores ou atrizes; Anatomia da musa (1993) para piano e voz, com projeção de slide. Willy Corrêa de Oliveira compôs – além de música de cena como, por exemplo, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – Fantasia em Fá (1957/1958) para piano e orquestra, na qual há indicação de figurino e cenário (o autor garantiu em documento registrado em cartório a proibição de qualquer gravação apenas em áudio para que a peça seja apreciada somente se acompanhada de seus recursos cênicos). Compôs, ainda, Divertimento (1960) para grande orquestra, apresentadora de TV, locutor, conjunto de rock e quarteto de cordas, cuja execução é entrecortada por anúncios comerciais; Cantares encantados das sereias (1965) para sons de dois sopranos, contralto, violino, percussão e contrabaixo, em que doze instrumentistas nuas desfilam carregando seus instrumentos (a baterista, apenas com as baquetas) e entram em uma piscina para tocarem submersas com sistema de sonorização que capta os sons por debaixo da água (a peça teve uma única audição porque o compositor garantiu através de documento registrado em cartório que não houvesse uma segunda exibição, criando o conceito que denominou once music - música que só deve ser realizada uma – única – vez). Cinco kitschs (1968) é música para piano com atuação cênica e co-autoria do intérprete (no segundo kitsch, o(a) pianista deve escrever sua própria partitura de acordo com instruções do autor e no quinto kitsch, seleciona e edita trechos da peça para que um suporte reproduza enquanto ele(a) deixa o palco, senta-se em meio à plateia e aplaude de pé e veementemente com gritos de bravo! ao final da execução). Em Fried Rich (1974) para três trios (trio de violino-viola-violoncelo, além de outro trio de piano-gaita de fole-clarinete e mais um trio de trompa), Corrêa coloca os três trios em ambientes separados por divisórias. O público visita os stands, onde os sons se misturam e onde podem ser inseridas obras de artes plásticas como numa exposição – o público deve poder apreciar também de cima, do alto, a execução. Once upon a time in Berlim (1989), para um intérprete, inclui projeção audiovisual de concerto pré-gravado. Entre compositores brasileiros – não ligados ao Movimento Música Nova – que escreveram peças cênicas, encontram-se Dawid Korechendler (Rio de Janeiro/RJ, 1948), Henrique Morozowicz (Curitiba/PR, 1934-2008) e Jorge Antunes (Rio de Janeiro/RJ, 1942). Henrique Morozowicz de Curitiba compôs Estudo Aberto (1975) para flauta e clarinete e fagote com indicação de figurino e movimentação cênica e Comentários para uma peça de Mozart – Collage - 76 (1976) para piano e projeção de vídeo (uma das variações da peça, que é um tema com variações, consiste na exibição de um vídeo pré-gravado pelo pianista em trajes e ambientação do século XVIII). Jorge Antunes escreveu muitas peças de música 41

cênica: Canção da Paz (1965) para voz de barítono, piano e tape; Poema Camerístico (1966) para locutor, fagote, piano e tape; Concertatio (1969) para trio vocal, guitarra elétrica, baixo elétrico, bateria, orquestra sinfônica e tape; Music for eight persons playing things (1970/1971) para oito músicos; Microfórbiles II (1972) para flauta em sol, clarineta, viola, violoncelo, percussão, voz de barítono e público, com projeção de slides e participação do público; Flautatualf (1972) para flauta e tape, em que ocorre uma gravação em tempo real para ser executada em seguida, em sentido reverso; Symposium (1974) para seis vozes, Mascaracol (1975) para três fagotes; Coreto (1975) para flauta (também flautim), clarineta, trompa, viola, violoncelo, piano tipo armário – desafinado – e três tambores amadores, com cenário; Source vers SP (1975) para dançarina, sintetizador, flauta, oboé, voz de contralto, piano, trompa, viola, violoncelo, tape, pequenas fontes sonoras amplificadas e teclado de luzes – para ser apresentada em saguões de teatro antes, durante o intervalo e após concertos; Vivaldia MCMLXXV (1975)33 para mímico ou dançarina, voz de contralto, flauta, trompa, corne inglês, piano, violoncelo, viola e tape; Três impressões cancioneirígenas (1976) para flauta, viola e violoncelo; Violácea Metalina (1976) para trompete, trompa, tuba, violino, viola, violoncelo, contrabaixo e vozes dos instrumentistas de sopro; Redundantiae - variações para um arabesco e um suspiro (1979), que inclui suspiros sonoros a serem emitidos pelo(a) pianista; Redundantiae II - variações para um arabesco e um sussurro(1979); Dramatic Polimaniquexixe ou Quinto movimento para uma suite implacavelmente longa e erótica (1984) para clarineta, violoncelo e piano; Sinfonia das diretas (1984) para 300 buzinas de automóvel, saxofone alto, guitarra elétrica, baixo elétrico, bateria, percussão, declamador, coro misto, coro popular e tape, para apresentação na rua, com participação do público; Redundantiae III, variações para um arabesco e um sopro (1989) para trompa e piano; Lecture (1990) para clarinete baixo; Amerika 500 (1992) para flauta (também flautim e flauta em sol; clarinete baixo, percussão, piano, viola e violoncelo; Le cru e le cuit (1993/1994) para percussão e tape; Rimbaudiannisia MCMXCIV (1994) para três crianças (uma das crianças também é dançarina), coro infanto-juvenil, máscaras, flauta, oboé, corne inglês, clarineta, clarinete-baixo, fagote, trombone, percussão, violino, violoncelo e contrabaixo, com indicação de figurino (maquiagem e adereços); Com texto sem rei n. 1 (1998) para flauta; Miró, escuchó, miró (1998) para piano e tape, com projeção de slide; Rituel Violet (1999) para sax tenor e tape e Blues (2000) para piano, com iluminação artística. Dawid Korenchendler

33A movimentação artístico-cultural ocorrida nos anos de 1970, que resultou na primeira das bienais de música contemporânea no Rio de Janeiro em 1975, contou com muitos nomes e obras que não se encontram aqui listados, mas que contribuíram largamente para que a música cênica prosseguisse sua trajetória no Brasil. 42

compôs XI Variações (1983), com declamação de trecho de um poema de Fernando Pessoa; Outros momentos brasileiros, com títulos um tanto incomuns (1991) para piano; Peixe (1995) para coro; Sonata n. 6 - apoteose em Sib ou Sonata do Jubileu (1998) e Sonata n. 7 (2000), ambas para piano. Schaeffer escreveu, na década de 1960, que a música caminhava na direção de novas relações e novas questões formais – o que resultava em uma música totalmente diversa da tradicional: “Admitir isso depende de uma considerável mudança de atitude, é abandonar todo preconceito, exclusivamente natural ou cultural a respeito dos fundamentos da música. Isso é admitir uma hibridização, uma junção de elementos díspares e, portanto, uma atitude interdisciplinar.” (SCHAEFFER, 1966, p. 638-639, tradução nossa).34 Em decorrência da interdisciplinaridade da música cênica, da junção, nela, de elementos díspares, as denominações atribuídas a esse gênero não são bem delimitadas. No meio musical, as categorizações desse tipo de música experimental não são correntemente referenciadas. Não há, ainda, consenso em relação à terminologia. O estudo das denominações da música cênica neste trabalho se deu a partir de dados coletados em publicações e entrevistas com profissionais experientes na prática da música que inclui aspectos cênicos. É importante, nesse estudo, partir da diferenciação entre música de cena e música cênica. A música de cena, também chamada de música incidental, é uma música composta para a cena enquanto a música cênica é uma música concebida concomitantemente à sua visualidade ou teatralidade.35 Faz-se necessário também estabelecer a diferença entre music theater e musical theater. O termo musical theater denomina o típico espetáculo musical americano que envolve música (canções), teatro (diálogo falado), e dança no contexto de um roteiro teatral de estilo específico do gênero popular. No Brasil, o musical popular foi também chamado de teatro de revista e, na França, de comédie musica.36 A diferença entre esse gênero musical popular e o teatro musical originário da música de concerto é que este pretende atuar além da esfera do puro entretenimento. (SALZMAN; DÉSI, 2008).

34“Admettre cela, c‟est cependant changer considérablement d‟attitude. C‟est d‟abord abandonner tout préjudgé, exclusivement naturel ou culturel, touchant les fondements de la musique. [...] C‟est admettre une hibridation, une junction d‟éléments disparates et, partant, une attitude interdisciplinaire”. (SCHAEFFER, 1966, p. 638-639). 35Griffiths (1995, p. 146) denomina o gênero com outro termo: “música de ação”. 36Produções de opera-comique, operetta e singspiel com seus temas mais leves e produção executiva mais acessível se desdobraram nas formas do musical popular. 43

O termo music theatre – como é corrente na língua inglesa – tem sido traduzido, no Brasil, como música-teatro ou, ainda, teatro musical. Music theatre denomina, inclusive, determinado tipo de ópera. (CLEMENTS, 2001, v. 17). O tipo de ópera que teve origem na Europa, em meados do século XX, quando grande número de compositores optou por produzir peças de montagem mais modesta ao invés de grandes óperas, pretendia encenação em outros espaços além das casas de ópera. Isso ocorreu por razões estéticas, econômicas e políticas. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979). As óperas de câmara eram acessíveis ao grande público por seus baixos custos em relação à ópera tradicional que apresentava, em suas montagens, custo cada vez mais alto. A ópera contemporânea, com todas as suas variações, difere da ópera tradicional, cuja elaboração da música orquestral, tradição vocal de solistas e coro operístico de execução lírica têm formato específico de composição e apresentação. Privilegia, como na ópera tradicional, a voz cantada, porém, esta é quase sempre transformada em possibilidades incontáveis de emissão e formas de uso. Possui, muitas vezes, libreto escrito pelo próprio compositor. Nos casos em que o libreto é escrito por outro autor, em geral, há participação efetiva do compositor nessa elaboração do texto/roteiro. Possui forma composicional que privilegia a concomitância da criação de cena e música e que atribui igual importância ao som e à cena, além de frequentemente levantar questões a respeito das relações hierárquicas e funcionais dos instrumentos e instrumentistas, bem como tudo o que diz respeito aos hábitos adquiridos no meio musical por parte dos compositores, intérpretes e ouvintes. Surgiu como forma de protesto contra o conservadorismo musical da grande ópera. São numerosas as subcategorias do que se chama ópera contemporânea: ópera multimídia, pocket opera, micro-ópera e nano-ópera são algumas delas. Num dos exemplos do que se pode chamar de ópera contemporânea, Votre Faust (1960-1967), de Henri Pousseur e Michel Butor, não são solistas que apresentam o conteúdo dramático, mas atores. Aos quatro cantores cabe estabelecer as conexões complexas entre as ações dos atores e dos doze instrumentistas que compõem a orquestra. Além do próprio instrumento, os músicos se utilizam de percussão, além de intervirem verbalmente nos diálogos do texto falado. Os sons das vozes e dos instrumentos são, eventualmente, modificados e dissimulados através de processos e sons eletroacústicos. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979). O uso intenso de novas tecnologias eletrônicas e digitais caracteriza, como uma das formas de ópera contemporânea, a chamada ópera multimídia. Algumas dessas óperas 44

contemporâneas, por terem estrutura de montagem simples em relação ao número de participantes, são denominadas pocket opera. Além de contar com número reduzido de participantes, a micro-ópera é constituída por uma única cena em uma única ação de duração média de quinze minutos. A nano-ópera possui número ainda mais reduzido de participantes e duração média de trinta minutos. Ambas foram criadas por Korenchendler na intenção de viabilizarem – facilitarem – a produção executiva através da utilização de poucos recursos cenográficos. Não se pode dizer com certeza se ópera radiofônica seria music theater. As imagens provenientes desse tipo de ópera concebida para ser difundida por emissoras de rádio só ocorrem na imaginação dos ouvintes. Em Visage (1961), de Luciano Berio, por exemplo, para voz pré-gravada e sons eletrônicos, a atuação teatral da cantora na gravação tornou-se de tal maneira célebre que termina por fazer com que a peça seja classificada como música cênica.37 Kagel comenta a respeito da visão através da audição, referindo-se até mesmo à música eletro-acústica, acusmática:

A produção de um som excepcional às vezes provoca um fenômeno visual, uma espécie de osmose: o ouvinte vê através da audição. Há alguns anos, durante os concertos de música eletrônica, os ouvintes ficavam literalmente fascinados pelos alto-falantes, pois a cena permanecia viva; os alto-falantes se tranformaram em objetos de culto. (BOSSEUR, 1971, p. 104, tradução nossa).38

A música-video, como mais recente gênero de música, dependendo da modalidade em que se inclui, também pode ser considerada música cênica no momento de sua exibição pública. Outro gênero de arte interativa – muito em voga atualmente – que frequentemente utiliza recursos cênicos é a instalação sonora/visual. Nesse tipo de trabalho, a música tanto pode ser protagonista, quanto pode ter papel secundário. Assim também ocorre em performances e intervenções, realizadas em espaços públicos, não tradicionalmente musicais nem teatrais.

37A partir da proposta deste trabalho, music theater se traduz como música cênica. 38 “La production d‟un son exceptionel provoque parfois un phenomène visuel, une sorte d‟osmose: l‟auditeur voit par les oreilles. Il y a quelques annés, au cours des concerts de musique eletronique, les auditeurs étaient littéralement fascinés par les haut-parleurs car la scène restait vide; lês haut- parleurs devaneient des objets de culte”. (BOSSEUR, 1971, p. 104). 45

A „Música cênica nas ruas‟ foi uma das ideias do tempo [fim dos anos de 1960 e década de 1970] que por várias razões – culturais, educacionais e ideológicas – sobretudo, fé na democratização da arte contemporânea, tentava conquistar novas platéias.” (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 207, tradução nossa).39 De acordo com Bosseur; Bosseur; Autral (1979, p. 125-126, tradução nossa):

A denominação propriamente dita de „teatro musical‟ parece, portanto, em muitos aspectos, paradoxal à multiplicidade dos domínios e tendências que o gênero engloba. Não é, pois, contraditório querer manter sob um termo único as obras cujo campo de ação é por si só flutuante?40

Qualquer que seja a denominação atribuída ao chamado teatro musical e suas variedades, esta denuncia a compartimentação da criação artística em disciplinas isoladas que correm o risco de se fecharem para não mais manterem comunicação entre si. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979). Há também o risco de que as denominações e classificações não dêem conta de todas as possibilidades, na ilimitada capacidade de reorganização e reinvenção da criação artística. TEATRO... (1994, p. 936) define teatro musical como:

[...] Expressão corrente desde os anos 60 para obras musicais que envolvem um elemento dramático em sua apresentação. Podem ser mini-óperas, ciclos de canções com acompanhamento instrumental que são „encenados‟ num palco de concerto [...], ou peças que resistem a qualquer classificação [...].”

Mendes, que é autoridade no assunto, contextualiza e aponta um dos problemas na terminologia que classifica o que seriam categorias da música cênica:

O teatro musical é uma coisa bem do nosso tempo e nunca conseguiu um nome apropriado porque o teatro musical também é o teatro da Brodway, mas no caso da música erudita contemporânea de vanguarda, o teatro musical é algo que decorre da exploração do que há de performance visual teatral na própria execução da música: o regente que entra, a banca dele, o charme ou o engraçado que ele é; o pianista que chega e, de repente, não acerta o banquinho do piano no lugar correto – a partitura que

39“„Music theater in the streets‟ was one of the ideas of the time that for various cultural, educational, and ideological reasons (above all faith in the democratization of contemporary art) attempted to reach new audiences.” (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 207). 40“La dénomination proprement dite de „theater musical‟ semble donc, à maint égards, paradoxale, du fait de la multiplicité dês domains et des tendances que le genre englobe. Mais n‟est-til pás contraditoire de vouloir faire tenir sous un terme unique dês oeuvre dont le champ d‟action est fluctuant de par son propos meme?”. (BOSSEUR; BOSSEUR; AUTRAL, 1979, p. 125-126). 46

pode cair no chão e ele tem que pegar. Daí surge uma ideia de se explorar um visual da música que pode chegar a extremos e cortar a própria música (MENDES, [2006], grifo nosso).

Mendes ([2006]) afirma, ainda, que o teatro instrumental pode conter e pode até ser a música. Numa “música sem música”, conforme ele explica, “o compositor tem que induzir a pessoa a um clima musical”, ou seja, “a cena musical pode ser a própria música”. Após o desaparecimento dos músicos no fosso da orquestra, na ópera tradicional, o teatro instrumental fez ressurgirem os intérpretes no palco, ocupando a cena com a mesma importância dos cantores, atores e bailarinos, desempenhando funções de atuação, cantado, falando. O teatro instrumental pode incluir a voz cantada e/ou falada, dirigindo-se às ações dos músicos como instrumentos e personagens da música. Todas essas características estão inseridas, muitas vezes, ainda, no que se chama teatro musical ou música-teatro. O diferencial decisivo, porém, do teatro instrumental é a forma com que os instrumentistas assumem papéis de atores enquanto tocam. (JACK, 2008). De acordo com a Figura 1 a seguir, há uma maior abrangência no termo música cênica devido a ser este um gênero em que toda interação entre música e outras linguagens artísticas é contemplada. Dança, aspectos teatrais tais como iluminação, figurino e cenário e artes visuais, projeção de imagens e vídeos 41 previstos nas composições caracterizam-se como música cênica. Mas nem toda música cênica é teatro musical. O chamado teatro musical ou música-teatro (music theater) – ou música de ação (musique d‟action) – refere-se à música cênica que inclui ação teatral dos músicos e cantores dentre outras tantas possibilidades de interações artísticas. No teatro musical, ações e gestos são característicos da execução musical delineados pelo compositor da peça e têm intenção estética. Por sua vez, nem todo teatro musical é teatro instrumental. No teatro instrumental, ações e gestos têm intenção dramatúrgica: os intérpretes – instrumentistas – além de atuarem como músicos, apresentam-se como atores, encarnando personagens. Ópera contemporânea, instalação sonora/visual, música-vídeo, teatro musical, teatro instrumental e música-teatro podem ser tomados, então, como categorias de música cênica. A Figura 1 mostra como as práticas da música cênica se sobrepõem, se entrelaçam e se refletem umas nas outras:

41Pode, nesse caso, fundir-se ao gênero música-vídeo. 47

Figura 1 – Relações entre práticas de música cênica42

Fonte: A autora (2012).

42A música-vídeo só se configura como música cênica nos casos em que a música é concebida concomitantemente à sua visualidade.

48

O diretor de teatro Pierre Barrat (França, 1931) propôs três outras classificações para a música cênica: 1) que não tem ação cênica prevista em partitura, mas que provém da execução musical; 2) que tem ação cênica prevista em partitura/libreto; 3) que transmite uma mensagem ou conta uma estória a partir da atuação de um(a) cantor(a), ator ou atriz, ou mesmo de instrumentista. (SALZMAN; DÉSI, 2008). Sobre categorizações e classificações, Caznok (2008, p. 15) afirma:

O debate da união da audição com a visão hoje é um fato corriqueiro que está presente na produção artística de diferentes maneiras. Há obras que exigem do espectador uma totalidade perceptiva nunca antes ousada, tais como as performances, as instalações e os eventos multimídia que requerem, além da visão e da audição, a participação do tato, do olfato e, por vezes, do paladar. / A esse tipo de arte não está reservado nenhum lugar no rol das classificações tradicionais e, assim como suas obras, seus criadores são genericamente nomeados como artistas multimídia, performáticos ou holísticos, entre outros. / Embora bastante distanciadas em termos de manufatura e de proposição estética, muitas dessas obras têm em comum o fato, já assentado, de que a interpenetração de domínios perceptivos [...] seria um dos fatores fundantes de sua expressão.

Com base na obra de Merleau-Ponty, João Frayze-Pereira comentou também a esse respeito que “[...] o olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo corpo integrados em uma única ação” e que “[...] a concepção da obra de arte total ou plurissensorial [...] teve lugar em vários momentos da história das artes, [...] antecipando certas problemáticas que se farão presentes no século XX” (FRAYZE-PEREIRA, 2008 apud CAZNOK, 2008, p. 10). As denominações, classificações e terminologias certamente fazem parte das “problemáticas” a que Frayzer-Pereira se refere. (FRAYZE-PEREIRA, 2008 apud CAZNOK, 2008, p. 10). A dificuldade em definir categorias decorre da liberdade e da abrangência da expressão artística na interação entre linguagens diversas e da possibilidade de utilização, em todos esses casos, de teatro, dança – que é uma arte basicamente teatral – e artes visuais, em todas as formas de espetáculo musical. Santaella (2007, p. 24), escrevendo sobre linguagens líquida43, descreve características que poderiam ser comparadas às da música cênica:

43Bauman (2001) criou o conceito do que é líquido. Os líquidos, como fluidos, “[...] se movem facilmente. Eles „fluem‟, „escorrem‟, „esvaem-se‟, „respingam‟, „transbordam‟, „vagam‟, „inundam‟, „borrifam‟, „pingam‟, são „filtrados‟, „destilados‟; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem os outros e invadem e inundam seu caminho”. 49

Já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para qualquer linguagem, pois todas entram na dança das instabilidades. Texto, imagem e som já não são o que costumam ser. Deslizam-se uns nos outros, sobrepõem-se, complementam-se, confraternizam-se, unem-se, separam-se e entrecruzam-se.

Paludo (2009, p. 14) complementa a ideia da comunicação natural entre linguagens artísticas: “Música nunca foi só música”. Por esse motivo, as denominações podem não ser eficientes no sentido de encaixar as práticas artísticas em classificações que muito dificilmente serão definitivas. Salzman e Dési (2008, p. 340, tradução nossa) reforçam essa suspeita: “O nosso mundo conturbado clama por modelos que não forcem a teorização dos fatos mas, antes, façam as teorias e análises aceitarem o fato de que uma categorização é apenas uma maneira de racionalizar o oceano de fatos e detalhes da vida.”44

2.2 O PIANO NA MÚSICA CÊNICA: UMA NOVA NOÇÃO DE VIRTUOSISMO

Na música cênica, o uso dos instrumentos passa por experiências diversas, bem como na música do século XX, de maneira geral. Além da escprita tradicional, os pianistas enfrentam desafios para os quais não foram suficientemente preparados em sua formação como instrumentistas. Técnicas de piano expandido e piano preparado, situações em que o piano é processado ou cenográfico e experimentação de outros instrumentos de teclado tais como cravo, celesta e sintetizador chamam os intérpretes pianistas a pesquisarem e a criarem novas formas de atuação. Nas técnicas expandidas para piano, ocorre manipulação direta das cordas do piano com as mãos ou com objetos, baquetas. No piano preparado, modifica-se a sonoridade do instrumento através da utilização de objetos tais como pregadores, pedaços de borracha, ferro, madeira e outros materiais colocados entre as cordas do piano. A preparação pode ser fixa, chamada também de cagiana, pois esse tipo de procedimento foi utilizado inicialmente por Cage. Na preparação fixa, os objetos são colocados antes do início da apresentação. Na preparação móvel, os objetos podem ser colocados e/ou retirados durante a apresentação. Nas situações onde o piano é processado, os pianistas lidam com uma nova maneira de se ouvirem porque a captação do som do instrumento por microfone e o processamento

44“The fuzziness of our world calls for models that do not squeeze the facts into theory but rather make theory and analysis accept the fact that categorization is just one, perhaps outdated way to rationalize the sea of facts and details of life”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 340). 50

através de computador transformam a sonoridade que está sendo emitida. Na necessidade de interação com a tecnologia, com sons pré-gravados que podem ser manipulados em tempo real por um músico especializado, este pode não ser oriundo do meio erudito. Com o piano cenográfico, há apenas a utilização da imagem do instrumento, podendo haver, na música, outra fonte sonora que emita o som que sairia do piano. O pianista pode emitir outros tipos de som ou fazer apenas o movimento da execução sem que esteja produzindo som – e nesse caso não há sequer a necessidade de que o pianista, como ator ou personagem seja um profissional especializado. O piano cenográfico nas composições significa o uso simbólico dos instrumentos e instrumentistas. Em muitos casos, o instrumento é utilizado como objeto de cena ou pensado de maneira que permita a qualquer pessoa protagonizar a execução. A função do instrumento, nesses casos, já não é puramente musical. É estendida à função visual em seus valores tanto estéticos quanto sociais. Esse contexto da não obrigatoriedade de especialização foi claramente abordado na obra de Kagel, em que nem todo instrumentista ou cantor tem que ser especialista, mas todo músico tem que ser ator. A tendência (valorização) tecnicista (mecanicista) ocorrida no século XIX se estendeu à música de concerto e veio a ser questionada através da música que, sem abrir, obrigatoriamente, mão do virtuosismo praticado, propôs formas alternativas de expressão. Na música que privilegia os aspectos visuais/cênicos em sua apresentação, a consciência corporal dos intérpretes precisa ser trabalhada. Na música cênica, tanto os instrumentos musicais podem ser tratados como objetos de cena quanto os movimentos dos instrumentistas podem ser tomados como instrumentos da música. A função dos intérpretes, nesse contexto, não se restringe à execução ao instrumento. Os instrumentistas podem ser convidados a utilizar a voz através do canto e da fala, a tocar outros instrumentos além de sua especialidade, a produzir ruídos e/ou podem ser chamados a construir personagens. Nota-se mais acentuadamente em relação à música cênica do que em outros gêneros a necessidade de que os intérpretes não apenas reproduzam as ideias dos autores, mas que possam, através das obras, alargar sua própria capacidade e a do instrumento – não somente no aspecto técnico, mas no que diz respeito à sua função no mundo da música. Mesmo quando se trata de cantores, estes são reconstruídos, repensados enquanto instrumentos musicais. Quando a música cênica exige o grau de excelência técnica demandada pelo repertório tradicional, essa exigência se soma a outras propostas interpretativas desafiadoras: 51

atuação cênica, interação com tecnologias digitais em tempo real e jogos de improvisação, além de envolvimento com a produção artística e executiva das apresentações musicais como espetáculo que envolve cenário, figurino, iluminação, formação de equipe, entre outros aspectos. Entretanto, os parâmetros técnico-interpretativos se transformam ao ponto que, em muitos casos, não há exigência da habilidade específica do músico/ator ao instrumento. A escolha de peças desafiadoras, que exijam o enfrentamento de técnicas e linguagens para as quais não foram treinados no período de formação, necessita dos intérpretes curiosidade e coragem. Às decisões que dizem respeito à interpretação, onde entra em questão o ambiente emocional a ser criado diante do andamento a ser adotado dentro da margem de variação do tempo a partir das indicações da partitura, da expressão a ser percebida pelo ouvinte através das variações de agógica, da intensidade dos contrastes dinâmicos e da realização dos sinais gráficos, somam-se outros componentes que dizem respeito aos aspectos de interação entre música e outras linguagens artísticas. No teatro musical, as implicações visuais e espaciais na execução dos instrumentos vieram transformar as noções de virtuosismo, exigindo dos intérpretes grande sensibilidade tátil e pessoal, segundo a personalidade de cada um. A sensualidade em relação ao som e ao corpo do instrumento são amplamente consideradas nesses novos parâmetros de interpretação. Kivy (1995 apud COOK, 2006, p. 10) afirmou que: “[...] a arte da performance habita a zona da livre escolha que se estabelece dentro e ao redor da obra grafada”. Com esta afirmação, Cook (2006 apud SERALE, 2009, p. 215) ressalta “a liberdade do intérprete e sua responsabilidade como criador”. Barber (1987 apud SERALE, 2009, p. 215) observou que: “o Teatro Instrumental não se compõe para um instrumento, mas para um instrumentista [...] com olhar crítico e com reserva imaginativa para encontrar soluções técnicas próprias”. Mediante esta observação, Serale discorreu a respeito da atuação dos instrumentistas na música que interage com outras artes. Ainda complementa que:

[...] quando a partitura se prenha de inúmeras indicações sonoras e teatrais e se roçam os limites do possível, a interpretação não pode ser fria, nem mecânica,nem apenas brilhante, mas se amplia ao campo psicológico. Pede- se [ao intérprete] uma execução tal que, faça o que fizer, ficará terrivelmente marcada pela sua individualidade. (BARBER, 1987 apud SERALE, 2009, p. 215).

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Na música cênica, os intérpretes têm que encontrar a sua própria maneira de realizar a obra para recriá-la, reinventá-la numa postura arrojada. Trata-se, geralmente, de uma linguagem que indica caminhos não muito bem conhecidos para os instrumentistas. A criatividade e a capacidade de invenção chegam, em alguns casos, ao ponto de representar co- autoria, quando os elementos de indeterminação são tão amplos que propõem, além das práticas de improvisação, práticas específicas de composição, pelos próprios instrumentistas, de suas próprias partituras, arranjos, versões. Nem sempre os compositores documentam suas criações em partitura. De acordo com Salzman e Dési (2008), nas práticas da transmissão oral, que frequentente incluem as práticas de improvisação, faz-se cada vez mais necessário que os intérpretes compreendam o contexto das obras que realizam porque a

[...] improvisação demanda uma participação muito mais ativa e criativa do intérprete do que na música notada. Outro problema é que a improvisação envolve mais criação do que interpretação e isso não se ajusta tão facilmente no meio clássico que se baseia em [estudos de] repertório e interpretação. [...] Numa improvisação, numa obra aberta ou aleatória os intérpretes são particularmente obrigados a entender o meta-texto [...]. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 348-349, tradução nossa).45

A notação musical cada vez mais precisa a partir do século XVII significava uma forma de controle da obra. Era de se esperar dos compositores considerados sérios que estes previssem de maneira absoluta a forma como suas criações seriam realizadas – embora nunca tenha sido possível grafar os sons de maneira absoluta. Essa mentalidade fez quase desaparecer da música tradicional as práticas de improvisação que vieram a ressurgir com força na música do século XX. (SALZMAN; DÉSI, 2008). O novo virtuosismo inclui a capacidade de fazer música além das técnicas adquiridas, em um fazer musical que seja espontâneo. Isso exige o desenvolvimento da capacidade do músico em se apropriar da sonoridade que emite, da aceitação desse músico com relação ao grupo em que se insere no que diz respeito às possíveis falhas e limites não só do outro como também de si próprio, da transcendência artística que leva esse músico a ter visão e alcance além da própria consciência, da preparação – prontidão – para todo e qualquer tipo de

45 “[...] improvisation demands a much higher active and creative participation from the performer than notated music. Other problem is that improvisation involves creation rather than interpretation and this does not fit so easily into a classical music business that is based on repertoire and interpretation. […]. In an improvisation, open-form, or aleatoric piece, performers are particularly obligated to understand the meta-text”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 348-349). 53

situação no momento da execução musical, da identificação com os sons no sentido de ter a sensibilidade aguçada para a percepção de sons de toda natureza e da aceitação da fragilidade humana – aceitação que se reverte em vitalidade – e do imponderável do momento da apresentação musical. É aconselhável que haja convivência pacífica com as possibilidades de ocorrência de falhas na apresentação musical, o que remete à ideia de o quanto esse momento é frágil e milagroso. (BEECHING, 2005). Tais atributos são fundamentais para que o intérprete improvise de forma satisfatória. Se toda performance, mesmo fundada em dados determinados, for encarada como improvisação, uma vez que esses dados não podem ser totalmente previstos e que o imponderável sempre estará presente nas apresentações musicais, esses atributos poderão ser tomados como base para a execução não apenas de música cênica, mas de todo tipo de música. No processo criativo de construção da interpretação, Beeching (2005) identifica três parâmetros: o parâmetro existencial, que diz respeito ao que a peça representa (ou significa) para o próprio artista; o parâmetro psicológico, que diz respeito ao que a peça representa (ou significa) no contexto em que foi criada por seu autor e o parâmetro semiológico, que diz respeito à maneira como a peça será apresentada de maneira que seja estabelecido algum tipo de comunicação com o ouvinte. Na música que interage com outras linguagens artísticas, é importante que esses parâmetros sejam observados. As demandas da música cênica para os intérpretes provocaram modificações em suas relações com os compositores. A convivência, no palco, da atuação em tempo real com sons e imagens pré-gravadas representa mais um desafio para os intérpretes. Sincronizar e interagir com as máquinas são ações que representam algumas das novas demandas para os instrumentistas, entre as diversas possibilidades de atuação na música cênica. Doriana Mendes, que é bailarina, atriz e soprano com vasta experiência na música cênica, escreveu, a respeito da música que interage com outras artes e com novas tecnologias que se a obra “traz em sua natureza uma sincronia de diversas linguagens, o nível de excelência da performance está comprometido com a capacidade de interação técnico- expressiva que o solista desenvolva e aprimore durante a preparação da obra” (MENDES; LEITE, 2009, p. 196). E conclui:

Constatamos que são necessárias, durante a performance, atribuições como treinar a habilidade de manter-se alerta a um novo tipo de escuta que incorpora o processamento em tempo real e, ainda, garantir a integridade do discurso da obra nos momentos improvisatórios de tempo não determinado. É preciso estar „aberto‟ a eventuais imprevisibilidades, independentemente das partes fixas ou improvisadas. Fica evidente num ambiente interativo, que 54

o que se repete nos ensaios não abarca as possibilidades do que possa ocorrer durante a performance. Algo que não é previsto no período de montagem da obra, nem pelo compositor, nem pelo intérprete, será incorporado – ao vivo – a cada nova performance. (MENDES; LEITE, 2009, p. 196).

Foi também com base na prática de música cênica que Abbie Conant e William Osborne levantaram questões a respeito das práticas interpretativas nessa modalidade de apresentação musical que, inclusive, alimenta e consolida as tais práticas mesmo quando se trata de música tradicional. (BEECHING, 2005). A busca do auto-conhecimento e senso de autenticidade para a construção de uma identidade artística própria é condição fundamental das atividades artísticas. A associação a outros artistas e profissionais nessa procura também se faz importante. Exige-se, na música cênica, que os intérpretes participem das obras em nível composicional além de elaborarem o formato de apresentação musical/cênica e sua viabilidade/viabilização. A consciência da comunicabilidade da música e de sua apresentação, considerando que tudo nesse processo de comunicação tem significado, inclusive a presença no palco, colabora para um bom resultado artístico nas atividades dos instrumentistas em todo e qualquer gênero musical. Na excelência técnica, as demonstrações de habilidades malabarísticas representam apenas um dos fatores dessa comunicabilidade. O corpo do artista é importante agente na comunicação entre o músico e o ouvinte/espectador e isso implica na necessidade de preparação física compatível com a vitalidade exigida pela performance. A formação de uma concepção própria de teatralidade da apresentação musical prestará importante colaboração nesse processo criativo dos intérpretes. Isso demanda permanente disposição para a investigação e inventividade. (BEECHING, 2005). As características dos instrumentistas na música cênica denunciam sua estreita relação com o teatro pós-dramático. O teatro pós-dramático dos anos de 1980 teve sua origem no teatro de estética pós-moderna que surgiu a partir dos movimentos da arte de vanguarda dos anos de 1960.46 Nesse teatro, o ator ganha outras funções além de sua atuação cênica: canta, monta cenário, cria iluminação. Esse teatro se preocupa com a comunicabilidade entre arte e público driblando poderes exacerbados das mídias, estabelecendo espaços alternativos de apresentação, procurando aguçar as percepções e emoções dos espectadores e propondo processos criativos de caráter coletivo. (LEHMANN, 2007).

46Samuel Beckett, precursor do chamado teatro do absurdo, aliava às artes cênicas o cinema, as artes plásticas e até a arte do circo. 55

A nova noção de virtuosismo, de acordo com as práticas propostas pela música cênica não apenas modifica as necessidades de treinamento na preparação dos intérpretes desde o seu período de formação até a maneira de produzir cada apresentação, mas também modifica e enriquece a atuação dos mesmos, independente do período/estilo do repertório que apresentem.

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3 RIO DE JANEIRO: COMPOSITORES E OBRAS

A música cênica de compositores atuantes no Rio de Janeiro aqui representada tem compromisso com o novo: a pluralidade do mundo pós-moderno leva adiante ideias que já vinham se desenvolvendo desde o início do século XX. Luiz Carlos Csekö, Tim Rescala, Vânia Dantas Leite, Jocy de Oliveira e Tato Taborda apresentam características comuns em vários aspectos de suas vidas e obras: atenção ao que ocorre tanto no mundo da música quanto o que ocorre ao seu redor, inclusive a questões relativas às plateias como participação e percepção plurissensorial; diálogo com outras linguagens artísticas e entre gêneros musicais; experimentação com suportes tecnológicos e audiovisuais. Esses compositores pensam a apresentação musical como espetáculo. A música cênica não é característica de peças isoladas: é uma tônica no conjunto de suas obras, que oferecem aos ouvintes uma relação elaborada entre o que vão ouvir e ver. No tipo de apresentação musical que exige atenção especial a aspectos cênicos, os compositores conduzem pessoalmente o processo de elaboração de seus espetáculos, envolvendo-se diretamente com os processos de realização – direção e produção – de suas obras. Apropriam-se de técnicas teatrais tais como direção cênica, planejamento e execução de iluminação. O impulso criativo desencadeia uma postura empreendedora. Vânia Dantas Leite, Jocy de Oliveira, Luiz Carlos Csekö, Tim Rescala e Tato Taborda foram fundadores do Núcleo de Música Experimental e Intermídia do Rio de Janeiro (NuMEXI/RJ), junto a Rodolfo Caesar, Chico Mello, Marisa Rezende, Vera Terra e Guilherme Bauer, no ano 2000. Segundo texto da compositora Vera Terra que resume as atividades do Núcleo, o NuMEXI/RJ foi um “pólo aglutinador de novas linguagens musicais, associadas a novas tecnologias de produção e difusão do som e da imagem” e, pelo “pioneirismo de suas atividades de criação musical e intermídia”, constituiu-se “em um dos mais importantes grupos de compositores da América Latina, voltados para a música experimental”. (TERRA, 2012).47 Os compositores envolvidos atuavam como organizadores e curadores de eventos que apresentavam trabalhos artísticos brasileiros e internacionais. Entre os eventos promovidos, os de maior destaque foram as séries Música e Tecnologia & Multimeios, realizadas por três anos consecutivos. Essas apresentações obtiveram sucesso de público e crítica.

47Documento não paginado. 57

Ainda segundo Terra (2012) 48 , as atividades do grupo eram intensas e tinham o objetivo de:

[...] estimular, divulgar, registrar e difundir a produção musical de ponta realizada no país, em particular, na cidade do Rio de Janeiro. A série Música, Tecnologia & Multimeios, alcançou em 2003 sua terceira edição, perfazendo um total de trinta concertos. Os eventos foram apresentados no Espaço Cultural Sergio Porto, conhecido no meio cultural carioca por promover espetáculos voltados para a experimentação de novas linguagens artísticas. Para sua realização, contou com o patrocínio do RioArte, órgão da prefeitura municipal do Rio de Janeiro. Essa intensa intervenção cultural tem servido de estímulo para a criação de grupos de jovens compositores. O NuMExI cumpre, assim, uma de suas maiores metas: a formação de público, propiciando um contato sistemático da audiência com a linguagem musical experimental e intermídia. O NuMExI tem ainda como objetivos: promover oficinas, encontros e simpósios sobre as linguagens musicais contemporâneas; realizar projetos de pesquisa pedagógica embasados na música experimental e intermídia; criar um acervo de partituras, textos e gravações, visando a pesquisa.

Dentro desses objetivos, estava a criação de acervo de partitura, textos e gravações das significativas vertentes da composição musical dos séculos XX e XXI e a realização de pesquisa pedagógica. No âmbito acústico, estava a exploração tímbrica em instrumentos convencionais e pesquisa de fontes sonoras e, no âmbito eletroacústico, o som através de meios eletrônicos e computação, bem como pesquisa de espacialização do som. No âmbito multimeios, estava a integração da linguagem musical à linguagem visual, música-vídeo, artes plásticas, cinema. Os aspectos multimeios poderiam ser ou não integrados à cena no estudo da integração da linguagem musical à dramaturgia e às artes do movimento, à ópera contemporânea, o teatro musical e a dança. O piano como instrumento musical ocupa importante função na vida profissional desses compositores, embora não tenha posição de tanto destaque no conjunto de suas obras. Jocy de Oliveira é pianista solista com longa carreira de sucesso na música erudita. Entretanto, o piano em sua obra não tem posição de destaque. O piano é parceiro constante de Taborda que, embora tenha escrito poucas peças para o instrumento, ainda faz uso deste para compor e para produzir sonoridades – e visualidades – peculiares em sua forma preparada e processada.

48Documento não paginado. 58

Pianista de formação e de extensa atuação profissional nos palcos, Vânia Dantas Leite foi componente do grupo Ars Contemporanea,49 no Rio de Janeiro. A compositora trabalha primordialmente com sons, deixando às notas musicais uma participação coadjuvante. Contudo, muitas vezes explora a sonoridade de seu próprio instrumento de maneira tradicional. Tim Rescala é pianista e se utiliza largamente do piano no conjunto de sua obra. Luiz Carlos Csekö utiliza o instrumento, desde o início de suas atividades composicionais, em suas possibilidades expandidas, com técnicas de preparação e em seus recursos percussivos. Para a execução das obras escolhidas, demandas diferenciadas e nada tradicionais, típicas de obras de música cênica, começam por fazer com que os intérpretes busquem em suas atuações habilidades além das que foram desenvolvidas no período de formação, uma vez que a orientação formal dos pianistas concertistas, em geral, ainda não prevê treinamento dirigido para tais especificidades. Determinados procedimentos composicionais abrem as obras à improvisação de maneiras variadas e representam um desafio à criatividade artística tradicionalmente exercida por músicos de concerto. Teatro, dança, literatura, artes plásticas, iluminação, figurino, cenário e vídeo, bem como a arte da improvisação, constantes na concepção musical dos autores, desafiam os intérpretes a mergulharem nas obras não apenas como músicos/atores, mas também como parceiros na realização dos espetáculos. Tudo isso move os instrumentistas em direção a um entendimento direto com o autor. Trata-se de um tipo de trabalho que tende a se modificar a cada vez que se realiza. Compositores e intérpretes podem se associar para construir caminhos criativos para a viabilização das apresentações. Em diversas situações, o autor não anota o que pensa na partitura, mas divide pessoalmente, de maneira direta com o intérprete, a sua concepção da peça. Entre as diversas propostas possíveis das peças de música cênica, os músicos são instigados a participarem como co-criadores das obras, como co-produtores. Com relação à comunicabilidade de suas obras, os compositores estudados, que conquistaram reconhecimento nacional e internacional, usam de liberdade e ousadia na arte que produzem. Dessa forma, provocam certo espanto no público e polêmica no meio especializado: o estranhamento diante do que é – ainda – novo.

49O grupo Ars Contemporânea, fundado em 1977 por Ricardo Tacuchian e Guilherme Bauer, realizou durante sete anos concertos que tinham o objetivo de divulgar o repertório de música contemporânea, especialmente com obras de compositores brasileiros. 59

Leite menciona certa solidão em certo período – nos anos de 1980 – de seu percurso no Rio de Janeiro, mas não em relação ao público. (informação verbal).50 No próprio meio profissional, durante muito tempo esteve isolada em seu pioneirismo no ensino da música eletroacústica no Rio de Janeiro. Em 1982, quando iniciou seus trabalhos como docente na UNIRIO, lecionava Análise Musical e Música Experimental. Nessa época, já introduzia novos conceitos da composição musical que surgiam em decorrência do uso de novas tecnologias. A partir de 1986, então, criou a disciplina de Música Eletroacústica, que passou a fazer parte do Curso de Composição. A compositora vislumbrou novos tempos à medida que percebeu significativo aumento de músicos e outros profissionais aptos, capazes de compartilhar de sua obra. Seu compromisso com o novo faz com que não se preocupe, em absoluto, com a crítica ao seu trabalho, preferindo ser honesta com os próprios princípios e ideias: “Agradar a gregos e troianos, ninguém consegue [...]. Há mais chance de agradar quando se faz um trabalho honesto [...]”. (informação verbal).51 Gosta de ouvir as impressões causadas por sua obra nos mais diversos tipos de plateia e se agrada do fato de cada pessoa perceber cada peça à sua maneira. Da mesma forma, Csekö é seguro em relação ao que faz. O reconhecimento que almeja não é o da aprovação. Quer apenas instigar o público, assim como Jocy de Oliveira. Como compositores de música contemporânea, pretendem fazer ouvintes/espectadores pensarem, elaborarem o produto artístico e finalizarem o sentido das obras. Taborda não pensa na receptividade do que cria. Cria, simplesmente. Rescala está sempre surpreendendo as plateias. Os ouvintes/espectadores nunca sabem em que momento poderão se deparar com o humor característico da obra desse autor ou se vão apreciar peças que sugerem momentos de contemplação, que aguçam a capacidade auditiva e cognitiva em experiências sonoras inusitadas. O estudo de peças cênicas para piano desses autores, a partir da partitura e instruções cênicas ou gravação, pretende examinar-lhes os seguintes aspectos: 1) Instrumental; 2) Notação (2.1 partitura, 2.2 texto de instruções ou bula, 2.3 gráficos ou desenhos); 3) Manipulação dos parâmetros sonoros (3.1 alturas, 3.2 durações, 3.3 texturas, timbres e dinâmica; 3.4 articulação do espaço); 4) Interdisciplinaridade (4.1 diálogo com outras linguagens artísticas, 4.2 envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz); 5) Cena (5.1

50Entrevista com Vânia Dantas Leite (compositora), em sua residência, em Botafogo (RJ), em de 22 de outubro de 2010. (Apêndice C). 51Ibid., p. 211.

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movimentação, ação e atuação cênica, 5.2 cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas, 5.3 cenário e objetos de cena, 5.4 iluminação artística, 5.5 exposição de relações e costumes típicos do meio musical, 5.6 sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho); 6) Narrativa (6.1 linearidade, 6.2 texto, 6.3 relação entre palavras e sons); 7) Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical); 8) Tecnologias (uso de equipamentos); 9) Intérprete (9.1 relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra, 9.2 novo virtuosismo, 9.3 consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado); 10) Realização (10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas, 10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais; 10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos de apresentação, 10.4 Relação com as plateias). Em Dueto I+1 (1979), ocorre a colaboração entre três artistas: o artista plástico Milton Machado – autor da ideia (concepção) da peça, e os compositores Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar, parceiros na composição/execução da obra. Há no momento da apresentação a projeção da partitura, que se constitui de um desenho. A projeção do desenho, por sua vez, constitui uma espécie de cenário, que se apresenta como elemento importante na realização da peça. As demais peças são caracterizadas, no gênero música cênica, como teatro instrumental. Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira (1967), prevê, em partitura, ação expressamente teatral (atuação cênica). Em Caprichosa voz que vem do pensamento, de Taborda (2012) também há atuação cênica do pianista. Não há partitura da peça. Há gravação em vídeo. Es(x)tro(a)versão (1982) de Csekö não possui partitura com notas musicais. O texto de instruções indica tanto os aspectos cênicos quanto os aspectos musicais da peça. Em Estudo para piano (1989) de Rescala, a pianista fala e se movimenta de acordo com a situação cênica que consta em partitura. As peças estudadas remetem, cada uma à sua maneira, à música do período entre as décadas de 1950 e 1970, quando a música contemporânea já havia reunido as suas três características principais, segundo Mendes ([20--?] apud CATANZARO, 2003, p. 267): “a não discursividade”, que é a não ocorrência de “um começo característico, um desenvolvimento e um fim” nas peças; “a não periodicidade”, que é a ausência de uma regularidade regida por uma fórmula de compasso fixa e a não dependência das alturas – melodia – para a expressão musical criativa. Apenas na peça de Rescala, a não discursividade relativa se reduz aos sons. Em Estudo para piano, há linearidade na cena. 61

Quanto ao tempo e as alturas, estes são meticulosamente planejados com a finalidade de parecerem aleatórios, como se a pianista os estivesse inventando espontaneamente, mas são detalhadamente escritos. Outro aspecto comum entre as peças estudadas é a referência às atividades dos músicos de concerto em situação de ensaio, na experimentação da sonoridade do piano, no estudo solitário e dedicado, na suposta necessidade em demonstrarem sobriedade e elegância em suas apresentações. A única peça que não faz referência a esse aspecto seria o Dueto I+1 de Milton Machado na versão de Leite e Caesar. Nas cinco peças, a atuação cênica, a interferência criativa dos intérpretes na obra e até mesmo as características físicas de cada um tornará cada interpretação altamente diferenciada e personalizada – de maneira mais acentuada do que ocorre quando se trata de interpretação de música tradicional para piano.

3.1 ES(X)TRO(A)VERSÃO, DE LUIZ CARLOS CSEKÖ

Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö, foi composta no Rio de Janeiro entre os anos de 1981 e 1982. A duração é ad libitum, uma vez que o tempo de execução depende das ações e falas criadas pelo(a) intéprete. Classifica-se como Teatro instrumental porque possui indicação de atuação cênica e iluminação artística. Nela, o piano solista é expandido. A gravação audiovisual que serviu de referência para a análise foi realizada pela pianista Maria Clara Gonzaga no auditório Onofre Lopes, na Escola de Música da UFRN, em Natal/RN, em 2013. Essa peça exibe um(a) pianista em determinada situação de sua rotina profissional que costuma ocorrer sem a presença do público. Como música resultante da cena, Es(x)tro(a)versão apresenta piano expandido a partir dos sons produzidos exclusivamente através de materiais/objetos da situação cênica: a chave do piano, o banco do piano, o banco sendo ajustado, as tampas sendo abertas – do teclado e da caixa acústica – e o lenço que supostamente o(a) pianista traria consigo para enxugar o suor das mãos, do rosto e do instrumento. Utiliza a voz do próprio intérprete e sua movimentação cênica como instrumentos da música. Prevê a movimentação de entrada com o som dos sapatos no piso – supostamente de madeira – do palco, nos passos do(a) instrumentista e sua voz pedindo a chave do piano que estaria trancado. Focaliza e supervaloriza com um canhão de luz direcionado – que acompanha o intérprete em todos os seus movimentos, com todo o restante do palco e plateia às escuras – as atitudes do(a) pianista na situação da cena, que simulam os 62

momentos de preparação dos intérpretes momentos antes do concerto, experimentando a sonoridade das regiões do instrumento, aquecendo as articulações com escalas e arpejos. Expõem uma sequência de ações típicas do comportamento desses profissionais da música de concerto enquanto constrói, com a colaboração – co-criação – do intérprete, uma peça com muitos fatores de indeterminação, que explora o instrumento e o instrumentista de maneira não tradicional e, assim, produz impacto na apreciação da plateia. A realização da peça exige articulação com equipe de colaboradores que conta com uma pessoa responsável pela operação do canhão de luz e pela pessoa que ficará à disposição para a entrega da chave do piano. Exige do intérprete que tenha práticas teatrais e capacidade de invenção para improvisar ou criar previamente tanto a música – atuando, encenando, interagindo sobre os materiais propostos pelo compositor – quanto o texto da sua fala no início da execução.

3.1.1 Instrumental

Do piano expandido, a sonoridade não se restringe aos sons emitidos a partir de ação direta no teclado. Ação indireta, com manipulação do teclado através de um objeto, também ocorre. O(a) pianista passa um lenço pelo teclado do instrumento, produzindo sons que fazem parte da música. Além desses, há os sons produzidos pela tampa do teclado, da tampa da caixa acústica e da estante de partituras ao serem abertas. Da mesma forma acontece com o banco do piano sendo ajustado e com a movimentação do pedal. Há a manipulação indireta das cordas do piano: objetos de cena são utilizados como instrumento da música. Os objetos são acessórios, do instrumento ou do instrumentista. Além do lenço que já havia usado para manipular o teclado, há o ruído de um molho de chaves, que contém a chave do piano, em movimento. O(a) pianista fará, propositalmente, as chaves tilintarem. Deixará o molho cair no chão para apanhá-lo em seguida e, depois, deixá-lo cair novamente, nas cordas do piano, enquanto abre a tampa da caixa acústica. Apanha-o mais uma vez. Os sons a serem emitidos pelo(a) instrumentista têm início, na peça, através de seus passos da caminhada no palco em direção ao instrumento na entrada e, ao final da apresentação, do instrumento em direção à saída. São sons, portanto, emitidos através de seus sapatos. O(a) pianista usa também a voz, logo no início da peça, para pedir as chaves do piano a alguém – não determinado, que é, supostamente, a pessoa encarregada de zelar pelo palco e pelo instrumento.

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3.1.2 Notação

Nesta peça, a música é escrita através de palavras.

3.1.2.1 Partitura

Na partitura textual, Csekö (1982)52 descreve a peça:

Figura 2 - Partitura/texto original de Es(x)tro(a)versão, de Luiz Carlos Csekö

.

Fonte: Csekö (1982).53

3.1.2.2 Texto de instruções ou bula

Em anexo ao texto/partitura, observações gerais reforçam informações já contidas na partitura textual tais como a necessidade de o piano estar trancado, no início da apresentação (tampa da caixa acústica e tampa do teclado fechadas) e a utilização de um lenço – que deve já estar com o pianista em sua entrada no palco – e de um molho de chaves “que produza bastante som, nítidamente audível pela platéia”. (CSEKÖ, 1982).54

52Documento não paginado. 53Documento não paginado. 54Documento não paginado. 64

O reforço das informações já contidas no texto/partitura demonstra a especial importância que tais aspectos possuem e a preocupação do compositor em deixar isso muito claro. É muito comum, segundo depoimento do próprio Csekö 55 , que os músicos que apresentam música cênica deixem de realizar algum ou alguns dos aspectos cênicos das peças ou por dificuldade em formar equipe e conseguir equipamentos adequados, ou pela dificuldade em desenvolver suas habilidades cênicas ainda não treinadas.

3.1.2.3 Gráficos ou desenhos

Não há gráficos ou desenhos na partitura de Es(x)tro(a)versão.

3.1.3 Manipulação dos parâmetros sonoros

Alturas, durações, timbres e texturas são sugeridos através de palavras na partitura textual e conduzidos com larga margem de criação pelo(a) intérprete.

3.1.3.1 Alturas

As alturas são previstas, mas não determinadas. As alturas indicadas inicialmente são as cinco últimas notas do registro agudo e as cinco últimas notas do registro grave, além de notas isoladas nos registro médio, grave, e agudo. Há, ainda, escalas não definidas: algumas apenas com a mão direita e outras a serem executadas simultaneamente a duas mãos em toda extensão do piano.

3.1.3.2 Durações

O ritmo dos passos sonoros sugere regularidade e forte intensidade, em decorrência da notação resolutamente. Entretanto, as durações nessa peça, de maneira geral, se constituem de ritmo irregular – nas notas do registro agudo e grave e de notas longas nos variados registros do instrumento.

55Entrevista com Luiz Carlos Csekö (compositor) em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de setembro de 2010. Trecho não gravado.

65

A indicação de notas longas se dá através das recomendações de que após tocar em fortíssimo e com pedal uma nota em determinado registro, o(a) pianista assuma “[...] postura de ouvir com atenção” e execute “[...] três notas, cada uma em registro diferente [...]”, enquanto procura manter o pedal ouvindo atentamente por algum tempo. Em outro momento, há indicação execução de escalas, “[...] ultra rapidamente [...]”. (CSEKÖ, 1982).56 Pausas são definidas em dois momentos em que a atuação cênica recomendada não produz som. As indicações dessas pausas são redigidas, no texto/partitura da seguinte forma: “[...] silêncio curto [...], [...] súbito interromper escalas e pedal [...] e [...] assumir uma postura de quem vai tocar a qualquer momento, olhar para o teto [...]”. (CSEKÖ, 1982).57

3.1.3.3 Texturas, timbres e dinâmica

Pela ação dos dedos no teclado, no que diz respeito à textura, soam notas isoladas quando o(a) pianista está experimentando os sons do instrumento. As indicações de tocar – casualmente – com a mão direita as últimas cinco notas do registro agudo, algumas vezes, tocar algumas escalas, ultra rapidamente, mão direita, tocar uma nota no registro médio e tocar três notas, cada nota em um registro diferente sugerem que tais sons sejam emitidos um de cada vez . Até os ruídos do piano expandido soam isoladamente. (CSEKÖ, 1982). Quanto às teclas que serão acionadas através do lenço que limpa o teclado, ficará a cargo do(a) pianista decidir se soarão individualmente ou como clusters. As notas que soam simultaneamente surgem através da recomendação de “[...] tocar algumas escalas a duas mãos [...]”. (CSEKÖ, 1982).58 A expressão “brutal” utilizada para determinado trecho da peça tanto pode ser compreendida como ataque (toque) violento ou como andamento veloz. As variações de timbres ocorrerão por conta desse toque, dos ataques em staccato e da execução com pedal, além dos eventos sonoros ruidosos da movimentação cênica. A qualidade do som desses eventos é variável. Sapatos com ou sem salto, por exemplo, farão significativa diferença na sonoridade produzida. (CSEKÖ, 1982).59

56Documento não paginado. 57Documento não paginado. 58Documento não paginado. 59Documento não paginado. 66

As curvas dinâmicas ocorrem a partir das seguintes expressões utilizadas no texto/partitura: “[...] Passos sonoros – resolutamente [...]” – que sugere sonoridade forte, piano, staccato, dinâmica ad libitum, fortíssimo brutal e tocar tensamente. (CSEKÖ, 1982).60

3.1.3.4 Articulação do som no espaço

As curvas dinâmicas se relacionam com a articulação dos sons no espaço através dos passos sonoros, por exemplo. No momento em que, na peça, o(a) pianista percebe que o piano está trancado, pede a alguém as chaves do instrumento. Pode, nesse momento, percorrer novamente o trajeto entre o piano e a entrada do palco. Pode falar se movimentando em cena ou falar sem sair do lugar. Pode descer do palco, sair e entrar novamente. As variáveis da articulação do espaço na exploração do movimento do som com os passos sonoros, com a voz e com as ações cênicas que se utilizam de objetos/instrumentos musicais se dão a partir de um encontro/combinação entre as indicações do texto/partitura e as decisões do intérprete.

3.1.4 Interdisciplinaridade

Há, nesta peça, intenso diálogo com a linguagem teatral, que inclui ação, movimentação e atuação cênica, objetos de cena e iluminação artística.

3.1.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas

Esta peça possui aspectos específicos da linguagem teatral tais como iluminação artística, exploração de objetos de cena e atuação cênica.

3.1.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz

O próprio compositor fez o projeto da iluminação (light design), que descreveu na partitura, em anexo ao texto de instruções cênicas/musicais.

3.1.5 Cena

60Documento não paginado.

67

A situação cênica é sugerida pela movimentação/ação cênica descrita na partitura textual.

3.1.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica

Há indicações de atuação cênica, que envolve movimentação cênica e ação cênica. A movimentação cênica prevista é a de entrada e saída do palco, além da sequência de ações relativas aos momentos que antecedem a execução, tais como abrir a tampa do teclado, apanhar do chão a chave do piano que havia caído, abrir a tampa da caixa acústica, apanhar das cordas do piano a chave que houvera caído mais uma vez, ajustar o banco do piano, preparar o corpo na postura peculiar dos pianistas de concerto. A ação cênica se relaciona com atitude de preparação mental, habitual dos pianistas, de olhar para o alto como sinal de concentração para a atividade musical. A atuação cênica se dá, em sua plenitude, com a fala, em que o(a) pianista tem que criar seu próprio texto para pedir a alguém a chave do piano e realizar passos sonoros resolutamente. A recomendação de passos resolutos não remete apenas à sonoridade dos passos, mas também à postura, à maneira com que o(a) instrumentista adentra o palco e se retira dele.

3.1.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas

A situação da cena na partitura/texto sugere o momento anterior ao concerto. Parece simular a busca de concentração do(a) pianista, enquanto experimenta a sonoridade do instrumento, a partir da seguinte instrução: “[...] postura de ouvir com atenção”. (CSEKÖ, 1982).61 Tanto a sonoridade da peça quanto a atuação cênica indicadas retratam a maneira tradicional como os pianistas se preparam para iniciar uma execução: abrem o instrumento, limpam-no, experimentam-lhe a sonoridade, ajustam o banco, concentram-se. O texto de instruções indica: “[...] assumir postura de quem vai tocar a qualquer momento, olhar para o teto, levantar-se e sair do palco resolutamente – com passos sonoros”. (CSEKÖ, 1982).62 Ao fim do que parecia ser a preparação para a execução, que inclui a preparação do instrumento e

61Documento não paginado. 62Documento não paginado.

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experimentação de sua sonoridade, o processo é bruscamente interrompido. O(a) pianista se retira de cena e a peça termina.

3.1.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena

A partitura/texto sugere figurino e cenário tradicionais das apresentações pianísticas. O figurino tradicional é clássico e discreto, muitas vezes preto e longo. O cenário típico dos recitais de piano é o próprio piano num palco vazio. Nesse cenário típico, quando há utilização de outros componentes, estes são arranjos de flores, tapete sob o instrumento, cartaz, faixa, painel ou banner dos promotores do evento em questão.

3.1.5.4 Iluminação artística

A iluminação artística tem indicação detalhada. Um canhão de luz com facho circular acende subitamente e, em seguida, o(a) pianista entra no palco. O foco segue o(a) instrumentista em todos os seus movimentos durante toda a peça. A plateia e todo o restante do espaço no palco fora do raio de ação do(a) pianista devem estar às escuras.

3.1.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical

Os pianistas de concerto, nos momentos que precedem a execução de cada peça, pensam, respiram, concentram-se, fecham os olhos, fitam o teclado, fitam o infinito. Esfregam as mãos, enxugam as mãos em um lenço ou na própria roupa. Enxugam, em alguns casos, o próprio teclado que pode estar molhado pelo suor ou pela umidade ambiente. Às vezes somente fingem que enxugam, num movimento repetido apenas pela força do hábito, mesmo quando não há suor a ser enxugado, como num ritual. Da mesma forma ocorre com o ajuste do banco do instrumento e a postura de concentração para o início da execução. A preparação dos pianistas momentos antes da apresentação constitui, de fato, a cena proposta em Es(x)tro(a)versão.

3.1.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho

Es(x)tro(a)versão se configura como teatro instrumental, uma vez que propõe atuação cênica para o(a) pianista. 69

3.1.6 Narrativa

Há uma sequência linear de ações, embora o tempo da cena esteja deslocado do que normalmente ocorre em uma apresentação musical. O tempo de preparação para a apresentação em Es(x)tro(a)versão acontece no momento da apresentação e o que seria o momento, em si, do concerto, não é apresentado.

3.1.6.1 Linearidade

Há uma sequência direta na narrativa musical/cênica dentro da situação simulada. Entretanto, esta foge à característica específica das apresentações tradicionais, em que a situação da preparação e experimentação do instrumento ocorre antes da entrada do público na sala de concerto.

3.1.6.2 Texto

O título não deixa de fazer parte do texto da peça, já que traz significado verbal na música. No título, existem pelo menos quatro leituras possíveis. Sem as letras situadas entre parênteses, a palavra extroversão remete a exteriorização de sentimentos. No acréscimo da letra “a”, entende-se aversão ao que é de fora ou extroaversão. Ao trocar-se a letra “x” pela letra “s”, antes da palavra aversão, seria formada a palavra estroaversão, o que significaria aversão ao estro que, por sua vez, assim se define: “Conjunto de fenômenos e comportamentos que precedem e acompanham a ovulação nos mamíferos de sexo feminino. Inspiração, veia, engenho poético, imaginação artística: estro poético. Desejo sexual”. (ESTRO, [20--?a]). Pode também ter o sentido de “entusiasmo artístico, riqueza de imaginação”. (ESTRO, [20--?b]. Sem a letra “a” de aversão, a palavra passaria a ser versão. Dessa forma, o termo estroversão significaria versão para estro. O texto do(a) pianista pedindo as chaves é indeterminado. Apenas indica que a voz deve ser “[...] audível pela platéia”. (CSEKÖ, 1982).63 Portanto, as palavras a serem usadas serão decididas por cada intérprete. O texto a ser criado pelo(a) pianista para solicitar a chave do piano poderá ter como referência tais informações embutidas no título. O(a) intérprete terá oportunidade de construir a situação emocional de seu próprio personagem no âmbito de seu

63Documento não paginado. 70

ambiente profissional – o instrumento no palco – no momento anterior ao de uma apresentação. A iluminação artística, que consiste em um facho circular de luz sobre o(a) pianista e toda sua movimentação, enquanto todo o restante do palco e a plateia estão às escuras, dá destaque total ao intérprete e sua atuação. Exige deste que providencie não apenas o equipamento necessário como também uma pessoa responsável pela operação da luz. Além desse, outro colaborador precisará participar da apresentação. Alguém que entregue o molho de chaves que contem a chave do piano – que será a pessoa responsável por zelar o palco e/ou o instrumento ou alguém que se passe por essa pessoa – no momento da apresentação.

3.1.6.3 Relação entre palavras e sons

A sonoridade da voz do(a) pianista, em sua intensidade e entonações, terá relação direta como o texto que ele(a) mesmo(a) terá que criar.

3.1.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)

Além do texto do (a) pianista pedindo as chaves, a duração da peça é indeterminada, bem como as alturas e o timbre. Com relação aos ruídos provenientes dos passos sonoros, o tipo de calçado, o tipo de piso do palco e até o peso e a força física do instrumentista fazem diferença na música. O timbre do ruído das chaves dependerá do tamanho e quantidade das mesmas no molho. Os sons emitidos de forma tradicional pelo teclado são notas não definidas em partitura. O texto instrui apenas a região em que devem ser tocadas, por exemplo: registro médio, as cinco últimas notas do registro grave e as cinco últimas notas do registro agudo. (CSEKÖ, 1982). Sons são emitidos tanto involuntária quanto aleatoriamente – ou quase que acidentalmente – pelo movimento do lenço que deve ser utilizado para limpar as teclas do instrumento. Outros aspectos de indeterminação na peça estão nas escalas indicadas na partitura de maneira a serem escolhidas pelo(a) intérprete, contanto que sejam executadas abrangendo toda a extensão do teclado, fortíssimo – brutal com relação intervalar entre a mão direita e a mão esquerda não definida pelo compositor. (CSEKÖ, 1982). 71

A indeterminação nessa peça, portanto, abrange todos os seus aspectos musicais/cênicos, deixando ao acaso – às características pessoais e decisões de cada intérprete – a definição de tudo que não foi detalhado em partitura.

3.1.8 Tecnologias(uso de equipamentos)

Faz-se necessário utilizar canhão de luz de facho circular.

3.1.9 Intérprete

A atuação do(a) intérprete é tanto musical quanto teatral.

3.1.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra

Não houve interação do compositor com a intérprete para a realização da obra. O compositor manifestou preferência em deixar que os intérpretes tirem suas próprias conclusões a partir do que está notado. Prefere não explicar o que anotou no texto/partitura, deixando os instrumentistas totalmente entregues às suas próprias conclusões em relação ao que está escrito.

3.1.9.2 Novo virtuosismo

Se o tempo musical não é regular, não tem fórmula de compasso, pulso ou qualquer outra forma de medição da maneira com que as ações/sons da peça se desenvolvem, esse tempo é o tempo do intérprete e varia conforme a sua vontade, sutilmente regido pelo texto/partitura. As alturas dos sons que o(a) pianista emite são parcialmente previstos num breve esboço do que deve acontecer, de acordo com a disposição e criatividade do músico. A respeito dessa característica de Es(x)tro(a)versão, que se estende ao conjunto da obra de Csekö, ele mesmo diz:

Eu convido o intérprete a participar – e a participar em nível composicional. Obviamente não com 50% porque aí, na verdade, eu estaria sendo preguiçoso, mas há uma proporção muito grande de participação do 72

intérprete, de contribuição do intérprete para o meu trabalho... sempre, sempre, sempre, sempre. (informação verbal).64

3.1.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado

A consciência musical/cênica da peça é fundamental para que o intérprete possa transmitir ao público a proposta do compositor: no caso, a autoconsciência do(a) pianista como artista exposto(a) no palco como protagonista da cena. Consciência corporal – inclusive da própria voz – é, nesse caso, condição para execução dessa obra, além de envolvimento pessoal na organização dos elementos necessários à sua realização.

3.1.10 Realização

A formação de equipe, a atuação teatral e a iluminação cênica provocam demandas não tradicionais no processo de produção artística e executiva da apresentação musical.

3.1.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas

Além de agente que opere o canhão de luz, há a necessidade de que alguém (provavelmente algum zelador da sala de concerto e/ou do instrumento) entregue o molho de chaves no momento previsto. Não são definidos nem o local e nem a maneira como as chaves serão entregues ao pianista. Tudo isso deverá ser combinado entre o(a) pianista e ess(a) colaborador(a). A peça ressalta, de maneira subliminar, a importância dos funcionários de apoio que zelam pelo instrumento, pelo palco, pela sala de concerto.

3.1.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais

A formação de equipe sempre instiga, de alguma forma, a formação de grupos artísticos que permaneçam em colaboração para outras obras e apresentações.

64Entrevista com Luiz Carlos Csekö (compositor) em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de setembro de 2010. (Apêndice A, p. 170).

73

3.1.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos

A peça sugere realização em sala de concerto tradicional.

3.1.10.4 Relação com as plateias

O foco de luz que acompanha o(a) intérprete com a plateia às escuras chama atenção para a relação tradicional do público com os solistas, que costuma ter destaque absoluto nesse tipo de apresentação. Entretanto, os ouvintes/espectadores são surpreendidos ao verem em destaque o(a) pianista, não em sua a atividade principal no momento da apresentação do repertório preparado, mas, sim, no momento de preparação para essa apresentação. O destaque desse momento, de alguma forma, instiga a reflexão acerca das relações entre público e artista. O fato de exibir o(a) pianista cumprindo etapa de atividade profissional em nada glamourosa – como qualquer outro profissional de outras áreas – pode retirar parcialmente a aura divinizada do(a) solista. Por outro lado, a cena pode ser compreendida como um making-of da apresentação musical – o que poderia, aí sim, reforçar sua tradicional aura divinizada e glamourizada.

3.2 ESTUDO PARA PIANO, DE TIM RESCALA

Tim Rescala compôs Estudo para piano em 1989, no Rio de Janeiro. A peça tem duração de três minutos e vinte segundos e classifica-se como teatro instrumental – com atuação cênica. Piano solo gravado pela pianista Maria Teresa Madeira na Sala Baden Powell, no Rio de janeiro/RJ no ano de 2002 serviu como referência para a presente análise. O conflito dos pianistas entre a vontade de criar livremente a própria interpretação e os estudos mecânicos e repetitivos do instrumento são o foco da narrativa. A atividade artística do(a) pianista que se depara com o cotidiano na busca da perfeição técnica provoca conflito entre a estudante – personagem – e o piano. No entanto, torna-se claro que, ao libertar-se dos exercícios puramente técnicos e expressar-se descontraidamente através da música, a jovem pianista encontra a satisfação e o prazer relativos às atividades de criação e invenção. A peça transparece humor na medida em que exibe, no palco, os bastidores dos estudos do instrumento. A aura divinizada dessa atividade artística é, de certa forma, quebrada, nessa situação. A elegância tradicional dos recitais de piano é destituída pela informalidade do comportamento – inclusive da fala – da pianista, que é protagonista na cena. 74

Essa peça exige excelência técnica para a execução do texto musical de alto nível de elaboração em relação à utilização do instrumento musical simultânea à interpretação teatral do texto falado em ritmo totalmente determinado na partitura.

3.2.1 Instrumental

O piano, executado de maneira tradicional, ao estilo dos períodos clássico e romântico, se intercala à execução de música de linguagem contemporânea, com clusters e com inserção da voz falada, exigindo excelência técnica da pianista ao instrumento.

3.2.2 Notação

A notação musical de Estudo para piano é tradicional.

3.2.2.1 Partitura

A notação musical é detalhada. O compositor faz uso de sistema de três pentagramas, como ocorre quando se escreve para piano e canto. O texto escrito para ser falado pela instrumentista é anotado sobre figuras rítmicas.

3.2.2.2 Texto de instruções ou bula

Não há texto de instruções ou bula na peça. A notação musical tradicional e detalhada prescinde de instruções complementares. As indicações cênicas não são tão minuciosas e mesmo assim não possuem recomendações anexas à partitura.

3.2.2.3 Gráficos ou desenhos

Não há qualquer tipo de gráfico ou desenho fora da notação tradicional. Mesmo a notação de linguagem contemporânea utilizada é amplamente difundida no meio musical: não exigiu do compositor a criação de novos meios para fins específicos nessa peça.

3.2.3 Manipulação de parâmetros sonoros

75

A manipulação de alturas, durações, texturas e timbres baseia-se, alternadamente, nas características da literatura pianística clássica e romântica e da contemporânea.

3.2.3.1 Alturas

Entre os quarenta e sete compassos da peça, a mesma citação, mais ou menos longa, do trecho inicial do estudo op. 60 n.1 de Johann Cramer ocorre entre os compassos 1 e 4, 8 e 10, 16 e 17, 45 e 47. (CRAMER, [18--?]). Os três fragmentos musicais que intercalam as citações apresentam dois tipos de configuração: uma com base nos modos de composição clássica e romântica e outra com base nas composições de linguagem contemporânea. O primeiro desses fragmentos, compreendido entre os compassos 5 e 7, apresenta melodia na mão direita com acompanhamento que se refere ao Baixo d‟Alberti na mão esquerda, finalizando em cadência suspensiva. O segundo, entre os compassos 11 e 15, é similar ao anterior, possuindo textura mais densa. O terceiro, entre os compassos 18 e 43 acordes construídos sobre intervalos de sétimas e quartas, em progressão cromática ascendente, conduz ao ápice num cluster fortíssimo com as duas mãos – uma na região grave, outra na região aguda do instrumento. Segue trecho atonal, constituído por arpejos, escalas e acordes em saltos, que termina em uma sequência de clusters violentos. Após fermata sobre pausa, surge melodia delicada na região aguda do instrumento. Novamente, o acompanhamento faz referência ao baixo d‟Alberti. O ambiente tonal torna a ficar claro. Acordes cheios bordam melodia romanticamente desenhada. O acompanhamento, na mão esquerda também se torna mais denso. A melodia cita mais uma vez o Estudo de Cramer para encerrar a obra, que termina em um arpejo descendente desvinculado de tonalidade, imediatamente seguido, dentro do mesmo compasso final, de dois acordes que delineiam cadência perfeita em Dó Maior.

3.2.3.2 Durações

A peça ocorre em compasso quaternário. Compassos de dois tempos (2/4) ocorrem em alguns – três – momentos e um compasso ternário (3/4) ocorre uma única vez. Essas variações na fórmula de compasso coincidem com os momentos do texto em que a fala é reticente – 76

“Mas eu gosto de piano, mas às vezes me dá uma vontade de... Ah, bobagem!” – ou surgem quando a melodia acompanhada ao estilo romântico sublinha a fala – “só mesmo o um piano, meu velho e bom piano faz com que eu me esqueça dessa imensa solidão/ Eu paro de chorar e volto a estudar”. (RESCALA, 1989).65 O compositor recomenda andamento inicial em que a semínima seja equivalente a 132 e redução para semínima equivalente a 90 quando a fala se inicia. O andamento 132 vale para os momentos de citação ao Estudo de Cramer e para a seção em que o personagem se enfurece, entre os compassos 16 e 25. Esse trecho é construído com polirritmias em tercinas, quintinas e septinas, que inclui fusas velozes. As variações dos valores funcionam para expressar o estado de espírito do personagem na cena.

3.2.3.3 Texturas, timbres e dinâmica

A textura torna-se mais densa conforme a peça se desenvolve, a partir do segundo entre os três trechos em que as citações do Estudo de Cramer op. 60 n.1 ocorrem. Os timbres e a dinâmica decorrentes da execução se modificam de acordo com a textura. À medida que esta se torna mais pesada, exige execução mais forte e produz timbre decorrente de toque mais agressivo. Mais uma vez, a música, com suas variações de textura, timbres e dinâmica, está a serviço da narrativa, na peça.

3.2.3.4 Articulação do som no espaço

A articulação do espaço não ocorre na música e sim na cena. O compositor recomenda movimentação do(a) pianista, que pode ter implicações sonoras através da entrada saltitante do personagem no palco, pela ação do(a) intérprete em dar as costas ao teclado no momento do ápice da peça – em que, inclusive, bate a tampa do teclado produzindo som – e pela possível fala direcionada para a frente do piano ou para a plateia, conforme a atuação cênica.

65Documento não paginado. 77

Figura 3 - Fragmento da partitura original de Estudo para piano, de Tim Rescala

Fonte: Rescala (1989).66

3.2.4 Interdisciplinaridade

A interdispilinaridade nessa obra ocorre entre música e teatro.

3.2.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas

66Documento não paginado. 78

A interdisciplinaridade se relaciona à teatralidade da peça, que possivelmente inclui figurino, cenário e objetos de cena.

3.2.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz.

O compositor é o autor do texto e é o diretor de cena. Entretanto, nem sempre estará presente no processo de futuras realizações da obra. Segundo o que está anotado em partitura, haverá margem para significativas modificações da interpretação musical/cênica no que se vê e ouve na gravação que ocorreu na Sala Baden Powell com a pianista Maria Teresa Madeira.

3.2.5 Cena

A cena é descrita na partitura.

3.2.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica

Nas instruções anotadas pelo compositor na partitura, há indicação de movimentação cênica: “A pianista, visivelmente feliz, corre brejeira e saltitante em direção ao piano. Senta- se, dá um suspiro apaixonado e começa o seu „estudo diário‟”. (RESCALA, 1989).67 Quanto à atenção à entrada e saída do palco, mesmo quando não há indicações cênicas na partitura ou em anexo, Rescala observa: “[...] Isso, em si, já é uma postura cênica. Entrar no palco e se posicionar diante de uma plateia, em si, já é”. (informação verbal).68 Na música presencial, em que os intérpretes se apresentam para os ouvintes, os aspectos visuais/cênicos ocorrem obrigatoriamente. Dessa maneira, pode-se concluir que os músicos, mesmo não sendo atores e mesmo sem qualquer intenção de exercerem teatralmente suas práticas interpretativas, quando adentram o palco, estão em cena. Em Estudo para piano, a pianista deve começar a tocar com muito entusiasmo, depois com menos entusiasmo. E, a cada compasso, vai perdendo o entusiasmo até que desanima-se e inicia a fala. Entusiasma-se novamente. Logo em seguida, o entusiasmo vai diminuindo. (RESCALA, 1989).

67Documento não paginado. 68Entrevista com o compositor Tim Rescala, no Estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de 2010. (Apêndice B, p. 189). 79

A atuação cênica se configura quando as instruções se tornam teatralmente mais complexas: “Empolga-se de novo mas nem tanto, até que se enfurece”. (RESCALA, 1989).69 Queixa-se dos estudos repetitivos do instrumento. Irrita-se, demonstra grande indignação. A pianista se vira de costas para o teclado. Retorna para recomeçar a tocar e comenta como, por outro lado, o piano lhe faz bem. Assim, comovida, explica a causa de permanecer dedicada aos estudos que, em alguns momentos, tanto a aborrecem.

3.2.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas

Instruções em partitura configuram uma estudante de música que inicia seus estudos diários ao piano e logo expressa sua insatisfação com a monotonia do cotidiano dessa atividade, na forma como lhe é exigida. Após demonstrar grande irritação, arrepende-se de maldizer o instrumento que tanto lhe faz bem nos momentos em que se permite tocá-lo para o próprio deleite. Apesar de não haver escrito determinados detalhes, o compositor, em depoimento a este trabalho, revela intenções não anotadas que Maria Teresa Madeira incorporou em sua interpretação. Rescala diz que o personagem da estudante de piano “[...] é uma menina que, na verdade, é obrigada a estudar piano. Começa a se revoltar com aquilo até que esmurra o piano. Bate nele e bate a tampa. Depois, pede desculpas. Faz carinho no piano, conversa com ele”. (informação verbal).70 E revela, ainda, outras intenções não levadas ao palco: “[...] A minha intenção era que o piano reagisse. O ideal, para mim, seria que o piano falasse”. (informação verbal).71

3.2.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena

As instruções de cena contidas na partitura apresentam intérprete do sexo feminino. O personagem não é, necessariamente, criança – apenas adentra o palco saltitante. O compositor, que dirigiu a cena da gravação audiovisual com a pianista maria Teresa Madeira, apresentou o personagem caracterizado como uma pequena instrumentista, mas não deixou

69Documento não paginado. 70Entrevista com o compositor Tim Rescala, no estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de 2010. (Apêndice B, p. 189). 71ENTREVISTA..., loc. cit.

80

isso claro na partitura. O texto descreve a pianista como uma aprendiz do instrumento e por isso inspira figurino infantil ou adolescente. Não há indicação de cenário ou de objetos de cena.

3.2.5.4 Iluminação artística

Não há indicação de iluminação artística. Esta se torna, então, opcional. Deverá se relacionar com a concepção geral da encenação, o que inclui cenário e figurino.

3.2.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical

A cena retrata o cotidiano dos estudos de piano tradicional/erudito: estudos repetitivos de música tradicional com ênfase nos séculos XVIII e XIX, que exigem dos alunos muitas horas diárias de estudo repetitivo e solitário. Esse cotidiano, o próprio compositor da peça vivenciou. Declarou, a respeito disso que, em determinada época desse período como estudante de piano, ficou aborrecido com a rotina acadêmica, que considerava cansativa, entediante e enfadonha. (informação verbal).72

3.2.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho

Esta peça se configura como teatro instrumental, uma vez que demanda atuação cênica da pianista.

3.2.6 Narrativa

A narrativa é direta.

3.2.6.1 Linearidade

A narrativa é direta. A cena tem começo, meio e fim bem definidos. A estudante alegra-se no momento em que vai iniciar seus estudos diários, mas logo se aborrece com um

72Entrevista com o compositor Tim Rescala, no estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de 2010. (Apêndice B).

81

Estudo do século XIX composto especialmente para o condicionamento técnico dos estudantes ao instrumento. Depois que maldiz o piano, desculpa-se e recomeça a tocar, dessa vez expressando-se artisticamente, da maneira que lhe apraz. Para encerrar a peça, volta a realizar os estudos técnicos inicialmente apresentados.

3.2.6.2 Texto

É o texto que dá linearidade à peça. O texto é de autoria do próprio Rescala (1989)73 da peça:

Eu gosto de estudar piano, mas às vezes não sei... mas às vezes... Ah, bobagem... deixa para lá... Mas eu gosto de estudar piano, mas às vezes, não sei, às vezes me dá uma vontade de... Ah, bobagem! Mas até que eu gosto de estudar piano, mas às vezes me dá uma agonia, um nervoso de ficar sempre tocando a mesma coisa todo dia sem parar: esses arpejos, escalas, acordes que eu não suporto, que eu não aguento, mas que eu tenho que tocar se eu quiser me formar nesta escola desse piano que eu odeio! Odeio! Merda de piano! Ah! (Pede desculpas e acaricia o instrumento) Mas quando estou sozinha – e eu vivo tão sozinha – só existe uma coisa, apenas uma coisa capaz de me acalmar e apaziguar o meu coração: só mesmo o meu piano, meu velho e bom piano faz com que eu esqueça desta imensa solidão. Eu paro de chorar e volto a estudar.

Na partitura, o texto é todo metricamente guiado por figuras rítmicas definidas nos compassos sobre as notas que devem ser executadas ao piano, como canto falado:

73Documento não paginado. 82

Figura 4 - Fragmento inicial da partitura de Estudo para piano, de Tim Rescala

Fonte: Rescala (1989).74

74Documento não paginado. 83

3.2.6.3 Relação entre palavras e sons

Os ambientes emocionais sugeridos pelo texto com momentos de irritação, fúria ou tranqüilidade e bem-estar da pianista são acompanhados pela música em relação a texturas, tensões, durações e intensidade. Durante os diversos momentos do texto, o piano pontua a fala na primeira parte, até que, conforme os ânimos da pianista/personagem vão-se inflamando, ocorram, além de acordes, escalas, arpejos e clusters violentos, em trecho de alto nível de dificuldade técnica. Quando os ânimos se acalmam, a pontuação da fala se torna delicada, dedilhada no registro agudo do instrumento e, depois, passa a ser acompanhada ao estilo Romântico.

3.2.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)

Não há previsão de abertura a improvisação na peça. Entretanto, mesmo com notação tradicional detalhada e texto integralmente escrito, houve margem para a interpretação criativa da pianista. Dirigida pelo compositor, ela pôde sugerir e acrescentar à concepção da peça a sua própria visão artística na execução/atuação.

3.2.8 Tecnologias (uso de equipamentos)

Apesar de não exigir qualquer tipo de equipamento para ser executada, a peça pode é realizada sob iluminação artística, que confere à cena certa aura de ficção – embora o compositor esteja se referindo a um tema que corresponde à realidade de grande parte dos estudantes de piano tradicional/erudito. O uso de microfone será necessário, caso o texto seja pronunciado de maneira mais intimista – não há recomendação, na partitura, que indique que o texto representa uma conversa com o público. Falando consigo mesma, por exemplo, a pianista não projetaria a voz, nem se viraria para a plateia. Nesse caso, os sons do piano talvez encobririam o som da voz. Essa necessidade deve ser avaliada também de acordo com as características acústicas da sala de concerto.

3.2.9 Intérprete

Na execução de Maria Teresa Madeira, houve interação entre compositor e intérprete num trabalho de colaboração na realização da obra. 84

3.2.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra

Diálogos entre Madeira e Rescala desencadearam a iniciativa do compositor em escrever algo que fosse condizente com o desejo da pianista com relação às práticas interpretativas. Além de ter atuado também como bailarina profissional, Madeira teve oportunidade de vivenciar práticas teatrais ainda quando estudante. Ainda nesse período, ao ter contato com o compositor Rescala, vinculou-se a ele a partir do momento em que externou-lhe sua vontade de “[...] tocar alguma coisa erudita, mas que tivesse humor, que fosse uma coisa diferente” (informação verbal)75, alguma coisa com a qual se identificasse. Ela já havia “[...] ouvido algumas coisas: aquela peça do Cage, do silêncio76, e outras coisas cênicas”. (informação verbal).77

3.2.9.2 Novo virtuosismo

Nessa peça, a pianista toca e fala ao mesmo tempo, interpretando o papel de uma estudante do instrumento. A métrica da fala é determinada na partitura, mas a entonação fica totalmente a cargo do intérprete. Rescala comenta a inserção de texto falado: “[...] é uma dificuldade maior porque tem um sistema a mais para ele ler na partitura, uma complexidade maior de signos”. (informação verbal).78 Na execução realizada na Sala Baden Powell, no Rio de Janeiro, no ano de 2002, com voz infantilizada – sem exagero – ela começa a falar com o público.79 Vestida como criança, com um figurino que ela mesma criou, com uma boneca agarrada nas costas, Madeira acrescenta ao texto, após a primeira frase: “Eu gosto de estudar piano, mas às vezes não sei... mas às vezes... Ah, bobagem...”, a expressão deixa para lá... (RESCALA, 1989). Acrescentou, também por conta própria, a movimentação em que se vira de costas para o teclado, após o último cluster, para depois retornar, já mais calma, à posição inicial. Além disso, foi da pianista a ideia de acariciar o teclado e pedir-lhe desculpas. (informação verbal).80

75Entrevista com a pianista Maria Teresa Madeira, na sala Chiquinha Gonzaga (UNIRIO), em 11 de julho de 2012. (Apêndice G, p. 264). 76A pianista está se refere à peça 4‟33‟, de Cage. 77ENTREVISTA..., op.cit., p. 264. 78Entrevista com o compositor Tim Rescala, no Estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de 2010. (Apêndice B, p. 189). 79Conclui-se que a conversa é com o público porque a pianista vira, por vezes, o rosto, enquanto fala, para o lado da plateia e se refere ao instrumento na terceira pessoa. 80Entrevista com a pianista Maria Teresa Madeira, na sala Chiquinha Gonzaga (UNIRIO), em 11 de julho de 2012. (Apêndice G). 85

A decisão de uma pianista profissional experiente em trajar figurino infantil e infantilizar a própria fala, acentua e potencializa o teor humorístico da peça.

3.2.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado

Envolvida na obra desde o momento de sua concepção e teatralmente experiente, Madeira desempenha com facilidade a função de comunicação com o público através da fala do personagem. Durante a apresentação, diz o texto com o rosto virado para a plateia como se estivesse falando – desabafando – com os espectadores/ouvintes.

3.2.10 Realização

Para a apresentação realizada por Maria Teresa Madeira, a própria pianista idealizou o figurino.

3.2.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas

Figurino, cabelo e maquiagem compatíveis com o personagem, bem como ambientação cênica – cenário, objetos de cena e iluminação artística – podem envolver profissionais de áreas específicas da produção teatral.

3.2.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais

O incentivo mútuo entre compositor e intérprete exemplificado em Estudo para piano desenvolve e potencializa iniciativas artísticas diversas, de outros compositores e intérpretes, inclusive. A peça deu origem ao espetáculo musical Pianíssimo, de 1992: “[...] Isso foi um estímulo para que eu passasse a escrever para teatro”. (informação verbal).81

3.2.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos

81Entrevista com o compositor Tim Rescala, no Estúdio da Glória, na Glória (RJ), em 15 de outubro de 2010. (Apêndice B, p. 185). 86

A locação da cena pode ser uma sala ou quarto onde o personagem realiza seus estudos diários. Esse ambiente pode ser levado a uma sala de concerto tradicional ou pode se adaptar a diversos ambientes.

3.2.10.4 Relação com as plateias

Embora não haja determinação em partitura de que o texto falado representa uma conversa com o público, o compositor, como diretor de cena, recomendou à pianista Maria Teresa Madeira que se virasse para a plateia enquanto em alguns momentos de sua atuação. Isso faz transparecer a comunicabilidade desenvolvida, cultivada por Rescala, junto ao intérprete, principalmente em suas peças cênicas.

3.3 DUETO I+1: PARA EXECUTANTES EXTREMAMENTE ATENTOS E ISOLADOS UM DO OUTRO

Criada por Milton Machado em 1979, a peça Dueto I+1 para executantes extremamente atentos e isolados um do outro teve versão de Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar em 2002. A duração é ad libitum porque a co-criação dos intérpretes a torna largamente variável. A projeção do desenho/partitura em tela no momento da apresentação caracteriza-a como música cênica, na categoria de música-vídeo. Configura-se, na versão que serviu como referência para análise, como música mista – com piano e sons eletrônicos sobre suporte. A gravação em áudio foi realizada no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Rio de Janeiro/RJ, em 2002. A peça propõe colaboração entre o artista plástico, autor do desenho/partitura, e os intérpretes, que são necessariamente co-autores, segundo instrução do próprio desenho/partitura. Os dois intérpretes/compositores poderão criar previamente ou improvisar sem, no entanto, combinarem entre si o que vão fazer no momento da apresentação. A relação entre a música produzida por eles só se revelará na execução pública. Oferece ao público uma apreciação visual/cênica/musical, uma vez que o desenho/partitura é exposto no palco, constituindo-se como cenário.

3.3.1 Instrumental

87

A escolha de Leite em usar o piano para fazer duo com os sons naturais e eletrônicos processados de Rodolfo Caesar se deu na tentativa de tornar “mais transparente a realização da idéia original.” (LEITE, 2004, p. 57). Ela criou uma série com as doze notas da escala cromática e escreveu uma partitura tradicional para piano com base nas instruções da partitura/desenho criada por Milton Machado.

3.3.2 Notação

Há, nesta peça, dois tipos de notação: uma através de desenho; outra, tradicional.

3.3.2.1 Partitura

A partitura de Dueto I+1 é um desenho do artista plástico Milton Machado. O desenho contem a concepção da composição, que conta com a colaboração de compositores/intérpretes para que se torne, de fato, uma obra musical.

3.3.2.2 Texto de instruções ou bula

Não contem texto ou bula para a orientação dos compositores/intérpretes que irão realizar a peça. Entretanto, o subtítulo da obra, em si, é explicativo: para executantes extremamente atentos e isolados um do outro.

3.3.2.3 Gráficos ou desenhos

A partitura já é, em si, um gráfico/desenho. A peça está classificada, pela tese de Leite, na primeira modalidade de música-vídeo, em que a partitura se constitui numa imagem. Nessa modalidade, a partitura/imagem dá origem “ao processo de construção do sonoro” (LEITE, 2004, p. 50). A partir dessa imagem, cada intérprete compõe a sua própria música.

3.3.3 Manipulação dos parâmetros sonoros

A notação tradicional de Vânia Dantas Leite elaborada a partir das instruções do desenho/partitura resulta em música de linguagem contemporânea.

88

3.3.3.1 Alturas

No desenho/partitura de Milton Machado, as cores/formas que são gradativamente acrescidas em sequência a cada compasso82 indicam a inserção também gradativa de eventos sonoros que deverão soar simultaneamente aos já estabelecidos, também gradativamente. Esses eventos sonoros poderão ser improvisados ou notados por cada intérprete em partitura (composição) própria. Cada compasso indica um evento sonoro a mais do que o compasso anterior. Segundo Leite (2004, p. 55), “o desenho determina não apenas os materiais mas também a macro-estrutura da obra, sua forma como um todo.” As alturas são, então, decididas por cada músico envolvido, sem qualquer tipo de determinação. Na elaboração de Leite (2004), foi criada uma série dodecafônica. Cada som corresponde a uma das doze cores do desenho. A sequência de sons introduzidos segundo a sequência das cores introduzidas no desenho em seus quarenta e cinco compassos se configura conforme a Figura 5:

82Os compassos nessa peça são conceituais, simbólicos, sem fórmula ou pulsação estabelecida. 89

Figura 5 - Análise, da própria autora, da parte de piano da versão de Dueto I+1 realizada por Vânia Dantas Leite e Rodolfo Caesar em colaboração com a obra de Milton Machado

Fonte: Leite (2004, p. 134).

Na partitura, as alterações dentro de cada compasso só valem para a nota que antecedem:

90

Figura 6 - Fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite para o Dueto I+1

Fonte: Leite (2004, p. 135).

91

3.3.3.2 Durações

O conceito de compasso é livre, sem fórmula preestabelecida. São 45 compassos dispostos em 5 linhas de nove colunas. O tempo tem uma periodicidade relativa, pois esta se dá de acordo com os eventos – sons realizados a cada compasso por cada compositor/intérprete no duo. O segundo sempre entra após o término do evento do primeiro executante. O tempo dos intérpretes no duo, nos eventos criados a partir do desenho, se interrelaciona. Sendo assim, cada evento sonoro criado por Leite e Caesar (2002) para cada compasso na parte de piano sucede um evento eletrônico criado por Rodolfo Caesar.

92

Figura 7 - Outro fragmento da parte de piano, criada por Vânia Dantas Leite, para o Dueto I+1

Fonte: Leite (2004, p. 136).

93

3.3.3.3 Texturas, timbres e dinâmica

Timbres e dinâmica não são previstos, ficando os compositores/intérpretes autônomos em relação a esses aspectos. Na versão de Leite e Caesar (2002), a partitura apresenta indicações detalhadas de dinâmica e articulação, que resultam em timbres específicos, aplicados à textura que, por sua vez, torna-se sempre e gradualmente mais densa a cada compasso, na peça.

3.3.3.4 Articulação do som no espaço

A articulação do espaço também depende da criação de cada compositor/intérprete.

3.3.4 Interdisciplinaridade

A interdisciplinaridade nesta peça ocorre na relação entre as artes plásticas (desenho) e a música.

3.3.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas

O Dueto I+1 é uma peça que pode ser classificada como música-vídeo83 que pode, nesse caso, ser também considerada como música cênica pelo fato de apresentar, junto aos eventos sonoros, uma imagem projetada. Com relação à projeção da imagem digitalizada do desenho no momento da apresentação, Leite (2004) 84 comenta que, nessa peça, imagem e som “[...] reforçam-se mutuamente [...]”.

83Pode-se, de acordo com as classificações organizadas por Leite (2007), descrever 5 modalidades de música-vídeo. Na primeira, a imagem é a própria partitura. Na segunda modalidade, o som é concebido para uma imagem já concluída ou a imagem é concebida em função de uma composição musical já pronta. Na terceira, o som real da imagem é tomado como fonte sonora, ou seja, como instrumento para a construção da música. A quarta modalidade constitui-se de imagem e música que, juntas, interagem na concepção e estruturação do processo criativo. Nessa modalidade, faz-se necessária a interação entre os artistas das modalidades visual e sonora. Um não interpreta o outro, mas os dois trabalham numa ação conjunta. Pode, entretanto, um único artista manipular as duas linguagens. Na quinta e última modalidade apurada, a imagem é utilizada como ilustração da música. O Dueto I+1 está classificado na primeira modalidade citada de música-vídeo, em que a partitura se constitui numa imagem. 84Documento não paginado. 94

O desenho foi criado em 1978 por Milton Machado, em aquarela sobre papel. Na ocasião da estreia de Dueto I+1, em 1982, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, foi redesenhado a lápis hidrográfico e finalmente, em 2002, digitalizado para ser projetado em telão.

3.3.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz.

O processo composicional nessa peça é de colaboração entre um artista plástico e dois compositores/intérpretes.

Figura 8 - Desenho/partitura de Milton Machado (imagem digitalizada).

Fonte: Leite (2007, p. 8).

95

3.3.5 Cena

A cena que pode ocorrer em Dueto I+1 é a cena natural da execução musical que, neste caso, tem como cenário o desenho/partitura projetado em telão no momento da apresentação.

3.3.5.1 Movimentação ação cênica e atuação cênica

Esta peça não prevê movimentação, ação ou atuação cênica.

3.3.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas

Esta peça prevê cenário, que é a projeção do desenho/partitura durante a apresentação musical.

3.3.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena

O desenho que serve como partitura funciona também como cenário. Segundo Leite (2004, p. 59):

a parte musical se sustenta sozinha, até porque o desenho exerce um papel de partitura – ninguém precisa ver a partitura para apreciar a música que está sendo tocada. Por outro lado, o original é que esta partitura pode ser também apenas vista como aquilo no qual ela se constitui – um desenho. Mas, sem dúvida vendo/ouvindo é mais completo e interessante pois não é necessário nenhum conhecimento musical para decodificar esta partitura. Qualquer pessoa pode ter acesso à sua leitura, principalmente se ilustrada pela música.

3.3.5.4 Iluminação artística

Não há qualquer previsão de iluminação artística. A luz de projeção da imagem digitalizada do desenho é específica, devendo ser coerente com a iluminação do palco no momento da apresentação.

3.3.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical

96

Dueto I+1 não expõe claramente, em seus aspectos cênicos, questões, relações e costumes típicos do meio musical. Entretanto, o fato de os intérpretes criarem, cada um por si, uma versão da mesma obra que executarão juntos, poderia estar se referindo ao isolamento típico dos músicos, em suas cabines de estudo.

3.3.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho

Essa peça se classifica como música cênica sem constituir teatro musical ou teatro instrumental, pois não possui indicações de movimentação, ação cênica ou atuação cênica.

3.3.6 Narrativa

A narrativa é direta, pois se dá de acordo com a sequência regular de sons propostos pelas cores do desenho.

3.3.6.1 Linearidade

A narrativa está no desenho. A forma pré-organizada de como os diferentes sons vão surgindo tem sequência lógica criada a partir do desenho.

3.3.6.2 Texto

A peça não inclui qualquer tipo de texto.

3.3.6.3 Relação entre palavras e sons

Não há texto. Consequentemente, não há palavras que se relacionem com os sons.

3.3.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)

A concepção musical da obra de Milton Machado é parcial, pois não determina alturas, timbres ou durações. Os dois intérpretes/co-autores escolhem doze sons ou eventos sonoros que correspondem às doze cores do desenho. Os componentes do duo não combinam entre si o que vão fazer. Podem preparar suas partes na versão que realizarão ou improvisar 97

parcial ou integralmente os aspectos musicais em aberto na partitura/desenho no momento da apresentação. Caso os compositores/intérpretes optem por improvisar, torna-se improvável a atenção detalhada a todas as indicações do desenho/partitura. A concepção de Machado deixa, nesse caso, ao acaso a realização exata ou não do que desenhou/compôs. Na versão de Leite e Caesar (2002), os aspectos sonoros da peça foram cuidadosamente planejados antes da apresentação e a interação entre as partes se deu sem ensaio prévio.

3.3.8 Tecnologias (uso de equipamentos)

Para a execução da versão criada por Leite e Caesar (2002) é necessário usar suporte para a difusão do som da parte gravada e suporte de vídeo para a exibição da imagem.

3.3.9 Intérprete

Em Dueto I+1, os intérpretes são co-autores, criando sua própria versão da obra.

3.3.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra

No processo de composição/interpretação dessa obra, a interação entre os colaboradores é intensa por complementarem-se, uns aos outros, em relação ao resultado final da obra. Entretanto, o fato de os compositores/intérpretes prepararem suas partes de maneira independente, entrando em contato um com o outro apenas no momento da apresentação, configura um tipo de interação atípica do fazer musical tradicional em conjunto. Na opinião de Caesar (2003 apud LEITE, 2004, p. 56):

a obediência à imagem é a mais estrita possível. Trata-se de um desafio lançado pelo artista plástico criador da imagem visual: como dois músicos, isolados entre si, poderão extrair de uma imagem alguma música. Na parte que me coube tentei „transpor‟ a coleção de itens da imagem visual para um catálogo de sons de natureza instrumental e eletrônica. [...] O som tenta ser fiel à imagem, embora o conceito de „fidelidade‟ seja particular a cada um dos dois intérpretes. Por exemplo: na leitura que Vania e eu fizemos, cada qual interpreta fielmente o que vê, mas os resultados de cada um são diferentes.

3.3.9.2 Novo virtuosismo

98

A peça exige que o intérprete atue em nível composicional na música. A elaboração de partitura ou de gravação para a execução posterior pareceu, aos intérpretes/co-autores Leite e Caesar, ser caminho mais seguro do que a improvisação em duo no momento da apresentação, no sentido de seguir as instruções da partitura/desenho de Milton Machado. Construir instantaneamente, de cabeça, as sequências de sons, colocaria em risco a integridade da concepção da peça por Machado na observação detalhada das inserções de sons indicadas pela partitura/desenho.

3.3.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado

Conforme já havia comentado Leite (2004), a projeção da imagem digitalizada do desenho/partitura no momento da apresentação, além dos sons gerados a partir do trabalho dos intérpretes/co-autores, dará acesso a outras possibilidades de apreciação do ouvinte/espectador. Esse fator torna-se, então, facilitador em relação a essa apreciação.

3.3.10 Realização

Conforme a versão em questão, a realização desta peça necessita de suporte para difusão dos sons eletrônicos e para a projeção da imagem do desenho. Para que isso aconteça, é necessário que alguém além dos intérpretes atue no momento da apresentação operando o equipamento utilizado.

3.3.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas

A formação de equipe nessa obra ocorre a partir do próprio processo composicional, que envolve artistas da música e das artes plásticas.

3.3.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais

A peça deu nome ao evento Dueto I+1: Música e artes plásticas, que apresentou versão de Leite e Caesar, em 2002, na série Música e Tecnologia & Multimeios. A estreia havia sido em 1982, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage – no evento Concerto 99

Plástico, organizado por Leite e Caesar – em versão criada por Anna Maria Kieffer e Leo Küpper. A associação entre artistas para a realização de todo evento artístico constitui ação cultural importante.

3.3.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos

É possível realizar o Dueto I+1 em qualquer espaço que possa se adequar à utilização do equipamento previsto para a realização dessa peça.

3.3.10.4 Relação com as plateias

Caesar (2003 apud LEITE, 2004, p. 56) considera que “Se a música é apresentada sem a imagem, ganha um outro significado.[...] No caso desta obra, a presença da imagem pode servir para facilitar a comunicação da obra musical com o ouvinte”. Leite (2004) observa que, todavia, a exposição do desenho para a plateia não significa que os ouvintes irão acompanhá-lo como partitura.

3.4 DIMENSÕES PARA QUATRO TECLADOS, DE JOCY DE OLIVEIRA

Jocy de Oliveira compôs Dimensões para quatro teclados – piano elétrico, órgão elétrico, cravo amplificado e piano amplificado – em 1981. A gravação realizada pela própria pianista e compositora em áudio no LP Estórias Para Voz Instrumentos Acústicos e Eletrônicos, 1976 (Selo Fermata), com cinco minutos e cinquenta e dois segundos serviu como referência para análise. Dimensões para quatro teclados é uma versão de One player and four keyboards, composta em 1967 pela própria Jocy de Oliveira (Curitiba/PR, 1936). Escrita para piano elétrico, órgão elétrico, cravo amplificado e piano amplificado ao invés de harmônio, cravo, celesta e piano, essa versão de 1981 mantém-se integralmente em todos os seus outros aspectos. Caracteriza-se como música-teatro pelo fato de indicar ação cênica. Apresenta um intérprete preso entre os seus instrumentos, em sua atividade artística. Os instrumentos envolvem, cercam o(a) pianista, que passa de um instrumento a outro. Combina os sons dos quatro instrumentos, sem interrupção, dois a dois, três a três, quatro a quatro, conforme 100

planejar, segundo a margem de criação que lhe compete diante da partitura repleta de indeterminações para que o intérprete escolha, entre os materiais apresentados o que e como vai tocar. A intensa movimentação provocada pela execução representa também a atuação cênica – nesse caso a peça poderá ser classificada como teatro instrumental – na situação de encarceramento do(a) pianista entre os quatro teclados claramente expressa em partitura. O(a) intérprete torna essa situação mais ou menos explícita segundo sua personalidade, vontade e visão da obra de acordo com a intensidade de sua expressão corporal, facial e possíveis cenário, figurino, iluminação.

3.4.1 Instrumental

O piano nessa peça é amplificado e executado junto a outros três instrumentos de teclado: o seu correspondente elétrico, órgão elétrico e cravo amplificado. O(a) intérprete se posiciona no centro, entre os instrumentos, que formam um quadrado ao seu redor.

Figura 9 – Disposição dos quatro teclados ao redor do intérprete na peça Dimensões para quatro teclados, de Jocy de Oliveira

órgão elétrico

piano

Intérprete

cravo

piano elétrico

Fonte: A autora (2011).

101

O(a) instrumentista cria, então, uma maneira de dar conta de tocar os quatro teclados. A peça desafia o instrumentista a alcançar os quatro instrumentos sem interrupção de som numa movimentação corporal intensa. O piano amplificado é expandido, com manipulação direta e indireta das cordas.

3.4.2 Notação

Esta peça apresenta notação tradicional, mas também se utiliza de gráficos, bula e texto explicativo (introdutório).

3.4.2.1 Partitura

A partitura de Dimensões para quatro teclados disponível é a da versão original, que foi escrita para celesta, harmônio, cravo e piano, intitulada One player and four keyboards, de 1967. Consta de um texto introdutório, partitura principal com uma espécie de bula – lista de figuras musicais que a compositora utiliza denomina de configurações – e seis partes anexas. No momento da execução, a partitura principal pode migrar de um instrumento a outro ou podem ser colocadas cópias em cada um. As partes anexas são colocadas numa estante entre os instrumentos.

3.4.2.2 Texto de instruções ou bula

102

Figura 10 - Texto introdutório da partitura de One player and four keyboards, de Jocy de Oliveira

Fonte: Oliveira (1967).85

O texto introdutório na partitura manuscrita, que é um painel em tamanho de papel A3 explica o seguinte:

A peça consiste de uma partitura principal e seis partes anexas. A partitura principal deve ser seguida de acordo com a sequência indicada pelas setas. Os elementos móveis são „círculos‟ e „quadros‟. Os círculos devem ser interpretados como eventos a serem criados para instrumento determinado com base em configurações preconcebidas ou não, constituindo ação de tempo livre. Os quadros com letras devem ser observados como indicação para a leitura das partes anexas (vide gráfico de combinações de instrumentos). 86 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).87

85Documento não paginado. 86“The piece consists of one main score and six sub-scores. The main score is to be followed in its explicit sequence according to arrows. The mobile elements are the „circles‟ and the „frames‟. The „circles‟ are to be interpreted as events on a proposed instrument based or not on configurations organized on a free action time. The „frames‟ with letters are to be observed as a direction to the sub-scores (see graphic of instruments combinations)”. (OLIVEIRA, 1967). 87Documento não paginado. 103

As partes anexas apresentam possibilidades de eventos baseados na simples estrutura 4c2= I,J,K,L,M, combinando 2 instrumentos. O intérprete escolhe um ou mais eventos. Na estrutura composta o intérprete deve combinar 3 ou 4 instrumentos c4(3)-c4(4), de acordo com as indicações, uma ou mais cada vez. O evento do quadro nas partes anexas é o motivo para uma ação cênica improvisada. Alguns são de notação mais determinada e o quadro vazio deve ser interpretado como [evento] indeterminado. 88 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa)89. A partitura principal pode ser colocada e transportada a outro instrumento. Poder-se-ia fazer com outras cópias. As partes anexas são colocadas em uma estante entre os instrumentos, de acordo como o ângulo da escolha das várias estruturas-eventos que podem ser preparadas pelos intérpretes antes ou durante cada ação. 90 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).91

A combinação dos instrumentos dois a dois é representada pela expressão alfanumérica 2c4 e a combinação de três dos quatro instrumentos ou dos quatro na totalidade da utilização dos mesmos está representada por c4(3) e c4(4, respectivamente). As letras I,J,K,L,M representam as partes anexas. Na execução dos eventos escolhidos nas partes anexas, os instrumentos são combinados dois a dois e na execução da partitura principal, o(a) intérprete deve tocar três entre os quatro instrumentos ou se utilizar de todos simultaneamente.

3.4.2.3 Gráficos ou desenhos

As notas dispostas em sistemas de dois pentagramas – em clave de sol para a mão direita e em clave de fá para a mão esquerda – se intercalam a notações relacionadas em um lista de configurações. Uma espécie de bula explica desenhos e gráficos constantes na partitura:

88 “This sub-score present the possibilities of events based on simple structure 4c2= I,J,K,L,M combining 2 instruments. The performer chooses one or many events. On a composed structure the performer should combine 3 or 4 instruments c4(3)-c4(4) according to directions, one or more each time. The frame event on the sub-scores is a motivation to an improvisatory visual-action. Some are more explicit on its notation and an empty frame should be interpreted as implicit.” (OLIVEIRA, 1967). 89Documento não paginado. 90“The main score can be placed on the piano and switched to other instrument. It could also be done with more copies. The subscores are placed on stand between instruments according to angle the choice of various structure-events can be prepared by the performer in advance or used action.” (OLIVEIRA, 1967). 91Documento não paginado. 104

 Nota a ser tocada alternadamente em dois manuais do cravo. A última execução dessa nota deve soar nos dois manuais: “Nota repetida – última altura nos dois manuais”.92 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).93

Figura 11 – “Nota repetida – última altura nos dois manuais”

Fonte: Oliveira (1967).94

 Em um grupo de notas graves, o cotovelo esquerdo se apóia. O braço se coloca, então, sobre o teclado, até a ponta dos dedos, em direção à região aguda do instrumento: “começa bem devagar com o cotovelo e todo o braço até os dedos”.95 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).96

Figura 12 – “Começa bem devagar com o cotovelo e todo o braço até os dedos”

Fonte: Oliveira (1967).97

 Grupos de notas sucessivos da região grave em direção à região aguda a serem espalmadas no teclado: “Com a palma da mão primeiro e depois os dedos, como uma massagem no teclado”.98 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).99

92“Repeated note – last pitch on both keyboard”. (OLIVEIRA, 1967). 93Documento não paginado. 94Documento não paginado. 95“Start very slow with elbow and all arm until fingers”. (OLIVEIRA, 1967). 96Documento não paginado. 97Documento não paginado. 98“With palm first and their fingers like a massage over keyboard”. (OLIVEIRA, 1967). 99Documento não paginado. 105

Figura 13 – “Com a palma da mão primeiro e depois os dedos, como uma massagem no teclado”.

Fonte: Oliveira (1967).100

 Uma nota à escolha do(a) intérprete – “qualquer altura”. 101 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).

Figura 14 – Uma nota qualquer

Fonte: Oliveira (1967).102

 A indicação de glissando apenas sugere as regiões grave, média ou aguda

Figura 15 – Indicação de direção

Fonte: Oliveira (1967).103

100Documento não paginado. 101“Any pitch” (OLIVEIRA, 1967). 102Documento não paginado. 103Documento não paginado. 106

 Alturas diversas, tocadas sucessivamente. O desenho sugere que são alturas próximas e entre si. Devem ser velozmente tocadas em pequenos grupos estanques: “várias notas, rápido”.104 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).105

Figura 16 – “Várias notas, rápido”

Fonte: Oliveira (1967).106

 A pequena seta posicionada para cima ou para baixo indica a nota: “o mais agudo possível no instrumento”107 ou “o mais grave possível no instrumento”.108 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).109

Figura 17 – “O mais agudo possível no instrumento” ou “O mais grave possível no instrumento”

Fonte: Oliveira (1967).110

 Pressionar e quase retirar o peso do dedo sobre a nota, levemente e devagar: “pressionar a tecla e quase retirar-lhe o som, levemente e devagar, no som (mais agudo possível)” do instrumento”.111 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).112

104“many notes, fast.”(OLIVEIRA, 1967). 105Documento não paginado. 106Documento não paginado. 107“highest pitch on instrument” (OLIVEIRA, 1967). 108“lowest pitch on instrument” (OLIVEIRA, 1967). 109Documento não paginado. 110Documento não paginado. 111“pressing key on and almost off lightely and slow (highest pitch)” (OLIVEIRA, 1967). 112Documento não paginado. 107

Figura 18 – “Pressionar a tecla e retirar dela quase todo o peso bem levemente e devagar (o mais agudo possível)”.

Fonte: Oliveira (1967).113

 A seta posicionada para cima precedida de um sinal de sustenido indica “o cluster mais agudo possível em teclas pretas”. 114 (OLIVEIRA, 1967, traduação nossa). 115 Essa indicação surge também, no decorrer da peça, ao contrário, com a seta posicionada para baixo (para o cluster mais grave possível) precedida do sinal de bequadro (para ser executado em teclas brancas).

Figura 19 – “O cluster mais agudo possível em teclas pretas”

Fonte: Oliveira (1967).116

 A seta posicionada para cima (não precedida de qualquer sinal) indica o cluster “mais agudo possível em notas pretas e brancas”. 117 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).118

113Documento não paginado. 114“highest pitch on cluster on #”. (OLIVEIRA, 1967). 115Documento não paginado. 116Documento não paginado. 117“highest pitch with cluster chromatic”. (OLIVEIRA, 1967). 118Documento não paginado. 108

Figura 20 – “O som mais agudo com cluster em notas pretas e brancas”.

Fonte: Oliveira (1967).119

 Entre as notas dó#3 a si3, conforme aparece na partitura principal, as teclas intermediárias devem ser levemente pressionadas: “de uma nota a outra, lentamente, pressionando a tela e retirando levemente o peso do dedo sobre a mesma”.120 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).121

Figura 21 – “De uma nota a outra, lentamente, pressionando a tela e retirando levemente o peso do dedo sobre a mesma”.

Fonte: Oliveira (1967).122

 Essa configuração orienta que o intérprete espalme as cordas do piano: “Bater nas cordas com a palma da mão”.123 (OLIVEIRA, 1967, traduação nossa).124

119Documento não paginado. 120“from one note to another, solwly, pressing key on and almost off”. (OLIVEIRA, 1967). 121Documento não paginado. 122Documento não paginado. 123“Knock strings with palm”(OLIVEIRA, 1967). 124Documento não paginado. 109

Figura 22 – “Bater nas cordas com a palma da mão”.

Fonte: Oliveira (1967).125

 Produção de harmônicos através de ação da tecla simultaneamente à ação na corda correspondente: “pressione a tecla, tocando o dedo [de outra mão] na corda correspondente para produzir harmônico”.126 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).127

Figura 23 – “Pressione a tecla, tocando o dedo [de outra mão] na corda correspondente para produzir harmônico”.

Fonte: Oliveira (1967).128

 Fricção de um objeto de metal ao longo da corda do piano: “use um objeto de metal e friccione-o ao longo da corda”.129 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).130

125Documento não paginado. 126“press key holding finger on same string to procude harmonics” (OLIVEIRA, 1967). 127Documento não paginado. 128Documento não paginado. 129“use a metal piece and rub the string along it” (OLIVEIRA, 1967). 130Documento não paginado. 110

Figura 24 – “Use um objeto de metal e friccione-o ao longo da corda”.

Fonte: Oliveira (1967).131

 Em alturas indeterminadas das diversas regiões do teclado, da mais grave para a mais aguda, as mãos em forma de concha escorregam de um grupo de teclas pretas para um grupo de teclas brancas: “com a mão em forma de concha, pressione teclas pretas e deslize para brancas”.132 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).133

Figura 25 – “Com a mão em forma de concha, pressione teclas pretas e deslize para brancas”

Fonte: Oliveira (1967).134

 Essa configuração indica que o intérprete oscile entre o movimento de pressão das teclas de determinada região do teclado e do movimento de retirada de algumas partes do braço entre o cotovelo e os dedos: “com o braço, do cotovelo ao dedo, pressione e retire certas partes do braço”.135 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).136

131Documento não paginado. 132“with hand like a shell press black keys and slide to white ones” (OLIVEIRA, 1967). 133Documento não paginado. 134Documento não paginado. 135“with arm from elbow to finger press on and off certain parts of arm” (OLIVEIRA, 1967). 136Documento não paginado. 111

Figura 26 – “Com o braço, do cotovelo ao dedo, pressione e retire certas partes do braço”

Fonte: Oliveira (1967).137

 Som da pressão de todas as teclas com uma régua é interrompido e retorna, voltando a ser interrompido e, assim, sucessivamente: “segure todo o teclado com uma régua – ligue e desligue o instrumento.”138 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).139

Figura 27 – “Segure todo o teclado com uma régua – ligue e desligue o instrumento”

Fonte: Oliveira (1967).140

 Som da pressão das teclas se reveza com o som da régua na tampa aberta do piano: “segure uma régua entre o teclado e a tampa sem som. Pressione e retire a régua”. 141 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).142

137Documento não paginado. 138“hold with a ruler all keyboard – use plug on and off” (OLIVEIRA, 1967). 139Documento não paginado. 140Documento não paginado. 141“hold a ruler between keyboard and lid without sound. Press ruler on and off” (OLIVEIRA, 1967). 142Documento não paginado. 112

Figura 28 – “Segure uma régua entre o teclado e a tampa sem som. Pressione e retire a régua”.

Fonte: Oliveira (1967).143

 Essa configuração é indicada para ser tocada também com baquetas. Nesse caso, o desenho de baquetas aparece junto à configuração. Execução rápida de várias notas em região não exatamente determinada das cordas do piano: “muitas notas, rápido, ad libitum”. 144 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).145

Figura 29 – “Muitas notas, rápido, ad libitum”

Fonte: Oliveira (1967).146

 Som prolongado de determinada nota147: “segure esta nota”.148 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).149

143Documento não paginado. 144“many notes, fast, ad libitum”(OLIVEIRA, 1967). 145Documento não paginado. 146Documento não paginado. 147Para a não interrupção do som nos momentos onde não seria possível o uso de pedal de sustentação, a compositora/instrumentista colocou, na execução que foi gravada ao vivo para o Long Play – sem qualquer som pré-gravado – um calço de papelão para que determinada tecla baixada propiciasse a permanência daquele som. 148“hold this note” (OLIVEIRA, 1967). 149Documento não paginado. 113

Figura 30 – “Segure esta nota”

Fonte: Oliveira (1967).150

 Cluster realizado com o braço: “pressionar o teclado com o braço do cotovelo aos dedos”.151 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).152

Figura 31 – “Pressionar o teclado com o braço do cotovelo aos dedos”

Fonte: Oliveira (1967).153

 Cluster a ser realizado sem som: “cluster com pressão do braço sem som”. 154 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).155

Figura 32 – “Cluster com pressão do braço sem som”

Fonte: Oliveira (1967).156

150 Documento não paginado. 151“pressing keyboard with arm from elbow to fingers” (OLIVEIRA, 1967). 152 Documento não paginado. 153 Documento não paginado. 154“cluster with arm pressing without sound” (OLIVEIRA, 1967). 155 Documento não paginado. 156 Documento não paginado. 114

 Cluster com som a ser realizado com o braço: “cluster com braço”.157 (OLIVEIRA, 1967, tradução nossa).

Figura 33 – “Cluster com braço”

Fonte: Oliveira (1967).158

3.4.3 Manipulação dos parâmetros sonoros

Os parâmetros sonoros são indicados pela partitura, mas a manipulação dos mesmos ocorre segundo a atuação do(a) intérprete.

3.4.3.1 Alturas

Alturas definidas alternam-se a configurações não usuais de alturas inexatas.

Figura 34 – Fragmento que exemplifica alturas definidas na partitura principal de One player and four keyboards, de Jocy de Oliveira

Fonte: Oliveira (1967).159

157 “Cluster with arm”(OLIVEIRA, 1967). 158Documento não paginado. 159Documento não paginado. 115

Figura 35 - Fragmento que exemplifica alturas inexatas na partitura principal de One player and four keyboards, de Jocy de Oliveira

Fonte: Oliveira (1967).160

3.4.3.2 Durações

As durações são orientadas através das figuras tradicionais de semínima (devagar/ slow), colcheia (rápido/ fast) e semicolcheia (mais rápido/ faster). Termos tradicionais e não tradicionais relativos a tempo na música também são utilizados: rápido (fast), mais rápido possível (fast as possible), devagar (slow) e lento (lento). Em alguns momentos, as alturas tornam-se totalmente indeterminadas:

160Documento não paginado. 116

Figura 36 - Quadro que faz parte das cartelas de eventos sonoros das partes anexas à partitura principal para que o(a) intérprete escolha o que vai executar

Fonte: Oliveira (1967).161

3.4.3.3 Texturas, timbres e dinâmica

Há indicações de dinâmica, de pianíssimo a fortíssimo e algumas indicações de toque que resultam em variações de timbres. Exemplos disso são a utilização do termo seco (relativo ao toque no trecho em questão) e indicações pontuais relativas ao uso do pedal.

3.4.3.4 Articulação do som no espaço

161Documento não paginado. 117

O(a) pianista se posiciona entre quatro teclados, que formam um quadrado ao seu redor. Os sons circulam, então, ao redor do intérprete, mas podem ser emitidos no palco e na plateia, conforme o posicionamento dos alto-falantes.

3.4.4 Interdisciplinaridade

A interdisciplinaridade nesta peça ocorre entre música e teatro, uma vez que Oliveira idealizou a movimentação decorrente da execução da peça e a teatralidade da situação teatral que menciona na partitura.

3.4.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas

Dimensões para quatro teclados possui aspecto cênico decorrente da movimentação natural da execução dos instrumentos. Oliveira (2012) diz que, naturalmente, a movimentação se torna dança – não exatamente planejada: “A movimentação que requer o uso dos quatro teclados já é suficiente para fazer com que o/a pianista utilize uma coreografia gestual de seus braços e dedos com os diferentes toques de cada teclado”.

3.4.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz.

A compositora foi a própria intérprete na gravação da peça.162

3.4.5 Cena

A movimentação e a posição do(a) pianista cercado(a) entre quatro instrumentos sugere, segundo o texto introdutório que consta na partitura, uma cena teatral.

3.4.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica

A peça indica atuação cênica, apresentando teatralmente o(a) pianista como prisioneiro entre os quatro teclados. Jocy de Oliveira, que estreou a peça, não usou de

162A peça foi também interpretada por Alcides Lanza – compositor argentino residente no Canadá. 118

expressões faciais ou outros recursos além da movimentação estritamente necessária à execução dentro do espaço delimitado pelos instrumentos.

3.4.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas

No texto introdutório, após as orientações para a leitura da partitura, Oliveira (1967, tradução nossa)163 orienta o intérprete para a cena da seguinte maneira: “O intérprete tem que atuar com precisão e controle do tempo e espaço. Ele é prisioneiro entre os quatro teclados, numa situação que deveria ser usada teatralmente”.164

3.4.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena

A situação teatral pode incluir figurino, cenário e objetos de cena compatíveis.

3.4.5.4 Iluminação artística

A iluminação pode ser funcional, como ocorre freqüentemente nas apresentações de música de concerto ou pode ser artística, como aspecto da linguagem teatral.

3.4.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical

Não é evidente a relação da cena prevista na peça com relações e costumes típicos do meio musical. Porém, subliminarmente, o encarceramento do(a) intérprete entre os instrumentos pode ser remetido ao cotidiano dos músicos, submetido a estudos extensos e constantes, durante toda a vida, em dedicação exclusiva e voluntária.

3.4.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho

A exploração teatral da cena sugerida na peça indica atuação cênica. Dimensões para quatro teclados constitui-se, portanto, como teatro instrumental.

163Documento não paginado. 164“The player is (sic) to act with precision and control of time and action on space. He is the prisoner of the four keyboards which he should also use theatrically”. (OLIVEIRA, 1967).

119

3.4.6 Narrativa

A narrativa não é direta.

3.4.6.1 Linearidade

A narrativa não é linear. Apesar de as indicações da partitura principal serem fixas, a peça se apresenta sempre repleta de surpresas que as escolhas de cada intérprete revelarão, uma vez que a ordem dos eventos sonoros fica à escolha do(a) pianista.

3.4.6.2 Texto

Não há texto a ser falado ou projetado a partir da partitura, mas pode haver texto criado pelo(a) próprio(a) intérprete, se assim esse(a) o desejar. Há, na cartela de eventos sonoros a serem escolhidos, nas partes anexas à partitura principal, alguns em que a improvisação musical/cênica é livre. Nesse caso, o(a) intérprete fica à vontade para criar ou não texto na encenação.

3.4.6.3 Relação entre palavras e sons

A criação do(a) intérprete determinará relação entre palavras e sons, se a referida elaboração cênica incluir texto

3.4.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)

A peça convida à improvisação desde a tabela de configurações, que esclarece a notação não convencional – que funciona como bula – até a escolha entre um ou mais quadros nas cartelas de eventos sonoros e/ou cênicos. Alturas e durações são notados de maneira inexata. A peça tem uma sequência de eventos sonoros fixos entremeados por outros, escolhidos pelo intérprete nas cartelas de eventos constantes nas partes anexas à partitura principal. Um desses eventos a serem escolhidos entre os dispostos nessas cartelas – das partes anexas – é totalmente indeterminado. Deve ser criado pelo(a) intérprete, tanto sonora quanto cenicamente: 120

Figura 37 - Quadro de parte anexa (cartela de eventos sonoros a serem escolhidos pelo(a) pianista) que indica livre improvisação musical/cênica para o(a) intérprete

Fonte: Oliveira (1967).165

3.4.8 Tecnologias (uso de equipamentos)

O som dos instrumentos acústicos provavelmente não dariam conta, no conjunto de instrumentos a serem tocados por um único intérprete, da sonoridade eletrônica desejada, tendo em vista o instrumental indicado. Microfonados, o cravo e o piano, junto ao piano elétrico e ao órgão elétrico definem sonoridade da peça.

3.4.9 Intérprete

165Documento não paginado. 121

O intérprete é co-criador, nesta obra. Decide timbres, as alturas, as durações e até mesmo o nível de teatralidade a ser apresentado.

3.4.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra

O intérprete se torna responsável pelo resultado final da peça, uma vez que interfere fortemente nas sequências de sons e na intensidade da cena. Até as suas características físicas representarão diferencial nos aspectos visuais/cênicos.

3.4.9.2 Novo virtuosismo

A movimentação decorrente da execução que se pretende sonora e cênica depende, de alguma forma, das características físicas de cada instrumentista:

[...] Todas as possiblidades e impossibilidades dependem do que o braço pode alcançar e de manter um som contínuo com dois braços para quatro teclados. É claro que se torna uma coreografia. É um ballet. Não era intenção fazer gestos, mas tem que fazer para poder segurar uma nota e fazer outra numa combinação de timbres. Isso era um tremendo desafio. (informação verbal).166

Além de larga margem de criação com materiais a serem escolhidos e elaborados, fará diferença em cada interpretação a estatura do intérprete, segundo braços menos ou mais longos, por exemplo.

3.4.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado

O(a) intérprete é responsável pelo teor de comunicabilidade do que está sendo apresentado através da maneira como executa suas escolhas sonoras e se movimenta cenicamente.

3.4.10 Realização

166Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de novembro de 2010. (Apêndice D, p. 225). 122

A realização de música com quatro instrumentos, sendo dois elétricos e dois microfonados, exige formação de equipe técnica que garanta o resultado final da emissão dos sons produzidos pela execução do intérprete.

3.4.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas

A execução de instrumentos acústicos e instrumentos elétricos exigirá microfonação daqueles. A microfonação de instrumentos acústicos exige conhecimento e habilidade específicos. Trata-se de um trabalho delicado que, se não realizado com eficácia, inviabiliza a sonoridade da peça. Os sons dos quatro teclados devem ser equilibrados na intensidade, tratados em seus timbres. Além do preparo dos microfones, que devem ser devidamente posicionados, um profissional competente deve ficar a postos no equipamento de difusão do som para eventuais problemas, que, aliás, ocorrem com freqüência quando se trabalha com microfones.

3.4.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais

Não há relatos ou vestígios de formações de grupos artísticos e/ou movimentos culturais no entorno da realização desta peça, especificamente.

3.4.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos

A peça não sugere qualquer tipo de espaço específico de apresentação. A princípio, qualquer espaço em que possam ser ligados e amplificados os instrumentos previstos pode ser adequado à realização da peça.

3.4.10.4 Relação com as plateias

No que diz respeito à sonoridade, esta se apresenta em nada tradicional para as plateias, mas se revela enigmática e curiosa, na soma inusitada dos timbres dos instrumentos utilizados, em decorrência da maneira como a execução é proposta por Oliveira. No que diz respeito à cena, dependerá diretamente da execução de cada intérprete, uma vez que na exibição de uma situação de encarceramento do(a) intérprete entre instrumentos a margem de 123

criação de cada instrumentista se mostra muito ampla, podendo este deixar tal situação mais ou menos evidente.

3.5 CAPRICHOSA VOZ QUE VEM DO PENSAMENTO, DE TATO TABORDA

Caprichosa voz que vem do pensamento foi criada por Tato Taborda, com piano preparado, como teatro intrumental (com atuação cênica) e dança, com a co-criação da bailarina Maria Alice Poppe, em 2012. Tem a duração de cinquenta e dois minutos e dez segundos na gravação de referência, realizada no Teatro Cacilda Becker, no Rio de Janeiro/RJ, também em 2012. A dramaturgia apresenta uma relação de casal, homem e mulher, em que os protagonistas – personagens – se confundem com os próprios intérpretes, que são o pianista autor e a bailarina co-criadora. Nesse caso, tanto na ficção quanto na realidade, ele é um artista/compositor/instrumentista intensamente dedicado e entregue a suas atividades artísticas musicais inventivas e suas lembranças. A bailarina é uma mulher que, em sua dança sincera, transparente, visceral e sensual, tenta desviar a atenção do parceiro para si e passa quase a totalidade do tempo da peça para conseguir, finalmente, que ele interaja, de fato, com ela. Esta peça apresenta uma configuração, tanto do instrumento quanto dos intérpretes, totalmente diferente do que se pratica na música tradicional. A peça não possui partitura. O piano, no palco, não é fixo e seu som não é emitido exclusivamente a partir dele mesmo. Sons pré-gravados se unem aos sons emitidos no momento da apresentação ou são difundidos sem que o pianista esteja tocando. Os intérpretes atuam de maneira diferenciada. Tocam-se, apoiam-se, entreolham-se, expressam-se através de seus próprios instrumentos e através do instrumento do outro: o pianista dança e a bailarina toca piano com o corpo – pés, mãos, dorso, cabeça, nádegas. Na criação/interpretação de Taborda e Maria Alice Poppe, os intérpretes revelam intimidade na interação absoluta entre suas linguagens artísticas. Os dois atuam teatral e intensamente. Improvisam, se entrelaçam e se confundem em sua movimentação flexível, com precisão construída sobre bases fixas no roteiro não partiturado.

3.5.1 Instrumental

O piano é preparado: o modelo de armário foi equipado com garfos, parafusos de diversas bitolas e peças metálicas cilíndricas. A tampa da caixa acústica foi retirada e o 124

mecanismo do instrumento fica à mostra. Há manipulação indireta das cordas e uso da voz do pianista. O piano é também cenográfico: funciona como cenário.

3.5.2 Notação

Não há qualquer tipo de notação desta peça.

3.5.2.1 Partitura

Caprichosa voz que vem do pensamento não possui – nem pretende possuir – partitura. A esse respeito, o compositor comenta: “Eu posso perfeitamente partiturar essa diagramação dos objetos, como o Cage fez. [...] Eu não pretendo colocar isso em partitura, não tem necessidade, até agora: há registros, gravações”. (informação verbal).167 Nesse tipo de processo de produção artística, alguns compositores não têm a pretensão de que mais um – outro – intérprete ou grupo de intérpretes realize a peça novamente – pelo menos, não da mesma maneira – mesmo quando as apresentações são registradas em audiovisual. (SALZMAN; DÉSI, 2008). A gravação, nesse caso, não é necessariamente um documento elaborado – como são as partituras na música tradicional – na intenção de servir de base para futuras montagens.

3.5.2.2 Texto de instruções ou bula

Não há texto nem instruções cênicas anotadas.

3.5.2.3 Gráficos ou desenhos

Não há qualquer tipo de gráfico ou desenho nesta peça relacionado à música. Há apenas um desenho espiral que a bailarina faz com o líquido que derrama, no piso do palco, de um copo enquanto dança.

3.5.3 Manipulação dos parâmetros sonoros

167Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E. p. 249). 125

Alturas nebulosas, distorcidas e imprecisas em tempo oscilante apresentam sonoridade muito particular do piano na peça.

3.5.3.1 Alturas

As relações de altura são perceptivelmente flexíveis sobre uma estrutura fixa. As alturas no piano preparado são nebulosas, imprecisas, pelo fato de a preparação produzir quartos de tom, ruídos e sons inarmônicos. Há, ainda, os sons percussivos produzidos através do instrumento e fora dele.

3.5.3.2 Durações

O tempo é oscilante, relativizado. Esse tempo se reveza com trechos de pulso rítmico claro.

3.5.3.3 Texturas, timbres e dinâmica

As texturas variam entre notas isoladas e grandes clusters. Melodia acompanhada e trechos rítmicos não melódicos e sincopados se apresentam com alto nível de reverberação, intensificando a distorção das alturas pelos objetos que aparelham o piano preparado. Além dos sons do piano, há o som dos ruídos de cena e da simulação de uma transmissão de rádio. Nesta, ouve-se uma orquestra de cordas junto aos sons de um piano tradicional. A dinâmica de intensidade mais forte coincide com os trechos rítmicos não melódicos, enquanto os trechos melódicos – de alturas distorcidas – possuem sonoridade mais suave.

3.5.3.4 Articulação do som no espaço

O piano se desloca no palco. O pianista toca no piano posicionado à direita da plateia e, depois, à esquerda da mesma. Sons do instrumento soam pré-gravados através de alto- falantes enquanto o pianista toca, afastado do piano, um teclado imaginário. A movimentação do pianista é intensa durante a peça. O intérprete se posiciona sentado no banco, sentado no chão, de cócoras, de pé, sentado por trás da bailarina, dividindo com ela o espaço do banco. Tais posições são funcionais – para que o pianista possa tocar nas cordas do piano – ou cênicas e a intensa movimentação dos intérpretes produz ruídos que se incorporam à música. 126

Essa movimentação dos intérpretes e dos instrumentistas rompe veementemente a tradição da posição do piano e dos pianistas de concerto nas apresentações tradicionais, que congelaram-nos por séculos na posição lateral, com a face direita voltada para o público e com a sonoridade do instrumento sendo emitida por um único ponto do início ao fim.

3.5.4 Interdisciplinaridade

Música, dança e teatro apresentam intensa fusão de linguagens.

3.5.4.1 Diálogo com outras linguagens artísticas

Nesta peça, a dança e a música conversam entre si. Provocam-se, reagem uma à outra, interagem o tempo todo. É uma criação conjunta de Taborda e da bailarina Maria Alice Poppe. A movimentação da bailarina se mescla o pensamento musical do piano preparado. A peça surgiu de diálogos entre compositor e bailarina. Taborda relatou que Poppe:

[...] pensava muito sobre a dança dos ossos, sobre uma dança que partisse da articulação, que partisse do interno como protagonista e não numa dança que fosse validada pela imagem do espelho: que partisse de dentro para fora, que fosse pensada pelo corpo de dentro para fora. Nesse momento, eu pensei: „Por que não usar o piano no esqueleto, tirar todas as partes e transformá- lo?‟ A partir daí surgiu o piano de volta como um instrumento. (informação verbal).168

O resultado final do processo de composição de uma peça de música cênica como essa está sempre em aberto. De encenação para encenação, dia após dia, os compositores e colaboradores como diretores, intérpretes, figurinistas, cenógrafos e toda equipe que possa estar envolvida na montagem contribuem com novas inserções e diálogos com a obra para o trabalho que envolve práticas de improvisação em ensaios coletivos.

3.5.4.2 Envolvimento do compositor em funções paralelas tais como as de intérprete, diretor de cena, coreógrafo, designer de cena, som e luz

Na Caprichosa voz que vem do pensamento, a interação entre diversas linguagens artísticas acontece de forma intensa. Dessa maneira, a função da interpretação se divide entre

168Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 249). 127

os intérpretes e a equipe junto multidisciplinar que trabalha junto a eles. Taborda, como compositor e intérprete, ao lado da bailarina Maria Alice Poppe e da direção cênica de , conta como se deu o processo de produção artística da peça:

Nessa peça, decidimos não apenas cruzar o gesto musical com o gesto coreográfico como chamar uma pessoa da cena – que é o Aderbal Filho, que é um diretor de teatro muito importante. Ele entrou no processo para começarmos do zero para cruzar essas três vias de maneira que não se soubesse mais quem estava brincando com o brinquedo de quem: se foi o Aderbal que virou coreógrafo, se eu virei bailarino ou se a Maria Alice estava tocando piano. O processo ocorreu totalmente sem fronteiras ou escrúpulos na direção desse território híbrido. Isso está expresso e tem uma dimensão cênica muito forte. A minha performance tem um aspecto que é pura cena. O som é decorrente dessa cena. Existe uma cena coreográfica e teatral que motiva a execução. (informação verbal).169

3.5.5 Cena

Esta peça se configura a partir de uma sucessão de cenas de alta complexidade – por envolverem em alto grau de exigência técnicas teatrais, musicais e da dança.

3.5.5.1 Movimentação, ação e atuação cênica

A movimentação e atuação cênica são intensas e atreladas aos eventos sonoros. As cenas possuem uma sequência básica estruturada, mas não são fixas. As relações entre música, dança e direção teatral são estreitas. A montagem da peça contou com a direção cênica de Aderbal Freire Filho – diretor de teatro experiente e renomado. O trabalho com direção teatral é uma invenção do século XX. Antes disso, a direção de palco fazia o praticamente o papel de um guarda de trânsito na cena. Atualmente, muitos diretores de teatro são co-autores ou mesmo autores de música cênica, são intérpretes da obra. A dança tem sido um elemento muito importante e recorrente. Não raramente, coreógrafos e compositores exercem direção cênica. Assim também o era, aliás, no gênero ópera incipiente. (SALZMAN; DÉSI, 2008).

169Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 249).

128

3.5.5.2 Cena prevista em partitura ou texto de instruções cênicas

Não há partitura ou texto de instruções cênicas.

3.5.5.3 Figurino, cenário e objetos de cena

A montagem realizada e filmada em 2012 contou com cenário criado por Fernando Mello da Costa e figurino de Ticiana Passos. O cenário conta com o próprio piano, que se movimenta no palco, no decorrer da peça. Conta também com um suporte para as roupas que serão, inclusive, modificadas ou trocadas em cena. Basicamente, o pianista inicia sua atuação de fraque e pés descalços e, depois, tira a casaca. A bailarina inicia a peça com um figurino cor da pele, colado ao corpo e, depois, coloca um vestido vermelho – sempre com os pés descalços. Como objeto de cena, há uma revista, um espanador, um lençol, um copo, uma garrafa – com líquido dentro, uma caveira – apenas a cabeça, um cigarro e um aparelho de rádio, de modelo antigo, que tem importante função na peça – a cena simula que este esteja funcionando, embora os sons que supostamente produziria sejam forjados, pré-gravados e difundidos cuidadosamente para fazer parecer por ele emitidos.

3.5.5.4 Iluminação artística

A iluminação artística foi assinada por Luiz Paulo Neném e é de fundamental importância na construção cênica da peça.

3.5.5.5 Exposição de relações e costumes típicos do meio musical

De certa forma, a peça expõe o cotidiano do pianista que se caracteriza pela dedicação exclusiva ao instrumento e à música. A atenção que a bailarina roga ao artista que divida o palco com ela denuncia certa falta de hábito e de habilidade do pianista ao lidar com outras linguagens artísticas e outras situações fora o seu dia-a-dia ao instrumento. Após muita insistência da bailarina, o pianista passa a interagir.

3.5.5.6 Sugestão de classificação entre os termos de música cênica comentados neste trabalho

129

O termo teatro instrumental, comentado no primeiro capítulo deste trabalho, se encaixa perfeitamente nas características desta peça.170

3.5.6 Narrativa

A narrativa é direta.

3.5.6.1 Linearidade

A narrativa é linear, embora, no momento da locução advinda do aparelho de rádio, o pianista seja induzido a reviver um tempo passado para, em seguida, retornar ao presente, no tempo transcorrido a partir do início da cena. Mesmo podendo ser interpretada de diversas maneiras por cada ouvinte/espectador, há uma estória encenada, nesse espetáculo.

3.5.6.2 Texto

O roteiro do espetáculo é criação dos intérpretes/autores. O texto falado, pré-gravado pelo próprio compositor, entre os 26 e os 33 minutos de apresentação, são de autoria de Taborda. O texto narra memórias do músico em suas aulas de piano, na residência da professora: momentos que lhe marcaram a infância e o acompanharam por toda a vida:

[26:00 O pianista liga o rádio, que está tocando um tango junto à voz de um locutor (a voz pré-gravada, é do próprio Tato Taborda):] Foi numa dessas noites em que fazia as contas dos anos passados, como de moedas que eu tinha deixado escapar dos meus dedos sem muito cuidado quando me visitou a lembrança de ... [ruídos de interferência na transmissão] Celina nem sempre entrava na lembrança como entrava pela porta da sala. Às vezes já se encontrava ali, sentada ao lado do piano. Quase sempre, Celina, minha professora de piano quando eu tinha 10 anos... [ruídos de interferência na transmissão] Celina quase sempre... [ruídos de interferência na transmissão] Quando chegava à casa de Celina, embora as árvores tivessem ficado no caminho, eu sentia que o caprichoso ar que vinha do pensamento... [ruídos de interferência na transmissão] me fazia colocar as mãos sobre as teclas e com os dedos dela levantava os meus, como se ensinasse uma aranha a mover as patas. [As mãos da bailarina passeiam por sobre o piano enquanto todo o seu corpo está por trás do instrumento] ... encontravam os sons que

170O termo dança-teatro tem sido usado em paralelo ao que se entende por música-teatro, mesmo sabendo-se que a dança já apresenta naturalmente, mais do que a música, interdisciplinaridade em relação a outras linguagens artísticas, em especial, a música e os elementos teatrais tais como figurino e cenário. 130

encantavam todos os objetos. Os objetos tinham mais vida do que nós. Atravessados sobre as teclas, como um trilho sobre dormentes, havia um grande lápis vermelho. Quando Celina o segurava para fazer anotações no livro de música, o lápis desejava que o deixassem escrever. Ele se movia ansioso entre os dedos que o prendiam e com seu olho único e pontiagudo, olhava indeciso e oscilante de um lado para outro... [ruídos de interferência na transmissão] Na sala [a bailarina continua fazendo interferências ansiosas na cena, por trás do piano, mostrando cabeça, pé, braços e objetos relacionados com a narração, aparecendo e desaparecendo rapidamente] havia muitas coisas que me provocavam o desejo de procurar segredos. Primeiro, se via o branco: as capas grandes do piano e do sofá e outras menores nas poltronas e nas cadeiras. Eu ia em direção a uma mulher de mármore e passava os dedos por sua garganta. O busto estava colocado em uma mesa de pernas compridas e finas. Eu segurava a mulher pelo cabelo com uma mão para acariciá-la com a outra. O cabelo não era de pelos e, sim, de mármore [a bailarina agita um espanador]. Quando ia começar o seio, o busto terminava e começava um cubo sobre o qual se apoiava toda a figura [ruídos de interferência na transmissão]. Comecei a sentir as pessoas como móveis que mudassem de posição. Móveis que além de poderem estar quietos também se moviam. De repente, abriram as portas, jogavam tudo sobre nós. O piano era uma boa pessoa. Eu me sentava perto dele e com os meus poucos dedos, apertava muito dos seus, tanto brancos como pretos e, em seguida, saíam dele gotas de sons. [ruídos de interferência na transmissão] O braço nu de Celina: toda ela estava naquele braço. As partes perderam a misteriosa relação que as une, perderam seu equilíbrio, se separaram e o espantoso jogo de suas proporções se detem: parecem feitas por um mau desenhista. [ruídos de interferência na transmissão] Primeiro, eu estava tão tranqüilo como um copo d‟água em cima da mesa. Depois, ela passava muito perto e sem se dar conta, tropeçava na mesa e agitava a água do copo. À noite, eu ia até a margem de um rio para ver correr a água da recordação. [A bailarina prossegue em suas traquinagens, como uma criança que quer chamar atenção]. Quando eu tirava um pouco d‟água do copo e ficava triste porque essa água era pouca e não corria, eu inventava movimentos para conter a água e me consolava contemplando a água nas suas variadas formas de saltar. Na última função do meu teatro de variedades da lembrança, há um instante que Celina entra e eu não sei que ela é só uma lembrança. Em algum instante fugaz, tenho tempo de me dar conta de que passou por mim um ar de prazer porque ela veio. A aluna se acomoda para recordar como se acomoda o corpo na cadeira de cinema. Não posso pensar se a projeção não é nítida, se estou sentado muito atrás, não sei mesmo se sou o operador. Não sei se vim ou se alguém me trouxe. Não estranharia que tivesse sido a própria Celina. Desde aquele tempo podia ter saído de perto dela como fios que crescessem em direção ao futuro e que é ela ainda quem maneja. Aquele lápis vermelho, tão lindo... [A bailarina permanece tentando atrapalhar-lhe até as lembranças saltitando, impaciente] Eu ouvia o som de sua madeira contra os ossos dos meus dedos. O som dos ossos, o som da madeira... E começava a crescer uma dor por todo o corpo: o silêncio de um pesadelo. Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina! Celina... [Desliga o rádio]. (TABORDA, 2012).171

3.5.6.3 Relação entre palavras e sons

171Documento não paginado. 131

A interjeição Hei!, emitida pela voz do pianista se relaciona com sua primeira experiência, na peça, de manipulação das cordas do piano. O texto virtualmente transmitido através do aparelho de rádio antigo é tratado em sua pré-gravação com ruídos que simulam interferência na transmissão, como se a estação estivesse mal sintonizada. Um tango tocado por um piano e uma orquestra de cordas serve de fundo musical para a locução do próprio autor.

3.5.7 Indeterminação (o acaso, o imponderável, o efêmero na apresentação musical)

Embora não seja tudo improvisação, o nível de indeterminação em Caprichosa voz que vem do pensamento é bastante alto, “[...] a música que eu toco tem uma mobilidade muito grande sobre estruturas com certa estabilidade. Não é tudo improvisado. Tem uma estrutura pronta, onde há liberdades. Há flutuações possíveis, mas numa configuração estável”. (informação verbal).172 Taborda explica de que maneira isso ocorre:

[...] Desenvolvemos uma forma de relacionamento entre movimento e som em que eu me transformo a partir da movimentação dela e ela se transforma a partir da modulação do que eu faço: modulação de intensidade, de velocidade, de tempo, pausas. Chamamos isso de Exercícios de Escuta173 porque é uma escuta além, talvez, da escuta fisiológica. Ela [a bailarina Maria Alice Poppe] escuta o corpo por dentro, na dança interna. Nessa ideia de olhar para dentro, mais do que olhar, há a escuta do corpo. (informação verbal, grifo nosso).174

Embora se possa pensar que performances baseadas na improvisação sejam relativamente simples, tal pensamento não condiz com a realidade. É necessário, nesse tipo de processo, que os intérpretes conheçam-se bem uns aos outros, tenham facilidade em integrarem-se e em adaptarem-se ao ambiente interdisciplinar transpondo prontamente aos possíveis obstáculos que encontrarem. (SALZMAN; DÉSI, 2008). O fato de não possuir partitura confere a Caprichosa voz que vem do pensamento certa peculiaridade em seus aspectos de indeterminação. De acordo com Salzman e Dési (2008),

172Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 249). 173Título da peça em sua versão original. 174ENTREVISTA..., op. cit., p. 249.

132

uma obra sem partitura remete a um tipo de trabalho que não somente lida artisticamente com o efêmero, mas que pode também ser como um evento concebido para determinada hora e lugar num momento único.

3.5.8 Tecnologias (uso de equipamentos)

O uso de equipamentos nesta peça se relaciona com os alto-falantes, na sonorização necessária à difusão de sons pré-gravados e à iluminação artística, que é grande aliada na interpretação da peça e torna-se, na sua realização, elemento importante da performance.

3.5.9 Intérprete

O intérprete e o compositor são a mesma pessoa.

3.5.9.1 Relação compositor-intérprete: interação no processo de realização da obra

Nas mais recentes obras de música cênica ligadas ao teatro e à dança, a música é sujeita aos movimentos dos bailarinos e atores no palco. Muitas vezes, além de não terem a partitura musical, os intérpretes não possuem sequer um texto de instruções. São, desse modo, intimados a tomarem para si, junto ao compositor, parte da “responsabilidade estrutural” da peça (SALZMAN; DÉSI, 2008). No caso de Caprichosa voz que vem do pensamento, os intérpretes criaram tanto os movimentos da dança, quanto a música e a cena. Portanto, a interação é total e absoluta entre compositor e intérprete, nesse caso. A intimidade do casal de intérpretes, que são também autores da peça, se revela no decorrer do espetáculo: na naturalidade com que se relacionam nos movimentos e se comunicam em cena.

3.5.9.2 Novo virtuosismo

O uso da voz, a manipulação das cordas do piano, a intensa movimentação e atuação cênica, além de também intenso e extenso exercício de improvisação, desafiam a formação tradicional: o intérprete, nesta peça, elabora novas maneiras de interagir com a música.

3.5.9.3 Consciência do contexto de criação da obra, autoconsciência e consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado 133

A consciência do contexto de criação da obra é total, uma vez que o intérprete é o próprio autor. A autoconsciência, no exercício de um novo virtuosismo, faz parte do processo em que criação e interpretação se confundem. A obra se desenvolve e se complementa durante os ensaios. A consciência da comunicabilidade do que está sendo apresentado também se desenvolve durante a montagem teatral que tem como princípio tornar a cena acessível a quem a vê e ouve.

3.5.10 Realização

Esta peça exige formação de equipe. A manipulação das tecnologias que demanda é parte integrante da atuação artística na sua realização.

3.5.10.1 Formação de equipe: associação entre profissionais da mesma área ou de áreas diversas

A difusão de sons pré-gravados junto aos sons realizados em tempo real exige que profissional competente opere o equipamento compatível com as exigências do local de apresentação. Assim também ocorre com a iluminação artística detalhada. A realização da apresentação gravada em áudio e vídeo em 2012 contou com a direção de produção da firma Lúdico Produções.

3.5.10.2 Formação de grupos artísticos e movimentos culturais

Taborda realiza suas obras através de convites ou, por iniciativa própria, concorre a financiamentos através de editais públicos: “A Caprichosa voz que vem do pensamento é um projeto meu e da [Maria] Alice [Poppe]. Ganhamos edital, chamamos a equipe”. (informação verbal).175 Quando ganha um edital, o trabalho de produção executiva é quase ou tão intenso quanto o trabalho de produção artística: “Nesses casos, somos responsáveis por fazer o projeto, contratar a equipe e assegurar que essa equipe tenha as condições necessárias para a

175Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 252). 134

realização das suas visões, dentro dos limites orçamentários do projeto, e fazer ponte com a comunicação social: ser totalmente atuante”. (informação verbal).176

3.5.10.3 Espaços convencionais, modificados ou alternativos

A princípio, qualquer espaço que possua um piano de armário poderá ser adequado à realização dessa peça, desde que sejam adaptadas ao local as necessidades do uso de equipamentos de luz e som.

3.5.10.4 Relação com as plateias

As características do local de apresentação, o comportamento da plateia, suas reações e as opiniões da crítica interferem no processo criativo: “Análise e crítica não possuem apenas efeito retrospectivo, mas também criativo [...]” (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 328, tradução nossa).177 A relação da obra de Tato Taborda com o público é intensa e indireta. Intensa porque apresenta humor, romance, revelações de devaneios de infância e sensualidade – características que podem ser consideradas como amplamente acessíveis ao público. Indireta porque, ainda assim, não há qualquer tipo de preocupação, por parte do compositor, em conquistar previamente a aprovação das plateias.

176Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 239). 177“Analysis and criticism are therefore not only retrospective but creative as well […]”. (SALZMAN; DÉSI, 2008, p. 328). 135

4 COMPOSITOR E INTÉRPRETE: EXPERIÊNCIA DE COLABORAÇÃO NA MÚSICA CÊNICA

A viabilização de um processo que conduza a um fazer musical consistente no amadurecimento das associações artísticas depende da compreensão dos músicos com relação à importância em aliarem-se aos interesses dos seus pares: interesses que conversam entre si porque encontram assuntos em comum, porque possuem vivência compatível, porque falam a mesma língua ou porque estão abertos ao diálogo com diferentes linguagens. Dessa forma, têm mais chance de se entenderem na finalidade de divulgar e registrar a música do seu tempo. Partituras de música são documentos precários enquanto guias de instruções para os intérpretes e nem sempre as interpretações registradas – nem mesmo as dos próprios compositores/instrumentistas – são as melhores referências. (KIVY, 1995). Além disso, em peças contemporâneas, há larga presença de elementos de indeterminação e de elementos gráficos pouco – ou nada – usuais. Assim sendo, o contato entre intérpretes e compositores é positivo no sentido de esclarecer e contribuir para a elaboração da interpretação. No sentido inverso, ocorrem também esclarecimentos e contribuições dos intérpretes com relações às obras no que se refere às possibilidades idiomáticas de cada instrumento e da compreensibilidade da notação musical, entre outros aspectos de cada peça. Glokobar (1970, tradução nossa)178 afirmou:

A interdependência entre compositor e intérprete se tornou atualmente um dos problemas fundamentais da nossa música. De acordo com experiências recentes e avanços da música aleatória e da música notada através de gráficos, que entre outras coisas demandou maior responsabilidade para o intérprete, é um desejo, hoje, deixar que este participe mais profundamente na criação musical. Nós gostaríamos que ele se engajasse totalmente, não apenas com o uso de sua proficiência técnica na obra, mas também com sua capacidade de invenção, com sua habilidade em decidir em maior ou menor grau e reagir espontaneamente – ou seja: com seu „conteúdo psíquico‟.179

178Documento online não paginado. 179 “The interdependence between composer and performer has nowadays become one of the fundamental problems in our music. Owing to recent experiences and acquisitions in aleatoric and graphic music which among other things developed a responsibility from the side of the performer, it is a desire today to let the performer participate more deeply in the musical creation. We would like him to engage totally, not just use his technical proficiency about the work but also his capability of inventions, his ability for decisions and mor or less spontaneous reactions, in one word – his „psychic contents‟”(GLOKOBAR, 1970). 136

E Domenici (2010, p. 1) escreveu também a respeito:

Colaboração entre compositores e intérpretes tem sido uma prática comum nos últimos 50 anos. Contudo, a falta de documentação e estudos dedicados a esse fenômeno parece ser um claro indicador da aceitação do modelo hierárquico das relações compositor-intérprete. Fundado sobre a noção romântica da obra de arte autônoma esse modelo adquiriu força. [...] A falta de documentação de colaborações não só aponta para um descaso para com o papel do intérprete na criação, difusão e recepção de novas obras musicais mas, além disso, despreza o processo de troca e seu impacto tanto para a composição quanto para a performance.

Segundo Domenici, na relação entre compositor e intérprete um revela ao outro os aspectos da obra que só são perceptíveis, a cada um, do seu ponto de vista através de percepções “privilegiadas” só disponíveis nas referidas posições de autor e de executante: “Unidos no propósito comum da criação artística, essas duas vozes estabelecem um diálogo, compartilhando o seu „excesso de visão‟ e superando a mútua deficiência de percepção”. (DOMENICI, 2010, p. 2). Entretanto, essa troca só pode ocorrer se houver suficiente autonomia do instrumentista executor para a criação da própria interpretação, de maneira que sua identidade artística possa conversar com as ideias do compositor: “Uma relação dialógica só pode se estabelecer a partir de um intérprete como sujeito ativo com direito à voz”. (DOMENICI, 2010, p. 2). Domenici (2010, p. 1146) classifica duas distintas funções do intérprete na interação dialógica com o compositor. A primeira é a função mediadora, que “consiste da sugestão de maneiras mais apropriadas de utilizar os recursos do instrumento, bem como de maneiras mais claras e precisas de comunicar determinada idéia ou gesto através da notação musical”. Sobre isso, o compositor Csekö revela:

[...] Eu sempre estabeleço muito contato com o instrumentista, é fundamental. Também era uma das propostas do pessoal de composição de Brasília ter um contato estreito com as pessoas que estão produzindo o som, com o instrumentista, ao invés de ficar naquela redoma dos manuais. (informação verbal).180

A segunda é a função inspiradora, relativa à influência da atitude e interpretação do executante na obra cujas ideias são expandidas e retrabalhadas pelo compositor a partir dessa

180Entrevista com o compositor Luiz Carlos Csekö, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de setembro de 2010. (Apêndice A, p. 168). 137

interferência: “O estudo das interações compositor-intérprete permite vislumbrar obras musicais e suas performances como produtos de interações humanas e não mais como abstrações criadas por deuses e sacerdotisas de Apolo.” (DOMENICI, 2010, p. 5). Na aproximação entre compositores e intérpretes existe sempre a possibilidade de, estabelecido um vínculo entre disposições artísticas, ampliar e renovar, arejar e fomentar os espaços já existentes de criação musical. A oportunidade da autora desta tese, que é pianista, de estrear uma peça de música contemporânea com a presença e a direção do próprio compositor surgiu como experiência importante para determinado grupo de músicos envolvidos na disciplina de Tópicos Especiais: Redimensionando o papel do compositor e do intérprete na música contemporânea, do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO, no primeiro semestre letivo do ano de 2010, sob orientação da Professora Dra Vânia Dantas Leite. O compositor Luciano Garcez adaptou a peça de sua autoria intitulada O espírito da qoisa numa versão criada em função do grupo instrumental/vocal disponível. No conjunto que seria formado por piano, violoncelos, clarone, voz, sons e imagens pré-gravados, a substituição de instrumentos levou o compositor a mudar as instruções da peça, deixando em aberto as possibilidades de formação instrumental. O instrumental de estreia ocorreu através da associação entre instrumentistas na convivência do ambiente acadêmico. Essa adaptação às possibilidades do momento transformou os violoncelos em trombones e o clarone em clarinete. As instruções em partitura indicam técnicas composicionais e linguagem tradicionais em paralelo à prescrição eletroacústica: música eletrônica mista. Em manuscrito, despojada, recheada de poesia e interrogações, mudanças bruscas – súbitas – de ideias, uma franqueza corajosa irrompe fronteiras entre gêneros e estilos, se arrisca entre o escrito e o não dito, expõe ao intérprete vasta margem para suas escolhas e atalhos para sua interpretação enquanto enredado em um “labirinto complexo”, “onde os ecos se reverberam uns nos outros” e onde “gritos das ruas, devoções subliminares e parentes próximos visam uma síntese”. (GARCEZ, 2010c). A relação entre intérprete e compositor pode significar a busca por instruções exatas, que transponham os sinais gráficos e outras orientações da partitura. Entretanto, instruções exatas não significam instruções totalmente restritivas: conservam, ainda, margem aberta à interpretação pessoal clara e franca. Na experiência em questão, os itens negociados foram, 138

principalmente, andamentos, agógica e textura.181 A estreia de uma obra sob a supervisão do autor, com direito a troca de ideias, observações, restrições e entusiasmo representa a vivência de um tipo de processo criativo que constitui uma maneira coletiva de dar vida à música. A peça, dividida em pequenas seções de caráter diferenciado entre si, teve a condução do próprio compositor-regente. Nela, o piano apresenta-se como guia básico para os outros instrumentos e para a voz. A mezzo-soprano fala, declama, discursa, pensa alto, faz pregão, faz oração, lamenta, cantarola, canta, se movimenta no palco e passeia flexível sobre a música de citações a Monteverdi, Schubert, Chiquinha Gonzaga, , Tom Jobim, . Do período Barroco ao século XX, uma composição do século XXI transita entre temas de obras do gênero clássico ao popular e comenta desde os abusos e a agressividade da propaganda e do marketing até a poesia romântica de tendência suicida. Com tudo isso, forma-se um retrato do homem ocidental, uma quase constatação da condição humana através dos tempos e da música na confusão da era que já se pode chamar de pós-pós- moderna, uma vez que já se pode observar e criticar o ecletismo, a multiplicidade e a amoralidade da chamada pós-modernidade num contexto típico do conjunto de obras de Garcez, em que “[...] não há um continuum perceptivo, mas pequenos sustos de descontinuidade e irrupções de medo, retórica e certo nonsense calculado”. (FERNANDES, 2012 apud GARCEZ, 2012).182 Breton (1924 apud GARCEZ, 2010b) destaca no texto falado, o seguinte trecho do Manifesto Surreralista: “[...] inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites/ ela circula em um gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair/ ela se apóia na utilidade imediata e é guardada pelo bom senso”. De questões sociais e religiosas em Ave Maria no morro até as propagandas que disputam a preferência dos consumidores através de carros de som em alto volume, anunciando siglas de produtos comerciais e representações políticas, pedindo votos e querendo impor comportamentos, as questões estilísticas são expostas em painel de períodos diversos que embaralha contrastes da sucessão de processos/acontecimentos históricos a serem tratados em dez minutos, exibindo o espírito da qoisa: tudo isso, segundo Garcez (2010c), numa “tentativa própria e auto-referente de construir um micromundo a partir de temas, ideias, paráfrases, teatralidades e etc. de todo o „fora‟ que seria o Brasil de hoje”.

181Em determinado trecho, a intérprete pode escolher linha(s) entre as vozes disponíveis na textura contrapontística. 182Texto de Marcelo Tápia Fernandes, poeta, tradutor, doutor em Teoria Literária e Literatura pela USP, localizado na orelha da publicação. 139

A qoisa é algo que não se pode pegar. Não é objeto, não é substantivo, é algo ao mesmo tempo indefinido e transcendente, surreal. A trajetória de um ser viajante oriundo do século XVIII, diretamente do pensamento iluminista e revolucionário – libertário, igualitário e idealmente fraterno – para a pós-modernidade carioca, que representa o Brasil em suas crenças, misérias, culturas, exuberâncias, paisagens, litorais, apelos sensuais, corrupções, politicagens e comportamentos globalizados através de campanhas multinacionais de marketing agressivo. Descreve um passeio pelo tempo. Em ambientes que variam entre o que se pode identificar como despretensão e angústia, tumulto e contemplação, O espírito da qoisa cita Müller, Breton, Bachelard, Appolinaire e Rimbaud em texto falado, cantado e canto-falado:

Figura 38 – Texto O espírito da qoisa de Luciano Garcez

Sol tu, nobile Dio, puoi darmi aita... (Monteverdi)

“trago a vós minha cabeça e minha palavra –

darei a primeira depois que ouvirem a segunda”.

Frend bin ich eingezogen como um estranho (melodia de Gute Nacht – Schubert) me voy

aquela Alma do Tempo uma clarinada mezzo-farisaica em mim.

“inútil acrescenter que à própria experiência foram impostos limites ela circula em um gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair ela se apóia na utilidade imediata e é guardada pelo bom senso” (Breton, “Manifesto Surrealista” – 1924)

vejo corvos cinéticos e uma distímica tília vejo ao final do longo turno um link que traz à sua porta um nordestino tocador de realejo. 140

e eu, que já contratei os serviços de acompanhante da solidão (melodia do “Abre-Alas”)

com ela atravessei a sala vazia mas ensolarada florescendo pela boca descabida de minha avó:

E seppellire lassù in montagna, o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao! E seppellire sotto l'ombra di un bel fior.

“quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, Imóvel como o Imemorial

vivemos fixações, fixações de felicidade” (Bachelard – A Poética do Espaço)

TV, CD, LCD, MTV, PMD, ECT, TCC, PMDB, MPB, DVD, VCD, CVV, AVC, PVC, TBC, PCC, BBC, dendê, ABC, tudo você vê em promoção e em indeléveis vezes sem juros – venha provar, minha senhora, é uma delícia !

Parteira Nossa Senhora Nigra Dolorosa Padroeira do Brasil Polorum Regina será mesmo o hino do futuro paradisíaco? Omnum nostra Stella matutina por que o povo tem que ir onde o artista está ? Dele Scelera Ante portum Virgo

Deo gravida por delicadeza, je perdi meu País.

Fonte: Garcez (2010b).183

183Documento não paginado. 141

A respeito da estreia, quando indagado a respeito das imagens que faziam parte da ideia na composição de O espírito da qoisa, Garcez respondeu:

O espírito da qoisa previa imagens e movimentação cênica [na estreia]. Se forçássemos, ia sair uma coisa muito grotesca. Nós precisaríamos de uma equipe maior e de mais tempo para mais ensaios. As imagens seriam documentos da Revolução Francesa fundidos a pores-de-sol. Precisariamos também de mais equipamentos. As ideas estão anotadas na partitura original. O que fizemos foi uma versão. Precisaríamos de mais ensaios para fazer soar de maneira orgânica, inteiriça, para que as pessoas não olhassem e pensassem: „Olha, está aparecendo um vídeo!‟. O ideal é que não haja tempo para que elas pensem. Elas devem ser invadidas pela coisa. (informação verbal, grifo nosso).184

Após a primeira apresentação, as imagens foram elaboradas em conjunto pela pianista, pelo compositor e pelo editor de vídeo: imagens disponíveis da internet se somaram a fotografias e vídeos produzidos especialmente para a música. O Rio de Janeiro foi registrado em fragmentos da Barra da Tijuca ao Centro, pela orla, em grandes avenidas e praças. Fachadas comerciais, propagandas políticas, comida nordestina, uma boca e um beijo de mulher, um abutre sobre a cruz de uma igreja, o mar, a praia, os banhistas, os transeuntes: uma sequência se repete, entrelaçando-se e alternando-se ao viajante oriundo do século XVIII que estaria, em sua peregrinação, passando pela cidade com toda sua a sua história, em menções à Revolução Francesa e ao Romantismo. A título de experimentação, a partir das imagens gravadas de maneira rudimentar na apresentação da estreia, as imagens criadas em equipe foram superpostas. O objetivo, entretanto, é que, em nova apresentação, essas sejam projetadas, além da tela, sobre os instrumentistas e sobre a plateia, fazendo parecer, segundo o autor, tatuagens sobre a pele. O espírito da qoisa é música cênica, no uso mais abrangente do termo. Não se trata de música-teatro, pois não há ação cênica explícita. Tampouco se trata de teatro instrumental, uma vez que os músicos não se estabelecem como atores. Também não se pode dizer que seja exatamente música-vídeo, pois embora concebidas concomitantemente à música, as imagens são – e assim ocorreu na versão apresentada – elaboradas junto aos intérpretes para projeção no momento da apresentação. Não constituem um trabalho encerrado. As imagens permanecem abertas a novas versões.

184Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010. (Apêndice F, p. 260). 142

Nos sons pré-gravados, o som da voz da própria cantora, processado, soma-se ao som emitido ao vivo e a outros sons, manipulados, montados por profissional especializado em tecnologia musical e deflagrados mediante comando do compositor/regente. O operador que lida com a tecnologia se tornou mais um músico, essencial à identidade do grupo na apresentação da peça tanto quanto cada um dos outros instrumentistas. O autor e regente, na condução do processo, precisou transpor as dificuldades peculiares do trabalho em grupo, envolvendo subgrupos em ensaios comentados. Houve dúvida quanto à sonorização necessária e adequada para a sala de concerto. As dificuldades de sonorização para a espacialização dos sons pré-gravados, conforme o planejado para uma ótima compreensão musical das articulações, palavras e texturas, decorreram do manuseio do equipamento disponível. A sonorização aplicada para a voz diante da parte do computador e dos outros instrumentos necessita de cuidados especiais. O som acústico do piano, trombones e clarineta contra os sons amplificados da voz e dos sons pré-gravados na única apresentação – que teria sido a primeira audição da peça - ameaçaram o equilíbrio necessário a uma boa apreciação da obra. Esse é um problema específico da música que utiliza meios eletrônicos, que é da alçada de profissionais experientes e que tem de ser solucionado através de conhecimento, de técnica e de experimentação. Ensaios já com a sonorização prevista e detalhadamente planejada, levando em consideração inclusive o tamanho e as características da sala, podem fazer com que se possa chegar ao que se considera como ideal: no caso, uma sonoridade fiel à obra, que não apresente distorções não desejadas. A tecnologia viabiliza as obras, as performances, as ideias de compositores contemporâneos. A atenção dos instrumentistas, dos pianistas a esse aspecto da música dos novos tempos faz-se imprescindível. Ao mesmo tempo, alinhado ao uso da tecnologia, tendência identificada através dos costumes da sociedade que se transforma e que influencia a criação artística, o prestígio do piano, que persiste, como instrumento cuja importância atravessa os séculos, na música de compositores atuais, pode entusiasmar e mover intérpretes especializados, solistas treinados como executantes – não apenas executores – participativos junto aos compositores de seu tempo na criação de uma arte que transpareça o pensamento humano no século que se inicia. O isolamento é uma das características dos pianistas clássicos cujo trabalho é individual, na maior parte do tempo. Compositores, técnicos, divulgadores e produtores não fazem parte de sua rotina de estudos. Entretanto, nos casos de música que envolve indeterminação, iluminação, cena, sons e imagens pré-gravados, os compositores e os intérpretes – o que inclui os especialistas em tecnologia – trabalham em equipe mesmo que 143

não se dêem conta disso. A atenção dispensada às demandas dessa parceria pode vir a colaborar para o bom desempenho artístico de todos os envolvidos no interesse artístico que compartilham. Luciano Locozelli Garcez nasceu em 08 de dezembro de 1972, na cidade de São Bernardo do Campo/SP. O compositor, regente e poeta se formou no Curso de Composição e Regência da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e tornou-se Mestre, também em Composição, pelo PPGM da UNIRIO, tendo sido aluno de Flô Menezes, Edson Zampronha e Carole Gubernikoff. Filho de professora de piano e teoria musical, estudou violão na infância. Promoveu, em sua obra, comunicação permanente entre música erudita e popular. Sua formação na infância através do violão popular e do piano erudito não ocorreu de forma convencional: “[...] Eu abri o piano e comecei a brincar, a tocar. Comecei a pegar os livros, comecei a ler ao piano. Fui meio autodidata. Quem me ensinou um pouco a teoria foi a professora de violão. Minha mãe não se meteu em nada”. (informação verbal).185 Fascinado pela integração música/poesia, Luciano Garcez é autor de cerca de 400 canções. O compositor escreve as letras de suas canções de maneira autônoma – em sua verve fluente e obsessiva – ou estabelece parceria com autores diversos. Publicou, em 2010, Salutz a uma dama moura (Editora Multifoco) e As cidades cediças, em 2012 (Editora Verve). Sua poesia apresenta, assim como a sua música, disposição para a fusão, interação e superposição de imagens, não apenas como manifestação natural da cultura pós-moderna, mas também como forma de observar e criticar essa mesma pós- modernidade da qual é representante. Em 2011, lançou o CD You‟re the trickster186 cuja música vai “[...] até o morro buscando a Ode grega”, sai “[...] do quintal da Tia Ciata assobiando Schoenberg”, dissolve “[...] a Bossa-Nova em ruptas moléculas de punk rock” e toma “[...] água de coco nas nuvens com o tranqüilo Dorival [Caymmi]”. (GARCEZ, [20--?]). No conjunto de sua obra, segundo Garcez, “estilos, épocas e gêneros se misturam com a mesma elegância abstrata dos temas tão difusos que se organizam em uma prateleira [...]”. (OH SIRENA..., [20--?]).187 contextualizando, assim, de certa forma, a geração pós-abertura no Brasil. Refere-se à era pós-moderna como a era do consumismo doentio, à Indústria da

185Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010. (Apêndice F, p. 253). 186Trickster é um personagem mítico que existe em todas as culturas, que “[...] atua com diversas máscaras e posturas, sendo mutante por excelência e instaurador do caos para que uma ordem posterior, e nova, prevaleça.” (GARCEZ, [20--?]). 187Documento online não paginado. 144

Cultura como uma “menina dos olhos cegados que vê”, à Internet como “a silenciosa maioria do „mais real que o real‟ e a um “vazio crônico no lugar do desejo de transcender”. Observa que, nos tempos atuais, “a alma foi reduzida a um complexo muro neuronal” e transforma essa em uma das grandes questões que norteiam o seu trabalho. (OH SIRENA..., [20--?]).188 O misticismo que ronda sua obra tem origem no berço. Apesar de ser descendente de um encontro de famílias portuguesa e italiana, cultiva certas tradições místicas africanas, além do catolicismo e espiritismo kardecista:

[...] A minha família é de origem portuguesa e italiana. A parte de mãe é toda italiana, Locozelli, e por parte de pai é toda portuguesa. Então, são quatro famílias italianas e, que eu me lembre, duas famílias portuguesas que se encontraram. Por isso, eu tive formação católica, fiz o catecismo muito pelo contato com as minhas avós italianas porque na Itália o catolicismo é absolutamente forte. Tem também uma história, da minha mãe e do meu pai, de os dois serem espíritas, meio de mesa branca e meio de umbanda e a minha mãe ser uma pessoa que tem uma mediunidade muito forte, muito forte. Desde que eu ainda era criança, a minha mãe incorporava uma preta velha e o meu pai incorporava caboclo. Eu lembro muito criança a minha mãe recebendo os guias. Não era exatamente candomblé, era mais umbanda, mesa branca, espiritismo. No candomblé, que seria o lado mais africano, quem entrou mesmo fui eu e bem mais tarde. Mas eu me lembro da minha mãe recebendo, inclusive, uma preta velha que se chamava Vó Maria, eu acho, e as pessoas iam atrás dela. Eu me lembro de ter, assim, quinze pessoas em casa para se consultar com a minha mãe. [...] O meu pai também era médium e via coisas com uma clareza assustadora. (informação verbal).189

Define-se como um romântico idólatra que tem extremo zelo pela forma e que conversa com novas tecnologias através da linguagem da música contemporânea. Assim como os compositores atuantes no Rio de Janeiro já citados, Garcez pensa a apresentação musical como espetáculo e mantém estreita relação com as artes cênicas, que se reflete nas performances que ele mesmo promove e dirige quando expõe suas obras. Suas relações com intérpretes nunca foram conflituosas. Ao contrário, Garcez teve sempre facilidade em associar-se tanto a instrumentistas e cantores aptos e interessados em experimentar sua música, quanto a outros compositores, formando grupos e equipes de trabalho:

188Documento online não paginado. 189Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010. (Apêndice F, p. 254). 145

O compositor vive totalmente através do intérprete. Essa proximidade, até intelectiva, de você perguntar e entender mesmo a figura do compositor é fundamental porque o compositor não é só uma partitura, é uma pessoa também. Ainda. Eu acho importante essa questão de ver o lado humano, apesar de alguns acharem que o autor já morreu faz tempo. Eu tive oportunidade de me associar a intérpretes acessíveis para fazer música, experimentar, trocar ideias. Esse contato sempre foi satisfatório. A resposta do outro, o que outro fazia, imediatamente depois que eu escrevia, alterava [o processo composicional]. (informação verbal).190

Garcez promove sua relação com o público aproximando-se dos ouvintes através de cursos e palestras onde oferece aos participantes a oportunidade de interagir com o universo estético, “[...] escolhendo a música como instrumental de educação” e trazendo a música para a “[...] realidade cotidiana, de quem ensina e de quem aprende”. (CURSOS... [20--?]).

190Entrevista com Luciano Garcez, em sua residência, em Santa Tereza (RJ), em 22 de agosto de 2010. (Apêndice F, p. 260). 146

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o período de composição das peças de compositores atuantes no Rio de Janeiro estudadas neste trabalho, entre 1967 e 2012, a música cênica sofreu transformações. Uma delas foi o acesso, por parte de compositores e intérpretes, a novas tecnologias, que passaram a chegar mais facilmente aos palcos e proporcionaram o desenvolvimento de ideias que anteriormente seriam de muito mais difícil realização. Equipamentos de tecnologia que recentemente passaram a ser de mais fácil aquisição, manuseio e portabilidade viabilizaram difusão e projeção de som e imagem no mesmo suporte: recursos para microfonação dos instrumentos, espacialização e processamento ao vivo. Tudo isso amplia a noção do espaço de apresentação, possibilitando que os eventos musicais ocorram fora das salas específicas de concerto, por exemplo. Permite também que os sons dos instrumentos sejam virtuais – pré-gravados e difundidos em tempo real, enquanto o pianista apenas simula a execução. O acesso facilitado a novas tecnologias, entretanto, não quer dizer que a realização de música cênica tenha passado a ser uma produção simples. As apresentações, em alguns casos, exigem técnicos/artistas que manipulem os equipamentos. Técnicos, além de conhecerem o funcionamento dos equipamentos, sabendo manuseá-los adequadamente, de alguma forma, participam e contribuem na criação artística das peças, nessa manipulação. A ousadia dos compositores criou situações que demandam não apenas equipamentos específicos como intérpretes especializados. Além disso, na música cênica, as funções de compositor e intérprete muitas vezes se confundem e/ou se expandem. O compositor é intérprete, o intérprete é co-autor. O compositor é diretor de cena, o intérprete é co-produtor na realização dos concertos. O compositor é artista plástico, o intérprete é bailarino. O intérprete é ator, o compositor é coreógrafo. O compositor é light designer, o intérprete é figurinista. Em alguns casos, a ausência de partitura transforma o compositor ou gravações audiovisuais nas fontes de acesso ao conteúdo musical/artístico da peça. Também há casos em que a partitura é textual ou gráfica. No repertório estudado, o piano é tradicional, expandido ou preparado. Apresenta-se solo ou divide o palco, em duo com outro intérprete que pode ser de outra linguagem artística – como ocorre no caso de Caprichosa voz que vem do pensamento, de Taborda, que interage com uma bailarina, co-autora, na obra. 147

A interação entre linguagens artísticas é intensa. As posições, as hierarquias, os papéis dos músicos se tornaram nebulosos, mesclados, os limites se tornaram embaçados entre as funções de compositor, intérprete, produtor cultural, designer de cena (figurino, cenário, direção cênica, coreografia), de luz e de som. A exposição de relações e costumes do meio musical revela aspectos da preparação do(a)s pianistas nos momentos anteriores à apresentação e, principalmente, situações do(a)s instrumentistas na rotina de dedicação exclusiva ao instrumento em estudos intensos e extensos, mostrando uma rotina solitária e limitada à preparação e à realização de concertos. O(a) pianista utiliza a voz obrigatória ou voluntariamente com texto próprio ou do autor. Domina outros instrumentos, além do piano, como no caso da peça de Jocy de Oliveira, que exige intensa movimentação corporal do(a) intérprete enquanto executa ao mesmo tempo um cravo amplificado, um piano amplificado, além de piano e órgão elétricos. As habilidades exigidas, nesse caso, incluem a capacidade de lidar com sons amplificados dos instrumentos. As demandas diferenciadas da música cênica em relação às práticas interpretativas incluem práticas teatrais e de improvisação, tendo em vista o alto grau de atuação cênica e de indeterminação do repertório. Tais práticas exigem capacidade de invenção para a participação em nível de criação nas obras – o que exige, por sua vez, consciência corporal, autoconhecimento e sensibilidade pessoal de cada músico. A postura do músico de concerto diante de uma peça cênica é, não raramente, de parcimônica diante dos recursos extra-musicais embutidos na música pelo fato de estes não serem treinados no gênero diante do período de formação e também pelas exigências peculiares de formação de equipe e do uso de equipamentos – tecnologia. A busca do fazer musical espontâneo, de sonoridade própria e autêntica, de aceitação do efêmero na apresentação musical solo ou em grupo são atributos a serem desenvolvidos pelos intérpretes, no novo virtuosismo, que se revertem como benefício não apenas na música cênica, mas em todo tipo de música. Participamos ativamente na realização de duas das peças estudadas com atuação solo e como camerista e analisamos a interpretação de outros intérpretes nas demais obras apresentadas. Em fevereiro de 2013, fizemos o registro audiovisual da peça inédita de Csekö: Es(x)tro(a)versão. A vivência na interpretação musical/teatral nos desafiou a criar, improvisar e a desenvolver um personagem específico para a situação/cena. 148

A criação do personagem passou por diversas etapas. Inicialmente, exercemos uma postura totalmente natural como pianista, seguindo à risca as indicações da partitura/texto. Em seguida, ao submeter a interpretação à apreciação da soprano Professora Doutora Elke Beatriz Riedel 191 , que é experiente na música cênica, mudamos a essência da nossa atuação. Seguindo sua orientação, pensamos num personagem profissionalmente experiente, experimentando o instrumento momentos antes de alguma apresentação musical. Como o piano estivesse fechado à chave e a entrada do público fosse iminente, a pianista chamaria aflita pelo zelador que hipoteticamente estaria com a chave do instrumento. Em seguida, transformamos esse personagem em uma mocinha que, muito nervosa por estar prestes a realizar uma prova com banca, demonstraria seu desespero ao perceber o piano fechado. Terminamos por optar mesmo pelo personagem da pianista experiente que demonstrasse certa afobação em decorrência do pouco tempo que possuía para sentir os sons graves, médios e agudos produzidos através do piano naquela sala de concerto. A pianista chama pelo zelador algo aflita. Identifica outra pessoa na sala de concerto e supõe que esta possa ter a chave de que precisa. Fica aliviada em saber que o zelador saiu do recinto, mas deixou a chave com essa encarregada – possivelmente uma auxiliar. Um pouco agitada pela situação, agradece a essa terceira pessoa – que é uma moça – e sorri. Procura agir rapidamente enquanto experimenta a sonoridade do piano, deixando a chave cair – inclusive a chave caiu casualmente no chão uma vez mais do que indicado na partitura. A pianista, então, procura, após os momentos iniciais de abertura da tampa do teclado e da tampa da caixa acústica do instrumento – e de limpeza do teclado e ajuste do banco – acalmar-se para iniciar, enfim, sua atuação artística com a devida concentração. Ananda Krishna, estudante do Curso de Artes Cênicas da UFRN, que entregou as chaves à pianista/personagem na cena, foi uma atriz convidada para participar da gravação e colaborou, ainda, com sugestões. Opinou sobre o gestual cênico, sobre a respiração diferenciada no início e no final da peça, sobre o figurino e sobre sua visão geral da cena. Para conseguir o canhão de luz de facho circular indicado em partitura, entramos em contato com Castelo Casado (Natal/RN), firma de iluminação para eventos sociais e artísticos – que cedeu o equipamento. Contamos com o Franklyn Nogvaes, músico e videoartista que, além de operar a câmera e captar o áudio na gravação, movimentou o canhão de luz conforme os movimentos da pianista.

191Professora de canto da UFRN. 149

Na peça O espírito da qoisa, de Luciano Garcez, tivemos também oportunidade colaborar, na estreia, não apenas com a interpretação da parte de piano no conjunto instrumental/vocal, mas com ideias, produção de fotografias e filmes para o vídeo a ser projetado ao vivo simultâneo à realização da peça. A captação do áudio na apresentação/gravação, elaboração e edição de vídeo foram também realizadas pelo mesmo Franklyn Nogvaes192, em julho de 2010. Para um bom resultado na apresentação/gravação das obras, a manipulação das tecnologias necessita de técnicos que se envolvam artisticamente no trabalho proposto. As parcerias, na realização das peças, marcaram significativamente essa experiência, que nos motivou e nos inspirou a prosseguir – permanecer na trajetória de pesquisa e prática da interpretação em direção à música cênica após a conclusão do presente trabalho. Essa movimentação em torno da realização de música cênica nos mostrou a atuação artística ampla – abrangente – e a necessidade de intenso envolvimento dos músicos na realização das obras além da interpretação musical ao instrumento. Essa necessidade inclui a reavalização/revalidação, transformação e extensão das relações tradicionais do meio musical a novas relações com técnicos e tecnologias, com outros artistas e outras artes e, afinal, com velhos e novos ouvintes. As novas demandas para os músicos de concerto poderão servir como sugestão de inclusão, na formação regular, especialmente dos pianistas clássicos, de treinamento condizente relacionado a improvisação, consciência corporal e cênica para as apresentações, enfrentamento de transformações na linguagem musical, disposição para a renovação de repertório, contato com novas tecnologias, relacionamento mais próximo a outras linguagens artísticas, contato e colaboração com compositores contemporâneos, atenção às questões que envolvem o público ouvinte e até mesmo às relações hierárquicas do meio musical. Esperamos poder contribuir para que intérpretes provenientes de outros locais e outras escolas encontrem uma possibilidade de diálogo, a partir desta pesquisa, com outros músicos que já tiveram experiência na realização de música cênica. As questões apontadas, que dizem respeito às características do gênero e suas denominações, por exemplo, poderão minimizar confusões inerentes à comunicação entre compositores, intérpretes, críticos, produtores e até plateias. Após longo percurso de estudos e investigações, concluímos este trabalho percebendo o enorme alargamento das nossas relações com compositores e intérpretes em seus repertórios

192Músico arranjador, vídeoartista, especialista em técnicas de áudio. 150

e práticas e acreditando na importância de futuros desdobramentos desta pesquisa em música cênica brasileira.

151

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APÊNDICE A - Luiz Carlos Csekö: cena experimental de sons e luzes (interfaces)

Nascido em Salvador, Bahia, em 10 de fevereiro de 1945, Luiz Carlos Csekö é descendente de húngaros. Formado em composição pela Universidade de Brasília em 1971, com mestrado em Composição e Educação Musical pelas universidades americanas de Columbia e Colorado, assina uma obra de caráter experimental, na qual estão incluídos aspectos cênicos que foram concebidos junto com a música. A percussão é uma das tônicas do seu trabalho, que Csekö (2007) define como uma “interface entre música, luz e imagem”: uma fusão de “procedimentos de vanguarda, desconstrução/construção, de ritmos e estilos, tais como Batucada, Afoxé, Maracatu, Chorinho, ou Jazz e Rock‟n Roll”. Explica como teve origem essa sua maneira de compor:

Durante as longas tardes da minha infância e a adolescência [...] bastava-me descer andando a Barroquinha para - curioso, instigado e maravilhado – penetrar nos barracões onde estavam as oficinas de instrumentos ou se realizavam os ensaios dos tradicionais afoxés, Montenegro e Cavaleiro de Bagdá. [...] Noite adentro, ouvia ao longe-perto dos Ventos Alísios, o mistério dos majestosos candomblés, a alegria apaixonada dos ensaios de blocos, batucadas [...] da redondeza. [...] Escutava também os enormes, potentes, misteriosos rádios de válvula dos anos 40 e 50 e os aparelhos de som montados por meu pai – do erudito à música nordestina, choro ao jazz, passando pelo tango, estações estrangeiras. Brincava absorto, por horas, contrapondo o som eletrônico produzido entre as estações e as emissões das rádios brasileiras e estrangeiras, para desespero dos meus familiares. (CSEKÖ, 2007).

Com relação a suas referências, Cseko (2007) prossegue narrando: “Perambulo pelas rodas de Capoeira Angola e regional [...] e travo amizade com [...] Gato Preto – grande luthier de berimbaus [...]”. Csekö percorreu uma trajetória em corda bamba193, na qual os conhecimentos acerca de composição musical adquiridos em sua formação acadêmica foram acrescidos de intensa pesquisa pessoal e informal. Seu ingresso no meio musical se deu, já de início, através da linguagem contemporânea aliada ao aprendizado do trompete. Atuava, na década de 60, como

193Título de Palestra proferida na Academia Brasileira de Música, Rio de janeiro, em 11 de setembro de 2007.

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colaborador, na condição de trompetista aprendiz, no Grupo de Compositores da Bahia. Esse Grupo liderado por Ernst Widmer que incluía Lindembergue Cardoso, Fernando Cerqueira, Milton Gomes, Nicolau Kokron, Rinaldo Rossi, Jamary de Oliveira, Carlos Rodrigues Carvalho, Antônio José Santana Martins (Tom Zé) e Carmen Mettig Rocha foi um movimento criado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1966 e tinha compromisso tanto com a inovação quanto com a tradição. Envolvido com os diversos aspectos da cultura baiana, propunha reflexões acerca das funções sociais da música, fazendo oposição a “todo e qualquer princípio declarado”. (NEVES, 1981, p. 170).194 Nas palavras de Widmer (1985, p. 69), foi um movimento “aparentemente sem rumo” que tinha “um firme propósito de não defender escolas e tendências, a fim de evitar tolhimentos oriundos de técnicas e estilos já sistematizados”. Desde então, Csekö já discutia, junto ao grupo, o ensino da música. Durante a década de 60, além da música, envolve-se, inevitavelmente com questões políticas que afetaram, além das artes, todos os setores do país: “Como um trágico ponto final à adolescência, consuma-se o golpe de 1964, começam os chamados „Anos de Chumbo‟ e me engajo na longa, renhida resistência contra a ditadura civil-militar”. (CSEKÖ, 2007). Envolveu-se, então, com intelectuais e artistas de teatro, artes visuais, dança, música popular. Começou a compor quando ingressou no Curso de Bacharelado em Composição da UFBA, em 1968. Em seus primeiros trabalhos para piano, Csekö se aventurou pelo instrumento preparado, sempre numa abordagem bastante intuitiva. Posteriormente, conheceu as técnicas de piano preparado e expandido usadas originalmente nos Estados Unidos e percebeu que já havia adotado alguns desses procedimentos em sua obra. No contato com o que poderia parecer obsoleto, Csekö vislumbra a transformação, a reciclagem da linguagem musical, do repertório, da utilização do piano como instrumento. Nessa reciclagem, o autor compila e processa referências da cultura popular, das batucadas na Bahia, da música erudita, da música popular e do jazz. Tudo isso permeia uma brasilidade assumida, cultivada, declarada. Além de ter colaborado junto à Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) na produção e coordenação de eventos culturais, Csekö é produtor cultural e diretor de seus espetáculos. A série de espetáculos que apresentam sua obra, Interfaces, teve início em 1989 e está em sua trigésima edição. Promove incessantemente eventos para a divulgação da música experimental brasileira e oferece, desde 1970, as Oficinas de Linguagem Musical (OMLs) que

194Segundo Neves (1981, p. 170), Ernst Widmer, a partir de 1956, foi o compositor “[...] responsável pela formação da nova escola baiana à qual passou sua permanente curiosidade e espírito de pesquisa [...]”. 159

criou como forma de oferecer ao público leigo e infantil um tipo de musicalização que tem como referência principal a música do século XX. Esse processo de ensino-aprendizagem permite ao aluno caminhar livremente pelo mundo da música através da linguagem contemporânea. As Oficinas circulam incessantemente por universidades, instituições culturais e rede pública de ensino para formação profissional. Professor no Conservatório Brasileiro de Música, leciona também nos Seminários de Música ProArte. Suas ideias, na música, promovem o alargamento do foco e do alcance de tradicionais formas de ensino que privilegiam a formação de solistas repetidores de procedimentos engessados, não questionados. Critica e combate, nesse processo, o pouco estímulo à improvisação na formação de intérpretes. Em seu trabalho, Csekö convida os instrumentistas a participarem de suas peças em nível composicional.

A rotina do instrumentista é despojada da sua aparência de mera repetição, ordinariedade, resgatando-se sua categoria de gesto maior, a representação. [...] Os intérpretes são trabalhados como matéria visual, de grande poder de plasticidade e intervenção, seu gestual super-exposto ou em sombra densa, ou em nuance, pontuando formetemente a obra. O intérprete é convidado a re-ver sua atitude ao interagir com as peças, com seu instrumento de trabalho, sua postura cênica. (CSEKÖ, 2007).

Após a conclusão do cursos de Mestrado nos Estados Unidos, quando vê sua obra executada naquele país e na Europa com ótima repercussão, retorna às suas atividades no Brasil:

Retomo logo após meu regresso, o árduo trabalho de formação de público: implanto a Oficina de Linguagem Musical (OLM)195 com o projeto de minha autoria Música Contemporânea Para Todos no Museu Histórico Nacional, voltado para formação de público adulto em geral. Ressalto que a OLM aborda no estágio Escuta Diferenciada a familiarização com a produção musical brasileira atual – cada série modular da OLM apresenta pelo menos cinco obras de vários compositores brasileiros. Após uma OLM para intérpretes, que contava com Homero Magalhães, Margarita Schaak, Eládio Perez-Gonzales entre outros, sou convidado a sediá-la na ProArte por seu então diretor Homero Magalhães. Amplio a abrangência da OLM para público infantil e adolescente. Cecília Conde propõe sediar a OLM no Conservatório Brasileiro de Música – formação de professores e musicoterapeutas. (CSEKÖ, 2007).

A postura empreendedora do autor já se fazia notar ainda antes da sua identificação como compositor. Enquanto ainda era exclusivamente instrumentista, o interesse pelas outras

195As OMLs haviam sido concebidas por ele em 1970. 160

artes e pela política cultural dos lugares por onde passou, constituiu a sua preparação para futuras funções como autor e como ativista cultural. Deixando-se guiar pela intuição e por impressões e informações que recebeu empiricamente, Csekö traçou caminhos nada ortodoxos em sua jornada musical. Decidiu exatamente por onde e como seguir, removendo os obstáculos que pudessem abafar suas aspirações, questionando comportamentos padronizados e datados. Prosseguiu, sempre valorizando o acaso196: “[...] eu acredito muito no acaso. Eu trabalho musicalmente com o acaso”. (informação verbal).197 Na obra de Csekö, as “intervenções visuais” trazem “decupagem do gesto musical, movimento, cena” e “a intervenção sônica abrange amplificação, espacialização, propagação e processamento acústico”. (LUIZ... [20--]).198 A execução das peças que incluem elementos cênicos, como as compostas por Csekö, não é tarefa fácil. A utilização de equipamentos de som e de luz exige esforços específicos na produção executiva dos espetáculos, característica que pode ameaçar a viabilidade da obra. No entanto, o compositor nunca se intimidou diante disso. Aos colegas, sempre aconselha: “[...] Você não pode dizer: „ah, isso é impossível de fazer, é muito difícil, é muito caro...‟ Vamos fazer! Eu sempre falo para o meu pessoal: sempre o impossível. O possível é muito fácil. Vamos ao impossível”. (informação verbal).199 Enfrentando dificuldades, formou equipes de produção artística e executiva e começou a desenhar seus próprios projetos de sonorização, iluminação e cena. 200 A produção e a direção dos eventos que apresentam sua obra deram ao autor, que costuma tomar a frente dessas ações culturais, o diferencial que torna seu trabalho único e inconfundível. A montagem dos seus espetáculos conta com um roteiro elaborado que se baseia na sonoridade das peças, sempre com iluminação planejada especialmente para cada uma delas. Sonorização e ação cênica dos intérpretes também são freqüentes nesse tipo de apresentação musical que envolve os ouvintes através de estímulos plurissensoriais, sem interrupção e o “espaço visual do local de realização é tratado como parte estrutural da execução – sendo alterado e alterando o evento”. (CSEKÖ, 2007). As peças são encaixadas umas às outras, no concerto, na maioria das vezes sem as tradicionais pausas para aplausos, de maneira que a atenção e a concentração

196A maneira de trabalhar com os instrumentos e com o teatro, além da vasta indeterminação que inclui a valorização do acaso, aproxima, de alguma forma, a obra de Csekö à obra de Cage, embora o compositor não faça menção a essa referência. 197Entrevista com o compositor Luiz Carlos Csekö, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de setembro de 2010. (Apêndice A, p. 176). 198Documento online não paginado. 199ENTREVISTA..., op. cit., p. 171. 200Ao participar da coordenação da área multimeiros da bienal de música contemporânea, em 1995 e 1997, propôs a criação de infraestrutura com maquinário de teatro e iluminação para o evento, o que realmente ocorre, desde então. 161

do espectador não sejam quebradas ou desviadas. São espetáculos dinâmicos, que não passam de uma hora de duração. A habilidade do autor para a formação de equipes coesas de profissionais é trunfo para o sucesso de seus empreendimentos. A arregimentação de pessoas aptas e dispostas a trabalhar pelo resultado final em comunhão de objetivos é estratégia de importância fundamental neste caso. Isso inclui músicos, bailarinos, técnicos de som e de luz, além de outros especialistas que se fizerem necessários. Embora esteja sempre trabalhando pela formação de plateia tanto leiga quanto especializada, o compositor diz não se preocupar com a avaliação do público que lota seus concertos. Faz o melhor que pode e oferece-lhe. Relata situações em que a plateia reage de forma inesperada. O tipo de apresentação nada convencional provoca nos ouvintes sensações que, muitas vezes, não sabem explicar. As convenções que o público conhece de participação em espetáculos são manifestações após o fim de cada peça, em aprovação ou não do que foi feito, com aplausos, gritos de bravo! ou até vaias nas apresentações de Ceskö. O público, estupefato, muitas vezes não sabe como reagir ou como se portar: os tipos de música que conhece, com melodia, harmonia tonal e instrumentos tradicionais não estão ali. Os músicos de concerto, personagens conhecidos de todos e esperados nesse contexto, estão modificados, transfigurados pelas cenas e pelas luzes. Csekö se diz taxado de esquisito, de maluco ou de gênio e acha graça de tais comentários enquanto prossegue avalizado por grupos que lhe dão crédito e solicitam suas palestras, oficinas, composições, apresentações (informação verbal)201:

Minha visão de evento percebe o concerto como uma intervenção cultural de grande poder formativo, educacional. A formação do nosso público se faz, se fará também com a intervenção sistemática, vigorosa com esse fenômeno artístico, cujo grau de entretenimento terá que se re-visto. [...] realizemos assim uma contribuição alternativa consistente à complexa formação de uma cultura que nos defina e respalde. (CSEKÖ, 2007).

A dedicação exclusiva ao trabalho se apresenta até mesmo durante o tempo livre que o compositor destina a olhar pela janela de seu apartamento no Rio de Janeiro, conversar com pessoas: curiosidade que leva à experimentação, ao conhecimento, à produção artística. Tudo é matéria prima para a sua obra: “A convicção que vida e obra se permeiam, o viver o acaso, a

201Entrevista com o compositor Luiz Carlos Csekö, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 22 de setembro de 2010. (Apêndice A). 162

aleatoriedade, a imersão no caos e incerteza – minha marginalidade voluntária – este alheamento, são essenciais para o desdobrar da minha existência, meu processo de criação em Composição e Educação.” (CSEKÖ, 2007).

ENTREVISTA COM O COMPOSITOR LUIZ CARLOS CSEKÖ, EM SUA RESIDÊNCIA, NO FLAMENGO (RJ), EM 22 DE SETEMBRO DE 2010.

FORMAÇÃO

AS PRIMEIRAS LIÇÕES

“Entrei para a banda da escola e fui expulso por mau comportamento. Toquei um pouco de trompete. Fui procurar um lugar para estudar. Encontrei os então Seminários Livres de Música da UFBA, que hoje é a Escola de Música da UFBA. Passei por lá por acaso, andando de bicicleta. Ouvi uma cantoria, um negócio assim, esquisito. Fui lá para ver o que era e descobri que ali se estudava música. Não tinha internet. Era assim. Fui parar lá”.

RELAÇÕES MUSICAIS, EXTRA-MUSICAIS

“Frequentava a escola [de música da UFBA] sem estudar. Ia lá ver o que acontecia. Tínhamos um tempo enorme naquela época. Os professores da escola, quase todos eram estrangeiros. Eu tinha muito pouco contato inicial com eles devido à língua e também devido à própria posição que eles pensavam ter. Eles eram também colonizadores. Então, os nativos, os gentios, eram tratados meio à distância. Também para manter aquela aura de artista e tudo, essa bobagem. Eu comecei a fazer amizade com pessoas interessantíssimas, pessoas essas que mais tarde se revelaram ser Lindembergue Cardoso, [Rinaldo] Rossi, Nicolau Krokon, Fernando Cerqueira, Hamilton Gomes, que na época estavam se aglutinando para fazer o Grupo de Compositores da Bahia, grupo esse famoso que é pouquíssimo citado, mas é um dos grandes movimentos da música contemporânea brasileira – esse grupo que, infelizmente, por volta dos anos 70, começou a se esfacelar. Hoje em dia está retomando o movimento lá em Salvador, mas ficou muito tempo estagnado. Pelo menos estagnado no sentido do experimentalismo, de procurar outras opções, de investigar a linguagem, de produzir e ir à comunidade ao invés de ficar encerrado na Universidade. Então, durante muito tempo isso parou. Mas na época, estava começando esse movimento, que foi um movimento fantástico. 163

De 63 a 68, foi um movimento muito bacana. O Ernst Widmer, que era professor de composição, eu conheci meramente de passagem. Era por quem todos os compositores que estudavam lá passavam. Eu, jamais estudei com o Widmer. Na época, eu não era compositor, eu estava começando. Eu comecei a ter uma amizade enorme com o Rossi, o Cerqueira, o Lindembergue, o Hamilton Gomes. Estávamos no mesmo nível cultural, mas não musical. No musical, eles já estavam se estabelecendo como compositores e eu estava começando a estudar música. Culturalmente, líamos as mesmas coisas, líamos os mesmos poetas, líamos os mesmos romances. Tínhamos a mesma visão de mundo: de esquerda. Fazíamos aulas com o Agostinho dos Santos – o intelectual e filósofo português que propunha a civilização atlântica, que era outra visão, que não tinha nada a ver com a eurofilia nem o colonialismo. Começo a ouvir e falar de composição. Eu não tinha a menor ideia do que fosse compor. Comecei a estudar trompete. Logo, comecei a me associar a grupos: o conjunto de metais. Eu tinha uma bolsa na orquestra sinfônica e também tocava nos concertos do Grupo de Compositores da Bahia. Tocava trompete e aquela parafernália de percussão que não precisava de uma técnica maior: bloco de madeira, clave, uns „pac-pac‟, „pac-pac‟ e pronto. Eles precisavam de gente para tocar. Começamos a formar um grupo muito coeso com uma visão de mundo muito próxima. Discutia-se bastante Educação Musical na época, como fazer outra Educação Musical que não fosse aquela que a gente considerava falida. Discutíamos continuamente que música queríamos fazer, quer dizer, eles. Isso é o que eu acho mais interessante. Eu participava das bebedeiras e das discussões. Eu também apitava o que eu pensava, embora eu não fizesse nada de composição. Eu tocava nos concertos, ouvia sobre Composição o tempo inteiro. Essa foi a minha formação básica. Essa formação, de certa forma, foi informal, mas foi uma formação extremamente densa e complexa que, provavelmente, se tivesse sido formal, não teria acontecido”.

NAS ROTAS DO INSTRUMENTISTA

“Eu não pensava nada de Composição. Eu era instrumentista. Estava estudando para ser um bom instrumentista, um instrumentista competente. Na verdade, o que eu queria era ser um solista. Mas a minha técnica no trompete não ia dar para tanto, para tocar como eu pensava que deveria tocar. Eu era competente, tocava o que estava escrito e acabou. Mas eu queria muito mais do que aquilo. Eu ouvia muito mais do que aquilo. Esse é um dos detalhes da minha formação já como compositor. Eu ouvia, eu não tocava, eu ouvia. Eu tocava o que estava escrito, mas o que eu ouvia era completamente diferente. Se eu fosse instrumentista, eu 164

não seria compositor, eu creio. Mas eu teria uma intervenção completamente diferente do solista tradicional que chega, sobe no palco e toca. Eu, provavelmente, iria incluir elementos cênicos. Eu acho que o que se faz com o intérprete é uma brutalidade no sentido de tolher o intérprete completamente. Tem um fato que delineia isso: eu estava fazendo um exame de trompete e fui muito bem no exame em termos de afinação, interpretação...e me deram nota 8. Eu fui perguntar porque a banca tinha me dado nota 8. Ninguém sabia explicar. Mas eram os anos 60 e, então, eu queria saber. Então, nós fomos discutir. Não uma discussão violenta, nem agressiva. Mas discutir por quê? Quais foram os parâmetros utilizados. Afinação? „A afinação estava ótima‟. Interpretação? „A interpretação estava ótima‟. Atitude no palco? „Também‟. Postura? „Também‟. Então, o que é que vem a ser? A roupa? A barba? Cabelo comprido? „Mais ou menos. Também tem outra situação que chocou um pouco‟. Qual é essa situação? „Você se mexe muito quanto você toca‟. Como assim? Eu coço a orelha? Eu passo a mão no cabelo para ajudar? „Não, quando você está tocando, você se mexe com a música‟. Eu me mexo com a música porque eu sou uma pessoa que gosta de música! „Mas isso quebra a concentração‟. Mas a concentração de quem? Da plateia, minha, da banca, de quem? „A música erudita requer uma postura mais sóbria. Você não pode se mexer como um músico popular‟. Mas quem disse isso? Tiveram que subir a minha nota. Eu já estava fazendo resistência à ditadura.”

NAS ROTAS DO COMPOSITOR

“Eu me mudei para Brasília juntamente com uma parte do Grupo de Compositores da Bahia que tocava o Grupo, que montava os concertos e produzia. Até então, eu só colaborava como intérprete. O Grupo se mudou para Brasília porque Salvador estava estagnada, devido à ditadura. A diretoria que nós elegemos para os Seminários Livres de Música na época, que dizia que ia fazer mil mudanças, não fez nenhuma. Ao contrário, optou pela ditadura. Houve um levante de estudantes enorme em todo o mundo e aqui também. Era 1968. Nós paralisamos os campi de boa parte das cidades brasileiras. Como em Salvador o levante não estava tendo um enfoque cultural também, ao contrário, estava muito difícil. Em Brasília havia isso. A Universidade de Brasília foi tomada pelos estudantes, assim como a da Bahia. Só que, em Brasília, os estudantes conseguiram paridade de voz e voto para contratação, demissão e modificações curriculares. Nunca havia havido isso na história da universidade brasileira. Resultado: começou-se a contratar uma série de pessoas importantes e profissionais importantes. Jovens extremamente jovens que tinham já uma trajetória e que jamais seriam 165

contratados, por serem jovens e por terem ideias novas. Uma parte do Grupo de Compositores da Bahia foi para Brasília: Rinaldo Rossi, Fernando Cerqueira e Nicolau Kokron. Quando eu percebi que a Bahia ia estagnar, [percebi que] eu não tinha o que fazer ali. Eu não era compositor, mas também eu não tinha o que fazer ali. Não tinha movimento cultural, estava tudo acabando. Fui embora para Brasília, segui o fluxo. Quando cheguei a Brasília, queriam montar um Curso de Composição, mas não tinham número suficiente de alunos. O Rossi, o Cerqueira e o Kokron disseram: „Puxa, isso é uma decisão política. Por que você não se matricula para os primeiros três meses ou primeiro semestre e formamos a turma de Composição? Tem a disciplina no currículo e depois você cancela, e pronto‟. „Ah, está bom, é uma decisão política. O departamento quer se estruturar e eu quero que o departamento se estruture. Vamos lá, mas eu não sei de nada de Composição, não sei nem o que é isso!‟ „Não se preocupe, não é tão complicado‟. Entrei. Na época, me pediram para fazer uma sonata nos modelos de Scarlatti. A turma teria que fazer isso. Fui para casa. Passado um mês e pouco, eu não conseguia sair do lugar. Por outro lado, desde pequeno eu ouço sons, não são vozes. Eu sempre ouvi sons, eu sempre tive facilidade para ouvir coisas. Quando eu tocava na orquestra, no intervalo do meu naipe, eu ficava ouvindo os outros naipes que eu associava na minha cabeça a outros naipes que estavam tocando. Eu achava que todo mundo fazia isso e era a coisa mais natural do mundo, que eu estava ali fazendo o que todo músico fazia. Às vezes, ouvia umas peças curtas na minha cabeça e não sabia que eram peças, achava que eram devaneios meus. Não tinha a menor ideia do que fosse. Eu só fui descobrir isso quando comecei a compor. Fui para o departamento, lá de Brasília, para o Curso de Composição... e nada. Falei: „Olha, reprovado. Eu não consigo escrever uma nota. Por outro lado, fica uma confusão na minha cabeça. Eu fico ouvindo umas coisas, o que é falta de disciplina, eu creio‟. Como eles eram excelentes professores e compositores, disseram: „Você ouve o quê?‟ „Eu estou ouvindo uma peça para trompa, saxofone e contrabaixo‟. „Você ouve isso?‟ „É, ao invés de ouvir Scarlatti, eu ouço isso. Eu não consigo compor, começa aquela confusão e eu tenho preguiça...é melhor cancelar‟. „Por que você não escreve o que está ouvindo?‟ „Pode?‟ Poder, não podia, mas... „Pode. Você apresenta esse projeto daqui a três dias e se for alguma coisa realmente como você está dizendo, a gente vê o que é que faz‟. Passei os três dias enlouquecido e apresentei o projeto. Foi uma comoção porque, realmente, era uma peça, já. Onde é que eu tinha aprendido? Não aprendi nada. Eu convivi com isso muitos anos, ouvi muita coisa, eu sou uma pessoa curiosíssima... A primeira vez que eu ouvi multifônicos em minha vida, foi o Botelho, em 1967, ensinando ao Fernando Siqueira, que era clarinetista, em Salvador. Eu estava tocando trompete, ouvi uns sons estranhíssimos na sala ao lado. Parei de 166

tocar, bati na porta, pedi licença, perguntei se eu podia assistir àquilo. Era o Botelho, grande clarinetista brasileiro, ensinando o Fernando Siqueira a fazer multifônicos! Eu fiquei fascinado com aquele instrumento. Eu não compunha, eu não tinha a menor ideia, mas eu fiquei lá, ouvindo. Aos meus colegas, eu perguntava o que se podia fazer com o oboé: „Toca só com a palheta!‟ Ah, mas que som interessante! E se você tocar no corpo do instrumento, sem produzir notas? Ou seja, eu fazia o trabalho de composição sem a menor ideia do que fazia. No trompete, eu fazia a mesma coisa: „Eu fiz essa pecinha, esse estudo‟. O pessoal achou ótimo. „Bem, então, vamos fazer o seguinte: vamos juntar a turma e a gente vai propor que a turma, se quiser, tenha uma trajetória como a sua. Se não, tenha uma trajetória mais formal, institucional. E você, a gente dá a nota pela elaboração do trabalho que você faça‟. „Então, está bom‟. Juntamos a turma, a turma concordou. E a próxima peça, disseram que já não era mais uma peça de aluno. Eu já estava compondo. Eu fiz uma peça para sexteto de percussão, coro, narrador, cena. „De onde é que vem isso?‟ „Bom, de onde vem, eu, realmente, não tenho a menor ideia‟. Comecei com o Curso de Composição no final de 1968. Em 1971, já estava formado, me formei em bacharel, estava compondo profissionalmente. A minha peça de Bacharelado foi uma obra para grande orquestra sinfônica, com cena, projeto de iluminação. Logo em 71, eu fui 3º lugar num concurso internacional do Goethe Institut, aqui no Brasil”.

BERÇO

RESISTÊNCIA

“Eu comecei música muito tarde e a grande formação que eu tive foi por acaso, informal, porque como meu pai era estrangeiro e anarco-comunista e minha mãe também anarco-comunista, lá em casa circulava uma quantidade, uma diversidade de pessoas incrível. Inclusive, o pessoal que fazia os afoxés, as batucadas nos anos 50, 60, em Salvador, eles passavam lá por casa. A música erudita... eu não me lembro muito bem. Meu pai foi violinista. Meu pai construía aparelhos, era engenheiro eletrônico. Então, além de tudo, ele construía o próprio sistema de som. Lá em casa sempre teve um sistema de som que não era comum nas outras casas, construído por meu pai. Eu me lembro que uma vez eu tive que quebrar uns discos 78 [rotações] e alguns nomes ficaram na minha cabeça. Eu olhava o rótulo do disco, não entendia nada, eu era muito pequeno e os discos eram para ser quebrados porque... sei lá, porque estavam obsoletos, não entendi por quê... enfim... Os nomes vieram 167

para a cabeça à medida que eu fui entrando em contato com a música... de instrumentistas, de compositores... jazzistas... A música entrou na minha vida via cultura popular baiana. Lá em casa, no carnaval, entravam batucadas para beber um pouco e depois prosseguir. Meu pai era abstêmio, não sei porquê. Eu, tomo todas. Lá em casa era um ponto de reunião, além de ser um ponto de clandestinidade da resistência contra a ditadura Vargas e depois contra a ditadura civil-militar que se instaurou em 64. Meu nome é Luiz Carlos em homenagem a Luis Carlos Prestes. Um dos meus primos era um membro ativo do Partido Comunista, o Giocondo Alves Dias. A minha mãe militou no Partido Comunista. O meu pai, não, mas minha mãe militou. O meu pai fazia o sistema de som para os comícios do Partido Comunista. Quer dizer, é uma trajetória conflituosa. Ao mesmo tempo, a resistência também é um dos pontos fortes: eu via o tempo inteiro, na minha vida, as pessoas resistindo. Meu pai resistia frontalmente ao colonialismo que era presente aqui. Então, devido a essa minha família anarco-comunista, eu não tenho uma visão colonialista do país. Eu não acho que a Europa seja melhor do que aqui”.

BATUCADAS, RAY CONNIFF E STRAVINSKY

“Eu não posso dizer a você que eu sou um francófilo, que eu sou um eurófilo. Eu sou um brasófilo, eu gosto de Brasil. E acho que aqui se faz coisas ótimas, excelentes, tão boas quanto e eu não tenho a menor tradição, visão tradicional da Europa como polo gerador. Eu acho que o polo gerador é aqui. A Europa é e sempre foi [um polo gerador], mas estamos sendo e sempre fomos também. Entrei [na música] pelas batucadas, mas eu não sei percussão. Eu entendo de percussão, tem muita percussão no meu trabalho, eu entendo profundamente de percussão. Eu devo ter mais de 30 obras para percussão com formações diferentes. A minha entrada na música foi das mais aleatórias porque a certa altura, eu não sei bem por quê, resolvi renegar – devia ter uns 11 ou 10 anos – tudo que fosse erudito, tudo que fosse interessante e passei a ouvir Ray Conniff e Billy Vaugham, aquelas porcarias enlatadas que vinham dos Estados Unidos. Ah! Eu adorava aquilo! Passaram-se uns 2 ou 3 anos. Na faixa dos 13, 14 anos, eu estava na casa de um dos meus colegas. A minha família já tinha entrado em franca decadência de classe média para classe média baixa porque meu pai ficou doente, ficou paralítico, completamente, de derrame. O provedor era ele. Então, a situação ficou muito complexa lá em casa. Eu estava no Colégio Militar. Esse colega, o pai dele era cacauicultor: haja dinheiro! Ele tinha um belo apartamento lá no Campo Grande, que era um bairro chique. Ele tinha uma „radiola‟, como a gente chamava aqueles móveis baixos da Telefunken, de pau marfim. Um dia, os pais dele viajaram e nós resolvemos tomar uma bebedeira lá. Arrumamos 168

umas garrafas e ficamos bebendo. A certa altura, já estávamos todos bastante bêbados. Como eu não gostava e dizia a todo mundo que eu não gostava de música erudita, de clássicos – eu falava que detestava – então eles, para me irritarem ainda mais, colocaram Stravinsky, A Sagração da Primavera, a todo volume. Os vizinhos já estavam desesperados. E pasme: dali por diante a coisa virou com-ple-ta-mente. No outro dia, quando acordei, morto de ressaca, fui procurar A Sagração da Primavera, botei de novo na radiola, acordei todo mundo aos berros. O pessoal [ficou] irritadíssimo. Daí por diante, resolvi que ia ser músico via Stravinsky – A Sagração da Primavera”.

EXPERIMENTALISMO

A INFLUÊNCIA DOS GÊNEROS MUSICAIS NA EXPERIMENTAÇÃO

“O meu trabalho sempre foi experimental, desde o início. Eu tocava muito música tradicional. Gosto, ouço. Ouço choro. Ouço baião. Ouço rock”.

A PONTA DO EXPERIMENTAL

“Juntou-se o popular ao experimental, a ponta do experimental brasileiro, que na época era tão experimental quanto o experimental que estava acontecendo na Europa também. Só que não se tinha qualquer contato, por várias razões. Uma delas era a repressão violenta que estávamos sofrendo. Nada chegava aqui. Disco, livro: um livro de capa vermelha e já estaríamos preso. Portanto, vivíamos aqui, trabalhavamos muito bem, fazendo excelente música e ninguém sabia que tínhamos o mesmo nível. Juntamo-nos com a Escola de Dança que, na época, era o Rolf Gelewsky, que era um tremendo dançarino que fazia dança moderna no Brasil – e na Bahia. Então, fazíamos espetáculos. O Grupo de Compositores fazia espetáculos de interação com dança – cênicos, também”.

O PIANO

PIANO PREPARADO

“Eu comecei em composição por acaso e a minha entrada no piano foi também por acaso. Eu vou ao auditório da escola do departamento de música da Universidade de Brasília 169

e o que é que eu vejo lá? Um Bösendorfer tamanho concerto, gigantesco, com a perna quebrada! Ninguém tocava no piano porque o piano estava com a perna quebrada. Chamei uns operários de uma construção próxima. Em 1968-69, em Brasília, o que não faltava era construção. Perguntei a eles se em troca de umas cachaças que tomaríamos juntos, claro, no boteco que tinha em frente, eles podiam fazer um aglomerado de tijolos para servir de perna para o piano. „Não tem problema, a gente levanta, bota aqui, e pronto!‟ Eles botaram lá e o piano ficou em pé. Mas ninguém queria tocar o piano porque o piano não tinha uma perna. Eu comecei a experimentar no piano. Abri o piano, um Bösendorfer! O mecanismo estava perfeito. Afinado, não. Era só restaurar. Comecei a trabalhar no piano e a preparar o piano, a pesquisar no piano. Quando eu cheguei nos Estados Unidos, em 72, estava aquela onda do piano preparado. Tudo aquilo eu já tinha feito. Eu sempre gostei muito de piano. Aliás, tem poucos instrumentos que eu não gosto. Um, infelizmente, é o órgão, não sei por quê. O outro é a harpa, o que eu acho uma falha brutal na minha formação, mas eu não consigo gostar. Já tentei. Acho que tem peças lindíssimas, muito bem compostas, mas e não gosto, eu não gosto e jamais escreverei para órgão ou para harpa. Isso eu não consigo. Para os outros, eu adoro. Piano, nunca toquei, eu não sei tocar piano. Sei botar uns acordes juntos, mal e porcamente. Eu escrevo para piano, mas não sei tocar piano. Eu escrevo para piano como escrevo para todos os instrumentos, pela técnica que eu estudo, pelo que eu pesquiso com o instrumentista. Eu sempre estabeleço muito contato com o instrumentista, é fundamental. Também era uma das propostas do pessoal de composição de Brasília ter um contato estreito com as pessoas que estão produzindo o som, com o instrumentista, ao invés de ficar naquela redoma dos manuais. Pega o manual, estuda o manual, mas vai lá e pergunta a ele [ao instrumentista] como é que aquilo funciona realmente, se aquilo é fácil ou se aquilo é uma viagem de quem escreveu aquele manual. Isso foi importante. Eles faziam assim e eu ia na mesma linha do Rossi, do Cerqueira, do Kokron. A minha abordagem com o piano, o meu encontro com o piano para trabalhar foi assim”.

APRESENTAÇÕES PIANÍSTICAS

“Eu assistia, gostava de muitas. Outras, eu achava completamente, meramente virtuosísticas, coisas de demonstrar técnica, que geralmente são chatíssimas. Mas assisti bastante, bastante, e assisto. Eu gosto muito. Outro dia vi o [Arnaldo] Cohen tocando piano, parecia que as notas pulavam de dentro do piano. Eu fiquei extasiado ouvindo aquilo. Eu passei pela sala em que ele estava dando uma master class, tocando o [repertório] 170

tradicionalíssimo. Abri a porta com muito cuidado e me senti ali, silenciosamente. Fiquei ouvindo aquele cidadão tocar num piano hor-ro-roso e ele fazendo um som belíssimo. O piano não fazia juz. Eu gosto muito do piano tradicional, eu gosto muito do trabalho, particularmente, de Beethoven. Os últimos trabalhos para piano de Beethoven são belíssimos. Chopin...”

PIANO FRANCÓFILO

“O que falta é formação básica, Educação Musical. O fenômeno anterior do tal celeiro de pianistas, ele vinha em função da francofilia em que a gente vivia. A mulher, para ser prendada e estar apta a ser desposada, teria que tocar piano. Bem ou mal, mas teria. Teria que ter um piano de armário em casa para tocar. Então, isso ficou parte da cultura porque a gente achava que todos os franceses eram assim. Erro fundamental. Eles não tomavam banho nem tocavam tanto piano. (risos) Viva a França, mas cada qual no seu lugar, cada macaco no seu galho: „xô xuá‟. Não é tanto a Deus nem tanto ao diabo. Vamos ver essa coisa direito”.

O FIM DO PIANISMO NO BRASIL

“Eu creio que a diminuição que aconteceu agora [da quantidade de alunos de piano] é devido à Educação Musical estar periclitantemente desinformando ou inexistindo na vida da maior parte das pessoas no Brasil. Quando existe, ela é desinformadora e, na maioria das vezes, não existe. Essa batalha agora para a reimplantação [da Educação Musical no Brasil], como é que vai ser?”

MÚSICA CÊNICA

“Todas as minhas peças são cênicas, todas têm luz, eu sempre trabalhei assim”.

OS INTÉRPRETES

“Acabou-se, há séculos, com a disciplina Improvisação. Uma coisa que se fazia normalmente na época de Bach desapareceu dos currículos, não se faz mais. O instrumentista erudito não improvisa. Ele lê o que está escrito e está acabado. Isso já é uma mutilação enorme da criatividade do instrumentista. Ele não consegue propor mais porque ele é 171

obrigado a simplesmente reproduzir, da melhor maneira possível, o que está escrito. Eu convido o intérprete a participar – e a participar em nível composicional. Obviamente não com 50% porque aí, na verdade, eu estaria sendo preguiçoso, mas há uma proporção muito grande de participação do intérprete, de contribuição do intérprete para o meu trabalho... sempre, sempre, sempre, sempre. Geralmente os intérpretes vêm a mim, eles querem participar do meu trabalho. Eles gostariam de ter aquela liberdade. Desde que eu comecei a produzir os meus eventos, todo o meu grupo, que é a Batucada Anárquica, todos eles entraram em contato comigo e disseram que queriam participar do trabalho. Ótimo. E os que eu contratei, geralmente, eu tive que demitir porque não tinham a atitude necessária, não tinham generosidade para participar e compartilhar e as coisas começavam a ficar complicadas. Tampouco chegavam ao nível instrumental que era exigido deles porque nessa parte eu sou extremamente exigente. Eles têm que trabalhar muito porque eu trabalho muito. Os intérpretes adoram porque eles estão sempre tocando uma coisa que é muito importante para eles, do ponto de vista deles – eles é que me dizem. Eles dizem que a música flui quando eles tocam. A peça começa a jorrar deles. Eu acho fantástico. Tomei um porre por causa disso, meu ego foi para a lua. É disso que eu vivo, dessas situações de alegria, de feedback.”

O TRABALHO EM EQUIPE

“O Grupo de Compositores da Bahia começou a fazer uma série de trabalhos no Teatro Vila Velha. Nós ajudamos o pessoal de teatro a reformar o Teatro. Íamos para lá depois de meia-noite para carregar saco de cimento, bater prego. Não era chegar lá e ficar conversando. Era botar cimento, cimentar as coisas, aparafusar, pregar. Depois, começamos a participar do Teatro. Era uma atitude diferente. Não era aquela história de „alguém convidou.‟”

REALIZAÇÃO

PORTUGUÊS/INGLÊS

“As pessoas agora me obrigam a falar em Light Design porque falar em Projeto de Iluminação não tem impacto. Se você chega no teatro e diz: Olha, eu sou o Light Designer‟, é aquela: „Meu Deus, o Light Designer está aí! Chama o iluminador do teatro!‟ Quando eu dizia: „Olha, eu fiz o Projeto de Iluminação‟. Eles diziam: „a mesa está ali, tem umas escadas 172

aqui no fundo, então, você fica aí, à vontade‟. „Não, eu não trabalho com isso, eu não sei mexer! Eu fiz o Projeto!‟ „É, mas você acerta, você vai acertar, não se preocupe. Pega a mesa ali, a mesa é fácil‟. Até o dia em que eu disse: „Eu fiz o Light Design, eu sou o Light Designer‟. „Então, espera aí, tem que chamar o iluminador para lhe ajudar aqui‟. Agora, ninguém pode dizer mais nada porque agora eu falo em inglês. Assim como quando eu me refiro à minha postura e à minha trajetória como marginal, vários produtores e produtoras já me disseram: „marginal, não, pega mal: é Outsider‟. Gente, eu não vou falar que um sou um Outsider, pelo amor de Deus! Isso é bossal demais para mim. Eu posso até ser um pouquinho bossal, mas a tanto, eu não chego. Que diabo é isso? „Não, não. Marginal parece bandido‟. Ué, e tem alguma diferença? Eu estou na contravenção. Fizemos o que as pessoas não querem que se faça. Produzimos espetáculo a despeito da indústria cultural, você acha isso pouco?”

ROTEIRO

“Meu trabalho sempre foi experimental, sempre foi uma interface. Se houver um roteiro, é um roteiro sônico. É um roteiro sempre sobre o som. O concerto é um pacote. Se eu tirar uma peça dali, aquele concerto não vai ser mais um Interface 29. Ele poderá ser um Interface 30, mas Interface 29 não é”.

VIABILIDADE

“Quando eu comecei realmente a bancar tudo isso...a primeira coisa é a seguinte: tem que resistir. Não se pode recuar. Você não pode dizer: „ah, isso é impossível de fazer, é muito difícil, é muito caro...‟ Vamos fazer! Eu sempre falo para o meu pessoal: sempre o impossível. O possível é muito fácil. Vamos ao impossível. É por aí que a gente vai. Até 89 eu não participei diretamente da produção do meu trabalho. Alguém ia tocar e eu era avisado que ia ser tocado. Eu chegava e perguntava: e a parte cênica, e a iluminação? „Ah, não deu para fazer, não‟. Ou não teve tempo de ensaiar ou não tem dinheiro para fazer a iluminação. Eu ficava desesperado. Cada vez eu me sentia mais frustrado. Até que chegou em 89, eu já estava com 44 anos. Eu comecei a compor com 20 e poucos, 23. Desde 71 que eu estou na estrada como profissional. Então, em 89, já com 18 anos que eu estava na estrada, a única vez que eu consegui fazer um trabalho cênico – Light, Scenic e Sonic Design, foi nos Estados Unidos. Eles bancaram. Os festivais que participei eram festivais de música experimental. Quando eu cheguei, já estava montado. Maravilha. Aqui era um problema. Em 89, a Proarte 173

tinha uma série no [Espaço Cultural] Sérgio Porto que era um completo fracasso, não ia ninguém. Eu fui ver 2 ou 3 espetáculos dessa série e eu era praticamente o único espectador. Nem as avós dos instrumentistas iam ouvir. Chamava-se Humaitá Clássicos. O que se dizia era o seguinte: „Vamos terminar com essa série porque clássico... ninguém quer saber de nada‟. Eu fui pegar o último espetáculo da série. Cheguei lá e me disseram: „Tem esse espetáculo aqui, vai ser dia tal e não tem ninguém para fazer‟. Das duas uma: ou eu escrevia direto para a gaveta e nunca mais me metia nessa confusão ou eu me metia nessa confusão e fazia o que eu queria, o que eu acho que devia ser feito. Eu desconfio que eu prefiro morrer lutando do que ir para a cama e esperar. Aí, eu disse: Sabe o que é que eu vou fazer? Eu vou montar um concerto! Fui lá no [Espaço Cultural] Sérgio Porto, vi o que tinha de refletor. Eu nunca tinha trabalhado com refletor na vida. Peguei o iluminador, comecei a falar, a conversar. O Duo Barbieri-Schneider de violão – maravilhosos – eles já tocava uma peça minha. Quando podiam, faziam cena e luz. E me apareceu o Marcelo Coutinho, barítono, um excelente barítono. Queria trabalhar comigo. O Eládio Perez Gonzalez também queria trabalhar comigo. Tinha o Duo Diálogos, que estava começando e gostava muito do meu trabalho. Já tinham tocado umas peças minhas. Tocavam uma peça minha, Curva, com luz. O resultado, eles estavam achando fantástico. Então, eu já tinha um grupo que poderia trabalhar. Reuni esse grupo. Disse a eles que não havia cachê. A gente ia fazer por bilheteria, mas a bilheteria, obviamente, ia ser mínima porque vai se cobrar o quê do público, 100 reais de entrada? Só assim você consegue um cachê para os músicos. Era melhor fazer a 1 real e fazer uma coisa cultural. A 1 real era só para a manutenção do equipamento. Pronto. Ninguém ganha nada. O que se ganha é a experiência e a alegria de fazer arte. Todo mundo topou, felizmente, nessas condições claras. Todo mundo já sabia que trabalhar comigo era duro. Eu sou extremamente exigente de mim e dos outros. Fomos montar esse espetáculo que se chamou Interfaces 1. A Rioarte deu o nome de Csekö Especial, não me pergunte por quê. Houve essa dicotomia, essa incongruência. A Rioarte conseguiu certa divulgação. Eu fiz uma montagem de uma foto que tinha num jornal da Bienal, eu e outros compositores. Cortei os outros compositores e fiquei sozinho na foto. Fiz uma xerox. Fiz um cartazinho com aquilo. Isso era 1989. Saí com um bolinho de xerox, distribuindo a todo mundo, botando em todos os bares. Vamos ver o que vai acontecer. Quando cheguei no [Espaço Cultural] Sérgio Porto, o [Espaço Cultural] Sérgio Porto estava entupido, as pessoas queriam invadir porque não queriam ficar do lado de fora. Entraram pela janela do banheiro, foi uma confusão. Isso, eu só soube depois porque eu estava lá dentro fazendo o concerto. Quando eu saí é que eu vi aquela multidão. O que é que aconteceu? Não sei, não deve ser por minha causa única e exclusiva. 174

Daí por diante, imediatamente, disseram que eu tinha uma experiência enorme em produzir concertos, que eu tinha um conhecimento de iluminação fantástico, que trabalhava com isso há muito tempo e que montar concertos era comigo porque eu tinha uma experiência enorme. De onde e como? „Talvez, nos Estados Unidos...‟ De repente, as pessoas criaram essa lenda urbana a meu respeito, o que eu fui saber passando numa roda. Ouvi uma pessoa dizendo: „O Csekö tem uma experiência enorme de montagem‟. „Já que eles estão dizendo, então, eu tenho e acabou‟. Daí por diante, eu comecei a montar os meus concertos. Comecei a enviar projetos para a Prefeitura... Com a repercussão que esse concerto teve nos meios musicais... Não foi uma repercussão enorme, gigantesca, mas quem viu ou ouviu falar ficou extremamente curioso. Não estou dizendo que gostaram, mas ficaram curiosos de saber o que era aquilo que tinha acontecido. Como montagem, as pessoas ficaram literalmente mesmerizadas porque „Como é que conseguem montar um concerto com luz, cena, som, do nada?‟ – aparentemente do nada. Eu não tinha patrocínio algum. Como é e que um evento estapafúrdio como esse, todo experimental, consegue atrair um público desse porte? Começou a haver uma possibilidade de chegar à Prefeitura e dizer que tivemos um público enorme e um projeto de uma série de concertos. Apresentar à Shell, à Esso... é uma atitude continuada. Resistência passo a passo. Isso dá resultado.”

O PÚBLICO

OS ESPETÁCULOS

“Os concertos são curtos, relativamente, não duram mais de uma hora. Não há intervalos entre as peças no sentido do intérprete chegar lá, se curvar e aí a plateia aplaude e eles se curvam de novo e a plateia aplaude...não há essa defasagem. Tudo compacto. Quando um grupo de intérpretes está saindo, outro já está se posicionando em luz de serviço. Quando ele [o intérprete] se posicionou, que são segundos, dá o Blackout, acende a luz da peça e já começa outra peça. Uma peça atrás da outra, muito bem encaixadas. Peças com um enorme volume de som dão lugar a uma outra peça com um volume de som mínimo. Peças com uma ampla gama instrumental são precedidas ou procedidas por peças com uma delicadeza... mínimas. No último concerto que eu fiz, nos dois últimos, o concerto terminou, claramente. Entra a luz de final, todos os intérpretes vêm à cena, são aplaudidos. Agora se via os intérpretes porque durante o concerto não se via direito. Eles são parte de uma cena, de uma iluminação, eles não são focados, a não ser que haja uma parte cênica onde o intérprete 175

apareça enquanto intérprete. O concerto estava terminado, eles foram aplaudidos. Saíram, voltaram, aplaudiram, ficou aquela luz...não ia acontecer mais nada e a plateia ficou sentada. Ao invés de começar a conversar alto, eles estavam conversando baixo. Eu [fiquei] sentado na mesa de luz, sem querer me levantar também, esperando que começassem a sair. Daqui a pouco, alguém se levanta e começa a sair lentamente. As pessoas vão saindo, escoando, vão até o palco e ficam por ali. Eu não sei o que é que eles... Não estão cansados? Estão chocados?”

RECEPÇÃO

“Eu sempre tive público, eu nunca tive problema de público. Meus concertos nunca tiveram pouca gente. Eu sou um caso à parte, talvez, não sei bem por quê. Uma coisa é o seguinte: o trabalho é muito bem feito. Não no sentido de composição, mas os concertos são muito, muito bem montados. O público está sempre sendo tomado, ele está sempre atento. Se gosta ou não gosta, eu realmente não sei porque eu nem me preocupo com isso. Eu procuro fazer o melhor possível. Várias pessoas em vários concertos vêm me perguntar o que é isso, [ dizem] que foi muito esquisito, que vão voltar. Que eu me lembre, foi lá no [Serviço Social do Comércio] (SESC) Belenzinho, uma peça sinfônica: a Ambiência 2 – a Ambiência 1 é para piano, voz feminina e violoncelo, que foi uma das primeiras peças minhas, de 71. A Ambiência 2 é de 2001, é dedicada às minhas irmãs: tem luz, Projeto e Luz, (Light Design). Lá no SESC Belenzinho, foi sábado e domingo com Sinfonia Cultura, com o Lutero Rodrigues que, encomendou essa peça: tremendo regente, tremendo empreendedor cultural, uma pessoa fantástica. Ensaiou a peça. Os regentes, geralmente, não ensaiam. A orquestra não quis tocar, ele obrigou a orquestra a tocar e no segundo dia eu fiz uma fala rapidíssima. Quando terminou, veio um casal de senhores, mais ou menos da minha idade: „A gente queria conversar com você. A gente veio ontem e achou muito esquisito, isso‟. Ah, é? Que bom! Se você me disser que a minha peça é uma porcaria, eu vou dizer – Que bom! Se você me disser que a peça é ótima, eu vou dizer – Que bom! Eu não tenho problemas. O meu ego é muito grande para eu me preocupar com isso. Não é humildade. Já me disseram que eu era bom quando eu comecei, eu ouvi falar. Eu ouvi os meus professores numa reunião discutindo o meu trabalho. Aquilo que eu ouvi...eu fiquei maravilhado. De outra vez eu ouvi também, nos Estados Unidos, o pessoal discutindo o meu trabalho. Eu estava limpando a outra sala porque eu era servente à noite e o departamento estava discutindo o meu trabalho de Mestrado. Eles não sabiam que eu estava lá. Eu não era servente do departamento de música, eu era servente 176

do hospital. Fui para lá porque o servente faltou. Eu estava lá, fiquei escutando a reunião. Então, é impossível... um casal de senhores disse: „Eu sou operário, trabalho na Indústria, ela é dona de casa e a gente não conhece nada disso. Foi muito esquisito e aí, a gente veio de novo. É muito esquisito, viu?‟ Tá certo, muito obrigado. Apertamos as mãos. O retorno do público é esse.”

PÚBLICO ESPECIALIZADO

“Do público especializado, uns acham uma maluquice, acham que é uma grande bobagem. Outros acham que eu tenho um trabalho fantástico, muito bom. Tanto, que eu sou convidado para fazer palestras, para fazer apresentações. Alguns acham que eu sou completamente maluco, o que eu acho fantástico. Tomara que eu continue assim”.

PERSONALIDADE

BASTIDORES

“Eu não gosto de aparecer, eu sempre estou no escuro, nas mesas de som e de luz, ninguém sabe quem sou eu, eu nunca apareço. Sabem meu nome, mas eu nem gosto de ser fotografado, eu sou muito tímido. A minha fotógrafa oficial é a minha filha, ela tem umas fotografias minhas completamente diferentes. Ela é uma artista visual. Eu tenho duas filhas que são artistas visuais”.

VIDA E OBRA

“Essa é a minha vida. Se eu não fizer isso, eu não sei o que fazer, eu pulo pela janela. Eu não tenho mais o que fazer na vida. Ou eu faço música ou então eu não sei o que fazer, estou morto. Você não me pergunte o que é que eu vou fazer quando eu secar como compositor – porque vai chegar o dia. Espero que demore bastante. Eu tenho a Educação Musical. Eu trabalho nessa área com Oficina de Linguagem Musical, que é uma atividade muito rica. Fe-liz-mente. Se não, eu não saberia o que fazer. Provavelmente, eu terminaria me suicidando por falta de opção na vida.”

POR ACASO OU NÃO? 177

“Claro que eu sou uma pessoa extremamente antenada, o tempo inteiro perscrutando o que está acontecendo, como as coisas se desenrolam, ou seja, as coisas não caem no meu colo. Eu trabalho para que elas caiam. Mas que caem por acaso, caem.”

LIBERDADE E OUSADIA

“Eu me recuso a vender o meu tempo. Eu utilizo o meu tempo de uma maneira extremamente definida, clara. Eu trabalho em certos horários, em certas situações e eu faço um rendimento „x‟ que me permita sobreviver e não mais do que isso. O resto eu trabalho, realmente. Eu não vendo o meu tempo porque eu preciso de tempo para ficar ouvindo o que está acontecendo, ficar olhando pela janela... Eu já estou com 65 anos. Então, é muito tempo de estrada. Eu tenho uma conferência sobre o meu trabalho que se chama Trajetória em corda bamba, só para você ter uma ideia de como eu vejo a coisa‟. A minha trajetória é uma trajetória em corda bamba, eu nunca sei se eu vou cair no próximo passo ou não, eu nunca tenho ideia. Eu vivo dia após dia, eu não tenho um planejamento assim: „amanhã eu vou subir na carreira acadêmica ou eu vou...‟. Eu não tenho isso. A vida vai rolando e eu vou vivendo a minha vida literalmente ao acaso. Eu optei por isso há muito tempo, quando ainda tinha uns 16 anos e essa opção que eu fiz começou a ser elaborada no decorrer desse tempo, com o que eu ia enfrentando, e provou ser a melhor opção para mim em termos do artista, da maneira que eu vivo, que eu faço arte, como eu me relaciono com a vida e...comigo mesmo. Tudo ocorre, não como um fatalismo, mas eu acredito muito no acaso. Eu trabalho musicalmente com o acaso. Eu fiz colégio militar. Eu deveria ser o quê? Um militar, um engenheiro, um geólogo. No segundo ano da universidade, nessa época, nos anos 60, se você fosse um engenheiro, um geólogo, um médico, você já estava com a vida definida, você estava nos trilhos: carro, apartamento... sua vida já estava nos trilhos, já estava re-sol-vi-da, só que eu não queria nada disso.”

178

APÊNDICE B - Tim Rescala: humor e ecletismo

Tim Rescala nasceu na capital do Rio de Janeiro, em 21 de novembro de 1961. Luiz Augusto Rescala adotou como nome artístico o apelido de infância. Nascido em família de músicos, iniciou seus estudos com a pianista e professora Maria Yeda Caddah, na Escola de Música da UFRJ e na Escola de Música Villa-Lobos. Uma vez havendo identificado certa falta de disposição dos ouvintes em aceitarem a então música contemporânea, resolveu enveredar por atividades, dentro da música, que lhe permitissem prosseguir optando e militando pela liberdade de escolha dos próprios caminhos musicais, pelo experimentalismo. A exigência da dedicação exclusiva dos pianistas ao estudo do instrumento também colaborou para a opção do autor em buscar os estudos de Composição, percorrendo outras trajetórias e integrando-as, inclusive, a outras linguagens artísticas. Mesmo havendo recebido, ainda muito jovem, convites para uma formação em nível superior nos Estados Unidos, optou por permanecer no Brasil. Estudou com Vânia Dantas Leite, Carole Gubernikoff, Marlene Fernandes e José Maria Neves na Escola Villa-Lobos e particularmente com Hans-Joachim Koellreutter. Conquistou importantes prêmios como compositor, afirmando, em sua obra, personalidade muito própria e marcante e atuando na música eletroacústica, música de cena, música cênica e música-vídeo. Cursou Licenciatura em Música na UNIRIO. Os reflexos da Educação Musical vivida no curso de Licenciatura em Música transparecem em seus trabalhos dedicados ao público infantil, que constituem parte importante, sólida e representativa em sua carreira e no conjunto da sua obra. Além de pianista e compositor, Rescala é ator e autor teatral. Atua nas áreas da música erudita, música popular e música de cena, além de trabalhar como produtor musical, criando roteiros para televisão, vídeo, ballet. É arranjador e produtor musical da Rede Globo de Televisão. O humor permeia sua obra, assim como os aspectos cênicos, inclusive na produção de música de concerto: um trabalho que atrai o grande público, tendo alcance nacional e internacional. Rescala é um dos fundadores do Estúdio da Glória, importante referência da música eletroacústica no Rio de Janeiro. Suas peças são presença regular nas Bienais de Música Brasileira Contemporânea, nesta cidade. 179

Ópera, opereta, musical, música cênica: Rescala passeia por tais gêneros sem cerimônia, sem se prender a formas, fórmulas ou regras. Caminhando livre pelos estilos musicais, vê como necessária a manutenção das apresentações tradicionais da música de todos os períodos da História em seus formatos e locais de praxe em paralelo ao exercício e divulgação da música experimental. Preocupa-se com o distanciamento entre plateia e música de concerto. O ecletismo que demonstra grande flexibilidade no trabalho de Rescala demonstra também sua capacidade de atender a demandas diversas: música para comerciais de televisão, música eletroacústica para participação em festivais de música contemporânea, música para shows de humor ou música para espetáculos infantis. O compositor indica os intérpretes como componentes importantes na produção artística e como grandes aliados na produção executiva – realização – da apresentação de sua obra. Ele entende que a formação de equipe disposta, disponível e competente para atuar diante das demandas particulares do seu trabalho constitui condição fundamental para que as peças sejam bem apresentadas. Essa equipe envolve, além de intérpretes aptos para o atendimento às peculiaridades do repertório a ser realizado, técnicos de luz e som, diretores de cena, atores, bailarinos, artistas plásticos, e todo tipo de profissional que se fizer necessário para fazer a música acontecer em cada caso específico. O compositor considera a possibilidade de os intérpretes assumirem a direção desse processo de criação e produção, construindo o formato de suas próprias apresentações. Entretanto, adverte ser necessário o exame criterioso, caso a caso, da necessidade e da conveniência na adaptação das obras. Performances são versões de obras, assim como arranjos são versões de obras. (KIVY, 1995). A interferência dos intérpretes na obra tem apenas o limite do bom senso, embora esse critério seja extremamente vago. Reconhecido o valor positivo da intervenção dos intérpretes na obra – mesmo as de linguagem tradicional – a fim de que tal trabalho artístico seja convincente, reafirmada será a causa, segundo Rescala, de tornar as obras de arte eternas mediante a capacidade de renovação das mesmas e não através de manutenção intocada e intocável nas suas formas de apresentação.

ENTREVISTA COM O COMPOSITOR TIM RESCALA, NO ESTÚDIO DA GLÓRIA, NAGLÓRIA (RJ), EM 15 DE OUTUBRO DE 2010.

FORMAÇÃO

INICIAÇÃO 180

“Eu fiz Iniciação Musical. Fiz um pouco no Conservatório Brasileiro de Música, mas fiz também na Escola de Música da [Universidade federal do Rio de Janeiro] (UFRJ). Com a professora Aída, eu fiz o preparatório. Antes de estudar com a Professora Maria Yeda Caddah, eu tive umas aulas com uma professora de bairro. Eu me lembro de ter tido aula também de acordeon, antes de ter aula de piano. Quando eu passei a trabalhar já com música popular, como arranjador – que teve aquela leva dos nordestinos [entre as décadas de 1970 e 1980 na indústria fonográfica brasileira] e o instrumento passou a ser requisitado. De vez em quando eu até toco, em algumas situações. Continuei a estudar piano e fiz outros cursos livres. Comecei a fazer um curso de Música Contemporânea. Fiz curso com a Vânia Dantas Leite, com a Carole Gubernikoff, com o José Maria Neves, de música eletroacústica, com a Marlene Fernandes. Na época, o diretor da Escola [de Música Villa-Lobos] era o Aylton Escobar, que não dava aula, mas que exercia uma influência: ele fez uma encomenda aos alunos de composição, coisa que nunca mais tive oportunidade de fazer. Eu era contemporâneo do Tato Taborda, que sempre foi meu colega de composição e, depois, com o Koellreutter. „Vocês vão fazer música para um quinteto de sopros: o quinteto vai tocar. Vão apresentar aqui no auditório e eles vão falar sobre a sua música, os próprios instrumentistas‟: „Olha, está errado, não é assim que se escreve‟. Assim é que deveria sempre ser num curso de composição: você poder ouvir sua música. Essa experiência minha se conduziu numa certa direção até mais ou menos 79, 80. De 79 para 80 a coisa mudou muito. Foi uma fase muito peculiar porque eu ia fazer 18 anos e ia entrar na Faculdade, a UNIRIO, em 80. Eu tinha feito um curso de música contemporânea que foi realizado no Brasil alguns anos. Cada ano era em um país. Nesse curso, eu tive contato com vários compositores interessantes de outros países: da Europa, Estados Unidos. Foi quando eu conheci o Koellreutter, que deu palestra, deu aula nesse curso. Inicialmente, eu não gostei do Koellreutter porque eu achei ele muito radical. Na semana seguinte, eu já estava estudando com ele. Foi muito enriquecedor. De 1980 a 1983, em que cursei a UNIRIO, eu estudei composição com o Koellreutter. Ele estava no Rio.”

PROFISSIONALIZAÇÃO

“Eu tenho um amigo que diz que o pai dele o obrigou a ser músico, que ele queria ser médico... brincadeira [risos]. Eu acho que com 15 anos eu já tinha resolvido ser músico. Foi quando eu fui fazer prova para a Ordem dos Músicos: eu já estava começando a dar aulas de piano, de violão, de harmonia... tentando viver disso. Eu já tinha visto que era isso que eu ia fazer, estava inventando o que fazer e arrumando dinheiro. Tocava em igreja, inicialmente, 181

como „sub‟ da minha mãe, que tocava em igreja. Comecei a tocar órgão. Por incrível que possa parecer, eu considero essa uma experiência muito boa porque não só tocava o repertório tradicional para órgão – porque eu cheguei a tocar órgão com pedaleira e tudo – mas também tinha o lado mais popular dessa música, no caso, no âmbito da música católica e de correr atrás dos cantores. Tinha uns cantores lá... tinha uma cantora , de uma igreja, que a cada estrofe ela descia meio tom, um tom, então eu corria atrás... Eu pensava em ser compositor, abracei a composição: „O que eu quero é ser compositor de música de concerto‟. Ao mesmo tempo, trabalhava como arranjador, como pianista de música popular. Tive o primeiro contato com John Boudler, que é um percussionista americano. Não sei se ele se naturalizou, ele já está no Brasil há muito tempo. Ele teve uma importância muito grande e ainda tem como compositor de uma geração, várias gerações de percussionistas. Ele mora em São Paulo. Ele tinha um grupo chamado Percussão agora, um quarteto de percussão. Um dia, apresentando um concerto, ele passou o cartãozinho: „Estamos à cata de peças de compositores‟. „Ah! Vou me aventurar!‟ E houve a estreia dessa peça que eu acabei compondo para o grupo do John Boudler, na Universidade de Bufallo. A peça foi muito bem recebida. Tinha um compositor chamado Lejaren Hiller: „Se você ficar interessado, eu consigo uma bolsa. Você vem estudar aqui‟. Em Bufallo, existia um centro de multimídia. „Ao invés de fazer faculdade no Rio, você faz aqui‟. Resolvi não ir: o que seria, para a maioria das pessoas, considerado uma insanidade. „Vou ter essa experiência com o teatro, vou fazer a UNIRIO e vou estudar com o Koellreutter‟. Foi bom. Eu não tinha a menor intenção de ser professor de música. Depois, eu passei a ter interesse pela Educação Musical, mas não havia nada premeditado nesse sentido. Eu escolhi Licenciatura porque era o mais fácil. Como eu já tinha vivência musical, em várias aulas, eu era liberado. Eu tinha que ir à luta por trabalho. Tocava de noite, tocava no que quer que fosse. Ao mesmo tempo, estudava composição com o Koellreutter, particular. Foi quando eu comecei a ter, efetivamente, experiência com o teatro. Depois da primeira peça como diretor e trabalhando como pianista, eu fui emendando uma atrás da outra. Essa história de tocar piano e fazer uma ceninha...”

BERÇO

“Eu sou filho de músicos, de cantores. A minha mãe é viva ainda. Ela cantava em igreja, era soprano. Meu pai era barítono no [Teatro] Municipal, do coro do [Teatro] Municipal. Tenho um irmão que é cantor também do Municipal, do coro, mas é tenor. Convivemos com música desde cedo. Na verdade, eu nunca pensei em fazer outra coisa na 182

vida, a não ser jogar bola. Mas eu sempre estive dentro da música de alguma forma: assistindo ópera no [Teatro] Municipal – éramos habituados a frequentar por causa do meu pai – ou indo para a igreja com a minha mãe porque ela não tinha com quem nos deixar. Absorvíamos essa vivência musical. Nós começamos a estudar música cedo.”

EXPERIMENTALISMO

SUPORTE ELETRÔNICO

“Compunha alguma coisa de música popular, mas aquilo que eu achava que era o meu objetivo era ser compositor de música erudita, música de concerto, experimental, porque me interessava, por exemplo, a música eletroacústica. Esse interesse veio também dessa vivência de rock progressivo, de sintetizador. Eu sempre gostei desse tipo de coisa e me interessava o trabalho com o gravador. Música eletroacústica, na época, era com corte de fita magnética. Comecei com gravador de dois canais, Akai. Era o que tinha na época, usava-se em teatro. Isso eu fui aprendendo, fui me interessando. Hoje em dia, nem se imagina o que a gente tinha que fazer em corte de fita. Na época da Copa do Mundo de 1982 eu pegava uma narração de futebol e cortava as pausas. Procurava dentro dessa narração onde é que estava a música. Eu pegava a narração de um jogo do Brasil: „Zico, Zico, Zico; Sócrates, Sócrates, Sócrates, Sócrates‟ e fazia uma música com isso... o tempo mais apertado, apertava ainda mais aquilo que era a aflição do espectador do jogo de futebol, do Brasil na Copa do Mundo”.

MÚSICA CONTEMPORÂNEA: O CLICHÊ

“O Clichê Music que também é uma peça, dentro do meu trabalho, bastante representativa, é de 1985: receita de como fazer música de vanguarda. Foi apresentada na Bienal de 85, pela qual eu conquistei alguns inimigos involuntários porque a peça foi programada para o meio do concerto e depois da apresentação dela tinha outras que eram iguais e eram sérias. Eu comuniquei à organização: „Não é bom, é melhor botar no final‟. Deu no que deu. Mas a peça, obviamente, surtiu efeito porque ela era uma crítica bombástica, era até uma autocrítica, a utilização desses clichês dentro do contexto da música contemporânea. Foi uma peça muito apresentada e continua sendo muito apresentada, no exterior... Nela, eu brincava não só com o estilo como com a situação do concerto em si: a postura do músico dentro desse contexto.” 183

O PIANO

“Sempre fui interessado no instrumento, em piano. O meu instrumento sempre foi piano. O meu percurso inicial e natural era o de pianista. Eu queria ser concertista, isso até 17, 18 anos, quando eu passei a ter vontade de ser compositor. Esse percurso seria naturalmente o de tocar piano, o de ser concertista. Mas, logo na apresentação de final de ano, desse curso da Escola de Música [da UFRJ], que eu estudava com a Professora Maria Yeda Caddah – eu lembro que tinha desde o pequenininho até os mais graduado. Eu estava mais próximo do final, resolvi tocar música contemporânea: tocar o Klavierstück de Stockhausen. Quando eu acabei de tocar, a plateia, que eram os pais das crianças e os alunos, ficou ali, olhando para mim, estatelada, nem bateu palmas. Não entendeu o que é que eu estava fazendo ali. „Quem é aquele maluco cabeludo lá?‟ Na época, eu era cabeludo, cabelo grande. Eles não identificaram aquilo como música. E eu comecei a me interessar pela composição. Eu já compunha algumas coisas de rock progressivo e algumas coisas parecidas com peças para piano solo, muito influenciadas por Bach, pelo que eu tocava. Escrevi prelúdios para piano. Comecei a entender o que era uma fuga sem estudar composição. Eu entrei nisso depois. Mas eu olhava nas partituras: „tem uma voz aqui!‟ No caminho das vozes, entender como a coisa funcionava... e ia escrevendo. Era um prazer. Eu queria fazer aquilo. Se eu ia ganhar dinheiro e como, eu não sabia. Eu sempre fui relapso como estudante. Quando eu estudava com uma professora particular, que não era essa que eu falei antes, que era uma cantora do [Teatro] Municipal, amiga do meu pai, que era professora de piano... quando eu ia para a aula, vestido de futebol, do time, imundo... jogava futebol e ia para a aula... não estudava nada, mas tinha facilidade. No entanto, o ato da criação sempre me estimulava mais e essa carreira de piano eu vi que ia abandonar logo. Eu cheguei a fazer um primeiro concerto, um concerto só, como pianista. Eu escolhi um repertório de música contemporânea e essencialmente de compositores brasileiros. Eu acho que eu devia ter uns 17 anos. A Professora Maria Yeda Caddah preparou algumas peças comigo. Isso foi na Escola Villa-Lobos, onde eu estudei também, com a própria Maria Yeda Caddah. O piano em si, pelo repertório que existe na música não só do século XX, mas da História da Música, é um instrumento que tem um papel não digo preponderante, mas de grande importância. Um repertório vasto, importante. Não só por isso: ele é um instrumento muito poderoso, com um som poderoso, grande, que ocupa muito espaço. Ele, em si, pode gerar um monte de coisas. A gente pode tocar no teclado e fora dele, dentro do piano. No Pianíssimo, o cenário era o piano, só o piano e mais nada. Era um piano que abria a tampa. Saía uma porção de coisas de dentro. Eu mesmo já fiz cenas curtas em televisão. No ano 184

passado, no Criança Esperança, fiz uma cena brincando com ele, com as teclas. Era um piano falso. Um sampler preparado. Eu brincava, era engolido pelo piano. O piano gera muita coisa cênica: a situação, o pianista. Eu não preciso nem tocar. Dá para usar o piano numa situação cênica do ato de tocar piano sem tocar. Só a entrada ou a saída [do palco] já gera um monte de coisas. Vários atores e humoristas fizeram coisas assim.”

MÚSICA CÊNICA

PERFIL

“As minhas obras passaram a mudar de perfil: não eram mais música pura, música para instrumentos, já adquiriram característica cênica, o que eu comecei a fazer em 79, já no contexto da música eletroacústica. Incorporar texto, fazer montagem de música mista, colagens com material de rádio: isso eu fiz até antes desse trabalho com cena.”

CENA

“Percebi uma mudança considerável, quando eu comecei a trabalhar com teatro. Até então, eu ganhava dinheiro, através da música, dando aulas, tocando órgão em igreja ou tocando música popular. Na época, até dava algum dinheiro fazer show de Música Popular. Fui chamado para fazer a direção musical de uma peça. A peça virou um sucesso. Essa peça era a Happy End, de Brecht e Weill. Essa experiência mudou muito a minha forma de encarar não só o fato musical, mas o fato de estar em cena porque eu tocava ao vivo como pianista e, no meio da peça, como a adaptação do grupo tinha menos atores do que o texto pedia, precisava morrer alguém e não tinha mais quem morresse: „O pianista vai morrer!‟ Depois, tinha que ressuscitar. Eu fiz uma palhaçada qualquer, que fazia sucesso. Na peça seguinte, já me chamaram: „Tem um pianista lá, que é bom e faz umas palhaçadas‟. Passei a fazer isso. Fui fazer um curso latinoamericano na República Dominicana, durante duas semanas em janeiro de 80. Nesse curso de música contemporânea, na mesma época, logo em seguida, na apresentação final dos trabalhos, eu escrevi uma peça para piano: durava um minuto. Eu não queria tocar. Eu queria que um [outro] pianista tocasse naquele momento. Fiquei procurando um pianista que quisesse tocar. Estava lá, dando aula, a Beatriz Roman, que era uma pianista que tocava música contemporânea e que topou tocar a minha peça na apresentação dos trabalhos de composição. Na plateia, estavam compositores do mundo todo, conceituados, e 185

eu queria apresentar a peça que durava um minuto! A peça anterior à minha era para piano preparado. Ela [a pianista Beatriz Roman] me explicou: „Olha, tudo bem, eu vou tocar a sua peça. Antes, eu vou tocar uma peça para piano preparado e preciso despreparar o piano: tirar de dentro parafuso, borracha... Explica a sua peça, fala sobre a sua peça enquanto eu tiro as coisas do piano‟. „Falar o quê? A peça só tem um minuto. Não tenho nada para falar!‟ Eu não tinha o que dizer! Comecei, obviamente, a falar bobagem e no meio daquilo que eu falava, ela puxava alguma coisa e o piano fazia „TÓIM!‟, „TÉIM!‟ e as pessoas começavam a rir. Eu virava para trás: acabou? „Não‟. „Aí, não sei o quê, essa peça...‟ Inventava coisas na hora. As pessoas começavam a rir na plateia achando que era aquilo, a peça. No final: „Agora, vamos ouvir Cambiante, para piano‟. Quando ela começou e terminou – durava um minuto – caíram na gargalhada. Aplausos! As pessoas adoraram e a pianista riu também achando que era aquilo o que eu queria. Não era nada disso. Era uma peça séria. Eu vi que aquilo poderia gerar alguma coisa interessante: „Tem alguma coisa aqui que talvez eu saiba fazer bem‟. Depois, essa experiência com o teatro: o fato de ter feito essa cena foi mais um elemento. Comecei a incorporar isso inicialmente juntando essa experiência com música eletroacústica, com cena. Eu fiz uma peça chamada Salvem o Brasil, para fita magnética e três atores: os atores que trabalhavam comigo, na época – Pedro Cardoso, Felipe Pinheiro, Stella Miranda. Fizemos um espetáculo que durava 20 minutos, que apresentamos na praia. Botávamos um sistema de som e fazíamos em vários lugares: em praça pública... espetáculo de rua. Apresentei na Sala Cecília Meireles, também. Isso passou a ser uma coisa natural, para mim. Eu passei, então, a fazer peças nitidamente de teatro musical e me interessei, particularmente pelo texto, pela capacidade do músico em falar um texto e trabalhar com isso que eu passei a chamar de música da fala. Teve outra que eu fiz em 1979, com fita: chamava-se Discurso da Difamação do Poeta. Foi uma exposição de um desenhista chamado Evandro Salles. Essa peça teve uma versão cênica: para um ator e cena. O ator foi o Antônio Grassi. Eu usava um texto do Affonso Ávila, que é um poeta mineiro, que se chamava Discurso da Difamação do Poeta. Intercalava a interpretação desse texto com essa fita com colagens. Salvem o Brasil, que era de 1982, mais tarde virou uma peça maior. Em 1987, eu fiz o Concerto em Do Maior para piano e orquestra no qual a orquestra não aparece e há um embate entre a pianista e o maestro contra outros quatro músicos, cada um tocando um estilo diverso: um tecladista de vanguarda, um contrabaixista de jazz, um baterista de heavy metal e um saxofonista de gafieira. Os quatro contra a pianista e o regente. Após um texto inicial que na estreia foi lido pelo Luiz Paulo Horta, é só música. É um embate cênico porque o embate acontece todo ele cênica e sonoramente”. 186

CENA NATURAL

“Eu passei a trabalhar com o instrumento, com a situação cênica do concerto, especificamente, e a usar tudo o que acontece na sala de concerto, não só no palco como na plateia. Eu também brinco com a partitura, o que também é uma situação engraçada: a situação da paginista. Eu já fiz muito isso, com a paginista virando onde não tem que virar, rasga as partituras...”

TEATRO

“Quando você coloca o instrumento dentro da cena e fala com o instrumento, ele passa a ser um personagem. Escrevi uma peça chamada Pianíssimo. Foi no desenvolvimento de Estudo para piano, peça para piano solo que durava 3 minutos e pouco, que eu escrevi o primeiro texto teatral, em 92, a partir dessa situação. Eu achei que o teatro infantil seria o ideal. A história da peça é uma menina que estuda piano obrigada pela mãe. Tem um momento em que ela se revolta. Fica de castigo. A professora dela, que se chama Da. Euterpe usa régua para dar aula, coisa que aconteceu comigo. Ela se revolta e chuta o piano. O piano fala com ela: „Ai! O que é isso?‟ Dentro do universo do teatro infantil, isso é possível. O piano começa a conversar com ela e de dentro dele sai um monte de coisas. Sai o personagem que era o piano em si, que era uma figura meio mozartiana, que conversava com ela. Sai uma bailarina... Isso foi um estímulo para que eu passasse a escrever para teatro. Inicialmente dentro desse universo do teatro infantil. Depois, outras coisas. Ópera... Tem uma outra peça, o Romance Policial, que é uma peça de 15 minutos em que cada músico assume um personagem de uma história policial, para 7 instrumentos. O regente é o narrador. Então, eu regia e narrava a história. O solista é o detetive: o Aranha, que o Rodolfo Cardoso fazia. Todos eles tocando e falando ao mesmo tempo. A mocinha, a Maria Teresa [Madeira] fazia. Tinha a loura fatal e diabólica, que era a Monique Aragão. Cada um assumia um personagem. Tem uma peça chamada A dois para um casal – inicialmente, um casal de percussionistas. Tocam sempre em dois por quatro, embora você sinta que é uma coisa totalmente irregular, bastante complexa de ritmo. É sempre a dois, mas você não sente essa pulsação. É um embate entre o casal: o casal brigando e depois se reconciliando. Tem uma outra peça em que eu trabalho com voz mas de uma forma completamente diferente, que é o Cantos para voz solo em que eu trabalho com tipos de cantos diferentes, emissões diferentes e posturas diferentes dos intérpretes. Tem uma versão com a Carol McDavit, outra com a Martha Herr. A Márcia 187

Taborda também já fez. A maioria das óperas que eu escrevi, eu mesmo fiz o libreto. Assim foi com A Orquestra dos Sonhos, foi com O Cavalinho Azul, foi com a Redenção pelo Sonho, que é uma peça sobre Monteiro Lobato. E fiz a partir de outros autores: musicais como A Turma do Pererê e O Cavalinho Azul, sobre o texto da . Hoje é dia de Maria é uma ópera audiovisual. Hoje é dia de Maria 2 é um musical”.

MÚSICA POPULAR

“À medida que eu tinha esses ensinamentos mais tradicionais, praticava música popular. Nunca ninguém falou que fizesse ou não fizesse. Em casa nunca houve direcionamento nesse sentido, a não ser uma indecisão por parte da minha mãe: „Ah, meu Deus! Meu filho vai virar músico! E agora? Não vai ganhar dinheiro!‟... aquelas coisas, absolutamente normal. Fora isso, eu sempre tive estímulo. Ninguém disse „Não vai poder‟. Eu nunca tive isso em casa. No meu caso particular – que não é caso raro no Brasil ou na América Latina, mas eu acho que na Europa, sim – eu sempre pratiquei a música popular e a música erudita juntas. São coisas completamente diferentes: uma alimenta a outra. No caso da música popular, inicialmente era uma questão de mercado. Mas eu também fazia porque gostava. Gostava de tocar choro, gostava de tocar rock, na fase adolescente. Teve uma época em que eu me cansei do ensino acadêmico de Música Erudita. Estava na fase que todo adolescente tem, meio de revolta contra o quê a gente nunca sabe. Eu saí um pouco da Escola e fui tocar rock. Tocava guitarra também. Eu cheguei a tocar violão, um tempo. Mas não abandonei o piano. Foi a fase do rock progressivo. Conjuntos como o Yes, o Gênesis... A questão dos sintetizadores também sempre me encantou. Por causa do rock progressivo eu acabei voltando ao ensino tradicional de música porque uma coisa leva a outra. O que me levou a sair também me levou de volta – rock pauleira, no início”.

MÚSICA POPULAR, MÚSICA ERUDITA, MÚSICA DE FRONTEIRA: CADA UM NO SEU QUADRADO?

“Existe um meio termo, uma fronteira [entre a música popular e a erudita] que passou a se chamar, inclusive, de música de fronteira, que não é nem uma coisa, nem outra. Eu até criei um quinteto instrumental que lida com esse tipo de interface, dessa fronteira entre o erudito e o popular. Vários compositores estão nessa fronteira. Só que é preciso entender bem qual é a finalidade de cada coisa. Música popular é música popular, música erudita é música 188

erudita. Mas isso não quer dizer que uma não possa influenciar outra e as duas não possam dialogar e gerar uma terceira coisa. Eu admito a existência das três coisas. Eu não tenho preconceito com nenhuma delas. Eu só tenho preconceito quando se tenta fazer uma coisa com cara de outra, meio mascarada: cada coisa no seu lugar. Não tenho preconceito contra qualquer tipo de música que seja a não ser música ruim, que tem em qualquer gênero ou estilo.”

RISCOS E DESAFIOS, OUSADIA E FLEXIBILIDADE

“Nessa experiência com o teatro é que eu fui me deparando com desafios. Por exemplo, eu fui trabalhar com o Pedro Cardoso e o Felipe Pinheiro, que eram dois atores que estavam começando no teatro. Eles me chamaram para fazer uma peça. Eu estava fazendo uma outra peça chamada Serafim Ponte Grande, que é um texto de Oswald de Andrade, com um grupo que era do Buza Ferraz. Depois do ensaio desse grupo, dois dos atores, que eram o Pedro Cardoso e o Felipe Pinheiro, resolveram fazer um show deles: „Por que você não vai fazer a música do nosso show?‟ „Tá, tá bom‟. A gente ensaiava depois desse [primeiro] ensaio. O [segundo] ensaio começava à meia-noite. A peça também começava à meia-noite. Só conseguimos o Teatro Cândido Mendes segunda e terça às 9 horas e sábado à meia-noite, uma coisa assim. O que aconteceu? A peça principal foi um fracasso e a peça deles, que era um showzinho, virou um sucesso, virou a febre do verão. Isso foi em 1982. Humor: uma coisa que depois veio a se chamar besteirol, mas ninguém sabia nada disso. Era tudo feito com total naturalidade e risco. „Nessa hora você tem que tocar uma música‟. Como assim? Eu não sou cantor. „Tem que cantar uma música engraçada, com letra‟. Eu nunca tinha feito nada disso. Fui levado a fazer. Coisa semelhante aconteceu com um [outro] show. Nessa época, eu já fazia essa peça com o Pedro e o Felipe. Eu fui acompanhar o Miguel Falabella e a Maria Padilha: um show numa casa noturna, como pianista. Chamava-se Bar Doce Bar. Num dado momento, eles precisavam trocar de roupa. „Você toca aí uma música, faz um número‟. „Eu posso tocar uma música que eu fiz para outra peça‟. „Claro!‟ Eu cantei essa música e foi o que mais fez sucesso no show. Ficaram morrendo de ódio: o Miguel [Falabella] queria me matar. Acabou o show deles e o dono do bar falou: „Aquela música que você cantou... você não tem mais?‟ „Não, só tenho aquela‟. „Você não quer fazer um show semana que vem? Eu não tenho mais o que colocar na casa‟. „Mas eu só tenho uma música!‟ „Faz outra, rapidinho! Semana que vem você estreia.‟ „Tá bom‟. Comecei o show com três músicas. Foi o que eu fiz na apresentação daquela peça para piano. Eu inventava: falava uma porção de besteiras para me 189

dar tempo de ir fazendo as outras e ir aumentando o número de músicas. O show virou um sucesso: uma temporada de 3, 4 meses. Foi totalmente por acaso. Então, me chamaram para fazer um filme – o personagem principal de um filme – e me chamaram para fazer comercial de televisão: „Quer fazer comercial tocando violão?‟ „Quero!‟ Chegou a um ponto, já em 1983, que ao mesmo tempo eu apresentava uma peça numa bienal, música séria, e de noite estava nesse lugar chamado Viro do Ipiranga vestido de mulher, fazendo um personagem que se chamava Maria Alice Dodói202, que era uma cantora. As pessoas às vezes não entendiam se era eu mesmo, se era a mesma pessoa. Quando eu fazia uma apresentação, o público não sabia o que ia ver: se era música séria, se era uma coisa engraçada... Eu mesmo não sabia o que eu ia fazer. Quando ia fazer uma apresentação, não dizia o que ia fazer. Entrava em cena, todo mundo começava a rir como se eu estivesse fazendo uma coisa engraçada. Começava a tocar uma coisa séria, eletroacústica, ao vivo. As pessoas iam vendo que não era para rir. Começavam a ficar constrangidas. No minuto final, eu fazia uma graça e as pessoas relaxavam. Eu comecei a usar isso como um trunfo, como um elemento composicional a mais: a postura do intérprete. Esse trabalho passou a ser multifacetado: ora eu trabalho como compositor tradicional, escrevendo para conjunto de câmara ou para orquestra, ora eu utilizo o elemento cênico.”

OUTROS RECURSOS

“Você pode também trabalhar esses recursos cênicos sem eles estarem na partitura. Depende do caso. Se a peça não é escrita para cena, não tem que fazer cena. A luz, até que pode ser. Se você considerar a cena como fator composicional, é uma interferência na obra. Disso eu não tenho a menor dúvida. A rigor, a princípio, em tese, eu sou a favor de se desrespeitar as coisas. Não temos que ter aquela postura meio que de museólogo e conservar a música na época tal com os instrumentos originais. Não! A época tal já acabou. É mais interessante, mais desafiador você tentar fazer com que aquela obra se perpetue pela capacidade dela se renovar e não dela se manter do jeito que ela sempre foi.”

OS INTÉRPRETES

MÚSICA PARA INSTRUMENTO E INSTRUMENTISTA

202Satirizando o nome da cantora Maria Alice Godoy. 190

Em 1989, eu fiz uma experiência: eu queria compor uma peça que fosse para o instrumento e o intérprete e que eles contracenassem. Daí o Estudo para piano, que eu escrevi para a pianista Maria Teresa Madeira. Ela começa a tocar dizendo que adora estudar piano. Mas é uma menina que, na verdade, é obrigada a estudar piano. Começa a se revoltar com aquilo até que esmurra o piano. Bate nele e bate a tampa. Depois, pede desculpas. Faz carinho no piano, conversa com ele. A minha intenção era que o piano reagisse. O ideal, para mim, seria que o piano falasse.”

O PAPEL DO MÚSICO

“O [papel do] músico para mim não era mais simplesmente entrar em cena e tocar o instrumento. Isso, em si, já é uma postura cênica. Entrar no palco e se posicionar diante de uma plateia, em si, já é. É aquela história de que não existe uma pessoa que não tenha uma posição política. A negação da política já é uma posição. Considero a presença do músico como um elemento composicional. Essa experiência eu adquiri no teatro e influenciou o meu trabalho de composição em concerto. Fiz um espetáculo que eu chamei de A Música da Fala e usar a fala como música em situações diversas: algo próximo do spreechsang, do canto falado. No caso do músico, é uma dificuldade maior porque tem um sistema a mais para ele ler na partitura, uma complexidade maior de signos. Inicialmente, comecei a trabalhar com a Maria Teresa Madeira, que é uma pianista disposta a fazer isso. As primeiras peças eu fiz com músicos que eram capazes de fazer. Escrevi uma ópera em 1996 que se chamava A orquestra dos sonhos que foi encenada em 1997, na qual eu utilizava esse mesmo protocolo do instrumentista tocar e falar ao mesmo tempo. Não só o pianista como o instrumentista de sopro, de corda, percussão. Escrevi muita coisa para percussão, sempre gostei de percussão. Encontrei intérpretes capazes de fazer isso, como o Rodolfo Cardoso, como o Oscar Bolão, disponíveis e aptos – porque também não é qualquer um que faz. Não existe na formação do intérprete, que eu saiba, nada nesse sentido. Existe a postura para tocar, essas coisas formais. Se você começa por aí, vai ser difícil. A não ser que você use essa formalidade como elemento cênico para fazer uma crítica e trabalhar sobre isso. Tem uma outra peça em que eu procurei elaborar mais o discurso musical, que é o Noturno depois do Vinho, que eu também fiz para a [Maria] Teresa [Madeira]. É uma pianista que bebe uma taça de vinho. Ela está com uma taça de vinho e teria bebido mais antes de entrar em cena. Ela entra e senta com a taça. Ela esquece, bebe no camarim e entra cambaleante. Vai tocar o Noturno de Chopin. Ela está com um monte de partituras na frente. Ela toca vários noturnos, mas pedaços de noturnos. 191

Não é só a música que é discutida, mas é a própria situação da pianista que entra bêbada e o que aquilo gera em termos de discurso musical. O que é uma música bêbada? Que organização ela pode vir a ter? Quem conhece o repertório vai reconhecer os Noturnos de Chopin ali dentro. Ela vai, ela desiste, completamente fora de si. Às vezes ela perde o controle da própria mão. Eu procurei trabalhar isso com ela. Ela olha para a mão, a mão tem vida própria. É uma peça de 9 minutos com um discurso musical bem mais elaborado, difícil tecnicamente e que apresenta outra problemática: é muito mais difícil para qualquer pianista tocar uma peça como essa do que tocar um estudo de Chopin porque ela não só tem que tocar o Noturno de Chopin como tem também que tocar uma coisa mais difícil tecnicamente numa linguagem de música contemporânea e a postura cênica dela importa: ela tem que tocar estando bêbada. É um outro desafio para o intérprete. A Teresa me contou que teve um fã dela que falou: „A Teresa não devia fazer esse tipo de coisa! Ela é uma pianista tão séria!‟ Porque no final ela se joga no chão. Eu procuro trabalhar com intérpretes que tenham essa [disposição]... Obviamente que acontece de os intérpretes não estarem nem aí. O Clichê Music, já apresentamos em Nova York. Eu regi. Eu fiz tudo o que eu tinha que fazer, mas o intérprete não fazia. Só que, no caso do Clichê Music, eu conduzia, como regente. Os [outros] músicos estavam a fim de fazer e o cantor estava disposto. Sem isso, era melhor não fazer. No caso desse músico, muito pelo contrário, ficou mais engraçado ele ser sério. Ele achou que estava fazendo uma reação e na verdade ele acabou contribuindo. Agora, é evidente que se o intérprete está do seu lado é muito melhor; se não, realmente, pode inviabilizar.”

O TRABALHO EM EQUIPE

“Você tem que ver se a sua obra se adéqua àquele espaço e se aquele espaço se adéqua à sua obra. Uma peça como o Estudo para piano ou como o Noturno depois do Vinho pode ser na Sala Cecília Meireles. A estreia do Noturno depois do Vinho foi lá. Se eu vou apresentar uma peça cênica [que exija equipamentos tais como de iluminação, por exemplo] na Bienal e se isso for num teatro tradicional, fica mais fácil. Na Sala Cecília Meireles, vai ser mais difícil e vou ter que conversar com o iluminador. Tenho que negociar e tornar possível. Eu vou pedir para o iluminador: „Olha, eu quero tal coisa‟. Se você tem experiência, como o Csekö... o Csekö sabe fazer isso. Ele estudou, ele se preparou para isso e isso é um elemento que participa da criação dele como um elemento a mais. O compositor que tem esse conhecimento obviamente vai ter que se valer dele e quem não tem vai ter que se valer de um diretor cênico ou alguém que o ajude. No meu caso, como eu tenho experiência também com 192

teatro, na maioria das vezes eu assumo essa tarefa. Tem uma peça minha que é Na Cadência do Silêncio, que é uma peça em homenagem a John Cage, é um samba enredo, só que é um samba enredo diferente. Essa peça foi uma encomenda de uma série para o [Centro Cultural Banco do Brasil] (CCBB). A estreia foi lá. Eu escrevi para que fosse feita pelo Jardes Macalé tocando violão e, cantando, um barítono, que foi o Inácio de Nono; a Maria Teresa [Madeira], no piano preparado e o Rodolfo Cardoso na percussão. Já fiz uma versão juntando os papéis do barítono e do cantor e violonista em trio, mas a peça originalmente é para quatro. Fala da trajetória de John Cage, que fez piano preparado, que gerou a criação do minimalismo. Fala das peças que utilizaram toca-discos e rádio de pilha. Na hora do concerto: „Teresa, não esquece o teu secador de cabelo!‟ ou „Quem é que tem um liquidificador?‟ Já teve várias situações em que eu ligo para a [Maria] Teresa [Madeira]: „Teresa, não esquece os parafusos!‟”

REALIZAÇÃO

“Na maioria das vezes, a produção executiva para a realização da obra acaba sendo uma tarefa do compositor. Depende da complexidade de cada obra. Mas é óbvio que em determinado lugar vai funcionar melhor ou pior, de acordo com a cena. Se você oferece um dado a mais você vai ter mais problema. Quando você envia uma obra para a Bienal, a própria organização da Bienal te fala: „Olha, o compositor é responsável pela realização‟. Nem toda sala de concerto... na verdade, a maioria delas não está preparada para esse tipo de demanda, de iluminação cênica... porque a sala não é preparada para isso. Você tem que se valer daquilo que você tem, eu penso assim. Uma coisa é você apresentar uma obra num teatro tradicional que tem vara de iluminação, que tem o iluminador, que tem uma mesa de luz, saídas de cena. Outra coisa é a Sala Cecília Meireles, que não tem nada disso.”

O PÚBLICO

“Bravo é uma peça que trabalha com a plateia, com o que acontece na plateia de um concerto. Eu tanto critico [a postura do instrumentista] quanto acho que tem o seu lugar. Eu critico porque distancia o público – inicialmente por isso. Você dá à coisa tamanho ar de elevação, de coisa especial, que o público acaba ficando com medo da música. Parece que é uma seita. Parece que você vai participar de uma cerimônia. É uma cerimônia. Não deixa de ser uma cerimônia. Não é que tenha que deixar de ser. Tem o seu lado bacana. Só que isso 193

distancia as pessoas, principalmente o público leigo. Se a gente tem a intenção de aumentar a plateia freqüentadora de concerto, não dá para ser dessa forma. Eu não tenho nada contra [o formato das apresentações tradicionais]. Tem que ter noite de gala no Municipal, com trajes corretos. O intérprete pode fazer uma coisa e outra.”

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APÊNDICE C - Vânia Dantas Leite: a escultora de sons

Nascida em 13 de agosto de 1945, no Rio de Janeiro, Vânia Dantas Leite é uma das pioneiras na música brasileira eletroacústica e na música-video. A música experimental faz parte tanto da sua produção artística quanto da sua produção acadêmica. Formou-se no Bacharelado e no Mestrado em piano da UFRJ e também no curso superior de Composição e Regência, na mesma instituição, sendo, ainda, doutora em composição pela UNIRIO. Um piano em casa, uma sala para o piano, um quadro com pentagrama para brincar, palcos improvisados e espetáculos subsidiados pelos pais constituem estrutura que não determina sua trajetória artística, todavia apresenta-se como fundamental para a formação da pianista compositora que mostrou, desde os primeiros contatos com a música, tendência ao experimentalismo, conversando com outras linguagens artísticas. Leite foi estimulada desde cedo, pela família, a vivenciar a dança, o teatro e a literatura. Ainda estudante, circulava por meios diversos, desde os mais tradicionais até aqueles onde já se praticava a música experimental. Sempre comprometida com o novo, teve iniciativa ao investigar, ainda em seu período de formação, um repertório diferente daquele que costuma constar nos programas tradicionais de concerto. Como pianista, confessa, entretanto, que até hoje prefere interpretar, da literatura produzida para o instrumento, o repertório de Bach, Mozart e Beethoven. Começou a perscrutar o caminho para a composição experimental no encontro com Esther Scliar. Ao observar a atividade de compositores como Jorge Antunes e aproximando- se da música de Edino Krieger e nos anos de 1960, a compositora chegou ao Eletronic Music Studio, em Londres. A partir da década seguinte, de volta ao Brasil, descobriu sua própria expressão artística, espontânea, genuína. 203 Enquanto escultora de sons, Leite inaugura uma época em que o trabalho com os sons se separa do trabalho com a linguagem musical tradicional. Ao romper com a tradição, viu-se, durante longo período, isolada numa atividade pouco compartilhada, pouco compreendida.204 Schaeffer se refere, de maneira indireta, a essa questão:

Assistimos, dessa forma, ao surgimento de obras incontestavelmente novas, embora sem dúvida interessantes sob esse aspecto, muito decepcionantes em outros planos e não necessariamente seguras de sua sobrevivência.

203Leite indica como sua primeira obra, a partir dessa auto-descoberta, Vita Vitae, de 1974, e considera todas os seus trabalhos anteriores como exercícios de composição. 204Ainda assim, as plateias, em seus concertos, por muitas vezes, estiveram superlotadas. 195

O nosso ouvido efetivamente se acostumará – e é conhecido o espantoso poder de adaptação do ouvido musical – , ou ele não se acostumará e todas essas obras, a despeito de suas qualidades intrínsecas não constituirão jamais uma linguagem inteligível. (SCHAEFFER, 1966, p. 21, tradução nossa).205

A visualidade na música, que é tema de pesquisas e composições da autora, é uma das características das manifestações mais recentes da música contemporânea. Entretanto, Leite (2007, p. 2) comenta: “A música sempre se constituiu num espetáculo audiovisual”. Lembra também que “as imagens sempre fizeram parte da prática, difusão e percepção da música em suas 3 principais manifestações histórico-culturais distintas: nas músicas de tradição oral, nas músicas escritas e nas músicas eletroacústicas.” (LEITE, 2007, p. 2). Acrescenta ainda que: “a qualquer manifestação de uma criação artística, somam-se, em evidência ou subentendidamente, outras formas de expressão, mesmo que esta não seja a intenção do artista criador. Um espetáculo sempre será um ponto de encontro entre múltiplas percepções.” (LEITE, 2007, p. 2). Essa é ideia reforçada por Chion, que afirma serem a audição e a visão dois sentidos “que têm uma relação de complementaridade”. (CHION, 1998, p. 219). O professor e pesquisador da área de Música e Tecnologia da Escola de Comunicações e Artes da USP, Iazzetta (2009, p. 211-212), também se refere a tais tendências, no contexto da música recente:

A forte mediação tecnológica presente nas artes em geral facilitou a conexão entre elementos sonoros e visuais, levando a uma constante associação entre música e outras formas de arte (artes visuais/performance/instalação artística, artes experimentais, ambientes multimídia). Essa conexão trouxe para dentro do repertório musical muitos dos procedimentos e propostas específicos dessas outras artes. A ênfase no uso do espaço como elemento constitutivo da obra, a recorrência de referências conceituais e contextuais, a interação entre som e imagem, são apenas alguns desses aspectos.

A valorização da visualidade na música corrobora a ideia de Cook quando diz que: “A verdade é que a arte musical vem se expandindo: mas ela está se expandindo fora da teoria da música”. (COOK, 1998 apud LEITE, 2004, p. 5).

205“[...] Ainsi avons-nous assité à la naissance d‟oeuvres incontestablement nouvelles , en effect, sans doute intéressantes à cet égard, fort décevantes aussi sur d‟autres plans et pás nécessairement assurées de survivre,notre oreille s‟y fera – et l‟on sait l‟étonnant pouvoir d‟adaptation de l‟oreille musicale – , ou bien elle ne s‟y fera pás, et toutes ces oeuvres, em depit de leur qualités intrinsèques, ne constitueront jamais um langage intellegible.[...] Le premier n‟est pás le pire: une musique rigoureusement construire doit être inteligible. Seules s‟y opposent nos habitudes et notre obstination à La ramener à um langage traditionnel.” (SCHAEFFER, 1966, p. 21). 196

O acesso facilitado ao suporte tecnológico digital que permite processar som e imagem simultaneamente estimulou compositores a conceberem aspectos sonoros junto com aspectos visuais em suas obras. (LEITE, 2007). Leite é uma das precursoras da chamada música-video, que define como o “novo gênero de linguagem musical” ao qual se refere como “uma tendência que vem proliferando na produção dos compositores que se utilizam de tecnologias recentes como meio de expressão: o uso crescente da linguagem visual somada à prática da composição musical”. (LEITE, 2007, p. 2). A música-vídeo é derivada da música eletroacústica onde uma gravação pode estar aliada a eventos audiovisuais ao vivo, como na chamada música mista. Imagem e som podem ser também processados em tempo real. Na inclusão da linguagem visual, a criação artístico-musical eletrônica apresenta um novo gênero – na música-vídeo, nota-se “a soma das duas percepções oriundas das músicas acústica e eletroacústica” (LEITE, 2007, p. 6):

a música-vídeo representa uma terceira fase na visualidade da linguagem sonora, fase que se constitui na soma das duas anteriores, respectivamente ver/ouvir e ouvir/ver: imagem e som como duas linguagens independentes, justapõem-se (ou contrapõem-se) gerando uma nova forma de expressão porque demanda não apenas novos domínios técnicos como também novas difusões e percepções. (LEITE, 2007, p. 6).

Conforme explica Leite, há na música dois parâmetros de integração entre visão e escuta: o parâmetro ver/ouvir e o parâmetro ouvir/ver. O parâmetro ver/ouvir, onde a visão fomenta a audição, encontra-se na música acústica: a fonte sonora é visualizada pelo ouvinte onde intérprete e partitura aparecem em tempo real. No parâmetro ouvir/ver, ao contrário, é a audição que estimula a visão virtual, imaginária, uma vez que a fonte sonora não é expressiva, já que conta apenas com suporte, aparelhagem, alto-falantes. (LEITE, 2007).206 A relação presencial entre intérpretes e ouvintes ocorreu até o século XIX, quando o recurso da gravação derrubou tal obrigatoriedade. Nessa relação presencial, fundiam-se as percepções visuais do local, do ambiente das apresentações – o que incluía seus odores, sensações táteis, etc. Tais observações podem remeter aos aspectos cênicos naturais da apresentação musical, onde cenário, figurino, movimentação e atuação – gestualidade do intérprete – são indissociáveis da música. A esses aspectos da cena somam-se, ainda, o comportamento da plateia: um comportamento culturalmente adquirido, no qual as ações e

206Vale ressaltar que os gêneros audiovisuais de música têm raras referências e se utilizam de critérios isolados para suas diversas manifestações – filmes, videoclipes, programas e comerciais de televisão, ballet, ópera – e que grande parte dos trabalhos artísticos audiovisuais não privilegia a música, utilizando-a como mero complemento de imagens. 197

reações do público formam, junto ao comportamento dos instrumentistas e/ou cantores, um conjunto de procedimentos padrão. Na música tradicional de concerto, a cena natural estimula e complementa a percepção sonora do ouvinte, embora haja, por parte de todos os envolvidos, parcimônia com relação a qualquer atitude que possa diluir atenção estritamente musical no evento. Conforme observação de Iazzetta (2009, p. 53): “a música no concerto exerce um papel simbólico de distanciamento no ritual. É como a estátua de um santo no altar para onde se dirigem os fiéis com admiração, mas com a devida distância”. Leite considera a concentração dos interesses da apresentação musical ao vivo na audição igualmente importante e interessante se comparada à simultaneidade dos interesses na audição e na visão. Esse grau de importância só oscilará de acordo com a situação, com a intenção conceitual dos artistas – compositores e intérpretes envolvidos. No surgimento da música concreta, em 1948, profundas mudanças ocorreram nas relações entre compositores, intérpretes e ouvintes. Uma delas foi o fim do vínculo obrigatório entre som e imagem, o que possibilitou ao receptor criar suas próprias imagens, de maneira mais independente: “A „acusmática‟, antiga palavra de origem grega, é um dos primeiros termos que surgem para caracterizar esta nova escuta. Tal termo foi retomado por J. Peignot e teorizado por Schaeffer em 1952: significa o ato de ouvir sem ver a fonte originária dos sons”. (LEITE, 2007, p. 3). Na música acusmática207, “onde a imagem não está presente nem na realidade nem em suporte, mas apenas na mente do ouvinte”, a imagem é estimulada, promovida através do som de maneira subjetiva, segundo os processos cognitivos e psicológicos de cada receptor. (LEITE, 2007, p. 3). Na música-vídeo, o aspecto visual pode até constituir-se em aspecto cênico, podendo, ainda, manter a característica acusmática da música eletroacústica, uma vez que a origem do som não se revela; apenas a ela se soma uma linguagem visual, não obrigatoriamente associada à sua emissão. Pode, entretanto, apresentar as características da música eletroacústica mista, onde sons gravados se misturam aos sons produzidos ao vivo com a presença dos instrumentistas e/ou cantores envolvidos. No caso da música cênica, outros artistas da dança, teatro ou artes visuais podem fazer parte da apresentação como espetáculo. Independentemente da especialidade artística dos intérpretes envolvidos, a interação entre estes e os compositores é de vital importância para obra, segundo Leite:

207 A música acusmática, conforme a batiza François Bayle em 1978, no contexto da música de concerto, é a música apresentada através de suporte eletrônico: música de suporte ou música concreta. 198

Eu componho especificamente para aquele intérprete. [...] Para mim, o intérprete é um instrumento, ele é co-autor comigo, ele trabalha junto e aquela obra, com outro não vai dar certo. Algumas, nem todas. Talvez isso me distancie um pouco do resto da comunidade musical e do público. Talvez distancie porque as pessoas ainda têm essa prática da música muito presente: a partitura. (informação verbal).208

A personalidade inovadora da obra de Vânia Dantas Leite traz para a compositora algumas dificuldades na realização, circulação e divulgação de suas criações. Os recursos tecnológicos exigidos para as apresentações encarecem a produção executiva dos concertos, assim como a montagem de equipe competente: encenação, manipulação dos aparelhos adequados e outras tarefas que envolvem o espetáculo tornam o trabalho mais árduo do que quando se trata de produção executiva de apresentações musicais tradicionais: “[...] eu sempre fico frustrada. Não há uma ocasião em que eu consiga sair feliz de uma apresentação. Sempre falta alguma coisa. Nunca consigo exibir a minha música do jeito que tem que ser”. (informação verbal). 209 Leite alega que para realizar seus concertos da maneira como deveriam ocorrer, teria que se dedicar exclusivamente à sua obra, porém a sua atuação como docente divide-lhe as atenções e não lhe permite dedicar tempo e esforços suficientes para captar os recursos necessários à realização e disseminação do seu trabalho. Segundo o seu depoimento, os produtores em geral não se interessam por esse tipo de música porque é um produto que não costuma prometer retorno financeiro satisfatório para o investimento a ser feito.

ENTREVISTA COM A COMPOSITORA VÂNIA DANTAS LEITE, EM SUA RESIDÊNCIA, EM BOTAFOGO (RJ), EM 22 DE OUTUBRO DE 2010.

FORMAÇÃO

A INFÂNCIA MUSICAL

“Eu já tocava música de ouvido com três anos. Eu não queria comer, por exemplo. A minha mãe descobriu que eu gostava de fazer nota em pentagrama. Ela mandou fazer um

208Entrevista com a compositora Vânia Dantas Leite, em sua residência, em Botafogo (RJ), em 22 de outubro de 2010. (Apêndice C, p. 207). 209Ibid., p. 210.

199

quadro negro preto, botou na sala do piano, com pentagrama, e eu ficava desenhando nota enquanto comia. Já com três anos e meio, quatro anos, eu já escrevia notinhas e já sabia o que estava fazendo, mas não sabia escrever palavras. Só fui me alfabetizar com seis anos, mas já escrevia música. Com quatro, cinco já escrevia. Tudo era brincadeira. Ninguém nunca pensou: „Vai ser compositora!‟ Eles apenas tentavam me distrair com alguma coisa que me desse prazer. Eu não tinha um prazer comum como uma criança tem de sair, brincar. O meu prazer era tocar piano, escrever nota na pauta. A minha mãe me colocou na Escola de Música [da UFRJ] quando eu tinha quatro ou cinco anos. Eu tenho ainda a minha carteira de estudante da Escola de Música com cinco anos. Dona Nayde Sá Pereira foi a minha primeira professora de Iniciação Musical. Quando eu me formei, ela se aposentou: uma grande professora, maravilhosa. Eu estudei quatro anos de Iniciação Musical com a Dona Nayde. Inicialmente, não queriam deixar eu entrar porque eu não era alfabetizada, eu não sabia nada de matemática e para teoria tem que ter uma iniciaçãozinha, saber somar, pelo menos, para saber calcular intervalo, mas deixaram. Deixaram eu entrar.”

AS PRIMEIRAS LIÇÕES DE PIANO

“Eu estudei piano porque amava a música, tinha muito jeito para tocar. Eu comecei a estudar piano com a minha mãe. A professora da minha irmã vinha em casa dar aula de piano para ela. A minha tia, irmã da minha mãe, era pianista e também me dava umas dicas, sentava muito ao piano comigo, tocava a quatro mãos. Não me ensinava, mas me estimulava muito.”

OUTRAS ARTES

“Eu queria ser bailarina de qualquer jeito. Eu não tinha talento para o ballet, eu era uma negação. Eu ia dançar, me botavam para tocar toda vestida de bailarina para eu não entrar no palco porque, realmente, eu era um fiasco quando entrava. Eu tinha um corpo ótimo, magérrimo, de bailarina, mas não conseguia fazer nada que prestasse. A minha prima mais velha tinha muito talento, depois foi para a Rússia, fez carreira e tudo, mas eu não conseguia dançar. Aqui, nessa vila mesmo, em que eu morava quando era criança, na casa dos meus pais, aqui, em frente a essa casa – depois eu voltei para cá, muito mais tarde, mas dos seis aos onze anos eu morei aqui e foi justamente a fase em que eu tinha uns amiguinhos na casa ao lado – eu escrevia peças de teatro e botava todo mundo para representar. Já compunha peças para piano porque eu estudava piano. O meu negócio sempre foi a criação. Tinha uma coisa 200

de produção [executiva], mas tinha uma coisa de criação, principalmente. Eu não era muito boa de produção [executiva], mas todo mundo me ajudava. Meus pais me ajudavam. Faziam palco em casa, botavam umas cordas com cortinas improvisadas. Era um palco na varanda da casa.”

BERÇO

A MÃE E A IRMÃ

“A minha mãe era uma pessoa muito forte e muito tradicional, queria que eu estudasse Bach, Beethoven, Mozart. Ela era muito rígida. Mas eu tinha muito prazer de tocar, ela não me obrigava, não chegava a me obrigar. Obrigava à minha irmã, que era mais velha. Essa sofreu! Essa era obrigada a estudar piano. Ela tinha dificuldade de fazer as coisas e eu tirava tudo de ouvido. A minha irmã ficava revoltada e a minha mãe não pegava no meu pé, pegava no pé dela.”

O PAI

“Enquanto a minha mãe me segurava nos clássicos, o meu pai me dava Mallarmé para ler quando eu ainda tinha quinze anos. Valéry, Neruda... Ele me dava Marx para ler. Era marxista. A geração dele era essa: Prestes e companhia. Meu pai me estimulava a compor. Mas quando ouviu os meus ruídos, não gostou”.

OPOSTOS

“Eu tinha pais muito fortes e opostos um ao outro. A minha mãe era católica apostólica romana, ia à igreja todo domingo. O meu pai era comunista e ateu. Eu tinha um lado do meu pai, que era totalmente revolucionário e eu ficava entre um e outro”.

EXPERIMENTALISMO

O CAMINHO EXPERIMENTAL

201

“Apesar de ser aluna da Escola de Música [da UFRJ], que era um lugar muito tradicional, eu freqüentava outros meios. Por exemplo, o Instituto Villa-Lobos: tinha o Reginaldo Carvalho, o Jorge Antunes... eu era fascinada por aquilo. Eu ia lá só para ver, conversar com eles, tocar peças deles para piano e tape... Eu ia buscar um repertório para mim. Eu nem pensava em compor ainda, nessa época, eu ainda não compunha. Eu comecei a compor muito tarde. Eu entrei para o Curso de Composição com desenove anos. Embora eu tenha ganho esse prêmio de composição logo depois, em 1972, eu não considero que aquilo fosse composição. Eram exercícios. Depois eu fui estudar com a Esther Scliar e comecei a encontrar o meu caminho. Ela me apresentou um repertório consistente de música contemporânea e eu me entusiasmei mesmo na composição. Ela me apresentou Pendereck. À eletroacústica ela não era ligada, mas era ligada ao [Luigi] Nono: um tipo de linguagem com a qual eu me identifiquei muito.”

O ACESSO À TECNOLOGIA

“Eu tinha, no Brasil, acesso a ver o Jorge Antunes trabalhando. Via e tocava as coisas dele, ajudava a mexer no gravador. Gostava de gravar sons. Eu tinha um bom gravador em casa, um microfone bom, mas não compunha. A primeira vez que eu fui para a Europa – eu ganhei um prêmio, fui a melhor aluna do ano da Escola de Música da UFRJ, estava no segundo ano de composição – eles [a Escola de Música da UFRJ] me pagaram uma viagem. Eu podia escolher para onde ia e o que queria fazer, mas tinha que apresentar trabalho. Fiz uma conferência na Áustria e em Portugal sobre a música contemporânea brasileira. Tive que pesquisar. Fui entrevistar os compositores: Edino Krieger, Marlos Nobre, Aylton Escobar e o próprio [Jorge] Antunes. Eles circulavam lá, na época. Levei algumas coisas como pianista, tocando, mas falando da música brasileira, falando do pessoal da Bahia. Isso foi no final da década de 60: 1968. Eu comecei a compor em 70. Cheguei a Londres já programada, indicada para trabalhar no Eletronic Music Studio. Foi o primeiro contato com um estúdio de composição. De volta ao Brasil, eu trouxe meus equipamentos, o pouquinho que deu para trazer. Já naquela época estava mais fácil. Esse sinth que eu tenho hoje, que era do Eletronic Music Studios (EMS), construído lá, era uma maleta que resumia o estúdio em que eu trabalhava, com todos os módulos. Só que o estúdio era poderoso e o sinth era uma coisa pequenininha que tinha tudo o que tinha lá e era um sintetizador mesmo. Eu comprei aqui no Brasil uns gravadores: uma Revox k700 em que eu montava as minhas fitas. Cortava e colava. O sinth ainda está aí”. 202

DOS EXERCÍCIOS DE COMPOSIÇÃO À CRIAÇÃO ARTÍSTICA

“Eu tocava e compunha música tradicional. Eu não escrevia nada, só fazia exercícios de contraponto e o que eles me encomendavam. Eu comecei a compor de uma maneira tradicional. As minhas primeiras peças foram para instrumentos tradicionais. O primeiro concurso nacional que eu ganhei, de composição, foi com uma peça para orquestra. Eu tinha feito uma sonata. O que é uma sonata para o século XX? Não é nada! Eu fiz aquela sonata porque me mandaram fazer, mas não considerava uma coisa minha. Era uma sonata para piano, xilofone e fagote. A primeira música que eu considero minha é de 1974 e se chama Vita Vitae para quatro instrumentos, voz, narrador, atriz e quatro canais de sons eletrônicos com processamento, já em tempo real, da flauta.”

RESISTÊNCIA

“Com as primeiras peças que eu fiz com a barulheira toda, o meu pai ficou horrorizado: „Ih, minha filha, vai tocar o seu piano!‟. Eu disse: „Ah, não, agora é tarde. Já fui!‟. Meus filhos não gostam também. Meu filho fica me pedindo: „Poxa, mãe, não dá para você compor umas notinhas de vez em quando?‟ Eu digo: „Não, não dá‟. Continuo firme. A resistência é muito grande, mesmo no meu ambiente de trabalho.”

SOLIDÃO

“Eu sou muito respeitada, lá na UNIRIO, mas eu acho que ninguém gosta do que eu componho. Esse ano é que entraram dois professores por concurso. Pela primeira vez tem dois professores que trabalham na minha área. Eu sempre ficava sozinha. Quem é que fazia música eletroacústica? Ninguém, só eu. Tinha um compositor, que era o José Maria Neves, que foi quem fundou o Programa de Pós-Graduação em Música, que estudou com o [Pierre] Schaeffer, fez composição. Ele chegou a compor. Tanto, que eu estreei uma peça dele, aqui no Brasil, para piano e tape, mas José Maria abandonou logo, logo isso tudo, muito novo ainda, para ser musicólogo. Ele disse: „Eu vou me dedicar à musicologia.”

NOVOS TEMPOS

203

“Os alunos de hoje estão muito mais abertos, pela proximidade com a tecnologia. A criança já nasce tendo em casa um computador. O mundo levou a gente a isso, não tem volta. Culturalmente, ninguém anda para trás. Ninguém mais vive sem o seu laptop, seja em qualquer área e na música, principalmente.”

MÚSICA BRASILEIRA POPULAR E ERUDITA

“A música tem muitas manifestações. Nós [brasileiros], com a nossa cultura ocidental, ainda européia, não se sente dono de uma escola, de uma estética, a não ser que seja no samba. A música brasileira é riquíssima, mas a música popular é muito mais. A música erudita brasileira é européia, ela sempre foi cópia. Até o nosso [Ernesto] Nazareth, que é um gênio, fazia valsa no estilo Chopin.”

O PIANO

O USO DO PIANO

“O piano, na minha obra, eu não utilizo, praticamente não utilizei. O piano teve a época dele. O piano é um instrumento temperado e foi criado com a intenção de suprir as necessidades do temperamento, da escala temperada. Foi uma evolução do cravo. Johann Sebastian] Bach já fez O Cravo bem temperado pensando nesse tipo de instrumento: o teclado, o piano. A linguagem com a qual eu acabei me envolvendo mais na composição foi a música eletroacústica, ou seja, a antítese disso. A música eletroacústica justamente quer fugir da escala temperada. A música concreta, quando surge, se propõe a usar todos os sons, inclusive muito mais os ruídos, explorar esse universo sonoro que não é esse, limitado, do instrumento. Então, eu me agarrei na voz. Como eu tinha formação clássica, eu raramente abri mão de utilizar instrumento musical acústico. O piano não é obsoleto, de jeito nenhum, assim como o cravo. A pessoa pode tocar todo um arsenal de obras maravilhosas para cravo. Mas o cravo na música contemporânea é pouco utilizado, pelos mesmo motivos [que o piano é pouco utilizado na música contemporânea]. Existem peças lindas para cravo.”

REFERÊNCIA A SCHAEFFER

204

“[Pierre] Schaeffer fez uma Sinfonia para um homem só, que era uma sinfonia que explorava todos os ruídos de um homem. Do sussurro aos ruídos externos e internos que pudessem acontecer: percussivos... o homem batendo no corpo... essas coisas surgiram lá em 1952. Schaeffer também gostava muito de piano. Os Estudos de ruídos 210 do [Pierre] Schaeffer usava piano nas cordas, nos bordões. Não usa o teclado, mas explora bastante o piano enquanto caixa acústica junto das notas do temperamento.”

O REPERTÓRIO DA PIANISTA

“Na Escola de Música eu era obrigada a estudar aquele repertório tradicional: Bach, Beethoven, Mozart. Eu gostava muito, até hoje eu adoro. Se eu for tocar piano, eu gosto de tocar essas coisas: os clássicos, principalmente. Os românticos, eu toco mal. Gosto, mas não faz o meu estilo. Eu gosto de tocar só a partir de Brahms porque já é mais neoclássico e eu começo a fazer um pouquinho melhor. É música contemporânea, o meu estilo – ou então Bach, Beethoven e Mozart. Beethoven, eu toquei muito. Sou absoltamente apaixonada por Mozart. Se me deixar escolher o que é que eu quero tocar, eu quero tocar Mozart, até hoje, toda a obra: as sonatas, os concertos...”

MÚSICA CÊNICA

A VISUALIDADE NA LINGUAGEM SONORA

“A visualidade na música foi uma coisa que defendi como tese de doutorado: um trabalho que faço praticamente há trinta anos. Esse meu envolvimento com a visualidade na linguagem sonora, que é o título do primeiro capítulo da minha tese, isso foi uma coisa com a qual eu sempre me envolvi, mas através da imagem enquanto instrumento da música e não a serviço da música porque em determinadas circunstâncias a imagem atrapalha, dependendo do repertório. Não é à toa que essa maneira de o músico clássico se apresentar é tão singela, pobre mesmo. Tem que ser porque a plateia precisa de concentração. Então, quanto mais você distrai a plateia com a sua figura ou com alguma coisa no palco, pior para passar o trabalho que foi estudar um Beethoven, um Mozart. Quando tocamos uma coisa dessas, queremos que a pessoa ouça, não quer que a pessoa veja. Queremos que ela ouça aquele trabalhão que

210Série de cinco estudos composta em 1948. 205

tivemos para preparar aquilo... [Para ouvir] Beethoven, o ideal é fechar os olhos. Não precisa chegar ao extremo de deixar tudo escuro. Olhar para o pianista não vai fazer o ouvinte perder a concentração, mas se o pianista chegar com um vestido de cauda enfeitado, vai distrair o espectador. A sobriedade, para certo tipo de repertório, é muito bem vinda.

LINGUAGEM AUDIOVISUAL E PANFLETAGEM

A Laurie Anderson, desde o início da carreira usa telão. Ela toca magnificamente bem: canta, faz tudo, uns textos maravilhosos: é popular. Até que nem é tanto: ela fica ali, na fronteira, mas é um trabalho muito bem feito, de muito estudo. Ela usa telão, mas é outro tipo de linguagem. A imagem dela é projetada, faz parte da linguagem dela. Sem aquilo, a linguagem perde e o sentido. A gente tem que tomar cuidado para ver o que é panfletagem e o que é que realmente funciona.”

INTERDISCIPLINARIDADE

“Desde criança eu gostava muito de teatro, dança. Eu fiz ballet e gostava muito de outras linguagens também. Eu escrevia, gostava muito de escrever. Tanto, que eu fazia Literatura depois que eu terminei o Humanidades. Essa interação com as outras artes se deu desde o início da minha vida musical.”

DI-STANCES: MÚSICA-VIDEO

“O [meu] primeiro trabalho em cima da relação de som e imagem foi Di-stances, em 1982. Esse trabalho é o que eu chamo de música-video. A música-video não necessariamente tem que ter um suporte áudio-visual. A música-video normalmente tem, mas ela pode também se dar em tempo real porque hoje em dia a gente voltou muito a explorar, em função do avanço tecnológico, o artista no palco. Antes, a música eletroacústica havia se distanciado muito do palco, durante muitos anos, pelo impedimento de se fazer as coisas em tempo real. [Hoje] temos toda uma plataforma pronta para isso, digitalizada e cada vez mais ágil e, então, voltamos para o palco. A música-video pode acontecer também em tempo real, sem suporte pré-gravado. Eu mesma tenho: os meus orixás são em tempo real. Obá, A deusa do arco-íris, 206

a Oxumaré, a Ibedi, os gêmeos 211 : esses orixás não têm suporte. Têm até um suporte sampleado que eu lanço com imagens cênicas, mas não aquele suporte fixo. O trabalho não é um audiovisual, DVD, embora possa ser também. Eu tenho vários que são DVD. A música eletroacústica, o CD, é acusmática. Nesses trabalhos de música-video, o som e a imagem nasce juntos. Essa partitura [de Di-stances] é uma das minhas primeiras músicas-video. É um pentagrama com um desenho em cima. Esse desenho é de um artista plástico que trabalhou comigo muitos anos: Paulo Garcez. „Di‟ quer dizer dois e „ instâncias‟, movimentos. Eu comecei a fazer isso em 1982. Essa proposta foi do Paulo [Garcez]. Eu sempre tive vontade de trabalhar com desenho, com artistas plásticos, mas a proposta foi dele. Ele fez essas partituras para o Nelson Freire – que era muito amigo dele – tocar, improvisar. O Nelson Freire não quis nem tentar. Olhei para aquilo e disse: „Eu posso improvisar com instrumentos eletrônicos‟. Não pensei em piano.”

DUETO I+1: MÚSICA E ARTE VISUAL

“Dueto I+1: eu nunca tinha feito isso antes: tocar uma coisa minha. O desenho é projetado porque a partitura é gerada daquele desenho. O desenho gera a partitura assim como gerou toda a parte eletrônica que foi produzida pelo Rodolfo Caesar. Ele [Milton Machado] fez esse desenho na década de 70 ainda e a primeira vez que o Dueto I+1 foi apresentado, era para eu tocar com mais alguém. Eu não pude porque eu peguei uma hepatite, uma coisa assim e fiquei de cama. O Leo Küpper, que é belga e estava aqui no Brasil, tocou. Fez uma versão com a Ana Maria Kieffer, que é uma cantora de São Paulo. Esse dueto pode ser apresentado por qualquer instrumentista ou intérprete cantor, performer, desde que siga as instruções do desenho. Então, depois, teve uma versão minha e do Rodolfo [Caesar]. Qualquer intérprete pode fazer. Nesse momento, ele vai ser um co-autor porque o desenho sugere a estruturação da obra mas não sugere musicalmente, melodia, ritmo, harmonia, nada disso. O intérprete é quem vai fazer, improvisando em cima da estrutura, o que ele [o desenho de Milton Machado] pede: a sua melodia ou o seu ritmo, lá o que for, ou o seu ruído, como fez o Rodolfo [Caesar]. Eu fiz com notas porque fiz para piano. Eu fiz doze notas como se fosse um trabalho serial e o piano tem uma partitura super tradicional, mas seguindo a proposta do desenho. Por isso é que eu acho que faz o maior sentido projetar o desenho. É meio difícil de acompanhar, mas o público pode perceber que o que a gente está tocando tem a ver com aquela estruturação. Eu

211Peças da obra Fantasia de Brasil, que se constitui de 16 micro-cenas inspiradas na cultura yorubá, desenvolvida no Brasil através do candomblé. 207

não gosto de explicar muito as coisas. Normalmente, eu ponho no programa esses dados porque eu acho que quem tem interesse em saber o que é que vai acontecer, vai dar uma lida no programa.”

MÚSICA E INTÉRPRETES MULTIDISCIPLINARES E SUA INTERAÇÃO COM NOVAS TECNOLOGIAS

“A Obá tem dança também. A Doriana [Mendes] é bailarina. Ela fez a coreografia a partir de uma conversa que tivemos a respeito da intenção. A intenção para mim é a coisa mais importante, é o que define e caracteriza qualquer obra de arte. A Obá tem tudo escrito. A Obá é uma partitura escrita, tradicional – com notas – e tem processamentos muito básicos de voz. Ela canta e dança ao mesmo tempo e tem um microfone. Ela canta com um microfone de contato que entra no meu computador. A voz, eu processo em tempo real e a imagem dela dançando junto com o canto. Nesse caso, a imagem não é captada pela filmadora. Só o outro orixá, o Oxumaré, a Deusa do arco-íris. A filmadora capta a imagem dela, transforma e joga no telão. Eu tenho ela em tempo real, dançando. No caso da deusa do arco-íris, ela dança toda de branco. Eu capto essa imagem. Construí um patch do diter que fizesse com que tudo que não se movesse ficasse preto e tudo que se movesse entrasse no computador. Quando entra, divide em cores do arco-íris. Jogo essa imagem, que é exatamente a dela, no telão todo colorido. Ela canta, também, com microfone e a voz é processada. Essa já é mais complexa. A Obá, como eu fiz há muito mais tempo, é só com um chorus, tem uns reverbs, mas é muito mais simples.”

A-JUR-AMÔ

“A-jur-amô é uma obra cantada na Europa, na Alemanha, na França, nos Estados Unidos, aqui no Brasil. Só aqui, pelo menos quatro intérpretes fizeram a A-jur-amô: até no Circo Voador, com a Stella Miranda. Eu não estava aqui e o Tim Rescala a ajudou a fazer. A peça tem toda uma parte teatral.”

OS INTÉRPRETES

DECISÃO 208

“O que „tem a ver‟ ou o que não „tem a ver‟ é decisão, por critérios subjetivos, que todos os instrumentistas e/ou cantores precisam para executar as peças de música que escolhem para o repertório.”

NÃO É PARA QUALQUER UM?

“Eu componho especificamente para aquele intérprete. Eu não tenho o menor interesse que outros intérpretes façam certas músicas minhas como no sistema em que o compositor disponibiliza a partitura e vários intérpretes vão tocar. Para mim, o intérprete é um instrumento, ele é co-autor comigo, ele trabalha junto e aquela obra, com outro não vai dar certo. Algumas, nem todas. Talvez isso me distancie um pouco do resto da comunidade musical e do público. Talvez distancie porque as pessoas ainda têm essa prática da música muito presente: a partitura. Mas, por exemplo, o meu audiovisual, o que é sobre suporte, tem várias pessoas que levam para os concertos, para a Europa, para todo lugar e passam na tela. Essas coisas que são em tempo real, como no caso desses orixás, eu não quero trabalhar com mais ninguém, eu quero trabalhar com eles: com a Doriana [Mendes], com o Feijão – o Mestre Feijão, o capoeirista. Eu levei muito tempo fazendo a cabeça de um capoeirista para entrar na minha linguagem. Quando ele recebeu os sons, ficou totalmente integrado com aquilo. Eu tenho uns orfeus que foram feitos por várias cantores. Os orfeus para tape e voz, cada um deu uma entonação diferente. O Orfeu na floresta tem um texto como partitura, não tem nota. Já O canto do Orfeu, que é o segundo, que é a segunda cena, é todo escrito, milimetricamente, com quartos de tom para cantar, com tudo. Então, o segundo Orfeu, qualquer um pode fazer porque ele está escrito, está na partitura, qualquer um pode ler, acompanhar o tape, estudar e pronto. O Orfeu na floresta também qualquer um pode fazer porque eu proponho a parte do canto através de um roteiro. O Orfeu está dividido em quatro partes. A primeira parte vai fazer isso, a segunda aquilo, a terceira aquilo, a quarta aquilo e pronto. É tudo improvisado, mas improvisado dentro daquelas regras que estão ali escritas. A estruturação de Orfeu tem o tape e mistura partes improvisadas e outras partes que são bem rígidas, mas isso é uma obra que pode sair para o mundo. Tem peças que dá para fazer. Outras, eu acho muito difícil.”

CO-AUTORIA

209

“Certas obras que têm co-autores. Por exemplo: quando a Doriana [Mendes] fez essa coreografia [na obra Obá], nós trabalhávamos juntas. Tanto eu influenciei a coreografia dela quanto ela influenciou a minha música. Na Obá, tem certas coisas que ela não conseguia fazer dançando e cantando, até porque a respiração, as técnicas são totalmente opostas. Quando você está dançando, você usa a sua respiração de um jeito. Cantando, você usa de outra. Então, tinha que conjuminar essas técnicas respiratórias num corpo só. Havia momentos em que para ela fazer determinados gestos não podia fazer determinados intervalos em movimentos ascendentes porque era incompatível conseguir respirar e cantar daquela maneira. Isso tudo foi sempre experimentalmente evoluindo através das conversas da troca de informações entre compositor e intérprete. Como é que outra pessoa vai fazer isso? Eu não sei se a outra pessoa tem a mesma técnica de respirar que ela tem, se a outra pessoa é capaz de dançar e cantar ao mesmo tempo. O que pode, sim, é o outro intérprete criar uma versão própria dele, mas se ele não tem essa interação comigo, como é que fica? Ele vai fazer baseado no que ela faz, no que nós fizemos juntas, o que eu não acho justo porque é uma co- autoria dela, uma interpretação dela. Então, se ele vai copiar ela... [Essa] foi uma questão que ela [a Doriana Mendes] levantou muitas vezes em sua tese [intitulada A versatilidade do intérprete contemporâneo: uma abordagem interpretativa de três obras brasileiras para voz e cena]. Quando o compositor vê que „Bom, agora chegamos a um lugar que deu certo!‟, ele escreve a parte do intérprete que trabalhou com ele. Só que não adianta ele escrever aquilo. Não adianta, isso vai para outro intérprete e o outro intérprete não vai conseguir fazer. Cada intérprete, nesse caso, vai ter que fazer a partir de sua própria concepção.”

PARTITURAS: COMUNICAÇÃO ENTRE COMPOSITOR E INTÉRPRETE

“Ninguém mais faz manuscrito. Mesmo que seja um músico acústico, ele já vai para o Finale de uma vez porque a partitura já sai impressa. Não há intérprete mais que queira tocar uma partitura escrita à mão. Os últimos manuscritos que eu toquei eu passei, eu mesma, para o Finale porque eu não suportava ler aquilo. Já viu a escrita do Radamés [Gnattali] para piano? Eu tive que tocar uma redução dele, de orquestra, um concerto para violão e piano. Eram borrões de notas que pareciam clusters, eu tinha que adivinhar os acordes. Se não fosse analista, não conseguiria tocar. Eu analisava a partitura, começava a ver o que ele usava tipicamente: os intervalos, superposições de notas e deduzia porque não dava para ler empacando todo o tempo. Ninguém quer perda de tempo desse tipo hoje em dia, é inadmissível. Você tem que colocar na sua frente uma partitura que você se sente e toque, que 210

você possa passar de um compasso a outro sem problemas. Eu adoro escrever à mão, mas eu escrevo como se fosse uma máquina, eu tenho prazer de desenhar as minhas coisas e o Finale não me dá todos os recursos. Às vezes eu crio os meus símbolos, tem que fazer bula... A última peça para piano que escrevi não tem nada que fuja do tradicional. O Finale deu conta, mas não fui eu que editei. Eu fiz à mão e pedi a uma pessoa para colocar no Finale. Eu não gosto.”

REALIZAÇÃO

APARATOS TECNOLÓGICOS

“Os orixás são difíceis de sair pelo mundo porque a dificuldade tecnológica ainda é muito grande. Eu trabalho com som e imagem processados em tempo real. Não só tem que ter uma filmadora captando e outra filmadora projetando, como também microfones de contato específicos, além de computadores: um ou dois laptops, dependendo do número de orixás que eu vou fazer – porque um não agüenta. Um computador não agüenta os dezesseis orixás. Dá para fazer, no máximo, três ou quatro. Eu nunca fiz os dezesseis juntos porque exigiria uns quatro técnicos trabalhando juntos. Normalmente, o concerto acontece em um dia e no dia seguinte, acabou. Então, eu vou levar dois dias montando um palco para trabalhar uma vez e desmontar tudo. Então, não compensa. Com a Fantasia de Brasil tem essa dificuldade. Estreou na Alemanha. Depois, eu fiz aqui algumas vezes. Todas as vezes que eu fiz, eu fiz com orixás diferentes, dependendo dos recursos que eu tinha. Sempre acontece um problema. Por exemplo, um projetor que não casa com a distância da tela: eu passo meia hora para convencer a pessoa responsável pelo equipamento que aquilo não vai funcionar e a pessoa troca o projetor faltando quinze minutos para começar o concerto. Uma vez o meu programa de computador expirou cinco minutos antes de o público entrar na sala de concerto porque eu não paguei e tive que usar em Quick Time porque o Max estava fechado. Tudo preparado para lançar num programa... são coisas que acontecem.”

CIRCULAÇÃO

“Eu não sei cuidar da minha obra, botar ela para funcionar. Eu tenho dificuldade de fazer ela circular. Na verdade, eu não quero. As pessoas chamam, mas eu não tenho a menor vontade. Nem me importo que os outros escutem ou deixem de escutar, eu gosto é de fazer. 211

Estando pronto, eu abandono e deixo para lá, vou fazer outra coisa. Eu sou muito conhecida, mas ninguém sabe o que eu faço. Todo mundo me conhece de nome, mas ninguém nunca ouviu as minhas coisas, poucas pessoas ouviram ou, se ouviram, ouviram muito poucas coisas, um ou dois trabalhos e eu tenho um catálogo de obras gigantesco. Não é que eu não goste de apresentar a minha obra. Eu gosto, mas eu prefiro compor, eu prefiro criar. O que eu gosto é de produzir a obra em si e não de trabalhar na divulgação dela. Eu gosto é de compor. Se eu quiser botar um trabalho para circular, eu vou ter que fazer isso pessoalmente, como a Jocy [de Oliveira]. A Jocy é uma artista completa, nesse sentido, porque ela faz as coisas dela e produz. Eu não tenho a menor paciência.”

DIFICULDADES

“Não é que eu não me importe com a divulgação e a circulação da minha obra, mas certas obras dão tantos problemas para realizá-las. Encenar como deve ser... é tão caro, é tão doloroso, é tão trabalhoso... Dá muito mais trabalho encenar do que compor. Eu não sou uma produtora nata, eu não gosto de produzir, eu gosto de compor: são duas atividades opostas. A Jocy [de Oliveira] bota a obra dela para circular, mas ela só faz isso. Eu dou aula vinte e quatro horas por dia, estou na UNIRIO, alugada com tudo, o dia inteiro. Não é que eu não faça questão de divulgar a minha obra, mas é difícil e é uma tarefa da qual eu não gosto, que não me agrada. Aliás, eu sempre fico frustrada. Não há uma ocasião em que eu consiga sair feliz de uma apresentação. Sempre falta alguma coisa. Nunca consigo exibir a minha música do jeito que tem que ser.”

RETORNO FINANCEIRO

“Eu não tenho quem me produza porque ninguém está interessado no meu trabalho, que é um trabalho que não tem retorno financeiro. Eu tenho que ganhar a minha vida e não vou ganhar a minha vida produzindo o meu trabalho. Nem o [Pierre] Boulez conseguiu, imagina se eu vou conseguir. O Boulez vive de regente que ele é, muito bom.”

O PÚBLICO

APRESENTAÇÃO AO VIVO

212

“Como documentação, a gravação das performances de algumas das minhas músicas pode ser levada para ser exibida em qualquer lugar, mas eu acho mais interessante que esse espetáculo seja visto ao vivo. Não impede de você levar para casa e ouvir o suporte, mas se a obra foi feita para ser tocada... Ouvir [por exemplo] o piano tocando ao vivo é uma maravilha! É uma coisa que cada vez é mais rara.”

FOLCLORE, RITMO E MELODIA: TODO MUNDO GOSTA

“Todo mundo adora a Fantasia [de Brasil]. Todo mundo gosta, acho porque tem ritmo, tem melodia, tem essa coisa do folclore. Até os eletroacústicos mais radicais gostam. Ela mexe com a identidade cultural porque está falando de orixá. Mas a minha abordagem de orixás não é melódica e ritmicamente o que eles fazem no terreiro, nem poderia ser porque trazer o terreiro para dentro do palco, não tem condição. É uma linguagem metafórica do orixá. Trabalha o sentido daquele orixá, o que ele representa, não a música dele. Eu pego fragmentos daquele orixá, do canto dele e trago para a música eletroacústica mas trabalhado, processado. Mal se percebe.”

HONESTIDADE

“Eu não me preocupo com a recepção do grande público. Agradar a gregos e troianos, ninguém consegue, não há ser humano que consiga. Há mais chance de agradar quando se faz um trabalho honesto e é difícil se ter certeza de que se chegou lá naquilo que se produziu.”

AUDIOVISUAL

“O audiovisual é da nossa época. Pode ser até que o grande público assista à minha obra audiovisual e se identifique e talvez não. O nosso mundo é cheio de um audiovisual muito óbvio: televisão, celular que você pode falar vendo a pessoa, esse tipo de apelação comercial. Uma coisa é o que você vê na televisão, outra coisa é a arte. Quando eu falo da música-video, eu sei que a minha música é muito difícil de digerir.”

CADA UM NA SUA

213

“Quando eu mostrei na UNIRIO aqueles orixás... é interessante o feedback. Cada pessoa pensa diferente da outra. Eram pessoas cultas e sensíveis que estavam lá: um público seleto. Da reitora da Universidade que veio falar comigo o que achou ao presidente da [Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro] (FAPERJ), que é uma pessoa mais burocrática até, o representante da [Financiadora de Estudos e Projetos] (FINEP)... estavam todos os tops, lá, da cultura brasileira, que vieram opinar. Eu acho isso bárbaro. Eu adoro ter esse tipo de feedback porque você vê que cada um entende o que quer. Eu faço o que eu quero e as pessoas entendem o que elas querem. Desde que desperte alguma coisa no público... é isso que eu quero. Se gostou, se despertou alguma coisa... Pode não ser necessariamente o que despertou em mim.”

PERSONALIDADE

A PAIXÃO PELOS SONS

“Eu adorava ir ao galinheiro. Queria me ver feliz, me levasse ao galinheiro. Eu era louca por galos e galinhas por causa do som deles, provavelmente. O galo, quando ele canta, faz um acorde. É um canto harmônico, não é melódico. Eu só queria saber de som. No jardim da casa da minha avó tinha um balanço para dois lugares, desses balanços antigos. Fazia um barulho: Whainhém, oin. Eu tinha tanta saudade do barulho do balanço que eu pedia à minha mãe para me levar lá depois que nos mudamos, só para ouvir aquilo.”

ESCULTURAS

“Eu tenho uma obra que é serial e é para um quarteto de cordas clássico. Tenho muitas obras que não têm experimentação, mas digamos que eu tinha sempre mais afinidade com os métodos experimentais, principalmente com as tecnologias, com os sons pelos sons. Com o som, tudo me interessa muito. Eu tenho um prazer enorme de gravar um som e fazer uma análise sonológica, abrir o espectograma e ver o que tem dentro do som. É como se eu fosse dissecar uma pessoa como um médico abre a barriga de alguém. Eu gosto disso no som. Acho que o meu negócio com o som é mais esculpir o som do que outra coisa qualquer. É como se eu fosse uma escultura de sons: é o que sente todo mundo que trabalha com isso na música eletroacústica, no sound design, que são as linguagens que se desdobraram das linguagens tecnológicas que hoje em dia estão aí.” 214

CRIAR, PROCESSAR, PROGRAMAR

“Eu gosto mesmo é de criar som, processar... aquela coisa „braba‟... programar”.

AVÓ

“Tenho sessenta e cinco anos, agora. Eu fiz muitos concertos fora do Brasil. Agora, estou muito por aqui porque eu estou mais de avó. Eu curto ficar perto dos meus netinhos, já tenho quatro. Então, eu não quero mais sair tanto.”

RENOVAÇÃO

“Está havendo uma mudança na minha obra. Estou há dois anos sem conseguir compor, me repetindo um pouco. Eu prefiro parar geral e esperar o que vem do que ficar fazendo a mesma coisa. Eu tenho necessidade de romper com as coisas, não quero nem me repetir, eu quero sempre novidade.”

215

APÊNDICE D - Jocy de Oliveira: dramatrugia musical multimídia

Jocy de Oliveira nasceu em Curitiba, no Paraná, em 11 de abril de 1936. A pianista e compositora estudou com José Kliass e Marguerite Long. Atuou como intérprete de música do século XX, com repertório de peças de Igor Stravinsky, Iannis Xenakis, Luciano Berio, Claudio Santoro, Olivier Messiaen. Trabalhou com John Cage e abraçou a arte de vanguarda no Brasil. Mudou-se para o Rio de Janeiro após o seu casamento com o maestro . Jocy de Oliveira permaneceu, durante toda a sua carreira, à procura do novo através de suas produções. Sua música é fortemente cênica. Teatro musical, ópera contemporânea e música-vídeo são gêneros constantes em sua obra. A compositora dirige, há 20 anos, o grupo que montou para a realização de seus espetáculos. Mais de sessenta artistas já participaram do Ensemble Jocy de Oliveira, entre brasileiros e estrangeiros. Músicos, atores, e técnicos artistas que manipulam o maquinário mecânico e eletrônico das apresentações musicais tratadas como espetáculos compõem a equipe que produz uma música onde cenário, figurino, objetos de cena e videoarte coexistem. Além desses profissionais, vídeo-makers e especialistas de diversas áreas do teatro colaboram em todo o processo que ocorre entre a concepção e a montagem das obras. A difusão de som espacializado envolve o espectador na obra. A autora compõe a música, escreve texto e roteiro. Dirige e produz sua própria obra. A direção artística e executiva inclui as ações de viabilização, arregimentação e divulgação das obras. As produções de Oliveira mantêm sempre o compromisso com a inventividade numa diversidade cultural que se expressa em diferentes idiomas, com textos da própria compositora ou de outros autores. Jocy de Oliveira afirma que suas óperas contemporâneas constituem o gênero que, segundo ela, se chama music theater (música cênica) fora do Brasil. Nesse gênero, sempre escreve seus próprios libretos. A compositora explica seu processo composicional interdisciplinar:

Seria totalmente contrário à minha maneira de ver as coisas se eu pegasse um libreto [de terceiros] e musicasse. Seria totalmente contra aquilo que eu penso. Então tem que ser algo concomitante. Eu componho a música, faço o roteiro – é minha a ideia da obra, o roteiro – e dirijo. É tudo absolutamente integrado. Se não, seria uma ópera tradicional. Dizemos ópera porque não se 216

diz, em português, música-teatro, 212 mas em inglês, em francês, em alemão é mais música-teatro do que ópera. Música-teatro é quando ambas as áreas têm igual valor, igual importância, são concebidas e trabalhadas concomitantemente, embora tenham independência porque não tem aquela coisa que se o tímpano tocou, o bailarino pulou. Existe uma independência que é a propósito. Isso é música-teatro, que é diferente da ópera porque a ópera é um libreto onde se põe música. (informação verbal, grifo nosso).213

Oliveira comenta a respeito do compositor Wagner, que fazia os libretos de suas obras chegando “[...] muito mais próximo da música total da qual ele já falava”. (informação verbal).214 Ressalta que, entretanto, aquele era outro conceito de ópera. A ópera que Oliveira apresenta não tem o aspecto da linearidade que havia nas óperas tradicionais: “[...] É no conceito tanto do texto quanto do roteiro que há a grande diferença: a não linearidade. Aí, você não está lidando com uma história, é tudo fragmentado. É o ouvido do espectador que vai montar esse quebra-cabeça”. (informação verbal).215 A não linearidade de seu discurso musical/cênico pretende reservar a cada um, entre intérpretes e público, a sua parte na produção de sentido na obra. Oliveira apresentou, desde a infância, o interesse pela música aliada à dramaturgia, recebendo da família todo o apoio para o desenvolvimento de suas aspirações artísticas. Entretanto, a formação sólida ao piano levou-a a exercer, longamente, intensa atividade como pianista de concerto. Além do repertório tradicional, já firmava posição como representante da música contemporânea enquanto intérprete, antes mesmo de se tornar conhecida como compositora de uma das obras mais ousadas do repertório recente da música brasileira. O piano de Jocy de Oliveira é eclético: expandido, eletrônico. Os pianistas, em sua obra, tocam cravo, celesta, harmônio, sintetizadores, piano cenográfico. Oliveira aponta seu instrumento como um símbolo aristocrático em queda:

Para nós que convivemos com o piano, ele é um objeto íntimo na nossa vida, mas para inúmeras culturas, para as pessoas em geral, não. O piano é um símbolo aristocrático que está submergindo. A pianomania acabou, já acabou. Ouvir num concurso a mesma peça de piano vinte vezes com vinte

212A compositora está traduzindo ao pé da letra o termo music theater que, na proposta deste trabalho, não é música-teatro e, sim, música cênica – gênero que engloba tanto a música-teatro quanto a ópera contemporânea. 213Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de novembro de 2010. (Apêndice D, p. 227). 214ENTREVISTA..., loc. cit. 215ENTREVISTA..., loc. cit.

217

candidatos... haja paciência! O ouvido nem vai mais notar se vier alguém e fizer algo genial. (informação verbal, grifo nosso).216

Oliveira considera que a formação de músicos prioriza o repertório e os hábitos musicais do século XIX sem atribuir a devida importância à maioria das inovações do repertório da música dos séculos XX e XXI. Após o longo período de formação, os intérpretes, especificamente os pianistas, que estariam livres dos programas obrigatórios das escolas, passam a trabalhar sob a exigência dos contratantes e permanecem executando o repertório tradicional, sem tempo para estudar peças de compositores contemporâneos. Apesar de reconhecer a relevância da prática de música tradicional de todos os tempos, Oliveira lamenta a pouca prática, no Brasil, de música experimental/cênica. Quando atuava prioritariamente como intérprete, mantinha um repertório muito abrangente: “[...] O meu repertório era mais amplo do que o dos pianistas que tocam os grandes mestres somente”. (informação verbal). 217 Além do repertório tradicional, fazia primeiras audições de peças dos compositores que a ela dedicavam as suas obras. O custo da manutenção desse repertório tão amplo eram oito horas diárias ao instrumento. Para o repertório de Olivier Messiaen, dedicou sete anos de sua vida. Gravou toda a obra de Messiaen, que considera o último grande mestre do piano: “[...] Em sete anos, setenta por cento do que eu tocava era Messiaen porque é monumental”. (informação verbal).218 Oliveira reclama um espaço reservado à música do presente, mas reconhece que a música do passado tem o seu lugar: “[...] Se estivermos em uma sala de concerto em que a acústica seja boa, o piano seja excelente – nós não temos bons pianos porque a maresia acaba com eles – e, obviamente, um pianista excepcional, não precisamos de nada mais”. (informação verbal).219 Ainda assim, acrescenta: “[...] O formato tradicional de apresentação pianística poderia ser reformulado, sem dúvida, mas em pequenos detalhes: uma questão de acabamento”. (informação verbal).220 Oliveira compôs a música-video Noturno para um piano na qual a pianista toca em alto mar até que o instrumento, que boiava, submerge e, então, a pianista se movimenta por debaixo da água, nadando em direção à superfície. O áudio é uma música eletroacústica

216Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de novembro de 2010. (Apêndice D, p. 224). 217Ibid., p. 221. 218ENTREVISTA..., loc. cit. 219Ibid., p. 223. 220ENTREVISTA..., loc. cit.

218

baseada em trecho da obra de Mozart. As imagens são impactantes tanto pela ousadia da produção quanto pelo que representa. A importância do instrumento para a música de todos os tempos permanece. Todavia, o piano já não faz parte da vida de um grande público que em outras épocas já o idolatrou. Além de contar com um público especializado que lhe é fiel, a pianista e compositora vem conquistando um público de teatro no qual desperta certa curiosidade. Sabe que a visualidade de sua música se comunica de forma eficaz com uma sociedade multimídia: “[...] Nós vivemos uma era visual”. (informação verbal).221 Nos anos de 1960 e 1970, os compositores de vanguarda tinham a intenção de chocar o público, ao qual consideravam apático e passivo. As vaias eram bem vindas. Significava que os artistas haviam conseguido provocar alguma reação nos ouvintes. Mesmo que essa reação fosse de indignação, o objetivo estaria cumprido: a participação do público. A partir daí, Jocy de Oliveira, começou a dar instruções para a participação ativa do público na apresentação de suas peças. Percebeu, então, que estaria, daquela forma, impingindo à plateia um comportamento determinado e que não era isso o que ela desejava. Desejava, antes e ainda agora, uma participação reflexiva do público através dos estímulos auditivos e visuais de sua música: “Com essas peças que componho, tenho a intenção de fazer com que as pessoas abram seus sentidos [...]”. (informação verbal).222 Oliveira não tem qualquer ligação com música popular, brasileira ou internacional, e explica: “A música popular, para dizer a verdade, não me interessa muito. Talvez isso venha da infância. Na minha casa não se ouvia música popular”. (informação verbal).223 Para seu prazer pessoal, costuma ouvir música renascentista. Acima de tudo, vive e respira música o tempo todo: “Eu nasci para a música e vou continuar assim. A música faz parte da minha vida. Continuo sempre, nunca estou parada. Tenho inúmeros projetos, inúmeros planos ao mesmo tempo”. (informação verbal).224 Quatro DVDs lançados em 2010 reúnem 20 anos de trabalho em 6 óperas. Entre 1986 e 2007, Oliveira escreveu Fata Morgana, Liturgia do espaço, Inori à prostituta sagrada, Ilud tempus, As malibrans, Ksemia estrangeira. Sua obra focaliza, em diversos momentos, os valores do universo feminino, a crítica à supervalorização do produto cultural para consumo de massa e os dramas pessoais dos músicos no cotidiano de suas atividades artísticas.

221Entrevista com a compositora Jocy de Oliveira, em sua residência, no Leblon (RJ), em 10 de novembro de 2010. (Apêndice D, p. 232). 222Ibid., p. 231. 223Ibid., p. 233. 224Ibid., p. 234. 219

ENTREVISTA COM A COMPOSITORA JOCY DE OLIVEIRA, EM SUA RESIDÊNCIA, NO LEBLON (RJ), EM 10 DE NOVEMBRO DE 2010.

FORMAÇÃO

“Eu estudei com a Alice Pinto, que era da escola Chiaffarelli – grande escola pianística – e depois com José Kliass – grande escola pianística também, em São Paulo. Fui para Paris com Marguerite Long. Quando eu comecei a estudar com Marguerite Long, eu já tinha uma abertura diferente porque o concerto de Ravel, que eu toquei muito pelo mundo afora, foi escrito para ela. Ela conviveu com os compositores da escola dela. Ela fez as primeiras audições de Ravel, de Debussy, de Joel Smith, de Poulenc, de Milhaud, todos eles. Quando eu comecei a tocar Boulez, ela me incentivou, mas disse: „Aí eu já não posso te dar nada, já não é mais a minha geração. Mesmo assim eu quis fazer. Isso me atraía.”

BERÇO

ANTES DE NASCER

“Eu ouvia música antes de nascer. Não tem um momento, não tem aquele dia marcado em que eu tenha pensado em fazer música.”

INICIAÇÃO AO PIANO

“Minha mãe tocava bastante bem, estudou na Escola Nacional de Música. Não fez carreira, mas tinha um repertório de Schumann, Beethoven, Chopin e eu copiava tudo com três anos de idade. Tocava seguindo o que ela estava tocando. Era uma coisa natural para mim. Com sete anos, toquei no Teatro Municipal de São Paulo.”

SÓ PIANO

“Não sei se eu diria que ninguém me reprimiu. Eu acho que sim, me reprimiu, sim. Eu queria, por exemplo, estudar composição muito mais cedo. A minha mãe me levou para o Camargo Guarnieri para ele me ouvir, isso com uns seis anos de idade: „Ela não tem nada o que fazer no piano, ela tem que reger. Me dê essa menina, deixe comigo, que daqui a um ano 220

ela estará regendo uma orquestra‟. Aquele jeito dele era intenso, meio agressivo. A minha mãe disse: „Não, eu quero que a minha filha, além do piano, tenha uma vida normal‟”.

EXPERIMENTALISMO

PRESENTE, PASSADO E FUTURO

“Eu não estou rompendo com o passado. O presente é justamente uma reflexão sobre o passado e projeção no futuro. As obras tradicionais são muito importantes e existem para serem tocadas.”

PARADOS NO TEMPO

“O grande problema do ensino é que tudo visa o século XIX ocidental. O estudante de música é preparado e bitolado pelo século XIX.”

EXPERIMENTANDO DESDE SEMPRE

“Aos seis anos de idade eu compus a minha primeira peça. São bobagens que eu ignoro, mas que foram editadas pela Vitale – algo intuitivo, absolutamente intuitivo. Realmente, aos sete, oito anos eu compunha. Então, se eu compunha, eu tinha que ter interesse em mais do que aquilo que eu estivesse estudando na escola. Eu me lembro que eu ouvi a Orquestra Sinfônica Brasileira no Teatro de Cultura Artística, na época do Eleazar de Carvalho, com quem eu fui casada, tocando Sacre du printemp, a primeira audição no Brasil. Até hoje eu tenho uma impressão clara, nítida, daquilo que eu ouvi. Foi importante! Não era muito comum para uma menina de quatorze anos que estudava piano seriamente e que tocava Liszt, tocava Saint-Saëns, Beethoven, Mozart, mas que já tinha uma outra curiosidade, uma outra visão.”

INVENÇÕES

“Da música acadêmica, eu acho que nunca tive influência, nenhuma. Eu preferi a influência de qualquer pop do que da música acadêmica. Esses compositores que eu citei, eu não diria que a música deles é acadêmica. Não é. Eles foram, muitos deles, inventores. O 221

próprio Stravinsky dizia: „Eu não sou um compositor, eu sou um inventor‟. Ele inventou. A música não foi mais a mesma depois dele. Mudou. Isso é uma coisa que não se pode ignorar.”

NÃO EXISTE MAIS VANGUARDA

“Não existe mais vanguarda. A última vanguarda que pelo menos eu conheci e tive a felicidade de participar foi nos anos de 1960. O início dos anos de 1960 foi uma volta ao dadaísmo, uma volta em todos os sentidos: política, sexual, da mulher... Foi uma época efervescente e, depois disso, não.”

ACESSO AOS MEIOS TECNOLÓGICOS

“Existe uma liberdade, hoje, muito grande. Existe acesso aos meios tecnológicos. Antes era muito caro e complicado, a gente ficava dependendo de trabalhar em universidades, em estúdios de música eletrônica, era difícil. Trabalhávamos, então, com meios analógicos. Hoje em dia, com o laptop, a gente faz tudo. Isso é maravilhoso, mas é perigoso porque tudo o que é fácil – o que se consegue com facilidade e satisfaz facilmente – é perigoso.”

ADAPTAÇÕES

“Essa coisa de dar roupagem nova a La Traviata é ridículo. Você pode fazer uma coisa que seja menos ridículo do que a ópera italiana, mas a adaptação para fazer uma coisa contemporânea... ora, então escreva uma ópera moderna. Componha, faça alguma coisa nova. Não pegue uma ópera tradicional italiana. É claro, os materiais mudaram. Antes, pintavam o cenário, faziam aquela coisa estática. Mesmo assim, acho desnecessário pensar em uma nova estrutura operística para uma ópera romântica.”

O PIANO

CARREIRA E REPERTÓRIO

“Tive uma carreira como pianista tanto no Brasil quanto no exterior, por décadas, tocando com as maiores orquestras do mundo. Eu toquei com a Boston City, com a Los Angeles Filarmônica, com a Orquestra Nacional da França, com a Orquestra Nacional da 222

Bélgica, enfim, com todas essas orquestras. Eu tocava Ravel. Meu repertório já fugia um pouquinho [do tradicional]. Tocava Liszt. Até hoje considero o último período de Liszt um divisor de águas. Eu tocava Bartok – o número três, eu tocava muito. Tocava Prokofiev, o número um. Tocava Stravinsky e tocava os concertos do Messiaen. Era um repertório grande. Claro que eu toquei Beethoven, o número três. Toquei Mozart, toquei Bach – menos porque me chamavam mais para tocar essas peças [de linguagem moderna], com as quais eu me identificava mais, eram peças que me interessavam mais. Não toquei Brahms, nunca, os concertos de Brahms. Não toquei Schumann, mas toquei Chopin, o número dois. O meu repertório era mais amplo do que o dos pianistas que tocam os grandes mestres somente. Por que é que o pianista não tem esse repertório? A culpa também é do intérprete. Primeiro, ele não foi preparado. Depois, ele não tem tempo porque como ele não foi preparado, durante o começo da carreira, quando ele poderia estar abrindo os seus horizontes para um repertório muito maior, ele não abre por falta de preparo. Então, ele nem conhece, ele começa a tocar aqui e ali e o mercado pede o normal, que é o repertório tradicional. Ele entra num círculo vicioso com uma série de compromissos e não tem mais tempo de estudar peças novas. O que acontece comigo nesse sentido, é que eu, como outros poucos que faziam isso, também me tornava um laboratório. Os compositores, muitos deles, estavam escrevendo para mim. Para isso, eu precisava de oito horas por dia de estudo para manter um repertório e estudar obras novas.”

MESSIAEN

“Gravei praticamente toda a obra de Messiaen, que é um monumento para o piano. Depois de Messiaen ninguém mais fez nada para o instrumento. Talvez eu esteja sendo radical demais. Luciano Berio escreveu uma Sequenza que é dedicada a mim e é uma peça extraordinária, mas é uma peça. O que Messiaen escreveu é um monumento, uma obra. Para estudar a obra de Messiaen eu dediquei sete anos da minha vida. Em sete anos, setenta por cento do que eu tocava era Messiaen porque é monumental. Messiaen é, digamos, o que Liszt poderia ter sido se ele tivesse nascido no século seguinte. Messiaen é um Liszt, é um Debussy, é um mestre de uma nova linguagem: uma nova questão do tempo – a questão rítmica. É um passo adiante daquilo que se fazia.”

PAUSA PARA COMPOR, DIRIGIR E PRODUZIR 223

“Nesses últimos dezoito anos eu parei de dar concertos como pianista. Não era mais possível, com todos os compromissos que eu tenho como compositora – que não são os dos compositores que escrevem uma peça camerística e entregam a partitura para os intérpretes executarem e é convidado para assistir, às vezes. Não é isso. No meu trabalho, é concomitante toda a questão do texto, da música, da concepção cênica, da concepção visual, do vídeo, da direção e da produção. Então, é claro que eu não tinha tempo para continuar com o piano, estudando horas por dia. Não tinha mais tempo de estudar.”

DE VOLTA POR STRAVINSKY

“Foi uma exceção: depois de dezoito anos eu resolvi tocar nesse último espetáculo225 que eu fiz no Teatro Municipal [do Rio de janeiro], há um mês e meio. Eu não podia fugir a isso porque eu precisava dar a minha visão do Stravinsky, a minha vivência do Stravinsky. Fui solista com Stravinsky. O meu diário de todos os anos que eu convivi com ele, estava tudo anotado, eu tinha isso tudo e as cartas. Eu dramatizei tudo isso, eu fiz um roteiro. Naturalmente, eu incluí o Robert Craft porque essa simbiose entre o Stravinsky e o Robert Craft é uma coisa única na história da música. O Robert Craft realmente foi um incentivador de toda a contemporaneidade. Ele tinha uns quarenta anos a menos do que o Stravinsky e era detentor de uma cultura vastíssima e de uma capacidade musical vastíssima. Ele gravou toda a obra de Stravinsky, toda a obra de Webern, toda a obra de Schoenberg: um conhecimento musicológico imenso. Como intérprete, regia muito a obra de Stravinsky. Então, esse espetáculo todo é em memória de Stravinsky e em homenagem ao Robert Craft. Ele me mandou um depoimento dele, ele próprio participou desse espetáculo de uma forma virtual. Isso me fez tocar. A minha convivência com Stravinsky foi como pianista, não como compositora. Então, é claro que eu tinha que tocar. Eu escrevi algumas obras que atuaram como links entre as peças de Stravinsky. As minhas peças não têm piano: há uma parte eletroacústica e outros instrumentos. Esse espetáculo vai continuar e eu vou continuar tocando nele.”

RELAÇÃO COMPOSITOR-INTÉRPRETE

225Oliveira se refere ao espetáculo: Revisitando Stravinsky. 224

“Fiz várias primeiras audições de peças de compositores que escreveram para mim: Luciano Berio, [Iannis] Xenaxis, John Cage, Claudio Santoro, Lejaren Hiller, inúmeros. Isso me deu uma vivência muito especial dessa convivência com os compositores, com grandes mestres. A relação entre compositores e intépretes é uma coisa vital, é uma bagagem musical muito rica a convivência com a obra viva, que está sendo composta, ou que está sendo transformada porque a opinião do compositor às vezes muda de acordo com o que ele ouve ao longo de alguns anos e as versões vão acontecendo – isso, para a música dos nossos dias, a música contemporânea, porque tem gente que está viva, mas escreve música do passado e tem gente morta que ainda é vanguardista. Eu tive essa felicidade de ter convivido com esses compositores que, inclusive no livro que eu estou preparando que deve sair ano que vem, eu compilo cento e doze cartas desses compositores e comento, que são: [Igor] Stravinsky, Robert Craft, [Luciano] Berio, [Karlheinz] Stockhausen, [Iannis] Xenakis, Lucas Fox, Cláudio Santoro, John Cage, Eleazar [de Carvalho] e [Olivier] Messian.”

O FORMATO DAS APRESENTAÇÕES PIANÍSTICAS

“Eu gosto, ouço e assisto apresentações de piano, dependendo do pianista, dependendo do repertório. O formato tradicional de apresentação pianística poderia ser reformulado, sem dúvida, mas em pequenos detalhes: uma questão de acabamento.”

SÓ A MÚSICA

“Tomemos como exemplo um [Alfred] Brendel. Existe, na postura dele... aliás, ele nem toca mais, ele resolveu não tocar mais... ouvimos um recital dele inteiro, vários, todo o Liszt que ele fez, Schubert, com uma concentração, com uma reflexão, com uma emoção indescritível. Então, tudo é relativo. Se estivermos em uma sala de concerto em que a acústica seja boa, o piano seja excelente – nós não temos bons pianos porque a maresia acaba com eles – e, obviamente, um pianista excepcional, você não precisa de nada mais.”

CANOA FURADA

“Para nós que convivemos com o piano, ele é um objeto íntimo na nossa vida, mas para inúmeras culturas, para as pessoas em geral, não. O piano é um símbolo aristocrático que está submergindo A pianomania acabou, já acabou. Ouvir num concurso a mesma peça de 225

piano vinte vezes com vinte candidatos... haja paciência! O ouvido nem vai mais notar se vier alguém e fizer algo genial.”

MÚSICA CÊNICA

ACONTECEU

“Por quê o aspecto teatral, cênico, na minha obra? Isso é coisa que eu não digo em entrevista porque fica ridículo ficar falando como eu era quando criança. As crianças, meninas, na época, tinham casa de bonecas no jardim, era normal para quem podia dar aos filhos. Aos sete, oito anos, eu queria, ao invés de uma casa de bonecas, um teatro. Eu pedi ao meu pai. Então, ele mandou construir um pequeno teatro de madeira, no jardim, com cenário, com luz, pequeno. Eu escrevia as peças, desenhava os figurinos e chamava as crianças do colégio e da vizinhança, dava os espetáculos e cobrava. Meus pais me obrigavam a dar o dinheiro para as missões [religiosas]. Eu queria reinvestir no próprio teatro. Então, foi uma coisa intuitiva, espontânea. Eu não decidi fazer isso ou aquilo: aconteceu.”

INTERESSANTE PARA QUEM?

“Nos anos de 1960, 1970 e até mesmo no começo dos anos de 1980, eu, como pianista, fiz muita coisa e me divertia muito como intérprete dos outros. Eu participei, por exemplo, do Musicircus do John Cage, que era num estábulo. Nós ficamos vinte e quatro horas, cada um com um palco: ele tinha um palco, eu tinha um palco, o David Tudor tinha outro, Mers Kaning tinha outro e o outro era o Lejaren Hiller. Eram seis palcos. Aconteciam, nesses palcos, coisas diferentes cênicas, visuais. É claro que cenicamente era um caos e a intenção era justamente essa. Estávamos num estábulo com vacas de verdade e o público lá... Eu participei e achei maravilhoso. Foi uma honra ter sido convidada por John Cage para fazer isso, claro. Obras dele, fiz inúmeras. No caso de Jonh Cage, se na obra dele tem algo assim cênico e cômico, você pode pensar: „Ah, é uma brincadeira!‟. Não é. O pensamento de John Cage, como filósofo, influenciou toda a arte contemporânea, não só com a sua música. A música dele tem que ser vista no contexto da obra total. Uma coisa se complementa na outra e faz um sentido que não tem sentido porque ele não quer que tenha. Isso é toda uma filosofia. É perfeito, é fantástico, realmente. Quando ele esteve no Brasil – eu o convidei, ele veio ao Rio quando eu fiz a primeira audição de uma obra dele para piano, que era As low as possible. 226

Ele chegou e eu perguntei: „John, como é que você quer que eu toque isso? É mais ou menos qual duração?‟ Ele respondeu: „As low as possible‟. „E se eu passar o dia inteiro tocando?‟ – „It would be lovely‟. Nessa peça, as notas são determinadas, mas o processo de composição dessas notas usa elemento de chance através do I Ching. No final de vários dias – ele ficou hospedado aqui em casa e tudo – ele disse assim: „A minha obra morre comigo. Ela teve vida enquanto eu vivi‟. Ele era a própria obra dele. Algumas ficam. As low as possible é uma obra que fica. Ele começou a pensar no perene, mas só viveu pelo efêmero. De Lejaren Hiller, Machine music, na primeira audição: eu tinha que sair correndo pelo palco com um brinquedinho de criança que eu tocava no chão, fazia uns sonzinhos. Quando chegava no piano, eu soprava uma bola e furava a bola. Eu achava divertidíssimo. Eram peças que mesmo naquela época eu dizia: „Eu gosto de fazer, mas eu não gostaria de ouvir‟. Como espectadora, iria achar que era bobagem. Eu não iria gostar. Era difícil a parte de piano, era muito difícil, essa peça para piano percussão e fita – na época era fita. Era muito difícil e era muito interessante porque era um desafio para o pianista. Eu tinha que tocar aquilo muito difícil tecnicamente, muito virtuosístico, mas fazendo parecer que era uma brincadeira. Era um desafio para o intérprete e era interessante de fazer, é uma outra visão. Se estivesse ouvindo, não sei... eu acho que isso não conquista o público.”

COREÓGRAFA POR ACASO

“Uma peça que poderíamos chamar de música cênica para piano, da minha obra Dimensões para quatro teclados. 226 Ela está num Long Play que é „Histórias para instrumentos acústicos e eletrônicos”. Está na internet também. Essa peça é para quatro teclados: piano, harmônio, celesta e cravo. O pianista está no centro de um quadrado com esses teclados. Todas as possiblidades e impossibilidades dependem do que o braço pode alcançar e de manter um som contínuo com dois braços para quatro teclados. É claro que se torna uma coreografia. É um ballet. Não era intenção fazer gestos, mas tem que fazer para poder segurar uma nota e fazer outra numa combinação de timbres. Isso era um tremendo desafio.”

PEÇA CÊNICA PARA PIANO NA ÓPERA

226Dimensões para quatro teclados é uma versão de 1981 para piano acústico, piano elétrico, cravo e órgão elétrico, para a peça One player and four keyboards, composta em 1967 para celesta, cravo, piano e harmônio. 227

“Dentro das Malibrans tem uma parte que se chama „O mestre e a diva‟. Nessa parte eu, inclusive, toco. O piano é parte da cena da ópera. É uma peça cênica para piano que está inserida num contexto de ópera. Tem as divas e tem um mestre, que é um vampiro que tortura essas divas até elas perderem a voz.”

MÚSICA-VÍDEO

“Tem uma que é totalmente cênica. Chama-se Noturno de um piano. Eu lancei um piano ao mar. Era um piano cenográfico, um piano antigo, que eu comprei num brechó: um teclado de um piano dentro de uma caixa que tinha que flutuar. A intenção não era de uma peça cênica. Eu fiz um vídeo. A intenção, em primeiro lugar, é mostrar que o piano é uma das formas emblemáticas da nossa cultura aristocrática que está, absolutamente, acabando. Esse piano flutua por horas e horas e horas com uma pianista tocando, mas a parte de áudio eu fiz toda eletrônica, baseada na obra de Mozart – em uma citação de Mozart. Em segundo lugar, é a questão do caos, da teoria do caos, porque é algo absolutamente imprevisível. Desde os anos de 1960, muitas coisas das minhas obras têm este conceito do imprevisível, do imponderável. Não se sabia o que ia acontecer. Fizemos todo tipo de pesquisa para sabermos da maré, do tempo metereológico e das correntes porque isso era em alto mar. O que ia acontecer com esse piano? Nós não sabíamos. Toda a produção desse vídeo, que teve uma equipe com um cinegrafista em baixo d‟água, um barco seguindo, um cinegrafista no ar: vários cinegrafistas. No final, o piano submerge. Foi impactante até mesmo para mim: um momento que não se repete, principalmente porque não se sabia o que ia acontecer. Quem tocou [o piano cenográfico] foi a Gabriela Geluda, que é uma cantora soprano, que trabalha comigo há dezessete anos. Ela tocou horas e horas e horas. Ela toca piano mais ou menos. Ela toca piano, mas não dá concertos. Isso não importava. O que ela tinha que fazer ali era apenas uma representação. O Noturno de um piano está como „extra‟ nos DVDs das Malibrans.”

AUTORA TEATRAL

“O que faço é dramaturgia, não há dúvida, é um script, um roteiro com todas as falas dos textos de minha autoria. Os textos e toda a parte cênica – a concepção cênica nas minhas obras sempre – são meus.”

228

ÓPERA, MÚSICA-TEATRO OU TEATRO MUSICAL?

“Seria totalmente contrário à minha maneira de ver as coisas se eu pegasse um libreto e musicasse. Seria totalmente contra aquilo que eu penso. Então, tem que ser algo concomitante. Eu componho a música, faço o roteiro – é minha a ideia da obra – e dirijo. É tudo absolutamente integrado. Se não, seria uma ópera tradicional. Dizemos ópera porque não se diz, em português, música-teatro 227 , mas em inglês, em francês, em alemão é mais música-teatro do que ópera. Música-teatro é quando ambas as áreas têm igual valor, igual importância, são concebidas e trabalhadas concomitantemente, embora tenham independência porque não tem aquela coisa que se o tímpano tocou, o bailarino pulou. Existe uma independência que é a propósito. Isso é música-teatro, que é diferente da ópera porque a ópera é um libreto onde se põe música. Em Wagner, não. Ele também fazia libreto. Ele chegou muito mais próximo da música total da qual ele já falava. Mesmo assim, o conceito musical ainda é outro. É no conceito tanto do texto quanto do roteiro que há a grande diferença: a não linearidade. Aí você não está lidando com uma história, é tudo fragmentado. É o ouvido do espectador que vai montar esse quebra-cabeça. Ele vai criar, na sua fantasia, no seu entender, diferentes percepções. Cada um [cria] a sua. Em Dias e caminhos, mapas e partituras, um Long Play de 1961 – foi a primeira vez que se fez música eletrônica no Brasil – eu falo exatamente isso. Eu fiz com o Luciano Berio a Apague meu spot light. Essa peça não tem uma história, ela não é linear. Eu tinha vinte anos e dizia: „Não tem uma história?‟ No fundo, tinha uma história. Era fragmentada, mas tinha. Na época, eu pequei pelo texto porque era texto em demasia. Com o passar do tempo, a coisa se torna mais aberta, como o mundo em que vivemos. Teatro musical já é outra coisa. Aqui, esses termos ainda estão muito confusos. Talvez as denominações não tenham se definido – isso é irrelevante – por tais práticas serem muito recentes. Você vê muito mais lá fora [do país]: aqui, menos. Aqui, existem poucos estudos, pesquisas e livros a respeito, muito poucos. Nos Estados Unidos tem muita coisa, na Europa também. Tudo isso é englobado no que se pensa de multimídia.”

MÚSICA MULTIMÍDIA

“Aqueles que fazem música eletroacústica é que se dão mais conta do problema da escuta, da espacialização sonora, são aqueles que procuram mais se aliar ao vídeo, à luz. Por

227Quando Oliveira se refere a música-teatro, está traduzindo ao pé da letra o termo music theater que, na proposta deste trabalho, se traduz como música cênica. 229

exemplo, o [Luiz Carlos] Csekö tem uma luz que, por sinal, é muito bem feita. A música dele é tocada com uma iluminação muito bem cuidada e tem esse sentido do ritual do palco bem acabado.”

OS INTÉRPRETES

ATUAÇÃO CÊNICA

“O músico é, no meu trabalho, muitas vezes, um ator, ele tem que realmente atuar, ele tem que participar da cena”.

O INSTRUMENTISTA COMO INSTRUMENTO

“A questão musical que pede técnicas estendidas, a interação com o eletrônico, a integração com os outros, o equilíbrio entre aquilo que é determinado e aquilo que é indeterminado: isso tudo pede um instrumento que é uma pessoa. Eu não componho para uma voz ou para um oboé, eu componho para fulano de tal.”

ESPECIALISTAS

“No ano passado, eu tive uma encomenda de uma instituição em Munich e os instrumentistas eram todos de lá. Falaram que eu não precisava chegar mais do que quatro dias antes. Eu fiquei com certo receio porque era uma peça de primeira audição difícil, complicada, incomum, cênica. Tinha um resultado sônico da cena, que era o que mais me preocupava. Cheguei lá, fui assistir a um ensaio: era perfeito, eu não tinha o que dizer. Fantástico! Eu comentei com um amigo que era professor lá há doze anos: „Foi uma coisa incrível porque aconteceu assim [estala os dedos] e eu não tive trabalho algum! Até parece que eu estava fazendo um trabalho tradicional!‟ Ele disse: „Nós trabalhamos com os melhores músicos da Alemanha e eles só fazem música contemporânea. São músicos que estão capacitados a entender essa linguagem. Eles estudaram, eles pesquisaram. Para o músico, hoje, contemporâneo, isso já desde a década de 1960 – não é mais nem hoje, é nos últimos quarenta ou cinqüenta anos – aquele que se dispõe a tocar a música do seu tempo não pode só estudar [o instrumento]. O David Tudor foi um grande intérprete pianista. Trabalhou com o Jonh Cage e era fantástico, foi uma das minhas influências. Eu o conheci em 1961 e ele me 230

disse: „Quando eu pego uma peça nova, eu posso passar semanas só analisando, entendendo. Olhando, só olhando. Quando eu vou para o piano, é rápido‟. Isso já não é atitude de um pianista convencional.”

O TRABALHO EM EQUIPE

EQUIPE INTERNACIONAL DE INTÉRPRETES

“Eu tenho intérpretes que têm se dedicado a tocar a minha música: alguns, há mais de vinte anos. Então, é um Ensemble. Um deles é o Ricardo Rodrigues, que mora em Berlim, é catedrático em Berlim e toca comigo há mais de vinte anos. Ele toca aqui, na Europa... Está justamente, essa semana, na China. Foi uma encomenda que me fizeram na China e está havendo a primeira audição de uma peça minha lá. Eu mandei a peça para o Ricardo Rodrigues e mandei as explicações. A peça é muito complexa. Ela pede pela atuação de atores chineses junto com ele. Como eu trabalho com pessoas que têm desenvolvido junto comigo uma linguagem, há muito tempo, a coisa flui muito facilmente. Tenho vários intérpretes aqui, na Alemanha, outros na Suécia. Para fazer o Stravinsky, veio um da Suécia, que trabalha sempre comigo, que é o grande violoncelista e compositor Peter Schuback. Isso é vital, principalmente no meu trabalho. Talvez não seja vital para todos.”

TÉCNICOS ARTISTAS

“A montagem da equipe técnica que trabalha junto aos intérpretes é de fundamental importância. Não pode ser de outro jeito. Se eu tenho na cena oito pessoas, eu tenho oito pessoas lá atrás, na parte técnica. Não são simplesmente técnicos, são técnicos artistas porque tem toda a parte de projeção, a parte de mecânica, a parte de iluminação, sem falar na parte de difusão, que é vital, é o mais importante. O equipamento tem que ser de primeira, tem que ser realmente aquilo que eu peço. O equipamento é planejado para o espaço: número de caixas, a distribuição delas e a espacialização porque se não fica amadorístico.”

REALIZAÇÃO

A APRESENTAÇÃO MUSICAL COMO ESPETÁCULO

231

“O palco é como um templo e a apresentação, um ritual. Qualquer coisa que você faça no palco tem que ter um acabamento, tem que ter uma apresentação, uma força, um respeito ao espectador, ao ouvinte: tudo isso vai transformar a obra. Se você tem algo visual numa obra, isso complementa, mas não precisa ser só isso. Eu vou compondo por módulos. Nesses módulos, eu já tenho a noção do geral, mas eles vão se acoplando. São módulos instrumentais ou eletroacústicos ou vocais ou misturados, sei lá. Eles podem ser e são executados primeiro num formato de concerto. É claro que eu não vou colocar num formato de concerto sem ter a certeza de que o palco esteja pelo menos limpo, que eu tenha um mínimo de caixa preta no palco, que eu tenha uma iluminação básica porque se não eu não vou tocar, de jeito nenhum. Ter esse cuidado, cumprir esse ritual é fundamental para a música: o espetáculo visual e cênico. Esse acabamento é importantíssimo. Se tiver uma comida maravilhosa num prato de lata e tudo descuidado, você vai ter vontade de comer? Você não vai saborear a comida.”

AS SALAS DE CONCERTO

“Aqui no Brasil, por exemplo, os teatros não são aparelhados. Não tem um teatro aparelhado no Brasil, nenhum. Então, tudo tem que ser alugado”.

CAPTAÇÃO DE RECURSOS E EXECUÇÃO DE PROJETOS

“Para mim, essa história que nós temos no Brasil de isenção de impostos de leis de incentivo à cultura tem funcionado muito bem. Eu tenho uma empresa há vinte anos, produtora, que é minha, própria, que faz a captação e faz a produção. Então, eu tenho aquilo que eu quero, exatamente. Se não for de primeira ordem, eu não faço. Isso é o que desmonta toda essa coisa da música cênica que muitas vezes é um negócio que parece infantil: um músico fingindo de ator corre para lá, corre para cá, dá uma risadinha aqui... tem um cômico que não é cômico... eu acho patético. Não tem cabimento.”

DIVULGAÇÃO

“Todas as épocas têm seus „prós‟ e seus „contras‟. Nós temos um „contra‟ muito sério, que é a mídia. Os outros períodos da história não tiveram esse problema com a mídia. A mídia massifica, é só música popular de péssima qualidade, dia e noite. O que é que você quer que a 232

escuta se torne? Uma pessoa pode chegar num concerto de música contemporânea e se sentir tão chocada como eu vi gente no sul da Índia em relação a Beethoven porque não ouve, nada ouve, só aquela coisa massificante de péssima qualidade. Esse é o nosso grande problema.”

O PÚBLICO

O QUE NÓS QUEREMOS DO PÚBLICO?

“O que nós queríamos nos anos de 1970 era sacudir, chocar. Eu tive muita vaia. Era um delírio, eu ficava feliz da vida. Isso era com a minha obra e com a obra dos outros também. Aquilo era maravilhoso, obter uma vaia... era sinal de que havíamos conseguido atingir aquele público que estava adormecido. Aquilo era uma maneira de obter a participação do público. Nas minhas peças, eu comecei a dar instruções para que o público participasse: que fizesse isso, fizesse aquilo, fizesse aquilo outro. Depois, eu comecei a pensar: „Será que isso não está virando um jardim da infância? Eu não estou dando liberdade ao público, eu estou impingindo a participação do público. Quer coisa pior do que isso? Então, vou parar por aqui, eu acho que não é por aí”. O que nós queremos da participação do público é uma participação que seja reflexiva, que seja do pensamento, da fantasia, do seu próprio sonho. Queremos estimular a sua percepção e a sua maneira de ouvir, resgatar uma escuta que está se perdendo e conseguir aliar a audição à visão. Vivemos numa sociedade visual. Quando há estimulação dos sentidos, sempre uns vão sobrepujar os outros. Com essas peças que componho, tenho a intenção de fazer com que as pessoas abram seus sentidos, que seja uma viagem.”

COMPOSITOR, INTÉRPRETE E OUVINTE: UMA EQUIPE DE PRODUÇÃO DO SENTIDO

“A música é uma arte efêmera, só tem vida no momento em que é tocada. O escultor faz o seu trabalho e diz: „Tá bom‟. O escultor, no sentido tradicional, tem com o público uma interação menos forte do que o músico porque a música só existe com o ouvinte, só existe se estiver sendo ouvida. A escultura existe, a pintura existe. É por isso que os artistas visuais hoje em dia fazem instalações. Eles querem essa participação, eles querem essa coisa que é muito mais ampla.”

233

A QUESTÃO VISUAL NA INTERAÇÃO COM O PÚBLICO

“Se a questão visual ajuda? Ajuda porque nós vivemos uma era visual. Todo tipo de preconceito na nossa era é contra a música, é auditivo, não é visual, há décadas. Um exemplo são as aberturas da Rede Globo, do Hans Donner. Eu o conheço. Na década de 1980: „Você quer fazer a vinheta comigo da abertura do Fantástico?‟ – „Impossível. Você pode ousar‟. É ousado, o que ele faz. Hoje em dia mais não, mas era. O incrível é que fosse feito para as massas. Entretanto, é óbvio que a Rede Globo nunca aceitaria que eu fizesse a minha música. O preconceito é auditivo.”

QUE PÚBLICO?

“Eu tenho um público que me segue e isso é ótimo, muito bom, mas se nós conseguirmos tocar a sensibilidade de um público maior, sem pensar que um público seja mais capaz do que outro... A sensibilidade não depende do conhecimento, a sensibilidade depende da cultura, depende do próprio ser humano. Quem, exatamente, vai me ouvir, eu não sei, mas é um público de teatro, que vai ao teatro. Aí já existe uma seleção. Mesmo que não seja uma pessoa iniciada, é uma pessoa curiosa.”

TEATRO LOTADO

“Nós fizemos o espetáculo sobre Stravinsky228 duas vezes no Theatro Municipal [do Rio de Janeiro] lotado. Na sexta-feira era para um público mais, digamos, seleto, porque era caro. Eram assinantes. Tinha a ver com a temporada da Orquestra Sinfônica Brasileira: aqueles que seguem os concertos sinfônicos. Era um público „Classe A‟. No domingo, era a dois reais, era povão. A reação foi ótima.”

O MELHOR POSSÍVEL PARA TODOS

“A gente não pode deixar baixar o nível. Não se deve fazer concertos populares, nós temos é que democratizar os concertos, quer dizer, dar acesso ao grande público com ingressos mais baratos, mas fazer o melhor possível para qualquer um. Uma pessoa uma vez

228A compositora está se referindo ao espetáculo Revisitando Stravinsky. 234

me deu uma resposta que eu achei genial. Foi a Martha Herr. Ela trabalhava muito comigo. Eu ia fazer uma série de apresentações, de uma peça minha. Eu a convidei para fazer comigo um trabalho em Nova York e ela me disse: „Que pena, não posso porque já tenho um compromisso‟. Era um dia em Tatuí! Um dia no meio das datas propostas! Na hora eu pensei: „Que absurdo! Deixar de cantar em Nova York num lugar importantíssimo, uma serie contemporânea, grande! Mas não era um absurdo. Isso demonstra profissionalismo e respeito ao público. Ela estava comprometida em Tatuí. O público é o mesmo, merece o mesmo respeito, seja de Berlim ou seja de Tatuí.”

PERSONALIDADE

QUASE NADA POPULAR

“A música popular, para dizer a verdade, não me interessa muito. Talvez isso venha da infância. Na minha casa não se ouvia música popular. O meu pai gostava de ópera, ouvia ópera e a minha mãe era vidrada por piano. Eu ia aos concertos desde pequenininha e ouvia tudo que era de piano. Se fosse música popular, o que é que ela ouvia? Talvez, canções francesas, algumas coisas americanas, não chegava a ser jazz. A gente não ouvia muito a música popular.”

MUITO PRAZER

“Para o meu prazer, eu ouço muito música renascentista.”

MUITO TRABALHO

“Acabei essa ópera [As Malibrans], que foi um trabalho enorme. Foi um trabalho de um ano, exaustivo. Depois, já escrevi duas peças instrumentais. Uma foi uma encomenda da Funarte, a outra foi para a China. O roteiro do Revisitando Stravinsky está sendo editado. Eu tenho uma série de coisas em que eu estou envolvida agora.”

MUITOS PLANOS 235

“Eu nasci para a música e vou continuar assim. A música faz parte da minha vida. Continuo sempre, nunca estou parada. Tenho inúmeros projetos, inúmeros planos ao mesmo tempo.

236

APÊNDICE E - Tato Taborda: um inventor de instrumentos

Tato Taborda nasceu em Curitiba/PR, em 11 de janeiro de 1960. Mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança, em 1971. Teve como principais orientadores os professores Esther Scliar e Hans Joachim Koeullreutter. Cursou Mestrado em Música Brasileira e Doutorado em Bioacústica e Estratégias Polifônicas pela UNIRIO. A obra de Pretextato Taborda229 é repleta de experimentações sonoras cujas dimensões cênicas frequentemente são inevitáveis, segundo ele mesmo. Desde criança, batucando, criava ritmos com o corpo, experimentava os sons possíveis de serem extraídos dos objetos, observava os sons cotidianos. Descobria sonoridades não usuais dos instrumentos musicais tradicionais e dos instrumentos de brinquedo. Ao conviver com grandes nomes da cultura nacional como Hélio Oiticica, Torquato Neto, Hugo Carvana e outros intelectuais e artistas que frenquentavam a casa de seu pai jornalista e cineasta, viu serem disparados os seus já aguçados instintos criativos em direção à música. À época de suas primeiras aulas de piano e, depois, de violão, o menino apresentava uma relação ainda totalmente lúdica com a música, relação essa que foi, aos poucos, tornando-se cada vez mais intensa. Integrou, tocando guitarra, uma banda de música popular que tocava em festas e eventos. Mesmo nesse período, não deixou de experimentar, como fazia na infância, as sonoridades alternativas dos instrumentos. Tocava guitarra com arco de violino. Inventava sua própria maneira de fazer música e exercitava permanentemente sua curiosidade na busca por novas sonoridades. Em 1976, ingressou na Escola de Música Villa-Lobos, na classe de Estruturação Musical da Professora Esther Scliar, com quem estudou durante três anos. Em seguida, orientado pela Professora Carole Gubernikoff e por seu professor, Willy Corrêa de Oliveira, encaminhou-se para estudar com Hans Joachim Koeullreutter, com quem permaneceu por seis anos. Nesse período, teve oportunidade de escrever e estrear peças em diversos festivais de música contemporânea e a criar obras para teatro e televisão. A respeito de suas composições de trilhas sonoras para programas especiais e seriados da Rede Globo de Televisão, comentou: “[...] Fui aprendendo naquele ambiente, em todos os seus aspectos,

229Nome de batismo que se transformou, em sua forma reduzida, no nome artístico do compositor. 237

desde a escrita à relação da música com a imagem, com o contexto dramatúrgico [...]”. (informação verbal).230 Afirmou ter aprendido, nesse período, a lidar com o acaso como parceiro, não apenas nos procedimentos composicionais como também no momento de execução das obras: “[...] Mais importante do que o meu plano, que eu posso gerar autonomamente e implementar a ferro e fogo, é estar aberto para receber a contribuição do outro: às vezes do acaso, às vezes de um erro”. (informação verbal).231 Essa maneira de encarar o momento imponderável da apresentação musical repercute na forma com que o compositor anota – ou não anota – e repassa – ou não repassa – as suas ideias para os intérpretes. Em muitos casos, como no da peça A prostituta americana, de 1983, as ideias cênicas não estão na partitura. Na iniciativa de criar um cenário e chamar um ator – Ivanir Calado – para interagir na performance por ocasião da estreia na Sala Cecília Meireles/RJ, Tato Taborda não cogitou em recomendar por escrito a próximos possíveis intérpretes que repetissem tais procedimentos ou mesmo que inventassem outros recursos cênicos. Deixou a dimensão cênica completamente por conta do acaso sem ter qualquer tipo de expectativa em relação a próximas apresentações. Em Organismos para quarteto de violões, os gestos decorrentes do manejo não usual dos instrumentos devem, segundo o compositor, ser precisos, bem definidos, intensos, enérgicos, eficientes. Na estreia, Taborda dirigiu a cena transmitindo aos músicos sua concepção visual dos movimentos. Entretanto, mais uma vez, não fez questão de deixar tais indicações anotadas para próximos concertos a serem realizados por outros músicos: será que algum outro intérprete vai perceber, nas entrelinhas da partitura, a necessidade de executar a peça com movimentos precisos, intensos e enérgicos? O compositor demonstra certo desapego, certo despojamento com relação ao resultado que será alcançado em ocasiões em que não estiver presente para instruir os intérpretes: “Quando eu passo instruções diretamente para um intérprete, eu sei que quando outro intérprete que não teve esse contato pode tocar resultado”. (informação verbal).232 A obra de Taborda é de realização complexa, não apenas pelas dimensões cênicas implícitas – não vinculadas, não mencionadas ou não comentadas na partitura. Duas de suas peças para piano, por exemplo, prevêem uma guitarra elétrica dentro do instrumento. A guitarra vibra por simpatia de acordo com as notas tocadas no teclado. Deve ser afinada de

230Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 244). 231Ibid., p. 245. 232Ibid., p. 250. 238

determinada maneira e deve passar por um processador eletrônico programado “[...] de maneira bem específica”. (informação verbal).233 O compositor explica por que não colocou tais instruções em partitura: “[...] Eu podia dizer: „Olha, consiga um processador de tal natureza, afine a guitarra nessa ou naquelas notas...‟. Não é impossível de se fazer, mas é uma encrenca”. (informação verbal).234 Outra obra de realização complexa é o Samba do Crioulo Doido, para dois percussionistas. O aspecto visual/cênico é, outra vez, inevitavelmente decorrente da execução não usual dos instrumentos de percussão. Os percussionistas tocam com as mãos, com os pés, com as pernas, com a cabeça, com as nádegas, com o joelho, com o cotovelo. Dentre os instrumentos utilizados encontra-se uma caixinha de música fabricada na Suíça – por uma fábrica que já não existe – com um arranjo, de autoria do próprio Taborda, de Aquarela do Brasil, de : “Para todo mundo que queria tocar essa peça, eu tinha que mandar a caixinha junto. Complicado, né?” (informação verbal).235 Na ópera multimídia Amazônia, a queda do céu 236, de 2010:

o som da floresta é uma polifonia espacialmente distribuída [...] em ambiente sonorizado com uma rede de vinte e quatro pontos de alto-falantes distribuídos por todos os quadrantes do espaço, criando uma sensação de multilateralidade que é análoga à que encontramos no espaço da floresta. (TEATRO..., 2010).237

O próprio Taborda afirma: “[...] Essa ópera é complicadíssima para alguém reproduzir”. (informação verbal).238 Taborda fez parte de um grupo de amigos que formavam o Juntos-Música Nova e reiterava, junto a eles, suas concepções musicais:

Para mim, sempre, compor teve duas instâncias muito importantes, desde as primeiras peças: construir um instrumento e inventar um jogo. Construir um instrumento não só fisicamente, mas escolher um determinado número de instrumentos ou fontes sonoras e formas de tocar específicas de cada uma

233Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 246). 234ENTREVISTA..., loc. cit. 235ENTREVISTA..., loc. cit. 236Ópera multimídia (libreto de Roland Quitt) encomendada Bienal de Munich em parceria com o Instituto de Arte e Tecnologia ZKM e com o SESC São Paulo. O primeiro ato é do compositor alemão Klaus Schedl. Para compor o segundo ato, Tato Taborda se aproximou da liderança Yanomami, o Xamã Davi Kopenawa, com o objetivo de compreender a visão da Amazônia “de dentro para fora” (TABORDA, 2011). 237Documento online não paginado. 238ENTREVISTA..., op. cit, p. 247. 239

dessas fontes. O conjunto dessas escolhas forma um organismo. Configurar um instrumento é fazer um instrumento ter tais e quais sonoridades, tais e tais comportamentos de respiração, tais possibilidades dinâmicas. Uma obra é o resultado desses instrumentos e de maneiras de tocá-los. Eu sempre me interessei muito pelo jogo. Um jogo é onde se cria regras. Eu sempre adorei compositores que criavam regras e que seguiam disciplinadamente as regras. Eu não sigo tão disciplinadamente as regras. Eu crio regras que são móveis, que dependem muito da interação dos parceiros. Eu brinco, eu crio regras que não são estritas, mas princípios relacionais, ou seja, se eu fizer tal coisa, você pode fazer tal ou qual – outra – coisa. Quando o nível dinâmico atingir tal plano, você pode disparar aquele material. As relações vão se dando por respeito a essas regras. O grupo seleto de intérpretes com o qual eu comecei a trabalhar lida bastante bem com isso na medida em que eu seja claro em relação às regras e ao que eu espero deles. (informação verbal).239

O diálogo com outras linguagens artísticas como teatro (também na produção de música de cena), dança e videoarte. Na obra Amazônia, a queda do céu (2010), a relação com o libretista Roland Quitt se deu como um trabalho de intensa colaboração. O uso de objetos tais como brinquedos, grampos e pentes é frequente em sua obra. Tato Taborda criou, inclusive, um multi-instrumento ao qual denominou Geralda, constituído por 70 instrumentos convencionais e não convencionais – o que inclui instrumentos danificados, inadequados para a música tradicional – e objetos tais como brinquedos quebrados. A Geralda pesa cento e vinte quilos. São necessárias quatro horas de desmontagem caso haja necessidade de deslocamento: “[...] Quando eu tenho uma viagem internacional, tenho que desmontá-la em mil pedacinhos para caber em quatro cases. Isso é bem complicado. [...] Percebe como eu crio encrencas? Eu não consigo evitar! Eu me divirto com isso”. (informação verbal).240 Em parceria com Alexandre Fenerich, criou a Geraldona, que é uma junção dos sons reais, processados e espacializados em oito canais da Geralda com os mesmos sons gravados e executados em interação com aqueles. Alexandre Fenerich deflagra os sons pré-gravados e interage com os sons da Geralda em tempo real, enquanto Taborda, que a manipula, tem, por sua vez, interferência nos meios digitais disparando comandos através de uma bateria midi: “[...] A Geralda virou um sistema de interações mútuas onde a combinatória é praticamente infinita”. (informação verbal).241 O piano foi outro aspecto que marcou presença permanente na vida de Taborda:

239Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 245). 240Ibid., p. 251-252. 241Ibid., p. 253. 240

O piano na minha vida é um parceiro permanente, é um meio de troca. Comecei brincando no piano. Veio um período muito forte na guitarra e voltei ao piano aos quatorze anos. Comecei a ter aulas com a Esther Scliar, a Vânia Dantas Leite e fui para o Caio Pagano. Eu era o pior aluno da Vânia [Dantas Leite] e era o pior aluno do Caio [Pagano], mas eu não me importava. A minha relação com o instrumento era diferente. Independente disso, o piano foi entrando muito fundo e passou a ser o meu elo de troca com o teatro, com a vida mesmo, com a canção, com a música popular. Eu texto as coisas no piano. Eu uso o piano para compor. (informação verbal).242

Quanto à produção executiva para a realização de suas obras, Taborda não apenas aguarda convites para as apresentações. Elabora projetos, participa de editais públicos, dirige e supervisiona seus concertos, contrata equipe. Nesses casos, diz ele, é necessário “[...] assegurar que essa equipe tenha as condições necessárias para a realização das suas visões, dentro dos limites orçamentários do projeto, e fazer ponte com a comunicação social: ser totalmente atuante. Não basta ficar aqui criando”. (informação verbal).243 Para reunir equipes de trabalho, ao longo de muitos anos, Taborda coleciona parceiros criativos:

Eu fui filtrando poucas parcerias com as quais eu gosto de trabalhar muito: Aderbal Freire, Moacir Chaves, Amir Haddad. Com eles, eu me entrego totalmente aos seus desejos, eu procuro interpretar totalmente as suas visões, além de contribuir com a minha. Aprendo tanto deles como aprendo de uma conversa com a figurinista que mostra um croqui, um tecido, uma trama de tecido ou com um cenógrafo que traz uma maquete, com um iluminador que traz uma ideia de um desenho. Tudo isso é alimento para a música. (informação verbal).244

ENTREVISTA COM O COMPOSITOR TATO TABORDA, EM SUA RESIDÊNCIA, NO FLAMENGO (RJ), EM 18 DE JULHO DE 2012.

FORMAÇÃO

“Eu senti necessidade de fazer música, de tocar música e de não apenas vivenciar a música. Meu pai conseguiu uma primeira professora de piano para mim com quem eu tive, aos onze anos de idade, aulas durante um ano ou ano e meio. Eu parei de ter aulas com ela, mas o piano continuou em casa como um brinquedo, como um objeto com o qual eu continuei

242Entrevista com o compositor Tato Taborda, em sua residência, no Flamengo (RJ), em 18 de julho de 2012. (Apêndice E, p. 247). 243Ibid., p. 252. 244Ibid., p. 250. 241

me relacionando. Um ano depois, eu comecei a ter aulas de violão e, logo depois, de guitarra. Então, aos quatorze anos, eu tinha uma relação muito intensa com a música. Eu tinha um grupo, uma banda. Tocávamos em festinhas, em clubes. Viajávamos para lugares próximos ao Rio de Janeiro. Ensaiávamos bastante, experimentávamos muitas coisas: eu tocava guitarra com arco de violino, fazia experiências com o instrumento. A partir daí, foi um caminho ininterrupto na relação com a música. Em 1976, ou seja, dois anos depois desse momento do qual estou falando, eu comecei a sentir uma inquietude, uma necessidade de entender um pouquinho mais daquilo que eu fazia de uma maneira tão prazerosa e intuitiva. Disseram-me que havia um espaço, uma Escola de Música chamada Villa-Lobos, no centro da cidade com professores muito interessantes, com a direção do compositor Aylton Escobar. Ele levou para a Escola músicos muito importantes como Joachim Koeullreutter, Esther Scliar e instrumentistas como Noel Devos, do fagote; José Botelho, do clarinete; Paulo Moura; Bituca, da percussão. Foi um momento muito especial desse ambiente. No primeiro dia que eu cheguei na Escola, abri uma porta e estava a Esther Scliar dando uma aula do curso de Análise Estrutural a uma turma com dez ou doze alunos. Ela, tocando ao piano a sonata Waldstein, de Beethoven, dando exemplos, mostrando como um tema se transformava em outro, como um pedaço do tema se convertia em outro, em como uma parte se dividia em duas ou três e a segunda gerava uma prole própria e a primeira parte gerava outra prole e que isso depois se encontrava mais adiante. Isso foi uma revelação: música não era apenas um desfrute pessoal, um prazer, uma experiência dionisíaca, mas também algo que podia ser pensado como uma linguagem, que podia ser montado, articulado, combinado, dividido em partes. Eu fiquei fascinado, fiquei louco com aquilo. Fiquei sentado, lá atrás, vendo a aula, ela indo ao piano. Da quarta sinfonia de Brahms para Gillaume de Machaut, ia para Webern e voltava para Josquin de Prés, ia para Beethoven: música era uma coisa só, com fios que conectavam tudo! Era natural, isso. Tudo era conectável, era linguagem! Eu não entendia quase nada do que ela [Esther Scliar] falava, mas fiquei fascinado com a possibilidade de pensar música dessa maneira. Os alunos faziam perguntas interessantíssimas e eu achava interessantíssimo o que ela respondia, até que eu me atrevi a fazer uma pergunta. Eu não sabia quase nada, o que eu podia perguntar? Eu tinha uma intuição... Ela foi tão generosa com o que ela capturou na minha pergunta... uma partícula que fazia sentido. Respondeu generosamente com relação àquela partícula para me engajar, para me trazer para dentro. Claro que ela me conquistou! Eu nunca faltei uma aula dela. Foi uma relação muito intensa por três anos. Primeiro na Escola de Música Villa-Lobos e depois na casa dela. Foi então que conheci Hans Joachim Koeullreutter, que foi o meu professor mais importante. Eu o conheci num evento no 242

Parque Lage, no Rio de Janeiro. Ele, nessa época, era diretor do Instituto Goethe. Ele foi diretor de vários Institutos Goethe ao longo do mundo e depois de 1960, após perder a cidadania alemã por causa da guerra, por causa das suas convicções comunistas, e recobrou a cidadania alemã e o contato com a Alemanha em 62. Foi contratado pelo Instituto Goethe para ser diretor em Nova Déli, em Tóquio, em Seul. Ele passou dezessete anos itinerando. Desses, passou de doze a treze anos por diversos Institutos Goethe. Ele chegou ao Brasil, primeiro em 1937 e, depois, de 1962. Voltou ao Brasil como diretor do Instituto Goethe no Rio de Janeiro. Ele organizava um Festival no Parque Lage. Ele havia formado uma geração de compositores antes, na década de 40 e 50: Claudio Santoro, Guerra-Peixe, Edino Krieger, a própria Esther Scliar. Quanto saiu do Brasil e voltou, encontrou uma nova geração de compositores ávida por alguém como ele. Nesse Festival, eu era moleque, mas eu era amigo, entre aspas, muito ligado, ao Willy Corrêa de Oliveira, que era professor da Carole Gubernikoff, que era a minha professora aqui no Rio de Janeiro. Ele me dava a maior trela, me levava para os bares, ficávamos naquelas conversas: ele queria saber tudo sobre mim, sobre as coisas que eu escrevia e o que eu fazia, me dava corda. Nesse Festival, ele me falou: „Tá vendo aquele senhor de cabelo branco? Se você não for estudar com ele, não fala mais comigo‟. Eu levei o maior susto e no dia seguinte fui procurar onde o Koeullreutter estava. Ele estava no Villa-Lobos e eu me inscrevi no curso dele. Ele dava aula de contraponto. Tinha uma turma de contraponto e tinha uma turma de arranjo baseado naquele livro que ele tinha de arranjo jazzístico. Eu comecei a freqüentar as aulas dele e me envolvi totalmente: com a personalidade dele, com as coisas que ele falava. A partir dali, foi um mergulho muito intenso de seis anos mais ou menos que começou ali e foi para a casa dele com aulas particulares numa relação muito próxima. O mais importante dessa relação foram as coisas para as quais ele apontou, mais do que as coisas que ele me ensinava ou falava: eu olhava para os lugares para onde ele apontava. Eu me conectei com coisas que permaneceram na minha equação de formação: músicas de diferentes culturas, um conceito de tempo relativizado em relação ao tempo ocidental. Tudo isso foi da experiência dele no Oriente. Eu tive a sorte de ter o Koeullreutter filtrado por esses treze anos de experiência dele no Oriente e uma série de outras coisas: o fato [por exemplo] de eu encarar a música popular como algo importante – como um objeto sonoro musical importante e digno de observação, de análise e de estudo. Não é uma arte menor. Eu e um grupo de compositores se juntou a ele, entre os quais, o Tim Rescala. Nós nos conheceu antes: o Tim tocava na minha banda de rock. Ele tocava teclado e eu tocava guitarra. Como eu fui antes procurar o Koeullreutter... „Olha, cara, você tem que ir lá. O negócio lá é sério!‟. E ele foi. Começou a ter aulas com o Koeullreutter também. A 243

gente formou um grupo em torno dele. O Koeullreutter deu muita corda pra gente, deu muita força. Encomendava obras. Quando ele fazia Festivais ele encomendava peças e levava para estrear com músicos excelentes: o Quinteto do Rio, Heitor Alimonda, José Botelho, Noel Devos, Caio Pagano... músicos de ponta: „Escrevam para essas pessoas, dialoguem com eles, cheguem a um entendimento na medida do tempo que eles dispuserem‟. Foi um período muito rico de mergulho na composição. A minha relação com a Esther Scliar, com o Koeullreutter, era de tal forma intensa que eu olhei para a possibilidade de entrar numa Universidade e aquilo me pareceu não fazer sentido naquele momento. Eu não fiz Universidade. Eu fazia, já nessa época, música para teatro. Não fiz bacharelado nem licenciatura. Mergulhei profundamente no fazer musical. Eu tinha um grupo, que criei junto com alguns colegas, chamado Juntos Música Nova onde tocáva peças que escrevíamos para esse grupo. Participamos de todos os Festivais que havia na época: Bienais de Música Contemporânea, aqui e em São Paulo, o Festival de Música Nova... Um bacharelado naquele momento não tinha o menor sentido. Eu nem cogitava essa possibilidade. Eu achei que era uma coisa que eu ia simples e permanentemente passar ao longe. Em 1994, a Carole Gubernikoff falou: „Tato, vai abrir um Mestrado, na Unirio, em Música, Composição. Você não tem graduação, mas vai lá e faz a prova. Não vai ter garantia, mas são decisões que dependem em alguma medida, de um colegiado‟. Isso foi uma semana antes [da prova]. Eu peguei a bibliografia, estudei e passei em primeiro lugar: qual foi a minha surpresa ao ver que eles me aceitaram! O tema do meu Mestrado foi Música de Invenção em que eu estudei as fronteiras entre a música chamada popular e a música experimental no Brasil – autores que transitam por esse território fronteiriço, quase todos eles oriundos de ambientes criados pelo Koeullreutter, seja em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Terminei o Mestrado e engatei, em seguida, o Doutorado num projeto mais vertical ainda, em Composição, baseado no meu interesse pessoal de muito tempo, que era uma interface entre estratégias de comunicação de criaturas noturnas – hábitos de comunicação de criaturas como sapos, rãs, grilos, vagalumes – e estratégias humanas de polifonia, das quais o contraponto é a estratégia mais exemplar, embora haja muitas outras. Comparando de que maneira essas estratégias de comunicação que se fazem onde o som é o meio fundamental de expressão e de e é preciso ser, então, responsável com a administração do som. Então, quais as estratégias que os indivíduos adotavam para poder passar seu gene adiante – já que seriam ouvidos num ambiente de diversidade – sem a superposição dos competidores, que é dramática? A minha primeira surpresa foi que eles aceitaram esse projeto no doutorado. E aí veio o pânico: „Caramba, isso é uma intuição! Agora eu tenho que ter alguma base para poder fazer disso não apenas um eu 244

acho‟. Pedi socorro para uma lista de bioacústicos da Universidade de Cornell. Expliquei a natureza do projeto e pedi a eles manifestações desse princípio de coordenação da comunicação sonora entre espécies diferentes. Três ou quatro dias depois, a minha caixa de correio estava lotada de mensagens dos próprios autores dos textos, dando conta de procedimentos de alternância, de chamados em tal espécie de rã na Sumatra, entre tal espécie de anfíbio em Moçambique, entre tais pássaros, entre grilos, entre vagalumes, dando conta da ideia de alternância como princípio básico do contraponto: perceber o pulso dos competidores e colocar o seu chamado nos intervalos desse pulso, para ser ouvido – ou não será ouvido porque a fêmea não consegue localizá-lo. Esse é um princípio de origem natural: bioacústica, exercitada em diversas espécies. Essas estratégias que a gente supõe que sejam muito abstratas, descoladas do modus operandi natural, da polifonia e todas as técnicas polifônicas, na verdade, são reverberações desses mesmos procedimentos de segregação temporal ou espacial. Se você colocar indivíduos emitindo sons de lugares diferentes, você cria clareza sobre a sua comunicação: tímbrica, de intensidade – porque intensidade também é um fator de diferenciação. O meu doutorado foi, então, um estudo sobre estratégias de comunicação de criaturas de hábitos noturnos e a correlação dessas estratégias com as técnicas humanas de polifonia em diversas culturas.”

BERÇO

“Eu nasci em Curitiba. Ainda em Curitiba, senti despertar em mim uma curiosidade muito grande em relação à própria música, embora não materializada em instrumentos: materializada num desejo de tocar objetos, de batucar nas coisas, de criar ritmos com o meu corpo, de experimentar objetos sonoramente, além de querer desmontar esses objetos para ver como eles funcionavam por dentro. Isso me gerava problemas porque eu desmontava aparelhos eletrodomésticos ou coisas que eu não conseguia montar de novo e depois tinha que levar para o conserto. Esse desejo do avesso, do que está por trás, de como o brinquedo funciona, sempre me interessou. Eu ganhei aos seis ou sete anos de idade um violão e, a partir dali, parte dessa experiência foi canalizada para o instrumento, mas não exclusivamente. Continuei curioso em relação ao som, independente do instrumento. Eu não tive, até os dez anos, uma formação focada no instrumento. O instrumento era um brinquedo, era um prazer, era um elo de contato com um mundo que me interessava. Em 1970, eu vim morar com o meu pai no Rio de Janeiro. Nesse momento ele era jornalista, muito conectado com a segunda geração do movimento tropicalista, com poetas como Torquato Neto, artistas plásticos como 245

Hélio Oiticica – da primeira geração do tropicalismo – e Hugo Carvana. Era um ambiente de muita efervescência cultural. Esses agentes eram protagonistas dessa continuidade do Movimento Tropicalista e do Cinema Novo na cidade do Rio de Janeiro. Eu saí de Curitiba, de um ambiente provinciano: uma cidade extremamente fechada, mas onde eu tinha a expansão de um universo interno imaginativo enorme – a possibilidade do jardim virar uma floresta e de qualquer recanto da casa virar um quarto secreto e qualquer objeto ser convertido numa porta para o imaginário: uma máquina do tempo. Foi uma infância muito imaginativa, de muita, muita contemplação, de muitas aventuras, onde o universo interno se expandia. Ao vir para o Rio de Janeiro, o ambiente da casa do meu pai me disparou a curiosidade de experimentar aquilo que eu já tinha como intuição”.

EXPERIMENTALISMO

O ACASO

“Eu comecei a trabalhar em 83 na divisão musical da TV Globo fazendo trilhas para especiais e seriados trabalhando com o Waltel Branco – um arranjador que era um dos produtores da [Rede] Globo. Eu trabalhava como assistente dele em alguns projetos. Um trabalho sub-remunerado, mas altamente nutritivo em termos de formação. Eu ia para os arquivos da TV Globo para examinar os arranjos do Maestro Guio de Moraes, os arranjos do Maestro Cipó. Eu via o processo de produção dos outros produtores, a gravação das peças, a relação dos músicos com o regente, dos autores dos arranjos com os músicos. Fui aprendendo naquele ambiente, em todos os seus aspectos, desde a escrita à relação da música com a imagem, com o contexto dramatúrgico e a transmissão rápida para o músico. Era tudo muito ágil. Tinha que ter a concepção da ideia muito ágil. A escrita tinha que ser clara. A ligação com as tecnologias, com a captação sonora: tudo isso veio nesse pacote. Eu aprendi horrores com o Waltel Branco. Ele fazia arranjos e a letra dele era péssima. Parecia a letra de Beethoven. Tinha um núcleo de copistas na divisão musical. Ele entregava as partituras de tarde. De manhã, já estava na estante dos músicos. Ele ouvia a base gravar de manhã, os metais de tarde e as cordas de noite. Muitas vezes ou o via com o arranjo na frente e o Alceu Bocchino regendo a orquestra. Num acorde, de repente, ele parava e falava: „Oh, Formiga, trompete número dois: você tem mi bequadro na partitura!‟. „É verdade, Maestro, desculpa‟. E o Waltel: „Não, deixa assim, ficou melhor!‟ Isso acontecia muitas vezes. Ele encarava o acaso como um parceiro. Ele lidava com essas interferências do acaso como parcerias. Mais 246

importante do que o meu plano, que eu posso gerar autonomamente e implementar a ferro e fogo é estar aberto para receber a contribuição do outro: ás vezes do acaso, às vezes de um erro. Isso me ensinou muito.”

CAMINHOS CRIATIVOS

“Para mim, sempre, compor teve duas instâncias muito importantes, desde as primeiras peças: construir um instrumento e inventar um jogo. Construir um instrumento não só fisicamente, mas escolher um determinado número de instrumentos ou fontes sonoras e formas de tocar específicas de cada uma dessas fontes. O conjunto dessas escolhas forma um organismo. Configurar um instrumento é fazer um instrumento ter tais e quais sonoridades, tais e tais comportamentos de respiração, tais possibilidades dinâmicas. Uma obra é o resultado desses instrumentos e de maneiras de tocá-los. Eu sempre me interessei muito pelo jogo. Um jogo é onde se cria regras. Eu sempre adorei compositores que criavam regras e que seguiam disciplinadamente as regras. Eu não sigo tão disciplinadamente as regras. Eu crio regras que são móveis, que dependem muito da interação dos parceiros. Eu brinco, eu crio regras que não são estritas, mas princípios relacionais, ou seja, se eu fizer tal coisa, você pode fazer tal ou qual – outra – coisa. Quando o nível dinâmico atingir tal plano, você pode disparar aquele material. As relações vão se dando por respeito a essas regras. O grupo seleto de intérpretes com o qual eu comecei a trabalhar lida bastante bem com isso na medida em que eu seja claro em relação às regras e ao que eu espero deles. Há ambientes onde eu não posso e não tenho tempo para trabalhar dessa forma. A [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] (OSESP) me encomendou e eu escrevi uma obra. Eu não podia fazer isso com a OSESP. Eu escrevi uma partitura com tudo prontinho. Era só música escrita, só notas, não tinha instruções. Essas ideias foram já [por mim] realizadas e configuradas numa [única] possibilidade em que não havia mobilidade do discurso para que ele fosse diferente de uma execução para outra. Eu quis fazer dessa maneira porque eu estava muito curioso por ouvir certas coisas com aquele instrumento. Por exemplo, as duas peças que eu escrevi para piano tinham uma guitarra elétrica dentro do piano. A guitarra vibra por simpatia de acordo com as notas que eu toco no teclado. Afinada de determinada maneira, ela passa por um processador eletrônico e o som da guitarra é resultado das vibrações por simpatia das cordas da guitarra. Existe uma relação da eletrônica com a acústica do piano em tempo real. Eu disparo o som eletrônico proporcionalmente. Se eu toco mais fraco, dispara fraco. Se toco muito forte, dispara muito forte. É uma peça dificílima de ser feita abrangentemente porque é um 247

processador de efeitos programado de maneira bem específica. Eu podia dizer: „Olha, consiga um processador de tal natureza, afine a guitarra nessa ou naquelas notas...‟. Não é impossível de fazer, mas é uma encrenca. Outra obra que tem uma dimensão cênica bem importante se chama Samba do Crioulo Doido. É uma peça para dois percussionistas. Eu compus para o duo Diálogos do Joaquim Abreu e do Carlos Tarcha. Esses dois percussionistas tocam dezenas de instrumentos, alguns presos na cabeça, outros no braço. Tocam com a perna, tocam com a bunda, com as costas, com a frente, com o joelho. A partitura tem essa dimensão cênica que é inevitável. Para eles poderem tocar o que eles têm que tocar, eles têm que se torcer, se deslocar para o outro lado, tocar com a cabeça, com o pé. O cotovelo toca outra coisa. Existe um aspecto cênico que é, mais uma vez, resultante da execução. Tem, nessa obra, um instrumento que é uma caixinha de música. Uma vez um fabricante suíço me encomendou o arranjo de Aquarela do Brasil. Ele tinha uma fábrica de caixinhas de música. Eu fiz o arranjo e entreguei para ele. Ele fez a caixinha de música, mas a fábrica dele faliu. Ele não tinha como me pagar e pagou com caixinhas de música. Eu estava cheio de caixinhas de música e tinha que inventar o que fazer com elas. Nessa peça, um dos instrumentos é essa caixinha de música. Em certo momento, o percussionista dá corda na caixinha e ela vai tocando, desacelerando, como acontece com as caixinhas de música. Eles estão, nesse momento, numa ação automática de tocar e continuam enquanto a caixinha está desacelerando. Quando ela para, eles param. Essa caixinha virou parte do instrumental. Para todo mundo que queria tocar essa peça, eu tinha que mandar a caixinha junto. Complicado, né? Eu construí a Geralda a partir de 1994. A Geralda é um instrumento que é uma orquestra que eu toco com várias partes do corpo e que eu uso muito até hoje. Ela tem um aspecto cênico muito forte, totalmente decorrente da execução do instrumento e once music245 total. Tenho uma ópera que estreou em 2010 chamada Amazônia, queda do céu, que faz parte de um projeto grande, uma colaboração entre Institutos na Alemanha e o Brasil – [Serviço Social do Comércio] (SESC) e Ministério da Cultura. Amazônia, queda do céu foi composta a partir do contato com os índios Yanomami. É o olhar Yanomami do que aconteceu na Amazônia. Tudo o que eu construí foi a partir do olhar deles. Todos os personagens foram construídos a partir do relato deles, de como eles viram os missionários entrando, chegando pela primeira vez, de como eles viram os cientistas. Para eles, era gente de outro mundo, de outro planeta. Não tem índio em cena, não tem música indígena, não tem uma pena. Tem o olhar, tem a perspectiva, tem o ponto de

245Conceito criado por Willy Corrêa de Oliveira, relativo a peças que somente devem ser apresentadas. uma única vez. 248

vista. O olhar daquele ambiente – a floresta – pelos olhos deles. Essa ópera é complicadíssima para alguém reproduzir. Ela tem uma questão tecnológica: são 24 canais...”

O PIANO

“O piano na minha vida é um parceiro permanente, é um meio de troca. Comecei brincando no piano. Veio um período muito forte na guitarra e voltei ao piano aos quatorze anos. Comecei a ter aulas com a Esther Scliar, a Vânia Dantas Leite e fui para o Caio Pagano. Eu era o pior aluno da Vânia e era o pior aluno do Caio, mas eu não me importava. A minha relação com o instrumento era diferente. Independente disso, o piano foi entrando muito fundo e passou a ser o meu elo de troca com o teatro, com a vida mesmo, com a canção, com a música popular. Eu texto as coisas no piano. Eu uso o piano para compor. Além desse aspecto de o piano ser um parceiro de mediação minha com a música e desse aspecto utilitário da música como patrimônio da humanidade – as sonatas de Beethoven, a obra de Bach, de Brahms – a que se tem acesso através do instrumento, eu sempre gostei muito de usar o piano. Nas obras em que eu usei o piano, o piano sempre passava por uma espécie de transformação, de alteração. Era preparado de alguma forma, tocado de uma forma diferente.”

MÚSICA CÊNICA

ASPECTOS CÊNICOS

“Os aspectos cênicos entraram na minha obra desde muito cedo. A prostituta americana, que é uma peça de 1983, que é muito importante para mim, foi estreada na Terceira Bienal de Música Contemporânea, na Sala Cecília Meireles. O fundo do palco, na Sala Cecília Meireles, são uns triângulos. Eu chamei um ator chamado Ivanir Calado. Olhando para aquele fundo, pensamos: „Parece uma máscara! A gente pode pensar em dois olhos e uma boca, se secciona dois triângulos e um triângulo debaixo‟. Montamos uma máscara que se encaixava exatamente – um papel branco naquele fundo. Na parte final da obra ele retirava essa máscara e dançava com essa máscara. Essa foi a primeira aproximação mais explícita da linguagem musical com outras linguagens artísticas. Mas isso não estava na partitura. Foi pensado, combinado e executado. Eu vou citar duas obras onde a dimensão cênica tem um aspecto importante e eu não sei de que maneira se encaixa nas categorias [da música cênica]. Uma delas é um quarteto de violões, chamada Organismos onde os músicos 249

são solicitados a tocar os seus instrumentos de forma a criar percursos de gestuais entre regiões muito distantes [do instrumento]. Para poder tocar o que está na partitura, gestualizar os seus instrumentos de maneira muito intensa e precisa para que os sons sejam emitidos na hora certa, da forma certa, cria-se uma cena que decorre da exigência musical. O resultado de quatro músicos fazendo isso é uma ação corpórea não usual, muito viva, muito diferente. Eu comecei a ter consciência de que isso ia acontecer quando eu fui fazendo as coisas e fui me dando conta do que acontecia com o meu corpo. Eu imaginei que a soma dessas quatro ações corporais teriam também uma resultante inevitável. Eu pensei como consciência cênica para os intérpretes no seguinte sentido: „Procure a maneira energeticamente eficiente de realizar esse movimento‟. Mas essas instruções foram feitas de maneira verbal. No momento que eles começaram a tocar, eu pedia a eles: „Executem esse som de maneira a não ter sobra nem gasto de energia desnecessário. Descubra a maneira mais energeticamente eficiente de virar o violão. Eu dirigi a cena a partir da partitura, que exigia trânsito por sonoridades que implicavam em modificações da posição do instrumento. Talvez outros intérpretes, sem essa direção, não façam gestos tão limpos, se não cuidarem desses gestos de uma maneira mais atenta, mais específica. Eu era muito curioso em relação à gestualidade do tocar, muito curioso. No ano seguinte, eu compus uma obra chamada Música Gestual. Essa peça tinha uma primeira seção de mais ou menos um minuto e meio que ficava se repetindo cinco ou seis vezes. A cada repetição, alguns dos sons – a ação do som continuava, mas deixava de produzir som. Iam surgindo silêncios, nessa partitura, até que, ao final, a última repetição era simplesmente a mímica, a movimentação de tocar. Nenhum som era produzido. Sobrava o resíduo [do som]. É como se fosse sendo apagado o que havia de acústico nela. Sobrou a ação gestual. Eu fiz uma partitura e seis cópias. Em cada uma dessas cópias eu ia assinalando com círculos de cores para diferenciar as regiões que seriam tocadas ou silenciadas. Em uma nova versão, com marcador de texto, eu marcava outras regiões menores deixando mais regiões em preto e branco. Cada um dos músicos tinha uma partitura com configurações diferentes: em laranja, verde, azul. Uma partitura tocada se transformava em outra partitura toda gestualizada. Eu buscava o resultado cênico. Nessa época, eu trabalhava com esse grupo chamado Juntos Música Nova de amigos, parceiros de aventura, de descobrir juntos as coisas, de fazer as obras. Fazia-se a partitura, mas as decisões eram tomadas ali, em tempo real.”

CAPRICHOSA VOZ QUE VEM DO PENSAMENTO

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“Em 2009, eu e a Maria Alice resolvemos começar a fazer esse trabalho juntos, de Exercícios de Escuta, a gente começou a conversar muito. Ela pensava muito sobre a dança dos ossos, sobre uma dança que partisse da articulação, que partisse do interno como protagonista e não numa dança que fosse validada pela imagem do espelho: que partisse de dentro para fora, que fosse pensada pelo corpo, de dentro para fora. Nesse momento, eu pensei: „Por que não usar o piano no esqueleto, tirar todas as partes e transformá-lo?‟ A partir daí, surgiu o piano de volta como um instrumento. Um piano de armário é um instrumento fácil: onde a gente fosse, iria ter. Faríamos essa performance no Teatro Cacilda Becker por três semanas. Piano preparado: usamos garfos, parafusos de diversas bitolas e peças metálicas cilíndricas. As mesmas coisas que viemos a usar na Caprichosa voz que vem do pensamento. Eu afino esse instrumento meticulosamente antes de tocar porque às vezes no transporte alguma peça sai do lugar. Existe um som que é resultante daquela [exata] posição. O som muda nos vários aspectos da sonoridade, mas a identidade, a essência permanece a mesma, não muda. Eu já preparei quatro pianos diferentes. Desenvolvemos uma forma de relacionamento entre movimento e som em que eu me transformo a partir da movimentação dela e ela se transforma a partir da modulação do que eu faço: modulação de intensidade, de velocidade, de tempo, pausas. Chamamos isso de Exercícios de Escuta porque é uma escuta além, talvez, da escuta fisiológica. Ela [a bailarina Maria Alice Poppe] escuta o corpo por dentro, na dança interna. Nessa ideia de olhar para dentro, mais do que olhar, há a escuta do corpo. Nessa peça, decidimos não apenas cruzar o gesto musical com o gesto coreográfico como chamar uma pessoa da cena – que é o Aderbal Filho, que é um diretor de teatro muito importante. Ele entrou no processo para começarmos do zero para cruzar essas três vias de maneira que a gente não soubesse mais quem estava brincando com o brinquedo de quem: se foi o Aderbal que virou coreógrafo, se eu virei bailarino ou se a Maria Alice estava tocando piano. O processo ocorreu totalmente sem fronteiras ou escrúpulos na direção desse território híbrido. Isso está expresso e tem uma dimensão cênica muito forte. A minha performance tem um aspecto que é pura cena. O som é decorrente dessa cena. Existe uma cena coreográfica e teatral que motiva a execução. Não tem partitura. Eu posso perfeitamente partiturar essa diagramação dos objetos, como o Cage fez, mas a música que eu toco tem uma mobilidade muito grande sobre estruturas com certa estabilidade. Não é tudo improvisado. Tem uma estrutura pronta, onde há liberdades. Há flutuações possíveis, mas numa configuração estável. Eu não pretendo colocar isso em partitura, não tem necessidade, até agora: há registros, gravações.”

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OS INTÉRPRETES

“Quando eu passo instruções diretamente para um intérprete, eu sei que quando outro intérprete que não teve esse contato pode tocar aquela peça e obter outro resultado.”

O TRABALHO EM EQUIPE

“Eu fui filtrando poucas parcerias com as quais eu gosto de trabalhar muito: Aderbal Freire, Moacir Chaves, Amir Haddad. Com eles eu me entrego totalmente aos seus desejos, eu procuro interpretar totalmente as suas visões, além de contribuir com a minha. Aprendo tanto deles como aprendo de uma conversa com a figurinista que mostra um croqui, um tecido, uma trama de tecido ou com um cenógrafo que traz uma maquete, com um iluminador que traz uma ideia de um desenho. Tudo isso é alimento para a música. O meu trabalho com teatro é muito feliz no sentido em que há uma equipe que trabalha junta há muito tempo. Essa comunicação é muito estimulante para a criação dos trabalhos.”

REALIZAÇÃO

EMPREENDEDORISMO DESDE O PROCESSO DE COMPOSIÇÃO

“Eu escrevi uma obra chamada Stratus para a Orquestra Experimental de instrumentos nativos de La Paz: uma orquestra que existe na Bolívia com instrumentos autóctones da tradição Aymara. São instrumentos de sopro, principalmente, mas de muitos tipos diferentes. Os componentes são jovens da tradição Aymara. Essa orquestra existe há vinte e cinco anos. Eles tocam obras compostas para eles. Composições novas, de compositores contemporâneos, feitas para aquele instrumental. Eu fui para La Paz. Trabalhei uma semana com os músicos primeiro, aprendendo que instrumentos eram aqueles. Eles me mostraram mil possibilidades. Eu trouxe os instrumentos para casa. Fiquei um mês e meio brincando com os instrumentos, tocando-os de maneiras que eles [os componentes da orquestra] nunca tocaram: como uma criança pega um instrumento e toca de uma maneira que a gente nunca ensinou. Criei a partitura a partir desse jogo, através dessa escuta dos instrumentos. O que eles queriam que eu escrevesse para eles? Eu fui aprendendo dos instrumentos a música que eu escreveria. Voltei para La Paz com essa partitura: é claro que eles tiveram muita dificuldade com alguns materiais porque são materiais que surgiram de quem não tem a técnica certa do instrumento. 252

A gente teve um período de dez dias para que eu pudesse passar essas técnicas para eles, eles me sugerindo diversas coisas. Depois desses dez dias, a peça estava pronta. Quinze dias depois, foi a estreia na Alemanha. A produção dessa peça envolveu esse trânsito duas vezes: Brasil-Bolívia, a vinda dos instrumentos para cá, o meu envolvimento pessoal com esses instrumentos. Tudo isso foi pré-condição para a peça ficar pronta. Nada podia ser gerado no abstrato, na minha cabeça. Foi preciso essa fisicalidade dos instrumentos, essa relação com eles.”

GERALDA E GERALDONA

“A produção das obras para a Geralda – a Geralda é um organismo vivo, se ela for analisada desde o seu princípio em 1994, que nem se chamava Geralda ainda. A primeira construção do instrumento foi uma bolsa da Fundação Vitae. A forma geral parece a mesma, mas muitos instrumentos saíram, outros entraram, como um organismo vivo, ela vai evoluindo de acordo com as necessidades de cada peça de cada projeto. A minha relação com o instrumento foi se transformando continuamente durante muito tempo até o momento em que ela se transformou radicalmente. Em 2001, um amigo veio aqui em casa, o instrumento estava aqui. Ele olhou para o instrumento e disse: „Tato, que linda! Como é o nome dela?‟ Até então, era só um instrumento, era uma orquestra, era algo, era uma coisa. Ela? Não só é „ela‟ como está grávida porque tem um bumbo na frente! Isso foi uma revelação para mim! Essa noite eu toquei seis horas direto no instrumento e da noite para o dia, literalmente, a minha relação com o instrumento mudou. Começaram a surgir sons que eu nem suspeitava que existissem: uma voz orquestral da combinação de certos sons que eu nunca tinha prestado atenção porque eu comecei a tocar o instrumento de maneira diferente. Eu comecei a lidar com ele como uma entidade feminina, não era mais uma coisa. A partir daí, pouco tempo depois, uma outra amiga sugeriu o nome de Dona Geralda porque era mulher de um ex- caseiro meu, que ela conhecia, em Friburgo. Dona Geralda era uma cabocla robusta. Esse instrumento tem cento e vinte quilos: encaixou. Eu falei: „Dona Geralda, não, mas Geralda, sim, Geralda tem a ver. É redonda, geral, girar...‟ Virou Geralda. A produção das obras para a Geralda implicam na montagem do instrumento. O instrumento está permanentemente montado na Gamboa, que é um lugar onde eu ensaio, num Centro de Artes. Quando eu tenho uma viagem internacional, tenho que desmontá-la em mil pedacinhos para caber em quatro cases. Isso é bem complicado. Demora quatro horas mais ou menos, essa desmontagem, mas ela consegue viajar comigo, no mesmo avião. Percebe como eu crio encrencas? Eu não 253

consigo evitar! Eu me divirto com isso. Em muitos casos, quando são Festivais maiores, tem uma equipe que cuida dos aspectos mais formais: divulgação, transporte. A experiência com a Geralda não é transferível. Tem que ser eu viajando e fazendo o concerto. Eu tenho um parceiro maravilhoso de trabalho, que é o Alexandre Fenerich. Alexandre Fenerich é um compositor de São Paulo. Ele fez Mestrado aqui no Rio de Janeiro, mas ele terminou o Doutorado agora, em São Paulo. Ele é fundalmentalmente um músico eletroacústico, de técnicas digitais. Desde 2005, tocamos juntos em torno da Geralda. É um parceiro mesmo porque nós gravamos todos os sons da Geralda e ele tem todos eles armazenados. Criamos a Geraldona, que é conseqüência dessa Geralda real que eu toco e dessa Geralda virtual que ele tem armazenada. Ele me espacializa para oito canais. Através de uma bateria midi, eu interfiro em todos os programas dele, mando comandos para os programas que ele tem, disparo coisas no sistema dele. A Geralda virou um sistema de interações mútuas onde a combinatória é praticamente infinita. Tem projetos que eu sou convidado como compositor e estou dentro de uma estrutura idealizada e pensada por um diretor e por um produtor e eu participo de uma equipe.”

GESTÃO DE PROJETOS

“A Caprichosa voz que vem do pensamento é um projeto meu e da [Maria] Alice [Poppe]. Ganhamos edital, chamamos a equipe. A tempo foi outro projeto nosso. Ganhamos edital, chamamos, contratamos, pagamos equipamento, fizemos prestação de contas, conseguimos o espaço, fizemos contrapartidas. Código Fonte foi outro projeto que fizemos juntos e também foi fruto de edital, da Secretaria de Cultura. Nesses casos, somos responsáveis por fazer o projeto, contratar a equipe e assegurar que essa equipe tenha as condições necessárias para a realização das suas visões, dentro dos limites orçamentários do projeto, e fazer ponte com a comunicação social: ser totalmente atuante. Não basta ficar aqui criando. Mais eu do que a Alice porque a Alice é uma intérprete mais especializada, é uma bailarina de alto nível. Eu não sou um intérprete de alto nível, eu não me considero como tal. Eu sou um criador, compositor. Toco as minhas coisas, mas ela se especializou em dançar”.

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APÊNDICE F – Luciano Garcez e “O espírito da qoisa”

ENTREVISTA COM LUCIANO GARCEZ, EM SUA RESIDÊNCIA, EM SANTA TEREZA (RJ), EM 22 DE AGOSTO DE 2010.

FORMAÇÃO

“A minha formação se deu na cidade de São Bernardo. Minha tia tocava violão popular e eu via minha tia tocando com a professora. Eu queria tocar também: isso com seis, sete anos. Fui estudando violão popular até os onze, com a professora da minha tia. Tinha um piano em casa. Eu já sabia um pouco de harmonia, meio intuitivamente. Minha mãe tinha muitas, muitas partituras de peças para piano, muitos métodos. Eu abri o piano e comecei a brincar, a tocar. Comecei a pegar os livros, comecei a ler ao piano. Fui meio autodidata. Quem me ensinou um pouco a teoria foi a professora de violão. Minha mãe não se meteu em nada. Mas minha avó, pelo contrário, sim, dos onze anos até eu entrar para a Faculdade – eu entrei com dezessete ou dezoito na [Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”] (UNESP) para o Curso de Composição. Minha mãe tinha as sonatas completas de Mozart e eu fui tocando tudo aquilo, fui decifrando tudo aquilo. A minha formação se deu lendo essas coisas e ouvindo muito, dos onze aos dezessete anos. A Faculdade começou a dar nome para as entidades que eu criei para mim. Eu sabia que havia acordes com sétimas, mas escapadas, antecipações e etc. eram coisas que eu havia descoberto tocando Mozart, tocando Beethoven, tocando Chopin... e ouvindo muito. Eu ouvia fanaticamente: todos os autores, todos, todos, qualquer coisa. Principalmente classicismo, romantismo e início do século XX, que era o que tinha na banca de jornal – comprava essas coleções. Eu tenho até hoje guardadas as fitas, aquelas coleções da Salvat. Eu ouvia cinco ou seis horas por dia. Era uma coisa ensandecida. Nessa de ouvir, eu fui criando dentro de mim estruturas de composição, como soa uma flauta, como soa uma trompa e como é que se organiza isso. Eu fui atrás de partituras. Eu ia ao Centro Cultural, em São Paulo e xerocava partituras de orquestra. Meus pais não tinham dinheiro, a gente era uma família de certa forma pobre, mas o acesso, naquela época, a uma fita numa banca de jornal era muito barato. Foi a época em que a cultura começou a ficar barata: década de oitenta. Não era nada metódico, mas eu já tinha noção. Eu tenho os livros de História da Música até hoje, que eu ganhei do ex-chefe da minha mãe, que também gostava de música erudita. Aí, eu consegui ordenar na minha cabeça o que era classicismo. Quando eu entrei na Faculdade, eu já sabia muita coisa. A decepção foi esse 255

culto que até hoje existe e que me afastou da Universidade, que é o culto da techné. Eu chamo techné de uma maneira simplificada a mania de dar nome e classificar tudo. Isso é o que erige a Faculdade. Eu voltei sabendo disso, mas isso me afastou em 97, não obstante tivesse tudo aberto para mim na vida acadêmica. Eu não suportava mais. Eu fui o primeiro aluno, eu fui o orador da turma, mas eu não suportava a academia por causa do desencanto de pegar uma obra e ficar dissecando essa obra e dando nomes. Tudo bem: chegava ao final. E aí? Para mim, isso sempre teve cheiro de necropsia: pegar um cadáver, cortar... ele ficou vivo? Não!”

BERÇO

“Eu sou do ABC, sou de São Bernardo do Campo, nasci em 72. A minha família não é exatamente uma família de músicos, apesar de a minha mãe ter sido professora de piano, ter estudado doze anos de piano. Mas ela abandonou o piano. Num certo tempo ela fechou o piano e nunca mais tocou. A minha família é de origem portuguesa e italiana. A parte de mãe é toda italiana, Locozelli, e por parte de pai é toda portuguesa. Então, são quatro famílias italianas e, que eu me lembre, duas famílias portuguesas que se encontraram. Por isso, eu tive formação católica, fiz o catecismo muito pelo contato com as minhas avós italianas porque na Itália o catolicismo é absolutamente forte. Tem também uma história, da minha mãe e do meu pai, de os dois serem espíritas, meio de mesa branca e meio de umbanda e a minha mãe ser uma pessoa que tem uma mediunidade muito forte, muito forte. Desde que eu ainda era criança, a minha mãe incorporava uma preta velha e o meu pai incorporava caboclo. Eu lembro muito criança a minha mãe recebendo os guias. Não era exatamente candomblé, era mais umbanda, mesa branca, espiritismo. No candomblé, que seria o lado mais africano, quem entrou mesmo fui eu e bem mais tarde. Mas eu me lembro da minha mãe recebendo, inclusive, uma preta velha que se chamava Vó Maria, eu acho, e as pessoas iam atrás dela. Eu me lembro de ter, assim, quinze pessoas em casa para se consultar com a minha mãe. Por exemplo, ela veio aqui [em casa]. Um dia em que ela estava aqui, eu havia comprado duas camisas – sempre compro roupas em brechó. Ela já havia falado ao telefone e quando ela chegou aqui, ela disse que eu precisava me livrar dessas camisas. „Por quê?‟ „Porque são duas pessoas que morreram‟. „Mãe, mas você vê as pessoas?‟ „Não vejo, mas eu sei e elas estão aqui na Terra. Elas ainda não conseguiram desapegar e elas estão próximas desses objetos‟. „Bom, você vê, eu não vejo... está aqui, faz o que quiser com essas camisas‟. Ela deixou uns dias aí fora e depois acabou jogando fora. Ela já viu coisas do tipo: „Fulano de tal está doente‟. E a pessoa estava. „Fulano de tal morreu‟. E a pessoa morreu mesmo, no dia seguinte 256

ou então já tinha morrido. O meu pai também era médium e o meu pai via coisas com uma clareza assustadora. Essa questão da espiritualidade sempre esteve muito forte apesar de eu mesmo nunca ter exatamente essa proximidade, essa coisa meio Chico Xavier. Então, isso para a minha cabeça, que é racional, que é européia, sempre foi uma coisa meio conflituosa. Tanto, que o meu altar é isso mesmo [aponta o altar que construiu em na sala do apartamento]: ele é a África, a Europa...” O começo da minha formação [na música] foi com canção popular, dos sete aos onze anos. Minha avó queria ter sido cantora de rádio, cantava muito bem e cantava muito canções: Noel [Rosa], Ismael Silva. Eu me lembro da minha avó cantando, eu até falo em O espírito da qoisa: „Pela boca descabida de minha avó‟. Eu falo muito da minha avó porque eu fui meio que criado por ela e ela foi meio que uma baliza estética indireta para mim – minha avó por parte de mãe. Aliás, minha avó e minha bisavó de ascendência italiana. Então, eu ouvia muito as canções populares. Pode parecer uma coisa meio mitônoma, meio fabularia, mas não é, não: desde criança eu ouvia a minha avó cantando e eu achava a canção, a música, a palavra e a música a coisa mais perfeita que o homem podia fazer. Eu via assim. É uma coisa muito rudimentar, um pensamento muito de criança, mas era muito claro isso para mim. Eu via um carro e dizia: „O carro tem as rodas‟. Era muito óbvio aquilo ser construído pelo homem mas algo como „Anoiteceu, o sino gemeu e a gente ficou feliz a rezar/Papai Noel, vê se você tem a felicidade‟... Eu me lembro do meu pai cantando para mim e explicando: „Olha, o compositor que fez isso, não era um compositor feliz...‟ Ele escreveu: „Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel‟ e, no final, „sendo assim felicidade‟(...) „é brinquedo que não tem‟. Era um hino de Natal, mas de um conteúdo muito triste. Eu achava isso a coisa mais absolutamente fantástica do mundo. Para mim, isso estava acima de qualquer coisa. Então, eu imaginava assim: „Quando eu crescer, eu vou querer ser compositor‟. Isso é uma coisa que está além de tudo: criar uma coisa que não tem conexão com a realidade e, ao mesmo tempo, era a própria realidade. Claro, eu não tinha esse nível de elaboração como criança, mas eu via que era algo transcendente e eu disse: „Eu não tenho dúvida, eu quero seguir por esse caminho!‟ Eu não sabia que caminho era esse – exatamente de compositor, exatamente de poeta – mas eu sabia que era desse mundo. Tanto, que as lembranças que eu tenho da minha infância, todas elas, sem exceção, são vinculadas à música: a minha avó me cantando coisas, o meu avô me cantando coisas: canções italianas, por exemplo: o Masolin – „quel masolin...‟”

EXPERIMENTALISMO

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TUDO JUNTO E MISTURADO

“A minha vida é absolutamente rocambolesca em termos de coisas misturadas. A minha música reflete um pouco isso.”

MÚSICA E POESIA: VELHOS PROCEDIMENTOS, NOVAS IDEIAS

“Eu não excluo, a minha estética não é de exclusão. Toda estética moderna de exclusão está fadada ao fracasso. Essa é uma das únicas certezas que eu posso dizer como compositor. É nisso que muitos compositores estão naufragando. Tanto na Música Popular quanto na Música Erudita. O sujeito se apóia numa técnica, se apóia em procedimentos e toma aquilo como poética. Isso nunca foi poética. Fazendo um paralelo entre música e poesia, você não precisa escrever mais um soneto, mas os procedimentos de equilíbrio ainda existem: as assonâncias, as estruturas, as rimas internas, as rimas tonantes, as rimas sonantes. Você pode não mais abrir um acorde com uma sétima aqui e uma terça ali, mas pode botar uma oitava e um cluster no meio, são infinitas possibilidades.”

TÉCNICA E POESIA

“A técnica brota da poesia. A técnica vem em função da presentificação de uma ideia, de um ser, de um estar. Pode ser um piano: ele materializa a ideia. A imagem também pode materializar uma ideia. Parte tudo da poiésis. O mal do nosso tempo é a técnica que tenta o tempo todo se justificar. Não funciona. É o abandono do „eu‟ como se falar „eu‟ fosse pecado. Em Música Popular, há a questão da afinação: a Maria Bethânia desafina, a Nana Caymmi desafina. Dentro da poiésis delas, isso é perfeito. Estamos, com isso, tocando numa das feridas mais profundas da nossa época, que é essa ausência total de poesia, de coragem, nesse sentido do fazer artístico. Para um fazer artístico com poesia e coragem, é necessário auto- conhecimento, o que é muito difícil. Esse é o problema geral da nossa época. O auto- conhecimento é um processo, assim como a perfeição, é uma busca que nunca chega, é só um processo. Mas se os artistas não forem verazes, se não tentarem dizer o que é o tempo deles, o que eles são e a transcendência disso tudo, quem vai falar sobre isso? O médico? O juiz? O político?”

MÚSICA POPULAR 258

“Debussy fala – em O balanço da bossa, cita Debussy – que na pomposidade há mediocridade e que, às vezes, a genialidade está numa valsa de café concerto, que era a Música Popular. Milhaud veio para o Brasil: „Vocês têm isso aqui e não dão valor!‟ Precisou ele vir aqui para que Ernesto Nazareth fosse recebido nas salas de concerto. A harmonia do Nazareth é chopiniana, o ritmo é samba, é maxixe com melodia de tango brasileiro: se fazem a dissecação do cadáver, dizem que não presta. Nada que é fragmentado funciona. A poética funciona na integridade, na inteireza. Se a gente olhar a harmonia de Caymmi em O mar, por exemplo, é tônica, subdominante, tônica, dominante, tônica: „O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito‟...é perfeito. Se você for, através de parâmetros e tecnologias pressupostos – eu uso a palavra techné – definir o objeto, você não vai conseguir definir. Você vai reduzir o objeto, Automaticamente, você vai excluir: „Então, é Música Popular!‟ Por quê? Por causa de tais parâmetros. As únicas respostas que nós temos hoje em dia são parametrais. Acabou-se a história de Música Popular por conceito adorniano, indústria cultural... isso acabou. Só porque o sujeito faz um putz putz techo e inovou parâmetros com transformação da onda e usou um programa simulador está fazendo Música Erudita? O sujeito pode pegar uma acorde maior, como Scelsi, que foi considerado o pai da música espectral e transformar pouco a pouco: esse é um dos compositores mais importantes da segunda metade do século XX! Nós estamos numa época de fascínio total pelos parâmetros!”

O PIANO

PIANISMO E ROMANTISMO

“O piano virou uma espécie de instrumento centro para mim. Foi através dele que eu cheguei a tudo. Eu voltei ao violão por causa da Música Popular e ainda tenho as unhas compridas, mas eu toco violão muito basicamente. O piano é o centro, para mim. Sempre foi. O piano é um instrumento base, de 250 anos para cá, desde Mozart. O piano é uma tecnologia perfeita. O piano foi o instrumento central do romantismo. O Brasil chegou à chamada modernidade meio enviesado, trazendo para o século XXI ainda um romântico, um compositor neo-romântico. Eu reputo muito a ele e à escola nacionalista o pianismo porque é uma escola muito centrada no piano. Se o Brasil é assim, a gente tem que entender o Brasil 259

dessa forma e absorver o que há de positivo e o que há de negativo. Eu não repudio nada. Eu sou romântico, eu sou idólatra do Romantismo.”

O PIANO NO CONJUNTO DA OBRA

“Por eu ter me dedicado muito à canção, as minhas peças para piano são circunscritas à época da Faculdade. Eu escrevi para alguns pianistas: por exemplo, para o Sérgio Villafranca, de São Paulo, que era o pianista do Koeulreutter. Dentro do estilo canção eu também escrevi para piano, bastante coisa. De três anos para cá, eu escrevi peças que marcam o meu retorno à Música Erudita.”

PIANO AO VIVO

“Se eu tenho um computador na minha frente, em que eu posso ver o Glenn Gould tocando Bach maravilhosamente bem, o que vai me fazer ir até uma sala de concerto para ver um sujeito tocando dez vezes pior o mesmo Bach? Temos que começar a pensar nisso e começar a entender o que isso está dizendo para a gente: o que o computador está nos dizendo, o que o youtube está nos dizendo. Bach e o youtube estão juntos. A academia ainda não está vendo isso, a academia está vendo o computador como um objeto em que você pode colocar um programa, o Max, que vai mudar tudo. Temos oportunidade de ver vídeos raríssimos: o youtube é só uma dessas coisas, existem muitas outras e outras tantas ainda vão aparecer. Isso ainda vai mais longe. A sala de concerto está virando um museu. Os sujeitos vão até lá para fazer o mesmo repertório que a professora dele fazia e que a professora da professora dele fazia. O que é o palco? Antes de pensar em piano, violoncelo ou orquestra: o que é o palco? O palco é um local de celebração, é uma local de projeção pessoal, aristotelicamente falando. É um lugar catártico. O palco é e sempre foi simbolicamente, para a plateia, um espaço de possibilidades múltiplas. O sujeito, quando ia ver Shaekespeare, saía transtornado. E hoje em dia? O que move o sujeito até o Teatro? As artes cênicas estão melhores em relação a isso. O teatro ainda tem esse germe de loucura, de caos. A música de concerto ao vivo tende a acabar porque o sujeito senta: „Agora, eu vou executar Prokofief, Sonata em si bemol sustenido maior e etc‟. Depois: „Agora, vamos ouvir...‟ Virou isso! Nós temos CDs e e podemos ouvir a mesma sonata duas mil vezes com a partitura ou comendo um crepe de maçã: mil possibilidades com uma qualidade técnica muito melhor porque foi regravada mil vezes! O Glenn Gould mesmo gravava, recortava e regravava para ficar 260

perfeito. „Então, a perfeição venceu a imperfeição?‟ Não estou dizendo isso. Eu estou dizendo que hoje nós temos um parâmetro chamado CD que, normalmente, é muito bom com boa acústica que a sala não tem, por exemplo. Se eu sou pianista, eu vou chegar na sala com propostas diferentes: a primeira delas é que ali não há perfeição. Se eu tenho o CD, eu tenho que chegar com a vida que o CD não tem, com esse lado teatral, com esse lado humano, com esse lado da interação. A gente sabe muito bem que os intérpretes eruditos detestam isso. Eles não gostam nem de falar das peças.”

PIANO (IM)PESSOAL

“O que eu vejo de pianistas impessoais... Uma manifestação da impessoalidade: „Eu só toco Schumann‟. Ele senta lá e toca como se fosse um tuberculoso. Parece que até o final do concerto ele vai morrer. Isso é uma caricatura! Esse sujeito tem o „eu‟ dele? O que ele tem é uma ideia estereotipada do que seja „eu‟. Nem Schumann era assim! É da nossa cultura, a estereotipia, a estereotipia em tudo. As interpretações de Horowitz de Scarlatti são bem conhecidas. O Scarlatti dele, em termos de época não é exatamente correto, nem tecnicamente, a gente sabe que ele esbarra naquelas passagens rapidíssimas, mas é maravilhoso! É delicioso! Ele é um dos melhores intérpretes de Scarlatti: é a poiésis de Horowitz. Os pianistas precisam levar para o palco o que de anti-pianistas eles têm, o que odeiam no piano, na carreira. O ódio tem que estar incorporado, o anti-piano, a anti-música. Quando Horowitz esbarra, é a anti-música. A cultura nasce quando você desafia um deus. Prometeu pega o fogo e traz para os Homens. Temos que entender isso, enfiar isso na cabeça de uma vez. O ser humano não está mais suportando a impessoalidade, por isso as pessoas estão indo menos a concertos. O sujeito cria uma persona de pianista de satisfaz àquilo. Aquilo desaba. Você tem alguma dúvida que o Glenn Gould era fanático por Bach? Ninguém tem dúvida. Até cantarolar as linhas ele cantarolava, beirava a loucura. É maravilhoso! Aí, alguém diz: „Eu quero ser o Glenn Gould!‟ Seja outra coisa, essa você nunca vai ser. Faça um favor para todos nós: principalmente, não seja! Não tente ser o Glenn Gould, é anti-natural. Não existem duas árvores iguais na natureza, não existem dois cipestres iguais.”

MÚSICA CÊNICA

ROTULAÇÕES

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“A minha ideia é caminhar para a ópera. Descobri dentro de mim que a música é teatral. Mas vamos deixar isso muito claro: é difícil justamente por causa dessa ponte, dessa transição em que a gente está vivendo. A gente pensa muito dicotomicamente: yin e yang. Eu também: é positivo ou negativo. Ou é tradição, ou é ruptura. Ou você está fazendo a ópera tradicional ou está fazendo a trans-ópera, a música-vídeo, o novo teatro musical... a gente está sempre querendo rotular. É época de rotulações. É época de experimentação, mas experimentação poética, não apenas técnica. A gente tem que começar a apostar nisso, a acreditar visceralmente nisso. O meu caminho me leva para a ópera.”

O ESPÍRITO DA QOISA

“O espírito da qoisa previa imagens e movimentação cênica [na estreia]. Se forçássemos, ia sair uma coisa muito grotesca. Nós precisaríamos de uma equipe maior e de mais tempo para mais ensaios. As imagens seriam documentos da Revolução Francesa fundidos a pores-de-sol. Precisariamos também de mais equipamentos. As ideias estão anotadas na partitura original. O que fizemos foi uma versão. Precisaríamos de mais ensaios para fazer soar de maneira orgânica, inteiriça, para que as pessoas não olhassem e pensassem: „Olha, está aparecendo um vídeo!‟. O ideal é que não haja tempo para que elas pensem. Elas devem ser invadidas pela coisa.”

OS INTÉRPRETES

“O compositor vive totalmente através do intérprete. Essa proximidade, até intelectiva, de você perguntar e entender mesmo a figura do compositor é fundamental porque o compositor não é só uma partitura, é uma pessoa também. Ainda. Eu acho importante essa questão de ver o lado humano, apesar de alguns acharem que o autor já morreu faz tempo. Eu tive oportunidade de me associar a intérpretes acessíveis para fazer música, experimentar, trocar ideias. Esse contato sempre foi satisfatório. A resposta do outro, o que outro fazia, imediatamente depois que eu escrevia, alterava [o processo composicional]. Tem uma foto minha [aponta para a fotografia na parede da sala do apartamento] com amigos do Curso de Composição. O que está à esquerda é o Alê Siqueira, que hoje é um compositor conhecido, da . Eu sempre interagia facilmente. Isso era comum na [Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), nós éramos muito próximos dos intérpretes, havia esse ambiente. Dentro da estética da Música Popular tem a cifra e a melodia. As coisas 262

que eu queria escritas, eu escrevia para piano ou para cravo, ou para dois pianos. Algumas coisas estão gravadas em CD. Nesse CD, uma das canções, que é um samba, foi gravada pelo pianista Rodrigo Zaidan. O piano, nessa canção, foi concebido junto com ele, que é compositor aqui do Rio, amigo meu, parceiro meu. Eu pensei nele porque ele tem uma forma de tocar piano que é uma espécie de transposição da ideia do João Bosco, do violão muito ritmado com muitas conduções de baixo. Ele tem uma mão esquerda muito marcada para o baixo e uma mão direita muito quebrada, que não é comum a gente ouvir no piano. O piano do Jobim, por exemplo, é espaçado enquanto a bateria e o baixo exercem cada um a sua função. Eu tenho a felicidade de ter contato com intérpretes que atuam tanto na Música Popular quanto na Música Erudita. Nos últimos dez anos tem sido mais comum encontrar intérpretes com conhecimento de vários estilos.”

O PÚBLICO

“Os intérpretes nada esperam do público, nem pensam nele. Eles aprenderam que se bastam: querem o aplauso, querem um nome. Essa idolatria aos intérpretes que vem, em parte, do Romantismo, vive até hoje. Os intérpretes nem tomam conhecimento sobre a plateia, se é especializada ou não: „Coitados dos que não aprenderam sobre acordes, que não sabem o que é forma sonata e não sabem o que é uma série dodecafônica! Eu sei. Pobrezinhos!‟ Até mesmo os sujeitos que se dizem trans-vanguarda são muito mais Românticos do que o próprio Berlioz, do que o próprio Liszt. Berlioz, quando escreveu um réquiem, queria que todo mundo que entrasse na igreja fosse tocado e é um compositor tido como o hiper-romântico do Romantismo francês. Ultra-romântico, mas ele estava preocupado com o público. Isso me fez voltar para a Música Popular: uma possibilidade de fazer poesia e música para o público entender. Mas uma coisa que me assustou muito foi observar compositores populares fazendo música pseudo-erudita: uma música com uma letra que ninguém entende, uma música que ninguém entende. Tem que haver um grau de permeabilidade com relação ao público! „Ah, eu faço para o futuro‟. „Será que o futuro, de fato vai entender o que você faz?‟ Onde está o selo de validade e de eternidade na obra? Não existe isso! Eu sei que grande parte do que eu escrevo também não é entendido. Qualquer um que lida com linguagem – porque eu lido com linguagem – e experimenta vai ter um grau de incompreensão, mas a incompreensão absoluta se deve àquele que aposta apenas em afiar a sua faca e fica eternamente afiando a faca – a tecnologia. Tem uma hora em que a faca tem que entrar em alguém ou cortar uma fruta. Essa é a questão da tecnologia: pegar a faca e dizer „Olha o gume!‟ Vamos lá! Vamos usar a faca! 263

Matar alguém! É a música eletrônica, eletroacústica, espectral! É o apogeu disso! Tem que tentar extrair uma poiésis disso. Isso tem que significar alguma coisa para alguém além do compositor e do técnico, isso tem que acontecer. O Berio fez isso. A sinfonia do Berio é isso: tem trechos da melodia que são francamente populares. A sinfonia do Berio é pop, é popular. Os artistas não estarão servindo ao público executando sempre um repertório que está nos CDs e DVDs já existentes. Isso não é o suficiente. Eles têm que servir ao público, servir a Deus, servir a alguém, servir à estética, servir a alguma coisa. Não façamos a nossa música para ela virar uma tese acadêmica, para sermos laureados com os louros do cadáver. A arte não é isso, nunca foi isso! Isso não grassa só na Música Erudita, grassa também na Música Popular. Lá em São Paulo, que é o ápice disso, há cantoras extremamente afinadas, que têm um 440 no ouvido o tempo todo, até no chuveiro são afinadíssimas, mas são incapazes de escolher um bom repertório. Os CDs delas são insuportáveis. Elas não conseguem se ver, elas vêem apenas a cantora em cada uma. Isso se chama persona. Jung viu isso muito bem: ele e todos os psicanalistas, mas o Jung fala isso de forma mais clara. O self é o todo. Uma das manifestações do self é a persona. Uma das aflições do Homem moderno é que ele se refugia na persona. Se o sujeito é médico, para ele ficar em paz com ele mesmo, ele tem que ser médico 24 horas por dia. Então, ele vai a um churrasco como doutor, fala com a esposa e com o filho como doutor. Chega uma hora em que ele rui porque ele é mais do que um médico. „Eu sou músico‟: está rejeitando 99 por cento do que é. O público está ficando cada vez menor. O homem comum pode não ter toda essa elocubração que eu estou tendo aqui mas ele sente isso. Ele sente, ele sabe disso. Ele vai ver o sujeito tocando piano e pensa: „Agora, são as Bagatelas de Schoenberg; agora, dois Noturnos de Chopin‟. O celular está no modo silencioso e ele vai ficar esperando a garota que ele conheceu na véspera ligar para ele. O que será mais interessante? O homem frio, gelado, ou a garota? Mesmo para mim, que sou músico, a garota é mais interessante. Aquele Noturno eu já ouvi mil vezes. Eu estou falando do homem Luciano, do self e não da persona músico. Aí está a malícia de Jung: você pode ser compositor o tempo todo, mas na hora em que uma coisa chamada desejo, chamada Eros bater, é o Eros, o desejo é o que vai falar mais alto. Wagner sabia disso quando ele compunha. Mozart sabia disso quando ele compunha. Muitas coisas podem ser feitas com relação ao afastamento entre público e música de concerto. Quando eu regia uma Orquestra Jovem, a gente fez um repertório que tinha de tudo: século XVII, Música Renascentista, Música Medieval, Mozart, Romantismo e Webern, as Bagatelas. A gente ensaiou, era difícil de reger. No início, os próprios músicos estranharam, mas foram se aproximando da música: „Será que vai funcionar? O público não vai gostar disso!‟ „Vocês já estão gostando, o público pode 264

gostar‟. Tocamos. Estrategicamente eu deixei o Webern por último. Virei para o público: „O que nós vamos ouvir é uma peça de um compositor da chamada Segunda Escola de Viena. A Primeira era Mozart, Haydn e Beethoven que pelo menos alguém aqui já ouviu o nome. Era um Teatro de São Bernardo, o Elis Regina, ficava mais ou menos na periferia. Era um público que, a priori, teoricamente não ia gostar. Mas não foi assim: „Olha, essa música é feita assim, com o arco muito próximo ao cavalete. Por favor, violinista!‟ E o violinista tocou. „Ele usa muito o pizzicato,que é o beliscar das cordas. Por favor, cello!‟ Plum, plum, plum. „Ele usa também cordas duplas e uma coisa que a gente chama de trítono, que soa muito dissonante. Escutem essa música como se fosse uma árvore de Natal em que as luzes piscam porque ele usa uma coisa que não dá para a gente ouvir, que é o silêncio. Tentem fazer isso fluir na cabeça de vocês como se fosse uma música que vocês ouviram há muito tempo. Tocamos três vezes. Fomos aplaudidos de pé. Os músicos ficaram assustados com a euforia. Na primeira vez, você ainda escutava as cadeiras balançando, as pessoas tossindo. Na terceira vez, o silêncio era absoluto. Ninguém se mexia! Na hora do bis, perguntei à plateia: „O que vocês querem de bis?‟ Eles gritaram: „Webern, Webern, Webern!‟ Os músicos ficaram assustados, olhando para mim. Quando você faz o cadáver andar... Você nunca sabe o que o público vai gostar, as referências culturais do público são inapreensíveis, ou melhor, é melhor você gostar do que está tocando: é o Horowitz tocando Scarlatti, ele se diverte! Quem não se entusiasma com o entusiasmo do outro? É uma questão simples de catarsis, identificação, é Aristóteles, é muito simples, é você abrir o seu mundo. Que época terrível é a nossa em que os artistas não abrem o seu mundo para o público! A arte está dirigida para a persona do próprio artista.”

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APÊNDICE G – Maria Teresa Madeira: intérprete de música e cena

ENTREVISTA COM A PIANISTA MARIA TERESA MADEIRA, NA SALA CHIQUINHA GONZAGA (UNIRIO), EM 11 DE JULHO DE 2012.

“A minha formação como pianista foi tradicional. Eu sou do subúrbio, sou de Nova Iguaçu. A minha mãe teve uma escola de música lá durante quase cinqüenta anos. Eu nasci ali dentro, apesar de ela nunca ter me dado aula... Eu sempre tive outra professora na escola... era basicamente piano, o que tinha. Teve um tempo que tinha um pouco de flauta doce. Naquela época, era mais difícil se ter instrumentos de flauta e sopro. Então, tinha, basicamente, violão e piano. Eu comecei a tocar, fazer aula. Também tinha aula de dança. Estudei clássico, dança flamenca, dança afro. Fiz ballet durante mais de vinte anos. Eu dei aula de dança, me sindicalizei como bailarina profissional. Estudei em Nova Iorque, fui fazer curso de férias lá. Eu dancei muito: o piano, sempre paralelo. Eu entrei para a faculdade cedo, com dezessete anos. Continuei fazendo dança e depois eu fui parando, mas o ballet foi sempre para mim um meio muito importante, até como válvula de escape para soltar a energia de um outro jeito. Eu gostava muito, eu freqüentava muito ballet, eu fiz vários cursos aqui com várias pessoas importantes. Foi uma formação muito sólida. Fisicamente eu não tive, nunca, problema como os músicos têm, graças a esse treinamento, que é muito rígido. A gente tem a questão da postura. Isso dá uma soltura – conviver no meio artístico. Eu fiz umas oficinas de teatro quando adolescente. Eu sempre gostei da questão da música contemporânea e convivia, na Escola de Música, com alguns compositores da época. Eu tinha muita curiosidade de ver o que estava sendo feito e fiquei sabendo: o Tim [Rescala] começou a aparecer com o trabalho dele de teatro. Eu o procurei. Isso deve ter quase trinta anos. Eu falei: „Eu tinha muita vontade de tocar alguma coisa erudita, mas que tivesse humor, que fosse uma coisa diferente‟. Eu já tinha ouvido algumas coisas: aquela peça do Cage, do silêncio, e outras coisas cênicas. Mas eu tinha vontade de fazer alguma coisa com a qual eu me identificasse. E aí o Tim [Rescala] escreveu o Estudo para piano e dedicou para mim. Isso, nos anos [19]80. Ele faz uma citação daquele primeiro Estudo de Cramer e depois há uma conversa da personagem com o piano. Ela gosta de tocar, mas às vezes dá [nela] uma angústia. A partir dali, ele escreveu quando ele começou a chamar essa maneira de escrever como música da fala porque a gente fala e toca ao mesmo tempo: fez a Orquestra dos Sonhos, fez A Dois, que é para dois percussionistas, o Romance Policial. 266

Em 2000, a Prefeitura do Rio encomendou obras de vários compositores. O Tim [Rescala] resolveu escrever o Noturno Depois do Vinho e eu o estreei, na Sala Cecília Meireles. Ele o escreveu com outra característica: não teria a fala, só a cena, o que foi um desdobramento... outra faceta dele como compositor... o que eu não tinha feito ainda. Eu tinha feito coisas dele com cena, mas com fala, o que ajudou muito. De repente, o Noturno Depois do Vinho era uma peça que não tinha fala, era a cena com a música, o que já foi outra dificuldade. A diferença é que com a fala você tem que, obviamente, trabalhar a métrica junto da música para não ficar uma coisa artificial, outro tipo de trabalho. Mas quando tira a palavra, você tem que se fazer entender... com o agravante de que a pianista toca de lado para o público. Eu tinha que usar o corpo, certos códigos que você vão sendo apresentandos ao longo da música, que ajudam quem está vendo a identificar o que eu estou tocando a fazer uma ligação porque o humor [da peça] está nisso: são códigos que você identifica e vai repetindo. O que ele faz? Ele pega quatro Noturnos de Chopin, faz citações. Como a personagem está bêbada, ela se confunde nas partituras. Ela pega aquele bolo de partituras e tem uma música contemporânea escrita no meio daquela música tradicional, mas são pedaços. Ela confunde tudo. Eu me lembro do Tim [Rescala] me dirigindo para a estreia. Várias vezes nos encontramos e ele falava assim: „Ela tem que ter classe. Ela está bêbada, mas ela tem que ter classe‟. Foi difícil achar o meio termo para não ficar vulgar. Afinal, é uma pianista erudita. Foi um trabalho juntar isso tudo e ter concentração porque você ouve as pessoas rindo e você não pode rir, senão quebra. É uma peça difícil. O resultado sonoro é bem árido. São delírios. A cena é fundamental porque ajuda quem está assistindo a decodificar quando é um delírio dela e quando ela está lendo. Nisso o Tim [Rescala] me ajudou muito. Ele me dirigiu na entrada... tanto no teatro quanto no DVD: sempre com a orientação dele porque ele é uma pessoa de teatro e, como é muito bom músico, ele tem uma visão muito boa do todo, do que está acontecendo. Eu interfiro – até foi questão de uma discussão entre nós. Como eu não sou atriz, eu não tenho técnica, eu não tenho formação de teatro – para mim é mais fácil arriscar. Então, eu dizia: „Tim, eu posso fazer assim?‟ Quando a pessoa tem uma cultura muito forte ela tem até um certo medo de arriscar determinadas coisas. Como eu não tenho, nenhuma, então, eu falava: „E aqui?‟ Ele falava: „Faz!‟ E algumas coisas eu fui incorporando. O Tim [Rescala], da forma que ele dirige, ele acaba fazendo acontecer a espontaneidade e como eu não sou uma pessoa presa... Com os músicos que ele trabalha, ele sabe que consegue isso. A formação do músico muitas vezes não dá muito espaço para ele se conhecer fisicamente. Quando você desenvolve qualquer trabalho físico de expressão corporal, com qualquer pessoa, tem que ter um cuidado para saber o que é que ela fez antes, se ela tem alguma 267

vivência. Vemos isso com os alunos. Uns respondem muito mais rápido do que outros. Uns não têm uma autoconsciência muito clara: até para saber que está melhorando, que está acertando, que está se encontrando, que está resolvendo determinadas coisas, demora mais um pouco do que os outros. Isso é um tiro no escuro. Muitas vezes não têm coragem de se jogar. Isso vai ser de cada um. Se houvesse uma interação maior de outras artes com a música na formação do músico... Mas, além disso, cada pessoa tem que ter uma disposição interna para fazer isso. Isso é o mais importante. Ela tem que se despir de determinados preconceitos. Eu tinha feito a estreia da peça na Sala Cecília Meireles e estava, um dia, na entrada, esperando para assistir a um concerto. Tinha um senhor conversando com um amigo meu. Ele falou: „Você que é fulana? Prazer! Eu te vi tocando aquela música. Sinceramente, eu acho que você não tem necessidade disso. Você fez muito bem, mas...‟ Eu falei com ele: „Eu me sinto como se fosse... sabe essas modelos que desfilam na passarela? Se você é um intérprete, você está a favor, você está prestando um serviço: o da sua interpretação‟. Na verdade, essa música, particularmente, eu adoro fazer. Tem um lado ali que eu consigo botar para fora, que na música tradicional eu não consigo. Para mim, é um deleite. É difícil, mas eu gosto muito, eu usufruo daquilo, cada pedacinho. Existem certas coisas que você toca que talvez não seja a música ideal do seu repertório, que você gosta. Eu me sinto sempre como se fosse um meio. O intérprete é isso: aquelas modelos que desfilam na passarela e muitas vezes não vão comprar aquela roupa. Elas desfilam apresentando a roupa como o assunto principal. O pianista tem que ter o cuidado de não se sentir o centro sempre. É um instrumento diferente de um violino ou de uma flauta que você está sempre procurando um parceiro para fazer as suas sonatas. O piano é um instrumento muito solitário. Por outro lado, é um instrumento com muitas possibilidades. Essa maneira de olhar o instrumento como solitário acaba com que você vá [apenas] aos concertos de piano e ouça [apenas] piano. Até para sermos criativos na nossa interpretação como pianistas solistas, temos que ouvir outros timbres, imitar outras coisas. Isso é cultura geral, isso é a vida. Os pianistas devem assistir a concertos de outros instrumentos, outras formações. Se eles puderem assistir um pouco de teatro, melhor ainda. Se eles puderem ver dança, outras manifestações... Ouvir só não adianta: tem que olhar, assistir. Até para depois dizer que não gostou. A gente tem aqui no Rio muitos compositores vivos fazendo muita coisa. Tentar se aproximar um pouco do que eles estão fazendo, do que eles estão vivendo, dessas mudanças todas... A Bienal de Música Contemporânea vai apresentar [apenas] uma música daquele compositor, que às vezes não é nada diante da obra inteira. Eu sou cria da Bienal. Eu toco na Bienal de Música Contemporânea desde 1983. Já estou veterana. Assistir, prestar atenção no trabalho dos compositores que estão mais 268

próximos para não ficar preso a conceitos... os conceitos são mutantes. O que é o novo? O que foi feito antes já é velho? Como assim? Ver as coisas, procurar se informar ao invés de ter já um conceito sobre aquilo e querer encaixar o que você acha naquilo. Deixar aquele novo apresentar alguma coisa. Temos que ser generosos. Sem generosidade, não dá para viver: com o colega, com o que ele faz, com o que acontece. Você tem que ter generosidade porque se não as pessoas não têm com você. Isso é uma mão dupla, uma troca. Vivemos de música ou de qualquer manifestação artística: dependemos muito dessa troca. Mesmo que no final você não concorde com essa linha de pensamento ou com aquela, tem que ter um diálogo, uma conversa. Hoje em dia, vivemos num mundo em que não é possível a desculpa de que não se sabe o que está acontecendo. Tem coisa demais acontecendo, mas a gente tem mais possibilidades de saber o que está acontecendo.”