UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

A ESCRITURA DE RESISTÊNCIA EM JÚLIA LOPES DE ALMEIDA, A VIÚVA SIMÕES.

JOÃO PESSOA – PB 2008 1

ROMAIR ALVES DE OLIVEIRA

A ESCRITURA DE RESISTÊNCIA EM JÚLIA LOPES DE ALMEIDA, A VIÚVA SIMÕES.

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Concentração: Literatura e Cultura).

Orientadora: Profª Drª Nadilza Martins de Barros Moreira

JOÃO PESSOA – PB 2008 2

Nos tempos antigos, a mulher era calma, submissa, pacífica e retraída; mas seria tudo isso por ter mais bom senso, mais e menos ambição? Não me parece. O motivo devia ser outro; o motivo devia de estar na atmosfera que a envolvia e em que não existia nenhum elemento agitador. Não somos nós que mudamos os dias, são os dias que nos mudam a nós. Tudo se transforma, tudo acaba, tudo recomeça, criado pelo mesmo princípio, destinado para o mesmo fim. Nascemos, morremos e no intervalo de uma outra ação, vivemos a vida que nosso tempo nos impõe. O que ele impõe hodiernamente à mulher é o desprendimento dos preconceitos, a luta, sempre dolorosa, pela existência, o assalto às culminâncias em que os homens dominam e de onde a repelem. Mas, seja qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá, por que não nasceu da vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar. (ALMEIDA, 1906, p.72-73)

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AGRADECIMENTOS

A Deus, agradeço a energia e a coragem da aventura do inusitado.

À UNEMAT, especialmente ao Departamento de Letras do Campus de Alto Araguaia, por valorizar a envergadura do nosso projeto de pesquisa.

À professora Nadilza Martins de Barros Moreira, pela firme orientação, pela constante amizade, infinita paciência e compreensão.

Aos professores da Pós-Graduação, pela competência dedicação e estímulo.

Às funcionárias da Pós-Graduação, pela presteza e educação ao lidar com o público acadêmico.

Ao Sr. Cláudio Lopes de Almeida, pelo cuidado com o acervo particular de Júlia Lopes de Almeida e por sua contribuição à literatura de autoria feminina brasileira.

Aos professores participantes da banca examinadora.

Aos meus filhos, Bárbara, Isadora e Pedro Ivo, pela solidariedade.

Ao Flávio, pela amizade e pelo apoio irrestrito.

Aos amigos que, de uma maneira ou de outra, fizeram-se presentes nesta etapa de minha vida. 4

In Memoriam:

Maria Lúcia: esposa, amiga, mãe e companheira nas alegrias e tristezas. Eleuza: irmã querida, jamais esquecida no choro de menino. Ambas, estrelas a iluminar caminhos.

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BANCA EXAMINADORA

______Profª Drª Nadilza Martins de Barros Moreira Orientadora/UFPB

______Profª Drª Angélica Maria Santos Soares Examinadora/UFRJ

______Profª Drª Christina Bielinshi Ramalho Examinadora/UFRN

______Profª Drª Ana Maria Coutinho de Sales Examinadora/UFPB

______Profª Drª Elisalva Madruga Dantas Examinadora/UFPB

______Profª Drª Luciana Eleonora Calado Examinadora Suplente /UFPB

______Prof. Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva Examinador Suplente/UEPB 6

RESUMO

Nosso objeto de análise, o romance, A Viúva Simões (1897), de Júlia Lopes de

Almeida, centra-se no conflito da protagonista, Ernestina, investigando a sua desestabilização em relação ao perfil de mulher exemplar condizente com os valores patriarcais do século XIX. A pesquisa mostra como a escrita de autoria feminina negocia com os valores patriarcais oitocentistas, indicando de que forma a resistência surge nas relações de gênero no fim do século XIX no corpus em tela.

Concluímos que, através da composição estrutural da protagonista, a resistência se materializa na imanência do texto literário e novos significados surgem a partir do enfrentamento entre texto e contexto via crítica feminista.

Palavras-chave: Júlia Lopes de Almeida; A Viúva Simões; autoria feminina; patriarcado; resistência.

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ABSTRACT

Our object of analysis, the novel A Viúva Simões (1897), by Júlia Lopes de Almeida, is centered in the conflict of the protagonist, Ernestina, investigating its run down in relation to the profile of exemplary woman suitable with the patriarchal values of century XIX. The research shows how the feminine writing authorship negotiates with the established patriarchal values, indicating how the form the resistance appears on the relations of genders in the end of the 19th century in the novel studied. We concluded that, through the composition structural of the protagonist, the resistance is materialized in the inner of the text literary and new meanings appears from the confrontation among text and contexture using the criticism feminist.

Key words: Júlia Lopes de Almeida; A Viúva Simões; feminine authorship; patriarchate; resistance.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 09

1. AUTORIA FEMININA: DO PRIVADO AO PÚBLICO...... 18

1.1. Mulher: do escrevinhar à escrita...... 18 1.2. Resistência pela escrita...... 35 1.3. Na perspectiva da crítica literária feminista...... 47

2. A FICÇÃO DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA...... 66

2.1. Contexto: a sociedade brasileira em transição ...... 66 2.2. Texto: a mulher brasileira em transição ...... 75 2.3. Texto e Contexto: trajetória de Júlia Lopes de Almeida...... 88

3. A VIÚVA SIMÕES: RESISTÊNCIA NA EXPRESSIVIDADE NARRATIVA...... 102

3.1. Entre o ser e o parecer...... 102 3.2. Erotismo: sensualidade narrativa...... 129 3.3. Mulher e maternidade...... 142

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 164

BIBLIOGRAFIA...... 169

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INTRODUÇÃO

O trabalho que ora apresentamos foi motivado por nossa atuação no magistério superior na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), local onde ministramos disciplinas na área de Literatura Brasileira desde 1992. Nosso exercício docente, em grande parte, foi sustentado por textos em prosa de escolas literárias a partir do Romantismo, em cujo período se inicia, a tradição romanesca em nossas letras.

Nosso interesse pelo gênero romanesco se justifica pela sua composição que engloba vários elementos analíticos vinculados à realidade social de sua época, cujo objeto de análise, comumente, são os perfis femininos. Exemplos disso são encontrados, principalmente, em obras que vão de José de Alencar, Machado de

Assis, Aluisio de Azevedo aos Modernistas como: Graciliano Ramos, Raquel de

Queiroz, Ligia Fagundes Telles, Clarisse Lispector, Adélia Prado, entre outros.

Outro dado relevante à nossa proposta de doutorado é o interesse da

UNEMAT em renovar e ampliar o conhecimento de seus professores na área de literatura, uma vez que ainda estamos atrelados a uma ótica do ensino da literatura preso à visão tradicional, ou seja, a instituição continua com uma abordagem extremamente historiográfica, na grade curricular do curso de Letras. Entretanto, é preciso ampliar as propostas nos currículos e programas dos cursos de licenciatura, pois as propostas dos novos paradigmas curriculares, explicitados nos PCN’s, exigem uma revisão urgente nos currículos e programas da nossa instituição.

Desenvolver este trabalho de pesquisa é a certeza de que estaremos enfocando uma perspectiva singular, particularmente se considerarmos o corpus literário cuja análise privilegia a questão da resistência na narrativa de Júlia Lopes 10

de Almeida (1862-1934) pelo viés das questões de gênero fundamentado na crítica feminista.

Outrossim, acreditamos contribuir para a divulgação de uma memória literária brasileira feminina, pouco estudada e ausente dos currículos e programas em vigor nos cursos de graduação e de pós-graduação na UNEMAT e em outras instituições de ensino. Mas, na contramão desta obscuridade, ocorre uma ampla divulgação através dos trabalhos publicados pelo Grupo de Trabalho (GT) Mulher e Literatura, da ANPOLL; grupo do qual é membro a professora pesquisadora Nadilza Martins de

Barros Moreira que, em um primeiro diálogo, incitou a presente pesquisa.

A literatura de autoria feminina ficou relegada à margem da literatura canônica ocidental até a 3ª onda feminista na década de 60, em países como, E.U.A,

Inglaterra, França, Brasil e outros. Esta 3ª onda feminista vem atrelada às lutas emancipatórias das mulheres que, entre outras demandas, exigiam o reconhecimento das aptidões e dos direitos femininos além dos apregoados pela sociedade patriarcal, isto é, o de rainha do lar e de mãe idolatrada (STEIN, 1984. p.

22).

A narrativa de Júlia Lopes de Almeida, por sua vez, se insere no contexto histórico oitocentista, descrito por Stein. A obra de Júlia Lopes de Almeida, porém, vai além do papel designado ao feminino, pois ela consegue, através de suas personagens, mostrar que as mulheres possuem aspirações que extrapolam aquelas valorizadas pelo modelo patriarcal. Ou seja, as personagens almeidianas aspiram, sobremaneira, por educação e trabalho. A temática da educação e do trabalho feminino foram o grande foco desta escritora carioca que escreveu uma vasta produção ficcional, na qual se destacam obras infantis, romances, contos, crônicas, peças teatrais e uma literatura didática dirigida, particularmente, às 11

mulheres.

Apesar do reconhecimento da crítica à vasta produção literária de Júlia Lopes de Almeida e da sua aceitação pela elite carioca oitocentista, após sua morte em

1934, essa escritora tornou-se desconhecida, até mesmo para professores e estudantes dos cursos de Letras, pois, “com o passar do tempo Júlia Lopes de

Almeida reduziu-se a esparsos registros em compêndios de historiografia em uma ou outra reedição mais recente”. (XAVIER, 1991, p. 08)

A crítica registrada por Lúcia Miguel Pereira reconhece a literatura de Júlia

Lopes de Almeida “como sorriso da sociedade” (PEREIRA, 1957, p. 259), isto significou uma literatura que visava entreter sem questionar os valores sociais. No entanto, a nossa leitura da narrativa almeidiana se opõe à leitura crítica de Pereira, acerca da obra, isto é, a de que a vasta produção literária de Almeida teve por finalidade entreter a sociedade carioca. A nossa divergência à Pereira se respalda em uma outra observação desta mesma crítica ao afirmar que a autora carioca “é a maior figura entre as mulheres escritoras de sua época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária...” (PEREIRA, 1957, p. 260).

Nossa análise pretende valorizar, preferencialmente, a composição das personagens estrategicamente concebidas com um diferencia: o de revelar/desvelar a condição feminina no período oitocentista, como é o caso dos romances A Viúva

Simões (1897), A Intrusa (1908), A Falência (1901), seus romances mais elaborados no que concerne à construção das personagens femininas, e das protagonistas em especial.

É notório também o estilo de Júlia Lopes de Almeida nas coletâneas de contos como, Ancia Eterna (1903) e de crônicas como Eles e Elas (1910). Em 12

ambas as coletâneas, a autora se esmera na criação de tipos vivenciando conflitos sócio-político-culturais nas relações de gênero.

Esta proposta tem como objetivo a investigação das marcas de resistência na narrativa da obra A Viúva Simões (1897) de Júlia Lopes de Almeida, na perspectiva da crítica feminista recorrendo a uma análise de caráter sociológico que envolve a literatura e os aspectos ideológicos que influenciaram a escritora na elaboração do romance em foco.

Apesar de refletir os fatores do meio social, é necessário saber que a obra literária não registra, mas evidencia sua existência, muitas vezes, até exagerando a realidade e a investigação sociológica da literatura; se não justifica a essência do objeto artístico, auxilia a compreender a criação e o objetivo das obras. Objetivo este, em nosso caso, condizente com a escrita oitocentista de autoria feminina essencial do ponto de vista da crítica feminista para se entender a condição feminina daquela época.

O discurso feminino do século XIX foi construído sobre os alicerces patriarcais vigentes, sedimentados por rígidas relações de gênero. Por isso, utilizavam-se estratégias discursivas que favoreciam sua aceitação no meio literário. A negociação dissimulada da escrita feminina com os valores burgueses vigentes facilitava a inserção da mulher-escritora no espaço literário sem, necessariamente, confrontar com as instituições e o “sermo paterno”.

Compreender como se manifestam as formas de resistência, na escrita de autoria feminina oitocentista, remete-nos à trajetória histórica de mulheres escritoras no século XIX, no qual não somente a literatura brasileira, mas o país vivia uma transição, de colônia à nação, de monarquia à república. Resistência será entendida ao longo da análise do corpus proposto como uma estratégia narrativa cujo objetivo 13

é confrontar os valores e o lugar do feminino na sociedade patriarcal carioca, imersa em uma profunda transição estrutural, política e valorativa advinda da emancipação da colônia. Ou seja, a sociedade carioca oscilava entre o velho e o novo e precisava fazer os ajustes necessários a uma ex-colônia que se fazia nação, a um projeto de modernidade que almejava transformar a cidade do Rio de Janeiro na Paris tropical, entre outras imposições. Com tais explicações, queremos ressaltar que a resistência no texto ficcional almeidiano se pautará na tensão entre a ação dos actantes e seus respectivos discursos materializados na imanência do texto romanesco, A viúva

Simões.

As personas, cujos pensamentos, ações e sentimentos mais recônditos nos são oferecidos sem reserva na ficção almeidiana, suscitam indagações sobre o modo como a arte representa a natureza humana. No caso do romance a ser analisado, os conflitos entre o ser e o parecer vão construindo os elementos de resistência nos enfrentamentos das relações de gênero.

Neste sentido, a crítica feminista dará suporte ao nosso trabalho crítico- analítico à medida que politiza o discurso narrativo, redimensiona seus significados, e o retira do lugar comum, politizando-o no enfrentamento entre o texto e o contexto histórico em que ambos se manifestam. Conseqüentemente, a crítica feminista procurará dar visibilidade à obra de autoria feminina, resistindo ao princípio de neutralidade literária postulado pelo cânone que desvaloriza, via de regra, os textos de mulheres escritoras, para inseri-las no espaço acadêmico, levando em conta não somente os aspectos literários, mas pontuando a importância das experiências vividas no silêncio do espaço privado.

A escolha deste corpus se deu porque ele oferece um retrato do ambiente urbano e burguês oitocentista; A viúva Simões, focado na mulher, a tem como centro 14

da narrativa e mostra a condição feminina nos espaços público e privado; seu foco narrativo é único e está voltado para a composição da protagonista, não existindo outro núcleo narrativo além do contexto onde a viúva circula.

Faremos uma análise considerando os valores oitocentistas do patriarcado que são discutidos amplamente pela crítica feminista, pois entendemos que esta crítica promove a desconstrução do patriarcado que considerava natural a opressão da mulher pelo homem e como universal a supremacia do ponto de vista masculino em detrimento do feminino. São, portanto, reflexões em torno da tensão das relações de gênero entre os sexos que darão sustentação à nossas análises.

É necessário afirmar, ainda, que este trabalho terá como objeto de investigação “uma escrita de mulher, sobre mulher e para mulher1”, expressão utilizada por Nadilza Moreira em sala de aula, e que, no exame do romance em apreço, limitaremos nosso enfoque a uma perspectiva que tem por base: um elemento formal (a personagem), um elemento temático (a resistência) e o instrumental que os realiza textualmente (a escrita).

Falar sobre resistência no âmbito da literatura significa lidar com fatores

políticos, sociais e culturais que farão a escrita ficcional interagir com o mundo

verossímil voltado para a sociedade e para os vários aspectos que a englobam.

Nesta perspectiva, somos levados a intuir que a resistência literária se dá com o

exercício das potências do conhecimento, o qual associamos às reflexões

críticas/teóricas de Antonio Candido.

Atrelados ao pensamento deste crítico, deveremos refletir sobre as

conexões entre a realidade social e a estrutura literária como uma das estratégias

1 Esta expressão foi utilizada no curso “Entre a tradição e a Modernidade: vozes que se cruzam na autoria feminina”, para contextualizar as razões pelas quais Nadilza Moreira considera as narrativas oitocentistas dirigidas às mulheres.

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de resistência na narrativa romanesca de Júlia Lopes de Almeida. Não se deve

ver a obra apenas como representação da realidade exterior, mas também como

uma associação entre o interno e externo, pois as representações só têm

existência completa através da interpretação dos resultados e da construção da

realidade que o autor(a) pretende representar.

Portanto, os elementos utilizados em seu discurso, juntamente às suas idéias de composição textual, levarão o leitor a notar que a escrita literária não somente mostra os fatores sociais, mas também como o texto se relaciona a estes fatores e, ainda, como se dá a representação na conexão texto e contexto.

As considerações acima nos auxiliarão na tarefa de buscar, em nosso trabalho, subsídios teóricos para justificar a resistência em Júlia Lopes de Almeida e entender a razão pela qual a resistência está intrinsecamente ligada ao aspecto social da obra que faz parte de nosso objeto de estudo.

Acreditamos que a resistência na obra literária almeidiana não resgata apenas o que foi dito no passado distante; ela transcende o tempo da escrita e propaga novas formas de pensar e transcrever uma realidade sincrônica envolta em seus aspectos sociais e culturais, o que viabiliza “a possibilidade de criar espaços de lutas e de agenciar possibilidades de transformação em toda parte” (REVEL, 2005, p. 74). Resistência que, no parecer de MOREIRA, tem sempre uma perspectiva desconstrutiva, no sentido de propor novas formas de pensar e transcrever uma realidade, ou seja, ela, a resistência como uma ferramenta da crítica feminista, desorganiza a lógica e os valores do “status quo”, contrapondo-se à rigidez e ao lugar do feminino nas relações de gênero.

Alicerçados nas considerações críticas e teóricas sobre resistência, buscaremos mostrar como se materializa a resistência na obra A viúva Simões 16

(1897) de Júlia Lopes de Almeida.

Nosso trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro, faremos um relato histórico panorâmico da literatura de autoria feminina no Brasil desde o que consideramos murmúrios literários oriundos da pena feminina; apresentaremos a discussão centrada na ótica da teoria/crítica literária feminista, seu percurso e sua importância.

A obra de Júlia Lopes de Almeida e sua influência no contexto literário, social e

cultural serão tratadas no segundo capítulo, no qual veremos, primeiramente, a

maneira como a narrativa, a partir do mundo privado, identificado com o feminino,

discute aspectos do espaço público dominado pelo masculino; como se estrutura

a narrativa almeidiana, centrada na figura feminina, e consegue reconhecimento

no cenário literário brasileiro.

No terceiro capítulo se dará o exame do corpus proposto, A viúva Simões

(1897), que focará a composição da protagonista e os elementos do enredo que sustentarão a análise.

A escolha de uma só obra para nossa pesquisa se deve, principalmente, por entendermos que A Viúva Simões (1897), por si só, resultaria em um bom trabalho, no qual a escrita feminina, estrategicamente, busca problematizar a imagem da viúva triste, deprimida, saudosa do finado, fiel aos votos de fidelidade matrimonial mesmo pós-morte; por fim, a narrativa possibilita repensar e reescrever uma mulher enlutada por dentro e por fora, uma mulher que abdica o momento presente para, confinada nas lembranças do passado recente, (re) viver:

É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real. A literatura, por ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade, mais exigente. (BOSI, 2002, p. 135) 17

Desse modo, esperamos que nossa pesquisa atenda ao chamamento de

Wilson Martins quando afirmou que havia a necessidade de: “uma urgente releitura de A Viúva Simões”. E ela, ainda, possa engrossar as pesquisas já amplamente divulgadas, primordialmente àquelas do Grupo de Trabalho Mulher e Literatura da

ANPOLL que vem privilegiando os textos de autoria feminina, tecendo considerações acerca do cânone e somando-se às teorias de cunho feminista em vigor na tradição anglo-americana e francesa.

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1. AUTORIA FEMININA: DO PRIVADO AO PÚBLICO

1. 1. Mulher: do escrevinhar à escrita

Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porca de rimas... (...) A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos, viria o mundo abaixo. (ALMEIDA, 1994, p. 29)

A produção literária de autoria feminina é um dos lugares possíveis para se traçar uma história do papel desempenhado pelo feminino no contexto social e cultural através dos séculos, no qual a mulher, na medida do possível, se revela através de sua escrita.

No campo das artes, mais especificamente no da literatura, discutiu-se por muito tempo se existe uma escrita feminina caracterizada por um discurso com marcas genuínas de voz de autoria feminina. A discussão em torno desta questão, mesmo quando de natureza essencialista, na qual se via a ligação mulher/natureza como justaposição da condição biológica à social, tem contribuído para se pensar e se analisar a literatura sob nova ótica, levando-se em conta as variações possíveis.

Não somente a teoria da literatura, mas a história, a sociologia, a psicologia e a filosofia oferecem subsídios para a compreensão do texto literário. Esta postura interdisciplinar compreende e considera o feminino como resultado de articulações diversas. A confluência dessas áreas do conhecimento possibilitou a retirada da escrita de autoria feminina das margens, da periferia, passando a reconhecer nessa autoria uma literatura com característica própria.

Ultrapassando a barreira do silêncio a que se viu historicamente condenada, a mulher veio, lentamente, se inserindo em diversos caminhos, entre eles o da 19

produção literária, com o objetivo de assumir uma voz própria, sua linguagem, sua escrita e seu discurso.

Construindo um texto oriundo de suas próprias experiências e contextualização do seu universo, a mulher passa a ser sujeito de seu próprio querer, de sua existência, de sua palavra. A autoria feminina se dá, sutilmente, pelo sujeito que se reconhece através da palavra, na qual apresenta sua consciência, se realiza e se mostra. A autoria feminina resulta, então, de uma conquista, da afirmação do ser em meio a uma sociedade que insistia em tornar a escrita feminina invisível, marginalizando a escrita e a criatividade da mulher.

Com esta breve explanação, damos início ao nosso trabalho, no qual traçaremos as transformações que envolvem a produção ficcional de autoria feminina e o seu lugar no cenário literário brasileiro, uma vez que esta literatura esteve relegada à margem da literatura de autoria masculina, na qual “a sociedade não reconhecia na mulher outras aptidões a não ser a maternidade e a de senhora do lar”. (STEIN, 1984, p. 22)

Iniciemos com as palavras da escritora Lygia Fagundes Telles por apresentar uma visão sobre a escrita de autoria feminina que envolve características culturais e a condição feminina brasileira, perceptíveis no fragmento abaixo:

A literatura feminina tem (...) uma fisionomia própria (...) decorrente da situação da mulher, das suas raízes históricas... a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as mulheres do mundo. (TELLES, 1997, p. 57)

As palavras de Lygia Fagundes Telles, caracterizam, de certa forma, uma escrita de autoria feminina de um Brasil oitocentista, no qual as mulheres brasileiras não possuíam direitos autônomos. Aliás, quase direito algum, principalmente no que tange à educação escolarizada e ao trânsito, pelo espaço público, 20

predominantemente masculino.

A escrita de autoria feminina, dificilmente, poderia ser diferente do seu meio e do seu público leitor, essencialmente femininos. Daí a característica do tom confessional dado pela maioria das escritoras oitocentistas, tendo como referência seu cotidiano, seu meio (privado), seus anseios, suas queixas, sua realidade verossímil, ou seja, uma “escrita de si”, de mulher, sobre mulher e para mulher. Tal escrita reflete um universo particular ainda imerso em preceitos patriarcais reinantes, em que a mulher busca, através de escritos como diários, cartas, crônicas e até receituários, uma forma de revelar sua postura e condição na sociedade na qual está inserida.

Isolada, silenciada, a mulher tenta, por meio da escrita, romper com o espaço a ela destinado e mostrar sua condição subordinada à normatização social vigente.

É através destes primeiros textos que a mulher busca se definir como: mulher/ser mulher, ou seja, a própria representação da mulher e o papel por ela desempenhado na sociedade da época, dando visibilidade a estes estados que estão intrinsecamente ligados ao padrão masculinizante que rege os preceitos sociais do século XIX.

A literatura de autoria feminina brasileira oitocentista inicia seus primeiros passos e começa a se afirmar no contexto literário brasileiro num período de transição política, no qual o país deixa de ser colônia portuguesa para transformar- se em nação, isto no início do século XIX, em 1822. Como complemento dessa informação, é importante lembrar que a História de nosso país se divide em Período

Colonial e Período Nacional, enquanto a literatura brasileira, por questões didáticas,

é dividida pelos estudiosos em Era Colonial (literatura de informação) e Era Nacional

(romantismo). 21

A literatura de autoria feminina no século XIX vem retratar não a questão de nação, mas a condição vivenciada pela mulher naquele século, condição essa diferenciada em relação a outros países, principalmente europeus. Devido ao contexto histórico brasileiro de resquícios coloniais, a mulher brasileira não acompanhou as transformações sociais e culturais, especificamente no âmbito educacional.

A mulher oitocentista brasileira, por “transitar” e “atuar” apenas no espaço doméstico, por não possuir uma educação adequada à arte do “bem escrever” e, ainda, por não ter tradição literária de alcance nacional, dissertava sobre coisas banais, cotidianas ao seu espaço. A maioria de seus textos não ultrapassava o escrevinhar, termo que pode apresentar nuanças pejorativas, mas que expressa as características da época.

A problemática que envolve a questão educacional e a condição da maioria das mulheres brasileiras é explicitada assim, por Telles, ao dizer que:

a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as outras mulheres do mundo... Quando as mulheres do mundo já se comunicavam, através, por exemplo, das cartas, as correspondências das mulheres de salões, a mulher brasileira estava fechada em casa, vivendo a vida das senhoras das fazendas, da senhora da casa grande... Viviam aprisionadas. Não sabiam ler, não sabiam nem sequer escrever, não sabiam coisa nenhuma. Elas viviam numa servidão mais terrível do que as mulheres de outros países, inclusive da Europa. (TELLES, 1997. p. 57)

Telles retrata, assim, historicamente, a condição da mulher brasileira, e não a sua escrita, reforçando a questão da educação feminina precária no período oitocentista brasileiro. Embora sua observação seja válida quanto à apresentação da condição da maioria das mulheres, ela não reflete o diferencial feminino do século

XIX, uma vez que havia textos de autoria feminina, de mulheres, a maioria branca, escolarizada e elitizada. 22

A grande parte da população feminina do século XIX era, na verdade, iletrada, condição resultante da própria situação de um país em transição.

Conseqüentemente, esta situação provocou o silêncio das mulheres e uma ausência de vozes de autoria feminina no contexto literário de nosso país.

As mulheres escritoras imitavam, primeiramente, a escrita masculina e reproduziam, em seus escritos, o seu meio social. Não poderia ser diferente, principalmente, por causa da educação que lhes era ministrada e porque não eram estimuladas à cultura letrada. A mulher era, na maioria das vezes, apenas receptora de informações condizentes com seu meio social. Mesmo quando eram escolarizadas e possuíam personalidade forte e posição econômica relevante, como foi o caso da escritora Nísia Floresta, tinham reconhecimento menor pela mídia e pelo público.

Uma das razões deste não reconhecimento é que a temática da literatura de autoria feminina estava, em princípio, relacionada aos problemas domésticos ou

íntimos. Essa falta de envolvimento com questões “importantes”, como, a política, história e economia, fez com que a escrita feminina apresentasse pouca relevância no cenário literário da época.

Dentre as várias leituras de obras de autoria feminina e masculina, percebe- se uma enorme diferença entre os textos de escrita feminina e masculina, principalmente no que se refere à posição da escritora ou do escritor na apresentação ou prefácio da obra, e não necessariamente no contexto da obra literária.

Nota-se que, geralmente, os prefácios masculinos são cultos, estáveis e elegantes, independentemente do estilo, da qualidade ou, ainda, das opiniões defendidas. Nos prefácios femininos, manifestam-se o peso da culpa, o receio de ser 23

rejeitada ou de ser ignorada, compondo um estranho jogo dissimulativo do qual procedem sentimentos recônditos que caracterizam uma modéstia meio forjada e, muitas vezes, exagerada. Embora as fórmulas de humildade sejam usadas desde a antiguidade na escrita das mulheres, estas desculpas são, às vezes, tão acentuadas e repetidas que se torna evidente outra intenção por trás dessa escrita.

Ao discorrer sobre a existência de uma voz de autoridade feminina, Nelly

Novaes Coelho contempla o que apresentamos anteriormente, sem levar em conta, hoje de menor importância, a “querelle” da escrita feminina, ao afirmar que a base de toda diferenciação na criação artística reside na crença simplista e errônea da diferença de ordem biológica que determina a formação do homem e da mulher. Diz ela:

A primeira, sendo de estrutura forte, criativa e agressiva, evidentemente construiria uma arte idêntica à sua natureza viril; enquanto a segunda, sendo sensível, frágil, psicologicamente sutil, afetiva, ingênua, etc., criaria uma arte também delicada e frágil (...) Não é possível pensarmos em criação artística ou literária em sua verdade maior sem pensarmos na cultura em que ela está imersa. É através desta perspectiva que, sem dúvida, podemos falar em uma literatura feminina e em uma literatura masculina, pois as coordenadas do sistema sociocultural ainda vigente estabelecem profundas diferenças entre o ser-homem e o ser-mulher. (COELHO, 1993, p. 14-15)

Podemos entender que, para Coelho, a questão da escrita é de ordem cultural e está na condição masculina ou feminina estabelecida pela sociedade patriarcal.

Sabe-se que existe, ainda, uma linha crítica que rejeita essa divisão entre produção masculina e feminina sob a afirmação de que escrita não tem sexo.

Todavia, é inegável identificar que, através dos séculos, o panorama literário tradicional remete a uma relação de desigualdade entre homens e mulheres. Não se trata de justificar ou afirmar que uma é mais importante, ou melhor, do que a outra, mas de entender e perceber a existência de mecanismos ideológicos que permeiam 24

tais relações com a intenção de estruturar, validar e perpetuar conceitos pré- estabelecidos pelo cânone.

O prefácio de Úrsula (2004), considerado o primeiro romance de autoria feminina no Brasil, da maranhense Maria Firmina dos Reis, corrobora a nossa explanação e o exposto na fala de Nelly Novaes: Reis diz que Úrsula é “um livro mesquinho e humilde, pobre avezinha silvestre, sem formosura, sem enfeites e com incertos e titubeantes passos”. (REIS, 2004, p. 14)

Maria Firmina afirma saber “que o romance não vale quase nada, visto que é escrito por mulher, e mulher brasileira, de pouca educação e sem a conversação dos homens ilustrados”. (REIS, 2004, p. 13)

Ao comparar sua obra com os escritos masculinos, Reis estabelece um jogo discursivo, estrategicamente intencional, que envolve ironia e rancor misturados a sentimentos de impossibilidade e de certeza do caráter efêmero da obra. Este jogo de palavras, sensível em oposição ao forte, jogo polissêmico está contemplado, também, nos aspectos da fala de Coelho.

Todavia é neste quadro dissimulado pelos sentimentos autorais, jogando com as palavras e sentimentos, que a escrita feminina vai se tornando visível e buscando reconhecimento na sociedade brasileira em formação.

Podemos entender, nas palavras de Maria Firmina dos Reis, que o recurso constante a fórmulas de humildade traz ocultada na voz feminina a consciência da falta de condições para a mulher poder escrever, na época, da carência de educação, de instrução e de leitura para se tornar uma escritora.

Deste jogo discursivo ambíguo, de forma honesta/dissimulada, num prefácio cheio de desculpas e de humildade, Maria Firmina do Reis registra em sua escrita a 25

intenção de uma melhor educação e de mais incentivo para a escrita ficcional feminina no Brasil.

Em se tratando de mulheres escritoras, particularmente daquelas da segunda metade do século XIX, podemos perceber, por meio de seus escritos, o surgimento de uma consciência crítica sobre si e, conseqüentemente, sobre a situação feminina, que tende a revelar e desvelar esta condição no âmbito social e cultural em que estão inseridas.

Mesmo existindo um código social fixo que determina o lugar do feminino e do masculino, essas mulheres escritoras, embora restritas ao espaço privado, conseguem, estrategicamente, ir além da condição de reclusão e apontam em seus escritos necessidades e anseios que fogem ao modelo imposto pelo poder falocêntrico do patriarcado.

Transitando em espaços restritos, a mulher escritora oitocentista reproduz o que já foi dito pela pena dos escritores, mas com um toque de intimidade vivida, da forma como relata Paixão:

(...) essa esfera intimista será representada principalmente pelos salões, onde circulam, embaladas pelas récitas musicais, a confissão, o segredo, o cochicho, contrastando com uma sociedade que se desenvolve no espaço da rua, nos cafés. Enquanto o homem absorve a realidade através do que vê, nas largas avenidas, a mulher lê na atmosfera intimista da casa uma outra, fictícia, que a torna alheia, reproduzindo apenas o que já foi dito e apresentado por outros. (1987, p. 12)

Historicamente, a literatura feminina começa a aparecer, nos salões literários, voltada para o espaço dos pequenos grupos sociais, onde as mulheres declamavam poesias. Assim, a inserção feminina dá seus primeiros passos para ultrapassar o espaço privado, através de uma escrita de cunho intimista, confessional e de auto- referência, características estas já mencionadas por Lygia Fagundes Telles. 26

Além de destacar a condição feminina, os escritos dessas mulheres oitocentistas demonstram os valores sociais vigentes e buscam, ao mesmo tempo, o reconhecimento da importância da mulher educada, preparada para as funções da maternidade.

Para corroborar as idéias aqui expostas, consideremos o texto Ânsia Eterna

(1903), de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que traz marcas da consciência que caracteriza esta mulher escritora. Ao falar de si, através de sua narrativa, Almeida leva ao espaço público sua angústia criativa e dá visibilidade à condição da escritora no final do século XIX. Situação esta, estrategicamente, exposta no seguinte excerto:

Por isto: o que não quero é escrever meramente; não penso em deliciar o leitor escorrendo-lhe n’alma o mel do sentimento, nem em dar-lhe comoções de espanto e de imprevisto. Pouco me importo de florir a frase, fazê-la cantante ou rude, recortá-la a buril ou golpeá-la a machado; o que quero é achar um engaste novo onde encrave as minhas idéias, seguras e claras como diamantes: o que quero é criar todo meu livro, pensamento e forma, fazê-lo fora desta arte de escrever já tão banalizada, onde me embaraço com raiva de não saber nada de melhor. (...) Quero escrever um livro novo, arrancado do meu sangue e do meu sonho, vivo, palpitante, com todos os retalhos de céu e de inferno que sinto dentro de mim; livro rebelde sem adulações, digno de um homem. (ALMEIDA, 1903, p. 1-2)

O texto de Júlia Lopes mostra uma insatisfação pessoal com a própria escrita, visto que ele possui marcas de autocrítica que têm um ideal de escrita espelhado em textos masculinos, “digno de um homem”, o que caracteriza um reconhecimento da autoria feminina que tem como referência do “bem escrever” a escritura de punho masculino.

Essa cultura literária tende a subordinar e aprisionar os textos de autoria feminina a um lugar pré-estabelecido pelo cânone patriarcal. Isso se deve também à cultura falocêntrica que coloca a mulher em segundo plano. Conseqüentemente, quase tudo o que vem dela, inclusive a escrita, é também tido como secundário. 27

O fato de desejar escrever um texto rebelde indica que Júlia Lopes pretendia romper com as limitações nas relações de gênero.

Deve-se lembrar que, ao se examinar um texto feminino, principalmente do século XIX, não se pode pensá-lo somente como um texto que se dá em relação ao texto masculino, senão o que está por trás de seu discurso, uma vez que o texto de autoria feminina oitocentista se mostra, geralmente, nas entrelinhas.

Para que se compreenda o texto ficcional feminino, há que se deter em sua particularidade, em sua existência, independentemente de outros textos, de outros discursos, já que, segundo Roberto Corrêa dos Santos,

Não há esse outro texto a que se possa atribuir o regime de estabilidade formal, definitivo como tendência, certo percurso, a favorecer a leitura daquele que é tido por singular, diferenciativo, marginal. (1991, p. 51)

Pode-se entender que é, na construção própria da forma, no seu conflito com outras estruturas e forças já existentes, que sé dá o texto de autoria feminina.

Mas as mulheres escritoras, embora tivessem consciência de sua situação naquele cenário literário, raramente alcançavam uma autodefinição, visto que a elas eram negadas a autonomia e a subjetividade, necessidades exigidas pelo modelo de criação literária vigente no século XIX.

Os escritos de mulher, para alcançarem um status literário, tinham de se adequar ao cânone firmado por preceitos masculinos. Preceitos estes alicerçados no modelo literário clássico europeu, fundamentado no rigor normativo dos clássicos universais, predominantemente masculinos.

De modo velado, é nesse lugar que a autoria feminina emerge e aos poucos começa a se constituir por meio de tons confessionais, nos quais as personagens femininas sugerem uma insatisfação com a situação de dependência.

Mais uma vez, encontramos em Júlia Lopes de Almeida indícios de um fazer 28

literário que caracteriza uma ficção em que a mulher passa a se representar:

Sou uma boneca de carne e osso; não sou mais nada. A minha dependência é o motivo da felicidade que todos celebram ao redor de mim, como se fora favor dar um marido à sua mulher, casa, mesa e vestuário... A minha pena é pensar estas coisas e não saber dizê-las, para fazê-lo compreender a minha alma. (...) Quando me debruço sobre o ombro de meu marido para seguir-lhe a leitura, percebo no gesto suave com que ele afasta o livro dos meus olhos, esta significação: -Tu não entendes disto... vai-te embora... Eu retorno o meu lugar, um tanto envergonhada da ousadia, e ele segue sozinho nestas altas regiões do espírito, que me são vedadas. (...) Ah! O lar! A sagração da mulher... Entretanto os homens, pelos menos meu marido... meu pai também... imiscui-se tanto na ordem da casa, que a gente tem vontade de cruzar os braços e deixá-los operar sozinhos! Afinal, quem faz e refaz, dá gostos, impõe vontades, não somos nós, pelo menos eu, mera conservadora... Tudo é ele! Tudo! A casa é o mundo que está aos seus pés, obediente ao seu gesto; abrem-se as portas a quem ele quer, fecham-se a quem lhe convém... A minha virtude deve consistir em ser de fácil persuasão. Meu marido quer, meu marido não quer, e acabou-se! Entretanto, as nossas opiniões são desencontradas; mas, pela minha submissão, concordamos infalivelmente! Ele nem dá pelo sacrifício (...) É que o sacrifício da mulher é mudo, tanto quanto o do marido é barulhento. Com que expansões, não só o meu, mas todos eles, falam da necessidade de trabalhar para sustentar tantas bocas, pagar mais isto e mais aquilo, para conforto e alegria da família que cada um deles constituiu!... A gente até fica vexada... ser carga é uma coisa bem triste!... Fardo... boneca de carne... em resumo: parece que não me tomam por outra coisa (...). (ALMEIDA, 1922, p. 24-28)

Este trecho, extraído da obra Elles e Ellas (1922), autoriza-nos a dizer que não se trata apenas de indícios de escrita feminina, mas marca efetivamente uma escritura de autoria feminina. Mulher que diz acerca da sua situação de aprisionamento, de dependência, de submissão, voltada para os afazeres do lar; uma voz que se vê impedida de seguir as altas regiões do espírito; mulher que se encontra humilhada, pois sente seu espaço tomado e suas vontades desautorizadas.

A representação da condição feminina, no texto de Júlia Lopes de Almeida, é resultado de fatores que marcam a trajetória histórica e cultural das mulheres em um território patriarcal em que as conquistas femininas foram acontecendo, às vezes silenciosas e literalmente tecidas por trás dos panos. 29

As normas estabelecidas pelo patriarcado se diferenciam para os dois sexos e legalizam os valores masculinos, assegurando aos homens poder pelo qual delineavam o destino da mulher.

Mesmo aceitas, tais normas são questionadas nos textos de autoria feminina, como demonstrado na seqüência:

Por que não o hei de enganar do mesmo modo? Em consciência, não há homens nem mulheres: há seres com iguais direitos naturais, mesmas fraquezas e iguais responsabilidades... Mas não há meio dos homens admitirem semelhantes verdades. Eles teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos – grandes para eles, para que seus pecados e faltas saiam e entrem sem deixar sinais; e extremamente miudinhas para nós. (ALMEIDA, 1922, p. 137).

Historicamente falando, o século XIX é considerado o século da mulher leitora. No Brasil, a narrativa romanesca, primeiramente em folhetim, se tornou uma alternativa de leitura de entretenimento, principalmente para o público feminino.

Por muito tempo, a mulher serviu apenas de tema para as obras literárias de autoria masculina, nas quais, mesmo em se tratando de protagonistas, traziam, em sua composição, características exaltadas no modelo esperado e referenciado pelo poder patriarcal.

Com o acesso à escola e o surgimento do romance, em 1844, a mulher brasileira passa a ler, a refletir e, por vezes, a questionar a situação de domesticidade, o seu papel de prestadora de serviços à família e a sua exclusão social.

A mulher brasileira de classe média e escolarizada passa, a partir da segunda metade do século XIX, a participar da produção literária, propondo, em alguns casos, uma reformulação da estabilidade social, e a induzir as modificações na conduta do indivíduo, principalmente das mulheres, e em sua concepção do mundo:

Minhas boas amigas, donas e donzelas (...) Nesta noite, uma das últimas do 30

fim do ano, que de lembranças suaves me esvoaçam pelo espírito! (...) Crede, esta carta é um desabafo (...) Nestas horas vertiginosas e perturbadoras reconheço todos os meus sonhos e desejos antigos, roçando por mim as suas asas, com tanto arrojo abertas e tão cedo enfraquecidas... Mas isso que vos importas? Valerá a pena pensar no tempo que passou, bem ou mal? O ano que parte de nossa vida discorreu, acaba? Deixai-o acabar! que vier terá as mesmas quatro estações; o sol inflamará a terra no verão, o vento fará cair as folhas no outono, as neves caracterizarão o inverno, e as boninas esmaltarão os campos na primavera... Assim como o tempo, fuseo ou luminoso, os homens serão maus ou serão bons e a vida fará seu giro imperturbável, desfazendo e criando entre declínios e triunfos. Para o mundo será assim, mas para nós, queridas? (ALMEIDA, 1906, p. 8- 10)

Percebe-se, no fragmento do prefácio da obra, livro das Donas e Donzelas

(1906), de Júlia Lopes, uma série de indagações às suas leitoras. Primeiramente, expõe seu estado de espírito e, logo a seguir, indaga pelo tempo transcorrido em vão, e fecha o prefácio fazendo uma pergunta crucial de consciência crítica sobre a condição feminina de sua época.

Temos neste texto de Almeida uma escrita de mulher, sobre mulher e para mulher; “como se estivesse escrevendo para si mesma, numa relação especular, a mulher se olha e reflete sua condição no meio em que vive”. (PAIXÃO, 1987, p.14)

É este ato reflexivo, no primeiro momento, que a escrita feminina utiliza como argumento em busca de uma voz autônoma, uma vez que, ao falar de si, a mulher escritora revela, em sua escrita, sua realidade e também a de suas prováveis leitoras que, ao lerem o texto, nele identificam: sua família, suas indagações, seus anseios e receios, seu meio e sua realidade.

Ao falar de si, ela, a mulher escritora, reflete uma condição feminina imposta pelo masculino, não condizente com os seus anseios e necessidades, e que deve ser mudada, levando em conta, principalmente, seu trânsito entre o espaço privado

(lar) e as largas avenidas do espaço público. 31

A criação literária das escritoras brasileiras oitocentistas não poderia ser diferente do que expõe Cândido, pois “a arte literária é a expressão de realidades profundamente radicadas no artista”. (CANDIDO, 1985, p. 22). Assim, como já dissemos anteriormente, as mulheres, através de sua escrita, expõem sua realidade, seu meio e suas perspectivas, indagações, e recriam sua própria condição social e cultural em seu texto literário.

A literatura de autoria feminina se realiza através de uma escrita ardilosa e, de certa forma, dissimulada, em que a mulher escritora sutilmente joga com a sua condição de mulher e o seu fazer literário, num constante jogo irônico e polissêmico entre o ser, o parecer e o dizer, compreensível e concreto para quem, como ela, vive uma realidade de exclusão:

Nós, as mulheres, não temos sempre a facilidade de bem exprimir os sentimentos por palavras; (...) Dizem que há para todas as coisas expressões precisas de inquestionável exatidão; (...) Mas essa é a interpretação dos fortes; a nossa dilui-se, numa gota incolor e inodora, que é como um chuvisqueiro em rosa, se nasce da alegria; ou, se vem da dor, como um floco de neve em uma brasa, que apaga a luz e deixa a nu o carvão. (ALMEIDA, 1906, p.08)

Percebe-se que a ficção feita por mulheres é permeada de características próprias, já mencionadas anteriormente, e, na maioria das vezes, relacionadas ao seu cotidiano. Com isso, a mulher pôde se revelar e buscar a definição de uma escrita literária mergulhada em sua própria condição.

Essa revelação na escrita pode parecer narcisista porque precisa falar de si mesma e de suas descobertas, por mais simples que elas sejam:

Não há em língua humana palavra que, como o beijo, exprima, por mais silencioso que ele seja, a ternura e o amor. (...) A vida sem beijos! A vida sem beijos é como um jardim sem flores, um pomar sem frutos, ou (que escorregue ainda mais esta velha comparação) um deserto sem oásis. (ALMEIDA, 1906, p. 118)

32

O trecho acima ilustra bem como, através da escrita, a mulher consegue uma definição, ou melhor, uma impressão e também uma expressão próprias sobre algo comum que envolve a relação entre os seres, que a oralidade não lhe permitiria naquela época, uma vez que não seria de bom tom a uma senhora tratar de um assunto considerado de foro íntimo em espaço público.

Dentro do espaço a elas destinado (o privado), as escritoras oitocentistas começam a enfrentar um cânone regido pelo patriarcado e criado estritamente para a divulgação de obras masculinas, pois, em um ambiente caracterizado pela tradição histórica de privilegiar o universo masculino, há, conseqüentemente, um só cânone, uma só literatura.

É o Cânone que tenta, às vezes sutilmente, depreciar as obras de autoria feminina seja pela crítica “tênue”, pelo descaso, seja pela própria indiferença, uma vez que as produções de autoria feminina, embora “aceitas”, não eram boas demais para serem inseridas no cânone, e, muitas vezes, nem eram/são consideradas arte literária.

Naquele fim de século, ainda era negada à mulher brasileira oitocentista atividade relacionada à produção intelectual, ou seja, a atividade de escrita feminina não tinha reconhecimento literário.

Conforme Moreira (2003), a pressão social exercida sobre a mulher é muito forte durante todo o século XIX, uma vez que ela é, na maioria das vezes, reclusa ao espaço do lar e subordinada primeiramente ao pai e depois ao esposo.

Os papéis masculino e feminino são muito claros. Aqueles que ousam romper os limites, os códigos de feminilidade e masculinidade são severamente punidos pela coerção social que impõe normas rígidas nas relações de poder entre os sexos. 33

As mulheres, conhecidas como “sexo frágil”, portanto, aparentemente passivas, procuravam formas e estratégias alternativas, capciosas e muitas vezes dissimuladas, através das quais buscavam romper, de algum modo, o lugar que culturalmente lhes era reservado na sociedade do século XIX

Historicamente, a produção literária de autoria feminina no Brasil, no círculo literário oitocentista, e ainda no século XX, era somente tolerada, e não reconhecida.

Não havia incentivo igualitário para a produção de escrita feminina, e as mulheres não eram tidas como capazes de escrever à altura dos homens.

Mesmo a crítica, quando se interessava em dissertar sobre alguma obra de escrita feminina, se preocupava mais em dar um parecer comedido, com o devido respeito a uma dama, do que propriamente ao texto como sendo literário. Na verdade, não se fazia uma crítica propriamente dita; mas fixava-se mais em comentário superficial de senso comum.

Devido à pobreza da educação feminina, até o início do século XX, os textos femininos eram vistos como exceção; tinham como público leitor mulheres e alguns homens ligados, a maioria das vezes, à crítica social e não especificamente literária, uma vez que a teoria literária tem seu apogeu no século XX.

Neste caso, para a crítica, a literatura de autoria feminina era analisada entre a dicotomia homem/mulher, não levando em conta o seu grau de literariedade.

Sabemos que esta afirmação pode ser perigosa, se pensarmos que os textos de mulheres escritoras no século XIX são em geral muito fracos devido à pobreza social e educacional da mulher brasileira.

Os textos de autoria feminina são pobres do ponto de vista de uma estética literária, dada a escassa educação das mulheres. Entretanto eles são fontes 34

valiosas se pensarmos na condição histórica da mulher brasileira; na possibilidade de se construir uma história literária de autoria feminina brasileira.

A literatura de autoria feminina no Brasil oitocentista, acoplada à condição de subalternidade da mulher brasileira e ao desprestígio de sua escrita, ficou por muito tempo esquecida, dificultando seu resgate documental e o seu devido lugar no contexto histórico-literário de nossas letras.

Estes escritos ficaram fora do cenário literário porque foram recebidos pelos críticos e também pelo público leitor da época como obras menores: devido à temática feminina, à falta de escolaridade da maioria das mulheres oitocentistas e à própria concepção do que era visto e entendido como literatura.

A linguagem literária também é outro aspecto relevante nessa comparação do gosto estético-literário. Por fim, a condição de cidadã de segunda classe refletia diretamente na autoria feminina.

A “escrita de mulher” era, portanto, considerada inconsistente, vazia, fútil, em outras palavras, indiferente ao espaço letrado e aos próprios editores que divulgavam as obras de autoria masculina.

A sociedade brasileira assentada em preceitos patriarcais, ao reproduzir os modelos vigentes, tratou as mulheres escritoras e sua produção ficcional com indiferença e falta de receptividade, além de não favorecer a troca de idéias dadas pelo ambiente sócio-cultural, o que se tornou, por muito tempo, uma constante na literatura feminina brasileira.

Entretanto a escrita de autoria feminina vem dando um novo rosto à literatura brasileira, seja pelo resgate de textos de escritoras do século XIX, seja pelas escritoras contemporâneas representativas da literatura brasileira. Enfim, por todas elas, escritoras, incógnitas ou não, mulheres que são objeto de estudo de várias 35

pesquisas em nosso país. Mulheres escritoras que, resistindo às críticas, foram conquistando o espaço até então destinado aos homens, e questionando os papéis sociais que impõem às mulheres invisibilidade intelectual e social. Assim, deixaram de ser apenas assunto do texto para serem também sujeitos da obra literária.

O que, a princípio, chamamos de “escrevinhar” é a primeira ação de resistência que irá dar visibilidade à voz feminina no espaço literário, no caso, brasileiro ao longo da história; fato este que consideramos um dos significativos gestos de transgressão feminina ao “status quo”.

1.2. Resistência pela escrita

Por não encontrarmos uma definição precisa que atenda o propósito de análise do corpus de nossa pesquisa para o termo “resistência”, partimos de sua significação primeira, que seria o “ato ou efeito de resistir”. Significação esta que entendemos como “força que se opõe a outra”. E para se efetuar a concretização da resistência, tem que haver oposição, divergência, transgressão, ruptura, insatisfação que implica relação de poder.

As relações de poder estão situadas no sistema das redes sociais, o que não significa que exista um princípio de poder primário e fundador que domine a sociedade. É possível perceber formas distintas de poder, de disparidade individual.

As formas de governo de sujeitos por outros sujeitos são múltiplas, superpostas, se cruzam, se impõem, vez por outra se cancelam umas às outras e, ao mesmo tempo, se reforçam mutuamente.

Do mesmo modo, as chamadas estratégias de resistência como a insubordinação, por exemplo, constituem uma fronteira para as relações de poder. E 36

podemos, então, entender que cada intensificação das relações de poder para submeter o insubordinado só demarca seus próprios limites.

A resistência existe como uma estratégia de luta no inconsciente coletivo, uma vez que o poder já não se baseia somente na força, mas sim nas várias formas de disciplinas por ele impostas.

Há toda uma organização social que exige obediência a padrões estéticos, comportamentais, éticos, entre outros. Paradoxalmente, esse poder reprime e estimula.

Contudo, de encontro a ele, deslocam-se mecanismos de resistência, pois os excluídos, por aspirarem à liberdade, procuram uma forma de luta contra as injunções do poder.

Podemos entender resistência como a força que provoca alteração nas relações de poder. E se não há resistência, não há relação de poder. Tudo seria simplesmente uma questão de obediência.

A partir do momento em que o indivíduo está em situação de não fazer o que quer, ele deve utilizar as relações de poder, já que este não se encontra centralizado naquele que, aparentemente, domina a situação – o que, como conseqüência, implica alteração das estratégias de relações de poder.

Falar sobre resistência no âmbito da literatura é envolver fatores culturais que farão a escrita ficcional interagir com o mundo verossímil voltado para a sociedade em si e para os vários aspectos que a englobam. Estes fatores são notórios na literatura feminina, uma vez que, da janela de seus lares, enclausuradas no recinto familiar, as mulheres, brancas, escolarizadas e burguesas, foram, gradativamente, conscientizando-se da sua (des)importância fora do espaço privado e iniciaram um 37

questionamento acerca de condição social e, conseqüentemente, do lugar que ocupavam nas relações de gênero, ou seja, nas relações de poder.

O que apresentamos acima como resistência é teorizado por Alfredo Bosi

(2002) ao afirmar que se trata de um conceito originalmente ético, e não estético, pois o termo resistência é de cunho cultural/social, e alicerçado nas relações de poder.

Para Bosi, o sentido mais profundo de resistência apela para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir.

Desta forma, no que diz respeito à atividade literária,

A experiência dos artistas e o seu testemunho dizem, em geral, que a arte não é uma atividade que nasça da força de vontade. Essa vem depois. A arte teria a ver primariamente com as potências do conhecimento: a instituição, a imaginação, a percepção e a memória. (BOSI, 2002, p. 118)

Considerando que a arte tem a ver com as potências de conhecimento e com os aspectos que a envolvem, sabe-se que as mulheres brasileiras, em geral, não as possuíam pela escassa educação que recebiam e pela condição feminina no século

XIX. E compreendendo-se que, para se ter a resistência como elemento nas relações de que se constitui o poder, surge o que se pode chamar de estratégias de resistência.

Apoiando-se, na realidade, sobre a situação que combate, e sendo a resistência o processo que consiste em liberar-se das práticas instituídas pelo poder,

é primordial que tenha como base o conhecimento do objeto que será seu alvo de oposição. 38

Nesta perspectiva, fica evidente que a resistência literária se dá com o exercício das potências do conhecimento. E atrelado a esta potencialidade, devemos

averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto de poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a obra exerce. (CANDIDO, 1985, p. 7)

O que Candido afirma contempla o processo de criação da ficção literária, uma vez que a realidade social é um dos componentes constitutivos da obra literária.

De modo particular, devido ao nosso propósito nesta reflexão, sabemos que as experiências femininas da domesticidade, por exemplo, foram temas recorrentes nos textos de escritoras oitocentistas.

Portanto, não é gratuito o fato de que o social seja um elemento relevante na composição da personagem ficcional, pois é a tensão social que permite o trânsito e o desenvolvimento de suas ações.

Em textos de autoria feminina, em nosso caso, os de Júlia Lopes de Almeida, a realidade social burguesa é um fator preponderante para a análise de sua obra.

Não só por retratar o momento histórico e cultural, mas também por ser importante para as pesquisas que pretendem enfocar texto e contexto, tomando por paradigma caminhos da escrita feminina brasileira ao longo de uma formação de identidade de gênero no fazer literário.

É importante observar que “o social não importa como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2002, p. 7). O social é o elemento que incidirá internamente na composição da personagem ficcional no qual se estabelecerá a relação de poder no contexto da obra ficcional.

Devemos analisar a obra literária por sua estrutura, não priorizando apenas 39

seu conteúdo, mas levando-se em conta o aspecto social “como fator da própria construção artística, estudado ao nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO,

2002, p. 7). O aspecto social atuará na ficção, geralmente, como fator justificador e explicativo das ações das personagens ficcionais, de modo particular, muito usado em obras realistas.

As palavras de Antonio Candido contemplam o que já vem sendo utilizado nas análises de obras de autoria feminina, uma vez que é pelo fator social que se explica a opressão normatizada por preceitos patriarcais na história das mulheres, seja ela ficcional ou não.

Por este olhar, não se deve ver a obra apenas como representação da realidade exterior, e sim interiorizar os aspectos sociais na obra, uma vez que, segundo Antonio Candido,

as representações só têm existência completa quando alguém está usando, lendo ou assistindo, ou escutando e, assim, completando a comunicação através da interpretação dos resultados e da construção para si próprio da realidade que o produtor pretende mostrar. (1985, p. 18)

Olhar que o escritor(a) escolhe e os elementos por ele(a) utilizados em seu discurso, juntamente com suas idéias de composição textual, é o que levará o leitor(a) a notar que sua escrita não somente mostra os fatores sociais, mas também como seu texto se relaciona a tais fatores, e, ainda, como se dá sua representação no contexto da escrita.

Entende-se, assim, que estaríamos próximos a uma interpretação denominada por Antonio Candido de dialética ao professar que:

A arte social depende da ação dos fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte (CANDIDO, 1985, p. 20-21).

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Necessário se faz afirmar que, de acordo com as colocações de Candido cotejadas acima, é importante observar qual o papel e qual o lugar do artista na sociedade, qual o seu olhar para as questões por ele levantadas; além de outros aspectos relevantes para compreender os padrões de sua época, escolha de temas, uso de formas e a repercussão de sua obra sobre o meio. Essa repercussão é que dará uma fisionomia singular no contexto das letras, tanto do ponto de vista social quanto do literário.

Percebe-se que a relação entre sociedade e arte, especificamente a arte literária, “estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam o público”

(CANDIDO, 1985, p. 24), porque envolve relação de poder, uma vez que é através da palavra e da escrita que se dá o conhecimento letrado valorizado enquanto

“status quo” e diferenciador social por excelência.

Devemos lembrar que o escritor é um ser social que busca, em sua obra, interagir com a sociedade e, através de sua criação individual, atingir a coletividades. Sendo que

os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo (CANDIDO, 1985, p. 25).

As palavras de Antonio Candido corroboram o aspecto constitutivo da escrita como estratégia de resistência em textos literários, pois resistência, enquanto significação, está intrinsecamente ligada ao aspecto social em que está inserida, de forma visível, na composição de muito dos textos literários que, por sua vez, adquirem significado social além do próprio texto. 41

Continuando na perspectiva de Bosi, “resistência, quando conjugada a narrativa, tem sido realizada de duas maneiras que não se excluem necessariamente: a resistência se dá como tema; a resistência se dá como processo inerente à escrita”. (2002, p. 120)

Bosi explicita a resistência como tema no sentido de embate, de luta, de posicionamento de idéias, de crítica voltada para a questão política, citando como exemplo Memórias do Cárcere (1953), do escritor modernista, Graciliano Ramos. Portanto, por contemplar a nossa pesquisa, utilizaremos, para explicitar este primeiro caso, resistência no sentido de transgressão, por ter maior afinidade com a escrita de textos femininos, uma vez, que:

O abandono, ao mesmo, tempo, da literatura como campo privilegiado e da noção mesma de transgressão corresponde, no entanto, à exigência de colocar o problema de maneira geral (isto é, igualmente para as práticas não–discursivas) e não somente no nível da ação individual, mas em função da ação coletiva. A resistência se dá necessariamente onde há poder porque ela é inseparável das relações de poder; assim, tanto a resistência funda as relações de poder, quanto ela é, às vezes, o resultado dessas relações; à medida que as relações de poder estão em todo lugar. (REVEL, 2005, p. 74)

Seguindo o princípio que envolve esta relação intrínseca de resistência/poder, o termo resistência deixa de ser particular e se universaliza na sociedade, conferindo-lhe uma dimensão ética e uma atitude que transcende o fato da oposição direta; é o que se pode chamar de transgressão, uma vez que o tema da resistência vai além do texto e perpassa o sintagma, já que será absorvido pelo sentimento coletivo.

Segundo Bosi, a resistência ficcional pode ser interpretada como uma forma imanente de escrita, pois, para ele:

Quem diz escrita fala em categorias formadoras do texto narrativo, como o ponto de vista e a estilização da linguagem como uma interiorização do trabalho do narrador. A escrita resistente decorre de um a priori ético, um sentimento do bem e do mal, uma intuição do verdadeiro e do falso, que já se pôs em tensão com o estilo e a mentalidade dominantes. (BOSI, 2002, p. 130) 42

Em torno destas categorias constitutivas do texto narrativo, surge a idéia de resistência em que:

A tensão eu/mundo se exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente à escrita, o que torna o romance não mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso; logo, o oposto do discurso ideológico do homem médio. O romancista ‘imitaria’ a vida, sim, mas qual vida? Aquela cujo sentido dramático escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus hábitos cotidianos. A vida como objeto de busca e construção, e não a vida como encadeamento de tempos vazios e inertes. (...) A escrita de resistência, a narrativa atravessada pela tensão crítica, mostra, sem retórica nem alarde ideológico, que essa ‘vida como ela é’, é quase sempre, o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida. (BOSI, 2002, p. 130)

Neste mesmo sentido, Bosi (2002) explicita que a resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico.

A escrita de resistência, enquanto um conceito aplicado à análise literária, no contexto de nossa pesquisa, seria: transgressão dos valores oitocentistas e imanência da própria escrita.

Contudo a escrita de resistência, parafraseando Bosi, não resgata apenas o que foi dito no passado distante; ela transcende o seu tempo de escrita e vai além, propagando novas formas de pensar e de transcrever uma realidade sincrônica envolta em seus aspectos sociais e culturais. Portanto “a resistência é a possibilidade de criar espaços de lutas e de agenciar possibilidades de transformação em toda parte”. (REVEL, 2005, p. 74)

Partindo dos pressupostos acerca da escrita de resistência, temos sob a ótica da crítica literária feminista, na composição de mulheres protagonistas, marcas de resistência. Tais marcas de resistência no texto ficcional de autoria feminina se materializam na construção das protagonistas femininas à medida que elas se constroem como sujeitos do feminino. 43

Podemos entender, com Marina Colassanti (1997), que o sentido da resistência que envolve a crítica literária feminista é o seu gesto transgressor, uma vez que Literatura – reconhecível como tal – implica linguagem individual que seria na voz feminina a busca estratégica de se conhecer e de reconhecer-se no meio social no qual está inserida. A linguagem individual se torna completa a partir do conhecimento e experiência de seu território, pois é a partir destes que nascem as estratégias de resistência.

Por isso, linguagem individual é transgressão, ruptura das normas, questionamento do já estabelecido: se, nos homens, a transgressão é estimulada e louvada pela sociedade – o herói é sempre, de uma maneira ou de outra, um transgressor – nas mulheres, tal transgressão é execrada. A heroína não é aquela que transgride, mas aquela que dentro da norma se supera, enaltecendo a norma.

No reconhecimento de uma literatura de autoria feminina, viria embutido o reconhecimento de uma linguagem individual estrategicamente posta. E esse reconhecimento levaria não apenas à legitimação de transgressão, por parte das mulheres, mas também à afirmação inequívoca de que transgredir faz parte da sua natureza e não diminui em nada a feminilidade. Ao reconhecer a literatura de autoria feminina, a sociedade percebe o perfil de mulher, que ela tanto negou, e, ainda, que, estrategicamente, a mulher vem se impondo ao longo dos tempos.

Nossa abordagem analítica se debruça sobre o termo resistência como uma possibilidade discursiva sutil que preferimos chamar de “estratégias de resistência”, tendo em vista que, historicamente, a escrita feminina se inicia pelo tom intimista, quase confessional. Este é um fator que nos levou à “variação” do termo, em decorrência, também, da percepção de, nesta escrita oitocentista, dissimulações que oscilam entre o dito e o não dito, que caracterizam a posição de dizer e, ao mesmo 44

tempo, de mascarar o seu texto com a possibilidade do não dito (estratégia de escrita).

Tais traços podem ser percebidos em obras de várias autoras brasileiras do século XIX, em especial, Júlia Lopes de Almeida que, sagazmente, se apropria desse discurso, como demonstrado no texto abaixo:

(...) Laura tirara o seio túmido, branco, onde as veias estendiam tênues fios azulados e encostava o bico róseo à boca ardente do moribundo. (...) A comoção de Laura era imensa! Salvar seu amor, o seu amante sonhado, a sua esperança, com o leite da sua carne, o sangue da sua vida, era um gozo de inextinguível doçura. (...) Não era a volúpia, a paixão sensual que vibrava no seu corpo frágil de mulher moça, mas uma piedade, uma ternura que lhe alargava a alma, de tal jeito que a fazia amar agora o moço, como uma mãe adora o filho pequenino... (ALMEIDA, 1903, p. 109)

Lembramos que o termo estratégia condiz com a escritura de Júlia Lopes de

Almeida, pois, por ser de origem aristocrata, conseqüentemente, ela representava o pensamento tradicional acerca da mulher burguesa oitocentista, criada entre o piano e as rendas:

como mulher, estava comprometida com a estrutura social vigente, compartilhando os valores da burguesia em ascensão. Sua obra ficcional está marcada pelo compromisso com a mulher de classe média, educada, burguesa, idealista e ambiciosa por um espaço que a reconheça como cidadã e pessoa. (MOREIRA, 2003, p. 78)

Embora concebida neste espaço de tensão entre dizer e não dizer, a literatura de autoria feminina resistiu através de escritoras que romperam barreiras; é o caso da potiguar Nísia Floresta, considerada a primeira feminista brasileira e precursora do feminino em nosso país, a qual reivindicava acesso à educação e representatividade social para as mulheres.

A sua principal fonte de inspiração foi o sentimento de opressão e injustiça imposto pela diferença entre os sexos. Sua obra é predominantemente marcada por reflexões acerca da situação limitada e oprimida a que a mulher estava sujeita. 45

Ressaltamos, também, Maria Firmina dos Reis que escreveu Úrsula (1859), primeiro romance de autoria feminina (1859), e tantas outras anônimas que prepararam o caminho para Júlia Lopes de Almeida, considerada pelos críticos da

época a nossa primeira grande romancista, a “primeira dama das letras” na segunda metade do século XIX. Ainda há várias outras que, escrevendo em jornais e revistas direcionadas ao público feminino, possibilitaram mudanças significativas no imaginário feminino.

Eram mulheres que ardilosamente denunciaram a condição feminina de sua

época e buscaram, com grandes esforços, um lugar na família e na sociedade. Em menor ou maior grau, conseguiram participar da vida social, econômica e cultural.

Eram escritoras emblemáticas de uma luta de resistência pelo espaço autoral.

Buscando construir identidades próprias, pretendiam elas sair do assujeitamento para se tornarem sujeitos de sua história, almejando, assim, um reconhecimento e um lugar digno de respeito no mundo das letras.

A partir da década de 80 do século passado no Brasil, alguns/as pesquisadores/as começaram a estudar e a resgatar a produção de autoria feminina no país e as possíveis razões da sua exclusão do cânone literário brasileiro. Um exemplo é o Grupo de Trabalho (GT), “A mulher na Literatura”, grupo acadêmico filiado à ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e

Lingüística).

A partir de estudos efetuados por este grupo e, mais especificamente, pela linha de pesquisa voltada ao resgate, temos hoje um precioso quadro de nossas escritoras oitocentistas que foram por muito tempo relegadas ao esquecimento e deixadas de fora do contexto histórico e literário de nosso país. 46

Dos primeiros escritos de autoria feminina, voltados, predominantemente, para as indagações do eu feminino, a mulher chega à fase da escrita de resistência, na qual assume suas indagações e seus anseios ao mesmo tempo em que busca espaço público até chegar à fase em que a mulher escritora busca consolidar sua identidade, não pela igualdade entre os sexos, mas pela diferença.

A mulher escritora contemporânea, portanto, não almeja ser igual ao homem, mas quer ser ela mesma, aceita a diferença e busca o seu lugar como cidadã, como parte de uma sociedade, constituída por homens e mulheres, que leva em conta igualdades e diferenças.

Conseqüentemente, a escrita de autoria feminina traz em sua estrutura narrativa o gesto denunciador da tentativa, que permanece, de silenciar vozes que nasceram de um simples murmúrio. Porém unidas, tornaram-se fortes, tecendo uma nova história de mulher. Dando às suas personagens liberdade de expressão e ação, voltam-se para a busca da identidade feminina e para o ideal de ser mulher, de acordo com o qual não existem mais Penélopes que tecem e (des) tecem. Agora, a mulher tece continuamente, buscando novas estampas e paisagens,

É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real. A literatura, em ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade, mais exigente. (BOSI, 2002, p. 135)

Com esse percurso, quisemos mostrar a forma como as mulheres, aos poucos, deixaram de ocupar somente o espaço privado, ou seja, aquele espaço restrito ao doméstico, para se fazerem percebidas na esfera pública por meio de lentas conquistas que vão do mero escrevinhar até ao que denominamos escritura feminina. Na seqüência, passaremos a expor o olhar que subsidiará nossa pesquisa: o da crítica feminista. 47

1.3. Na perspectiva da crítica literária feminista

A discussão em torno da problemática que envolve a escrita feminina foi, aos poucos, sendo delineada por noções e estudos que fazem uma revisão de idéias estabelecidas, enraizadas no contexto literário, o qual não deu o devido valor às obras de autoria feminina.

Mas as obras ficcionais femininas, embora marcadas, no século XIX, pelo espaço privado, podem ser consideradas como um início de vários questionamentos que põem em xeque as “verdades” dadas pela visão centrada no poder patriarcal e, conseqüentemente, nas produções literárias de autoria masculina.

As produções de autoria masculina vêm acompanhadas de um conflito que define a mulher como musa inspiradora e centro da narrativa. Por outro lado, promovem um afastamento da mulher do fazer literário e, evidentemente, de outras ocupações reservadas exclusivamente ao homem. Nesse sentido, há um paradoxo posto pela representação do feminino na tradição literária e a realidade social e cultural vivenciada pelas mulheres sob o jugo do macho.

A ausência da mulher como sujeito na história corresponde a sua presença exuberante como imagem mítica nas representações de gênero nos textos literários.

A literatura traz representações binárias no que se refere ao feminino. Por exemplo: prostituta x santa, anjo x demônio, bruxa x fada, mãe dedicada x femme fatale. Essa diversidade binária de imagens estereotipadas reforça a dicotomia nas representações de gênero, acentuando a imagem do feminino como algo fixo, não plural, como se entendem na atualidade as questões femininas e feministas.

Em nosso trabalho, cujo objeto de análise é a resistência da autoria feminina no contexto literário oitocentista, se mostrou imprescindível a escolha da crítica 48

feminista para abordar a questão, uma vez que nosso olhar se detém no tema

“resistência” que se dá, entre sociedade e literatura, na ótica da escrita feminina.

Mas a própria palavra “crítica” já carrega em sua epistemologia a possibilidade do termo resistência.

Traçar o percurso das mulheres escritoras é recuperar histórias de quando o vocábulo feminista ainda não entrara em voga, quando não possuía o sentido tomado a partir dos anos 70 do século passado. Mas, na luta das primeiras feministas, já circulavam um saber e um questionamento das práticas e dos valores dominantes.

Hoje, um novo perfil da história, que se volta também para o cotidiano, recuperou diversas trajetórias de mulheres que lutaram pelo fim das desigualdades entre os sexos e possibilitaram discussões acerca da representação dos papéis sociais.

A história mostra que é impossível desvincular experiência da crítica de uma prática dos movimentos de mulheres, ainda que, hoje, se compreenda a abordagem diferenciada entre o estudo e a mobilização política organizada.

Em relação aos marcos dessa trajetória dos estudos da mulher, podemos apontar os textos de Mary Wollstonecraft, que redigiu Vindication of the rights of woman, em 1792, texto este adaptado para a realidade brasileira por Nísia Floresta, em 1832, sob o título Direitos das mulheres e injustiças dos homens. Marie Olympe

Gouges, em 1791, escreveu Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne.

Mais recentemente, podemos apontar Mary Astele, com Some reflections upon marriage, escrito em 1970.

O que essas escritas têm em comum são os fatos de representarem vozes de um grupo reprimido, no caso, o das mulheres, que busca alterar os valores e as 49

mentalidades dominantes na sociedade, lutando, assim, contra as desigualdades atreladas às diferenças sexuais. Antecipando o que o feminismo virá articular posteriormente: desestabilizar as hierarquizações da organização social e questionar as representações do sujeito feminino.

A produção literária de autoras européias do século XIX, como Georg Eliot e

George Sand (pseudônimos de Mary Ann Evan e de Amandine Aurore Lucile Dupin) denuncia a situação de submissão das mulheres, assim como o primeiro romance da brasileira Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula (1859).

Estas produções constituíam-se em iniciativas para rediscussão das configurações dos papéis sociais, de forma concomitante com a mobilização de grupos de mulheres em ligas, associações e federações que, inicialmente, reivindicavam o direito feminino ao voto e maior representatividade nos espaços da sociedade.

No Brasil, muitos jornais, panfletos e semanários foram produzidos por mulheres que tornaram públicas suas idéias de emancipação, enquanto outras lutavam por espaço nas colunas dos periódicos de maior circulação no país.

Tal produção textual era variada, abarcando desde textos que reforçavam perfis de mãe e esposa (valores patriarcais) até publicações que pregavam idéias revolucionárias, como o anarquismo. A maioria desta produção reivindicava à sociedade maior respeitabilidade às mulheres, o fim da violência doméstica e acesso

à educação.

Paralelamente a esses artigos feministas e reivindicatórios que ocupavam espaço na imprensa, foi se construindo uma tradição da literatura produzida por mulheres.

Da mesma forma que se constituía uma literatura feita por mulheres e cuja 50

temática dizia respeito aos temas do universo feminino, foi se elaborando uma metodologia para se interpretar esses textos, função esta que foi abraçada pela teoria e pela crítica feminista.

Os estudos feministas, por sua vez, começam a se desenvolver concomitantemente às lutas pelos direitos civis, na efervescência política dos anos

60 e 70, reforçando a relação entre pesquisa e experiência de vida.

Os ensaios de Virgínia Woolf, nos anos 20 do século próximo passado, são considerados um marco acerca da discussão sobre a produção de autoria feminina.

Os ensaios de Woolf tentam responder às críticas formuladas acerca da qualidade dos textos escritos por mulheres.

Segundo Woolf, a escrita artística precisa de liberdade e de condições materiais para se realizar. As dificuldades foram enfrentadas pela maioria das escritoras que estavam começando a trilhar o caminho formal do trabalho literário, e tinham sua escrita cerceada por um imaginário construído sobre o feminino que gerava expectativas baseadas em valores patriarcais, limitadores da recepção de sua escrita.

As considerações de Virgínia Woolf, apesar de muito criticada posteriormente pelas feministas, já representavam certo avanço sobre as discussões acerca do aspecto não-fixo dos papéis sexuais. A obra Um teto todo seu traz contribuições para a discussão, levando-se em conta o seu contexto, as primeiras décadas do século XX.

Woolf procura metaforizar a condição feminina, criando a personagem Judith, irmã de Shakespeare. Deste modo, mostra que o talento criador não é característica essencialmente masculina, mas que, na maioria das vezes, os instrumentos necessários para desenvolvê-lo é que o são. 51

Virgínia Woolf vai além das constatações da precariedade maternal da mulher e consolida um estilo de enunciação feminista; ela o faz em dois sentidos: é exemplo de uma lógica discursiva e criadora e de um estilo literário. A obra de Virgínia Woolf se torna referência para outras mulheres escritoras preocupadas com questionamentos semelhantes aos que Woolf aborda em seus ensaios críticos acerca de mulher e literatura.

Outra escritora imprescindível ao estudo da autoria feminina, no século XX, é

Simone de Beauvoir. Suas idéias são de importância fundamental na história do feminismo e, embora muitas delas tenham sido colocadas em dúvida pelas pesquisas feministas, vão além da representação feminina na literatura:

O mito da mulher desempenha um papel considerável na Literatura; mas que importância tem na vida quotidiana? Em que medida afeta os costumes e as condutas individuais? Para responder a essas perguntas seria necessário determinar as relações que mantém com a realidade. (BEAUVOIR, 1980, p. 299)

No livro “O segundo Sexo“ (1949), obra basilar para se pensar a condição feminina branca ocidental, Beauvoir analisou a condição feminina e não só fez o levantamento empírico-histórico da situação da mulher como, também, forneceu explicações filosóficas para o mesmo fenômeno.

Beauvoir problematizou termos, para a definição da diferença dos sexos, que são ainda válidos: o sujeito (o homem) e o outro (a mulher). Foi ela a primeira a tentar analisar sistematicamente a mulher como o outro, como alguém que só existe

à medida que o sujeito (homem) lhe dá uma referencialidade existencial. O que significa dizer que, segundo Beauvoir, a mulher, por sua condição e pelo lugar que ocupa na cultura, não tem identidade própria, não existe sem a referencialidade masculina.

Nesse sentido, Beauvoir parte do princípio de que o ser humano não pode 52

definir-se sem opor-se ao outro. E ela aponta que é a lógica binária que organiza a sociedade.

Isso é válido tanto a respeito da teoria do conhecimento como no plano social: a autodefinição de comunidades humanas sempre gera o outro sob a forma de grupos oprimidos, classes ou raças, isto dentro dos sistemas sócio-culturais vigentes, em que as relações de poder são muito fortes.

Prosseguindo, para Beauvoir, o homem se apresenta como sujeito porque tem necessidade de se afirmar como ser essencial e coloca o outro como o ser insignificante. Dessa maneira, Beauvoir atesta que:

O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro. (BEAUVOIR, 1980, p. 15)

Beauvoir demonstra que, numa sociedade patriarcal, a mulher é predominantemente concebida como o Outro, ou seja, a mulher se assujeita ao outro porque é desprovida dos meios materiais, sociais e culturais para reivindicar- se enquanto sujeito. Pois “a representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta”. (Beauvoir, 1980, p. 183)

Simone de Beauvoir desenvolveu uma das mais importantes análises da condição feminina, mapeando grande parte do processo secular da situação de submissão e exclusão da mulher. Estes estudos continuam sendo de fundamental importância para os estudos de gênero.

A escritora mostra que o homem, de acordo com a cultura, é definido como o transcendente, “ser-para-si”, ou seja, o sujeito; e “a mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o 53

inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto: ela é o Outro”

(BEAUVOIR, 1980, p. 10). Segundo Beauvoir, o “tornar-se mulher” é a maneira como as sociedades patriarcais perpetuam os modelos de feminilidade, domesticando as mulheres e evitando qualquer possibilidade de desvio dos valores sócio-culturais existentes no patriarcado.

Um reconhecimento mútuo de dois sujeitos, homem e mulher, não é admissível na sociedade patriarcal. A mulher serve como projeção da esperança e angústia do homem. Ele vê nela uma mediadora da natureza. A mulher é, assim, definida como um ser que assenta em si próprio, realizando-se completamente no presente da realidade.

O Segundo Sexo, portanto, nos leva a compreender que a cultura e as condições sociais são responsáveis pela configuração de uma identidade feminina e outra masculina que os sujeitos irão incorporar ao longo de suas existências.

Entre as inúmeras contribuições de Beauvoir, podemos ainda destacar a sua afirmação histórica de que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher”, a qual se tornou um marco emblemático nos estudos sobre gênero ao longo do século.

O processo de materialização dos valores culturais femininos e masculinos nos sujeitos passa a ocupar boa parte das preocupações nas pesquisas feministas posteriores às teóricas Woolf e Beauvoir, que buscam a chave para entendê-lo, ora na psicanálise e seus conceitos sobre o imaginário e a falta, ora nas condições materiais da existência, em uma perspectiva marxista-materialista.

O diálogo entre as reflexões resultantes dos estudos interdisciplinares tem construído possibilidades de cunho epistemológico e crítico para que se possa entender como vem ocorrendo a identificação da mulher com o outro, com o que excede um sistema de poder fixado nos valores do masculino. 54

Vale ressaltar que a posição de subalternidade social e cultural da mulher é destacada tanto por Virginia Woolf quanto por Simone de Beauvoir. Posição esta construída através de conceitos e preceitos filosóficos, religiosos, científicos e históricos usados pela cultura patriarcal para justificar e naturalizar a opressão da mulher pelo homem, o seu enclausuramento e os papéis que a consagraram na sociedade: o de esposa e o de mãe, condição esta denominada por Beauvoir como

“destino de mulher”.

É desta tensão de gênero que resulta, para a maioria das mulheres, uma posição secundária e discriminada no mercado de trabalho. A informalidade, a segregação ocupacional, os entraves para o acesso a cargos de chefia e as desigualdades salariais continuam sendo marcas do trabalho feminino na contemporaneidade.

Além de profissional e provedora do lar, onde atua em dupla jornada de trabalho, a mulher se divide em múltiplas responsabilidades, fazendo de sua força de trabalho algo além do espaço doméstico.

Atualmente, todavia, as mulheres perseguem com constância a sua parcela de atuação na sociedade, nas relações de poder, sendo uma das maiores transformações ocorridas em nosso país nas últimas décadas do século próximo passado.

Essas transformações são advindas, principalmente, da Revolução Industrial, em que houve redefinições nos papéis do homem e da mulher, ocasionando uma significativa mudança do lugar feminino na sociedade.

No processo de mudança comportamental dos papéis femininos, as mulheres começam a emergir como sujeitos sociais, históricos e econômicos, tornando-se a metade da população economicamente ativa nas últimas décadas do século XX. 55

Mas, até chegar a esta realidade, muitos foram os obstáculos vivenciados ao longo deste processo histórico. Obstáculos estes enfrentados através de movimentos, organizados ou não, por mulheres, geralmente, brancas, escolarizadas e burguesas.

No âmbito da literatura de autoria feminina, é difícil fugir das relações entre experiência e ficção, visto que as primeiras mulheres nas letras enfrentaram as barreiras da sociedade patriarcal. Se, nessa sociedade, reinava o silenciamento dessas vozes, tentar incluir a sua palavra no discurso significava uma atitude revolucionária, ou seja, uma atitude de resistência, ainda que muitas mulheres não quisessem assumir o estigma de feministas. Até mesmo nas representações de sujeitos femininos entregues à lógica do patriarcado, é possível identificar a dificuldade das mulheres em escapar do sistema binário.

Para os estudos feministas, um dos mais sérios desafios enfrentados pelas mulheres escritoras é a construção de representação do sujeito feminino que seja livre dos preceitos da cultura patriarcal, por se entender que a representação do sujeito é uma forma de resistência, particularmente em se tratando da narrativa de autoras do século XIX.

Segundo Xavier, “a crítica feminista surge como possibilidade de desconstrução e de revisão de leituras consagradas, apontando para a necessidade de um processo revisionista da historiografia literária.” (1994, p. 27) Com a intenção de desafiar o cânone, revisando-o, é que novas propostas de leitura acerca dos textos de autoria feminina vêm sendo colocadas a público através de publicações que desafiam o cânone vigente.

A obra A Condição feminina revisitada: Júlia Lopes de Almeida e Kate Chopin, de Nadilza M. B. Moreira (2003), leva-nos a entender que o trajeto da crítica feminista acontece paralelamente ao movimento feminista, uma vez que, nas obras 56

de autoria feminina, está contemplada grande parte das reivindicações do movimento feminista. O discurso da crítica está articulado com outros discursos de cunho político-social comprometido com o resgate de “vozes” que foram silenciadas e com a desconstrução do discurso hegemônico vigente.

A crítica feminista traz, assim como o movimento feminista, um discurso de resistência. Um discurso narrativo que envolve texto e a tensão entre o eu/mundo, tensão que se exprime na imanência da escrita de autoria feminina.

A crítica feminista, por sua vez, não persegue somente um método de análise literária; ao contrário, ela dialoga com diferentes métodos de abordagem, recorre à interdisciplinaridade, às áreas diversificadas do saber, mas sempre, e profundamente, comprometida com seu objeto principal de análise: mulher e literatura.

O livro Uma história do feminismo no Brasil, de Céli Regina Jardim Pinto

(2003), é esclarecedor para se entender o trânsito efetuado nos estudos feministas, uma vez que o feminismo tem provocado militâncias apaixonadas e raivas incontidas. Desde suas primeiras manifestações, ainda no século XIX, o movimento foi muito particular, individualizado e, muitas vezes, dissimulado e mascarado, pois provocou resistência e desafios à ordem patriarcal vigente que excluía a mulher do espaço público e lhe retirava a cidadania através de limitações e restrições aos direitos civis e sociais.

Sem delongas, e por ser condizente e contemplar o período vivenciado pela autora Júlia Lopes de Almeida, na qual se concentra nossa pesquisa, daremos

ênfase à primeira fase do feminismo no Brasil. Esta fase se estende da virada do século XIX para o século XX, até 1932, quando as mulheres brasileiras ganharam o direito de votar. 57

Pinto (2003) identifica, nesse período, duas fases: uma, que chama de feminismo “bem-comportado”, tendo como liderança Bertha Lutz, se constitui um movimento bem organizado; a outra fase abriga uma gama heterogênea de mulheres que se posicionam de forma mais radical frente ao que identificavam como dominação do homem. Neste grupo, encontramos mulheres escritoras, que publicavam em jornais, anarquistas e até líderes operárias. Esta é a fase “mal- comportada” do feminismo da época.

O movimento feminista tem sido por natureza um movimento plural, com múltiplas manifestações, objetivos e pretensões diversas. Sua história, que se estende de 1932 até os anos 1970, é pautada na multiplicidade, em que os momentos unitários foram efêmeros e com objetivos muito específicos.

Tomando como ponto de partida a constatação da existência de autoria feminina no Brasil e a questão da crítica feminista configurando uma produção literária que se estende do século XIX até hoje, consideramos que a “(...) questão do cânone é fundamental, diríamos até que é o ponto nevrálgico para a crítica feminista se desenvolver e avançar dentro das formas que a moldam: a ideológica e a revisionista”. (MOREIRA, 2003, p. 37)

Segundo Moreira (2003), a discussão crítica acerca do estabelecimento do cânone feita pela crítica feminista revela o desprezo sistemático pela contribuição da autoria feminina, marcado amplamente pela ausência de escritoras. O cânone também demonstra a distorção e a incompreensão em relação às poucas escritoras que nele estão incluídas.

A predominância do masculino no cânone ocidental se dá como resultado da assimetria social entre os dois sexos e como decorrência de uma ideologia sexista, enquanto propagadora do papel tradicional da mulher. 58

Coube, portanto, à crítica feminista propor a desconstrução das imagens femininas, criadas nas grandes obras dos escritores, e fazer um recorte histórico- didático que inclui a presença da mulher escritora no cânone, como uma contra- resposta ao contexto literário cristalizado e imposto pelo poder canônico.

A quase inexistência de autoras no cenário literário ocidental é vista pela crítica feminista como ideológica, que analisa os estereótipos da figura da mulher na literatura e como ela é vista pelo olhar do outro, crítica esta definida por Showalter como:

Uma crítica radical da literatura, feminista em seu impulso antes de mais nada, do trabalho como um indício de como vivemos, como temos vivido, como fomos levados a nos imaginar, como nossa linguagem nos tem aprisionado, bem como liberado, como o ato mesmo de nomear tem sido até agora uma prerrogativa masculina, e de como podemos começar a ver e a nomear – e, portanto viver – de novo. (SHOWALTER, 1994, p. 35)

A linha de Showalter (1994) consiste em interpretar os textos adotando outras significações possíveis, um novo olhar que considere o mundo feminino e a especificidade da experiência das mulheres escritoras em seu contexto literário; um olhar que leve em consideração a cultura patriarcal e o lugar do feminino nas sociedades falocêntricas.

A postura revisionista consiste em revisar, resgatar, analisar e dar o devido reconhecimento aos textos de autoria feminina, além de colocar em xeque a postura sexista do cânone. Quer também questionar a exclusão dos textos de autoria feminina da academia e trazer à tona estes textos, propositalmente esquecidos no contexto histórico-literário ao longo de séculos. Além de que, é a crítica revisionista que resgata os textos de autoria feminina e traz consigo subsídios que alicerçam esta crítica quando trabalham texto e contexto na perspectiva feminista.

Segundo Showalter, a maior ambição da crítica feminista é decodificar e desmistificar todas as perguntas disfarçadas que sempre sombrearam as conexões 59

entre a textualidade, gênero literário em gênero, identidade psicossexual e autoridade cultural.

Essas últimas considerações já apontam para o termo gênero. Gênero, como categoria de análise, é um conceito que pretende ampliar as análises da teoria e da crítica feminista. Ele consegue extrapolar as significações do masculino e do feminino, colocando-os em diálogo e possibilitando outras leituras para os textos quando considerados elementos externos aos textos literários.

Em se tratando de gênero, Joan Scott (1990) reflete sobre a experiência e sua utilização como categoria de análise no campo dos estudos teóricos. Na realidade,

Scott está refletindo sobre a antiga oposição acadêmica entre teoria e prática

(idéia/realidade; discurso/experiência). Na entrevista que concedeu a antropólogas brasileiras em Paris, publicada no v. 6, n. 1/98 da Revista Estudos Feministas, a autora revela que pretendeu, ao tratar do tema, tomar posição na polêmica entre os/as autores/as que privilegiam a linguagem, tomando os textos como textos, e aqueles/as que insistem na realidade da experiência, desligando-a de qualquer contexto de discurso, considerando-a como algo fundador, verdade não suscetível de análise lingüística. A intenção da autora, no texto publicado nessa antologia, foi a de historicizar e também teorizar experiências.

Elaine Showalter (1989), em The rise of gender, retoma a trajetória dessa categoria analítica, surgida na década de 80, do século próximo passado, possibilitando uma ampliação das perspectivas feministas, visto que passa a ser utilizada interdisciplinarmente, perpassando as áreas da antropologia, da história, da filosofia, da psicologia e das ciências naturais.

A autora frisa a distinção entre sexo e gênero, postulando que “gênero tem significado social, cultural e psicológico imposto sobre a identidade biológica sexual. 60

O gênero é, pois, diferente da sexualidade que tem relação com a orientação sexual ou o comportamento, opção sexual do indivíduo”. (1989, p. 1-2)

Ela esclarece que, para as críticas feministas de orientação psicanalista,

(lacaniana e freudiana), que desenvolvem mais pesquisas sobre linguagem, o gênero é visto como construído através da aquisição da linguagem, quando, ao adentrar no sistema simbólico, regido pela “Lei do Pai” (termo vindo da psicanálise e ligado à figura paterna, que envolve a questão da subjetividade e alteridade), o sujeito assume uma posição como “ele” ou “ela”, sendo, a partir de então,

“gendrado”.

Tal concepção leva em conta considerações da psicanálise, como a inveja feminina do falo e o medo da castração. Embora a “Lei do Pai” sirva para simbolizar o discurso dominante, que tem sido marcadamente masculino, seu uso corre o risco de essencializar, com base nos pressupostos biológicos, um conflito que muda de feição conforme o desenrolar histórico.

Afinal, para as criticas feministas de orientação marxista, que trabalham mais no campo da história, o gênero é construído diante de um sistema ideológico, sendo discurso cultural alterado de acordo com as evoluções sociais. Nessa perspectiva, a questão de gênero torna-se uma discussão sobre a organização de poder, em um sentido mais amplo, e não apenas sobre a diferença entre os sexos.

Cabe ressaltar a vantagem que a categoria gênero traz para as correntes teóricas que a utilizam. Gênero impulsiona a discussão teórico-crítica para além do terreno da diferença sexual. A diferença não é entendida mais como um paralelismo, pois foi inscrita sobre hierarquizações, construindo assimetrias entre os sujeitos. A diferença nas relações de gênero, hoje, propicia diálogo com as questões de classe, raça e sexualidade. 61

Desta forma, a elaboração do conceito de gênero, na década de 80 do século passado, marca uma tentativa teórica e política para desnaturalizar as diferenças de comportamento e do estatuto social de homens e mulheres, bem como a divisão social (sexual) do trabalho. De acordo com Bourdieu:

(...) a ordem natural e social é uma construção arbitrária do biológico, e particularmente do corpo, masculino e feminino (...) a força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada. (2003, p. 33)

Definidos como um par de opostos, as relações de gênero constituem uma relação de poder, ou seja, são representações sociais sujeitas a disputas pela atribuição de significados. As relações de gêneros, portanto, implicam desigualdades e dominação: inscrevem-se em relações de poder em que “o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas”. (BOURDIEU, 2003, p. 23)

Embora a divisão dos sexos pareça universal, a construção e a expressão da masculinidade e da feminilidade são variáveis, estão à mercê de variantes, tais como: o momento histórico, a situação social, a classe social, a religião, a etnia, a região, a idade, a cultura, etc.

Nessa perspectiva, a feminilidade e a masculinidade têm significados distintos e múltiplos, pois integram uma estrutura de dominação. O gênero, enquanto categoria de análise, derruba a tese essencialista que via a natureza como responsável pela existência das diferenças entre os comportamentos e os papéis destinados a homens e mulheres na sociedade.

Os estudos desenvolvidos acerca de gênero são, conseqüentemente, resultados da organização de mulheres profissionais, engajadas nas lutas emancipatórias do feminismo. Essas militantes passaram a vivenciar no cotidiano uma luta que faz frente aos valores e ditames do patriarcado. Elas, as militantes, 62

vêm contribuindo, não só para uma postura crítica acerca dos papéis sociais e culturais impostos aos sexos, mas, sobretudo, têm conseguido deslocar as questões relativas à mulher da visão androcêntrica que colocava mulher e natureza em um mesmo patamar.

A luta emancipatória das mulheres militantes só tomou força quando se levantou a bandeira de “uma nova consciência” nas relações de poder, isto é, as relações de gênero passaram a ser colocadas na prática do cotidiano pela ruptura de uma consciência não essencialista, mas cultural e política, que vem se ramificando na construção do conhecimento, particularmente na Literatura e nas

Ciências Sociais.

Nos limites da crítica feminista, Elaine Showalter, em 1977, acena para a noção de uma subcultura feminina no interior da sociedade, a partir da qual se pôde observar uma unidade de valores, convenções, experiências e comportamentos impostos a cada indivíduo.

Pondo na prática a proposta de uma crítica feminista, a vertente literária revisionista se voltou para o estudo das representações femininas no texto literário, tanto os de autoria feminina quanto os de autoria masculina, apontando o discurso sexista e o exame dos pressupostos que norteiam as estratégias de análise.

Showalter (1994) aponta três etapas no percurso literário que compreende as obras de autoria feminina entre 1840 até por volta de 1960, tendo como referencial a cultura dominante e o contexto histórico das mulheres anglo-americanas. A primeira,

à qual chama de “feminine”, é uma etapa prolongada pela imitação; a segunda, uma espécie de ruptura denominada “feminist”; e, por último, a fase da auto-descoberta, uma espécie de “search for identity”, de busca de identidade, a que dá nome de 63

“female” ou fêmea. Não se trata de categorias rígidas ou auto-excludentes, sendo mesmo possível encontrar as três presentes na obra de uma mesma escritora.

A ginocrítica centrada na mulher-escritora abre várias possibilidades de análise. A história, os estilos, os termos, os gêneros e as estruturas dos escritos femininos; a psicodinâmica da criatividade da mulher; a trajetória da carreira feminina individual ou coletiva e a evolução, as leis de uma tradição literária que seja feminista são seus tópicos de análise.

A proposta da criadora da ginocrítica, Showalter, não só resgata a tradição de mulheres escritoras, mas, sobretudo, prioriza a leitura de textos de autoria feminina, elegendo-os como norteadores para as pesquisas sobre mulher e literatura.

Showalter propõe que, a partir destas mulheres escritoras, se fizesse um modelo de análise que contemple a literatura produzida por mulheres. A ginocrítica busca ajustar as imagens, a temática, o enredo e os gêneros literários de mulheres escritoras enfatizando aspectos próprios dos escritos femininos.

A literatura de autoria feminina foi um aliado do movimento feminista ao ficcionalizar e questionar, abertamente, os valores apregoados na sociedade patriarcal.

(...) o trajeto da crítica feminista acontece paralelamente ao movimento feminista. Seu discurso está articulado entre outros discursos de cunho político-social comprometido com o resgate de “vozes” que foram silenciadas, e com a desconstrução do discurso hemogênico vigente. (MOREIRA, 2003, p. 33)

Acrescente-se ao trajeto da crítica feminista o fato de que a (o) autora (o) é condicionada por forças sociais, e as ideologias dominantes contribuem para a construção da obra ficcional, além de haver uma relação intima entre texto e contexto. Por conseguinte, torna-se compreensível a influência dos pensamentos filosóficos e sociológicos no contexto literário. 64

A crítica feminista veio desconstruir as verdades absolutas, fechadas e os valores patriarcais e falocêntricos estabelecidos pelo cânone. Entre os estudos e as pesquisas relevantes para uma epistemologia no campo literário, focalizando a combinação mulher e literatura, gostaríamos de pontuar os nomes de: Sandra

Gilber, Susan Gubar, Kate Milliet, Luce Irigaray e Elaine Showalter dentre outras que, através de suas obras, abriram caminho, para a valorização acadêmica de uma literatura feita por mulheres escritoras.

No contexto brasileiro, não podemos esquecer nomes representativos desta crítica que nos mostra, a cada pesquisa e/ou publicação, um novo quadro literário representado pela autoria feminina brasileira, dentre os quais ressaltamos: Heloisa

Buarque de Holanda, Zahidé Lupinacci Muzart, Constância Lima Duarte, Rita T.

Schmidt, Vera Queiroz Costa, Susana Bornéo Funck, Rose Marie Muraro, Lúcia

Castelo Branco, Ruth Silviano Brandão, Isabel Brandão, Sylvia Paixão, Nadilza

Moreira, Márcia Hope Navarro, entre outros nomes.

Salientamos ainda que, sem a contribuição do GT A Mulher na Literatura da

ANPOLL, seria quase impossível nomear significativamente as pesquisadoras envolvidas com a temática Mulher e Literatura.

Ressaltemos, também, que as escritoras brasileiras contemporâneas como

Lya Luft, Marina Colassanti, Lygia Fagundes Telles, Augusta Faro, etc, escrevem despojadas dos receios que tanto intimidaram as mulheres escritoras no século XIX e início do século XX.

Assim, pretendemos demonstrar, alicerçados nos estudos feministas, que a narrativa de Júlia Lopes de Almeida se junta a tantas outras vozes, de ontem e de hoje, todas representantes da literatura de autoria feminina brasileira. 65

Em nosso trabalho, utilizaremos para análise o romance A viúva Simões

(1897) de Júlia Lopes de Almeida, a partir do qual estudaremos as questões de gênero e a condição feminina no contexto da crítica feminista.

Neste capítulo, a nossa intenção foi traçar uma trajetória da escrita de autoria feminina, levantar considerações sobre resistência; no terceiro momento, procuramos destacar os percursos da crítica feminista e suas considerações sobre gênero que serão imprescindíveis à análise do nosso corpus.

66

2. A FICÇÃO DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

2.1. Contexto: a sociedade brasileira em transição

A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito. Precisamos compreender antes de tudo e afirmar aos outros, atados por preconceitos e que julgam toda a liberdade de ação prejudicial à mulher na família, principalmente dela, que necessitamos de desenvolvimento intelectual e do apoio seguro de uma educação bem feita. (ALMEIDA, 1897, p. 3)

A chegada da família real, há duzentos anos, segundo Ingrid Stein (1984), foi relevante para a história do Brasil oitocentista e de decisiva importância para o desenvolvimento do país, sobretudo do Rio de Janeiro, nos mais diversos aspectos.

A abertura dos portos, decretada em Salvador em 28 de janeiro de 1808, apenas quatro dias após o desembarque de D João VI em terra brasileira, trouxe expressivas transformações, principalmente, às transações comerciais.

O Rio de Janeiro era uma cidade acanhada, sem confortos e sem os refinamentos da vida européia aos quais à Corte estava acostumada. D. João VI modernizou a cidade: os calçamentos foram melhorados, aumentou-se o número de lampiões de azeite e o abastecimento de água foi ampliado. O Rio transformou-se na Capital do país, no centro de transações comerciais e distribuidor de produtos importados, entre outros.

Um novo comportamento na capital da colônia também se inicia com a chegada da Corte Portuguesa. A mulher brasileira pouco saía do lar; a carioca também não saía, mesmo vivendo na corte. A presença de senhoras estrangeiras, no entanto, que passaram a residir na cidade, principalmente pela vinda da Corte,

“trouxe novos costumes que possibilitaram que a mulher carioca, literalmente, pudesse pôr o pé na rua” (STEIN, 1984, p. 16). 67

A vida social da corte, historicamente, era alimentada com festas promovidas pela família real. A mulher carioca burguesa, que quase não saía à rua, começa então a ter um pouco mais de liberdade com a criação de associações onde se praticava o jogo e se realizavam festas, além da introdução da moda portuguesa nos salões. As diversões das classes média e alta eram os espetáculos teatrais, os concertos, os banhos de mar, os passeios a Paquetá, ao Jardim Botânico, ao

Corcovado e à Bica da rainha no Cosme Velho.

As classes populares cariocas, influenciadas pelo clima festivo da Corte, também passam a cultivar uma vida social voltada para celebrações familiares, como aniversários, casamentos e festas religiosas. Eventos estes, muitas vezes, realizados pelo governo que, por conta própria, tomava a iniciativa de promover festejos dos mais variados, entre eles, a procissão da corte, as corridas de touro, as cavalhadas, eventos religiosos e outras manifestações mais simples.

As melhorias da cidade do Rio de Janeiro, “no que se refere a remodelação e saneamento, iniciadas no começo do século, tiveram continuidade no primeiro e segundo reinados” (STEIN, 1984, p. 17). A partir de 1850, são tomadas medidas decisivas para a remodelação e o saneamento básico da cidade. A iluminação a azeite é substituída pelo gás na segunda metade do século XIX. Tais transformações são efetivadas, em grande estilo, na República, a partir de 1902, pelo prefeito Pereira Passos. Neste período, procurou-se transformar a cidade colonial, tortuosa, cheia de vielas e com total falta de higiene, em uma metrópole com as características de um moderno centro urbano europeu.

Ainda segundo informações de Stein, a população do Rio de Janeiro, que, em

1808, era aproximadamente de cinqüenta mil habitantes, chega aos meados do século XIX com cerca de duzentos e cinqüenta mil habitantes. Com esse 68

crescimento demográfico, percebe-se a existência de dois grupos sociais bem definidos: um superior composto pela nobreza e por grandes proprietários de terras que se transferem com os familiares para a cidade; e outro inferior, formado por escravos, pequenos proprietários, empregados do comércio e operários que vivem nas periferias e logradouros marginais.

Durante a segunda metade do século XIX, um novo grupo social se estabelece, ocupando uma posição intermediária: a classe burguesa. Tal classe, que não era proprietária de terras, procura ascender socialmente através da instrução, da aquisição do diploma e se associa ao pequeno comércio, ao funcionalismo público, ao jornalismo, às atividades literárias e políticas. O surgimento desse grupo faz com que a sociedade adquira novos hábitos, os quais passam a influenciar a vida familiar, social, cultural e a produzir o chamado modo de vida burguês.

O ambiente dinâmico e a atmosfera efervescente no fim do século XIX afetaram os costumes do país. A autoridade paterna, agora, passa a ser dividida com outras instituições de controle social, e o seu poder econômico e político dividido com outros segmentos sociais representados por comerciantes, militares, industriários e outros. A família brasileira burguesa, no entanto, deste período ainda se caracterizava como patriarcal em seu modus operandi e nos espaços destinados

à mulher branca, classe média, escolarizada ou não, marcando a condição feminina na transição dos séculos XIX e XX.

No Brasil oitocentista, mesmo os portugueses, casados com brasileiras, mantinham o hábito de casar as filhas preferencialmente com lusitanos, que, em

último caso, também eram importados na efetivação de tratos comerciais/matrimoniais. Na citação abaixo, fica clara a autoridade paterna:

E, se as pobres vítimas ousavam revoltar-se contra esses editos paternos, metiam-se em surras como perfeitas escravas ou serem postas na rua 69

como indignas e perversas. Esses castigos tocaram certas vezes proporções de crudelíssimos assassínios. (ABRANCHES, 1992, p. 123)

A figura central dessa organização familiar era o pai, que possuía autoridade máxima sobre escravos, agregados e, também, sobre a esposa e os filhos. À mulher, competia a tarefa de administrar os trabalhos dos escravos domésticos, assistência aos doentes e formação moral dos filhos, principalmente, a formação religiosa. A mulher brasileira oitocentista é a sinhá da casa grande, a iaiá do sobrado patriarcal e, raramente, saía para fazer compras, sendo mais freqüente a visita dos vendedores a sua casa, onde permanecia com a resignação de uma prisioneira.

Se, por um lado, a família patriarcal oitocentista foi por muito tempo o único grupo estável e organizado, acumulando riquezas e que, por isso mesmo, exerceu importante papel na formação e transformação da sociedade brasileira, por outro, há que se considerar que esse poder cultural e econômico não condizia com a condição feminina. Essa sociedade, ainda que abastada, era impregnada de preconceitos de ordem moral e religiosa, submetendo a mulher às trevas da ignorância devido ao limitado acesso à instrução e à educação formal.

Conseqüentemente, diante de uma posição ainda subalterna, a mulher burguesa oitocentista via no casamento uma forma de ascensão social. Ao contrário do homem, que tinha a possibilidade de se estabelecer socialmente e economicamente, com o desempenho de alguma profissão, à mulher, sobretudo a da classe mais elevada, era negada essa prerrogativa.

O trabalho feminino nas classes médias e mais abastadas era visto como desprestigio, motivo de constrangimentos e de posição social de inferioridade. Uma das poucas formas de adquirir status social e econômico era através do casamento.

Para consegui-lo, imprimem-se à mulher burguesa novos comportamentos e um conceito muito específico de educação: a moça jovem, bela, deve manter-se casta e 70

assimilar o comportamento feminino adequado, isto é: as boas maneiras, a etiqueta, além de conhecimentos de música (piano/cravo), dança, francês, bordados/costura, culinária, entre outros que a levarão ao matrimônio.

A mulher de classe alta deveria ser “educada” para poder freqüentar cafés, teatros, bailes e reuniões sociais. Essa exposição social a torna alvo da vigilância não só dos pais e dos esposos, mas, sobretudo, da sociedade, uma vez que a submete à avaliação e opinião dos outros. Há, então, uma educação voltada para o ornamento, para os salões e apresentação, ou seja, acentua-se uma educação centrada no campo das aparências.

O trabalho feminino nas classes populares, ao contrário, já era desejado, não possuindo caráter depreciativo existente nas classes mais elevadas da sociedade.

Nas classes populares, o trabalho passa a ser desejado porque é através dele que se promove a melhoria na qualidade de vida no que tange ao núcleo familiar. Nessa classe, devido à própria educação e formação familiar, o matrimônio é desejado, mas não é condição de ascensão social.

Certamente por possuir uma identificação entre exercício e qualidades vistas como naturalmente femininas, como a abnegação, a compaixão e a doação, as profissões de enfermeira e professora são as mais comuns.

Na maioria das vezes, sem a oportunidade de estudo, a mulher de classe menos favorecida é levada pelas dificuldades econômicas a exercer atividades que envolvem os trabalhos estritamente domésticos, vigentes ainda hoje.

Cabe ressaltar que a mulher oitocentista da classe popular usufruiu maior liberdade no âmbito das relações conjugais. Isto porque, historicamente, a constituição da família pobre decorre, inúmeros casos, de uniões livres nas quais o amor e o carinho são elementos de grande relevância, diferente dos matrimônios na 71

esfera da elite que, normalmente, envolviam interesses econômicos e políticos.

Na classe popular, os padrões de moralidade eram mais flexíveis, facilitando até mesmo as dissoluções das uniões, pois havia pouco a dividir ou oferecer naquele contexto social. Isto, todavia, não quer dizer que o homem deixava de exercer dominação sobre a mulher que estava sujeita à discriminação imposta pelos princípios vigentes naquele século. Essa dominação vinha mascarada no preconceito, no desprestígio do trabalho feminino, na desigualdade social e, principalmente, na falta de acesso à educação.

Enquanto, em muitos países europeus, as mulheres reivindicavam o direito ao voto, aqui no Brasil elas lutavam pelo direito de serem alfabetizadas. Esta situação de descaso com a instrução feminina foi motivo de luta para um grupo de mulheres burguesas, pertencentes à elite brasileira, que estavam dispostas a lutar pela emancipação e valorização do sexo feminino.

Segundo Cláudia Silva Castanheira (2003), foi rompendo timidamente os cercos de uma cultura asfixiadora de sua liberdade criativa que algumas escritoras brasileiras começaram a publicar seus livros, já em meados do século XVIII. É nesse período que o feminismo revisionista, na busca de definir as precursoras da literatura de autoria feminina brasileira, referencia como representantes da literatura feminina setecentista os nomes de Tereza Margarida da Silva e Orta, Bárbara Heliodora e

Ângela do Amaral Rangel; do ínicio do século XIX, são comumente citados os nomes de Delfina Benigna da Cunha e Ana Eurídice Eufrosina de Barandas.

Observe-se que as pesquisas ou os estudos revisionistas têm recuperado um grande número de escritoras brasileiras que foram relegadas ao esquecimento.

A luta das mulheres pela igualdade de direitos e de educação ganha a imprensa como aliada através da fundação de jornais de cunho feminino/feminista 72

como: A Família, O Sexo Feminino, Belo Sexo, entre outros, a partir da segunda metade do século XIX. O objetivo desses jornais era a defesa do direito das mulheres à educação e a conseqüente valorização da mulher na sociedade. Esses jornais também se associaram à causa abolicionista e sufragista.

De modo geral, o século XIX revela ser um período rico para o estudo histórico e cultural da mulher brasileira, uma vez que a alfabetização e as novas formas de socialização deram novo sentido às concepções de público e privado em relação à mulher, já que ela se apresenta no limite fronteiriço da esfera doméstica.

Influenciadas pelas mudanças sociais, as mulheres oitocentistas começaram a publicar, surgindo uma imprensa feminina que retrata, por meio de contos, artigos, poemas e crônicas, a vida da mulher burguesa em seu espaço doméstico. São escritos onde o espaço público e o privado dialogam, mas não se confundem.

O primeiro desses periódicos editados por mulheres foi O Jornal das

Senhoras, lançado em 01/01/1852 pela argentina Joana Paula Manso de Noronha, tendo por objetivo trabalhar pelo melhoramento social, educacional e pela emancipação moral da mulher. Enfatizava a idéia de que a mulher era igual ao homem e deveria ser tratada como sua companheira e não como sua propriedade, pois ela não lhe era inferior em inteligência, culpando os homens pela condição feminina à época.

Outros jornais femininos que surgiram no Rio de Janeiro apontavam para uma participação das mulheres. O Bello Sexo, fundado em 1862, reivindicava para as mulheres um espaço útil na sociedade que passasse distante das futilidades que faziam parte do universo feminino. O jornal O Sexo Feminino, de 1873, reivindicava educação, instrução e a emancipação da mulher. Merece destaque, no cenário da imprensa feminina, por suas vigorosas posições em relação às demandas da família, 73

o jornal A Família, fundado por Josefina Álvares de Azevedo, em 1888, que se tornou uma das vozes proeminentes na defesa da condição feminina naquele fim de século. Propunha mudanças bem mais radicais que as suas precursoras e contemporâneas.

O Jornal A Família era favorável ao divórcio e à autonomia da mulher na sociedade. Por sua forte convicção e consciência acerca dos papéis destinados à mulher, Josefina Alvares de Azevedo é um dos nomes de efetiva participação feminina no cenário jornalístico e literário do século XIX, juntamente com sua contemporânea Presciliana Duarte de Almeida, fundadora da primeira revista dedicada à mulher brasileira: A Mensageira, que circulou regularmente de 1897 a

1899.

Com a participação nos jornais e revistas femininas é que as mulheres de classe alta, média e escolarizada estabelecem contato entre si e se interessam pelos mais variados assuntos e temas, desde o status legal da mulher, as relações familiares, a educação, a profissionalização feminina e a emancipação. Apesar do tom reivindicatório, esses periódicos traziam também textos sobre literatura, moda, entretenimento que visavam garantir a simpatia do público leitor. Estes escritos foram agentes de transformação sócio-cultural e, ao que indicam, vieram fortalecer os valores patriarcais.

Através destas publicações, podemos constatar que, mesmo com uma educação restrita aos moldes patriarcais, muitas mulheres do século XIX demonstravam uma significativa compreensão da condição feminina.

Os artigos veiculados pelos jornais femininos não raro incluíam, ao lado de contos, poemas, receitas e artigos de beleza, matéria política e filosófica. Observa- se que esses periódicos tinham títulos bastante sugestivos, como: “A mensageira”, 74

“O Sexo feminino”, “O recreio do belo sexo”, “O direito das damas”, “Ecos das

Damas”, “Jornal das Senhoras”, etc. Para nós, tais títulos já demarcavam sua finalidade e sua diferença em relação à imprensa dirigida pelos homens.

As escritoras brasileiras do século XIX, em geral, tratavam de temas cujos modelos ficcionais eram capazes de conciliar os papéis de mãe, de esposa com uma vida doméstica exemplar. Essas temáticas eram vistas pelos olhos do público como propostas inovadoras, pois apresentavam a mulher no espaço a ela designado, num discurso aceito que reiterava o ponto de vista patriarcal e, quiçá, modelos a serem seguidos pelas novas gerações que aspiravam a uma inserção na nova República.

As mulheres escritoras oitocentistas divulgaram através de seus textos a importância atribuída aos papéis de mãe e esposa. Entre elas, destacamos Júlia

Lopes de Almeida (1862-1934) e sua numerosa obra literária de cunho didático, como: Livro das Noivas (1896) e Livro das Donas e Donzellas (1906). Nestas duas obras, a escritora constrói o universo da classe burguesa feminina, carioca para, através destes cenários, problematizar os papéis femininos numa sociedade que mantinha as mulheres como cidadãs de segunda classe.

Júlia Lopes de Almeida usava o tom didático para incentivar comportamentos emancipatórios que fossem socialmente aceitos. Em outros livros, e até mesmo em alguns textos didáticos, ela expressa sua consciência da injusta condição de inferioridade feminina e revela, em sua escrita, que a mulher poderia contribuir, ativamente, para o desenvolvimento da nação.

O texto almeidiano, ao associar educação e trabalho, mostra o quanto ambos podem transformar realidades no universo feminino. Júlia Lopes de Almeida encarou a questão da educação feminina e ajudou a promover a inserção da mulher no 75

centro dos debates que agitaram o apagar das luzes do século XIX. Essas observações são demonstradas no seguinte excerto de A Mensageira:

Não é sem algum espanto que eu escrevo este artigo, para um jornal novo, e, de mulheres! (...) A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito. Precisamos compreender antes de tudo e afirmar aos outros, atados por preconceitos e que julgam toda a liberdade de ação prejudicial à mulher na família, principalmente dela, que necessitamos de desenvolvimento intelectual e do apoio seguro de uma educação bem feita. Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos, e mais felizes são aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento; em que são guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão que as ampare num dia de luta, e uma boa dose de noções e conhecimentos sólidos que lhe aperfeiçoem as qualidades morais. Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus deveres, marcará, funda indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o sentimento da ordem, do estudo e do trabalho, de que tanto carecemos. (ALMEIDA, 1987, p. 03)

No Brasil do século XIX, assim como Júlia Lopes de Almeida, várias escritoras tiveram importante papel na literatura oitocentista. Em seus escritos, elas deixaram reflexões que indicam as dificuldades da trajetória do feminino. Ao valorizar a educação, elas procuraram redimensionar o papel e a posição da mulher na sociedade e nas funções maternas delegadas à mãe oitocentista. E foram peças fundamentais para a transitoriedade social da época.

2.2. Texto: a mulher brasileira em transição

A literatura, em suas várias representações, teve e tem a mulher como elemento de inspiração tanto em seu texto como em seu contexto. A mulher, desde a antiguidade, faz parte da história da literatura, seja como protagonista, seja como antagonista; ela, a mulher, sempre esteve no centro do imaginário ficcional em todos os gêneros literários, principalmente na narrativa, especificamente, no romance, que teve seu apogeu brasileiro nas composições do século XIX. 76

Para uma compreensão mais ampla do romance, tal como ele se apresenta nos dias atuais, é interessante proceder a um histórico desse gênero literário, que, a partir do século XIX, transformou-se numa das mais ricas criações artísticas das modernas literaturas.

Segundo Aguiar e Silva (1974), o vocábulo “romance” – derivado do advérbio latino ‘romanice’ (à maneira dos romanos) – tinha, inicialmente, outra acepção. Na

Idade Média, definia as línguas românicas, oriundas do latim, mas já transformadas devido a fatores históricos, geográficos e sociais.

Em um segundo momento, “romance” passou a designar as composições que não eram mais redigidas na língua latina, própria dos clérigos, mas em língua vulgar.

Ainda longe de ser tomado no seu sentido moderno, o vocábulo passou, na Idade

Média, a definir, sobretudo, composições literárias de cunho narrativo, primitivamente expressas em verso, que eram recitadas e lidas.

O “romance em verso” medieval, na sua gênese, ocupando-se particularmente de uma dada personagem, vivendo suas aventuras pela vastidão do misterioso mundo, apresenta um caráter descritivo-narrativo que, de alguma forma, antecipa o romance em prosa que surgiria séculos depois.

Como representantes do período medieval, destacam-se o romance sentimental e o romance de cavalaria; este imortalizado por Dom Quixote (1605) de

Cervantes, considerado a narrativa inaugural do gênero romance no Ocidente.

Surgido no início do século XVII, o romance de Cervantes intenta ser uma sátira aos romances de cavalaria da Idade Média, ao mundo barroco idealizado, quimérico e ilusório, tendo se transformado numa referência literária da maior importância na literatura universal.

Será na Inglaterra do final do século XVIII que o romance assumirá uma 77

concepção moderna, destacando-se como um importante gênero literário.

Expandindo seu cabedal temático para abarcar conflitos sociais, políticos, e psicológicos, entre outros, sob técnicas narrativas constantemente renovadas, o romance se reverte em instrumento de reflexão filosófica, referencial de estudo da alma humana que, em consonância com o quadro de transformações econômicas, sociais e culturais, vai exigir formas de representação literária cada vez mais original e complexa, como o observa Castanheira:

A afirmação e a ascensão do romance no século XVIII devem-se ao declínio do prestígio do sistema de valores da estética clássica, homogênea e rígida demais para as novas exigências de um público novo que ascendia, o público burguês. O novo romance do século XVIII diferenciava-se tanto do romance anterior que Diderot considerou indevido que ambos tivessem a mesma denominação, sugerindo que se encontrasse um outro nome para as novas obras que tanto se afastavam dos acontecimentos frívolos e quiméricos das obras romanescas anteriores. (2003, p. 26)

Percebe-se que múltiplos fatores concorreram para a ascensão do romance no século XVIII: as filosofias inovadoras de Descartes e Locke, as transformações econômicas que culminaram no capitalismo e na ascensão da classe média, o desenvolvimento do protestantismo - de profundas repercussões econômicas e sociais -, a secularização da sociedade e as mudanças por que passava a sociedade letrada de então. É nesse século, na Inglaterra, que se acentua o interesse popular pela leitura, sendo o romance o gênero que mais contribuiu para o crescimento de um público leitor de ficção.

Podemos entender, seguindo o pensamento de Aguiar e Silva (1974) que, ao contrário das epopéias das literaturas clássicas que se apresentavam em fólios luxuosos a preços inacessíveis aos leitores menos abastados, os romances custavam, inicialmente, um preço médio, sendo aos poucos publicados em vários volumes e vendidos inclusive em folhas soltas, o que lhes garantia um preço módico em comparação com as obras maiores. O preço dos livros, no entanto, ainda estava 78

longe da realidade econômica do trabalhador humilde, pois o que se pagava por um romance podia sustentar uma família por uma ou duas semanas.

Assim, embora mais próximo daquelas classes sociais que emergiam para a classe média, que ampliava o número de leitores/as e o gosto pela leitura do romance burguês, não se pode dizer que o romance fosse propriamente popular.

Entre os possíveis leitores de romance, destacavam-se as mulheres, que formavam uma parcela substancial do público leitor. Mais do que isso: a literatura era um entretenimento basicamente feminino, uma vez que as mulheres estavam reclusas no espaço privado, e a leitura era vista como um ócio feminino burguês.

O fato é que as mulheres das classes alta e média raramente participavam de atividades como política, finanças e administração pública, todas reservadas ao domínio masculino; elas também ficavam longe das atividades de lazer de seus maridos, como bebida, caça e jogos, por exemplo. De modo que tinham mais tempo para a leitura, o que fazia com que fossem consumidoras de romances considerados então “passatempo” da mulher burguesa e escolarizada. A esse respeito, vejamos o seguinte:

Há algumas razões pelas quais o estudo se adapta melhor ao mundo feminino que ao masculino. Primeiro, porque as mulheres dispõem de mais tempo livre e levam uma vida mais sedentária (...) Existe outra razão para que sobretudo as mulheres de posição se dediquem às letras, a saber, porque seus maridos geralmente não são versados nelas. (CASTANHEIRA, 2003, p.30)

Mas não eram somente as mulheres mais abastadas que dispunham de maior tempo livre; as mulheres do povo, que eram alfabetizadas, também tinham tempo livre para a leitura.

O romance surgiu, assim, sob a orientação da era moderna, e afastando-se dos enredos que norteavam a epopéia clássica e renascentista, por exemplo, como as odes e as tragédias. Afastou-se também das realidades universais que nortearam 79

esses enredos baseados na história ou na fábula. O novo gênero apresenta quadros particulares da experiência humana, aos quais procura conferir fidelidade através da verossimilhança literária.

A despeito do enorme sucesso que alcançou, principalmente no final do século XVIII, o romance era um gênero que gozava de pouco prestígio entre os críticos. Por se afastar, de acordo com AGUIAR E SILVA (1974), da narrativa imaginativa do barroco e da estética clássica, que tinha em Aristóteles e em Horácio suas fontes de imitação, os críticos viam no romance uma leitura para espíritos inferiores, poucos exigentes e poucos refinados culturalmente.

A inferiorização do gênero romanesco encontrava o seu paralelo mais imediato na inferiorização da mulher, já que o romance era basicamente voltado para o público feminino. Críticos como o francês Huet, do século XVII, observavam que a sedução exercida pelo romance sobre as mulheres levava as damas a desprezarem as leituras de real valor, arrastando os homens a fazer o mesmo para agradá-las, ou seja, o romance era visto como fonte de corrupção cultural, já que gerava a ignorância e o desprezo pela boa literatura, os clássicos.

Mas o desprestígio e a condenação do romance não vinham somente de um plano meramente literário: para os poderes públicos e os moralistas, o romance também era visto como um corruptor de valores, um “perigoso elemento de perturbação passional”. (AGUIAR E SILVA, 1974, 255)

Em 1666, o moralista francês, Pierre Nicole, publicou uma obra na qual escreveu que “um fazedor de romances e um poeta de teatro é um envenenador público, não só de corpos, mas da alma dos fiéis, que deve ser olhado como culpado de uma infinidade de homicídios espirituais”. (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 255)

O romance era visto com descaso e até mesmo como obsceno pelos 80

moralistas. Essa visão encontrou alicerces na literatura moderna, em romances em que o tratamento dispensado à temática do amor romântico no contexto da obra é visto como a afirmação do poder do patriarcado na família. Em Madame Bovary

(1857), de Gustave Flaubert, por exemplo, o envolvimento com os sonhos da ficção romântica fez a protagonista “cair em desgraça”; o mesmo caso ocorre com a protagonista da obra O Primo Basílio (1878), de Eça de Queiroz. As personagens centrais destes romances, Ema e Luísa, fazem parte da tradição literária conhecida como heroínas mortas presentes em muitos dos romances clássicos, inclusive na literatura brasileira.

A relação direta que o romance moderno mantém com as questões ligadas a gênero, enquanto categoria de análise passa por dois aspectos relevantes:

(...) a primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que o romance surge tendo como público privilegiado a leitora mulher; a segunda, diz respeito à função da arte como um dos elementos da cultura aptos a contribuir para a organização das subjetividades e das identidades tanto de homens, quanto de mulheres. Do novo mundo burguês que surgia, promovendo a emancipação e a independência do indivíduo com relação às formas de sujeição social, no entanto as mulheres estavam excluídas, porque estavam excluídas naturalmente – isto é, por sua própria natureza – do universo da razão, reduto privilegiado do sexo masculino. (COSTA, 1995, p. 112)

Costa prossegue em suas reflexões acerca de romance e de gênero demonstrando o quanto era contraditória a posição da sociedade, que via a racionalidade como fonte de liberdade e de progresso do sujeito e que, ao mesmo tempo, expunha representações literárias em que a mulher se apresentava como facilmente corruptível, desde que “deixada a mercê de si e de seus impulsos naturais, ao exacerbamento das paixões e dos sentidos”. (1995, p. 113)

O romance transformou-se em instrumento de análise das paixões, das tendências e dos sentimentos humanos, seja através de sátiras sociais e políticas, 81

seja por caminhos filosóficos; ao mesmo tempo tornou-se o veículo, por excelência, da exagerada sensibilidade pré-romântica.

O romance terá sua fase áurea no século XIX. No período literário denominado Romantismo, ele se firmará definitivamente como uma forma literária de grande prestígio. Destacam-se o romance histórico, o poético e o simbólico, a partir dos quais surgem análises e críticas da realidade social contemporânea e do comportamento psicossocial. No século XIX, o romance passa a ser considerado a forma literária mais apta a expressar a multiplicidade de aspectos do homem e do mundo; é um gênero capaz de assimilar, sincreticamente, vários gêneros e registros literários.

O romance, “como muitos outros bastardos é uma criança amimada do destino a quem tudo corre bem. Não sofre outros inconvenientes e não conhece outros perigos a não ser a sua infinita liberdade” (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 260).

A apoteose do romance no século XIX deve-se principalmente às bem sucedidas experiências literárias de romancistas notáveis, como Walter Scott, Victor

Hugo, Herculano, Balzac, Dickens e George Sand, como aponta Aguiar e Silva

(1974).

Contudo, no declinar do século XIX e início do século XX, o romance moderno passa por uma crise profunda em relação aos seus modelos. Marcel Proust, Virginia

Woolf, James Joyce, Kafka são os grandes representantes dessa crise. Isto é, o romance passa a expressar novos conteúdos, renovando seus temas e explorando novos domínios do indivíduo e da sociedade, reflexo da inquietude estética e espiritual do homem. Fala-se em declínio e esgotamento do gênero, o que não sucedeu: o romance continua a ser, e isso até hoje, a forma mais completa de 82

manifestação literária, a que maior possibilidade expressiva oferece o seu/sua autor

(a), a mais difundida e a que maior influência exerce sobre os leitores.

No Brasil, o romance, por ser uma nova opção de texto narrativo, sem a complexidade da epopéia, é bem aceito e se torna uma leitura constante, geralmente publicado em folhetim. A maioria dos romances brasileiros primou por personagens femininas como centro de suas narrativas, em que elas, as personagens femininas, são o foco da trama e, geralmente, geradoras de conflitos entre as outras personagens.

O trajeto da narrativa e a criação da personagem feminina na literatura brasileira foram delineados, definidos e construídos ao longo da história literária. Até o Romantismo, os textos literários apresentavam-se majoritariamente em poesia; o triunfo do romance se amparou na atenção ao meio e no espaço geográfico e social, em que a narrativa se desenvolve e floresce.

A primeira narrativa brasileira, que ficou conhecida pelo público, tem como personagem feminina Carolina, em A Moreninha (1944), de Joaquim Manoel de

Macedo, e dá origem ao mito sentimental; logo depois, a imaginação do escritor brasileiro vai se espraiando na busca de narrativas que representem o tempo, o espaço e a personagem feminina perfeita:

No Brasil, riqueza e variedade foram buscadas pelo deslocamento da imaginação no espaço, procurando uma espécie de exotismo que estimula a observação do escritor e a curiosidade do leitor. Exotismo do Ceará para o homem do Sul; exotismo da própria Itaboraí para os leitores cariocas de Macedo. (CANDIDO, 1985, p. 122)

Nesse gênero literário, temos uma diversidade de escritores e críticos e, visivelmente, a crítica feminista que, a partir de estudos desconstrucionistas da condição feminina ao longo dos séculos, fundem os fatos e passam a dar uma nova interpretação à figura feminina, que vai evoluindo de acordo com o tempo histórico, 83

representando novas faces, fragmentadas ou não, vencendo intervenções e transpondo limites.

Sob a ótica dessa nova interpretação literária, ou seja, a da crítica feminista, o sim de Maria, tradicionalmente considerado submisso, pode transformar-se em ousadia, fortaleza e independência, pois Maria, por vontade própria, enfrenta inúmeros problemas à época: o preconceito social, o risco de ser apedrejada, de perder o marido, entre outros. E, ainda assim, deu-se ao direito de dizer sim a novos e maiores problemas que viria a sofrer para fazer cumprir as escrituras, ou seja: conceber Jesus e conduzi-lo por trinta e três anos.

A ação de Eva e Dalila também pode ser analisada por outro ângulo na visão literária da crítica feminista. Elas podem tornar-se marco inicial de uma nova visão de mundo: a mulher tida como submissa e recatada, além de indefesa, descobre-se parceira do homem, pois, como parte dele, já que veio de sua costela, é também forte e capaz, igual a ele.

Os escritores podem nos passar essas ou outras concepções em seus diversos escritos, pois, como diz Antonio Candido:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos ainda que, o externo (no caso o social) importa, não como causa, como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição do escritor [a], tornando-se, portanto, interno. (1985, p. 04)

Os textos literários situam-se, portanto, num espaço de confluência de outros discursos literários e extraliterários, cujo significado não depende de um único código, mas de diversos discursos que se cruzam e se fundem na criação literária.

Foi assim que a obra literária cresceu, amadureceu e se consolidou. E, com ela, a 84

personagem feminina sai do épico clássico para as páginas vivas do romance burguês, alcançando nele o seu lugar de destaque:

Poderíamos dizer que do mesmo modo que podemos descrever o trajeto da narrativa como uma trajetória de redução do espaço dos mares da epopéia de Ulisses, passando pelos caminhos amplos de Amadis ou Dom Quixote, pela sala de Jane Austen ou pelo quarto de Virgínia Woolf, até chegar ao estado de paralisia da pena memorialista de Proust – podemos também descrever a história da figuração da mulher como um trajeto de materialização – da deusa das mitologias, passando pelas bruxas contadoras de sábias narrativas, pelas damas de Villon, até chegar às muitas noivas, esposas, criadas, bordadeiras, preceptoras e tantas virtuosas. Ou para ficar na etiqueta cara à ascensão da burguesia, o caminho da mulher de bem vai de “dame” a “madame”. (MARCO, 1995, p, 115)

A partir dessas considerações de Valéria de Marco, não podemos negar, portanto, que há uma estreita relação entre a consolidação do romance e a figuração da personagem feminina, pois ambos percorreram muitos caminhos até chegarem a ocupar o lugar merecido na literatura. Podemos dizer que a figura feminina dos escritos literários de hoje é a soma das múltiplas interpretações e desconstruções da escrita literária ao longo dos tempos.

No Brasil, o processo de formação do romance e a figuração da personagem feminina foram caminhando juntos na história literária. Antes de Carolina (A

Moreninha), primeira personagem feminina reconhecida do romance brasileiro, outras personagens figuraram nas poesias e nos poemas épicos. Podemos citar, como exemplo, a personagem épica Lindóia da obra Uraguai (1769), de Basílio da

Gama, que prefere a morte a renegar o amor, antecipando uma típica heroína romântica. Temos, também, a personagem Moema do texto arcádico Caramuru

(1781), de Frei Santa Rita Durão, que ilustra a dor de não aceitar a perda do homem amado e prefere morrer nadando; além de muitas outras personagens épicas e líricas que marcaram a nossa literatura antes do romance, conforme palavras de

Karin Volobuef, 85

Depois de um longo tempo durante o qual a poesia foi soberana em nosso país, o romantismo inaugurou uma época de multiplicidade literária, fazendo emergir em nosso meio outros gêneros e formas estéticas. A prosa de ficção fincou seu pé através da introdução do romance, conto e novela. (1999, p. 165)

Antes do advento do Romantismo, o público leitor no Brasil já se mostrava receptivo ao gênero romanesco. As idéias do Romantismo sobre a busca de raízes nacionais marcam o início de alguns projetos históricos que tiveram sucesso ao longo do século XIX, particularmente a criação do romance e, com ele, a primeira personagem feminina da prosa brasileira. A Moreninha (1844), de Joaquim Manoel de Macedo, trouxe ao mundo a “demoiselle” Carolina, símbolo da ingenuidade infantil e do encanto adolescente.

Depois de Carolina, inúmeras personagens vão surgindo: Aurélia, Iracema,

Cecília, Capitu. Envolvida, despida, delicada, submissa, a figura feminina, enfim, vai tomando formas e sendo construída no imaginário da cultura brasileira que buscava a brasilidade distanciada dos paradigmas europeus.

Nas passagens ininterruptas dos discursos, ocupando espaços entre o passado e o presente das narrativas, preenchendo lacunas entre o vivido e o recordado, vivendo o acontecido e o desejado, o escritor brasileiro vai construindo o feminino e, com ele, a representação da mulher na sociedade em que foi produzida.

Exemplificamos estes momentos de busca da forma romanesca brasileira com Luiz

Filipe Ribeiro ao afirmar:

Em nível de maior complexidade de análise, a construção da forma romance pressupõe uma sociedade em que o individuo esteja constituído como categoria de pensamento e como categoria axiológica. A personagem do romance é sempre, e necessariamente, um indivíduo cuja identidade repousa sobre sua oposição relativamente ao meio em que se move. A forma romance é, então, inconcebível em sociedade cuja constituição repouse em outro pacto social que não o da individualidade. (1996, p, 47)

86

Com a formação do romance, a literatura brasileira pôde, então, melhor revelar-nos aspectos importantes da nossa sociedade. As formas de pensar e de compreender o sentido da vida, os significados e os valores da cultura brasileira são alguns aspectos enfocados nos romances.

Através de algumas personagens, os(as) escritores(as) apresentam peculiaridades de épocas, o seu pensamento e a sua liberdade. Em outras personagens, percebemos formas atrevidas, punidas pela sociedade. São aquelas personagens que tentam ousar e são colocadas à margem. Com a expansão do romance, o feminino na literatura vai ganhando espaço e maior relevância.

A trajetória das personagens femininas, apresentada anteriormente, alicerça a nossa fundamentação quanto à representação de personagens femininas oriundas da escrita de punho masculino e patriarcal. Esse caminho traça características e modelos vinculados aos preceitos falocêntricos. Já a personagem feminina, procedente da escrita de autoria feminina, é construída a partir da experiência de sua criadora, ou seja, ela condiz com experiência, mesmo ficcionalizada, que transcende e reflete a situação de outras mulheres. Ou seja, a narração parte de um caso isolado, individual, mas, por uma experiência da condição feminina redimensionada, ele, o fato enfocado, sai do pontual, isto é, do pessoal para o coletivo e torna-se político, universalizando a experiência feminina quando esta dialoga com as estórias de mulheres escritoras.

As leitoras se identificam e se solidarizam com a história narrada, pois elas, as leitoras, vêem, nas páginas da obra, suas vidas: rotina, conflitos, anseios, enfim, a condição feminina em foco. São elementos estes que, através da análise literária, trazem um sentimento de pertencimento, de partilha através do lugar, do papel e, sobretudo, da situação das mulheres em suas trajetórias histórico-sociais e pessoais 87

ao longo do tempo.

A autoria masculina, por sua vez, constrói o enredo atribuindo características do ser mulher a partir da visão falocêntrica, ou seja, como o feminino deve ou não deve proceder no universo imaginado pelo masculino.

De fato, se a mulher só existisse na ficção escrita pelos homens, poderíamos imaginá-la como uma pessoa da maior importância: muito versátil; heróica e mesquinha; admirável e sórdida; tão grande quanto o homem e até maior, para alguns. Mas isso é a mulher na ficção. Na realidade (...) ela era trancafiada, surrada e atirada no quarto. (WOOLF, 1994, p. 55)

A autoria feminina, em geral, reflete na personagem a experiência do ser mulher e como ser mulher. As personagens vão se revelando não somente como elementos do enredo, mas como seres femininos que têm vontades, desejos, anseios e são capazes de expor sua humanidade faltosa e, ao mesmo tempo, inteira pela exposição que fazem de si.

Tendo a mulher como centro da narrativa, as escritoras levam suas personagens a transitarem em cenas mais verossímeis e condizentes com a condição feminina junto à sociedade e ao seu meio.

Nessa perspectiva, temos, na obra Júlia Lopes de Almeida, em pleno século

XIX, uma ficção romanceada que tem a mulher como centro da narrativa. Através das personagens, Júlia Lopes irá desenvolver idéias inovadoras, incentivando estas mulheres ao trabalho e à instrução, antevendo possibilidades de a mulher se libertar da sua condição subalterna.

Estrategicamente, Júlia Lopes buscou equilíbrio no contexto oitocentista desfavorável à mulher; ela, através de uma escrita caracterizada por posições de avanços e recuos, usou estratégias discursivas que contribuíram para uma maior consciência acerca da condição feminina brasileira no apagar do século XIX. 88

O jogo discursivo entre o avançar e o recuar foi uma das estratégias encontradas por Júlia Lopes de Almeida para ser reconhecida e aceita junto à hegemonia patriarcal na sociedade da época.

Júlia Lopes, estrategicamente, aceita mostrar para suas pares que as mudanças da condição feminina, primeiramente, deveriam partir de suas atitudes de liberdade, da independência via trabalho profissional e da instrução.

À época, o discurso ambivalente de Júlia Lopes de Almeida, isto é, o discurso que se apresentava como politicamente agradável à burguesia carioca, usa uma linguagem construída na sutileza do dizer e do não-dizer, um discurso escondido nas malhas frágeis do contar estórias e narrar fatos.

Discurso referendado pelas mulheres cariocas burguesas que ansiavam pelo deslocamento político social feminino, ou seja, mulheres que desejavam a emancipação feminina como se fosse possível romper os ditames do privado, porém mantendo os valores do patriarcado. Esta negociação, ainda hoje, resiste na bem comportada sociedade brasileira de orientação patriarcal.

2.3. Texto e Contexto: trajetória de Júlia Lopes de Almeida

Júlia Valentina da Silveira Lopes nasceu no Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1862, na Rua do Lavradio, esquina da Rua Relação. Seu pai, Valentino

José da Silveira Lopes, era médico e pedagogo português; recebeu no Brasil o título de Visconde S. Valentim. A mãe, Antonia Adelina do Amaral Pereira, era concertista diplomada com tripla habilitação em piano, canto e composição pelo Conservatório de Lisboa. A família era abastada e apreciadora das atividades artísticas e lúdicas. 89

Os pais de Júlia Lopes exerceram atividades pedagógicas em Portugal e, quando vieram para o Brasil, continuaram com atividades docentes. Residiram primeiro em Macaé, no litoral fluminense, e depois em Nova Friburgo, onde a menina Júlia passou a primeira infância.

Durante o período em que viveu em Campinas, interior paulista, Júlia Lopes acompanhou a família em três viagens pela Europa, visitando a Inglaterra, a França, a Espanha, a Suíça, a Itália e Portugal, a terra de seus pais.

Enquanto a maioria das mulheres era somente instruída por preceptoras, ou nos colégios particulares, nos quais elas recebiam uma formação escolar modelar, patriarcal, Júlia Lopes, desde cedo, se interessou pela literatura. Devido a sua educação e a influência de seu núcleo familiar; já mostrava sua inclinação para a escrita, embora não fosse de bom tom que a mulher se dedicasse a esse ofício. Por isso, fazia versos escondidos, como revelou ao escritor João do Rio, em entrevista reproduzida n’ O Momento Literário:

Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas... De repente, um susto. Alguém batia à porta. E eu, com a voz embargada, dando voltas à chave da secretária: já vai! A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos, viria o mundo abaixo. Um dia, porém, eu estava muito entretida na composição de uma história, uma história em verso, com descrições e diálogo, quando ouvi por trás de mim uma voz alegre: – Peguei-te menina! Estremeci, pus as duas mãos em cima do papel, no arranco de defesa, mas não me foi possível. Minha irmã, adejando triunfalmente a folha e rindo a perder, bradava: – Então a menina faz versos? Vou mostrá-los ao papá! (RIO, 1994, p. 28)

O medo de que descobrissem seus escritos justifica-se em função da forma como o território da escrita era concedido às mulheres de sua época. Nessa entrevista, Júlia Lopes demonstra a realidade imposta pela sociedade oitocentista à criação literária de autoria feminina; como podemos reafirmar:

90

A conquista do território da escrita pelas mulheres foi longa e difícil, assim como foi romper as paredes da casa/prisão e da prisão textual que as confinava tendo por veículo um corpo definido como faltoso, fraco, submetido sempre ao escrutínio dos olhares exteriores, e um cérebro tido como não pensante e tendo como instrumento uma linguagem inadequada, pois nela não encontra uma definição de si com a qual possa se identificar. (TELLES, 1987, p. 245)

Nesse contexto histórico, é interessante considerar que Júlia Lopes de

Almeida tenha estreado na imprensa por incentivo do próprio pai, que ela temera pudesse castigá-la pelo possível crime de escrever versos. Foi em 1881, com um artigo sobre Gemma Cuniberti, atriz italiana que fazia teatro infantil no Brasil, publicado na gazeta de Campinas, sua estréia nas letras. Depois, foi convidada a escrever em outros periódicos, como A Semana, quando conheceu Filinto de

Almeida, com quem se casaria.

A revista A mensageira, de 15 de junho de 1899, traz comentário crítico da conhecida escritora portuguesa Guiomar Torrezão, no qual declara que Júlia Lopes de Almeida é, sem dúvida, “a primeira escritora brasileira” (p. 101) e descreve como uma rapariga modesta, singela, discreta e sem o menor vislumbre de pedantismo.

Peggy Sharpe, no prefácio da reedição de A viúva Simões (1999), cita o quanto Octávio Mendes ficou impressionado com Júlia Lopes quando a conheceu em Campinas, por sua postura, presença e educação se diferenciarem nitidamente de suas contemporâneas:

Pois bem. Foi mais ou menos nesse meio que conheci Júlia Lopes; e mais uma vez confesso que chamou-me a atenção aquela moça que sempre respondia com um sorriso a todos que a cumprimentavam, ao passo que as outras, ou não respondiam, ou faziam-no com um simples inclinar de cabeça, severo, patriarcal; que sabia conversar tão bem com um homem sobre artes ou literatura como, sobre costura e bordado, com uma mulher; que distinguia-se, enfim, tanto de suas companheiras pelos modos gentis e delicados, pela educação e modéstia, que forçoso era admirá-la. (SHARPE, 1999, p. 15)

91

Como Peggy Sharpe, sabemos que essa facilidade de transitar “livremente” entre o espaço masculino e o feminino não fora obra do acaso. Pois a educação esmerada e diferenciada é uma característica marcante na formação da família do

Visconde de S. Valentim, uma vez que todos os membros de sua família eram envolvidos com atividades artísticas como literatura e música.

Conseqüentemente, o contexto familiar de Júlia Lopes facilitou seu ingresso no mundo das artes e, fundamentalmente, no contexto literário, propiciando-lhe conhecimento e vivência da cultura de outros países, os quais visitou juntamente com sua família.

Júlia Lopes casa-se em Lisboa no dia 28 de novembro de 1887 com o poeta português Filinto de Almeida, naturalizado brasileiro. Coincidentemente, parece que a vocação de escrever uniu Júlia Lopes a Filinto de Almeida com quem viveu, por quase cinqüenta anos, até 30 de maio de 1934, data de falecimento da escritora.

Escritora profícua, autora de contos, novelas, romances, peças teatrais e ainda uma literatura dirigida para as noivas, donas e donzelas. Além de ter escrito regularmente para vários jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas, não esqueceu, ainda, o público infantil, para quem publicou, em parceria com sua irmã mais velha, Adelina Lopes de Vieira, a coletânea Contos Infantis (1886), composta de sessenta narrativas destinadas à instrução da infância, sendo trinta e três em verso (autoria de Adelina) e vinte e sete em prosa (autoria de Júlia), tendo sido adotadas para uso em escolas públicas primárias do Rio de Janeiro por décadas.

A obra Contos Infantis (1886) foi aprovada pela Instrução pública da Capital

Federal e de outros Estados da República Brasileira, contando três edições rapidamente esgotadas, cada uma com cinco mil exemplares; duas feitas em Lisboa e outra no Rio de Janeiro. Fato que testemunha o extraordinário mérito desse 92

trabalho que transcende com sucesso o final do século XIX, continuando renomado ainda por várias décadas do século XX.

Júlia assumiu, em sua vida particular e em toda sua obra, a idéia precípua de que a mulher deve ser instruída para poder desempenhar sua função social, em especial no que se refere à educação dos filhos. Sua escrita reflete a luta constante contra a idéia de que uma mulher reclusa e ociosa, voltada somente para os afazeres domésticos, seria apenas sombra do sujeito que poderia e deveria realmente ser.

Com outras mulheres escritoras, colaborou em A Mensageira: revista literária dedicada à mulher brazileira (publicada entre 1897 e 1900), em que escreveu artigos combatendo a postura veiculada, na época, da mulher “ornamento” e ou “rainha do lar”. Propunha, em contrapartida, uma atitude feminina combativa, prestativa, que se prestasse para a construção de um país desenvolvido e civilizado.

Conhecida no contexto literário como uma escritora amena, didática e subserviente aos valores patriarcais da época, Júlia Lopes de Almeida não foi suficientemente entendida, pois, em seu discurso, há provas cabais do quanto ela via os prejuízos causados às mulheres pela educação acanhada e sem brilho, dada

às mulheres oitocentistas. Exemplo disso é seu artigo para a revista A Mensageira

(1899), no qual exalta os ideais feministas, valendo-se, até certo ponto, de um tom irônico para descrever a imagem imposta à mulher:

Dizem que somos débeis (e chegam a convencer-nos) porque somos franzinas, ou porque somos pálidas, ou porque somos tristes! Não se lembram de que tudo isso é efeito de educação mal feita – contra a qual devemos reagir a bem de nossos filhos -, passada no interior da casa, sem exercício, sem convivência, sem jogos, sem despreocupações de preconceitos, sem estudo bem ordenado, sem viagens, sem variedade, sem alegria enfim! (ALMEIDA, 1899, p. 213)

A trajetória de Júlia Lopes de Almeida esteve muito próxima às questões que 93

mobilizaram a sociedade brasileira na transição dos séculos XIX e XX, como, por exemplo, o acesso das mulheres à escola e à profissionalização, assuntos explorados em seus romances, como Memórias de Marta (1889), A Falência (1901),

A Intrusa (1908) e Correio da Roça (1913). Ela faz parte de uma reduzida elite de mulheres brasileiras letradas que tentaram, através da educação, valorizar o papel da mulher. Embora não tenha sido fácil, o caminho percorrido por Júlia Lopes foi representativo, levando-se em conta, principalmente, os empecilhos enfrentados naquela época.

A luta de Júlia Lopes de Almeida pela instrução feminina estava ligada ao conhecimento prático, ao engajamento da mulher num universo produtivo e formador da nacionalidade brasileira, descartando alguns comportamentos de caráter tradicionais que revelavam a ociosidade, a inferioridade e, fundamentalmente, o despreparo para a vida social efetiva.

O texto almeidiano alertava contra as crendices, contra o hábito de recorrer às ciganas para prever o futuro, “futuro é feito pelos trabalhos, empreendimentos, inteligência, caráter” (ALMEIDA, 1907, p. 08), mostrando um mundo de progresso e movimento constante:

Aqui, a locomotiva rasga a terra, fura os montes, leva para diante a civilização que tudo aperfeiçoa... Além, lá no horizonte, que já não é misterioso, um transatlântico arfa em demanda do nosso porto. (ALMEIDA, 1907, p. 24)

Ao conhecer um pouco do percurso da mulher na luta pelos seus direitos, bem como o processo de construção ideológica que rompe com a perspectiva que naturalizava a subordinação e a inferioridade da mulher, pode-se avaliar melhor a contribuição de Júlia Lopes de Almeida. Através de sua escrita, ela expôs a posição 94

da mulher como o “Segundo Sexo”, contribuindo, assim, para a elevação do seu status, representado no contexto social e cultural pelo viés trabalho/educação.

Júlia Lopes de Almeida, interagindo com seu contexto histórico e social, procurou questionar, por meio de suas personagens, a condição feminina de sua

época. O caminho percorrido por ela não é só individual, mas pareceu sinalizar um novo percurso a ser trilhado também por outras mulheres na busca de um lugar onde, juntamente com os homens, pudessem usufruir uma melhor eqüidade entre os sexos. Nesse caminho, Júlia Lopes de Almeida tem seu reconhecimento literário no fim do século XIX e início do século XX na chamada Belle Époque carioca.

Redescoberta pelas mulheres intelectuais comprometidas com uma memória literária brasileira que vem sendo feita pela crítica feminista, ao longo das três

últimas décadas, como um dos grandes nomes da Literatura Brasileira, na transição dos séculos XIX e XX, Júlia Lopes de Almeida foi bastante celebrada, embora não o suficiente para que seu nome fosse destacado na história da literatura brasileira.

Com a militância engajada de pesquisadoras comprometidas com o resgate e a recuperação de uma memória literária brasileira e feminina, Júlia Lopes de Almeida foi retirada do obscurantismo que se abateu sobre si e sua obra após seu falecimento em 1934.

Na revista A Mensageira, onde sempre ocupou lugar de destaque, quer por sua figura carismática, quer por seus textos loquazes, onde a tônica era a necessidade premente da emancipação feminina via educação e trabalho, Júlia

Lopes já era reconhecida, na época, como a maior romancista brasileira. No número

07 dessa revista, foi publicado um artigo intitulado Intelectualidade feminina brasileira, no qual, ao citar os nomes de brasileiras que se destacavam no cenário literário, há a seguinte referência à escritora: 95

como romancista, D. Júlia Lopes de Almeida, a mais conspícua de todas, a autora da Família Medeiros, da Viúva Simões, seus romances melhores e de mais fôlego, não falando dos Traços e Iluminuras, do adorável Livro das Noivas, dos Contos Infantis... (A Mensageira, 15 de janeiro de 1898, p. 07)

No início do século XX, tem-se uma citação feita por Mariana Coelho que, em seu livro A Evolução do Feminino, publicado em 1933, assim se refere à escritora

Júlia Lopes:

Considerada a primeira escritora brasileira da atualidade, é Júlia Lopes de Almeida, que desde muito nova se dedicou com reconhecido talento às letras. As suas publicações, quase todas em prosa, são muitas e nelas se tem notabilizado principalmente como romancista. É também distinta e brilhante conferencista. A sua reputação de fina intelectual tem ecoado fora do Brasil. (COELHO, 2002, p. 331)

Além de ressaltar a importância da mulher de letras, Coelho nos mostra uma outra face de Júlia Lopes de Almeida que, já naquela época, levava suas idéias para serem apresentadas em conferências, como as que fizeram, em 1910, sobre A

Mulher e a Arte e A Moda e a Mulher, e tantas outras.

Também significativo é o que diz João do Rio, ao entrevistar Filinto: “há muita gente que considera D. Júlia o primeiro romancista brasileiro”. (RIO, 1994, p. 28).

Para destacar a literatura almeidiana, João do Rio a iguala ao “autor masculino”: o

“romancista”. E Filinto tem um movimento de alegria, e segreda: “Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era eu que deveria estar na academia, era ela.” (RIO, 1994, p. 28).

Júlia Lopes de Almeida, entre as várias atividades que desempenhou no Rio de Janeiro, participou das reuniões para a fundação da Academia Brasileira de

Letras, mas ficou de fora, por ser mulher. Seu marido, Filinto de Almeida, foi eleito membro e, até hoje, pelos cantos dos saguões, comenta-se que sua eleição foi uma homenagem a ela (TELLES, 1987, p. 440). 96

Certamente, o marido tinha consciência do valor literário de Júlia Lopes de

Almeida, o que fazia dela “uma mulher de sorte”, que pôde contar com o apoio do pai e do marido, dois homens importantes na sua vida pessoal e profissional pelo lugar que ambos ocuparam, então, na sociedade carioca.

O reconhecimento do talento de Júlia Lopes foi expresso por seu editor,

Horácio Belfort Sabino, na segunda edição de A Família Medeiros (1894), romance que saíra em forma de folhetim na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, como expresso na citação seguinte:

(...) a autora, por demais conhecida no nosso meio literário pelo talento e ilustração que tem revelado em todas as suas produções, deu à obra, agora publicada em segunda edição, um cunho genuinamente nacional, pondo em relevo, o seu grande espírito observador, (...) a contra-prova do mérito do livro é o fato raríssimo de se haver esgotado a primeira edição em cerca de três meses. (MOREIRA, 2003, p. 76)

Apesar do reconhecimento e da penetração junto ao público leitor, sobretudo o feminino, Júlia Lopes não esteve livre, assim como outras escritoras, de sofrer do preconceito oriundo do sexo masculino. Brito Broca afirma que, “quando Júlia Lopes de Almeida entrou a escrever nos jornais por volta de 1885, encontrou ainda forte barreira de preconceito contra as mulheres escritoras...” (1963, p. 240). Uma vez que o ato de escrever e publicar tinha diferentes significados. Para o homem,

A autoria era considerada como profissão rentável e respeitável (...) para as mulheres, o ato de escrever era visto como rebeldia que expunha a escritora ao ridículo, à mofa, e a dessexualizava. Caso fosse casada, expunha o marido a situações constrangedoras, e tendo filhos era tida como negligente na incansável missão de mãe. (MOREIRA, 2003, p. 60)

Júlia Lopes de Almeida foi bastante política no sentido de conseguir manter- se, bem aceita, numa sociedade onde o simples fato de uma mulher expor seu pensamento, fosse escrevendo ou de qualquer outro modo, era considerado uma grande ousadia. 97

Sua aceitação também pela crítica da época é visível e a coloca entre os maiores escritores de seu tempo, como o crítico José Veríssimo afirma: “com seu novo livro A Falência a senhora D. Júlia Lopes de Almeida toma decididamente seu lugar (...) entre nossos romancistas” (VERÍSSIMO, 1910, p.141). Será ele, José

Veríssimo, quem a equipará a Taunay, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e acima de Coelho Neto:

Depois da morte de Taunay, Machado de Assis e de Aluísio de Azevedo, o romance no Brasil conta apenas com dois autores de obra considerável e de nomeada nacional – D. Júlia Lopes de Almeida e o Sr. Coelho Neto, eu, como romancista, lhe (sic) prefiro de muito D. Júlia Lopes. (VERÌSSIMO, 1936, p.15)

Affonso Celso, em um texto para Revista da Academia Brasileira de Letras, reconhece a importância de Júlia Lopes de Almeida, no contexto literário da época, ao afirmar que a escritora:

(...) foi mestra na acepção mais elevada da palavra, o que quer dizer propiciadora de nobres ensinamentos, modelo de raras virtudes, irradiadora de salutar influência. Mestra de língua e mestra de vida, quer pela excelência de sua produção literária, quer pela pureza sem jaça de sua existência. (CELSO, 1935, p. 259)

O jogo textual, estratégia de avanço e recuo, utilizado na ficção almeidiana sobre a questão da maternidade está alicerçado no padrão positivista-burguês de construção dos tipos femininos ideais, ou seja, as mulheres-mães deveriam ter a maternidade acima de qualquer outro objetivo. Nesse contexto vivido por Júlia Lopes de Almeida, podemos entender o seu estilo de escrita.

A capacidade de “conciliar” os papéis de mãe, de esposa e de escritora fez com que Júlia Lopes fosse admirada e respeitada por muitos.

D. Júlia foi a realizadora admirável desse tipo de mulher intelectual na qual a relevância do espírito não prejudica as qualidades primaciais do coração, provando não existir antagonismo nenhum entre a honestidade de uma vida de esposa e de mãe de família e o livre exercício da inteligência e do talento. (CELSO, 1935, 159) 98

A crítica, em se tratando da ficção almeidiana, redunda na superficialidade dos temas por ela abordados, sem levar em conta a condição feminina naquela sociedade de fim de século. Isso não significa dizer que Júlia Lopes ignorava as limitações impostas ao feminino. Pela leitura de sua obra, compreendemos que ela discordou dessas limitações, uma vez que em seus textos, considerados didáticos, apresentam posições contestadoras e indagam sobre a condição feminina vigente; o que observamos no seguinte trecho de Livro das Donas e Donzellas:

Nos tempos antigos, a mulher era calma, submissa, pacífica e retraída; mas seria tudo isso por ter mais bom senso, mais felicidade e menos ambição? Não me parece. O motivo devia ser outro; o motivo devia de testar na atmosfera que a envolvia e em que não existia nenhum elemento agitador. Não somos nós que mudamos os dias, são os dias que nos mudam a nós. Tudo se transforma, tudo acaba, tudo recomeça, criado pelo mesmo princípio, destinado para o mesmo fim. Nascemos, morremos e no intervalo de uma outra ação, vivemos a vida que nosso tempo nos impõe. O que ele impõe hodiernamente à mulher é o desprendimento dos preconceitos, a luta, sempre dolorosa, pela existência, o assalto às culminâncias em que os homens dominam e de onde a repelem. Mas, seja qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá, por que não nasceu da vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar. (ALMEIDA, 1906, p. 72-73)

Na obra Prosa de Ficção: de 1870 a 1920 (1957), a crítica Lúcia Miguel

Pereira, mesmo inserindo os textos de Júlia Lopes de Almeida no período denominado por Agripino Grieco como o “sorriso da sociedade”, que seria uma literatura menor, voltada para “epopéias domésticas que formam a nossa bibliothèque Rose” (GRIECO, 1947, p. 134), faz uma das poucas alusões, em sua obra, a nome de mulher na literatura. A estudiosa afirma que:

Júlia Lopes de Almeida, na verdade, é a maior figura entre as mulheres escritoras de sua época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de quarenta anos, como pelo êxito que conseguiu com os críticos e com o público; todos os seus livros foram elogiados e reeditados, vários traduzidos (PEREIRA, 1957, p. 270).

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Recorremos, também, às palavras do reconhecido crítico, Wilson Martins, em sua obra História da inteligência brasileira (1978), para exemplificar a importância de

Júlia Lopes de Almeida no contexto literário, na qual reconhece a escritora carioca como o “(...) o ponto mais alto do nosso romance realista e, apesar da língua lusitanizante, não perderia no confronto com Aluísio de Azevedo (vitima do mesmo mal)”. (MARTINS, 1978, p. 12)

É importante ressaltar que Júlia Lopes de Almeida também militou, ainda que timidamente, junto ao movimento feminista. Em 1922, a convite de Bertha Lutz, participou da Comissão de Relações Internacionais e Paz do primeiro Congresso

Internacional Feminista promovido pela Federação Brasileira Pelo Progresso

Feminino. Quando a Federação promoveu o Segundo Congresso Internacional

Feminista, em julho de 1931, na cidade do Rio de Janeiro, foi Júlia Lopes de

Almeida considerada a mulher de maior prestígio no meio cultural do país. E foi ela quem proferiu o discurso de abertura no evento.

Aquele momento foi particularmente significativo, porque as mulheres se organizavam para obter o direito de voto, que se concretizaria em 1934; coincidentemente o ano do falecimento da escritora.

Para ser aceita em meio às rígidas normas do patriarcado, Júlia Lopes de

Almeida, como outras mulheres de seu tempo, valeu-se da criatividade para vencer a resistência que encontrou no exercício do jornalismo e da literatura. E procurou em seus escritos abordar os temas que se dirigiam ao público feminino; fato que favoreceu as escritoras brasileiras.

Aos primeiros textos de Júlia Lopes tidos como de temática amena, seguiram- se outros que valorizavam o ambiente doméstico, assim como os laços familiares e seus revezes: a partir de 1884, começa a ser publicada “uma série de artigos 100

mensais, que aparecem sob a epígrafe Leitura popular, com subtítulo As Nossas

Casas, na qual é abordada a problemática cotidiana da dona-de-casa”. (LUCA,

1999, p. 07).

A esses textos irão se juntar os outros produzidos em 1885 e se constituirão no Livro das Noivas (1896), espécie de manual que abrange o espaço doméstico: suas normas de conduta, etiquetas e cuidados que envolvem esposo, filhos, casa, enfim, organização do espaço familiar. O Livro das Noivas é um dos exemplos que confirmam o sucesso de Júlia Lopes de Almeida e o quanto sua obra incorporou-se ao cotidiano de gerações de mulheres.

A receptividade da obra O Livro das Noivas (1896) foi tão grande que, no início do século XX, dezenas de moças receberam esse livro de suas mães, noivos, pais, etc., como iniciação ao universo idealizado do matrimônio.

Apesar de sua visão progressista, Júlia Lopes de Almeida procurou fazer da moderação e da sensatez um traço significativo em suas obras, intenção expressa na revista A Mensageira, no seguinte comentário:

Esta revista, (...) parece-me dever dirigir-se especialmente às mulheres, incitando-as ao progresso, ao estudo, à reflexão, ao trabalho e a um ideal puro que as nobilite e as enriqueça (...) Ensinará que, sendo o nosso, um povo pobre, as nossas aptidões podem e devem ser aproveitadas em variadas profissões remuneradas e que auxiliem a família, sem detrimento do trabalho do homem. (ALMEIDA, 1897, v.1, p. 04)

O jogo discursivo e dissimulado apontava avanços e recuos, dizer e não- dizer, público e privado, feminino e feminista, aspectos que à primeira vista podem ser contraditórios, mas, no contexto histórico da inserção da mulher escritora, na sociedade brasileira oitocentista, fez parte das estratégias de resistência na escrita de autoria feminina, processo que será enfrentado na análise do corpus.

Como veremos, a escrita de autoria feminina vai muito além do significante, 101

ou seja, a escrita feminina está posta como forma, primeiramente; mas que, para se chegar ao real problemático do feminino na escrita, é preciso levar em conta a condição feminina e como se possibilita tal escrita com as questões históricas e culturais do feminino.

Com essas considerações, intentamos mostrar como se dá a presença de vozes femininas na literatura brasileira, especificamente na obra A Viúva Simões, registrando, na contemporaneidade de Júlia Lopes de Almeida, um modo de ser que emerge no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, no contexto da urbanização e no contexto emaranhado de suas contradições.

Também é importante antecipar os elementos sociais, políticos e culturais que puseram em transição as mulheres brasileiras de classe média alta. Assim, destacamos o papel da educação, do trabalho, a mudança nas relações de gênero, a crítica em relação à autoria feminina. Esses elementos contribuíram significativamente para que as mulheres brancas, escolarizadas e urbanas, pudessem transitar no espaço privado e público, como o demonstra a escritura de resistência de Júlia Lopes de Almeida.

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3. A VIÚVA SIMÕES: RESISTÊNCIA NA EXPRESSIVIDADE NARRATIVA

3.1. Entre o ser e o parecer

Desde a morte do marido que procurava estiolar, ressequir o seu coração de moça, o seu egoísmo maternal absorvia-a toda; não roubaria à filha nem seus afagos, nem um único dos seus pensamentos e dos seus cuidados. Pela sua idolatrada Sara deixaria queimar o seu corpo, cegar os seus olhos e despedaçar o seu coração. Perecesse tudo sobre a terra, se só à custa desse aniquilamento pudesse o sorriso iluminar os lábios frescos da filha! (ALMEIDA, 1999, p. 44)

Júlia Lopes de Almeida, já renomada pela crítica e pelos leitores do século

XIX e XX, faz parte da chamada Belle Époque carioca. A entrada do século XX já está caracterizada na literatura brasileira pela mistura de várias tendências estéticas e literárias como: romantismo, parnasianismo, realismo, naturalismo – Júlia Lopes acompanha com sua vida e obra vastíssima a transição sócio-cultural da época.

Sua obra, principalmente no que tange à narrativa, volta-se para a escola realista/romântica; isto por ela trabalhar com os jogos simulativo e dissimulativo que faziam parte de tais escolas. Em alguns de seus romances e contos, a cena é descrita com características realistas, sendo desenvolvida por um jogo psicológico que se situa entre a emoção e a razão.

Grande parte das personagens criadas por Júlia Lopes de Almeida lembra, em sua composição, a complexidade romântica de Ema Bovary, na obra Madame

Bovary (1857), e Luiza do romance português O Primo Basílio (1878), respectivamente de G. Flaubert e Eça de Queiroz. Tais personagens, com perfis românticos, protagonizam obras realistas ao mesmo tempo em que se dá o inverso, isto é, personagens com características realistas protagonizando obras românticas.

Casos bem conhecidos em nossa literatura através de Aurélia Camargo, da obra

Senhora (1875), e Maria da Glória (Lúcia) de Lucíola (1862), ambos romances do 103

cearense José de Alencar.

Massaud Moisés, ao refletir e teorizar acerca da construção da personagem literária, nos leva a entender que:

[a] personagem literária é basicamente como um conjunto de elementos gráficos, fonéticos, lexicais, sintáticos e semânticos, esparsos ao longo do texto, que erigem em nossa imaginação, através da leitura, um ser com características humanas, que tem corpo, caráter, alma, fala, age, pensa, ri, sofre, ama, mas que não tem existência fora da palavra escrita. (1982, p.120)

A composição da personagem no romance se dá por meio de um procedimento que Antonio Candido chama de “convencionalização”. Este procedimento “consiste na seleção e combinação de traços sugeridos pela realidade, filtrados pela memória e pela observação e transformados artisticamente pela criatividade do autor” (2002, p. 75-76). A seleção é necessária porque é impossível captar a totalidade de uma existência e levar o escritor a inventar, e não a recriar personagens reais ou presentes na memória.

Contudo, sob a perspectiva da verossimilhança e de sua relação com a nossa maneira de percebê-la, a personagem é susceptível de apresentar, apesar da aparente “mentira” de sua existência, uma consciência e uma profundidade tais que a tornem tão complexa como qualquer um de nós. Isto porque uma personagem é muito mais do que a soma dos recursos que a compõem: para além das palavras que a exprimem, existe algo que resiste à análise, uma espécie de lugar imponderável que somente o texto, como um todo, pode suscitar.

A composição de uma personagem ficcional e de seu modo de ser, em termos críticos, atenta Antonio Candido, deriva mais da concatenação da sua existência no contexto do que da descrição e da análise do seu ser isolado:

O aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo 104

que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente. (CANDIDO, 2002, p. 75)

Conseqüentemente, mais do que fidelidade ao real, importa que os elementos que compõem a estrutura do romance estejam combinados de maneira adequada.

Devemos ressaltar, alicerçados no pensamento de Candido (2002), que, em literatura, a matéria do real e do vivido é apenas o ponto de partida, sobre o qual trabalha a memória, a observação e a imaginação, combinadas em diferentes graus e sob o influxo de concepções morais, estéticas e intelectuais, conforme os valores da época em que foi concebida.

Portanto, na primeira parte deste capítulo, abordaremos a questão que envolve a personagem de ficção, entre o ser e o parecer, elementos de construção da personalidade da protagonista do romance que iremos analisar, e que, ainda, alicerça a verossimilhança da narrativa romanesca.

As regras de composição da personagem feminina são selecionadas pela escolha dos traços e indícios que serão enfatizados, em sua configuração, pelos outros componentes da obra e pelo próprio caráter de condensação que apresenta em relação à vida. Isto porque a personagem se revela como um ser coeso e delimitado, sem, no entanto, perder, com esta delimitação, sua riqueza e profundidade.

As eternas questões relativas à existência humana facilmente tomam corpo na figura da personagem e, nela, catalisam-se as inquietações do homem a respeito de sua origem, do seu destino, do seu crescimento individual e do seu papel como ser social.

Acreditamos que, em um estudo que busca a análise da personagem e sua composição na obra ficcional, se deve lembrar que a personagem é um elemento 105

estrutural e que a sua importância se afirma não só enquanto entidade funcionalmente indispensável para a concretização do processo narrativo, mas, também, “como suporte da ação que normalmente é, sobretudo, como lugar preferencial de afirmação ideológica”. (REIS, 1987, p. 309)

Em outras palavras, na focalização da personagem literária, deve-se entendê- la como um signo, um fenômeno puramente verbal, e não como uma pessoa real.

Devemos, porém, lembrar que as personagens, embora ficcionais, possuem características verossímeis, e não são neutras nem vazias de significados. Elas podem nos levar a uma análise de nosso meio, pois situam-se entre o ser e o parecer.

Em nosso trabalho de análise, estaremos voltados para a maneira como os seres ficcionais, isto é, as personagens, criam vida a partir da palavra. Interessa- nos, sobretudo, o tipo de personagem considerado pela crítica como linear, fortemente calcado na referencialidade, e já em processo de transformação ao abandonar o papel romântico do herói, sempre vitorioso e que, principalmente, se mostra como um ser que erra, sente, vence e perde, porém plausível de análise como no caso deste trabalho na perspectiva da crítica feminista.

No romance em análise, A Viúva Simões, duas mulheres vivem situações que envolvem laços de família (mãe e filha): elas protagonizam relações afetivas tensas e vêem-se envolvidas em um embate pessoal; em situação melindrosa, principalmente, no que tange às relações de foro íntimo do núcleo familiar. As ações destas personagens são vigiadas e punidas através das relações de poder que normalizam os preceitos sociais. Elas (mãe e filha), entretanto, são personagens cuja existência se manifesta a partir da palavra.

O enredo se passa na segunda metade do século XIX e recebe o impacto das 106

transformações próprias do momento histórico, ocorridas na sociedade brasileira. A maneira de ver o mundo e de exprimi-lo através do discurso ficcional, recria aspectos da cultura urbana que se desenvolve na sociedade brasileira em mutação.

São mulheres que habitam o mesmo universo ficcional, neste caso, o do romance realista, cujos pensamentos, ações e sentimentos mais recônditos nos são oferecidos sem reserva pela voz do narrador, suscitando indagações sobre o modo como a arte representa e cria a vida e a morte.

A Viúva Simões (1897), terceiro romance da carioca Júlia Lopes de Almeida, causou forte impacto no público leitor na época de sua publicação. Esta obra foi considerada por muitos estudiosos da literatura brasileira como um dos grandes romances realistas da nossa literatura.

A Viúva Simões apresenta a estória de uma paixão, de mãe e filha, pelo mesmo homem, Luciano. O meio descrito é o da sociedade burguesa carioca da segunda metade do século XIX. O enredo se passa no ambiente doméstico da protagonista, a viúva do comendador Simões, negociante e filho de uma alemã com um comerciante brasileiro. Dessa união, tiveram uma filha, Sara, muito parecida com o pai, a quem tinha verdadeira adoração. A casa da viúva ficava em Santa Teresa, bairro da burguesia carioca emergente na virada do século XIX. A residência tinha um pomar com vista para o casario da Glória e do Catete.

Em linhas gerais, a estória se passa assim: quando moça, a viúva teve um namorado, Luciano Dias, por quem foi apaixonada; mas ele, inexplicavelmente, deixou o Rio de Janeiro e foi para a Europa, perdendo totalmente contato com ela, que, magoada, decidiu se casar com o Comendador Simões, homem sério, respeitado e de futuro promissor. Ernestina, a viúva, reencontra o antigo namorado

19 anos após o desaparecimento deste e a menos de um ano de sua viuvez 107

prematura. Luciano, recém chegado da Europa e sabendo-a viúva, pensa ser uma oportunidade para ter um caso com uma mulher madura e rica. A filha Sara é já uma moça e também por ela se apaixona. Conseqüentemente, a mãe, confrontando seus sentimentos amorosos com os da filha, percebe que também está apaixonada por

Luciano. Em sua idade, as paixões enlouquecem, e a filha, por ser mais moça, teria outras oportunidades. Após esta revelação, a filha é acometida por uma febre forte e adoece. Muitas diligências são feitas em prol da saúde de Sara, mas foi tudo em vão, a moça ficará idiota. As duas, mãe e filha, terminam sozinhas no solar de Santa

Tereza. E o pivô da discórdia, Luciano, repete o conhecido comportamento – desaparece da cidade do Rio de janeiro e retorna à Europa.

Segundo Maria Angélica Guimarães Lopes, na orelha da reedição de A Viúva

Simões (1999), o romance é a “história de uma paixão“, como queriam Balzac e Eça de Queirós. Narra o amor de uma Fedra tropical pelo noivo da filha. (LOPES, 1999)

Lopes afirma que, em sua contenção, força e elegância, A Viúva Simões lembra uma tragédia clássica, malgrado a ação transpor as 24 horas sugeridas por

Aristóteles. Assim, como de praxe em boa ficção realista, o comportamento segue as prescrições da época e do meio. Uma das características da composição ficcional

é o entrosamento das partes. Uma vez que personagens, cenário e trama, tudo tem como princípio norteador a protagonista. Nitidamente expresso no título, este é o retrato, a história da viúva Simões.

Levando em consideração o aspecto social do fim do século XIX, compreende-se que a imagem da mulher viúva estava presa a um moralismo herdado não somente da religião, mas enraizado nos valores do patriarcado, respaldada pelo senso comum que refletia a condição feminina na sociedade brasileira oitocentista. 108

Competia à viúva, nesse contexto, dar continuidade ao modelo de mãe de família, anjo do lar, e honrar o nome do esposo falecido, além de organizar e administrar os bens por ele deixados. A mulher viúva tinha de manter uma conduta ilibada, pois se seu comportamento não fosse adequado ao padrão moralista do estereótipo da viúva eternamente enlutada, sua ação seria compreendida como desrespeito à família, à memória do finado e como transgressão dos padrões comportamentais determinados para uma viúva decente e obediente aos bons costumes vigentes na sociedade local.

Identificada com o fenômeno de transformação pelo qual passava o país,

Júlia Lopes de Almeida, “atenta” ao modelo burguês e consciente da condição feminina daquele período, mostra, através de sua narrativa, as indagações e os anseios femininos que permeiam o espaço doméstico, ou seja, o enclausuramento vivido pelas mulheres retratadas em sua narrativa.

A análise da obra A Viúva Simões (1897), nesta primeira parte, se dará a partir do deslocamento na forma de nomear a protagonista, ou seja, num primeiro momento, ela é constantemente referida como a viúva; depois, ela é nomeada como

Ernestina. Entendemos haver, nesta passagem do geral (a viúva) para o particular

(Ernestina), um discurso que justifica o subtítulo deste capítulo: entre o ser e o parecer; que dá visibilidade à estratégia de resistência na escrita de Júlia Lopes de

Almeida; ela envolve o próprio discurso ideologicamente organizado, buscando uma inserção e um reconhecimento feminino, na maioria das vezes, somente permitido no contexto da literatura.

A narrativa do romance A Viúva Simões inicia-se com a fala do narrador descrevendo a condição vivida pela protagonista:

apesar de moça e de rica, a viúva Simões raras vezes saía; dedicava-se absolutamente à sua casa, um bonito chalet em Santa Teresa. Vivia 109

sempre ali, inquirindo, analisando tudo num exame fixo, demorado, paciente, que exasperava os seus cinco criados: a Benedita, cozinheira preta, ex escrava da família; o Augusto, copeiro, francês, habituado a servir só gente de luxo; a lavadeira Ana, alemã, de rosto largo e olhos deslavados; o jardineiro João, português, homem já antigo no serviço, e uma mulatinha de quinze anos, cria de casa, a Simplícia, magra, baixa, com um focinho de fuinha e olhos pequenos, perspicazes e terríveis”. (ALMEIDA, 1999, p. 35)

O narrador, ao iniciar o relato da estória, já marca, com a expressão “apesar de”, a condição na qual vivia a viúva, que mesmo sendo moça e rica, raras vezes saía de casa. As palavras inquirindo, analisando, fixo, demorado e paciente vêm, a nosso ver, mostrar a ociosidade da viúva. A origem étnica de seus criados é utilizada pelo narrador com o intuito de mostrar o convívio das diferentes etnias e a situação financeira da viúva, além de expor de forma branda o perfil de transição social pelo qual a sociedade brasileira passava à época: a mistura das raças, principalmente, uma vez que, dos cincos criados, três são estrangeiros.

O contexto narrativo deixa claro que, “apesar” de ter uma situação financeira elevada, a viúva não tinha plena liberdade social, pois esta liberdade estava na esfera do espaço público. Esta era a situação vivida pelas mulheres burguesas oitocentistas.

A escrita almeidiana, na sua composição da narrativa, trabalha com a questão dos espaços privados e públicos. Os anseios da viúva Simões dialogam com a polaridade destes espaços internos e externos, criando uma tensão textual que culmina no conflito entre a emoção e razão:

Tinha de vez em quando as suas horas tristes, em que a inteligência se lhe revoltava contra a monotonia daqueles meses que se desfolhavam iguais em tudo, sempre iguais... O corpo cansado não reagia, e o pensamento nadava preguiçosamente em idéias vagas, coloridas pelo romantismo da idade em que as alegrias e entusiasmos da mocidade já não existem, e em que as friezas da velhice ainda não chegaram... (ALMEIDA, 1999, p. 36-37)

A viúva, em seus momentos de melancolia, almejava qualquer coisa que ela 110

mesma não sabia definir. Havia nela uma revolta surda, inexplicável contra a pacatez da sua vida e não aceitava a idéia de “enterrar a sua mocidade e a sua formosura longe dos gozos e dos triunfos mundanos”. (ALMEIDA, 1999, p.38) O narrador expressa os devaneios da viúva, ao afirmar que “o que lhe parecia agora um sacrifício parecera-lhe horas antes uma delicia”. (ALMEIDA, 1999, p. 38)

Júlia Lopes consegue, pela voz narrativa, transpor para o enredo do romance um discurso que se volta para o aspecto individual da personagem, que, através da memória, traça o perfil da infância da viúva: “mal se lembrava da mãe, um vulto tênue que fugia à sua lembrança... ficara órfã cedo... do pai sim! Que bom velho!

Que doce amigo fora ele sempre!”. (ALMEIDA, 1999, p. 39) Conserva “lembranças antigas de pessoas, de palavras, de idéias ou de sonhos, fugidios, apagados ou mortos”. (ALMEIDA, 1999, p. 39)

Consideramos importante observar, na narrativa almeidiana, a relação entre a mulher e a leitura. Entendemos que o surgimento da personagem causadora da mudança comportamental e transgressora da personalidade da viúva, a chegada de

Luciano, acontece sutilmente na trama romanesca, numa ação nem sempre usual às mulheres do século XIX, isto é, a leitura, como podemos notar:

Os seus olhos percorriam superficialmente todo o jornal, quando de súbito estacaram num ponto. Por muito tempo não se despregaram de quatro linhas banais, lendo-as e relendo-as até que o jornal, levado por um dos seus gestos lânguidos, caiu aberto sobre os joelhos. (ALMEIDA, 1999, p. 38)

Levando em conta o fato de que as leituras “permitidas” às mulheres oitocentistas eram aquelas voltadas especificamente para o público feminino e, muitas vezes, também escritas e publicadas por mulheres, observa-se um gesto transgressor, uma estratégia de resistência que se dá na autoria de Júlia Lopes, 111

uma vez que o jornal que a viúva está lendo é A Gazeta, periódico de grande circulação na época e que tinha o público masculino como seu principal leitor.

Podemos perceber, no excerto acima, que nossa protagonista possui características diferenciadas de outras mulheres de sua época. Não somente em relação à leitura, uma vez que esta já era praticada pela maioria das mulheres burguesas da época.

Devemos levar em conta a “emancipação” feminina, uma vez que a mulher, quando solteira, estava subjugada às vontades paternas; casada, aos caprichos do marido, a quem devia obedecer; já viúva, possuía uma maior liberdade por não estar sob a tutela masculina, apesar de estar sujeita às regras sociais e morais vigentes na sociedade burguesa oitocentista.

Voltando ao texto almeidiano, podemos perceber que o narrador, no fragmento anateriormente citado referente à leitura, fragiliza a protagonista ao descrever a cena com um quê do estilo romântico, de acordo com o qual a viúva, pela leitura de “quatro linhas banais”, apresenta “gestos lânguidos”, abandona a leitura e volta-se para o estado de contemplação, ações muito utilizadas na escola romântica:

Voltada para o sonho, ela continuou imóvel, com os membros lassos estendidos sob as roupagens longas e negras do seu ainda rigoroso luto de viuvez, e pôs-se a seguir com o olhar, que o pensamento erradio tornava ora abstrato, ora pensativo, uma barquinha de velas pandas que deslizava lá embaixo, isolada e pequenina, na solidão das águas. (...) E o pensamento, acordado de um letargo em que jazia sepultado havia longo tempo, corria agora mais doce e velozmente do que o barco de velas lá embaixo, na solidão das águas. (...) A viúva deixava-se, preguiçosamente, no mesmo lugar, a idéia longe, a carne afagada pela doçura inigualável do inverno fluminense e os olhos errando pelo que a natureza pode ter de mais idealmente formoso! O pensamento ia, ia... (ALMEIDA, 1999, p. 38- 42)

O trecho acima apresenta aspectos pontuais, em textos ditos românticos, concretizados pela sinestesia dos sentidos; o sonho em oposição ao real, ao mundo 112

onde se situava a viúva.

Na descrição abaixo, a protagonista começa a ser levada por divagações e indagações sobre: seu passado de solteira; o estado civil de viúva e o seu futuro próximo. A voz narrativa conduz o leitor para antever um quadro trágico ao mencionar os sentimentos da viúva: tinha “receio”, ele fora o seu “mais duradouro amor”. Isto nas impressões postas sobre o causador da tragédia que se abaterá sobre a protagonista:

Luciano tinha sido o primeiro e mais duradouro amor da viúva; cartas, promessas, juramentos, frases aquecidas na mais ardente paixão, haviam partidos de um para o outro nos bons tempos da juventude. (...) Supunha mesmo que nunca mais o tornasse a ver, e que, se porventura isso se viesse a dar, ela não experimentaria a mais leve comoção; e ei-la agora alarmada, só porque lera na Gazeta a notícia de sua chegada da Europa! Havia dois dias já que ele estava no Rio, debaixo do mesmo céu, respirando o mesmo ar que ela! (...) Sim, desejava vê-lo, mas tinha receio. Receio... nem sabia de quê, mas tinha-o. Afinal não houvera amado nunca outro homem como amara aquele! -- O Luciano... Por que a deixara ele? Que história tê-lo-ia obrigado a abandonar o seu amor? Diziam-no leviano... volúvel... talvez o tivesse sido. Que seria agora? Voltaria casado? Pensaria ainda alguma vez nos tempos idos, quando se correspondiam e se encontravam em casa do tio Gustavo, no Engenho Velho? Ele teria ainda na memória o beijo que lhe furtara, na face, timidamente, no dia dos anos dela? Teria sabido do seu casamento? (...) Dezenove anos tinham decorridos depois de tudo isso! (...) A verdade, porém, é que a memória do Luciano estava, havia muito, apagada no seu coração, e agora uma simples notícia, lacônica e murcha, ressuscitava-lhe na alma a saudade de todo aquele romance passado (ALMEIDA, 1999, p. 42-43).

Percebe-se, nas lembranças da viúva, um quê de saudade, de queixa, de medo e de expectativas. As lembranças da protagonista são descritas como receios, suposições e indagações. A narrativa, porém, muda de foco, isto é, dos sentimentos da viúva para o discurso direto da viúva sobre Luciano. A queixa da viúva, feita diretamente pela personagem, pode ser com intuito de dar voz àquela que foi abandonada sem explicação nenhuma. Em nosso entendimento, poderia ser uma maneira de apresentar o discurso da “queixa” feminina, não somente da viúva, mas de outras mulheres, isto é, quando o pessoal se torna coletivo, um dos princípios do 113

feminino professado. A passagem do pessoal ao coletivo, a nosso ver, poderia ser uma forma de resistência ao “status quo” que colocava o feminino como um destino de mulher.

Outro aspecto que devemos levar em consideração é a posição do narrador quanto à paixão da viúva, uma vez que ele desconfia do sentimento nutrido pela personagem por seu ex-namorado depois de dezenove anos passados: “na verdade, porém, é que a memória do Luciano estava, havia muito, apagada no seu coração”

(ALMEIDA, 1999, p. 43). Esta desconfiança deixa transparecer, com tom realista e crítico, o sentimento manifestado e descrito pelo próprio narrador, levando à compreensão de que a viúva sofre mais com a questão da falta de um companheiro do que propriamente de amor.

O narrador fecha o posicionamento, quanto à questão dessa falta, com o parecer de quem conhece a personalidade, ou melhor, o que se passa no íntimo da personagem por ele analisada ao afirmar que, “agora uma simples notícia, lacônica e murcha, ressuscitava-lhe na alma a saudade de todo aquele romance passado”

(ALMEIDA, 1999, p. 43), que já estava apagado de seu coração.

O contexto, no campo das indagações e dos estados da alma que envolvem a protagonista, nos conduz ao mundo experienciado pela viúva e suas perspectivas em relação à volta de Luciano. São indagações geradas a partir da voz narrativa que conduz a trama almeidiana e que, utilizando da crítica social, entendemos como uma das formas de resistência:

Em que consistira a sua vida depois dessa encantadora leitura? Arranjos de casa... idas à modista...passeios inúteis pela rua do ouvidor....estudos de música para figurar nos saraus das amigas... um ou outro verão em Petrópolis, raro... e os cuidados pela educação e saúde da filha, pelo bem estar do marido e por bem conservar as regalias da sua vida material, de burguesa rica. Dias fáceis, simples, sem comoções que os marcasse. O esposo fora um bom homem, embora genioso e um pouco violento; ela era grata à sua memória e sentia-se feliz por tê-lo estimado com sinceridade, fidelidade. 114

(...) Pensar em Luciano... para quê? Ele deixara-a sem explicação, ela casara-se com outro, estava tudo acabado (ALMEIDA, 1999, p. 43-45).

A forma de resistência da qual falamos está no aspecto que questiona os valores apregoados pelo patriarcado ao mundo fútil da mulher burguesa oitocentista que se encontrava no campo das aparências.

A voz narrativa traz, primeiramente, a indagação da protagonista do romance sobre suas expectativas futuras, contrapondo com o seu passado vivido enquanto casada, quando suas atividades domésticas e sociais condiziam com sua situação de burguesa rica. Mesmo sem grandes comoções que envolviam o espírito e a questão da paixão, a vida era, de certa forma, feliz e, embora estagnada, sua vida não estava à mercê da emoção, mas de acordo com o modelo esperado e almejado pela maioria das mulheres oitocentistas, suas contemporâneas. Uma vez que o perfil da viúva se modifica no decorrer do enredo e, conseqüentemente, está em desacordo com o que se esperava da mulher burguesa do fim do século XIX, podemos entendê-lo como uma forma, encontrada pela autora, para marcar a condição feminina oitocentista.

Curioso notar que, neste romance de Júlia Lopes de Almeida, o narrador é o mediador das ações das personagens, pois ora as referenda, ora menospreza seus momentos românticos caracterizados por divagações sentimentais, funcionando como analista comportamental da viúva:

– O Luciano... Por que a deixara ele? Que história tê-lo-ia obrigado a abandonar o seu amor? Diziam-no leviano... volúvel... talvez o tivesse sido. Que seria agora? [...] Em que consistira a sua vida depois dessa encantadora leitura? [...] O esposo fora um bom homem, embora genioso e um pouco violento; ela era grata à sua memória e sentia-se feliz por tê-lo estimado com sinceridade, fidelidade. (ALMEIDA, 1999, p. 43-45)

A protagonista estava centrada nas divagações, no mundo das sensações e do espírito que a levavam a esquecer momentaneamente sua condição ilibada de 115

mulher viúva, quando o criado Augusto foi lhe entregar um cartão de visita que, ao lê-lo, ficou pensativa e exaltada.

O sangue afluiu-lhe ao rosto, apertou com força nos dedos finos e nervosos o bilhete, indecisa, com o olhar chamejante e o lábio inferior apertado entre os dentes. -- A resposta? Perguntou por fim o criado. -- Manda entrar. -- É extraordinário! Murmurou a viúva Simões; nunca mais pensei nele... hoje penso... ele chega! (...) Luciano! Sim. Era ele quem se anunciava! Que vinha fazer à sua casa, após dezenove anos de ausência e de completa indiferença? Que saudades vinha resolver ou que idílios acordar? (...) Houve um silêncio; o coração bateu-lhe com força. Soaram passos pelo corredor encerado; esses passos foram abafados na alcatifa da saleta contígua, onde a voz do Augusto indicou: -- Tenha a bondade de passar à outra sala... Ela voltou-se com um sorriso desbotado e viu destacar-se, no fundo bronzeado do reposteiro, a figura elegante e correta de Luciano Dias... Ele avançou, e curvando-se diante dela: -- Minha senhora... A viúva Simões estendeu-lhe a mão que a comoção gelava e ele galantemente beijou a mão que se lhe oferecia (ALMEIDA, 1999, p. 45-46).

O encontro com Luciano modifica toda a estrutura comportamental da protagonista, numa cena novamente descrita sob o viés romântico voltado para o jogo da emoção, na qual se nota, primeiramente, uma mudança do estado psicológico da viúva, cena visivelmente descrita pela voz narrativa, que, mais uma vez, a nosso ver, estrategicamente, analisa no meio da cena narrada o comportamento, equivocado, da viúva. Podemos perceber no texto uma resistência latente à conduta romântica e acrítica da protagonista, pois a cena narrada mostra a viúva nervosa, chamejante e entusiasmada com a visita de Luciano, voltada totalmente para o campo da emoção:

-- É extraordinário! Murmurou a viúva Simões; nunca mais pensei nele... hoje penso... e ele chega! Aquela coincidência afigurava-se, ao seu espírito mal educado, como que um aviso sobrenatural (ALMEIDA, 1999, p. 45)

Esta coincidência, é logo contestada pelo narrador, que, propositalmente, lembra ao leitor que a viúva, na sua comoção, “já nem recordava de que a sua 116

memória fora despertada pela notícia da Gazeta!” (ALMEIDA, 1999, p. 45). Vê-se também um discurso que resiste à educação acrítica das mulheres no que se refere ao seu espírito mal educado, fugindo do entusiasmo que está na escrita romântica.

No contexto de análise, é plausível salientar que nesta parte da narrativa é que se dá a grande mudança, sob nosso ponto de vista, do romance, uma vez que é através deste encontro que a protagonista sofre o que podemos chamar de deslocamento de papéis. Nesta parte da narrativa, Luciano, quando a cumprimenta, a chama de “minha senhora”, em respeito ao seu estado de viuvez e também pelo distanciamento afetivo e temporal existente entre ambos:

A princípio houve um certo embaraço na conversa. Esboçavam-se frases que morriam depressa. Ele não justificava a visita; ela encolhia-se com reserva. Luciano era, aparentemente, já quase um estranho! Trocaram-se falas banais. Se tinha corrido calma... se não achava agora o Rio uma cidade feia... Ele respondia num modo cerimonioso e discreto e ambos, escondendo com todo recato os seus pensamentos e lembranças, afetavam indiferença e sossego (ALMEIDA, 1999, p. 47).

No excerto acima, temos, novamente, a interferência do narrador que expõe, metaforicamente, o clímax da cena onde “um gesto, um olhar, um suspiro quebram

às vezes os mais firmes propósitos. Fios há que parecendo de ouro são de seda: se lhes querem prolongar muito a tensão – estalam. Foi o que sucedeu” (ALMEIDA,

1999, p. 47). A voz narrativa vem dar à cena um quê de poesia e antecipar as ações das personagens:

Luciano, depois de um pequeno silêncio, fixando a viúva nos olhos, deu-lhe os pêsames pelo luto. (...) Sem saberem como, de fato, vieram a falar do tempo antigo. A evocação desses dias de mocidade foi como que um pouco de sol que derretesse o gelo entre ambos, chegou mesmo o instante em que ele, enlanguescendo a voz e os olhos murmurou baixo: -- Ernestina! (ALMEIDA, 1999, p. 48).

Em nossa análise, é nesta passagem que se instaura o deslocamento da forma como o narrador vinha se referindo à protagonista: a viúva Simões para 117

Ernestina. A narrativa, até este momento, conduzia a personagem através de seu estado, o de viúva, não a nomeando, o que acontecerá somente após aparecer a identificação das outras personagem, isto é, no início da narrativa, no primeiro parágrafo da primeira página, já aparecem os nomes dos criados da viúva Simões:

Benedita, Augusto, Ana, João e Simplícia; depois, o nome da filha e, em seguida, o de Luciano. O nome que retira a protagonista do coletivo e a individualiza aparecerá somente na página 48 “Ernestina”.

A não nomeação da viúva vem ressaltar uma intenção, ou seja, o estereótipo da emblemática figura da viúva que, historicamente, não possui nome, e a sua pessoa é sempre referida pela nomeação do finado esposo. No caso específico do romance em tela, a viúva é conhecida e nomeada como A viúva Simões, que dá nome à narrativa.

A partir do surgimento, ou melhor, da revelação do nome, Ernestina, temos uma mudança de foco; isto é, a personagem abandona o luto, transgride o modelo de viúva enlutada, e suas ações se diferenciam das situações ditas estáveis, quebrando assim o estereótipo da mulher viúva, respeitada e domesticada pelas regras sociais burguesas do século XIX.

Na composição romanesca, um elemento narrativo recorrente é o fato de o título do romance ter o mesmo nome da protagonista. No caso brasileiro, temos exemplos visíveis nas obras de José de Alencar e de Machado de Assis, em que o nome de suas personagens centrais dá título aos romances: Iracema, Diva, Helena, entre outros. Este recurso re-significa o enredo e dá poder à mulher enquanto protagonista ou antagonista da trama romanesca.

Júlia Lopes de Almeida também se utiliza deste recurso (título e protagonista) na narrativa do romance A viúva Simões. A protagonista se chama Ernestina, que, 118

etimologicamente, significa “lutadora, resoluta, decidida” (QUÉRIOS, 1994, p. 145).

Na narrativa em foco, há um desequilíbrio íntimo, uma tensão, que envolve a personagem central, entre estar viúva e ser Ernestina, pois o ser viúva é uma expressão que envolve o coletivo, ou seja, a pluraliza, é político; o nome Ernestina a individualiza, é singular e indica uma pessoa. A personalidade da protagonista oscila entre seu estado de viuvez e a necessidade de ser ela mesma o sujeito Ernestina.

A oscilação entre o ser viúva e o ser Ernestina se torna visível na mudança comportamental que a protagonista sofre ao deixar-se levar pelo jogo de sedução de

Luciano, no qual Ernestina se envolve, deixando as lembranças passadas de viúva fora do contexto emocional que se faz presente na cena deste primeiro encontro:

Essas coisas iam voando pelo espírito da viúva, enquanto Luciano lhe dizia que viera de Paris por sabê-la livre, do contrário lá estaria ainda... Falando sempre, doce e mansamente ele pegou-lhe na mão e retirou, muito devagar, a aliança de ouro que ela ainda usava no dedo. Ernestina consentiu. O anel rolou para o chão (ALMEIDA, 1999, p. 52).

O gesto de Luciano, ao retirar a aliança da mão da viúva, e o seu consentimento em permitir tal ação logo no primeiro encontro, mostra que ela tinha desejos e motivações próprias que rompiam com sua condição de viúva, de mulher sozinha e já não se contentava com a sua situação de viuvez. O gesto audacioso de

Luciano, por ela aceito, faz com que possamos entender neste consentimento uma transgressão, uma quebra de valores morais e sociais que vai além do gesto. Uma vez que a atitude da protagonista oscila entre a viuvez e o desejo, até infantil, de reviver o amor do passado com o arrebatamento inconseqüente da juventude.

A amplitude do seu consentimento ultrapassou a conseqüência da cena, na qual o anel rola para o chão e lá permanece sem que haja qualquer gesto para resgatá-lo. A cena prossegue sem indícios de estranhamento de nenhuma das 119

personagens sobre o acontecido.

Entendemos haver, neste consentimento, uma atitude de resistência em que a personagem, a viúva, assume a condição de mulher. Ernestina é a mulher oculta, transvestida pelo tratamento genérico da viúva Simões, que começa a ressurgir a partir das indagações da viúva:

O caráter de Ernestina ia-se transformando rapidamente. Depois da visita de Luciano, ela passou uns dias muito sombria e ríspida, indignada consigo mesma contra as idéias que lhe iam nascendo como rebentões novos em tronco maduro, diversas em tudo das antigas, que se despegavam como folhas secas....(...) As coisas agora eram bem diferentes! Ainda há pouco tempo ela não saia de casa e impunha à filha, rigorosamente, todos os preceitos e tristezas do luto (ALMEIDA, 1999, p. 75).

Começa a surgir outra Ernestina nos gestos transgressores, nas ações que irão desconstruir, no decorrer da narrativa, o estereótipo da nova viúva. Ernestina não se sente satisfeita no papel de viúva, fechada em casa; ela anseia por retirar o luto, sair de casa, divertir-se, voltar às ruas e freqüentar o círculo social do qual tinha se retirado após a viuvez. Para isso, faz manobras, tece por trás dos panos, de modo que não levantasse suspeita do seu verdadeiro intento, encontrar Luciano, poder voltar ao convívio social, e transitar no espaço público:

Ernestina, que fora sempre inflexível às solicitações da filha para saídas e divertimentos, mudara completamente de parecer depois da visita de Luciano. Agora, ela não sabia mesmo por que, sentia necessidade de andar, divertir-se, num ambiente diverso do seu. Pouco a pouco, com a tardança que Luciano punha em fazer-lhe a segunda visita, esse desejo aumentou, caracterizando-se pela vontade que tinha de o encontrar na rua, num jardim, numa sala, em qualquer parte, como obra do acaso. Ernestina lembrou à filha toilettes novas, como pretexto para descer à cidade. Era sua primeira tentativa. Sara exultou. (...) Abriu a gaveta das jóias, apalpou os anéis de brilhantes e de pérolas, as pulseiras e o seu alfinete predileto, um botão de rubi e brilhantes. Mas sobre a lã do vestido as jóias iam mal, e o mundo impedia-lhe o prazer de as trazer com o luto... Toda de preto parecia mais magra e menos bonita. Exasperou-se. Achou o vestido medonho, o chapéu detestável! (ALMEIDA, 1999, p. 79- 82).

120

As incertezas, as dúvidas, as indagações, o embate entre o certo e o errado, entre o querer e o poder que perpassam o íntimo da viúva Simões, Bosi define como escrita de resistência, uma vez que:

A escrita resistente (aquela operação que escolherá afinal temas, situações, personagens) decorre de um a priori ético, um sentimento do bem e do mal, uma intuição do verdadeiro e do falso, que já se pôs em tensão com o estilo e a mentalidade dominantes ( 2002, p. 130).

A escrita de resistência se faz presente na obra almeidiana, pois a narrativa trabalha com a tensão que envolve a protagonista e as relações de poder no contexto em que a personagem está inserida.

A tensão não se dá somente entre Ernestina e o seu desejo, mas dá-se com ela mesma, com a busca de realização do desejo de reencontrar Luciano, que desapareceu após a primeira visita:

A viúva voltara enfadada e nervosa; saíra à procura de Luciano e não o tinha encontrado. Onde estaria? Por que o amava assim? Como podia um amor há tanto tempo extinto com tamanha veemência? Arrependia-se de ter saído; não queria pensar nele nem amar ninguém. Aquilo era uma loucura que havia de passar... (...) Ela já não procurava lutar contra seu amor; a resistência tinha-a martirizado inutilmente. Passava os dias a pensar nele, nuns idílios de menina de quinze anos (ALMEIDA, 1999, p 90-93).

Dessa maneira, no surgimento do nome da viúva, Ernestina, na narrativa, percebe-se que começa um jogo textual dissimulativo no qual o nome Ernestina vem instaurar a dualidade existente na protagonista que, anteriormente, era vista de um só ângulo: o da sua condição de viúva. É esta dualidade alicerçada na emoção/razão, não controlada pela protagonista, que gera uma tensão visível nas suas ações entre o querer e o poder, em que o desejo e o querer extrapolam a resistência moralizante impregnada na viúva (razão) que se deixa levar pelas ações de Ernestina (emoção).

121

Uma noite em que a saudade e o desejo de ver Luciano apertaram, foram ao teatro. (...) A Simões não tirava os olhos das portas da entrada, esperando sempre que ele viesse, atraído pelo seu amor. Sentia febre e não prestava atenção ao que se passava em cena. As gargalhadas e os aplausos atormentavam-na. À saída, quando já nada esperava, teve uma surpresa: Luciano conversava num grupo de rapazes, perto do teatro. Ele, destacando-se da roda, foi cumprimentá-la. (...) Luciano acompanhou-as; ia ao lado da viúva censurando-a pela má escolha do teatro e por virem ambas tão sós. (...) Sara andava na frente, cantarolando baixo os couplets que ouvira; eles iam muito juntos, apertando-se as mãos e falando de amor (ALMEIDA, 1999, p. 94-95).

A partir do encontro no teatro, as visitas de Luciano à casa da viúva recomeçam. As cenas familiares servem de cenário para formar o chamado triângulo amoroso, usual nos romances do século XIX, que irá desenvolver e sustentar a trama narrativa do romance de Júlia Lopes de Almeida.

A casa de Santa Teresa é o espaço que servirá de cenário para o desenrolar da trama narrativa que envolverá as personagens: Ernestina, Sara e Luciano. Os encontros no remanso do lar, supostamente despretensiosos, unem em um só espaço, em uma só cena, as personagens, mãe e filha: “encontrou as duas senhoras na saleta do piano; a viúva fazia um bordado de tapeçaria, a filha renovava as flores de um jarrão” (ALMEIDA, 1999, p. 97).

Há nas cenas domésticas corriqueiras um enfrentamento da viúva consigo mesma, em que a razão se perde na emoção. Ela não consegue equilíbrio suficiente entre a viúva (dona de casa e mãe) e Ernestina (a mulher apaixonada). O conflito é visível nas cenas seguintes:

-- Papai era tão meigo! Tão condescendente! Dava-me sempre um beijo em cada face e outro na boca. E à mamãe também. Luciano levantou-se, e Ernestina, muito corada,disse, precipitando as palavras: -- Então Sara! Que termos são esses? Vai espairecer as saudades de teu pai lá com a Gina, anda! É melhor isso do que estar constantemente a relembrar coisas passadas! (...) Ernestina ficou silenciosa, com as mãos trêmulas, a vista pasmada nas cores vistosas do bordado (ALMEIDA, 1999, p. 99).

Ao comentar as cenas da intimidade doméstica, nossa intenção é mostrar a 122

oscilação da protagonista. Não queremos aqui fazer análise ou referências a outras personagens nesta parte do capítulo, uma vez que queremos tratar somente dos aspectos e dos elementos de análise que envolvem a protagonista do romance A

Viúva Simões.

As cenas domésticas são importantes no jogo amoroso, repleto de sedução, no qual Luciano seduz a viúva tentando manipular sua fragilidade emocional. São cenas cruciais nas alterações e na inconsistência de tomada de decisões da protagonista que oscilam sempre entre o desejo e o dever, como era comum com a maioria das mulheres daquele tempo:

-- Que mãos bonitas!... Como eu adoro estas mãozinhas... Ernestina sorriu; ele continuou a falar amorosamente, e pediu-lhe que tirasse o luto. Queria vê-la de branco, como uma noiva, e de cores claras e cantantes. -- É preciso esperar... -- Dê-me esta prova de amor, tire o luto!... -- É cedo... tenho medo... -- Medo de quê? De que os outros reparem?! -- Medo de... -- De quem? -- De minha filha... Conservaram-se por algum tempo afastados, mas as mãos uniram-se outra vez, os olhos procuraram-se e ele beijou-a na fronte, na face, na boca (ALMEIDA, 1999, 101)

O comportamento da protagonista fica entre o que a sociedade exige dela, enquanto viúva e mãe de família, e sua condição de mulher cujos desejos vão além das possibilidades permitidas pelo modelo patriarcal.

A vontade e os desejos de Ernestina vão prevalecendo, desafiando o meio social e familiar, transgredindo normas. Ela deixa-se levar pelas demandas de uma mulher apaixonada que busca, na vaidade, uma forma de conquista, de sentir-se bonita e de satisfazer ao seu amado:

Tornou para seu quarto, estendeu-se num divan, muito cansada, com o corpo cheio de dores, a cabeça fraca, e pôs-se a cismar em futilidades: consertos de jóias, vestidos a fazer, e visitas... Nesse dia aliviou o luto. (ALMEIDA, 1999, p. 105) 123

A retirada do luto por Ernestina, antes do tempo estabelecido, um ano, sem levar em consideração as razões, isto é, se foi ou não para agradar Luciano, é um gesto da protagonista que se choca com os valores morais e sociais do seu tempo:

Sara mostrou-se admirada e ofendida. -- Ainda não há um ano e mamã já usa branco? -- O luto é uma tolice... creio que já dei uma satisfação à sociedade... -- De rigor é um ano. (ALMEIDA, 1999, p. 105)

A viúva, estrategicamente, justifica sua atitude de retirar o luto dizendo a sua filha que não é na roupa que está o sentimento, e sim no coração. E, a partir desse gesto, a retirada do luto, a rotina da protagonista mudou totalmente: ela passou a usar vestidos novos, ir a teatros e a concertos. Todos estes passeios tinham por finalidade colocá-la em contato com seu amado, Luciano.

Ernestina dissimuladamente usava a filha para justificar seu comportamento para a sociedade local: “Sara já tem dezoito anos... está no tempo de gozar, não lhe faltarão desgostos futuros!” (ALMEIDA, 1999, p. 106); e, nos bailes onde ela não podia dançar, ela fazia com que a filha dançasse com Luciano para poder lhe indagar no outro dia o que ele lhe dissera.

A narrativa transcorre do capítulo VI até o XI, com recursos a estratégias com as quais a protagonista dissimula para não se expor, para não entrar em embate frontal com os preceitos sociais do patriarcado.

Deste modo, a protagonista vive o conflito de alcançar seu desejo de realização pessoal, ou seja, emocional, entre ela e Luciano, e chega a afastar até a própria filha de casa para ter maior liberdade com seu pretendente e, ao mesmo tempo, para que esta relação seja aceita pela sociedade. A oscilação se encontra no nível de embate íntimo da personagem central entre a viúva e Ernestina, não 124

aparecendo ainda o grande conflito do romance, que se dará entre ela e filha, ou seja, a paixão pelo mesmo homem.

A mudança de foco narrativo se dará, de certa forma, a partir do capítulo XII, uma vez que a própria narração adquire agilidade. A partir deste capítulo, as outras personagens praticamente não entram em cena, pois a narrativa vem centrada na personagem principal, voltada para as ações, conflitos íntimos e estratégias da protagonista em transitar entre o espaço privado (doméstico) e o público (a rua e os salões).

É notório que a voz narrativa, a partir dessa mudança de foco, também sofre alteração, pois antes ela era o fio condutor da trama sem dar voz representativa aos personagens, nem mesmo à protagonista. A partir desse novo idílio que se apresenta no desenvolvimento do romance, as personagens começam a adquirir voz própria, a se mostrar no contexto da obra.

A preocupação de Ernestina já não é mais com a questão que a envolve e a

Luciano em confronto com a sociedade local, mas com o pressentimento de mudança comportamental de Sara em relação a Luciano, uma vez que, em momentos anteriores, esses dois últimos tinham ressalvas entre si:

(...) Sara zangou-se ao deparar com Luciano encasacado, foi logo direta a ele, dizendo que, se todos fizessem o mesmo, não teria graça nenhuma o tal baile masqué! Depois de um muxoxo, acrescentou: -- Estou bem? -- Está linda! -- Se eu não lhe falasse agora o senhor não me reconheceria... Mamãe acha minha toilette vulgar. Eu estava morta por saber a sua opinião... ainda bem que me acha bonita! Ernestina ouviu tudo imóvel, sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha. Luciano não desviava a vista da cabeça loura da filha, onde flutuava a ponta de um lenço de seda vermelha. Nessa noite ela não lhe pediu como costumava: dance com minha filha, sim? Ao contrário, desejava afastá-lo de Sara. Entretanto, eles dançavam juntos (ALMEIDA, 1999, p.146).

A protagonista sofre, nesta altura da narrativa, um novo deslocamento, 125

porque, anteriormente, o fio condutor da trama enfocava a mudança da referência do estado de viuvez para a pessoa de Ernestina, para a afirmação do sujeito em oposição ao estado condicional de viúva.

A percepção da viúva em relação à mudança de comportamento de Luciano e de Sara traz à narrativa um novo fôlego. Há um desequilíbrio nas partes estruturais da narrativa que se manifestou no desassossego de Ernestina, na revolução dos criados, na mudança comportamental da filha e da mãe, ao sugerir casá-la e/ou retirá-la do espaço do lar, da família como formas de afastá-la de Luciano, causando-lhe desordem no espírito.

É interessante notar que o fato gerador deste novo conflito, o ciúme, aparece de forma inusitada na trama, uma vez que a voz narrativa estava focada na alteração comportamental do perfil da protagonista em relação ao seu já citado estado de viuvez (coletivo) e da sua pessoa, Ernestina (pessoal), ou seja, no conflito que oscila entre o ser e o parecer.

A partir deste fato, surge uma nova mulher, diferente da viúva enlutada e de

Ernestina, que oscilava entre os desejos de mulher e os cuidados maternais com a filha. Aparece a mulher arrebatada pela paixão, que se sentia ameaçada nos seus propósitos de felicidade. A nova mulher se preparava para um embate que envolvia a rivalidade característica do jogo das relações de poder.

Neste jogo, Ernestina usa de subterfúgios e de estratégias para tirar sua rival, a própria filha, do seu caminho. Uma das tentativas é casá-la o mais rápido possível, pois, assim, se livraria dela e poderia declarar à sociedade sua relação com Luciano:

Houve uma pausa; a viúva Simões cortou-a com azedume: -- Devemos casar Sara quanto antes. -- Casá-la... balbuciou Luciano como um eco. -- Sim! O Eugênio Ribas ama-a, e como é seu amigo, lembrei-me de uma coisa... -- É verdade! 126

-- É certo; e o que o senhor tem a fazer é o seguinte: -- Vá ter com o Eugênio, prontifique-se a pedir a mão de minha filha, depois... -- Depois? -- Vá a minha casa e consulte a opinião de Sara; elogie o rapaz, que é na verdade digno. Em seguida poderemos declarar-lhe nossas intenções... (ALMEIDA, 1999, p. 157)

Na tentativa de articular uma maneira para livrar-se da filha, a mãe modifica seu comportamento, muda o foco do embate. O seu problema, então, não está mais entre o ser e o parecer, de que resultava o conflito da personagem no desenvolvimento da narrativa. Agora, irrompe a mulher movida pela paixão, que encara a ameaça visível que está debaixo do seu teto, o que antes era a razão de sua existência, o bem maior de sua vida, a filha Sara.

A estratégia para casar a filha não dá certo. Luciano não procura Eugênio

Ribas, provável pretendente à mão de Sara, e, astutamente, viaja para Minas com o pretexto de cuidar de um velho moribundo. Ele escreve à viúva dando-lhe ciência da sua decisão: “A carta de Luciano tinha-a amargurado. Era evidente que ele fugira à entrevista com Eugênio Ribas” (ALMEIDA, 1999, p.163).

A fuga de Luciano é a confirmação dos receios da viúva. Ela percebe que o interesse de Luciano por Sara é maior do que ela imaginara. Ele “amaria então muito a filha? Era isso que a desesperava. Compreendia finalmente que não soubera inspirar a Luciano mais do que uma paixão carnal” (ALMEIDA, 1999, 163). O sentimento de Luciano pela viúva já não é o mesmo, e fica evidente que ele modificou seu tratamento em relação à Sara.

O confronto entre a mãe e a filha, o clímax do conflito da trama, acontece logo em seguida à cena da leitura da carta de Luciano e desencadeia os fatos que levaram ao desfecho da narrativa. O enfrentamento entre mãe e filha fica no limiar da tensão entre o conhecimento de Ernestina dos sentimentos de Sara por Luciano e a inocência da filha quando decide contar a mãe sobre seu amor: 127

-- Deu-me ontem a entender que o Eugênio Ribas quer casar comigo... -- Sim, quer. -- Pois eu não quero. (...) -- Se ele vier pedir a minha mão, não me consulte; diga-lhe logo que eu amo outro. -- Amas outro? -- Sim. -- Quem é esse outro? Perguntou Ernestina com medo. Com uma voz abafada, segurando-se ao braço da filha. -- Luciano (ALMEIDA, 1999, p. 165-166).

Não queremos aqui analisar a tensão entre as duas personagens, pois o foco de nosso trabalho nesta parte do capítulo se prende essencialmente à protagonista.

Queremos, sim, com a passagem acima, mostrar que a protagonista, mesmo buscando estratégias para conseguir o seu intento, a de conquistar e de ficar com seu amado, não consegue fugir da realidade apresentada, a de que o seu embate é com a filha, Sara.

O foco narrativo se volta então para a tensão entre mãe e filha, que resulta em tragédia digna das narrativas clássicas em que o elemento trágico faz com que as personagens voltem ao estado de equilíbrio em que estavam no início da trama romanesca.

Eram onze horas da noite; no quarto de Sara havia um rumor baixo de vozes e um forte cheiro de mostarda com que sinapizavam a doente. (...) A mãe mudava-lhe os sinapismos, ajoelhada no chão, com as mãos sumidas embaixo dos lençóis, os olhos vermelhos maltratados pelo choro. (...) -- Eu não quero que minha filha morra! Gemeu Ernestina. -- Não morrerá, descanse... -- Não me engana, doutor? -- Estas doenças cerebrais são graves, gravíssimas... mas espero que havemos de triunfar (ALMEIDA, 1999, p. 173-174).

Com a doença da filha, a viúva sofre um novo deslocamento, o de volta ao lar, ao núcleo familiar, caracterizado pela redenção como instrumento catalisador das ações da protagonista. O retorno ao lar a redime das ações de resistência às normas sociais vigentes, ações que foram além do permitido por sua condição de 128

mulher-mãe, pela não-sujeição às convenções sociais e pela não-subordinação ao modelo de uma viúva exemplar.

Dias depois, a viúva Simões acompanhava com a vista, do seu terraço de ladrilhos cor de rosa, um paquete transatlântico, que demandava a barra, levando Luciano para a Europa. O tempo estava esplêndido, de um azul glorioso, o mar desenrolava o seu manto, sem rugas, com uma serenidade de sonho, e as flores, desabrochavam numa alegre ansiedade de luz e de vida, perfumando tudo... Ao lado da mãe, numa cadeira de rodas, Sara, com o seu eterno e doloroso sorriso, fazia e desmanchava a única coisa bela que lhe ficara: a sua trança loura. (ALMEIDA, 1999, p. 209)

A trama narrativa impõe à protagonista um corretivo, obrigando-a a adequar- se a seu mundo social e ao destino de mulher por ela rejeitado no desenrolar do enredo. Aparentemente, todavia, vem redimi-la das transgressões da resistência às normas do patriarcado.

O desfecho da narrativa, portanto, está nos conformes dos romances oitocentistas, nos quais a protagonista deveria retornar ao espaço sócio-político- cultural, em que o feminino era submetido à domesticação pelos preceitos do patriarcado. A narrativa é caracterizada pela circularidade, a voz narrativa apresenta a personagem pelos deslocamentos nos espaços da trama. A protagonista, porém, no final, se vê, novamente, retornando ao espaço doméstico, à reclusão do privado, onde reinará como uma “menagère” exemplar.

A narrativa almeidiana possui uma peculiaridade que lhe dá, a nosso ver, um diferenciador importante nas obras literárias do século XIX. As personagens femininas não são condenadas à morte por suas ações digressivas como na maioria dos romances realistas. Como, por exemplo: Ema Bovary e Luísa, respectivamente, personagens de Flaubert e Eça de Queirós. Contrariando a tradição das heroínas mortas dos romances do século XIX, as personagens femininas almeidianas sobrevivem aos embates e às transgressões, mesmo que tenham um desfecho que 129

reafirma os valores normalizadores do “sermo paterno”.

A forma conciliatória entre o estabelecido pelas convenções do patriarcado e o desfecho proposto pela voz autoral, de conceber o feminino nas representações de gênero, não lhe tira o mérito literário; pelo contrário, inova a temática do “amor impossível” tão cara aos escritores realistas. A narrativa consegue, estrategicamente, questionar os valores, revelar os desejos e os anseios da mulher oitocentista sem entrar em embate. Pelas ações das personagens, a voz narrativa resiste à lógica dominante do século XIX e mostra, simbolicamente, que a mulher também é capaz de negociar com os códigos sociais, com a dignidade que lhe era exigida.

3.2. Erotismo: sensualidade narrativa

O erotismo sempre esteve presente na literatura desde a Antigüidade, transitando no contexto das obras literárias até nossos dias. Sua manifestação se dá de acordo com determinado meio social em cada época. Voltado, predominantemente, para sensualidade, o jogo ficcional se dá obedecendo a fatores extra-textuais que influenciam a arte literária no cerne da sociedade em que a obra está inserida.

Mesmo na chamada Idade Média Européia, período de grande repressão da

Igreja Católica, a literatura já se utilizava do jogo erótico, visível, na literatura portuguesa, nas cantigas de escárnio e de maldizer, usadas como formas de resistência e de transgressão aos valores religiosos e morais daquela época.

Compreendemos o erotismo como transgressão alicerçada no desejo de busca da satisfação. Na Literatura Brasileira, o erotismo seguiu os preceitos 130

literários e morais portugueses e alicerçou-se na moral e nos costumes da época. O texto erótico transitou no cenário literário desde a literatura de informação, com a

Carta de Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, até o romantismo, no século XIX, com textos de raríssimos atrevimentos eróticos, destacando-se, por este caminho, a figura de Gregório de Matos Guerra, conhecido em nossa literatura como

“Boca do Inferno”.

O sensualismo de nossas obras românticas, as grandes precursoras do jogo erótico no contexto de nossos romances, nos enredos adocicados pela formação do triângulo amoroso, é que dá um quê erótico na narrativa voltada para o amor idealizado, segundo o qual o carnal fica na esfera do jogo ficcional que envolve o idílio romanesco entre sensual/erótico até um final feliz.

A narrativa A viúva Simões está impregnada de um erotismo condizente com o realismo burguês, expressão esta entendida por Lúcia Miguel Pereira (1988) como o estilo que engloba os diversos movimentos do período realista: o realismo propriamente dito, o naturalismo e o regionalismo, que têm como unidade a tentativa de “fugir ao idealismo obedecendo em geral mais as idéias de seu tempo do que do seu temperamento”. (PEREIRA, 1988, p. 30)

Esse Realismo, para, ser estudado, implica, nas palavras de Lúcia Castello

Branco (1985), a compreensão de que se deve levar em conta a análise de diferentes discursos eróticos, produtos de uma época em que imperava uma burguesia cada vez mais poderosa, portadora de uma ideologia moralizadora, que buscava confiscar a sexualidade através da família.

A família é o único espaço de sexualidade reconhecido, utilitário e fecundo na intimidade da alcova. Os espaços fora do contexto familiar não eram vistos com bons olhos pela sociedade. Logo “o sexo regulamentado mantinha, no canto escuro 131

do quarto dos pais, equilíbrio e harmonia de toda uma sociedade” (BRANCO, 1985, p. 19).

Seria de se esperar, nesta época, em que o trabalho e a mão-de-obra eram cada vez mais exigidos, que a moral burguesa e os mecanismos de poder tentassem sufocar o erotismo, “regulamentar a sexualidade, varrer da literatura os corpos nus, vestindo-os com palavras de bom tom e figurinos de bom gosto”

(BRANCO, 1985, p. 19). Uma vez que, segundo Branco, as pesquisas sobre a sexualidade em uma perspectiva política já demonstraram que trabalho e erotismo se opõem, que “renúncia e dilatação da satisfação constituem pré-requisitos do progresso”. (MARCUSE, 1981, p. 27)

Percebe-se, entretanto, que o erotismo, mesmo no realismo burguês brasileiro, não está ausente. O erotismo, como conjunto de expressões culturais e artísticas humanas referentes ao sexo, pode aparecer disfarçado, mascarado, sutilmente velado e está presente nas obras realistas.

Observa-se, nas obras realistas, a instauração do erotismo, palavra que etimologicamente vem do latim “eroticus” e este, do grego “erotikus”, que se referia ao amor sensual e à poesia de amor, mesmo nos tempos em que o decoro controlava os discursos, já que o erotismo “existe na base de qualquer trabalho de arte, como existe na base da vida”. (BRANCO, 1985, p. 19)

A obra A Viúva Simões (1897) se situa na perspectiva que engloba o realismo burguês, no qual a escritora Júlia Lopes de Almeida, com um texto de densidade narrativa complexa, já que mostra comportamentos e padrões impostos à condição feminina na época, consegue transpor as amarras do modelo patriarcal estabelecido na literatura e retratar os valores e as angústias a que as mulheres estavam condicionadas na sociedade do século XIX. 132

O jogo erótico que se dá na narrativa em foco é guiado por um narrador onisciente que pode, a priori, dominar todo o saber, conhecer, apresentar e opinar, ou seja, dizer tudo sobre as personagens, “conduzindo a trama narrativa como Deus no tocante a sua criação”. (REUTER, 2002, p.76)

No texto almeidiano em estudo, o narrador sensualiza a protagonista através das impressões naturalistas e, sob esta ótica descritiva, o leitor conhecerá a viúva

Simões:

O seu temperamento, aparentemente frio, dava-lhe por vezes, momentaneamente, um ar de rija autoridade, muito em contradição com seu tipo moreno, de brasileira. (...) A viúva já não tinha a frescura da primeira mocidade, mas era ainda uma mulher bonita. Era alta e esbelta e tinha um par de olhos pretos belíssimos e uma pele morena delicadamente penujenta e macia. A sua carne já não tinha a rijeza do pomo verde, que resiste à dentada, e caía sobre ela toda um ar de moleza, de doce cansaço, que lhe quebrantava a voz e o gesto. Vinha dela um encanto esquisito e delicado, que ninguém afirmaria ser da pureza das suas linhas ou da maneira que tinha de andar, de sorrir ou de dizer as coisas (ALMEIDA, 1999, p. 37).

O narrador trabalha com o elemento que envolve miscigenação, uma vez que insere na descrição acima a oposição entre autoridade e cor, caracterizando o meio social da época em que cor morena e o perfil da mulher brasileira “eram” mais relacionados à sua sensualidade do que à sua classe social.

Vemos que a descrição da viúva é composta por dualidades estruturais, um discurso que joga com palavras que caracterizam um texto sensorial: pele morena, penujenta, macia, carne, rijeza, dentada. Esse estilo dá à narrativa um quê erótico/sensual por meio do qual o leitor parece ver e tocar a personagem através do narrador.

A posição do narrador onisciente revela-se também nos comentários que fez sobre o primeiro encontro de Luciano e a viúva. Suas impressões em relação a ela são intermediadas pela voz narrativa que assim procede: 133

(...) ele [Luciano] analisava a viúva. Achava-a com certeza muito menos fresca, mas talvez mais encantadora. Agora tinha a graça consciente, um pouco amaneirada, em todo caso cativante. As faces tinham decaído um pouco, mas o corpo era agora airoso e ondeante. Se as olheiras se haviam acentuado e os cabelos negros estriado de um ou outro fio branco, ao menos o sorriso tornara-se mais fino, mais inteligente e perspicaz, e para ele, homem de sociedade, no saber sorrir estava toda a arte e ciência da mulher de salão (ALMEIDA, 1999, p. 47).

Nesse fragmento, o narrador fornece informações a respeito do próprio

Luciano, num discurso permeado pela oposição, caracterizando-se pelo desejo carnal, pelo tom erótico/sensual voltado para o perfil físico. Cabe lembrar que o texto fornece informações a respeito da educação da mulher burguesa, voltada para a questão das aparências, reforçada na referência à mulher de salão.

A mudança de foco do narrador para a personagem Luciano não tira a função do narrador em terceira pessoa, a de onisciência. Dessa maneira, o narrador de A

Viúva Simões tece comentários sobre os acontecimentos e as personagens. Ele tem um olhar do contexto da obra e domínio de todas as personagens, vendo-as por dentro, seus pensamentos, receios e desejos, e, por fora, vendo-as em seu aspecto físico e comportamental, apresentando, muitas vezes, um discurso voltado para a sensualidade da protagonista.

Sozinha naquele quarto, em que sua imagem se duplicava, Ernestina estudava os seus movimentos, procurando ao mesmo tempo adivinhar qual seria, entre tantos, o perfume preferido de Luciano. (...) Quem pudesse adivinhar! Ernestina abria os diversos frascos, consecutivamente, chegava- os bem perto, às narinas palpitantes; mas no fundo de todos encontrava o mesmo mistério, a mesma vertigem, a mesma dúvida! Isso exacerbava a voluptuosidade da moça, irritando-a ao mesmo tempo. Desmanchava com as mãos nervosas, na água simples, as nuvens opalinas das essências e quedava-se depois observando os seus ombros delicados e nus, os seus formosos braços e a maciez do seu colo airoso. Vestia-se devagar, demoradamente. A lã preta do luto repugnou-lhe; aquele traje áspero e triste não era o que seu corpo desejava. A pele bem tratada queria seda, um contacto macio que caísse sobre ela como uma carícia... (ALMEIDA, 1999, p. 81)

Como demonstra o fragmento acima, no romance A Viúva Simões, encontram-se aspectos narrativos cuja significação extrapola o texto, tanto na 134

imagem que se duplicava, quanto no discurso naturalista no qual a cena narrada apresenta-se carregada de uma sensualidade aflorada e materializada em

Ernestina.

O espaço doméstico é um dos eixos desta narrativa, pois há nele uma distinção afetiva em relação ao espaço público. Ele é o espaço conhecido da mulher, simbolizando o confinamento do feminino; entretanto, no caso da viúva, é também o ambiente onde ela materializa seus desejos, seus anseios e seus segredos mais

íntimos. É no ambiente da sala de visitas da casa que os amantes se encontram:

Conservaram-se por algum tempo afastados, mas as mãos uniram-se outra vez, os olhos procuraram-se e ele beijou-a na fronte, na face, na boca. Ernestina, meio oculta pela cortina de renda preta, deixava-se abraçar, amolecida, tonta, sem forças para resistir; o busto vergado para Luciano, os braços pendentes, o corpo trêmulo. Nas paredes cinzentas da sala, os arabescos de ouro cintilavam, como se os milhares de gafanhotos que estampavam no papel as suas asas agudas e suas pernas finíssimas, se embaralhassem numa dança endiabrada! O gás a toda força chamejava no cristal do espelho, amornando a atmosfera e fazendo uma bulha de sopro surdo, como riso abafado! Toda a energia da viúva tinha fugido. A luz? Que lhe importava a luz? Ela não via, não pensava, resvalava sem pena nem cuidado, sentindo-se feliz, mais nada! (ALMEIDA, 1999, p. 102-103)

A cena, repleta de imagens sensuais, descreve um jogo de espelhos que mimetiza o cenário da sala. A descrição do ambiente vem acompanhada pelas ações das personagens; os objetos ganham características significativas que fogem

à sua utilidade, servindo para explicitar o que se passa no interior da protagonista.

Os objetos, como cortina de renda preta, arabescos de ouro, o gás, funcionam como elementos de erotização da cena descrita, e deixam de ser apenas objetos inanimados para ganhar significados que extrapolam o desenvolvimento amoroso da cena. Há uma sensualidade contida, ocultada nestes objetos que adquirem características humanas e reforçam o aspecto sensual da viúva, inferindo possibilidades interpretativas que representam o feminino dentro de um outro 135

paradigma. Podemos dizer que estas alusões são marcas de resistência na escritura de Júlia Lopes que culminam com a sensação de felicidade da protagonista. A viúva transgride a dicotomia entre o bem e o mal e se apresenta como uma mulher inteira, isto é, uma mulher cheia de demandas que rompem com a expectativa oitocentista do “eterno feminino”.

O espaço do lar é o ambiente em que se passam as cenas descritas. Elas envolvem sensações de foro íntimo de Ernestina e de Luciano e recorrem a um discurso dissimulado nem sempre percebido a leitores desatentos. A linguagem romanesca de A Viúva Simões traz consigo um pudor literário em que “os preceitos do decoro e do bom tom trabalham a favor da ordem e da preservação de uma sociedade moralmente digna” (BRANCO, 1985, p. 30), características marcantes na escrita realista.

A personagem da viúva é apresentada como “tocada pela afecção nervosa”.

Ela é descrita por um temperamento frio em contraposição ao seu tipo moreno de brasileira (mestiça), valorizando mais o corpo sensual de mulher erotizada do que a condição de viúva enlutada.

A voz do narrador, de fora do espaço doméstico/familiar de Ernestina, sofre alterações, principalmente, nas informações que dá ao leitor acerca das possíveis intenções de Luciano para com a viúva. Entretanto, fora do espaço privado de

Ernestina, assim se coloca:

Como dissera ao Rosas, furtava-se ao casamento, procurando no amor da viúva uma dessas páginas de paixão, freqüentes na vida dos homens. (...) Não era positivamente como marido que ele queria beijar a boca pequena e rubra da viúva Simões! O corpo esbelto e ondeante da moça, o negro azulado do seu cabelo farto, a doçura dos seus olhos rasgados e úmidos, o moreno quente de sua pele rosada, acendiam-lhe no coração, não amor puro e casto que o homem deve dedicar à companheira eterna, mas o fogo sensual de uma paixão violenta e transitória. (ALMEIDA, 1999, p. 117-118)

136

A forma como o narrador relata as impressões de Luciano acerca da viúva é bem diferenciada do posicionamento do próprio narrador quando descreve a protagonista, conforme fragmento acima. O discurso narrativo é mais direcionado para a questão sensual, para o desejo carnal, para a realização dos prazeres do corpo, sem a evocação do amor romântico. O narrador constrói um discurso voltado para valores masculinizantes em que a mulher representa o objeto de desejo, de prazer sexual, não levando em conta outros valores que também eram apreciados, na época, como: o de mulher honesta, honrada, de postura social ilibada e reconhecida pela sociedade.

A forma narrativa do parecer de Luciano em relação às personagens da mãe e filha é notoriamente modificada na composição discursiva do narrador ao descrever o olhar da personagem masculina, geradora do conflito que envolve a viúva e sua filha:

Luciano contemplava estático a órfã do seu velho rival. Ela tinha os braços nus, brancos e roliços, estendidos para frente, as mãos sobre as pedras esverdeadas do muro, os olhos entrecerrados acompanhando as ondas, que iam e vinham brandamente, queixosas. Luciano contemplava-a assim, achando-a bizarra naquele traje quente que envolvia, como uma injúria, o seu corpo delicado e virginal, sentindo-a ao mesmo tempo mais cândida, mais ideal, mais doce do que nunca! Aquela cisma e súbita melancolia da moça tornavam-na como uma imagem de santa milagrosa, que ele tivesse visto surgir por encanto daquelas flores ou daquele mar. Ora desejava vê-la sempre assim, imóvel e serena, ora sentia ímpetos de a beijar, de a morder, de lhe dizer que a amava! (ALMEIDA, 1999, p148-149)

A cena acima apresenta uma descrição de Sara que prima pela delicadeza e sutilidade trabalhadas pelo conjunto sensorial, na qual está inserido na narrativa, numa descrição onde o gesto, o olhar e as palavras estão empenhados em mostrar os aspectos voltados para os sentidos que envolvem a personagem descrita na cena. O narrador revela um Luciano com impressões acerca de Sara bem diferentes 137

das que ele tem pela mãe dela: há um misto de santidade e de desejo reforçado pelos elementos característicos da narrativa naturalista.

A narrativa sofre uma alteração na qual a sensualidade vem suavizada pelas comparações de cunho religioso que não só modificam a postura de Luciano como também o conduz por outras veredas do espírito, de certa forma por ele desconhecidas, um amor angelical e inesperado: “o coração abria-se lhe a um sentimento novo de simpatia e de piedade”. (ALMEIDA, 1999, p. 150)

A partir do capítulo XII, Luciano modifica seu comportamento e aparece com mais destaque no contexto da narrativa, pois esta parte do enredo dá os primeiros passos para o desencadeamento do conflito, ou seja, o jogo de Luciano é o causador da tragédia que se abaterá sobre as personagens: mãe e filha.

Luciano se descobre enamorado da filha da viúva, Sara, pois “ele também a preferia para esposa, quereria ser ele a conduzi-la ao altar, a chamá-la -- minha!”

(ALMEIDA, 1999, p. 160). O que Luciano sentia pela viúva mudou: “o vulto de

Ernestina ia-se esfumando no seu espírito, e numa irradiação de luz ele via Sara, dizendo-lhe na sua grande franqueza: -- Amo-a!” (ALMEIDA, 1999, p.160)

A narrativa mostra que a paixão de Luciano por Sara foi uma revelação da qual ele tinha consciência, mas não controle. Ele não tinha experimentado um amor que fosse além de seu interesse quanto à posição social e às paixões mundanas que envolvem o jogo da conquista e dos prazeres:

Em toda a sua vida era a primeira vez que essa palavra simples [amor] assumia no seu pensamento proporções tão belas! E Sara haveria de sagrar essas três sílabas divinas com as suas qualidades perfeitas, seria a esposa amorável e honesta a quem a mentira repugnasse e o sacrifício aprouvesse! (ALMEIDA, 1999, p. 161)

No trecho acima, o discurso perde a erotização que havia na fala do narrador.

Há um retorno para o ideal de mulher direita estabelecido pela sociedade patriarcal, 138

no qual o modelo de mulher honesta estava sujeita à subordinação do “poder do macho”, restrita ao espaço do lar e à vontade do marido.

Há também um parecer de oposição sentimental que se passa no espírito de

Luciano, expressa no texto abaixo, pelo jogo amoroso que envolve o idílio sentimental entre a viúva e sua filha:

(...) Entretanto, percebia bem: se Ernestina era para ele a mulher de fogo que lhe queimava a carne, a filha era mulher de luz benéfica que lhe iluminava o futuro, e ele amava a ambas, a uma com os sentidos, a outra com o coração (ALMEIDA, 1999, p. 161).

O clímax do dilema vem à tona quando o narrador esclarece que esse parecer de Luciano se justifica num jogo dicotômico, ou seja, se, por um lado, a viúva era a mulher de fogo que simbolizava o desejo carnal, por outro, Sara representava o anjo, a mulher sensual e romântica:

Desde os tempos antigos, da sua primeira paixão, que ele fugira por medo!... A beleza de Ernestina era então de uma singularidade atormentadora! Vira sempre nela a tentação da carne, chamando-a por isso, de: -- virgem inconscientemente pecaminosa! Nunca lhe ocorrera dar-lhe uma flor. Se pensava em presenteá-la, vinham-lhe á idéia pedrarias caras, engastadas em metais rijos e vistosos. A não ser como amante, lasciva e ardente, ele só podia conceber Ernestina casar-se com um príncipe poderoso ou um desses homens fantásticos, das lendas, que a vestisse de roupas suntuosíssimas e a fizesse servir em baixela de ouro. Era a mulher destinada, pela sua formosura emocionadora, ao luxo, à grandeza e ao amor. Não que seu rosto fosse de linhas puras, nem que suas palavras denunciassem a volúpia; aquele ardor, aquele domínio, vinham da sua pele, do seu olhar, do seu porte e do seu sorriso. (ALMEIDA, 1999, p. 180)

Nessa passagem, é importante destacar que os elementos da prosa realista/naturalista, em oposição à prosa romântica, constituem uma imagem feminina poderosa, marcada por seus elementos raciais e por uma sedução quase ou até natural/espontânea. Ernestina não é caracterizada nem pela leviandade lasciva da prostituta, nem pela idealização da beleza, da bondade e do espírito magnâmino da mulher idealizada pelo patriarcado. Ela se constitui como uma 139

pessoa, ela tem sua humanidade preservada através dos conflitos que vivencia e da resolução destes em atendimento às demandas da sua condição de mulher burguesa, de mãe e, sobretudo, de um ser responsável pelos que ama.

Ainda em relação ao excerto acima, notamos que a personagem masculina recorre à sua memória discursiva e mostra que seus sentimentos em relação à viúva não sofreram modificações, mesmo com o passar dos anos: Luciano ainda a vê com grande erotização, mulher de fogo, voluptuosa, lasciva “uma beleza de espantar maridos”.

A partir daí, o foco narrativo passa para outra representação das personagens, pois, principalmente no que tange a Luciano, há aparentemente uma modificação quanto à sua postura em relação às mulheres até aquele momento. A personagem que anteriormente se apresentara mais preocupada e decidida em atingir seus objetivos, caprichos e desejos, agora mostra uma atitude distinta em relação ao seu envolvimento com a viúva e sua filha: ”pobre mulher! Pensava

Luciano com infinita tristeza. E sentia uma dor incompreensível, que seria talvez o remorso, imaginando que no fundo a causa de tudo aquilo... era ele!” (ALMEIDA,

1999, p. 182)

A provável redenção de Luciano, sugerida pelo narrador, se dá através das doenças que recaem sobre as duas personagens, mãe e filha:

Luciano entrava [com] medo no quarto da viúva, esperando sempre uma recriminação, temendo também exacerbar-lhe o mal. A sua consciência não o deixava à vontade entre aquelas duas mulheres enfermas. Entretanto, não se afastava dali, daquela casa. (ALMEIDA, 1999, p. 194)

Poderíamos, numa percepção ingênua, ser levados a pensar que a culpa e o remorso sugeridos no enredo fazem com que Luciano fique transitando no espaço doméstico da viúva, entre um quarto e outro, onde as personagens se encontram 140

acamadas. Porém a nossa análise desta suposta redenção de Luciano apresenta-se mais como um traço de resistência na escrita deste romance, pois entendemos que a volta de Luciano para a Europa ratifica seu velho comportamento, ou seja, a fuga.

Ernestina fica sozinha para cuidar de si e de Sara.

O diálogo entre D. Candinha, senhora que ajudava a cuidar das doentes, e

Luciano retrata, de certa forma, a opinião feminina em relação à postura dos homens e seus valores no plano da continuidade da vida, quando algo trágico se abate sobre seus destinos.

Concluindo uma série de reflexões quaisquer, Luciano murmurou a meia-voz, levantou-se: -- Decididamente hei de morrer solteiro... -- Está falando sozinho? Perguntou-lhe D. Candinha, que havia chegado sem ser pressentida. -- Falei alto? Não admira, estou meio maluco... respondeu ele sorrindo. -- É preciso ter cuidado... as paredes têm ouvidos... e... -- Está tudo acabado... -- Para Ernestina e para Sara, com certeza. -- E para mim. -- Isso... duvido! Conheço os homens, as impressões neles não duram como em nós... (ALMEIDA, 1999, p. 206)

O fragmento apresentado acima tem uma peculiaridade, uma vez que o diálogo entre as personagens se dá sem a mediação do narrador. A nosso ver, o discurso direto que aí se estabelece é proposital, pois, com esse recurso, o autor se isenta de qualquer responsabilidade ao sugerir, na voz da personagem D. Candinha, que os homens são levianos. Entendemos isso como uma estratégia, na fala da personagem feminina, como uma forma de questionar os valores vigentes.

A questão está, portanto, acabada para as personagens femininas que, em uma narrativa circular, retornam ao espaço doméstico, humilhadas e punidas por terem ousado transgredir o “status quo”: uma é punida pelo seu desejo e a filha, vitima de sua própria inocência, de sua primeira paixão; a primeira por ter desafiado 141

as normas sociais vigentes; a segunda por não ter conseguido suportar a quebra das normas pré-estabelecidas.

Ao homem, no caso Luciano, as impressões são transitórias e nada como o tempo para sará-las. Isso acontece logo em seguida quando Ernestina acompanhava do terraço de sua casa o “paquete transatlântico, que demandava a barra, levando Luciano para a Europa”. (ALMEIDA, 1999, 209)

Finalizando, percebe-se que o narrador funciona no texto da obra, A Viúva

Simões, como uma espécie de demiurgo. Ele sabe mais do que o leitor, sabe mais do que as personagens e menos do que D. Candinha: “– Isso... duvido! Conheço os homens, as impressões neles não duram como em nós ...” (ALMEIDA, 1999, p. 206).

É este narrador que opera uma distinção entre o enunciado e a enunciação, entre significante e significado no contexto da obra ficcional; é ele que repassa à obra a verossimilhança, os aspectos de análise e de compreensão da obra literária.

No caso de A viúva Simões, é, principalmente, pela voz do narrador que percebemos a sensualidade da viúva. É também através dessa voz narrativa que a autora consegue transgredir alguns preceitos pejorativos que acompanharam a escritura feminina fora do contexto do trivial, do doméstico. Júlia Lopes de Almeida consegue construir um narrador que conduz a trama da viúva de forma direta, sem subterfúgios, como seria esperado de um romance realista/naturalista.

As personagens são conduzidas, guiadas pelo narrador para representar a condição feminina no final do século XIX. Narrador criado pela pena de uma escritora que, através da voz narrativa, insere um diferencial de escrita na literatura brasileira oitocentista. No contexto da literatura de autoria feminina, não havia surgido, até então, uma narrativa com a trama inteiramente voltada para a composição da personagem feminina. A Viúva Simões, romance escrito por uma 142

mulher, com a composição de personagens femininas densas, é dirigido para um público não somente feminino, mas para um público que sabia o valor do bem escrever: Júlia Lopes colocava este romance da literatura realista/naturalista ao lado das obras do renomado Aluísio de Avezedo.

3.3. Mulher e maternidade

A obra Ao sul do corpo (1995) de Mary Del Priore revela a condição feminina, a maternidade e as mentalidades no Brasil Colônia, desde o início da colonização até o período que precedeu a independência do país (1822). A historiadora apresenta, de maneira apaixonada e apaixonante, uma História da mulher no Brasil e mostra o desenvolvimento do processo que veio normalizar a domesticação que se instaurou como natural sobre a mulher brasileira.

Na pesquisa de Del Priori, as mulheres surgem sem nenhuma neutralidade, exibindo as marcas da diferença sexual:

Para capturá-las, integradas ao mundo que as envolvia, foi preciso estar atenta às suas práticas, aos discursos que se tinha sobre o gênero, às imagens que havia sobre a feminilidade, tentando em tudo perceber a relação entre os sexos, fazendo desta relação o interlocutor mais eloqüente e o objeto histórico a ser investigado. (PRIORI, 1995, p. 15-16)

A condição feminina se constrói historicamente em um contexto que engloba a cultura branca, índia e negra e pela relação de exploração, de servidão de uma etnia em relação à outra, aspectos estes que se refletirão na relação entre os sexos.

O trabalho de Del Priori, através de documentação fidedigna, revela as imagens associadas à dominação e à opressão da mulher na sociedade machista.

Nelas, a mulher é vítima constante da dor, do sofrimento, da solidão, da humilhação e da exploração física, emocional e sexual. 143

No entanto, através de discretos poderes, as mulheres reagiam e resistiam a essas situações. Tais poderes eram “assegurados à mulher através de sua emancipação biológica, tanto quanto de sua emancipação à dominação masculina”

(PRIORI, 1995, p. 16). A historiadora afirma que no avesso do papel que lhes era delegado pelas instituições de poder masculino, a Igreja e o Estado, as mulheres

“costuravam as características do seu gênero, amarrando práticas culturais e representações simbólicas em torno da maternidade, do parto, do corpo feminino e do cuidado com os filhos”. (PRIORI, 1995, p. 16)

A autora nos revela o que já vem sendo visto e analisado nos estudos feministas nas últimas décadas: o lugar da mulher. Trata-se de um discurso em que as alocuções de moralistas e até de médicos definiam que os lugares possíveis para as mulheres eram dentro de casa, da maternidade e da família. As práticas femininas revelavam, por sua vez, que havia solo, neste lugar designado pelo “poder do macho”, para iniciar a semeadura dos ideais de mudança da condição feminina.

O livro Ao sul do corpo (1995) aponta que os aspectos políticos, econômicos e ideológicos acerca da reprodução humana na Idade Moderna se alicerçavam sobre uma concepção social da maternidade, indicando que, se, por um lado, a situação peculiar da colônia permitiu o discurso da maternidade a serviço do povoamento, por outro, as populações femininas “aproveitaram para viver a maternidade como uma revanche contra a sociedade androcêntrica e desigual nas relações entre os sexos”. (PRIORI, 1995, p. 17)

Conseqüentemente, se a gravidez, o parto e os cuidados com os filhos singularizavam a mulher, incitando-a a recolher-se à privacidade da casa, faziam-na, por conseqüência, sócia do processo de ordenamento da sociedade colonial. Por trás da imagem de mãe ideal, as mulheres uniam-se aos seus filhos para resistir à 144

solidão, à dor e, tantas vezes, ao abandono. Além do respaldo afetivo e material, a prole permitia à mulher exercer, dentro do lar, um poder e uma autoridade dos quais ela raramente dispunha fora dele. A mulher era identificada, reconhecida e valorizada socialmente por uma prática doméstica, enquanto era marginalizada por qualquer atividade na esfera pública.

De acordo com Del Priori (1995), pensar a história da maternidade no Brasil colônia significa examinar a condição feminina à luz de relações familiares e conjugais, dos sentimentos ou da falta deles, de leis e normas, mentalidades e usos específicos da condição social e histórica do Brasil colonial. Mas, para ela, pensar a história das mães significa:

Sobretudo, perceber que o fenômeno biológico da maternidade, sua função Social e psicoafetiva, vão transformar-se, ao longo deste período, num projeto de Estado moderno e principalmente da Igreja para disciplinar as mulheres da colônia. (...) “ser mãe” será gradualmente uma meta de contornos muito bem definidos. (PRIORI, 1995, p. 45)

A idéia da maternidade, segundo Maria Lúcia da Rocha-Coutinho (1994), como parte da “natureza feminina” e ao devotamento das mães aos filhos como algo

“natural”, fez com que “teóricos do século XVIII e, principalmente, do século XIX, em grande parte desenvolvendo idéias de Rousseau, não tardem a acrescentar uma nova função: a educação”. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 36)

Neste aspecto, a mãe passa a ser considerada a mentora por excelência, o primeiro educador de seus filhos. O destino da família e da sociedade vai depender da maneira como ela educará seus filhos.

É pela função de educadora que a mãe irá adquirir um status diferenciador:

“governando a criança, a mãe passa a governar o mundo. Sua influência estende- se, assim, da família à sociedade, e todos repetem que os homens são, na verdade, o que as mulheres fazem deles”. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 37) 145

Os vários textos de estudos feministas deixam claro que este ideal de maternidade, desenvolvido no século XVIII e amplamente reforçado pelo positivismo do século XIX, abrangia não só o conceito exclusivo de cultura familiar feminina, mas também um princípio pedagógico, que não se ateve apenas à mulher enquanto inserida na família. Este ideal de maternidade estendeu-se também à mulher nas profissões educacionais (professoras) e assistenciais (enfermeiras) e outras voltadas para sua experiência doméstica, por serem consideradas profissões femininas e por estarem ligadas, em sua essência, ao papel de mãe e, conseqüentemente, responsável pelo bem estar dos seres humanos; fato que, ainda hoje, prevalece nos ideais de muitas mulheres que se dedicam profissionalmente a estas atividades.

Alicerçados no livro de Del Priori (1995), podemos entender que a maternidade extrapola dados biológicos, absorvendo conteúdos sociológicos, antropológicos, e o contexto histórico do período em estudo. A maternidade é o resgate de práticas exclusivamente femininas.

A maternidade permite preservar um conjunto de saberes informais inerentes ao corpo e às funções femininas. Esse conjunto de saberes informais, segundo Del

Priori (1995), resistiu bravamente à vampirização do saber oficial masculino sobre a reprodução e o parto, acentuando a diferenciação sexual e incentivando tanto a emancipação biológica quanto aquela ideológica da mulher, ao longo da história. E, ainda, “tanto no passado quanto no presente, a maternidade delimita um território onde mães e filhos se relacionam empiricamente, adaptando-se aos valores da sociedade em que estão inscritos”. (PRIORI, 1995, p. 19)

O papel de educadora que amplia a função biológica da maternidade e modifica seu status de mãe e esposa, será divulgado por várias escritoras na transição do século XIX para o XX. Entre elas, Júlia Lopes de Almeida que, em 146

muitas obras suas, reforça os valores apregoados pela burguesia atribuídos aos papéis de mãe e esposa, revigorando o estereótipo feminino da cultura patriarcal.

Se, em algumas de suas obras, Júlia Lopes de Almeida advoga em prol dos valores cultuados pelo patriarcado, utilizando-se do texto didático e doutrinal, em outras, a autora adota uma postura contestadora e indagadora por meio de um discurso socialmente aceito, e expressa as dificuldades da condição feminina através da história ocidental:

A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito. Precisamos compreender antes de tudo e afirmar aos outros, atados por preconceitos e que julgam toda a liberdade de ação prejudicial à mulher na família, principalmente dela, que necessitamos de desenvolvimento intelectual e do apoio seguro de uma educação bem feita. Os povos mais fortes mais práticos, mais ativos, e mais felizes são aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento; em que são guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão que as ampare num dia de luta, e uma boa dose de noções e conhecimentos sólidos que lhe aperfeiçoem as qualidades morais. Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus deveres, marcará, funda, indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o sentimento da ordem, do estudo e do trabalho, de que tanto carecemos. (ALMEIDA, 1897, p. 03)

Analisando os romances da autora de A viúva Simões, nota-se que, na maioria deles, ela põe a mulher como personagem central. Em muito de sua obra, aparece sempre a questão da maternidade, em maior ou menor grau de importância na trama narrativa.

Neste contexto é que iremos trabalhar a questão que engloba mulher e maternidade na narrativa da obra A viúva Simões (1999), numa perspectiva em que a maternidade e sua representação abrem possibilidades para a análise do enredo, em que o ser mulher entra em conflito com o seu ser mãe.

A narrativa em terceira pessoa é que nos fornecerá a primeira impressão da forma modelar de ser mãe imposta ao perfil da protagonista, a viúva, em relação a sua filha: 147

Ela tinha uma filha, Sara, que era o seu conforto e a sua agonia. Por causa dela renunciava aos divertimentos do mundo, exagerando as suas atribuições caseiras. Tinha medo de apaixonar-se um dia, fugia do perigo de amar, de trazer para casa, para o gozo do seu corpo e da sua alma, um padrasto para a filha, um estranho com quem tivesse de repartir os seus cuidados e suas riquezas (ALMEIDA, 1999, p. 37).

A postura de mãe ilibada e exemplar aparece nas dicotomias apresentadas na primeira frase na qual a filha representa conforto e agonia. Nela está a realização presente e futura de representatividade de comprometimento familiar, sua companheira inseparável, ligadas pelo laço de feminilidade, a maternidade. A descrição se contrapõe à agonia de não poder propiciar aquilo que é tido como compromisso inato a toda mãe: o bem e a felicidade de seus filhos.

Pensando no bem-estar da filha, no seu instinto maternal, também oriundo de sua posição de viúva exemplar, é que a protagonista foge, não dos prazeres do

“mundo”, mas do perigo de apaixonar-se e ter de dividir seus cuidados entre a filha e o futuro padrasto.

Outro ponto visível de seu papel de mãe é também a questão de administração, pois a ela cabia proteger os bens da família e resguardar a posição social conquistada pelo finado.

A preocupação da mãe está em não comprometer a felicidade da filha, e não propriamente no seu desejo de mulher, em seu dilema de felicidade, estando aparentemente resignada com a sua viuvez:: “A verdade era que a viúva, além do medo de comprometer a felicidade da filha, sentia preguiça de cortar de uma vez aquele sistema recolhido de vida, iniciado pelo marido, um pouco ciumento”.

(ALMEIDA, 1999, 38)

A transformação comportamental da postura de viúva pacata e de mãe dedicada, na mulher impregnada de desejos mais recônditos, até aquele momento adormecido, acontece após a leitura do jornal que traz a notícia da chegada do ex- 148

namorado da viúva.

E ficou ainda por alguns minutos a pensar nas coisas que lera ou julgara ler nesses formosos olhos lânguidos e pretos. Em que consistiria a sua vida depois dessa encantadora leitura? Arranjos de casa... idas à modista... passeios inúteis pela rua do Ouvidor ... estudos de música para figurar nos saraus das amigas... um ou outro verão em Petrópolis, raro... e os cuidados pela educação e saúde da filha, pelo bem estar do marido e por bem conservar as regalias da sua vida material, de burguesa rica. (...) A volta de Luciano Dias reaviva-lhe a imaginação. (ALMEIDA, 1999, p.43-44)

A viúva começa a questionar sua vida até aquele momento, sua condição de esposa condizente com o meio social e sua postura de mãe exemplar, colocando em dúvida a validade da felicidade familiar que tinha vivido anteriormente. A leitura do jornal sobre a presença de Luciano no Rio de Janeiro lhe fazia renascer a vontade e o desejo de olhar para si mesma, ignorando, de certa forma, os valores com que até ali procurara pautar sua vida de mulher viúva e honrada, valores esses coerentes com o sistema familiar da sua classe.

A viúva se sente romanticamente perdida nos devaneios de lembranças que a conduzem à sua juventude na época em que namorou Luciano, tempo em que a paixão era o fio condutor que movia suas ações; momento comparável com o sonho do amor idealizado e esperado das heroínas dos romances açucarados que despertava, nas mulheres, a fantasia do amor sublime e eterno.

Nas suas digressões, a protagonista repensa, também, sua trajetória de mulher casada, respeitada, digna e socialmente reconhecida por seu desvelo para com a família e, sobretudo, por sua extrema afeição pela filha:

Desde a morte do marido que procurava estiolar, ressequir o seu coração de moça, o seu egoísmo maternal absorvia-a toda; não se daria a ninguém, não roubaria à filha nem um dos seus afagos, nem um único dos seus pensamentos e dos seus cuidados. Pela sua idolatrada Sara deixaria queimar o seu corpo, cegar os seus olhos e despedaçar o seu coração. Perecesse tudo sobre a terra, se só à custa desse aniquilamento pudesse o sorriso iluminar os lábios frescos da filha! (ALMEIDA, 1999, p. 44) 149

Este ponto de vista mostra que “a maternidade estava idealizada, ela era sentida como associada aos encantos de uma experiência única e insubstituível que coroava a mulher de bênçãos e prazeres”. (MOREIRA, 2003, p. 100) Neste sentido, há um apagamento da mulher, ou seja, a viúva, conscientemente, procurava apagar seus desejos e sua sensualidade, buscava a perda dos sentidos que moviam seus desejos, sua sensualidade, enfim, o ser mulher. Esse apagamento se dá em detrimento à maternidade, e “transforma a mulher, dá-lhe uma constituição física e psíquica semelhante à dos deuses, tornando-a superior ao homem em capacidade de resistência ao sofrimento”. (MOREIRA, 1999, p. 100)

A partir dessas digressões da protagonista, o enredo segue sem grandes conflitos que envolvam as personagens, mãe e filha, em um embate de grande revelia. Nesta parte, o foco narrativo se centra na personagem da viúva e o conflito gerado por sua relação com Luciano.

A narrativa irá se desenvolver focada na tentativa de Ernestina em conciliar sua condição de mãe dedicada e de mulher apaixonada, como podemos notar no diálogo entre Luciano e Ernestina:

-- Decididamente, eu não posso tolerar a presença desta menina! Exclamou Luciano num desabafo. -- Oh!... -- Ela é uma criança... ignora que... -- Uma criança! (...) Não! As mães são cegas! -- Coitadinha, é tão inocente, a minha Sara... -- Não sei; mas confesso-lhe que só a sua vista me mortifica! Ernestina levantou-se pálida e trêmula de indignação. -- Não lhe posso impor simpatia por minha filha, mas julgo estar no direito de ordenar que a respeite... ou... -- Ou que me retire?... Ernestina calou-se, sufocando na garganta os soluços. -- Pois não vê, Ernestina, que se eu odeio a filha, é porque adoro a mãe?! Perdoe as minhas palavras, são filhas do ciúme violento, tenaz, que se apoderou de mim desde que vi Sara! Ela é a continuação do pai, o beijo vivo, ardente, trocado pelas vossas bocas! É essa idéia que me martiriza e que me perde! -- É uma... insensatez ... -- Chame como quiser. (ALMEIDA, 1999, p. 99-100)

150

A filha desagradava a Luciano porque ela se mostrava afeita ao pai falecido, saudosa de sua presença. Ela conduz suas falas para a figura do pai e, ainda, ressalta suas qualidades e o convívio harmonioso com a mãe, como uma união de felicidade perfeita instaurada na família Simões.

O posicionamento da mãe em defesa da filha continua firme, resistindo às idéias de Luciano em colocá-la em atrito com sua filha. Ele sugere à Ernestina uma forma de livrar-se da filha, isto é, arrumar-lhe um casamento e assim tirar do seu caminho o obstáculo centrado na figura de Sara.

Esta posição de Luciano se dá depois da visita de Rosas, seu amigo, à casa da viúva. Rosas foi grande inimigo do pai de Sara e mal visto pelas herdeiras do

Comendador Simões. Ernestina, mesmo a contragosto, recebe Rosas em sua casa com a intenção de agradar Luciano, movida pelo desejo da paixão, sem pensar nas conseqüências deste ato em relação aos sentimentos paternais da filha:

A moça estacou no umbral, fixando atenta e admirada os olhos na visita. O seu rosto, habitualmente tosado, tornou-se lívido, os lábios tremeram-lhe, não encontrando palavras para a indignação que lhe fervia no peito. A mãe embaraçadíssima, ergueu-se e foi ter com ela, automaticamente, sem atinar com o que dissesse; mas Sara repeliu-a com um gesto. Ernestina compreendeu então, num relance, a sua imprudência e empurrando a filha para fora, fechou com raiva o reposteiro. Sara saiu para o jardim, tonta e trêmula. Não via nada; andava de um lado para o outro como um pássaro ferido a lutar contra a morte. (ALMEIDA, 1999, p. 107)

A reação raivosa de Sara contra a visita de Rosas serve de pretexto a

Luciano para exigir da viúva uma atitude drástica em relação ao comportamento rebelde e grosseiro de sua filha.

-- O Rosas descreveu-me bem nitidamente a cena... saiu envergonhadíssimo e furioso! Quando digo que precisamos arranjar um casamento para sua filha! Ernestina mastigou, colérica: -- Um casamento... 151

-- Sim indispensável para a nossa felicidade. Isto assim não pode continuar, bem vê... -- Pode. Eu não quero que minha filha se case. É minha, amo-a; acabou-se! Pensando friamente, Sara fez bem. O Rosas foi um inimigo acérrimo do pai; não devia ter vindo... (...) -- E a mim ainda mais. Imagine: caso-me. Bem e então? Hei de deixar de receber o meu melhor amigo, em minha casa, só por um capricho piegas de menina? (...) -- O Rosas era inimigo do pai? Que tenho eu com isso? É meu amigo, e, portanto da minha família! -- Lembre-se de que nós ainda não somos a sua família...(...) -- Falar-lhe no casamento? É cedo... deixemos passar o ano de luto... respondeu Luciano. -- Do luto? Mas onde está ele? -- Nela. (...) -- A sua tolerância, Ernestina, é que a tem perdido! Sua filha é autoritária e caprichosa. Decida-se a fazer o que lhe tenho dito: e aconselhe-a de longe... -- Ela vai sofrer muito!... Não... -- Embora; tudo redundará em seu proveito. -- Não sei por que aborrece assim a minha pobre filha: se convivesse com ela, havia de adorá-la! É um anjo (ALMEIDA, 1999, p. 115-116)

O texto mostra a relutância da mãe em defender a filha, mesmo sendo cobrada por Luciano a tomar uma decisão que a colocava em um conflito: mulher e maternidade. Ela apresentava justificativas para as ações da filha. E, em uma tentativa conciliadora, tenta negociar o seu papel de mãe e o de mulher tocada pela paixão:

-- Lembre-se de que nós ainda não somos a sua família... (...) -- Falar-lhe no casamento? É cedo... deixemos passar o ano de luto... respondeu Luciano. -- Do luto? Mas onde está ele? -- Nela ... (ALMEIDA, 1999, p. 116)

Em outro trecho, a protagonista se vê em uma situação perigosa, que poderá causar em Sara profundas mágoas e ressentimentos em relação à mãe, quando a criada Simplícia lhe revela, à base de chantagem, sabedora do seu romance com

Luciano:

-- Então, iaiá, me deixa ir na festa? -- Não. -- Por quê? ... seu Luciano não quer? (...) -- Estás doida! Cala-te; repreendeu a viúva, mas a Simplícia ajuntou com ar malicioso: 152

-- Iaiá não se zangue não... mas eu vi outro dia seu Luciano dar um beijo na senhora... lá na sala... perto da janela... Eu não conto nada pra nhá Sara... mas a senhora há de me deixar ir na festa... Ernestina estava vencida; entretanto levantou-se colérica, erguendo a mão para bater na negrinha. Àquela ameaça Simplícia saltou: -- Iaiá, já não sou escrava! Se a senhora não me fizer as vontades eu juro em como vou direitinha dizê tudo a nhá Sara: que seu Luciano tem raiva dela, e que dá beijinhos na senhora.... (...) A viúva estava aterrada, com medo de levantar um escarcéu despedindo a rapariga, e sem vontade de lhe fazer o gosto. Mas a mulata venceu; e ainda Ernestina lhe pôs nas orelhas uns brincos de coral e nas mãos uma nota de dez mil réis. -- Va... (ALMEIDA, 1999, p. 126-127)

Atordoada pela revelação de Simplícia “o seu terror agora era que Sara viesse, a saber, de tudo pela boca asquerosa da mulata” (ALMEIDA, 1999, p. 127).

Para proteger a filha e não perder a possibilidade de realizar seus ímpetos de mulher apaixonada, Ernestina, estrategicamente, resolve mandá-la passar um tempo longe de Santa Teresa, em Nova Friburgo, na casa de sua tia Mariana. Essa ação provoca na viúva um vazio e desperta-lhe um quê de culpa e ressentimento levando- a a um estado de espírito que a fazia rever sua condição de mãe e sua ação em afastá-la do seio familiar em Santa Teresa:

Agora que Sara estava ausente, sentia por ela uma ternura esquisita, mais penetrante, que lhe ia até o fundo do coração, que a afastava de todas as outras coisas, arredando mesmo para um plano mais nublado e indeciso a figura de Luciano... Estranhava aquilo; aquele redobramento de amor maternal que a dominava completamente, absolutamente... (ALMEIDA, 1999, p. 131)

Com a ausência de Sara, a viúva reflete sobre o amor maternal e o amor carnal. Notoriamente, é o amor de mãe o que tem maior importância neste momento, tendo em vista que a viúva se volta para os aspectos condizentes com a maternidade.

Considerando o estado reflexivo em que se encontrava a protagonista, é válido dizer que:

Ser mãe é uma decorrência da condição primeira - ser mulher - e esta 153

particularidade, que é única do feminino, não pode ser entendida, nem partilhada, pois dá à mulher um lugar, uma experiência que só pode ser dividida com uma outra mulher. A voz feminina vem instruir os pares na trajetória da vida, nos percursos dos desencantos e dos encantos da maternidade. (MOREIRA, 2003, p. 99)

Com o retorno de Sara à casa materna, a narrativa permeará caminhos voltados para os sentidos. A volúpia e os desejos modificarão as ações da viúva que até aqui estiveram conectados à maternidade como sendo o amor supremo, o que tudo preenche e tudo vence, o amor inquestionável que enaltece o ser mulher.

A opinião de Luciano sobre Sara foi alterada a partir do momento em que ela o recebeu após sua estada em Nova Friburgo:

A moça parecia-lhe agora mais alta e mais elegante. Usava um vestido branco transparente, que mostrava numa sombra tênue a sua carnação de loura, alva e rosada. Aquele traje dava-lhe um ar encantador de alegria e de ingenuidade. (...) E puxou-o, rindo, para dentro, segurando-lhe a mão. Luciano deixava-se ir, encantado com aquele acolhimento. (ALMEIDA, 1999, p. 138-139)

É importante ressaltar que há sedução em Sara, sua roupa e seu comportamento revelam uma intimidade ausente em outros momentos do enredo.

Em oposição à menina raivosa e cheia de vontades, no início da estória, essa passagem focaliza Sara como uma mulher sensual e sedutora pela qual Luciano se deixa levar. A amabilidade que surge depois deste momento corre na mais perfeita harmonia e, nessa noite, Ernestina “foi dormir contentíssima: pareciam feitas as pazes entre Sara e Luciano Dias”. (ALMEIDA, 1999, p. 139)

Todavia, com o passar dos dias e com a ida ao baile “masqué”, a viúva começou a perceber que a amizade de Sara e Luciano parecia tomar proporções maiores do que o por ela esperado. As atenções e os elogios de Luciano eram, quase todos, destinados à filha de Ernestina. Sentindo-se ameaçada e corroída pelo ciúme, a viúva se prepara para o embate com a filha. Em uma magistral cena 154

realista, a protagonista se prepara, vestindo-se, maquiando-se, fazendo-se mais bela, enquanto dialoga com a criada Josefa. “-- Uma mulher apaixonada não deveria nunca envelhecer” (ALMEIDA, 1999, p. 154). E, logo que a criada abandona o recinto, “Ernestina relanceou a vista para o espelho e murmurou num desafio quase triunfante: -- Sara! Vamos ver qual de nós duas vence!”. (ALMEIDA, 1999, p. 155)

Ardilosamente, a mãe toma a decisão, anteriormente cogitada por Luciano e que, até aquele momento, se negara a fazer: arrumar um casamento para Sara.

Para colocar seu plano em prática, ela marca um encontro com Luciano, na casa da criada Josefa, e lhe comunica sua decisão, solicitando que ele seja o agenciador do acerto do casamento de Sara:

-- Chamou-me e aqui me tem, disse ele, procurando sorrir. -- Compreende por que não lhe pedi que fosse antes à minha casa. -- Não... (...) -- Pois vai compreender. Trata-se de minha filha. Luciano não pôde conter reprimir um movimento de surpresa. A viúva observou-o um instante e continuou: -- O senhor tem tido várias vezes a bárbara franqueza de me dizer que a não pode suportar! Ela, além de todos os defeitos da má educação, tem a enorme desvantagem de ser o retrato do pai!... Ora, refletindo em tudo isso e de acordo com uma idéia sua, já mais de uma vez manifestada, resolvi uma coisa: -- casá-la! Luciano estremeceu, mas continuou silencioso e sério. Ernestina tinha o olhar cravado nele, procurando estudar-lhe os gestos e penetrar-lhe no pensamento. Aquele olhar cheio de fogo e de paixão perturbava-o tanto como as palavras que iam ouvindo. (...) -- Casá-la... balbuciou Luciano como um eco. -- Sim! O Eugênio Ribas ama-a, e como é seu amigo, lembrei-me de uma coisa... -- É verdade! -- É certo; e o que o senhor tem a fazer é o seguinte: -- Vá ter com o Eugênio, prontifique-se a pedir a mão de minha filha, depois... -- Depois? -- Vá à minha casa e consulte a opinião de Sara; elogie o rapaz, que é na verdade digno. Em seguida poderemos declarar-lhe as nossas intenções... Ernestina falava com uma linguagem estudada, reprimindo os sentimentos, domando-os por um esforço de vontade que já não podia sustentar. Contemplaram-se por algum tempo silenciosos. Luciano com espanto. Ernestina com altivez. (ALMEIDA, 1999, p. 155-157)

Com a veemência afirmativa do texto realista, no diálogo entre a viúva e 155

Luciano, o discurso mostra a postura de mãe autoritária e raivosa para revelar a intenção da mulher apaixonada e suficientemente capciosa para, em uma jogada sagaz, casar a filha e livrar-se, ao mesmo tempo, da rival. Esse trecho representa, com realismo marcante, a viúva como mulher de embate: ela arquiteta o plano e força Luciano a executá-lo.

O diálogo é dominado pela protagonista que, decididamente, coloca as cartas na mesa, em uma atitude que, além de determinar o futuro da filha, se mostra observadora em relação ao comportamento de Luciano. Ela, na verdade, transgride o seu papel de mãe e toma, nesta ação, o seu papel de mulher que prefere enfrentar os fatos a lamentar sua fraqueza por não lutar pelo que deseja. Seu desejo é

Luciano, seu empecilho é Sara. Sara é mulher e é como mulher que ela a vê naquele momento – mulher jovem, bonita, com encantos próprios da idade, os quais só a juventude oferece. Em contrapartida, Ernestina é forte, decidida, sagaz e, além de tudo, tem uma carta na manga: ela é a mãe e a viúva. Esse estado de viuvez lhe outorga autoridade para definir o destino de Sara, sua filha e sua rival, concomitamente. Queremos destacar que tal autoridade é aquela patriarcal, herdada do falecido esposo.

A narrativa trabalha, ou melhor, mostra a posição contraditória em relação à postura entre o masculino e feminino, pois a atitude ardilosamente corajosa, estudada, e a figura altaneira da viúva contrapõem-se ao silêncio, ao receio, à covardia e ao espanto de Luciano.

A ação da viúva faz da sua decisão um gesto que rompe, não na normalização patriarcal, já que eram usuais arranjos matrimoniais, mas há, em sua atitude, um gesto transgressor que envolve o caráter moralizador, sagrado, com que ela profana a questão sublime e inata na mulher -- a ética da maternidade. 156

A narrativa seguiria naturalmente para um desfecho favorável à protagonista se não fosse o fato de que a sua articulação não contasse com a retirada estratégica de Luciano. Ele, não querendo o casamento de Sara e não tendo coragem suficiente para assumir perante a viúva seu amor pela filha, à guisa de um pretexto, viaja para

Minas Gerais. Silenciosamente, pode-se dizer que ele trai a confiança de Ernestina.

Vejamos:

A carta de Luciano tinha-a amargurado. Era evidente que fugira à entrevista com Eugênio Ribas. Amaria então muito a filha? Era isso que a desesperava. (...) Tornou a ler a carta, amarrotou-a com desespero. Vendo fugir o noivo sentia recrudescer a sua paixão. Amava-o como nunca! A rivalidade com a filha exacerbava isso. A mocidade de Sara era a sua tortura. Invejava aqueles dezoito anos, aquela alma primaveril, aquele rosto fresco e tranqüilo. Estremecia com medo da velhice, da sua fatal e terrível decadência que sentia já perto, muito perto! Suprimir Sara, pelo casamento, era o seu sonho de ouro! Na sua imaginação doente surgiam idéias extravagantes. Pensou ela mesma, procurar o Eugênio Ribas, ou fazer-lhe constar, pelo Nunes, que daria um grande dote à filha... (...) Enraivecia-se contra Luciano! Imaginava os mais estranhos e esquisitos meios de prendê-lo a si. Já não importava tanto que ele amasse outra, contanto que se casasse com ela!... (ALMEIDA, 1999, p. 163-164)

Surge na viúva uma revolta que a deixa totalmente perturbada. Isso a levava ao desespero, ao perceber que a sua artimanha não surtia o efeito esperado e que, ao contrário, somente vinha confirmar as suas suspeitas acerca do sentimento de

Luciano por Sara.

O ciúme e o medo de perder Luciano fazem com que ela esqueça o seu compromisso de mãe zelosa. Surge a mulher despeitada, rejeitada e vingativa.

Movida pelo desejo da paixão, ela vê em Sara apenas a rival, encantadora, com os atributos que só a mocidade tem, em oposição ao seu perfil de senhora de meia idade, já beirando a decadência que os anos trazem, marcando, visivelmente, o corpo.

Para Ernestina, o seu romance já não se encontrava na relação ínfima que 157

une os enamorados. Para ela, a sua história com Luciano já está em outro patamar, não somente no âmbito que envolve as paixões, mas também no aspecto da honra e das aparências, resguardadas no matrimônio, que move a sociedade patriarcal.

O paradoxo, mulher e maternidade, que é um dos conflitos internos da protagonista, se torna nítido no diálogo entre ela e Sara. Diálogo este que é o clímax da narrativa e o motivo que implica o desfecho da trama almeidiana.

Tal diálogo, embora longo, é de fundamental importância para o desenvolvimento de nossa análise, como veremos abaixo, pois contempla o conflito da protagonista entre a sua paixão pelo homem e o amor por sua filha.

Subitamente a moça, que era como fora o pai, de uma franqueza arrojada, disse num tom sacudido e firme: -- Tenho que lhe dizer. -- Ah!... -- Deu-me ontem a entender que o Eugênio Ribas quer casar comigo... -- Sim, quer. -- Pois eu não quero. -- Oh! Ele é um moço excelente, muito bem educado... -- Seja o que for; não gosto dele. -- Minha filha! Repara que ele faria a tua felicidade!... -- Não. Enfim mamãe, eu só lhe peço uma coisa... -- Ernestina ouvia-a suspensa. -- Se ele vier pedir a minha mão, não me consulte; diga-lhe logo que eu amo outro. -- Amas outro? -- Sim. -- Quem é esse outro? Perguntou Ernestina com medo, com uma voz abafada, segurando-se ao braço da filha. -- Luciano. -- É mentira! Exclamou Ernestina já de pé e com raiva, é mentira! Sara olhava-a com pasmo; a viúva deteve-se um minuto, depois puxou-a para si, beijou-lhe as tranças, as faces, os olhos e murmurou quase numa súplica: -- Ah... dize-me que é mentira! Sara não respondeu: olhava-a sempre com o mesmo olhar espantando e mudo. A mãe levou-a até o sofá, fê-la sentar-se, sentou-se ela também e segurando-lhe nas mãos deixou-se resvalar até ficar quase de joelhos aos pés da filha. E foi assim, com os olhos empanados de lágrimas que ela disse: -- Eu também o amo, Sara, eu também o adoro! A moça teve um gesto de horror e de susto a mãe prosseguiu: -- Escuta! Para ti ele é um amor que começa, um capricho de criança talvez, que se apagará depressa, e para mim ele é a vida, toda a minha mocidade! Eu era ainda mais nova do que tu e já o amava! 158

Abandona essa idéia! Tens um futuro tamanho!... amarás depois outro homem, mais novo, mais belo, mais digno de ti! Eu estou no fim... eu é que já não tenho esperança e que morrerei se ele me desprezar! -- Olha para mim! Não imaginas o sacrifício que tenho feito para te esconder este amor! E ele é tão velho em meu coração! Quando eu te gerei, quando te sentia nas minhas entranhas ou que te suspendia no meu seio, ele já palpitava em mim, com o mesmo fogo, com a mesma violência! (...) -- Dize-me que fugirás! Sara não respondeu. -- E hás de ser tu, minha filha! Quem me roube à ventura com que desde menina sonho! Sara! Eu sou uma louca! Ah! Na minha idade as paixões são assim, levam a estes desatinos! Como é cruel a velhice!... como tu és feliz, minha Sara! Ernestina cobrindo de beijos a mão gelada da filha foi-lhe contando tudo baixo e precipitadamente. Revelou assim, numa doidice indiscreta, as promessas e exigências de Luciano, os seus conselhos e até os ditos ferinos contra a filha! (ALMEIDA, 1999, p. 165-167).

Em uma narrativa na qual o leitor é transportado para a atmosfera do romance, o narrador conduz a trama através do jogo voltado para o espaço das representações, onde as ações são de extrema importância para explicar a cena descrita.

A atitude de Ernestina fica entre o ser mãe e o ser mulher. E é imbuída do seu papel de mãe que ela reivindica à filha a felicidade ameaçada. É por seu lugar de mãe que ela busca convencer a filha a desistir do amado, Luciano, para que seu desejo de mulher possa realizar-se.

A cena que se segue após a revelação de Sara de seu amor por Luciano fica no plano da inversão dos papéis, de acordo com a qual o gesto de Ernestina em

“resvalar” e ficar de joelhos aos pés de Sara, seria, tradicionalmente, um gesto da filha em relação à mãe, e não o contrário. A transgressão também se faz na relação que se dá ao gesto de súplica, com o qual a viúva implora à filha que a deixe ser feliz. É através do gesto que a relação de poder fica, supostamente, alterada, pois em Sara estava o poder para ceder a fim de que a desejada felicidade erótica e amorosa da mãe triunfasse.

O interessante é que a declaração de Sara faz com que o conflito entre mãe e 159

mulher se misture na fala narrativa. A revelação de Ernestina não se dá pelo discurso da repreensão ou da imposição de sua autoridade de mãe, que poderia impor à filha sua vontade. Ela vem na voz da mãe que confessa, humilde e tragicamente, o seu desejo de amor e, suplicantemente, implora à filha a concretização de sua pretensa felicidade de mulher apaixonada:

Abandona essa idéia! Tens um futuro tamanho!... amarás depois outro homem, mais novo, mais belo, mais digno de ti! Eu estou no fim... eu é que já não tenho esperança e que morrerei se ele me desprezar! (ALMEIDA, 1999, p. 166)

Outro aspecto que gostaríamos de ressaltar na cena narrada é que, nos estudos sobre o romance A viúva Simões, frisa-se que a trama narrativa apresenta um embate amoroso entre mãe e filha pelo amor do mesmo homem. Discordamos desta posição, pois entendemos que este embate não se configura no contexto da narrativa, uma vez que seria a partir desta cena, na revelação de Sara e da súplica de Ernestina, que viria o embate propriamente dito entre mãe e filha. Percebe-se, internamente, um embate do ponto de vista da mãe, que a trama se encarrega de afastar.

Podemos, com base na narrativa, confirmar nossa posição: “Sara não respondeu: olhava-a sempre com o mesmo olhar espantado e mudo. (...) A moça teve um gesto de horror e de susto...” (ALMEIDA, 1999, p. 166). A própria reação de

Sara demonstra sua inocência em relação aos sentimentos da mãe por Luciano.

Este é o único momento da narrativa que poderia gerar confronto entre as personagens. No entanto, a nosso ver, o confronto está mais no conflito da viúva, enquanto mãe e mulher, do que na posição de Sara vista enquanto rival, pois Sara, praticamente, não participa da cena como agente. Ela apenas ouve, assustada, a declaração da mãe. 160

Para corroborar nossa posição, apresentamos a cena em que Sara se tranca em seu quarto e, revoltada, analisa a situação que envolve ela, a mãe e Luciano: “A moça deitou-se abatida por uma vertigem que a sossegou momentaneamente.

Depois abriu os olhos para o teto nu. Voltou-lhe o conhecimento das coisas. As lágrimas não vieram, mas veio a febre”. (ALMEIDA, 1999, p. 172)

Essa foi a última ação lúcida de Sara. Por isso, podemos afirmar que não há nenhum embate entre a protagonista e a filha. O embate se dá, sim, no conflito existencial da viúva. Entendemos que as outras personagens do romance são na verdade apenas coadjuvantes. A narrativa é voltada para a composição da viúva, e os elementos narrativos que fazem parte do romance são todos voltados para a protagonista. A narrativa não apresenta outros núcleos narrativos. Ela é única, unitária. A trama, entretanto, se desdobra por outros espaços. Mas o único núcleo narrativo de expressividade no romance é o da viúva.

A narrativa toma outro rumo depois do clímax entre mãe e filha. Depois disto,

Sara adoece, acometida que foi de uma febre cerebral que a levará à idiotice para sempre. A doença de Sara, todavia, já estava, de certa forma, anunciada na narrativa pela hereditariedade, sinalizada no início da estória pela doença do avô, o comendador Simões - “o veio acompanhar até as portas do hospício de D. Pedro II, onde o velho, louco, ainda viveu alguns anos terrivelmente agoniados!...” (ALMEIDA,

1999, p. 41)

A doença da filha levou a viúva a se redimir de suas ações, arrependida de seus arroubos amorosos e assumindo a antiga conduta de mãe extremosa que, desesperada, pedia pela salvação da filha:

Ao médico ela suplicava, de joelhos, que lhe salvasse a filha, prometendo-lhe fortunas e coisas impossíveis! Quando a noite chegava, era horrível! Via-se sozinha; a filha parecia- lhe as vezes, moribunda, outras vezes morta. 161

Então tinha medo de chegar à cama, arrastava-se de joelhos e rezava ao retrato do marido como rezaria a uma imagem sagrada. Ela era a culpada de tudo! O remorso juntava-se à dor. Agora a sua felicidade seria ver Sara feliz. O seu amor era um crime! Pedia perdão a Deus, prometendo-lhe altares de ouro se ele salvasse Sara! (ALMEIDA, 1999, 176)

É importante notar na ação da protagonista em relação ao gesto de ajoelhar, pois, anteriormente, ela de joelhos suplicava à filha que renunciasse a Luciano em favor de sua felicidade amorosa; agora, ela ajoelhava-se pedindo ao médico, a Deus e diante do retrato do esposo falecido, a salvação e a felicidade de Sara.

Entendemos haver, propositalmente, na voz narrativa, uma reafirmação dos valores patriarcais pretensamente enfrentados ao logo do desfecho narrativo. Pois há uma subordinação aos preceitos masculinos, simbolizado diante do retrato do morto: o falecido continua imbuído dos poderes patriarcais legados pela sociedade carioca oitocentista.

Em uma leitura desatenta, poderíamos supor, com base na narrativa, que

Ernestina envenena a filha para conseguir o amor de Luciano. A própria narrativa, entretanto, descarta tal possibilidade, pois, na verdade, a viúva troca os remédios, ação ocasionada por seu cansaço físico e por sua não-observação da semelhança dos frascos que continham os medicamentos. A narrativa deixa claro, todavia, que a viúva, por um momento, achou que envenenara a filha, e isto a deixou desesperada, hipótese esta descartada na explicação do médico à Luciano:

--Não!... houve um engano de remédio, nada mais. Percebi, logo que entrei, do que se tratava, vendo à cabeceira da doente o frasco que eu já tinha posto de parte, por terem errado a fórmula... mas não era coisa de matar... mormente em dose pequena... Não foi isso que determinou o acesso! (ALMEIDA, 1999, p. 189)

162

Por achar que matou a filha, ela, aos gritos, chama os criados e pede que eles busquem o médico e o padre. Ela mesma, numa ação desesperadora, tocada pelos valores da maternidade, corre à procura de ajuda de Luciano:

Seria o amor, o Cristo que ressuscitasse aquele corpo exânime e que fizesse erguerem-se, na miraculosa paz das almas satisfeitas, aquelas pálpebras imóveis e aquela pálida cabeça de moribunda! Só o amor teria o poder mágico de acordar aquela carne que nem os seus beijos, nem as suas lágrimas faziam estremecer! Ernestina saiu para a rua e correu pelo morro abaixo, num atordoamento. Ia buscar Luciano, o seu amado, o seu sonhado esposo, e dizer-lhe: confesse o seu amor à minha filha e salve-a! (ALMEIDA, 1999, p. 178).

O discurso carregado de exaltação ao amor, com o seu poder de tudo reparar, de tudo curar e salvar, é que faz com que Ernestina perceba que seu amor maternal é maior do que qualquer outro. Assim, ela, acreditando no amor que cura, busca Luciano como o antídoto milagroso que poderá salvar Sara.

Após a chegada de Luciano, a narrativa chega definitivamente ao seu final sem maiores conflitos, reforçando os laços entre mãe e filha, que, mesmo sem uma palavra, se entendem pelo olhar, e traz de volta a figura da mãe, da mulher decidida que, mesmo vivenciando a dor da perda, consegue erguer-se.

Veja-se que as mulheres de Júlia Lopes são movidas pela paixão, desejo e razão. Talvez este pluralismo na subjetividade da protagonista justifique o fim do romance, ou seja, Ernestina é poupada da morte física; Sara contracena com a mãe a morte dos projetos da juventude, e ambas se vêem sem escolha para viabilizar a felicidade um dia sonhada.

Há, neste final, a repetição da representação do gesto: “de joelhos, perto da cama, esteve longo tempo a olhar, a olhar... Ergueu-se com um suspiro e (...) atou ela mesma maquinalmente os cordões da cinta sem desviar os olhos da filha”.

(ALMEIDA, 1999, p. 204) 163

A viúva manda dizer a Luciano para ir embora, pedindo-lhe que não mais retorne a sua casa. Ele regressa para a Europa, e ela retoma sua vida de mulher exemplar e mãe dedicada:

O tempo estava esplêndido, de um azul glorioso, o mar desenrolava o seu manto, sem rugas, com uma serenidade de sonho, as flores desabrochavam numa alegre ansiedade de luz e de vida, perfumando tudo... Ao lado da mãe, numa cadeira de rodas, Sara com seu eterno e doloroso sorriso, fazia e desmanchava a única coisa bela que lhe ficara: a sua trança loura. (ALMEIDA, 1999, p. 209)

Em uma narrativa que apresenta conflitos internalizados na protagonista, na qual esta se vê constantemente entre seu estado de viuvez, de mãe e o seu desejo

íntimo de realização de mulher erotizada, desejosa do amor de um homem, ela é punida, não por suas ações, mas por sua tentativa de resistir aos valores prescritos no sistema patriarcal.

O desfecho vem revisitar os espaços. Esta mulher, viúva e mãe, tenta romper com os valores da sociedade burguesa do século XIX, não somente com vista à sociedade, mas aos valores internalizados nela mesma, na sua educação, no seu espaço, no seu ser mulher; enfim, na condição feminina oitocentista. As ações da viúva revelam os aspectos da resistência na escritura, resistência esta construída/tecida na fusão de lugares atribuídos à mulher: ora ela é mãe, ora ela é algoz, o que demonstra a estética de fim de século, ou seja, do

Realismo/Naturalismo.

164

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa análise partiu do ponto de vista da resistência na narrativa de Júlia

Lopes de Almeida, especificamente no romance A Viúva Simões (1897), no qual percebemos que as outras personagens, incluindo Sara, a filha, são coadjuvantes em relação à composição da protagonista. Elas servem como estratégias do enredo para a narrativa desconstruir o lugar social e moral que está representado na figura da mulher e da viúva, simultaneamente, que se descobre movida pelo ímpeto da paixão.

É na composição da protagonista que a narrativa, a nosso ver, ganha um fôlego diferenciado de outras obras, suas contemporâneas, porque Almeida tece um enredo aparentemente simples no qual mãe e filha se apaixonam pelo mesmo homem, Luciano. Porém, consideramos que isto é apenas uma estratégia para a narrativa problematizar o lugar e o papel da mulher oitocentista, cujo foco narrativo é todo centrado na figura da protagonista, a viúva Simões.

O conflito entre mãe e filha se torna quase inexistente na narrativa e poderia até ser desenvolvido; levando-o, assim, para o embate entre mãe e filha pelo amor de Luciano; mas o objetivo da autora não foi esse. Pois, com a doença da filha, não há mais disputa e a causa da disputa torna-se obsoleta; Luciano desaparece, e o que predomina na resolução da tensão é a figura forte e altaneira da mãe arrependida: mulher merecedora do aplauso social e moral de todos aqueles que acompanharam o desfecho da luta materna para salvar a filha.

O silêncio que se abate sobre a casa da viúva fala do ontem, do hoje e sibila um futuro indefinido, quiçá sombrio para uma mulher-mãe que terá de conviver com 165

a dor e a falta daqueles que amou.

A narrativa, através de um discurso organizado pelos valores oitocentistas, trabalha o deslocamento da protagonista, a viúva, que no início da estória se encontrava confortável em sua posição de viúva e de mãe, sem grandes preocupações além da administração da casa, dos bens e dos cuidados com a filha.

Porém, ela deixa transparecer, já no começo da narrativa, o marasmo da vida que levava e expressa uma leve melancolia na rotina doméstica.

O deslocamento da protagonista não se dá, apenas, em relação ao seu meio social; ele acontece, em princípio, no íntimo da viúva que, recatada e bela, sentia-se sozinha e “entediada”, apesar da companhia da filha. Prosseguindo a narrativa , à medida que a mudança comportamental da viúva acontece, ela, a mulher metamorfoseada, se tornará visível ao leitor e às outras personagens que compõem a narrativa.

É importante observar que a voz narrativa demarca os espaços de deslocamento da viúva descrevendo-a, primeiramente, sob o signo genérico de viúva para depois lhe dar seu nome, Ernestina.

A partir do nome Ernestina, irrompe o sujeito feminino com características próprias e demandas singulares para uma viúva burguesa, oitocentista. A narrativa discorre sobre os idílios da personagem, isto é, a mulher viúva, se mostra desejosa, sexualizada, apaixonada e decidida a lutar contra a solidão e a melancolia que a tornava “entediada” dos dias sempre iguais. Para pôr em prática seu intento, utilizava-se de artimanhas para se arrumar e antes do tempo convencional, um ano, dá por concluído o luto da alma e do corpo. Ela rompe com o espaço do confinamento, representado pelos cuidados excessivos com as lides domésticas até então. Para isso, vale-se da filha e da juventude desta como desculpa para realizar 166

suas vontades e justificar, à sociedade, a mudança de comportamento, ou seja, de viúva bem comportada, preocupada com o futuro e o bem-estar da filha. Ela passa a pensar sobre si mesma, seu próprio bem-estar e seu futuro que prometia solidão e melancolia. A narrativa foi dirigida para, superficialmente, construir um disfarce e, assim, conseguir mascarar a luta existencial da viúva entre o ser e o parecer.

Outro aspecto relevante que a voz narrativa revela através da protagonista é a linguagem dos sentidos. O sensual e o erótico se manifestam pelas ações de

Ernestina; tais ações rompem com os ditames impostos à posição social da viúva, que, pela educação de mulher burguesa, deveria sublimar seus desejos de realização pessoal, sensual e sexual, todos, nocivos à natureza dócil da mulher patriarcal.

A narrativa almeidiana desmistifica essa mulher oitocentista, modelo de esposa e de mãe, nunca de amante. A narrativa de Almeida focaliza uma mulher ardente de desejos que a conduzem por veredas arriscadas, levando-a a correr riscos até então impensáveis. Ernestina pulsava vida. Ela estava ávida por vivenciar o proibido, queria apaziguar o fogo que lhe queimava as entranhas e lhe corroía o espírito em um dilema constante entre o dizer e o não dizer.

Além disso, há que se considerar que, na personagem da viúva, a escrita almeidiana fica entre o amor idealizado dos românticos e o amor carnal, do desejo pulsante, próprio do naturalismo/realismo. Entretanto, há elementos no enredo que mostram a diferença entre o amor da viúva, um amor desejante, porém, idealizado pela possibilidade de tornar-se institucionalizado pelo casamento. Júlia Lopes tece uma escritura de resistência ao trabalhar os opostos, ou seja, duas formas de amor na narrativa d’A viúva Simões.

O romance em tela problematiza o estereótipo da mãe que a tudo renuncia 167

por amor à prole, que vê em seus filhos o bem maior de sua existência e neles o sentido da vida a cumprir.

À guisa de conclusão, acreditamos que a narrativa em foco resiste ao modelo feminino patriarcal oitocentista porque:

2. Não mata a protagonista, rompendo, assim, com a tradição das heroínas

mortas;

3. Ernestina, a protagonista, fecha a estória de um amor impossível redimida

pelo discurso de reconhecimento da amiga, D. Candinha, que a acompanhou

na doença da filha;

4. Negocia o valor cultural dado à maternidade, apontando a imaturidade da

viúva, o que permite que ela viva sua paixão para, com a experiência,

aprender a conhecer a natureza dos homens e/ou o caráter do vilão;

5. Desconstrói o amor romântico em detrimento do amor conseqüente, até certo

ponto realista/naturalista, quando consideramos as características do caráter

de Luciano;

6. Expõe a perda das ilusões românticas pela oposição entre razão e a emoção;

7. Desconstrói a tradição das heroínas dos romances realistas, com perfis

românticos.

Por fim, a narrativa rompe com a temática da literatura “sorriso da sociedade” ao construir uma protagonista redonda, ou seja, ela passa por uma mudança interior motivada pela aprendizagem da experiência exterior. Isto é, no fim do romance,

Ernestina não é mais uma mulher infantilizada a buscar um amor imaturo; ao contrário, ela representa a mulher madura, capaz de aprender com sua própria experiência. Ela teve o mérito de não ter sido penalizada com a morte, mas com a vida; o que significa dizer que sua sanção foi ter de conviver com a “filha idiota”, 168

significando uma morte simbólica de suas fantasias, isto é, a morte de seus ideais e de seus desejos de “mulher de fogo”. Com isso, houve uma (re) conciliação entre os ideais apregoados pelo romantismo e a concretude postulada pelo realismo- naturalismo no qual a obra se espelha tanto na temática, quanto na composição da viúva Simões.

169

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