UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CAROLINE GOMES LEME

ENQUANTO ISSO, EM ...: à l´époque do Cinema Novo, um cinema paulista no “entre-lugar”

CAMPINAS 2016 CAROLINE GOMES LEME

ENQUANTO ISSO, EM SÃO PAULO...: À L´ÉPOQUE DO CINEMA NOVO, UM CINEMA PAULISTA NO “ENTRE-LUGAR” Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES; FAPESP, 2012/05268-9 e 2013/10883-7

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Leme, Caroline Gomes, 1986- L542e LemEnquanto isso, em São Paulo... : à l´époque do Cinema Novo, um cinema paulista no "entre-lugar" / Caroline Gomes Leme. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

LemOrientador: Marcelo Siqueira Ridenti. LemTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Lem1. Cinema - Aspectos sociais. 2. Cinema brasileiro - História - 1958-1981. 3. Cinema novo. 4. Modernidade. 5. Indústria cultural. I. Ridenti, Marcelo Siqueira,1959-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Meanwhile in Sao Paulo... : "Paulista" Cinema at the time of the Cinema Novo Palavras-chave em inglês: Moving pictures - Social aspects Brazilian cinema - History - 1958-1981 Cinema novo Modernity Cultural industry Área de concentração: Sociologia Titulação: Doutora em Sociologia Banca examinadora: Marcelo Siqueira Ridenti [Orientador] Arthur Autran Franco de Sá Neto Mariana Miggiolaro Chaguri Marilia da Silva Franco Paulo Roberto Arruda de Menezes Data de defesa: 30-03-2016 Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de março de 2016, considerou a candidata Caroline Gomes Leme aprovada.

Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti Prof. Dr. Arthur Autran Franco de Sá Neto Profa. Dra. Mariana Miggiolaro Chaguri Profa. Dra. Marilia da Silva Franco Prof. Dr. Paulo Roberto Arruda de Menezes

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna. À minha mãe AGRADECIMENTOS

A conclusão de uma tese é daqueles momentos de encerramento de ciclo em que vemos “passar um filme na nossa cabeça”. Da concepção do projeto à satisfação que envolve a escrita desses agradecimentos, passaram-se alguns anos de trabalho, com percalços, encontros e desencontros, vida vivida. Na construção da tese vamos também nos construindo, em longo processo intelectual e pessoal, muitas vezes estranho aos alheios às singularidades da vida acadêmica. Enfim, é encerrada uma etapa e, não obstante a conhecida solidão que caracteriza a empreitada - na qual, em última instância, está o pesquisador sozinho às voltas com seu objeto -, é justo agradecer às muitas pessoas e instituições que contribuíram para sua concretização. Começo agradecendo à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), instituições que deram o apoio material indispensável para que a pesquisa se realizasse. A primeira, mediante bolsa de doutorado concedida via Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP) no primeiro ano de pesquisa; a segunda concedendo-me bolsa de doutorado nos anos subsequentes (processo 2012/05268-9), assim como a bolsa BEPE (Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior), processo 2013/10883, que permitiu um estágio de um ano em Paris, França. O suporte material provido por essas instituiçoes foi o alicerce que viabilizou o pleno desenvolvimento da pesquisa, possibilitando não só a dedicação exclusiva da pesquisadora, como as visitas a acervos, as entrevistas, as participações em congressos e tantas atividades que irrigaram decisivamente a investigação. Igualmente basilar considero a orientação do Prof. Marcelo Ridenti, a quem sou muito grata pelo apoio permanente durante os anos que se estendem do mestrado ao doutorado. As pesquisas do Prof. Marcelo Ridenti têm sido referência desde meus estudos de iniciação científica e sua orientação, sempre serena, foi contribuição imponderável. Atenta e presente e ao mesmo tempo marcada pela liberdade e autonomia, sua orientação se constituiu não somente no apoio fundamental durante a pesquisa como também, e sobretudo, num modelo acadêmico para a pesquisadora. Ao Prof. Marcelo agradeço ainda pela oportunidade de estágio docente em dois semestres de sua disciplina Cultura e Marxismo para alunos de graduação. Ao Prof. Michel Marie, supervisor do estágio de pesquisa em Paris, agradeço pela generosa acolhida que tornou possível o enriquecedor estágio junto à Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3, experiência que proporcionou uma nova visada sobre o objeto de pesquisa ao alargar os referenciais teóricos e propiciar o estabelecimento de correlações e reflexões não previstas. Esta tese também não teria se realizado na forma como se realizou se não tivesse contado com a colaboração dos entrevistados que cederam uma parte de seu tempo e memórias aportando elementos-chave para a pesquisa. Em ordem alfabética, agradeço a Francisco Ramalho Jr., João Batista de Andrade, João Silvério Trevisan, Maurice Capovilla, Renato Tapajós e Sérgio Muniz, cujos depoimentos trouxeram informações novas e iluminaram questões obscuras, referendando ou ensejando o repensar dos rumos da investigação. A Renato Tapajós agradeço ainda por generosamente ter me cedido seus filmes A batalha da Maria Antônia (2014) – cujo DVD contém como conteúdo extra os filmes Universidade em crise (1965) e Um por cento (1966) – e Corte seco (2014). Agradeço aos funcionários dos diversos acervos visitados ao longo da pesquisa: Cinemateca Brasileira, Biblioteca Jenny Klabin Segall do Museu Lasar Segall, Arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo (CCSP), Biblioteca Roberto Santos, Museu de Imagem e Som de São Paulo (MIS-SP), Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), Centro Técnico Audiovisual (CTAv), Bibliothèque de la Cinemathèque Française, Bibliothèque du Cinéma François Truffaut, Bibliothèque Historique de la Ville de Paris (BHVP), bem como das bibliotecas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), do Instituto de Artes (IA) e Biblioteca Central César Lattes (BCCL) da UNICAMP. Em todas essas instituições pude contar com a ativa colaboração de funcionários que por vezes dirigiram esforços para superar entraves burocráticos e dificuldades técnicas para atender de modo exemplar às necessidades da pesquisa. Não os cito nominalmente, mas faço deferência a todos aqueles que zelam pelos preciosos acervos e, sincronicamente, facilitam a sua acessibilidade. Agradeço, particularmente, a Betina Viany, que gentilmente concedeu-me autorização para consulta ao acervo de seu pai, Alex Viany, sob a guarda da Cinemateca do MAM-RJ. Ainda no âmbito administrativo, a gratidão se estende à Priscila Gartier, secretária do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, pela atenção e solicitude com que sempre prontamente me atendeu. Agradeço às pesquisadoras Ana Maria Veiga e Rosane Kaminski, a primeira por intermediar o contato com a cineasta Tereza Trautman que forneceu informações sobre o cineasta José Marreco e a segunda por ceder prontamente um artigo seu, indisponível on-line. E a Alessandro Gamo, que me cedeu texto inédito de sua pesquisa de pós-doutorado sobre “A economia cinematográfica da Boca de cinema em São Paulo (1967-1982)”. Os agradecimentos se estendem a Margarida Adamatti e Fábio Uchôa, que também colaboraram com esta pesquisa. Aos Professores Marília Franco e Renato Ortiz, agradeço pelos salutares comentários e sugestões por ocasião do exame de qualificação. Desejo agradecer também ao anônimo parecerista da FAPESP que, desde o projeto, teceu comentários, sugestões e questionamentos instigantes e motivadores, valiosos para o desenvolvimento desta pesquisa. Minha gratidão se estende a professores e colegas com quem pude discutir meu trabalho ao longo de diversos congressos, encontros e seminários, em especial e nominalmente, aos Profs. Mauro Rovai e Paulo Menezes que acompanharam diversos fragmentos e etapas da pesquisa, contribuindo com seus perspicazes comentários e sugestões valiosas. À banca da defesa, integrada pelos Professores Doutores Marcelo Ridenti, Arthur Autran, Mariana Chaguri, Marília Franco e Paulo Menezes, agradeço a inestimável contribuição e estímulo. As leituras atentas e as diferentes perspectivas de cada um dos membros foram valioso presente em forma de comentários estimulantes e observações inspiradoras. Sou grata também aos Professores e colegas integrantes do projeto temático “Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil Contemporâneo”, processo Fapesp 2008/55377-3, de 2009 a 2013, cujos encontros contribuíram com salutares discussões que irrigaram direta ou indiretamente esta pesquisa. Agradecimento especial à Professora Heloísa Pontes, cujas pesquisas são referência para esta. Aos Professores Fernão Ramos, Gilberto Alexandre Sobrinho e Marcius Freire do Instituto de Artes (IA-UNICAMP), agradeço pelos contatos e disciplinas em que pude complementar minha formação de socióloga com os essenciais conhecimentos de cinema. Ao Prof. Fernão Ramos, sou grata sobretudo pela intermediação do contato com o Prof. Michel Marie, que veio a ser meu supervisor do estágio em Paris. E ao Prof. Gilberto Sobrinho, agradeço, em especial, a oportunidade de realização de estágio em sua disciplina História do Cinema Brasileiro, grande contribuição para minha formação. Às Professoras Anita Simis, Célia Tolentino e Eliana Maria de Melo Souza, sou grata por iluminarem os primeiros passos de minha caminhada pela Sociologia da Cultura. No campo afetivo são tantos os agradecimentos que extrapolam este espaço formal. Agradeço aos amigos e colegas de pós-graduação com quem cruzei caminhos aos longos desses anos, estabelecendo trocas de ideias, informações, textos, gentilezas e, em alguns casos, afeto, apoio, carinho. Temo omitir algum nome, e, então, antecipo que a falha não indicaria ingratidão, mas, deve ser antes atribuída a uma relação menos direta com a trajetória acadêmica. Entre os amigos e colegas do IA, cito em especial, Cristina Alvares Beskow, Gabriel Barcelos e Jennifer Jane Serra. Entre amigos e colegas do IFCH, destaco, Danielle Tega, Daniela Vieira dos Santos, Fernanda di Flora, Juliana Closel Miraldi, Mariana Shinohara, Nara Roberta Silva, Sheyla Diniz, Vera Cecarello. Companheiros da revista Idéias, Arthur Aquino, Camila de Mário, Gustavo Cunha, Lidiane Maciel, Mariana Pulhez, Maria Tereza Manfredo, Tatiana Barbarini. Destaco também as queridas amigas “paulistanas”, com quem contei com o apoio de perto e de longe: Andrea Azevedo, Maria Teresa Mhereb, Rubia Araújo Ramos, Taís Viúdes de Freitas. Aos amigos e colegas de Paris, agradeço pelo apoio e carinho, essenciais para ultrapassar as dificuldades da vida estrangeira e fazer da estadia uma experiência proveitosa e feliz; em especial, Ana Paula Boscatti, Ana Paula Ferreira, Daiane Neumann, Deborah Werner, Elisangela Barbosa Fernandes, Paula Barros, Mariana Scarpa e Thiago Ribas, Alexandre Amaral, Gabriel Paillard, Vaston Costa. Ao meu querido irmão, Filipe, agradeço pelos anos de amizade e companheirismo, pelo apoio e carinho mesmo à distância. Ao meu pai, Getulio, agradeço carinhosamente pela torcida distante. E à minha mãe, Walmira Maria, a gratidão é indiscriminada, estendendo-se do concreto ao inefável. A ela, devo a minha formação e sou grata pelo incentivo e apoio incondicional a cada passo. A ela devo também a revisão textual desta tese. Seu braço forte e seu coração amigo, perseverantes, prosseguem comigo a me amparar em todos os momentos em que preciso. Por fim, dedico meu carinho a Alexander Englander, que trouxe cor, música, poesia e sabor para a minha vida, tornando os momentos finais de escrita tão felizes e leves como eu jamais poderia imaginar que pudessem ser. “E a maresia acendia/Uma coisa alegria/Que a espuma da onda/Espalhou pelo ar”... Ao amor não se agradece, se retribui. Voo contigo, passarinho! RESUMO

O objeto desta tese são as trajetórias e as obras de um conjunto de cineastas “paulistas” que, segundo nossa hipótese central, estiveram situados ao longo das décadas de 1960 e 1970 num “entre-lugar”, tendo, de um lado, o Cinema Novo como principal referência estético-cultural e grupo dominante da época e, de outro, as condições de produção cinematográfica que se apresentavam em São Paulo, onde se destacava como polo produtor a chamada Boca do Lixo, lócus de produção eminentemente comercial. Roberto Santos (1928-1987), Luiz Sérgio Person (1936-1976), Maurice Capovilla (1936- ), Sérgio Muniz (1935- ), João Batista de Andrade (1939- ), Francisco Ramalho Jr. (1940- ) e Renato Tapajós (1943- ) formam esse conjunto de cineastas. Entre o “cinema de autor” e a inserção mais direta na dinâmica da indústria cultural (não só na proximidade com a Boca do Lixo, mas também nos trabalhos para a publicidade e a televisão), suas trajetórias são irregulares e não encontram lugar determinado na história do cinema brasileiro. Como desdobramento da hipótese central, sugerimos que as condições do “entre-lugar” somadas ao fato de se situarem na metrópole paulistana renderam a esses cineastas perspectivas diferentes daquelas de seus contemporâneos, destacando-se em sua filmografia uma vertente singular de abordagem das contradições da modernidade urbana capitalista, em que se colocam em tela questões como o trabalho alienado, a indústria cultural e a reificação das relações sociais. Tomando como referencial teórico basilar as proposições de Raymond Williams (1977, 2000, 2011a), a tese não pressupôs dicotomia entre abordagens “externalistas” e “internalistas” das produções culturais, entendendo que estas são parte de um processo social a ser deslindado na inter- relação entre seus elementos. Desse modo, as trajetórias dos cineastas são consideradas em relação umas às outras, ao meio cinematográfico e ao contexto sócio-histórico, assim como são analisadas as obras fílmicas por eles produzidas, examinando-se os significados que elas trazem em sua construção audiovisual.

Palavras-chave: Cinema brasileiro; Cinema Novo; Cinema paulista; Modernidade; Indústria cultural; São Paulo, anos 1960-1970 . ABSTRACT

The goal of this thesis is to analyze the trajectories and works of a group of "Paulista" filmmakers which, according to our central hypothesis, were situated throughout the 1960s and 1970s in a kind of "place in-between". There was, on the one side, the “Cinema Novo” (New Cinema), which represented the main aesthetic and cultural reference point and was the dominant group of filmakers at the time, and on the other side, the film production conditions present in São Paulo largely represented by São Paulo's so called “Boca do Lixo” (Garbage Mouth), which was the predominant location for commercial production. Roberto Santos (1928-1987), Luiz Sérgio Person (1936-1976), Maurice Capovilla (1936-), Sergio Muniz (1935-), João Batista de Andrade (1939-), Francisco Ramalho Jr. (1940-) and Renato Tapajós (1943-) form the group of Paulista filmmakers under analysis. They are situated between the “author's cinema” and the most direct integration in the dynamics of the cultural industry (not only expressed by the proximity to the “Boca do Lixo”, but also by their works in advertising and television). Their trajectories are irregular and do not find a determined place in the history of Brazilian cinema. As an extension of the central hypothesis, we suggest that the conditions of this "place in-between", added to the fact that the films are from the São Paulo metropolis, gave these filmmakers different perspectives from those of their contemporaries. In their films, we find a singular approach to the contradictions in capitalist urban modernity. These films put issues such as alienated labor, the cultural industry, and the reification of social relations on screen. Taking the propositions of Raymond Williams (1977, 2000, 2011a) as the theoretical basis, this thesis does not assume a dichotomy between "externalist" and "internalist" approaches to cultural artifacts, understanding that these are part of a social process to be unraveled through the interelationship between its elements. Thus, the trajectories of the filmmakers are considered in relation to each other, in relation to the film prodution conditions, and in relation to the socio-historical context. As well, we analise the audiovisual works produced by them, by examining the meanings they bring through their audiovisual construction.

Keywords: Brazilian Cinema; Cinema Novo; Paulista Cinema; Modernity; Cultural industry; São Paulo, 1960-1970. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI-5 Ato Institucional n.5

Ancine Agência Nacional do Cinema

APACI Associação Paulista de Cineastas

AP Ação Popular

ALN Ação Libertadora Nacional

CAIC Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica

CCC Comando de Caça aos Comunistas

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina

Concine Conselho Nacional de Cinema

CPC Centro Popular de Cultura

DOPS Departamento de Ordem Política e Social

Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes

ECA Escola de Comunicações e Artes

EUA Estados Unidos da América

FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

GEICINE Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica

ICAIC Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas

IDHEC Institut des Hautes Études Cinématographiques (Instituto de

Altos Estudos Cinematográficos)

IEB Instituto de Estudos Brasileiros

IML Instituto Médico Legal

INC Instituto Nacional de Cinema IPM Inquérito Policial Militar

ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros

MAM Museu de Arte Moderna

MASP Museu de Arte de São Paulo

Molipo Movimento de Libertação Popular

OBAN Operação Bandeirantes

PCB Partido Comunista Brasileiro

PC do B Partido Comunista do Brasil

PNC Política Nacional de Cultura

SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Sudene Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

TBC Teatro Brasileiro de Comédia

UEE União Estadual dos Estudantes

UnB Universidade de Brasília

UNE União Nacional dos Estudantes

UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural

Organization (Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura)

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

USP Universidade de São Paulo SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 16 1. CINEMA NOVO E(M) SÃO PAULO: “CINEMA DE AUTOR”, BRASIL ANOS 1960 E 1970 ...... 32 1.1 O que foi o Cinema Novo? ...... 32 1.1.1 Movimento abrangente? ...... 34 1.1.2 Moderno e "nacional-popular" ...... 38 1.1.3 Configuração de grupo e atuação empresarial/institucional ...... 41 1.2 Cinemateca Brasileira e seu círculo: vértice importante na formação do Cinema Novo ...... 46 1.2.1 Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet: divergências dentro e fora de São Paulo ...... 50 1.3. Rio X São Paulo: a questão da “brasilidade” e as disputas ...... 58 1.4 Condições de produção: São Paulo, Rio de Janeiro e os “paulistas do entre-lugar” . 62 2. SÃO PAULO E INDÚSTRIA CULTURAL: BOCA DO LIXO, PUBLICIDADE, TELEVISÃO ...... 79 2.1 Boca do Lixo: “cinema utilitário” ...... 79 2.2 Publicidade: questão de sobrevivência? ...... 95 2.3 Televisão: brechas e contradições ...... 108 3. OS FILMES E A MODERNIDADE URBANA CAPITALISTA ...... 135 3.1 Modernidade, cinema, cidade, São Paulo ...... 135 3.2 O rural e o urbano no cinema brasileiro: dos primórdios ao Cinema Novo ...... 137 3.3 Cinema paulista, modernidade, reificação ...... 144 3.3.1 O grande momento (Roberto Santos, 1958): o dinheiro atravessando a comunidade ...... 161 3.3.2 São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965): a reificação avança .... 164 3.3.3 Vozes do medo (coord.Roberto Santos, 1970): a juventude, a cidade, o país em revista ...... 169 3.3.4 O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980): fim de ciclo, o operário em tela e o esmagamento contestado...... 173 4. POR TRÁS DO BRILHO FALSO: INDÚSTRIA CULTURAL, PUBLICIDADE E REIFICAÇÃO ...... 178 4.1 Cultura de massa e mulher: misoginia? ...... 180 4.2 Bebel e Anuska: criações masculinas ...... 185 4.2.1 Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967): o olhar sociológico ...... 185 4.2.2 Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr. 1968): o olhar romântico ...... 193 4.3 Do riso ao drama: o humanismo de Roberto Santos ...... 199 4.3.1 As cariocas (3o episódio, Roberto Santos, 1966): ironia e bom humor no desvelamento da dupla moral midiática ...... 199 4.3.2 Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980): entre o céu e a terra, o surreal e o trágico ...... 205 4.4 João Batista de Andrade para adultos e crianças: do cinema marginal ao piloto para TV ...... 214 4.4.1 O filho da televisão (João Batista de Andrade, 1969): publicidade, consumo, guerrilha, deboche ...... 214 4.4.2 Alice (João Batista de Andrade, 1978): fantasia atravessada pela realidade do capitalismo periférico ...... 220 4.5 Considerações adicionais: a crítica no bojo do que se condena ...... 225 5. QUAL O LUGAR? PERCURSOS E CRUZAMENTOS NOS CAMINHOS DOS “PAULISTAS DO ENTRE-LUGAR” ...... 230 5.1 Início promissor, perto e longe do Cinema Novo (1958-1969) ...... 230 5.2 Flerte com o Cinema Marginal e com o tropicalismo, guerrilha, docência e a retomada do cinema (1969-1981) ...... 264 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 294 REFERÊNCIAS ...... 301 FILMOGRAFIA ...... 329 ENTREVISTAS REALIZADAS EXCLUSIVAMENTE PARA ESTA PESQUISA ...... 339 ACERVOS CONSULTADOS ...... 340 FILMES DIRIGIDOS POR CADA CINEASTA (1958-1981) ...... 341 16

INTRODUÇÃO

“O filme acabou ficando um pouco amorfo, assim como um grito dentro d´água: abafado, com bolhas bonitas vindo à tona... e se desfazendo” (SANTOS, 1962, grifo meu)1. A frase é de Roberto Santos acerca de um de seus primeiros filmes, o curta-metragem Primeira Chance (1959), realizado com patrocínio do Governo do Estado de São Paulo, sobre a construção de escolas. No texto, escrito em primeira pessoa, o cineasta, expõe os conflitos inerentes à concepção desse filme. Explica que buscou se afastar do modelo de “documentário patrocinado”, com uma “espécie de repulsa natural, quase orgânica, de decantar em tons vivos, vibrantes, otimistas, patrioteiros etc etc, a construção de edifícios escolares”, acreditando que “construir escolas não é senão a mais comezinha das funções de qualquer tipo de governo”, mas, que, ao mesmo tempo, ele se via tolhido em suas potencialidades críticas pelo próprio “receio da liberalidade dos patrocinadores”, de modo que o resultado é, em suas palavras, “estranhíssimo”, descrevendo-o com a frase metafórica acima citada. Essas considerações sobre Primeira chance são interessantes como ponto de partida para adentrar no exame de um cinema paulista do qual Roberto Santos foi figura de proa. Depois da realização de O grande momento (1958), marco do chamado cinema independente dos anos 1950 e um dos precursores do Cinema Novo, Santos só voltaria ao longa-metragem quase oito anos depois com A hora e a vez de Augusto Matraga (1965). Nesse ínterim, ele tenta viabilizar diversos projetos, entre os quais o de levar às telas Eles não usam black-tie, peça teatral do amigo (e protagonista de O grande momento), , com quem chegou a trabalhar no roteiro. Outras adaptações planejadas, segundo Inimá Simões (1997), foram: a peça de Barbosa Lessa, Não te assustes, Zacarias; o conto de João do Rio, O homem da cabeça de papelão, que chegou a ser noticiado na imprensa, e o livro de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, cujo plano de trabalho encontra-se depositado na Cinemateca Brasileira.2 Ele concluiu ainda o roteiro Cidade sem alma, 1959, em parceria com Roberto Nath, a partir de argumento de Alinor Azevedo, sobre a trajetória do bandido paulistano “Promessinha”3, filme que acabou sendo dirigido por sob o

1 Documento sem fonte. Acervo Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Pasta Roberto Santos. 2 SANTOS, Roberto. Quarto de despejo. Baseado no livro de Carolina Maria de Jesus. São Paulo? : s.n., 196-. ? p. Dat. [Plano de trabalho inicial para as sequências 1, 2 e 3 do 1o. tratamento. Incl. trechos do livro.] 3 Também depositado na Cinemateca Brasileira: SANTOS, Roberto, NATH, Norberto. Cidade sem alma. Argumento de Alinor Azevedo. São Paulo : Cinematográfica Inconfidência, 1959. 143 p. Mimeo. [Roteiro para 17

título de Cidade ameaçada (1960). Em paralelo às tentativas fracassadas de viabilizar seus projetos, o cineasta realizou filmes publicitários e institucionais, dentre os quais o referido Primeira chance (1959). O depoimento a que fazemos referência acima inclui outro dado interessante. Roberto declara que após a aceitação de Primeira chance – lançado em 1961, o filme recebeu o Prêmio Cidade de São Paulo e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo em 1962 – ele ficou estimulado a:

escrever outro roteiro do mesmo gênero, também para o Plano de Ação do Governo Estadual, mas desta feita, acentuando, revigorando energicamente, a linha esboçada no primeiro. Seria o seguinte: a incredulidade de um matuto diante de tudo o que o governo realiza em matéria de obras públicas. Finalidade principal: tentativa de estabelecer um juízo crítico, uma avaliação, a ser emitida por um representante obscuro dos próprios e supostos beneficiários dessas obras. (SANTOS, 1962).

Não obteve, porém, aprovação, segundo informa a “Nota do autor: Este roteiro foi recusado e atualmente se encontra arquivado. À espera de segunda chance.” (SANTOS, 1962). Esse texto e em particular a imagem do “grito dentro d´água: abafado, com bolhas bonitas vindo à tona... e se desfazendo” extrapola o caso de Primeira chance, trazendo elementos que contribuem para caracterizar a trajetória que Roberto Santos irá trilhar e que são extensivos às trajetórias de cineastas paulistas a ele contemporâneos. Expressada muito antes de se saber os rumos do Cinema Novo e do cinema paulista, sua frase constitui uma metáfora para o que encontramos ao longo de nossa pesquisa: um cinema abafado, de projetos frustrados, trajetórias truncadas, concessões e tentativas diversas; a meio caminho entre o cinema de autor e o cinema comercial, entre a crítica e a integração; um cinema capaz de belos momentos, mas dissolvidos ao não constituir um todo coerente e consistente. É desse cinema que trataremos aqui, qual seja, uma certa fração do cinema paulista que se formou contemporaneamente à formação e ascensão do grupo do Cinema Novo. Um “movimento notadamente carioca, que engloba de forma pouco discriminada tudo o que se fez de melhor – em matéria de ficção ou documentário – no moderno cinema brasileiro”, assim o Cinema Novo é definido por Paulo Emilio Salles Gomes (1996, p.81). Referência forte e longeva no meio cinematográfico brasileiro, o movimento tomou forma no Rio de janeiro na virada dos anos 1950 para 1960, congregando jovens culturalmente bem formados que se reuniam em espaços como a cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna) e bares como o Alcazar. Discussões estéticas se entremeavam a produção de José Antonio Orsin.] 18

questões políticas e a capital carioca – também sede de uma expressão forte do CPC (Centro Popular de Cultura) – estava no vórtice daquele momento efervescente. Ademais, foi no Rio que posteriormente ficou sediada a Embrafilme, empresa de capital majoritariamente estatal, fundada em 1969 e que sucedeu iniciativas governamentais anteriores como a CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica), no âmbito estadual, e o INC (Instituto Nacional de Cinema), de caráter federal. Desse modo, é possível afirmar que o Rio de Janeiro se tornou nos anos 1960 e 1970 a capital do cinema brasileiro ou ao menos o polo mais rico em prestígio cultural e o mais forte em termos de influência na política cinematográfica. Era o lugar onde se congregavam cineastas bem formados e talentosos, onde se concentravam as principais discussões estéticas e político-culturais e, ao mesmo tempo, lugar de proximidade “geográfica” com o Estado. Ante a efervescência carioca, a metrópole paulistana, marcada pelo fracasso do cinema “industrial” dos anos 19504, era percebida como lugar de “solidão da cultura cinematográfica”, para utilizarmos a expressão do cineasta Maurice Capovilla em depoimento a Carlos Alberto Mattos (2006, p.101). E a Igor Sacramento, Capovilla declara:

[…] o cinema de São Paulo é o resultado de um grande fracasso da Vera Cruz […] todo esse período até 60 e pouco você tinha o , Roberto Santos e Luiz Sérgio Person eram os grandes diretores e mais ninguém. Os longa- metragistas não existiam. Existia o cinema da Boca, de autores anônimos, e havia o movimento dos jovens diretores de curtas-metragem. E aí surge uma segunda etapa com o João Batista [de Andrade], com o [Francisco] Ramalho, que montaram uma produtora. Mas era muito pobre o movimento cinematográfico paulista comparado com o do Rio de Janeiro, para onde migraram os baianos, os mineiros, além dos cariocas. Houve um movimento inspirado no que se fazia no Rio de Janeiro. [...] O cinema paulista nunca se equiparou ao carioca. […] Eu sou paulista, mas sinto muito. Não dá pra comparar. (CAPOVILLA apud SACRAMENTO, 2008, p.43).

Francisco Ramalho Jr. segue na mesma direção: “na medida em que o cinema que estava começando a nascer se encontrava no Rio de Janeiro, e não fazíamos parte do grupo, do Cinema Novo, não estávamos na Embrafilme, nada. Éramos, digamos assim, apenas paulistas” (RAMALHO apud SABADIN, 2009, p.51).5

4 Nos anos 1950 foram fundadas pela burguesia paulistana companhias cinematográficas de pretensões industriais. A principal delas foi a Vera Cruz, em 1949, com projeto de cinema em moldes internacionais, com vultosos aportes de capitais, grandes estúdios, star system e qualidade técnica, distanciando-se do modelo das chanchadas da Atlântida (empresa carioca fundada em 1941, especializada em comédias populares de custo relativamente baixo). Na esteira da Vera Cruz, foram criadas outras companhias como a Maristela e a Multifilmes e todas malograram, ainda na década de 50. Cf. Galvão (1981); Catani (2002). 5 Conforme veremos no capítulo 1, autores como José Mário Ortiz Ramos (1983), Randal Johnson (1987), Tunico Amâncio (2000) e Marina Soler Jorge (2002) confirmam que houve, especialmente na gestão Roberto

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Renato Tapajós declara a Marcelo Ridenti (2010) que, embora o círculo de cineastas do qual ele fez parte tomasse como referência as propostas cinemanovistas, eles não eram reconhecidos como parte do grupo:

[…] embora a gente estivesse aqui em São Paulo sob o total impacto do Cinema Novo – e todo mundo via o Cinema Novo como a redenção do cinema brasileiro –, na verdade São Paulo nunca esteve envolvida no Cinema Novo, quer dizer, depois comentava-se que o Cinema Novo era composto por aqueles que Glauber achava que faziam parte do Cinema Novo. E como ele nunca achou que os paulistas fizessem parte do Cinema Novo, a gente corria um pouco à margem disso daí, embora fizesse todas as discussões e tentasse acompanhar todas as propostas. (TAPAJÓS, 1997 apud RIDENTI, 2010, p.98).

João Batista de Andrade chega a denominar as reverberações paulistas do movimento carioca como “Cinema Novo Tardio de São Paulo” (ANDRADE, 2002b, p.50). Mais do que um grupo ou movimento, o Cinema Novo apresenta-se como um “momento histórico que se impõe para uma geração”, no entender de Maurice Capovilla (apud SACRAMENTO, 2008, p.43). Ingressados na vida adulta antes do golpe civil-militar de 1964, oriundos dos meios universitários e com tendências políticas de esquerda, os cineastas “paulistas” – leia-se estabelecidos em São Paulo – Roberto Santos (1928-1987), Luiz Sérgio Person (1936-1976), Maurice Capovilla (1936- ), Sérgio Muniz (1935- ), João Batista de Andrade (1939- ), Francisco Ramalho Jr. (1940- ) e Renato Tapajós (1943- ) compartilhavam com os cinemanovistas um “caldo de cultura” comum6 e não se identificavam organicamente a outros

Farias (1974-1979), o predomínio de produções cariocas, notadamente do Cinema Novo, a receber recursos da Embrafilme. Luciano Fernandes (2008), por sua vez, traçando um panorama mais amplo das relações entre Cinema Novo e Estado, aponta para as relações privilegiadas que favoreceram o grupo desde o seu surgimento, contando com apoio de órgãos como a Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty, SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica). 6 O intervalo entre as datas de nascimento dos membros do “núcleo duro” do Cinema Novo é de 1928 (nascimento do veterano Nelson Pereira dos Santos) a 1940 (nascimento de Cacá Diegues). No caso dos sete “paulistas” vai de 1928 (nascimento de Roberto Santos – que está para os “paulistas” assim como Nelson está para os cinemanovistas) a 1943 (nascimento de Renato Tapajós). Assim como os cinemanovistas, todos os nossos “paulistas” cursaram, parcial ou integralmente, ensino superior: Roberto Santos ingressou nas Faculdades de Arquitetura e Filosofia, que abandonou; Person abandonou no último ano o curso de direito da Faculdade de Direito do Largo São Francisco-USP; Capovilla formou-se em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP; Muniz cursou por algum tempo Ciências Sociais na USP e por um ano a Escola Superior de Propaganda (ESP, hoje ESPM); Batista, Ramalho Jr. e Tapajós cursaram, sem concluir, engenharia na Escola Politécnica da USP – Tapajós cursou depois Ciências Sociais também na USP. Politicamente, Roberto Santos, Capovilla, Muniz e Batista tiveram breves ou longas passagens pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Tapajós foi militante da organização de esquerda armada Ala Vermelha do PC do B (Partido Comunista do Brasil). Ramalho Jr. e Person são os únicos que nunca foram vinculados a partidos ou organizações de esquerda mas Ramalho Jr. chegou a ser preso por “dar cobertura” ao amigo militante Antônio Benetazzo, estudante de arquitetura e artista plástico assassinado pela ditadura em 1972, a quem dedica seu filme Paula – a história de uma subversiva (1979).

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núcleos de cineastas que produziam em São Paulo, como o dos “universalistas”7, ou o dos jovens do Cinema Marginal afinados à contracultura. No entanto, por não se beneficiarem da posição dos cinemanovistas no meio cinematográfico, produziam conforme as possibilidades disponíveis, por vezes recorrendo à estrutura de produção da Boca do Lixo paulistana, de enfoque eminentemente comercial. E, não obstante as diversas relações e parcerias que estabeleceram entre si8, não chegaram a se constituir como grupo, conforme relata João Batista de Andrade:

Muitas vezes nós tentamos reunir todo o pessoal de cinema – e nós éramos tão poucos – procurando incentivar um movimento, um projeto cinematográfico que pudesse nos unir e fortalecer. Eram discussões terríveis que nunca chegavam a nada. Eu não me entendia, politicamente, nem com o Capovilla e muito menos com o Roberto Santos, apesar de minha admiração por ambos, como cineastas [...] em São Paulo, o nosso mestre maior, Roberto Santos, nos impunha sua força, sua ira santa e anárquica. Talvez tenha sido esse o recado do Roberto, uma coisa do tipo “Cineastas, desuni-vos!”, uma ojeriza à organização política. (ANDRADE apud CAETANO, 2004, p.103 e 105).

Efetivamente, o que nos permite aproximá-los é menos a convergência de propósitos e mais o fato de compartilharem uma espécie de “entre-lugar”, tendo, de um lado, o Cinema Novo – principal referência estética e cultural e grupo dominante da época9 – e, de outro, as condições de produção cinematográfica que se apresentavam em São Paulo, as quais passavam em larga medida pelo esquema de produção da chamada Boca do Lixo. Um dos principais desafios desta pesquisa foi definir os contornos do objeto, uma vez que a própria ideia de “entre-lugar” pressupõe algo não definido e de difícil caracterização. Um dos critérios utilizados para estabelecer os sete nomes anteriormente delineados foi a partilha por esses cineastas de características como aquelas mencionadas: pertencimento a uma geração que se formou antes do golpe de 1964; passagem pelos meios universitários; tendências políticas de esquerda. Procurou-se, nesse sentido, identificar os

7 A vertente “universalista” ou “cosmopolita” é entendida por José Mário Ortiz Ramos como aquela que não vê problema em o cinema brasileiro “absorver, sem críticas, formas de produção e moldes artísticos estrangeiros” (RAMOS, J., 1983, p.23). A dicotomia “nacionalistas” versus “universalistas” na prática se apresenta matizada, mas o esquema é importante para compreender os polos do conflito que permeava o meio cinematográfico. No “grupo” dos “universalistas” encontram-se nomes como Rubem Biáfora, Walter Hugo Khouri, Flávio Tambellini e Fernando de Barros, assim como seus “herdeiros” mais jovens Alfredo Sternheim e Astolfo Araújo. 8 Conforme veremos em detalhe no capítulo 5. 9 Embora consideremos que o Cinema Novo enquanto movimento estético-cultural tenha se esvaziado no início dos anos 1970, entendemos que seus remanescentes continuaram carregando consigo a marca de sua “filiação” e sendo fortalecidos por suas redes de relações. Compreendendo as mudanças históricas e estéticas, para efeitos práticos utilizamos a expressão “Cinema Novo” para identificar o grupo que esteve à frente do movimento dos anos 1960 e continuou produzindo na década seguinte.

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cineastas que fizeram parte da “geração Cinema Novo”10, mas que, estando estabelecidos em São Paulo, não lograram pertencer ao núcleo do movimento sediado no Rio de Janeiro. Ademais, levou-se em conta que esses sete cineastas estabeleceram ao longo dos anos 1960 e 1970 relações e parcerias entre si, tendo colaborado em projetos um do outro e participado de discussões em conjunto, embora nunca tenham se constituído como um grupo coeso. Há no cinema paulista outros nomes que não estão situados nos “lugares” então estabelecidos, do Cinema Novo, dos “universalistas”, do Cinema Marginal, da Boca do Lixo. É o caso de Jorge Bodanzky (1942 - ); Denoy de Oliveira (1933-1998); Hector Babenco (1946- ); Ugo Giorgetti (1942- ); Hermano Penna (1945- ) e Ana Carolina (1949- ), e ainda dos egressos das primeiras turmas de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), como Aloysio Raulino (1947-2013), Plácido de Campos Jr. (1944-2008), Djalma Limongi Batista (1950- ) e Alain Fresnot (1951- ). Entretanto, todos estes, a maioria mais jovens do que os sete selecionados, ingressaram na direção (de curta ou longa-metragem) apenas nos anos 1970 ou, excepcionalmente, em 1969.11 Esse é um aspecto que se apresentou como decisivo na delimitação do corpus de pesquisa. A realização do primeiro filme é signo fundamental da inserção do cineasta no meio cinematográfico e o interesse desta tese é analisar o caso de cineastas que ingressaram no cinema ainda na primeira metade dos anos 1960, considerando que se toma como referência o Cinema Novo. O intuito, justamente, é acompanhar a trajetória de uma certa vertente paulista da “Geração Cinema Novo” e os cineastas logo acima citados não respondem a este quesito. Nesse sentido, busca-se, portanto, compreender melhor o espaço em que se moviam Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Maurice Capovilla, Sérgio Muniz, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr. e Renato Tapajós, os cineastas que denominamos “paulistas do entre-lugar”. A filmografia que não segue um mesmo modelo de produção e financiamento é um traço significativo na trajetória dos cineastas em foco. Sistema de cotas oferecidas a investidores particulares, subvenções do movimento estudantil, empréstimos bancários, produção no âmbito da universidade, associação com produtores da Boca do Lixo, produção independente com hipoteca de bens particulares, auxílios estatais no final dos anos 1970 após as pressões da APACI (Associação Paulista de Cineastas), são muitas as formas de

10 Pedro Simonard (2006) é um dos autores que trabalha com a noção de geração para o estudo do Cinema Novo, focalizando o grupo carioca. 11 Estreias como diretor: Jorge Bodanzky e Hermano Penna (em codireção) – Caminhos de Valderez (1971); Denoy de Oliveira – Amante muito louca (1973); Hector Babenco – O fabuloso Fittipaldi (1973, codireção Roberto Farias); Ugo Giorgetti – Campos Elíseos (1973); Ana Carolina – Indústria (1969); Aloysio Raulino e Plácido de Campos Jr. (em codireção) – Rua 100, New York (1969); e Alain Fresnot – Doces e salgados (1973).

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viabilização encontradas pelos “paulistas do entre-lugar” para realização de seus filmes. E o que se percebe ao analisar as trajetórias em conjunto é que esses cineastas se relacionaram com os principais núcleos de produção cinematográfica brasileiros ao longos dos anos 1960 e 1970 sem pertencerem organicamente a nenhum deles. O diagrama esboçado a seguir sistematiza esse quadro. Trata-se de um recurso ilustrativo meramente esquemático, que não apreende a dinâmica dos processos e transformações ocorridos ao longo das décadas e contempla apenas os conjuntos relacionados com o objeto desta pesquisa, desconsiderando as produções regionais (cinema baiano, gaúcho, mineiro etc), os produtores de pornochanchadas cariocas e a produção do comediante Mazzaropi.

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Cinema Novo núcleo duro: Nelson Pereira dos Santos, , Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, , David Neves, Leon Hirszman, Gustavo Dahl. Integrantes do “segundo círculo” do Cinema Novo, notadamente Paulo Gil Soares e Eduardo Escorel, em intersecção com Farkas.12 Dahl, oriundo de São Paulo – Cinemateca Brasileira –, relação com Paulistas do entre-lugar. Capovilla na intersecção Cinema Novo/Farkas/Paulistas do entre- lugar. João Batista e Ramalho Jr. (início da carreira, como assistentes) e Fig.1 Sérgio Muniz13 na intersecção Farkas/Paulistas do entre-lugar. Roberto Santos (Matraga) e Person (São Paulo S.A) na intersecção Cinema Novo/Paulistas do entre-lugar.14 “Marginal carioca”15, alguns, notadamente Júlio Bressane, proximidade inicial com Cinema Novo. Cinemanovistas realizam filmes próximos à estética Marginal, ex. Câncer (Glauber Rocha, 1968/1972). “Marginal cafajeste” (Reichenbach, Antônio Lima, Callegaro) relação com Boca do Lixo. “Universalistas”: Biáfora, Tambellini, B.J.Duarte (crítico), Fernando de Barros, Khouri, Alfredo Sternheim. Estes dois últimos se aproximarão nos anos 70 da produção erótica da Boca do Lixo. Intersecção Paulistas do entre-lugar/“Universalistas”: Roberto Santos proximidade com Fernando de Barros que produziu O homem nu (1967) e As Cariocas (1966). Este, composto de três episódios, um dirigido por Barros, outro pelo também “universalista” Khouri e o terceiro por Santos. Com produção de Khouri, Santos realiza Um anjo mau (1971). Sob encomenda de Biáfora, Capovilla realiza As noites de Iemanjá (1971). Paulistas do entre-lugar fazem intersecção com todos os outros “conjuntos” mas não representam tipicamente nenhum.

12 “Caravana Farkas” é designação dada a posteriori para agrupar genericamente os documentários produzidos por Thomaz Farkas (produtor húngaro estabelecido em São Paulo, proprietário da empresa de materiais fotográficos Fotoptica). Cf. Meize Lucas (2005) e Gilberto Sobrinho (2008). A produção da chamada “Caravana Farkas” costuma ser identificada com o Cinema Novo (Cf., entre outros, Ramos; Miranda (Orgs), 2000, p.145), pois compartilha com o movimento alguns princípios estéticos e temáticos; os núcleos de produção, entretanto, são independentes, ainda que haja a participação de nomes ligados ao Cinema Novo na produção Farkas, como os citados Paulo Gil Soares e Eduardo Escorel. 13 Mesmo sendo um nome estreitamente vinculado à produção Farkas, decidimos incluir Sérgio Muniz no conjunto dos “paulistas do entre-lugar” porque ele esteve mais próximo dos “paulistas” do que os demais cineastas do grupo Farkas, que estiveram mais próximos dos cinemanovistas. Além disso, ele fixou-se em São Paulo (diferentemente de Geraldo Sarno, por exemplo, que se radicou no Rio de Janeiro, onde sediou sua produtora, Saruê Filmes) bem como realizou um filme bastante distinto da temática do rural e da cultura popular nordestina, marca da produção Farkas e da filmografia dos baianos Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares: Você também pode dar um presunto legal (1971), que, com linguagem moderna, aborda o Esquadrão Morte, passando por outras questões caras ao contexto da época como a desigualdade social, a expansão das multinacionais e a cultura de consumo, num trabalho que mobiliza imagens da cidade de São Paulo e trechos de peças de teatro encenadas na cidade. Para a TV Globo, ele realizou dois documentários também bastante ligados a São Paulo e à vida urbana: Vera Cruz, fábrica de desilusões (1975) e Loucura nossa de cada dia (1977). 14 Abordagens que privilegiam a identidade estética entre as obras costumam aproximar A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965) da primeira fase (rural) do Cinema Novo e São Paulo S.A (Luiz Sérgio Person, 1965) da segunda fase (urbana) do movimento. Cf, entre outros, Fernão Ramos (1987a). 15 Fernão Ramos (1987b) identifica duas vertentes do Cinema Marginal: o “marginal carioca”, composto por Júlio Bressane, Neville d´Almeida, Elyseu Visconti, entre outros “independentes próximos”, que de certa forma tinham como referência o Cinema Novo, ainda que para contestá-lo; e o “marginal cafajeste” com nomes como Carlos Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro que produzem na Boca do Lixo paulistana e exploram de maneira debochada elementos eróticos. Sganzerla começa na Boca e depois muda-se para o Rio fazendo parceria com Bressane. André Luiz de Oliveira e Álvaro Guimarães são representantes do “movimento” na Bahia.

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Outro traço saliente na trajetória dos cineastas de nossa pauta são os vínculos, de maior ou menor duração, que eles estabeleceram com a televisão nos anos 1970 e início dos anos 1980 – TV Cultura (João Batista de Andrade e Roberto Santos); TV Globo (João Batista, Capovilla, Muniz, Tapajós e Roberto Santos); TV Bandeirantes (Capovilla)16. De fato, ao longo de suas trajetórias, os sete “paulistas” dedicaram-se a várias atividades que não propriamente a direção cinematográfica: publicidade, jornalismo, docência, militância político-partidária, atividades administrativas, produção para televisão, entre outras. E nos parece significativo que, na trajetória dos sete, praticamente coincida uma “lacuna” na direção cinematográfica no período de 1971 a 197617 e que a volta ao cinema se dê, em vários casos, quando conseguem obter recursos da Embrafilme após articularem-se politicamente em torno da APACI, fundada em 1975. É possível que o fato de não apresentarem coesão de propósitos e não terem se constituído organicamente como grupo tenha contribuído para a posição secundária desses “paulistas do entre-lugar” no meio cinematográfico. Suas trajetórias são irregulares, marcadas por atividades fora do âmbito do cinema e suas filmografias, com intervalos relativamente grandes entre a realização de um filme e outro, contêm obras “destoantes” que compõem um conjunto heterogêneo, temática e estilisticamente. Transitando entre o “cinema de autor” e o “cinema comercial” e alternando trabalhos para o cinema, para a televisão e para a publicidade, esses cineastas não conseguiram um lugar na história do cinema brasileiro. 18 Algumas de suas obras foram abrigadas sob a chancela de Cinema Novo ou de Cinema

16 Person passou pela televisão antes de se estabelecer como cineasta entre 1955 e 1958, sendo ator e diretor de teleteatro. 17 Capovilla se afasta da direção cinematográfica entre As noites de Iemanjá (1971) e O jogo da vida (1977); Batista entre a série Panorama do cinema paulista – Paulicéia Fantástica (1970), Eterna esperança (1971) e Vera Cruz (1972) –, realizada para a Comissão Estadual de Cinema de São Paulo, e Doramundo (1978); Roberto Santos entre Um anjo mau (1971) e As Três Mortes de Solano (1976); Muniz entre De Raízes e Rezas, entre outros (1972) e Cheiro/gosto, o provador de café (1976); Ramalho Jr. entre Anuska, manequim e mulher (1968) e Joãozinho, episódio do longa Sabendo usar não vai faltar (1976). Tapajós, preso entre 1969 e 1974, retorna ao cinemacom Fim de Semana (1976). E Person, sem conseguir realizar seu acalentado projeto A hora dos ruminantes, afasta-se do cinema depois de Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), dedicando-se ao teatro até sua morte em 1976, e, excepcionalmente, à realização do curta-metragem documental Vicente do Rego Monteiro (1974), sobre o artista título. Nesse período, os principais nomes do Cinema Novo viabilizavam seus projetos por meio de aportes estatais e/ou em coproduções estrangeiras. 18 Alguns filmes de Roberto Santos, Person e Capovilla por vezes são mencionados em aproximações com o Cinema Novo, enquanto que Sérgio Muniz, João Batista de Andrade e Renato Tapajós são reconhecidos principalmente no âmbito do documentário. Entretanto, a filmografia completa de cada um deles e a fração do cinema paulista que eles representam em conjunto não encontram lugar específico na história do cinema brasileiro. Filmes como Bebel, garota propaganda (Capovilla, 1967), Anuska, manequim e mulher (Ramalho Jr, 1968) e O profeta da fome (Capovilla, 1970) – apenas para citarmos longas-metragens de ficção, geralmente mais prestigiados em abordagens panorâmicas – não são sequer mencionados em obras como História do Cinema Brasileiro, organizada por Fernão Ramos (1987a), e Brazilian Cinema, organizada por Randal Johnson e Robert Stam (1995).

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Marginal, mas, efetivamente, nenhum deles fez parte do núcleo de um ou outro desses movimentos. Não cabe, todavia, propor que eles representam um outro movimento cinematográfico, uma vez que são heterogêneos tanto o conjunto da filmografia como a trajetória de cada cineasta. A proposta de apreender relacionadamente as trajetórias tem por intuito identificar proximidades e distanciamentos e observar as possibilidades e os limites do “entre-lugar”, o que inclui assinalar recorrências estéticas e temáticas e laços entre os componentes do conjunto sem contudo forçá-los a representar um grupo coeso ou movimento que nunca chegaram a constituir. Diversos trabalhos, sob diferentes enfoques, foram dedicados ao Cinema Novo19 e ao Cinema Marginal20 e até mesmo a produção erótica da Boca do Lixo tem sido objeto de novos olhares21. Há também alguns trabalhos sobre o “universalista” Walter Hugo Khouri22, mas aos “paulistas do entre-lugar” – individualmente ou, menos ainda, em conjunto – não foram dedicados estudos acadêmicos específicos, com exceção de Person, objeto da dissertação de Candida Costa (2006) que toma por base o documentário Person (Marina Person, 2006) para lançar luz sobre a vida e a obra do cineasta. Quanto aos outros seis “paulistas”, há trabalhos que abordam determinados aspectos ou momentos de suas trajetórias: a dissertação de Renata Fortes (2007) dedicada à “obra documentária” de João Batista de Andrade; a dissertação de Igor Sacramento (2008) sobre a atuação de cineastas, entre os quais Capovilla e Batista, nos programas Globo-Shell Especial e Globo Repórter; a dissertação de Heidy Vargas Silva (2009) também dedicada aos programas Globo-Shell Especial e Globo Repórter no período entre 1971 e 1983; a tese de Cássia Palha (2007) sobre as construções simbólicas em torno da noção de povo no Globo Repórter (1973-1985); a tese de Meize Lucas (2005) sobre a Caravana Farkas; o livro de Mário Augusto Medeiros da Silva (2008) com informações biográficas sobre Renato Tapajós e seu romance Em Câmara Lenta (1977); a tese de Maria Carolina Granato da Silva (2008) que investiga a relação do cinema com as greves de metalúrgicos do ABC. Alguns filmes também foram abordados, notadamente São Paulo, Sociedade Anônima, conhecido como São Paulo S.A – Bin (1998); Moraes (2009, 2010)23; Nehring (2007); Xavier (2006a); Salvadore (2005), que também

19 Cf. Xavier (2006b, 2007, 2012), Noritomi (1997), Jorge (2002), Yuta (2004), Simonard (2006), Fernandes (2008), entre outros. 20 Cf. Ferreira (1986), Ramos, F.(1987b), Xavier (2012), entre outros. 21 Cf. Abreu (2002, 2006), Sternheim (2005), Gamo (2006), entre outros. 22 Cf. Pucci Jr. (2001); Stigger (2007). Nehring (2007) analisa Noite Vazia (Khouri, 1964), ao lado de São Paulo S.A. e O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), marco do Cinema Marginal. 23 Dissertação posteriormente publicada pela Coleção Aplauso traz uma pesquisa ampla sobre o contexto que

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analisa O grande momento; e Noritomi (1997), que abarca o filme de Person entre os que, segundo ele, apresentam “uma alternativa urbana dentro do Cinema Novo” – e A Hora e a vez de Augusto Matraga, objeto de diversos trabalhos, como o de Lima (2008), que cotejam o filme com o conto de Guimarães Rosa que lhe deu origem. Os livros, Brasil em tempo de cinema (2007 [1967]), Trajetória crítica (1979) e Cineastas e imagens do povo (2003), de Jean-Claude Bernardet e a tese de livre-docência de Rubens Machado Jr., Imagens brasileiras da metrópole: a presença da cidade de São Paulo na história do cinema (2007), também abordam alguns filmes dos cineastas em pauta, em meio a corpus mais amplos. O objetivo desta tese é, assim, suprir a lacuna de estudos sobre esse conjunto específico de cineastas paulistas, cujas trajetórias, embora heterogêneas, carregam traços comuns e características similares que permitem aproximá-los não só a partir das relações que estabeleceram entre si mas também pelo semelhante (não) “lugar” que ocuparam no meio cinematográfico. Ao investigar sociologicamente as trajetórias de cada um deles, observando o que têm em comum e o que têm de singular; bem como ao cotejá-las com aquelas de cineastas contemporâneos, foi possível analisar as condições compartilhadas e os caminhos que cada um seguiu dentro do espectro de possibilidades e ante os limites e pressões defrontados. Deste modo, propicia-se uma nova visada sobre o meio cinematográfico brasileiro dos anos 1960 e 1970. Além disso, ao trabalhar com as obras desses cineastas, lança-se luz a filmes pouco conhecidos ou estudados; e, sobretudo, ao abordá-los em conjunto, identifica-se uma vertente singular de abordagem da modernidade urbana capitalista. Se há na filmografia dos “paulistas do entre-lugar” filmes que se aproximam em larga medida da produção do Cinema Novo, há também esta significativa vertente que atravessa os anos e as diferentes trajetórias: crítica da realidade social, à semelhança das abordagens cinemanovistas, mas que coloca em tela não os dilemas do “povo” e da “nação” ou as agruras do atraso do país e sim as contradições da própria modernidade, tratando de questões como o trabalho alienado, a indústria cultural e a reificação das relações sociais de maneira consideravelmente distinta das principais linhas de força do Cinema Novo, assim como do Cinema Marginal e do cinema dos “universalistas”. Tomando como referencial teórico basilar a sociologia da cultura de Raymond Williams (1977, 2000) e considerando as contribuições de autores diversos como Jean-Pierre Esquenazi (2004, 2007), Pierre Bourdieu (1986, 1996) e Pierre Sorlin (1977), a pesquisa não

envolve São Paulo S.A., fornecendo importantes informações sobre o processo de produção e a recepção do filme pela crítica, bem como sobre a carreira de Person.

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pressupôs dicotomia entre abordagens “externalistas” e “internalistas” do cinema, entendendo que o social está tanto fora dos filmes – na configuração do meio cinematográfico, nas redes de relações entre cineastas, na relação entre cinema-Estado – como dentro deles, isto é, nas problemáticas que eles apresentam por meio de sua tessitura formal. Buscou-se então conjugar a análise do meio cinematográfico à análise fílmica, evitando estabelecer determinações mecânicas entre esses dois âmbitos. As fontes utilizadas compreenderam ampla bibliografia sobre o Cinema Novo, o cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 e o contexto histórico; biografias de cineastas que realizaram filmes naquele período; documentação primária, como críticas, entrevistas publicadas e entrevistas inéditas realizadas especialmente para este pesquisa, reportagens e debates da época; assim como os filmes e outras obras audiovisuais realizadas pelos “paulistas do entre-lugar” e seus contemporâneos. No momento de análise dos filmes, considerou-se importante o cuidado de não impor aos filmes conclusões decorrentes das investigações sobre a configuração do meio cinematográfico, o contexto histórico e as condições de produção, forçando-os ao enquadramento em categorias definidas a partir de critérios externos. Procedeu-se à análise fílmica partindo-se das obras e das questões que elas apresentavam em sua construção audiovisual, valendo-nos para isso das contribuições de autores como Jacques Aumont e Michel Marie (1990, 2003); Jacques Aumont (1993) e Aumont et.al. (1995); David Bordwell (1985); Sergei Eisenstein (2002); Fredric Jameson (1985); Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (1994), Paulo Menezes (2001, 2004, 2007) e Ismail Xavier (1977). O recorte temporal definido para abordar as obras e as trajetórias dos cineastas do “entre-lugar” foi o período entre 1958 e 1981, abarcando, de maneira ligeiramente estendida, as décadas de 1960 e 1970. O recuo a 1958 se justifica por ser considerado O grande momento, primeiro filme de Roberto Santos, um marco para o cinema paulista e importante referência para o cinema brasileiro, enquanto o prolongamento até 1981 se faz necessário para que se possa abarcar os filmes da virada dos anos 1970/80, vários dos quais têm intensa relação com as greves operárias da época, coroando de certa forma a abordagem de problemáticas que vinham se esboçando nas décadas anteriores. Parece fechar-se aí um ciclo do cinema paulista, dando lugar a novas propostas que surgiam com os “jovens paulistas”, proeminentes nos anos 198024. Ao mesmo tempo, 1981 é o ano da morte de Glauber Rocha,

24 Filmes como O olho mágico do amor (Ícaro Martins e José Antônio Garcia, 1981); Noites paraguaias (Aloysio Raulino, 1982); Asa branca, um sonho brasileiro (Djalma Batista, 1981); A marvada carne (André Klotzel, 1985); A Hora da Estrela (Suzana Amaral, 1986); Cidade Oculta (Chico Botelho, 1986); Anjos da noite (Wilson Barros, 1987); A Dama do Cine Xangai (Guilherme de Almeida Prado, 1988); Vera (Sérgio Toledo,

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marco simbólico do fim definitivo do Cinema Novo. Esvaziado como proposta estética desde o início dos anos 1970, o Cinema Novo perde força também como “grupo de pressão” em relação ao Estado, particularmente após o encerramento da gestão Celso Amorim (1979- 1982). Ademais, a Embrafilme entra em crise nos anos 1980, na esteira da crise da economia brasileira combinada à ascensão de campanhas contra a intervenção estatal, além da perda de espaço do cinema ante a televisão e o mercado de vídeo doméstico. Enquanto isso, a produção da Boca do Lixo paulistana declina cada vez mais em direção a filmes pornográficos explícitos, rumo à derrocada final. O quadro cinematográfico dos anos 1980 é, assim, bastante distinto daquele das décadas anteriores e, desse modo, mesmo que alguns de nossos “paulistas” deem prosseguimento a suas carreiras, não caberia apreendê-las segundo os mesmos parâmetros utilizados para tratar das décadas de 1960 e 1970.

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Esta tese estrutura-se em cinco capítulos, a saber:

Cinema Novo e(m)São Paulo: “cinema de autor”, Brasil, anos 1960 e 1970, primeiro capítulo, trata do Cinema Novo e de sua relação com a cidade de São Paulo e com o cinema paulista. O Cinema Novo reivindicou-se desde a sua formação como “a” referência de “cinema de autor” no Brasil e essa referência perdurou durante os anos subsequentes. Sendo assim, consideramos salutar uma discussão sobre o que foi o Cinema Novo, apreendendo de modo integrado a sua constituição como grupo, movimento e referência geracional e examinando seu significado social e cultural ao longo dos anos 1960 e 1970. A seguir, são abordadas as reverberações paulistas do movimento e é destacado o importante papel da Cinemateca Brasileira, incluindo aí as interlocuções dos cinemanovistas com os críticos a ela vinculados, notadamente Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet. O capítulo focaliza também as divergências entre cariocas e paulistas, a querela em torno da brasilidade bem como as disputas no “campo”. E, em seu último tópico, coloca em pauta as condições de produção cinematográfica nos anos 1960 e 1970, a relação entre cinema e Estado, as

1987) e Feliz Ano Velho (Roberto Gervitz, 1988) são representativos dessa produção jovem que tem como características “uma certa tensão entre linearidade e fragmentação, a preocupação com uma narrativa que atrai o espectador mas sempre atravessada pela ironia e ambiguidade, uma irresistível atração pela metrópole modernizada, o desprezo por grandes sonhos e utopias, a questão da identidade”. (RAMOS, J.1987, p.446). Ao contrário dos “paulistas do entre-lugar”, o cinema dos “jovens paulistas” dos anos 1980 foi objeto de vários estudos, tais como os de Bernardet (1985); Ab´saber (2003); Barbosa (2003) e Pucci Jr. (2008).

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particularidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, bem como as relações e eventuais parcerias entre cinemanovistas e paulistas. O segundo capítulo, São Paulo e indústria cultural: Boca do Lixo, publicidade, televisão, ocupa-se das relações que os “paulistas do entre-lugar” estabeleceram com os âmbitos de produção audiovisual mais diretamente ligados à indústria cultural, quais sejam, a produção “utilitária” da Boca do Lixo, a realização de filmes publicitários e/ou institucionais e os trabalhos para a televisão. Assim, de início, são apresentadas as origens do Cinema da Boca do Lixo, a emergência da vertente paulista do Cinema Marginal naquela região e a relação dos “paulistas do entre-lugar” com esse núcleo de produção. A seguir, coloca-se em pauta a relação dos cineastas com a publicidade, contextualizando a inserção nesse meio e apresentando os diferentes “pesos” e conflitos desse tipo de trabalho nas trajetórias de cada um. O mesmo procedimento é adotado na análise do significado da passagem dos “paulistas do entre-lugar” pela televisão, verificando cada caso, destacando os trabalhos realizados e traçando paralelos com outros estudos relacionados ao tema. Por fim, considerando o apresentado neste e no capítulo anterior, é esboçada a hipótese de que diferentemente dos cinemanovistas que se inseriram no “mercado” por meio da estatal Embrafilme e preservaram, em larga medida, a dimensão autoral sem quebra da continuidade em suas filmografias, “os paulistas do entre-lugar” tiveram vivência mais próxima da indústria cultural, sendo eles próprios mão-de-obra dessa indústria nos momentos em que ela se consolidava. Esta vivência, experimentada com ambiguidades e conflitos, lhes rendeu elementos para crítica dessa instância-chave do capitalismo tardio e seus mecanismos de reificação. Essa hipótese será explorada nos dois próximos capítulos. Em A modernidade urbana capitalista pelas lentes dos “paulistas do entre- lugar”, terceiro capítulo, após uma discussão geral sobre modernidade e cinema, adentra-se em considerações a respeito das linhas predominantes de abordagem do rural e do urbano no cinema brasileiro para, então, debruçar-se sobre filmes representativos de uma fração do cinema paulista destacada na abordagem crítica da modernidade urbana capitalista, distanciando-se em larga medida da ênfase preponderante na “questão nacional” que marcou o cinema “culto” dos anos 1960 e 1970. É realizada uma breve revisão da filmografia paulista mais ampla para, a seguir, colocar em foco quatro obras dos “paulistas do entre-lugar” que consideramos paradigmáticas de uma vertente singular no trato dessa problemática, quais sejam: O grande momento (Roberto Santos, 1958); São Paulo Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1964), Vozes do medo (projeto coletivo sob coordenação de Roberto Santos,

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1970) e O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980). Esses filmes atravessam todo o nosso recorte temporal e formam uma linha coerente em que um filme de certa forma dá continuidade à problemática trabalhada pelo anterior. Considerando que essas obras já foram objeto de estudos anteriores, nosso objetivo neste capítulo, mais do que analisá-las esmiuçada e verticalmente, é defendê-las como estruturantes de um eixo crítico singular de abordagem da modernidade urbana capitalista, eixo em torno do qual também se encontram as obras analisadas no capítulo seguinte. O quarto capítulo, Por trás do brilho falso: indústria cultural, publicidade e reificação sob o foco dos “paulistas do entre-lugar”, está dedicado mais especificamente à abordagem da indústria cultural pelo cinema paulista e analisa detidamente seis obras audiovisuais dos “paulistas do entre-lugar” que trataram do show business e da publicidade, agrupadas aos pares por afinidades em subtópicos, quais sejam: Bebel, garota-propaganda (Maurice Capovilla, 1967) e Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr., 1968); As cariocas (3º episódio, Roberto Santos, 1966) e Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980); O filho da televisão (João Batista de Andrade, 1969) e Alice (João Batista de Andrade, 1978). O corpus selecionado contém obras da maior parte dos cineastas em foco e abarca cronologicamente todo o período de nosso recorte temporal, permitindo assim, observar diferentes estratégias estéticas e narrativas na abordagem do tema. O capítulo inclui também uma discussão sobre a associação entre cultura de massa e mulher e propicia ainda um breve cotejamento das obras dos “paulistas do entre-lugar” com obras contemporâneas que trataram do mesmo tema. Por fim, no quinto e último capítulo, Qual o lugar? Percursos e cruzamentos nos caminhos dos “paulistas do entre-lugar”, é realizada a apresentação analítica sistematizada e cronológica das trajetórias dos sete cineastas do conjunto em foco. É o momento de dar a conhecer as singularidades de cada percurso e de cada filmografia sem, contudo, perder de vista o enfoque global da tese. É o momento também de conceder maior espaço às trajetórias de Sérgio Muniz e Renato Tapajós, um tanto atípicas em relação aos demais cineastas do “grupo” por serem caracterizadas pela realização exclusiva de documentários em detrimento das ficções. Embora tenha-se cogitado abrir a tese com este capítulo, decidiu-se pelo seu posicionamento ao final para que as trajetórias sejam lidas à luz daquilo que anteriormente se deslindou acerca do meio cinematográfico da época e da filmografia analisada. Abrir a tese com as trajetórias seria cumprir tarefa descritiva, encerrar com elas significa favorecer a sua visão em perspectiva, permitindo compreender melhor os caminhos que cada cineasta

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percorreu dentro dos limites e possibilidades de seu contexto sócio-histórico. O capítulo se divide em dois tópicos centrais que abarcam respectivamente as duas décadas de nosso recorte temporal: os anos 1960 e 1970, tratando desde o início das trajetórias em proximidade com o Cinema Novo até as relações com o Cinema Marginal, as passagens pelas atividades extra- cinematográficas e a retomada do cinema nos anos 1970. Na conclusão do capítulo, por ocasião da discussão de filmes dos “paulistas do entre-lugar” que se relacionam às greves operárias da virada dos anos 1970 para 1980, inclui-se uma breve discussão sobre a presença do operário na filmografia paulista. Tal discussão vai ao encontro das hipóteses esboçadas ao longo da tese quanto à maior atenção dada pelos cineastas de São Paulo às relações capitalistas de produção, atenção percebida já em malogrados projetos do início dos anos 1960. Fecha-se assim um ciclo desta fração do cinema paulista que a tese procurou deslindar.

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1. CINEMA NOVO E(M) SÃO PAULO: “CINEMA DE AUTOR”, BRASIL ANOS 1960 E 1970

1.1 O que foi o Cinema Novo?

Movimento, escola estética, geração, grupo... O que foi o Cinema Novo? Inscrito em lugar de honra na história do cinema brasileiro, protagonista de diversas mostras cinematográficas locais e internacionais, objeto de ensaios e pesquisas acadêmicas, o Cinema Novo brasileiro parece há muito definido. Os ícones e os principais filmes do movimento são conhecidos e tem-se uma ideia geral do que se designa Cinema Novo. No entanto, um olhar mais acurado para os catálogos das mostras e textos a ele dedicados revela que nem sempre se fala exatamente da mesma coisa. Nomes e filmes são incluídos ou excluídos de acordo com os critérios do curador da mostra ou autor do texto e há divergências quanto às datas de início e especialmente de término do movimento. Alguns diretores estão diretamente a ele associados, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Gustavo Dahl e Paulo César Saraceni, enquanto outros são esporadicamente referenciados, como é o caso dos paulistas Roberto Santos, Maurice Capovilla e Luiz Sérgio Person. Tais dissonâncias decorrem por vezes de diferenças na perspectiva e abordagem dos autores. Enquanto alguns privilegiam a identidade temática e estética entre as obras, a despeito da trajetória de seus diretores, outros se preocupam mais com a constituição do Cinema Novo como grupo, considerando as redes de relações dos cineastas, as posições conquistadas por eles no “campo” cinematográfico, sua influência sobre o Estado e a política cinematográfica. Para melhor compreender o que foi o Cinema Novo, seu processo de formação e seu significado social e cultural ao longo dos anos 1960 e 1970, é salutar superar a dicotomia entre análises “externalistas” e “internalistas” do movimento. Longe de buscar uma definição precisa e estanque – o que seria indesejável, senão impossível – intenta-se aqui colocar em questão o processo pelo qual se constituiu a ideia de Cinema Novo; como se definiram seus contornos e se estabeleceram os lugares de destaque; quais sujeitos atuaram nesse processo; quais foram os momentos de força coletiva e de desagregação. A aproximação entre obras fílmicas afins é essencial do ponto de vista da análise estética e na constituição da história do cinema brasileiro, mas há de se dar, também, importância à inserção dos cineastas no meio

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cinematográfico, às condições de produção das obras e aos discursos em torno delas. O pertencimento ao Cinema Novo relaciona-se não somente à realização de obras que atendam a certos requisitos estéticos e temáticos – nunca precisamente determinados – mas envolve também critérios extra-artísticos, por assim dizer. Os contornos não são rígidos e mesmo o principal porta-voz do movimento, Glauber Rocha, oscila ao incluir ou excluir nomes, conforme os embates do momento. Considerando que pertencer ao núcleo do Cinema Novo representava prestígio no meio cinematográfico nacional e internacional, assim como possibilidades de acesso a recursos para produção, talvez seja possível dizer que não só a realização de obras com características cinemanovistas propiciou o pertencimento ao Cinema Novo mas que o pertencimento ao Cinema Novo possibilitou a realização de obras cinemanovistas. Nesse sentido, cabe refletir sobre o que o pertencimento ao grupo do Cinema Novo significou em termos sociais aos seus membros ou excluídos, o que implicou em consequências para as obras. Não se trata de desconsiderar a singularidade ou desprezar o mérito artístico, mas de compreender a importância de se lançar luz sobre questões que extrapolam a análise estética e envolvem a inter-relação entre produção cultural e sociedade. Compreender as referências, as redes de relações e o “espaço” em que se moviam os cineastas sediados em São Paulo nos anos 1960 e 1970 implica entender o que foi o Cinema Novo e apreender as inter-relações entre sua constituição como grupo, movimento e referência geracional. É nesse sentido que se desenvolvem as reflexões ora apresentadas, que não buscam ser conclusivas mas intentam trazer para discussão e problematizar, em conjunto, aspectos que têm sido abordados separadamente quando se analisa o movimento. Faz-se aqui um largo uso de citações com intenção de se esquadrinhar os discursos construídos em torno do Cinema Novo, considerando que eles, juntamente com os filmes e a atuação dos cineastas, contribuíram para a definição do movimento e a conformação do grupo. Não obstante, tem-se em mente o alerta de Raymond Williams (2011a) quanto aos perigos de uma análise “interna e circular” que toma o objeto a partir das próprias definições e perspectivas. É necessário que “encontremos formas de discutir essas formações que tanto reconheçam os termos pelos quais os membros do grupo veem a si próprios e desejariam ser representados quanto, ao mesmo tempo, nos habilitasse para uma análise desses termos e seu significado social e cultural.” (WILLIAMS, 2011a, p.206-7).

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1.1.1 Movimento abrangente?

Em seu célebre Estética da fome (1965), espécie de manifesto tardio do movimento cinemanovista que já se lançara nacional e internacionalmente com a contundente tríade sertaneja – Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963); Deus e diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964); Os fuzis (, 1964) – Glauber Rocha afirma:

[…] onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do cinema novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do cinema novo. A definição é esta e por esta definição o cinema novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do cinema industrial é com a mentira e com a exploração. (ROCHA, 2004 [1965], p.67, destaques no original).

David Neves, outro membro ativo e divulgador do movimento, enfatiza, em seu livro “Cinema novo no Brasil”, lançado em 1966, a ausência de dogmatismo aliada à pluralidade de estilos, defendendo que o “cinema novo” – grafado em minúsculas como em Glauber – é, “antes de mais nada”, “um estado de espírito, um estado revolucionário de espírito, relativamente às coisas de nossa cinematografia.” (NEVES, 1966, p.11). Paulo Emílio Salles Gomes, como vimos, igualmente apresenta o Cinema Novo de maneira larga: “movimento notadamente carioca, que engloba de forma pouco discriminada tudo o que se fez de melhor – em matéria de ficção ou documentário – no moderno cinema brasileiro” (GOMES, 1996, p.81). E Raquel Gerber o entende não apenas como um movimento cinematográfico, mas como “um movimento cultural que, tendo surgido na segunda metade da década de 50 no Brasil, estende até hoje sua significação e influência à cultura brasileira” (GERBER, 1982, p.14). Randal Johnson (1984) é outro teórico que ressalta a amplitude de significado do Cinema Novo:

Cinema Novo como um 'movimento' é muito mais largo e mais diverso do que muitas vezes se pensa. [...] Estudos que se concentram somente naqueles elementos que tendem a unificar o Cinema Novo muitas vezes resultam em definições empobrecidas e limitadas do movimento. Cinema Novo é muito mais do que 'bandidos cangaceiros', 'místicos fanáticos' e 'o sofrimento camponês onipresente', como alguns o tomaram. É, antes, o espírito da moderna realização no Brasil, uma disposição para criar um forte cinema nacional, um processo de descoberta e criatividade cinematográfica. Assim, não há contradição em dizer que, embora o Cinema Novo possa não mais existir como um movimento unificado, o ciclo histórico do Cinema Novo ainda não terminou. (JOHNSON, 1984, p.xi e xii, tradução nossa).

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Para Cacá Diegues, membro do núcleo central do movimento:

O Cinema Novo não tem data de nascimento. Não tem manifesto histórico e nenhuma semana de comemoração. Ele não foi criado por uma pessoa em particular e não é uma idealização de nenhum grupo. Ele não tem teóricos oficiais, papas ou ídolos, mestres ou luzes guias [...] O Cinema Novo é apenas parte de um longo processo de transformação da sociedade brasileira, alcançando, finalmente, o cinema. (DIEGUES, (1995 [1962]), p. 65, tradução nossa).

O próprio texto de Cacá, publicado originalmente em 1962, traz elementos para nuançar suas afirmações na medida em que constitui ele mesmo uma espécie de manifesto que estabelece referências, como Humberto Mauro, e opositores, como o cinema “alienado” da Vera Cruz; situa um momento de emergência por meio de nomes e filmes de destaque e apresenta alguns princípios basilares do movimento, como o baixo orçamento, o comprometimento sócio-político e a busca do “Brasil e seu povo”. Entretanto, a ênfase na liberdade de criação e na ausência de dogmas, ou mesmo de diretrizes estéticas explícitas, marca o caráter singular do texto e do movimento:

Porque o Cinema Novo não é uma escola, ele não tem estilo estabelecido. Ao contrário, um estilo unânime marca um movimento retrógrado, burguês, frívolo […] a forma é unicamente um dos termos de uma totalidade de instrumentos simultâneos dirigidos à comunicação de uma verdade. (DIEGUES, (1995 [1962]), p. 66, tradução nossa).

Em texto escrito na mesma época, Glauber Rocha corrobora essas proposições de Diegues: “A técnica é haute couture, é frescura para a burguesia se divertir. No Brasil o cinema novo é uma questão de verdade e não de fotografismo”. (ROCHA, “O cinema novo” [1962], 2004, p.52, destaques no original). As palavras-chave intensamente recorrentes em textos de críticos e cineastas entusiastas do Cinema Novo, notadamente nos momentos de emergência do movimento, são: “verdade”, “autenticidade”, “realidade social”, “homem brasileiro” e “povo”. São palavras, conceitos ou categorias amplas que não dizem respeito estritamente ao âmbito do cinema, mas remetem-se ao “longo processo de transformação da sociedade brasileira” a que se referiu Diegues e que estuda Marcelo Ridenti (2000, 2010). Uma leitura superficial dessas declarações sobre a abrangência e pluralidade do movimento pode deixar a falsa impressão de que o Cinema Novo não teve programa estético

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nem contornos definidos e esteve aberto às mais diversas tendências cinematográficas bastando que estas apresentassem conexão com a realidade social brasileira. A frase proferida por Gustavo Dahl quando da premiação de um dos filmes seminais do movimento, Arraial do cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, 1960), no festival de Santa Margherita Ligure: “nós não queremos saber de cinema. Queremos ouvir a voz do homem” – a que, significativamente, tanto Glauber Rocha (2004 [1962], p.52) como Cacá Diegues (1995 [1962], p.66) fazem referência – fortaleceria essa impressão de que faltaria ao Cinema Novo um caráter cinematográfico específico. No entanto, ao acompanhar a produção escrita e a produção audiovisual do movimento nota-se uma íntima conexão entre renovação temática e renovação formal. Desde o referido texto de 1962, Glauber Rocha afirma:

Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. [...] Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa. [...] Para nós a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil! Isto é quase um manifesto. (ROCHA, 2004 [1962], p.52).

A luz “nova”, despojada, sem os artifícios de estúdio; a câmera na mão; as filmagens nas ruas, no sertão e nas favelas; o som direto quando possível; a montagem discursiva expressando uma interpretação crítica da realidade são elementos estéticos que se coadunam com os objetivos de intervenção político-social dos cinemanovistas. A defesa da “autoria” e do “cinema moderno” é um elemento central na demarcação dos contornos do Cinema Novo. Se, nos momentos de emergência do movimento, cineastas como Roberto Pires, de A grande feira (1961), e Roberto Farias, de Assalto ao trem pagador (1962), eram citados lado a lado com os cinemanovistas25, com a consolidação do grupo e a consagração de seus primeiros filmes, os cineastas mais identificados com a linguagem cinematográfica tradicional passaram a ser vistos com distanciamento. O livro Revisão crítica do cinema brasileiro, de Glauber Rocha, lançado em 1963, vem justamente demarcar terreno, estabelecendo mais clara e incisivamente os princípios e nomes-chave do movimento ao mesmo tempo em que se gestava a obra-marco Deus e diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964). Nesse livro, Glauber Rocha evidencia um senso estratégico ao declarar que no contexto de surgimento do Cinema Novo:

25 Cf., por exemplo, DIEGUES, 1995 [1962], p.66.

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Enquanto a crítica pedia matéria para digressões, combinamos que nossa grande luta era contra a chanchada26; e como o cinema novo merecia crédito, tudo que não era chanchada passava a ser cinema novo para derrubar a chanchada. Dito e feito. A chanchada foi liquidada pelas raízes e o cinema novo ficou ligeiramente abalado: filmes de vários tipos vestiram a manchete. A primeira tática, derrubar a chanchada, foi a política do cinema novo 1962. De agora em diante é combater o cinema dramático evasivo, comercial e acadêmico. Mas é outra luta a ser enfrentada. (ROCHA, 2003 [1963], p.131-132, destaques no original).

Assim, inicialmente, cineastas como Roberto Pires e Roberto Farias, com seus filmes que colocavam o “povo” e a realidade social em tela, eram aliados do Cinema Novo, mas pouco depois passaram a ser vistos com ressalvas devido ao comprometimento que mantinham com a linguagem “acadêmica” e “industrial”. Na mesma linha pautaram-se as polêmicas entre o Cinema Novo e o CPC (Centro Popular de Cultura), entidade ligada à União Nacional dos Estudantes (UNE). Enquanto os cepecistas preconizavam a conscientização do povo por meio de produções culturais didáticas e comunicativas, os cinemanovistas se opunham à instrumentalização da arte à política e defendiam a revolução também no aspecto formal e não somente no conteúdo dos filmes. De outro lado, Walter Hugo Khouri, cineasta “autoral” com quem Glauber Rocha teceu relações amistosas em 1959 quando da exibição de seu curta experimental Pátio (Glauber Rocha, 1959)27, foi também rechaçado pelo Cinema Novo por representar uma tendência de “cinema formalista e universalizante (sic), inevitavelmente metafísico” (ROCHA, 2003 [1963], p.101). Percebe-se então que o Cinema Novo se delineia a partir de duas balizas: a temática “nacional-popular” e a linguagem moderna. Ainda que comportando diferentes matizes, conforme o estilo de cada diretor, e passando por transformações ao longo de suas diferentes “fases”28, foi no entrecruzamento entre esses dois elementos que se constituiu a identidade do Cinema Novo pela qual ele é reconhecido até hoje.

26 As chanchadas foram comédias musicais populares que, em geral, parodiavam o cinema estrangeiro. Tiveram grande apelo de público ao longo das décadas de 1940 e 1950, sendo sua principal produtora a empresa carioca Atlântida. Sobre a chanchada e a Atlântida ver: Augusto (1989) e Bastos (2001). 27 Cf. Rocha, 1997, p.106, 109-112. 28 O Cinema Novo geralmente é dividido pelos estudiosos em três fases. A primeira, de 1960 a 1964, é marcada pela temática rural e pela expressão da miséria e do subdesenvolvimento, com um horizonte revolucionário – Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964) marcam esta fase. A segunda fase, iniciada com a frustração imposta pelo golpe-civil militar de 1964 vai até 1968 e é caracterizada por filmes urbanos que enfocam a classe média e a intelectualidade sob ponto de vista (auto)crítico, destacando-se O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e O Bravo Guerreiro (Gustavo Dahl, 1968). De 1968 a 1972 identifica-se uma fase “alegórico-tropicalista” expressada em filmes como Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr, 1968), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969).

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1.1.2 Moderno e "nacional-popular"

Na definição de Glauber Rocha: “o cinema moderno é a ruptura com a narrativa imposta pela indústria aos cineastas e ao público. Esta ruptura é paralela à tomada do cinema pelos intelectuais”. (ROCHA apud GERBER, 1982, p.21). Percebe-se, desde o vocabulário, que Glauber confere um sentido eminentemente político à batalha da linguagem. Sua concepção de autoria no cinema radicaliza o sentido inspirado na Nouvelle Vague francesa e pressupõe a atuação social do cineasta, como intelectual. Conforme assinala Ismail Xavier: “No projeto do cinema novo, autoria significava não só anti-indústria (no Brasil, Vera Cruz e seu colapso) mas também postura crítica, engajamento político, contra a inautenticidade e o universalismo tecnicista”. (XAVIER, 2003, p.18, destaque no original). Há na gênese do Cinema Novo uma confluência entre cultura cinematográfica privilegiada e contexto histórico-social efervescente. No que tange à cultura cinematográfica, os cineastas brasileiros em formação no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 tiveram a seu favor o acesso às principais produções da cinematografia internacional. Entre 1958 e 1963 vultosos festivais promovidos pela Cinemateca Brasileira em São Paulo em parceria com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) no Rio de Janeiro trouxeram ao país centenas de obras clássicas e contemporâneas do cinema italiano, francês, norte-americano, alemão, soviético e polonês. Em depoimento a Pedro Simonard, o cineasta Maurice Capovilla afirma “nós fomos a única geração absolutamente informada em relação ao cinema mundial”. (CAPOVILLA apud SIMONARD, 2006, p.101). Segundo ele, em outro depoimento:

Nossa geração viu quase setenta anos de cinema nos festivais da Cinemateca. Foi uma loucura, mudou a cabeça das pessoas e consolidou em muitos a vontade de fazer cinema. Em quatro ou cinco anos vimos quinhentos filmes, de maneira didática, seguindo a evolução da história do cinema. (CAPOVILLA apud VIANY, 1999, p. 350).

Essas exibições eram geralmente acompanhadas de debates e se somavam à intensa atividade cineclubística e à circulação de ideias e teorias sobre cinema por meio de livros e artigos estrangeiros e nacionais – notadamente de Paulo Emílio Salles Gomes e Alex

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Viany29, destacados nomes na ainda incipiente produção teórica sobre cinema no Brasil. Assim, um pouco autodidatas30, foram se formando os jovens cinéfilos que comporiam o Cinema Novo. Oriundos dos meios universitários31, detinham significativa formação cultural prévia que foi sendo canalizada para o cinema num contexto de grande efervescência da cultura cinematográfica: “Nós éramos pessoas formadas pelo cinema, como as outras gerações foram formadas pela literatura”, declarou Paulo César Saraceni a Pedro Simonard (2006, p.83). Beneficiados pela origem de classe média e classe média-alta e pela conjuntura favorável do país32, os cinemanovistas rapidamente passaram da teoria à prática cinematográfica na realização de filmes amadores de curta-metragem. Esse fator, conforme assinala Edmar Yuta (2004, p.56), é um importante diferencial entre o grupo do Cinema Novo e os cineastas de gerações precedentes, que, via de regra, iniciaram-se no cinema a partir da assistência de direção a um cineasta veterano. Pode-se presumir que esse livre aprendizado, informado pelos referenciais teóricos e fílmicos do cinema mundial, constituiu salutar exercício de experimentação na busca por uma linguagem original para o cinema brasileiro. O Cinema Novo buscou, e de certa maneira conseguiu, alçar o cinema brasileiro a um estatuto de intérprete artístico-cultural da nação33, assim como fora a literatura modernista, notadamente aquela do romance social dos anos 1930. Na perspectiva de Cacá Diegues: “o Cinema Novo é a fundação do cinema modernista no Brasil, era moderno e modernista. Um modernismo tardio que chega ao cinema.” (DIEGUES apud BUENO, 2000, p.46). Tomando como referência as considerações de Perry Anderson (1986) sobre o

29 Contrariando a citada afirmação de Cacá Diegues de que o movimento não teria papas ou mestres, Glauber Rocha declara: “Descobrimos na luta que Alex Viany era o pai do Rio e Paulo Emílio o pai de São Paulo”. (ROCHA, 2004 [1962], p.51). Sobre a trajetória de Alex Viany para além de suas relações com o Cinema Novo ver Arthur Autran (2003) e sobre Paulo Emilio ver José Inácio de Melo e Souza (2002). 30 Embora haja um grau de aprendizado e experimentação autodidata, foram muito importantes na formação do Cinema Novo o curso ministrado pelo cineasta Arne Sucksdorff no Brasil em 1962, introduzindo equipamentos e técnicas como a do som direto, bem como os estágios no exterior por que passaram Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade entre 1960 e 1962. 31Os principais membros do Cinema Novo têm curso superior completo ou incompleto: Nelson Pereira dos Santos, Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP (Universidade de São Paulo); Cacá Diegues e David Neves, direito pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Glauber Rocha, direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia); Paulo César Saraceni, direito pela UB (Universidade do Brasil), futura UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Gustavo Dahl, direito pela Universidade Mackenzie; Joaquim Pedro de Andrade, física pela FNFi (Faculdade Nacional de Filosofia) da UB; Leon Hirszman, engenharia pela UB. Cf. Fernandes, 2008, p.187. 32 Cf. Yuta (2004) e Fernandes (2008). 33 Conforme assinala David Neves: “O cinema passou a ser coisa séria, importante, coisa que, absolutamente, não era antes, no Brasil” (NEVES, 1966, p.12). Alex Viany corrobora a afirmação: “Até aparecer o Cinema Novo, mesmo os poucos cineastas excepcionais, de real talento, eram marginais; o Cinema Novo é realmente a primeira corrente intelectualizada e conscientizada que o cinema brasileiro tem.” (VIANY In: DAHL et. al., 1965, p. 239).

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modernismo, Marcelo Ridenti (1993, p.76-81) procura compreender as condições sócio- históricas que deram solo para esse “modernismo temporão”, como ele denomina o florescimento artístico e cultural que teve lugar no Brasil do final dos anos 1950 até 1968. Anderson (1986) aponta três coordenadas históricas por trás do modernismo europeu: a contraposição ao academicismo presente nas artes, por vezes associado a classes agrárias e aristocráticas que não detinham mais o poder econômico mas ainda logravam permanência no plano político e cultural até a Primeira Guerra Mundial; o surgimento de novas tecnologias e invenções que marcaram a segunda revolução industrial, como o telefone, o rádio, o automóvel e o avião; e, por fim, o que ele denominou de “proximidade imaginativa da revolução social” (ANDERSON, 1986, p.8). Depois da Segunda Guerra Mundial, essas coordenadas já não tinham mais lugar na Europa, mas no Terceiro Mundo a conjuntura histórica era diferente e, seguindo as pistas deixadas por Anderson, Ridenti (1993) encontra tais coordenadas no efervescente Brasil dos anos sessenta, onde está presente a luta contra as oligarquias rurais e suas manifestações políticas e culturais; a aposta no avanço industrial e tecnológico; e as perspectivas de transformação nacional, em diversas propostas, democrático-burguesas ou socialistas. Tratando especificamente do cinema, Ismail Xavier (2006b) defende que o período que vai do final da década de 1950 até meados dos anos 1970 foi, “sem dúvida, o período estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro” (XAVIER, 2006b, p.14). Para o autor, tanto o Cinema Novo como o Cinema Marginal34 são representativos do “cinema brasileiro moderno”, lembrando que a referência ao cinema moderno abarca uma pluralidade de tendências que se distanciam do cinema “clássico” e industrial hollywoodiano, incluindo aí notadamente o neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Na formação do cinema moderno, no Brasil como em outras cinematografias, foi importante a “convergência entre a ‘política dos autores’, os filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem”. (XAVIER, 2006b, p.14). No caso do Cinema Novo, a renovação formal que conferiu ao movimento reconhecimento artístico esteve, como mencionamos, intrinsecamente relacionada a uma preocupação política afinada às perspectivas de libertação nacional que animavam os países do Terceiro Mundo. Para Nelson Pereira dos Santos, “o Cinema Novo representou a

34 O Cinema Marginal foi um movimento que teve lugar entre 1968 e 1973, quando o Cinema Novo se afastava de suas propostas mais radicais da “Estética da fome”, buscando o público. O Cinema Marginal, ao contrário, se caracterizou por produções que se colocavam à margem da indústria, tanto em suas condições de produção quanto nos temas e formas adotados, numa estética que pode ser denominada de “estética do lixo” (Cf.Xavier, 2006b, 2012). Sobre as características do movimento, ver Ferreira (1986), Ramos (1987b) e Xavier (2012).

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descolonização do cinema, como a que tinha acontecido antes com a literatura”. (SANTOS apud RIDENTI, 2000, p.90). Desde os anos 1950 a questão do “nacional-popular” assume papel central nas discussões sobre cultura no Brasil, dando o tom, por exemplo, das proposições de críticos e cineastas de esquerda reunidos em torno da revista Fundamentos, entre os quais o veterano Nelson Pereira dos Santos, precursor e referência para os cinemanovistas.35 Numa perspectiva anti-imperialista, propugnava-se a autonomia econômica, política e cultural do Brasil, visando à superação da “situação colonial”36. E o cinema, inserido nesse processo, tentava expressar a realidade do país e buscar na cultura popular a matéria-prima para seus filmes, devolvendo ao povo brasileiro, como público, imagens de si e de sua condição. Essa preocupação, a princípio fundamentalmente temática, passa a ser para a nova geração de cineastas surgida no início dos anos 1960 uma preocupação também estética, na busca por uma linguagem expressiva e original, representando o cinema moderno, como vimos.

1.1.3 Configuração de grupo e atuação empresarial/institucional

Em carta a Raquel Gerber, Glauber Rocha declara: “O cinema novo é um movimento cultural estruturado por vínculos de amizade ao cinema, tribalista, patriarcalista […] O cinema novo é uma tribo masculina sem competição fálica. Daí o 'um por todos, todos por um' que é nossa força.” (ROCHA, 1997 [1974], p. 494). Este é outro aspecto fundamental para se compreender o Cinema Novo: sua configuração como grupo. Glauber Rocha (1997) fala de “tribo”, David Neves (1966) refere- se ao Cinema Novo como “uma fraternidade” (p.13) ou mesmo um “clube” (p.29). Críticos contrários ao movimento à época também sublinham esse aspecto, de maneira pejorativa. Antonio Moniz Vianna, respondendo a questionário sobre o Cinema Novo na revista Filme Cultura, assim o define: “Nem escola, nem exatamente um movimento – porque, antes de mais nada as características são de curriola.” (VIANNA In “A CRÍTICA e o cinema novo”, 1966, p.26-7). Alfredo Sternheim na sequência da mesma enquete especial considera que o

35 Nelson Pereira dos Santos dirigiu Rio, 40 graus (1955), filme-chave na deflagração do Cinema Novo. Cf., por exemplo, Rocha, 2003, p.106. Sobre a relação entre a revista Fundamentos e o círculo de cineastas e intelectuais comunistas, ver Autran (2012). 36 Em 1960, Paulo Emílio Salles Gomes expõe na I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica a comunicação Uma situação colonial?, a seguir publicada no Suplemento Literário do jornal Estado de São Paulo, obtendo importante repercussão entre os cinemanovistas. A análise do cinema brasileiro guiada pela consideração do subdesenvolvimento nacional tem desdobramentos no clássico ensaio de Paulo Emílio, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento publicado em 1973. Cf. Gomes (1996).

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Cinema Novo: Nasceu tendo em vista uma necessidade de brilho que seria difícil de ser obtido individualmente, mas fácil num agrupamento como o que surgiu, e que entre 1960 e 1964, principalmente, encontrou vasto apadrinhamento em entidades oficiais (o Itamarati, a Cinemateca Brasileira), em detrimento das reais necessidades do cinema brasileiro. (STERNHEIM In: “ A CRÍTICA e o cinema novo II”, 1967, p.53).

E prossegue julgando a relação entre a crítica e os cinemanovistas improdutiva por ser marcada na maioria das vezes por um “nocivo espírito gregário” e “cumpinchagem [sic]” (STERNHEIM In: “ A CRÍTICA e o cinema novo II”, 1967, p.53). Os trabalhos de Edmar Yuta (2004), Pedro Simonard (2006) e Luciano Fernandes (2008) detêm-se particularmente sobre o processo de formação do Cinema Novo, sua constituição como grupo, espaços de sociabilidade e redes de relações. As considerações desses autores somadas a fontes primárias como as cartas de Glauber Rocha (1997) e o relato autobiográfico de Paulo César Saraceni (1993) mostram que, embora alguns de seus membros fossem provenientes de outros estados do país, foi no Rio de Janeiro que o grupo do Cinema Novo se constituiu na virada dos anos 1950 para 1960, reunindo-se em espaços como a cinemateca do MAM, cineclubes e bares, como o “bar da Líder” e o Alcazar. O CPC carioca, a despeito das referidas divergências, também se configurou como uma importante referência de sociabilidade para o grupo, notadamente para Leon Hirszman e Cacá Diegues que dirigiram episódios para o filme produzido pela entidade, Cinco vezes favela (1962).37 Da amizade iniciada nos cineclubes e sessões da Cinemateca do MAM e alimentada nas animadas reuniões nos bares cariocas, logo nasceu um forte espírito de equipe direcionado aos objetivos comuns de fazer e transformar o cinema brasileiro. Os projetos, em geral, passavam por discussão coletiva e a observação das fichas técnicas dos filmes e das cartas trocadas entre os cinemanovistas38 deixa claro que houve entre eles importantes vínculos de colaboração nos projetos uns dos outros, incluindo intercâmbio nas funções de direção, produção, fotografia e montagem. Além dos principais diretores – Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, David Neves e Gustavo Dahl39 – cabe destacar outras figuras importantes,

37 O episódio realizado por Joaquim Pedro de Andrade Couro de gato foi produzido de maneira independente dos demais, sendo anexado a posteriori. Miguel Borges e Marcos Farias, autores dos outros dois episódios de Cinco vezes favela estiveram vinculados no início ao Cinema Novo mas não ficaram organicamente vinculados ao cerne do grupo. 38 Cf. Rocha (1997). 39 Fernandes (2008) indica nove cineastas na composição do que chamou de “núcleo-duro” do Cinema Novo: Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, Gustavo Dahl, David Neves, Glauber Rocha, Carlos Diegues e Roberto Farias. Reconhece que essa definição tem algo de

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como o fotógrafo Mário Carneiro; o montador Eduardo Escorel e os produtores Luiz Carlos Barreto e Zelito Viana. Gustavo Dahl e David Neves também tiveram papel diferenciado, pois, assim como Glauber Rocha e Cacá Diegues, contribuíram para a divulgação e legitimação teórica do Cinema Novo por meio de textos publicados no Brasil e no exterior. Ambos exerceram ainda funções administrativas fundamentais para a viabilização prática dos filmes do grupo: David Neves integrou o Setor de Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty, órgão que coproduziu documentários do grupo no início dos anos 1960 e Gustavo Dahl foi assessor de Roberto Farias na direção da empresa estatal Embrafilme em 1974, tornando-se diretor do setor de distribuição da empresa a partir de 1975. Na análise de Luciano Fernandes (2008) – de inspiração bourdieusiana40 e com foco nas relações entre elites intelectuais e Estado – foram aspectos fundamentais para o êxito das carreiras dos cinemanovistas a elevada posse de capital cultural, a retaguarda material de suas famílias e a “multiposicionalidade” em redes de relações sociais no Brasil e no exterior, que lhes permitiu mobilizar recursos materiais e simbólicos em prol do grupo e conquistar ascendência sobre o Estado. Esta ascendência pode ser notada particularmente no impulso inicial dado pelo SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo Itamaraty41 às suas carreiras e na influência que lograram sobre a Embrafilme quando já consagrados. No primeiro caso, foi importante o fato do pai de Joaquim Pedro, Rodrigo Mello Franco de Andrade, ser dirigente do SPHAN, assim como a proximidade com vários diplomatas, entre os quais Paulo Carneiro e Lauro Escorel; no segundo caso, contou-se com a colaboração do pai de Cacá Diegues, Manuel Diegues Jr., dirigente do Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura, que teria indicado, em 1974,

arbitrário e que especialmente a inclusão de Roberto Farias é questionável. Ressalta, porém, que mais do que afinidades estéticas – ele não inclui, por exemplo, Ruy Guerra – busca delinear o núcleo de indivíduos cujas relações estiveram no cerne da constituição e viabilidade do grupo. 40 Bourdieu (1996, 1998, entre outros). 41 Em 1962, a UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em parceria com a Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores trouxe ao Rio de Janeiro o cineasta sueco Arne Sucksdorff que, conforme mencionamos na nota n.30, ministrou um curso sobre técnicas de filmagem e apresentou aos jovens cineastas equipamentos de última geração. Alguns desses equipamentos foram adquiridos pelo Itamaraty e pelo SPHAN, sendo utilizados pelos cinemanovistas em filmes subsequentes. De acordo com Fernandes (2008), o pai de Joaquim Pedro, Rodrigo de Mello Franco, criou, com financiamento da Fundação Rockefeller, o Setor de Filmes Documentários (SFD) no SPHAN e teria sido responsável pela indicação de David Neves para integrar o Setor de Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty. Por meio da parceria entre o SPHAN e o Itamaraty foram produzidos filmes como Integração racial (Paulo César Saraceni, 1963); O circo (Arnaldo Jabor, 1965) e Memória do cangaço (Paulo Gil Soares, 1965). A formação cultural e a “multiposicionalidade” em redes de relações propiciaram ainda a Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl e Paulo César Saraceni o recebimento de bolsas de estudo para estudar cinema no exterior patrocinadas por instituições estrangeiras e complementadas por ajuda de custo concedida pelo Itamaraty.

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diretamente ao amigo ministro Ney Braga, o nome de Roberto Farias para a direção da Embrafilme, o qual, por sua vez, convidou como assessores Zelito Viana e Gustavo Dahl. 42 Para Fernandes (2008), a amizade e a união entre os integrantes do “núcleo duro” do Cinema Novo, a despeito das diferenças e eventuais divergências, garantiram que os privilégios e ascendências individuais fossem generalizados para o grupo como um todo, ou seja, a coesão permitiu que mesmo os membros menos abastados ou com menor proeminência em redes de relações fossem beneficiados pelas posições privilegiadas dos outros e que todos pudessem usufruir, ainda que não em mesmo grau, das redes cada vez mais diversificadas e ampliadas nas quais o grupo estava inserido. Assim, “recursos pessoais foram passíveis de transferências em benefício do coletivo e vice-versa” (FERNANDES, 2008, p.68). Um dos traços definidores do Cinema Novo é seu caráter peculiar que ultrapassa a concepção de um movimento artístico diletante e demonstra um agudo sentido estratégico pautado numa clara consciência dos embates de política e economia cinematográfica. Em ensaio de 1968, Glauber Rocha assevera: “Um dado, pois, irrefutável: uma linguagem artística não se consolida no abstrato, sem poder econômico não se tem poder cultural” (ROCHA, 2004 [1968], p.136). Glauber refere-se a seguir à importante iniciativa empresarial do grupo, a Difilm, distribuidora e coprodutora fundada em 1965 e desfeita parcialmente em 1969. Cacá Diegues refere-se da seguinte maneira ao empreendimento:

[...] é a hora em que a nossa turma vira sociedade. Não é mais uma coisa afetiva que nos une, é uma coisa concreta mesmo, uma idéia comum [...] A Difilm é um momento capital na história da gente, porque é o momento em que enfrentamos o concreto da economia cinematográfica [...]. (DIEGUES apud BUENO, 2000, p.61).

A Difilm consolidou a estrutura empresarial do Cinema Novo, facilitando o acesso e a administração de recursos de financiamentos e/ou empréstimos provenientes da CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica), criada em 1963, vinculada ao Banco do Estado da Guanabara; do Banco Nacional de Minas Gerais e, em menor escala, do INC (Instituto Nacional de Cinema) 43; assim como permitiu um maior controle da renda obtida pelos seus filmes. Na composição da empresa, formada por onze sócios44, destaca-se o nome

42 Segundo Fernandes (2008), outros elementos teriam facilitado as relações do grupo com o Estado, como a proximidade que Nelson Pereira dos Santos tinha como Ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso e a amizade de Paulo Saraceni com Octávio de Faria, membro do Conselho Federal de Cultura (CFC). Tratamos mais detidamente da relação entre Cinema Novo e Estado no item 1.4. 43 Voltamos ao relacionamento do Cinema Novo com a CAI C, Banco Nacional de Minas Gerais e INC no item 1.4. 44 As fontes divergem quanto ao quadro societário da Difilm. Bueno (2000, p.61), informa os seguintes nomes: Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Glauber Rocha,

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do veterano cineasta Roberto Farias, ao lado de seu irmão, o produtor Rivanides Farias. Roberto Farias, iniciado no cinema pela via da chanchada, antes do surgimento do Cinema Novo45, nunca chegou a ser incorporado plenamente ao grupo cinemanovista mesmo com seus filmes de cunho social, Assalto ao trem pagador (1962) e Selva trágica (1963). Não obstante, a sua presença é central na composição da Difilm, devido à sua experiência acumulada no cinema e à sua visão empresarial direcionada à rentabilidade. Conforme ele declara a Fernandes (2008, p.237), os responsáveis pelas funções gerenciais e administrativas da Difilm, aqueles que “assinavam cheques”, eram ele e o irmão Riva, ao lado do produtor Luiz Carlos Barreto. Enquanto sócio da Difilm, Roberto Farias realizou dois filmes radicalmente distantes do perfil estético e temático do Cinema Novo: Toda donzela tem um pai que é uma fera (1966), comédia de temática sexual considerada precursora da “pornochanchada”, gênero que proliferaria no Brasil nos anos 1970 e Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968), protagonizado pelo astro da popular Jovem Guarda. O vultoso sucesso comercial, em especial deste último filme, fez com que Roberto Farias e seu irmão resolvessem sair da Difilm, considerando que a renda de seus filmes sustentava praticamente sozinha a empresa.46 Entretanto, a partir de 1974, Roberto Farias voltaria a ser figura-chave na viabilização dos filmes de cineastas oriundos do Cinema Novo quando assumiu a direção geral da Embrafilme, conforme já mencionado. A Embrafilme, criada em 1969 para atuar em complementaridade com o INC, fundado em 1966, adquire força a partir de 1975, quando absorve oficialmente as funções daquele instituto, que é extinto. Com o orçamento aumentado, ela assume as atividades de coprodução de filmes e amplia sua envergadura como distribuidora. A gestão Roberto Farias (1974-1979) é marcada então por um alavancamento da indústria cinematográfica brasileira, sob notória hegemonia dos egressos do Cinema Novo já não mais coeso enquanto movimento. Zelito Viana, em carta de 1975 a Glauber Rocha, assinala a continuidade entre esse novo período e a experiência anterior da Difilm:

Leon Hirszman, Luís Carlos Barreto, Roberto Farias, Rivanides Faria, Roberto Santos e Rex Endsleigh. Já Fernandes (2000, p.239) inclui entre os onze Marcos Faria, Walter Lima Júnior e Zelito Viana e exclui Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, e Rex Endsleigh. 45 Depois da assistência de direção a diretores de chanchada como Watson Macedo e José Carlos Burle ao longo dos anos 1950, Roberto Farias estreia na direção em 1957 com a chanchada Rico ri à toa seguida de No mundo da lua (1958). 46 Os outros dois filmes da “trilogia” protagonizada por Roberto Carlos sob a direção de Roberto Farias, Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1970) e Roberto Carlos a 300 km por hora (1971), são já distribuídos pela Ipanema Filmes, fundada pelo cineasta em parceria com o irmão Riva Farias após a saída da Difilm.

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A política cinematográfica ferve a 1500 graus. Nunca nos reunimos tanto. Os homens entregaram esta loucura que é o cinema brasileiro praticamente em nossas mãos. Grande responsa junto com uma grande perspectiva. Uma nova safra se anuncia, saída desta nova Difilm revista, madura e ampliada que está se tornando a Embrafilme. É incrível como as pessoas que trabalham e funcionam são exatamente as mesmas. [...]. (VIANA, 1975 In: ROCHA, 1997, p. 520).

A aliança com a estatal marca um capítulo à parte na história do Cinema Novo que, nesse período, passa a ser, nas palavras de Ismail Xavier, “antes uma sigla para identificar um grupo de pressão, aliás hegemônico junto à Embrafilme, do que uma estética” (XAVIER, 2006b, p.80). Ao longo do percurso, passamos de definições abrangentes, abertas à pluralidade e sem dogmatismo, a uma configuração significativamente mais fechada de um grupo que luta pela sua viabilidade econômica nos meandros da política cinematográfica. Essas duas facetas, combinadas, caracterizam o Cinema Novo. Se por um lado ele se apresenta como um movimento ou, mais do que isso, como um “momento histórico que se impõe para uma geração”, como o entende Maurice Capovilla (apud SACRAMENTO, 2008, p.43), de outro lado, ele é, também, um grupo restrito, sediado no Rio de Janeiro, que conquistou posição dominante no “campo” cinematográfico brasileiro em formação, marginalizando cineastas não integrados ao seu núcleo, como aqueles estabelecidos em São Paulo. Para compreendê-lo não basta se ater a critérios estéticos, norteadores da análise dos filmes, ou lançar mão do repertório bourdieusiano para deslindar as lutas no “campo”, ou ainda realizar um estudo da cultura política e contexto histórico a partir dos quais ele emergiu. Todos esses fatores são importantes e precisam ser integrados quando se busca uma compreensão mais plena daquilo que o Cinema Novo significou.

1.2 Cinemateca Brasileira e seu círculo: vértice importante na formação do Cinema Novo Ivana Bentes em sua Introdução a Cartas ao mundo, livro que reúne significativa correspondência do principal porta-voz do Cinema Novo, Glauber Rocha, salienta que a “base geográfica” da gênese do movimento se constituiu no circuito Bahia-Rio-Europa, conforme pode ser percebido pelo trânsito das cartas de seus principais articuladores: Lendo a correspondência fica claro como a geografia do Cinema Novo se configura: Glauber entre a Bahia e o Rio; Paulo César Saraceni na Itália; Gustavo Dahl entre Roma e Paris; Joaquim Pedro de Andrade pela Europa. No Rio, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Neves, Luís Carlos Barreto, Leon Hirszman, Walter Lima Jr., Zelito Viana, Ruy Guerra. Essa base geográfica – o circuito Bahia-Rio-

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Europa integrado pelas cartas, com São Paulo um pouco à margem (Roberto Santos, Paulo Emilio Salles Gomes...) – é decisiva para o Cinema Novo acontecer como movimento. (BENTES In: ROCHA, 1997, p.24). 47

Em texto escrito no momento de emergência do Cinema Novo, o jornalista, crítico e futuro cineasta paulista, Maurice Capovilla (1962a), identifica três grupos originais do movimento, geograficamente classificados: o da Bahia, o da Paraíba e o do Rio. Da Bahia, ele destaca o curta documentário Um dia na rampa (1959), de Luiz Paulino dos Santos, o curta- experimental de Glauber Rocha, O pátio (1959), e os filmes de Roberto Pires, Redenção (1959), A grande feira (1960) e Tocaia no Asfalto, ainda não lançado na época. Destaca também os nomes do produtor Rex Schindler e do crítico Walter da Silveira, bem como o filme Barravento (1962) que Glauber realiza a partir de argumento e roteiro original de Luiz Paulino dos Santos.48 Da Paraíba, ele se surpreende com o documentário Aruanda (1959) de Linduarte Noronha. Do Rio, refere-se ao grupo “proveniente em geral dos cineclubes” que começou com o curta O maquinista (Marcos Farias, 1958), de precárias condições técnicas, e prosseguiu com curtas de interesse como Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, 1959), O mestre de Apipucos (Joaquim Pedro de Andrade, 1959), O Poeta do castelo (Joaquim Pedro de Andrade,1959) e aqueles que constituiriam o longa produzido pelo CPC, Cinco vezes favela (1962) – Um favelado (Marcos Farias), Zé da Cachorra (Miguel Borges), Escola de samba, alegria de viver (Cacá Diegues), Couro de gato (Joaquim Pedro de Andrade) e Pedreira de São Diogo (Leon Hirszman). Havia, porém, um outro grupo, o de São Paulo, no qual se incluía o próprio Maurice Capovilla e ao qual Cacá Diegues se refere como o grupo dos “protegidos de Paulo Emilio Salles Gomes” (DIEGUES, 1987, p.202, tradução nossa). Muitos anos depois, em entrevista concedida a Alex Viany e que compõe o livro O processo do Cinema Novo, Capovilla se inclui nesse grupo e expõe sua visão sobre a posição dos paulistas nesse processo:

47 Logo após a realização de filmes seminais do Cinema Novo – entre os quais, Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro e O mestre de Apipucos (1959) e O Poeta do castelo (1959) de Joaquim Pedro de Andrade – os jovens Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Gustavo Dahl receberam bolsas de estudo para estudar cinema no exterior patrocinadas por instituições estrangeiras e complementadas por ajuda de custo do Itamaraty. Saraceni ingressou no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma em 1960; Joaquim Pedro fez estágio no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques) e na Cinémathèque Française, em Paris entre 1960 e 1961, seguindo para Londres para estudar na Slade School of Art e depois para Nova York onde estagiou com os irmãos Maysles, documentaristas do então inovador “direct cinema”; enquanto Gustavo Dahl estudou no Centro Sperimentale di Cinematografia entre 1960 e 1962 e retornou à Europa entre 1963 e 1964 para um curso de cinema etnográfico no Museu do Homem, em Paris, ministrado por Jean Rouch. Cf. Fernandes (2008, p.274-280). 48 Sobre o “ciclo” baiano ver Maria do Socorro Carvalho (2003).

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É curioso, sempre penso nisso: em São Paulo o Cinema Novo nasceu da atividade de divulgação, e nos agrupamos em torno da Cinemateca. No Rio e na Bahia foi diferente, mas aqui, Jean-Claude Bernardet, Rudá [de Andrade], Sérgio Lima e Gustavo [Dahl] saíram da Cinemateca, como eu. Foi muito importante a função da Cinemateca Brasileira no sentido de divulgar o Cinema Novo, que começava a acontecer. (CAPOVILLA, 1983, In: VIANY, 1999, p.344).

Essa importância da Cinemateca Brasileira e seu círculo para a divulgação do Cinema Novo é reconhecida por Glauber Rocha. Falando sobre a célebre “Homenagem ao Cinema Brasileiro”, organizada pela Cinemateca no contexto da VI Bienal de São Paulo de 1961 – na qual foram exibidos os curta-metragens, Aruanda (1959), de Linduarte Noronha; Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro; O mestre de Apipucos (1959), O Poeta do castelo (1959) e Couro de gato (1960), de Joaquim Pedro de Andrade; Um dia na rampa (1959), de Luiz Paulino dos Santos; Apelo (1960), de Trigueirinho Neto; Igreja (1960), de Sílvio Robato e Desenho abstrato (1960) de Roberto Müller49 – Rocha afirma:

[...] esta semana na Bienal de 1961, com artigos de Gustavo Dahl, Jean-Claude Bernardet; apoio definido de Paulo Emilio Salles Gomes, Rudá de Andrade e Almeida Salles; ruptura com os cineastas adeptos da co-produção, do filme comercial, da chanchada intelectualizada, do cinema acadêmico com a polêmica irradiada entre os intelectuais através de um discurso de compreensão e apoio de Mário Pedrosa; esta semana teve para o novo cinema brasileiro a importância da Semana de Arte Moderna, em 1922. (ROCHA, 2003 [1963], p.130).

Jean-Claude Bernardet corrobora a asserção de Glauber ao descrever a principal noite de exibição de documentários na Bienal de 1961 como uma “noite-manifesto” na qual se deu “a afirmação de um outro cinema” (BERNARDET In: SOUZA e SAVIETTO (Orgs.), 1980, p.70). Saraceni (1993, p.126) também faz referência a essa histórica noite da Bienal na qual se estabeleceu o confronto entre os jovens propositores de um novo cinema e os cineastas da “velha guarda” pós-Vera Cruz, como César Mêmolo e Carlos Alberto de Souza Barros. Para Capovilla, a mostra de documentários constituiu um momento fundador ao dar forma fílmica às discussões por um novo cinema que surgiam pelo menos desde a Primeira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica ocorrida meses antes, também organizada pela Cinemateca Brasileira. A seu ver, naquela noite da Bienal:

As duas coisas juntas – os filmes e as teses discutidas delineavam uma nova posição

49 Cf. Saraceni, 1993, p.126.

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perante o cinema brasileiro […] Foi a origem de uma explosão de consciência. Em primeiro lugar, um novo sistema de produção, apontado por Aruanda – cinema de rua, cinema fora, precariedade, cinema pobre. Depois uma nova temática, a busca do homem. Por fim uma nova linguagem. (CAPOVILLA In: GALVÃO e BERNARDET, 197-, p.23).

Teoria e prática se conjugaram, num histórico encontro entre críticos e jovens cineastas que começavam a realizar as propostas que vinham germinando desde o final da década de cinquenta. Como aconteceu na formação da Nouvelle Vague francesa50, na constituição do Cinema Novo essa articulação entre teoria/crítica cinematográfica e a realização de filmes foi fundamental. Glauber Rocha (2004) ressalta a centralidade de três ensaios na formação do movimento: Uma situação colonial?, apresentado por Paulo Emilio Salles Gomes na Primeira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica e publicado no Suplemento Literário do Estado de S.Paulo em novembro de 1960; Coisas nossas de Gustavo Dahl publicado no mesmo Suplemento em janeiro de 1961 e Três filmes, de Jean-Claude Bernardet, publicado em maio de 1961 também no mesmo espaço editorial. Segundo ele, esses três ensaios compõem: “a Sagrada Trilogia Crítica Original do Cinema Novo, sem a qual eu e a turma do Rio não teríamos descoberto o específico fílmico”. (ROCHA, 2004 [1980], p.405). Desse modo, a despeito das divergências e rupturas que se seguiram, das quais trataremos adiante, verifica-se que São Paulo foi um vértice importante na formação do Cinema Novo. O círculo da Cinemateca – Paulo Emilio Salles Gomes, Rudá de Andrade, Jean-Claude Bernardet, Gustavo Dahl e Maurice Capovilla – teve destacado papel de base teórica e de discussão, expresso numa série de artigos do início dos anos 1960 que colocavam em questão aspectos que diziam respeito direta ou indiretamente ao movimento nascente.51 E, em paralelo com o trabalho teórico dos críticos a ela vinculados, a Cinemateca Brasileira foi responsável por trazer ao país obras fundamentais da cinematografia internacional, promovendo importantes festivais entre 1958 e 1963, como mencionamos anteriormente. Essas exibições, além de propiciarem o contato com centenas de produções do cinema estrangeiro, configuravam-se como espaços de sociabilidade para cineastas e cinéfilos, instaurando debates e favorecendo o estabelecimento de amizades e redes de relações.

50 Sobre a formação da Nouvelle Vague ver Michel Marie (2011). 51 Ver, em especial, artigos de Paulo Emilio Salles Gomes, Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernardet no Suplemento Literário do Estado de S.Paulo. De Bernardet e Capovilla na Revista Brasiliense e no Última Hora. E de Dahl e Bernardet na Revista Civilização Brasileira.

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1.2.1 Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet: divergências dentro e fora de São Paulo

A posição em linhas gerais pró-Cinema Novo foi responsável pela ruptura dos “cinematecários” com o círculo paulista defensor de outro tipo de cinema, mais “universalista”, cujo principal representante era o crítico e cineasta Rubem Biáfora. O grau de ressentimentos e animosidades entre os dois grupos paulistas pode ser avaliado, por exemplo, pelo depoimento do crítico José Júlio Spiewak, amigo de Biáfora, no questionário promovido pela revista Filme Cultura sobre o Cinema Novo52. Em suas respostas, Spiewak volta-se veementemente contra os “pseudo-nacionalistas que defendiam cangaceirismos” e afirma que os “despeitados cinematecários paulistanos” viram na emergência do Cinema Novo uma forma de canalizar seus rancores contra aqueles que faziam cinema “de qualidade” em São Paulo. Em suas palavras:

Para os despeitados cinematecários paulistanos era oportunidade única pra dar vazão aos seus despeitos. Ao apoiar candidatos a cineastas que viessem a se promover fora de São Paulo, que além do mais fariam campanha contra o cinema de São Paulo, afirmariam sua pretensa posição de autoridade suprema em questões cinematográficas de São Paulo e, sendo em média muito jovens os novatos que apoiariam, também com muita facilidade se afirmariam como mentores intelectuais destes, com o que compensariam sua frustração por nunca terem sido eles capazes de sequer tentar fazer seus filmes. (SPIEWAK In: A CRÍTICA e o cinema novo (II), 1967, p.53).

Cabe ressaltar que, a despeito do entusiasmo dos mais jovens “cinematecários”, Maurice Capovilla, Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernardet, em relação ao nascente Cinema Novo, Paulo Emilio Salles Gomes – possivelmente o alvo preferencial dos ataques de Spiewak – nunca chegou a assumir a posição de padrinho ou ideólogo do movimento, mesmo tendo sido chamado pelos cinemanovistas para tal, o que gerou certos ressentimentos também do lado de lá. A tese de Pedro Plaza Pinto (2008) constitui um trabalho minucioso de análise da relação entre Paulo Emilio e a emergência do Cinema Novo, mostrando que o reconhecido crítico sempre adotou uma postura distanciada, recusando-se a chancelar integralmente o movimento que tomava forma. De acordo com Pedro Pinto (2008), entre Paulo Emilio e os jovens cinemanovistas, notadamente David Neves e Glauber Rocha, observa-se uma “relação

52 A CRÍTICA e o cinema novo (II). Filme cultura. Rio de Janeiro, INC, n. 3, p. 52-55, jan./fev.1967.

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relativamente destemperada, marcada pela mudança de tons, larga amplitude de documentos e silêncios gritantes” (PINTO, 2008, p.146). Glauber em diversos momentos referiu-se a Paulo Emilio como “pai” ou “papa” do Cinema Novo53, enquanto David Neves o designou como seu “guru eterno”54. Fonte inspiradora, cujas ideias (notadamente aquelas sobre a condição subdesenvolvida do cinema brasileiro) estiveram na base do Cinema Novo, Paulo Emilio foi, contudo, cauteloso quando se viu encampado pelos jovens cineastas. Essa postura pode ser percebida nas declarações reticentes quanto à existência do movimento no início dos anos 196055, assim como no redirecionamento de seu trabalho, trocando as páginas do Suplemento Literário – onde publicara artigos-chave, como Uma situação colonial? e Artesãos e autores56 – por um espaço singelo no jornal de esquerda católica Brasil, Urgente em 1963, momento de plena efervescência do Cinema Novo quando se gestava a tríade Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963); Deus e diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964); Os fuzis (Ruy Guerra, 1964). Escrevendo para Brasil, Urgente, o crítico voltou seu trabalho para um outro público leitor e despiu-se da função de mestre ou ideólogo de um novo cinema. 57 Em seu primeiro texto publicado no novo jornal, Começo de conversa, Paulo Emilio adota postura de afastamento da imagem de “maior crítico de cinema do Brasil” que vinha consolidando até então: “Posso também assegurar que aqui neste canto não se refugiará um chamado especialista em cinema […] sou um homem completamente sem princípios, pelo menos em matéria de estética”. (GOMES, 1963 apud PINTO, 2008, p.124). No mesmo ano de 1963 foi lançado o destacado livro de Glauber Rocha, Revisão crítica do cinema brasileiro, no qual o jovem cineasta estabelece as bases e fronteiras para o movimento que vinha construindo ao lado de seus pares, traçando, de maneira estratégica, uma história do cinema brasileiro que apontava para o Cinema Novo, nesse momento já existente em traços concretos. A repercussão foi grande e mobilizou tanto entusiastas do movimento como seus detratores, como pode ser acompanhado por algumas das resenhas que

53 Ver, por exemplo, Rocha, 2004, p.50, p.318 e p.466. 54 NEVES, 1995 apud PINTO, 2008, p.59. 55 Na Semana do Cinema Novo Brasileiro em Florianópolis, 1962, por exemplo, Paulo Emilio declara: “Cinema Novo é um grito de guerra à procura das guerras que mais lhe convém. É uma bandeira indiscutivelmente revolucionária que ainda não encontrou sua revolução.” (GOMES apud PINTO, 2008, p.105). 56 O último artigo de Paulo Emilio no Suplemento Literário data de 1965, porém desde 1963 suas intervenções naquele espaço passaram a ser raras. Depois de um artigo escrito em março de 1963, só volta a publicar mais um em outubro de 1964 e outros dois entre setembro e dezembro de 1965. Cf. Pinto, 2008, p.108. 57 Para Pinto: “Brasil, Urgente representa o silêncio gritante, o escape do nicho em que estava sendo adorado, o recado entrelinhas de alguém que não se quer fixado. É propriamente o momento denegatório e a abertura de novas perspectivas.” (PINTO, 2008, p.108).

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compõem a amostra da fortuna crítica na nova edição do livro em 2003. Paulo Emilio, porém, não esteve entre esses resenhistas, embora fosse implicitamente chamado à interlocução pelas alusões e citações de seus textos feitas ao longo do livro. Restringiu-se a expressar sua opinião sobre a obra num debate promovido pelo jornal Última Hora em parceria com a Cinemateca Brasileira. Na ocasião declarou: “Gosto muito de G.R.[Glauber Rocha], com certeza, vou gostar muito das coisas que ele faz. Agora as suas ideias, as coisas que diz ou escreve, só me interessam porque o G.R. vai fazer bons filmes”. (GOMES, 1963, In: ROCHA, 2003, p.207). 58 Ao relativo silêncio sobre a obra, entretanto, somou-se, de acordo com Pinto (2008, p.96), a ausência de textos do crítico sobre os filmes de Glauber. Mais tarde ele expressaria um bem-humorado distanciamento em relação às citações que dele faz o cineasta: “Glauber às vezes me cita e quase sempre o que me atribui não tem nada a ver comigo: passagens entre aspas não foram escritas nem faladas por mim, ideias brilhantes que, diferentemente do que ele pensa, não são minhas infelizmente” (GOMES, 1977, p.9 apud PINTO, 2008, p.100). Pessoalmente, Paulo Emilio estabeleceu relações amistosas com os cinemanovistas: colaborou para que Gustavo Dahl conseguisse bolsa de estudos para estudar no Centro Sperimentale di Cinematografia59; trocou cartas com David Neves e Glauber Rocha; colaborou nos roteiros de Memória de Helena (1968), de David Neves e Capitu (1968), de Paulo César Saraceni e teria inclusive cedido a Glauber Rocha um apartamento no qual o cineasta passou uma temporada em São Paulo em 1964/1965.60 A Glauber também ofereceu a direção de seu roteiro Dina do cavalo , em 1961, convite para o qual o cineasta estabeleceu como condição de aceite ter Paulo Emilio como codiretor (Cf.ROCHA, 1997 [1962], p.168-17). O episódio é rememorado por Glauber em seu Revolução do Cinema Novo, quando em meio a vultosos elogios critica Paulo Emilio naquele mesmo ponto sublinhado por Spiewak: a não realização de filmes. Nas palavras de Rocha:

58 Nesse debate, ao lado de outros “paulistas” como Roberto Santos, Jean-Claude Bernardet e Maurice Capovilla, Paulo Emilio expressa preocupação com o sectarismo de Rocha num momento em que seria importante unir forças pelo fortalecimento do cinema brasileiro diante do cinema estrangeiro. No seu entender: “Qualquer luta a respeito da decorrência estética, social, sociológica da indústria ou do cinema de autor, é algo que poderá vir a ter um interesse enorme quando o cinema brasileiro existir – que na fase atual, em que a missão número um é desimpedir o nosso mercado, não há motivo nenhum para não unir todo mundo que tem os mesmos interesses, seja quem for, inclusive os produtores de chanchadas.” (GOMES In: ROCHA, 2004, p.206). 59 Cf. Fernandes, 2008, p.259. 60 Nas palavras de Rocha: “Lembro-me de sua reação ao meu livro Revisão crítica do cinema brasileiro […], embora sua negação fosse tão entusiástica que as reticências eram superadas pelas demonstrações de afeto que o levaram a me emprestar o seu ap. no Vale dos Sapos, onde, em 1964/65, vivi amores em São Paulo seguramente inferiores aos de Paulo na Bahia.” (ROCHA, 2004, p. p.462).

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[...] final de 1961 […] Tirando duma pasta o roteiro de Dina do cavalo branco, falou que o escrevera para ser dirigido por mim […] Depois de gostar e gozar com a leitura de Dina do cavalo branco, respondi que ele deveria dirigir o filme, mas negou-se veementemente, alegando que não entendia de 'negócios e técnica'. Não entender de negócios e técnica é uma neurose típica de intelectuais comprometidos com a visão aristocrática da produção artística, enquadrando os empresários e os técnicos como executivos das ideias impero-divinas. E Paulo era um Ymperador, a pessoa mais inteligente, culta e generosa do mundo, além de bonito e delicioso sob e sobre todos os aspectos, uma superstar, but... impotente para o cinema porque não conhecia 'negócios e técnica'. (ROCHA, 2004 [1980], p.460, destaques no original).

O cerne dos ressentimentos em relação a Paulo Emilio, entretanto, possivelmente está na avaliação arguta que o crítico fez do Cinema Novo em seu célebre ensaio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, publicado originalmente em 1973. Nesse ensaio, o “mestre” aponta para um aspecto já salientado por Jean-Claude Bernardet no livro Brasil em tempo de cinema (2007 [1967]), do qual escreveu o prefácio: a origem de classe dos cinemanovistas e sua dificuldade em estabelecer um efetivo diálogo com as classes populares. Utilizando um vocabulário que remete ao processo de colonização e à condição subdesenvolvida do país e seu cinema, Salles Gomes afirma:

Os quadros de realização e, em boa parte, de absorção do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia chamada. [...] Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e encarregada de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu substancialmente ela própria, falando e agindo para si mesma. [...] A homogeneidade social entre os responsáveis pelos filmes e o seu público nunca foi quebrada. O espectador da antiga chanchada ou do cangaço quase não foram atingidos e nenhum novo público potencial de ocupados chegou a se constituir. (GOMES, 1996 [1973], p.103).

Do mesma forma que o livro de Bernardet foi, como veremos, responsável por um severo afastamento entre ele os cinemanovistas, os comentários de Salles Gomes feriram fundo especialmente Glauber Rocha, que, em seu balanço de 1980, devolve ao crítico-“pai” as ofensas quanto à origem ocupante. O texto é longo, complexo e por vezes contraditório – como ao defender o sucesso de público do Cinema Novo citando Roberto Pires, cineasta baiano criticado em Revisão crítica do cinema brasileiro por sua adesão ao espetáculo e sua insuficiente “profundidade ideológica”61 –, mas aponta incoerências no pensamento e trajetória de Paulo Emilio e expressa ressentimentos quanto ao fato do crítico ter “recusa[do]

61 Cf. ROCHA, 2003 [1963], p.158.

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a coroa várias vezes, deixa[ndo] o grupo sem o Comando Imperial” (ROCHA, 2004, p.462). No entender de Glauber: “Atacando o Ocupante com olhos de Ocupante, Paulo reprimiu o cinema novo dos Ocupados. Ainda feto, escrevi cartas a Paulo anunciando o cinema novo com argumentações irrefutáveis e mesmo assim o empréstimo cultural veio a prazos curtos e juros altos.” (ROCHA, 2004, p.460). Foge ao nosso intento original adentrar nos meandros das relações entre Paulo Emilio e os cinemanovistas, tarefa que foi, em larga medida, cumprida pelo trabalho de Pinto (2008). Procuramos aqui tão somente traçar algumas linhas das relações entre o Cinema Novo e o círculo cinematográfico paulista e, para tal, outra figura central a ser considerada é a do crítico Jean-Claude Bernardet. Diferentemente de Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977), Bernardet, filho de pais franceses, nascido na Bélgica em 1936, compartilha com os cinemanovistas o pertencimento à mesma geração, embora seus caminhos sejam um tanto distintos devido à sua origem imigrante. Morando no Brasil desde 1949, mantinha com o país poucas relações, vivendo entre círculos de imigrantes franceses e, na língua materna, começa a escrever críticas sobre cinema estrangeiro. Aproxima-se da Cinemateca a partir de um curso para dirigentes de cineclubes oferecido pela instituição, da qual passaria a integrar o quadro de funcionários. A convite de Paulo Emilio, escreve para o Suplemento literário do Estado de S.Paulo. Esse período coincide com o contexto político efervescente da renúncia do presidente Jânio Quadros seguida pela Campanha da Legalidade em favor da posse do vice, João Goulart. De acordo com Bernardet, essa conjuntura o incita a se integrar mais à vida social e política do país. Em suas palavras:

Então a presença, digamos, da sociedade, do teu papel na sociedade, do teu papel como agente transformador da sociedade – por mais romântico que fosse, dogmático, seja lá o que for – aquilo era algo que você tinha que levar em consideração em absolutamente todos os momentos. […] E começo a me interrogar sobre as relações entre o meio em que se vive e o papel que você tem nesse meio e o trabalho da crítica. (BERNARDET In: SOUZA e SAVIETO (Orgs.), 1980, p.70).

Nesse momento de inflexão em sua trajetória, Bernardet aponta como decisiva a percepção de que seu trabalho como crítico só teria sentido se realizado em interlocução com os cineastas. Conforme ele relata em outra entrevista, foi um “momento absolutamente chave” quando, ao obter considerável repercussão com uma crítica sobre La Dolce Vita (1960) de Fellini, se deu conta de que mesmo com a recepção alargada o cineasta italiano não leria aquele seu texto, concluindo a partir daí que “o crítico tinha de se inserir na sociedade em que

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essas obras estavam sendo produzidas”. (BERNARDET In: MOURÃO; CAETANO; BACQUÉ, 2007, p.23). Esses relatos são importantes para compreender a relação de Bernardet com o Cinema Novo, mais próxima do que aquela do veterano Paulo Emilio. Ele esteve pessoalmente envolvido na organização da histórica “Homenagem ao Cinema Brasileiro” que lançou o Cinema Novo na Bienal de 1961, acompanhou de perto os debates e, ao longo de toda a década de 1960, escreveu sobre o movimento e filmes a ele identificados62. Rompeu com o círculo de Rubem Biáfora e Walter Hugo Khouri ao qual estava, no início, aproximado63 e se tornou um “aliado” do Cinema Novo, conforme assinala Glauber Rocha em carta coletivamente endereçada a Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade em 1961.64 Assim, quando escreve o polêmico Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966 (2007 [1967]), seu olhar é de dentro do movimento, o que se expressa na significativa epígrafe: “Este livro – quase uma autobiografia – é dedicado a Antônio das Mortes [personagem de Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964)].” No prefácio de Paulo Emilio Salles Gomes, este salienta que na obra “Jean- Claude está presente de corpo inteiro, mergulhado até o pescoço nos filmes e na sociedade”. (GOMES In: BERNARDET, 2007, p.18). E o próprio autor procura justificar seu trabalho apresentando-o não como um julgamento mas como uma forma de participar do debate e contribuir para os rumos do movimento, situando-se “dentro da luta”. Em suas palavras:

Ainda que seja um trabalho de reflexão, não se coloca num nível superior ao das obras que aborda. Situa-se no mesmo nível; situa-se (ou pelo menos pretende) dentro da luta; é uma tentativa de esclarecimento, um esforço para enxergar melhor, não um livro de história, nem uma atribuição de prêmios aos bons filmes e reprovação aos maus. (BERNARDET, 2007 [1967], p.22).

Nas cartas para Glauber Rocha, é significativo o uso que Bernardet faz do “nós”, mesmo nos momentos em que coloca questionamentos sobre Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), como veremos. Até o lançamento de Brasil em tempo de cinema, o crítico e o cineasta tratam-se mutuamente como “querido” e Glauber, escrevendo entusiasmado de Paris em 1967, relata que estava fazendo propaganda do aguardado livro do amigo entre os críticos

62 Parte desses textos pode ser encontrada no livro Trajetória crítica. Cf. Bernardet (1978). 63 Cf. Bernardet In: SOUZA e SAVIETO (Orgs.), 1980, p.70. Glauber Rocha descreve essa conversão a seu modo, no texto Cinema Novo (62) “Jean-Claude, dando uma virada louca, mandou Bergman plantar batatas na Suécia e disse que Rossellini era o começo” (ROCHA, 2004 [1962], p.51). 64 “O Jean-Claude tem escrito excelentes artigos, dentro da melhor linha. É mais um aliado para a nova luta”. ROCHA, 1997 [1961], p. 157.

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franceses e sugere uma lista de nomes para os quais ele deveria enviar exemplares. 65 Ao tomar contato com o livro, porém, Glauber rompe com Bernardet. Este ainda lhe escreve, pouco depois do lançamento, indagando uma opinião que já podia ser antevista pela recepção que a obra obteve entre os círculos cinemanovistas cariocas:

Glauber Querido, […] Se você já recebeu e leu o Brasil em tempo de cinema, diga o que você achou. Aqui em S. Paulo foi o maior silêncio: até hoje não saiu nenhuma crítica, nem resenha, nem registro nos lançamentos do mês. No Rio, a pichação foi geral: sou um indivíduo desprovido de sensibilidade; elaboro na minha cabeça belíssimos esquemas em que boto a realidade a tapas; sou politicamente irresponsável; sou contraditório (principalmente na primeira parte do livro, que é péssima: cheia de falhas graves) e, quando não sou contraditório, me limito a dizer o óbvio, faço apenas crítica destrutiva, quando o cinema novo precisa de crítica construtiva; me nego a levar em conta a juventude dos diretores que fizeram os filmes que abordo. Em conversas particulares, muitos jovens falaram coisas interessantes sobre o livro. Alguns cineastas também, Saraceni, Sarno. Os universitários estão gostando. O livro tem boa saída. [...] (BERNARDET, 1967 In: ROCHA, 1997, p.296).

A resposta pessoal nunca veio66, mas Glauber passou mais tarde a expressar publicamente seu descontentamento. Expôs o argumento central do livro da seguinte maneira: “Pra Jean-Claude, num barato mecanicista, o cinema novo materializa uma ideologia de classe média” (ROCHA, 2004 [1976], p.309). E seguiu distribuindo ofensas a Bernardet, referindo- se aos “seus textos traduzidos do belga” e afirmando que “seu racionalismo pseudomarxista o prende na impotência e por isso não filma” (ROCHA, 2004, p.465). Em 1979, em entrevista à Folha de S.Paulo citada por Raquel Zangrandi (2011), teria ido mais longe e designado o ex- amigo como “um canalha e ponto final […] Era o crítico mais reacionário do Brasil. Não quis reconhecer o coeficiente revolucionário dos filmes. Quem não entendeu o Cinema Novo, repito, é burro.” (ROCHA, 1979 apud ZANGRANDI, 2011). Todo mal-estar gerado pelo livro provinha, de fato, de sua tese central que focalizava os dilemas vividos pelo cinema brasileiro realizado do final da década de 1950 até meados dos anos 1960 – abordando fundamentalmente, mas não só, os filmes identificados ao Cinema Novo – a partir de uma perspectiva sócio-política. Tratava-se do primeiro estudo a abordar a recente produção cinematográfica como um todo, buscando os nexos entre as problemáticas presentes nos filmes e a realidade social brasileira. Suas conclusões tocavam no ponto nevrálgico do projeto do Cinema Novo que, tendo o “povo” como mote central e querendo-se revolucionário, via-se atado aos limites da classe média progressista constrangida

65 Cf. ROCHA, 1997 [1967], p.281. 66 Cf. Zangrandi (2011).

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entre o apoio às classes populares e a subserviência às classes dominantes. A personagem emblemática desse dilema, na interpretação de Bernardet (2007 [1967]), é Antônio das Mortes, de Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), dividido entre opressores e oprimidos, matando o povo em prol de sua desalienação, ao mesmo tempo em que o faz a mando dos poderosos: “Se ele mata a soldo do inimigo, não pode ser pelo bem do povo; se é pelo bem do povo, não pode ser obedecendo ao inimigo. Antônio das Mortes é essa contradição.” (BERNARDET, 2007, p.97). Toca também na questão do público, constatando que o Cinema Novo não atingiu a grande maioria da população brasileira, não só por problemas na estrutura de distribuição e exibição no Brasil, mas por problemas de comunicação e linguagem, esta ainda ligada à “cultura oficial”, isto é, à cultura erudita dos círculos de onde emergiram os cineastas67. Suas palavras finais são enfáticas: “Este livro teve a pretensão de contribuir para desmascarar uma ilusão, não só cinematográfica: o cinema brasileiro não é um cinema popular; é o cinema de uma classe média que procura seu caminho político, social, cultural e cinematográfico”. (BERNARDET, 2007, p.284). Nesse sentido, os filmes mais valorizados por sua análise são aqueles que explicitamente tomam para si a tarefa de problematizar a própria classe média, notadamente O desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965). Essa problemática acompanha os escritos de Bernardet ao longo de boa parte de sua trajetória, pelo menos até Cineastas e imagens do povo (2003 [1985]), no qual conjuga com maior refinamento as preocupações ideológicas quanto ao “conteúdo” dos filmes com a análise formal. Para o momento, é interessante observar que, antes mesmo do lançamento do seu primeiro livro, o crítico expressou suas inquietações em carta a Glauber Rocha. Incitado pelo então amigo a falar a respeito do recém-lançado Terra em transe, Bernardet escreve longas páginas de comentários e expressa inquietação em relação à representação do povo no filme. Por que utilizar atores para expressar as falas dos personagens representantes do povo quando já havia no filme pessoas do povo como figuração? Para ele seria insuficiente a resposta de que não se poderia confiar papéis a atores não profissionais. A questão é mais profunda: Eu pergunto se, propositalmente ou não (o que é mais provável), não se deve ver aí uma manifestação, uma intuição da dificuldade que Paulo Martins [poeta de esquerda protagonista do filme] tem, que você tem, que eu tenho, em atingir o povo. Assim como as autoridades federais têm o seu povo oficial (o pelego, no caso), nós também temos o nosso povo, o qual nosso povo [sic] é uma imagem que nós fizemos do povo, mas não é o povo. Nós vivemos dentro das nossas metáforas. E a

67 Cf. Bernardet, 2007, p.164-172.

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escolha de atores para encarnar os elementos populares que se manifestam me parece expressar de modo profundamente angustiado o fato de que realmente ainda não vemos no povo uma escolha política viável, ou seja, uma escolha política que seja uma ação. Você entende qual seria a outra solução (que seria talvez artificial): que os elementos populares quebrem a unidade de interpretação do elenco. Mas isso não corresponderia à visão de Paulo, nem à nossa realidade político-intelectual. (BERNARDET In: ROCHA, 1997, p.287-8).

Bernardet pede explicitamente para Glauber se manifestar sobre esse ponto e o cineasta responde, demonstrando que para ele essa questão não se colocava como um problema:

[…] Quanto a atores, do povo ou não, creio que [Emanoel] Cavalcanti, Flávio M.[Migliaccio] são todos povo. Os atores representam motivos reais do povo. Eu conheço bem camponeses e nada é inventado. Eu sou da média rural, eu me criei junto com filhos de camponeses na fazenda do meu avô. Sobre povo eu tenho vivência profunda e posso lhe dizer que, pelo fato de meu avô ser protestante, não tínhamos problemas de classe. [...] Assim não nego contradições. Você está certíssimo em suas críticas e isto me deixa feliz principalmente por ver que você está tão lúcido a respeito de tudo. Esperava mesmo que você me esculhambasse. (ROCHA, 1997, p.301-2).

O “esculhambo” público representado por Brasil em tempo de cinema, entretanto, foi forte demais, abalando as relações entre o crítico e os cinemanovistas. Para os “paulistas do entre-lugar”, entretanto, Bernardet continuou sendo por longo tempo um interlocutor importante, como reconhece João Batista de Andrade em entrevista à autora: “Se for falar assim… uma pessoa que ajudava a guiar, que ajudava a dar norte, essa pessoa era o Jean- Claude. [...] ele tinha um papel um pouco de guia...assim... ideológico, tal, intelectual... Agora... não era Cinema Novo.” (ANDRADE, 2013a).

1.3. Rio X São Paulo: a questão da “brasilidade” e as disputas

Na ruptura entre os cinemanovistas e Jean-Claude Bernardet esteve ainda em questão um outro fator: as disputas e rivalidades entre os círculos cariocas e paulistas. Em recente reportagem, Raquel Zangrandi (2011) divulga que Bernardet era designado pelo grupo carioca como “aquele viado belga de São Paulo”. Eduardo Escorel, membro do grupo cinemanovista e que teria sido a fonte a revelar o comentário ofensivo, escreveu um artigo resposta, repudiando a publicação da grosseria, mas admitiu o:

[...] sectarismo predominante entre os integrantes do Cinema Novo, no período que vai de 1962 a 1968. Reunidos nos finais de tarde em um bar de Botafogo, a conversa sem compromisso fervia, temperada, entre outros condimentos, com bairrismo, xenofobia e machismo. Que o digam Walter Hugo Khoury, , Ruy Guerra, Luis Sérgio Person e o próprio Jean-Claude Bernardet, todos vítimas

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daqueles papos de botequim. O fato de ser francês naturalizado brasileiro, de ter sotaque, morar em São Paulo e, mais do que tudo, pensar com a própria cabeça, fazia de Jean-Claude um alvo preferencial. (ESCOREL, 2011).

Sem resvalar para o anedótico, cabe refletir sobre o que está subjacente a esse antipaulistanismo. Parte da questão relaciona-se à concepção de cinema e de cultura que florescia nos meios de esquerda naquele momento e que em larga medida estava ligada ao que Marcelo Ridenti denominou de “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária”, a qual “implicava o paradoxo de buscar no passado (nas raízes populares nacionais) as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as fronteiras do capitalismo”. (RIDENTI, 2010, p.88-89). Buscava-se o “autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do “coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista” (RIDENTI, 2000, p.24). E o Cinema Novo encontrou no sertão nordestino a imagem maior para expressar essa problemática: imagem da miséria, do atraso, do subdesenvolvimento e cujo coeficiente de violência trazia em si um potencial revolucionário, tal como sintetizado no célebre ensaio- manifesto Estética da fome, de Glauber Rocha: “nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida […] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado” (ROCHA, 2004 [1965] p.65-66). A cultura paulistana não se coadunava com essa proposta. Para Glauber Rocha: “São Paulo, no Brasil, é um país estranho como cultura. Está além de nossa estrutura geral no que se refere a progresso e muito diferente do resto do Brasil na formação de sua gente. Sua cultura é mais importada e mais desligada de nossa realidade” (GLAUBER, 1959 apud YUTA, 2004, p.102). A partir desse “diagnóstico”, a figura maior do Cinema Novo condena o cinema paulista ao fracasso eterno:

O cinema paulista foi um cinema sem possibilidades: erro de raízes, origens culturais, conhecimento do Brasil e seus problemas. Os cineastas paulistas erram, e errarão sempre, pelo sentido de grandiosidade que marca esta própria civilização. [...] Neste meio difuso, metropolitano e descaracterizado – aberto a todas as correntes culturais do mundo que são importadas mas pessimamente digeridas – é possível a deformação de talentos. Gimba, presidente dos valentes, de Flávio Rangel, é um lamentável exemplo disso.” (ROCHA, 2003 [1963], p.116-117).

A malograda experiência da Vera Cruz na década anterior era referência a ser superada: cinema de estúdio, empreendido pela burguesia paulistana com pretensões industriais, técnicos estrangeiros, moldes artísticos importados, temáticas “universalistas” ou

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retratos “inautênticos”, caricaturais e folclorescos do povo brasileiro. O Cinema Novo pretendia caminhar em via diametralmente oposta. E a cidade de São Paulo, onde ainda tinham força críticos e cineastas identificados àquelas propostas – B.J. Duarte, Rubem Biáfora, José Júlio Spiewak, Alfredo Sternheim, Walter Hugo Khouri – era marcada pelo estigma da Vera Cruz e, assim, considerada “túmulo do cinema”. É significativo nesse sentido o depoimento do cineasta Nelson Pereira dos Santos, paulistano de geração anterior a dos jovens cinemanovistas, que se radicou no Rio de Janeiro e foi incorporado ao movimento do Cinema Novo: “Fui ficando no Rio e também não podia voltar para São Paulo, que não só era o túmulo do samba, como também o túmulo do cinema. Com o fracasso da Vera Cruz e aquelas outras empresas de produção – Maristela, Multifilmes e tal –, a idéia de fazer cinema em São Paulo era coisa ultrapassada”. (SANTOS In: D'ÁVILA, 2002, p.28). No distanciamento e mesmo antagonismo entre cinema paulista e carioca estavam também em questão disputas por posições no “campo” cinematográfico – emprestando a terminologia de Bourdieu (1996, 1998)68. Um interessante indício dessas disputas pode ser encontrado em trechos de cartas de Gustavo Dahl para Glauber Rocha. Dahl, conforme mencionamos, fora radicado em São Paulo e fizera parte do círculo da Cinemateca, passando temporadas na Europa e depois se estabelecendo permanentemente no Rio de Janeiro, inserido no núcleo central do Cinema Novo. Em 1963, escrevendo de Paris para Glauber, coloca nitidamente São Paulo em posição coadjuvante em relação ao núcleo protagonista do Cinema Novo: “São Paulo tem que ser usado, quem quiser fazer CN [Cinema Novo] que faça, mas são eles que têm que se botar no ritmo da dança, como eu fiz.” (DAHL, 1963 In: ROCHA, 1997, p.222). Em 1967, porém, outra carta dele deixa transparecer um receio de que os coadjuvantes pudessem assumir o papel de protagonistas ou ao menos almejá-lo: “São Paulo vai melhor, estive lá, todo mundo quer fazer cinema. O diabo é que eu acho que na próxima saison e já um pouco nessa começará a haver um escalonamento de genialidades e ninguém vai querer ficar em segundo ou terceiro plano. Tenho medo que comecem a surgir ressentimentos.” (DAHL,1967 In: ROCHA, 1997, p.299). Em 1967, Gustavo Dahl não havia ainda lançado seu primeiro longa, O bravo guerreiro (1968), e o cinema de São Paulo vivia um momento promissor. São significativas, desde 1966, reportagens que apontam para um “renascimento” do cinema paulista, tais como:

68 Levamos em conta as considerações de Fernandes (2008) que entende que o termo “campo” só pode ser utilizado entre aspas para se referir ao cinema brasileiro, uma vez que a “relativa autonomia” a que se refere o conceito original é nesse caso questionada pela condição periférica do Brasil, pelo domínio de companhias cinematográficas estrangeiras, pela dependência do Estado e pela influência de instâncias e critérios externos para a consagração de seus agentes.

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O cinema novo em São Paulo, de José de Moura (1966) para o Diário de São Paulo; Cineastas de Amanhã I – As Vozes de São Paulo, Cineastas de Amanhã II - As promessas do tédio e da coragem e Cineastas de amanhã III – A nova realidade dos jovens de São Paulo, de Miriam Alencar (1966a, 1966b, 1966c) para o Jornal do Brasil e Cinema paulista, sinal verde de Jean-Claude Bernardet (1967) para a Revista O Cruzeiro. Nessas reportagens, saúda-se o retorno do veterano Roberto Santos ao longa-metragem com o bem-sucedido A hora e a vez de Augusto Matraga (1966), depois do longo afastamento desde O grande momento (1958). E apresentam-se novos projetos paulistas recém-lançados ou em vias de realização, como os próximos dois filmes de Roberto Santos: As cariocas (3º episódio, 1966) e O homem nu (1967); O caso dos irmãos Naves (1967), de Luiz Sérgio Person com roteiro em parceria com Jean-Claude Bernardet; A Margem (Ozualdo Candeias, 1967) – um dos precursores do Cinema Marginal que viria a fazer frente ao Cinema Novo – Bebel, garota propaganda (1967), primeiro longa de Maurice Capovilla e Anuska, manequim e mulher (1968), primeiro longa de Francisco Ramalho Jr., sendo estes dois últimos fruto de empresas produtoras recém- fundadas: respectivamente, a CPS (de Maurice Capovilla, Luiz Carlos Pires e Roberto Santos) e a TECLA (de cinco sócios entre os quais Francisco Ramalho Jr. e João Batista de Andrade). Bernardet (1967) assinala ainda uma terceira produtora, a RACINE, de Rudá Andrade e Carlos Augusto de Albuquerque. As reportagens sequenciais de Miriam dedicam-se longa e individualizadamente a realizadores sediados em São Paulo: Maurice Capovilla, Geraldo Sarno e Andrea Tonacci, na primeira reportagem; Maurício Rittner e Rogério Sganzerla na segunda e Sérgio Muniz, João Batista de Andrade e Renato Tapajós na terceira, apresentando seus currículos e concedendo-lhes espaço para expor seus objetivos e projetos. O momento parecia auspicioso também para as produções não-ficcionais, depois da boa acolhida entre a intelectualidade dos documentários produzidos por Thomaz Farkas entre 1964/196569, favorecendo a criação de um setor de produção de documentários junto ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). O tom era francamente otimista e Miriam Alencar, que escreve para o Jornal do Brasil, editado no Rio de Janeiro, chega a afirmar: “O Rio é o grande centro […] Mas é em São Paulo que, no momento, está havendo uma revolução cinematográfica: um grande grupo, novíssima geração, trabalha isoladamente, ligados pelo mesmo ideal, e faz com que São Paulo se desligue de sua arcaica estrutura cinematográfica e se integre no novo cinema.” (ALENCAR,

69 Falando sobre os filmes de Farkas, Bernardet afirma: “Comercialmente o empreendimento não rendeu, o sucesso cultural foi enorme” (BERNARDET, 1967a, p.96).

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1966a, destaque da autora). O próprio crítico Jean-Claude Bernardet expressa em uma de suas últimas cartas a Glauber Rocha, em 1967, o desejo de dirigir um filme.70 No entanto, as perspectivas não se cumpriram como o desejado. O próximo projeto que Bernardet e Person pretendiam realizar em parceria, A hora dos ruminantes, baseado na obra homônima de José J. Veiga e cujo roteiro foi finalizado em 196771, nunca conseguiu condições de produção, representando uma grande frustração na trajetória de Person72, que realizou, antes de sua morte precoce em 1976, duas comédias que destoam bastante da filmografia que vinha construindo com São Paulo S.A. (1965) e O caso dos irmãos Naves (1967), quais sejam: Panca de valente (1968) e Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), que se somam ao também díspar episódio A procissão dos mortos do longa coletivo Trilogia do terror (Ozualdo Candeias, Luis Sérgio Person e José Mojica Marins, 1968). Os demais cineastas paulistas em atuação nos anos 1960 e 1970 igualmente tiveram dificuldades em construir trajetórias regulares e coesas73, que viessem a consolidar uma cinematografia forte em São Paulo, sendo um fator importante a se considerar para a compreensão desse quadro as condições de produção cinematográfica da época e a situação de São Paulo, em particular.

1.4 Condições de produção: São Paulo, Rio de Janeiro e os “paulistas do entre-lugar”

Para compreender as condições de produção do cinema em São Paulo nos anos 1960, é necessário examinar o contexto de formação, e, sobretudo, de derrocada, da experiência do cinema “industrial” que marcou a cidade na década anterior. Maria Rita Galvão (197–)74 defende o argumento de que a fundação da Companhia Cinematográfica Vera

70 Cf. BERNARDET, 1967 In: ROCHA, 1997, p.284. 71 Roteiro depositado na Cinemateca Brasileira. Cf. PERSON, Luís Sérgio, BERNARDET, Jean-Claude. A hora dos ruminantes. Extraído da obra homônima de José J. Veiga. São Paulo: s.n., julho de 1967. 79 p. 72 Ver, por exemplo, as entrevistas de Person ao programa Luzes, câmera da TV Cultura e ao Pasquim publicadas em Labaki (2002). 73 Exceção no cinema paulista é Walter Hugo Khouri que manteve regularidade na sua produção, com marcados traços autorais, porém o fez ao longo dos anos 1970 aproximando-se largamente do cinema erótico. O erotismo já era um traço de sua filmografia em que se destacam temas existenciais, tendo sido, possivelmente, exacerbado pelas condições de produção da época. Filmes como As deusas (1972); O último êxtase (1973); O desejo (1975); O prisioneiro do sexo (1979) e Convite ao prazer (1980) têm produção de A.P.Galante, um dos maiores produtores da Boca do Lixo como veremos no capítulo 2. Ozualdo Candeias e Carlos Reichenbach, cineastas que surgem e se estabelecem no contexto da Boca, também têm trajetórias peculiares, articulando em seus filmes marcas autorais com as exigências eróticas daquele contexto de produção. 74 Texto não publicado, disponível na Cinemateca Brasileira: GALVÃO, Maria Rita. Origens do cinema independente em São Paulo. Pesquisa para a realização de um filme de longa metragem sobre o cinema independente em São Paulo na década de 50. Säo Paulo, 197-. 393 p. Fot. Incl. depoimentos e filmografia completa.

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Cruz teve um impacto que alterou não somente os rumos do cinema paulista mas do cinema brasileiro como um todo. Nascida no bojo das iniciativas da burguesia paulista em direção à cultura,75 a Vera Cruz foi seguida por dezenas de outras companhias cinematográficas, entre as quais se destacam a Maristela e a Multifilmes. São Paulo desponta então no cenário cinematográfico brasileiro e atrai vários profissionais, como atores, críticos e cineastas, todos em busca de melhores condições de trabalho do que as encontradas nos estúdios cariocas produtores de chanchadas (conhecidas pelo baixo custo e precariedade)76. Desse modo, nomes de destaque do cinema carioca como Fernando de Barros, José Carlos Burle, Alinor Azevedo, Alex Viany, Adhemar Gonzaga, Anselmo Duarte, Tônia Carrero e migram para o cenário paulista, o que endossa o argumento da autora de que “O centro de produção cinematográfica nacional se desloca nitidamente do Rio para São Paulo” (GALVÃO, 197–, p.7). Os depoimentos de Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos, colhidos pela autora, corroboram a ideia da efervescência do meio cinematográfico paulista que se sobrepõe até mesmo à falência dos grandes estúdios em meados dos anos 1950, visto que, em paralelo à produção “industrial”, vinham emergindo seminários, cineclubes, grupos de discussão e associações em torno do cinema, o que resultou num “verdadeiro salto no desenvolvimento das ideias cinematográficas e no pensamento sobre o cinema no Brasil” (GALVÃO, 197-, p.7), dando origem a novas formas de se conceber e realizar cinema: o chamado cinema independente. Nomes como Rodolfo Nanni, Alex Viany, Carlos Ortiz, Nelson Pereira dos Santos, Galileu Garcia, Bráulio Pedroso, os irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira destacam-se nas discussões que desde antes das falências dos estúdios colocavam em questão o modelo “industrial”, questionando temas, linguagem e condições de produção, sob influência do neorrealismo italiano e de um ideário da esquerda nacionalista. Embora a definição de um cinema independente não fosse isenta de contradições, conforme assinala Galvão (197- e 1980), o que começa a se esboçar é a ideia de um cinema de cunho autoral, realizado por pequenos produtores, com esquemas de produções modestos e equipe reduzida. No contexto da derrocada das companhias cinematográficas paulistas aumentam as pressões por subvenções estatais e, em 1956, consegue-se obter do Banco do Estado de São

75 De fins dos anos 1940 aos anos 1950, o cenário cultural de São Paulo se modifica significativamente a partir de iniciativas como a fundação do Museu de Arte de São Paulo (MASP), do Museu de Arte Moderna (MAM), do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), da Escola de Arte Dramática (EAD), que são acompanhadas pela multiplicação de exposições, de conferências, de revistas de divulgação artística e cultural etc. Sobre o tema, ver Arruda (2001). 76 Sobre a chanchada ver Augusto (1989) e Bastos (2001).

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Paulo uma carteira específica de financiamento para o cinema. Conforme José Inacio de Melo e Souza (2003), os apelos do setor cinematográfico por intervenção estatal cresciam desde os congressos nacionais de cinema no início dos anos 1950, conquistando em São Paulo a criação da Comissão Municipal de Cinema (CMC) em 1955, seguida, em 1956, pela Comissão Estadual de Cinema (CEC). Em 1955, a lei municipal 4.854, estabeleceu uma taxa adicional sobre os ingressos de cinema a ser revertida como adicional de receita para os filmes paulistas (10% da renda bruta aos filmes de qualidade normal e 15% para os filmes com valor artístico ou técnico), bem como prêmios individuais a serem concedidos por um júri municipal. E, em março de 1956, foi então criada a Carteira de Cinema do Banco do Estado de São Paulo, estabelecendo-se, inicialmente, o teto máximo de financiamento em 1 milhão de cruzeiros, aumentado, a partir de dezembro, para 2 milhões, a partir de reivindicações do setor sob justificativa de que o custo médio dos filmes era de quase 4 milhões de cruzeiros. Os critérios de seleção dos filmes a serem financiados combinavam garantias bancárias com avaliações quanto ao teor moral e ideológico dos argumentos e roteiros submetidos. A análise do caso Bahia de todos os santos (Trigueirinho Neto, 1960) realizada por Melo e Souza (2003) traz amostra significativa do método de avaliação adotado pelo Banco que se valia de pareceres externos para a definição dos projetos financiados, como por exemplo os do crítico Hélio Furtado do Amaral, ex-seminarista ligado a entidades católicas conservadoras, “avalista moral”, como o caracteriza Melo e Souza (2003, p.4), e da Comissão Estadual de Cinema formada por Almeida Salles, Plínio Garcia Sanchez, Jacques Deheinzelin, Fernando de Barros, Abílio Pereira de Almeida e Flávio Tambellini. Os pareceres, no entanto, eram apenas indicativos, não decisivos, e ficavam submetidos a decisões dos altos escalões do banco. Fontes primárias ou secundárias sobre esse período do chamado cinema independente paulista, no ínterim que cobre a falência das grandes companhias cinematográficas à emergência do Cinema Novo, são bastante escassas, sendo, em particular a atuação do Banco do Estado de São Paulo e os filmes por ele patrocinados, um tema importante para uma pesquisa específica. Além do fundamental trabalho de Maria Rita Galvão (197-, 1980, 1981) – que incluía planos de um longa-metragem sobre esse período77 – há dois outros textos, breves, porém ricos em informações, acerca do financiamento do Banco do Estado de São Paulo: o referido texto de Melo e Souza (2003), que constitui uma apresentação dos arquivos da Carteira de Cinema do Banco do Estado de São Paulo na ocasião recém-

77 Conforme indicado na nota 74, o texto Galvão (197-) é parte de um projeto de realização de longa-metragem.

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depositados na Cinemateca Brasileira por iniciativa do Grupo Santander/Banespa78 e um texto de Máximo Barro (2001), composto de três páginas em que expõe – alicerçado na sua experiência como montador e integrante ativo daquela geração do cinema paulista – as condições de produção no período pós-fracasso da experiência “industrial” de cinema em São Paulo. De acordo com Barro (2001), o incentivo estatal à produção era naquele momento essencial para “não desativar o parque paulista de cinema, que além dos estúdios contava com vários laboratórios de revelação e copiagem que, afiançados nos deslumbres dos novos tempos de 1950, haviam investido pesado, modernizando toda a aparelhagem” (BARRO, 2001, p.72). Pressionado pelas articulações do setor, o Banco do Estado comprometeu-se então a conceder empréstimos a juros módicos aos produtores paulistas – Barro (2001, p.72) fala em teto de 2 mil cruzeiros mas é provável que haja um erro nessa cifra que mais certamente seria de 2 milhões, como aponta Melo e Souza (2003)79. Independentemente desse valor incerto, Barro (2001) traz importantes informações sobre as estratégias e procedimentos de produção utilizados naquele período, com destaque para a atuação da recém-fundada Brasil Filmes que se sustentava sem capital próprio, utilizando-se dos estúdios e equipamentos da falida Vera Cruz e valendo-se das manobras de Abílio Pereira de Almeida, fundador do TBC e ex-diretor da Vera Cruz, que, como “renomado advogado da área financeira, conhecia todos os meandros e atalhos que a legislação brasileira permitia” (BARRO, 2001, p.71). Em confluência com o relatado por Roberto Santos a Galvão (197-, p. 69), Barro (2001) explica que o dinheiro do Banco não era liberado de imediato e estava, em parte, condicionado à entrega do “copião” (primeira cópia feita com o negativo do filme), o que exigia dos produtores o adiamento máximo de todos os gastos e pagamentos. Sendo assim, Abílio Pereira de Almeida, por exemplo, utilizava-se da estratégia de comprar latas de negativo para pagamento em 60 ou 90 dias, penhorá-las junto ao Banco do Brasil e filmar rapidamente para poder ter em mãos o copião no menor tempo possível, o que exigia um ritmo de trabalho e de ensaios bastante diferente daquele dos tempos da Vera Cruz quando cenas podiam ser repetidas sem preocupações com os gastos de negativos. Barro (2001) sublinha também a importância do trabalho de Galileu Garcia – realizador de um único longa Cara de fogo

78 O arquivo é constituído por 45 dossiês de projetos que, conforme aponta Melo e Souza (2003, p.1), apresentam valor variado, alguns com volume significativo de documentos sobre todo o processo de financiamento, outros apenas com uma ficha cadastral. Seria interessante uma pesquisa específica que analisasse em detalhe esse material. 79 Além da maior precisão documental do trabalho de Melo e Souza (2003), as cifras da CAIC, assinaladas por Bertrand Ficamos (2013, p.136 e 137) para o ano de 1963 são também na casa dos milhões.

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(1958) – como diretor de produção, atuando no levantamento de recursos para as filmagens alicerçando-se no cheque avalizado pelo Banco do Estado: “o moderno Galileu da Paulicéia multiplicava pães, peixes e fotografias. Sensibilizava a todos com suas pregações em favor do cinema brasileiro, ainda mais quando apoiado por um papel bancário” (BARRO, 2001, p.73). De acordo com Barro (2001), essa estratégia foi repetida na produção de um conjunto de filmes: O processo foi empregado em Osso, amor e papagaios [Carlos Alberto de Souza Barros e César Mêmolo Jr, 1957], O gato de madame [Agostinho Martins Pereira, 1956], O sobrado [Walter Dürst, 1956], Estranho encontro [Walter Hugo Khouri, 1958], Paixão de gaúcho [Walter George Dürst, 1957], Rebelião em Vila Rica [Geraldo e Renato Santos Pereira, 1957], Ravina [Rubem Biáfora, 1958], todos da Brasil Filmes, mais os da Maristela e independentes, que em alguma fase da produção tiveram o apoio da trama de Abílio. Isso possibilitou o batismo de Walter George Dürst, Renato Santos Pereira, Rubem Biáfora, Carlos Alberto de Souza Barros, Cezar [sic] Memolo e a crisma de Walter Hugo Khouri e Agostinho Martins Pereira. (BARRO, 2001, p.73).

O grande momento (Roberto Santos, 1958) foi realizado seguindo mesmo esquema, embora não estivesse vinculado à Brasil Filmes – produtora gerenciada por Abílio Pereira de Almeida e herdeira da estrutura da Vera Cruz – mas sim à recém-extinta Companhia Cinematográfica Maristela, tendo por avalista o fundador daquela empresa, Mário Audrá que avalizou também Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957) junto ao Banco de Estado. Em seu livro de memórias, Audrá (1997) fala com ressentimento do apoio dado aos dois realizadores “independentes”:

[...] para cada um deles consegui e avalizei financiamentos de US$ 10,000 no Banco do Estado de São Paulo, além de ceder estúdios e equipamentos mediante um contrato que me daria uma ridícula porcentagem nos rendimentos de cada filme. Na verdade, nada recebi em troca, nem ao menos um agradecimento; muito pelo contrário, só recebi comentários desabonadores. (AUDRÁ, 1997, p.134).

Ele relata ter ouvido de Roberto Santos, durante as filmagens de O grande momento, o seguinte comentário: “esses produtores vivem da nossa fome” (AUDRÁ, 1997, p.156). Polêmicas à parte, o fato é que O grande momento teve um baixíssimo orçamento – de acordo com informações Roberto Santos (In Galvão, 197-, p.70), o filme custou cerca da metade do orçamento do igualmente independente Osso, amor e papagaios (César Mêmolo Jr e Carlos Alberto de Souza Barros 1956) e menos de um quarto do valor das produções da Vera Cruz – sendo realizado em condições precárias de produção, o que impossibilitou inclusive a realização dos objetivos de filmar em locações, seguindo os ditames do neorrealismo italiano:

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Tudo foi feito tendo em vista a maior economia possível. Por, exemplo, a nossa ideia inicial era filmar em locações; a influência do reorrealismo era decisiva naquele momento […] Mas filmar em locação significava uma despesa que não estávamos em condições de fazer: locomoção de equipe e equipamento, impossibilidade de gravação direta, o que implicava em despesas posteriores de dublagem e mixagem, sujeição às condições do tempo, chuva, sol, encoberto, perda de dinheiro em esperas etc. Por paradoxal que possa parecer, filmamos em estúdio pra fazer economia. A equipe dormia lá mesmo na Maristela e a alimentação eu consegui com o SENAI [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial]. (SANTOS In GALVÃO, 197-, p.70-71).

Lançado em São Paulo em plena noite de 31 de dezembro por dificuldades de inserção no circuito exibidor80, O grande momento foi um fracasso de bilheteria e ficou pouco tempo em cartaz. O destino não foi muito diferente para a maioria dos filmes que receberam recursos do Banco do Estado de São Paulo. Como informa Melo e Souza (2003), a partir de comentários de Joaquim de Melo Bastos, gerente da carteira de créditos do Banco do Estado de São Paulo: [...] dos 29 filmes financiados pela Carteira desde 1956, com exceção dos filmes da EMECE em cores e cinemascope (um deles provavelmente era Meus amores no Rio), “apenas três produziram renda líquida de Cr$ 2.000.000,00 no prazo de 2 anos”, ou seja, a Carteira era declaradamente deficitária. (MELO E SOUZA, 2003, p.8).

A problemática do cinema brasileiro, como já apontavam os Congressos de Cinema dos anos 1950, exigia uma luta articulada que contemplasse não só o polo da produção, mas também a distribuição e a exibição de modo a fazer frente ao cinema estrangeiro, sobretudo o norte-americano. Esta é uma questão que segue em aberto até os dias atuais, não obstante as conquistas do setor ao longo dos anos 1960 e 1970.81 Por ora cabe assinalar que o apoio do Banco do Estado de São Paulo encerrou-se no início dos anos 1960. Galvão (197- , p.91), na cronologia que faz dos “eventos significativos para cinema independente”, marca em 1959 o fim dos financiamentos do Banco do Estado de São Paulo à produção cinematográfica iniciados em 1956. Barro (2001), por sua vez, assinala que “Até

80 Cf. Simões, 1997, p.52. No Rio, segundo o autor, o filme estreara na primeira quinzena de dezembro também sem sucesso de público. 81 Arthur Autran (2004, 2013) realiza um importante estudo sobre as vicissitudes do “pensamento industrial cinematográfico brasileiro”, de 1924 a 1990. Conforme demonstra o autor, embora o discurso industrialista tenha perpassado, em diferentes matizes, o pensamento cinematográfico brasileiro ao longo dos anos, sendo um elemento de coesão entre os cineastas, a industrialização cinematográfica nunca se realizou efetivamente, não obstante as tentativas pontuais, com destaque para as iniciativas privadas da Vera Cruz e as estatais da Embrafilme. Articulando o pensamento cinematográfico ao pensamento social brasileiro, o autor atribui o fracasso da industrialização do cinema brasileiro aos impasses implicados no desenvolvimento capitalista dependente. As demandas por industrialização tenderam a se associar a uma perspectiva “culturalista” que buscou antes o incentivo à produção artística nacional e não enfrentou efetivamente a ocupação do mercado pelo cinema norte-americano, criando-se bases industriais sólidas e medidas protecionistas no sentido da ocupação do mercado interno.

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1960 ainda financiavam-se algumas produções com esse método, que aos poucos foi sendo superado por outros, porque, ao lado da crescente televisão, começava a caminhada inteiramente independente do Cinema Novo” (BARRO, 2013, p.3). Os dossiês consultados no catálogo da Cinemateca Brasileira referentes à carteira de créditos do Banco do Estado de São Paulo, compreendem o período 1956 a 1962, sendo que a maioria dos projetos situa-se na virada dos anos 1950 para 1960. Independentemente da precisão de data, os dados mostram que o cinema paulista teve, após o fracasso da experiência industrial, uma sobrevida ativa ao longo dos anos 1950, contando por alguns anos com o auxílio do Estado, mas que, a partir do surgimento do Cinema Novo, houve um claro (re)deslocamento do eixo cinematográfico para o Rio de Janeiro. É simbólica dessa transição a célebre “noite-manifesto” na Bienal de 1961 na Cinemateca Brasileira em São Paulo, em que se realizou, conforme referido no item 1.2, o confronto entre a “velha guarda” paulista e os jovens entusiastas de um novo cinema. Com fundação da CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica), vinculada ao Banco do Estado da Guanabara, em 1963, a força do movimento nascente ganhou contornos mais concretos, consolidando o deslocamento da produção para o Rio. Como consequência, muitos dos expoentes do chamado “cinema independente” paulista dos anos 1950 afastaram-se do cinema, como César Mêmolo Jr., Galileu Garcia, Walter Dürst e Rodolfo Nanni82 e os novos aspirantes a cineastas paulistas tiveram dificuldades de realização uma vez que o Banco do Estado fechara suas portas, conforme assinala João Batista de Andrade:

[…] aqui em São Paulo a gente lutou muitas vezes para tentar que o Banco do Estado financiasse. Nós tentamos inclusive o Banco Nacional aqui também, mas era muito fechado, e o Banco do Estado não queria nem saber porque ainda tinha dívidas da Vera Cruz. Então havia esse lado econômico negativo. (BATISTA In: SOUZA e SAVIETO (Orgs.), 1980, p.37).

E é sintomático desse quadro que filmes dos “paulistas do entre-lugar” tenham obtido financiamento de bancos fora do estado de São Paulo, valendo-se dos esquemas de realização do Cinema Novo, como é o caso de A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto

82 César Mêmolo Jr. depois de ter dirigido, em parceria com Carlos Alberto de Souza Barros, Osso, Amor e Papagaios (1956) passou à produção de filmes publicitários – “não passei, fui passado”, conforme afirma em seu depoimento ao citado programa Luzes Câmera da TV Cultura (Memôlo Jr., 197-) – e não mais dirigiu nenhum longa. Nos anos 1970 por meio de sua empresa de publicidade Lynxfilm começa a investir na produção de alguns filmes, sendo o primeiro Vozes do medo (1970), coordenado por Roberto Santos, seguido por O predileto (Roberto Palmari,1974); O seminarista (Geraldo Santos Pereira, 1976) e Contos eróticos (Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Palmari e Eduardo Escorel, 1977). Galileu Garcia, depois de Cara de fogo (1957), igualmente, não realizou mais nenhum longa e passou a trabalhar com publicidade. Rodolfo Nanni, conforme antes mencionado, realizou apenas dois longas de ficção em sua carreira: O saci, em 1953 e Cordélia, Cordélia, em 1971. Walter George Dürst depois de O sobrado (1956) e Paixão de gaúcho (1957) foi para a televisão onde permaneceu por toda sua carreira.

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Santos, 1965), produção de Luiz Carlos Barreto e distribuição da Difilm, com financiamento da CAIC e do Banco Nacional de Minas Gerais e Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967), produção associada à Difilm e à Saga Filmes83, com financiamento doBanco Mineiro do Oeste S.A. Percebe-se, assim, que o malogro da experiência do cinema “industrial” deixou para São Paulo não só um estigma “cultural”, como um modelo de cinema a ser superado, mas legou também nefastas consequências econômicas, incluindo a impraticabilidade de financiamentos junto ao Bando do Estado. A mesma reclamação de Batista aparece nas declarações de Maurice Capovilla à reportagem de José de Moura (1966), cuja primeira frase, citando o cineasta é: “só está faltando uma coisa para o cinema paulista: financiamento”. (CAPOVILLA apud MOURA, 1966). A comparação com a conjuntura do Rio é inevitável. Ambos os cineastas fazem referência ao apoio da CAIC ao Cinema Novo, que teve ainda o Banco Nacional de Minas Gerais como relevante apoiador. De acordo com Luciano Fernandes (2008), as redes de relações nas quais estavam inseridos os cinemanovistas abriram caminhos para o acesso aos financiamentos. No trânsito junto à CAIC teria contribuído o relacionamento do produtor Luiz Carlos Barreto com o vice-governador Rafael de Almeida Magalhães; a amizade de Glauber Rocha com Luís Carlos Mendes, filho do deputado baiano João Mendes que era amigo do governador Carlos Lacerda; bem como o parentesco de Joaquim Pedro de Andrade com Almeida Braga, presidente do Banco do Estado da Guanabara. Já o Banco Nacional de Minas Gerais era presidido por Magalhães Lins, casado com uma prima de Joaquim Pedro. A bibliografia sobre o apoio da CAIC ao Cinema Novo é tão escassa quanto aquela que se refere à carteira de financiamentos do Banco do Estado de São Paulo. Bertrand Ficamos (2013), em seu livro Cinema Novo: avant-guarde et revolution, fruto de uma ampla pesquisa sobre o Cinema Novo, a partir de fontes diversas (correspondências, roteiros originais, documentos de censura, materiais consultados em acervos como o do Arquivo Nacional em Brasília e o do Arquivo Estadual do Rio de Janeiro além dos arquivos inéditos de Claude Antoine, produtor do Cinema Novo no exterior), explica que os arquivos da CAIC, se ainda existem, não foram por ele localizados e que um estudo mais detalhado do auxílio da Comissão ao Cinema Novo está por se realizar. Entretanto, baseado em testemunhos e em artigos da imprensa da época, ele pode afirmar que “Os valores de que nós dispomos mostram, todavia, que as somas concedidas foram muito importantes. Assinalemos enfim que

83 Produtora dos cinemanovistas Leon Hirzsman e Marcos Farias.

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não são menos do que 17 filmes do Cinema Novo que receberam uma ajuda direta da CAIC, alguns dos quais acumulando diversos prêmios” (FICAMOS, 2008, p.138, tradução nossa). O único texto específico sobre a CAIC que encontramos foi o de Júlia Carvalho (2008) que, embora fruto de uma pesquisa de iniciação científica não conclusiva, traz informações importantes a partir de fontes documentais e entrevistas com ex-secretários executivos da Comissão e cineastas. 84 De acordo com a autora, Fernando Ferreira, secretário executivo da CAIC entre 1966 e 1969, foi nomeado para o cargo por forte influência dos cinemanovistas, principalmente de Luiz Carlos Barreto e Glauber Rocha, sendo que “O governador Negrão de Lima teria assumido o compromisso, durante um almoço com o cineasta Glauber Rocha, de que o próximo secretário seria indicado pelo movimento.” (CARVALHO, 2008, p.11). Nas palavras do próprio Ferreira: Uma coisa que ficou evidente pra mim é que eu fui conduzido a esse cargo pelo Cinema Novo. E, provavelmente, pelo Glauber Rocha, que não me conhecia. Mas eu tinha tido com o meu assistente na Cinemateca no Museu de Arte Moderna, o Walter Lima Jr, que era o cunhado do Glauber. Eu tenho a impressão que, possivelmente, através de informações que o Walter teria passado pro Glauber, foi que o Glauber desenvolveu esse projeto de colocar uma pessoa ali em quem o Cinema Novo pudesse confiar. (FERREIRA,2004 apud CARVALHO, 2008, p.12).

Júlia Carvalho (2008) acrescenta que, segundo as afirmações do ex-secretário, ele procurava atuar de maneira independente de influências, mas, na concepção dele, o Cinema Novo era na época praticamente a única possibilidade de cinema que merecia financiamento “porque a qualidade do resto era muito ruim” (FERREIRA, 2004 apud CARVALHO, 2008, p.12), sendo que mesmo o secretário anterior, Moniz Vianna, que tinha discordâncias expressas com os cinemanovistas, concedera aportes aos filmes do movimento: “Se você for olhar os financiamentos que o Moniz fez, o Cinema Novo estava ali muito bem representado. Não havia outro jeito, era o cinema de qualidade que se produzia na época e era o cinema que importava à cultura brasileira” (FERREIRA, 2004 apud CARVALHO, 2008, p.12). Segundo Carvalho (2008), a atuação da CAIC se dirigia não apenas ao financiamento dos projetos, mas também à concessão de premiações em dinheiro aos filmes considerados de qualidade. Ademais, a comissão colaborava para a realização de eventos como o Festival Internacional do Filme, em 1965, e, desse modo, conforme avalia o cineasta

84 O trabalho de Júlia Carvalho faz parte de uma pesquisa coletiva de iniciação científica sobre a CAIC realizada ao longo de cinco anos, sob orientação do Prof.Dr. Miguel Serpa Pereira. Cf CARVALHO, Júlia Machado de. A presença do Estado no Cinema o caso da CAIC. Relatório de Pesquisa. Departamento de Comunicação Social. PUC-Rio(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, ago.2008. Disponível em: . Acesso em mar.2013.

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Walter Lima Jr., sua existência foi de grande importância para o Cinema Novo: “Mais do que financiar, a CAIC fomentou a criação de um pólo de produção cinematográfica no Rio. E eu acho que boa parte do Cinema Novo de então foi produzido pela CAIC. Se não produzido, recebeu de alguma forma os efeitos de sua existência”. (LIMA JR. 2005 apud CARVALHO, 2008, p.9). Paulo César Saraceni vai na mesma direção ao afirmar: “Com a CAIC e o Banco Nacional estávamos feitos. Foi, de longe, a melhor ajuda governamental que o cinema brasileiro teve em toda a sua trajetória” (SARACENI, 1993, p. 162). Carvalho (2008) não traz um levantamento completo dos filmes do Cinema Novo que receberam recursos da CAIC, mas cita como exemplos os títulos: Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963); Deus e diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1963); Os fuzis (Ruy Guerra, 1964); Menino de engenho (Walter Lima Jr.,1965); O desafio (Paulo César Saraceni, 1965); Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967); Capitu (Paulo César Saraceni, 1968); O padre e a moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1965); Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr.,1969); Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969); Pindorama (Arnaldo Jabor, 1971) e São Bernardo (Leon Hirszman, 1971). Somando-se à afirmação de Ficamos (2013) anteriormente citada, a relação de filmes mencionados por Carvalho (2008) evidencia que o apoio da CAIC beneficiou os principais nomes do Cinema Novo ao longo de toda a década de 1960. Nesse rol, inclui-se até mesmo o paulista Roberto Santos, que realiza A hora e a vez de Augusto Matraga (1966) dentro dos esquemas cinemanovistas85. José Mário Ortiz Ramos (1983, p.33; 38), cita adicionalmente A grande cidade (Cacá Diegues, 1965) como um filme financiado pela CAIC e Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1963) e Garrincha, alegria do povo (Joaquim Pedro de Andrade, 1964) como filmes premiados em dinheiro pela Comissão. Já Randal Johnson (1987) inclui Opinião Pública (Arnaldo Jabor, 1967) entre os financiados. Em 1966, ainda sob vigência da CAIC, é criado o INC (Instituto Nacional de Cinema) sob hegemonia do grupo “universalista” que até então se organizava em torno do GEICINE (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica), criado em 1961. Capitaneado por Flávio Tambellini, que se tornou o primeiro presidente do INC, este grupo foi alvo de forte oposição de cinemanovistas, como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos que protestaram publicamente contra a criação do Instituto. Conforme assinala Randal Johnson (1987, p.109), as preocupações dos cinemanovistas relacionavam-se não só a uma possível perda da liberdade de expressão em decorrência da centralização da política cinematográfica

85 De acordo com Carvalho (2008, p.9), para receber recursos da CAIC, a produtora do filme precisava ser carioca, sendo assim, entendemos que a produção de Luiz Carlos Barreto foi decisiva para o financiamento do filme de Roberto Santos.

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em um órgão criado pelo Estado militar, mas também ao receio de perda da liberdade econômica com a monopolização do capital de produção cinematográfica pelo grupo antagônico. Enquanto isso em São Paulo, segundo Randal Johnson (1987, p.111) e José Mário Ortiz Ramos (1983, p.53), cineastas aliados ao Cinema Novo e/ou próximos à vertente “nacionalista”, como Rodolfo Nanni, Maurice Capovilla e Gustavo Dahl manifestavam apoio à criação do Instituto, fazendo pequenas restrições. É possível supor que essa divisão de posições no interior da tendência nacionalista/de esquerda em relação ao INC decorria da própria configuração do meio cinematográfico que cindia São Paulo e Rio. Não por acaso, os signatários do apoio ao INC são cineastas como Capovilla e Dahl que, estando imersos na discussão sobre o Cinema Novo desde o início dos anos 1960, ainda não tinham, em meados da década, realizado nenhum longa-metragem ou, como Nanni, que estavam parados há anos86. Uma vez criado o INC, conforme assinala Johnson (1987, p.111-2), os cinemanovistas cessam o discurso mais truculento e adotam uma postura pragmática de tentativa de aproximação ao órgão visando participação em seus mecanismos. De fato, porém, nos primeiros anos de funcionamento do instituto verifica-se um favorecimento ao grupo “universalista” que tem apoiados filmes como: Até que o casamento nos separe (1968) e Um uísque antes... e um cigarro depois (1970), de Flávio Tambellini; As amorosas (1968) e Palácio dos Anjos (1970), de Walter Hugo Khouri; O quarto (1968), de Rubem Biáfora; As armas (1969), As gatinhas (1970) e Fora das grades (1971), de Astolfo Araújo; A Arte de amar…bem (Fernando de Barros, 1970); Uma mulher para sábado (1971) de Maurício Rittner. Em menor número, filmes ligados ao Cinema Novo também recebem recursos do INC, como Os herdeiros (Cacá Diegues, 1970); Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969); Juliana do amor perdido (Sérgio Ricardo, 1970); Pindorama (Arnaldo Jabor, 1971); Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971).87 Quanto aos “paulistas do entre-lugar”, percebe-se que o eventual acesso deles a recursos do INC se deu antes pelo relacionamento com o grupo “universalista” do que com o grupo Cinema Novo: O homem nu (Roberto Santos, 1967) teve produção de Fernando de Barros; As noites de Iemanjá (Maurice Capovilla, 1971) foi produzido por Astolfo Araújo e Rubem Biáfora; Um anjo mau (Roberto Santos, 1971) – embora citado por Ramos (1983, p.62) como um filme ligado ao Cinema Novo – foi produzido por Walter Hugo Khouri; e Cândido Portinari, um pintor de Brodósqui

86 Depois da realização de O saci, em 1953, Nanni só realizaria seu segundo e último (até o momento) longa ficcional em 1971, Cordélia, Cordélia, justamente com apoio do INC. 87 Cf. Ramos (1983, p.61 e 62) e Johnson (1987, appendix B, p.202-204).

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(1968), foi, conforme nos conta Batista, igualmente “produzido pelo grupo mais ligado a essa estrutura velha de cinema [ligada à herança da Vera Cruz]” (Andrade, 2013a), representada neste caso pelos menos conhecido produtor Jorge Teixeira. Em 1969, conforme foi mencionado, é criada a Embrafilme, Empresa Brasileira de Filmes S.A., de capital majoritariamente estatal88. De início, sua atribuição principal era promover e distribuir filmes brasileiros no exterior, atuando em complementaridade com o INC, mas a empresa foi ganhando força e em 1975 absorveu oficialmente as funções do instituto, que foi então extinto. Essa nova fase, na qual a Embrafilme tem o orçamento aumentado e assume as atividades de coprodução, coincide com a gestão do cineasta Roberto Farias, nomeado diretor da empresa desde 1974 a partir da já assinalada influência do grupo do Cinema Novo. O setor de distribuição da empresa também é alavancado e a direção desta área é assumida pelo egresso do Cinema Novo, Gustavo Dahl. Diversos autores, como José Mário Ortiz Ramos (1983), Randal Johnson (1987), Tunico Amâncio (2000) e Marina Soler Jorge (2002) demonstram que houve durante a gestão Roberto Farias (1974-1979) um favorecimento de produções cariocas – notadamente ligadas a cineastas oriundos do Cinema Novo – no aporte de recursos da Embrafilme, o que assinala uma relação de influência desses cineastas sobre o Estado. Conforme argumentam Ramos (1983) e Jorge (2002), havia uma convergência de interesses quanto à “industrialização” do cinema brasileiro e ao alcance da audiência, o que propiciou a conciliação entre cineastas de esquerda e o Estado militar que naquele momento encampava, à sua maneira, o debate acerca da cultura nacional-popular. Para Arthur Autran (2004), essa conciliação representou um verdadeiro “curto-circuito ideológico” em que a defesa da inserção no mercado se justificava a partir de argumentos culturais e, ao mesmo tempo, se vetava um aprofundamento do debate cultural ao se mobilizar argumentos pela conquista de mercado.89 Nesse período, recebem apoio da Embrafilme, via financiamento, coprodução ou adiantamento na distribuição, filmes como: Guerra conjugal (Joaquim Pedro de Andrade, 1974); O amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974); Xica da Silva (Cacá Diegues, 1975); Lição de amor (Eduardo

88 99,9% em 1975, de acordo com Randal Johnson (1987, p.139). 89 Nas palavras do autor: “Ocorreu um verdadeiro curto-circuito ideologico na atividade cinematografica brasileira nos anos de 1970, pois ao se afirmar o domínio do mercado interno como principal objetivo a ser alcançado, não se justificava tal dominio por motivos eminentemente econômicos mas sim pelos culturais, até porque os resultados naqueles termos muitas vezes ficavam aquém do esperado; porém quando se tratava de discutir o valor cultural da produção, isto era interdito, pois ela valia pela conquista do mercado; destarte, não há discussão possível sobre o cinema brasileiro, pois suas principais justificativas giram em torno de si mesmas, o que, de um ponto de vista mais geral, impedia a renovação do dialogo com a sociedade.” (AUTRAN, 2004, p.56).

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Escorel, 1975); Chuvas de verão (Cacá Diegues, 1976); Tudo bem (Arnaldo Jabor, 1976); Tenda dos milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1976); Morte e vida severina (Zelito Viana, 1977); Eles não usam black-tie (Leon Hirszman, 1979); A idade da terra (Glauber Rocha, 1979); Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979) e Tensão no rio (Gustavo Dahl, 1980)90. Percebe-se que o período em que o Cinema Novo esteve relativamente “desamparado” em termos de apoio de órgãos estatais foi entre 1969 e 1974, período que coincide com o recrudescimento da repressão da ditadura militar. Em 1969, o então secretário- executivo da CAIC, Fernando Ferreira, apoiador dos cinemanovistas, foi substituído por um militar91 e o INC estava sob hegemonia do grupo “universalista”. Mesmo nesse período, porém, verifica-se que a produção dos cinemanovistas não foi interrompida. Alguns filmes (citados acima) receberam recursos do INC – a posse de Ricardo Cravo Albin na presidência do INC, em 1970, marcou vitória, ainda que singela, do movimento92 – e a primeira carteira de financiamentos da Embrafilme, antes da gestão Roberto Farias, também destinou recursos a filmes cinemanovistas, como: São Bernardo (Leon Hirszman, 1970); A casa assassinada (Paulo César Saraceni, 1971); Os condenados (Zelito Viana, 1972); Toda nudez será castigada (Arnaldo Jabor, 1972).93 Ademais, os cineastas do Cinema Novo estavam inseridos em amplas redes de contatos no exterior e elas foram acionadas naquele momento de maior repressão política no Brasil. Assim, Glauber filma O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) com apoio das televisões francesa e alemã94 e realiza na sequência quatro filmes no exterior: O Leão de Sete Cabeças (Congo, Itália, França, 1970); Cabeças Cortadas (Espanha, 1970); História do Brasil (Cuba, Itália, 1972-1974, codireção de Marcos Medeiros) e Claro (Itália, 1975), e faz, em Cuba, a montagem e finalização de Câncer (1968-1974), que fora filmado no Brasil.95 Nelson Pereira dos Santos conta com coprodução francesa para Como era gostoso o meu francês (1971) – este também com recursos do INC – e Quem é beta? (1972), enquanto Joaquim Pedro de Andrade realiza Os inconfidentes (1972) em coprodução com a TV italiana, mesmo caso de Gustavo Dahl com Uirá – um índio em busca

90 Cf.Johnson (1987, appendix C, D e E, p.205-220) e Jorge (2002, p.177-185). 91 Cf. Carvalho, 2008, p.8. 92 De acordo com Johnson, a nomeação de Albin para a presidência do INC foi vista por pessoas como o secretário-executivo do instituto e crítico de cinema Antonio Moniz Vianna como “uma vitória da 'esquerda festiva' (leia-se Cinema Novo)” (JOHNSON, 1987, p.125, tradução nossa). Embora sua gestão tenha durado apenas um ano e meio, ela deixou marcas como, por exemplo, a instituição do prêmio Coruja de Ouro que, segundo Ortiz Ramos (1983, p.72-74), consagrou vários filmes do Cinema Novo em detrimento das produções “universalistas” que vinham sendo preponderantes nas premiações anteriores. 93Cf. Jorge, 2002, p.177. As datas referem-se ao ano de financiamento. 94 Cf. Ramos, 1983, p.65. 95 Sobre o período de Glauber no exterior ver Cardoso (2007).

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de Deus (1973). Diante do exposto, ainda que não se possa creditar o êxito artístico e o prestígio do Cinema Novo às ascendências de seus integrantes e suas redes de relações, deve-se considerar que esses fatores tiveram significativa ou mesmo decisiva importância na continuidade da produção cinemanovista, permitindo que seus principais membros realizassem em média um longa-metragem a cada dois anos96, mesmo nos períodos mais difíceis. Isso esteve longe de ocorrer com outros cineastas brasileiros, sejam aqueles expoentes do chamado “cinema independente” dos anos 1950 que em grande parte deixaram de filmar ao longo dos anos 1960 e 1970, como já mencionado; sejam os “universalistas” que gozaram de breve período de hegemonia, mas posteriormente perderam força e tiveram dificuldades de realização97; sejam os jovens “marginais” que por vezes filmaram um único longa-metragem ou que viabilizaram suas carreiras em aproximação com o cinema erótico;

96 Glauber Rocha: Barravento (1962); Deus o diabo na terra do sol (1964); Terra em transe (1967); O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969); O Leão de Sete Cabeças (1970); Cabeças Cortadas (1970); História do Brasil (1972-1974, codireção de Marcos Medeiros); Câncer (1968-1974); Claro (1975); A idade da terra (1980). Nelson Pereira dos Santos: Rio 40 graus (1955); Rio Zona Norte (1957); Mandacaru vermelho (1960); Boca de Ouro (1963); Vidas secas (1963); El justicero (1966); Fome de amor (1968); Azyllo muito louco (1970); Como era gostoso o meu francês (1971); Quem é Beta? (1972); O Amuleto de Ogum (1974); Tenda dos Milagres (1977); A estrada da vida (1980). Cacá Diegues: episódio Escola de samba, alegria de viver para o longa Cinco Vezes favela (1962); Ganga Zumba (1963); A grande cidade (1965); Os herdeiros (1969); Quando o carnaval chegar (1972); Joanna francesa (1973); Xica da silva (1976); Chuvas de verão (1978); Bye bye Brasil (1979). Paulo César Saraceni: Porto das Caxias (1962); Integração racial (1964); O desafio (1965); Capitu (1967); A casa assassinada (1971); Amor, carnaval e sonhos (1973); Anchieta, José do Brasil (1977); Ao sul do meu corpo (1981). Joaquim Pedro de Andrade: episódio Couro de gato para o longa Cinco Vezes favela (1962); Garrincha, alegria do povo (1963); O padre a moça (1965); Macunaíma (1969); Os Inconfidentes (1972); Guerra conjugal (1975); episódio Vereda tropical para o longa Contos eróticos (1977); O homem do pau-brasil (1981). Arnaldo Jabor: A opinião pública (1967); Pindorama (1970); Toda nudez será castigada (1973); O casamento (1975); Tudo bem (1978); Eu te amo (1980). Leon Hirszman é uma exceção pois depois de uma produção relativamente contínua na década de 1960 – episódio Pedreira de São Diogo para o longa Cinco Vezes favela (1962); A falecida (1965); Garota de Ipanema (1967); episódio Sexta-feira da paixão, sábado de aleluia para o longa América do sexo (1969); São Bernardo (1971) – é severamente prejudicado pela censura à São Bernardo, recusando-se a lançar o filme com os cortes exigidos, e tem a falência de sua produtora decretada o que o impede de filmar até o final da década quando dá início a realização de Eles não usam black-tie (1979). Gustavo Dahl, como mencionado, começou a filmar mais tarde com Bravo guerreiro (1968) e depois assumiu funções administrativas na Embrafilme o que parece ter dificultado a realização de seus próprios filmes, tendo realizado em longa-metragem Uirá, um índio em busca de Deus (1973) e Tensão no Rio (1981). David Neves foi um dos responsáveis pela legitimação teórica do grupo, tendo se dedicado a escrever livros e artigos sobre o movimento o que também o coloca numa posição diferenciada como realizador. Dirigiu Memória de Helena (1969); Lúcia McCartney, uma garota de programa (1971); Muito prazer (1979) e Luz del fuego (1981). 97 Depois de O quarto (1969), Biáfora só realizou mais um filme: A casa das tentações (1975); Fernando de Barros também só realizou mais um filme depois de A arte de amar... bem (1970), Lua de mel e amendoim (1971). Tambellini depois de Um uísque antes... e um cigarro depois (1970) realizou Relatório de um Homem Casado (1974) e A extorsão (1975). Astolfo Araújo depois de Fora das grades (1971) só faria um episódio em O Ibrahim do Subúrbio (1976). Walter Khouri manteve uma produção contínua, porém aproximando-se do cinema erótico em produções financiadas pelo esquema da Boca do Lixo, do mesmo modo que outros dois nomes próximos ao cinema “autoral” que surgem no contexto da Boca, Ozualdo Candeias e Carlos Reichenbach, os quais mesclam em seus filmes aspectos criativos e ousados com as exigências eróticas daquele contexto de produção.

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sejam os nossos “paulistas do entre-lugar” que, notadamente no período entre 1971 e 1976, dedicaram-se a atividades alheias à direção cinematográfica, como a publicidade e a televisão, construindo trajetórias significativamente irregulares. Roberto Santos e Maurice Capovilla são os “paulistas do entre-lugar” que estiveram mais próximos ao grupo do Cinema Novo. Roberto Santos mantinha relações de amizade com Nelson Pereira dos Santos, estabelecidas desde os anos 1950 quando trabalharam juntos em São Paulo, tendo Nelson produzido o primeiro longa de Roberto, O grande momento (1958). Capovilla, por sua vez, foi colega de Gustavo Dahl no ensino médio e aproximou-se do grupo do Cinema Novo no início dos anos 1960 quando trabalhava na Cinemateca Brasileira e, atuava a estabelecer “pontes” entre Rio e São Paulo, particularmente interligando os cinemanovistas a Paulo Emilio Salles Gomes 98. Nesse processo teceu relações de amizade em especial com Mário Carneiro, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman e David Neves, tendo dirigido a convite deste último o curta- metragem institucional, Esportes no Brasil (1965), com patrocínio do Itamaraty; filmado com Hirszman passeatas em 1968 para a UEE (União Estadual dos Estudantes) e codirigido com Saraceni as primeiras filmagens de Copa 78 – o poder do futebol (1979), filme que veio a ser concluído por Maurício Sherman e Victor di Mello.99 A maior proximidade de Santos e Capovilla com o Cinema Novo pode ser observada pela relação diferenciada que eles estabeleceram com a Difilm, empresa distribuidora e coprodutora fundada pelo grupo carioca em 1965. Roberto Santos é citado em algumas fontes como o único cineasta de São Paulo a fazer parte do quadro societário da Difilm100 e seu filme A hora e a vez de Augusto Matraga (1966) contou com coprodução e distribuição dessa empresa; enquanto Bebel, garota-propaganda (1967), de Capovilla, teve coprodução da Saga Filmes, de Leon Hirszman e Marcos Farias, e distribuição da Difilm. Ambos os filmes foram exibidos em festivais internacionais como representantes do Cinema

98 Conforme Capovilla relata a Mattos (2006) e Tosi (2006), ele atuava favorecendo o intercâmbio entre Paulo Emilio e os cinemanovistas sediados no Rio, fazendo circular textos e ideias. Por exemplo: “Eu levava para São Paulo coisas escritas pelo Glauber para o Paulo Emilio, artigos do Glauber foram publicados no Estadão, no Suplemento Literário do Estado de São Paulo [em que Paulo Emilio assinava a página de cinema], artigos escritos aqui no Rio”. (CAPOVILLA apud TOSI, 2006). 99 Cf. Biografia de Maurice Capovilla realizada por Carlos Alberto Mattos (2006) 100 Cf. Capovilla a Viany (1999, p.344). As fontes divergem um pouco quanto ao quadro societário da Difilm. Bueno (2000, p.61), informa os seguintes nomes: Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Luís Carlos Barreto, Roberto Farias, Rivanides Faria, Roberto Santos e Rex Endsleigh. Já Fernandes (2000, p.239) inclui entre os onze Marcos Faria, Walter Lima Júnior e Zelito Viana e exclui Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, e Rex Endsleigh. A biografia de Roberto Santos elaborada por Inimá Simões não faz menção à essa participação de Roberto na empresa.

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Novo101 e são citados por Glauber Rocha como parte do “texto audiovisual” do movimento102. Os demais “paulistas do entre-lugar” mantiveram relações mais distanciadas com o Cinema Novo. Person conhecera alguns cinemanovistas quando frequentou, na Itália, o Centro Sperimentale di Cinematografia, por onde passaram Gustavo Dahl e Saraceni, mas, segundo Capovilla, “não tinha uma amizade, era uma coisa muito fria.” (CAPOVILLA apud TOSI, 2006). Embora tenha seu filme São Paulo S.A. (1965) associado à segunda fase, “urbana”, do Cinema Novo, ele estava mais próximo dos círculos teatrais de São Paulo, em especial de Antunes Filho e Flávio Rangel103, e suas declarações da época marcam distância do grupo carioca, notadamente na polêmica entrevista concedida ao Pasquim em 1973, na qual declara:

Em primeiro lugar, São Paulo S.A. não é uma obra do Cinema Novo; segundo, não é contra o Cinema Novo; terceiro, é uma obra que precede o Cinema Novo [...] eu não sou do Cinema Novo. Eu nasci antes dele. Sou um sujeito dessa cultura que nasceu com o teatro brasileiro, o bom teatro, o novo teatro brasileiro. [...] São Paulo S.A. não nasceu das improvisações das noites cariocas, da falsa subversão da linguagem que não deu em nada […] Nasceu do conhecimento.” (PERSON, 1973, In: LABAKI, 2002, p.44-48).

Por seu lado, Sérgio Muniz manteve contato com cinemanovistas – em particular com Nelson Pereira dos Santos de cujo Vidas secas utiliza “sobras” de materiais para o seu Roda & outras histórias (Sérgio Muniz, 1965) – e alcançou inserção internacional como representante da “face documentária” do Cinema Novo, como veremos no capítulo 5. Já os mais jovens, João Batista de Andrade, Renato Tapajós e Francisco Ramalho Jr., encontraram maior dificuldade em serem absorvidos pelo grupo carioca, não obstante estivessem “sob o total impacto do Cinema Novo” conforme declarou Tapajós a Ridenti (2010, p.98). Batista de Andrade, como vimos, chegou a identificar seu “grupo” como “Cinema Novo Tardio de São Paulo” (ANDRADE, 2002b, p.50). À época do auge da Difilm esses cineastas paulistas mais jovens, deixados “de fora” da empresa carioca, conforme relata Ramalho (apud Sabadin, 2009, p.39), associaram- se então a Luiz Sérgio Person na fundação da RPI - Filmes Brasileiros em Distribuição, empresa distribuidora cuja sigla significava “Reunião de Produtores Independentes” e

101 A hora e a vez de Augusto Matraga participou do Festival de Cannes de 1966 e figurou em publicações internacionais como representante do Cinema Novo brasileiro e Bebel integrou a III Mostra Internazionale del Nuovo Cinema em Pesaro. 102 Cf. ROCHA, 1997 [1974], p.494-5. 103 Cf. Documentário Person (Marina Person, 2006) e entrevistas publicadas em Labaki (2002).

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integrava as produtoras TECLA (de João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan e Sidnei Paiva Lopes), LAUPER (de Person e Glauco Mirko Laurelli) e Ser- cine, do cineasta carioca Iberê Cavalcanti.104 A iniciativa paulista, entretanto, não teve sucesso. Conforme relatam João Batista de Andrade (a Caetano, 2004) e Francisco Ramalho Jr (a Sabadin, 2009), os grandes filmes eram distribuídos primeiro pela Difilm e, a partir de 1969, pela Embrafilme e, assim, restavam a RPI os filmes alternativos e de difícil penetração no mercado, como, por exemplo, Meteorango Kid – o herói intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira; Caveira My Friend (1970), de Álvaro Guimarães e os filmes “marginais” de João Batista de Andrade, Gamal, o delírio do sexo (1969) e Em cada coração um punhal (Sebastião de Souza, Rubens J.Siqueira e João Batista de Andrade, 1969). Desse modo, a viabilização comercial da distribuidora, durante o pouco tempo em que se sustentou, era proporcionada por alguns filmes antigos de Mazzaropi conseguidos por meio de Glauco Laurelli, sócio de Person, que dirigira vários filmes do comediante no início dos anos 1960105. Esses dilemas e ambiguidades que marcaram a RPI, dividida entre filmes experimentais e filmes comerciais, marcaram de certa forma, com variações caso a caso, toda a trajetória dos “paulistas do entre-lugar”.

104 Cf.Caetano, 2004, p.113-115 e Sabadin, 2009, p.39-51. Caetano (2004, p.113) grafa a produtora de Iberê Cavalcanti como Servicine, o que a tornaria homônima à produtora fundada por Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante. Em busca de confirmação para este dado, encontramos na base de dados “Filmografia” da Cinemateca Brasileira o nome da produtora dos filmes de Iberê Cavalcanti, Ser-cine. É interessante notar que o primeiro longa-metragem do diretor, A virgem prometida (1968) é credito como co-produção de Iberê com o paulista Sérgio Muniz. 105 Foram dirigidos por Glauco os seguintes filmes protagonizados por Mazzaropi: O Vendedor de Lingüiças (1961); O Lamparina (1963); Casinha Pequenina (1963) e Meu Japão Brasileiro (1965).

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2. SÃO PAULO E INDÚSTRIA CULTURAL: BOCA DO LIXO, PUBLICIDADE, TELEVISÃO

2.1 Boca do Lixo: “cinema utilitário”

“Hoje, meados de 69, quando o mundo bombardeia o cinema e a cultura ocidental, em São Paulo – paraíso da mediocridade – os dois maiores produtores, Massaini e Galante, fazem fitas de cangaço; o visionário Mojica ensina a multiplicar terror com miséria, Lima Barreto bebe cachaça com Roberto Luna, imbecis analisam a temática de Bergman e Fellini, Khoury gerencia a Vera Cruz, Candeias recebe Sacis, Almeida Salles elogia O bandido da Luz Vermelha, Anselmo Duarte lança mais um abacaxi embandeirado, Roberto Santos deflagra os rapazes da Escola de Comunicações Culturais, Capovilla sai do realismo crítico para uma aventura sanguinária à base de grande angular, Lima- Reichenbach improvisam sem dinheiro, o desiludido Person medita diante do copo de conhaque, a intelectualidade reacionária da província continua a mesma, eu – mais um talento escorraçado pelo setor inteligente da direta e pelo setor imbecil da esquerda radical, perdido no Saara da inteligência – confesso que – ao contrário do Rio – aqui não se faz longa-metragem mas jingle, nós lutamos contra as evidências, que ainda não perdemos a cara-de-pau, continuamos fazendo estas fitas inofensivas, medíocres e pretensiosas” (Rogério Sganzerla apud Benevides, 1969, p.96).

A expressão “Cinema da Boca do Lixo” designa antes a origem geográfica de parte da produção cinematográfica brasileira do que um estilo, embora tenha sua imagem vinculada ao cinema erótico que lá predominou em meados dos anos 1970, desembocando em filmes de sexo explícito nos anos 1980. A região em torno das estações da Luz e Júlio Prestes, denominada pela crônica policial dos anos 1950 como “Boca do Lixo” por concentrar prostituição e criminalidade, abrigava distribuidoras cinematográficas brasileiras e estrangeiras desde os anos 1920 devido à facilidade de escoamento das fitas de cinema para o interior do estado via rede ferroviária. Foi, no entanto, a partir de meados dos anos 1960 que a região em torno da Rua do Triumpho e adjacências começou a se estabelecer como um centro de produção cinematográfica, impulsionada pela reserva de mercado para filmes brasileiros, conhecida como cota de tela, que cresceu progressivamente ao longo daquela década e da seguinte.106 A cota de tela que propiciou que filmes “cultos” como os dos remanescentes do Cinema Novo coproduzidos pela Embrafilme fossem exibidos e fez aumentar a presença dos filmes brasileiros em seu próprio mercado107, teve o “efeito colateral” de ensejar uma

106 Instituída pelo Estado desde 1932, a cota de tela foi aumentando progressivamente, com particular ascensão nas décadas de 1960 e 1970: de 42 dias por ano em 1959 chegou a 133 dias em 1978. Cf. Johnson, 1987, p.185. 107 Segundo Johnson (1995, p.363), entre 1974 e 1978 o número total de espectadores dos filmes brasileiros

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produção de caráter estritamente comercial voltada para abastecer, com possibilidade de lucro, as salas exibidoras que precisavam cumprir a lei de exibição compulsória. Aos filmes de maior rigor estético e temático que nem sempre eram boas promessas de bilheteria, os exibidores preferiam filmes de evidente apelo comercial, como os produzidos pela Cinedistri108, de Oswaldo Massaini, e logo começaram eles mesmos a produzir filmes, associando-se a produtoras como a Servicine, de Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante. Outro elemento de incentivo à produção era o Prêmio Adicional de Bilheteria, existente em São Paulo desde 1955, conforme mencionamos, e que o INC, criado em 1966, regulamentou para todo o país, concedendo prêmios proporcionais ao desempenho de bilheteria que variavam entre 5% e 10% da renda obtida nos dois primeiros anos de exibição. Pequenos e médios comerciantes de diversos setores começaram também a investir em cinema e, assim, consolidou-se naquela região um polo produtor de filmes, de diversos gêneros, geralmente de baixo custo, com maior ou menor apuro técnico e com o objetivo comum de atingir o mercado. 109 O Cinema da Boca era, assim, um “cinema utilitário”, como classificou Capovilla (apud Mattos, 2006, p.102), mas comportou algumas “brechas” e foi entre elas que na virada dos anos 1960 para os 1970 surgiram filmes que posteriormente foram abrigados sob o rótulo de Cinema Marginal. Marcados pelo “binômio lixo-deboche” – expressão de Ortiz Ramos (1983, p.68) – tais filmes, desprovidos de utopia, colocavam-se como respostas agressivas, cruéis e sarcásticas à conjuntura brasileira de modernização acelerada e desenvolvimento da indústria cultural, sob intensa repressão do regime militar. O cineasta João Callegaro, um dos nomes do Cinema Marginal, explica como esse cinema com traços rebeldes e experimentais pôde emergir num esquema de produção voltada ao mercado: “Se a sua ideia fosse minimamente comercial, você conseguia um apoio de produção. Os custos eram baixos e os produtores, picaretas e ingênuos. Se vislumbrassem uma pequena possibilidade de lucro investiam. Pouco, mas investiam. Mesmo que entrassem com equipe, equipamento ou custos de laboratório”. (CALLEGARO apud STERNHEIM, 2005, p.29). José Mário Ortiz Ramos dobrou de 30 milhões para mais de 60 milhões e a fatia de mercado ocupada pelo cinema brasileiro passou de 15% para mais de 30%. 108 Sediada desde o início à Rua do Triumpho, a Cinedistri, distribuidora de filmes fundada por Oswaldo Massaini em 1949, passou ainda nos anos 1950 à produção de filmes voltados para o mercado como comédias musicais que lhe deram capital para investir numa produção mais arrojada, O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962). Seguindo sua vocação comercial, produziu nos anos 1960 diversos filmes com a temática do cangaço, como Lampião, o rei do cangaço (Carlos Coimbra, 1962) e Cangaceiros de Lampião (Carlos Coimbra, 1966), e nos anos 1970 ingressou na produção erótica. Cf. “Cinedistri” em Ramos; Miranda (Orgs.), 1997, p.132-133. 109 Sobre o Cinema da Boca do Lixo, ver Abreu (2006), Gamo (2006) e Simões (1981).

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corrobora a declaração de Callegaro. Segundo ele:

A própria forma de produção, ao invés de circundar a burguesia nacional como o Cinema Novo, tinha suas origens em pequenos capitalistas, numa espécie de ‘marginalidade econômica’, e assim a sustentação da proposta cultural permitia – aliás, nem devia se interessar por este aspecto – os exercícios estéticos dos cineastas. (RAMOS, J., 1983, p.69).

Alessandro Gamo (2006) reconstitui – por meio de análise dos textos de Jairo Ferreira no jornal São Paulo Shimbun (1966-1973) e da revista Cinema em Close Up (1975- 1977) – a história da produção cinematográfica na Boca do Lixo em seus dois momentos principais: o das experiências associadas ao Cinema Marginal e o da produção fundamentalmente comercial que a sucede. Como apontou Callegaro e, como nota Gamo (2006, 2007), é importante verificar que a perspectiva comercial não estava ausente nos horizontes da vertente paulista do Cinema Marginal. A lucratividade era um fator considerado importante para a continuidade da produção e o apelo erótico era utilizado para este fim. Era a vertente “marginal-cafajeste” caracterizada por Fernão Ramos (1987b), na qual se encontra uma postura de “curtição” e incorporação debochada de elementos eróticos, expressada em filmes como As libertinas (Carlos Reichenbach, Antonio Lima e João Callegaro, 1969), Audácia, fúria dos desejos (Carlos Reichenbach, Antonio Lima, 1970) e O pornógrafo (João Callegaro,1970). Na gênese da Boca do Lixo como polo produtor de cinema já se encontravam elementos do entrecruzamento marginal-erótico que marcaria essa produção. De um lado, A margem (Ozualdo Candeias, 1967), clássico precursor do Cinema Marginal, trazendo às telas figuras erráticas e miseráveis nas margens do Rio Tietê; de outro, Vidas nuas (Ody Fraga, 1967), derivado de um filme iniciado em 1962 por Ody Fraga sob o título As eróticas e completado por Antonio Polo Galante e Sylvio Renoldi com a inclusão, entre outras cenas, de uma demorada cena de strip-tease110. Na produção desses dois filmes, trabalharam duas personalidades que se tornariam figuras-chave da Boca: Renato Grecchi, da I.N.F. - Indústria Nacional de Filmes, a quem, Candeias recorreu para a finalização de A margem, sendo ele também responsável pela distribuição do filme, conforme Gamo (2006,2007); e Antonio Polo Galante, então comerciante de materiais cinematográficos que encontrou casualmente os negativos de As eróticas em meio a materiais diversos por ele adquiridos, completando o filme com o auxílio do montador Sylvio Renoldi que conhecera na Companhia Cinematográfica Maristela onde trabalhara como técnico eletricista.

110 Sobre a gênese da produção da Boca do Lixo ver Gamo (2006, 2007) e Simões (1981).

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Vidas nuas, transformado em longa-metragem com as cenas adicionais filmadas por Galante e Renoldi, fez grande sucesso nos cinemas e inaugurou a carreira de Galante como um dos principais produtores da Boca do Lixo. Como parceiro de Grecchi produziu na sequência Trilogia do terror (1968), longa composto de três episódios, dirigidos por Ozualdo Candeias, de A margem; José Mojica Marins, o “Zé do caixão”, “mestre do terror brasileiro” e ícone cultuado pelos cineastas “marginais”, e Luiz Sérgio Person que, também admirador de Mojica, resolve enveredar por esse gênero um tanto quanto surpreendente em sua filmografia. Assim como Person, os cineastas que compõem o conjunto focalizado por esta pesquisa não são diretamente identificados ao Cinema Marginal, formado por cineastas mais jovens que eles (em idade e/ou no que diz respeito à inserção no meio cinematográfico), próximos à contracultura, num quadro ideológico bastante distinto daquele do Cinema Novo, conforme aponta Fernão Ramos (1987b)111. No entanto, a maioria deles (João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Luiz Sérgio Person, Francisco Ramalho Jr. e Roberto Santos) tem alguma ligação com a Boca do Lixo, e, por isso, encabeça verbetes no Cinema da Boca: dicionário de diretores, organizado por Alfredo Sternheim (2005), cujo critério para a inclusão de nomes foi: “diretores que, de uma maneira ou de outra, fizeram filmes ligados aos produtores e distribuidores da Boca do Lixo” e que “tiveram uma vivência física e constante com aquele ambiente” (STERNHEIM, 2005, p.45). Como professor da Escola Superior de Cinema São Luís, Person alertava seus alunos, entre os quais Carlos Reichenbach, que se tornaria um dos nomes importantes do Cinema Marginal paulista:“Se vocês quiserem fazer cinema, vocês vão ter que pôr o pé na Boca do Lixo” (REICHENBACH apud COSTA, 2006, p.81) e chegou a levar para uma de suas aulas o cineasta José Mojica Marins, de quem era amigo e admirador. Conforme relata Mojica Marins em depoimento sobre Person (In: Campos Jr. e Moraes (Orgs.), 1986b), além do encontro em sala de aula, vários dos alunos da Escola Superior de Cinema São Luís foram incentivados a fazer estágio de cinema com ele. Person atuou como ator em O estranho mundo de Zé do Caixão (José Mojica Marins, 1968), sendo segundo o diretor, um intérprete dedicado e envolvido no projeto: “Ele não falava nada, qualquer loucura que eu pedia pra fazer, as piores loucuras lá dentro, lá estava o Person fazendo, era o ator mais comportado de todos e partia pras coisas. Eu pedia pra encher a cara de melado com groselha e chocolate e

111 Conforme assinala Fernão Ramos (1987b), no Cinema Marginal, ligado a um quadro ideológico pós-AI-5, as preocupações com os dilemas da nação e do povo deram lugar ao deboche e ao niilismo, tematizando-se questões como “as drogas, o sexo livre, o não-trabalho, a falta de um objetivo ‘válido’ na ação”. (RAMOS, F., 1987b, p.35).

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ele fazia aquilo na maior boa vontade, gostava, gostou da fita” (MARINS apud CAMPOS JR. E MORAES (Orgs.), 1986b, p.105). A ligação de Person com a Boca ocorre também por vias indiretas por meio daquele que seria seu primeiro filme Um marido para três mulheres, comédia com Ronald Golias, que dirigiu e em que atuou em 1957. O filme chegou a ser dublado e montado mas não foi lançado à época por falta de recursos financeiros e, de maneira semelhante ao que acontecera com As eróticas transformado por Galante em Vidas nuas (1967), o filme foi, segundo Moraes (2010, p.500), encontrado casualmente por Renato Grecchi numa produtora da Boca do Lixo, complementado com cenas adicionais e lançado em 1967 sob o título de Um marido barra-limpa. De acordo com Moraes (2010, p.501) Person chegou a ser convidado por Grecchi para realizar as cenas adicionais do filme mas recusou o convite envolvido que estava com O caso dos irmãos Naves e não querendo associar seu nome a um “filme de boulevard”. O curioso é que com recursos arrecadados com Um marido barra-limpa Grechi investe justamente em Trilogia do terror para o qual Person realiza um episódio, a convite – único filme de Person a convite de terceiros, segundo Heffner (2002, p.13). Galante (2012), em depoimento ao Projeto Memória do Cinema Brasileiro do MIS-SP, relata que Trilogia do terror fez sucesso e deu rendimento principalmente por causa do filme de Person que chamava a atenção com seus guerrilheiros fantasmas vestidos com camisetas de purpurina. Como curiosidade, acrescenta-se que o garoto do filme era sobrinho do produtor. De acordo com dados de 1969, o filme custara 60 mil cruzeiros novos e já havia rendido Ncr$ 450 mil, em dezoito meses.112 Foi a partir desse segundo sucesso que Galante foi convidado por Alfredo Palácios para fundar a Servicine (Serviços Gerais de Cinema), que se tornaria uma das principais produtoras da Boca do Lixo. A insólita sociedade entre um homem de origem humilde – Galante (2012) relata que foi criado em uma instituição para menores abandonados, que só foi alfabetizado na adolescência e que nunca leu um livro completo em sua vida – e o experiente advogado e executivo (cujo currículo incluía o cargo de Produtor Geral na Companhia Cinematográfica Maristela, bem como a produção e direção de diversos filmes da empresa; a produção do seriado televisivo de sucesso, O vigilante rodoviário e o cargo de Diretor Superintendente de uma grande companhia Paulista, a TELEVOLT S/A), marca bem o caráter peculiar das fusões de interesses na Boca. 113 Palácios e Galante se conheciam desde os tempos da Maristela, quando Galante lá trabalhava como eletricista, e se reencontraram anos depois quando Galante comercializava materiais

112 Cf. Benevides 1969, p.98. 113 Informações compiladas de Galante (2012), Gamo (2006, 2007) e Corazolla (2008).

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cinematográficos. A sociedade, conforme Gamo (2006, p.157-158), se estabeleceu primeiro no comércio desses materiais e, posteriormente, na produção de filmes quando o advogado notou a perspicácia comercial do produtor iniciante. Person já era conhecido da dupla desde os tempos da Maristela, tendo sido, em parceria com Palácios, corroteirista no penúltimo filme da companhia, a comédia Casei-me com um xavante (Alfredo Palácios, 1958), na qual também foi ator. Já o último filme da companhia, Vou te contá... (Alfredo Palácios, 1958) foi roteirizado por dois antigos amigos de Person, Claudio Petraglia e Glauco Mirko Laurelli, tendo este futuramente se tornado seu sócio na produtora Lauper Filmes e na distribuidora RPI, assim como em seus investimentos no teatro nos anos 1970. Fundada em 1968, a RPI que, conforme mencionado no capítulo anterior, associava a Lauper Filmes de Laurelli e Person à Tecla de Batista e Ramalho, tinha seu escritório localizado exatamente na região da Boca do Lixo, de modo que a essa época, Person era figura frequente nas imediações da Rua do Triumpho, aparecendo em fotos e filmes de Candeias que retratam a região114, bem como no prólogo do filme Audácia (Carlos Reichenbach, Antonio Lima, 1970). O referido prólogo, dirigido por Reichenbach, é bastante interessante por documentar de maneira irônica e debochada, bem ao estilo “marginal”, a produção cinematográfica daquele momento da Boca e mostrar as ruas da região bem como as várias figuras de cinema que por lá circulavam. “Rua do Triumpho, São Paulo, esquina do marginal. Rua do Triumpho, São Paulo, esquina do cinema nacional”, informa a narração introdutória. Enquanto as imagens mostram alguns dos realizadores da Boca que podemos reconhecer, ouvem-se em over frases soltas e entrecortadas, em diferentes vozes de autoria não explicitada: “No Brasil, três tipos de filmes têm sucesso garantido: comédia, cangaço e erotismo”; “Quero fazer uma chanchada psicoanalítica, familiar...”; “Não quero fazer um filme de autor, quero fazer um filme de coordenador”; “Precisamos fazer filmes péssimos; filmes baratos, que custem menos”. Com pequenas alterações, encontramos no artigo de Benevides (1969), que traça um panorama do cinema paulista da época, algumas das frases citadas no filme. A primeira é de Carlos Coimbra, realizador de diversos filmes de cangaço para a produtora Cinedistri de Oswaldo Massaini e que se queixa à reportagem de não conseguir produção para um projeto de sua autoria sobre a juventude. A segunda é de Márcio Souza, falando de seu primeiro projeto de longa-metragem. A terceira é de Roberto Santos que tece críticas aos rumos do Cinema Novo em direção a espetáculos caros e comenta o

114 Nas fotos de Candeias podem ser vistos também Roberto Santos, Capovilla, Batista e Ramalho Jr. Cf. Candeias (1981, 2001) e os filmes Uma rua chamada Triumpho 969/70 (Ozualdo Candeias, 1971) e Boca do lixo cinema (Ozualdo Candeias, 1976).

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projeto que veio a ser Vozes do medo, ainda não titulado à época. Sua proposta era fazer um filme à semelhança de uma revista, sem narrativa única, com diferentes seções e linguagens, em torno do tema da juventude. O filme seria “rodado sempre que houver dinheiro, com a equipe e os atores disponíveis na ocasião” e a ideia do cineasta, expressa na frase citada acima, era a de ser o coordenador do projeto que estava aberto a quem se interessasse: “quem quiser entrar no filme, entra. É só falar comigo e propor um item sobre o tema”. (SANTOS apud BENEVIDES, 1969, p.99). Já a quarta/quinta frase remete a declarações de Rogério Sganzerla e ao espírito geral da produção “marginal”. Faz parte do prólogo também uma entrevista com José Mojica Marins na qual ele responde à questão “O que precisa para ser autêntico?”: Não esnobar quando não estamos na altura de esnobar; não procurar mostrar intelectualidade quando não temos cultura para isso; não se esconder em pele de ovelha quando na realidade somos lobos mesmo. Em suma, afastar de nós o manto nojento da demagogia e procurar sermos o que realmente somos.

As declarações – que não sabemos serem espontâneas ou construídas para o filme – dão uma medida das ideias subjacentes ao Cinema Marginal, passando pelos aspectos de crítica e ruptura com o Cinema Novo. E o comentário de Sganzerla elogiando Mojica complementa essa ideia:

Mojica é um cineasta sem compromisso com o cinema contemporâneo moderno e exatamente por isso ele é um cineasta moderno, na medida que é um bárbaro, radical, com um grande sentido de poesia, com um grande sentido de cinema e com um efeito crítico avassalador diante dos problemas do homem brasileiro, que é um homem recalcado, um homem submisso, um homem pretensioso, um homem dos mil defeitos.

Além das declarações citadas e das imagens da Boca, o filme traz também imagens dos bastidores das filmagens de O profeta da fome de Maurice Capovilla, apresentando o projeto, a equipe e os métodos de trabalho. O filme, que gira em torno de um faquir que faz da fome seu meio de vida, foi protagonizado por José Mojica Marins e guarda diversos pontos de contato com os elementos característicos do Cinema Marginal, entre os quais a fragmentação narrativa e a presença do grotesco e do absurdo. O filme contou com recursos da Cinedistri, de Oswaldo Massaini, veterano da Boca, para a finalização e distribuição. O depoimento de Capovilla sobre o apoio da Cinedistri é interessante para a compreensão das condições de produção em São Paulo na época. Ele, que é considerado parte de um “segundo círculo ampliado do movimento”115 do Cinema Novo, afirma que, a despeito

115 Cf. Ramos; Miranda (Orgs), 2000, p.145.

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de suas relações de amizade, quem viabilizou a conclusão de seu filme foi a produtora da Boca do Lixo: “eu faço O Profeta [da fome], circulo no meio das pessoas que estão fazendo filmes naquele momento, mas quem me dá condições de terminar esse filme é o [Oswaldo] Massaini”” (CAPOVILLA apud TOSI, 2006, n.p.). As ligações de Capovilla com o Cinema da Boca incluem ainda a participação como ator/figurante nos filmes O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla,1968) e Ritual dos sádicos/O despertar da besta (José Mojica Marins, 1969)116 e é curioso encontrá-lo como porta-voz do movimento futuramente conhecido como Cinema Marginal na reportagem “Boca do lixo dá cinema também” de A crítica (1970). O artigo é conduzido inteiramente pelo depoimento de Capovilla que explica o “movimento de autoprodução surgido no Bocão”. Ele descreve a sistemática que consiste em fazer filmes de baixo ou no máximo médio orçamento com recursos conseguidos mediante empréstimos, associação com pequenos produtores e créditos em laboratórios de revelação. Entre os envolvidos havia cooperação, com cessão de câmeras, moviolas e mesmo empréstimo ou doação de filme virgem. Com os rendimentos de um filme investia-se prontamente no próximo, como fez Sganzerla com O bandido da luz vermelha (1968) e A mulher de todos (1969). A ideia era produzir “loucamente, sem parar, um filme atrás do outro. Pois a gente quer chegar à media de dois filmes por ano pra cada diretor.” (CAPOVILLA apud BOCA, 1970, p.26). Quanto às propostas estéticas, conforme o cineasta, mais do que uma unidade de pensamento buscava-se a unidade nas questões econômicas que garantiriam a independência e o desenvolvimento das visões particulares, o que em si já seria um fator de unidade do grupo uma vez que era um dado aceito por todos. Como um fator estético comum, ele aponta, entretanto, “a fuga do realismo”: “Todos os filmes que estão sendo produzidos (ou foram) nesta fase, fogem do realismo convencional. Utilizam os personagens e as situações como símbolos. O comportamento deles (dos personagens) é às vezes anormal pelo fato de encarnarem significados e não pessoas.” (CAPOVILLA apud BOCA, 1970, p.27). Conforme assinala Gamo (2006), a partir de 1969 o termo Cinema da Boca é assumido pelos realizadores e perde seu caráter pejorativo – ou, talvez, possamos dizer que o movimento incorpora o caráter pejorativo de maneira irônica e debochada, como vimos no prólogo de Audácia. Uma das versões sobre a origem da designação Cinema da Boca para caracterizar esse grupo do Cinema Marginal, segundo Gamo (2006, p.76), é de que o termo foi cunhado por Antonio Lima na ocasião do lançamento de As libertinas, tendo alcançado

116 Cf. Mattos, 2006, p.101-102.

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ampla divulgação a partir de reportagem da revista Manchete “Cinema Boca do Lixo”, de 29 de agosto de 1970, que focalizava as produções de Antonio Lima, Carlos Reichenbach, Rogerio Sganzerla e João Silvério Trevisan. Na reportagem, Antonio Lima expõe argumentos semelhantes aos de Capovilla: “A solidariedade é a tônica do movimento, um ajuda o outro. Seus objetivos são produzir filmes mais populares e recuperar rapidamente o capital empregado”. (LIMA, 1970 apud GAMO, 2007, p.23). A título de exemplo esclarece-se que Orgia ou o homem que deu cria (João Silvério Trevisan, 1970) custara 60 mil cruzeiros enquanto o custo de uma produção média em preto e branco era de 200 mil cruzeiros. João Batista de Andrade é outro dos cineastas em foco nesta pesquisa que teve relações estreitas com o Cinema da Boca. Fez a montagem de Orgia ou o homem que deu cria – cabe lembrar que João Silvério Trevisan era um dos sócios da produtora Tecla –, teve participação como ator em A herança (Ozualdo Candeias, 1970) e realizou dois filmes classificados como pertencentes ao Cinema Marginal: Gamal, o delírio do sexo (1969) e o episódio O filho da televisão, parte do longa Em cada coração um punhal (1969), este coproduzido pela Lauper Filmes, de Person. Além disso, o cineasta colaborou na coluna de Jairo Ferreira, dedicada particularmente às produções “marginais”, no jornal São Paulo Shimbun. Um desses textos pode ser encontrado na coletânea de críticas Jairo Ferreira e convidados especiais - Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun117: “O delírio da Boca”, publicado em 08 de outubro de 1970. No texto, Batista utiliza um vocabulário “marginal” típico, irônico, ácido, permeado de gírias e pitadas de non-sense. Citemos aqui alguns trechos que dão mostra do espírito do grupo e dos filmes:

Da esculhambação passamos rapidamente ao delírio. Cada um de nós está na sua mas o interessante é que somos extremamente iguais […] Um cinema com bolas de plástico, libertário. Um barulho de latas, eu disse latas. Cinema Boca do Lixo. Cinema boca. Cinema silencioso, gruft. Nhapt. Mães gordas e pais homossexuais. A sacanagem mais deslavada. Cinema estupro. […] Ninguém te segura, cinema barato, ninguém te segura. Cada filme é um passo a frente, há sempre um outro a fazer, com uma loucura a mais ou uma mulher a mais. (ANDRADE, 1970 in FERREIRA, 2006, p.184).

Batista, que construiu uma trajetória ligada a um cinema de cunho mais eminentemente político, atualmente desidentifica-se do Cinema Marginal. Para ele: “os dois filmes [Gamal e o O filho da televisão] devem ser vistos como um hiato em minha carreira” (ANDRADE, 2005a), considerando que sua trajetória reencontrou depois o caminho iniciado

117 Cf. Ferreira (2006).

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com o documentário Liberdade de imprensa (1967). A combinação entre o desvario como subversão e o erotismo como fator de apelo comercial – “uma loucura a mais ou uma mulher a mais”, como referiu-se Batista – lhe trazia incômodos já naquela época. Ao filme Gamal foi acrescido o subtítulo Delírio do sexo por exigência de Galante que comprou o filme oferecido por Batista que estava em crise financeira. Nas palavras do produtor: “Ele queria 20 mil, tava desesperado, casa hipotecada, dele e de todo o pessoal. Pra você ver o que era o cinema verdadeiro, fazia por amor, hipotecava a casa porra!” (GALANTE, 2012). O filme já havia sido lançado pela RPI sem retorno financeiro e Galante o relança acrescido do subtítulo e de alguma publicidade, alcançando sucesso e permanecendo três semanas em cartaz no cinema Art-Palácio, voltado para filmes populares. Em entrevista recente promovida pela revista Filme Cultura com produtores brasileiros, Galante cita Gamal como exemplo de situação em que sua atitude de produtor foi determinante para o sucesso: “Compramos esse filme depois do fracasso do seu lançamento em São Paulo. Lançamos novamente o filme, apenas colocando na fachada dos cinemas: “A.P. Galante apresenta Gamal,o delírio do sexo”. Os cinemas lotaram. Ganhamos muito dinheiro com esse filme”. (GALANTE In: QUESTIONÁRIO..., 2010, p.39). No referido artigo do jornal São Paulo Shimbum, Batista expressa o seu incômodo com a situação:

Acho que fazer Gamal e depois ver o filme rendendo como filme de sexo (Delírio do Sexo) é uma grande porcaria: é uma tapeação inserida no contexto. Coloque três mulheres e um homem num quarto e dispare a câmera: “vou ficar rico, Célia”, estamos em plena era da indústria cinematográfica brasileira. Dando dinheiro, tudo OK, não se vai perguntar se também estamos dando. Grumpft. Chega de conflitos. Argh. Gramf Serash sem essa de conflitos. (ANDRADE, 1970 in FERREIRA, 2006, p.184).

Percebe-se, assim, que esse início da produção da Boca do Lixo foi marcado pelo entrecruzamento, ou coincidência pontual, de interesses diversos e que, durante um curto período – de 1968 a 1970 (estendido até 1973, para alguns autores) –, foi possível coexistirem a inventividade e o imperativo comercial, em soluções por vezes contraditórias. Confluem para a Boca personalidades heterogêneas agrupadas em torno da disposição de realização em condições precárias. Filmagens em tempo recorde – Batista realiza dois filmes (O filho da televisão e Gamal) em um só mês, o primeiro em seis dias, o segundo em onze118 – materiais de segunda mão, restos de negativo, rodízio de funções e participações não

118 Cf. Caetano, 1983.

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remuneradas, em suma, faz-se da precariedade elemento de expressão, assim como o Cinema Novo fizera, em outros termos, no seu início. Em alguns casos chegava-se aos produtores da Boca com o filme já pronto, buscando recursos para finalização como aconteceu com Sylvio Back no caso de Lance maior (1968). Este, o primeiro longa do cineasta catarinense, deveria contar com recursos da CPS Produções Cinematográficas, de Capovilla, Luis Carlos Pires e Roberto Santos, conforme noticiado em algumas reportagens da época. Porém, conforme explica Back, o apoio de Capovilla e Santos (nomes que constam nos “agradecimentos especiais” dos créditos do filme) não chegou a se concretizar financeiramente: “O pessoal de São Paulo – Maurice Capovilla, Roberto Santos – me havia dado forte estímulo, que deveria ter também uma parte mais concreta, em dinheiro, o que não chegou a acontecer” (BACK, 1977 apud KAMINSKI, 2008, p.169). Possivelmente por meio dos amigos paulistas, Back foi então “introduzido na agiotagem da Boca do Lixo” (BACK, 197-, p.3) que lhe permitiu finalizar e lançar o filme. Em suas palavras:

Poucos cineastas, acho que, de São Paulo especialmente, escaparam dessa agiotagem, da qual eu não me arrependo. As pessoas envolvidas nisso são pessoas ótimas. São meus amigos hoje, tudo mais. Essa agiotagem me deixou marcado por muitos anos, ainda estou marcado por ela. Porque... a própria Guerra dos Pelados, eu ainda devo uma fortuna hoje. […] eu estou inclusive processado por esta dívida. Mas é... foi iniciado nessa agiotagem que foi... que houve a possibilidade de terminar o filme. (BACK, 197-, p.3)

Lance maior foi um dos primeiros lançamentos da parceria Galante e Palácios que produziram também o filme seguinte de Back, A guerra dos pelados (Sylvio Back, 1970). Não obstante o título deste último, que para os desavisados pode sugerir uma pornochanchada, os filmes de Back pouco têm a ver com a produção típica da Boca. Lance maior é um drama urbano realista que, como será exposto no capítulo seguinte, guarda afinidades com as matrizes paulistas de abordagem crítica da modernidade capitalista e A guerra dos pelados é um filme histórico sobre a Guerra do Contestado, conflito de terras na região fronteiriça entre os estados do Paraná e Santa Catarina, sendo os expropriados em luta conhecidos sob a designação “pelados” em decorrência de suas cabeças raspadas. É interessante notar que no caso desses filmes houve divergência entre os sócios da Servicine tendo prevalecido a visão “culta” de Palácios que apreciou os projetos não obstante as objeções de Galante quanto à ausência de apelo comercial principalmente no caso do segundo

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filme119. Essas informações contribuem para visualizar as diferentes linhas de atuação da empresa, não por acaso subintitulada Serviços Gerais de Cinema Ltda, pronta para qualquer negócio. Conforme assinala Capovilla: “Todos passamos pela Boca, não como turistas, mas utilizando aquela estrutura de um cinema posto a serviço do distribuidor e do exibidor” (apud Mattos, 2006, p.102). E é sugestiva a observação do ícone maior do Cinema Novo, Glauber Rocha, que, no “verbete” Alfredo Palácios, de seu livro Revolução do Cinema Novo, assinala, em seu estilo peculiar, que em torno do grande produtor da Boca, localizavam-se todas as vertentes do cinema paulista, dos remanescentes da Vera Cruz aos marginais, passando por Capovilla, Person e Santos. E conclui, sobre São Paulo, depois de dissociar-se absolutamente dos paulistas (“sou nordestino, romano, parisiense, carioca, cubano, latinoamericano, sanfranciscano, novayorquino, sobretudo conquistense mas não sou paulista”): “Outro Brazyl. Por lá medrou mal o cinema novo” (ROCHA, 2004, p.487, grafia e grifo do autor). O aumento dos custos de produção com a disseminação do filme colorido e o acirramento da censura – Orgia ou o homem que deu cria (João Silvério Trevisan, 1970) e República da traição (Carlos Ebert, 1970), por exemplo, foram interditados – são fatores que contribuíram para por fim ao “surto” Marginal, dando lugar à produção erótica estritamente comercial que passaria a caracterizar o Cinema da Boca. Nuno César Abreu (2006), que estudou particularmente essa “segunda fase” da produção da Boca, assim define a fórmula dos sucessos que garantiram a sustentação da Boca atravessando os anos 1970 até os anos 1980: “erotismo + produção barata + título apelativo + divulgação em mídias populares” (ABREU, 2006, p.118). Não só o público a que esses filmes se dirigiam era proveniente sobretudo das classes populares, mas também grande parte de seus cineastas e equipe. Com o fim do momento “marginal”, a ala “culta”120 da Boca se desintegrou: muitos foram levados a abandonar a direção, como Antonio Lima, João Callegaro, José Agripino de Paula, Carlos Ebert, Sebastião de Souza e João Silvério Trevisan; outros continuaram a carreira fora da Boca, como os cineastas aqui em foco ou Rogério Sganzerla que parte para o Rio e estabelece parceria com Bressane na fundação da produtora Belair; por fim, Carlos Reichenbach e Ozualdo Candeias conseguiram seguir carreira na Boca mesclando propostas de cunho autoral com os elementos eróticos sine qua non. Novos nomes surgem, destacando-se David Cardoso e Tony Vieira, ambos oriundos das classes populares e

119 Cf. Galante (2012). 120 Emprestamos a expressão de Bernardet. Para ele: “a área culta que eu entendo é Trevisan, Candeias, Sganzerla, Callegaro, Reichenbach” (Bernardet In Savietto e Souza, 1980, p. 69).

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com baixa escolaridade, que além de produzir e dirigir seus filmes também neles atuavam encarnando o protótipo do “machão”. Figura peculiar nesse novo contexto da Boca era Ody Fraga que participou como roteirista e/ou diretor em cerca de 60 filmes num período de aproximadamente 15 anos, segundo Abreu (2006, p.71). Não obstante fosse um pragmático defensor do cinema comercial plenamente inserido no cinema erótico, Fraga possuía, conforme Abreu (2006) e Simões (2000), “um nível cultural muito acima de seus pares” (SIMÕES, 2000, p. 261). Após passar três anos num seminário, dedicou-se ao teatro, tendo encenado Sartre, escreveu textos e foi um dos fundadores da revista literária Sul – “considerada a mais importante de Santa Catarina nas últimas décadas” (SIMÕES, 2000, p. 261). Na Boca era tido como “intelectual” ou “ideólogo”, escrevia roteiros por encomenda com extrema rapidez e versatilidade e citava filósofos como Nietszche, em meio a conversas de bar121. Sua personalidade sarcástica e auto-consciente em relação à mediocridade e conservadorismo de sua própria produção expressa-se em suas declarações a Abreu (2002, 2006) e na entrevista ao programa Luzes, Câmera (Fraga, 197-). Outro cineasta que destoa do perfil geral da Boca é José da Silva Marreco Filho, conhecido como J. Marreco. Além do nome nos créditos de diversos filmes da Boca, nas funções de fotografia e de direção na filmografia levantada por Abreu (2002), são escassas as informações sobre o cineasta que teve relação com o grupo aqui focalizado. Mais jovem do que os sete cineastas de nosso conjunto, J.Marreco (1946-2005) 122é citado em reportagem de 1968 sobre seu filme Sandra, Sandra123, como ex-integrante do Grupo Kuatro, grupo de cinema fundado por João Batista de Andrade e Francisco Ramalho Jr. que incluía os igualmente estudantes de engenharia da Escola Politécnica da USP, Clóvis Bueno e José Américo Viana (que não seguiram a carreira de cineastas) e ao qual também se ligou Renato Tapajós, conforme veremos no capítulo 5. Cursou Dramaturgia e Direção na USP em 1967124 e foi diretor de fotografia, corroteirista e corresponsável pela pesquisa no politizado curta-metragem Um por cento, dirigido por Tapajós em 1967 com recursos do Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP. Sandra, Sandra, que seria seu primeiro filme,

121 Cf. Abreu (2002, 2006) e Puzzi (2011). 122 Conforme informação de sua ex-mulher, a cineasta Tereza Trautman, conseguidas por intermédio da pesquisadora Ana Veiga (contato via e-mail), “José Marreco faleceu há 10 anos de complicações da diabetes e em meio a grandes dificuldades econômicas.” 123 SANDRA SANDRA, os problemas da jovem estudante, 15 de abril de 1968. 124 Informação colhida de currículo/verbete sem fonte encontrado na Cinemateca do MAM. De acordo com Renato Tapajós (2015) “pelo menos na época que eu o conheci, ele não tinha formação universitária. Me parece que o pai dele era diplomata nos países da América Latina e ele foi junto e acabou fazendo cursos. No cinema também ele era autodidata”.

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protagonizado por Bete Mendes e Antônio Fagundes, foi abortado em decorrência do recrudescimento da ditadura militar.125 A única reportagem encontrada sobre este filme na Cinemateca Brasileira informa, em abril de 1968, que o filme, cujo roteiro teria sido apresentado a Nelson Pereira dos Santos, estava sendo finalizado e que se baseava numa série de pesquisas sociológicas feitas entre mulheres de classe média em São Paulo. As pesquisas, e o filme, colocavam em questão as difíceis condições enfrentadas pelas mulheres em seu desenvolvimento intelectual e profissional na sociedade brasileira da época. Nessa mesma reportagem, Marreco declara que para ele e os cineastas de seu círculo interessava mostrar à classe média, público-chave do cinema, questões que dizem respeito à sua classe, notadamente aos jovens:

No momento atual não interessa mostrar, a esta classe, condições que não estejam integradas nos centros urbanos. Não adianta enfocar problemas de fome no Nordeste se não há condições culturais para estes problemas graves sejam compreendidos sob um ângulo que possibilite uma tomada de posição. Na classe média são os jovens que assistem filmes e o que interessa a eles são histórias sobre o ambiente em que estão situados. Por isso nosso objetivo é mostrar aos jovens problemas deles mesmos que possam levá-los à realidade e à uma posição definida. Não posso, por exemplo, fazer um filme sobre as favelas. Estaria me afastando da realidade. Por isso fiz Sandra, Sandra, sobre os jovens estudantes. (MARRECO apud SANDRA..., 1968).

Após a inviabilização da conclusão/lançamento comercial de Sandra, Sandra, Marreco seguiu carreira na Boca do Lixo, realizando filmes de teor erótico: Fantasticon: os deuses do sexo (codireção de Tereza Trautman126, 1970), este mais próximo da vertente marginal, seguido de Núpcias vermelhas (1975); A carne (1975); Passaporte para o inferno (1976); Emanuelle Tropical (1977); A mulher, a serpente e a flor (1983). Não é sem algum estranhamento que encontramos Renato Tapajós – o cineasta de nosso conjunto que trilhou trajetória mais radicalmente ligada ao cinema político/militante – creditado como corroteirista em duas pornochanchadas, ambas ligadas a Marreco: Emanuelle

125 Bete Mendes (apud Menezes, R. 2004, p.66) declara que seu papel em Sandra, Sandra era o de uma “revolucionária” e que não sabe se o filme chegou a ser concluído uma vez que perdeu o contato com Marreco e com a namorada dele na época, que era sua amiga, pois esta exilou-se do país em decorrência da repressão ditatorial. Segundo o verbete J.Marreco em Cinema da Boca: dicionário de diretores, o filme foi concluído, mas “seu lançamento em plena época de ditadura militar esbarrou na proibição da Censura Federal e permaneceu inédito” (STERNHEIM, 2005, p.158). 126 Segundo verbete da Enciclopédia de cinema brasileiro (2000, p.546), Tereza Trautman (1951- ), ainda adolescente travou contato com o grupo de cineastas envolvidos com a Reunião de Produtores Independentes, nomeadamente, João Batista de Andrade, Luiz Sérgio Person, João Silvério Trevisan e Carlos Reichenbach, e casou-se com J.Marreco, com quem dirigiu seu primeiro filme Fantasticon: os deuses do sexo, de baixíssimo orçamento e conteúdo anárquico. No início dos anos 1970 estabelece-se no Rio de Janeiro, onde se casa com o cineasta Alberto Salvá e dá continuidade à sua carreira.

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Tropical (J.Marreco, 1977) e Um casal de três (Adriano Stuart, 1982), do qual Marreco foi montador. Em entrevista à autora, o cineasta (Tapajós, 2015) explica que conheceu José Marreco em meados dos anos 1960 quando este namorava uma amiga sua, companheira de militância. Dessas relações, surgiu o convite para a participação de Marreco em Um por cento que foi o último filme de Tapajós antes de sua prisão por integrar a Ala Vermelha do PC do B, grupo da esquerda armada contra a ditadura militar. Após cinco anos preso, o cineasta reencontra casualmente Marreco quando busca emprego na Haway Filmes (Empresa Cinematográfica Haway Ltda), distribuidora que passara a investir em produção no contexto de efervescência produtiva da Boca do Lixo, na qual o colega trabalhava. Tapajós (2015) esclarece que a relação de Marreco com os remanescentes do Grupo Kuatro era lateral e que, a seu ver, o interesse do cineasta por um cinema mais engajado foi pontual: “Eu acredito que o trânsito do Marreco por uma temática mais política foi ocasional porque ele não tinha uma formação política mais... Então por causa da namorada ele acabou tentando fazer alguma coisa que tivesse alguma conotação política mas o projeto dele está muito mais ligado à realização de filme comercial” (Tapajós, 2015). Quanto à relação de Tapajós com a produtora da Boca, Haway, ele explica que no caso de Emanuelle tropical ele trabalhou sobre uma versão preliminar do roteiro já escrito enquanto que em Um casal de três, embora o argumento não seja seu, ele teve maior autonomia de trabalho e considera este um bom roteiro, com bons atores, mas que foi mal realizado resultando num filme “medíocre”. Conforme a sinopse obtida do press-release do filme, percebe-se que, se bem realizado, Um casal de três poderia ter abordado questões de classe e de gênero.127 O cineasta lembra-se ainda de ter trabalhado num outro roteiro para a Haway, cujo título não se recorda, que seria ambientado numa região pantanosa a partir de uma adaptação de história que se passaria originalmente nos Estados Unidos e que ele deveria transportar para o Brasil. Possivelmente o filme, cujo diretor seria John Doo, não chegou a ser realizado. Seguindo seus propósitos comerciais, a Haway produzia também curtas-metragens que cumpririam a Lei de Obrigatoriedade do Curta.128 Dentro dessa proposta, Tapajós produziu o curta Retratos de Hideko (1981), dirigido por Olga Futemma sobre a mulher japonesa – que também contou com apoio da Secretaria de Estado da Cultura – e planejava dirigir A cidade, baseado num

127 Cf. “Um casal de três” em Base de dados “Filmografia Brasileira” da Cinemateca Brasileira. Disponível em: . Acesso em: 20 de dezembro de 2015. 128 A Lei Federal 6.281, de 9 de Dezembro de 1975, regulamentada posteriormente pelo Concine (Conselho Nacional de Cinema), determina em seu art. 13. que “Nos programas de que constar filme estrangeiro de longa- metragem, será estabelecida a inclusão de filme nacional de curta-metragem, de natureza cultural, técnica, científica ou informativa, além de exibição de jornal cinematográfico, segundo normas a serem expedidas pelo órgão a ser criado na forma do artigo 2º”. Cf. BRASIL (1975).

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poema do poeta amazonense Thiago de Mello, projeto que não se concretizou. Francisco Ramalho Jr. também esteve, transitoriamente, ligado à produção erótica da Boca. Ele conheceu Antonio Polo Galante ainda no início dos anos 1960, antes da fundação da Servicine, quando o futuro produtor trabalhava para um pequeno setor de cinema da Reitoria da Universidade de São Paulo e Ramalho Jr. era um estudante da Escola Politécnica da USP já interessado em fazer filmes e ouvia dicas técnicas do profissional experiente. Dessa relação, guarda uma memória afetiva: “Até hoje quando eu o vejo tenho vontade de carregá-lo no colo. Ele é o pai que eu não tive”, declara a Sabadin (2009, p.63). Durante o período do Cinema Marginal, Ramalho teve uma relação distante com a região da Boca – com a crise e o encerramento da RPI em 1969 trabalhou como professor de Física no Curso Universitário, preparatório para o vestibular, e atuou na direção do Museu Lasar Segall durante o período em que seu amigo Maurício Segall esteve preso por motivos políticos129 – e veio a reencontrar Galante em meados dos anos 1970 quando buscava recursos para produção de À flor da pele. Em entrevista à autora (Ramalho Jr., 2015) e a Sabadin (2009), Ramalho explica que ao expor o projeto de À flor da pele à Servicine, teve como resposta um aceite condicional: a produtora colaboraria com o filme desde que o cineasta concordasse em antes dirigir um filme de retorno garantido, uma comédia erótica em três episódios. O cineasta concordou e durante o carnaval de 1976 rapidamente roteirizou o episódio Joãozinho que integrou o longa Sabendo usar não vai faltar (1976) que teve outro de seus episódios dirigido por Sidnei Paiva Lopes, sócio de Ramalho na Oca Cinematográfica, produtora que fundaram em 1975. O filme não alcançou grande sucesso, mas os recursos foram suficientes para cobrir os custos de produção e a Servicine cumpriu o acordo de entrar na produção de À flor da pele que também contou com recursos da distribuidora Roma Filmes. Baseado na peça homônima de Consuelo de Castro e com a colaboração de Renato Tapajós no roteiro, o filme trata do relacionamento conturbado entre um professor e dramaturgo de meia idade e uma jovem e intempestiva aluna. Embora o tema carregue em si elementos eróticos, Ramalho (2015) confessa que nas filmagens deteve-se por mais tempo sobre os corpos nas imagens dos encontros amorosos do casal de modo a atender às exigências do cinema da época. O próximo filme de Ramalho, Filhos e amantes (1981) foi também realizado em coprodução com Galante – a essa época já dissociado de Palácios, com a produtora Produções Cinematográficas Galante Ltda – e também traz elementos eróticos em meio a preocupações

129 De acordo com Marcelo Ridenti (2000, p.336) Maurício Segall esteve preso entre 1970 e 1973.

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mais autorais em torno do tema da juventude. Tecemos comentários sobre Filhos e amantes em Leme (2013) e cabe mencionar que, conforme Ramalho Jr. relata em Sabadin (2009), o filme foi realizado com recursos que originalmente seriam direcionados a um grandioso filme erótico, ao estilo de Calígula (Tinto Brass, 1979), que contaria com coprodução da distribuidora Paris Filmes e teria como protagonista Jardel Filho. Com a preparação em andamento, a Paris Filmes sofre um revés financeiro e desiste do projeto e logo depois Jardel Filho morre, inviabilizando-se o filme. Com os resquícios de verba da produção frustrada, Galante solicita a Ramalho que realize um outro filme que vem a ser Filhos e amantes. Insere- se ainda na produção erótica da Boca do Lixo o roteiro que Ramalho Jr. elaborou por encomenda para o filme Escrava do desejo (John Doo, 1981), a partir de argumento de John Doo. Percebe-se no caso dos três trabalhos anteriores – Joãozinho, À flor da pele e Filhos e amantes – que há uma mescla, de diferentes matizes em cada caso, entre as exigências de erotismo e a expressão de questões próprias do autor. Joãozinho e Filhos e amantes têm argumento, roteiro e direção de Ramalho Jr. e À flor da pele, embora seja baseado em uma peça teatral de autoria de outrem, é um projeto que fora muito acalentado por ele que se empenhou em realizá-lo não obstante dificuldades iniciais130 e pelo qual recebeu prêmio de melhor filme, melhor roteiro e melhor atriz para Denise Bandeira no V Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, de 1977. O que se conclui é que, de maneira similar, neste aspecto, ao caso de Walter Hugo Khouri, o erotismo e a temática dos relacionamentos amorosos não são estranhos às propostas autorais de Ramalho Jr. – como se observa desde seu primeiro longa Anuska, manequim e mulher – mas esses elementos foram exacerbados em alguns filmes pelas condições de produção paulistas nos anos 1970.

2.2 Publicidade: questão de sobrevivência?

Por longo tempo o comercial movimentou 75% da economia do parque paulista cinematográfico, passando em pouco tempo de marginal intruso a senhor respeitado, enquanto o longa era encarado pelos laboratórios de processamento como bico. (BARRO, 2008, p.179-180)

Analisando o contexto da produção audiovisual no Brasil dos anos 1970, José Mário Ortiz Ramos (2004) considera que:

130 Cf. Ramalho apud Sabadin (2009, p. 61-62). Conforme relata o cineasta, ele enfrentou primeiramente a negativa da autora da peça em autorizar a adaptação e depois, quando ela finalmente concordou, ele não dispunha da quantia requerida para pagar-lhe os direitos autorais.

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Podemos voltar a pensar o cinema dividido em dois setores relativamente estanques e com dinâmicas diferenciadas: um, marcado pela autonomia cultural e artística – integrantes do Cinema Novo, ou cineastas isolados como W.H.Khouri –, que desconsiderava a televisão como possibilidade estética; outro, determinado pelo isolamento do cinema comercial dos anos 70, que não olhava além das salas a serem alcançadas rapidamente com filmes de baixos custos. (RAMOS, 2004, p.82).

O autor acrescenta que mesmo o polo comercial, ou seja, o Cinema da Boca do Lixo, estava inclinado a defender a superioridade do cinema em relação à televisão. Pautando- se em depoimentos como os de Ody Fraga e David Cardoso, nomes fortemente ligados àquele cinema, Ramos entende que: “O desprezado universo da Boca recusava a TV num esforço de distinção no interior da produção audiovisual, procurando se valer de uma pretensa ‘aura’ do cinema e do seu caráter ‘artístico’. (RAMOS, 2004, p.83). Nos discursos dos profissionais do audiovisual, a televisão, assim como a publicidade, é tradicionalmente vista como um espaço de produção “fabril”, em contraponto com o cinema, que é visto como espaço de criação “artesanal”, conforme mostra Ramos (2004). No caso da publicidade a rejeição é, para muitos, ainda mais forte. Conforme declarou em 1970 o publicitário José Zaragoza, da DPZ: “os cineastas acham que é uma espécie de prostituição fazer filme comercial” (ZARAGOZA, 1970 apud RAMOS, p.90-91). Sylvio Back (197- ), ao falar da atividade que exerceu após o fracasso de A guerra dos pelados (1970), endividado com os produtores da Boca do Lixo, expressa bem essa carga pejorativa forte:

Eu levei cinco anos para fazer um filme depois da Guerra dos pelados. Nesses cinco anos, tive que fazer de tudo: fazer filme de publicidade, documentários comerciais, fiz cento e trinta filmes de publicidade. Tive que fazer uma empresa de publicidade. Eu odeio filme de publicidade. Filme de publicidade é o intestino grosso do cinema. Um negócio horroroso, sem criatividade. Um negócio que acaba com talentos. Liquida as pessoas. (BACK, 197- p.4)

Como já mencionado, nossos “paulistas do entre-lugar” tiveram todos passagens, longas ou breves, pela publicidade e/ou pela televisão. Pela publicidade passaram: Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Sérgio Muniz, Francisco Ramalho Jr. e Renato Tapajós. E pela televisão passaram: Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Sérgio Muniz, Renato Tapajós, João Batista de Andrade e Maurice Capovilla, sendo que Batista e Capovilla, embora não tenham trabalhado diretamente com comerciais, realizaram documentários institucionais, ou seja, filmes que não são propriamente publicitários, pois não vendem explicitamente um produto, mas são patrocinados e vinculados a um produto, marca ou empresa. No caso do programa Globo Shell, de que trataremos adiante, a relação com o patrocinador era mais distante,

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permitindo uma margem relativa de autonomia, enquanto que em outros projetos como o documentário As cidades do sonho que Capovilla realizou em 1975 para a agência de publicidade de Roberto Medina, o projeto era claro: “Nada mais que um institucional sobre cidades planejadas, a serviço de um empreendimento imobiliário”. (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p. 174). Outro projeto desse tipo realizado pelo cineasta foi um institucional sobre corridas de rali sob o patrocínio da Ford. No entanto, neste caso Capovilla (apud Mattos, 2006, p.141) relata que partiu dele a ideia de seguir um dos competidores, acompanhando a corrida e os bastidores durante todo o trajeto da prova entre São Paulo e Minas. Assim, o curta-metragem, intitulado Rally (1971), não deixa de ser um documentário com uma certa “autoralidade”, embora esteja inserido nas contradições implicadas em ser um produto vinculado ao seu patrocinador. Batista, por sua vez, assume a realização de pelo menos dois documentários institucionais, em 1969, para a produtora do (ex-) cineasta Romain Lessage: “(um chamado Erradicação Cafeeira e outro sobre a Usiminas), raríssimos trabalhos comerciais ou institucionais que fiz em toda a minha vida, já que eu sempre odiei esse tipo de compromisso.” (ANDRADE apud CAETANO, 2004, p. 133). Alexandre Krügner Constantino (2004), valendo-se de um referencial bourdieusiano, posiciona o campo publicitário como um subcampo, dominado, do campo cultural, em intersecção com o campo econômico e o campo político, sendo, portanto, um campo próximo de posições dominantes no campo do poder mas desconfortável em relação ao campo artístico, o que pode ser percebido em diversas declarações de publicitários que procuram defender o caráter “criador” de sua profissão, na tentativa de elevá-la para além dos imperativos puros do mercado e da política. Maria Eduarda da Mota Rocha (2010, p.19) encontra uma das poucas referências de Bourdieu à publicidade na qual ele a situa como parte do campo econômico e em oposição ao campo artístico, definindo-a como “operação interesseira de valorização da mercadoria” (BOURDIEU, 2002 apud ROCHA, 2010, p.19). A questão que se coloca, como atenta Rocha (2010) é que a criação é elemento diferenciador na produção publicitária, aspecto cada vez mais fundamental no capitalismo avançado, como demonstrou Jameson (1996). De acordo com este autor:

A produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas à aviões), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posição e uma função estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao experimentalismo. (JAMESON, 1996, p.30).

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Há, nesse sentido, uma dissolução de fronteiras somando-se à “mercantilização da cultura”, a “culturalização da economia” – processo que, a meu ver, é difícil de ser compreendido pela lógica dos “campos”. De todo modo, não é necessário recorrer ao conceitual bourdieusiano para compreender que o ingresso na publicidade é um fator de incômodo para pessoas que se identificam como artistas e, mais do que isso, como artistas de esquerda. Roberto Santos, que, ao lado de Person, foi, dentre os cineastas de nosso conjunto, aquele que estabeleceu vínculos mais fortes – e conflituados – com a publicidade, declara de maneira incisiva: “Eu tenho feito coisas que realmente... eu sei que estou vendendo produtos, eu sei que estou alienando, eu sei que estou mistificando às vezes, mas eu sei que preciso comer.” (SANTOS, 197-, p.9). Contabilizando ter feito até meados dos anos 1970 em torno de 300 ou 400 comerciais, em suas entrevistas ele se preocupa em justificar a atividade como forma de sobrevivência: “Eu trabalho bastante com comercial. Trabalho e não tenho outro jeito de sobreviver senão trabalhar com comercial. Porque o que me pagam fora do comercial não dá pra sustentar a minha família. Então eu trabalho.” (SANTOS, 197-, p.9). Não se trata de vitimizar o cineasta, mas é necessário observar que de fato o leque de possibilidades de trabalho não era amplo para alguém que, como Santos, abandonara as faculdades de Arquitetura e Filosofia em que ingressara em 1950 para dedicar-se aos primeiros cursos de cinema que foram os seminários oferecidos pela Prefeitura de São Paulo entre 1950 e 1952, seguindo de certa forma o ofício de seu pai, fotógrafo de simpatias anarquistas131. A entrada de Roberto na publicidade se dá na virada dos anos 1950 para os anos 1960, logo após seu importante longa de estreia, O grande momento (1958). Segundo Simões (1997), ele trabalhou inicialmente no setor administrativo da Ubayara Filmes, que distribuíra O grande momento e voltou à realização audiovisual na Amplavisão, empresa de Primo Carbonari, realizadora de cinejornais e documentários institucionais. Lá dirigiu Bahia com H, Usina de Votuporanga e Viadutos de São Paulo, datados de 1958, com lançamentos em 1959. Logo após, ingressou, a convite do ex-cineasta paulista César Mêmolo Jr., na empresa de filmes publicitários Lince Filmes, depois Lynx Filmes. Mêmolo recém-fundara a empresa, trazendo para a equipe nomes do cinema paulista dos anos 1950, como o fotógrafo Chick Fowle e os cineastas Galileu Garcia, o próprio Santos e Agostinho Pereira que mais tarde

131 Cf. Futemma (1982), Simões (1997) e “Biografia” no portal Cineasta Roberto Santos. Disponível em: . Acesso em: 10 de janeiro de 2016.

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dissociou-se da Lince e fundou sua própria produtora a AMP.132 A fundação da Lince insere-se num contexto de surgimento de várias empresas de filmes publicitários criadas por profissionais egressos das companhias cinematográficas paulistas. Uma das empresas pioneiras foi a Musa Filmes que, segundo Barro (2008, p.177), fora fundada ainda em 1951 com a intenção de realizar longas-metragens, mas perante as dificuldades do mercado cinematográfico acabou se voltando para os cinejornais, assim como para o nascente mercado de filmes publicitários para televisão.133 Capitaneada pelo jornalista, escritor, cineasta e comunista italiano Tito Batini, a Musa tinha em seu quadro de profissionais o fotógrafo francês Jacques Deheinzelin e o diretor e montador britânico John Waterhouse que posteriormente fundarão a Jota Filmes em 1957, mesmo ano de fundação da Lince. Essas empresas surgem no contexto da notável expansão do mercado publicitário a partir de meados dos anos 1950, quando o Brasil vivia novos padrões de desenvolvimento econômico, numa voga desenvolvimentista impulsionada pelo Estado e pela entrada de capital multinacional. Nesse momento, a publicidade atingia uma fase propriamente “empresarial”, conforme caracteriza Maria Arminda Arruda (2004). O retorno da circulação da revista Propaganda (fundada em 1937 e interrompida em 1939) em 1956 e o I Congresso Brasileiro de Propaganda em 1957 são elementos que marcam o florescimento do setor. A televisão, surgida em 1950 na capital paulista, começava a substituir, em meados da década, os rudimentares comerciais feitos ao vivo com cartelas ilustradas acompanhadas de voz over134, garotas-propaganda ou slides, por audiovisuais encomendados às agências, o que favorecia a racionalização do tempo de publicidade para frações de 30 segundos. Essa racionalização foi impulsionada a partir dos anos 1960 com os institutos de pesquisa mercadológica que permitiam mensuração mais precisa da audiência e os investimentos publicitários na mídia televisiva foram gradualmente incrementados, de modo que em 1963, conforme Rafael Santos (2003, p.196), as verbas publicitárias direcionadas à TV ultrapassaram aquelas dirigidas às revistas.135 A realização de filmes publicitários passou a ser, assim, um ramo atraente a todo

132 Sobre Agostinho Pereira ver Máximo Barro (2008). 133 Cf. Sobre a Musa Filmes ver Máximo Barro (2008, p.177). Outras referências à empresa estão na biografia de Barro, elaborada por Sternheim (2009). 134 Voz que se sobrepõe às imagens, sem associação com um falante em tela, por vezes assume a forma de narração. 135 Sobre publicidade no Brasil ver Ricardo Ramos (1985), Maria Arminda Arruda (2004), Maria Eduarda da Mota Rocha (2010), Rafael José dos Santos (2003), além dos trabalhos de caráter mais amplo de Renato Ortiz (1988), José Mário Ortiz Ramos (2004).

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um contingente de egressos das companhias cinematográficas falidas, incluindo aí não apenas os cineastas, mas também os profissionais técnicos. Nas palavras de Máximo Barro, pesquisador de cinema e histórico montador:

Trabalho contínuo, ótimos salários e possibilidades de nos intervalos continuar no longa-metragem foram deslocando aos poucos todo o contingente técnico. A situação esdrúxula da economia cinematográfica invertia o processo histórico. Ao invés de receber contingentes formados nos comerciais o longa-metragem é que os fornecia. […] Contam-se nos dedos os diretores e produtores que não tenham trabalhado nos comerciais […] Nos outros setores desconhecemos exceções. Todos os iluminadores, de Chick Fowle e Rodolfo Icsay a Toni Rabatoni e Ruy Santos, lá trabalharam, quando não continuamente, pelo menos em escapulidas esporádicas. Montadores com João Alencar e Lucio Braun, por muitos anos, só a isso se dedicaram enquanto Silvio Reinoldi, Lorenzo Serrano, Luis Elias, Maria Guadalupe, Glauco Mirko Laurelli, Eduardo Llorenti, Mauro Alice e nós [Máximo Barro] transitamos com maior ou menor freqüência. (BARRO, 2008, p.178-79).

Voltando à Lynx Filmes, que se tornaria nos anos 1970 a “maior produtora de comerciais do país, e da América latina”, segundo Simões (1997, p.62), cabem aqui alguns comentários sobre a trajetória de seu fundador, César Mêmolo Jr.. Mêmolo dirigiu, em parceria com Carlos Alberto de Souza Barros, Osso, amor e papagaios (1956), filme elogiado por Glauber Rocha no seu Revisão Crítica do Cinema Brasileiro como sendo “uma comédia popular, social, inteligente como nunca antes acontecera no cinema paulista” (ROCHA, 2003 [1963], p.112). Rocha (2003) lamenta que os paulistas Mêmolo e Souza Barros, assim como Galileu Garcia (do também positivamente avaliado Cara de fogo, 1957) e Roberto Santos, tivessem sido “injustamente atirados” à realização de filmes publicitários. Em entrevista ao programa Luzes Câmera da TV Cultura, Mêmolo (197-) respondeu que sua decisão de passar ao mercado de filmes publicitários foi devida às circunstâncias da crise do cinema paulista no pós-Vera Cruz: “Eu na verdade não passei, eu fui passado porque depois de Osso, amor e papagaios, adveio aquela que foi a maior crise no cinema brasileiro, realmente surgiu um marasmo terrível e não se tinha perspectiva nenhuma [...]” (MÊMOLO JR., 197-, p. 19 e 20). O cineasta – que nos anos 1950 superara Nelson Pereira dos Santos num concurso promovido pelo Instituto Cultural Ítalo-brasileiro para ser bolsista no Centro Experimentale di Cinematografia, em Roma – viu, na época, ruir seu projeto de filmar Vidas Secas. Chegou a fazer uma viagem exploratória pelo Nordeste, em parceria com a Sul Cinematográfica e a Brasil Filmes, mas logo em seguida esta empresa fechou as portas e o projeto foi abortado. Fundou então a Lince Filmes, onde inicialmente dedicou-se às mais diversas funções, inclusive a direção de filmes publicitários, e depois, com o crescimento da empresa, dedicou-

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se à função de administrador geral, afastando-se definitivamente da realização audiovisual. 136 Nos anos 1970, com a empresa consolidada, começou a investir na produção de alguns longas-metragens, sendo o primeiro deles o ousado projeto de Roberto Santos, Vozes do medo (1970), do qual trataremos no capítulo 3. De acordo com Simões (1997), as relações entre Santos e Mêmolo se estenderam até a morte de Roberto em 1987, mas foram sempre conflituosas:

Em menos de cinco minutos de conversa estavam discordando […] Roberto cobrava de César mais empenho na questão geral do cinema e o outro defendia sua posição de empresário. […] Em perspectiva percebe-se hoje que Roberto deu uma grande contribuição à Lynx, dirigindo filmes que foram decisivos no processo de decolagem da empresa, e por outro lado a Lynx retribuiu funcionando como uma espécie de segundo lar que ele frequentou até os últimos dias para conversar ou discutir algum filme, inclusive Quincas Borba [último filme de Roberto, de 1986], que foi montado na moviola da empresa. (SIMÕES, 1997, p.62-63).

Outro filme com participação de Roberto Santos e que contou com produção da Lynx Filmes foi Contos eróticos (Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Palmari e Eduardo Escorel, 1977). Falando sobre o episódio que dirigiu para esse filme, Arroz e feijão, Roberto Santos declarou: “Mesmo dentro da proposta industrial de fazer filmes, consegui junto com o César [Mêmolo] – meu amigo, inimigo leal – realizar Arroz e feijão dentro de minhas convicções” (SANTOS, 1979 apud FUTTEMA (Org.),1982).137 Quanto ao trabalho com comerciais, Roberto Santos contabilizou entre 1958 e 1963 cerca de 150 filmes publicitários, além de documentários institucionais como o já citado Primeira chance (1959), realizado para o governo do estado de São Paulo138 Em 1965 consegue voltar ao longa-metragem com A hora e a vez de Augusto Matraga, cuja produção se dá num esquema próximo ao Cinema Novo, conforme tratado no capítulo anterior, e realiza em seguida As cariocas (3º episódio, 1966), O homem nu (1968), Vozes do medo (1970) e Um anjo mau (1971), com diferentes esquemas de produção. Nos anos 1970, com a conjuntura cinematográfica cada vez mais polarizada, tendo, de um lado, os filmes “cultos” dos egressos do Cinema Novo que mantinham ascendência sobre o Estado e, de outro, os filmes de baixo custo com enfoque eminentemente comercial produzidos na Boca do Lixo, Roberto Santos trabalha para a televisão e também retorna à publicidade, contabilizando mais

136 Cf. Mêmolo Jr. (197-). 137 Contos eróticos surgiu a partir da proposta de levar para o cinema os textos ganhadores de um concurso promovido pela revista masculina Status. Roberto Santos escolheu o episódio Arroz e feijão por tratar do “homem comum”, figura privilegiada em sua filmografia. 138 Cf. Currículo Roberto Santos (acervo Cinemateca Brasileira) e Simões (1997).

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de 300 comerciais, conforme mencionamos. Em entrevistas da época, é patente seu tom amargurado e auto-justificativo, expressando sua frustração com o afastamento do cinema, ainda que, conforme consta em seu currículo, tenha conquistado prêmios nos Estados Unidos e México com comerciais realizados para Ducal e Clube Lojistas Gang entre 1974 e 1975139. Em uma dessas declarações, o cineasta explica que, diante da necessidade de fazer publicidade, ele buscava ao menos um aprendizado técnico, tendo sempre em vista o fazer cinematográfico: Eu me defendo assim: de cada trabalho desse tipo eu faço uma pesquisa pro meu trabalho de cinema. Como é que corta, o tempo, o ritmo, o som, o gesto, e inclusive, o que seria uma dramaturgia nesse sentido. Mas eu sei que posso fazer outras coisas, e acho muito mais importante um filme em que consigo dizer alguma coisa, ou um documentário importante. Tudo é mais sério do que aquelas porcariazinhas. (SANTOS, 1976, p.24).

O discurso de Roberto Santos vai ao encontro das considerações de José Mário Ortiz Ramos (2004, p.93-94) que destaca duas dimensões na relação entre diretores de cinema e publicidade: de um lado, a dificuldade de aceitação por parte dos cineastas da dinâmica própria da publicidade, pautada num excesso de detalhismo e na inglória tarefa de tornar sedutoras as mercadorias, o que se choca com as expectativas culturais daqueles que têm com a imagem uma relação de sentido diversa; e, de outro lado, a dimensão de apuro técnico como um fator visto com positividade pelos realizadores que têm na atividade a possibilidade de exercício e aperfeiçoamento contínuo do ofício. Esse aperfeiçoamento técnico se dá não apenas no ponto de vista do “saber fazer” mas igualmente no âmbito material da importação de equipamentos mais modernos. Se no início havia também na publicidade muita improvisação, com a necessidade de soluções inventivas para a superação da precariedade, como comenta Ramos (2004, p.66), com o aumento da demanda, crescem os investimentos e as empresas elevam progressivamente o seu patamar técnico da produção, o que fez com que os comerciais por vezes fossem os conteúdos de melhor qualidade técnica da televisão brasileira. Esse processo criou também uma outra estrutura e aparelhagem para o cinema, como reconhece o próprio Roberto Santos:

Todo mundo despreza muito esse tipo de cinema, sem se dar conta do quanto foi importante essa produção contínua de filmes publicitários. Importante não apenas enquanto mercado de trabalho, mas na própria evolução de linguagem do cinema brasileiro […] a televisão passou a consumir mais e mais filmes de propaganda, o negócio dava lucro, então as firmas começaram a progredir, alugar ou construir estúdios e – o que foi fundamental – começaram a importar equipamentos. E equipamentos novos, refinadíssimos, leves, completos. […] O meu Augusto

139Cf. Currículo Roberto Santos. Acervo Cinemateca Brasileira. O documento não especifica quais prêmios.

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Matraga é filho direto dessa verdadeira revolução de linguagem em que implicou a importação de novos equipamentos no Brasil. E pra montar um filme de repente surgiram as moviolas horizontais, trazidas pelas empresas de jingles, que triplicavam os recursos dos velhos olhos-de-boi (moviolas verticais) da Vera Cruz... (SANTOS apud GALVÃO 197-, p.74).

Seguindo pelo exame das trajetórias, Sérgio Muniz é o único de nosso conjunto de cineastas com formação específica em publicidade, tendo frequentado a Escola Superior de Propaganda (atual Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM). O seu caminho de certa forma é inverso, passando da publicidade ao cinema, não fosse por uma primeira participação, anos antes do ingresso na faculdade, como assistente de câmera no documentário A casa de Mário de Andrade (1954) de Ruy Santos. O contato com o cineasta se dá a partir de um primo de Sérgio, o dramaturgo Bráulio Pedroso que, assim como Ruy, estava vinculado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Dessa época, Muniz (2013) se recorda que travava contato com outros cineastas ligados ao Partido Comunista, como Rodolfo Nanni e Nelson Pereira dos Santos. Ele, porém, não conseguiu, ingressar no meio cinematográfico e, após empregar-se numa instituição bancária e no departamento legal de um frigorífico, ingressa, então, por sugestão de um amigo, na Escola Superior de Propaganda em 1959, de onde é convidado por um professor para trabalhar numa agência, a Denison Propaganda. A partir daí, trabalha também em outras agências de publicidade, como a Alcântara Machado, a Multi Propaganda, a Proeme e a Documental, esta dos (ex-)cineastas Galileu Garcia e Agostinho Martins Pereira. Sua relação mais intensa com a publicidade se dá de 1959 a 1963, período em que atua sobretudo como “contato”, intermediando a relação entre agências e clientes e não na realização de filmes publicitários visto que ainda não tinha experiência como diretor de audiovisual. Em 1961, enquanto trabalha com publicidade, ingressa na Faculdade de Ciências Sociais, mas confessa que não conseguia acompanhar as aulas com assiduidade e abandona o curso para dedicar-se mais ao trabalho. Objetivava juntar recursos suficientes para viver um ano sem preocupações financeiras e poder retornar ao cinema que permanecia no seu horizonte. Consegue atingir essa meta e aceita o convite para trabalhar como diretor de produção do longa de ficção Os corumbas de Ruy Santos, baseado no romance homônimo de Amando Fontes sobre a trajetória dramática de uma família operária. Em 1964, estavam na Bahia para início das filmagens quando veio o golpe civil- militar, que provocou o aborto do projeto. Muniz retorna então à publicidade, trabalhando na Documental até o encontro com Thomaz Farkas e o ingresso na produção de documentários que marcariam sua trajetória. Embora tenha continuado trabalhando na Documental por

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algum tempo, em paralelo à produção dos primeiros filmes ligados a Farkas, suas atividades vão se desvencilhando da publicidade e se ligando mais efetivamente ao cinema. Outro cineasta que, como Muniz e Roberto Santos, esteve ligado à publicidade no início dos anos 1960 é Renato Tapajós. Tapajós (2015) relata que trabalhou na Lynx filmes no início de sua carreira, em torno de 1963, como estagiário e a seguir como diretor de filmes comerciais, vínculo que durou cerca de um ano até ser despedido visto que seu trabalho não se enquadrava nos parâmetros exigidos: “claro, eu tava interessado em documentário, eu tava interessado em outras coisas e isso acabava aparecendo no meu trabalho publicitário. Os diretores da empresa não gostaram e eu acabei sendo despedido mesmo.” (TAPAJÓS, 2015). A relação dele com a publicidade, entretanto, não se encerra aí. Foi o emprego em uma agência de publicidade, a Maithili, que permitiu a Tapajós obter a liberdade condicional para sair da prisão em 1974. E, no início dos anos 1980, ele trabalhou também, durante quatro ou cinco anos, na agência Paulo Suplicy Comunicações. Francisco Ramalho Jr. igualmente realizou filmes publicitários e institucionais em meados dos anos 1970 e, principalmente, no início dos anos 1980 em decorrência da crise vivida por sua produtora, a Oca cinematográfica, após o fracasso comercial de seu filme Paula, a história de uma subversiva (1979) e de Os amantes da chuva (1980) de Roberto Santos do qual foi produtor. Ramalho (2015) explica que, embora sua produtora (fundada em 1975) tenha realizado muitos filmes publicitários, ele, particularmente, dirigiu poucos deles pois não tinha o currículo exigido como realizador de publicidade:

Fiz, mas muito pouco. Fazer pouco não é que eu não queria fazer. A Oca durante um período fazia publicidade e eu não conseguia dirigir nenhum filme. O problema na publicidade é que a agência que escolhe o diretor quer o chamado “rolo” do filme de publicidade que o diretor fez. Eu não tinha “rolo”. Eu tinha não tinha “rolo” , eu tinha milhares de “rolos” de longa-metragem, mas não tinha nenhum de publicidade, entende? Eu me lembro que eu fiz uma publicidade com o Maguila, aquele lutador de boxe e depois fiz um outro com Os trapalhões... não me lembro que produtos eram. Daí fiz documentários de publicidade, assim documentários institucionais, um sobre fertilizantes, que eu rodei em uma porção de lugares filmando propriedades que usavam fertilizantes... o filme era pra Ultrafértil, se não me engano, um outro sobre motores de barco, são vários filmes que foram feitos e morreram na vida, né? (RAMALHO JR., 2015).

A Sabadin (2009, p.101), Ramalho explica que o fato de não ter um portfólio de filmes publicitários fazia com que restassem para ele os piores trabalhos: “sobrava pra mim a escória da escória, aqueles filmes que ninguém queria fazer, aqueles em que o diretor desistia em cima da hora, filmes de varejão, etc. Naquele período, eu estava batendo bola onde quer

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que aparecesse uma bola.” (RAMALHO apud SABADIN, 2009, p.101). Dentre os sócios da Oca, aquele que mais dirigiu filmes publicitários foi possivelmente Sidnei Paiva Lopes, que seguiu carreira na área, inclusive trabalhando como freelancer para a firma de publicidade do cineasta Luiz Sérgio Person, de quem trataremos adiante. Além dos filmes publicitários, institucionais e longa-metragens, Ramalho (2015) esclarece que a Oca se mantinha da realização de curta-metragens para venda aos cinemas que buscavam cumprir a Lei de Obrigatoriedade do Curta, atividade que tinha retornos financeiros e que ao mesmo tempo proporcionava a realização de projetos interessantes como aqueles dirigidos pelo futuro diretor de telenovelas Jayme Monjardim que fez uma série de documentários sobre a cidade de Recife e arredores. A Oca tinha ainda relações indiretas com a publicidade por meio do contato com a produtora de comerciais FilmCenter, de Sílvio Bastos e Enzo Barone, que era estruturalmente mais sólida e chegou a emprestar negativos e equipamentos para a Oca, além de atuar como coprodutora do documentário Nordeste: Cordel, Repente e Canção (Tânia Quaresma, 1975), produzido por Ramalho. Por fim, trataremos de Person que, diferentemente dos demais, chegou a ter sua própria, e bem sucedida, empresa de filmes publicitários. O ingresso do realizador de São Paulo, Sociedade Anônima na propaganda deu-se após o fracasso de Panca de valente (1968), filme de pretensões comerciais realizado como uma forma de se conseguir recursos para a realização de A hora dos ruminantes, adaptação do romance homônimo de José J. Veiga, cujo roteiro fora escrito logo após o lançamento de O caso dos irmãos Naves (1967). O fracasso de Panca de valente aborta as pretensões cinematográficas de Person, contribuindo também para o encerramento da distribuidora RPI e, conforme diversos depoimentos daqueles que conviveram com o cineasta, ele passa por uma fase bastante difícil. Em suas próprias palavras: “Nesse momento eu estava reduzido a zero, sem dinheiro, com uma filha, morando num cubículo e eu tinha que recomeçar tudo [...]” (PERSON in LABAKI, 2002, p.31). Nesse contexto, ele consegue emprego comissionado na empresa produtora de comerciais de um amigo, não como realizador de filmes publicitários e sim como vendedor dos filmes às agências. Ele mesmo, assim descreve tal ocupação: O ex-cineasta, premiado internacionalmente, grande sucesso, com longa-metragem e tal, era então um vendedor com pastinha embaixo do braço. Ficava nas antessalas dos mestres, dos gênios da publicidade. Todo mundo sabe disso, que não existe um publicitário que não seja gênio, não é verdade? E esperando às vezes horas para apresentar o repertório da firma, entrar em concorrência com uma porção de gente. [...] Eu era muito mal tratado nessas antessalas, esperava, as pessoas riam de mim.‘Olha lá o cara que fez São Paulo S.A., Naves e agora vendedor de filmes’. (PERSON in LABAKI, 2002, p.32).

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Person, entretanto, foi progredindo, deixou o trabalho com vendas e ingressou na produção, em parceria com Glauco, dos próprios filmes publicitários por meio de sua produtora Lauper. Ainda em 1969 recebeu, dos cronistas publicitários de São Paulo, prêmio de melhor comercial de cinema 'Casa Zacharias'. 140A produtora foi crescendo no mercado e ampliou sua estrutura que, segundo Glauco, chegou a ser “uma estrutura muito grande, com sala de projeção, sala de montagem, um pequeno estúdio e sala de reunião” (LAURELLI apud JESUS, 2007, p.166). De acordo com Person: “A coisa foi crescendo, foi se tornando uma indústria, no final eu já tinha uma empresa com 24 pessoas trabalhando.” (PERSON in LABAKI, 2002, p.32). A empresa contava com mais de 400 filmes141 no currículo, incluindo campanhas publicitárias importantes, como a do uísque Old Eight e a do Café Pelé, a qual exigiu uma viagem à Guatemala para gravar com o jogador de futebol.142 Para o lançamento da margarina Doriana, segundo Glauco, realizaram nada menos do que “115 filmes, com duração de 30 segundos a 1 minuto cada. Foi um trabalho imenso, com entrevistas feitas em supermercado, uma loucura”. (LAURELLI apud JESUS, 2007, p.167). Foi quando a empresa estava no auge que Person resolveu abandonar tudo. Segundo ele: “Então um dia eu acordei e disse pro meu sócio: ‘Olha, amanhã nós temos que fechar essa firma, pois ela já está se tornando uma indústria e realmente nós vamos morrer aqui fazendo filmes de trinta segundos’”. (PERSON in LABAKI, 2002, p.32). As versões que se tem sobre o episódio revelam uma atitude não tão ponderada e racional, como descreve Person, mas impulsiva e explosiva – características que, de acordo com aqueles que conviveram com ele, eram traços de seu temperamento. Em diferentes palavras, Glauco Laurelli, Carlos Reichenbach143 e Sidnei Paiva Lopes144 relatam que num dia 30 ou 31 dezembro, possivelmente do ano de 1972145, Person bebeu alguns uísques a mais e resolveu

140 Cf. MOSTRA (1988). 141 Laurelli declara “fizemos 400 ou 600 comerciais” (apud CAMPOS JR., Plácido de; MORAES, Carmelita de (Orgs.), 1986a, p.50). 142 Cf. Laurelli apud Jesus, 2007, p.167. 143 Ver depoimentos de Glauco Laurelli e Carlos Reichenbach ao filme Person (Marina Person, 2006) e de Laurelli na biografia organizada por Jesus (2007) e a CAMPOS JR., Plácido de e MORAES, Carmelita de (Orgs.), 1986a, p.50 e 51. 144 Cf. Depoimento de Sidnei Paiva Lopes a CAMPOS JR; MORAES, 1986a, p.58-59. Sidnei foi sócio da Tecla Produções Cinematográficas com João Batista de Andrade e Francisco Ramalho Jr; com a Tecla integrou a distribuidora RPI e, em meados dos anos 1970, voltou a se associar a Ramalho Jr. na nova produtora Oca Cinematográfica. Trabalhou bastante com publicidade, tendo realizado trabalhos como freelancer para a Lauper de Person. 145 Presume-se ser esta a data pois segundo declarações de Person (In: Labaki, 2002, p.33) e de Laurelli (apud Jesus, 2007, p.168-169 e Campos Jr.; Moraes, 1986a, p.51), ele viajou para os Estados Unidos logo após o episódio na Blimp,sendo a viagem datada de 1973.

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telefonar para todas as agências que eram clientes de seus filmes publicitários descarregando seu descontentamento em palavras de baixo calão. Depois do episódio, Glauco não teve alternativa senão encerrar as atividades publicitárias da firma.146 Person viaja para Nova York, onde seu filme O caso dos irmãos Naves tinha encontrado notável recepção, e tenta conseguir produção para A hora dos ruminantes. Não conseguindo, no retorno ao Brasil resolve enveredar por outra área: o teatro, fundando com Glauco, o Auditório Augusta, casa de espetáculos na qual dirigiu peças como Huis Clos de Sartre que ele mesmo traduziu. O “célebre” episódio dos telefonemas de desabafo que marca o encerramento das atividades publicitárias de Person ocorreu na Blimp Film, empresa de Carlos Augusto de Oliveira, Guga – irmão do diretor da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni –, grande produtora de publicidade e que passaria a realizar audiovisuais para televisão, como os programas do Globo Repórter dos quais trataremos adiante. Nessa época, de acordo com Sidnei Paiva Lopes147, reuniam-se por lá com frequência os cineastas Roberto Santos, Maurice Capovilla, Anselmo Duarte, Guga, Person e o próprio Sidnei, e lá tratavam de um projeto que realizariam juntos: o filme Os sete pecados capitalistas. John Herbert – que seria um dos sete diretores ao lado de Person, Capovilla, Roberto Santos, Anselmo Duarte, Guga e Olivier Perroy – explica o teor do projeto: “Todas as histórias seriam ligadas a algum aspecto negativo que o dinheiro impõe à vida das pessoas”. (HERBERT apud BARBOSA, 2004, p.87). Era um projeto de sátira crítica ao capitalismo e à publicidade – como se evidencia nos roteiros dos episódios “A livre iniciativa”, de Person, e “A publicidade”, de Lauro César Muniz, depositados na Cinemateca Brasileira148 – realizado, porém, de certa forma no âmbito daquilo que se critica, se considerarmos sua ligação com a Blimp Film e o próprio momento publicitário vivido pela produtora Lauper. De acordo com John Herbert (197-), quatro episódios chegaram a ser filmados, faltando os de Person, Roberto Santos e Anselmo Duarte, o que impediu a conclusão do longa. O episódio concluído de John Herbert chamou a atenção de Aníbal Massaini por seu conteúdo erótico – um engenheiro da Transamazônica em seu

146 De acordo com o relato de Glauco e Jesus (2007), a Lauper continuou aberta até a morte de Person, mas com o fim das atividades publicitárias passou a funcionar em uma nova sede, menor. 147 Sidnei Paiva Lopes a CAMPOS JR; MORAES, 1986a, p.58-59. 148 Na Cinemateca Brasileira encontra-se argumento/roteiro, de três episódios: “A publicidade”, de Lauro César Muniz; “A herança”, de Sérgio Porto e “A livre iniciativa” de Person. “A publicidade” tem no centro da narrativa uma agência de publicidade, a P.C.B. – Publicidade Comercial Brasileira, que recebe uma encomenda para realizar uma campanha de última hora retratando operários otimistas. Os diretores da agência são todos estrangeiros e só falam em inglês, mas todo processo criativo na verdade vêm do assistente, Bené. Já “A livre iniciativa” previa uma espécie de continuação de São Paulo S.A, com o empresário Arturo, arauto do nacional- desenvolvimentismo, em crise e incitado a vender sua fábrica a uma multinacional. Depois de muito relutar, coagido pelas despesas de sua amante Ana, ele vende a fábrica e o filme se encerra com os dois dançando alegremente ao som do “iê iê iê”.

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retorno à “civilização” encontra uma prostituta que recebe por cartão de crédito – e foi incluído na pornochanchada de três episódios Cada um dá o que tem (Adriano Stuart, John Herbert e Sílvio de Abreu, 1975). E, assim, o círculo se fecha na Boca do Lixo!

2.3 Televisão: brechas e contradições

[...] buscar na TV uma forma de trabalho, comunicação de massa [...] maneira de expor e auto- conhecimento. Eu viajei o Brasil todo fazendo umas merdas de filmes que não eram nada do que eu queria fazer, mas de uma certa forma era um pouco daquilo que estava tentando. Inclusive na crença de que a presença da gente na TV poderia transformar aquela máquina infernal. (CAPOVILLA, 2001 [1981], p.83).

Surgida em 1950 na capital paulista, em momento paralelo ao da fundação das grandes companhias cinematográficas, a televisão a princípio não estabeleceu maiores relações com o setor. Em sua origem, a televisão brasileira estava ligada sobretudo ao rádio, em termos de linguagem e de absorção de mão-de-obra. E foi por meio da publicidade que os profissionais do cinema começaram a se inserir na televisão, numa época em que a programação televisiva era realizada ao vivo e em condições técnicas muito precárias. Os filmes publicitários, por sua vez, eram, conforme Rafael Santos (2003, p.180), realizados em película 35mm e convertidos para 16mm para adaptação à televisão e durante algum tempo tornaram-se os conteúdos com maior qualidade técnica da televisão brasileira, conforme já mencionamos. Dos cineastas de nosso conjunto, Person foi o único que trabalhou na televisão em seus primórdios quando, ainda muito jovem, atuou como ator, adaptador e diretor de teleteatro nas TVs Tupi, canal 4, e Record, canal 7, entre 1955 e 1958. A carreira artística de Person iniciara-se antes ainda quando constituiu na adolescência um grupo de teatro amador juntamente com os futuros diretores teatrais Flávio Rangel e Antunes Filho, sendo que a relação com a TV se dá por meio deste último que o convida para trabalhar a seu lado na TV Tupi. Um outro amigo de mocidade de Person que estabeleceu relações estreitas com a televisão foi o músico Cláudio Petraglia, igualmente inserido na Tupi. Roberto Santos, por sua vez, tem suas primeiras relações de trabalho com a TV em 1967 quando dirige, para a TV Record, o programa Disparada, protagonizado pelo cantor e compositor Geraldo Vandré que fora o compositor da trilha sonora de seu A hora e a vez de Augusto Matraga (1966). A atração aproveitava o sucesso conquistado pela canção Disparada no Festival da Música Popular Brasileira de 1966 mas durou apenas quatro programas, sendo interrompida por divergências entre Vandré e a emissora, segundo informação de Capovilla

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que foi assistente de Roberto na empreitada (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p. 167). Os dois filmes seguintes de Roberto, o episódio para As cariocas (1966) e O homem nu (1968), têm ligação indireta com a TV, pois foram produzidos pela Wallfilme, de Wallace Simonsen, da TV Excelsior. E, em 1972, o cineasta volta a trabalhar na TV quando realiza para a TV Cultura, canal 2, a série Personagens do cinema brasileiro, com 26 programas. Até 1976 realiza outros programas para a TV Cultura: Caminhos do Curta Metragem, 12 programas; Ubatuba, documentário de 25 minutos; Raízes de luz e sombra, 14 programas, um deles sobre o cineasta Humberto Mauro e outros sobre figuras como Castro Alves e Euclides da Cunha; Terra e gente no curta-metragem brasileiro, 14 programas; O poeta e a cidade, 10 programas de 25 minutos cada, com abordagem poética sobre diversas facetas de São Paulo; e Asas de terra, 6 documentários de uma hora cada, “sobre gente”, como ele descreve149, dois sobre inventores populares, dois sobre circo e dois sobre artesãos. O site “Cineasta Roberto Santos”150 lista ainda os programas Cidade dos meus amores, série sobre cultura popular nos arredores de São Paulo, e O grande momento: 30 anos depois como programas realizados para a TV Cultura.151 É possível que estes últimos tenham sido realizados depois de 1980 pois não constam no currículo de Santos depositado na Cinemateca Brasileira que tem como data final 1980. Roberto realizou ainda audiovisuais para a TV Globo sobre os quais há escassas e por vezes divergentes informações. O documentário Terceira classe – Atlântico-Pacífico (Os imigrantes) realizado em 1973 com produção da Blimp Film para o programa Globo Shell da TV Globo está listado em seu currículo mas, conforme Simões (1997, p.172), foi motivo de divergências entre o cineasta e os responsáveis pelo programa que numa pós-edição alteraram substancialmente a sua concepção do tema o que resultou num pedido para retirarem seu nome dos créditos. Terceira classe – Atlântico-Pacífico é creditado por Heidy Vargas (2009, p.93 e 201) ao diretor Marcos Matraga, enquanto Igor Sacramento (2008, p.125) o credita ao cineasta Domingos de Oliveira. Ambos os autores, estudiosos da produção Globo Shell e Globo Repórter, valem-se de fontes primárias como jornais que publicaram notícias sobre os programas na época. Outras realizações de Roberto Santos para a TV Globo são os especiais de teledramaturgia Sarapalha, adaptação do conto de Guimarães Rosa, premiado como “melhor especial de 1975” pela Associação Paulista de Críticos de Arte e O Poço, adaptação

149 Santos apud Simões (1997, p.173). 150 Disponível em: Acesso em: 12 de novembro de 2015. 151 As informações apresentas neste parágrafo foram compiladas de diversas fontes que incluem o referido site, a biografia elaborada por Simões (1997) e o catálogo da Biblioteca Roberto Santos onde estão praticamente todos os audiovisuais realizados pelo cineastas para a TV Cultura.

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do conto de Mário de Andrade, de 1977, também para o núcleo Casos Especiais da TV Globo. Na realização deste último constam novas divergências entre o cineasta e a emissora: “Roberto queria dois atores negros, que a Globo achou melhor não incluir no elenco” (Simões, 1997, p.1975). Antes do Baile Verde, adaptação do conto de , também de 1977, é referenciado pelo site “Cineasta Roberto Santos” como realização para a Globo, enquanto o currículo o lista como produção para o Instituto Goethe dirigida à exibição na TV alemã. O mesmo documento lista ainda a realização, em 1975, de uma pesquisa sobre obras literárias brasileiras com a finalidade de adaptação para telenovelas ou especiais para a TV Tupi. De acordo com Simões (1997, p.171-74), Roberto Santos tinha uma visão bastante crítica da TV, resistia a ter o aparelho em casa e desaconselhava os filhos a assistirem à sua programação até mesmo na casa de vizinhos. Ao mesmo tempo, se mostrava empolgado com o novo modo de trabalho que a TV lhe proporcionava, permitindo-lhe, por exemplo, trabalhar com três câmeras no estúdios. É possível perceber pelos temas e quantidade de programas realizados para a TV Cultura e pelos significativos episódios de divergências com a TV Globo que Roberto estabelecia relações diferenciadas com as duas emissoras. Isso é confirmado por ele em entrevista à jornalista Ana Maria de Abreu (1979) em que explica que na TV Cultura não sofria qualquer tipo de pressão, que seu único problema ali era em relação ao orçamento, enquanto que na TV Globo ocorria o inverso, as condições técnicas de realização eram ótimas – ele podia trabalhar com equipes de cerca de 70 pessoas e era prontamente atendido em solicitações como quando demandou um violeiro e lhe trouxeram dez – mas a liberdade de conteúdo era tolhida: “eles dão condições de trabalho, mas se for falar politicamente o papo é outro. Se for fazer alguma coisa que prejudique não só o Padrão Globo de Qualidade, mas o Sistema, aí vira tudo.” (SANTOS apud ABREU, 1979). Conforme Simões (1997, p.171), Roberto Santos chegou a ser convidado várias vezes para ser contratado pela Globo, até mesmo para dirigir novelas, tendo recusado os convites por não querer mudar-se de São Paulo. É possível que sua consciência das condições de trabalho tenha influído na recusa, mas ele continuou enviando cartas para o núcleo de ficção da emissora com sugestões de histórias, como Rádio-amador, que gostaria de realizar com Antonio Fagundes como protagonista, projeto que descreveu do seguinte modo: “Há testemunhos incríveis de rádio- amadores. Cada noite é um tema. Temas da vida comum, de vida trepidante. […] Torno a repetir. Há muitos temas. Tanto quanto uma pequena grande vida pode oferecer” (SANTOS apud SIMÕES, 1997, p.176). Na TV Cultura, cujo diretor do departamento cultural era Walter

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Georg Dürst, (ex) comunista que trilhou trajetória na televisão depois de passar pelo rádio e pelo cinema152, Roberto Santos pôde desenvolver mais livremente seu gosto por histórias de pessoas simples, de “pequena grande vida” como os protagonistas da série Asas de terra. Os cineastas de nosso conjunto que, ao que consta, não fizeram publicidade stricto sensu, Maurice Capovilla e João Batista de Andrade, são os mais conhecidos pelo trabalho na televisão. Ambos tiveram vínculos de longa duração com a mídia televisiva, o que possivelmente lhes deu condições para não precisar recorrer à publicidade como área de trabalho. Maurice Capovilla conta a Igor Sacramento (2008, p.124) que seus primeiros contatos com a produção televisiva se deram ainda antes de sua assistência de direção a Roberto Santos no programa Disparada, em 1967, quando frequentava os estúdios da TV Tupi em São Paulo, assistindo à gravação de alguns programas, como musicais intimistas de que gostava. Seu primeiro trabalho para televisão, entretanto, é Terra dos Brasis, documentário de 1971 patrocinado pela petrolífera Shell e encomendado à produtora de publicidade paulista Magaldi, Maia & Prosperi. O cineasta escolhido para realização desse projeto de um grande painel sobre o Brasil inicialmente era Ruy Guerra que foi preterido diante de sua proposta de documentar o país por meio de seus rios, o que tomaria muito tempo. Capovilla, convidado a propor um novo projeto, sugere percorrer o Brasil de avião e apresentar cada região por meio do trabalho de seus habitantes. O projeto é aceito e realizado com fotografia de Dib Lufti e trilha sonora de seu irmão, Sérgio Ricardo. Os nomes desses dois últimos, ligados ao Cinema Novo e à canção engajada, somados à ideia de Capovilla de documentar a região por meio do trabalho de pessoas simples (um carregador amazonense, um vaqueiro pernambucano, um pescador cearense, um desmatador da Transamazônica etc) já sugere que o filme não seria exatamente laudatório, pleno de belas imagens como agradaria aos patrocinadores e, assim, o filme foi finalizado mas jamais exibido. De acordo com Capovilla: “o tom crítico que às vezes imprimimos, além do caráter excelsamente popular, não se prestou ao objetivo do patrocinador, que era presentear o governo Médici.” (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.143). A questão que se coloca é: se o objetivo era presentear o governo Médici, por que entregar o projeto nas mãos de cineastas com passado reconhecidamente de matizes “esquerdistas” como Ruy Guerra ou Capovilla? E o mais interessante é que mesmo após essa ocorrência, Capovilla realizará episódios para o mesmo

152 Sobre Walter Dürst ver Nilu Lebert (2009), David José Lessa Mattos (2002, p.193-199), e entrevista ao programa Luzes câmera (Dürst, 197-).

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patrocinador, no programa Globo Shell. Isso de certa forma pode ser explicado pelo fato de que a TV Globo e a indústria cultural brasileira de um modo geral se consolidava naquele momento e, por vezes, os melhores profissionais, mais preparados técnica e artisticamente, estavam dentro do espectro da esquerda. É esta a linha de argumento de Sérgio Miceli (1994) que entende que o recrutamento pela indústria cultural de profissionais com tendências políticas de esquerda foi responsável pelo sucesso dessa produção em nível nacional e mesmo internacional por estarem eles habilitados a produzir bens culturais em consonância com o gosto dos públicos. Conforme mostraram Igor Sacramento (2008) e Heidy Vargas (2009), a Globo naquele momento buscava atingir novos estratos sociais, conquistando maior prestígio cultural para suas produções na tentativa de afastar-se das críticas direcionadas à produção popularesca ou meramente reprodutora de “enlatados” estrangeiros que caracterizava, em linhas gerais, a programação televisiva. Conforme argumenta Renato Ortiz (1988), a indústria cultural absorveu de maneira despolitizante elementos do nacional-popular que marcara a produção cultural de esquerda nos anos 1960. Embora o argumento possa ser corroborado pelas próprias produções de que trataremos aqui, sobretudo aquelas do programa Globo-Shell, essa relação entre artistas de esquerda e meios de comunicação de massa comportou matizes e contradições que exigem explicações dialéticas. Marcelo Ridenti (2000) tratou desta questão tendo como referência um quadro mais amplo e Igor Sacramento (2008) se dedicou especificamente ao cinema e às produções Globo-Shell e Globo Repórter. Retornaremos a esse tema adiante. Por ora, voltamos à trajetória de Capovilla na televisão. Em 1971 estreia o programa Globo-Shell Especial que ganhou destaque na imprensa por levar à televisão cineastas, alguns dos quais de trajetória ligada ao Cinema Novo, notadamente Walter Lima Jr., Gustavo Dahl, Domingos de Oliveira e Paulo Gil Soares, que coordenava o projeto. O programa teve, conforme Heidy Vargas (2009), duas fases. A primeira vai de 14 de novembro de 1971 a 26 de novembro de 1972 e conta com quatorze documentários produzidos por uma equipe formada no Rio de Janeiro que incluía, além dos cineastas acima mencionados: Geraldo Sarno, Therezinha Muniz, Fernando Amaral, Antônio Calmon, Ismar Pôrto, todos com experiência no cinema, e o jornalista Hélio Polito. Já a segunda fase se inicia em setembro de 1972 com a exibição do documentário São Paulo, terra do amor, de Carlos Augusto de Oliveira, Guga, sócio- proprietário da Blimp Film, empresa que realizará onze documentários para o programa. A Blimp, conforme mencionamos no tópico 2.1, teve sua origem vinculada à publicidade153 e desde de 1971 passara – a convite do

153 Baseando-se em informações contidas na monografia de conclusão de curso da jornalista Váleria Balbi,

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irmão de Guga, Boni, superintendente de produção e programação da TV Globo – a realizar trabalhos para a emissora como vinhetas e aberturas de novelas e shows, produzindo posteriormente documentários para programas como Globo Shell, Globo Repórter e Fantástico. Capovilla insere-se nessa segunda fase do Globo Shell a partir da amizade com Guga, que conhecera durante as filmagens de seu filme Bebel, garota propaganda (1967), e realiza, via Blimp, dois documentários para o programa: As crianças – O poder infantil e Do sertão ao beco da lapa, ambos exibidos em 1973. O primeiro, com roteiro em parceria com o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, tratou do universo infantil, levando em consideração “a criança na família; a criança fora da família (delinquência, juizado de menores); criança e criatividade; criança e escola; criança e meios de comunicação; e criança e sociedade de consumo” (O Globo, 27/02/1973, p. 12 apud SACRAMENTO, 2008, p.124), já o segundo tratou dos universos de formação de três escritores brasileiros: Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, sendo a última parte realizada por Rudá Andrade, sob o aposto E o Mundo de Oswald. Do sertão ao beco da lapa, exibido em novembro de 1973, faz parte da transição do Globo Shell para o Globo Repórter, sendo exibido sob a rubrica, Globo Repórter Documento – Globo Shell Especial, conforme aponta Vargas (2009, p.65). Outro programa do Globo Shell citado por Vargas como tendo a participação de Capovilla é O caminho do homem (Ar, Terra e Mar), exibido em setembro de 1973, e cuja direção foi dividida com Carlos Augusto de Oliveira e Getúlio de Oliveira. Capovilla não faz referência a este filme mas menciona outros três documentários realizados por ele via Blimp Film para o núcleo de projetos especiais da TV Globo, entre 1971 e 1972, portanto, previamente à fase “paulista” do Globo Shell: “O poder jovem [que] tratava de educação, comportamento, diversão e relacionamento entre os jovens da época. A indústria da moda e Revolução do consumo, [que] como sugeriam os títulos, traziam insights dos bastidores do capitalismo florescente. (MATTOS, 2006, p.169). Heidy Vargas (2009) defende que, mais ainda do que o Globo Repórter, o programa Globo Shell foi marcado pela autoralidade dos cineastas. O programa buscava a experimentação – mais praticável devido ao horário, 23 horas, em que era exibido – e de certa forma convidou os cineastas para que exercessem seu métier na TV e trouxessem com eles o prestígio cultural que a emissora e a patrocinadora buscavam. A produção era altamente custosa e sem prazo rígido para realização, o que contrastava com os padrões televisivos de esposa de Guga, sobre a produtora, Heidy Vargas (2009, p.39, 64-65) explica que a Blimp foi fundada em 1968 por Guga e Corrêa como agência de publicidade, conquistou grandes clientes como a Chevrolet, a Ford e a Nestlé, e se tornou uma das grandes empresas paulistas do setor.

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produção acelerada. Cada programa demorava de três semanas a dois meses para ser realizado, o que exigia o revezamento de equipes para manter a exibição quinzenal. De acordo a autora: “Eram tarefas do diretor: escolher equipes, definir a narrativa e até julgar o tempo necessário para executar todo o trabalho.” (VARGAS, 2009, p.78). A produção e edição também se dava sob a coordenação dos diretores. Desse modo, os cineastas recebiam condições técnicas e tinham liberdade de trabalho para levar para a TV linguagens próprias ao cinema com enquadramentos, movimentos de câmera e formas narrativas até então inéditas no meio. No caso das produções da Blimp, os audiovisuais eram ainda mais sofisticados do que os do núcleo carioca visto que a empresa de publicidade era dotada de excelente estrutura com equipamentos mais sofisticados do que os da sede da TV Globo no Rio. Isto, além do interesse da emissora em ampliar a aproximação com o público paulista, explica a contratação da Blimp na segunda fase do programa já que o objetivo do Globo Shell era “bom gosto e ótimas imagens” nas palavras de Walter Clark, então diretor geral da TV Globo (apud Vargas, 2009, p.36). No auge da produção, a empresa de Guga chegou a contar com oito equipes, totalizando 150 profissionais entre diretores, pesquisadores, câmeras, fotógrafos e técnicos de som, conforme Váleria Balbi (apud Vargas, 2009, p.77). Capovilla relata à autora (Capovilla, 2012) e a Mattos (2006) que a Blimp tornou- se um espaço de convivência no meio cinematográfico paulista, sendo frequentada por cineastas como Roberto Santos e Person, conforme mencionamos no tópico anterior. O cineasta considera que havia bastante liberdade para realização dos documentários em decorrência da terceirização que afastava os projetos de maior dirigismo da emissora. A produtora detinha a confiança da Globo e Capovilla conta que participou da criação do famoso plim-plim, vinheta para distinguir mais claramente os programas dos comerciais. É interessante notar que a vinheta tem ligação com elementos do cinema, considerando que o som remete à marca sonora de sincronização do material de dublagem e a imagem sugeria o obturador de uma câmera, conforme explica o cineasta. Conforme argumenta Vargas (2009), as produções do Globo-Shell, assim como aquelas dirigidas por cineastas no Globo Repórter nos anos 1970, podem ser consideradas propriamente “documentários” e não “reportagens especiais”. As equipes eram montadas de acordo com necessidades cinematográficas, as filmagens eram feitas em película 16 ou 35mm e a linguagem era própria do documentário, deixando de lado a figura do repórter como intermediador da relação entre fatos e personagens. Esse caráter “cinematográfico” da produção, se foi laureado em algumas críticas jornalísticas da época, foi também motivo de

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críticas, como ocorreu com as duas principais produções de Capovilla para o Globo-Shell: As crianças – o poder infantil, criticado por Artur da Távola, jornalista de O Globo, pelo seu ritmo lento e “não televisivo” (Cf. Sacramento, 2008, p.124-125) e Do sertão ao beco da lapa. E o Mundo de Oswald criticado por Valério Andrade do Jornal do Brasil não só pelo seu ritmo lento mas principalmente por desconsiderar o nível cultural do espectador televisivo:

No fundo Do Sertão ao Beco da Lapa padece daquele velho vício que destruiu a carreira comercial de muitos filmes do antigo Cinema Novo. Pretensioso, monótono, o documentário dirigido por Maurice Capovilla e Rudá de Andrade ignora solenemente o público e o nível de informação da gigantesca platéia que tinha à disposição. A visão de Capovilla sobre Guimarães Rosa, então, só se admite em trabalho feito para uma platéia de cineclubistas. (ANDRADE, 1973 apud SACRAMENTO, 2008, p. 150).

O Globo-Shell foi, talvez, a experiência mais próxima de “cinema na TV”. Os altos custos e o ritmo diferenciado da produção, nem sempre alcançando retorno desejado de audiência foram, no entanto, inviabilizando a produção. De acordo com Vargas (2009) desde o final de 1972 o programa já passava por indefinição devido ao desinteresse da Shell em continuar apoiando o projeto. Nos últimos meses foram exibidos apenas documentários produzidos pela Blimp em São Paulo, ficando o núcleo carioca parado. Nessa conjuntura em abril de 1973 surge em caráter experimental o programa Globo Repórter que seria mais ágil, diversificando temas e contando com uma mescla de produções nacionais e adaptações de produções estrangeiras de modo a diminuir os custos de produção e incorporar aspectos mais “jornalísticos”. O novo programa era dividido em segmentos revezados ao longo das exibições: Globo Repórter Atualidade, abordando de três a quatro assuntos de destaque do jornalismo do mês; Globo Repórter Pesquisa, com temas como história, artes e personalidades de destaque; Globo Repórter Futuro, trazendo novidades da ciência e Globo Repórter Documento que se debruçava sobre assuntos brasileiros, nos âmbitos da cultura, arte e esporte, adotando características de documentário. O programa Globo-Shell continuou sendo exibido nesta última faixa de programação sob a rubrica Globo Repórter Documento – Globo-Shell Especial até 27 março de 1974, quando saiu definitivamente do ar. O último programa inédito da série, entretanto, foi Festas populares dirigido por Guga e exibido em 25 de dezembro de 1973. Quando se fala do Globo Repórter dos anos 1970, por vezes, tem-se a impressão de que era um programa no qual os cineastas tinham preponderância. Essa impressão se disseminou sobretudo a partir da Retrospectiva Cinema na TV - Globo Shell Especial e Globo

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Repórter, durante a 7a Mostra do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em 2002 que foi fonte de inspiração para trabalhos como o de Igor Sacramento (2008) e Heidy Vargas (2009), conforme assumem esses autores. Entretanto, se isso foi verdade para o Globo Shell, no caso do Globo Repórter, percebe-se, observando as tabelas com levantamento dos programas elaboradas por Ana Cláudia Resende (2005) e Heidy Vargas (2009), que, embora as produções dos cineastas tenham se destacado, na atualidade e mesmo na imprensa da época, o “grosso” da produção do programa era constituído por reportagens jornalísticas e sobretudo por adaptações de produções estrangeiras, algumas constituindo simples traduções de documentários produzidos por emissoras como a britânica BBC ou a italiana RAI, aos quais, em alguns casos, eram incluídas cenas e entrevistas nacionais. Como exemplo temos o primeiro programa do formato, Vietnã, o preço da paz, realizado por Paulo Gil Soares – coordenador do Globo Shell e do novo Globo Repórter – a partir de materiais de arquivo, texto e entrevistas, formato que se repetiu em Ascensão e queda do III Reich. Temas como Mistério da parapsicologia, Deuses do mar, Crucificação de Jesus, O homem primitivo I, II, III e IV, Os incríveis anos 1950, Vilões da natureza, Assassinos do mar, Incrível mundo dos robôs, Hollywood, fábrica dos sonhos, Yoga – O caminho hindu da sabedoria, Infância: os anos encantados, Os impressionistas sugerem programas de teor politicamente anódino constituídos sobretudo com materiais importados. Os temas históricos, entretanto, nem sempre passavam de maneira neutra, como aconteceu com Vietnã, o preço da paz que, conforme Vargas (2009, p.99-100), causou mal estar sendo acusado de apresentar uma “visão comunista da guerra”, sendo salvo pelo Marechal Odílio Denis que aprovou o programa e solicitou inclusive que fosse exibido novamente, porque seus dois netos iriam prestar o vestibular e o tema poderia cair na prova. Já em A crucificação de Jesus Cristo, a locução teve de substituir as palavras “militares” e “exército” romano por “legião” romana (Cf. Vargas, 2009, p.148). Os audiovisuais produzidos pelos cineastas representavam assim uma fração da produção do Globo Repórter, desenvolvida de certa maneira descolada do todo da produção – com exceção do cineasta que, como funcionário no núcleo carioca, realizou também o trabalho de adaptação e edição de documentários estrangeiros, o “trabalho sujo” como ele descreve para Sacramento (2009, p.159)154. Conforme esclarece Vargas

154 São interessantes as palavras de Coutinho: “Para ficar claro, é o seguinte: o Walter Lima Júnior era funcionário do Globo Repórter como eu, mas ele ficava só com a direção e com a edição de filmes, mas eu era o funcionário mesmo, fazia tudo que mandavam, fazia versões, roteiros, adaptações de filmes estrangeiros, edições. Quando me deixavam fazer os meus filmes, que foram uns cinco ou seis, eu fazia tudo, produção,

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(2009), o Globo Repórter teve inicialmente dois núcleos que de certo modo prolongavam o esquema de produção Globo Shell: um núcleo de produção no Rio de Janeiro vinculado à Divisão de Reportagens Especiais e outro núcleo representado pela produção terceirizada da Blimp, esquema que vigorou até novembro de 1974 quando inaugurou-se um terceiro núcleo, a Divisão de Reportagens Especiais de São Paulo, passando todos os três núcleos à subordinação do Departamento de Jornalismo da Rede Globo, chefiado por como diretor de jornalismo. Esta “segunda fase”, de acordo com a autora, durou até maio de 1978, sendo sucedida por um novo período que vai até março de 1980 e é marcado pela saída da Blimp Film, permanecendo os núcleos carioca e paulista; e uma última fase que vai de de junho de 1980 até maio de 1983 e é caracterizada pela centralização da produção no Rio de Janeiro que esporadicamente contratava produtoras independentes. Após 1983 o programa muda sensivelmente de formato, deixando de ser feito em película e passando definitivamente para as mãos dos jornalistas, tendo à frente dos vídeos a figura do repórter. Os cineastas de nosso conjunto tiveram relações distintas com o Globo Repórter a depender do período e núcleo no qual trabalharam. Capovilla de certo modo prolongou o trabalho iniciado no Globo Shell, realizando documentários via Blimp Film. O primeiro deles foi Bahia de todos os santos, exibido em 1974, baseado em . Conforme ele relata a Sacramento (2009, p.152-153), havia nesse momento maiores influências do departamento de marketing da emissora, o que era um fator limitante, embora não impositivo, de acordo com sua avaliação. Este filme em específico contou com apoio do governo estadual baiano e recebeu inserções de propaganda. Na mesma viagem à Bahia, o cineasta realizou dois trabalhos para o Fantástico que, segundo ele, nunca foram integralmente exibidos: Cantoreador do Nordeste sobre o compositor Elomar cujo bode Orelana inspirou o personagem de e o outro, essencialmente uma entrevista com um homem que dizia ter assistido a um “baile do demônio” com dançarinos suspensos no ar.155 Também em 1974 o cineasta faz a coordenação geral de Os pampas segundo Érico Veríssimo, outra produção da Blimp para o Globo Repórter, dirigida por Marcos Matraga. E em 1975 realiza seu trabalho direção, do começo ao fim. E eu era funcionário. O João Batista era funcionário do Globo Repórter de São Paulo, mas ele também só dirigia filmes, eu acho. Mas eu era funcionário, tinha que fazer tudo, no dia a dia, eu tinha que agüentar o trabalho sujo, o que era um absurdo. Em São Paulo, tinha uma coisa especial que era o Guga, e o Guga é o irmão do Boni e tinha toda essa proteção especial que você pode imaginar. […] Mas eu tinha que conviver diariamente com aquilo lá, com o que pode e o que não pode, com o assim e o assado. Era um trabalho miserável. Então, eles, de São Paulo, tinham mais tempo para trabalhar; a gente, não. Em cinco ou seis dias tinha que estar tudo pronto para ir pro ar. Em geral, além disso, eram trabalhos feitos num padrão de orçamento muito mais rígido. O negócio com o Guga era em outro ritmo, com muito mais liberdade, sem aquela pressão toda.” (COUTINHO 2007 apud SACRAMENTO, 2009, p.159, grifos nossos). 155 Cf. Mattos, 2006, p.177.

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mais conhecido para o programa, O último dia de Lampião, produção vultosa, realizada pela Blimp, contando com depoimentos inéditos de remanescentes do cangaço e das “volantes” e trazendo uma reconstituição do cerco final a Lampião com atores e dramaticidade cinematográfica. Depois dessa elogiada produção, Capovilla realiza ainda uma última produção para o Globo Repórter, via Blimp: Os homens verdes da noite, de 1977, sobre profissionais noturnos, incluindo diversos músicos, um garçom e um travesti. Cada personagem era mostrado em seu cotidiano diurno e noturno, incluindo o travesti que vivia com seu companheiro. O programa nunca foi ao ar, sendo exemplo de censura moral dentro da emissora. Paulo Gil Soares, coordenador do programa, por sua vez, nega a censura e alega que o programa deixou de ser exibido pela sua falta de qualidade técnica que teria imprimido ao filme o tom esverdeado que seria decorrente da falta de bons equipamentos para captação noturna.156 Ainda que fosse este o motivo e o esverdeado não fosse intencional, estamos de acordo com Sacramento (2009, p.169) quanto ao fato de que os padrões estéticos e de “qualidade” não deixam de ser um tipo de censura. Encerra-se aí a relação de Capovilla com a TV Globo mas não seus vínculos com a televisão. Ainda em 1977, o cineasta realiza para a televisão francesa, Antenne 2 o documentário Raízes populares do futebol focalizando a trajetória do jogador Zico. Ao contrastar este filme com seu Subterrâneos do futebol (1964), sobre o qual voltaremos no capítulo 3, Capovilla admite que enquanto o primeiro era “crítico e polemizador”, o realizado para a TV francesa consistia numa “mirada, digamos, científica. Apenas a observação de um processo.” E completa que não pode neste caso “reivindicar plena autoria, uma vez que o filme saiu daqui pré-editado, mas foi ajustado e finalizado na França”. (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p. 91-92). Em 1979, Capovilla ingressa na TV Bandeirantes a convite de seu amigo Guga que assumira a direção de programação da emissora. O convite incluía o desafio de disputar com a TV Globo o horário das 20h para o que conceberam a televonela O todo- poderoso que trazia, de um lado, a medicina tradicional e, de outro, as curas alternativas, tendo como protagonistas um médico e curandeiro. Em entrevista da época o cineasta explicava seu projeto: “Quis completar o universo do hospital – um microcosmo da sociedade, onde convivem a dor e a alegria e as mais variadas classes sociais, com outra realidade, a da medicina não tradicional, baseada em fatos devidamente comprovados” (CAPOVILLA, 1979). A novela foi dirigida por José Marreco, com produção de Guga. Capovilla, além de redigir o argumento, supervisionava as equipes de dramaturgia, produção,

156 Cf. Soares 1999 apud Sacramento, 2009, p. 168.

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técnica, edição e finalização. Segundo ele, o projeto foi sucesso levando a audiência a 35 pontos e em sua terceira semana chegou a superar a Globo. Após quatro meses, entretanto, desentendimentos levaram Guga a sair da emissora e logo Capovilla também deixa a supervisão da novela que passa para Walter Avancini.157 O cineasta realiza ainda para a TV Bandeirantes um projeto de telefilmes retratando a cultura de diferentes regiões do Brasil a partir de escritores locais. Patrocinado pela Shell – mais uma vez a petrolífera investia no cineasta, malgrado o resultado de Terra dos Brasis – o projeto dessa vez voltava-se para filmes de ficção com formato próprio para exibição televisiva com quatro blocos definidos e previsão de inserção dos comerciais. Sob o título Projeto Brasil Especial foram feitos em 1980 quatro filmes: O boi misterioso e o vaqueiro menino, retratando o nordeste tendo como inspiração a literatura de cordel; Crônica à beira do Rio, retratando o universo carioca a partir de ; O princípio e o fim, baseado em conto do gaúcho Josué Guimarães e a Mulher diaba, filmado no interior de São Paulo e retratando cortadores de cana a partir de texto de Jorge Andrade. Capovilla foi responsável pela coordenação do projeto e pela direção dos três primeiros filmes, ficando o último a cargo do cineasta Xavier de Oliveira. O projeto previa outros dois filmes que retratariam a Bahia a partir de Jorge Amado e o Centro-Oeste a partir de Bernardo Élis, mas não foram realizados. A trajetória de Capovilla na televisão se estende pelos anos 1980 com passagem pela TV Manchete, período que extrapola nosso recorte temporal. Na avaliação distanciada que faz de seu trabalho na TV, Capovilla desenha um quadro no qual a expressão autoral tem pouco espaço de atuação:

O lado ruim de trabalhar para a TV é que raramente se pode tocar um projeto pessoal, como no cinema. Por outro lado, somos estimulados a inventar uma maneira de ultrapassar a linguagem oficial. Para mim, isso sempre foi um exercício simultâneo de humildade e ousadia. Todas as vezes em que entrei num projeto de televisão, procurei colocar alguma coisa pessoal – ainda que às vezes mínima, pouco detectável – que rompesse a mesmice do veículo. (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.207).

É interessante cotejar estas declarações com aquelas que o cineasta concedeu em entrevista ao Jornal da Tarde em março de 1973 quando do início de suas relações com o meio televisivo:

[…] Como liberdade de expressão a televisão é mais aberta que o cinema. No cinema sofre-se uma censura dupla e violenta. Uma, política, oficial; e outra, particular, do exibidor, do distribuidor, que impedem a nossa comunicação com o

157 Informações coletadas na reportagem não assinada O ALÉM... (1979) e em Mattos (2006, p.183-185).

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público. Essa série de documentários é uma chance que o cinema tem de entrar na TV. É um caminho novo que não pode ser desprezado. (CAPOVILLA, 1973 apud VARGAS, 2009, p.72).

Ainda que se considere que as declarações da época possam estar marcadas por um sentido estratégico de valorização do meio em que estava ingressando, é possível que elas também expressem um genuíno, e talvez ingênuo, elemento de crença nas potencialidades daquele veículo de comunicação. De todo modo, o fato que se impõe é que as portas do cinema estavam relativamente fechadas para uma grande parcela dos cineastas e a TV aparecia como um caminho possível. Como indício significativo no delineamento do quadro da época, é bastante interessante acompanhar os termos de um debate realizado em 1981 acerca do cinema brasileiro dos anos 1970 com a presença de seis cineastas: Walter Lima Jr., Leon Hirszman, Júlio Bressane, Marcos Farias, Neville D´Almeida e Maurice Capovilla. No debate, publicado na íntegra somente em 2001 na Revista Cinemais, enquanto Walter Lima Jr. frisa como elemento marcador do cinema da década a passagem do realismo para a alegoria e a metáfora, tendo como referência os filmes do Cinema Novo, Julio Bressane discorda e defende a importância da autoconsciência do cinema em relação ao próprio cinema, afastando as concepções de arte social. Marcos Farias e Neville D´Almeida lembram o fenômeno da pornochanchada e sua relação com o público que não pode ser ignorada enquanto Leon Hirszman coloca em relevo as contradições da relação cinema-Estado numa crítica implícita à relação dos (ex)cinemanovistas com a Embrafilme. Já Capovilla expõe sua perspectiva de que a década tem como elemento decisivo a expansão da televisão e a busca de participação dos cineastas no novo canal de comunicação. É interessante que em sua argumentação o cineasta paulista convida o cinemanovista Walter Lima Jr., que também realizou trabalhos para a TV, para corroborar sua argumentação, mas não é seguido pelo colega carioca que desconversa: “isso já é papo para os anos 80” (LIMA JR. apud MONTEIRO, 2001 [1981],p. 83). Capovilla segue numa argumentação incisiva sobre a necessidade de atuação dos cineastas na “máquina infernal” da TV, conforme citamos na frase que serve de epígrafe a este tópico. Ele expõe consciência das contradições do meio que estava ligado ao poder estabelecido, mas entende que o veículo não poderia ser ignorado visto ser o canal de comunicação que atingia diariamente o público, fato que se tornava ainda mais essencial com o estreitamento dos canais do cinema. Vale acompanhar diretamente as suas palavras:

Há três revoluções no Brasil: o movimento cultural de 1922, a revolução de 1930 e o advento da TV. Artisticamente, politicamente e em termos de revolução da comunicação. Em 70 a televisão corta os nossos canais, houve uma afasia, um apego

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dos cineastas a determinados códigos e conceitos ultrapassados, estratificados, diante de uma nova realidade. Um país debaixo de uma ditadura, um veículo e uma rede de comunicação montada pelo sistema para abarcar de alto a baixo e apenas um pequeno canal de comunicação deixado ao cinema. De que maneira nós nos comportamos até agora? Ficamos nas ante-salas da Embrafilme, com a esperança de um comportamento estatal de patrocínio e de paternalismo, que não nos satisfaz e não nos realiza. Estamos ainda debaixo desse paternalismo que não transforma o mercado a nosso favor, que nos oprime e nos permite e nos determina e nos condiciona à esperança frustrada de um comportamento de coprodutor do Estado... por enquanto não nos movimentamos de uma maneira organizada para transformarmos as nossas condições de trabalho, participando ativamente de um mercado que desconhecemos, como o da televisão. Que nós desconhecemos, insisto, e que necessita urgentemente de nossa participação, de nossa criatividade, do nosso saber fazer. Que abre um canal de informação e comunicação diariamente das sete da manhã às duas da madrugada pelo menos. Nós não participamos por uma deformação cultural, preconceito em relação ao veículo, por uma fantasia de que o cinema é único, eterno, permanente. […] a aliança entre a TV e o cinema é fundamental. […] isso me parece um erro político fatal da nossa geração. (CAPOVILLA 1981 apud MONTEIRO, 2001 [1981], p.88-89).

As questões trazidas por Capovilla voltarão à pauta quando tratarmos do significado da passagem de cineastas de esquerda pela televisão; antes, porém, é necessário expor as participações dos demais cineastas de nosso conjunto nesse meio de comunicação. João Batista de Andrade inicia seu trabalho na TV ao ser convidado pelos amigos jornalistas Fernando Pacheco Jordão e Vladimir Herzog para compor a equipe do telejornal diário Hora da Notícia, na TV Cultura. O telejornal estreia em 1972 e adota um perfil ousado, debruçando-se sobre questões sociais que não eram destaque no jornalismo da época, sobretudo o televisivo. Batista produz, sob esse enfoque, inúmeros filmes curtos exibidos como Reportagens Especiais, dentre os quais ganharam destaque e sobrevida Migrantes; Ônibus e Pedreira, todos de 1973, que foram mais tarde copiados e distribuídos pela Dinafilmes (Distribuidora Nacional de Filmes) do Conselho Nacional de Cineclubes, sendo requisitados para exibição e discussão em associações de bairros, associações profissionais, sindicatos, igrejas, diretórios de partidos, centros acadêmicos etc, incorporando-se ao que ficou conhecido como “Cinema de Rua”, do qual fizeram parte outros cineastas como Reinaldo Volpato, de Pau pra toda obra (1975). Temas como as condições de vida dos migrantes nordestinos em São Paulo, os problemas dos transportes públicos e as condições precárias de trabalho emergem nesses filmes. Por vezes o que se buscava era fornecer uma outra visão sobre um fato já noticiado pelo restante da imprensa, como no caso de Migrantes cuja concepção, segundo Batista de Andrade (2002b), veio de uma reportagem de jornal que tratava das reclamações de comerciantes e moradores do Parque D.Pedro, São Paulo, contra “marginais” que habitavam sob o viaduto. O documentário apresenta os “marginais”: migrantes nordestinos em busca de emprego e melhores condições de vida do que aquelas

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vivenciadas no nordeste. O filme se constrói no embate verbal entre o imigrante e um passante paulistano de classe média, este argumentando que o migrante deveria voltar para o Nordeste e aquele defendendo seu direito de buscar melhores condições de vida. O pequeno documentário se insere assim na categoria da “dramaturgia de intervenção” que Bernardet (2003, p.78-79) identificou em Batista no seu primeiro documentário Liberdade de imprensa (1967), dramaturgia na qual o documentarista não busca a câmera “invisível”, mas a atuação sobre os eventos, criando as situações que filma.158 Outro caso de “subversão” da visão corrente, segundo Batista de Andrade (2002b), foi a abordagem da chamada “Operação Tira da Cama”, em que policiais entravam nas favelas em plena madrugada para identificação e prisão de pessoas. O cineasta relata que já tinha visto em outros telejornais imagens dessa operação rotineira e observava que as imagens captadas se colocavam do lado dos policiais, numa perspectiva que favorecia a adesão à violência. Ele então buscou construir imagens tomando os dois pontos de vistas: o dos policiais e aquele dos moradores da favela, colocando em tela as luzes que cegavam os olhos, as portas abertas a pontapés, gritos, e casas demarcadas com “X”. A população era também ouvida em depoimentos que explicavam os motivos de ali residir, em que trabalhavam etc. Na montagem articulava-se esse conjunto de imagens, exibindo um quadro em que a “questão de polícia” tornava-se uma questão social. Este documentário não foi preservado mas podemos ver em seu filme de ficção O homem que virou suco (1980), uma espécie de “reconstituição” que remete a essa descrição da atuação policial. Se nos dias atuais sabemos qual é o perfil das coberturas jornalísticas em relação as operações policiais em favelas, podemos imaginar o impacto dessa abordagem diferenciada em plena ditadura militar. Batista de Andrade (2002b) explica, entretanto, que a estratégia do jornal Hora da notícia não era enfrentar diretamente o regime, pois sabiam que se o fizessem seriam censurados; buscavam, assim, moverem-se cautelosamente pelas brechas a fim de continuarem atuando. Essa perspectiva, segundo ele, era debatida conscientemente pela equipe que buscava formas de atuação que poderiam passar incólumes. Uma delas era o uso do chamado “gancho” a partir de falas ou atuações de uma autoridade instituída. Num dos casos, por exemplo, inaugurou-se uma série de reportagens sobre a periferia de São Paulo a partir da fala do governador nomeado Laudo Natel na inauguração da Estação Elevatória de Tratamento de Esgotos. O governador foi filmado, em estilo respeitoso, dizendo que vários bairros da cidade ainda não contavam com água encanada e esgoto e que a obra visava dar

158 Em Liberdade de imprensa (1967), por exemplo, João Batista seleciona trechos de livros a respeito da situação da imprensa no Brasil, entrega-os a transeuntes e pede a eles que leiam, diante da câmera, e expressem suas opiniões.

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início à superação deste problema. A partir desse “gancho”, Batista parte para filmar a realidade da periferia, mostrando as condições extremamente precárias de vida cujos problemas iam além da falta de esgoto. Em 1973 o telejornal inaugura ainda uma seção denominada Queixas e Reclamações, na qual um microfone era deixado à disposição da população que circulava pelas ruas de São Paulo e podiam expor diretamente seus problemas e reivindicações. Embora a emissora não gozasse de uma grande audiência, o telejornal, segundo Batista conseguia elevar a audiência de “praticamente zero para números tipo três ou quatro por cento, o que podia ser classificado como sucesso” (ANDRADE apud CAETANO, 2004, p.164-165). Mas as ousadias não passaram incólumes. Depois de quase dois anos sob pressões internas e externas, censura, intervenções e ameaças, essa primeira fase do Hora da Notícia foi extinta em 1974, com a demissão do diretor Fernando Pacheco Jordão, de João Batista, de Vladimir Herzog e de outros jornalistas da equipe, como Georges Bourdoukan, no processo que se atrela às perseguições a jornalistas de esquerda e que culminam com a morte de Herzog em 1975, conforme analisado em Vlado – 30 anos depois (João Batista de Andrade, 2004). Não obstante, terem saído “de certa forma chamuscados, de uma experiência tachada de contestatória e, até mesmo, subversiva” (ANDRADE, 2002, p.93-94), Batista, Jordão e Bourdoukan foram contratados no mesmo ano para trabalhar no jornalismo da TV Globo – fato demonstrativo das contradições do momento e da mudança de postura da TV Globo que, conforme analisa Sacramento (2008), desejava investir mais na área de jornalismo e sintonizar-se com as propostas de “abertura” do governo Geisel. Evidentemente ao contratar o grupo do Hora da Notícia em 1974, a Globo sabia quem estava contratando. É possível inferir que, no contexto da “distensão” política temessem a perda da credibilidade se apresentassem nos jornais somente um Brasil “cor de rosa”. Além disso, o objetivo era conquistar espectadores mais esclarecidos, focando em estratos sociais mais altos sobretudo nos horários tardios, como esboçou-se na criação do Globo Shell, exibido às 23h, mesmo horário de estreia do Globo Repórter que após alcançar sucesso é colocado no horário das 21h com reprises aos sábados às 13h30, visando o público estudantil. Enquanto o cerne do telejornalismo da emissora continuava evitando temas difíceis, priorizando o noticiário internacional e as pautas esportivas, abria-se no Globo Repórter uma pequena janela para os temas nacionais e sociais – isso após a sua consolidação, já que o programa começara priorizando igualmente pautas internacionais, como mencionamos antes. Sob a chefia de Fernando Jordão que fora o editor-chefe do Hora da Notícia, João

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Batista de Andrade comporia ao lado de outro ex-colega da TV Cultura, o jornalista Georges Bourdoukan a Divisão de Reportagens Especiais de São Paulo, um dos núcleos de produção do Globo Repórter, como explicamos anteriormente. O trabalho do grupo, entretanto, não se desenrolava sem conflitos. Conforme relata João Batista de Andrade, o primeiro audiovisual que realizou para o programa sofreu censura interna: A batalha dos transportes, que retomava o tema abordado em Ônibus, tratando dos problemas dos transportes em São Paulo. Era ano de eleições estaduais e a central carioca que coordenava o programa não aprovou a exibição. Com as pressões do núcleo paulista e após as eleições, o filme foi exibido, mas apenas em São Paulo, o mesmo acontecendo com outro documentário de Batista, A escola de 40 mil ruas, de 1975, sobre os menores abandonados, tema que foi considerado “local”.159 Esses dois filmes foram apresentados no Globo Repórter Atualidade ao lado de outros filmes de cerca de quinze minutos, compondo um programa com temas variados. Também nesse formato, Batista realizou Bóias frias (1975), sobre os trabalhadores rurais temporários; O Brás (1975) sobre o bairro paulistano, Desaparecidos (1976), em que, partindo de um anúncio de jornal sobre uma pessoa desaparecida investigava as condições de desaparecimento de pessoas na periferia de São Paulo, incluindo cenas de delegacias com “celas superlotadas” e do Instituto Médico Legal (IML), “espécie de retrato sujo e terminal do problema”, nas palavras de Renata Fortes (2007, p.102) e Praça da Sé (1977), abordando o significado político e social da praça paulistana, de acordo com a mesma autora. Para o Globo Repórter Documento que em geral era composto de um só audiovisual de 45 minutos, Batista realizou: Mercúrio no pão nosso de cada dia (1975) (de menor duração exibido excepcionalmente junto com Poluição nas grandes cidades, produção da Blimp) e São Paulo, uma tribo de 11 milhões (1978) que, conforme Vargas (2009, p. 129) foi censurado para o dia da exibição e liberado na semana seguinte. Sob a rubrica Globo Repórter Pesquisa, igualmente um único programa de 45-50 minutos, o cineasta realizou Boa Esperança – viola contra guitarra (1976) que aborda questões em torno da tradição e do progresso a partir de um show-disputa entre violeiros e roqueiros nas comemorações do aniversário da cidade de Boa Esperança do Sul, interior de São Paulo; e uma de suas realizações mais destacadas, Caso Norte (1977) que retorna à problemática dos migrantes em São Paulo, revelando as condições sociais por trás de um assassinato entre migrantes. O filme traz inovações de linguagem ao trabalhar com atores que não apenas reconstituem os fatos de maneira tradicional mas colocam em questão as suas

159 Cf. Caetano (2004, p. 191).

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diferentes versões. 160 As tensões entre o núcleo paulista e a emissora atravessaram todo o seu percurso. Se no caso da reportagem sobre os Bóias frias (1975), por exemplo, não houve qualquer censura ou recriminação da central da Globo, não obstante as pressões de fazendeiros, conforme relata Batista (apud Vargas, 2009, p.149-150), em outros momentos o núcleo do Rio mostrava-se incomodado com as pressões da cúpula da emissora diante das pautas da produção do núcleo paulista, como relata o jornalista Georges Bourdoukan: “tinha até pena do Paulo Gil [...] eles ameaçavam, tanto que o Paulo Gil ligava para mim e dizia: ―Bourdoukan, hoje levei mais uma. Na reunião de quarta-feira a gente vai bater um papo. Vem preparado que você vai ouvir o que você não gosta.” (BOURDAUKAN, 2008 apud VARGAS, 2009, p.130). As tensões culminam na dissolução do núcleo de produção de São Paulo em junho de 1980, dando início à última fase do Globo Repórter em que há participação de cineastas. Encerrada em 1983, essa última fase é marcada pela centralização da produção no Rio e por eventuais contratações de produtoras independentes. E é como produção independente que João Batista realiza seus últimos documentários para o programa. Conforme o cineasta explica a Fortes (2007, p. 247), Caso Norte (1977) foi seu último documentário como contratado da Globo, visto que em 1978, portanto antes da dissolução do núcleo paulista, ele pede demissão da emissora depois de lançar seu longa-metragem Doramundo (1978), premiado no Festival de Gramado de 1978 como melhor filme e melhor diretor, decidindo dedicar-se mais ativamente ao cinema. Após a demissão, ele realiza, por meio de sua produtora Raiz, ainda três audiovisuais para o Globo Repórter, sendo o primeiro deles Wilsinho Galiléia (1978), realizado logo após seu desligamento como funcionário, o que indica que a compra de audiovisuais “terceirizados” começou antes mesmo da dissolução do núcleo paulista. Integralmente censurado e jamais exibido na televisão, Wilsinho Galiléia era um longa-metragem previsto para ser exibido em duas partes que reconstituíam com atores a trágica história real de Wilson Paulino da Silva, fuzilado pela polícia aos dezoito anos, depois de uma infância e adolescência marcadas pelo crime e pela violência. Assim como em Caso Norte, a ideia era desconstruir a concepção de culpabilização individual do criminoso, típica do jornalismo policial, e investigar mais a fundo as condições sociais de formação e reprodução da violência. Diferentemente de Os homens verdes da noite de Capovilla, aqui a censura não foi interna à emissora mas alvo de intervenção do governo ditatorial que não

160 Caso norte foi objeto de análise detida de autores como Fortes (2007, p. 105-111), Palha (2007, p.110-115) e Sacramento (2008, p.262-276)

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admitiu a exibição do filme mesmo após tentativas de negociação da TV Globo que propôs a transferência da exibição das 21h para às 23h, estratégia que já havia sido adotada com Seis dias de Ouricuri (1976) de Eduardo Coutinho. O que movia a emissora era, evidentemente, os índices de audiência e a aposta em temas polêmicos inseria-se neste objetivo. Adotavam-se estratégias de riscos calculados, tendo sempre como garantia um plano alternativo, os chamados programas “de gaveta”, produzidos para entrar no ar em substituição no caso de alguma produção ser vetada pela censura. Esses programas de reserva, produzidos pela equipe de redatores e tradutores do núcleo carioca, tratavam dos temas mais anódinos possíveis como relata o montador Mário Murakami a Vargas (2009): “ou era borboleta, ou era flor de não sei o que, viagem de não sei quem não sei pra onde, tínhamos sempre um de reserva, tinha que ter de três a quatro programas” (MURAKAMI 2008 apud VARGAS, 2009, p. 167). O fim do Globo Repórter com participação dos cineastas deu-se sobretudo por razões de audiência. Conforme mostram Sacramento (2008) e Vargas (2009), desde o final dos anos 1970 o programa perdia público para programas popularescos como Buzina do , exibido entre 1978 e 1982 na TV Bandeirantes no mesmo horário do jornalístico da Globo. Com sucessivas crises de audiência, o Globo Repórter passa a ser exibido sem regularidade, ficando suspenso de janeiro a março de 1982 e extinguido-se definitivamente (sob a direção do cineasta Paulo Gil Soares) em maio de 1983 para voltar em setembro de 1983 com novo formato e nova direção. As duas últimas realizações de Batista para o programa são exibidas, assim, nesse contexto de crise e é interessante notar que mesmo nesse contexto e após as tensões com o governo militar em torno de Wilsinho Galiléia (1978) o cineasta volta a ser requisitado pela emissora. Por um lugar ao sol (1981), documentário de 25 minutos, trata dos problemas da educação no Brasil, incluindo, segundo Renata Fortes (2007, p. 104) uma entrevista com o educador da pedagogia crítica , figura mal vista pelo regime militar. E 1932/1982 – A Herança das Idéias (1982), realizado sob encomenda da Rede Globo para comemoração do cinquentenário da Revolução Constitucionalista de 1932, tem 60 minutos de duração e, como afirma Batista (Andrade apud Caetano, 2004, p. 233), procurou inserir uma leitura que remetesse implicitamente à necessidade de uma nova constituição naquele momento dos anos 1980 em que se começava a discutir a luta pela Constituinte. É importante mencionar ainda que o trabalho do núcleo de Divisões de Reportagens Especiais de São Paulo não se restringia ao Globo Repórter, tendo João Batista

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realizado trabalhos para programas como Fantástico e Esporte Espetacular, alguns dois quais diretamente encomendados como O Grito em Debate (1974), realizado a pedido de Boni numa tentativa de aumentar a audiência da telenovela de Jorge Andrade, O Grito. Sérgio Muniz e Renato Tapajós também realizaram trabalhos para o Globo Repórter, o primeiro via Blimp Film e o segundo via Divisão de Reportagens Especiais de São Paulo, ambos com vínculos de menor representatividade para suas carreiras em comparação com o peso que tiveram as passagens de Capovilla e Batista pela TV. Sérgio Muniz realizou apenas dois audiovisuais, Vera cruz, fábrica de desilusões (1975) e Loucura nossa de cada dia (1977), ambos com cerca de 50 minutos cada, exibidos como Globo Repórter Documento. Em entrevista à autora (2013), Muniz relatou que antes da realização desses seus trabalhos, já participara da produção de outros trabalhos da Blimp para o Globo Repórter, como Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos, dirigido por Guga e exibido em 1974, quando propôs à produtora os temas que ele próprio gostaria de dirigir. Ele explica que essas propostas foram aceitas e realizadas sem qualquer problema no âmbito da Blimp, mas que Loucura nossa de cada dia teve problemas com o núcleo da Globo no momento da pós- produção quando, sob a coordenação do editor-chefe do programa, Washington Novaes, modificou-se substancialmente o texto final da narração, deturpando a concepção original ao se introduzir conceitos de “bem” e “mal” que não comportavam na concepção psicanalítica em que o filme estava pautado. O cineasta avalia que ocorria muita “vigilância” em torno das produções do programa e frisa que, a seu ver, as experiências interessantes que lá se fizeram foram a despeito das condições de trabalho da emissora e não por causa delas. Renato Tapajós, por sua vez, realizou Os peçonhentos (1979), Agonia da natureza (1979), As Saúvas (1979), Com quem ficam nossos filhos? (1980) e A ilha do diabo (1980). Em entrevista à autora, Tapajós (2015) conta que esteve vinculado à Divisão de Reportagens Especiais de São Paulo do início de 1979 até o primeiro semestre de 1980 e explica que o trabalho era marcado por uma certa independência, vinculada a uma vigilância constante. Sobre a escolha dos temas, ele esclarece que a equipe, tendo à frente o jornalista Georges Bourdoukan como editor de Reportagem, discutia coletivamente as propostas e elaborava uma lista que era enviada à direção do programa no Rio para aprovação. O índice de aprovação era muito pequeno, em torno de um ou dois projetos aprovados dentre uma lista de cerca de duas dezenas de temas sugeridos. Conforme explicado antes, a partir de 1978, o programa passa por uma nova fase com um controle mais estrito sobre a produção. Não à toa, o primeiro audiovisual dirigido por Tapajós foi Os peçonhentos, “sobre animais venenosos, sem

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nenhuma metáfora”, satiriza ele. O projeto seguinte, Agonia da natureza, entretanto, embora tratasse de um tema ecológico, causou tensões pois, durante as filmagens no Vale do Ribeira em busca do mico leão dourado, descobriram que a região estava sendo sondada pelos militares para construção da usina nuclear Angra 4, o que gerou telefonemas de órgãos da ditadura questionando a escolha de área. Devido ao poderio da emissora que contava com bom trânsito junto ao governo, as filmagens foram negociadas sob a condição de inclusão de uma entrevista com o Secretário de Meio Ambiente que foi atendida pela equipe paulista. As saúvas (1979) tratava das formigas da espécie título e as outras duas realizações, Com quem ficam nossos filhos? (1980) e A ilha do diabo (1980), abordaram criticamente problemas sociais. O primeiro transformou-se numa série de três ou quatro audiovisuais sobre a falta de creches públicas em São Paulo e Rio de Janeiro, tendo, segundo o cineasta, alcançado um impacto grande por tratar de um problema concreto da vida das pessoas, enquanto A ilha do diabo problematizava a proposta da Secretaria de Segurança de reativar o Presídio da Ilha Anchieta, em Ubatuba, para abrigar menores infratores. Se esses dois programas passaram sem problemas de censura interna ou externa, o mesmo não se deu com a tentativa da equipe paulista de documentar o enterro do operário Santos Dias, assassinado pela repressão policial num piquete de greve às portas da fábrica onde trabalhava. O enterro, no dia 31 de outubro de 1979, transformou-se numa grande manifestação popular pelo direito de greve e contra a ditadura militar, de modo que Bourdoukan e Tapajós consideraram-no um tema interessante para o programa e decidiram levar para o local toda a equipe técnica do núcleo paulista para registrar os acontecimentos. Antes mesmo do término das filmagens, contudo, chegaram ordens do núcleo do programa no Rio de Janeiro que, sob a alegação de que o evento era assunto para o noticiário diário e não para o Globo Repórter, exigia o envio de todo o material registrado para a sede. Desse material não tiveram mais notícias. Na avaliação do cineasta, este episódio foi decisivo para a dissolução da Divisão de Reportagens Especiais de São Paulo, ocorrida meses depois. Cabe observar, contudo, que os documentários anódinos sobre saúvas e animais peçonhentos foram realizados antes do episódio do enterro de Santo Dias, enquanto os documentários críticos sobre creches e presídio foram realizados depois, o que demonstra que o processo de censura interna era contraditório e permeado por oscilações. Entretanto, é possível considerar que as questões ligadas ao ascenso do movimento operário no final dos anos 1970 representavam, por sua atualidade efervescente, incômodo maior do que qualquer outra temática abordada no programa, tendo, certamente, contribuído para o encerramento do núcleo paulista.

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Para completar o nosso conjunto de cineastas, trataremos de Francisco Ramalho Jr.. Em entrevista à autora (2015), o cineasta esclarece que tentou integrar o núcleo de produção da Blimp Film mas não conseguiu e, assim, suas relações com a TV ficaram restritas a um episódio piloto para série televisiva que realizou a partir de edital da Embrafilme para seleção de projetos que seriam transformados em séries mediante parcerias com as emissoras de TV. Houve, no entanto, dificuldades de acordo com as emissoras, notadamente a TV Globo, e o projeto não vingou, embora vários filmes tenham sido realizados, alguns dos quais foram transformados a posteriori em longa-metragem para exibição nos cinemas. Ramalho recusou-se a fazer isto pois considerou que toda a concepção de seu filme fora pensada para a tela pequena da televisão, bem como de acordo com seu ritmo diferenciado. Caramuru (1978) é o filme de Ramalho para o projeto, focalizando a história de Diogo Álvares Correia, náufrago português que passou a vida entre indígenas brasileiros. Em parceria com João Felício dos Santos, escritor de vários romances históricos, entre os quais Xica da Silva levado às telas por Cacá Diegues, Ramalho chegou a escrever 13 episódios da série dos quais apenas o primeiro foi realizado, com 60 minutos de duração e filmagens numa reserva reserva indígena próxima à Cananeia.161 Sérgio Muniz também realizou um filme dentro do mesmo projeto da Embrafilme, Os imigrantes – Andiamo in´Merica (Sérgio Muniz, 1978), assim como João Batista de Andrade que fez Alice (1978). Ao encerramento deste tópico, cabem algumas considerações mais gerais sobre o significado da passagem dos cineastas pela televisão. Conforme Igor Sacramento (2008, p.55), os cineastas que realizaram trabalhos para a TV nos anos 1970 foram notadamente aqueles que faziam parte de um segundo círculo ou segunda geração do Cinema Novo, como Paulo Gil Soares, Walter Lima Júnior, Eduardo Coutinho, João Batista de Andrade e Maurice Capovilla, enquanto os principais nomes do movimento, Glauber Rocha162, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos163– e, podemos acrescentar, Joaquim Pedro de

161Cf. Sabadin 2009, p.82-83. 162 Glauber Rocha participou em 1979 do programa Abertura na TV TUPI, mas tratava-se de uma atividade bastante diferenciada daquela de realização de produtos audiovisuais para TV. O cineasta atuava como “apresentador” do programa, entrevistando pessoas e realizando intervenções numa performance sui generis. Conforme assinala Regina Mota, “O programa respira um ar de liberdade e experimentação”e “Não é possível identificar qualquer constrangimento de ordem institucional ou técnica do meio, na sua atuação. Ao contrário, Glauber Rocha assume o espaço eletrônico da TV brasileira para desmitificá-la. Ele acaba com o sonho da absoluta transparência e controle do real que se vinha tentando imprimir no público. Ele não tem boas maneiras nem bom tipo, quase sempre está mal barbeado, penteado, com boas e más intenções e nenhuma inocência.” (MOTA, 2010, p.138-139). 163 Exceção do núcleo duro do Cinema Novo é Gustavo Dahl que produziu para o Globo Shell , O som do povo, exibido em 1972, sobre música popular brasileira. Há que se salientar entretanto que, conforme Vargas (2009, p.85), foi o único trabalho do diretor para o programa, sendo o Globo Shell, como vimos, a experiência mais

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Andrade e Paulo César Saraceni – trabalhavam “para poder continuar fazendo cinema (no sentido de preservação da autoria, da expressão pessoal), mesmo sob os desígnios da Embrafilme” (SACRAMENTO, 2008, p.55). O lócus de realização artística e de prestígio autoral era o cinema, sendo a televisão e a publicidade geralmente consideradas formas de sobrevivência ou de ocupação temporária para os cineastas com dificuldades de realização em seu meio primário. No entanto, diferentemente da produção publicitária para a qual é difícil, notadamente para um cineasta de esquerda, encontrar outra justificativa senão a necessidade de sobrevivência, a produção televisiva apresentava-se nos anos 1970 como um espaço ainda em formação no qual seria possível certa margem de criação pessoal e, além disso, o alcance de ampla audiência popular. Assim, a questão é mais complexa do que parece à primeira vista, como demonstra o trabalho de Sacramento (2008). Ao mesmo tempo em que não se pode afirmar que os cineastas de esquerda que foram para a televisão, e particularmente para a TV Globo, foram simplesmente cooptados e inseriram-se no sistema, produzindo de acordo com os ditames ideológicos e mercadológicos do meio, também não é possível entender que eles realizaram cinema na TV e exerceram de forma plena sua liberdade de criação. O processo constituiu um permanente jogo, em que os cineastas disputaram e negociaram espaços para a elaboração de produções estética e politicamente contestatórias. Em seu trabalho sobre “Les reálisateurs communistes à la télévision”, Isabelle Coutant (2001), guardadas proporções e diferenças de contexto entre França e Brasil, coloca em foco questões semelhantes às tratadas por Sacramento (2008). A autora mostra que de 1950 aos primeiros anos da década de 1970 numerosos foram os realizadores comunistas na TV francesa. Para a autora, eles ingressaram na televisão por estarem desprovidos dos recursos necessários (capital econômico e capital social) para desenvolver carreira no campo do cinema. O campo nascente da televisão aparecia como uma “escolha de necessidade” e o engajamento político e sindical foi utilizado como um recurso para conquistar um lugar no campo artístico, reivindicando o estatuto de autor, reconhecido oficialmente em 1963. Ao organizarem-se em torno do Syndicat National dos Reálisateurs de Télévision (SNRT), esses profissionais se colocavam como criadores e recusavam o estatuto de empregados permanentes, sendo remunerados por cachê, “como os artistas por sua obra” (BOURDON 1993 apud COUTANT, 2001, p.359, tradução nossa)164.

próxima de “cinema na TV”, com alto nível de independência e prazos especiais de trabalho. 164 No caso brasileiro, havia duas situações distintas: a de cineastas, como João Batista de Andrade, que eram

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Ao mesmo tempo em que o engajamento político era utilizado pelos realizadores franceses como uma forma de conquistar legitimação num campo profissional nascente, os ideais envolvidos no pertencimento ao Partido Comunista os levavam a acreditar no potencial de uso político da televisão, que era vista por eles como um “extraordinário instrumento de cultura popular” (COUTANT, 2001, p.362, tradução nossa). A televisão se apresentava para eles como um meio que de algum modo permitiria conciliar aspirações profissionais e ideias políticas e, desse modo, se colocava para esses realizadores uma dupla tarefa: a de serem reconhecidos como criadores artísticos, com expressão autoral, e a de serem também criadores comunistas, que difundiam em suas obras ideias de esquerda. No que diz respeito à realização estética, um aspecto interessante mencionado por Coutant (2001) é o tradicional prestígio concedido às realizações de dramaturgia em detrimento do documentário, tido como um gênero menor. Em alguns casos, conforme explica a autora, os realizadores de documentário contestaram essa hierarquia misturando gêneros e incorporando a ficção. Esse é um fator interessante para se pensar o caso brasileiro, uma vez que, conforme salienta Ramos (2004), “os diretores [de cinema] foram canalizados para a produção jornalística e documental e não para o ficcional de massa, para a dramaturgia” (RAMOS, 2004, p.83). E foi justamente mesclando gêneros que cineastas como Maurice Capovilla e João Batista de Andrade conseguiram “driblar” as fronteiras da produção jornalística a que se destinavam , realizando obras audiovisuais de destaque como O último dia de Lampião (Maurice Capovilla, 1975), Caso norte (João Batista de Andrade, 1977) e Wilsinho Galiléia (João Batista de Andrade, 1978). Voltando aos franceses, no que tange à difusão das ideias de esquerda, Coutant (2001) identifica duas concepções dos realizadores acerca da relação entre o conteúdo ideológico da televisão e o papel do intelectual comunista: alguns realizadores se reconhecem a serviço da burguesia, “reduzidos ao contrabando, a passar ideias interditas com imagens autorizadas” (apud COUTANT, 2001, p.367, tradução nossa), assinalando a necessidade de se “dosar” os conteúdos para poder ser difundido; enquanto outros valorizam o seu papel de instigar a tomada de consciência para o desenvolvimento das lutas sociais. Essa questão está também presente para os realizadores brasileiros, notadamente João Batista de Andrade que é aquele que mais valoriza a passagem pela televisão, tendo afirmado que seu trabalho no programa Hora da Notícia, na TV Cultura – de certa forma

contratados da TV Globo e a de cineastas, como Maurice Capovilla, que trabalhavam como “freelancers” para a produtora terceirizada Blimp Film, e recebiam por obra audiovisual produzida.

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continuado nas realizações para o Globo Repórter – foi “o período mais rico de minha vida como cidadão e cineasta” (ANDRADE, 2002b, p.52). Em seu O povo fala: um cineasta na área de jornalismo da TV brasileira, defendido como tese de doutorado em 1998165 e publicado posteriormente pela Editora SENAC em 2002, Batista reflete justamente sobre essa experiência e tece defesa apaixonada desse trabalho que cumpriria uma importante missão: a de em pleno ápice do regime militar colocar nas telas os problemas sociais vividos pelo “povo” e propor outro tipo de abordagem jornalística dos fatos promovendo, por exemplo, “uma inversão no sentido do que é autoridade na informação […] a autoridade na informação havia se confundido com a autoridade institucional […] era preciso repor as coisas no lugar [...] o centro dramático da narrativa se deslocava para aquele que vivia – e sofria – o assunto tratado” (ANDRADE, 2002b, p.60). Na França, conforme esclarece Coutant (2001), o papel da publicidade na televisão e a submissão aos índices de audiência tornaram cada vez mais complicadas as condições de trabalho dos realizadores comunistas a partir de meados dos anos 1970, levando alguns a se afastarem do veículo e outros se adaptarem às novas regras do jogo. No Brasil, exceto pela época, não foi diferente: no início dos anos 1980, com a queda de audiência do Globo Repórter, que perdia público para programas popularescos de outras emissoras, toda equipe do programa chefiada por Paulo Gil Soares foi dispensada ou canalizada para outros núcleos e os cineastas foram substituídos pelos repórteres que deram ao programa um novo formato, conforme explicam Resende (2005), Sacramento (2008) e Vargas (2009). Ao término deste capítulo que se soma às considerações do capítulo anterior, é possível argumentar que embora a consolidação da indústria cultural no Brasil166 seja um fator que estava colocado para todos os artistas e intelectuais naquele momento, inclusive por conta da hegemonia conquistada pela TV Globo em nível nacional, os cineastas egressos do Cinema Novo e os “paulistas do entre-lugar” lidavam com a questão de maneira diferenciada. Os cinemanovistas se inseriram no “mercado” a partir da relação com a estatal Embrafilme que

165 ANDRADE, João Batista Moraes de. O povo fala : um cineasta na área de informação da tv brasileira. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. Publicado em 2002. Cf. Andrade, 2002b. 166 Apoiando-se em amplos dados sobre diversos âmbitos da comunicação/cultura, como rádio, cinema, imprensa, publicidade e televisão, Renato Ortiz (1988) argumenta que, embora nas décadas de 1940 e 1950 se observe uma expansão de empreendimentos relacionados à chamada “cultura de massa”, como o rádio, o cinema, o mercado de publicações e o surgimento da televisão, isso ainda ocorria de maneira consideravelmente localizada e precária, encontrando obstáculos para generalização no próprio estágio de desenvolvimento econômico-social do país. Assim, é somente nas décadas de 1960 e 1970 que se consolida no Brasil um “mercado de bens culturais” integrado à “sociedade de consumo” e pautado por uma racionalidade empresarial, processo alavancado pela modernização promovida pelo regime militar.

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lhes facultou em larga medida a preservação da dimensão autoral e a continuidade de suas filmografias, mesmo dentro de certos limites tácitos envolvidos, por exemplo, no objetivo comum de alcançar o grande público. Por sua vez, os “paulistas do entre-lugar” tiveram severas dificuldades de levantar recursos para seus projetos autorais, realizaram filmes sob encomenda, assim como trabalhos para a publicidade e para a televisão, e, desse modo, lidaram muito mais de perto com as contradições e os constrangimentos da indústria cultural, compelidos a realizarem seus projetos dentro de limites mais estreitos e sendo eles mesmos mão de obra dessa indústria, embora reivindicassem ser criadores autônomos. Adicionalmente, consideramos que a visão informada do interior do meio publicitário e televisivo, trouxe de alguma forma aos “paulistas do entre-lugar” elementos concretos para uma crítica que não simplesmente condena a televisão como instrumento de alienação, num discurso raso de esquerda, mas aponta os mecanismos de reificação que perpassam essas instâncias-chave do capitalismo tardio167, o que aparece em filmes como o episódio de Roberto Santos para As cariocas (1966), Bebel, garota-propaganda (Maurice Capovilla, 1967) e Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980). Sobre Bebel, o comentário é do próprio Capovilla:

Em muitos casos, eu tinha modelos de inspiração disponíveis na mídia paulista. Um pouco antes, havia passado pelos bastidores das TVs Record e Tupi, em pequenos trabalhos com Roberto Santos. As peripécias criadas por Ignacio [de Loyola Brandão, autor do livro em que se baseou o filme] não eram novidade para mim.” (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.107).

No ensaio Operário, personagem emergente, Jean-Claude Bernardet (1980a) esboça a hipótese de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e seu avanço sobre a área cultural, incluindo o cinema foram fatores determinantes para que o personagem operário surgisse com centralidade nos filmes brasileiros dos anos 1970.168 Os cineastas proletarizados – “cada dia mais despossuídos de sua aura de prestígio cultural e cada vez mais assalariados” (BERNARDET, 1980a, p. 33) – tornar-se-iam mais aptos a “considerar a sociedade brasileira

167Adotamos aqui o conceito de capitalismo tardio dos primeiros frankfurtianos. Conforme explica Sílvio Camargo (2011), o conceito de capitalismo tardio passou por elaborações teóricas distintas, adquirindo diferentes acepções nas formulações dos primeiros frankfurtianos, do economista Ernest Mandel e de Jürgen Habermas. Para os primeiros frankfurtianos, particularmente para Adorno, a concepção de capitalismo tardio está estreitamente relacionada à ideia de uma “sociedade administrada”, regida pela “razão instrumental” a serviço da dominação, tendo como expressões os fenômenos dos governos totalitários (nazismo, fascismo, stalinismo) assim como a indústria cultural de matriz norte-americana. Para análise aprofundada do conceito de capitalismo tardio no âmbito da Teoria Crítica, ver Camargo (2006, 2011). 168 Remanescentes do Cinema Novo também retrataram o operário no final dos anos 1970, como Ruy Guerra, em A queda (1978); Leon Hirszman em ABC da greve (1979/1991) e Eles não usam black-tie (1981) e Arnaldo Jabor em Tudo bem (1978).

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sob o ângulo da evolução do capitalismo” (BERNARDET, 1980a, p.34), o que os levaria a colocar em tela o operário. Ainda que seja necessário considerar outras mediações, essa hipótese nos parece sugestiva para pensar o caso de nossos “paulistas”. No contexto de consolidação da indústria cultural no Brasil, nos anos 1960 e 1970, esses cineastas estiveram no meio do processo, como mão de obra. Não só como cineastas – aqui se insere a dicotomia cinema comercial/cinema de autor e é possível supor que os cinemanovistas, mesmo em sua relação com a Embrafilme, se percebiam como artistas-autores e não como trabalhadores da indústria cultural – mas principalmente por terem trabalhado nos âmbitos de menor prestígio cultural dessa indústria: a publicidade e a televisão. Estas não eram constituídas só por garotas- propaganda e vedetes, mas também por intelectuais, como o jornalista que se converte em publicitário em Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr., 1968) para aumentar seus ganhos e atender aos desejos de consumo da amada manequim, ou o dramaturgo que complementa seu salário de professor escrevendo, em ritmo industrial, trabalhos medíocres para a televisão em À flor da pele (Francisco Ramalho Jr., 1976). Ademais, São Paulo parece ser lugar privilegiado para se apreender as questões que circundam a modernidade urbana capitalista. Com suas indústrias a pleno vapor e seu incessante reconstruir movidos pela dinâmica do capital, a cidade é o “retrato em cimento e fumaça da modernidade capitalista”, para utilizarmos a expressão de Ridenti (2000, p.307). Cimento e fumaça logo imbricados ao brilho falso da publicidade. Lá surgiram, nos anos 1950, as primeiras grandes produtoras de filmes publicitários que se proliferaram nas décadas seguintes, chegando a cerca de 70/80% das 150 empresas do ramo nos anos 1980.169 Caminhando por essas “pistas”, sem nos prendermos a elas, de modo que as obras possam falar por si mesmas, analisaremos nos próximos capítulo obras da filmografia dos “paulistas do entre-lugar”.

169 Dados de José Mário Ortiz Ramos (2004, p.64). Sobre a publicidade no Brasil ver também Maria Arminda Arruda (2004).

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3. OS FILMES E A MODERNIDADE URBANA CAPITALISTA

No que tange especificamente aos filmes, a análise nos indica que há duas vertentes paralelas na produção dos “paulistas do entre-lugar”, perceptíveis quando suas obras são tomadas em conjunto e mesmo na trajetória individual de cada um. De um lado, há filmes, não só do início dos anos 1960 mas também dos anos 1970, que colocam em tela o Brasil “profundo”, rural e tradicional, afinados àquela “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária” que, conforme Ridenti (2010), marcou a cultura brasileira dos anos 1960 e os primeiros anos do Cinema Novo, como é o caso de A hora e a vez de Augusto Matraga (1966) e Um anjo mau (1971) de Roberto Santos; As noites de Iemanjá (1971), Terra dos Brasis (1971), O último dia de Lampião (1975) de Maurice Capovilla; Vila da barca (1965), de Renato Tapajós e a maioria dos filmes de Sérgio Muniz, entre os quais Roda & outras histórias (1965); O povo do Velho Pedro, anotações (1967); Beste (1969); Rastejador, s.m.(1969); De raízes e rezas, entre outros (1972). De outro lado, há um conjunto de obras nas quais se observa uma quase ausência da perspectiva utópica e um distanciamento da tônica do “nacional-popular” e da problemática do subdesenvolvimento que, de diferentes formas, pautaram o Cinema Novo em suas várias “fases”. Em filmes como O grande momento (Roberto Santos, 1958); São Paulo Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965); Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967); Vozes do medo (longa coletivo sob coordenação de Roberto Santos, 1970) e O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980) está menos em questão a problemática do atraso do país do que as contradições da própria modernidade, envolvendo temas como o trabalho alienado, a indústria cultural e a reificação das relações sociais, de uma maneira que se distingue consideravelmente das principais linhas de força do Cinema Novo. É esta segunda vertente que nos interessa investigar mais de perto, uma vez que parece estar aí a contribuição diferencial do cinema dos “paulistas do entre-lugar”.

3.1 Modernidade, cinema, cidade, São Paulo

Inextrincavelmente relacionado à emergência da modernidade enquanto experiência histórica moldada pelas transformações objetivas desencadeadas pelo desenvolvimento do capitalismo, o cinema vincula-se desde seus primórdios à cidade. Se a cidade, fruto da expansão do capitalismo industrial, é a forma de organização social moderna

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por excelência, o cinema pode ser considerado a forma cultural mais representativa dessa modernidade, aquela que nasce no bojo de suas transformações e que melhor expressa seus atributos. Arte e técnica, cultura e comércio, representação e indústria, o cinema conjuga em si as contradições da modernidade capitalista, sendo os nexos com a cidade múltiplos e fundamentais: na sua origem e vínculos com a cultura urbana; na sua participação na economia das cidades; na representação do urbano nas telas e, finalmente, na própria forma cinematográfica que expressa a complexidade, a fragmentação e o dinamismo da cidade moderna.170 Se Berlim foi a sede do cinema alemão da República de Weimar, Los Angeles o cenário chave do cinema noir norte-americano e Paris a cidade símbolo da Nouvelle Vague171, São Paulo tem sido lócus fundamental do cinema urbano brasileiro, desde os anos 1920, com o ícone São Paulo, sinfonia da metrópole (Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig, 1929) e sua aposta no progresso capitalista, até distopias urbanas contemporâneas como O invasor (Beto Brant, 2002)172. A imagem dessa cidade por vezes é associada a ícones universais da modernidade e por vezes é explorada no que tem de específico, podendo-se apontar positivamente para o progresso e para as potencialidades de desenvolvimento oferecidas pela cidade ou problematizar as contradições inerentes à modernidade capitalista urbana. Ora São Paulo é uma metrópole do mundo – seja no desejo de construir a imagem do progresso almejado, como em São Paulo, sinfonia da metrópole, seja na problematização de questões existenciais numa cidade descaracterizada como no “neon-realismo” do “jovem cinema paulista” dos anos 1980173 – ora São Paulo é metrópole brasileira, expressão das contradições gerais e específicas da condição de metrópole de um país subdesenvolvido, na periferia do capitalismo. O cinema de que trataremos aqui vincula-se mais a essa segunda chave, tratando de questões caras ao contexto brasileiro – as referências críticas ao capital estrangeiro e às multinacionais, por exemplo, são presentes em vários desses filmes – e, ao mesmo tempo tempo, focalizando a seu modo as problemáticas gerais da modernidade urbana capitalista,

170 Há diversos estudos recentes que tratam da correlação entre cinema, cidade e modernidade, tais como os de Clarke (1997); Charney e Schwartz (2001); Shiel e Fitzmaurice (2001); Mennel (2008); além dos trabalhos clássicos de Adorno e Horkheimer, Benjamim, Kracauer e Simmel aos quais vários desses estudos recentes fazem referência. 171 Cf. Mennel (2008). 172 Para uma análise de O invasor como distopia urbana ver Lúcia Nagib (2006, p.159-177). Para uma panorama geral das representações da cidade de São Paulo no cinema ver Rubens Machado Jr. (2007, 2008). 173 Renato Luiz Pucci Jr.(2008) designa como pós-moderno um conjunto de filmes brasileiros dos anos 1980, entre os quais estão aqueles que compõem a chamada “trilogia paulistana da noite”, marcada, segundo o autor, por um “neon-realismo”: Cidade Oculta (Chico Botelho, 1986); Anjos da noite (Wilson Barros, 1987) e A dama do Cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1988). Outro enfoque sobre o cinema paulista dos anos 1980 pode ser encontrado em Andréa Barbosa (2012).

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como o trabalho alienado, a indústria cultural e a reificação das relações sociais. Antes de adentrarmos propriamente na análise dos filmes, é importante analisar uma problemática que atravessa a história do cinema brasileiro: a abordagem do rural e do urbano.

3.2 O rural e o urbano no cinema brasileiro: dos primórdios ao Cinema Novo

Conforme assinala Raymond Williams (2011b), o contraste entre campo e cidade permeia o imaginário social desde a Antiguidade clássica, mas é com o desenvolvimento do capitalismo e a emergência da modernidade que esse contraste se complexifica e ganha destaque na literatura. Assumindo diferentes formas, essa polarização costuma associar o campo ao passado, à natureza, à tradição, à inocência, à vida simples e comunitária, enquanto que remete a cidade ao futuro, à modernização, ao desenvolvimento, à ciência, ao dinamismo, à ambição e ao individualismo. Ainda que tais imagens apresentem distorções das realidades históricas que, bastante variadas, contrariam com sua complexidade esse modelo dicotômico, Williams, alerta que não basta simplesmente negá-las ou denunciá-las, é preciso compreender a sua persistência, uma vez que “as poderosas imagens que temos da cidade e do campo constituem maneiras de nos colocarmos diante de todo um desenvolvimento social.” (WILLIAMS, 2011b, p.483). Analisemos então como essas imagens foram construídas no Brasil, pelo seu cinema. De acordo com Jean-Claude Bernardet (1980b), desde os seus primórdios, encontra- se no cinema brasileiro, a clássica oposição entre o campo (tradicional, íntegro, repositório da moral) e a cidade (sedutora e destruidora, lugar da dissolução da tradição e da perdição).174 Esse contraste perpassa diversos dramas e comédias, desde Nhô Anastácio chegou de viagem (1908), um dos primeiros filmes de ficção brasileiro. Ao campo também associa-se uma ideia de “brasilidade”, vinculada às belezas naturais do país e aos “nossos” usos e costumes, e multiplicam-se os documentários que retratam essa face do Brasil, tais como: Brasil grandioso (dois filmes de mesmo título, 1924, 1931), Brasil desconhecido (também dois filmes homônimos, 1925, 1930), Brasil pitoresco (1926), Os sertões do Brasil (1928), Viagem ao Brasil (1928), Brasil maravilhoso (1930)175, proliferando-se uma grandiloquente exaltação

174 Tal contraste é recorrente e está presente em outras cinematografias, que reproduzem a concepção de campo associado à Arcádia e de cidade associada à Sodoma, como no clássico Sunrise (1927), de F.W.Murnau. Cf. Mennel (2008, p. 25). 175 Cf. Bernardet 1980b, p.141.

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das paisagens do país, nosso “berço esplêndido”176. Entretanto, na medida em que tais filmes adentram o interior do país e colocam em tela não só as belas paisagens mas também o homem do campo, o índio, o negro e os costumes populares, surgem discursos contrários a tal imagem do Brasil, rejeitada como vergonhosa marca do atraso. Tal postura é encampada notadamente pela revista Cinearte, que defende um cinema de moldes hollywoodianos que coloque em tela imagens de civilidade e progresso.177 A este ideal vincula-se o urbano e, então, “exalta-se o Brasil dos carros, dos aeroplanos, dos salões elegantes, do fox-trot, modernidade e mundanismo se combinam”. (BERNARDET; GALVÃO, 1983, p.37). E São Paulo é o ícone dessa modernidade desejada, é o “O Brasil do asfalto, o Brasil cosmopolita”178 (BERNARDET, 1980b, p.146) que encontra sua imagem maior em São Paulo, sinfonia da metrópole (Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig, 1929). Sintomaticamente, este filme, conforme sublinha Bernardet (1980b), embora se aproxime de seu congênere, Berlim, sinfonia da metrópole (Walther Ruttmann, 1927), não compartilha com aquele a abordagem da dimensão trágica da solidão urbana, atendo-se a valorizar o progresso, a urbanização e a aceleração do ritmo da vida social. A modernidade é um ideal a ser alcançado e, dentro desse projeto ideológico, não cabem críticas a ela. Mesmo mais adiante, nos anos 1960 e 1970, no bojo do Cinema Novo, Bernardet (1980b) observa que persiste por vezes uma ideia positiva do urbano, sendo recorrente a presença de personagens que, vindos da cidade para o campo, colaboram para a transformação da estrutura social tradicional, como em Barravento (Glauber Rocha, 1962); São Bernardo (Leon Hirszman, 1972); A casa assassinada (Paulo César Saraceni, 1972). Percebe-se, assim, que “Conforme a posição assumida diante do mundo rural, a cidade e a desagregação que ela provoca podem ser vistas de modo negativo ou positivo” (BERNARDET, 1980b, p.147). Rechaçado como imagem do atraso, o rural também adquire outras significações no cinema brasileiro. Nos anos 1950, no âmbito do cinema industrial paulista, surge um “rural

176 Expressão presente no Hino Nacional brasileiro e que Paulo Emílio Salles Gomes empresta para nomear essa categoria de produção documentária laudatória das belezas naturais brasileiras, que abundou nas duas primeiras décadas do século XX. Cf. Gomes (1986). 177 Em 1926, é publicada em Cinearte carta de um leitor indignado com o apresentado em Brasil pitoresco (Cornélio Pires, 1926): “Quando deixaremos desta mania de mostrar índios, caboclos, negros, bichos e outras avis rara desta infeliz terra, aos olhos do espectador cinematográfico? Vamos que por um acaso um destes filmes vá parar no estrangeiro? Além de não ter arte, não haver técnica nele, deixará o estrangeiro mais convencido do que ele pensa que nós somos: uma terra igual ou pior a Angola, ao Congo ou cousa que o valha. Ora vejam se até não tem graça deixarem de filmar as ruas asfaltadas, os jardins, as praças, as obras de arte, etc. para nos apresentarem aos olhos, aqui, um bando de cangaceiros, ali, um mestiço vendendo garapa em um purungo, acolá, um bando de negrotes se banhando num rio, e coisas desse jaez” (apud Gomes, 1974, p. 310). Tal carta, publicada sem restrições, ia ao encontro do cinema preconizado pelos editores da revistas, ávidos por imagens que inserissem o Brasil no rol dos países desenvolvidos. 178 Expressão de Bernardet, 1980b, p.146.

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cosmopolita”, na expressão de Célia Tolentino (2001). Segundo a autora, em filmes como O Comprador de fazendas (Alberto Pieralisi, 1951), Terra é sempre terra (Tom Payne, 1951) e Chamas no cafezal (José Carlos Burle, 1954) há uma perspectiva que busca “racionalizar o rural para modernizar o país”, apresentando fazendeiros ou administradores rurais como protagonistas civilizados às voltas com “dramas universais”, enquanto os empregados da fazenda figuram como elemento folclórico a dar “cor local” para os enredos, não sendo abordados seus anseios e problemas. Essa visão superficial do povo é fortemente condenada por críticos de esquerda reunidos na revista Fundamentos que, contemporaneamente a esses filmes, os denunciam como um cinema feito pela burguesia, considerando-o comprometido ideologicamente com o imperialismo, o que o impedia de apresentar um retrato verdadeiro do povo e ser “autenticamente” nacional. 179 A questão do “nacional-popular” passa a assumir o centro das discussões sobre cultura no Brasil e esse debate, iniciado nos anos 1950, prolonga-se nos anos 1960, estando na base do surgimento do Cinema Novo, como vimos no capítulo 1. O novo cinema começa a se formar a partir de alguns elementos-chave, conforme apontam Bernardet e Galvão: “assunto brasileiro, o povo como tema, rejeição do folclore e exotismo, produção barata, pequena equipe, desmistificação da técnica” (BERNARDET; GALVÃO, 1983 p.199). E o campo assume aí uma outra significação. Segundo Tolentino (2001, p.300 e 301):

[…] o rural brasileiro até então entendido como o 'resto do país' passa a ocupar as telas na condição de síntese do destino nacional […] Entre os cineastas politizados, torna-se consenso a noção de que o rural nordestino é a matriz da identidade nacional e da civilização brasileira, dos seus males, e também, da sua redenção. E no olho do furacão do conflito de classes, tal como estabelecido pelo discurso politizado dos dias correntes, o homem pobre do campo deixa de ser ornamento singelo, cor local, adorno para as grandes questões humanas dos indivíduos dotados de razão e passa, ele próprio, a representar um outro tipo de razão: a razão revolucionária.

A problemática do subdesenvolvimento estava na ordem do dia e era informada, de diferentes maneiras, por discursos como os da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e do PCB (Partido Comunista Brasileiro).180 O Cinema Novo se inseria a seu modo nessas discussões, partilhava

179 Cf. Bernardet; Galvão, 1983, p. 62-70. 180 Para uma discussão mais ampla e aprofundada sobre cultura e política nos anos 1960 e 1970 ver Ridenti (2000, 2010).

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dessa “estrutura de sentimento”, e encontrou no sertão a imagem máxima dos dilemas do país, aquela que concreta e simbolicamente melhor expressava a nossa miséria, o nosso atraso, o nosso subdesenvolvimento. Tratava-se de criar uma “estética da fome”, como formulou a posteriori Glauber Rocha (1965), uma estética que expressasse de maneira violenta e não melodramática a miséria brasileira. Assim, do precursor documentário Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) à célebre “trilogia” do sertão com Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), foram colocadas nas telas imagens do sol escaldante, da terra seca e craquelada do nordeste brasileiro, da população à margem do progresso. Paralelamente ao sertão, a favela destaca-se como ambiente privilegiado desse cinema interessado em problematizar a realidade social do país, figurando em filmes como os pioneiros de Nelson Pereira dos Santos Rio, 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957); a obra coletiva em cinco episódios, Cinco vezes favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962), realizada pelos jovens cinemanovistas então ligados ao CPC da UNE, e A grande cidade (1965), de Cacá Diegues. Espaços em que a miséria se apresentava de maneira mais manifesta, o sertão e a favela eram também espaços vinculados à cultura popular, constituindo a base de um repertório a partir do qual se poderia construir uma identidade nacional forjada para a luta, para a transformação do país e a superação da herança colonial. Nas palavras de Ivana Bentes (2007, p.242):

Territórios de fronteiras e fraturas sociais, territórios míticos, carregados de simbologias e signos, o sertão e a favela sempre foram o “outro” do Brasil moderno e positivista: lugar da miséria, do misticismo, dos deserdados, não-lugares e simultaneamente espécies de cartão-postal perverso, com suas reservas de “tipicidade” e “folclore”, onde tradição e invenção são extraídas da adversidade.

Embora dentro do território urbano, a favela por vezes aparece nesses filmes como um reduto dos valores populares tradicionais, das relações comunitárias, da solidariedade, um lugar ainda não contaminado pela degradação da cidade. Trata-se de uma perspectiva integrada àquela “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária” identificada por Marcelo Ridenti (2000, 2010), para a qual interessava “resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades” (RIDENTI, 2000, p.25, grifo do autor).

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Nesse sentido, percebe-se que mesmo que tais filmes se situassem na cidade, eles não tinham como eixo fundamental a problematização da dinâmica e dos dilemas da modernidade urbana capitalista. “A complexidade urbana […] surge tardiamente no Cinema Novo”, afirmam Bernardet e Galvão (1983, p.223). O que se privilegia é um retrato do “povo” e este é entendido como aquele que compõe “um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbios, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádios de futebol”, conforme assinala Paulo Emílio Salles Gomes (1996, p.103). O intuito de abordar o universo urbano não estava ausente entre os cinemanovistas. Em depoimento de 1965, Gustavo Dahl declara:

Sobre a velha oposição entre o cinema urbano e o cinema rural, acho evidente que, quando o Cinema Novo partiu para os primeiros filmes, foi encontrar-se, foi evoluir na área em que os problemas estavam mais radicalmente colocados, e onde, portanto, poderia evoluir mais fácil e eficientemente. Por isso, concentrou-se no Nordeste e na favela. Evidentemente, uma vez colocados esses problemas, estes, por sua própria simplicidade, se esgotaram rapidamente. Há, então, uma necessidade de abrir, de abrir a problemática e ir buscar em outras regiões, outros ambientes, outras zonas sociais, o mesmo tipo de approach que se tem em relação ao Nordeste e à favela. (DAHL, 1965, p.246, grifos do original).

Entretanto, conforme ressaltam Bernardet e Galvão, o approach não foi propriamente o mesmo. Ao focalizar o urbano, os cinemanovistas deslocam sua problemática do outro, o “homem do povo”, para os seus mesmos de classe, a burguesia, a classe média e a intelectualidade.181 Esse deslocamento não se dá por acaso, mas em decorrência do golpe civil-militar de 1964 que abortou o projeto nacional que embalava o Cinema Novo e pôs abaixo as perspectivas de transformação político-social que estavam no horizonte no início dos anos 1960. Ante a desilusão, o Cinema Novo dedica-se a colocar em questão a própria frustração e a analisar de maneira (auto)crítica a postura do intelectual e da classe média em relação ao “povo” e ao poder, legando obras como O desafio (Paulo César Saraceni, 1965); Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) e O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1968).182 Na virada dos anos 1960 para os 1970, após a instauração do Ato Institucional n.5 que marcou o endurecimento do regime militar no Brasil, o Cinema Novo vive um terceiro momento, denominado por alguns teóricos como fase “tropicalista”, com largo uso da alegoria em filmes como Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr, 1968); O dragão da maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969); Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade,

181 Cf. Bernardet e Galvão, 1983, p.224. 182 Para uma visão geral sobre o Cinema Novo no pós-1964 ver Xavier (2006b, 2012); Bernardet (1978, 1979); Bernardet e Galvão (1983); Johnson e Stam (Orgs.) (1995).

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1969) e Os herdeiros (Cacá Diegues, 1970).183 Nesse cinema em busca de um diagnóstico totalizante, o rural se imbrica ao urbano numa perspectiva desiludida ante uma conjuntura na qual o regime ditatorial levava a cabo a modernização do país, apartando as camadas populares do projeto desenvolvimentista. De acordo com a análise de Ismail Xavier, em filmes como Brasil ano 2000; O dragão da Maldade e Macunaíma:

[...] o Brasil era uma totalidade em crise, um organismo que dava sinais de estar perdendo de vez a possibilidade de autodeterminação, quando parecia a ponto de ganhá-la. […] O que está em pauta nesse drama é o que se assume como a vivência de um descaminho na passagem do arcaico ao moderno, embora em tese tal passagem fosse bem-vinda. Convicto desse descaminho, o nacionalismo do cinema novo foi um dilema renovado. (XAVIER, 2012, p.434).

Para a maioria dos teóricos, a partir de 1973 não é mais possível falar de Cinema Novo enquanto movimento, embora seus remanescentes continuem filmando, em larga medida apoiados pela Embrafilme, como vimos no capítulo 1. No entanto, o “ciclo histórico do Cinema Novo ainda não havia terminado”, como afirmou Randal Johnson (1984, p.3, tradução nossa). O Estado encampava à sua maneira o debate acerca da cultura nacional- popular, formulando uma Política Nacional de Cultura (PNC), e os cineastas egressos do Cinema Novo encontravam no auxílio estatal uma via para a industrialização do cinema brasileiro e o alcance da audiência popular.184 Nem todos os (ex)cinemanovistas integraram-se a esse movimento “conciliatório” – Ruy Guerra, por exemplo, é marcante exceção185 – e os caminhos adotados por cada um deles foram diferentes, porém, uma tendência que ganhou destaque nesse período foi a elegia da cultura popular brasileira, abandonando as interpretações “sociologizantes” que salientavam contradições sociais e conflitos de classe. Destacam-se nessa linha os longas O amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974); Xica da Silva (Cacá Diegues, 1976) e Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1977). Na interpretação de José Mário Ortiz Ramos (1983, p.129 e p.130): […] num movimento que ia da postura 'sociológica' para a 'antropológica' exorcizavam-se os fantasmas do dirigismo paternalista e da inexistência de um novo projeto nacional […] Mas obscurecia-se o essencial, o projeto nacional agora era comandado pelo Estado, um incentivador do resgate da produção cultural – e mesmo das manifestações culturais populares, pois interessava a busca do 'homem brasileiro' – desde que os fatos culturais fossem despolitizados, desamarrados das suas relações de poder (ideológicas) com a sociedade global.

183 Cf. Johnson e Stam, 1995, p. 37. Ver também Schwarz (1978) 184 Sobre os meandros dessa conciliação entre cineastas oriundos do Cinema Novo (de tendências políticas de esquerda) e a estatal Embrafilme (fruto de um regime político autoritário) ver José Mário Ortiz Ramos (1983) e Marina Soler Jorge (2002). 185 Cf. Randal Johnson (1984).

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Em 1980, fechando esse ciclo, temos o lançamento de Bye bye Brasil, de Cacá Diegues, filme emblemático desse percurso do cinema brasileiro por se fundar justamente no encontro entre o rural e o urbano, o sertão e a cidade, a cultura popular e os meios de comunicação de massa, o arcaico e o moderno, o nacional e o internacional e sintetizar de maneira sui generis os dilemas de um cinema que se propôs crítico, vislumbrou a transformação e se debateu com a realidade para ao fim, de algum modo, se resignar diante dela. Ao ficcionalizar o percurso de uma caravana de artistas itinerantes pelo Brasil do final dos anos 1970, Bye bye Brasil passa pelas cidadezinhas do interior nordestino, marcadas pela persistência do tradicional, da religiosidade, da cultura popular e da precariedade, e chega às cidades já integradas aos signos da modernidade, invadidas pelas músicas estrangeiras e pela televisão, ainda que também marcadas pela permanência de elementos pré- modernos, como as relações personalistas de poder e as condições precárias de vida. A televisão aparece como principal inimiga dos artistas mambembes que, conforme se deslocam, vão percebendo que onde houvesse antenas de TV, suas apresentações não atrairiam interesse popular. Depois de uma série de percalços e da desintegração da trupe, o filme termina de maneira positiva, para os dois núcleos de personagens: Lord Cigano e sua Caravana Rolidey ressurgem com um novo caminhão rumo à Rondônia, bem-sucedidos ao “modernizar” suas apresentações, levando aos rincões do país espetáculos que abusam da sensualidade e incorporam a televisão e as músicas estrangeiras; enquanto o sanfoneiro Ciço, radicado em Brasília, torna-se o “maior sanfoneiro do Planalto”, tendo suas apresentações televisionadas para um grande público. Ambos os núcleos se integram, assim, à nova conjuntura, seja assumindo inteiramente os referenciais da cultura de massa, como Lord Cigano, seja de certa forma mantendo as raízes da cultura popular, como Ciço. Ainda que ao longo do filme perpasse um sentimento de melancolia ante a dissolução das tradições e a perspectiva de homogeneização cultural, Bye Bye Brasil, conforme anuncia o título, apresenta uma despedida do Brasil passado e o final otimista assente a esse adeus não só ao Brasil antigo que se esvai, mas a todo um projeto de emancipação nacional que movera um segmento considerável da intelectualidade vinte anos antes. Aceita-se a condição nacional, como destino, de maneira resignada ou até mesmo apologética. Nesse sentido, são significativos os comentários de Cacá Diegues: “[…] a idéia era exatamente fazer um filme sobre um país que começava a nascer no lugar de um país que começava a acabar.” (DIEGUES apud MAUAD, 2001, p.79), acrescentando:

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Uma coisa que acho curiosa é a visão que os críticos europeus tiveram do filme em relação aos críticos americanos. Na Europa é visto como um filme muito triste, melancólico, sobre um paraíso que está sendo destruído, que se acabou. Enquanto que nos Estados Unidos é visto como um filme muito feliz, eufórico, cheio de esperança, sobre uma civilização que está começando. Prefiro a visão dos americanos. (DIEGUES apud OROZ, 1984, p.160).

A problemática em torno do rural e do urbano é uma questão que se repõe incessantemente no cinema brasileiro, com diferentes vieses.186 Interessa-nos aqui, porém, centrar nos anos 1960 e 1970 e colocar em foco a abordagem da modernidade urbana capitalista realizada por uma fração do cinema paulista que, como veremos, tratou dessas questões de maneira um tanto diferenciada das principais linhas de força que caracterizaram o Cinema Novo.187

3.3 Cinema paulista, modernidade, reificação

A respeito de O grande momento (Roberto Santos, 1958), o primeiro dos filmes que aqui iremos analisar, Fernão Ramos (1987a) comenta:

Em O grande momento a imagem do povo está ausente. Refiro-me, neste caso, à imagem do povo como será desenvolvida pelo Cinema Novo e que já se acha presente nos dois primeiros longas-metragens de Nelson. O povo brasileiro, mulato, dançando samba, jogando futebol, desbocado e malandro, está ausente desse filme tido como precursor do Cinema Novo e seu único representante em São Paulo. Em seu lugar aparece a figura do imigrante europeu que chegou sem muitas posses e se esforça para subir na vida. […] parece ser difícil encontrar em São Paulo material para a atração que este 'outro' denominado povo exerce sobre a geração cinemanovista. Não há tradição cultural em termos da 'brasilidade' que esses jovens cineastas buscavam e que pode ser localizada em toda a exuberância tanto no Rio de Janeiro como na Bahia. (RAMOS, 1987a, p.310-311).

Principal lócus da industrialização brasileira, polo de atração de imigrantes, estrangeiros ou procedentes de diferentes regiões do Brasil, a cidade de São Paulo se estabeleceu desde cedo como nosso ícone da modernidade, signo da metrópole cosmopolita,

186 Essa questão foi abordada por diversos autores, como Bentes (2007); Oricchio (2003) e Nagib (2003). Em Central do Brasil (, 1998), por exemplo, é apresentada uma visão romântica do sertão como reduto da dignidade, da solidariedade, dos valores que foram dissolvidos pela modernidade urbana capitalista. Não mais expressão do subdesenvolvimento e da contradição social a ser superada, o rude rural reaparece como uma comunidade desejada em contraponto à cidade hostil. 187 Há que se assinalar que o Cinema Novo nunca foi um movimento plenamente homogêneo e que mesmo os cineastas que faziam parte do seu núcleo central apresentaram filmografias diferenciadas, constituídas em caminhos próprios, nem sempre correspondendo integralmente às principais linhas de força aqui apresentadas. O quadro geral traçado, entretanto, é importante para observarmos a peculiaridade do cinema paulista diante das características predominantes do cinema da época, tal como foram sistematizadas por analistas do período.

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imagem que foi intensificada após o surto da indústria automobilística e a entrada de empresas multinacionais impulsionados pelo governo Juscelino Kubitschek. Enquanto o Rio de Janeiro figura no imaginário social como a “cidade maravilhosa”, vitrine do Brasil, paraíso tropical emoldurado pelas paisagens deslumbrantes e embalado pela cadência alegre do samba, São Paulo é a cidade cinza, de concreto e fumaça, capital do trabalho, do dinheiro e do progresso, não raro comparada a Nova York em suas características cosmopolitas.188 Abastecidas culturalmente, inclusive pelo cinema, essas visões perduram historicamente. Afinal, conforme assinala o historiador Elias Thomé Saliba (2004, p.558), “a identidade de uma cidade fundamenta-se muito mais nas imagens criadas em torno dela do que propriamente no seu real fragmentado e pouco reconhecível” (SALIBA, 2004, p.558)189. Para Glauber Rocha: “São Paulo, no Brasil, é um país estranho como cultura. Está além de nossa estrutura geral no que se refere a progresso e muito diferente do resto do Brasil na formação de sua gente. Sua cultura é mais importada e mais desligada de nossa realidade” (ROCHA, 1959 apud YUTA, 2004, p.102). Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, falando sobre a escolha do Rio de Janeiro para realizar seus primeiros filmes – Rio, 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), além do não realizado Rio Zona Sul, que completaria a trilogia –, afirma: “Eu sabia, e isso continua hoje, que no Rio encontra-se uma imagem do Brasil inteiro”. (SANTOS apud DE CÁRDENAS; TESSIER, 1972, p.63, tradução nossa). Carlos Pinto (2013), em recente tese sobre a representação da cidade do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo, defende que, ao lado da representação do sertão, outra face marcante do movimento é sua vinculação com a vivência urbana carioca. O Rio de Janeiro, como abordamos no capítulo 1, foi o berço e a principal sede do Cinema Novo, o local em que se constituiu como grupo e também o lugar a partir do qual o grupo estabelecido exerceu sua influência sobre o Estado por meio de redes de relações. Na perspectiva de Pinto (2013), o fato de vários dos cinemanovistas serem oriundos de outros estados do país atesta o poder de atração que o Rio exercia. Para além das condições de produção cinematográfica da época,

188 É interessante, por exemplo, a descrição do crítico francês Louis Marcorelles em seu texto introdutório à entrevista conjunta com o carioca Cacá Diegues e o paulista Sérgio Muniz. Enquanto o Rio é “o Brasil para turistas, o Brasil do carnaval, da bossa nova, das mais belas garotas do mundo, uma loucura aceita como o pão de cada dia numa aparente despreocupação”, São Paulo é a “metrópole das metrópoles”, “cidade à americana onde a miséria mais gritante está ao lado dos signos extravagantes da modernidade”; que “imita em pequena medida Nova York com sua gama de comunidades italiana, portuguesa, japonesa, libanesa etc”. (MARCORELLES, 1968, p.50, tradução nossa). 189 Sobre a construção da identidade paulistana ver, por exemplo, Elias Saliba (2004). Maria Izilda Santos de Matos (2007) salienta a importância das comemorações do IV Centenário de São Paulo na “invenção da paulistaneidade” associada ao progresso e ao empreendedorismo, expressados em slogans como “a cidade que mais cresce no mundo”. É referência para nós igualmente a interessante análise de Marcelo Ridenti (2000, p.303-313) sobre a canção Sampa de à luz da teoria de Marshal Berman sobre a modernidade.

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o argumento do autor vai no sentido de que a escolha por filmar no Rio, e, sobretudo, filmar o Rio, se explica por motivações intelectuais e estéticas. Mesmo após deixar de ser, em 1960, a capital federal, a cidade continuou abrigando instituições nacionais importantes e permaneceu por longo tempo a exercer a “capitalidade”. No imaginário social, o Rio de Janeiro era sinédoque do Brasil, sintetizando as características contraditórias do país e contendo em si os elementos do que se entendia como identidade nacional: “Por um lado, a favela surgia como índice de uma nacionalidade positiva e desejada, por outro, os ícones urbanos eram transmudados em indícios de uma brasilidade difusa, ao mesmo tempo selvagem e moderna […]”. (PINTO, 2013, p.237). Na análise que faz dos filmes Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1954); Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957); Cinco vezes favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962) e A grande cidade (Carlos Diegues, 1965), Pinto (2013) observa a mobilização da “capitalidade” do Rio pelo Cinema Novo, em construções fílmicas que salientam os contrastes entre “morro” e “asfalto”, polarizando a “autenticidade” da favela e a modernidade da cidade. O autor analisa também um outro conjunto de filmes – Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), O desafio (Paulo César Saraceni, 1964), Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967) e Todas as mulheres do mundo (Domingos de Oliveira, 1967) – nos quais o enfoque do meio urbano se dá a partir de uma abordagem mais intimista relacionada às vivências privadas dos personagens que estão próximos ao universo dos cineastas, fazendo parte da classe média que habita ou circula pela Zona Sul. Roberto Noritomi (1997), ao analisar o corpus de quatro filmes – Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1964), Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1963) e A falecida (Leon Hirszman, 1965) – que considera constituir “uma alternativa urbana dentro do Cinema Novo”190, igualmente observa uma abordagem construída a partir da esfera privada, distanciada do “calor político-ideológico do populismo” (palavras dele para caracterizar a marca dos demais filmes da primeira fase do Cinema Novo), dando espaço a questões como a liberação sexual feminina, as relações de gênero e as crises existenciais. Somando-se essas considerações ao exposto no tópico anterior, pode-se afirmar que para as principais linhas de força do Cinema Novo problematizar as contradições da

190 Discordamos da inclusão de São Paulo S.A. como filme do Cinema Novo visto que Person nunca esteve próximo do grupo sediado no Rio, tendo realizado este e seus outros filmes por caminhos bastante diferenciados e rejeitado, explicitamente, em entrevistas aproximações com o movimento. (Cf., por exemplo, a entrevista ao Pasquim citada no capítulo 1 e publicada em Labaki 2002).

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modernidade urbana capitalista não era preocupação central. Embora toda generalização seja questionável por negligenciar singularidades fundamentais191, o que se percebe é que o Cinema Novo – sobretudo na produção de seus três cineastas chave, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Carlos Diegues192 – guarda uma relação ambígua com a modernidade que oscila entre uma crítica romântica (a cidade como lugar da dissolução dos valores em contraste com a “pureza” e “autenticidade” das favelas e do campo, etc) e uma visão positiva em que o moderno é o ideal a alcançar num horizonte de superação do “atraso” e do subdesenvolvimento. No pós-67, sob influxo do tropicalismo, conforme assinala Ismail Xavier (1984, 2012), o dualismo entre arcaico e moderno se dilui numa imbricação mútua e por vezes ambivalente.193 E, nessa linha, encontramos críticas e sátiras em relação à modernização conservadora promovida pelo regime militar em filmes como Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr., 1968); O dragão da maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969). A questão nacional, entretanto, mantém-se no cerne da discussão nas produções dos principais egressos do Cinema Novo ao longo dos anos 1970 e as contradições próprias da modernidade permanecem em segundo plano. A meu ver, o movimento, em sua face prevalente, bem representa uma corrente de pensamento à esquerda, para a qual, conforme observou argutamente Roberto Schwarz, “o problema não estava na marcha do mundo, mas apenas em nossa posição relativa dentro dela”. (SCHWARZ, 1999, p.161). Renato Ortiz em A moderna tradição brasileira (1988), desenvolve o argumento de que no Brasil, assim como em outros países subdesenvolvidos, o moderno assumiu em si

191 Ruy Guerra e Leon Hirszman, por exemplo, têm trajetórias bastante peculiares dentro do Cinema Novo, destacando-se, sob o aspecto da abordagem da modernidade urbana capitalista, em particular seus respectivos Os cafajestes (1962) e A falecida (1965). Sobre os filmes e perspectiva de Leon Hirzsman, ver por exemplo, Arthur Autran (2012) e Reinaldo Cardenuto (2014). 192 Esses três, ao lado de Joaquim Pedro de Andrade, são os mais destacados cineastas do Cinema Novo, o que se observa pelas referências historiográficas e trabalhos acadêmicos a eles dedicados, bem como ao se analisar a recepção do movimento no exterior, onde são eles preponderantes, sendo que Glauber e Cacá Diegues assumem posições de porta-vozes em inúmeras entrevistas que mobilizam um léxico discursivo que associa brasilidade- terceiro-mundismo-cinema revolucionário. Em Leme (2015) são apresentadas considerações sobre o tema da recepção do cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 na França. 193 Nas palavras de Ismail Xavier: “Tal campo de reflexão, quando vivido num contexto nacional em que o avanço técnico é decorrência da importação de padrões de produção e consumo, ativa uma oscilação entre o elogio à modernização, por sua força dissolvente de um patriarcalismo de feição rural, e a crítica a ela, por força do caráter 'sem limite' desse mesmo poder de dissolvência, barbarizante no seu atropelo a tudo. Presente a categoria do nacional, o processo de modernização técnico-econômica aparece em grande parte como subproduto da dominação e da dependência. O que gera forte preocupação com o 'destino nacional' e faz um movimento como o cinema novo colocar em cena, não personagens que representem o indivíduo ou o homem em geral, mas situações que remetam a plateia às questões do país. Ou seja, faz esse movimento privilegiar, no seu imaginário, o que tipifica a nação e sua relação particular com os dados da modernidade.” (XAVIER, 2012, p.433-434).

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uma conotação positiva para uma extensa corrente de pensamento com tendência a associar o projeto nacional a uma “vontade de modernidade”, cara a uma estrutura social que ainda não completara o processo de modernização. O autor defende que essa concepção, presente em tendências ideologicamente diversas, teve um papel historicamente progressista quando se contrapôs às forças sociais oligárquicas e conservadoras e ao imperialismo internacional, mas, teve também um resultado negativo: “o de termos mergulhado numa visão acrítica do mundo moderno”. (ORTIZ, 1988, p.36). Assim, as críticas à modernidade vieram, em geral, de intelectuais conservadores, como Gilberto Freyre, que valorizavam o polo tradicional, ao passo que o pensamento progressista se preocupava eminentemente com a superação do “atraso”. Essa tendência geral do pensamento social brasileiro à acriticidade em relação ao mundo moderno seria um dos fatores explicativos para o “relativo silêncio” sobre a “cultura de massa” no Brasil, com os primeiros artigos sobre o tema publicados somente no final dos anos 1960 e, mesmo assim, sem que a discussão adquirisse centralidade, uma vez que o “eixo do debate permanece ainda a questão nacional”. (ORTIZ, 1988, p.15). Conforme sugere o autor, é possível que a vigência do regime autoritário tenha sido um fator causal desse silêncio, ao canalizar os debates para as problemáticas políticas nacionais, sendo sintomático que nos anos 1970 o referencial gramsciano tenha ganhado destaque nas análises de cultura no Brasil em detrimento do referencial frankfurtiano. As considerações de Ortiz (1988) se coadunam com a argumentação aqui esboçada em relação à ênfase na “questão nacional” que atravessa as diferentes fases do Cinema Novo. Essa característica do movimento é realçada quando a contrastamos com a abordagem de determinada fração do cinema paulista na qual está menos em questão a problemática do “povo”, da “nação” e do subdesenvolvimento do que as contradições da própria modernidade, o que inclui um olhar agudo sobre o universo da indústria cultural, como veremos mais adiante. Extrapolaria os objetivos da presente investigação adentrar numa análise comparativa entre cinema paulista e carioca ou mesmo apresentar exame aprofundado do cinema paulista como um todo. Também não é nosso objetivo analisar a representação da cidade de São Paulo no cinema, tema já trabalhado por outros autores194. O objeto aqui são as

194 Ver, por exemplo, a tese de Marta Nehring, São Paulo no cinema: a representação da cidade nos anos 1960 (2007); o livro São Paulo em preto & branco: cinema e sociedade nos anos 50 e 60 de Waldir Salvadore (2005) e o fundamental trabalho do Professor Rubens Machado Jr., grande referência nos estudos sobre as imagens de São Paulo no cinema apresentados em inúmeros textos (Cf., entre outros, Machado Jr, 2002, 2004, 2007, 2008). Outra referência sobre a cidade de São Paulo no cinema é o recém-lançado World Film Locations: Sao Paulo, organizado por Natalia Pinazza and Louis Bayman (2013).

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obras e as trajetórias dos cineastas que denominamos “paulistas do entre-lugar”, com destaque para uma vertente dessa filmografia que coloca em foco a modernidade urbana capitalista e tem, quase invariavelmente, a cidade de São Paulo como lócus. Mesmo não sendo nosso objeto, é salutar, entretanto, a observação de que a abordagem da dinâmica capitalista remonta a filmes paulistas anteriores e diversos, para além das trajetórias aqui focalizadas, cabendo uma breve revisão de alguns filmes dessa linhagem para melhor situarmos os filmes dos “paulistas do entre-lugar” que serão posteriormente analisados. Tomando como ponto de referência a produção dos anos 1950, Uma pulga na balança (Luciano Salce, 1953) é um dos primeiros filmes paulistas localizados que, ao invés de apresentar uma ode à modernidade capitalista e suas pretensas oportunidades de ascensão social, esboça visão crítica sobre a lógica desse sistema. O contraste é claro, por exemplo, com Esquina da ilusão (Ruggero Jacobbi, 1953), filme lançado no mesmo ano e que, assim como Uma pulga na balança, é uma produção da Vera Cruz. Em Esquina da ilusão – e poderíamos tomar também como exemplo os diversos filmes de Mazzaropi – as diferenças de classe são resolvidas primeiro com as rocambolescas trocas de identidade típicas da chanchada e ao final com a conciliação onde o pobre aprende a “aceitar o seu lugar” e, aquele que, por “merecimento”, faz jus à ascensão social, torna-se rico pelo casamento195, num final plenamente conciliatório e reiterador da ordem; enquanto em Uma pulga na balança, igualmente trabalhando com o humor196, a visão é bem mais ácida e crítica e não só sugere a origem desonesta das riquezas, mas coloca a nu a estrutura social injusta que torna praticamente impossível a ascensão social senão por meio de golpe. Isso se explicita jocosamente na cena em que o protagonista, o doce estelionatário Dorival, calcula que a amiga Dora, presa por roubar para comer, teria que trabalhar a vida toda para conquistar os 600 contos de réis que ele pretende lhe conceder por um subversivo golpe que tiraria da

195 O enredo de Esquina da ilusão tem como protagonista Dante Rossi, imigrante italiano proprietário de uma cantina no Brás. Envergonhado diante do irmão que, permanecendo na Itália tornou-se um bem-sucedido empresário, mente em carta ser um grande industrial. Quando o irmão o visita no Brasil, ele, com a ajuda de amigos, consegue manter a farsa, fingindo ser Atílio Rossi, industrial de quem seu amigo Alberto era motorista. Depois de confusões rocambolescas, Atílio acaba descobrindo a situação e generosamente perdoa Dante, oferecendo-se para ajudar a manter a mentira e facilitar a sociedade de Dante com o irmão na Itália, o que é recusado pelo protagonista que ao longo do processo percebeu que não estava habilitado para ser rico: “não entendo nada de tecelagem, não entendo nada de metalúrgica, não quero mais contar mentiras, não quero mais sentir vergonha”, diz ele pedindo apenas que o industrial ajude Alberto que “estudou e merece”. O generoso industrial ajuda Alberto, a quem sua esposa tem como filho, e ele se casa com a sobrinha rica de Dante. Sabe-se que Roberto Santos detestara o filme, tendo realizado O grande momento como um contraponto à visão que este apresentava do Brás. (Cf. Futemma, 1982, p.19). 196 Embora apresentem as rocambolescas trocas de identidade típicas da chanchada, Uma pulga na balança e Esquina da ilusão não são chanchadas típicas pois são realizadas com maior apuro técnico do que as produções da Atlântida (afinal, são produções da Vera Cruz), não incluem números musicais etc. Sobre as características da chanchada ver Augusto (1989).

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própria família do falecido patrão de Dora o “fruto de 50 anos de trabalho” da moça.197 Frustrado o golpe, Dorival é condenado e Dora termina em total desamparo, final amargo num filme essencialmente cômico. Moral em concordata (Fernando de Barros, 1959) é outro filme paulista em que o recorte social de classe é evidenciado. Baseado na peça homônima de Abílio Pereira de Almeida, produtor e corroteirista na versão cinematográfica, o filme tem como protagonistas duas irmãs: Estrela, dona de casa, casada e dedicada aos afazeres domésticos, ao filho e ao marido, além de costurar roupas por encomenda; e Rosário, solteira, corista de boate que complementa a renda da família por meio do relacionamento com homens casados. Se em Uma pulga na balança as pequenas possibilidades para modificação da condição social dos personagens pobres se davam por meio de golpe, neste filme elas se dão por meio da prostituição, com a diferença de aqui as tentativas são bem sucedidas, o que quase impediu que o filme fosse financiado pelo Bando do Estado198. Desde a abertura, Moral em concordata situa com clareza as condições sociais da família. Moram na Água Rasa, bairro da periferia de São Paulo, muito distante do centro da cidade que foi visto nos créditos de abertura. Conforme assinala irônica e criticamente a narração, Raul, marido de Estrela, “é caixeiro de uma loja no centro. São sete horas da manhã, Raul entra as oito e meia e já está atrasado. O tempo que perde no próprio transporte ninguém lhe paga, nem mesmo na época das eleições”. A dura e desvalorizada jornada de Estrela no trabalho doméstico é também colocada em relevo: “o trabalho de Estrela começou mais cedo quando acordou o marido e vai até muito tarde. Para ela não há horário, não se contam horas extraordinárias”. O bebê é apresentado em tom ironicamente pomposo, “o menino se chama Luisinho, filho legítimo do casal, com registro e batistério, o herdeiro do casal!”, que, em seguida, se descontrói “Herdeiro de quê? De nada, nem de esperanças.”. No desenrolar do filme, Raul, promovido no trabalho por influência de Rosário que pensava assim ajudar a irmã, abandona a mulher e leva consigo o

197 Em Uma pulga na balança Dorival é um ladrão que se deixa prender voluntariamente para, a partir da prisão, aplicar golpes em famílias ricas. O golpe consiste em procurar nos obituários dos jornais nomes de pessoas ilustres para então enviar à família do falecido cartas que sugerem o envolvimento do morto com negócios escusos dos quais ele, Dorival, seria cúmplice. Para manter seu silêncio, solicitava uma quantia como ajuda que prontamente era paga pelas “respeitáveis” famílias, não convictas da idoneidade de seus mortos. Até que se descobre que um dos falecidos – justamente o patrão de Dora –, era de fato um criminoso procurado e a carta é utilizada para incriminar Dorival como cúmplice de crimes nos quais ele não estava verdadeiramente envolvido. 198 Moral em concordata foi alvo de controvérsias quando foi avaliado para obtenção de financiamento do Banco do Estado de São Paulo do qual, ao que se pode concluir do encadeamento dos documentos, só recebeu recursos graças ao prestígio e intervenção de Flávio Tambellini, então presidente da Comissão Estadual de Cinema. Cf. BANCO DO ESTADO DE SÃO PAULO (org). Coleção de documentos sobre pedido de financiamento para o filme “O Caminho do pecado”, ou, “Moral em concordata”. São Paulo, set.-dez. 1958. Dat. (Documentação Banespa).

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filho, o que leva Estrela a uma dura peregrinação por instâncias de justiça, descobrindo que, como assinala a amiga Filomena, “gente pobre é como soldado, só tem direito é pra cadeia”. É Rosário que por influência do amante rico conseguirá reaver o menino, e, a essa altura, Estrela já percebeu que poderia também melhorar de vida trilhando o caminho da irmã, com o que Rosário discorda visto que gostava de ter em Estrela o modelo de “honestidade” a justificar as razões da sua própria “vigarice”, conforme argumento do filme. Não obstante seu caráter um tanto “naturalista”199, Moral em concordata é um filme bastante interessante para a época, denunciando não apenas as condições sociais, mas também as de gênero, com referências muito claras à opressão feminina, inclusive à violência doméstica. Noite vazia (Walter Hugo Khouri, 1964) é outro filme que trata da prostituição na metrópole, tema “clássico” no cinema e que se atrela muitas vezes à representação da reificação das relações sociais na modernidade. Filme ícone da filmografia paulistana, acompanha uma noite desventurosa em que dois amigos buscam a companhia de duas prostitutas de luxo. Embora o filme coloque em relevo o vazio existencial que atravessa os personagens, apresentando-se como uma perspectiva de certo modo crítica à modernidade, essa crítica não inclui preocupação maior com a problematização social. Diferentemente de Moral em concordata no qual há uma separação clara entre o universo dos pobres e o universo dos ricos, no filme Khouri, não é retratado o universo das prostitutas e há, não obstante a troca monetária, uma quase horizontalização na relação entre os personagens, o que “aplaina” o conflito central, conforme assinala Marta Nehring (2007, p.92). Além disso, como observa a mesma autora, Noite vazia, em sua abordagem da modernidade pelo enfoque da prostituição, insere crítica à sociedade regida pelo dinheiro mas, ao mesmo tempo, esgueira-se da denúncia da exploração capitalista, passando ao largo do operariado e da relação patrão- empregado. Se a mediação do dinheiro é explicitada em várias cenas, a origem deste é obscurecida. Luís, o protagonista rico, cuja vontade move as ações dos demais, é “caracterizado como rico 'desde sempre'”, como assinala Nehring (2007, p.84). O dinheiro proporciona-lhe tudo o que deseja mas não o liberta da frustração e insatisfação íntima que o acompanha. A narrativa cíclica, que começa no início da noite e termina ao amanhecer com indicações verbais da próxima “noitada”, salienta a vacuidade e a ausência de perspectivas redentoras. “Redentoras” (e não transformadoras) nos parece o termo mais adequado visto que os dilemas do filme – traço habitual do cinema de Khouri – são antes existenciais do que

199 Naturalista no sentido lukacsiano, ou seja, descritivo sem ir além da superfície. (Cf. Lukács, 1965). Salvadore (2005, p. 111) classifica a “fita” como “esquemática, estereotipada e teatral, no pior sentido da palavra”.

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históricos, sem fundamentação concreta numa estrutura social definida200. O sexo atravessado pelo dinheiro é também tema de O quarto (Rubem Biáfora, 1968). Neste filme Martinho é um solitário funcionário público de meia-idade cuja vida se passa do trabalho ao pequeno cômodo que faz as vezes de morada, buscando no encontro com prostitutas – que não são de luxo como as de Noite vazia – alguma satisfação. O acaso, porém, lhe permite viver uma aventura com uma bela e elegante mulher burguesa, o que lhe dá a ilusão de resolução de seus problemas. Em sua mentalidade machista, julga-se “possuidor” da amante e lhe propõe casamento, mas ela lhe mostra que nunca teve intenção de incorporá-lo à sua vida social e que ele significava para ela apenas um passatempo sexual. Martinho volta, então, à sua existência miserável no “quarto”. Este filme de Biáfora é quase que uma versão às avessas de Noite vazia, alimentada pelos novos ventos da liberação sexual feminina. Entretanto, o cerne, assim como a trama cíclica, é o mesmo nos dois filmes: aos burgueses a busca pelo prazer é facultada por tudo o que o dinheiro pode ofertar, até mesmo a compra de pessoas; mas, se alguns compram e outros são vendidos, o que se sobressai é a miséria existencial comum a todos. Mais próximo do viés de abordagem dos cineastas paulistas aqui analisados é Lance maior (Sylvio Back, 1968), filme que, embora tenha Curitiba como cenário, carrega elementos de proximidade com São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965) e foi realizado em interlocução com os cineastas Roberto Santos e Maurice Capovilla, conforme assinala Rosane Kaminski (2006, 2008, 2012). O filme de Back focaliza um triângulo amoroso atravessado por relações de classe. Mário, bancário e estudante de direito se divide entre duas mulheres: Neusa, balconista de loja e Cristina, rica estudante universitária. Embora o filme comece como uma aparente história de amor entre Mário e Neusa, o seu desenrolar mostrará a mesquinhez dos personagens em busca de ascensão social ou, no caso de Cristina, da manutenção do status. Enquanto Mário almeja o casamento com Cristina, ela considera o relacionamento com ele apenas passatempo, e, de seu lado, Neusa resiste às investidas de Mário pois acredita que, sendo casta, são maiores suas chances de casar bem. E Mário não quer nada além de divertir-se com ela, afinal, “guria de loja” não é pra casar. Como ela resiste, ele segue relacionando-se com prostitutas das quais já adquirira doença venérea, metáfora da podridão por trás de sua imagem de rapaz bonito e “bom partido”. Toda essa crueza da trama só vai se desvendando aos poucos, conforme os personagens se dão a conhecer para além das aparências que mostram uns aos outros. O que diferencia esse filme dos anteriormente citados

200 Renato Luiz Pucci Jr. (2001) analisa o cinema de Khouri traçando relações com a filosofia de Schopenhauer.

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é que os espaços de trabalho de Neusa e Mário – assim como o não-trabalho de Cristina – são bem caracterizados, inclusive com a presença de colegas de trabalho que partilham das mesmas condições, de modo que os protagonistas não são apenas individualmente ricos e pobres, mas evidenciadamente representantes de classes sociais distintas. Como analisa Kaminski (2008, p.233), é justamente a partir das sequências em que são focalizados os ambientes de trabalho de Mário e Neusa que o filme passa de um primeiro momento de “abertura de possibilidades” para a gradativa crueza, diluindo idealizações. Em suas conversas, os bancários comentam do salário insatisfatório, da instabilidade no emprego e planejam uma greve; no vestiário da loja as moças reclamam do salário insuficiente, da não formalização do contrato de trabalho de uma delas, da negativa do patrão em dar o aumento requerido por outra – “teria que dar pra todas”. Adiante, em cena filmada na área de vendas da loja de tecidos, as moças reclamam sobre as dores nas pernas e a falta de tempo para almoçar direito e comentam a demissão da colega sem registro em carteira de trabalho. A configuração da câmera, como bem analisa Kaminski (2008, p. p.352-353), mostra a um só tempo o interior da loja monótono e o exterior, onde as ruas estão movimentadas e a vida parece transcorrer, de modo a passar uma atmosfera de aprisionamento das funcionárias. Todos os três protagonistas, entretanto, em momento algum questionam a ordem social, o que eles querem é um bom lugar nessa estrutura. E todos são frustrados nessa busca – até mesmo Cristina cujo pretendente de sua classe não lhe dá atenção. A frustração mais enfatizada, entretanto, é a de Mário que perde ambas as moças e termina bêbado e humilhado, literalmente no chão, para onde a câmera se abaixa e o focaliza. Para Kaminski (2008) o filme, em sua trama na qual os personagens retomam ao lugar de onde partiram expressa uma estrutura temporal circular, vazia, onde inexiste telos. Essas características são compartilhadas por outros filmes da época, como assinala Ismail Xavier, que Kaminski cita: “A vontade de um diagnóstico geral da nação e a tematização do fracasso se articulam à representação dos impasses de uma juventude cuja forte presença no imaginário social não mais carrega, no final da década, as mesmas ilusões de poderes efetivos”. (XAVIER, 2012, p.194). É fato que no filme o que sobressai é o fracasso das perspectivas dos personagens, mas, ainda que sutilmente, o filme sugere caminhos alternativos que não necessariamente dariam no “beco sem saída”201 do caminho escolhido por Mário. Por exemplo, se Mário cede às pressões do gerente e assina o termo de compromisso em não participar do movimento de greve, há no filme o exemplo do colega

201 “E se a gente continua... vai prum beco sem saída.... beco sem saída...”. são versos repetidos na canção que abre o filme e anunciam a tônica da obra, como bem percebe Kaminski (2008).

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Andrade que prefere arriscar seu emprego a ceder. Lance maior é um filme voltado para o grande público e fazer uma apologia mais direta à greve em 1968 possivelmente inviabilizaria a sua carreira comercial, mas apenas o fato de mencioná-la em sua diegese já é significativo202, ainda mais por se tratar de uma greve como a dos funcionários de banco, que estava em andamento na época de realização e lançamento do filme, conforme as informações de Kaminiski (2008, p. 234). Tal greve era, segundo a autora, conduzida pela AP (Ação Popular) em Curitiba, organização de esquerda católica com a qual Sylvio Back esteve envolvido entre 1967 e 1970203. Enfim, Lance maior não se restringe ao vazio e aponta para um horizonte de possibilidades, ainda que tênue, mas alternativo ao caminho estéril seguido pelos protagonistas. O tema da ascensão social volta em Compasso de espera (Antunes Filho, 1969- 1973), aqui acompanhado de um componente raro na filmografia brasileira: a problematização do racismo. Jorge é um poeta e publicitário negro que conquistou algum espaço na sociedade e vive confortavelmente mas sofre com preconceitos velados ou explícitos. A questão racial se mistura à crítica social nos dilemas pessoais do protagonista dividido: de um lado, a poesia, de outro a publicidade; de um lado, a patroa mais velha que lhe dá segurança, de outro, a jovem espontânea por quem se apaixona, branca e rica assim como a patroa; de um lado a (má) integração nas altas rodas, de outro a cobrança da irmã e dos amigos por um comprometimento com seus semelhantes. O filme, como a crítica apontou à época204, é um filme “tese”, com diálogos excessivos e personagens que estão ali para discussão teórica, como é o caso do personagem de Antonio Pitanga, amigo do protagonista que cita Malcom X e os Panteras Negras. Em mais um caso de influência da sociologia sobre o cinema paulista, tema a que voltaremos no capítulo 5, Antunes Filho afirma ter se apoiado, entre outras referências, nos trabalhos de Florestan Fernandes sobre o negro no Brasil205. Mas, independentemente de seu enrijecimento, Compasso de espera é um filme importante, com sequências fortes e bela fotografia, que colocou em tela questões não problematizadas pelo cinema na época, cumprindo em larga medida os objetivos do seu realizador que considera ter feito “um dos poucos filmes do terceiro mundo, não sei se o único, que tenta um levantamento

202 Conforme assinala Kaminski “Note-se que Sylvio Back, quando ingressou na AP, ainda sofria o peso do IPM [Inquérito Policial Militar] movido contra os jornalistas do Última Hora em 1965, do qual só ficaria livre em dezembro de 1968. Nesse sentido, ele [Back] comenta que “filmar um roteiro que mexia com greve e dirigido por um notório ‘subversivo’, significou pisar em ovos o tempo todo”( KAMINSKI, 2008, p.129). 203 Cf. Kaminiski, 2008, p.128 204 Cf., por exemplo, Avellar (1976). 205 “Cf. “UM FILME em em preto e branco sobre gente branca e preta”, O Globo, 22 de março de 1976.

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sociológico do negro não escravo, vivendo numa sociedade industrial, tecnocrática, capitalista, sofisticada. A sociedade de uma minoria que vive bem, segundo os padrões ocidentais, contra o pano de fundo de uma maioria que vive mal”. (ANTUNES FILHO apud UM FILME... 1976). Cordélia, Cordélia (Rodolfo Nanni, 1971) é um dos filmes paulistas em que a reificação das relações sociais é expressada por meio de uma personagem feminina206. Inspirado na peça de Antônio Bivar, O começo é sempre difícil, Cordélia Brasil, vamos tentar outra vez? (1967), o filme de Nanni se afasta do humor ácido de Bivar e confere à personagem título um perfil mais reflexivo e intelectualizado que guarda semelhança, por exemplo, com a personagem Hilda de São Paulo, sociedade anônima, do qual trataremos adiante.207Assim como Hilda, Cordélia é levada ao suicídio pelo vazio existencial. Secretária executiva, eventualmente modelo fotográfica, casada com um homem que se nega ao trabalho, complementa a renda prostituindo-se com clientes da empresa onde trabalha, a pedido do patrão, interessado no favorecimento de seus negócios. O filme se constitui sem grandes ações apenas seguindo a rotina engolfante de Cordélia, que é acompanhada de maneira distante por uma composição fílmica de muitos planos gerais, de conjunto e médios, poucos primeiros planos208 e pouca movimentação de câmera, o que favorece a ideia da banalidade, um olhar observador de um cotidiano medíocre na metrópole. À exceção de suas recordações de juventude, a protagonista está sempre em espaços fechados: o apartamento, o escritório, o restaurante japonês e o quarto de hotel em que se prostitui com o empresário norte-americano. Quando está ao ar livre, é “fechada” pela multidão das ruas de São Paulo e no único momento de “respiro” ao ar livre, quando acompanha o chefe em negócios no porto de Santos, a construção fílmica não explora a paisagem e ao invés do barulho do mar, ouve-se

206 Analisamos mais detidamente Cordélia, Cordélia em Leme (2015), paper no qual traçamos paralelos entre este filme e Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967) e Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr., 1968). 207 Pode-se traçar paralelos entre a cena que precede o suicídio de Hilda, na qual ela fala de seu sentimento “pessoal e intransferível” sendo sua silhueta enquadrada na janela à contraluz, tendo ao fundo os prédios de São Paulo e a cena de Cordélia na janela do escritório, observando os passantes no Vale do Anhangabaú: “Seria fácil, fácil e feio. Na trajetória deve gelar tudo. Dois segundos terríveis de arrependimento. O último pensamento como um frêmito. Um baque surdo. O sangue explode todo dentro da gente que não é mais gente, é só curiosidade”. Nas duas mulheres há o olhar vago expressando o sentimento agudo de vazio existencial; no contraplano da cidade, a subjetividade perdida no desumano da metrópole; lá os prédios aglutinados e engolfantes, aqui os passantes como formigas operárias no cotidiano repetitivo. 208 Conforme explicam Xavier (1977) e Aumont e Marie (2003), a tipologia referente às “dimensões de plano” é flexível e varia de uma língua para outra. Na classificação de Aumont e Marie, essa tipologia “vai do plano geral (personagens afogadas no cenário) ao primeiríssimo plano (o rosto, ou uma parte do rosto, ocupa todo o quadro), passando pelo plano de conjunto, o plano americano, o plano médio, o plano aproximado, o primeiro plano” (AUMONT; MARIE, 2003, p.101).

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o insistente e perturbador ruído do motor da lancha e os sons dos barcos a vapor com suas chaminés soltando fumaça, assemelhando-se à atmosfera da cidade. Uma possível saída é vislumbrada por Cordélia ao conhecer o jovem vendedor de carros, Ricardo, ou simplesmente “Rico”, por quem se atrai assim como fora atraída por um carro vermelho na vitrine da concessionária. Mas, do mesmo modo como a casa de Rico assemelha-se mais ao show room de loja do que a um lar, o relacionamento com ele está longe de representar o amor e Cordélia, desiludida, conclui o desenlace trágico previsível ingerindo todos os comprimidos do frasco de remédio que utilizava para dormir. O marido, que, se vislumbra, participava de reuniões clandestinas de preparação para a guerrilha urbana, morre em explosão acidental da bomba- relógio que construíra. Entre o ano de 1972 e aproximadamente 1976/77 há quase uma paralisação do cinema “culto” paulista, em paralelo à ascensão da produção eminentemente comercial da Boca do Lixo. Nanni não filmará mais, Biáfora idem, Antunes Filho não dá continuidade à sua incursão no cinema, Khouri e Fernando de Barros se aproximarão do filão erótico. Os cineastas foco de nossa pesquisa, igualmente, se afastam do cinema e passam a dedicar-se, entre outras atividades, à publicidade e à televisão, como vimos no capítulo 2. Cabe menção, entre esses trabalhos, à série O poeta e a cidade realizada por Roberto Santos para a TV Cultura em 1974. Em dez episódios, a série aborda diversas faces da cidade de São Paulo, seus monumentos, ruas, construções e sociabilidades, estas trabalhadas por meio de figuras anônimas, como os transeuntes na cidade, trabalhadores da construção civil, crianças nos faróis e casais em pontos de ônibus, enfim, pessoas que em geral não são vistas na TV. Chama atenção na série a notável qualidade da construção audiovisual que articula elementos como imagem em movimento, imagem pictórica, poesia e música, num rico jogo de intertextualidade que adquire tons diversos, do irônico ao lírico, passando pelo melancólico. Vários episódios fazem crítica, ora mais, ora menos sutil, à modernidade urbana capitalista, à reificação de relações na metrópole, à poluição etc. O episódio Metrópole, por exemplo, que ao que parece abriu a série209, é construído a partir de seis poemas, com o quarto bloco pautado no poema “O maior parque industrial da América do Sul”, de Ribeiro Couto. É expressivo que o “olhar distraído”; o “fino sorriso” e o “vulto fútil” a que se referem os

209 Conforme datação do acervo da Biblioteca Roberto Santos, o episódio Metrópole foi exibido em 21 de janeiro de 1974. É estranho que alguns episódios sejam datados em datas coincidentes, sendo o caso de Estátuas igualmente datado de 21 de janeiro de 1974. Seguem-se Ruas das poesias de Guilherme de Almeida e São Paulo provinciano, datados de 28 de fevereiro de 1974. Os próximos são Os poetas cantam São Paulo de 21 de março do mesmo ano; O poeta, o homem e a cidade, de 22 de maio, Arquitetura de 26 de julho e, por fim, Pintores de São Paulo e Bairros de São Paulo, datados de 19 de dezembro.

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versos210 sejam no filme representados por imagens de manequins de plástico, ressignificando as palavras originais. O filme se encerra com a música Paulistana, retrato de uma cidade, também conhecida como Sinfonia Paulistana de Billy Blanco (1974)211, “valsa-galope” impregnante e impregnada por elementos forjadores da identidade paulistana, pautada no binônimo velocidade-trabalho, como analisa Elias Saliba (2004). A relação com os textos citados poucas vezes é meramente ilustrativa. De um modo geral, constrói-se com eles um jogo de complementaridade ou de oposição. No episódio Os poetas cantam São Paulo, por exemplo, se a canção Botaram tanto lixo (1973)212 de Tom Zé dá significados adicionais às imagens de um depósito de lixo com urubus, do poluído Rio Tietê, das indústrias e suas chaminés, além dos barulhos incômodos da cidade, a canção Terra do amor (1972)213 de Tom e Dito é alvo de ironia das imagens. Enquanto se ouvem os versos “Não pense você/Que este

210 No filme o poema é intitulado como O maior parque industrial da América do Sul, mas o localizamos sob o título São Paulo em “Melhores Poemas de Ribeiro Couto”, seleção de José Almino de Alencar (2002): “Estas casimiras são resistentes como as inglesas/Estas tintas são tão boas como as alemãs./Este aço é de Ribeirão Preto./Não te comoves? Tudo que vês, inumerável, nesta sala,/ É indústria de São Paulo. (Seu olhar distraído pousa em todas as coisas/Inteiramente alheio às significações.)//Vem saudar da janela a Capital: descobre-te. Vê com que força, para o céu discreto e pensativo,/As massas de cimento armado erguem braços que chamam./Olha com que amplidão no horizonte das várzeas/O áspero manto das chaminés se perde ao longe./Ouve o clamor dos trens, dos motores,dos homens/Ouve o apelo à energia!//(Seu fino sorriso cai frouxamente de um lábio irônico).//Pensa agora um momento naquele pobre padre,/Há quatrocentos anos, nestas mesmas colinas,/Sozinho, perdido entre as ínvias florestas,/Iniciando em Deus os bugres desconfiados/E fundando o espírito de tudo que vês.//Vem de novo comigo. Olha estas máquinas agrícolas... Estes chapéus de feltro... Estes panos de seda... Estas louças... Estes móveis... Estes brinquedos...Esta cutelaria... Estes produtos químicos...//(Seu vulto fútil bamboleia displicente/Entre as galerias da indústria do seu povo,/Incapaz de penetrar-lhe o profundo sentido.)”. 211 “São Paulo que amanhece trabalhando/São Paulo, que não sabe adormecer/Porque durante a noite, paulista vai pensando/Nas coisas que de dia vai fazer/ São Paulo, todo frio quando amanhece/Correndo no seu tanto o que fazer/Na reza do paulista, trabalho é o Padre-Nosso/É a prece de quem luta e quer vencer// Começou um novo dia, já volta quem ia,/O tempo é de chegar/De metrô chego primeiro, se tempo é dinheiro/Melhor, vou faturar/Sempre ligeiro na rua, como quem sabe o que quer/Vai o paulista na sua, para o que der e vier/ cidade não desperta, apenas acerta a sua posição/Porque tudo se repete, são sete/E às sete explode em multidão:/Portas de aço levantam, todos parecem correr/Não correm de, correm para/Para São Paulo crescer/Vambora, vambora, olha a hora/Vambora, vambora,/Vambora, vambora, olha a hora/ Vambora, vambora/Vambora”. Cf. “Sinfonia paulistana”, disponível em: Acesso em: 20 de dezembro de 2015. 212 “Botaram tanto lixo/ por baixo da consciência da cidade,/que a cidade/tá, tá tá tá tá/com a consciência podre,/com a consciência podre./Botaram tanto lixo, /botaram tanta fumaça,/Botaram tanta fumaça /por cima dos olhos dessa cidade,/que essa cidade/tá, tá tá tá tá/está com os olhos ardendo,/está com os olhos ardendo.//Botaram tanto lixo, /botaram tanta fumaça,/botaram tanto metrô e minhocão/ nos ombros da cidade, /que a cidade/tá, tá tá tá ta./Está cansada,/sufocada,/está doente,/tá gemendo/de dor de cabeça,/de tuberculose,/tá com o pé doendo,/está de bronquite,/de laringite,/de hepatite,/de faringite,/ de sinusite,/de meningite./Está, se.../ta tá tá tá tá/com a consciência podre.Botaram tanto lixo, /botaram tanta fumaça,/botaram tanta preocupação /nos miolos da cidade/que a cidade/tá, tá tá tá tá/está de quente.” Letra disponível em: . Acesso em 20 de dezembro de 2015. 213“São Paulo, terra da gente /Da gente que é gente /Nascida do amor /Não pense você/Que este céu nublado/Que o trabalho dobrado/Faz do paulista um robô/Tem muito samba o sol, o céu e o mar /Fim de semana em Santos, Guarujá /São Paulo, São Pau....lo/Adoro você/ sabadabada, sabadabada /sabadabada, sabadabada/sabadabada, sabadabada.” Letra disponível em: . Acesso em 20 de novembro de 2015.

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céu nublado/Que o trabalho dobrado/Faz do paulista um robô/Tem muito samba o sol, o céu e o mar/Fim de semana em Santos, Guarujá”, a câmera de Roberto focaliza os paulistanos divertindo-se, sim, mas num clube para o qual o acesso às piscinas se dá por meio da passagem por ostensivas portas de metal giratórias e que por fora está contornado por grades de onde a câmera faz suas primeiras aproximações. Após longo tempo focalizando a entrada das pessoas pelas portas giratórias, a câmera passa a focalizar as pessoas que saltam do trampolim para a piscina, priorizando o enquadramento dos saltos e não a chegada dos banhistas na água, o que confere um sentido metafórico à cena ao coincidir no áudio com os versos: “São Paulo, adoro você”. Construir “portas por-onde, jamais portas-contra” é o manifesto expresso na citação do poema Fábula de um arquiteto (1966)214 de João Cabral de Melo Neto que finaliza outro episódio, Arquitetura. Previamente, neste mesmo episódio, a narração expressa um apelo, de autoria não identificada, pela humanização da cidade: “A cidade tem anseios como o homem mas para descobrir isso é preciso que antes de ser das mercadorias, dos transportes, dos tubos e fios, das obrigações, do trabalho, a cidade é dos homens que a usam e que vendo-a constroem-na sua”. Há vários outros episódios que poderiam ser citados mas, talvez, o mais sintetizador da proposta seja O poeta, o homem e a cidade que tem como fio condutor o poema Especulações em torno da palavra homem215 de

214“A arquitetura como construir portas,/de abrir; ou como construir o aberto;/construir, não como ilhar e prender,/nem construir como fechar secretos;/construir portas abertas, em portas;/casas exclusivamente portas e teto./O arquiteto: o que abre para o homem/(tudo se sanearia desde casas abertas)/portas por-onde, jamais portas- contra;/por onde, livres: ar luz razão certa./Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto./Onde vãos de abrir, ele foi amurando/opacos de fechar; onde vidro, concreto;/até refechar o homem: na capela útero,/com confortos de matriz, outra vez feto.” (MELO NETO, 1994, p.345-346), poema originalmente publicado em 1966. 215 “Mas que coisa é homem,/que há sob o nome:/uma geografia?// um ser metafísico?/fábula sem/ signo que a desmonte?//Como pode o homem/sentir-se a si mesmo,/quando o mundo some?// Como vai o homem/junto de outro homem,/sem perder o nome?//E não perde o nome/e o sal que ele come/nada lhe acrescenta//nem lhe subtrai/da doação do pai?/Como se faz um homem?//Apenas deitar,/copular, à espera//de que do abdômen//brote a flor do homem?/Como se fazer/a si mesmo, antes//de fazer o homem?/Fabricar o pai/e o pai e outro pai//e um pai mais remoto/que o primeiro homem?/Quanto vale o homem?//Menos, mais que o peso?/Hoje mais que ontem?/Vale menos, velho?//Vale menos morto?/ Menos um que outro,/ se o valor do homem//é medida de homem?/Como morre o homem,/como começa a?//Sua morte é fome/que a si mesma come?/Morre a cada passo?//Quando dorme, morre?/Quando morre, morre?/A morte do homem//consemelha a goma/que ele masca,ponche/que ele sorve, sono// que ele brinca, incerto/de estar perto, longe?/Morre, sonha o homem?//Por que morre o homem?/Campeia outra forma/ de existir sem vida?//Fareja outra vida/não já repetida,/em doido horizonte?//Indaga outro homem?/Por que morte e homem/andam de mãos dadas//e são tão engraçadas/as horas do homem?/mas que coisa é homem?//Tem medo de morte,/mata-se, sem medo?/Ou medo é que o mata//com punhal de prata,/laço de gravata,/pulo sobre a ponte?//Por que vive o homem/Quem o força a isso,/prisioneiro insonte?/Como vive o homem,/se é certo que vive?/Que oculta na fronte?//E por que não conta/seu todo segredo/mesmo em tom esconso?//Por que mente o homem?/mente mente mente/desesperadamente?//Por que não se cala,/se a mentira fala,/em tudo que sente?//Por que chora o homem?/Que choro compensa/o mal de ser homem?//Mas que dor é homem?/Homem como pode/descobrir que dói?//Há alma no homem?/E quem pôs na alma/algo que a destrói?//Como sabe o homem/o que é sua alma/e o que é alma anônima?//Para que serve o homem?/para estrumar flores,/para tecer contos?//Para servir o homem?/Para criar Deus?/Sabe Deus do homem?//E sabe o demônio?/Como quer o homem/ser destino, fonte?//Que milagre é o homem?/Que sonho, que

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Carlos Drummond de Andrade que é trabalhado de maneira intercalada a outros poemas como Antônio Triste216 e Maria Felicidade217 de Paulo Bomfim e O cardápio218 de Carlos Queiroz Telles, e músicas como Construção de e Águas de março de Tom Jobim, colocando em relevo a desumanização na e da cidade. Por fim, para encerrar esse breve apanhado geral do cinema paulista que, por diferentes maneiras, colocou em foco as problemáticas da modernidade urbana capitalista, cabem, antes de passarmos aos filmes dos “paulistas do entre-lugar”, algumas palavras sobre Sete dias de agonia - O Encalhe (Denoy Oliveira, 1978-1982), filme que não tem a cidade de São Paulo como cenário e tampouco é um filme urbano mas que expressa, como raros, em seu microcosmo, os mecanismos da sociedade capitalista e, particularmente, do capitalismo à brasileira. Seu realizador, Denoy de Oliveira, oriundo do PCB, começou a carreira como ator no Rio de Janeiro e em meados dos anos 1970 incorporou-se ao cinema paulista, estabelecendo relações com os cineastas aqui analisados, especialmente com João Batista de Andrade.219 Sete dias de agonia foi realizado para o já mencionado projeto de pilotos para

sombra?/Mas existe o homem?” (ANDRADE, 2002, p.428). 216 “Esguio como um poste da Avenida/Cheio de fios e de pensamentos,/Antônio era triste como as árvores/Despidas pelo inverno,/Alegre, às vezes, como a passarada/Nos fins da madrugada.//Sozinho, como os bancos de uma praça/Em noites de neblina,/Antônio, protegido de retalhos/Com seu cigarro aceso/Lembrava-me um balão que, multicor,/Se vê no firmamento:/Não se sabe donde veio/Não se sabe aonde vai.//Não era velho/Nem era moço,/Não tinha idade/Antônio Triste.//Quando as luzes cansadas se apagavam/E as trevas devoravam a cidade,/Antônio Triste chorava e cantava:/À luz de um cigarro, bailava e rodava/Pelas ruas desertas e molhadas.//Mas, certa noite um varredor de rua,/Viu muito lixo no chão:/Tanto trapo amontoado,/Quase um balão de São João!//Um resto de cigarro num canto da boca,/A mecha se apagara./Antônio, o triste balão de retalhos,/Findara!” (BOMFIM, 1962 [1946] p.1) 217“Maria Felicidade/Era graciosa e bonita/Fora enganada e vendida/Com seu vestido de chita//Seu sangue era o mesmo sangue/Dos anúncios luminosos/Seus olhos da cor do asfalto/Durante os tempos chuvosos//Maria Felicidade/Princesa feita de barro/Tinha nos olhos tristeza/Tinha na boca um cigarro//Teve paixão pela lua/Por essa lua de prata/ Que lhe trazia lembrança/ Daquele cheiro de mata//Maria Felicidade/Numa noite de garoa/Sentiu saudades da lua/Sentiu saudades atôa//Seus olhos da cor do asfalto/Buscaram no céu nublado/Aquela amiga de infância/ Que as nuvens tinham roubado//Duas luas vinham vindo/Angustiadas, buzinando/Vinham de longe a correr/ mais perto chegando//Maria Felicidade/Na derradeira noitada/Benzeu com seu sangue moço/A rua triste e apagada//Seu corpo cor do luar/Desceu a vala sem data/Sua alma faz parte agora/Daquele luar de prata/Daquele cheiro de mata.(BOMFIM, 1962 [1946], p.4-5). 218 “A cidade está com sede, /a cidade está com fome./ Ferro, árvore, gente/De tudo a cidade come. //Como quem é consumido/e também a quem consome,/ come terra, come espaço,/a cidade está com fome. //Para servir a cidade/ estamos todos na mesa: /alguns à moda da casa. //Outros à milanesa./Os mais velhos vão na frente, os moços na sobremesa.” (TELLES in: GUEDES, 2004, p.35). 219 De acordo com Batista, o encontro com Denoy foi de grande importância naquele momento de reorganização política do cinema paulista: “Denoy e eu logo afinamos o discurso, vindos da mesma formação política, o PCB. Era impressionante como atuávamos juntos, como pensávamos parecido. E nossa visão era a de que em São Paulo a gente devia tentar um movimento bem aberto, amplo, que tentasse resgatar o cinema que já se fazia, na “Boca” e que pudesse abrir caminho para um cinema mais autoral,uma vez que cineastas já iniciados, como o Capovilla, o Roberto Santos, o Person, o Candeias e, dos mais novos, eu mesmo, o Reichenbach, o Ramalho, o Sganzerla, todos padecíamos da imensa dificuldade de armar um projeto, pois não tínhamos acesso aos financiamentos da Embrafilme. (BATISTA apud CAETANO, 2004, p.256 e 257). Denoy compôs a primeira diretoria da APACI (Associação Paulista de Cineastas), fundada em 1975, ao lado de João Batista de Andrade, Maurice Capovilla e Suzana Amaral, e em 1980 começa a filmar, como diretor, O Baiano Fantasma (Denoy de

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séries televisivas lançado pela Embrafilme e que não vingou, sendo ampliado depois para o longa-metragem220. Baseado no conto O encalhe dos 300 de Domingos Pellegrini, estabelece o enredo em torno do atolamento de caminhões e outros veículos em estrada do interior do Brasil, em decorrência de fortes e contínuas chuvas. A situação limite e a variedade de tipos sociais envolvidos permite a expressão crua e exacerbada de relações que se passam em nível mais sutil no contexto social geral. Caminhoneiros, retirantes, circenses, religiosos, um homem rico e seu cavalo premiado, crianças, doentes, prostitutas. Alguns dos que tem comida se aproveitam da fome dos demais para vender o que têm a preços exorbitantes; outros se solidarizam com os companheiros de infortúnio compartilhando o pouco que têm; um bebê morre; um dos caminhoneiros se apaixona pela freira que lhe cuida da perna; o “Comendador” cobiça a filha pré-adolescente, quase menina, de um boia-fria; a prostituta trabalha extrapolando os limites de suas condições físicas; o cavalo do “Comendador” é visto como potencial alimento, mas seu dono que, com o passar dos dias pouco se difere dos demais, usa o poder da arma para defender sua propriedade; a violência e o desespero afloram até que numa noite se avista uma estrela no céu indicando a estiagem. Comemora-se efusivamente: “Apareceu uma estrela”. Considerando-se que a produção do filme coincide com os momentos de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) não parece casual a referência à estrela e o verso da música de encerramento apresenta-se quase como slogan de campanha política: “Você pode crer em mudanças quando duvida de tudo”. Menos panfletários do que o filme de Denoy e mais socialmente fundamentados do que os filmes de Khouri e Biáfora, os filmes dos “paulistas do entre-lugar” compõem uma linha de abordagem da modernidade urbana capitalista que se insere com destaque nesse quadro maior do cinema paulista. Consideramos paradigmáticos quatro filmes dessa linha, cada um relacionando-se com os contextos histórico-sociais em que foram realizados, atravessando todo nosso recorte temporal que compreende desde o final dos anos 1950 até ao final dos anos 1970. São eles: O grande momento (Roberto Santos, 1958); São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965); Vozes do medo (longa coletivo coordenado por Roberto Santos, 1970) e O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980), aos quais dedicaremos as páginas seguintes. São filmes a respeito dos quais já existe considerável

Oliveira, 1984) filme que, conforme assinala Ricardo Calil em sua apresentação para o DVD da programadora Brasil , é “irmão” de O homem que virou suco, tratando também da questão do migrante nordestino em São Paulo e tendo como protagonista o mesmo José Dumont. 220 Carlos Alberto de Mattos (2002, p.238) na biografia de Walter Lima Jr. cita Sete dias de agonia de Denoy de Oliveira como um dos projetos que foi ampliado para o cinema. Walter Lima Jr., por sua vez, recusou-se a “engordar” seu piloto Joana Angélica que permaneceu inédito.

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fortuna crítica221, de modo que este subcapítulo não se prende a analisá-los esmiuçada e verticalmente; antes, busca defendê-los como estruturantes de um eixo crítico singular de abordagem da modernidade urbana capitalista.

3.3.1 O grande momento (Roberto Santos, 1958): o dinheiro atravessando a comunidade

Tido como um dos precursores do Cinema Novo, O grande momento (Roberto Santos, 1958), é um expoente do chamado “cinema independente” dos anos 1950, produzido com baixo orçamento e equipe reduzida, sem associação a grandes empresas. Com nítida influência neorrealista, o enredo se situa nas imediações do Brás e da Mooca, bairros proletários de São Paulo, constituídos majoritariamente por imigrantes italianos. Toda a trama se desenrola em apenas um dia e retrata as dificuldades de um jovem trabalhador para custear as despesas de seu casamento, o “grande momento” do título. Para Jean-Claude Bernardet (2007) a obra representa um “marco na filmografia brasileira”:

Isso porque, enquanto nascia o surto do cangaço e do Nordeste, O grande momento preocupava-se com a vida urbana, não com a intenção apenas de retratá-la, mas sim de analisá-la; porque, na cidade, não escolhia marginais, mas pessoas que representam a maioria absoluta na cidade; porque fazia do dinheiro o motor do enredo [...] era um filme adiantado para sua época. Ficou isolado. Era um ponto de partida magnífico para um cinema urbano; lançava temas, personagens, ambientes que poderiam ter-se desenvolvido, mas os cineastas não estavam aptos ainda a afrontar a cidade (BERNARDET, 2007, p.111).

A cidade de São Paulo e até mesmo seus bairros populares já haviam sido mostrados nas telas em filmes anteriores, como Sai da frente (Abílio Pereira de Almeida, 1951) e Nadando em dinheiro (Abílio Pereira de Almeida e Carlos Thiré, 1952) que, embora filmados no âmbito dos estúdios da Vera Cruz, apresentam tomadas externas de um cortiço de São Paulo.222 No entanto, nesses filmes, estrelados pelo célebre comediante Mazzaropi, o

221 Sobre O grande momento, ver, por exemplo, Salvadore (2005) que trata igualmente de São Paulo, Sociedade Anônima (1965). Ambos os filmes são analisados também por Bernardet (2007 [1967]) e comentados em obras panorâmicas como História do cinema brasileiro organizada por Ramos F. (1987a), Imagens brasileiras da metrópole: a presença da cidade de São Paulo na história do cinema de Machado Jr. (2007) e World film locations: São Paulo organizada por Pinazza e Bayman (2013). Noritomi (1997), Bin (1998) e Nehring (2007) analisam de forma detalhada São Paulo, Sociedade Anônima; enquanto O homem que virou suco é objeto das dissertações de mestrado de Santana (1999), Salvi (2000) e Pazzanese (2009). Vozes do medo é o único dos quatro filmes sobre o qual não foram encontrados trabalhos acadêmicos, mas sobre o qual escreveram críticos do porte de Paulo Emilio Salles Gomes (1973) e Jean-Claude Bernardet (1974). Sendo assim, entendemos ser redundante o esmiuçamento da análise interna destes filmes.

222 Cf. Salvadore, 2005, p.92

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enfoque da pobreza é caricatural e não elemento problematizado pela trama. Diferentemente, em O grande momento percebe-se preocupação em se caracterizar sócio-economicamente os personagens e promover uma reflexão sobre as precárias condições de vida das classes populares, que não têm meios suficientes para atender a preceitos sociais como os que envolvem o ritual do casamento. Conforme assinala Bernardet, a problemática subjacente é: “Embora o casamento seja modesto, embora essa gente trabalhe não há dinheiro que baste para pagar o casamento […] É lastimável que um indivíduo integrado à sociedade não possa cumprir as recomendações dessa mesma sociedade” (BERNARDET, 2007, p.109 e 110). Essa problemática é apresentada no filme de maneira singela, mas enfática. Zeca, o noivo, ao longo do dia em que precisa dar conta dos últimos preparativos para a festa, depara-se com uma série de dificuldades e imprevistos, todos girando em torno da falta de dinheiro, problema que aflige também sua família, amigos, credores e até mesmo seus pagadores, todos trabalhadores assalariados, autônomos ou pequenos comerciantes. Logo de início, Zeca recebe o recado de que não lhe será entregue a encomenda de doces para a festa se não saldar sua dívida na padaria. Ao receber, após insistência, pelos serviços de eletricista prestados num parque de diversões, ouve do responsável pelo parque o pedido para não alardear o recebimento, visto que não haveria dinheiro para efetuar mais pagamentos. Um colega lhe pede um empréstimo e outro informa que não poderá lhe dar um presente de casamento. Seu pai pede um adiantamento ao gerente no escritório da fábrica em que trabalha e ouve dele lamentações sobre o ônus de ser o padrinho do casamento. No modesto estúdio fotográfico do bairro, o noivo despende parte de seu pagamento pois “as encomendas só serão efetuadas mediante 50% pagos adiantadamente”. Com a noiva, deixa mais uma parte do dinheiro para a compra das flores. Na alfaiataria é surpreendido pela notícia de que o terno que pagaria em prestações terá que ser pago à vista, pois o alfaiate está com a esposa doente e precisa de dinheiro para o tratamento. Premido pelas circunstâncias, não vê alternativa senão a de vender sua estimada bicicleta. Tem-se então a consagrada cena do filme em que ele dá um passeio de despedida com a bicicleta pelo bairro.223 Pela venda, recebe apenas metade do

223 É difícil não nos lembrarmos de Ladrões de bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) e da correlata importância desse meio de transporte para ambos os protagonistas. Mas, como nos lembra José Carlos Avellar (2002) em sua contribuição ao debate sobre o “Neorrealismo na América Latina”, ao invés de buscarmos as semelhanças e eventuais “imitações” do cinema brasileiro em relação ao cinema italiano, é mais interessante “examinar de que modo as idéias de Rosselini, Visconti, De Sica e Zavattini, conhecidas ou apenas intuídas, estudadas ou apenas adivinhadas a partir de leituras ligeiras e das primeiras impressões causadas pelos filmes, modificaram o modo de pensar o cinema e colaboraram para reforçar algo pressentido aqui: a invenção de uma cinematografia nacional deveria partir de um contato tão direto quanto possível com a realidade em que vivem os cineastas”. (AVELLAR, 2002). Para Alex Viany, O grande momento foi um dos exemplos mais bem sucedidos de “aculturação brasileira dos preceitos neorrealistas” e “capta admiravelmente – brasileiramente – o ambiente

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valor acertado, ficando o amigo dono da oficina de levar o restante do valor à noite, na festa, fato que motivará um imbróglio do enredo: já casado, estranhando o atraso do amigo e precisando comprar mais bebidas para a festa, Zeca sai no meio da comemoração para cobrá- lo, acarretando desespero na noiva que pensa que ele fugiu, o que gera uma briga entre as famílias, filmada no estilo quase pastelão. O imbróglio é parcialmente resolvido quando Zeca é localizado, mas a questão financeira não é sanada, pois o amigo informa que até o momento só conseguira uma parte do valor combinado. O enredo se aproxima do fim com os recém- casados na rodoviária, depois de perderem o ônibus que pegariam rumo à lua-de-mel no litoral. Zeca não consegue trocar as passagens, compra novas e enquanto esperam o próximo ônibus acaba revelando à esposa sua situação financeira: “o dinheiro que eu tenho não dá pra nada quando muito pras passage de volta e um dia lá na pensão. Eu ia explicar quando a gente voltava.” “Quer dizer que não vamos ter nada logo nos primeiros dias?”, pergunta ela. Ao que ele responde: “Mais ou menos... quer dizer, é isso mesmo, nada, só uma porção de dívida”. Compreendendo a situação, a moça toma a iniciativa de devolver as passagens e recuperar o dinheiro delas. Com o dinheiro nas mãos, sorri para o noivo, que retribui, aliviado. Ambos correm felizes atrás do bonde que passa. O cobrador exclama: “Calma, que o Brasil é nosso”, o bonde segue pela noite, levando o casal abraçado e o filme se encerra sob música romântica e esperançosa. Ainda que prevaleça o tom ameno, o filme coloca em relevo a mediação do dinheiro nas relações, bem como o individualismo dos personagens. Nenhum dos amigos colabora com Zeca e mesmo um amigo enriquecido de seu pai lhe traz como presente de casamento uma surpreendente rapadura que leva embora após ser destratado por Zeca num momento de descontrole. Assim, na interpretação de Waldir Salvadore, o que sobressai em O grande momento é: [...] a completa desumanização das relações entre as pessoas. […] Não é só o dinheiro que falta: com ele ausentam-se os mínimos traços de solidariedade, de desprendimento; ninguém, de pronto, concede ou colabora em absolutamente nada; em que pese[m] as dificuldades generalizadas, o interesse pessoal prevalece quase o tempo inteiro […] (SALVADORE, 2005, p.111)

Embora a argumentação encontre fundamento no filme, entendemos, diferentemente de Salvadore, que em O grande momento o processo de reificação das relações não é “completo”. Ainda que na trama grande parte das relações sejam mediadas pelo dinheiro, percebe-se que há nos personagens certo desconforto e constrangimento quanto a

humano do crisol do Brás em São Paulo”. (VIANY 1958 apud AVELLAR, 2002).

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esse fato e que o puro cálculo racional não está plenamente assimilado como paradigma das trocas interpessoais. Em todos os estabelecimentos por que passa Zeca, contratando serviços, comprando ou vendendo, as relações são bastante pessoalizadas. Todos se conhecem e se cumprimentam pelos nomes. O fotógrafo observa com ternura o casal apaixonado escolher o modelo de fotografia. O alfaiate, cuja esposa está doente, mostra-se constrangido por não poder cumprir o acordado com Zeca e, por não conseguir encarar o rapaz, coloca o funcionário para falar por ele. Zeca irrita-se com o acontecimento, mas ao ficar sabendo que de fato a esposa do alfaiate foi levada de ambulância, mostra-se condoído e pede desculpas pela irritação. O gerente do pai de Zeca, embora reclame da falta de dinheiro se coloca como amigo e não como superior hierárquico, sendo padrinho do casamento. Vitório, o mecânico que compra a bicicleta, indigna-se com a situação de Zeca, insinuando a necessidade de uma transformação social já que não se tratava de um caso isolado: “Aquele ali [indicando um homem que acabara de colocar a bicicleta à venda] faz dois mês que está desempregado. Filho, mulher com outro na barriga, aluguel correndo... Depois das bicicleta o que é que vocês vão vender? A roupa? A vergonha? Não vê que está tudo errado? Existe outro caminho, não existe?”. Por fim, o cobrador do guichê da rodoviária se compadece da moça recém-casada quando ela explica que ela e Zeca precisam do dinheiro e cede após tentar se escudar no regulamento: “o regulamento não permite trocas ou devoluções”, sendo replicado por ela: “mas o senhor não é o regulamento...”. São diversas situações que conferem a O grande momento um ar humanista, romântico, quase ingênuo, no qual as relações pessoais, embora atravessadas pelo dinheiro, não são pautadas somente pelo interesse ou mediadas pela burocracia. Esse aspecto fica mais evidente quando o contrastamos com outro filme, mais árido em seu retrato da reificação das relações na metrópole paulistana: São Paulo, Sociedade anônima.

3.3.2 São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965): a reificação avança

Filmado em 1957, O grande momento passa ao largo da imagem desenvolvimentista da cidade que se propalava como “a cidade que mais cresce no mundo”, no slogan da época224. Deixa de lado a face moderna da cidade, como centro financeiro e sede da indústria, “o maior parque industrial da América Latina”, retratando os resquícios de um

224 Segundo Maria Izilda Matos o slogan “São Paulo – a cidade que mais cresce no mundo” foi criado no bojo das comemorações do IV Centenário da cidade em 1954. Cf. Matos (2001, p.50).

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ethos comunitário ainda apreensível nos bairros operários. São Paulo Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1964), cuja ação transcorre entre 1957 e 1961, volta-se justamente para esta outra face da cidade: verticalizada, dinâmica, cidade da pressa, do trabalho e do consumo, tomada pelo grande fluxo de automóveis e pessoas. Também esteticamente o filme se distancia do filme de Roberto Santos. Enquanto aquele apresentava uma singela narrativa linear, com montagem clássica, entremeando tomadas externas com reconstruções em estúdio225, o filme de Person adota expressivamente características do cinema moderno com uma narrativa não-linear, fragmentada, marcada por movimentos de câmera arrojados e pelo corpo-a-corpo com as ruas, traduzindo em sua própria constituição formal o ritmo da metrópole. Nas relações pessoais, igualmente, há um contraste patente entre os dois filmes. Neste, como veremos, o processo de reificação das relações se dá de maneira mais plena do que no filme anterior, o que já se expressa significativamente no título, São Paulo, Sociedade Anônima, que remete a cidade a um só tempo à empresa de capital acionário e à formação social marcada pela impessoalidade, ou seja, faz-se referência à moderna configuração econômica em correspondência com a moderna configuração social. Desde o início do filme, evidencia-se que o drama do protagonista insere-se num contexto sócio-espacial específico: a cidade de São Paulo com suas vultosas contradições. A sequência de abertura inicia-se com a observação distante de uma briga doméstica – mais adiante saberemos serem o casal Carlos e Luciana – que acompanhamos pelo lado de fora da janela de um apartamento, para na sequência apresentar imagens da cidade de São Paulo, dos opulentos prédios do centro à periferia mal urbanizada onde um homem puxa uma carroça numa viela de terra da favela; das vistas áreas que salientam o conglomerado de edifícios à multidão que se aglomera na saída do trem ou na tentativa de entrar num ônibus. A vigorosa trilha instrumental, assim como as imagens dos prédios do centro em contra-plongée226 contribuem para uma atmosfera oprimente. A primeira fala do protagonista Carlos no filme também corrobora esse tom: “Seria só prolongar, Luciana. É inútil, é como se fosse um câncer, nada adiantaria”, diz ele, enquanto caminha pelas ruas paulistanas entre passantes anônimos, como se “respondesse” à Luciana que, caída no chão do apartamento, indaga por

225 Norberto Nath, corroteirista e cenógrafo de O grande momento relata que “Nós saíamos, andávamos muito pelo Brás, pela Mooca, procurando as locações e eu me lembro que a agente imaginava pouca coisa a ser filmada em estúdio. Eu fotografava tudo e depois reconstruía tudo no estúdio e foi fácil por causa do meu trabalho de construção e arquitetura. Só assim eu fui fiel, senão eu entrava naquele tom falso”. (NATH apud SIMÕES, 1997, p.36). 226 De acordo com Aumont e Marie (2003): “Fala-se de enquadramento em plongée, quando o objeto é filmado de cima; em contra-plongée quando ele é filmado de baixo” (AUMONT; MARIE, 2003, p.98).

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que ele foi embora. Alternando passado e presente conforme as reminiscências do protagonista, o filme acompanha a trajetória profissional de Carlos e os seus relacionamentos amorosos. Formado em desenho industrial, ele trabalha no setor de controle de qualidade da multinacional Volkswagen até ser descoberto o esquema de seu conluio com o empresário ítalo-brasileiro Arturo, fornecedor de auto-peças de baixa qualidade à multinacional. Despedido, passa a trabalhar como gerente na fábrica de Arturo, em franca expansão. Paralelamente, o filme trata de seu relacionamento com três mulheres: Ana, moça de origem pobre que utiliza a beleza como valor de troca e torna-se garota-propaganda da fábrica de Arturo e amante deste; Hilda, mulher independente e intelectualizada, em busca de sentido para a própria existência, que se sente oprimida pela dinâmica reificada da cidade e termina por suicidar-se; e Luciana, moça pequeno-burguesa com quem Carlos se casa e cujas aspirações restringem-se à estabilidade do casamento convencional e à ascensão social almejada mediante uma possível sociedade entre seu marido e o patrão. Toda a trama se funda essencialmente sobre esses cinco personagens, porém, diferentemente dos personagens de O grande momento, eles não fazem parte de um universo compartilhado. Cada um tem seu próprio núcleo e de suas vidas pouco é mostrado. De Ana, não sabemos ao menos onde mora. Carlos é o elemento comum a conectar os personagens, mas as mulheres nem chegam a se conhecer. Quanto aos relacionamentos que estabelecem entre si, são todos pautados pelo interesse em detrimento do sentimento. Arturo se coloca como “amigo” de Carlos, mas recusa-se a emprestar-lhe dinheiro, preferindo alçá-lo a gerente de sua fábrica e aproveitar-se da competência do rapaz que, de sua parte, o detesta, mas o suporta em troca do emprego. Ana busca a ascensão social por meio de sua beleza e não hesita em tornar-se amante de Arturo, um homem casado e bem mais velho do que ela. Carlos, embora verbalize que “pensava que gostava de Ana”, deixa evidente que o relacionamento com ela era pautado essencialmente na satisfação sexual quando ela lhe questiona, “Sair junto para fazer o quê?”, e ele responde cinicamente: “É claro que não é pra ir à missa ou visitar a tua mãe no asilo...”. Em outro momento, ele equaliza as mulheres: “Ana, Luciana, é tudo a mesma coisa”. Se Carlos não ama Luciana, o sentimento dela por ele também está longe do amor romântico. Quando ele tenta reconciliação após uma briga e ela o acusa de egoísmo, dizendo que ele só voltou a procurá-la porque está com medo de ficar sozinho, ele lhe responde com seu característico ceticismo cínico: “Admitindo que seja só por isso, como é que pode se gostar de alguém de outra maneira? Se não é assim, me diga por que é que você

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veio até aqui comigo, pelo teu ou pelo meu egoísmo? Por que quer arranjar um homem para casar ou por que está com pena de mim? Me diga, por quê?”. Ela se afasta calada, mas acaba aceitando casar-se com ele, não sem antes deixar claro que sua preocupação maior é com a estabilidade financeira de sua futura família: “sempre achei ridícula essa ideia de que para ser feliz basta o amor e uma cabana”, afirma ela categoricamente na cena do pedido de casamento. Mesmo a angustiada Hilda, que constitui um contraponto aos demais personagens e busca um amor verdadeiro que dê sentido à sua existência, igualmente aparece em relações reificadas. O amor que ela encontra e que lhe traz efêmera felicidade é vivido no campo, longe de São Paulo e da narrativa fílmica. Na cidade, o que vemos de Hilda são relacionamentos casuais, sem indícios de sentimento, como o que desenvolve com Carlos, ou com indícios de interesse, como no caso do rico industrial turco de quem usa o apartamento no litoral para os encontros com Carlos. Tal como os transeuntes anônimos nas ruas da cidade, os personagens são figuras atomizadas que seguem lado a lado, mas indiferentes, cada qual perseguindo seus próprios interesses, os quais, enquadrados nas estruturas vigentes, retroalimentam ad continuum a engrenagem do sistema. É emblemática nesse sentido a cena em que, transitando a pé e apressadamente pelo Viaduto do Chá, Carlos dialoga consigo mesmo, quase num delírio, sobre sua situação:

Recomeçar, trabalhar, mil vezes tentar ser um homem. Trabalhar com Arturo, esquecer Ana, apagar Luciana. Não lembrar-se senão do trabalho, das cinquenta obrigações diárias. Lembrar-se somente das mil chateações diárias do trabalho. Lembrar-se de uma engrenagem, e mais outra, e mais outra, e mais outra! De uma engrenagem e depois de um eixo que devem ser entregues dentro do prazo estabelecido. Mil vezes recomeçar. Recomeçar de novo. Recomeçar sempre. Esquecer Ana, apagar Luciana. Lembrar-se das cinquenta obrigações diárias do trabalho. Recomeçar. Recomeçar. Aceitar. Aceitar. Aceitar! Recomeçar, recomeçar... Aceitar! Aceitar!!

A voz do protagonista ecoa durante a cena num encadeamento maquínico, em ritmo duro e entrecortado, enquanto a montagem do filme alterna as imagens do personagem, caminhando rapidamente entre outros transeunte apressados, com as imagens das engrenagens fabris em funcionamento, associando a situação de Carlos à lógica estrutural do capitalismo industrial. Conforme analisa Ismail Xavier (2006a), a relação homem-máquina é neste filme paradigma para a representação da vivência na metrópole paulistana, “cidade-máquina” onde os “homens-série”, que compõem uma multidão de anônimos, não passam de peças de uma grande engrenagem. A experiência do protagonista não é apresentada como um drama

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individual. Há uma identidade profunda entre Carlos e os demais membros dessa sociedade anônima, que igualmente seguem a rotina do eterno recomeçar, como evidenciam as várias sequências que inserem o protagonista em meio a transeuntes anônimos e atomizados a circular pelas ruas da cidade. Nas palavras de Xavier: “Eles partilham o espaço público que se vê aí representado como linha de montagem, movimento maquínico totalizante” e o filme “insiste na sensação de ultrapassamento, na dor do trabalho industrial e sua administração, solo de experiência a contaminar todos os aspectos da vida” (XAVIER, 2006a, p. 20). A esses “homens-série”, a reprodução do sistema parece inexorável. Sem vislumbrar horizonte possível de transformação, só lhes parece possível “aceitar”, como coloca Carlos ao final de seu solilóquio. A resignação do personagem toma forma na cena imediatamente posterior que o coloca entrando na sala do curso de inglês em cuja lousa se lê: “English, is the commercial language used in . We must therefore learn English”. Carlos aceita submeter-se aos desígnios que lhe parecem “naturais” visando à estabilidade financeira e familiar: “quero organizar a minha vida, pôr as coisas em ordem”, diz quando pede em casamento Luciana, que conheceu justamente no curso de inglês. Cumpre o objetivo de colocar a vida “em ordem”: casa-se, tem um filho e torna-se braço direito de Arturo na fábrica que se expande a cada dia. A “evolução” no seu modo de locomoção atesta a condição social ascendente: de usuário do transporte público, passa a conduzir uma lambreta e depois o próprio automóvel, um fusca, carro ícone da produção automobilística nacional – o patrão, por sua vez, embora apregoe o nacional-desenvolvimentismo, tem para si um veículo Oldsmobile, importado. Carlos, porém, não consegue satisfazer-se com os horizontes de homem de classe média bem-sucedido. Não se realiza no trabalho, nem na vida pessoal e o ápice de sua crise ocorre precisamente quando Luciana, com dinheiro ganho com a venda da loja de ferragens do pai, propõe sociedade a Arturo, o que assinala que ele estará ainda mais enredado no universo alienado e reificado do qual já não conseguia se desprender. Num ato desesperado, resolve abandonar tudo e fugir de São Paulo. Para isso, rouba um automóvel, mesmo tendo o próprio carro, em ato de impotente subversão e tentativa inócua de libertar-se daquela vida administrada. A cena, conforme assinala Jean-Claude Bernardet, é de grande significação, pois representa: [...] um ataque dos mais primários, quase visceral, contra aquilo que o esmaga. Rouba o carro num estacionamento onde se encontram milhares de carros, ‘contidos em filas, frente a frente’, no meio dos quais Carlos está isolado; esse plano adquire assim um valor simbólico e irônico: Carlos perdido no meio de e por justamente aquilo que ele constrói, esmagado pela quantidade e pela produção em série, rouba o

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que fabrica. O plano condensa toda a situação de Carlos e sua impotência.(BERNARDET, 2007, p.139-140).

O desfecho é desolador. Carlos abandona o carro na estrada e, ao pegar carona num caminhão, acaba voltando, involuntariamente, a São Paulo, encerrando-se o filme com uma sequência análoga àquela passagem do Viaduto do Chá, com a voz off de Carlos reproduzindo o eterno “recomeçar” ao mesmo tempo em que a câmera focaliza as imagens dos passantes anônimos seguindo no fluxo da metrópole.

3.3.3 Vozes do m edo (coord.Roberto Santos, 1970): a juventude, a cidade, o país em revista Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio, porque este não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte. Depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

(Carlos Drummond de Andrade, Congresso Internacional do Medo).

Este poema, recitado pela voz-over, inicia Vozes do medo. Acompanhando o poema, a câmera adentra um ambiente obscuro, movimenta-se por entre portas e corredores, paredes corroídas, exibe sombras e frestas de luz. Estamos num porão? Numa cela? Numa masmorra? A câmera se aproxima de uma luminária sem lâmpada, posicionada em frente a uma pequena janela de luz. Corte. A cidade de São Paulo em plano-geral, veículos transitam, prédios ao fundo. Estamos em 1970. Não se trata mais de colocar em tela as condições precárias da população numa época de plena voga do desenvolvimentismo juscelinista como em O grande momento, ou, como São Paulo S.A., de retratar uma classe média desprovida de projeto próprio que, mesmo esmagada, se atrela à burguesia, engrossando as fileiras da ideologia conservadora que tomaria forma nas “Marchas da Família com Deus” e outros movimentos civis em apoio ao golpe de direita que derrubou o presidente João Goulart em abril de 1964. A partir de dezembro de 1968, a instauração do Ato Institucional n.5 (AI-5) pôs fim a qualquer

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arremedo de “liberdade democrática”, entrando, efetivamente, em vigor os “anos de chumbo”, com a disseminação da prática de tortura contra presos políticos, o acirramento da censura e a generalização do medo pela lógica perversa da repressão que afeta não apenas vítimas diretas, mas, atinge toda a população que, ciente dos riscos da atividade política, cala-se – “A minha gente hoje anda/Falando de lado/E olhando pro chão”, cantava Chico Buarque em Apesar de você (1970), que foi censurada. É nesse contexto que surge Vozes do medo, um projeto ousado de Roberto Santos que pretendia tratar dos temas da juventude urbana e do medo num filme não narrativo, concebido à semelhança de uma revista, com estrutura fragmentada em passagens que fazem as vezes de editorial, manchetes, crônica, reportagem, história em quadrinhos etc. A realização ficou a cargo de doze diretores, entre os quais, o próprio Roberto Santos, Maurice Capovilla, profissionais da publicidade (colegas de Santos na Lynx Filmes) e alunos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, todos com total liberdade e independência na construção de cada episódio.227 O resultado é um filme díspare e irregular tanto na estética quanto no tratamento dos temas, abordados de forma ampla e multifacetada. Alternam-se o preto e branco e a cor e exploram-se diferentes formas de representação, criando um interessante mosaico. Em episódios como Piá não sofre? Sofre (de Roberto Santos) e Aquele dia 10 (de Gianfrancesco Guarnieri) opta-se por um realismo crítico, narrando casos concretos: o menino da favela que sente fome e os trabalhadores da construção civil que querem divertir-se após receber o pagamento. Em Caminhos (Roberto Santos) apresenta-se um documentário sobre jovens: em filas por emprego, no juizado de menores, em programas de auditório, trabalhando no comércio, vendendo jornais, limpando para-brisas nos faróis. Em Retrato de um jovem brigador (Roberto Santos) e O mundo é cor de rosa (Roman Stulbach) temos crônicas descritivas: a primeira sobre um jovem de agressividade difusa e a segunda sobre um jovem apaixonado. The super woman (Ruy Perotti Barbosa) é uma animação sobre a mulher libertada do medo do sexo pela pílula anticoncepcional. A Santa ceia (Aloysio Raolino) e Aborto (Mamoru Myao) são sátiras corrosivas sobre a burguesia. Loucura, de Capovilla, metaforiza as relações de opressão representadas na performance de duas mulheres: uma enjaulada, a outra carcereira que mantém a submissão pela sedução e pela força. A situação se inverte quando a mulher presa consegue assumir o controle utilizando-se dos mesmos instrumentos. Entremeiam-se à representação das mulheres, breves inserções de imagens

227 Os doze diretores são: Roberto Santos, Maurice Capovilla, Gianfrancesco Guarnieri, Aloysio Raulino, Roman Stulbach, Plácido Campos Jr., Hélio Leite de Barros, Mamoru Miyao, Adilson Bonini, Augusto Correa, Ruy Perotti Barbosa e Cyro del Nero.

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fotográficas diversas: torcedores em estádios, transeuntes nas ruas, uma mulher aparentemente morta no chão, prostitutas (?), policiais, um rapaz cheirando cocaína (?), enquanto a narração sentencia: “Nossa prisão parece não ter grades. Nela, o desespero e a loucura se manifestam de todas as formas […] Todos nós estamos ou vamos ficar loucos. Adultos e operários. Classe média e analfabetos. Estudantes e burgueses. A loucura é apenas uma saída. [...]”. Feira do medo e Pantomima das três forças, de Roberto Santos, assim como O jogo do ludo (Adilson Bonini) pretendem, por sua vez, colocar em questão todo o sistema social por meio da alegoria “explícita”228. O primeiro, tendo por palco um terreno baldio no alto de um morro, com ampla vista para a cidade, encena um estranho espetáculo: um guru propala previsões e sugere rituais, enquanto diferentes tipos de jovens caminham vendados. Estudante, noiva, hippie, “almofadinha”, todos caminhantes desnorteados. Alguns se ajudam na caminhada, outros se empurram. Alguns começam a retirar as próprias vendas, enquanto outros se acomodam nelas, preferindo não enxergar. Gritam suas angústias: “eu quero dizer, eu quero falar”; “não quero ser como a minha mãe”; “perdi meu emprego”; “não tenho dinheiro”; “ele não gosta de mim”; “tão querendo me prender”; “prefiro viver sozinha”; “eu tenho medo!!!”. A trilha sonora é pontuada insistentemente pela primeira estrofe da melancólica canção Analfavile, de Sérgio Ricardo: “Há que acreditar/Há que acreditar/ No rio que corre pro mar...”, cujos demais versos tratam diretamente da tortura e não são ouvidos no filme229. Em O jogo do ludo novamente encontramos uma encenação alegórica tendo por palco um espaço público de São Paulo: uma escadaria se transforma num grande tabuleiro no qual pessoas numeradas são peças de um jogo. Um rei, um militar e um bispo decidem se o jogador deve avançar ou regredir e os que protestam são eliminados. A performance é assistida por transeuntes paulistanos e as mensagens são bastante evidentes, com os donos do poder proferindo frases como “Não faça perguntas, apenas trabalhe”; “Cuidem sempre dos seus interesses”; “brigue pelo que é seu, derrube ele, vamos derrube!” ou, para uma moça,

228 Ismail Xavier (2005) tece reflexões sobre os significados historicamente adquiridos pela alegoria e comenta a distinção entre “leitura alegórica” e “expressão alegórica”, indicando que, de modo geral, todo texto pode ser interpretado alegoricamente mas que alguns têm desde o princípio essa intencionalidade. O autor fala de “alegorias nacionais explícitas”, nos quais há um processo intencional de codificação que se expressa por meio do uso de estratégias retóricas particulares. 229 “Analfavile /Analfavile /Há que acreditar /Há que acreditar /No rio que corre pro mar/ Ouço ao lado agonizantes ais/Fios, fogo, ferro frio, o caos /Vem falar o ódio em sombra /verme em gente /No gérmen da violência /A cabeça teima em não cair /Parte do corpo se incinerou /E a coragem se acendeu /somou-se em dias /Maior que o pátio, que a brisa e o sol / Analfavile… /Passos negros pelo corredor /Fios, fogo, frio ferro e enfim /Eis que da idade da pedra surge o amigo /Chegou sem medo e memória /De lembrança apenas sangue e dor /E um machado com as inscrições /Se achará o elo perdido, enfim/no homem da nossa geração.” (Sérgio Ricardo, Analfavile, 1971). Letra disponível em: Acesso em 15 abr.2013.

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“pense na sua reputação, avance apenas uma casa”. Os jogadores que se enquadram nas regras sociais e têm objetivos de consumo, como adquirir um automóvel, avançam, subindo os degraus, enquanto os outros são obrigados a esperar ou retroceder. “A única forma de impedir a criação é criar a repetição”, diz um dos poderosos e quando algumas vozes começam a questionar o jogo e suas regras elas são eliminadas. O episódio se encerra sob o som das risadas dos poderosos enquanto são mostrados os jogadores eliminados que protestam com bocas e braços bradantes mas o som de seus gritos não são ouvidos, suprimidos pelo áudio, numa montagem de significado síntese. Em A pantomima das três forças retoma-se o cenário de Feira do medo e alegorizam-se três forças: a força humana, a força divina, a força moral; três tempos: passado, presente e futuro; e três medos: de falar, de ver, de escutar. E o filme finaliza com uma mensagem ainda mais explícita, transmitida por meio da citação de versos do poema O medo de Carlos Drummond de Andrade: “Em verdade temos medo/E fomos educados para o medo/Adeus: vamos para a frente, recuando de olhos acesos. Nossos filhos tão felizes... Fiéis herdeiros do medo, eles povoam a cidade. Depois da cidade, o mundo. Depois do mundo, as estrelas, dançando o baile do medo”. E por meio dos letreiros finais que sucedem imagens fotográficas de jovens de diferentes perfis: “Era uma vez um jovem ou uma jovem que não sabiam [sic] o que fazer do medo. Ou de sua coragem. Enquanto isso se enganavam. E apenas envelheciam. Era uma vez...”. 230 Vozes do medo trabalha temas caros ao cinema paulista como a alienação, o individualismo, a solidão, a falta de saídas, o enredamento nas engrenagens do sistema, a problemática da mulher coisificada pela publicidade e a indústria cultural, o conformismo e a opressão política e social. Tem ainda em comum com os outros filmes o retrato da cidade de São Paulo que aqui aparece num mosaico de imagens heterogêneas: do centro e da periferia, dos aglomerados de prédios e dos descampados, das movimentadas estações de trem e dos modernos automóveis, dos decrépitos cortiços e das grandes casas burguesas, da zona de baixo meretrício e dos programas de auditório. Cidade de gritantes contrastes a espelhar as disparidades da nossa modernidade periférica em que se coadunam a fome do menino favelado com os enormes outdoors da Coca-Cola, a pobreza dos meninos recolhidos pela assistência social com as animadas festinhas dos jovens ricos embaladas pelo iê iê iê.

230 Integram ainda Vozes do medo os não citados episódios Pecúnia (Hélio Leite de Barros), abordagem satiricamente psicanalítica da relação com o dinheiro; As bonecas (Cyro del Nero), apresentando uma comunidade de travestis em misteriosos rituais, Os vencedores (Augusto Corrêa), breve passagem em estilo publicitário satirizando títulos de efeito construídos sobre sucessos vazios que vão desde “O vendedor do ano” e “O primeiro da turma até a “Princesa das Alcachofras” e “Miss Galáxia”; e Produto (Plácido Campos Jr.) que problematiza a objetificação da mulher pelo universo da moda e da publicidade.

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Embora não fizesse referências diretas à conjuntura política do país, Vozes do medo ficou interditado pela censura por quase dois anos, sendo liberado somente em 1972, com a exigência da supressão integral de dois episódios: Piá não sofre? Sofre e A santa ceia. Deparou-se então com a recusa dos exibidores e só teve um efetivo lançamento em 1974. 231

3.3.4 O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980): fim de ciclo, o operário em tela e o esmagamento contestado

Ao final do percurso, chegamos a O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980), filme que, a meu ver, encerra o ciclo da fração do cinema paulista aqui analisada, assim como seu contemporâneo Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979) de certa forma fechou o ciclo do Cinema Novo232, conforme tratamos no tópico 3.2. Tal como o filme de Diegues, o filme de João Batista de Andrade coloca em questão o encontro do sertão e da cidade, da cultura popular e dos meios de comunicação de massa, do arcaico e do moderno, do nacional e do internacional, sendo, porém, essa abordagem realizada por vias bastante distintas. Aqui também o protagonista é o artista popular, no caso um poeta nordestino igualmente em confronto com a cidade moderna que rejeita sua cultura. No entanto, neste filme, mais do que a dinâmica da cultura popular desafiada pela cultura importada e pelos meios de comunicação de massa, ganha centralidade a questão do trabalho e da reificação na metrópole capitalista, assinalando uma linha de continuidade com a filmografia que viemos analisando. Deraldo, migrante nordestino que vive da venda de seus folhetos de cordel e é criticado por “não trabalhar”, é confundido com um metalúrgico que assassinou o patrão, sendo obrigado a fugir, e a partir daí necessitando vender sua força de trabalho. Trabalha então como carregador de sacas na zona cerealista, operário da construção civil, empregado doméstico e operário na construção do metrô e rebela-se em cada um desses empregos. Ao final, consegue provar sua inocência e voltar a vender seus folhetos de cordel. De outra parte, Severino, o metalúrgico que assassinara o patrão, era funcionário “exemplar”, trabalhava

231 Cf.Simões (1997, 1999) e documentos de censura sobre Vozes do medo disponíveis em em < http://www.memoriacinebr.com.br>. Acesso em: 05 nov. 2012. 232 Embora autores como José Mário Ortiz Ramos (1983, p.147-158) e Randal Johnson (1984, p.83-90) apontem Bye bye Brasil como uma espécie de ponto de chegada do Cinema Novo, como um filme que assinala o percurso do próprio movimento, sabemos que essa afirmação é um tanto arriscada se pensarmos que caminhos diferentes foram apresentados, por exemplo por Glauber Rocha e Leon Hirszman que chegam ao fim da década com dois filmes bastante significativos: A idade da terra e Eles não usam black-tie, respectivamente, que necessitam de uma análise mais detida para a qual não há espaço aqui.

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duro, boicotava e denunciava os colegas grevistas, e ainda assim foi despedido pelo patrão. Sentindo-se traído, mata o patrão e enlouquece. Esmagado pelas engrenagens da mesma “cidade-máquina” outrora retratada por Person, “virou suco”. Nos meandros desse enredo, aparecem questões-chave: a migração de nordestinos para São Paulo; a exploração do trabalho desse contingente de mão de obra “não-qualificada” em colocações insalubres e mal-remuneradas; a desvalorização da cultura e da identidade desses migrantes; os contrastes da urbanização paulistana, onde aqueles que constroem os prédios luxuosos dos centros ou bairros habitam minúsculos barracos nas periferias e deslocam-se por grandes distâncias para ir da casa ao trabalho ou pernoitam em precários alojamentos coletivos; as greves como instrumento de luta dos trabalhadores numa interlocução da ficção com o momento histórico do país na virada dos anos 1970 para 1980, quando as mobilizações dos trabalhadores ganharam grande relevo e foram documentadas por cineastas como o próprio João Batista de Andrade233. Elemento que sobressai em O homem que virou suco é a reificação dos trabalhadores migrantes, cuja mão de obra é indistintamente explorada, negando-lhes a individualidade e as características culturais, num processo de desidentificação que os torna uma massa trabalhadora indiferenciada. O mote central do filme, a confusão de identidades entre Deraldo e Severino, remete diretamente a essa questão. Os personagens são confundidos por sua semelhança física – no filme ambos são interpretados pelo mesmo ator (José Dumont) – e a todo momento sublinha-se que os nordestinos são vistos de maneira homogeneizadora pelos paulistanos. “Tudo esses pau-de-arara é Silva”, diz o policial quando Deraldo tenta explicar que não é o assassino, pois chama-se Deraldo José da Silva e não José Severino da Silva. Não portando documentos, Deraldo não consegue provar sua identidade, assinalando-se que na modernidade o que confere a identificação individual não são as características pessoais, mas o instrumento burocrático. Mesmo para aqueles que conhecem Deraldo, essa questão se impõe, como no diálogo entre o poeta e o livreiro que o reconhece dos jornais: Deraldo: Sr. Castor, o senhor sabe, isso aqui é outra pessoa. Castor: A cara é a mesma. Deraldo: Mas meu nome é Deraldo e o senhor sabe disso.

233 João Batista realizou os documentários Greve! (1979) e Trabalhadores, presente! (1979). Renato Tapajós desenvolveu um longo e profícuo trabalho junto ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, conforme trataremos no capítulo 5. Outros cineastas que documentaram as greves foram Leon Hirszman, ABC da greve (e também a ficção Eles não usam black-tie) e Roberto Gervitz e Sergio Toledo de Braços cruzados, máquinas paradas (1979), além de outros realizadores de curtas e médias-metragens.

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Castor: Sei porque você me falou. Deraldo: Mas o senhor tem que acreditar na minha palavra. Homem é homem. O senhor é meu amigo ou não é?

A própria semelhança física dos personagens é uma ironia em relação à forma generalizante e pejorativa pela qual os nordestinos são rotineiramente designados em São Paulo: “cabeça de guaiamum”, “do norte”, “pau-de-arara”, “ceará” são algumas das expressões que aparecem no filme. Não se faz distinção entre os estados de origem desses migrantes, sendo todos os oriundos de regiões acima do Sudeste igualmente categorizados como “do norte” e vistos de maneira inferiorizada. Severino é natural do Ceará, enquanto Deraldo é nascido na Paraíba. Mas não se faz diferença entre cearense, alagoano, paraibano... “É tudo a mesma coisa”, diz um colega de Deraldo na construção civil. Os nordestinos são vistos como inadaptados ao trabalho nos moldes da modernidade urbana-industrial: “Olha, meu chapa, o trabalho aqui é dureza. Não é que nem aquelas molezas que você tinha lá no Norte. Negócio de vaquejada...”, diz o mestre de obras ao explicar o serviço a Deraldo. Trabalhando na casa de Madame, Deraldo presencia a conversa de um coronel, conterrâneo seu, da Paraíba, que diz para sua “comadre” que não deseja morar em São Paulo – “Isso aqui é lá vida? A senhora sabe que eu vim pela rua um tempão e ninguém nem bom dia me deu?” – mas pretende levar trabalhadores paulistas para a indústria que está montando em seu estado, pois acredita que o povo de sua terra é muito ignorante e inapto à produção. E é com o intuito de corrigir essa “inaptidão” para o trabalho, que os responsáveis pelas obras do metrô submetem os operários a sessões de exibição de um “audiovisual” no qual a cultura e a valentia nordestinas são ridicularizadas enquanto se promove o enquadramento às normas de disciplina e a submissão ao empregador.234 Ao contrário de Severino – cuja trajetória é a de um “operário-modelo” que busca ao máximo se integrar às regras da sociedade capitalista industrial, esforçando-se para aprender um novo ofício, produzindo o quanto pode, sendo subserviente ao patrão e agindo contra as reivindicações do colegas – Deraldo é um rebelde, insubordina-se quase que instintivamente a todos os subempregos pelos quais passa, não se sujeitando a trabalhos que coloquem sua saúde em risco, que gerem humilhação, ou que sejam mal pagos. Para ele o

234 O cineasta João Batista de Andrade relata que o audiovisual elaborado para inserção no filme foi fielmente inspirado num audiovisual efetivamente exibido para trabalhadores nordestinos por uma empreiteira paulistana. Cf. ANDRADE, 2005b, p.160. No vídeo exibe-se um desenho animado no qual o personagem Virgulino, estereótipo de nordestino, caracterizado como cangaceiro, apresenta um valentia derivada da ignorância e, chegando a São Paulo, pensa ainda estar no “norte”, conforme diz a narração, e rebela-se ridícula e inutilmente contra as normas de segurança do trabalho e contra seus empregadores até ser expulso pelos próprios colegas e voltar para o nordeste.

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trabalho tem outro sentido – o de realização humana –, o que ele alcança produzindo seus livrinhos de cordel. E em cordel ele decide narrar a história de Severino. Depois de perceber que só poderá ser livre se desvendar a história de seu “outro” e os motivos que o levaram ao assassinato do patrão, o poeta inicia uma investigação e, por meio dos relatos dos colegas de Severino, se depara com outra forma de resistência além da sua rebeldia individual: a organização coletiva em greves, paralisações ou operações de desaceleração da produção. Quando volta a vender seus livretos de cordel em praça pública, Deraldo está com a consciência ampliada sobre a condição de seus iguais e, assim, não é apenas a história de Severino que ele conta mas a de todos os trabalhadores espremidos até virar suco. Ele descobre que o poder de transformação está na coletividade, como recita quase ao final do filme: “Quem trata o povo com desdém/Se atrasou neste mundo e não entende/Que é no peito, na força e na mente/E na união, que é uma semente/A força que o povo tem.” Essa fala é seguida por breves inserções de imagens das imensas assembleias de metalúrgicos grevistas registradas por João Batista de Andrade para o documentário Greve!. Faz-se assim a ponte entre ficção e realidade e o filme se encerra após Deraldo presenciar a retirada de Severino do convívio social, levado por uma ambulância, em estado de insanidade mental. Seguem-se então imagens áreas de São Paulo, da periferia, zona industrial e centro, acompanhadas da canção Mourão Voltado, do músico paraibano Vital Farias, que sintetiza a problemática do filme.235 O homem que virou suco ganhou a Medalha de Ouro de melhor filme no Festival Internacional de Moscou (1981) e no Brasil cumpriu uma interessante carreira no circuito alternativo, sendo exibido com sucesso em igrejas, sindicatos e outros espaços relacionados aos movimentos sociais que tomavam corpo naqueles derradeiros anos de ditadura.236 Não obstante a ascensão dos movimentos da sociedade civil e mesmo depois de o filme ter sido exibido livremente em cinemas comerciais e em festivais no Brasil e no Exterior, a arbitrariedade do Estado ditatorial ainda se fazia sentir, censurando-o para a televisão, veículo

235 Pra que serve o Nordeste?/Pra exportar nordestino/E qual é o seu destino?/é de ser cabra da peste/De Norte Sul Leste Oeste/Na indústria ou construção/O diabo amassou o pão/E ficou bem amassado/Isso é que é mourão voltado/Isso é que é voltar mourão/Pra que serve a cidade?/Pra viver no corre-corre/E depois que a gente morre/Se acaba toda a vaidade/Pra que a necessidade/Pra se mendigar o pão/Pra que serve o patrão?/Pra dar parte ao delegado/Isso é que é mourão voltado/Isso é que é voltar mourão/Pra que serve o operário?/Pra construir edifício/Pra que tanto sacrifício/Pra ganhar pouco salário/Mas quem faz esse inventário/Só pode ser o patrão/E quem ganha com a produção/O fato está consumado/Isso é que é mourão voltado/Isso é que é voltar mourão/Pra que serve a natureza?/Pra criar tudo na terra/E pra que serve a guerra?/Pra se conquistar grandeza/Pra que serve a riqueza?/Pra má distribuição/Onde está o erro então?/Na quantia acumulada/Isso é que é mourão voltado/Isso é que é voltar mourão.(Vital Farias apud Andrade, 2005b, p.146-148). 236 Sobre a circulação de O homem que virou suco, ver Andrade (2005b).

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para o qual foi liberado somente em 1985, já no governo liberal-democrático.237 O grande momento, São Paulo, sociedade anônima, Vozes do medo e O homem que virou suco são filmes-chave na filmografia dos “paulistas do entre-lugar”, compondo uma linha coerente em que um filme de certa forma dá continuidade à problemática trabalhada pelo anterior. Do humanismo singelo do bairro operário onde o dinheiro atravessa as relações ainda pessoalizadas passamos às relações esvaziadas de sentido humano numa sociedade anônima engrenada num fluxo maquínico e daí à opressão difusa que abate uma juventude sem voz, dividida entre a vontade de mudança e a vontade de inserção num sistema que ao mesmo tempo seduz e exclui; por fim voltamos ao operário, mal vislumbrado no primeiro filme e que nos anos 1970 ganha destaque e assume o protagonismo tendo o mesmo rosto e a mesma voz do poeta que canta em verso o esmagamento não mais aceito com resignação. Com essa fração do cinema paulista percorremos duas décadas por uma São Paulo que expressa as contradições da nossa modernidade periférica. Em torno desses filmes, que podemos considerar paradigmáticos, encontram-se vários outros filmes paulistas que trabalham à sua, maneira, problemáticas semelhantes. Nos quatro selecionados, entretanto, percebe-se uma proximidade de abordagem em que, não obstante as singularidades estéticas, há um eixo crítico comum. Neste eixo também se encontram outros filmes dos “paulistas do entre-lugar”, notadamente aqueles voltados para o universo da indústria cultural. São filmes menos conhecidos e que, inclusive por isso, merecem uma análise interna mais detida e particularizada. É o que apresentaremos doravante.

237 Para os pareceres de censura de O homem que virou suco ver . Acesso em 10 dez.2012.

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4. POR TRÁS DO BRILHO FALSO: INDÚSTRIA CULTURAL, PUBLICIDADE E REIFICAÇÃO

A problemática da reificação, presente nos filmes de que tratamos no tópico anterior, está particularmente em evidência num conjunto de filmes paulistas que aborda o universo da indústria cultural. O documentário Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1964), ao tratar da mercantilização e reificação que perpassam esse esporte de massa, antecipa, de certa forma, a abordagem crítica dos bastidores do espetáculo realizada em Bebel, garota propaganda (1967). O enfoque notabiliza a exploração do trabalho de jovens atletas, “operários de vida curta”, como afirma a narração, cujos corpos, convertidos em mercadorias, rendem lucros aos empresários da indústria desse esporte, ao mesmo tempo em que oferecem espetáculos que funcionam como “válvula de escape” para outros tantos trabalhadores – ou, em palavras frankfurtianas, como diversão “procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.128). Outros filmes dos “paulistas do entre-lugar” tratarão especificamente dos bastidores da indústria cultural e de seu “elixir da vida”, a publicidade, para utilizarmos a expressão de Adorno e Horkheimer (1985, p.151). Um traço significativo na filmografia é a recorrência da personagem da “garota-propaganda” e/ou manequim em papéis ora relativamente secundários, como Ana do filme São Paulo S.A (Luiz Sérgio Person, 1965), ora centrais, como Marlene do episódio de Roberto Santos para o longa As cariocas (1966); Bebel de Bebel, a garota propaganda, de Capovilla (1967) e Anuska de Anuska, manequim e mulher, de Ramalho Jr. (1968). Podemos mencionar ainda os seguintes filmes: O filho da televisão, de João Batista de Andrade (1969) – aqui um garoto-propaganda –; Joãozinho, episódio de Ramalho Jr. para o longa Sabendo usar não vai faltar (1976), no qual a garota- propaganda é objeto de fetiche erótico para o personagem-título, office-boy em uma agência de publicidade; Vozes do medo (1970) coordenado por Roberto Santos, cujo episódio Produto de Plácido Campos Jr. problematiza a objetificação da mulher com imagens de manequins introduzidas pela cartela: “Vende-se: Made in Brazil” seguidas da passagem de uma manequim seminua por uma feira livre sob os olhares dos passantes, e Os amantes da chuva de Roberto Santos (1980), no qual a exploração midiática e publicitária traz consequências

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deletérias para um casal de trabalhadores a cujos encontros são atribuídas as chuvas na cidade. Você também pode dar um presunto legal (Sérgio Muniz, 1971) é igualmente um caso interessante, pois embora tenha como questão central a problematização política da tortura, coaduna essa problemática com a crítica à sociedade de consumo: “Compre, olhe/Vire e mexa/Não custa nada/ só lhe custa a vida”, canta na canção Mini-mistério (, 1970) que serve de comentário a imagens de vitrines e outdoors na metrópole paulistana. E Capovilla volta à temática em dois especiais para a TV Globo, A indústria da moda e Revolução do consumo, de 1971/1972, que, no entanto, “não eram filmes críticos do ponto de vista político, mas apenas crônicas atentas à realidade” (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.169) – ao contrário de seu filme Bebel (1967), cuja perspectiva crítica é bastante clara, como veremos adiante. Se, conforme aponta Renato Ortiz (1988), a problemática da cultura de massa ou da indústria cultural foi objeto de “relativo silêncio” no meio intelectual até os anos 1970, a fração do cinema paulista de que tratamos aqui, aparece como pioneira no trato dessas questões, permanecendo atenta a elas ao longo dos anos 1960 e 1970238. Analisaremos mais detidamente seis filmes dos “paulistas do entre-lugar” nos quais a abordagem da indústria cultural e da publicidade se destacam: Bebel, garota,propaganda (Maurice Capovilla, 1967) e Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr., 1968); As cariocas (3º episódio, Roberto Santos, 1966) e Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980); O filho da televisão (João Batista de Andrade, 1969) e Alice (João Batista de Andrade, 1978). Antes, porém, de passarmos aos filmes, cabe uma breve discussão sobre a associação cultura de massa-mulher.

238 No capítulo “A TV não 'fonciona'”, Bernardet (1995) traça um panorama sintético da filmografia brasileira que tratou da televisão. O crítico observa que, salvo em filmes institucionais, a imagem da televisão elaborada pelo cinema é, em geral, negativa, com abordagens que, como se apreende da exposição do autor, vão da sátira superficial às mais contundentes críticas. A maior parte dos filmes citados por ele são paulistas e chama a atenção aquele que Bernardet (1995, p.184) aponta como provavelmente “a primeira imagem que o cinema brasileiro construiu da TV”: 60.000 olhos, projeto que Walter George Dürst pretendia filmar ainda em 1954 sob a égide da Vera Cruz. O roteiro, como descreve Bernardet e o texto parcial encontrado na Cinemateca Brasileira (Dürst, 1954), previa um enredo situado nos estúdios de uma emissora de televisão onde se desenrolaria um programa sensacionalista, patrocinado por uma marca de colírio, que prometia um prêmio ao participante que realizasse o ato mais inesperado. O candidato mais “forte” é um imigrante nordestino que se apresenta ao programa com a mulher, três filhos e um cachorro, comovendo com seu relato sobre a miséria que já matara alguns de seus filhos. A emissora enfatiza o relato, ilustrando-o com imagens do sertão e o anunciante mostra-se empolgado com os efeitos comoventes que irão favorecer as vendas do colírio que aliviará os olhos lacrimosos dos espectadores. O candidato, porém, não está ali para entrar no jogo da demagogia e exige o prêmio a qualquer custo, nem que para isso precise matar o cachorro, ameaçando em seguida as crianças. O programa não cede à chantagem e o roteiro se desenvolve até o suicídio do nordestino. É de se assinalar que o projeto previa filmagem nos estúdios da TV Tupi onde Dürst trabalhava, ou seja, à maneira do que, como veremos, ocorre no caso dos filmes dos “paulistas do entre-lugar”, a crítica se desenvolve no bojo da estrutura que se condena.

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4.1 Cultura de massa e mulher: misoginia?

Andreas Huyssen (1997) assinala que na dicotomia historicamente construída entre cultura de massa e cultura modernista tem-se associado a primeira ao feminino e a segunda ao masculino, sendo protótipo o contraponto entre a personagem Madame Bovary, leitora de literatura inferior, emocional e passiva; e o escritor Flaubert, criador de literatura autêntica, objetiva e irônica. Segundo o autor, esta concepção que teve seu auge no final do século XIX manteve continuidade ao longo do século XX, mesmo entre os críticos que trabalharam para superar a mistificação da cultura de massa, como os frankfurtianos. Ainda eles, entretanto, por vezes, fizeram uso de um vocabulário que permanecia inscrevendo a cultura de massa no âmbito do feminino ou trazendo a mulher à frente de sua argumentação como faz Kracauer em “O ornamento da massa” ao abrir a discussão “trazendo as pernas das Tiller girls para as vistas do leitor” (HUYSSEN, 1997, p.47). Adentrar em todas implicações do texto de Huyssen foge aos nossos objetivos, mas é interessante observar que nos filmes analisados persiste a associação da cultura de massa com a mulher, seja como objeto da indústria cultural, seja como consumidora especialmente susceptível aos produtos dessa indústria. Alguns filmes estabelecem um claro contraponto entre as personagens femininas e as personagens masculinas. Enquanto as figuras femininas se integram ou se esforçam por integrar-se à dinâmica social, resignando-se diante das pérfidas regras do meio; há figuras masculinas que resistem ou se opõem a essa integração, como se vê, notadamente, em Bebel, garota-propaganda (Capovilla 1967) e Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr., 1968). No primeiro, Marcelo, namorado de Bebel, é um politizado estudante de arquitetura; no segundo, Bernardo companheiro de Anuska, é um jornalista e escritor, cujo quarto abriga cartazes de referência à Cuba e Vietnã. Em Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980), embora os “garotos-propagandas” sejam um casal, Antônio apresenta muito mais resistência à exploração midiática do que sua namorada Izabel que, a princípio, se mostra fascinada pelo “glamour” da nova profissão. A configuração homens politizados, mulheres ligadas à indústria cultural e “alienadonas” – como Marcelo explicitamente define Bebel – não é exclusividade do cinema paulista, ou brasileiro. Em La nouvelle vague, un cinéma au masculin singulier, Geneviève Sellier (2005), observa que: Nos filmes da Nouvelle Vague quando as mulheres não são um novo avatar do eterno feminino, fascinantes e fatais para o herói masculino, elas encarnam frequentemente a alienação da cultura de massa: nesse caso, elas são mais frequentemente oriundas das classes dominadas (Les bonnes femmes [Claude

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Chabrol, 1960], Adieu Philippine [Jacques Rozie, 1963] ) mas não sempre: a burguesa de Une femme mariée ([Godard], 1964) ou a garota de boa família de Vie privée ([Louis Malle], 1962) são todas alienadas também. Os filmes dos jovens cineastas exploram, com uma mistura de desprezo e de compaixão, esse novo lugar comum da cultura de elite que permite ridicularizar a emancipação das mulheres: associadas à sociedade de consumo, elas simbolizam seus efeitos alienantes, transformam-se elas mesmas em mercadoria para aquele que oferta mais, um tanto quanto longe da emancipação sexual e social que encarnam no mesmo momento as figuras midiáticas de [Françoise] Sagan ou de [Brigitte] Bardot. (SELLIER, 2005, p.19, tradução nossa).

Jean-Pierre Esquenazi (2004), tratando especificamente da obra de Godard, observa misoginia nos filmes do cineasta que associam a mulher à sociedade de consumo, particularmente em Masculino, feminino (Masculin, feminin, Jean-Luc Godard, 1966), no qual, conforme assumido pelo diretor, o rapaz (Jean-Pierre Léaud) representa a esquerda e a garota (a “cantorazinha de yêyê” interpretada por Chantal Goya) representa a direita239. Para Esquenazi esta misoginia é comum a outros críticos da sociedade de consumo e da cultura de massa, inclusive no âmbito teórico e acadêmico, e sua argumentação, da qual discordamos, vai no sentido de desautorizar essa crítica que, a seu ver, além de misógina, é elitista ao desconsiderar os ganhos supostamente democratizantes da sociedade capitalista contemporânea. (Cf. Esquenazi, 2004, p.249-255). Annie Goldmann (1974), adotando referencial de base marxista, analisa um corpus semelhante de filmes em Cinéma et société moderne - le cinéma de 1958 à 1968: Godard, Antonioni, Resnais, Robbe-Grillet e, ao tratar das personagens de Godard, igualmente observa que as mulheres são mais integradas à configuração social do que os homens: Há as mulheres que, em geral, se adaptam mais facilmente que os homens; seja por fatalismo; hábito ancestral da submissão, medo, seja porque, mais capazes de flexibilidade, elas podem aceitar mais facilmente que os homens as regras do jogo: contraria-se muito, suporta-se um pouco, e se, fazemos exatamente o que se deve, vivemos. (GOLDMANN, 1974, p.78-79, tradução nossa).

Mais do que simples misoginia, essa configuração guarda relação com dados sociológicos, como dá mostra o levantamento realizado por Françoise Giroud em La Nouvelle Vague, portraits de la jeunesse (1958), baseado em 15.000 cartas recebidas pelo jornal L´ express por ocasião da célebre enquete de 1957 sobre a chamada “geração Nouvelle Vague” 240, expressão que serviu de mote para o batismo do movimento cinematográfico.

239 Cf. Entrevista com Jean-Luc Godard " ‘Masculin-Féminin’: les enfants de Marx et du Coca-Cola », Le Monde, 22 avril 1966 citada por Esquenazi (2004, p.238). 240 De acordo com Sellier (2005, p.11), a enquete promovida pelo IFOP (Institut français d'opinion publique ) e pelo L´express buscou apreender a geração de nascidos entre 1927 e 1939, ou seja, aquela que não viveu a guerra

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Conforme assinala Sellier (2005, p.12), o conteúdo das cartas testemunha diferenças de gênero nas perspectivas dos jovens da época: a maior parte dos homens disserta bastante sobre problemas políticos e filosóficos e se detém menos sobre os problemas mais concretos ou pessoais, enquanto as mulheres se debruçam mais sobre estes últimos, o que pode ser explicado, por exemplo, pelo fato das dificuldades da vida cotidiana – crise da habitação, aumento do custo de vida, cuidado com os filhos – pesarem essencialmente sobre elas. Extrapolaria os objetivos deste trabalho aprofundar mais nessas questões de gênero, mas, em síntese, não nos parece que a abordagem da problemática da indústria cultural e da sociedade de consumo pelo enfoque da mulher seja em si misógina. O dado social de opressão de gênero não pode ser álibi para a reprodução dessa opressão no cinema, mas, em alguns casos, o que o cinema busca é justamente o desvelamento dessa opressão. Em nossa sociedade, a reificação das relações sociais e as engrenagens da “sociedade do espetáculo” são especialmente visíveis nas figuras femininas, exibidas, desejadas e consumidas como mercadorias. Não por acaso no filme realizado por Guy Debord para ilustrar sua teoria, A sociedade do espetáculo (La societé du spectacle, Guy Debord, 1974), há profusão de fotografias de mulheres nuas ou seminuas, expressando o conceito de imagem como “forma última da reificação mercantil na sociedade de consumo contemporânea”241. Evidentemente, pode-se argumentar sobre a ambiguidade, nesse e em outros filmes, no que tange à tênue separação entre revelador da opressão social de gênero ou cúmplice dessa configuração ao fetichizar as imagens femininas. No que concerne aos filmes paulistas analisados, como veremos, eles contêm componentes reveladores da realidade social, com diferentes graus de desmistificação e/ou de ambiguidade entre a crítica e a reiteração dessa ordem. Considerando a análise dos anúncios publicitários dos anos 1950 e 1960 apresentada por Anna Figueiredo (1998), é possível entrever que foi a partir de meados dos anos 1960 – coincidindo com os filmes paulistas sobre o tema – que os anúncios publicitários brasileiros passaram a investir mais fortemente na reificação dos corpos, com destaque aos femininos, para a venda de produtos. No período imediatamente anterior, foco da análise da autora (1954-1964), o que predomina é a a outra face do fenômeno de fetichização da mercadoria: a humanização dos mais diversos objetos, como a TV apresentada como “a melhor babá do mundo!” (p.71), o carro que “merece as melhores atenções” porque “também é gente” (p.99) e a batedeira de bolos acalentada como

na idade adulta, chegando à maturidade na época da Liberação. 241 A frase é de Jameson (1994, p.4) sobre Debord.

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um bebê (p.101). Tomando como base o corpus de anúncios analisados por Figueiredo (1998), a coisificação das pessoas a confundirem-se com as mercadorias anunciadas não era ainda evidente no início dos anos 60, sendo um dos primeiros casos o da invenção, em 1961, do “bebê Johnson”. O trabalho de Maria Elisa Alburquerque (2007) ajuda a corroborar essa hipótese ao tratar das garotas-propaganda que atuaram nos primórdios da televisão, nos anos 1950 até o início dos anos 1960. Trata-se de uma categoria de garota-propaganda diferente daquela retratada por Capovilla em Bebel: as “anunciadoras”, como muitas preferiam ser chamadas, expunham produtos e promoções ao vivo nos intervalos da programação televisiva e, embora houvesse a exigência de que fossem bonitas, bem vestidas e desenvoltas, nota-se pelos depoimentos e fotos que havia uma clara distinção entre a garota e o produto anunciado, ou seja, elas mantinham uma posição de sujeito que oferece, qualifica e exalta um produto sem confundir-se com ele, diferentemente do que ocorre nos comerciais de Bebel ou nos atuais comerciais de cerveja, por exemplo. Albuquerque assinala que nos anos 1960 a profissão de garota-propaganda nesses moldes de “anunciadora” declinou até praticamente desaparecer por volta de 1965, sob influência de três fatores principais: “o advento da era da criatividade na publicidade, a modernização da linguagem e das técnicas televisivas e o surgimento da telenovela diária” (ALBUQUERQUE, 2007, p.37). As moças que continuaram na televisão foram as que conseguiram se tornar atrizes, apresentadoras de programas e telejornais ou mesmo cantoras – profissões nas quais, notemos, continuam tendo protagonismo ativo, diferentemente do novo modelo de garota-propaganda que guarda relação com a emergente profissão de manequim, de caráter reificado. Conforme Maria Claudia Bonadio (2004), a carreira de modelo e manequim profissionalizou-se no Brasil ao longo dos anos 1960 num processo em que teve papel marcante as iniciativas publicitárias da Divisão Têxtil da Rhodia S.A, entre 1960-1970, capitaneadas por Livio Rangan, gerente de publicidade que foi encarregado de criar um mercado para o fio sintético no Brasil. De acordo com a autora, o trabalho de manequim até então era exercido por “moças da sociedade, atrizes e até mesmo show-girls [bailarinas de cassinos] que desfilavam eventualmente” (BONADIO, 2004, p.52), sendo os editoriais de moda ilustrados por fotografias compradas de agências internacionais. Com as iniciativas de Livio Rangan à frente da publicidade da Rhodia iniciou-se a produção periódica de editoriais de moda no Brasil e popularizaram-se os desfiles anuais da FENIT (Feira Nacional da Indústria Têxtil), entre 1963-1970, levados para todo o Brasil e até mesmo para o exterior. Criou-se não só um novo conceito de desfiles, com números musicais, esquetes teatrais e

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números de dança, como também formou-se um novo perfil de manequins que constituiriam um grupo seleto e profissionalizado: as “manequins exclusivas da Rhodia” que, segundo a autora, “pode ser considerado o primeiro grupo de modelos e manequins profissionais do Brasil” (BONADIO, 2004, p.50). Os depoimentos de ex-modelos da Rhodia coletados por Bonadio (2004) fornecem elementos ricos que contribuem para caracterizar o universo retratado nos filmes paulistas. Embora fizessem parte de um grupo mais seleto e profissionalizado do que a grande maioria das profissionais da área, com altos salários e viagens glamourosas, as ex-modelos revelam ressentimentos quanto a uma carreira na qual trabalho e vida pessoal estavam mesclados e na qual era vendida a própria imagem. Mesmo com a profissionalização crescente, preconceitos sociais continuavam associando a manequim à prostituta – aspecto recorrente nos depoimentos242. E, se as modelos da Rhodia eram mais “respeitadas” do que suas colegas menos profissionalizadas (relata a modelo Eidi Poletti que, antes de entrar para a Rhodia, desfilou para uma confecção onde o proprietário exigia que ela experimentasse biquinis para sua análise pessoal, sendo que a confecção não produzia biquinis243), isso não impediu que elas compartilhassem ressentimentos quanto à condição reificada inerente a seu trabalho, como aparece no depoimento de Bia Slivak:

Como eu estava alienada! Foi uma oportunidade de viver – o que eu vivi em termos de viagem! – , viajar, as pessoas interessantes que eu conheci, mas o trabalho em si, te levava para uma vaidade, para um desamor muito grande, que você, como modelo da Rhodia, por exemplo, tinha homem, mas na verdade ele não estava interessado em você, não estava interessado em você, ser humano, os homens queriam desfilar com uma modelo da Rhodia. Então, houve muita desilusão, muito desencantamento [...] (SLIVAK apud BONADIO, 2004, p. 55).

Ully Duwe, por sua vez, apresenta uma reação de estranhamento, no sentido de separação/dissociação, em relação ao seu trabalho:

Teve época que eu queria apagar da minha memória. É um processo pessoal. Tanto que eu queimei tudo, toda a minha carreira, dois baús enormes de fotos. Eu queria uma vida nova, eu sabia que aquilo não era meu, acontece que foi um caminho, foi um meio para chegar onde eu estou hoje. (DUWE apud BONADIO, 2004, p. 54, grifo meu).

242 Cf, por exemplo, os depoimentos de Bia Slivak: “Era preconceito muito grande, da família, de todo mundo. Ser modelo era ser puta. Tinha isso, estava muito caracterizado. Modelo é fácil, modelo é puta, transa, faz programa. Tinha uma coisa muito forte, muito forte.”(SLIVAK apud BONADIO, 2004, p.63); E Eidi Poletti: “Modelo desfilou? Era puta, era puta. Veja, eu me casei virgem, não tinha nada a ver uma coisa com outra,mas dentro da moral... Eu não tive estrutura para sustentar, então eu tive de me casar, para limpar esse preconceito. Eu me casei, era uma moral muito rígida. Cada fotografia que saía em revista e jornal era um comentário muito forte”. (POLETTI apud BONADIO, 2004, p.62). 243 Cf. POLLETI apud BONADIO, 2004, p.67.

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Bebel, garota propaganda e Anuska, manequim e mulher são filmes que trabalham com centralidade as carreiras de modelos fotográficas: o primeiro mais focado no universo da publicidade e do show business; o segundo no universo da moda, ambos baseados em textos do escritor Ignácio de Loyola Brandão, que, entre 1966 e 1972, trabalhou como jornalista, redator e redator-chefe da revista feminina Cláudia244, revista na qual os editoriais de moda ganhavam destaque e estavam estreitamente ligados à publicidade da Rhodia, conforme mostra Bonadio (2005). O filme de Capovilla é baseado no romance Bebel que a cidade comeu (1968), ao qual o cineasta teve acesso aos originais datilografados antes de sua publicação em livro245, e o filme de Ramalho Jr. é centralmente baseado no conto Ascensão ao mundo de Annuska do livro Depois do Sol (2005 [1965]), incorporando elementos de outros contos do autor, como Diálogo com Adriana do mesmo livro e A sexta hora publicado na revista Cláudia246. Passemos aos filmes.

4.2 Bebel e Anuska: criações masculinas

4.2.1 Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967): o olhar sociológico

Bebel, garota propaganda inicia-se com a apresentação de Bebel (Rossana Guessa). Fortemente maquiada, com um arranjo na cabeça, luvas e maiô bordados com elementos brilhantes, ela explica ao entrevistador fora de campo247 como tornou-se vedete do “teatro do rebolado”, aos quinze anos, mediante documentos falsificados pelo recrutador. Enquanto ela fala, a câmera sobe e desce pelo seu corpo e dá ênfase às suas pernas que por algum tempo preenchem todo o quadro. Bebel comenta estar nervosa por saber se tratar de um teste. Em cena posterior, o publicitário Marcos (John Herbert) diz a seu chefe ter encontrado a garota-propaganda para o comercial de sabonetes que preparam, o que sugere que ele era o entrevistador que “testava” Bebel. A voz que se ouvira em off na “entrevista”, todavia, não era

244 Informações de Bonadio, 2005, p.171. 245 Cf.Mattos, 2006, p.111. Capovilla e Loyola Brandão foram colegas no jornal Última Hora. 246 Cf. Depoimento de Ignácio de Loyola Brandão em SAC (1968). 247 Conforme explica Aumont (1995), o espaço fílmico é formado não só pelo que vemos na tela mas pelo que imaginamos dar continuidade ao que vemos, isto é, pelo campo e pelo fora de campo. O fora de campo, ou espaço off screen é, assim, o “[...] espaço, invisível, mas prolongando o visível [...] o conjunto de elementos (personagens, cenário etc.) que, não estando incluídos no campo, são contudo vinculados a ele imaginariamente para o espectador, por um meio qualquer [...] o meio mais correntemente utilizado é o ‘olhar de fora de campo’”. (AUMONT, 1995, p.24).

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a de John Herbert mas a de Fernando Peixoto que aparecerá adiante como um jornalista que, ao realizar uma reportagem filmada sobre a história de Bebel, introduz questionamentos e reflexões, atuando como voz auxiliar da instância narradora do filme. Assim, fica ambígua a questão sobre “quem” escrutinou o corpo de Bebel: o publicitário Marcos, cujas ações não terão a adesão da instância narradora ou o jornalista que de certo modo a representa. Após essa cena inicial surgem os letreiros de créditos do filme, apresentados em meio a uma composição “moderna” de imagens e música. As imagens, recortadas e fragmentadas, introduzem o universo da publicidade. Muitas mulheres em roupas modernas, geométricas, plásticas; seminuas ou com o corpo decomposto em partes: um grande olho maquiado, boca entreaberta com belos dentes, unhas esmaltadas, rosto esquadrinhado com setas e indicações, provavelmente orientações de maquiagem. Numa continuidade de estilo em relação à sequência dos créditos, vemos um comercial da Max Factor, célebre marca britânica de maquiagem. O audiovisual acaba de ser exibido como matriz de inspiração na agência de publicidade onde trabalha Marcos, e o publicitário conclui: “É isso! O que precisamos é de agressividade! Sem agressividade não se vende nada. O negócio é fazer o público consumir o que ele nunca pensou consumir!”. Alguém fora de campo dá uma discreta pigarreada e ele adota um tom mais politicamente correto: “A publicidade ajuda o país a progredir dos dois lados: do lado de quem fabrica e vende; do lado de quem compra”. A seguir, na conversa de Marcos com seu chefe acerca da elaboração da campanha para os sabonetes “Love”, ouvem-se frases como “Precisamos de uma frase pra ser bem martelada no ouvido do povo”; “eu quero que você encontre uma garota bem boa pra vender sabonete na base do banho” e “O público vai gostar sem querer”. O slogan da campanha é definido em cima de valores individualistas: “Love, amor à própria pele”, máxima que de certa forma marca os personagens do filme que buscam acima de tudo “salvar sua própria pele”. A cena da gravação do comercial, tendo Bebel como garota-propaganda, é filmada destacando-se detalhes dos bastidores da publicidade, seu aparato técnico e seu caráter artificial: desde o processo de maquiagem de Bebel filmado em close, no qual se destaca a pinta falsa, até a espuma aplicada sobre a moça proveniente não do sabonete anunciado mas de uma caixa de sabão em pó. Ela segue mecanicamente as ordens do fotógrafo que incluem evitar molhar o cabelo e “ligar o sorriso” e, assim, logo mais a moça pobre criada num cortiço do Bom Retiro aparecerá exibida na televisão, cantando o jingle do sabonete e estampando revistas, jornais e outdoors por todo o país. Uma cena enfoca a montagem de um desses outdoors e coloca em relevo a imagem do corpo de Bebel sendo “acariciado” pelos

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profissionais durante o procedimento de colagem das grandes folhas de papel que compõem o painel de anúncio. Se, para a maioria dos consumidores, a promessa de consumo de Bebel é, segundo a lógica da indústria cultural, continuamente alimentada e continuamente frustrada – a imagem dela deve ser a de “uma mulher fácil, mas inatingível”, afirma Marcos –, para os detentores do poder a promessa é concretizável, como fica explícito quando, na apresentação de seu projeto aos empresários do sabonete anunciado, Marcos, após descrever as “medidas perfeitas” do corpo de Bebel, divulga o endereço onde ela pode ser encontrada: “manequim 42, 1,70 de altura, 98 cm de busto, 54 cm de cintura, 45 cm de coxa, loira, olhos verdes... Rua Sampaio Vidal, 26”. Conforme a voraz lógica da indústria cultural, com sua busca incessante pela aparência de novidade, não demora para que Bebel seja substituída. Sobre o outdoor que ostentava o corpo de Bebel, uma nova foto de mulher é colada, numa imagem que parece ilustrar bem a conhecida passagem da Dialética do esclarecimento em que Adorno e Horkheimer afirmam que:

[...] A indústria cultural realizou maldosamente o homem como ser genérico. Cada um é tão-somente aquilo mediante o qual pode substituir todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é o absolutamente substituível, o puro nada […].(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.136).

O contrato de Bebel com a agência de publicidade se encerra inadvertidamente, deixando-a desempregada. Em entrevista ao jornalista interpretado por Fernando Peixoto, o publicitário Marcos explica que o contrato da moça não foi renovado porque se considerou conveniente substituir o enfoque da sensualidade por outro voltado à “mulher do lar”, e esclarece que “hoje em dia sem a presença da mulher você não vende produto nenhum... para cada mensagem, um tipo de mulher”. O jornalista então lança a indagação: “Mas, afinal, você vende sabonete ou mulher?”. Não sendo mais uma “cara nova”, Bebel tem dificuldades em encontrar emprego, sendo rejeitada até mesmo por uma revista masculina que a considera “muito manjada, muito batida”. É interessante notar que o filme expressa consciência de que o próprio cinema faz parte desse meio cruel ao incluir uma cena peculiar que conta com a participação especial dos cineastas paulistas Fernando de Barros e Roberto Santos no papel deles mesmos. Fernando inventa uma desculpa para não receber Bebel e Roberto comenta: “problema dela... até aprender que a corda arrebenta sempre do lado mais fraco. Se não

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aprender, se ‘descadera’”. A moça acaba conseguindo um emprego na televisão no qual se sujeita a manter relações sexuais com o produtor do programa e é incitada a seduzir eventuais patrocinadores para manter-se no ar. E, ao romper com o produtor de televisão que a subjuga, volta a morar no subúrbio da cidade. Sem vislumbrar alternativa, acaba por aceitar a proposta de ser “rifada” como prêmio sexual a frequentadores de uma casa noturna. O filme termina justamente com o sorteio de Bebel, explicitando de maneira exacerbada a condição de mercadoria que caracterizou sua trajetória desde o início. O olhar do filme Bebel, garota propaganda pode ser considerado um olhar masculino, exterior à protagonista, de quem conhecemos pouco. Bebel define-se pela sua condição de garota propaganda, que se converte em garota de programa. Sabemos de sua origem, de sua trajetória, mas pouco sabemos sobre quem ela é, o que pensa, o que sente. É significativa a cena em que ela comenta com o namorado Marcelo (Geraldo del Rey): “Tem tantas coisas que eu queria lhe dizer... coisas minhas pra que você me conhecesse melhor e gostasse mais de mim”, mas a seguir o tema da conversa acaba sendo ele e não ela. Outras poucas oportunidades em que a vemos expressar os pensamentos e sentimentos é conversando com personagens masculinos: com o “amigo” Renatão (Maurício do Valle) numa mesa de bar, onde desabafa sobre o seu relacionamento com o produtor de televisão; e com Bernardo (Paulo José), jornalista de revistas masculinas numa expressiva cena quase ao final do filme. Na sacada de seu apartamento na periferia paulistana, de onde se vê a cidade enevoada, chaminés de fábricas, ruídos incômodos. Bebel fala a Bernardo sobre a poluição da cidade “a gente morrendo devagarinho... e ao mesmo tempo muito depressa...”, depois de confessar a ele que acabará por aceitar a proposta de Renatão que, em cena imediatamente anterior, ela expulsara de sua casa, chamando-o de sujo, quando ele propusera o programa da rifa. “Você gostou de me ver defendendo a honra, não foi?”, ela diz a Bernardo que permanece em cena após a saída de Renatão. “Amanhã ele volta, me propõe a mesma coisa e eu aceito...”, diz ela em tom melancólico, o rosto abatido, sem maquiagem. Na sequência seguinte estará bem vestida e maquiada dançando na boate que a sorteará para o “felizardo” da noite. Ela “liga o sorriso” que se espera dela como aprendera na publicidade. Ao jornalista responde em cortante ironia que está “felicíssima, rá rá”. E o filme se encerra com a imagem de Bebel dançando ao som de banda da Jovem Guarda, tendo ao fundo o cartaz do comercial do sabonete a duplicar a sua imagem. À exceção da cena de abertura em que a câmera escrutina o corpo de Bebel, a construção do filme adota uma postura distanciada, um olhar observativo e quase

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“sociológico” no sentido de desvendar a estrutura de um sistema que tragou Bebel. A câmera em geral se apresenta discreta, sem enfatizar o corpo da atriz, mesmo nas cenas de maior exposição, como aquela em que ela tira a roupa na sala do produtor de TV ou nas cenas de amor com Marcelo. Isso é evidenciado quando comparamos o filme com filmes contemporâneos, como Em busca do susexo (Roberto Pires, 1970), cuja câmera mergulha acintosamente no decote e nas pernas da personagem que tem por intuito seduzir o produtor de televisão para alavancar sua carreira. A câmera de Bebel, ao contrário, não adere ao olhar “predador” do produtor de TV. Quanto às cenas de amor, os filmes de Walter Hugo Khouri na época e até mesmo Anuska, manequim e mulher, que analisaremos a seguir, apresentam um grau mais elevado de erotismo, que decorre de enquadramentos mais próximos aos corpos, dos movimentos de câmera ou mesmo da duração das cenas. As cenas de “cama” de Bebel são curtas e a câmera não mostra o enlace dos corpos. Analisando retrospectivamente, podemos, então, considerar que o modo de filmagem da cena de abertura ajuda a compor a crítica proposta por Bebel, garota propaganda: é assim que Bebel é vista, o interesse recai sobre seu corpo e não sobre o que ela tem a dizer e é isso que o filme problematiza ao longo de sua construção. Desse modo, o olhar do filme de Capovilla é um olhar masculino, mas nem por isso misógino ou fetichizador. É um olhar distante e investigativo, por vezes frio, por vezes terno. Duas cenas com números musicais se apresentam como comentários críticos inseridos pela instância narradora. Em um dos trabalhos de sua passagem pela televisão, Bebel estrela um dueto em que canta em estilo jovem guarda com um rapaz. Ele de camisa listrada e corte de cabelo estilo “beatle”; ela vestida de saia e gravata, estilo colegial. Eles cantam a música Você é de morte (Carlos Imperial, 1960):

Rapaz: Procuro uma garota para eu namorar, a sorte me ajudou em com você encontrar... Bebel: Deixe de conversa, entre mais devagar, eu não lhe conheço e nem bola vou dar. Você é de morte... Rapaz: Mas eu vou te apanhar... Você é bonitinha é o que serve pra mim, seja boazinha, eu lhe dou um pudim. Bebel: Mas mamãe não quer que eu coma doces na rua, quem come esses doces vai pro mundo da lua. Você é de morte... Rapaz: Mas eu vou te apanhar... Se eu te convidar... para passear... no Guarujá... Bebel: Mas no Guarujá eu nunca fui, eu não vou lá. Mamãe me disse, papai me avisou... Rapaz: Quer dizer que você não vai? Bebel: Eu não vou... Rapaz: Ouça a proposta que eu vou lhe fazer: eu estou querendo é me casar com você... Bebel:Mas você promete ser bonzinho pra mim?

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Rapaz: Olha, bom e carinhoso, cem por cento até o fim. Bebel: Você é de morte! Rapaz: Mas vou ter que casar! Bebel: Você é de morte... Rapaz: Mas vou ter que casar!

A letra da música, o estilo das roupas e os gestos do casal, com beijinhos no rosto, abraços e toques delicados, dão à performance um estilo ingênuo e gracioso, não obstante as presumidas “más intenções” iniciais do rapaz, transmutadas ante a firmeza da moça “de família”. A mensagem rósea e moralista da apresentação contrasta com os bastidores do programa nos quais Bebel se sujeita a todos os tipos de desmandos do produtor, sendo ainda mal paga. E a construção fílmica enfatiza esse contraste quando o produtor de TV incita Bebel a aceitar o convite de um eventual patrocinador do programa para ir, justamente, ao Guarujá e ser “gentil” com ele. A moça reluta um pouco, mas ameaçada de perder o emprego, aceita e logo a câmera a focaliza de biquini na lancha do empresário que lhe toca os ombros em gesto de sedução. Na trilha sonora, a cançãozinha ouvida antes explicita a ironia: “Mas no Guarujá eu nunca fui, eu não vou lá. Mamãe me disse, papai me avisou...”. Outro número musical que funciona como comentário crítico é a apresentação da cantora De Kalafe numa casa noturna onde Bebel conversa com Renatão, desabafando sobre sua relação com Walter, o produtor de TV:

Renatão: Por que você ia pra cama com ele? Bebel: No início não foi agradável... Depois, era como a carteira de trabalho, uma garantia de emprego, não era tão mau, a não ser quando estava bêbado. Acostumei, eu fazia o que ele queria. Dançava, cantava, caia de quatro no palco se ele mandava. Se ele queria ir pra cama, eu dormia com ele... Mas ele.. nunca me deixou esquecer que o dinheiro vinha dele, só dele... [a fala se interrompe por uns instantes para se ouvir a apresentação musical e ela continua]. É verdade que eu ganhava meu dinheiro, e depois, havia a esperança de ficar célebre. Mas ele nunca me deixou esquecer que o dinheiro vinha dele, que eu dependia dele, só dele. Renatão: Toma mais um? Bebel: To ficando bêbada, não tô? Renatão: Que nada... Até que você está ótima. Continue. Bebel: Muita gente faz coisa pior pra garantir seus empregos. No início eu gostava, saia comigo, me levava passear, me exibia, dizia que tava interessado na minha carreira. Me levou no bico, isso sim! Odeio esse cara, é um nojento!

A canção interpretada por De Kalafe e a banda A turma é Inch'Allah (Salvatore Adamo, 1967) que se refere aos conflitos entre árabes e israelenses, mas, no contexto de Bebel, serve para enfatizar a dramaticidade da fala da moça, se entremeando ao diálogo. Apenas a interpretação vigorosa de De Kalafe já seria suficiente para conferir uma carga dramática ao relato de Bebel, mas, em determinado momento, o diálogo é interrompido por

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alguns instantes para que se ouçam particularmente os seguintes versos da canção: “Le chemin mène à la fontaine. Tu voudrais bien remplir ton seau./Arrête-toi, Marie-Madeleine: pour eux, ton corps ne vaut pasl'eau248” que se tornam comentário agudo sobre a garota- propaganda. Convém observar que, não obstante busque ascensão social e tenha objetivos de consumo, a personalidade de Bebel é construída como a de moça até certo ponto ingênua e desconfiada, que tenta sem sucesso manter a dignidade e ajudar a família pobre, o que a diferencia das personagens levianas, cínicas e arrivistas, recorrentes no cinema da época, entre as quais podemos citar Ana de São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965)249 ou Diana do britânico Darling (John Schlesinger, 1965). A personalidade de Bebel contrasta também com a de Marta, vedete de televisão do filme As amorosas, de Walter Hugo Khouri (1968). No filme de Capovilla, Bebel tenta a todo momento se preservar: incomoda-se com a presença de homens alheios à equipe na gravação do comercial de sabonete, reluta em tirar fotos nua etc. Todavia, sem capacidade de autodeterminação sobre o próprio destino, é enredada pelas engrenagens de um sistema que a torna cada vez mais concretamente objeto dos homens. Já Marta é caracterizada como uma personagem traída pela própria vaidade que a torna exibicionista e promíscua; ela é “burra, vulgar e vaidosa”, conforme a adjetivação que lhe faz o protagonista Marcelo, características explicitadas ao paroxismo na cena, quase ao final do filme, em que, prestes a sofrer um estupro coletivo, mostra-se lisonjeada ao ser solicitada a falar da sua performance na televisão. No filme de Capovilla a problemática é social, no de Khouri é, antes, moral e individual, assim como em Darling no qual a protagonista “esperta” e arrivista é punida no “exemplar” castigo que o ex-companheiro lhe aplica ao “usá-la” como ela “usou” a todos em sua amoral trajetória de ascensão social. De constituição formal menos arrojada do que, por exemplo, São Paulo S.A., Bebel busca a comunicatividade com o público, construindo uma narrativa linear centrada na trajetória da protagonista. Há, contudo, a mesma preocupação vista no filme de Person com o realismo, quase documental, expressado no largo uso de locações, tomadas externas, vistas da cidade e dos transeuntes, além de um minucioso retrato dos bastidores da publicidade e da televisão. E, a despeito da narrativa convencionalmente estruturada, há a introdução do

248 Tradução livre: “O caminho leva à fonte/ Você bem que gostaria de encher seu cântaro/ Pare, Maria Madalena, para eles teu corpo não vale a água”. 249 Embora Ana tenha preocupações com a mãe doente, que visita no asilo, o que daria motivos mais “nobres” para sua busca por dinheiro, a imagem que o filme constrói dela é de uma moça leviana e cínica, que busca emoções e prazeres mundanos, além da ascensão social. Isso se evidencia, por exemplo, na cena da praia em que parte com um grupo de rapazes numa lancha, deixando para trás Carlos.

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personagem, inexistente no livro em que o filme se baseou, do jornalista que faz uma reportagem filmada sobre o caso de Bebel e quebra parcialmente a linearidade, constituindo figura incômoda que a todo momento inquire e questiona os demais personagens, desvelando o que está por trás das aparências. Bebel é circundada por muitos homens: Marcos, o publicitário; Bernardo, o jornalista de revistas masculinas; Walter, o produtor de televisão; Renatão, o “amigo” que se torna seu cafetão. Todos eles buscam de alguma forma “tirar vantagens” de Bebel, explorando sua imagem e seu corpo. Marcelo é o único homem com quem a moça trava uma relação mais sincera e com alguma reciprocidade de sentimento. O relacionamento, porém, é conturbado. Ele é um politizado estudante de arquitetura que busca proximidade com o “povo” e vive de maneira quase marginal, habitando lugares como um barracão de parque de diversões cuja parede é divisa da barraca de tiro ao alvo, e, assim, seu universo não conflui com o da moça que busca a ascensão social, roupas novas e conforto. Em cena significativa cujo cenário é o terraço de um prédio de onde se tem vista panorâmica da cidade de São Paulo, o contraponto entre as perspectivas dos dois se apresenta quando Marcelo comenta com Bebel um anúncio de “emprego de futuro para jovem ambicioso” que encontrou num jornal:

Marcelo: [lendo anúncio] Stallation Efficiency Engineering LTDA [como em São Paulo S.A, aqui também se remete à presença do capital internacional na economia paulistana] oferece curso de preparação exigindo apenas: personalidade, trato social, conhecimentos de contabilidade, moral íntegra, honestidade, tenacidade, capacidade de trabalho extra-profissional, respeito pelos superiores, ambição, conhecimentos de inglês, etc, etc, etc. Apenas isso para vencer na vida sem fazer esforço. Bebel: Por que você não se candidata logo? Marcelo: De tudo o que eles pedem eu só sei inglês. Bebel: Não é difícil aprender o resto. Marcelo: Pra mim é. Esse negócio de se adaptar, amolecer, entrar na linha do bom comportamento não é pra mim não. Ninguém monta em cima de mim. Bebel: Não sei do que você está falando. O que me interessa é a minha carreira, o resto que se dane. Marcelo: Você também entrou na linha, Bebel. Todo mundo é assim, não tem saída. É uma coisa organizada, planejada, pensada lá de cima. Um amigo meu chama isso de massificação. Todo mundo igual, pensando a mesma coisa, desejando a mesma coisa. Uma carneirada.

Marcelo, contudo, não escapa dos questionamentos do jornalista interpretado por Fernando Peixoto. Solicitado a falar sobre Bebel, Marcelo marca distância dela: “Bebel é uma alienadona, quer emprego, dinheiro, roupas etc meu negócio é outro, meu negócio é o povo”, mas, confrontado pelo jornalista, deixa evidente que seu discurso está muito distante de uma atuação concreta e efetiva. “Como é que você pretende ajudar o povo? Você acha importante

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uma greve estudantil? Como é que você vive? Você trabalha? Como é que você faz pra arrumar dinheiro, dinheiro pra viver, pra estudar?”, são algumas das perguntas com as quais é acareado. Levado a um bairro operário é instado a comunicar-se com aqueles por quem diz lutar: “Por que que você não vai lá falar com eles? Será que você não consegue se explicar pra eles? Será que eles não vão entender? Você não vai conseguir explicar pra eles a força que eles têm, o que que eles significam. Vai lá falar com eles vai. Vai, age! Vai!!”. O som de sirene de fábrica ecoa, a câmera filma a favela. Marcelo em silêncio. “É esta a cidade que você conhece ou é essa aqui?”, questiona o jornalista apontando para o centro que pode ser avistado de onde estão. “E agora, hein, agora você nem fala?”, pergunta ele em sua última intervenção junto a Marcelo. Em cena anterior, Marcelo comentara, quando conheceu Bebel na plateia de uma luta de boxe: “Olhando só não se vê nada. Pra se descobrir uma coisa é preciso entrar nela, sofrer na carne”. Sua última aparição no filme se dá quando é levado preso após tentar inutilmente intervir numa ação policial contra trabalhadores informais no centro da cidade.

4.2.2 Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr. 1968): o olhar romântico

Geneviève Sellier (2005) fala das mulheres do cinema da Nouvelle Vague como “criações masculinas” e propõe a existência de dois tipos de filmes: uma vertente, minoritária, na qual as mulheres embora protagonistas, são objeto de um olhar “sociológico”, que “descreve, com mais ou menos piedade ou distância, a alienação social e sexual da personagem feminina” (SELLIER, 2005, p.132, tradução nossa) e uma outra vertente, mais comum, na qual: As personagens femininas são a concretização do desejo e dos medos do herói masculino, e o espectador não tem acesso a elas senão através do olhar deste. Elas encarnam direta ou indiretamente a fatalidade que vai se abater sobre ele, pelo fato mesmo de ele ter se apaixonado por elas. Para existir, ele deve descartá-las ou destruí-las, mas ele pode também destruir-se a si mesmo. (SELLIER, 2005, p.132, tradução nossa).

Se Bebel, garota-propaganda guarda traços de semelhança com a vertente “sociológica”, Anuska, manequim e mulher tem proximidade com a outra vertente, herdeira do romantismo. Se Bebel era definida pela condição social de garota-propaganda, Anuska não é só manequim, é manequim e mulher, a mulher por quem Bernardo, o protagonista, se apaixona. O filme abre-se com Bernardo (Francisco Cuoco) em primeiro plano, num bar,

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tomando um comprimido efervescente. Atrás dele, dois homens conversam acerca de desventuras amorosas: “aquilo não é mulher pra você”, um diz ao outro. Veremos que, de acordo com a construção fílmica, a frase será válida também para a relação entre Bernardo e Anuska (Marília Branco). Ele trabalha como jornalista para o jornal Última Hora e em casa escreve literatura. Dentro do seu pequeno e modesto quarto, há livros e papéis espalhados e, na parede, cartazes pró Cuba e Vietnã. Avista-se, do lado de fora, um grande anúncio da Coca- Cola. Seu encontro com Anuska será o encontro com esse mundo do lado de fora da janela, o mundo da publicidade e do consumo. O encontro acontece quando Bernardo vai à casa do produtor de moda, Sábato (Ivan Mesquita), a fim de realizar uma reportagem sobre o Festival de Moda Brasileira. Na grande e refinada casa de Sábato, de arquitetura modernista, está Anuska, quase uma peça de decoração em meio às estátuas e a outros objetos que compõem a sala. Fascinado por aquela beleza enigmática, o jornalista passa a frequentar a casa e acaba por aceitar o convite de Sábato para escrever regularmente sobre seus desfiles, embora comente: “isso parece um pouco publicidade... é um trabalho que venho recusando sempre”. Quinze minutos de filme transcorrem sem nenhuma fala de Anuska. Ela é exibida vendo revistas, à mesa de jantar (“Anuska, adora champanhe”, diz Sábato por ela); colhendo florezinhas no jardim, sendo abraçada por Sábato, trocando olhares furtivos com Bernardo ou assistindo, entre os dois homens, cena da peça O Rei da Vela (, 1967) que trata justamente da hipocrisia do casamento burguês. Quando finalmente ouvimos sua voz, ela fala em função de Bernardo: “gosto do seu jeito, gosto quando você fala comigo, você não é como os outros”. “Que outros?”, ele indaga. “Os amigos dele, uma gente estranha”, diz ela. Ela esclarece, então, que seu maior sonho é ser manequim, que Sábato a descobrira e que tinham um acordo de que ela só “seria dele” quando se tornasse uma famosa manequim. Sábato viaja para a Europa e, previsivelmente, floresce o romance entre a aspirante a manequim e o jornalista. Anuska reluta mas, à semelhança de Bebel que se envolve com Marcelo, estudante desencontrado que vive em condições precárias, ela troca o total conforto e segurança da vida com Sábato para dividir um pequeno apartamento com Bernardo. Ela escolhe guiar-se pela paixão contrariando o alerta do produtor de moda que tenta dissuadi-la: “fica com quem manda no mundo”. Diferentemente do filme de Capovilla, no qual o viés de crítica social é mais evidente, no filme de Ramalho Jr. o que se evidencia é o drama pessoal, os prazeres e as dores do envolvimento amoroso, incluindo a presença de clichês românticos, com imagens do casal

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passeando pelo parque, rodopiando a dois, fazendo compras perpassadas por beijos e sorrisos e amando-se no chão do apartamento, sendo a câmera cúmplice de Bernardo no fascínio pelo rosto e corpo da loira. Profissionalmente, os dois irão caminhar em sentidos opostos. Ainda no início, em cena peculiarmente significativa pelo fato de Anuska olhar diretamente para a câmera, ela diz que não aguenta mais as exigências da profissão e que não leva jeito para ser manequim. No entanto, depois das dificuldades iniciais, a sua carreira deslancha e ela parece feliz e adaptada ao trabalho, embora reclame das dores nos pés por calçar sapatos menores do que o seu número e por passar horas em pé. Ela mostra-se empolgada em ganhar roupas e sapatos e anima-se com as festas e viagens de trabalho. Bernardo, por sua vez, está em crise como escritor, recebe a notícia de que seu livro de contos não será publicado devido à conjuntura desfavorável do país e preocupa-se com dinheiro pois sua concepção de amor inclui a função de provedor: “eu gostaria de viver pra alguém, de trabalhar pra alguém”, dissera a Anuska na fase da conquista. Assim, quando Eduardo (Jairo Arco e Flexa), colega de redação no Última Hora, o compele para um maior envolvimento político, relembrando seu engajamento nos tempos universitários, ele acena em sentido contrário manifestando planos de trabalhar em publicidade, ambiente caracterizado pelo amigo como “um sugadouro... o que você tem de bom fica lá dentro” e que ele vinha recusando até conhecer Anuska, como já comentado. A primeira briga do casal apresentada no filme tem o dinheiro como motivo central de divergência: Anuska quer sair à noite e Bernardo prefere ficar em casa não só para trabalhar em seu livro como também para não gastar e ela busca convencê-lo de que os amigos dela poderiam pagar a conta porque são ricos. Bernardo entende isso como uma espécie de prostituição e chega a lançar dúvidas sobre a honestidade da namorada: “de você eu não sei, mas de suas amigas, tenho certeza”. Eles acabam saindo e a crise aumenta visto que os amigos de Anuska, notadamente o empresário Calfati (interpretado pelo cineasta Luiz Sérgio Person), irritam Bernardo com conversas vazias e narcisistas, incomodando-o mais fortemente o fato de Calfati ser um bem sucedido empresário e paquerar Anuska abertamente, menosprezando sua presença. Outro acontecimento é motivo adicional de contrariedade para Bernardo. Saindo da danceteria, o grupo vai para um bar onde uma prostituta bêbada confunde Anuska com uma ex-colega. Anuska mostra não conhecê-la mas Calfati sugere, por diversão, que ela “dê corda” à mulher. A anônima então conta que elas tinham morado juntas há cinco anos quando eram colegas na prostituição. Ao final ela se despede chamando Anuska de Maria Aparecida e Anuska ri com Calfati e comenta sobre a loucura da mulher. Ainda que

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a cena se desenvolva com naturalidade e não pareça que Anuska esteja mentindo, deixa-se para o espectador e, presumivelmente, para Bernardo, uma ponta de dúvida ou reflexão sobre o passado e mesmo o presente de Anuska, de quem só sabemos o que acompanhamos por intermédio de sua relação com o protagonista. Não há informações sobre seu passado, não há diálogos dela com outros personagens na ausência de Bernardo e nem mesmo acompanhamos sua profissão, salvo uma única cena de desfile250. Suas viagens pelo Brasil para as campanhas de moda ocorrem longe das câmeras (e dos olhos de Bernardo) e não sabemos se ela chegou ou não a se envolver com Calfati ou outros homens. Bernardo segue apaixonado após a primeira crise, e decide concretizar a intenção de deixar o trabalho no jornal para ingressar na publicidade: “to cheio, to cansado de ficar preocupado com negócio de dinheiro, prestação de móveis, apartamento e nunca poder te dar nada”, diz a ela que, sonolenta, não presta atenção. O recrutamento de Bernardo pela agência de publicidade, onde já trabalha um amigo, é retratado pelo filme – notemos que o recrutamento de Anuska não foi retratado e não sabemos como ela logrou o ingresso efetivo na carreira de manequim, uma vez que Sábato a advertira que as portas estariam fechadas para ela caso se separasse dele. A agência exige de Bernardo um “psicoteste” para avaliar seu potencial de “adaptação a um trabalho disciplinado e rígido, dissipando possíveis tendências naturais de dispersão”. O resultado indica que ele é dotado de “raciocínio verbal rápido; é bom em redação e muito ruim em matemática; revela profunda revolta às vezes, mas tem um lado passivo no seu caráter; tem medo dos grandes choques, das mudanças, e as grandes decisões o apavoram mas é criativo apesar de tudo e poderá ser usado”. O amigo lhe pergunta porque ele resolveu entrar para a publicidade e ele responde ser por dinheiro. O amigo, então, olhando de frente para a câmera e contrariando uma configuração campo/contracampo que seria mais “natural” para a cena, fala: “puxa, Bernardo, quando eu olho pra você sabe o que eu penso? Eu penso que você se bitolou. Eu te conheço faz uma porção de tempo, acho que desde que você veio do interior. Você era um cara que pensava num monte de coisa boa, queria escrever, fazer cinema, teatro... bacana…” A câmera muda o enfoque e adota uma posição mais lateral e distanciada, enquadrando ambos ao mesmo tempo, e o amigo continua: “aê você deu aquela enrustida, se mudou, hoje você só

250 O argumento original previa flashbacks com história de Anuska, tendo-se cogitado que ela seria ou uma balconista que colecionava recortes de atores e atrizes numa loja que ficava em frente a um canal de televisão ou uma secretária em agência de publicidade, prevendo também cenas posteriores de preparação de Anuska como manequim e desfiles. Comentários no texto como: “O flash todo ele uma mistificação: a história de Cinderela” e “Anuska e suas colegas são de cera, não têm vida”, assinalam a perspectiva crítica do realizador em relação ao universo retratado. Cf. Ramalho Jr. (1967).

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pensa em dinheiro. Você nunca pensava em dinheiro! Você nem se importava com dinheiro, você fazia montes pra humanidade. Olha, não fica chateado comigo, não, mas eu vou lhe dizer uma coisa, você se encolheu de medo diante do mundo”. “De medo?”, retruca Bernardo. “É”, responde o outro. “Não. Me obrigaram a encolher. Tão me obrigando...”, responde o ex- jornalista. Logo adiante, Bernardo olha para uma grande foto da cidade de São Paulo que decora a sala da agência de publicidade. A cidade o obrigou a se encolher? As circunstâncias do país? O seu próprio “medo dos grandes choques” que o impediu de se engajar politicamente? Pode ser tudo isso, mas o elemento mais concreto e imediato que o “obriga a encolher”, conforme a construção fílmica, é Anuska. Ela o conectou ou o empurrou para um mundo do qual ele se protegia e se dissociava; ela tornou imperativa a necessidade de dinheiro e o introduziu no universo de consumo e lazer do capitalismo tardio. Anuska é a integração que o afasta da possibilidade de ruptura, sendo para ela o emprego dele na publicidade motivo de comemoração: “benzinho você tá subindo, sabe, eu me orgulho de você”. Notamos aqui traços do romantismo caracterizado por Michelle Coquillat e retomados por Geneviève Sellier (2005, p.89) em sua análise dos filmes da Nouvelle Vague. O romantismo, na análise das autoras, tem uma dimensão “ontologicamente” misógina que associa o homem à criação e a mulher à reprodução, sendo o amor uma ameaça ao homem quanto à perda de sua capacidade criativa ou, mais largamente, da capacidade de ser ele mesmo. Nas palavras de Sellier, a partir de Coquillat: “A figura do herói romântico é aquela de um criador (de si mesmo ou de uma obra) que aspira à autonomia total, por oposição à mulher que tem necessidade de outros para existir e que o ameaça de atraí-lo para a sua contingência” (SELLIER, 2005, p.89, tradução nossa). Anuska gosta “de gente”, “bastante gente”, “de movimento”, como afirma em suas falas. Gosta de festas, de dançar, de viajar, de se vestir bem. Vive a superfície de lazeres efêmeros e transita confortável num universo que Bernardo vê como “uma mentira”. As divergências e distância entre os dois se aprofundam e ele lhe propõe uma viagem à praia como reconciliação. Os diálogos no Guarujá explicitam questões antevistas. Ele diz que pensara que ela não era igual às outras e ela lhe responde: “mas eu sou igual às outras, é isso que você não entende. Eu sou igualzinha e não quero ser diferente”. “Não quer, mas é, puxa como é...”, diz ele sob o prisma de seu amor. O conflito dele é com o “mundo” de Anuska, no qual ele não cabe, ao qual ele não pertence:

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Anuska: Eu tenho a minha vida, você não quis entrar nela. É um outro mundo, a gente precisa aprender a viver dentro dele, é só querer. Benardo: Eu aprendo. Anuska: Não, eu não acredito, teu mundo é outro. Bernardo: Eu lá tenho mundo? Anuska:Não sei. Eu tenho e gosto dele. Eu vou embora. Sai. Vai escrever. Bernardo: Eu lá quero escrever? Pra quê escrever? Eu quero você. [pega a mão dela] A gente, a gente podia ser feliz, é só querer. [acaricia o rosto dela]. Aqui só tem nós dois, lá tem muita gente... muito confuso. Aqui não tem hoje, nem amanhã, nem nada. [beija-a]. Lá, lá eu não sei.

Ele parece se ajoelhar sob ela, mas a câmera se concentra no rosto contrariado de Anuska e o filme se encerra, ao som da canção que já se ouvira ao longo do filme: “Par-par- par-partiu-se, ô ô, que-que-que-quebrou-se; ô ô, amor-mor morreu, morreu...”. Para além da impossibilidade desse amor, o filme ressalta a falta de lugar, o deslocamento de Bernardo – “ Eu lá tenho mundo?”–, característica compartilhada por uma série de personagens masculinos no cinema brasileiro sessentista e expressiva das frustrações e angústias de seus criadores, homens de esquerda que tiveram seus projetos abortados pelo golpe civil-militar de 1964 e/ou pela subsequente ascensão da modernização conservadora que os engolfava na lógica de mercado e lhes aguçava o sentimento de deslocamento ante os ideais outrora defendidos. Ao longo do filme, Bernardo mostrara-se cético quanto às possibilidades de transformação social e o envolvimento com Anuska contribuiu para seu afastamento do universo da política. É ilustrativa a cena, em que ele, apaixonado, lê um jornal cuja manchete é destacada pela câmera – “DOPS enquadra padres na segurança nacional” – e, na sequência, se dedica a recortar no jornal formas de bonequinhos de mãos dadas. A perspectiva de engajamento aparece pela via do amigo Eduardo, mas ele rejeita tanto o convite para organizar uma série de debates sobre a “América Latina de hoje” na faculdade, como para participar da reunião para discutir a situação política do país com os colegas do jornal. Acaba, no entanto, contribuindo com Eduardo ao atender, um pouco a contragosto, o seu pedido para retirar clandestinamente do Última Hora fotos da invasão de um sindicato para serem publicadas num jornal político universitário. É curiosa nesta cena a enigmática chegada de uma moça à procura de Eduardo na redação do jornal. Camisa, cabelos curtos e morenos, ela tem o perfil de estudante engajada, à semelhança da personagem interpretada por Anecy Rocha em As amorosas (Walter Hugo Khouri, 1968), mas, no filme de Ramalho Jr., Bernardo não se divide, como Marcelo, o protagonista de Khouri, entre a vedete loira e fútil e a estudante morena e inteligente. No roteiro de Anuska, a participação da estudante era um pouco maior, mas no filme ficou restrita a essa única aparição e Ramalho Jr. retomará a personagem da militante política mais de dez anos depois em Paula – a história de uma

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subversiva (Francisco Ramalho Jr.,1979).

4.3 Do riso ao drama: o humanismo de Roberto Santos

4.3.1 As cariocas (3o episódio, Roberto Santos, 1966): ironia e bom humor no desvelamento da dupla moral midiática

Marlene, protagonista do episódio não titulado de Roberto Santos para o longa As cariocas (Fernando de Barros, Walter Hugo Khouri, Roberto Santos, 1966), é personagem aparentada à Bebel, à Anuska e à Ana (de São Paulo, sociedade anônima), entre outras personagens do cinema paulista que, à semelhança de Rosário, de Moral em concordata (1959), buscam “subir na vida” por meio de seus dotes físicos. “Rainha das Praias”, garota- propaganda, modelo fotográfica, atriz secundária no cinema e na televisão, Marlene (Íris Bruzzi) aparece no episódio de Santos participando de um programa televisivo que explora de maneira sensacionalista o incidente em que foi agredida por seus vizinhos, na Zona Norte carioca, em decorrência dos trajes reduzidos que usava para lavar seu carro – trajes que, conforme argumentará, contra ela, o programa, seriam adequados somente ao contexto de liberalidade de costumes da Zona Sul. Livremente inspirado no conto A desinibida do Grajaú, de Sérgio Porto (1975 [1965]), o filme de Santos consegue, na concisão de um média- metragem, condensar alto grau de crítica e desmistificação que deriva essencialmente da ideia – inexistente no conto – de apresentar os bastidores do fictício programa televisivo, denominado “Rio Verdade”, de modo a desvendar os mecanismos perversos pelos quais a mesma mídia que alçara Marlene ao estrelato, a devolvia à condição humilde de onde viera, não sem antes explorar sua situação e submetê-la ao desprezo público. O filme se constrói tendo como cenário os estúdios em que se grava, ao vivo, o referido programa e tem sua tessitura composta por um jogo entre as imagens captadas pela “câmera do filme” (isto é, aquelas que compõem a argumentação da instância narradora); as imagens supostamente captadas por duas câmeras do estúdio televisivo – identificado explicitamente como TV Globo – as quais são filmadas em atuação pela “câmera do filme”; e as imagens “de arquivo”, como fotografias e vídeos estrelados por Marlene, exibidas no programa televisivo. Evidentemente todos os três conjuntos de imagens são construções de Santos já que se trata de um roteiro ficcional, porém, se entrarmos na proposição da diegese, a ideia é que o filme seja visto como um “documentário” a testemunhar e desmistificar a construção de um

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programa televisivo. Há assim um contraponto entre as imagens da “câmera do filme” que revelam o contexto de filmagem, mostrando, por exemplo, as imagens do inquiridor apresentador de TV, quando o suposto espectador televisivo só poderia ouvir a sua voz; a posição desconfortável de Marlene sobre um pequeno banco sem encosto, quando o espectador televisivo só poderia ver sua expressão facial abatida; ou os gestos da amiga de Marlene que tenta incentivá-la ao longo do programa e é, por vezes, “cortada” bruscamente pelo apresentador. As imagens que vão ao ar pela televisão nos são mostradas pelo visor das câmeras de TV e pelos monitores da sala de operação e controle da transmissão ao vivo que trabalham com os conteúdos captados pelas câmeras 1 e 2. Há ainda os conteúdos captados pela equipe de jornalismo do programa, como as filmagens “in loco” do episódio em que Marlene é agredida por moradores do bairro da Penha que não aceitavam os trajes reduzidos com que a moça lavava seu veículo na via pública. São essas imagens que abrem o filme de Santos: Marlene, o carro, a multidão de curiosos assistindo à cena, um policial, um cinegrafista, presumivelmente o da TV, filmando tudo. Quando o policial avança e Marlene tira a blusa em protesto, há um corte e passa-se ao estúdio televisivo onde a narração de estilo radiofônico e sensacionalista “lê” manchetes de jornal exibidas na tela, tais como: “Rainha das Praias defende o direito de andar com pouca roupa” e “Mulheres põem a Penha em polvorosa”. O apresentador então cumprimenta Marlene, que está no estúdio, e a introduz aos espectadores como figura “bonita e agressiva” conhecida pelo prêmio de mais linda “mulher de Praia (sic)” daquele ano, bem como pelo episódio da Penha, noticiado nos jornais. A proposta do programa, conforme anunciado pelo apresentador, seria dar a conhecer a história da moça, mas seus efetivos objetivos, conforme mostra o filme de Santos, eram escrutinar de maneira sensacionalista a sua vida, num procedimento que, a um só tempo, explora suas imagens sensuais e a julga e condena pela exposição do corpo, em lógica similar a da dupla moral dos moradores da Penha que, como tentará denunciar a moça, a assediavam incansavelmente antes de virem defender sua expulsão do bairro em nome da “moral e dos bons costumes”. Logo de início o entrevistador do programa inquire Marlene sobre sua profissão e pergunta se ela permite que sejam apresentados alguns de seus “trabalhos”, sugerindo aspas na entonação irônica. São então mostrados trechos de filmes em que ela figurou em pequenas participações – papéis sem fala e que requisitavam apenas sua beleza física, como o da “garota que joga peteca n.1” na comédia “Paquera de praia” ou o da “loira provocante” no policial “Os contraventores” – assim como cenas do auge de sua carreira de atriz quando

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conquistou um papel de maior destaque numa novela televisiva, interpretando uma odalisca, nomeada Sulamita, que disputava o amor do protagonista. Ela explica que seus momentos de glória foram breves: “Essa novela mudou de linha de uma hora para a outra e eu morri no capítulo seguinte” – ou seja, na maior parte das vezes sua personagem nem tinha nome e quando tinha era descartável. Marlene representa, assim, o elo mais frágil do show business, à disposição para os usos e abusos da indústria cultural que às vezes nem ao menos lhe paga pelo trabalho, como ela tenta denunciar no caso de sua participação no filme “Os contraventores”, sendo barrada pelo apresentador do programa que clama hipocritamente pela “ética”. No estúdio, o rosto abatido da moça, de aparência cansada e sem maquiagem, contrasta com as imagens reluzentes dos arquivos exibidos. O entrevistador observa: “Você mudou muito, hein, Marlene?” Ouve-se a voz-off dos técnicos do estúdio: “Câmera 2 vai pras fotos; câmera 1 fica na menina”. Exibem-se fotos da carreira de Marlene, acompanhando a fala do entrevistador que prossegue: “Mudou sim... Sabe o que que você lembra? Uma propaganda antiga... Eu era assim... cheguei a ficar assim... depois assim... e hoje sou assim...”, finalizando-se com a imagem do atual semblante abatido da moça. Na sequência do programa recordam-se as circunstâncias em que Marlene ganhou um carro, vencendo o concurso de “Rainha das praias”, e apresentam-se seus mais recentes trabalhos como modelo fotográfica de uma importante revista de moda. O vídeo que mostra a entrega do prêmio carrega o tom empolado dos programas de coluna social, enaltecendo a indústria automobilística que concedeu o carro, e apresentando o depoimento de Marlene cujas ambições se mostram inseridas nas perspectivas da sociedade burguesa na qual até então ela ocupara posição subalterna, e esperava ascender a partir dali: “agradeço muito a todos que votaram em mim. Pretendo com esse carro, carrão, ter mais chances do que tive até agora; pretendo também trabalhar firme, ter uma casa bonita... não sei... muito obrigada!”. Ao término do vídeo gravado, que Marlene assiste no estúdio, a moça quase chora lembrando que o prêmio foi destruído por seus vizinhos e pede ao apresentador que mostre as cenas das agressões a ela e ao carro. O apresentador se nega e deixa claro mais uma vez que o programa tem uma linha de direção própria e não permite interferências da entrevistada. Em outros momentos ele pede – ou ordena – que ela se levante ou que fique calma. Mostram-se imagens de quando ela, como Rainha das Praias, foi colocada em posição arriscada em meio a shows de manobras de carro em Ipanema, seguidas de imagens do “Diário de um manequim”, vídeo que retrata os bastidores do editorial de moda

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estrelado por ela, cujo contrato foi cancelado após o incidente na Penha. O vídeo, embora tenha, de acordo com a diegese, sido realizado pela revista de moda que a contratara, adota um tom irônico e cômico, satirizando, ainda que de maneira leve, as dificuldades da profissão de manequim, como por exemplo, na cena em que ela recebe cílios postiços e em voz-over comenta “juraram e me garantiram que esses cílios postiços não me incomodariam; eu juro e garanto que faço o possível por acreditar” enquanto olha para a câmera com olhos arregalados buscando adaptar-se . Outros comentários são feitos em torno das longas horas de espera antes de começar a fotografar, da fome e do regime imposto, dos ensaios de poses. O cenário das fotos é o Museu Imperial em Petropólis e os olhares e expressões dos membros da família real nos quadros focalizados pela câmera de Santos funcionam como comentários satíricos às poses e às falas da modelo. O cenário remete à história do Brasil, mas os trajes desfilados têm ridículos nomes em inglês como “Sunday”, “Morning Coat” etc. Nota-se também que os trajes ganham vida em detrimento da moça, como na pose intitulada: “Era uma vez um vestido de nylon louco pra fazer charme”. No final do vídeo, efeitos “especiais” transformam Marlene em uma imagem fixa, uma fotografia recortada, à semelhança de uma bonequinha de papel que é colada e destacada em diferentes posições no cenário, enquanto ela narra as diferentes poses: de pé, agora sentada, apoiada, efeito que dá realce à reificação de sua profissão. Por fim, o programa chega “ao que realmente interessa”, ou seja, ao incidente na Penha, antes apresentando uma reportagem que consiste em “demonstrar” as diferenças de hábitos e costumes entre a Zona Sul e a Zona Norte carioca: imagens “documentárias” mostram os cursos de inglês e estabelecimentos com nomes estrangeiros na região das badaladas praias em que pessoas de classe média circulam em trajes de banho mesmo na área urbana e, de outro lado, as igrejas e estabelecimentos religiosos dos subúrbios onde o letreiro de uma churrascaria indica: “churrascaria Nossa Senhora da Penha, rigorosamente familiar”. Além das imagens contextuais, o programa realiza um “teste” que consiste em “soltar” uma típica garota de Copacabana, trajada com short e camisa exibindo a barriga no bairro da Penha, onde atrai multidão de homens de todos os tipos e idades. A conclusão do apresentador é clara: “o que é feijão com arroz na Zona Sul; na Penha é lagosta, Marlene”, argumentando que ela deveria ter respeitado os costumes de seu habitat. Ela tenta contra-argumentar que sempre morou na Penha e que para ela “carioca é carioca em qualquer lugar” e que o problema não advém da diferença de costumes e sim do fato de que “existe gente boa e gente ruim como em qualquer lugar”, porém, o apresentador impõe em tom enérgico e professoral o

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ponto de vista do programa: que a profissão dela fez com que seus hábitos se diferenciassem de seu meio e que ela não poderia querer que as pessoas da Zona Norte tivessem os mesmos costumes que ela. Ao que ela questiona: “Quer dizer que quem trabalha de manequim, modelo ou em televisão não pode morar na Zona Norte?”. Ele afirma que pode, desde que respeitando os costumes do lugar, e continua a argumentação exibindo fotos de Marlene que teriam sido enviadas ao programa por um de seus vizinhos. As fotos mostram a moça enrolada em toalha de banho, tomando café da manhã de camisola, deitada sobre a cama, de minissaia dentro do carro, ou seja, fotografias que evidenciam seu corpo e que foram evidentemente tiradas “às escondidas” pelo vizinho. Marlene se revolta e grita que vai processar o “paquera sem- vergonha” enquanto o apresentador pede calma e afirma que depois ela poderá se defender mas antes devem trazer mais dados “para que o espectador possa se informar melhor”. Ele reconhece cinicamente que “essas fotos não representam muito do que discutimos, pois foram tiradas à sua revelia, ao abrigo de sua casa...”. “Então por que mostrou?” questiona ela, revoltada. E ele continua “Mas o que dizer dessas outras tiradas na rua, em plena via pública, na Penha?” São então exibidas fotos de quando ela lavava o carro, mostrando que os trajes reduzidos que ela utilizava na ocasião não eram muito diferentes daqueles das imagens fotografadas no interior da residência. Marlene, visivelmente tensa e com olheiras, não consegue contra-argumentar e o apresentador segue: “então continuemos a informar o espectador para que ele também possa julgar”. São exibidas as imagens de agressão dos moradores à Marlene e seu carro, mulheres o amassam com pau de macarrão, Marlene tenta reagir, um policial a recolhe enquanto ela esperneia. Finda a gravação, Marlene pergunta se finalmente pode falar. O apresentador olha para o relógio e para a sala dos monitores e avisa: “Pode. Mas rápido, hein?!” Ela pede para mostrar fotos do carro amassado e avisa revoltada que vai processar as pessoas, sendo mais uma vez interrompida para a exibição do trecho final do vídeo da reportagem em que um morador da Penha, trajando camisa e gravata, fala ponderadamente “em nome de todos os moradores do bairro”: “Nós todos lamentamos muito o acontecido mas de qualquer forma ratificamos nossa posição intransigente em defesa dos costumes e da moral da família brasileira”. O seu tom é sereno e ele se coloca ao largo da responsabilidade dos moradores pela depredação do carro de Marlene, finalizando: “por isso solicitamos a essa... (pausa), “moça”, a bem desses costumes e dessa moral, que abandone o nosso bairro o quanto antes. Obrigado!”. Marlene, então, se levanta ensandecida, “dialogando” com o morador entrevistado pelo monitor de televisão do estúdio, xinga-o de cretino e esclarece que ele era um dos que a assediava desde que ela mudou-se para o bairro.

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Dedo em riste ela se embate com as câmeras, ambas voltadas para ela. Mesmo dizendo que não adianta lhe fazerem sinal para parar e que ela agora vai falar, ela tem a consciência de que não tem poder de voz e que podem tirá-la do ar a qualquer momento. Assim, ela tenta desabafar rápida e energicamente, desmistificando toda a sua situação:

Olha eu não vou continuar senão vocês me tiram do ar. Mas uma coisa eu quero falar: eu ganhei uma oportunidade, me agarrei nela, quis acertar a cabeça, mas que oportunidade que nada...meu carro tá quebrado, perdi o emprego, tenho que mudar de casa... E não adianta ficar mentindo que vão me ajudar, que vão resolver, que vão salvar. Tudo conversa, papo... Cada um tá pensando em quebrar os próprios galhos!

O entrevistador tenta contê-la, ordenando que pare, mas ela continua: “Não paro, não, eu vou falar, vou dizer! Esses caras não sabem o que é ter fome, não sabem o que é dormir com quem a gente não gosta... Não sabem... Aqui pra vocês...”, faz com o braço o gesto obsceno de “dar uma banana” e o programa é tirado do ar seguido dos letreiros: “TV Globo apresentou Rio Verdade”. O encerramento do filme acontece com imagens aéreas do Rio de Janeiro ao som da canção Cidade maravilhosa, o que corrobora o tom de crítica irônica e permite inserir o caso de Marlene num contexto mais amplo, sugerindo-se que a trajetória dela tem representatividade no Rio ou no Brasil. É interessante mencionar, como breve referência comparativa, a recente versão da TV Globo para o conto A desinibida do Grajaú no seriado As cariocas de 2011. Protagonizado por Grazi Massafera, ela mesma um exemplo de moça alçada à celebridade a partir de seus atributos físicos. O episódio se contrói a partir de um olhar que satiriza a protagonista e, embora mantenha certo teor de crítica de costumes em relação à hipocrisia dos vizinhos, passa ao largo da discussão sobre o sistema midiático – problemática que de fato não existia no conto original e que foi introduzida por Roberto Santos em sua adaptação livre251. O mesmo conto foi antes adaptado pela TV Globo no programa “Terça Nobre” em 1994, numa versão que explorava mais abertamente os atributos físicos da personagem, interpretada por Andrea Guerra, que aparece nua e seminua ao longo de quase todo o episódio, em padrões menos comedidos do que os da televisão dos anos 2000. Outro exemplo que trabalha na chave da comédia e erotismo e está mais próximo cronologicamente ao filme de Santos é o longa-metragem Em busca do susexo (Roberto Pires, 1970), também baseado num conto do livro As cariocas e igualmente relacionado ao universo do show business.

251 O conto original, A desinibida do Grajaú , coloca em relevo a hipocrisia dos vizinhos e o conservadorismo de costumes na Zona Norte do Rio. Cf. PORTO (1975 [1965]). Santos transferiu o episódio do Grajaú para a Penha, bairro ainda mais periférico, e concebeu a ideia de colocar o “caso Marlene” em discussão no programa televisivo, ampliando, assim, a crítica para além da crítica de costumes.

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Adaptado de A donzela da televisão, Em busca do susexo constrói sua trama em torno de uma moça que trabalha como dançarina na televisão e que se mantém virgem sob os olhares atentos da mãe, não obstante a promiscuidade de seu meio. A virgindade acaba sendo usada pelas duas como trunfo de sedução ao diretor de TV, encantado com a beleza e “pureza” da moça. Mais fiel do que o filme de Santos ao texto original252, o filme de Pires alia comédia e erotismo e coloca os recursos cinematográficos a serviço da exploração do corpo feminino em “linguagem” esvaziada de conteúdo crítico, típica da pornochanchada253, reiterando a objetificação da mulher colocada em xeque no filme de Santos.

4.3.2 Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980): entre o céu e a terra, o surreal e o trágico

Críticas à televisão são também encontradas no filme de Roberto Santos subsequente a As cariocas, O homem nu (1968)254, mas é em Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980), realizado mais de dez anos depois, que o cineasta retoma centralmente a temática da exploração midiática e da reificação das pessoas, novamente articulando publicidade, indústria cultural e, aqui, incluindo o jornalismo como parte de um mesmo aparato. Baseado em argumento original de Carlos Queiroz Telles, o filme, assim como o episódio de As cariocas, trata dos bastidores do show business. Sucedendo a abertura algo melancólica em uma noite chuvosa da cidade de São Paulo, as primeiras cenas, no escritório de uma emissora de televisão, mostram o diálogo entre o diretor comercial e o apresentador do programa “O dono do tempo”, sobre meteorologia, expondo-se nas falas o atrelamento da programação aos patrocinadores que ameaçam tirar a atração do ar caso o responsável continue errando nas previsões. O apresentador, Manoel Magaldi, até então conhecido como o “infalível feiticeiro do clima”, justifica que suas previsões são científicas e que o Ministério da Agricultura e outras instituições que contam com ajuda de satélites também erraram, mas o diretor é categórico no argumento de que “a diferença é que nenhum deles depende de patrocinador” e, diante do questionamento do outro de que “não é justo”, define que “injustiça

252 Cf. “A donzela da televisão” em PORTO (1975 [1965]) 253 Conforme Nuno César Abreu (2006): [...] era senso comum que, de uma atriz de pornochanchada, não se deveria exigir mais que a presença física, pois os recursos cinematográficos — movimentos de câmera, enquadramentos, a montagem etc. — trabalhariam por ela, evidenciando seus talentos. A utilização dos elementos expressivos do cinema parece convergir para o corpo da mulher, que, assim, se torna a verdadeira atração, conduzindo a iluminação, a decupagem, a montagem, o desenvolvimento dramático do filme. (ABREU, 2006, p. 171-172). 254 Conforme apontam Bernardet e Simões (1997).

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é não faturar”. Estão assim apresentadas as coordenadas do filme que coloca em relevo os interesses mercantis que movem a televisão, submetendo a tudo e a todos. Não importa se os serviços prestados pelo apresentador tenham, até aquele momento, certamente rendido dividendos para a emissora, como dá a entender a alcunha pela qual ele é conhecido; erros não são tolerados e, ao deixar de ser lucrativo, ele será demitido. E, a despeito de não haver justiça nesse universo movido pelo dinheiro, é necessário manter as aparências e, assim, quando dias depois Magaldi morre após continuar errando as previsões, é “homenageado” no noticiário da emissora que afirma “reconhecimento e carinho” pelo apresentador, desejando “que o céu, as estrelas e as nuvens, que ele sempre amou, o abriguem”. Em seguida, deixando patente a hipocrisia das condolências, anuncia-se a “sensacional” reportagem que esclarecerá os estranhos fenômenos de chuva que acometem a cidade. O repórter Marcos (David José) apresenta aos espectadores televisivos o que o espectador do filme já soubera por meio de cenas anteriores à morte de Magaldi: há cinco dias, ao realizar reportagens sobre filas em pontos de ônibus, Marcos notou que toda vez que um certo casal de namorados se encontrava na fila a espera do ônibus, alguma “força parapsicológica” fazia com que as condições atmosféricas se alterassem, trazendo nuvens ao céu, antes ensolarado, e precipitando chuvas. O casal é, então, denominado sensacionalisticamente de “os amantes da chuva”, slogan que daí em diante será utilizado em programas de auditório e diversas campanhas publicitárias estrelados por eles e patrocinados por uma marca de antigripais, a “Gripalgina”. O casal, Izabel (Bete Mendes) e Antônio (Helber Rangel), nos havia sido apresentado no filme de Santos antes da exibição do programa televisivo. Ela trabalha em um instituto de beleza, ele é metalúrgico. Eles são vistos em seus respectivos locais de trabalho, em cenas que salientam as dificuldades de suas profissões, as quais não lhes trazem satisfação pessoal, apenas recursos para sobrevivência. No instituto de estética Izabel comenta com a colega: “parece que a gente trabalha dentro de um requeijão: tudo branco, branco, branco...” ao que a colega retruca “se queixando é? Queria ver camelar num lugar úmido, escuro, quente, sujo, já pensou? Eu morria.” Izabel reflete: “é...” e na sequência a montagem nos mostra Antônio trabalhando numa caldeira na indústria metalúrgica, ambiente tal como o descrito pela colega de Izabel. Outras cenas do trabalho da moça, entretanto, mostram que seu serviço pode ser fisicamente mais leve do que o de seu namorado mas é igualmente alienante, consistindo, por exemplo, em esguichar água com uma mangueira de forte potência, para tratamento de celulite, nas costas e nádegas de uma cliente nua e opulenta. A casa onde Izabel mora com a mãe (Beatriz Segall) reflete as difíceis condições de vida: bairro periférico,

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paredes mofadas, teto baixo, flores de plástico. Nas conversas entre as duas, revela-se que a moça não dispõe de tempo para retomar os estudos. O namoro com Antônio também transcorre com contratempos: ela se atrasa para encontrá-lo por motivos de trabalho e ele mora longe, necessitando apanhar duas conduções para deixá-la em casa. Os contratempos, entretanto, são irrelevantes diante do amor singelo e sincero dos dois. Nos poucos momentos em que estão juntos o idílio é total e e eles contagiam o ambiente com os sentimentos que demonstram, inspirando aqueles que os rodeiam como quando fugindo da chuva entram em uma cantina e acabam fazendo dançar o velho casal de proprietários. Nas cenas do casal o tom romântico é acentuado, idealizado e mesmo inverossímil. O objetivo da construção fílmica, porém, é justamente marcar o contraste entre o universo “puro” de Izabel e Antônio e o universo “sujo” e mesquinho dos envolvidos com a mídia. Pode-se questionar tal idealização mas há que se compreender que ela é base da argumentação do filme no qual a caricatura, mais do que o realismo, visa salientar os traços fortes da lógica do sistema. Assim, há, no outro pólo, o casal Marcos e Sandra (Lilian Lemmertz): ele, o repórter que descobriu Izabel e Antônio; ela, a secretária de Dr. Renato (Zanoni Ferrite), o diretor comercial da emissora. Marcos é caracterizado como um homem leviano e “paquerador” – vai assediar inclusive Izabel – e seu relacionamento com Sandra é marcado por brincadeiras maliciosas e toques sensuais e pela parceria no objetivo de lucrar com a exploração do casal romântico. De um lado, vemos o amor de Izabel e Antônio, que de tão puro e verdadeiro faz chover; um amor elevado, acima dos desejos carnais; e, de outro, o relacionamento mundano de Sandra e Marcos, preso à concretude da matéria e atravessado pelos interesses monetários. Não é exagero dizer que há no filme um contraponto entre sagrado e profano, entre céu e terra. O amor tem conexões com o céu, a indústria cultural com o inferno e, quando aquele for explorado por esta, perderá aos poucos seu caráter sagrado e/ou mágico, penetrado pela vileza, degradando-se com consequências indelevelmente trágicas. Para além da caracterização e/ou caricaturização dos envolvidos com o universo midiático como infames, mesquinhos, baixos, algumas cenas lhes conferem visivelmente uma imagem diabólica, como aquela em que após a gravação do primeiro programa Antônio reclama que não está gostando de ser “pau mandado” e Sandra lhe responde, colocando a mão sobre seus ombros “com bastante dinheiro você se acostuma depressa; isso eu garanto”. A frase combina-se com o enquadramento que foca em primeiro plano Antônio e apenas o braço e a mão de longas unhas esmaltadas de Sandra sobre seu ombro, marcando simbolicamente o início do processo de envolvimento do metalúrgico no universo sórdido. Cabe lembrar que

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Sandra é uma mulher de aparência moderna, cabelos curtos, maquiagem evidente, unhas esmaltadas em contraste com Izabel, de longos cabelos negros sempre presos num singelo rabo de cavalo baixo, rosto sem maquiagem aparente e unhas igualmente não evidenciadas. Sandra, porém, em diversos momentos do filme demonstra alguma simpatia ou mesmo preocupação com o casal, não sendo uma personagem plenamente vilanesca, ainda que coloque sempre em primeiro plano os próprios interesses. Marcos também, embora seja um personagem deplorável, antiético e leviano – que ao final é responsável por um desenlace totalmente trágico – ao longo do filme tem em sua caracterização um componente cômico que evita a apreensão totalmente negativa. Um outro personagem, de poucas aparições, condensa mais claramente a imagem mefistofélica: o coordenador da equipe de marketing da Gripalgina, interpretado por Walter Marins e não nomeado no filme. Após a gravação do primeiro comercial com o casal, que se encontra no centro de um estádio de futebol vazio e faz chover, o referido publicitário aplaude de maneira lenta e sarcástica o espetáculo e a câmera o focaliza em primeiro plano: a cabeça coberta pela jaqueta que faz às vezes de capa para proteger da chuva, o olhar fixo e um ponta de sorriso nos lábios, imagem que remete de maneira quase inequívoca a uma figura diabólica. Em outra cena, quando as campanhas publicitárias estão em andamento e a equipe observa pelas fotografias que Antônio está cada vez menos à vontade e com expressões faciais fechadas, prejudicando o efeito desejado, ele sugere oferecer ao metalúrgico mais dinheiro. “Quanto?” pergunta um dos homens da equipe, “O suficiente pra ele ser feliz de verdade” diz ele esboçando o mesmo sorriso sarcástico anterior. A felicidade se compra e o amor vende, segundo a lógica do aparato midiático. As publicidades são feitas sob o slogan “Gripalgina protege o amor” e Marcos não tem pudores de em frente as câmeras utilizar frases e expressões grandiloquentes como o “mistério do amor” ou apresentar o casal como “jovens predestinados ao milagre que nasce do amor”, enquanto nos bastidores esforça-se por mantê-los separados para que só façam chover nos momentos solicitados pelos contratantes, e até mesmo oferece prostitutas para Antônio. O amor que fizera sorrir e dançar na cantina do bairro ao som de Carinhoso (Pixinguinha, 1917), exposto na televisão se rebaixa ao balé sensual das dançarinas em roupas provocantes que gemem segurando sombrinhas: ah, ah, ah, a... atchim!. Nas sombrinhas que giram abertas lê- se o slogan do patrocinador: “Gripalgina protege o amor”. O auditório – composto só de mulheres – exibe em polvorosa suas sombrinhas abertas, delirando com a entrada do casal no palco da atração televisiva. Tudo se mostra ridículo: a abertura do programa com as garotas

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seminuas, a música, o fundo azul anil com estrelas brancas que remete à bandeira dos Estados Unidos, os pedestais em que Izabel e Antônio, tímidos, são exibidos no palco e até os nomes com que eles foram rebatizados: Beth e Tom. Marcos tentara manter os nomes originais dos contratados, considerando um erro “norte-americanizar” nomes “bem brasileiros”, “bens nossos” que convergiam com a “feição profundamente nacionalista” dos laboratórios Gripalgina. O capitalista responsável pela empresa, no mesmo tom forçosamente formal de Marcos, responde que a empresa não era mais tão nacionalista assim: “Evidentemente que essa é uma colocação respeitável mas acredito também que o nosso Marcos ignore o fato de termos alterado nossa razão social, passando a aceitar capitais outros, venham de onde vierem, os quais contribuem não só para o incremento de nossa produção como para a melhoria de nossos medicamentos”. O empresário é gordo, de bigodes, terno e gravata conforme a típica caricatura do burguês, o que endossa o efeito ridículo de suas aparições. Até a primeira metade do filme o tom cômico prevalece não obstante as resistências de Antônio de se integrar àquele universo, assim como os receios da mãe de Izabel que, em consulta a uma mãe de santo, é informada que alguém muito próximo, evidentemente a filha, corre perigo. A partir de segunda metade os problemas vão se acirrando e o tom cômico vai sendo paulatinamente abandonado. O casal, após assinar o contrato, deixa de existir na realidade – pois, como mencionamos, são obrigados a permanecerem separados – e torna-se pura imagem, o que transparece já na primeira gravação midiática, quando em seus camarins estão lado a lado, mas só se vêem pelos espelhos. Daí em diante os veremos juntos e enlaçados somente nas fotografias e vídeos da publicidade. Antônio não suportando toda artificialidade em que se envolveu, o novo nome, a distância forçada da namorada e a vigilância constante de Marcos e do segurança contratado pelo repórter para acompanhá-lo, começa a ficar irascível, rude e agressivo até mesmo com Izabel. Ele propõe a ela que abandonem tudo, considerando que já conquistaram algum dinheiro e podem se casar, mas ela lembra do contrato assinado e diz que acha importante trabalharem mais um pouco para lhes garantir o futuro. A cada dia eles se entendem menos e, quando correm um ao encontro do outro nas filmagens dos comerciais, começa a demorar cada vez mais para chover, o que gera um clima tenso para eles e para a equipe responsável. A situação atinge o limite quando, num comercial gravado no nordeste sob patrocínio de um coronel, é necessário utilizar chuvas artificiais trazidas por um caminhão pipa após repetidas tentativas de gravação sem qualquer resultado “mágico” do encontro do casal. O efeito “chuva” do amor, na verdade, nunca fora totalmente referendado pela

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diegese, que deixa sempre a dúvida se se trata de coincidência ou de um efeito mágico. Desde o início o casal se questiona se seriam realmente responsáveis pelas chuvas e, para na televisão, o que interessa é a “verdade da imagem”, como reiterado diversas vezes. Quando Marcos apresenta pela primeira vez ao diretor do programa sua teoria sobre “os amantes da chuva”, ele lhe responde: “só o titulo, mesmo que tudo isso seja mentira, vale a pena”. E, ao gravar o comercial com chuva artificial, Marcos explicita: “se vai chover aqui não me interessa, o que me interessa é que vai chover no comercial. [...] A verdade é a imagem que aparece no televisor, o que tá por trás não existe”. O enredo se passa em São Paulo, conhecida por ser uma cidade chuvosa, e quando solicitado a chover no sertão, nada ocorre, de modo que tanto pode ser concluído que o efeito mágico terminou com o afastamento do casal, como poderia o efeito mágico jamais ter existido. Independentemente dessa dubiedade, jamais resolvida, o efeito nefasto do imbróglio midiático sobre a vida do casal é bastante concreto. Após o episódio das chuvas artificiais na gravação do comercial no sertão, a cidade de São Paulo é acometida por chuvas torrenciais, que causam transbordamento de rios e enormes transtornos. Novamente o fenômeno meteorológico poderia ser interpretado como decorrente de força sobrenatural – já que Izabel pedira à mãe que encomendasse à mãe de santo um “trabalho” para fazer chover sem dificuldade na gravação do comercial – assim como poderia ser acontecimento “normal” na cidade de São Paulo, tão sujeita a enchentes. Para o aparato midiático, porém, o que interessa é que o evento é mais uma oportunidade de exploração sensacionalística. Uma outra emissora de televisão, concorrente da TV Tropical, contratante dos “Amantes da chuva”, ao realizar reportagem sobre as enchentes, “sutilmente”, lança a culpa dos acontecimentos nas estrelas da concorrência. Assim como em As cariocas, a emissão televisiva mantém uma pretensa imagem de “neutralidade”, cumprindo o seu dever de “informar” o espectador que “julgará” por si mesmo. Na condução da notícia, porém a argumentação é enviesada ao lançar-se mão de entrevistas que, tirando a responsabilidade da emissora, condenam o casal. Cabe citar na íntegra o texto introdutório do jornalista, assim como as entrevistas que revelam a crueldade da “opinião pública”, manipulada pelo telejornal, que, como se percebe pelas respostas, realizou as perguntas induzindo culpa ao casal:

Jornalista voz-over: De momento a situação faz prever medidas enérgicas e decisivas por parte de nossas autoridades, aliás, sob o nosso ponto de vista, as únicas verdadeiramente responsáveis pela calamidade que vem ocorrendo. Entretanto, mesmo sendo essa a nossa opinião, gostaríamos de apresentar aos telespectadores algumas entrevistas realizadas pela nossa equipe de reportagem nas quais a culpa pelos acontecimentos é atribuída a um querido e conhecidíssimo casal que vem atuando com grande destaque na programação de uma emissora co-irmã. Mulher de meia-idade: Não acredito em superstições mas acho que as autoridades

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deviam dar uma lição naqueles dois! Abraços, beijos, esfregões... em público!!! Uns imorais isso é que eles são! Homem jovem: Sei la se a culpa é deles, viu? O que eu sei é que o barraco onde eu moro desabou. Mulher jovem: É sobre o Tom e a Beth? Eu acho eles muito simpáticos, eu nunca perdi “Os amantes da chuva”, eu tenho até um autógrafo da Beth... É... mas agora eu acho que eles deviam ir embora! Motorista entrevistado pela janela do carro: Unf, seria bom se dessem uma surra naqueles palhaços lá! Olha aí, de tanto chamar a chuva, olha o que aconteceu! Mercadorias estragando... os bancos ameaçando a parar, tudo parando... Unf! Um prejuízo pro povo e pra nação! Unf! (Fecha o vidro, irritado) Não quero falar mais nada!

O cinismo e enviesamento da reportagem é marcado desde a expressão “co-irmã” para designar a emissora concorrente até as respostas que demonstram que o conteúdo das perguntas já denunciavam a culpa o casal, como fica evidente na resposta do homem jovem: “Sei lá se a culpa é deles, viu?”. A preocupação dele diz respeito ao desabamento de sua moradia, questão que deveria ser remetida às autoridades que em seu texto prévio o telejornal dizia responsabilizar mas que não fazem parte da reportagem. No conjunto, até mesmo o depoimento do rapaz, que está longe de culpabilizar o casal, acaba sendo utilizado para este fim, entrando como endosso da argumentação. No conjunto das falas, a conclusão é que o casal imoral, até mesmo simpático, “chamou a chuva” e é responsável por toda a calamidade que aflige a cidade, o desabamento de barracos, os prejuízos econômicos etc. Mesmo que o filme carregue nas tintas, o todo da reportagem, com sua abordagem enviesada, e as entrevistas em vocabulário típico da classe média paulistana, representada exemplarmente no motorista entrevistado pela janela do carro destilando ódio e conservadorismo sobre um “bode expiatório”, guarda uma infeliz atualidade. Ao final, o telejornal, na sequência à fala de ódio do motorista, exibe a fala desesperada da mãe de Izabel, pedindo que não façam mal à sua filha pois ela não é culpada de nada. Mantém-se, assim, a suposta “neutralidade”, apresentando os dois lados, quando na verdade o próprio fato de exibir as entrevistas lançando a culpa sobre os “Amantes da chuva” representa uma escolha de posição do telejornal que, entretanto, se abstém de qualquer responsabilidade sobre as previsíveis consequências deletérias para o casal. Após a reportagem da emissora concorrente, em reunião na TV Tropical, Marcos sugere que realizem um “exorcismo público” de Antônio e Izabel, separando o casal de maneira espetacular. Sandra argumenta que já estão separados, mas Marcos reafirma que “o público só acredita naquilo que vê” e não importaria se após o evento as chuvas cessariam ou não, pois a imagem da emissora e do anunciante estaria dissociada do problema. O espetáculo deveria ocorrer no estádio em que foi realizado o primeiro encontro televisionado do casal e

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manifestar “qualquer coisa de punitivo” sobre eles. Quanto ao futuro dos dois, não teriam qualquer responsabilidade como frisa o “Sr. Gripalgina”: “Eles é que se virem, já faturaram muito às minhas custas. Que se fritem!”. Na sequência, Antônio e Izabel se reencontram fora dos estúdios quando ela voltava pra casa, descendo do ônibus tal como no início do namoro. Ao se reencontrarem a tempestade cessa, num efeito contrário ao inicial. Em diálogo, consideram que tudo foi sempre uma mentira e decidem abandonarem “Tom e Beth” e se casarem. Vão para um hotel onde selam simbolicamente a união, acordando os planos de mudarem-se para o interior do estado, abrirem uma oficina mecânica e terem uma porção de filhos. Enquanto o idílio acontece no quarto do hotel simples, no rádio da recepção, ouve-se o anúncio da “cerimônia de separação e exorcismo” dos “amantes da chuva”. Em mais um exemplo de cinismo midiático, o anúncio divulga precisamente a localização e o horário do evento, afirmando adicionalmente: “não se conhecendo ainda a possibilidade de acesso de espectadores ao local”, embora recomende que os ouvintes não compareçam para evitar o aumento dos transtornos ocorridos com as chuvas: “as autoridades tornam a insistir para que todos permaneçam em suas casas para facilitar as medidas de socorro aos flagelados”. Antes, na emissora, havia sido cogitada a possibilidade de realizar um evento aberto ao público, ideia logo abandonada por ser considerada perigosa devido ao tumulto que causaria. Cabe mencionar, que no primeiro programa de auditório em que foram apresentados “Os amantes da chuva”, o público já tinha avançado euforicamente sobre eles quando eram ídolos positivos, sendo previsível o que poderia ocorrer no contexto em que são “bodes expiatórios”. A tragédia, entretanto, vem antes do espetáculo. O recepcionista do hotel denuncia que o casal está hospedado ali e Marcos vem buscá-los acompanhado de um grupo de homens truculentos. O recepcionista que fez a denúncia, tenta eximir-se, pedindo calma e não violência, que não machuquem ninguém. Antônio e Izabel fogem pela janela, enquanto a porta é arrombada. A fuga se dá pelos telhados das casas vizinhas. É noite e chove muito, de modo que a visão (de personagens e espectadores) está prejudicada. Em meio à perseguição, Antônio e Izabel trocam juras de amor, falam de futuro, que terão o que contar aos netos. O tom é dramático. A noite escura, a chuva, o choro, de repente, os gritos: Izabel caiu do telhado. Antônio desce e ela está caída de bruços em meio à água. O rapaz a abraça e chora, tentando em vão reanimá-la. Marcos chega, vê a cena e tenta abraçar Antônio que o rechaça violentamente. O jornalista tenta dizer que sempre foi amigo dele, referindo-se a ele como Tom e não Antônio, e o metalúrgico pega um pedaço de pau para agredi-lo. Marcos corre e

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chama os comparsas. Antônio chora sobre Izabel e, quando Marcos retorna, ele tenta espancá- lo mas os homens avançam e o agarram enquanto Marcos grita “vai! eu to pagando!”. A frase se repete pela noite em meio ao barulho contínuo da chuva, enquanto os homens estrangulam (?) Antônio. O dinheiro, que não pagou a felicidade do metalúrgico, paga a sua morte. O filme se encerra sob imagens da cidade à noite, acompanhada de música melancólica. O final tenso, violento e trágico contrasta fortemente com o tom geral do filme perpassado pela comédia e pelo romantismo, ainda que a tensão constante da mãe de Izabel prenunciasse o desenlace negativo. O final carrega um julgamento claro: não há redenção possível para os envolvidos com a ignomínia do show business. Pouco antes de morrer, Izabel afirma que não quer voltar para “aquela sujeira”, mas é tarde demais, ela morre em castigo, enquanto a morte de Antônio é um assassinato. Não nos parece por acaso que Antônio resista até o fim, enquanto ela cai, morta num beco escuro em meio às águas. Foi ela que ao longo do processo esboçou maior integração ao meio televisivo e publicitário, docilizou-se às exigências, envaideceu-se com a própria imagem, imaginou “a cara das vizinhas” ao vê-la na televisão, interessou-se mais do que Antônio pelo dinheiro, não teve problemas em sorrir falsamente. Por isso, mesmo sendo personagem simpática, meiga e amorosa – mais do que Antônio que tem momentos de grosseria e machismo –, foi punida, pois vendeu-se ao ignóbil. Essa solução foi adotada pelo filme, enquanto no argumento original de Carlos Queiroz Telles, ambos morreriam fuzilados255. Como mencionamos no tópico 4.1, desse modo, Os amantes da chuva se integra ao rol de obras que associam a cultura de massa à mulher, o que se expressa tanto na maior integração de Izabel, como nas cenas do programa de auditório com público integralmente feminino. O olhar condenatório do filme de Santos, entretanto, não se restringe às mulheres. Se elas são apresentadas como as mais suscetíveis às seduções midiáticas, os principais alvos da crítica aqueles que dão vida ao sistema, com seu dinheiro, poder e manipulação, sendo fortemente negativos e mesmo caricaturais os personagens ligados à cadeia produtiva da indústria cultural, desde o empresário anunciante, até o publicitário, o diretor comercial, o jornalista e a secretária. O olhar de Santos em Os amantes da chuva estende a crítica presente em seu episódio de As cariocas, mas, enquanto aquele encontra força na inventividade e encerra-se na agressão bem-humorada, com a “banana” que Marlene oferece às telas, este desemboca sua crítica na amargura de um final trágico e sem porvir. O poder de “tirar do ar” exibido em As cariocas transforma-se no extremo do poder de vida e de morte em Os amantes da chuva, simbolizando o exacerbamento das condições

255 Cf. Simões, 1997, p.164.

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apresentadas no primeiro filme. A diferença de tom de um filme para outro marca a diferença de perspectiva de Roberto Santos que acompanhou de perto, em seus diversos trabalhos na publicidade e na televisão, a consolidação e ascensão da indústria cultural no Brasil ao longo dos anos 1970. Nos doze anos que separam um filme do outro, o capitalismo avançou e a indústria cultural, antes amadora, consolidou-se e ampliou suas ramificações para instâncias cada vez mais variadas, exponenciando o poderio em ligação com diversos setores do capital. Nesse sentido, Os amantes da chuva pode ser um tanto amargo e algo caricato, mas não tão fantasioso como pode parecer à primeira vista.

4.4 João Batista de Andrade para adultos e crianças: do cinema marginal ao piloto para TV 256

4.4.1 O filho da televisão (João Batista de Andrade, 1969): publicidade, consumo, guerrilha, deboche

O filho da televisão compõe Em cada coração um punhal (Sebastião de Souza, José Rubens Siqueira e João Batista de Andrade, 1969), longa-metragem em episódios cujo subtítulo, “três histórias que não fundem a cuca de ninguém”, faz prever sua filiação ao movimento que ficou conhecido como Cinema Marginal, marcado pelo deboche e pela crítica ao “intelectualismo” do Cinema Novo. O episódio realizado por Batista é aquele que encerra o filme, sendo precedido por Clepsusana (José Rubens Siqueira, 1969) e, antes, por Transplante de mãe (Sebastião de Souza, 1969) que abre o filme. Os três têm em comum a abordagem sarcástica da “cultura de massa” e da “sociedade de consumo”, fenômenos que se consolidavam no Brasil naquele momento. Em Transplante de mãe, baseado na célebre canção Coração materno (Vicente Celestino, 1937), regravada por Caetano Veloso no disco Tropicália (1968), o protagonista ao retirar do peito da mãe o coração, como diz a trágica canção, encontra lá uma série de bens de consumo, enquanto em Clepsusana a protagonista, Susana, cuja identidade se confunde com sua doença, é uma cleptomaníaca cuja vida se reduz

256 Diferentemente dos demais analisados, os filmes que compõem o tópico 4.4, O filho da televisão (1969) e Alice (1978), só foram visionados respectivamente duas e uma vez, o primeiro na Cinemateca Brasileira em São Paulo e o segundo no Centro Técnico Audiovisual (CTAv), vinculado à Secretária do audiovisual/Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro. Nem mesmo o cineasta João Batista de Andrade detém copias disponíveis destes seus filmes. A análise de Alice teve também como apoio o roteiro disponível na Cinemateca (Andrade, 1977) que, pelo que pudemos verificar, passou por poucas modificações em sua construção audiovisual.

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a “bater ponto” no escritório e voltar para a sua pequena e confusa kitnete onde acumula os mais diversos e inúteis objetos roubados compulsivamente dos mais diferentes lugares. Ela acredita ter encontrado o amor ao atender em casa um rapaz que faz pesquisa de mercado – em resposta à pesquisa, responde não gostar da TV Cultura porque “não tem anúncio”. Seu pretenso amor se revela um golpista e Susana termina abraçada com um busto de gesso roubado, ao som de uma canção de Roberto Carlos. É esse o tom irônico e sarcástico que nos introduz a O filho da televisão. Os bastidores da gravação de um comercial. Refletores, câmera, cenário, um homem de terno, outro de roupas “modernas” estilo militar, lembrando as vestimentas dos revolucionários cubanos. Em voz over um deles se apresenta: “Meu nome é Romeu Pupio. Sou esse aí, ó! Não o garoto; o outro”. A voz e a imagem do homem de terno são do ator John Herbert, e no tom ressoa a mesma empolgação cínica que caracterizava sua interpretação do publicitário Marcos em Bebel, garota propaganda. Ele continua: “Mais uma formidável campanha para essa porcaria de roupa Jean! Romeu Pupio, genial homem de publicidade. Só o gênio da publicidade, só o poderio fantástico, lunático, cosmonáutico da publicidade sobre o público poderia fazer alguém comprar uma porcaria dessas ou outra qualquer.” Enquanto se apresentam as imagens do estúdio, o discurso do publicitário prossegue, sintetizando de saída o mote sarcástico do episódio, prolongando a postura dos episódios anteriores, mas com uma abordagem crítica ainda mais explícita:

Eis aí: a publicidade é um veículo da maior importância! É um veículo da... um veículo.... um veículo... bem... é um veículo! Sem a publicidade nada se faz, nada se constrói, nada se faz nesse mundo! E com a publicidade tudo se faz, nada se perde, tudo se transforma, de matéria bruta em mercadoria, de mercadoria em tutu! E o tutu é tudo! Viva o tutu! A publicidade é um instrumento fantástico de dar a essa gente uma direção. Para o bem de todos levar a turba, a multidão, às lojas onde se vendem todos os sonhos anunciados nos cartazes de rua, nas rádios, no cinema e na televisão. Ah, a televisão! Diante dela todos os veículos se curvam. É o progresso da humanidade!

Interrompendo o discurso da voz over, o garoto-propaganda pede, no estúdio, um sanduíche, dizendo que está sem almoçar e Romeu lhe responde que ele só poderia lanchar depois das filmagens. A voz-over do publicitário prossegue, terminando o discurso na frase sobre a televisão e, então, é exibida uma cena, filmada nas ruas do comércio de São Paulo, em que uma mulher, em voz e atitude infantilizada fala ao marido: “benzinho, deixa eu comprar, deixa vai, deixa, deixa...” “Comprar o quê?”, pergunta ele, “Tudo o que a televisão manda eu comprar”, responde ela. Ainda nas ruas paulistanas, João Batista de Andrade, o próprio cineasta, aparece como figura anônima trocando de paletó enquanto caminha e abandonando

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um deles pela rua. Esses personagens não mais serão vistos no filme, o que caracteriza essas cenas como comentários sobre o consumo, de certo modo “ilustrando” a fala de Romeu Pupio. Volta-se ao estúdio, o garoto-propaganda trajado em estilo guerrilheiro olha para a câmera e afirma: “O jovem rebelde, usa roupa Jean. Todo jovem rebelde usa roupa Jean”, repete com olhar duro para a câmera. Em atitude “rebelde”, derruba objetos do cenário e continua a repetir em tom agressivo. “O jovem rebelde só usa roupa Jean. Eu sou rebelde, eu uso Jean!” Parece-nos original neste filme, ao menos no contexto cinematográfico brasileiro, não só o fato do garoto-propaganda ser um homem, distinguindo-se do quadro geral da cinematografia, como também a sátira à apropriação da rebeldia pela publicidade. Como mostram os anúncios reais documentados em Você pode dar um presunto legal (Sérgio Muniz, 1971), a publicidade, como de praxe, explorava os elementos culturais da época, o que, naquele contexto, incluía a guerrilha e as passeatas que eram apropriadas em campanhas de detergente, por exemplo, nas quais moças em trajes estilizadamente militares seguravam cartazes “contra a sujeira” etc257. Outro filme da época que aborda a publicidade a dialogar com os ícones contemporâneos é Compasso de espera (Antunes Filho, 1969-1973), no qual uma das cenas mostra os bastidores de um estúdio publicitário onde modelos vestidas de hippies aguardam a gravação do próximo comercial. Após gravar o comercial, Júlio, o garoto-propaganda, sai pelas ruas e se detém um tempo observando as mulheres das capas de revistas de uma banca de jornal. Desse modo, o filme o conecta aos dois lados da cultura de massa: a produção e o consumo. Em cena posterior, ele aparecerá colando alucinadamente cartazes nas paredes de seu quarto, os quais compõem um conjunto extravagantemente eclético, incluindo desde mulheres nuas até imagens da guerra do Vietnã. A mensagem é clara: consomem-se os ícones políticos assim como se consomem os ícones produzidos pela cultura de massa ou, indo além, os ícones políticos também são parte da cultura de massa. Sobre isso, é interessante o texto de Jean- Claude Bernardet sobre a mercantilização da imagem de Che Guevara publicado, ainda em 1968, com o qual, voluntariamente ou não, parece dialogar o filme de Batista: Há tempo que a indústria cultural entendeu que teria interesse em vender a revolta. Porque ela obedece às leis do mercado, e a revolta se vende, o esquerdismo se vende. […] Porque a revolta, transformada pela indústria cultural, perde significado político e se limita a aspectos morais, ou de comportamento, ou de vestuário... (BERNARDET, 1978 [1968], p.113).

257 Conforme se vê nos anúncios documentados em Você pode dar um presunto legal (Sérgio Muniz, 1971) a publicidade chegou ao paroxismo de utilizar a tortura como elemento de suas campanhas num anúncio impresso do aparelho de televisão Philips que apregoa: “Na câmara de torturas, o TV Philips 550 resistiu a tudo”.

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Sabe-se que Bernardet e Batista mantinham proximidade na virada dos anos 1960 para 1970 e estabeleceram parcerias, entre as quais a participação de Bernardet como assistente de montagem em Gamal, o delírio do sexo (1969) e na codireção dos filmes que compõem a série Panorama do cinema paulista (1970). Entretanto, mais do que fazer inferências sobre os intercâmbios e influências entre eles, o importante a observar aqui é a existência da discussão crítica sobre a indústria cultural num contexto em que, como mencionamos antes, predominava no meio intelectual brasileiro, segundo Renato Ortiz (1988, p.14-16), um “relativo silêncio” sobre a “cultura de massa”, com pouca influência dos frankfurtianos. Voltando ao filme, Júlio não tem muito tempo de adm irar as garotas que estampam as capas de revistas, pois logo é assediado por uma moça e, em seguida, crianças saindo da escola também o assediam, correndo alucinadas atrás dele. Logo adiante ele irá correr não fugindo da perseguição mas perseguindo: ao avistar casualmente o publicitário Romeu e sua esposa dentro do carro ele tenta alcançá-los exigindo seu pagamento pelo comercial que não foi devidamente remunerado. Ao vê-lo, Julieta (Joana Fomm), a esposa de Romeu (sic), fica fascinada e o persegue ao som de um tango. A trajetória de Júlio ao longo do filme será correr: correr de Romeu quando este descobre o envolvimento dele com sua esposa, correr aleatoriamente pelas ruas de São Paulo em meio aos cartazes publicitários, correr pelas favelas quando “incorpora” um efetivo espírito guerrilheiro e sai gritando pelas ruas da periferia “ Acorda! Acorda! Precisa fazer alguma coisa!”. Até lá onde tudo falta, onde as habitações são barracos precários e as ruas sem asfaltamento, chegou a publicidade, como se vê no outdoor focalizado pela câmera. E chega também, a repressão, quando o anunciado Esquadrão da Morte, ao som de música alemã, persegue Júlio em meio às ruas da favela. Ele termina “morto”, em estilo performático, já em outro cenário, contra cartazes publicitários que forram os muros da área central da cidade. O filme é montado em ritmo acelerado, com cortes bruscos e sem preocupação com os códigos de continuidade do cinema. Assim, em um momento Júlio está em seu quarto colocando cartazes quando começa a atirar com uma metralhadora imaginária invisível mas cujo som é ouvido na banda sonora do filme; de repente ele não está mais no quarto mas em campo aberto em meio à natureza; e depois nas favelas e das favelas de volta ao campo, tatuado e com flores no pescoço e, por fim, morto no centro de São Paulo, sendo a cena do campo acompanhada por música psicodélica e por inserções de Julieta fumando lentamente

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em seu quarto. O cigarro é “convencional” mas a referência às drogas é evidente, assim como antes aquela à guerrilha. Na periferia, quando Júlio grita sobre a necessidade de transformação, ele fala sozinho sem reação da população, somente das forças repressivas que surgem quase que instantaneamente. O filme é marcado por cenas curtas filmadas nas ruas de São Paulo, com características de happening. Romeu persegue Júlio e eles correm pela cidade, circundados pelos anúncios sonoros e visuais e, quando se aproximam do Vale do Anhangabaú, a câmera mostra uma pequena aglomeração de homens, entre os quais é possível reconhecer o cineasta Carlos Reichenbach – nome chave do cinema marginal paulista. Os homens apontam para cima, chamando a atenção dos transeuntes. Romeu e Júlio passam pelo grupo que voltará a aparecer em cenas seguintes. “Disco voador? Mulher pelada?”, indagam eles, sem qualquer sentido aparente. A ideia talvez seja a de mostrar que a atenção da população se desviava para assuntos banais enquanto vigia um contexto de violenta repressão. Em outra cena, alguém atira e “mata” aleatoriamente um passante, sem mais. Adiante, dois turistas “norte- americanos” estereotipadamente trajados com bermudas floridas tiram fotos do que avistam pela cidade, considerando tudo engraçado e exótico, incluindo Romeu com quem se encontram casualmente na rua. Isto coloca o publicitário na posição inversa de imagem e objeto de consumo. Mais desconfortável para ele, porém, é o imbróglio central do filme: a traição de sua esposa com “seu” garoto-propaganda. Ao se deparar com o casal na cama, exclama: “traído pela minha própria criação!”, seguindo-se as cenas de perseguição ao rapaz pela cidade, nas quais ele é envolvido por muitas outras criações publicitárias que poluem visualmente a cidade: “Maldita publicidade! Profissão de louco!”, diz ele, em cena posterior, enquanto, arranca os cartazes das paredes do quarto de Júlio. A cena emblemática do filme é aquela do encontro entre Julieta e Júlio em que ela liga a televisão em meio ao ato sexual e divide suas atenções entre o rapaz e a tela, deixando claro que sua satisfação não está em Júlio, mas na imagem dele construída pela televisão. Não bastasse a cena evidente e satírica, a personagem explicita isso ao marido, dizendo, quase em transe: “meu amor não foi com esse garoto, foi com a televisão”. Ela engravida, foge com Júlio e, junto com ele, é perseguida pelo Esquadrão da Morte na periferia de São Paulo. Na confusão, cai num lago e é salva pelo marido que a procurava. Após a cena de salvamento, filmada em estilo deliberadamente “avacalhado” e cômico, o casal reata e Romeu segue na publicidade, enquanto Júlio morre, atingido por tiros, contorcendo-se performaticamente contra os cartazes dos muros paulistanos, como já mencionado. Romeu grava um novo

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comercial estrelado por um adolescente, que conforme a concepção de sua campanha publicitária deveria aparecer nu, mamando em uma vaca. Julieta assiste à gravação do comercial, lançando olhares voluptuosos ao garoto quando começa a sentir as dores do parto. O casal sai em busca de um táxi e, quando finalmente o conseguem, o nascimento já é iminente e o bebê vem à luz com o táxi ainda parado, sob olhares dos transeuntes que colam seus rostos aos vidros do veículo. O filme se encerra com uma narração em tom ridículo, trocando o “r” pelo “l”: “acaba de nascer uma nova laça, a laça do homem televisão”. Esclarece-se , assim, o título do filme: um bebê concebido à luz da televisão, nascido sob os olhares de espectadores num “Big Brother” primitivo, gerado por um garoto-propaganda e a ser criado por um publicitário numa sociedade atravessada por imagens. O filho da televisão tem em comum com os demais filmes aqui analisados, a crítica ao universo da indústria cultural, diferenciando-se no tom adotado, marcado pela sátira e pelo deboche em detrimento do realismo crítico que marca a maioria dos demais, ainda que os filmes de Roberto Santos analisados no tópico anterior também tivessem componentes cômicos ou elementos surreais como em Os amantes da chuva. No filme de Batista, entretanto, a comicidade, o “escracho” e o deboche formam a linha condutora, numa impregnação do espírito “marginal”, desde a construção das imagens, do estilo de atuação e da composição da trilha sonora, sempre com comentários sarcásticos. O “avacalho” e “curtição”, típicos do Cinema Marginal, conforme caracterizado por Fernão Ramos (1987b), atravessam não só o enredo mas a própria construção do filme, como expressa a barriga de grávida acintosamente artificial ostentada pela atriz Joana Fomm, a Julieta. Desse modo, neste filme o meio publicitário mais do que alvo de uma crítica “séria” é objeto de deboche e “desglamourização”, como se evidencia quando o garoto-propaganda passa fome durante as filmagens e quando não recebe pelos serviços prestados; quando Romeu concebe suas campanhas publicitárias bebendo uísque e comentando “nada como a cafonice com um toque de finesse” ou quando a vaca com a qual vão gravar o comercial exala odores desagradáveis. Ao lado de Gamal, o delírio do sexo (1969), O filho da televisão marca a passagem de João Batista pelo Cinema Marginal. Enquanto Gamal é marcado pelos elementos agressivos e desesperados desse cinema, sendo perpassado por gritos e imagens abjetas, O filho da televisão adota uma postura bem-humorada, na qual a crítica surge pelo sarcasmo e não pelo choque, sendo certamente o filme de maior irreverência e “desbunde” da filmografia do cineasta.

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4.4.2 Alice (João Batista de Andrade, 1978): fantasia atravessada pela realidade do capitalismo periférico

Alice é um média-metragem de João Batista de Andrade realizado como um episódio piloto para série de televisão, inserindo-se no quadro dos projetos patrocinados pela Embrafilme a partir de edital para este fim lançado no final dos anos 1970. Como foi comentado no capítulo 2, a Embrafilme não conseguiu as almejadas parcerias com as emissoras de televisão para dar continuidade ao projeto ou mesmo inserir na “telinha” os pilotos já produzidos e, assim, os filmes realizados para este projeto ficaram, em sua maioria, sem lançamento e desconhecidos do público, com exceção daqueles que foram convertidos em longa-metragem, o que não aconteceu com Alice. O fiasco desse projeto de séries televisivas no qual a Embrafilme investiu significativos recursos258, é sintomático do poderio do sistema midiático contra o qual o Estado tem pouca força. É notório, ainda nos dias atuais, que qualquer iniciativa no sentido de favorecer a inserção de “produção independente” na televisão brasileira é barrada sob argumentos de dirigismo e autoritarismo estatal259. É muito mais interessante às emissoras e, em particular à hegemônica TV Globo, com sua vultosa estrutura, produzir os próprios conteúdos, de acordo com padrões estéticos e ideológicos autodefinidos e trabalhando com os próprios profissionais e recursos. Assim, na mesma época em que poderiam ter sido lançados os seriados produzidos pelos cineastas, a TV Globo lançava, com sucesso, séries próprias, como Malu mulher, exibida entre 1979 e 1980 e Carga pesada, exibida entre 1979 e 1981. Ao assistir Alice ou Sete de dias de agonia (Denoy de

258 De acordo com reportagem de Dirceu Soares (1977) para a Folha de S.Paulo, concorreram para o projeto de seriados de TV, 105 roteiros, sendo 55 de São Paulo. Destes 105, a Embrafilme selecionaria 30 que receberiam verba de 1 milhão de cruzeiros para a realização do piloto. Na reportagem, Egydio Eccio, então presidente da APACI já previa as dificuldades de inserção dos pilotos na televisão visto que os audiovisuais americanos chegavam no Brasil com um custo muito mais baixo, apenas 8 mil dólares, cerca de 120 mil cruzeiros. Não foram encontrados dados precisos de quantos foram os projetos-piloto realmente patrocinados e finalizados. Sabe-se que alguns filmes receberam recursos mas não foram concluídos por problemas de produção, como A hora dos ruminantes que José de Anchieta (assim como antes Person) tentou sem sucesso adaptar. Entre os concluídos, conhece-se: Alice (João Batista de Andrade, 1978); Sete dias de agonia (Denoy de Oliveira, 1978- 1982); Os imigrantes – Andiamo in´Merica (Sérgio Muniz, 1978); Caramuru (Francisco Ramalho Jr. 1978); Joana Angélica (Walter Lima Jr., 1979); Curumim (Plácido Campos Jr, 1978-1980); Terra dos índios (Zelito Viana, 1979); Maneco, o super tio (Flávio Migliaccio, 1978-1980); J.J.J, o amigo do super homem (Denoy de Oliveira, 1979). Dentre esses projetos, encontram-se diversos gêneros de filmes, ficções, documentários e infanto-juvenis. E, conforme apontado pela imprensa da época, foram contemplados, em número equivalente, paulistas e cariocas, atendendo às calorosas polêmicas acendidas a partir de 1976 pela atuação da APACI na reivindicação de recursos da Embrafilme. 259 Basta lembrar o caso do anteprojeto do Ministério da Cultura, publicizado em 2004, que propunha a transformação da Ancine (Agência do Nacional do Cinema) em Ancinav (Agência do Nacional do Cinema e Audiovisual), prevendo, entre outras medidas, a reserva de 20% da programação da televisão aberta para a produção independente e regional. Conforme mostra Marina Rossato Fernandes (2014a, 2014b), o anteprojeto foi alvo de fortes ataques das grandes emissoras de TV, notadamente a Rede Globo, e acabou engavetado.

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Oliveira, 1978-1982), outro piloto, mencionado no tópico 3.3, não é difícil entender por que eles não conseguiram inserção televisiva: não só se distanciam esteticamente do “padrão Globo”, sendo mais “rústicos” em termos da composição audiovisual, que denuncia a precariedade dos recursos técnicos e financeiros, como também são distanciados ideologicamente, ao apresentar críticas eminentemente anticapitalistas que não “caberiam” na programação da emissora mesmo que naquele momento ela estivesse “ousando” ao tratar de temas como emancipação feminina260. Ou seja, ao mesmo tempo em que contratava para seu quadro de funcionários vários cineastas – ou mesmo comprava produções terceirizadas sob encomenda, a exemplo da produção da Blimp (como visto no capítulo 2) – , a poderosa emissora recusava a absorção de produções realizadas de maneira “independente” fora de seu controle. Alice tem inspiração no clássico Alice no país das maravilhas (Lewis Caroll, 1865), mas aqui a fantasia é atravessada pela realidade do capitalismo periférico. A protagonista é uma garotinha de classe média, filha de um publicitário e uma professora, de cujos cuidados participa a empregada doméstica. O filme começa com o pai, Heloc, acordando sobressaltado, pois novamente está atrasado para o trabalho e comenta com a esposa seu temor de perder o emprego. Alice ouve a conversa e mais tarde perguntará para a empregada, o que acontece se o pai perder o emprego, questão que repetirá à mãe, ao longo do filme. Em sua fantasia, imaginará o coelho tal como o pai, sempre apressado, sendo interpretado no filme pelo mesmo ator que faz Heloc. Ainda que ela se interesse pelas histórias folclóricas que lhe conta Bê, a empregada, negra descendente de escravos, o imaginário da menina é preenchido sobretudo por aquilo que assiste atenta na televisão. Na escola quando a amiguinha lhe pergunta: “adivinha o que ganhei de aniversário?”, ela prontamente responde, “uma boneca que chora, come, fala mamãe e papai, faz xixi e dorme”. A amiga fica admirada com o acerto e ela continua “E custa 800 cruzeiros”, “em suaves

260 É interessante, por exemplo, comparar Sete dias de agonia com o episódio A enchente (1979) de Carga pesada. Realizados na mesma época, ambos os audiovisuais têm como centro a situação de “encalhe” de veículos numa estrada do Brasil, propiciando o encontro de diversos tipos sociais. No entanto, enquanto o filme de Denoy de Oliveira, apresenta um retrato ácido e violento do microcosmo, o episódio do seriado da Globo chega a tangenciar conflitos mas foca na solidariedade entre os atingidos. No primeiro, a crueza no desvelamento das relações capitalistas e da reificação das pessoas, no segundo a defesa de valores humanistas num microcosmo que se constrói alheio ao sistema social: “Nóis não temo com o que pagar memo, a gente nunca teve nada, né, Bino?”, diz e repete ao final do episódio o caminhoneiro Pedro, rindo contente, em resposta ao amigo preocupado em ter que pagar à empresa contratante a carga que eles perderam na calamidade. Cabe assinalar que o seriado tinha em sua equipe de criação nomes como Carlos Queiroz Telles, Walter Dürst, e Gianfrancesco Guarnieri, com supervisão de texto de Dias Gomes, ou seja, uma equipe de “comunistas”. O episódio A enchente está disponível no portal Youtube: . Acesso em: 05 de janeiro de 2016.

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prestações nas lojas Abacaxi, evidentemente”, completa, mostrando a familiaridade com as campanhas publicitárias e demonstrando que a referida boneca, tornara-se, pela atuação da publicidade, o presente óbvio e padronizado para as meninas de classe média. Em cena posterior a garota desmontará um brinquedo para descobrir seus segredos, tentando encontrar novas utilidades para ele e torná-lo menos desinteressante e descartável, como tantos outros que ela já tem. O pai de Alice é repreendido pela mãe da garota por dar à filha todos os brinquedos que ela pede depois que vê os anúncios na televisão. O pai argumenta que os filhos de seus amigos têm muito mais brinquedos do que Alice e que as crianças tem direito aos brinquedos que o mercado oferece. Não obstante essa fala, o pai, Heloc, não é um personagem entusiasta de sua profissão de publicitário, como o era Romeu Pupio de O filho da televisão, ao contrário. Em determinada cena, ele desabafa à esposa, seu descontentamento e a vontade de deixar o emprego num diálogo longo, que revela as posições do filme:

Heloc: Olha, Rebeca, não sei se vai dar pra continuar. Publicidade não é trabalho pra gente não. Eu não aguento mais. Rebeca: E tem algum trabalho bom de fazer? Heloc: Plantar mandioca, criar porco, sei lá, tudo menos publicidade. Rebeca: Eu também não aguento mais dar aula o dia inteiro, mas fazer o quê? Heloc: Eu não sei, mas sei que eu vou sair. Em publicidade não trabalho mais. Rebeca: Surgiu algum problema? Heloc: Problema tem todo dia. Vai indo, até que a gente se irrita, não dá pra aguentar. É muita mentira, muita falsidade. E você pensa que os caras das indústrias dizem o que é para fazer? Não, eles querem é que a gente, eu, faça, assuma o compromisso da mentira. Pra isso me pagam... Rebeca: E pagam bem... Heloc: Esse é o problema... Onde é que eu vou poder ganhar esse salário, fora da publicidade? Que é que você acha? Rebeca:Você faz o que quiser... só que as contas... Heloc: E não dá pra diminuir os gastos? A gente economiza, eu arranjo um outro emprego, sei lá, alguma coisa eu arranjo...” Rebeca: E vai adiantar? Heloc: Sei lá, ando desanimado, a vida tá difícil. Tá difícil até de conversar. Há quanto tempo a gente não conversa assim? Lá no trabalho só se fala de trabalho. Eu sei que ninguém gosta, mas ninguém fala que não gosta. Vai todo mundo levando... Hein? O que é que você acha? Rebeca: Eu só sei das contas, e que eu ganho pouco... Heloc: E não dá pra economizar? Rebeca: Economizar em quê? A escola da Alice? Brinquedos? Luz, água, prestações de roupas, aluguel do apartamento, prestação do carro, gasolina, imposto de renda…. olha hoje eu estava somando, a gente precisa é ganhar mais! Heloc: Ganhar mais? Ganhar mais? Mas como ganhar mais? Eu já não tenho nada pra vender, já vendi minha vida, minha criatividade, minha cultura, minha angústia, tudo! Como ganhar mais? Rebeca: São os números, Heloc, que estão dizendo isso, não eu... Heloc:Ah, os números, os números. E adianta ganhar mais, se tem sempre mais que gastar? É um saco sem fundo.

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Para além do contraponto entre Heloc e Rebeca, que reitera a configuração da maioria dos filmes em que o homem tenta oposição à ordem social, enquanto a mulher integra-se a ela numa postura mais “realista”, interessa extrair do diálogo o encadeamento de argumentos que compõem um quadro crítico da lógica capitalista e da publicidade em específico. Conforme as falas, no vigente sistema, nenhum trabalho é bom – “e existe algum trabalho bom de se fazer?” –, mas no caso da publicidade a alienação é ainda maior pois vende-se não apenas a força de trabalho stricto sensu, mas as ideias, a criatividade, a cultura, ou seja, os elementos constitutivos do ser humano que se sente vendendo a própria vida, como coloca Heloc, numa profissão que materialmente nada produz mas por meio da “falsidade” e da “mentira” faz girar a roda do sistema, dando ensejo ao consumo massivo em que está envolvida a própria família de Heloc que compra “tudo o que aparece”, como se menciona em outro diálogo. A insatisfação é geral, mas todos “vão levando”, reificando-se numa sociedade onde os números “dizem” e as pessoas calam-se, na qual “tá difícil até de conversar” e, da qual, para se desenredar, não adianta ganhar mais. Uma lógica alternativa é vislumbrada na idealização da vida no campo – na sugestão de Heloc de “plantar mandioca, criar porco” e, como veremos a seguir, no retrato do universo da empregada doméstica. A presença de Bê, de um lado, tem um forte componente crítico, acentuando a preservação de relações de exploração herdeiras do escravismo, característica chave de nosso capitalismo periférico a combinar “modernidade” e “atraso; e, de outro, representa, o universo de cultura popular e relações comunitárias que contrastam com o universo da família de Alice. Quanto ao primeiro fator, algumas cenas são fundamentais. No diálogo em que Heloc reclama à esposa a respeito de sua insatisfação profissional e eles debatem os dilemas da condição de classe média, Bê, em silêncio, serve café ao casal que ignora a presença dela, mostrando-se a tal ponto “naturalizados” com a condição de serem servidos que não enxergam a empregada, assim como não percebem a condição de exploração a que a submetem, muito mais grave do que a que está submetido o publicitário. Alice, como criança, percebe a seu modo essa exploração e coloca questões incômodas como, por exemplo, perguntando a Bê se a mãe da empregada não acha ruim o fato de ela dormir no serviço. Quando Bê visita a mãe acompanhada de Alice, a mãe da moça lhe chama de “sinhazinha” e diz que foi escrava ao que a menina retruca afirmando que sua mãe lhe explicou que a escravidão “acabou a mais de cem anos”. No roteiro, Bê explicaria que quem foi escrava foi sua avó mas que sua mãe “confunde e e pensa que foi ela mesma”. No filme, entretanto, não há essa frase de Bê,

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ficando ainda mais explícito o contraponto entre a fala “oficial” da mãe de Alice e a fala concreta da mãe de Bê, levando à reflexão sobre a persistência de relações escravistas na atualidade. Na casa de sua mãe, Bê mostra-se à vontade, olhando pelas janelas, abrindo armários, sentando-se displicentemente numa poltrona e sorrindo, num contraste com sua postura séria e contida na casa de Alice. Embora a casa seja simples, o filme apresenta uma visão positiva sobre o universo do bairro de periferia, mostrando que lá todos se cumprimentam e se conhecem pelos nomes, que as crianças brincam nas ruas e que há relações de solidariedade, como quando Bê pede aos filhos da vizinha para lhe comprarem algumas coisas da feira, como “meia dúzia de laranja do seu Zé da Fruta” e “meio quilo de carne seca do Quirino das carne”. Alice também parece mais à vontade naquele universo do que no universo urbano em que mora, onde os carros e a multidão de anônimos parecem opressores à sua liberdade. Bê representa também o universo da cultura popular em contraponto com a cultura midiática e conta para Alice lendas como a da Saci Pererê, contra a vontade de Rebeca que considera essas estórias ultrapassadas. Mas e a inspiração de Lewis Carrol? O universo fantástico surge fragmentariamente em meio ao cotidiano da garota. Na escola, uma amiguinha lhe mostra um buraco escondido onde a garota encontra um coelho. A partir daí o coelho retornará em sua imaginação já não mais como animal mas como uma figura antropomorfizada que lembra o seu pai, sempre com pressa. Outro personagem fará par com o Coelho: um Ratão que é versão transmutada de um aplicador de truques para públicos populares nas ruas de São Paulo, que intrigara a garota com o clássico “golpe das três tampinhas”, o qual ela desvenda, criando confusão entre o golpista e os ludibriados. As cenas com Coelho e Ratão são marcadas pelo estilo non-sense da obra original, com as frases desconexas e as conclusões absurdas, bem como pela troca do nome de Alice pelas mais diversas designações como “hélice”, Anita, Berenice etc, mas tem sempre alguma relação com a realidade, seja na associação entre os personagens e as figuras “reais”, do pai e do golpista, seja na inserção deles em imagens da televisão, seja no famoso julgamento final da Rainha que traz conexão com as preocupações de Alice. No julgamento, o Coelho é ao mesmo tempo o advogado de acusação e o réu, o que pode ser entendido como uma referência sarcástica do filme à condição de Heloc, simultaneamente cúmplice e vítima do sistema. Ele é julgado por “chegar sempre atrasado e não pagar as contas de luz e água”. Em estilo populista, a Rainha divulga que “após o julgamento e decapitação, haverá distribuição de doces e sucos”. O “julgamento”, em tons semelhantes aos do episódio O jogo do ludo de Vozes do medo, com cenografia e figurinos

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estilizados, vai se desenrolando à maneira caracteristicamente esquizofrênica do original. A todo momento a Rainha ameaça a todos de decapitação enquanto Alice questiona a ausência de defesa e de testemunhas. A Rainha lança regras arbitrárias: “Regra numero 352: ninguém de fita no cabelo pode falar!” e, quando Alice tira a fita dos cabelos, “Regra 8.527: ninguém de cabelos compridos pode falar”. A garota tenta questionar: “Isso não vale, você inventou essas regras agora!” mas qualquer questionamento é respondido com ameaças e, por fim, a Rainha dá o veredicto condenando o Coelho à decapitação sob os gritos de Alice. A cena é filmada do alto de um edifício paulistano. A guilhotina desce sobre o Coelho mas ele sai ileso sob aplauso de todos, e segue-se a festa com a distribuição de alimentos consumidos de forma “bárbara” pelos presentes. Tudo gira e Alice se vê novamente no buraco onde entrara quando vagava pelas ruas de São Paulo, após sair escondida de casa. No buraco, encontra-se agora uma mãe com três filhos, um deles sendo amamentado. A mulher diz à garota para sair pois ali não há espaço “para mais um”. Alice sai correndo e do lado de fora vê um repórter, o próprio João Batista de Andrade, que entrevista o pai da família alojada no buraco. O homem explica que veio da Bahia em busca de melhores condições de vida, instalando-se provisoriamente no buraco até “encontrar coisa melhor”. A reportagem é mostrada iniciando-se pela filmagem in loco e concluindo com sua exibição na televisão que Alice assiste, já em casa, ao lado dos pais. Em pé, Bê assiste também ao noticiário, anuindo com a cabeça a cada frase do migrante que explica as difíceis condições de vida do nordeste e reivindica o direito de tentar a vida em São Paulo, “pois em algum lugar a gente tem que poder viver, não é?” questiona ele, encerrando-se a reportagem e o filme. A reportagem exibida em Alice reencena, quase que literalmente, o curta- metragem documentário Migrantes realizado por Batista para o telejornal A Hora da Notícia, da TV Cultura, em que o cineasta entrevista uma família nordestina que vive sob a ponte, conforme mencionamos no capítulo 2. Sua inserção em meio à imaginação da garota traz a fantasia para a realidade que, como vimos, jamais esteve dela totalmente dissociada ao longo do filme, contribuindo para seu desvelamento crítico.

4.5 Considerações adicionais: a crítica no bojo do que se condena

Na introdução de Moral em concordata (Fernando de Barros, 1959) assim é apresentada a personagem Rosário:

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Enquanto uma [a irmã, Estrela, dona de casa] vai para o trabalho, a outra chega do trabalho. E de que trabalho! Ai, ai, ai, ai, nada de insinuações quanto à honorabilidade da moça! Às vezes dentro de um lindo corpo se esconde um belo coração. O certo é que ninguém acredita na honestidade do trabalho noturno de Rosário, muito menos nós que escrevemos a sua história. Rosário trabalha em boates, é corista e canta. Não interessa, exibe seu corpo, que é bonito, vive de sua beleza, fim.

Acompanhando a narração, as imagens mostram Rosário (Maria Della Costa), entrando em casa e em seu quarto. A narração prossegue, enquanto ela troca de roupa, começando por tirar as meias de seda: “Bem, não continuemos, não podemos atirar a primeira pedra nós que estamos aqui também a tirar vantagem da beleza de Rosário”. Ela se despe e a câmera focaliza primeiro seu corpo inteiro, apenas de corselete, e depois somente suas pernas, enquanto tira o corselete e veste uma camisola ligeiramente transparente. Deita-se sobre a cama, de bruços, posição que valoriza seu decote. A voz-over, que silenciara deixando que as imagens ganhassem ainda mais relevo, retorna, indagando: “Que tal? Estão gostando? Produto nacional legítimo, hein?! Pra quê invejar BBs e Lollôs?! Sejamos nacionalistas!”. O interlocutor é o próprio espectador, que pode ser masculino, apreciador da plástica da atriz, ou feminino, como poderia indicar o verbo “invejar” relacionado às atrizes que eram símbolos sexuais nos anos 1950, a francesa Brigitte Brigitte (BB) e a italiana Gina Lollobrigida, conhecida como La Lollo. Edgar Morin (1967) assinala que, na cultura de massa, “o essencial é o modelo identificador da mulher sedutora, e não o objeto a seduzir” (MORIN, 1967, p.150). Conforme o autor, enquanto para o público feminino, as mulheres que estampam capas de revista, por exemplo, funcionam como modelo ou ideal a ser alcançado, para o público masculino elas são objeto de desejo. É clássico também o ensaio de Laura Mulvey (1983) no qual ela utiliza uma abordagem feminista e psicanalítica para analisar a posição da mulher no cinema narrativo clássico, no qual a mulher é objeto passivo do prazer escopofílico, enquanto o olhar é masculino e ativo. Ademais, a figura feminina, ao mesmo tempo em que é transformada em fetiche, o que se expressa no culto às estrelas de cinema, é desvalorizada, considerada culpada, punida ou redimida nas trajetórias narrativas. O que Moral em concordata expressa de maneira cínica – “Bem, não continuemos, não podemos atirar a primeira pedra nós que estamos aqui também a tirar vantagem da beleza de Rosário” – o episódio de Roberto Santos em As cariocas (1966) desvela criticamente, ao mostrar que a mesma mídia que explora a imagem sensual de Marlene, condena hipocritamente seu “despudor”. O filho da televisão (João Batista de

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Andrade, 1969), por sua vez, inova ao trazer a mulher como sujeito ativo e desejante. Conforme vimos ao longo deste capítulo, os filmes dos “paulistas do entre-lugar” pretendem- se críticos a essa lógica reificante, mas não estão, contudo, livres de ambiguidades. Jean- Claude Bernardet (1995, p.192) comentando Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980) assinala que embora este filme reivindique a si mesmo como o polo humanista e desmistificador em contraponto ao universo mentiroso da televisão e da publicidade que fazem chover com caminhões-pipa, ele próprio teve suas chuvas realizadas com esse mesmo recurso, e isso não é problematizado pela construção fílmica que isenta o cinema da lógica da indústria cultural. Em Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967), como vimos, há uma breve passagem – protagonizada por Roberto Santos e por Fernando de Barros (de Moral em concordata) – que insere o cinema como adjuvante da mesma lógica que triturou Bebel, embora esse meio não seja tratado com o mesmo destaque dado à publicidade e à televisão. Um aspecto sintomático da correlação entre cinema e a indústria cultural é que as atrizes que interpretam as garotas-propaganda nesses filmes – Darlene Glória que faz Ana em São Paulo Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965), Íris Bruzzi que interpreta Marlene no episódio de Roberto Santos para As Cariocas (1966) e Rossana Ghessa que encarna Bebel de Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967)261 – têm trajetórias semelhantes àquelas de suas personagens, acumulando experiência em concursos de miss, como modelos publicitárias e como vedetes do teatro de revista antes de se tornarem atrizes de cinema e de televisão, sendo que, de modo geral, mesmo como atrizes, estiveram associadas a papéis que evidenciavam a beleza e a sensualidade, destacando-se atuações em filmes do gênero pornochanchada aos quais particularmente Rossana Ghessa e Íris Bruzzi ficaram associadas262. Além disso, tanto Person, como Roberto Santos, Capovilla e Ramalho Jr. valeram-se de seus contatos no universo do show business para a realização de seus filmes. Cláudio Petraglia, responsável pela música de São Paulo Sociedade Anônima era na época um conhecido diretor de televisão, sendo citado dentro da diegese do filme como o contato importante do personagem Arturo dentro da TV Tupi, o qual possibilitaria a conquista de um

261 Marília Branco que interpreta Anuska é um caso diferente pois embora tivesse sido manequim também tinha carreira prévia no teatro e no cinema. Cf. entrevista em SAC (1968). Depois do filme de Ramalho Jr., morou alguns anos na Itália. 262 Rossana Ghessa figurou em títulos como As Secretárias que fazem de tudo (Alberto Pieralisi, 1975); Tem alguém na minha cama (Pedro Camargo, Francisco Pinto Jr e Luiz Antônio Piá, 1976); A pantera nua (Luiz de Miranda Corrêa, 1979); A virgem e o bem-dotado (Edward Freund, 1980); Mulheres liberadas (Adnor Pitanga, 1982). E Íris Bruzzi em A Arte de Amar Bem (Fernando de Barros, 1970); Som, amor e curtição (J.B. Tanko, 1972); As mulheres que fazem diferente (Adnor Pitanga, Lenine Ottoni e Claudio MacDowell, 1974); Com um grilo na cama (Gilvan Pereira, 1975); Pensionato das Vigaristas (Osvaldo de Oliveira, 1977); Pintando o sexo (Jairo Carlos e Egídio Eccio, 1977); Assim era a pornochanchada (Victor di Mello e Cláudio MacDowell, 1978).

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emprego para a amiga de Ana na emissora. Na TV Tupi, conforme mencionado no capítulo 2, trabalhara o próprio Person como ator e diretor de teleteatro antes de estabelecer-se como cineasta. As cariocas teve como produtora a Wallfilme, empresa de Wallinho Simonsen, proprietário de TV Excelsior, e as filmagens do episódio de Roberto Santos ocorreram, segundo Inimá Simões (1997, p.104), num estúdio da TV Globo, então nascente e que ainda não havia conquistado hegemonia. Nas filmagens de Bebel, garota-propaganda, contatos com figuras do show business permitiram a utilização de locações para a gravação das cenas, inclusive com a inserção da personagem Bebel em meio às filmagens reais de uma campanha publicitária da Lynx Film; além de propiciar a participação especial de figuras de destaque naquele meio, como, por exemplo, Apolo Silveira que, segundo Capovilla, era “o mais importante fotógrafo publicitário de São Paulo na época” e atua no filme interpretando o próprio papel, o mesmo ocorrendo com o maquiador Gilberto Marques.263 Anuska, manequim e mulher, por sua vez, contou com assessoria de Thomas Souto Correia, editor-geral da revista Cláudia onde trabalhava Ignácio de Loyola Brandão, autor do conto que inspirou o filme. A revista tinha ligações diretas com o mundo da moda, como mencionamos antes, e Thomas Souto Correia conseguiu para o filme os figurinos utilizados por Anuska.264 Esses elementos dos bastidores dos filmes são indícios que apontam para as contradições inerentes a uma produção que se constitui no bojo daquilo que crítica. No entanto, se essas ambiguidades relativizam em certa medida a crítica contida nos filmes dos “paulistas do entre-lugar”, ainda assim a crítica existe, e ela se torna proeminente quando os contrastamos a filmes brasileiros contemporâneos que igualmente abordam os bastidores da indústria do espetáculo, tais como As amorosas (Walter Hugo Khouri, 1968), Juventude e ternura (Aurélio Teixeira, 1968), Em busca do susexo (Roberto Pires, 1970) e A super fêmea (Aníbal Massaini Neto, 1973). No filme de Khouri, há uma crítica que não desvela a lógica do sistema, não indo além do desprezo e da condenação da vulgaridade e incultura do trabalho em televisão, personificado na vedete Marta. E, nos outros três filmes, a visão sobre o show business é totalmente acrítica ou mesmo apologética, estando associada, em Juventude e ternura, à promoção da estrela da Jovem Guarda, Wanderléa, numa narrativa “leve” com ingredientes de ação e melodrama e, nos outros dois, atrelando-se à tosca exploração erótica em típicas pornochanchadas, sendo curioso observar que Em busca do susexo tem como produtor Zelito Viana, nome ligado ao grupo do Cinema Novo, e que A super fêmea é corroteirizado pelo dramaturgo comunista

263 Cf. CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.107. 264 Cf. SABADIN, 2009, p.37-38.

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Lauro César Muniz265. Já comentamos Em busca do susexo no tópico 4.3.1 e, sobre A super fêmea cabe dizer que, mesmo com um argumento que poderia dar origem a um filme feminista visto que trata da invenção da pílula anticoncepcional masculina, reitera a reificação da mulher característica da pornochanchada. A trama gira em torno da campanha publicitária para o referido anticoncepcional e tem como estrela uma linda loira, interpretada por Vera Fischer. Para garantir as vendas do produto, a campanha de lançamento promete ao consumidor que encontrar a embalagem premiada “uma noite” com a garota-propaganda, a qual não foi informada sobre esta cláusula ao assinar o contrato. Reiterando os estereótipos da pornochanchada, a inatingível moça é virgem, mas os consumidores da pílula não a “consumirão” e, sim, o publicitário-guru, mentor da campanha. Em uma de suas poucas falas no filme, a moça expressa sua “gratidão” ao publicitário pela “noite em que você me transformou de um objeto de consumo, de mito, fotografia, em carne, em gente, em amor”. O filme se encerra com ela dando a luz a cem (sic) bebês, ou seja, seu “super-poder”, como “Super fêmea”, é o de “campeã de natalidade”, condição que se contrapõe diametralmente à Super woman do episódio homônimo de Vozes do medo, que, no curta de animação, liberta-se do tabu da virgindade e passa a exercer ativamente seus desejos sexuais depois de ser atingida pelos “poderes” da pílula.

265 Em sua biografia Lauro César Muniz afirma “Fiz duas chanchadas, pra ganhar dinheiro: A Superfêmea e Os Mansos. Cheguei a escrever uma vez o episódio curto de um filme, em troca de uma linha telefônica, que naquele tempo valia dinheiro.” (MUNIZ apud BASBAUM, 2010, p.209).

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5. QUAL O LUGAR? PERCURSOS E CRUZAMENTOS NOS CAMINHOS DOS

“PAULISTAS DO ENTRE-LUGAR”

5.1 Início promissor, perto e longe do Cinema Novo (1958-1969)

Como veremos ao longo deste capítulo, as trajetórias dos sete cineastas aqui em foco são singulares entre si, não sendo redutíveis umas às outras. Elas, no entanto, portam aspectos compartilhados e se cruzam em diversos pontos, como se percebe nos contatos e parcerias estabelecidos ao longo dos anos. Nesse sentido, por vezes nos deteremos sobre uma trajetória individual mas nunca perdendo de vista a abordagem de conjunto, de modo a dar a conhecer, de maneira cronológica e mais sistemática, os percursos e as obras de nossos cineastas. Esclarece-se que esta pesquisa não pretende erigir biografias dos cineastas estudados no sentido de apreender suas vidas e obras como unidades coerentes com encadeamento lógico e sentido determinado. Há concordância com Bourdieu (1986) sobre a “ilusão retórica” deste tipo de empreitada. Destarte, trajetória aqui assume o significado não de linha percorrida de um ponto a outro, mas de percurso sem um fim previamente determinado, comportando sinuosidades, ambiguidades e contradições. E, embora, estejamos de acordo com as objeções de Bourdieu, não adotamos aqui seu repertório teórico, o qual destaca sobremaneira o peso das origens sociais e as estratégias dos atores no “campo”, num enquadramento teórico que deixa pouco espaço para a contingência e para as questões que extrapolam a lógica dos “campos”, conforme apontou Jean-François Sirinelli (1996). Roberto Santos, nascido Roberto Santos Pinhanez (1928-1987), era filho de fotógrafo profissional e ingressou no cinema a partir de um curso promovido pela Prefeitura de São Paulo coordenado por Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro de prestígio internacional que retornara ao Brasil em 1949 a convite dos capitalistas fundadores da Vera Cruz. Santos frequentou o seminário promovido pelo Centro de Estudos Cinematográficos de São Paulo entre 1950 e 1952, tendo como professores nomes como Ruggero Jacobbi, Trigueirinho Neto, Roland Corbisier e o futuro cineasta Rodolfo Nanni, que frequentara o IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques). O propósito do curso era formar profissionais para o cinema em várias frentes, desde as funções técnicas até a direção cinematográfica, passando também pela formação de atores. Dos muitos ingressantes, foram poucos os que seguiram o curso até o final. Roberto Santos foi um deles, assim como , John Herbert e Nelson Xavier, por exemplo, que fizeram o curso no âmbito da formação de atores. De acordo com

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Inimá Simões (1997, p.26), num concurso de roteiros promovido no âmbito do curso, Roberto foi premiado com o roteiro A estação, que tratava do encontro de diversos personagens em uma estação ferroviária, tendo em comum o objetivo de fugir do próprio destino. O concurso previa a filmagem do roteiro vencedor, mas isso não se concretizou. Entretanto, a formação adquirida no curso permitiu ao futuro cineasta começar a trabalhar nos estúdios da Companhia Cinematográfica Multifilmes, como continuísta em O homem dos papagaios (Armando Couto, 1953) e depois assistente de direção, em O craque (José Carlos Burle, 1953) e Chamas no Cafezal (José Carlos Burle, 1954). Nessa época já se configurava a crise do cinema de estúdio e, desde os congressos nacionais de cinema de 1952 e 1953, começavam a emergir, em paralelo, novas propostas para o cinema brasileiro inspiradas, em larga medida, no neorrealismo italiano, tanto em termos de produção como de forma e conteúdo. Tendo participado dessas discussões, Roberto parte em 1954 para o Rio de Janeiro para atuar como assistente de direção em Rio, 40 graus (1955), longa de estreia de seu amigo Nelson Pereira dos Santos e marco da produção independente, realizado sob esquema de cooperativa entre os membros da reduzida equipe. Conforme Roberto Santos (1978) relata em entrevista, ele abandona a assistência de direção a Nelson por não conseguir permanecer no Rio, sentindo-se adoentado e saudoso da família e amigos, além de necessitar retornar a São Paulo, por questões financeiras, como acrescenta Simões (1997, p.33). Colaborará depois com Nelson na produção de Rio Zona Norte (1957) e terá seu primeiro longa, O grande momento (1958), produzido pelo amigo. Antes disso, porém, retorna à função humilde de continuísta em O sobrado (Walter George Dürst, 1956) e, na sequência, é assistente de direção em Paixão de gaúcho (Walter George Dürst, 1957), produções da Brasil Filmes, companhia vinculada à estrutura da falida Vera Cruz. O roteiro de O grande momento, entretanto, escrito em parceria com Norberto Nath, havia sido registrado desde março de 1956 na seção de registros autorais da Biblioteca Nacional. Santos e Nath tinham na época ligações com o Partido Comunista, tendo se conhecido em reuniões políticas, mas, conforme Nath relata a Simões (1997, p.36), se afastaram do Partido ao se recusarem a submeter o roteiro ao crivo de seus dirigentes na área cultural. O filme foi realizado com recursos do Banco do Estado de São Paulo e apoio da Cinematográfica Maristela, que cedeu estúdios e equipamentos, conforme mencionado no capítulo 1.4. As filmagens iniciam-se em 1957 e marcam possivelmente o primeiro ponto de contato das trajetórias de Roberto Santos e Luiz Sérgio Person, o qual, naquele momento era corroteirista e assistente de direção do penúltimo filme da Maristela, Casei-me com um xavante (Alfredo Palácios, 1957). A produção principal da companhia era o filme de Palácios e, assim, Santos ocupava os estúdios emprestados somente à noite, em geral após às 23h, de

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modo que as filmagens de O grande momento atravessavam a madrugada, com a equipe alimentada à base de sanduíches de mortadela, conforme expõe Simões (1997, p. 37-39). Já mencionamos as atividades de Santos após o fracasso comercial de O grande momento. Documentários institucionais e publicidade, diversos roteiros e projetos não filmados. Do Sul do Brasil em Não te assustes, Zacarias, baseado na peça de Barbosa Lessa, em torno de um casamento popular gaúcho à Bahia em O homem da cabeça de papelão, roteiro baseado no conto de João do Rio, com críticas à política populista, cujas filmagens estavam marcadas para o início de 1964 sob financiamento de um empresário baiano. Em outros projetos o cenário seria São Paulo e, em particular a sua periferia, como em Eles não usam black-tie, roteiro sobre o universo operário adaptado da peça de Guarnieri; Cidade sem alma, roteiro em que Santos repete a parceria com Nath, e Quarto de despejo, adaptação do livro de Carolina de Jesus. Além desses projetos abortados, mesmo o venturoso A hora e a vez de Augusto Matraga (1966) foi um projeto que demorou para se concretizar e chegar às telas, como mostra a referência a ele como a próxima empreitada de Santos, feita por Glauber Rocha no livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (2003 [1963], p.115) publicado ainda em 1963. Neste livro em que, conforme mencionamos no capítulo 1, estabelecem-se de maneira estratégica as matrizes e fronteiras do Cinema Novo, O grande momento é saudado ao lado das realizações de Nelson Pereira dos Santos, como um dos precursores do movimento: “Sem dinheiro, havia um programa: expansão de experiências para uma expressão nítida do cinema brasileiro. Era o cinema novo precipitado. [...] Sem dinheiro, mas sem grupos capitalistas exigindo ideias e reprovando outras: sem dinheiro, mas com liberdade”. (ROCHA, 2003, p. 107). É interessante notar, entretanto, que no debate promovido sobre o livro de Glauber, em novembro de 1963, pelo jornal Última Hora em parceria com a Cinemateca Brasileira , Roberto Santos, que fora incluído no rol dos “autores” do cinema brasileiro, expressa sua dissidência em relação ao divisionismo propugnado por Rocha entre cinema de autor e cinema comercial. Roberto, então Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Cinematográfica, expõe o argumento de que mais do que movimentos estéticos o importante naquele momento era a união em torno da afirmação do cinema brasileiro. Ele chega a afirmar que “a época das revoluções artísticas já passou” e estabelece uma quase indiferenciação entre o cinema de autor e o cinema comercial:

[…] por menos que desejemos, seremos obrigados a concluir, que o cinema de autor, ao contrário do que se afirma, rigidamente, G.R. [Glauber Rocha], não é, nunca foi e nem poderá ser, dentro do sistema vigente, um cinema essencialmente revolucionário. Poderá ser, quando muito, cinema reformista com as inevitáveis incursões de autores revolucionários; o que não invalida, absolutamente, incursões

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idênticas no chamado cinema comercial. (SANTOS In ROCHA 2003 [1963], p.203).

Essa posição de Roberto é corroborada durante o referido debate por Maurice Capovilla e por Paulo Emilio Salles Gomes que expressam concordância com o argumento geral do colega paulista e defendem a união em torno da ocupação do mercado cinematográfico nacional pelo cinema brasileiro, luta na qual o cinema estrangeiro era o inimigo comum não cabendo, naquele momento, divisões no seio da classe cinematográfica nacional. Após realizar Matraga em proximidade com o grupo do Cinema Novo, apresentá- lo no Festival de Cannes de 1966 e ser reconhecido internacionalmente no lócus do “cinema de autor”, Roberto Santos volta-se para filmes urbanos com apelo de mercado, realizados a convite do produtor Fernando de Barros, um egresso do cinema de estúdio, admirador das grandes produções hollywoodianas e representante da corrente “universalista”/“cosmopolita” no cinema brasileiro.266 Esses filmes – o terceiro episódio de As cariocas (1966) e O homem nu (1967) – podem ser considerados “um meio-termo entre filme comercial e filme sério”, tomando de empréstimo as palavras que Capovilla utilizou para descrever seu Bebel, garota propaganda (1967), (Cf. Capovilla apud Mattos, 2006, p.114). São filmes que apresentam um viés crítico, como vimos no capítulo 4, mas, na busca pela comunicatividade com um público largo, renunciam a ousadias formais. Esta postura de pouca reverência às rupturas estéticas e ao “cinema de autor” de certo modo marca o conjunto de cineastas paulistas aqui em foco. Em diversas declarações nos anos 1960, Capovilla expõe sua visão do cinema não como arte, com um fim em si mesmo, mas como um meio, um “meio de informação” que deveria expressar problemas da realidade brasileira e não angústias particulares dos criadores, como afirma à reportagem de Miriam Alencar:

Eu vejo o cinema na sua mais pura forma, como meio de informação, no mesmo nível da televisão, do rádio, do jornal [...] O cineasta será um funcionário da informação. E por informação eu entendo não apenas a notícia da deposição de um chefe do governo, mas também a angústia, o medo, a alegria e o amor que por vezes transparecem no rosto de um homem. (CAPOVILLA apud ALENCAR, 1966a).

João Batista de Andrade, na mesma série de reportagens da jornalista carioca sobre os “cineastas de amanhã”, expõe, em linha semelhante, que seu objetivo era fazer um

266 Ver, por exemplo, entrevista do cineasta ao Programa Luzes Câmera. BARROS, 197-.

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cinema ligado à realidade social brasileira, com a preocupação de agradar o público e não de fazer filmes no estilo “monstro intelectual que ataca” (ANDRADE apud ALENCAR, 1966c). Em 1969, na ocasião da finalização do filme Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr., 1968), do qual foi produtor executivo, Batista assume sem pudores o objetivo de fazer cinema “industrial”, voltado para o público mesmo que isso implique em concessões culturais visto que o objetivo principal era criar uma infra-estrutura de produção267, argumento que de certa forma retoma o defendido por Paulo Emilio Salles Gomes que, no debate de 1963 sobre o livro de Glauber, afirmara que, prioritariamente aos embates entre cinema de autor e cinema comercial, o cinema brasileiro antes precisava existir268. Luiz Sérgio Person, em 1967, declara, na mesma linha: “A comunicação com o público deve ser enfrentada com todos os riscos, sem medo de eventuais falências artísticas, de certo modo irrelevantes no momento” (PERSON apud AZEREDO, 1967, p.2). Ainda que consideremos que em meados dos anos 1960 esses debates sobre a comunicação com o público começassem a aparecer também nas discussões do grupo do Cinema Novo – tomando forma sobretudo nos anos 1970 nas relações com a Embrafilme – é relevante ressaltar que no caso da produção paulista, inclusive pelas condições de produção desenvolvidas à margem do Estado, essa questão se colocava de maneira mais premente, o que pode ter contribuído para abafar na raiz possíveis ambições artísticas. Neste sentido, a proximidade que esses “paulistas” estabeleceram com o movimento carioca se deu sobretudo pela busca da “realidade brasileira”, mais do que em torno de um projeto estético, conforme já davam mostras os textos de Capovilla sobre o Cinema Novo no início dos anos 1960269. Luiz Sérgio Person (1936-1976) é o cineasta cuja trajetória expressa de maneira

267 É curioso o uso que o cineasta faz de um vocabulário marxista em sua exposição: “Para nós, Anuska significa muito. Afinal, é praticamente a primeira produção independente do grupo jovem de São Paulo. […] só agora estão sendo criadas condições para uma produção mais contínua do próprio cinema independente de São Paulo e isso, na medida em que vamos criando a infra-estrutura de nossa produção. Fazer os filmes para nós mesmos (sermos também produtores), isto é, forçar uma acumulação primitiva de capital. Neste sistema contraditório em que vivemos é preciso aceitar o sistema na infra-estrutura da produção para negá-lo na realização... Por isso falamos em cinema industrial, e justo nesse sentido. Certo que isso vai exigir de nós coisas não tão caras a tantos intelectuais: certas concessões, filmes sem compromissos culturais, creio que podemos criar essa infra-estrutura. Mas, em compensação, leva-nos a um sério compromisso com o público. Porque não posso concordar com um certo desprezo, na prática, que muitos têm pelo publico. Prefiro considerar o público como um dado dialético transformável e transformador […] É preciso, em termos de um conjunto de filmes, atingir esse público. E para isso, nada mal uma boa dose de artesanato: chega de improvisações, porque nem sempre elas são frutos da falta de condições da produção.” (ANDRADE apud ALENCAR, 1968, p.4). 268 “Qualquer luta a respeito da decorrência estética, social, sociológica da indústria ou do cinema de autor, é algo que poderá vir a ter um interesse enorme quando o cinema brasileiro existir – que na fase atual, em que a missão número um é desimpedir o nosso mercado, não há motivo nenhum para não unir todo mundo que tem os mesmos interesses, seja quem for, inclusive os produtores de chanchadas”. (GOMES In ROCHA 2003 [1963], p.206). 269 Cf., por exemplo, Capovilla 1962a.

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mais acentuada a notável ambivalência ou ímpar combinação de forte verve político-social crítica270 e senso empresarial aguçado. Vimos no capítulo 1 que o senso estratégico também perpassou o Cinema Novo na sua atuação empresarial e na sua inserção institucional junto ao Estado. No caso de Person isso ocorreu de maneira diversa, com a oscilação clara entre filmes de mercado e filmes com preocupação cultural/crítica. Assim, sua curta e heterogênea filmografia vai de Um marido barra-limpa (1957), com o comediante Ronald Golias, para o vigoroso São Paulo S.A. (1965). Do contundente O caso dos irmãos Naves (1966) para a fraca comédia Panca de valente (1968). Do terror com metáforas políticas e imagens de Che Guevara, em A procissão dos mortos (1968), à comédia musical com pitadas eróticas, Cassy Jones, o magnífico sedutor (1972). Entre os projetos não filmados do cineasta, encontra-se igualmente forte contraste, por exemplo, entre SSS contra a Jovem Guarda e A hora dos ruminantes. O primeiro foi escrito em 1966 numa parceria de Person com Jean-Claude Bernardet e Jô Soares e teria pioneiramente como protagonista o astro da Jovem Guarda Roberto Carlos271. Bernardet trabalhava na pesquisa para o roteiro de O caso dos irmãos Naves – projeto bastante acalentado por Person, que guardara consigo uma reportagem de 1949 sobre o caso que o revoltara – quando o diretor, que o procurara, inesperadamente, em Brasília em meados de 1965 para propor o roteiro dos Naves, novamente o surpreende ao apresentar, sorridente, mudança de planos: “Vamos fazer um filme com Roberto Carlos.”, justificando o projeto sob argumentos quanto à importância que ganhava a Jovem Guarda e a consequente promessa de sucesso do filme, o que facilitaria a produção dos Naves.272 O roteiro de SSS contra a Jovem Guarda foi escrito273 e o filme chegou a ter algumas cenas filmadas, mas foi cancelado devido

270 Além dos filmes, notadamente São Paulo S.A e O caso dos irmãos Naves, que falam por si mesmos, podemos trazer aqui declarações de Person que em 1975 diz que se sente “um sociólogo frustrado”, citando a seguir a frase de Mário de Andrade: “sociologia é a arte de salvar o Brasil rapidamente” (PERSON 1975 in LABAKI, 2002, p.29). Retrospectivamente, podemos encontrar essa visão nos comentários de Person quando do lançamento de São Paulo S.A, ocasião na qual afirmou que o final do filme não é positivo porque ele não pretendeu fazer uma obra demagógica mas sim uma obra que pudesse mobilizar o espectador: “O final tinha então a intenção de levar o espectador à perplexidade, atitude positiva e capaz de levar à ação.[...]. As sequências finais [...] em tudo contradizem o espectador e o arremessam com impacto diante daquela realidade cotidiana que lhe é devolvida já não mais sob o verniz e a complacência aparente, mas debaixo de um crivo de reflexão e sufocação de que eu tentei sugerir a necessidade de sair, de escapar, redenção essa que evidentemente não acontece ao protagonista, já que ele, basicamente, não tem as condições mínimas requeridas para a sua libertação”. (PERSON In: CENTRO DOM VITAL, 1965, p.4-5). 271 A iniciativa de Person antecede a realização da bem sucedida “trilogia” protagonizada por Roberto Carlos sob a direção de Roberto Farias, a que nos referimos no capítulo 1: Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968), Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1970) e Roberto Carlos a 300 km por hora (1971). 272 Cf. Relato de Jean-Claude Bernardet na introdução ao roteiro do filme O caso dos irmãos Naves. Bernardet, 2004, p.5-15. 273 BERNARDET, Jean-Claude; PERSON, Luiz Sérgio; SOARES, Jô. SSS contra a Jovem Guarda. São Paulo: Jovem Guarda Cinema, 1966. 88 p. Mimeo. (Acervo Cinemateca Brasileira).

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a divergências com a produção.274 Quanto a A hora dos ruminantes, ao qual já fizemos menção, seria indubitavelmente perpassado por aspectos político-sociais. Depois de tratar de maneira contundente do absurdo da tortura como “técnica” de confissão, tornando os fatos ocorridos durante o Estado Novo uma reflexão sobre o contexto presente da ditadura militar vigente nos anos 1960, em O caso dos irmãos Naves275, Person e Bernardet pretendiam, em A hora dos ruminantes dar continuidade à reflexão sobre a opressão e o autoritarismo. Esse objetivo deliberado de problematização política estava expresso na forma como os autores identificavam os dois filmes em suas conversas da época: “filme Castelo Branco” e “filme Costa e Silva”, respectivamente, conforme relata Bernardet (2004, p.9). Na apresentação de A hora dos ruminantes, cujo roteiro está depositado na Cinemateca Brasileira, o projeto é descrito da seguinte maneira:

[...] a ideia é se fazer um FILME-FÁBULA sobre a resistência e a entrega das pessoas aos agentes indeterminados de uma opressão. A moral que se extrai é de que não se deve transigir um mínimo sequer diante da opressão sob pena de se acabar inteiramente dominado por ela. Ao se dar um dedo, perde-se a mão, o braço e assim por diante... (BERNARDET; PERSON, 1967, p.1, destaque no original).

A proposta é alegórica, embora não se pretenda um filme hermético voltado para restritos círculos. A ideia, explicitamente, é a de um filme voltado para um público amplo, filmado em cores quando este ainda era um recurso opcional e custoso, com narrativa clara, mesclando-se elementos de comédia e drama, “um filme espetáculo, onde não faltará música, danças, desfiles, deslumbramento e também uma grande dose de emoção com as vigorosas cenas da invasão dos cachorros e a tomada de Manarairema pelas manadas de bois”. (BERNARDET; PERSON, 1967, p.1).276 Mesmo comportando certo apelo comercial, o projeto não conseguiu se viabilizar. Mário Civelli – veterano do cinema paulista, um dos sócios da extinta Cinematográfica Maristela e fundador da Multifilmes – fora produtor de O caso dos irmãos Naves em parceria com a Lauper e, segundo Bernardet277, se interessou em produzir também A hora dos ruminantes, chegando a pagar pelo roteiro, mas, por questões

274 Cf. Depoimento de Bernardet no filme Person (Marina Person, 2006) e Bernardet, 2004, p.7. 275 Baseado num caso real e fundamentando-se na documentação existente, O caso dos irmãos Naves trata de um dos maiores erros judiciais da história do Brasil, ocorrido em 1937 quando dois irmãos foram presos e barbaramente torturados para confessar um crime que não cometeram – e que, na verdade, não havia ocorrido visto que o suposto assassinado foi descoberto vivo. Analisamos este filme em Leme (2014). 276 A hora dos ruminantes narra a história de um vilarejo sossegado do interior, Manarairema, que um dia é surpreendido pela chegada de homens desconhecidos e misteriosos que se instalam nos arredores. Da estranheza inicial, a população passa a ser objeto de progressiva opressão que tem por ápice simbólico as invasões de cachorros e bois. Cf. BERNARDET; PERSON, 1967. 277 Cf. filme Person (Marina Person, 2006), versão integral transcrita em COSTA, 2006, p.121.

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pessoais, abandonou o projeto. Nenhum dos filmes de Person contou com recursos públicos. São Paulo S.A teve como produtor Renato Magalhães Gouvea (sócio-proprietário da construtura Magalhães Gouvea, ligado também ao mercado de artes plásticas) e, depois de negativas de empréstimos junto a instituições financeiras, foi produzido por meio de cotas oferecidas a investidores particulares pela produtora fundada por Person em sociedade com Magalhães Gouvea, a Sòcine Cinematográfica Ltda. Entre os investidores amigos constam Pietro Maria Bardi, fundador do MASP, empresários, como o próprio pai de Person, engenheiros e advogados. Mario Audrá, da Cinematográfica Maristela, contribuiu com estúdios e equipamentos, e sua esposa, a espanhola Ana Esmeralda, foi atriz no filme.278 O caso dos irmãos Naves é uma coprodução entre a Lauper Filmes de Person e Glauco Laurelli e a MC Produção e Distribuição Cinematográfica de Mário Civelli. Panca de valente é uma produção da Lauper, com financiamento do Banco Industrial de Campina Grande e do Banco das Nações, e sobre ele, Glauco relata: “O filme não chegou a dar prejuízo, mas ficamos bem apertados. Depois tive de vender um apartamento que tinha para pagar as dívidas.” (apud Jesus, 2007, p.128). Trilogia do terror é uma produção da Boca do Lixo, tendo como produtores Antonio Polo Galante e Renato Grecchi, conforme mencionado no capítulo 2. E Cassy Jones, o último longa da Lauper, mesmo sendo rodado no Rio de Janeiro, com uma produção mais vultosa, foi, segundo Glauco: “todo financiado por nós mesmos, sem um centavo do governo e sem nenhum associado” (LAURELLI apud JESUS, 2007, p.129), isso graças aos recursos acumulados no bem-sucedido trabalho com publicidade nos dois anos anteriores. No capítulo 2, mencionamos que a carreira artística de Person iniciou-se nos anos 1950 como ator de teatro, de televisão e de cinema (na Cinematográfica Maristela). Na mesma década em que dirigiu teleteatro na TV Tupi, lançou a revista Sequência, sobre teatro e cinema, com apenas um número publicado, e dirigiu seu primeiro filme, Um marido para três mulheres (1957, lançado apenas em 1967 por Renato Grecchi como Um marido barra limpa). Em 1959 assumiu a diretoria comercial da empresa de sua família, a Person-Bouquet S.A, fabricante de ferramentas superabrasivas para indústria, o que lhe proporcionou um contato próximo com o universo retratado em São Paulo S.A. O filme, conforme vimos anteriormente, foi inclusive financiado graças a recursos captados entre a burguesia paulistana. Para Jean- Claude Bernardet (apud Campos Jr.; Moraes (Orgs), 1986b), essas relações de Person com o meio empresarial, característica que o distingue dos demais “paulistas do entre-lugar”, foram

278 Sobre processo de produção de São Paulo S.A. ver Moraes (2009, 2010). O trabalho inclui entrevista com o produtor Renato Magalhães Gouvea e a lista de acionistas do filme.

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também responsáveis pela visão cética do cineasta em relação as possibilidades de transformação político-social no contexto pré-1964 :

[…] importante primeiro pra percepção da famosa revolução que não vinha. De onde vinham, as informações pro Person? É claro que vinham dessa ala […] eu não acho q o Person teria feito Sao Paulo SA como ele fez, mesmo que não seja um filme mundano, se não tivesse tido acesso a outros setores da sociedade, muito diferente dos meus e muito diferentes de grande parte dos cineastas. Então esses contatos com a alta sociedade e outros meios empresariais etc acho que eram bastante importantes pra ele. (BERNARDET apud CAMPOS JR.; MORAES (Orgs), 1986b).

Ademais, a condição social privilegiada em relação aos outros “paulistas do entre- lugar” fez de Person o único do conjunto com formação especializada na área, no prestigiado Centro Experimentale di Cinematografia em Roma, por onde passaram também os cinemanovistas Gustavo Dahl e Paulo César Saraceni, assim como o amigo paulista Glauco Mirko Laurelli. Em 1961, em viagem para a Europa, Person estabeleceu-se inicialmente em Paris, na casa de uma tia, e seguiu depois para Roma. Na Itália, além de cursar o Centro, foi assistente de direção de Luigi Zampa em Anni Ruggenti (1962) e dirigiu os curta-metragens Al Ladro (1962), filmado nas ruas de Roma com câmera na mão e selecionado para representar a Itália nos festivais de Veneza e Bilbao); L´Ottimista sorridente (1963), musical, e II Palazzo Doria Pamphili (1963), documentário sobre a sede da representação diplomática brasileira em Roma. Voltou ao Brasil em 1963, com o esboço do roteiro de São Paulo S.A, que realizou em 1964, lançando-o em 1965. Pode-se considerar que a experiência italiana foi decisiva para a “depuração” das vivências e percepções “sociológicas” de Person em forma cinematográfica refinada, contribuindo para transformar um realizador de chanchadas e teleteatro num cineasta com domínio da técnica e inspiração neorrealista, como mostra o vigoroso São Paulo S.A, saudado por muitos críticos da época como uma das melhores “estreias” de um cineasta. Em declarações, Person reconhece a passagem pela Itália como ponto de inflexão em sua trajetória: “A Itália foi o impacto, a respiração e a melhor influência para quem saía de um meio estagnado como São Paulo, onde pairavam os fantasmas do extinto e artificial surto cinematográfico” (PERSON apud LUÍS... 1976, p. 4). Um dado interessante e pouco conhecido da trajetória de Person é sua passagem pelo Nordeste após seu retorno da Europa. O cineasta Pedro Rovai relata que em 1963 trabalhava com o produtor de documentários institucionais Isaac Rosemberg realizando filmes para a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) quando conheceu Person, contratado para integrar a equipe. Recém-chegado da Itália e empolgado com o cinema de Francesco Rosi, Person teria proposto a Rovai a realização, paralela à oficial, de um

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documentário “dialético” sobre a região:

Pedro, vamos fazer uma coisa. Esses documentários aqui são chatíssimos; a gente pega umas pontas de negativos e vamos fazer um documentário sobre a realidade do nordeste, essa diferença violentíssima de condição de vida, de renda – umas pessoas milionárias e outras paupérrimas – esses mangues, essas favelas e essas pessoas riquíssimas. A gente faz um plano do rico e um plano do pobre e fazemos um documentário dialético e a gente pega umas pontas do negativo aqui do Rosemberg. (ROVAI apud CAMPOS JR.; MORAES (Orgs), 1986b).

De acordo com Rovai, o projeto não se concretizou pois o trabalho oficial da equipe era muito intenso, atravessava todo o dia e inviabilizava uma produção paralela. De todo modo, é bastante interessante a revelação desse episódio desconhecido, mostrando que mesmo Person, célebre por sua abordagem do urbano, não esteve alheio ao impacto exercido pelo Nordeste sobre os cineastas de sua geração. Foi igualmente a partir do trabalho em documentários produzidos por Isaac Rosemberg que Nelson Pereira dos Santos descobriu o flagelo da seca e inspirou-se a realizar o clássico Vidas secas (1963)279. Antes, em 1958, outro paulistano, Rodolfo Nanni, filmara O drama das secas, documentário inspirado no livro Geografia da fome de Josué de Castro e que comporia um filme internacional em episódios tratando de regiões afetadas pela fome no mundo, projeto que chegou a contar com adesão dos italianos Cesare Zavattini e Roberto Rossellini, ligados ao neorrealismo, mas foi abortado, conforme relata com maiores detalhes Nanni (2014) em sua biografia. Voltando a Person, seu filme subsequente a São Paulo S.A., O caso dos irmãos Naves (1967) guarda a influência de Francesco Rosi, em particular de O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 1962), um dos filmes preferidos do cineasta280 e que é referenciado por outros “paulistas”, como João Batista de Andrade que declara (a Caetano, 2004, p.56) que o filme foi para ele “uma quase obsessão”, tendo sido inúmeras vezes programado e exibido por ele no cineclube da USP quando era estudante de engenharia. O primeiro encontro dos dois admiradores de Rosi se daria no contexto do cineclubismo quando o jovem aspirante a cineasta, João Batista, entrevista o realizador de São Paulo S.A. para a revista da SAC – Sociedade Amigos da Cinemateca em 1965. Eles travarão um contato mais efetivo no final da

279 Em entrevista concedida a Maria do Rosário Caetano, Nelson Pereira dos Santos afirma, “Nos anos 50 eu trabalhava para Isaac Rosemberg, produtor de cinejornais e documentários. Certa vez, realizando documentário sobre o Rio São Francisco, nos deparamos, em Juazeiro, com levas de flagelados, crianças esquálidas, que vinham com a família, em busca de condições melhores de vida. Sem saída, eles invadiam prédios públicos e mercados. Se falava muito em reforma agrária, mas pouco de prático era feito. Fiquei de tal forma impressionado com aquela realidade, que escrevi dois ou três argumentos sobre o tema. Mas eram todos muito ruins, muito superficiais. Neles havia apenas o olho do repórter, um olho fora de foco. Ao ler ‘Vidas Secas’, percebi que tinha um roteiro perfeito na mão, feito por quem conhecia a realidade ali registrada. E tudo era narrado com secura, com rara economia de recursos” (SANTOS apud CAETANO, 2001, p.15). 280 Cf. Campos Jr. e Moraes, 1986a.

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década quando Batista está estabelecido com a Tecla Produções Cinematográficas LTDA, em sociedade com Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan e Sidnei Paiva Lopes, produtora que se une à Lauper de Luiz Sérgio Person e Glauco Mirko Laurelli na fundação da distribuidora RPI (Reunião de Produtores Independentes), conforme já mencionamos. Na base da união entre esses cineastas estava a ideia, esboçada por Batista na reportagem sobre Anuska citada anteriormente, de estruturar um esquema que tornasse viável a produção contínua do grupo, alternando filmes com apelo de mercado e filmes de maior preocupação estética ou política. Assim, Batista produz o filme de Ramalho, que contava com o ator Francisco Cuoco como chamariz de público, e o projeto da produtora era depois realizar seu filme Orizópolis/O saque com enredo em torno de um líder populista baseado em fatos da cidade natal do cineasta, Ituiutaba, interior de Minas Gerais, e inspirado no neorrealismo de Francesco Rosi281.Com a mesma perspectiva, Person realiza Panca de Valente (1968) com intuitos comerciais e cujos rendimentos poderiam viabilizar a realização de A hora dos ruminantes, como já comentado. Em sua concepção original, Panca de Valente seria não somente um filme mas uma série de filmes em torno de um personagem cômico, um caubói desastrado. “A idéia era criar um personagem que passasse por várias histórias, como Os Trapalhões viriam a fazer mais tarde”, conforme assinala Glauco Laurelli (apud Jesus, 2007, p.128). Person pensara o personagem para o sucesso popular, escrevendo sequências de roteiro, com planos inclusive de lançar produtos derivados do filme, como camisetas e objetos associados ao personagem, o que atesta a mentalidade empresarial do cineasta, que, todavia, não evitou o fracasso do filme. Quanto à RPI, a proposta compreendia um rodízio de projetos e também de funções, o que explica a participação de Person como ator no filme Anuska, manequim e mulher, segundo Ramalho Jr.: “Person um dos mais entusiasmados pela ideia, chegou até a trabalhar como ator, pois julgávamos importante fazer um rodízio de funções para aprender de tudo” (RAMALHO apud BRIGA, 1977). Conforme Ramalho conta em entrevista à autora (Ramalho, 2015), estava previsto inclusive que ele e Batista dirigiriam filmes da sequência Panca de Valente. Da parceria Lauper-Tecla, nasce também a produção do filme “marginal”, Em cada coração um punhal (1969) com episódios de João Batista de Andrade, Sebastião de Souza e Rubens J. Siqueira e a RPI distribui – com grande dificuldade

281 Em entrevista à autora, João Batista de Andrade (2013a), conta que o filme estava roteirizado e que teria como fotógrafo, Affonso Beato, próximo do grupo do Cinema Novo. Comenta ainda que costumava discutir o filme com colegas, entre os quais os cinemanovistas, Gustavo Dahl, Zelito Viana e Leon Hirszman. Segundo ele, Dahl falava que o filme seria o “'Terra em transe visto de baixo', isto é de onde nascem esses líderes [...] ao invés de ser uma metáfora, era um filme mais realista.” (ANDRADE, 2013a).

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de aceitação dos exibidores282 – outros longas marginais como, Meteorango Kid – o herói intergaláctico (André Luiz Oliveira, 1969) e Caveira My Friend (Álvaro Guimarães, 1970). No entanto, o que permite a sobrevida da distribuidora são os filmes do comediante Mazzaropi, conforme mencionamos no capítulo 2, ou seja, mais uma vez, constata-se a combinação do autoral e do comercial na sustentação do “grupo” paulista. Finda a RPI e em concomitância com o recrudescimento da ditadura militar, há uma desagregação desse “grupo” de cineastas, cujas relações haviam se tornado mais intensas em meados dos anos 1960, na conjunção entre veteranos e iniciantes. Ramalho e Batista relatam que a partir de então os contatos com Person se tornaram esporádicos e se encerraram as discussões coletivas283 – que, como veremos, seriam retomadas em meados dos anos 1970 em decorrência da fundação da APACI da qual Person, falecido precocemente em 1976, não participa. Nas palavras de Ramalho:

Eu diria que daí, do início dos anos 70, ou o próprio ano 70, para todos nós e até para a cultura brasileira foi a perda da identidade que cada um de nós teve. Até mesmo da desarticulação das amizades individuais. […] houve essa desintegração das relações de amizade, das relações sociais, das intenções de trabalho e até das próprias identidades. […] quer dizer, a perda daquele tipo de sonho. (RAMALHO apud CAMPOS JR e MORAES, 1986a, p.45-46).

Antes de passarmos para a conjuntura seguinte, é importante tratar do início das trajetórias dos jovens cineastas ligados à Politécnica da USP – Francisco Ramalho Jr., João Batista de Andrade e Renato Tapajós – assim como dos primeiros momentos dos percursos de Sérgio Muniz e Maurice Capovilla, sempre atentando para inter-relações entre esses cineastas. João Batista Morais de Andrade (1939 - ), Francisco Ramalho Mendonça Jr. (1940- ) e Renato Carvalho Tapajós (1943- ), diferentemente de Roberto Santos e Person, não são paulistanos de nascimento. Os três imigraram para São Paulo por conta dos estudos: o primeiro proveniente do interior do estado (nascido em Santa Cruz das Palmeiras e criado em Pirassununga, passando por São José do Rio Preto e Votuporanga), de família monoparental feminina, classe média com severas dificuldades financeiras284; o segundo procedente da cidade mineira de Ituiutaba, mãe professora e pai de origem alemã, de família de proprietários

282 Conforme Ramalho (2015). 283 Cf. Campos e Moraes (1986a), Andrade (2013a) e Ramalho Jr (2015). 284 Conforme descrição de Ramalho Jr: “Eu era um jovem pobre, de classe média baixíssima, morando na cidade de Pirassununga, interior de São Paulo. Morei também em São José do Rio Preto, Votuporanga, mas a maior parte do tempo, o período escolar até o colegial, em Pirassununga. Abandonado pelo pai, último de cinco filhos, todos professores, que mantinham a casa não diria em situação de penúria, mas com gastos extremamente controlados.” (RAMALHO JR. apud SABADIN, 2009, p.15).

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de terras decadente285, e o terceiro de Belém do Pará, de família de origem oligárquica286. Encontraram-se como estudantes da Escola Politécnica da USP no início dos anos 1960. Batista e Ramalho chegaram à capital paulista ainda em 1959 a fim de prestar o vestibular e, ao ingressar na USP, cursaram respectivamente Engenharia de Produção e Engenharia Eletrônica até o quinto ano, sem se formar. Habitando a moradia estudantil Casa do Politécnico, ambos se conheceram em torno de 1962 e tiveram participação bastante ativa no Grêmio da universidade, promovendo atividades culturais e atuando no jornal estudantil O Politécnico, do qual Ramalho era o redator chefe. Ramalho nos conta (Ramalho Jr. 2015) que eles buscaram dar ao jornal um perfil mais politizado e moderno, substituindo a publicação anterior que era impressa em papel couché e tratava apenas de assuntos relacionados à universidade. Com Ramalho e José Américo Viana na direção, o jornal passou a tratar de temáticas políticas, sociais e culturais mais amplas, além de ser impresso em papel jornal, com diagramação inspirada no francês Le Monde287. Segundo Batista (apud Caetano, 2004, p.51), que também fazia parte da equipe do jornal, O Politécnico na época chegou a ser conhecido entre os estudantes como “o jornal vermelho” e sua repercussão extrapolou os meios estudantis, alcançando distribuição em bancas de jornais. A partir da atuação no Grêmio, Ramalho e Batista fundaram com os colegas José Américo Viana e Clóvis Bueno – os quais não seguiram carreira de cineastas – o Grupo Kuatro, inspirado no grupo de cinema polonês Kadr capitaneado pelos cineastas Andrej Wajda e Jerzy Kawalerowicz. Mais adiante junta-se ao grupo Kuatro o paraense Renato Tapajós, também aluno da Escola de Engenharia da USP. O primeiro filme dos politécnicos foi Menina moça (1963) de Francisco Ramalho Jr., filmado na Estação da Luz e realizado com inspiração na montagem eisensteiniana, conforme relato à autora (2015). Em torno de um casal, o curta é filmado em 8mm tendo como ator Antônio Benetazzo, estudante da FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e militante do PCB. Amigo de Ramalho, Benê, como era conhecido, era artista plástico e viria a ser diretor de arte em Anuska, ingressando depois na

285 Sobre as origens de Batista ver Caetano (2004, p. 20) e, especialmente, Andrade (2013b), depoimento em que ele dá maiores informações sobre a família de seu pai: “Esse meu avô tinha muitas terras. E ele morreu quando o meu pai, que era o mais velho, tinha 12 anos. E foram perdendo tudo. Então meu pai vive contando: os escravos, os ex-escravos, no começo do século XX, muitos ex-escravos, que ainda trabalhavam na fazenda porque não tinha para onde ir, trabalhavam lá. Muita fartura, tal. E meu pai sempre foi atormentado com isso, porque eles perderam tudo e ele ficou pobre. Foi pobre, seguiu a carreira dele, a vida dele. Foi barbeiro... Aprendeu a cortar cabelo, foi barbeiro. E a vida inteira ficou tentando recompor essa coisa. Ele nunca conseguia. [...] de uma família quase aristocrática, perdeu tudo, virou quase um camponês. Então, ao mesmo tempo que tinha essa profissão de barbeiro e tal, ficava tentando recompor. Arrumava um dinheirinho, comprava uma fazendinha; aí não dava conta, porque tinha que pagar dívida, perdia. Era uma peleja.” (ANDRADE, 2013b, p. 3- 4). 286 Sobre origens de Tapajós ver Mário Augusto Medeiros da Silva (2008, p.56-62). 287 Conforme Ramalho relata à autora (Ramalho, 2015) e Sabadin (2009, p.26 e 27).

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luta armada como membro da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e na sequência do Movimento de Libertação Popular (Molipo), sendo morto pela repressão ditatorial em 1972. Ramalho Jr. foi preso e investigado em consequência de suas relações com Benê mas nunca foi formalmente ligado a nenhum partido ou organização de esquerda, diferentemente de João Batista de Andrade e Renato Tapajós que tiveram envolvimentos políticos ainda mais diretos: o primeiro foi durante longo tempo militante do PCB, tendo sido diretor da União Estadual dos Estudantes (UEE) e dirigente estudantil do Partido, estando ligado ao seu comitê estadual; enquanto o segundo foi militante do PC do B, integrando depois a dissidência Ala Vermelha do PC do B. Aderindo à luta armada, Tapajós entrou para a clandestinidade após o AI-5 e foi preso pelos órgãos de repressão de 1969 a 1974, acarretando um corte de mais de cinco anos em sua carreira de cineasta. Esse grupo de cineastas politécnicos era, assim, um grupo bastante politizado cujas aproximações com o cinema atrelam-se às ligações com o movimento estudantil. Conforme relata João Silvério Trevisan em entrevista à autora (2013), o grupo que viria a formar a Tecla compartilhava visões de esquerda e dedicava-se ao estudo do marxismo. Dá mostra do referencial marxista desses politécnicos por exemplo, a publicação, nos cadernos do Grêmio Politécnico de textos traduzidos de Arnold Hauser, crítico e historiador da arte marxista288. Tanto João Batista de Andrade como Francisco Ramalho Jr. citam também a influência de Lukács em sua formação. 289 Ramalho Jr (2015) relata que ele e Batista, ao lado de Sérgio Muniz, outro cineasta de nosso conjunto com passagem pelo PCB, acompanhavam no início dos anos 1960 as reuniões do célebre seminário de estudos d´O Capital de Karl Marx organizado por acadêmicos uspianos. O contato dos cineastas com o grupo de estudos se deu a partir de Sérgio Muniz que mantinha relações de amizade com Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Renato Tapajós que, abandonando a engenharia, viria a se formar em Ciências Sociais pela USP, embora não tenha participado dos seminários d´O Capital começara sua formação marxista ainda na adolescência. Em entrevista a Mário Augusto Medeiros da Silva (2008), o cineasta relata que seu pai e familiares, embora de origem oligárquica, foram ligados ao PCB e ele conviveu com dirigentes comunistas como João Amazonas e teve, desde muito jovem, contato com vasta biblioteca em que se encontravam livros marxistas e anarquistas trazidos da Europa, tendo lido O manifesto

288 Cf. GREMIO POLITÉCNICO (196-). Segundo Batista em entrevista à autora (Andrade, 2013a), foi Antônio Benetazzo que lhes apresentou Arnold Hauser, assim como Lukács. 289 Andrade (2013a) e Ramalho Jr. (2015).

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comunista de Karl Marx e Friedrich Engels aos treze anos 290. Com exceção de Menina moça, os primeiros filmes do grupo são documentários com preocupações político-sociais, alguns deles diretamente vinculados ao movimento estudantil. O primeiro deles é Catadores de Lixo (título atribuído a posteriori por Batista, dando conta do problemática retratada) cuja produção foi articulada por Assunção Hernandes, futura esposa do cineasta e dirigente do Movimento de Cultura Popular da UEE de São Paulo. Realizado em 1963, o curta em 16mm ficou inacabado e foi extraviado quando da invasão da UEE pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) na ocasião do golpe civil-militar de 1964291. Outro documentário realizado pelo Kuatro em 1963, igualmente ficou inconcluso e se perdeu: TNP- Teatro Nacional Popular. O documentário registrava a experiência do projeto-título, iniciativa coordenada por que consistia na apresentação de espetáculos nas periferias da cidade utilizando uma estrutura montada sobre um caminhão transformado em palco ambulante. Conforme relata Ramalho à autora (Ramalho, 2015), o filme trabalhava combinando imagens das apresentações teatrais – no caso a encenação d´O Auto do Novilho Roubado, de – a imagens das reações do público popular. A inserção no movimento estudantil também levou Ramalho e Batista a filmarem as primeiras passeatas contra o regime militar. Temendo a utilização de laboratórios brasileiros para a revelação dos filmes, o material era enviado para laboratórios de Cuba, por meio de Sérgio Muniz que tinha contatos lá. João Batista de Andrade (2013c) considera que o material, tornado anônimo, foi posteriormente utilizado por outros cineastas como Glauber Rocha. Tapajós, por sua vez, realiza em janeiro de 1964, em viagem de férias à Belém do Pará, sua cidade natal, Vila da barca (1964), que retrata as condições de vida da população habitante de favela de palafitas sobre o Rio Amazonas. O cineasta informa que o filme foi realizado sem equipe, com ele mesmo como fotógrafo/câmera, sendo material e equipamentos emprestados pelo publicitário paraense Abílio Couceiro. Na fase de edição, porém, o filme já se insere no âmbito do meio cinematográfico paulista, com montagem de João Batista de Andrade e Maurice Capovilla, contando ainda com influência de Roberto Santos, conforme nos conta Tapajós (2015). Suas palavras são interessantes pois dão índice da relação de Roberto (e Capovilla) com o grupo dos jovens cineastas iniciantes: Roberto foi, para mim, o cineasta que mais contribuiu em nossa formação. Ele tinha um certo jeito de mestre, de professor, mesmo antes de vir a ser professor da ECA. Os candidatos a cineastas, principalmente o pessoal do Grupo Kuatro (Batista,

290 Informações adicionais sobre as origens sociais e biografia de Renato Tapajós para além da carreira cinematográfica podem ser encontradas em Mário Augusto Medeiros da Silva, 2008. 291 Cf. Andrade (2013b, p.35-36).

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Ramalho), costumava, sempre que algum de nós estava filmando alguma coisa, se reunir na casa ou no apartamento de amigos, para ver copiões do material que estava sendo produzido. E discutir. Roberto e Capovilla sempre estavam presentes nessas reuniões e eram, como é claro, os pólos de muitas discussões. Quando eu trouxe o material de Vila da Barca, mostrei os copiões na íntegra para todos eles. Cumpre dizer que eu havia filmado a Vila da Barca com suas misérias e também as fachadas de casas ricas, o interior da Basílica de Nazaré com seus dourados, porque imaginava trabalhar com contrastes. Roberto criticou essa proposta como primária e recomendou que eu usasse só o material da vila. (TAPAJÓS, 2015).

O parecer de Roberto seria importante também para o filme seguinte de Tapajós, Universidade em crise (1965), quando o veterano, ao ver o copião pré-montado do filme sobre o movimento universitário opinou que não obstante as intenções de Tapajós em mostrar a força da mobilização dos estudantes o que sobressaía nas imagens era uma atmosfera de refluxo mais do que de avanço da luta e que, então, ao invés de forçar o material às ideias preconcebidas, a montagem deveria trabalhar essa questão. “A câmara não mente, quem mente são os cineastas”, teria dito Roberto, lição que Tapajós considera formadora de sua carreira como documentarista. Voltando a Vila da barca, esse primeiro curta de Tapajós contou ainda com o apoio de Sérgio Muniz que, segundo Batista (apud Caetano 2004, p. 100), teria emprestado equipamento para montagem292 e , segundo Tapajós (2015), foi o responsável por levar o filme para o Festival Internacional do Filme de Curta Metragem de Leipzig, Alemanha Oriental, onde venceu como o melhor filme. Além de Universidade em crise (1965), Um por cento (1966) de Tapajós também tem relações diretas com o movimento estudantil. Este também é o caso dos filmes seguintes de Ramalho Jr. e Batista, Mal de chagas (1966) e Liberdade de Imprensa (1967), respectivamente. Nas fichas técnicas desses filmes percebe-se a continuidade das relações entre os egressos do Grupo Kuatro: João Batista de Andrade é assistente de direção em Universidade em crise de Tapajós; Ramalho faz a edição de Liberdade de imprensa de Batista e Batista faz o som direto de Mal de chagas de Ramalho. Universidade em crise (1965) e Um por cento (1966), assim como Liberdade de Imprensa (1967) são produzidos em ligação com o Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP a partir de contatos estabelecidos por Tapajós, então estudante de Ciências Sociais e cunhado de José Roberto Arantes, presidente do Grêmio. Os documentários de Tapajós tratam frontalmente da política universitária e do movimento estudantil, enquanto o de Batista, que conta adicionalmente com recursos do recém-criado Jornal Amanhã vinculado à UNE, trata do tema título, colocando em questão

292 Conforme Tapajós (2015), a montagem de Vila da barca foi realizada numa moviola da Aliança Francesa por Capovilla. Como o filme credita a montagem não só a Capovilla como também a Batista é possível que tenham sido realizadas duas etapas de montagem, uma por Batista com equipamento de Muniz e outra por Capovilla na Aliança.

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não apenas a problemática da censura política mas também as amarras econômicas e ideológicas da imprensa. Enviado para o mesmo Festival de Leipzig no qual Vila da barca foi premiado, Liberdade de Imprensa foi vetado pela organização do festival do país socialista por ser considerado “inconveniente” ao debate público naquele momento da conjuntura política internacional. As cópias do filme também não chegaram a ser exibidas no Brasil pois foram apreendidas pelo Exército na invasão ao 30º Congresso da UNE em Ibiúna, em 1968. Mal de chagas, por sua vez, conforme conta Ramalho (2015), foi uma coprodução entre o IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) e a Liga de Combate à Moléstia de Chagas, organização ligada ao Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. De acordo com Ramalho (2015), tratava-se de um grupo bastante politizado e que buscava, a partir das intervenções no campo da saúde, problematizar questões políticas e sociais em trabalho direto com a população das periferias. O filme tinha por objetivo ser um propulsor de debates, ao abordar a doença de Chagas e suas formas de transmissão e documentar as condições de vida da população sujeita a essa doença. O filme foi concluído e, de acordo com o cineasta, entre os recursos utilizados na sua elaboração esteve a encenação, pela própria população, de cenas de seu cotidiano. Um dado curioso e interessante de que nos fala o cineasta e que dá mostra das dificuldades de mediação entre intelectual-“povo” é que, na exibição do filme à população, as imagens do bicho barbeiro ampliadas para fins didáticos não foram reconhecidas pelas pessoas simples que nunca tinham visto aquele inseto agigantado – episódio análogo ao referido por Jean-Claude Carrière (1994, p.54) sobre documentário realizado na Argélia acerca de doença transmitida por uma mosca, filmada em close-up e não reconhecida pelos aldeões que alegavam não existirem lá moscas daquele tamanho, o que atesta a necessidade de “alfabetização” para a linguagem audiovisual. Nessa época, enquanto o Cinema Novo florescia no Rio, fortalecia-se em São Paulo a produção de filmes documentários, o que se explica por uma conjunção de fatores, entre os quais os menores custos de produção. Os objetivos, como se vê nas citadas reportagens de Miriam Alencar (1966a, 1966c) sobre o jovem cinema paulista, eram bastante próximos daqueles que moviam os cineastas estabelecidos na capital carioca, no que diz respeito à busca pela realidade social do país, em consonância com a atmosfera da época, bem captada por Marcelo Ridenti (2000). Entretanto, as condições para produção cinematográfica em São Paulo eram outras, como vimos no capítulo 1, o que interferiu para levar o cinema paulista a trilhar caminhos diferentes. As palavras de Batista dão conta ao mesmo tempo da proximidade e da distância dos paulistas em relação ao Cinema Novo:

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Ramalho, Tapajós e eu éramos, de certa forma, os legítimos representantes do novo cinema de São Paulo. Éramos a geração que veio depois da Vera Cruz e tentava uma superação daquilo, buscando um cinema de intelectuais. Tentávamos superar o ranço popularesco do cinema brasileiro da época e o ranço elitista e alienado da Vera Cruz. Tentávamos fazer um cinema profundamente brasileiro e profundamente ligado ao processo de transformação que o Brasil vivia na época. Acontece que em São Paulo, nós éramos muito poucos. […] Quando começamos a fazer cinema em São Paulo, cinema era uma coisa falida, por causa do desastre da Vera Cruz. Todo o pessoal de cinema de São Paulo devendo aos bancos, o maior descrédito. Os capitalistas que chegaram a investir em cinema desacreditavam de tudo, pois o cinema não dera nem prestigio, nem renda. Nós, então, não conseguimos criar um espaço que pudesse concretizar nosso projeto de cinema e gerar um polo de produção em São Paulo. O Rio conseguiu isso, com o Banco Nacional, com o Lacerda etc; E isso atraiu o pessoal de São Paulo, os baianos, os paraibanos e acabou criando um polo de atração que gerou o Cinema Novo. Criou um bloco de cinema independente no Rio. Quem ficou em São Paulo, formou um bloco pequeno e sem muita força, sem capacidade de transformar aquilo num grande momento [sic, talvez movimento] de renovação em São Paulo. Apesar dos contatos com o Rio, não conseguimos criar uma capacidade de produção. (ANDRADE apud CAETANO, 1983, grifos nossos).

Roberto Santos, Sérgio Muniz, Luiz Sérgio Person e Maurice Capovilla, mais velhos que os “politécnicos”, igualmente buscavam realizar um cinema que superasse a um só tempo o “ ranço popularesco” da chanchada e o “ranço elitista e alienado” da Vera Cruz, rumo a “um cinema profundamente brasileiro e profundamente ligado ao processo de transformação que o Brasil vivia na época.” Essas características diferem-se substancialmente, de um lado, do cinema buscado pelo grupo mais jovem da Boca, atrelado ao niilismo debochado e pouco preocupado com as questões nacionais típico do Cinema Marginal e, de outro, do cinema dos paulistas herdeiros da Vera Cruz, que continuavam buscando problemáticas “universalistas” ou focadas na subjetividade, enquadradas numa linguagem de qualidade técnica e ausência de preocupação com a discussão do país. Nesse sentido, os sete cineastas aqui focalizados, diferentemente dos demais cineastas paulistas da época, são os cineastas que estiveram mais próximos de ser os “legítimos representantes do novo cinema de São Paulo”, como reivindicou Batista, sendo que notadamente os quatro mais velhos chegaram por vezes a serem identificados pela crítica da época e pela historiografia como tal. Não é isso que reivindicamos nesta tese. Embora consideremos que eles sejam os paulistas da “geração Cinema Novo”, entendemos que o cinema dos sete carrega características específicas que os distanciam consideravelmente do Cinema Novo, o que tem relação com as diferenças estruturais de condições a separar Rio e São Paulo. A ausência de auxílios estatais análogos à CAIC e, posteriormente, o obstado acesso aos recursos da Embrafilme, compeliram o cinema paulista a se desenvolver a partir de iniciativas “independentes” e/ou com vínculos comerciais como já colocado no caso de Roberto Santos e Luiz Sérgio Person. Outro aspecto relevante da trajetória desses cineastas é a ligação que

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estabeleceram com o documentário e que marca o início das carreiras de Ramalho, Batista e Capovilla e se torna o traço definidor das trajetórias de Tapajós e Muniz. Nessa modalidade de cinema, três núcleos de produção são destacados: aquele vinculado ao movimento estudantil, já mencionado; a produção patrocinada por Thomaz Farkas e a produção para o IEB. Thomaz Farkas (1924-2011), húngaro estabelecido em São Paulo, era fotógrafo, formado em engenharia pela Politécnica da USP (muito antes dos integrantes do Grupo Kuatro, em 1953) e proprietário da empresa de materiais fotográficos Fotoptica. Simpatizante do PCB, Farkas foi apresentado pelo arquiteto Vilanova Artigas, membro do Partido, a Maurice Capovilla e Vladimir Herzog293, dando início à articulação de propostas de produção documentária. Capovilla e Herzog, amigos de faculdade na Filosofia da USP e companheiros de trabalho no jornal o Estado de São Paulo, haviam cursado juntos um estágio na Escola Documental de Santa Fé, fundada pelo cineasta argentino Fernando Birri. Em 1963, o próprio Birri, trazendo consigo os amigos Edgardo Pallero e Manuel Horácio Gimenez, também envolvidos com o cinema, vem para o Brasil fugindo das complicadas condições políticas na Argentina, sendo recebido por seu ex-aluno Vladimir Herzog. De acordo com Muniz (apud Brito, 2001), esse grupo (Farkas, Capovilla, Vlado e os argentinos Birri, Pallero e Gimenez) começa a desenvolver um projeto de documentários sobre Reforma Agrária para o governo João Goulart, projeto que é abortado com o golpe.294 Birri deixa o país, mas Pallero e Gimenez permanecem em São Paulo, para onde migra o baiano Geraldo Sarno, fugindo das perseguições pós-golpe de 1964. Um novo grupo vai sendo formado, mantendo de pé as propostas de documentar o Brasil, mas contornando temas espinhosos como a Reforma Agrária. Farkas viaja para o Rio buscando novas adesões para o projeto, sendo interessante assinalar que, embora a produção sob seus auspícios habitualmente seja identificada ao Cinema Novo (Cf., entre outros autores , Ramos; Miranda (Orgs), 2000, p.145), por compartilhar com o movimento certos princípios estéticos e temáticos, suas propostas não atraíram na época os principais nomes do grupo “carioca”, conforme relata Paulo Gil Soares, baiano amigo de Glauber Rocha e assistente de direção em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964): “1964 […] Thomaz Farkas […] tinha convidado as pessoas do dito cinema novo para um drinque e conversas sobre a produção de documentários. Ele queria produzir, tinha talento, disposição e... dinheiro. Foi olhado com reservas pelos ‘comunas’ gerais e logo virou ‘paulista rico querendo promoção’.” (SOARES apud RAMOS, 2008, p.

293 No início dos anos 1960, o futuro jornalista Vladimir Herzog estava bastante interessado em cinema e chegou a participar do célebre curso de Arne Sucksdorff no Rio de Janeiro em 1962. Ao final deste curso realizou o curta Marimbás (Vladimir Herzog, 1962), sobre uma comunidade de pescadores. 294 Sobre o início do “grupo” Farkas e as relações com Birri, ver Moura (2006) e Moura e Marcolin (2007).

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379). Para Paulo Gil, no entanto, que não ocupava posição central no grupo cinemanovista e que não tinha conseguido até então viabilizar um filme próprio, a oportunidade mostrava-se interessante: “Ouvi o Farkas falar e isso foi a melhor coisa que podia acontecer na minha vida, naquele dia e naquele ano. E acreditei nele. Mas o melhor foi que ele acreditou em mim, e menos de uma semana depois aprovava o roteiro de Memória do cangaço, meu primeiro filme pessoal e que terminou iniciando a minha vida de cineasta [...]” (SOARES apud RAMOS, 2008, p.379). A posição de Paulo Gil é peculiar pois intermediária, se o fato de não pertencer ao núcleo duro do Cinema Novo levou-o a aderir ao projeto de Farkas, estar próximo ao grupo carioca lhe trouxe benefícios, conforme ressalta Fernão Ramos:

O esquema de produção de Memória do cangaço mostra igualmente a particularidade de Paulo Gil no grupo Farkas e sua proximidade com os circuitos de produção exclusivos do cinema novo. Além de ser o único documentário de Brasil Verdade filmado em 35mm, Memória conta também com a participação do esquema Itamaraty/Patrimônio Histórico, presente na produção do [cinema] direto carioca. É a proximidade de Paulo Gil com Glauber e com o núcleo [Joaquim Pedro de] Andrade, [David] Neves, [Carlos] Diegues, [Paulo César] Saraceni, que abre as portas do esquema do Estado brasileiro funcionando no Rio, sobre o qual os jovens do cinema novo têm ascendência. (RAMOS, F., 2008, p.378-379).

Quatro média-metragens são produzidos pelo grupo de meados de 1964 ao início de 1965295: Memória do cangaço, de Paulo Gil Soares; Nossa escola de samba, de Manuel Horácio Gimenez; Subterrâneos do futebol de Capovilla e Viramundo de Geraldo Sarno. Vladimir Herzog, que trabalhava na produção deste último, deixa o projeto ao receber convite para trabalhar na emissora de televisão BBC em Londres e Sérgio Muniz assume seu posto, iniciando uma longa relação com o produtor Farkas que atravessa os anos 1960 e 1970. Esses documentários alcançaram notável repercussão no exterior, especialmente na França296 e, numa tentativa de facilitar a distribuição nos cinemas, foram reunidos num longa sob o título Brasil Verdade. De acordo com Edgardo Pallero, produtor executivo desse conjunto de filmes,

295 Muniz em entrevista a Brito (2001) situa a produção entre julho de 64 e fevereiro de 1965. 296 Muniz relata a Sobrinho (2012, p.246): “Depois de finalizados e exibidos, esses documentários tiveram repercussão internacional e nacional. Em relação ao cenário internacional, vou destacar dois acontecimentos significativos. Em primeiro lugar, há a aproximação do produtor francês Claude Antoine, junto ao Farkas, ele representava os filmes do Glauber Rocha na Europa, e propôs ao Farkas que conseguiria vender os filmes para a televisão francesa, e em troca sugeriu que ele coproduzisse uma série dirigida por Pierre Kast sobre cultura brasileira. Os documentários desse acordo foram reunidos numa série denominada Les Carnets Brésiliens (1966). Em segundo lugar, esses documentários repercutiram junto à crítica internacional, sendo pessoas tais como o Jean Rouch, o Louis Marcorelles, o Edgar Morin, o Marcel Martin e o Robert Benayoun que naquela época eram críticos franceses que estavam no auge da produção. Por exemplo, o Marcorelles, depois de um simpósio que teve em 1966, acho que em Florença, disse que aquele tipo de documentário poderia levar o Cinema Novo para um caminho interessante. E pessoas como Jean Rouch que escreveram muito sobre esses filmes. Portanto, do ponto de vista da crítica francesa, teve um peso importante a divulgação dos filmes no exterior.”

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o projeto desde o início foi marcado pela racionalidade empresarial – ou “rigor industrial”, em suas palavras – buscando conjugar o aspecto artístico ao econômico, e este incluía a preocupação com a distribuição que teria como alvo não apenas os cinemas como também, por exemplo, o mercado das TVs estrangeiras por eles previamente estudado. 297 Outro mercado visado por Farkas era o das escolas brasileiras. Muitas delas possuíam projetores 16mm e poderiam ter interesse em adquirir documentários sobre o Brasil como filmes didáticos. Farkas e a Fotoptica já estavam inseridos nesse mercado e, conforme relata Renato Tapajós (2015), em momento paralelo à produção do conjunto de documentários Brasil Verdade, ele realizou para o produtor vários filmes didáticos a serem vendidos para escolas de primeiro e segundo grau, a exemplo de um primeiro filme na área de biologia que tratava do funcionamento e processos de divisão das células e valia-se de recursos de animação improvisados por ele e seu então sócio Sérgio Albertini. Tapajós explica que acompanhou as filmagens de Viramundo e só não entrou na equipe porque esta já estava completa e ele estava dedicado aos filmes didáticos, mas ficou combinada sua participação num segundo ciclo da produção Farkas. Quando essa segunda fase se iniciou, porém, já era 1968 e Tapajós estava envolvido com a guerrilha urbana e não pôde participar do projeto. Ramalho Jr. e Batista foram assistentes em Viramundo (Geraldo Sarno, 1964) e Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1964), da primeira etapa de documentários produzidos por Farkas, o qual foi ainda avalista do empréstimo no Banco da Nação que viabilizou a realização do longa inaugural de Ramalho, Anuska, manequim e mulher (1968).298 De sua parte, Sérgio Muniz permaneceu por longo tempo associado a Farkas, sendo produtor executivo do segundo conjunto de filmes, na fase propriamente conhecida como “Caravana Farkas” 299, cujos documentários serão reunidos sob título A condição brasileira, tendo dirigido dois deles: Beste (1969) e Rastejador, s.m.(1969). No total foram dezenove

297 Nas palavras de Pallero: “Desde o primeiro momento a experiência foi encarada com um rigor industrial bastante preciso, isto é, sempre foram levados em conta, equilibradamente, os dois aspectos fundamentais do cinema como indústria: o aspecto artístico (ou criativo) e o aspecto econômico. Partiu-se do dado fundamental que os termos artístico e econômico não são incompatíveis.A estes conceitos se agregou a necessidade unânime de o grupo realizar um cinema documental que refletisse os aspectos mais urgentes da realidade brasileira em todas as suas manifestaçõesDecidiu-se então pesquisar-se o mercado das TVs estrangeiras e, depois de três meses de trabalho, as conclusões foram suficientemente positivas para impulsionar o grupo e fundamentalmente o produtor Thomaz Farkas a pôr em movimento o mecanismo de realização dos quatro filmes.” (PALLERO apud NEVES, 2007 [1966], n.p.). 298 Cf. Ramalho em Sabadin (2009, p.38 e 57). 299 Por vezes a designação “Caravana Farkas” é utilizada indistintamente para abrigar o conjunto da produção que contou com recursos de Farkas. De acordo com Lucas (2006) a expressão se disseminou a partir de texto de Eduardo Escorel em catálogo da mostra do Centro Cultural Banco do Brasil sobre a filmografia produzida por Farkas.

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documentários300, realizados por quatro diferentes cineastas que partiram, juntamente com uma pequena equipe, em viagens por estados nordestinos entre 1968-1970. 301 A trajetória de Sérgio Muniz diferencia-se daquelas dos demais cineastas do conjunto por suas primeiras ligações com um círculo de intelectuais comunistas ou simpatizantes, como mencionado no capítulo 2, assim como por suas relações no âmbito da Faculdade de Ciências Sociais da USP e por seus contatos no exterior, na Europa e em Cuba. Nascido em 1935, Sérgio Aurelio de Oliveira Muniz é mais velho do que os politécnicos, mais jovem do que Roberto Santos, estando na mesma faixa de idade de Person e Capovilla, nascidos em 1936. Seu ingresso na direção de cinema, porém, ocorre mais tarde do que o de seus pares, sendo seu primeiro filme o curta Roda & outras histórias (1965), realização paralela e independente à produção Farkas. O filme, que se inspira na literatura de cordel, se realiza num trabalho de montagem a partir de canções de Gilberto Gil e imagens de gravuras e elementos da cultura popular nordestina além de “sobras” de filmes como Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e material filmado por Paulo Gil Soares no nordeste como levantamento para a produção de Deus e o Diabo na terra do sol (1964). O contato com Gilberto Gil, ainda um cantor desconhecido, se deu por meio de Geraldo Sarno que realizava em São Paulo Viramundo cuja canção-tema, composta por Caetano Veloso e José Carlos Capinam, é interpretada por Gil. O cineasta chega a fundar uma produtora intitulada Cinema de Cordel, buscando a continuidade de filmes nessa linha mas o projeto não vigora e sua trajetória segue ligada sobretudo à produção Farkas, ressaltando-se também os vínculos com o IEB. Como mencionamos no capítulo 2, o primeiro contato de Muniz com o cinema se dá como assistente de câmera de Ruy Santos em A casa de Mário de Andrade (1954). Primo do dramaturgo comunista Bráulio Pedroso, ele tem contato, desde essa época, com cineastas e intelectuais próximos ao PCB, como o próprio Ruy Santos, Nelson Pereira dos Santos, Rodolfo Nanni, Galileu Garcia302 e Villanova Artigas, que o introduz na Base de Cultura do Partido junto com Arthur Neves e Lenina Pomeranz. Conhecera também, em 1953, num

300 São eles: A morte do boi (1969-1970), A vaquejada (1969-1970), Frei Damião - trombeta dos aflitos e martelo dos hereges (1970), A erva bruxa (1969-1970), O homem de couro (1969-1970), A mão do homem (1979), Jaramataia (1970), dirigidos por Paulo Gil Soares; A cantoria (1969-1970), Vitalino Lampião (1967?), O engenho (1969-1970), Padre Cícero (1971), Casa de farinha (1969-1970), Os imaginários (1967?), Jornal do sertão (1967?), Viva Cariri (1969-1970), Região Cariri (1970), de Geraldo Sarno; Rastejador, s.m. (1969) e Beste (1969) de Sérgio Muniz e Visão de Juazeiro (1970) de Eduardo Escorel. Cinco deles foram reunidos no longa Herança do Nordeste (1972): Padre Cícero, Casa de farinha, Rastejador, Jaramataia e Erva Bruxa. 301 Sobre a produção Farkas ver Alfredo D´almeida (2003), Meize Lucas (2005), Clara Ramos (2007) e Gilberto Sobrinho (2008). 302 Sobre os cineastas ligados direta ou indiretamenteao PCB, ver Autran (2012).

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réveillon na casa do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, Thomaz Farkas, com quem trabalharia mais de dez anos depois.303 Suas relações com sociólogos se ampliam ao ingressar no curso de Ciências Sociais da USP em 1961, chegando a participar de seminários d´O capital, junto com Ramalho Jr. e Batista, conforme mencionado. No final de 1965, com o positivo impacto dos primeiros filmes da produção Farkas entre os acadêmicos uspianos, propõe-se a criação de um setor de produção de filmes documentários no Instituto de Estudos Brasileiros – IEB e Muniz vem a assumir a direção desse “Departamento de Produções de Filmes Documentários”, posto que ocupa até 1970, sem que houvesse um vínculo formal: “eu não era funcionário, eu não estava registrado, era, digamos, uma troca de intenções”, explica ele (apud Sobrinho, 2012, p.247). A iniciativa para criação desse departamento partiu de intelectuais como Paulo Emílio Salles Gomes e Maria Isaura Pereira de Queiroz e resultou tanto em coproduções com Farkas como em produções paralelas, como Auto de Vitória (1966), de Geraldo Sarno em torno do Padre José de Anchieta e O povo do Velho Pedro, anotações (1967), de Sérgio Muniz, realizado a pedido da professora Maria Isaura Pereira de Queiroz que buscava material sobre uma comunidade messiânica em Santa Brígida, interior da Bahia, estudada anteriormente por ela nos anos 1950. Paulo Gil Soares estava previsto para dirigir este último, mas desvinculou-se do IEB, deixando-o cargo de Muniz. O projeto fazia parte de um quadro maior de pesquisas interdisciplinares sobre a comunidade de Santa Brígida e contou adicionalmente com o apoio do CERU (Centro de Estudos Rurais e Urbanos) e da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Outro filme realizado por Muniz para o IEB foi Projeto Ilha Grande (1967), sobre a vida marinha na Ilha Grande, Rio de Janeiro, com patrocínio compartilhado entre o IEB, o Departamento de Zoologia da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo e a FAPESP. Conforme explica Jennifer Jane Serra (2013), a primeira viagem para o Nordeste que esteve na base do projeto A condição brasileira foi realizada ainda em 1967 com apoio do IEB a partir de proposta elaborada em 1966 por Geraldo Sarno sob o título “Nordeste - proposta de documentação”. Dessa primeira viagem foram estabelecidos contatos com personalidades locais e filmados três documentários: Jornal do Sertão, Os imaginários e Vitalino Lampião, todos de Sarno. Em 1968, entretanto, o IEB não deu prosseguimento ao apoio e a próxima viagem ao Nordeste e os demais filmes de A condição brasileira foram realizados com recursos da produtora de Farkas, Thomaz Farkas, Documentários Cinema e Televisão, e da produtora de Sarno, Saruê Filmes Ltda.

303 Cf. Simis (2006, p.13).

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Marcius Freire (2009) defende que os filmes da “Caravana Farkas” (sua análise debruça-se mais especificamente sobre os documentários de A condição brasileira) podem ser classificados na categoria filme etnográfico/didático, guardando mais proximidade com a “etnocinematografia” do que com as matrizes do “cinema direto” e do “cinema verdade” com os quais costumam ser identificados. Para Freire (2009), os realizadores dos filmes de A condição brasileira não adotaram a posição de “mosca na parede” que caracteriza o cinema direto, com os realizadores buscando passar despercebidos, e também não adotaram a posição de “provocadores” que caracteriza o cinema verdade, a postura deles se aproxima sobretudo daquela do antropólogo, que busca uma “descrição etnográfica” de manifestações culturais nordestinas, sejam elas por meio de uma técnica material, de um ritual ou de uma “técnica do corpo” no sentido maussiano. Diversos trabalhos já foram realizados sobre a produção Farkas – Alfredo D´almeida (2003), Clara Ramos (2007), Fernão Ramos (2004, 2008), Gilberto Sobrinho (2008), Marcius Freire (2009), Meize Lucas (2005, 2006) – e não é nosso intento adentrar nessa discussão. Mas é importante assinalar o inegável intercâmbio estabelecido entre essa produção e o meio acadêmico, que se expressa na relação com o IEB e se materializa, por exemplo, nos textos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz escritos para acompanhar os filmes de A condição brasileira. 304 O diálogo com o discurso acadêmico e, com a sociologia, em particular, entretanto, tem início já na primeira fase da produção Farkas, reunida em Brasil Verdade.Em Memória do cangaço (1964) a relação é de contestação a certo discurso científico no contraponto que se estabelece entre o depoimento do professor Estácio de Lima, Catedrático de Medicina Legal da Universidade da Bahia e Diretor do Museu de Antropologia (onde se encontram as cabeças dos cangaceiros degolados), que tece explicações eugenistas para o fenômeno do cangaço, e os depoimentos e imagens que expõem as condições econômicas e sociais do nordeste, ou seja, a abordagem sociológica se sobrepõe ao discurso biologizante. Viramundo (1964), por sua vez, declaradamente contou com a colaboração dos sociólogos Octávio Ianni, Juarez Brandão Lopes e Cândido Procópio F. de Camargo, para a elaboração dos argumentos em torno da condição dos migrantes nordestinos em São Paulo: as causas da migração e as difíceis condições de vida, o desemprego, a alienação na religião ou a incorporação da mentalidade pequeno-burguesa para aqueles que se estabilizam como mão-de-obra com alguma qualificação. Subterrâneos do futebol (1965), igualmente, nos mostra um argumento sociológico sobre o fenômeno do futebol. Como vimos, o filme ressalta de um lado, a exploração dos esportistas e, de outro, a alienação dos

304 Cf. Serra, 2013, p.124

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espectadores, também trabalhadores, que buscam no espetáculo a evasão do cotidiano de trabalho alienante. Em entrevista à autora, Capovilla (2012), que cursou Filosofia na USP, esclareceu que durante sua graduação não teve contato com o pensamento de Adorno e da Escola de Frankfurt e que a abordagem foi mais “intuitiva”. De todo modo, o conjunto da produção Farkas tem proximidade com aquilo que Jean-Claude Bernardet (2003) classificou de “modelo sociológico” no qual as vozes entrevistadas e as imagens são operacionalizadas para sustentação de fórmulas generalizantes de uma teoria pré-concebida, expressada em narração over que ordena e dá sentido ao apresentado. O caráter etnográfico e/ou sociológico desses filmes é inquestionável e ele está ligado não só à atmosfera geral da época de busca pelo Brasil e pelo “povo brasileiro”, no que se aproxima das matrizes do Cinema Novo, como analisou Ridenti (2000), mas deriva também dos vínculos diretos estabelecidos com o meio acadêmico, o que é um elemento específico do documentário paulista, concretizando-se na parceria com o IEB. De acordo com Jennifer Serra (2013), os cineastas se integravam ativamente às atividades do IEB, participando de cursos como alunos ou convidados e contribuindo com textos para a revista do instituto. Ramalho Jr., por exemplo, realizou Antologia do cangaço (1966), uma compilação de filmes brasileiros encomendada por Paulo Emilio Salles Gomes como material didático para um curso de extensão promovido pelo IEB, “O cangaço na cultura e na realidade brasileira”, e elaborou, ainda para o referido curso, um texto de teor acadêmico em parceria com Lucila Ribeiro Bernardet: “Cangaço – da vontade de se sentir enquadrado”, publicado recentemente por Maria do Rosário Caetano em Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro (2005). Além disso, seu documentário Mal de chagas (1966), como mencionado, contou com apoio do IEB que custeou negativos e propiciou o empréstimo de equipamentos via reitoria da USP. Outra relação estabelecida com o meio acadêmico consistiu na assessoria do professor de literatura Cavalcanti Proença, especialista em cultura popular oral, às viagens da Caravana Farkas. De acordo com Clara Ramos (2007), o professor indicou nomes de pessoas a entrevistar, como os cantadores Severino Pinto e Lourival Batista, documentados em A cantoria (Geraldo Sarno, 1969), sendo este filme dedicado a Proença. A aproximação com o meio acadêmico, a influência de Fernando Birri, a iniciativa de Farkas e o menor custo de produção são fatores que ajudam a explicar por que floresceu em São Paulo uma verve documentária forte que conquistou, inclusive, projeção no exterior, não alcançada pelas ficções paulistas em mesmo patamar 305. A propósito, Sérgio Muniz

305 Tratamos da recepção do cinema brasileiro dos anos 1960 na França em Leme (2015).

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aparece em publicações estrangeiras como representante da face paulista e documentária do Cinema Novo. É curiosa por exemplo a entrevista dupla com Carlos Diegues e Sérgio Muniz publicada na revista de cinema francesa Image et son. Na introdução aos entrevistados, ambos entendidos como representantes do “cinema novo”, o crítico Louis Marcorelles (1968) contrapõe o Rio e seu “romantismo” frente à São Paulo e sua “seriedade”, de um lado a ficção, de outro o documentário. Sérgio Muniz figurou em diversos festivais, eventos e organizações internacionais como representante da produção Farkas e IEB ou apresentando seus próprios filmes: Festival du court métrage de Tours (1966), cidade francesa; Festival del Popoli em Florença (1966); reunião anual do CIFES (Comité Internationale du Film Etnographique et Sociologique), ligado ao Musée de l´Homme e dirigido pelo Jean Rouch. 306 Em parceria com Vladimir Herzog, escreveu artigo sobre documentário brasileiro - Il documentario sociale brasiliano: sue origini e sue tendenze307 - apresentado no XII Colloquio Internazionale del Film Etnografico e Sociologico de Florença (1966). Neste festival, conforme o cineasta relata em carta a Viany308, os filmes do primeiro ciclo Farkas foram recebidos com entusiasmo pelos antropólogos franceses, Jean Rouch e Edgar Morin e pelo sociólogo italiano Alessandro Pizzorno. Registra-se ainda sua participação no Festival Internacional de Cine de Viña del Mar de 1967309, no Festival de Leipzig de 1967, ocasião na qual hospedou-se com o amigo, Joris Ivens, documentarista holandês310e no Festival de Leipzig de 1969, sobre o qual publicou suas impressões311. Percebe-se, por esses dados e pelas informações colhidas em publicações estrangeiras, que Sérgio Muniz teve uma inserção no meio cinematográfico internacional comparável a que tiveram os cinemanovistas, sendo citado em diversas publicações e tendo concedido várias entrevistas individuais ou coletivas312, diferentemente de seus colegas paulistas, até mesmo Roberto Santos e Luiz Sérgio Person cujos filmes, A hora e a vez de Augusto Matraga e São Paulo, Sociedade Anônima, tiveram alguma repercussão internacional mas os realizadores não313. Além da inserção europeia, Muniz

306 Cf. Respostas de Muniz ao questionário para ficha cadastral elaborado para a “Biblioteca Básica de Cinema”, organizada por Alex Viany. (Muniz, [196-]). 307 Cf. Herzog e Muniz (1966). 308 Cf. Muniz (1966). 309 Cf. Entretiens (1967). 310 Cf Muniz (1967b). 311 Cf. Muniz (1969). 312 Ver, entre outras publicações, Entretiens (1967), Marcorelles (1968), Hennebelle (1972), Grellier (1973), Cinéma (1980). 313 Em nosso estágio de pesquisa em Paris (Processo BEPE/FAPES 2013/10883-7), buscamos levantar as referências sobre os “paulistas do entre-lugar” e seus filmes em publicações estrangeiras. Essas referências são escassas e não encontramos nenhuma entrevista concedida por Roberto Santos e Luiz Sérgio Person a

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mantinha relações com Cuba, incluindo aí a amizade com o documentarista Santiago Alvarez e as conexões com o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (ICAIC). Como mencionado, João Batista de Andrade (2013c) declara que Muniz foi o responsável pelo envio das filmagens de passeatas brasileiras realizadas por ele e Ramalho para Cuba nos anos 1960, mesmo destino que, mais tarde, Muniz daria aos negativos de seu filme Você também pode dar um presunto legal (1971) que foi editado na ilha comunista. Os contatos com Cuba transparecem também no uso de canções dos músicos cubanos Silvio Rodríguez e Pablo Milanés, conhecidos compositores de músicas engajadas, em seu filme De raízes e rezas entre outros (1972). E, nos anos 1980, período que ultrapassa nosso recorte, Muniz foi ainda diretor da Escola Internacional de Cine y TV (EICTV), importante centro de formação audiovisual de Cuba. Membro da Associação Internacional de Documentaristas (AID), Muniz tem sua trajetória inerentemente ligada ao documentário. Em entrevista de 1966, ele afirma sua posição: […] o documentário é o meio que nos possibilitará ver, entender e explicar nossa realidade. Mas sempre fazendo cinema e não simplesmente, por exemplo, uma transposição mecânica, e técnica de um problema sociológico ou histórico. […] Faço cinema para que, apesar das minhas limitações e das limitações do cinema frente à nossa realidade, essa mesma realidade possa ser modificada ou pelo menos influenciada. E se isso for impossível, me bastará, até quando não sei, conhecer e ser senhor da realidade. (MUNIZ apud ALENCAR 1966c).

Nota-se nos documentários do cineasta, talvez mais do que em outros que compõem a produção subsidiada por Farkas, características de inventividade e mesmo poesia que levam os filmes para além da “transposição mecânica e técnica de um problema sociológico ou histórico”, como ele pretendia. Seus filmes, por vezes, são marcados por um sentido politicamente engajado ou sociologicamente argumentativo, contudo, essa argumentação se constrói de maneira inventiva, com larga utilização da montagem, colagem e música, operando-se diferentes articulações entre e imagem e som, como se vê em Roda & outras estórias (1965) que dialoga com músicas de Gilberto Gil e Beste (1970), no qual imagens da construção de um instrumento de caça primitivo por um homem nordestino articulam-se com o som de noticiário sobre a chegada do homem à lua. Você pode dar um presunto legal (1971) e De raízes e rezas entre outros (1972) aos quais voltaremos no tópico seguinte, são também construídos sobre articulações desse tipo, à maneira de colagem. Em verbete escrito por Jean-Claude Bernardet encontrado no Acervo Alex Viany publicações francesas. Capovilla, por sua vez, concedeu entrevistas sobre seu O profeta da fome para a revista italiana Bianco e Nero e para a venezuelana Cine al Dia. (Cf. Bernardini, 1970 e Capovilla et. al. 1971).

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está registrado que Sérgio Muniz tinha em meados dos anos 1960, projeto de um longa- metragem a partir do clássico da literatura de cordel A chegada de Lampião no inferno, dentro de sua concepção de Cinema de Cordel. 314 A Viany, Muniz (1967a, p.2) escreve na mesma época: “Creio exato dizer que sou mais inclinado ao documentário e curtas que ao longa (se bem que longas estejam rondando minha cabeça, mas será uma forma de poder continuar a voltar ao documentário com dinheiro possível que eu venha auferir num longa)” . Em entrevista recente à autora (2013), Muniz afirmou ter tido alguns projetos de longa-metragem de ficção, mas que se dedicou mais firmemente ao documentário. Sobre A chegada de Lampião no inferno, informa que chegou a fazer contatos com o ator Joel Barcellos mas que o projeto não foi adiante. Desse modo, observa-se que, ainda que a inclinação primeira do cineasta tenha sido o documentário, ele também vislumbrava a ficção, sendo possível supor que se as condições de produção de São Paulo tivessem sido favoráveis ele poderia ter se aventurado por essa modalidade, realizando por exemplo, A chegada de Lampião no inferno que, na sua adaptação, traria o famoso cangaceiro ingressando na infernal cidade grande. Podemos assinalar que à época, seu colega de Caravana Farkas, Paulo Gil Soares desistiu do trabalho no IEB para realizar seu longa-metragem de ficção, também inspirado na linguagem da literatura de cordel, Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-Traz (1967), sendo o filme produzido no Rio de Janeiro por um dos produtores do Cinema Novo, Jarbas Barbosa. Antes de passarmos para a abordagem da trajetória de Maurice Capovilla, salientamos a importância da produção documentária ligada a Farkas para o núcleo de cineastas paulistas estudado. À exceção de Person, todos os demais tiveram relação com essa produção, mesmo que lateral. Roberto Santos, por exemplo, colaborou na montagem de Subterrâneos do futebol (1965) de Capovilla, filme em que Ramalho Jr. e Batista foram assistentes. Renato Tapajós que, como Sérgio Muniz, seguiu carreira na área do documentário, explica o impacto do núcleo Farkas em sua formação, embora ele não tenha integrado formalmente as equipes:

Mas foi com esse pessoal envolvido na produção do Thomaz Farkas que tomei contato mais direto com a realização de documentários efetivamente profissionais, com equipamentos essenciais ao cinema verdade (Câmaras Éclair 16mm e gravadores Nagra, capazes de sincronismo que só cheguei a usar depois de sair da cadeia, nos filmes que realizei na década de 70). E foi também com esse pessoal que conheci o Fernando Birri, vi e discuti Tire Dié (Fernando Birri, 1960) e me convenci de vez que meu negocio era o documentário, como forma de expressão, como forma de arte e como instrumento de participação política. (TAPAJÓS, 2015).

314 Cf. Bernardet [196-].

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Maurice Carlos Capovilla (1936- ) também teve sua formação fortemente influenciada pelo documentário, tendo sido, conforme mencionado, aluno de Fernando Birri na Escola de Santa Fé e integrado o primeiro grupo de produção sob os auspícios de Farkas.

Nascido em Valinhos, interior de São Paulo, de família de imigrantes italianos, avô ferroviário anarquista, estudou em Campinas na adolescência e migrou, em 1957, para a capital, onde ingressou na Faculdade de Filosofia da USP em 1958. Em 1960, junto com o amigo de faculdade Vladimir Herzog ingressa por meio de concurso, no jornal O Estado de S. Paulo, trabalhando como jornalista, inicialmente nas colunas policiais. Trabalhou no jornal até 1961 quando trocou o emprego estável pelo trabalho na Cinemateca Brasileira, pela “metade do salário”, segundo o próprio (Capovilla apud Mattos, 2006, p.43). Colega de Ensino Médio de Gustavo Dahl, participara de cineclubes e frequentara as exibições da Cinemateca antes de seu ingresso na instituição para substituir o amigo que partia para um estágio o Centro Experimentale de Cinematografia. No departamento de difusão cultural da Cinemateca, sua função envolvia estimular a formação de cineclubes pelo Brasil, acompanhando as projeções do acervo volante e participando de discussões em universidades e outros grupos. A experiência junto à Cinemateca lhe propiciou contato com centenas de filmes de cinematografias diversas e o inseriu definitivamente no círculo do cinema, sendo considerada por ele como decisiva e formadora, conforme mencionamos no capítulo 1. Outro elemento importante em sua formação foram, segundo ele, os cursos de Antonio Candido (“Teoria Geral da Literatura”) e Gilda de Mello e Souza (“Estética”) , que acompanhou em paralelo à faculdade de Filosofia. No curso de Gilda tomou contato com a obra de Mário de Andrade, tendo inclusive realizado um trabalho prático de inventário das cartas do escritor315, cuja influência ressalta: “não é apenas a literatura; é todo um mundo da filosofia de vida e, basicamente, a música, a cultura popular. Ele foi o homem que abriu caminhos para todas essas áreas que estavam ocultas. Para mim foi ótimo”. (CAPOVILLA ,2013b, p. 19). Já para a conclusão do curso de Candido, o futuro cineasta elaborou “uma análise do lúdico como princípio estrutural da novela O recado do morro, de Guimarães Rosa”, publicada posteriormente na Revista do Livro em 1964. (Cf. Mattos, 2006, p.40). Na mesma época, em 1961, Capovilla ingressou no Partido Comunista Brasileiro e foi um dos fundadores do núcleo paulista do CPC (Centro Popular de Cultura) que, segundo relata a Barcellos (1994) e à autora (Capovilla, 2012), estava mais diretamente ligado ao PCB do que o CPC carioca, sendo as reuniões realizadas na sede da Editora Brasiliense, dirigida

315 Cf. Mattos, 2006, p.37.

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por Caio Graco, filho de Caio Prado Jr.. Para a Revista Brasiliense Maurice Capovilla escreveu diversos artigos no início dos anos 1960, inclusive sobre o nascente Cinema Novo316. No CPC paulista estavam envolvidos, no âmbito do teatro, nomes do Teatro de Arena como Gianfrancesco Guarnieri e Juca de Oliveira e no âmbito do cinema Capovilla, Jean-Claude Bernardet e Rudá de Andrade, ligados simultaneamente à Cinemateca. As primeiras atuações do grupo de cinema ocorreram com a iniciativa de realização de um cineclube no Sindicato da Construção Civil sediado no bairro da Liberdade. O objetivo era exibir e debater filmes com propósito de conscientização popular. Contando com o acervo da Cinemateca, exibiam filmes como O Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, sem grande interesse dos operários que só se motivaram pelo cineclube quando da exibição documentário Zuiderzee, de Joris Ivens, que gerou identificação ao trazer imagens de operários trabalhando na construção de uma barragem na Holanda. A partir dessa primeira adesão a comunicação com os operários foi evoluindo inclusive para a participação direta de Capovilla e Rudá na greve geral de 1962317 e para a realização de União, filme sobre as condições de trabalho na construção civil e que abordava a importância do sindicato. Este, o primeiro (e único) filme do núcleo paulista do CPC, assim como seu congênere Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1962-1964/1981-1984318), o filme inacabado do CPC carioca, tinha como atores os trabalhadores encenando os próprios papéis. Com concepções semelhantes acerca da função político-pedagógica do cinema, os dois filmes se diferenciam pelo fato de o primeiro se voltar aos operários ligados ao sindicato da construção civil em São Paulo e o segundo às lutas camponesas do nordeste. União foi financiado pelo próprio Sindicato e contou com a participação dos operários não só como atores (o único não-operário era o jornalista João Marchner que, por seu tipo físico avantajado, em moldes “eisensteinianos”, foi escolhido para interpretar o patrão), mas, inclusive, no trabalho de formulação dos diálogos e concepção das cenas. Segundo Capovilla “eles praticamente dirigiram o filme. Eu não dirigi, apenas

316 Cf., por exemplo, Capovilla (1962a, 1962b, 1962c, 1964). 317 Mattos marca o ano de 1963, mas considerando que o filme União foi realizado em 1962, ficamos com a data assinalada por Capovilla a Barcellos, 1994 p.343). Segundo Capovilla, o episódio em que, junto com outros operários sindicalizados, ele e Rudá conseguiram a adesão para a greve de mais quarenta operários, atuando diretamente para a paralisação de obras na construção civil, foi um fator central na conquista da confiança e do respeito dos trabalhadores: “A partir daquele instante, a nossa fama dentro do Sindicato foi fantástica. Eles passaram a nos ver como duas figuras iguais a eles, e não mais como aqueles caras que só iam até lá passar os filmes.” (CAPOVILLA in BARCELLOS, 1994, p.344). 318 O projeto de Cabra marcado para morrer, iniciado antes do golpe civil-militar de 1964 era abordar a trajetória e o assassinato de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, tendo como atores camponeses membros da Liga e a esposa de João Pedro, Elizabeth Teixeira. Com a instauração do regime militar, as filmagens foram interrompidas e somente em 1981, com a distensão do regime, o cineasta Eduardo Coutinho retoma o projeto, vai ao encontro dos participantes do filme interrompido, e constrói um novo filme. A este filme já foram dedicadas diversas análises, com diferentes enfoques, tais como as de Bernardet (2003); de Menezes (1995) e de Tolentino (2001, p.199-230).

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organizei. Eles é que inventaram o filme”. (CAPOVILLA in BARCELLOS, 1994, p.344). Rodado aos finais de semana no canteiro de obras do Edifício Quinta Avenida, na Avenida Paulista (graças ao entendimento com um dos arquitetos da obra, Pedro Paulo de Mello Saraiva, ligado ao PCB), o filme foi montado mas não sonorizado e ficou inconcluso, em decorrência do fim do núcleo paulista do CPC em meados de 1963319, tendo suas cópias desaparecido. Ainda em 1962, Capovilla realiza o curta-metragem Meninos do Tietê, com patrocínio de Victor Cunha Rego, diplomata e político português exilado do regime salazarista, posteriormente um dos fundadores do Partido Socialista Português, que se tornou amigo do cineasta quando ambos trabalhavam no jornal O Estado de S.Paulo320. Sobre meninos moradores de favela às margens do Rio Tietê, o filme de Capovilla é por vezes tido como uma derivação de Tire dié (1960), do argentino Fernando Birri, que retrata meninos que pedem esmola às margens de uma ferrovia.321 Capovilla (em Mattos, 2006, p.54-55), porém, nega a inspiração, explicando que só tomou contato com esse filme mais tarde, quando Birri esteve em São Paulo. O cineasta paulista, entretanto, não esconde a admiração pela obra do cineasta argentino, o que o levou, em meados de 1963, a um estágio na Escola Documental de Santa Fé, fundada por Birri. De volta ao Brasil, Capovilla retorna ao jornalismo no Última Hora, jornal dirigido por Samuel Wainer e conhecido por ter sido o único da grande imprensa a se opor ao golpe civil-militar de 1964. Na ocasião do golpe a sede do jornal foi invadida e sua redação destruída. Wainer exilou-se e Capovilla fugiu para o Guarujá, abrigando-se com a família de Vladimir Herzog. Thomaz Farkas tinha casa na mesma cidade e foi então que começaram os encontros para a formação do grupo que produziu os documentários da série Brasil verdade, num momento em que todos eles buscavam sair dos grandes centros, afastando-se do foco da repressão política e, ao mesmo tempo, em busca de trabalho. 322 Para a série, Capovilla realiza Subterrâneos do futebol, conforme já mencionado. Depois deste filme, que aborda de maneira crítica esse esporte de massa, o cineasta realiza, em outras bases, Esportes no Brasil (1965) sob encomenda do Itamaraty. De acordo com Capovilla (em Mattos, 2006, p.84-85), o convite partiu de David Neves – cineasta

319 De acordo com Capovilla (2012, 2013b), setores do PCB não viam com muita simpatia o trabalho cultural que eles realizavam. Assim, em certo momento as divergências se acirraram e Capovilla, junto com outros membros do CPC, como Guarnieri e Juca de Oliveira, deixou o partido e o filme não pôde ser terminado. 320 Capovilla atuou como jornalista em O Estado de S.Paulo de 1960 a 1961. Trabalhou também no Última Hora entre 1963 e 1964 e escreveu para outras publicações, como a Revista Brasiliense. 321 No verbete Capovilla da Enciclopédia do cinema brasileiro, afirma-se que Meninos do Tietê foi “diretamente inspirado” em Tire dié. O catálogo de mostra sobre a obra de Capovilla também assinala a suposta inspiração. Cf. RAMOS; MIRANDA, 1997 (Orgs.) e PAPA, Dolores (Org.)., 2006. 322 Cf. Capovilla (2013b, p.5).

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do núcleo do Cinema Novo – sendo utilizada a empresa produtora de Luiz Sérgio Person para o repasse das verbas. Em entrevista recente com o produtor de São Paulo S.A, Renato Magalhães Gouvea, associado de Person na Sòcine Cinematográfica Ltda., Ninho Moraes (2010) colheu informações adicionais sobre essa produção. Segundo Gouvea (em Moraes, 2010, p.397-398), a encomenda surgiu depois que ele queixou-se pessoalmente com o Diretor Cultural do Itamaraty sobre o atraso para a remessa da cópia de São Paulo S.A para a Prima Mostra Internazionale del Nuovo Cinema em Pesaro. Como forma de compensação pelo erro que quase impediu a participação do filme de Person naquele festival, o diretor do Itamaraty propôs então o financiamento de Esportes no Brasil, documentário que Person não quis dirigir, ficando, então, a cargo de Capovilla. Ainda de acordo com Gouvea, foi com recursos conseguidos para este filme que ele e Person puderam concluir o pagamento dos acionistas de São Paulo S.A, filme que, embora tenha tido relativo sucesso, inclusive no exterior, não rendeu lucros, prejudicado por problemas na distribuição323. Realizado sob encomenda com o intuito de apresentar um panorama das atividades esportivas no Brasil para ser distribuído às embaixadas brasileiras no exterior, Esportes no Brasil é um filme “chapa-branca”, como assinalou Capovilla, observando os desvios e contradições de sua trajetória: “Lá estava eu, no espaço de um ano, passando de um ensaio crítico para um filme de propaganda sobre os esportes” (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.85). Gouvea, entretanto, vê no filme um conteúdo crítico: “ele mostra como era impossível, pelas péssimas condições sociais, o Brasil ter atletas – com exceção da Maria Esther Bueno que era da alta sociedade”. (GOUVEA apud MORAES, 2010, p.397-398).324 Em 1965 Capovilla fez a assistência de dublagem em A hora e a vez de Augusto Matraga (1966) de Roberto Santos, com quem estabelecera uma relação de amizade e parceria desde a colaboração de Santos na montagem de Subterrâneos do futebol. Em 1966, foi assistente do veterano no programa televisivo Disparada, como já mencionado e em 1967, realizou seu primeiro longa-metragem de ficção, Bebel, garota-propaganda, no qual Roberto Santos participou da produção – via CPS Produções Cinematográficas, fundada por Capovilla, Luis Carlos Pires e Roberto Santos – do roteiro e ainda fez uma “ponta” como ator, interpretando a si mesmo. Bebel surge num contexto de discussões sobre a necessidade de ampliar o público do Cinema Novo, realizando-se em paralelo com Garota de Ipanema (1967), de Leon Hirszman. Na mesma época, Roberto Santos volta-se para filmes urbanos

323 Gouvea relata que eles tiveram problemas com a Columbia Pictures a quem entregaram a distribuição do filme. Cf. Gouvea em Moraes, 2010, p.395-397. 324 Não há cópias disponíveis de Esportes no Brasil para que pudéssemos assistir e realizar uma análise mais embasada.

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com apelo de mercado: o terceiro episódio de As cariocas (1966) e O homem nu (1967), citados anteriormente. O contexto de meados dos anos 1960 até o AI-5, em dezembro de 1968, foi época de efervescência e esperança para o cinema paulista. Como vimos no capítulo 1.4, várias reportagens, inclusive da imprensa carioca, foram feitas sobre o “renascimento” do cinema paulista; vários filmes estavam sendo realizados e outros gestados; novas produtoras emergiam, como a CPS e a Tecla, além da distribuidora RPI. Em 1966, quando Bebel era ainda um projeto, Capovilla expressou suas perspectivas de que São Paulo se tornasse um eixo cinematográfico central, até mesmo superando o Rio de Janeiro:

Estamos achando que o cinema brasileiro vai se concentrar em São Paulo; o cinema carioca está em decadência porque os financiadores tradicionais do cinema que eram o Banco do Estado, da Guanabara e Banco Nacional de Minas Gerais através da comissão... CAIC, que era um órgão do governo Carlos Lacerda, praticamente este ano não vai dar nenhum financiamento de importância para o cinema, o que ocasionará uma paralisação de produção no Rio. Enquanto essa crise se estabelece no Rio, em São Paulo as coisas se abrem. São Paulo S.A. teve grande sucesso, enorme público. Há interesses que estão se concentrando em Sao Paulo, dos bancos mineiros, estabeleceu-se com Matraga, o eixo Sao Paulo-Minas; é um eixo que tem muitas possibilidades. O dinheiro do Brasil está em Minas e lá não há condições de fazer cinema porque não há gente etc, daí o dinheiro todo se baldear para São Paulo; e como aqui já existe um grande grupo de jovens em condições de fazer um filme de longa metragem, eu acredito que vai se abrir uma grande perspectiva. Pelo menos uns cinco filmes novos, urbanos, que são a grande abertura de hoje e de custo barato. Já não vamos mais para o campo. Devemos colocar os problemas paulistas nos nossos filmes, os problemas que nós vivemos. (CAPOVILLA, 1966, p.4).

O uso da primeira pessoa do plural indica que as expectativas eram compartilhadas por outros paulistas. Na época, como lembra Ramalho325, quase todo o grupo estava próximo do escritor Ignácio de Loyola Brandão (1936- ) e acalentava pretensões de adaptar contos do recém-lançado livro Depois do sol (2005 [1965]) que retratava o universo da noite paulistana. Loyola era colega de Capovilla no Última Hora e escrevia a coluna Cine- ronda que tratava dos lançamentos e acontecimentos do meio cinematográfico. Circulava por ambientes comuns aos cineastas, como o restaurante Gigetto e o João Sebastião Bar, e acompanhara de perto e noticiara as movimentações em torno da produção de São Paulo S.A. (Luiz Sérgio Person, 1965), tendo escrito críticas elogiosas sobre este filme e sobre A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1966)326. Na coluna Cine-ronda chegou a noticiar a

325 Cf. Sabadin (2009, p.37-38). 326 Cf Brandão (1964-1966) e Brandão (1966), recortes do acervo do Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira.

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adaptação de dois contos de seu Depois do sol por Roberto Santos e Luiz Sérgio Person327. Já Capovilla planejava adaptar para o cinema outro conto do escritor, Pega Ele, Silêncio328, sobre um boxeador, publicado em outro livro. Este projeto não vingou, mas, posteriormente, Capovilla realizou a adaptação do romance Bebel que a cidade comeu, ao qual Loyola permitiu-lhe acesso aos originais antes de sua publicação em livro. Futuramente, em 1970, Roberto Santos concretizaria a adaptação do conto Retrato do Jovem Brigador (de Depois do sol) para compor o longa Vozes do medo, ao qual voltaremos no próximo tópico. Dessa fase, em meados dos anos 1960, marcada pela temática urbana e pelo encontro com o escritor Loyola Brandão, concretizam-se Bebel, garota-propaganda (1967), de Capovilla e Anuska, manequim e mulher (1968), de Ramalho Jr., baseado essencialmente no conto Ascensão ao mundo de Annuska de Depois do Sol e com inspiração em elementos de outros contos do autor como Diálogo com Adriana, do mesmo livro, como mencionado. João Batista de Andrade, embora na época tivesse como projeto a realização de seu Orizópolis, filme que se afastaria do universo urbano paulistano para tratar do populismo no interior de Minas, estava envolvido nesses projetos dos colegas, tendo sido gerente de produção de Bebel e produtor executivo de Anuska. Renato Tapajós, por sua vez, tinha seu próprio projeto de longa- metragem de ficção urbano, no qual, ao invés de focalizar o universo reificado da indústria cultural como faziam seus pares, voltava-se para o movimento estudantil apresentado como instrumento de transformação social: “felizmente não deu certo. Era muito assim... realismo socialista (risos), tipo o movimento estudantil resolvendo todos os problemas, emocionais, psicológicos, de relacionamentos etc” (Tapajós, 2015). O filme, segundo o cineasta, tinha o roteiro pronto e começou a ter a produção organizada, com convites para definição da atriz protagonista e levantamento de negativos, mas foi abortado em decorrência do adensamento de seu envolvimento político em 1968, com vivência na clandestinidade e subsequente prisão. Seria mais um filme paulista com figura central feminina encabeçando o título, Lígia (1967), que faria par com Sandra, Sandra (1968), de José Marreco, igualmente em torno de moça militante do movimento estudantil. É sintomático do contexto sócio-histórico que os filmes de Tapajós e Marreco, com seus universos politizados, tenham se perdido e somente tenhamos ficado com os universos reificados retratados em Bebel, Anuska e mais adiante em Cordélia, Cordélia (1971), mulheres que se juntam a Marlene Cardoso do episódio de Roberto Santos

327 Cf. BRANDÃO, Ignácio de Loyola. “Indicações, bilheteria e outras por aí” .[196-]. In: BRANDÃO, Ignacio de Loyola. Coleção de recortes de jornais de sua coluna no jornal Ultima Hora. Organizada por Cinemateca Brasileira. São Paulo, 1964-1966. 92 recortes. 328 Cf. Mattos, 2006, p.86. Conforme Brandão [196-] as adaptações de Capovilla, Santos e Person seriam episódios de um mesmo longa.

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para As cariocas, não titulado, que bem poderia levar seu nome. Anos mais tarde, a atriz Bete Mendes que interpretara a estudante “revolucionária” no filme inconcluso de Marreco, viria a interpretar mais uma das mulheres absorvidas pela lógica reificante da indústria cultural em Os amantes da chuva (Roberto Santos, 1980). Lígia e Sandra, jamais chegaram às telas e somente uma década depois, no contexto da abertura política, estrearia Paula, a estudante guerrilheira do filme de Ramalho Jr., Paula - a história de uma subversiva (1979), lançado contemporaneamente a Os amantes da chuva e fracasso de bilheteria. Quanto aos negativos adquiridos para o filme Lígia, Tapajós nos relata que eles foram para as mãos de Rogério Sganzerla que com ele realizou outro filme paulista com figura central feminina: A mulher de todos (1969). Mas este já pertence a uma outra configuração estético-cultural. Passemos ao próximo tópico.

5.2 Flerte com o Cinema Marginal e com o tropicalismo, guerrilha, docência e a retomada do cinema (1969-1981)

“O ano de 69 me pegou num destempero total. Eu nem caminhara para as drogas (que nunca aceitei) e nem para a guerrilha.” (ANDRADE apud CAETANO, 2004, p.132). Permanecendo na linha de resistência pacífica do PCB, João Batista de Andrade não aderira à luta armada contra o regime militar329, assim como não se identificava plenamente com as ideias da contracultura. Integrou, porém, o “movimento” do Cinema Marginal, não apenas com dois filmes – O filho da televisão, episódio de Em cada coração um punhal (1969) e Gamal, o delírio do sexo (1969) – mas também com textos e participações em filmes de colegas como vimos no capítulo 2.1. A identificação com as ideias do movimento, entretanto, é questionada pelo cineasta que avalia, com distanciamento:

A verdade é que eu não me dava bem com as idéias dos cineastas chamados de “marginais”. Suas preocupações não batiam com as minhas, não curtíamos o mesmo tipo de cinema. Eu continuava um defensor das idéias básicas do Cinema Novo e por isso sofria, tentando encontrar, em Gamal, a representação dessas raízes, sem perceber que, no fundo, o que o filme representava mesmo – e porque não? – era minha crise pessoal, a falta de perspectiva, o isolamento. (ANDRADE apud CAETANO, 2004, p.143).

Ainda que a reflexão seja realizada a posteriori e não anule os efetivos vínculos que Batista estabeleceu com o Cinema Marginal, é justo observar que seus dois filmes têm

329 Sobre posições políticas, programas e divergências entre as organizações políticas de oposição ao regime militar ver Gorender (1987) e Ridenti (1993).

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características diferenciadas de seus contemporâneos da Boca do Lixo, por exemplo, ao tratar da impotência do intelectual em Gamal, ao invés de focalizar figuras marginais como bandidos e prostitutas. Na verdade, o filme faz combinação dos dois polos nas figuras de dois personagens: o jornalista que vaga em desespero em vãs tentativas de racionalização e o “mendigo” que dá vazão irrefreada aos seus instintos. A crítica à televisão e à publicidade explícita em diálogos em O filho da televisão é, por sua vez, uma marca de didatismo político ausente na produção marginal. As proximidades estéticas dos dois filmes de Batista com o movimento, entretanto, são claras. O filho da televisão, como vimos no capítulo 4, adota atitudes de ironia, sarcasmo e “desbunde” caras ao Cinema Marginal, enquanto Gamal se aproxima da outra tendência do movimento, marcada pela linguagem agressiva, gritos e imagens abjetas. Os procedimentos de filmagem desses dois filmes também se relacionam com o quadro cultural da época, com incorporação do happening em cenas filmadas na rua e às pressas. Conforme explica o diretor (apud Caetano, 1983), Gamal foi filmado em onze dias e O filho da televisão em seis, num processo de filmagem que Fernando Peixoto, integrante do elenco de Gamal, denominou “guerrilha cinematográfica”, assim descrito por Batista:

Filmar em 69 era barra pesada. A nossa equipe chegou a ser presa na rua. A gente vivia sendo perseguido. Não se podia filmar uma rua. Então o que a gente fazia? Descia com os atores e com o [Jorge] Bodanzky, fotógrafo do filme, discutia tudo antes e dizia: “vai e filma”. Em um minuto a gente filmava uma sequência inteira na rua, que durava um minuto. Aí entrava no carro e partia para outra. […] Eu criava uma situação com os atores e o Bodanzky filmava aquilo como se fosse um documentário. Então, eu fabricava um documentário com os atores e o Bodanzky, como câmera, registrava isso. Foi uma invenção que marcou muito a nossa carreira: a dele e a minha. Nós inventamos juntos um processo que desembocou em dois trabalhos: o dele e o meu330. (ANDRADE apud CAETANO, 1983).

Na época, Batista mantinha proximidade com o Teatro Oficina – companhia da qual Fernando Peixoto fazia parte – tendo filmado a peça Gracias Señor (1972), de Zé Celso Martinez Corrêa, com o mesmo Jorge Bodanzky, de Gamal e O filho da televisão, como fotógrafo. À Renata Fortes (2007, p.216), o cineasta explica que frequentava o apartamento de Zé Celso e acompanhava as reuniões do grupo, tendo se afastado, posteriormente, por falta de maior identificação com as propostas. Um outro projeto dá mostras do envolvimento de Batista com a atmosfera contracultural da época: a parceria com João Silvério Trevisan na adaptação de Serafim Ponte Grande, romance de Oswald de Andrade, autor que é forte referência para o movimento

330 Bodanzky faria em 1974, em parceria com Orlando Senna, Iracema – uma transa amazônica que hibridiza códigos da ficção e do documentário, tendo entre os protagonista o mesmo Paulo César Pereio de Gamal.

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tropicalista. Conforme conta Trevisan em entrevista à autora:

Deve ter sido 1969. Com o pessoal da Tecla eu compartilhava sim algumas idéias heterodoxas, destoantes da linha do partidão: além de Tomu Ushida (“Juramento de Obediência”) e Francesco Rosi (“Bandido Giuliano”), mais politizados, havia sobretudo o “desvio” de Antonioni. Mas se discuti a algo próximo da vanguarda com alguém da Tecla, esse foi com o Batista – certamente durante um período de mais uma crise dele com o partido comunista, que abandonava e voltava. Tivemos longas conversas regadas a maconha, no meu apartamento, em torno de “Serafim Ponte Grande”, paixão mútua. Oswald de Andrade nos instigava de modo indescritível, revelado pelo “Rei da Vela” do teatro Oficina. Nós dois vibrávamos com o clima cáustico e cafajeste desse romance de Oswald. Queríamos fazer tudo artificial, o cenário inteiro de papel e o navio de papelão . A abordagem sarcástica e contra as regras tinha a ver com a angústia do Cinema Marginal, expressa à perfeição por Sganzerla, mais ou menos assim: “Quando não se pode fazer mais nada, a gente esculhamba.” Mas o projeto não deu em nada. Era apenas uma maneira de tentar sobreviver em meio às topadas com a direita e a esquerda ortodoxa do período. (TREVISAN, 2013, p.3).

Como se percebe pelas características anti-realistas e sarcásticas do projeto, bem como pelo clima relatado das reuniões, Batista esteve, ainda que por um curto período, bastante envolvido com o Cinema Marginal e com a atmosfera contracultural da época, lembrando ainda que ele foi o responsável pela montagem de Orgia ou o homem que deu cria (1970), de Trevisan. Posteriormente, entre 1970 e 1971, realiza em parceria com Jean-Claude Bernardet a série Panorama do Cinema Paulista para a Comissão Estadual de Cinema de São Paulo. Os três filmes que compõem a série, Paulicéia fantástica; Eterna Esperança e Vera Cruz fazem a abordagem da história do cinema paulista dos primórdios até o fim da Vera Cruz e, segundo o cineasta, representaram uma experiência importante de retorno à “racionalidade” perdida na fase “marginal”331. O processo se completa em 1971, quando, agraciado com o prêmio “Air France” de Diretor Revelação por Gamal, viaja para a Paris e reencontra na Europa amigos exilados, com os quais participa de discussões em círculos de esquerda. No ano seguinte ingressa na equipe do telejornal Hora da Notícia, trabalho que, conforme assinalamos no capítulo 2, é visto por ele como uma oportunidade de retomada da trajetória de cineasta com preocupações sócio-políticas, e proporciona o reencontro com Vladimir Herzog, um dos amigos de esquerda que, como relata o cineasta, rejeitaram veementemente Gamal332. Outra experiência importante na trajetória de Batista neste período é o ingresso, a convite de Rudá de Andrade, na docência da recém-fundada Escola de Comunicações Culturais (ECC), posterior Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, como professor de Realização Cinematográfica, atividade na qual trabalhou de 1969 a 1978. Nessa mesma

331 Cf. Caetano (2004, p.147-153). 332 Cf. Caetano (2004, p.139-144; 208).

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época ingressaram também como professores do curso de cinema na ECC, Maurice Capovilla e Roberto Santos, sendo que este já exercera o cargo de professor na Escola Superior de Cinema São Luís, ao lado de Person. Os filmes que Capovilla e Santos realizam na virada dos anos 1960 para o 1970, respectivamente O profeta da fome e Vozes do medo guardam relação com essa experiência docente assim como com o caldo cultural tropicalista e “marginal” da época. Capovilla e Santos têm como traço predominante de suas trajetórias um cinema “realista, crítico e popular”, para nos valermos das palavras que o primeiro gosta de utilizar para caracterizar o que lhe atraía no cinema do segundo, assim como no cinema de Fernando Birri e de Nelson Pereira dos Santos (Cf.MATTOS, 2006, p. 55 e 262). O profeta da fome, assim como Vozes do medo – ambos concebidos e realizados entre 1969 e 1970 – porém, se afastam consideravelmente dos preceitos de um “realismo crítico”, ao qual, em larga medida, ambos os cineastas retornam em filmes posteriores, como Um anjo mau (Roberto Santos, 1971) e O jogo da vida (Maurice Capovilla, 1976). Fragmentados e antinaturalistas333, O profeta da fome e Vozes do medo são filmes notadamente “desviantes” na trajetória de seus autores e bastante marcados pelo seu contexto de realização334. O caráter experimental e a vultosa variação estética que se evidenciam nos dois filmes podem ser atribuídos, ao menos em parte, às atividades de ambos os cineastas na docência na USP. Embora esses filmes não sejam propriamente “filmes-escola”, realizados no âmbito da universidade, eles contaram com ampla participação de alunos na composição da equipe de filmagem e produção, sendo concebidos num espírito de experimentação coletiva, exercitando variadas formas de aproximação do real. O profeta contou também com recursos técnicos da ECC como o empréstimo de uma câmera Arriflex 35mm dotada de “lente super-grande-angular”, recém- importada pela universidade335. Tanto o filme dirigido por Capovilla como o coordenado por Roberto Santos relacionaram-se também com o contexto de efervescência da Boca do Lixo paulistana, naquele momento em que se germinava o Cinema Marginal. Como já assinalamos, os dois

333 Aqui naturalismo cinematográfico. De acordo com Bernardet e Ramos (1988) e Xavier (1977), a estética naturalista, característica dos filmes de Hollywood e predominante no cinema em geral, conduz o espectador por meio de um uso específico dos elementos que compõem a linguagem cinematográfica, por exemplo: a câmera comporta-se como o olhar humano se comportaria; respeita-se a noção de continuidade; a montagem é invisível; a música indica os sentimentos a serem mobilizados; a interpretação dos atores é “natural”, criando um efeito “ilusionista” de realidade, conduzindo os espectadores ao longo da narrativa que lhes é apresentada. 334 Cabe mencionar que os cinemanovistas também realizaram filmes próximos da estética marginal na mesma época, como Câncer (Glauber Rocha, 1968) e América do sexo (Luiz Rosemberg Filho, Flávio Moreira da Costa, Rubens Maia, Leon Hirzsman, 1969), sendo elementos dessa estética encontrados também em diversos outros filmes do grupo. Sobre os entrecruzamentos entre Cinema Marginal e Cinema Novo ver Bernardet (2005). 335 Cf. Mattos, 2006, p.222.

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cineastas, de geração anterior à maioria dos jovens que comporiam esse novo movimento, estavam mais próximos ao “caldo de cultura” do Cinema Novo e da esquerda de matriz comunista, não afinada à contracultura. No entanto, circulavam pela Rua do Triumpho e adjacências e tiveram esses filmes encampados pelo autodenominado Cinema “do Lixão”, conforme se depreende, por exemplo, pela leitura dos textos da coluna de Jairo Ferreira, dedicada particularmente às produções da Boca, no jornal São Paulo Shimbun.336 Há mostras e textos recentes que também associam o filme de Capovilla e o de Roberto Santos ao Cinema Marginal, ainda que não sejam os mais referenciados como representativos do movimento.337 O profeta da fome, entretanto, é reconhecidamente338 inspirado no ensaio Estética da fome de Glauber Rocha (2004 [1965]) e é citado por Glauber como parte do “texto audiovisual” do Cinema Novo339. O profeta da fome é uma parábola sobre o subdesenvolvimento, inspirada, além de Glauber Rocha, em Franz Kafka (“Um artista da fome”, 1922). Protagonizado por José Mojica Marins, o Zé do Caixão, conforme mencionamos no capítulo 2, o filme trata da saga do faquir Ali Khan em “capítulos” com diferentes características estéticas, passando do realismo ao absurdo, do cordel à colagem de elementos da cultura de massa, aspectos em que se aproxima de Vozes do medo que, como vimos no capítulo 3, é uma coletânea díspar sobre a juventude urbana e o medo, filmada por 12 diferentes diretores, incluindo Maurice Capovilla e o coordenador do projeto, Roberto Santos. Esses dois filmes são interessantes por serem, talvez, os exemplos mais bem (ou mal) acabados de síntese de elementos do Cinema Novo e o do Cinema Marginal. Há neles, em diversas passagens, a presença do grotesco e do absurdo, um grau de deboche, de niilismo e de agressão ao “bom gosto”. Há, principalmente em O profeta, a representação do abjeto, de imagens repulsivas, de degradação, dilaceramento corporal e comportamento animalesco. Há igualmente, nos dois, a fragmentação narrativa, mais um elemento a identificá-los ao Cinema Marginal, tal como caracterizado por Fernão Ramos (1987b). Não obstante, está ausente a atitude de “curtição” e “avacalho” de que fala Ramos (1987b), isto é, a postura irônica e descompromissada, sem alvo ou perspectiva de ação. Ao contrário, em ambos os filmes está bastante presente o diagnóstico totalizante da

336 Cf. 3 filmes, 3 senhores filmes, por Carlos Reichenbach Filho, 29 de janeiro de 1970; Famintos, por Antônio Lima [sem data]; Noticiário da Boca do Lixo, 02 de abril de 1970; Lances do Lixão, 20 de agosto de 1970; Os melhores da Boca I, 24 de dezembro de 1970. In: FERREIRA (2006). 337 O profeta da fome integra a mostra Cinema Marginal e suas fronteiras. Cf. Puppo e Haddad (2001). Ismail Xavier (2006b, p.69-70) cita Vozes do medo entre os representantes do que denomina “Cinema do Lixo” e assinala O profeta da fome como um filme que se aproxima desse cinema. Fernão Ramos (1987b), por sua vez, não cita nenhum dos dois filmes em sua ampla filmografia sobre o Cinema Marginal. 338 Capovilla expressou isso em diversas ocasiões. Cf, por exemplo, Mattos, 2006, p.119. 339 Cf. Rocha, 1997, p.494.

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nação pela via da alegoria, com um certo “impulso pedagógico” que, conforme assinala Ismail Xavier (2012), marcou o Cinema Novo. As condições de produção desses filmes, entretanto, estão consideravelmente distantes das produções do Cinema Novo naquele momento. Grosso modo, o grupo radicado no Rio de Janeiro caminhava em direção à “alegoria-espetáculo”340 em grandes produções em cores, como Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr, 1968); O dragão da maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969); Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Os herdeiros (Cacá Diegues, 1970)341, viabilizadas pelo apoio de instituições como a CAIC, INC ou televisões estrangeiras. Os filmes de Santos e Capovilla, por sua vez, são modestos, em preto e branco – Vozes do medo tem trechos a cores – e foram viabilizados com dificuldades por outras vias. Vozes do medo foi produzido com recursos do Fundo Estadual de Cultura do Governo do Estado de São Paulo342 somados aos da Roberto Santos Produções, da Studio 13 (de Cyro del Nero, cenógrafo e diretor de um dos episódios) e da empresa de filmes publicitários Lynx Film, como já apontamos, enquanto O profeta da fome contou com recursos do Fundo Estadual de Cultura do Governo do Estado de São Paulo, complementados por um empréstimo bancário e pelo valor proveniente da venda de um “fusca” do diretor343. No caso de O profeta, mesmo somadas as três fontes, os recursos eram parcos, exigindo que se filmasse com negativos Fuji – “um filme ainda não testado no Brasil”, segundo Capovilla (1977, p.40) – e se trabalhasse em regime de cooperativa, em que a equipe receberia os honorários somente à época da exibição do filme. Da Escola de Comunicações da USP veio emprestada a câmera, conforme mencionado. E, para a finalização, foram necessários ainda recursos da produtora e distribuidora da Boca do Lixo Cinedistri, de Oswaldo Massaini.344 As declarações de Capovilla (1977) sobre o filme se coadunam em larga medida às propostas “marginais”. Considerando que seu filme anterior, Bebel, garota-propaganda (1967), havia se perdido em “concessões”, ele diz ter buscado o oposto em O profeta:

Um filme feito com lixo e pouco dinheiro. [...] Era preciso partir do nada, ou melhor de uma ousada técnica e de uma equipe de atores e técnicos integrada por alguns poucos profissionais que enfrentasse uma aventura com a solidariedade de um bando que se visse perdido no deserto. E assim surgiu O Profeta da fome. Um filme pobre, torto, sujo, como a própria realidade que relata. (CAPOVILLA, 1977, p.40-41).

340 A expressão é de Fernão Ramos (1987b, p.27). 341 Como vimos, no capítulo 2, o filme não realizado de Person, A hora dos ruminantes se aproximaria dessa tendência à “alegoria-espetáculo” da época. 342 De acordo com Inimá Simões (1997, p.148), o Fundo Estadual de Cultura do Governo do Estado de São Paulo foi responsável por 19,79% do orçamento. 343 Cf. Mattos, 2006, p.125. 344 Cf. Tosi (2006).

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“Pobre, torto, sujo”, “feito com lixo” são descrições características do Cinema Marginal. A presença de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, como protagonista é também um elemento a aproximar o filme daquele grupo que tinha em Mojica com seu terror “primitivo” um ídolo.345 Ademais, são observáveis em O profeta da fome evidentes diálogos com o movimento tropicalista, inclusive por conta da presença na equipe de Fernando Peixoto (corroteirista) e Flávio Império (cenógrafo), ligados ao Teatro Oficina. Essa interlocução com o tropicalismo pode ser notada na iconoclastia, na colagem, no caráter neo-antropofágico, na conjunção de elementos arcaicos e modernos e no entrecruzamento da cultura popular à cultura de massa – em especial nos “capítulos” finais do filme –, na combinação de “despojamento” e “histrionismo”346, encontrando-se traços de happening nas filmagens que aproveitam o imprevisível do momento de realização e incorporam às cenas a população que assiste às “performances”, em especial aquelas da “crucificação” em meio à Festa do Divino de São Luís do Paraitinga, no interior do estado de São Paulo347 e da apresentação do faquir no centro de São Paulo. Há ainda a alusão direta, no título do espetáculo de Ali Khan que aparece por escrito no ônibus de sua turnê, à canção-título do disco-manifesto do movimento, Panis et circenses (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968)348 do álbum Tropicália ou Panis et circenses (1969), lançado no mesmo ano de realização das filmagens. Embora não ouvida no filme, aqueles que conhecem a canção podem estabelecer um diálogo entre a história do faquir e a alegoria nela contida. Indiferentes à arte ou ao sacrifício, à beleza ou à dor, “As pessoas na sala de jantar/São ocupadas em nascer e morrer” e Ali Khan termina sozinho e completamente esquecido em meio ao lixo. As pessoas indiferentes da canção podem ser identificadas também a alguns personagens de Vozes do medo, em especial os do episódio A Santa Ceia (de Aluysio Raulino) em que se estabelece, à mesa de jantar de uma família

345 Detalhe importante é que Mojica foi dublado pelo ator Paulo César Pereio na composição de Ali Khan, pois Capovilla não queria uma identificação direta com o personagem Zé do Caixão. É significativo também que a primeira escolha do diretor para intérprete do protagonista não tenha sido Mojica, mas sim Joel Barcellos, ator identificado com o Cinema Novo. Essa mudança, segundo Capovilla: “implicava alterar a linha da personagem. Em lugar da representação crítica do Joel, mais típica do Cinema Novo, eu teria uma adesão mais irracional”. Cf. Mattos, 2006, p.126-7. 346 Santuza Naves (2000) fala da combinação entre “despojamento” e “histrionismo” para caracterizar o tropicalismo na música. “Duas tradições antagônicas foram assim incorporadas num mesmo movimento: a do despojamento, vinculada à bossa nova, e a do histrionismo do repertório popular tradicional”. (NAVES, 2000, p.43). 347 Cf. Mattos, 2006, p.130-131 348 “Eu quis cantar/Minha canção iluminada de sol/Soltei os panos sobre os mastros no ar/Soltei os tigres e os leões nos quintais/Mas as pessoas na sala de jantar/São ocupadas em nascer e morrer/Mandei fazer/De puro aço luminoso um punhal/Para matar o meu amor e matei/Às cinco horas na avenida central/Mas as pessoas na sala de jantar/São ocupadas em nascer e morrer//Mandei plantar/Folhas de sonho no jardim do solar/As folhas sabem procurar pelo sol/E as raízes procurar, procurar//Mas as pessoas na sala de jantar/Essas pessoas na sala de jantar/São as pessoas da sala de jantar/Mas as pessoas na sala de jantar/São ocupadas em nascer e morrer”. Letra disponível em: . Acesso em 10 de janeiro de 2015.

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burguesa, conflitos entre um jovem provocador e seus pais conservadores. O principal responsável pela trilha sonora de Vozes do medo, entretanto, é Sérgio Ricardo, músico associado à canção de protesto, distante do grupo tropicalista e próximo do círculo do Cinema Novo.349 No primeiro episódio do filme, imediatamente anterior ao episódio A Santa Ceia, está saliente o tom engajado nos moldes sessentistas. Inspirado no conto homônimo de Mário de Andrade, Piá não sofre? Sofre, dirigido por Roberto Santos, adota uma estética neorrealista e, quase sem falas, articula as imagens da periferia, onde o garotinho chora de fome, com uma canção em tom pungente que remete o entrecho à problemática social mais ampla: “Fome não é só nome/ela mata gente igual lobisomem que pega a gente pra valer/fome não é só briga de morte e vida pela barriga que passa a vida sem comer/Fome não é só gente que não tem nome/ que não vai pra frente/ que ilude a fome pra viver/Fome é toda essa gente fazendo nome à custa da gente que passa fome sem viver, sem viver.” Não podemos ignorar, porém, que logo na abertura de Vozes do medo há letreiros que citam, os versos da canção Dois mil e um ( e Tom Zé, 1969): “Dei um grito no escuro sou parceiro do futuro na reluzente galáxia mutant es tom Zé [sic]”. Desse modo, O profeta da fome e Vozes do medo estão sintonizados com as expressões culturais expoentes em seu momento de realização, em 1969-1970, incluindo aí o tropicalismo e o Cinema Marginal. No entanto, a despeito de suas passagens irreverentes, o caráter político e contestatório de ambos os filmes é bastante manifesto e os distancia consideravelmente da postura de “avacalho” e “curtição” que marcou o Cinema Marginal. Embora os filmes “marginais” também fossem dotados de um certo sentido político, nestes a mensagem é mais clara, podendo ser classificada até mesmo como “ingênua” ou carregada de uma “impostação infantil”, como considerou o publicitário Mamoru Miyao, falando sobre Vozes do medo no qual é responsável por um dos episódios.350 Falando sobre O profeta da fome em debate com cineastas latino-americanos acerca das estratégias do cinema político, Capovilla declara que seu objetivo com o filme foi encontrar uma nova forma de comunicação com o “povo”, aspecto no qual o Cinema Novo não tinha sido bem-sucedido:

349 Sérgio Ricardo, irmão do célebre fotógrafo do Cinema Novo Dib Lufti, fez as trilhas sonoras de Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha e dirigiu ele mesmo filmes enquadrados no movimento cinemanovista: Menino da calça branca (1961); Esse mundo é meu (1964); Juliana do amor perdido (1970) e A noite do espantalho (1973). Capovilla colaborou no roteiro deste último e Roberto Santos no de Juliana do amor perdido. 350 Cf. NAVES, Sylvia Bahiense. Luzes Câmera: transcrição da entrevista com a equipe de Vozes do Medo para o programa da TV Cultura, 1976-1977. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 198-. Dat.

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Dez anos de cinema novo não nos deram a bagagem necessária para chegar ao povo. Absolutamente. Não é só o sistema que nos impediu, não. Impediu-nos nossa formação cultural, pequeno burguesa e absolutamente egocêntrica, individualista, que não foi capaz de partir da realidade. (CAPOVILLA, 1971, p.12, tradução nossa).

É possível que tenham contribuído para essas considerações de Capovilla as discussões levantadas pelo polêmico Brasil em tempo de cinema (1967), de Jean-Claude Bernardet que, como vimos, apontara as contradições de classe que afastaram o projeto do Cinema Novo de seus resultados. Capovilla (1971) explicita que buscava uma “nova forma de fazer cinema político” que se afastasse do “ensaio sociológico” em direção a uma nova forma de comunicação pela via do mito, que, a seu ver, era uma forma de consciência popular expressada, por exemplo, no cordel que deveria ser compreendido nos seus próprios termos. Sua intenção, assim, era fazer um filme “do mundo deles, gasto, podre, um mundo absolutamente marginalizado, pré-histórico” (CAPOVILLA, 1971, p.10, tradução nossa). Diferentemente do “filme reivindicado” por Capovilla – para utilizarmos a expressão de Esquenazi (2007) –, uma das versões do “filme interpretado” pela crítica, propõe que O profeta da fome seja não uma aproximação da consciência mítica popular, mas “um exemplar solitário da autoreflexividade do Cinema Novo”, nas palavras de Marina Meliande (2006), considerando que ele problematiza a espetacularização da fome em que de certa forma aquele movimento incorreu. Enquanto Capovilla buscou na cultura popular elementos para a constituição de seu O profeta da fome, Roberto Santos concebeu Vozes do medo em diálogo com a cultura de massa – o que incluiu um “estágio” na Revista Cláudia351 –, buscando na própria estrutura de “filme-revista” trazer o cinema para uma conexão com as linguagens de outros meios de comunicação de massa ao trabalhar com a colagem de diversos fragmentos heterogêneos que fazem as vezes de anúncios publicitários, fotonovela, história em quadrinhos etc. A técnica da colagem, com justaposição de fragmentos heterogêneos, é elemento característico também dos dois filmes que Sérgio Muniz realiza na época: Você também pode dar um presunto legal (1970-71) e De raízes e rezas entre outros (1972). Você também pode dar um presunto legal, cujo título remete a uma frase do torturador Sérgio Paranhos Fleury, trata da atuação do Esquadrão da Morte de maneira contextualizada e estabelece conexões entre violência policial, Estado militar e interesses político-econômicos que os sustentavam, constituindo uma das mais amplas e aprofundadas discussões audiovisuais sobre a tortura no Brasil. Em Leme (2014) realizamos análise mais detida deste filme ímpar que trata da tortura

351 Cf.Simões (1997, p.132).

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nos momentos em que ela era uma realidade a assombrar o momento presente de sua realização. Para tal, Muniz – que contou neste e em seu próximo filme com a colaboração de Ramalho Jr. (creditado aqui como corresponsável pelo roteiro, som e fotografia) – valeu-se de diferentes recursos, como captação de imagens de rua, recortes de jornais, imagens de arquivo, músicas conhecidas da época e trechos de peças de teatro. Imagens e sons diversos que vão adquirindo, na montagem, significados que desvelam a realidade brutal de violência e desigualdade social por trás da imagem do Brasil grande e feliz que o governo militar construía. O filme foi montado e sonorizado em Cuba e na Europa (com a colaboração de cineastas como Chris Marker e Fernando Birri), sendo finalizado em 1973. A despeito da intenção de Muniz de “fazer um filme denúncia para ser exibido no Brasil daquela época” (MUNIZ apud RIQUELME, 2011, p.170), o filme só veio à público em 2003, pois amigos o desaconselharam a exibi-lo no contexto ditatorial, o que poderia colocar em risco a vida dele próprio, dos atores e demais envolvidos. 352 Quando da realização de Você também pode dar um presunto legal, Muniz havia assumido a administração do Teatro São Pedro, substituindo o amigo Maurício Segall, preso pelas forças ditatoriais. Estava então em cartaz no São Pedro a peça O interrogatório, de Peter Weiss, sobre o julgamento de ex-funcionários de campos de concentração nazista, dirigida por Celso Nunes. Em paralelo, o Teatro de Arena encenava A resistível ascensão de Arturo Ui, de Bertold Brecht que também remetia ao nazismo. A partir das peças, “unindo-as” criativamente a recortes de jornal que vinha coletando desde os anos 1960 com notícias sobre o Esquadrão da Morte, Muniz começou a conceber o seu filme. Ramalho que, como mencionado, colaborou no roteiro, som e fotografia desse filme353, na época estava afastado do cinema, dando aulas de Física no Curso Universitário desde 1969 e, também amigo de Segall, assumiu em 1970 a direção do Museu Lasar Segall, sendo um dos responsáveis pela incorporação do vasto acervo sobre cinema na Biblioteca Jenny Klabin Segall que, ainda hoje, é referência. Ele colaboraria também no filme seguinte de Muniz, De raízes e rezas entre outros (1972), no qual é creditado como corresponsável pelo argumento, roteiro e edição. Conforme explica Muniz (apud Sobrinho, 2012, p.251), De raízes e rezas, entre outros (1972) é fruto de uma reavaliação de sobras de materiais filmados nas expedições da Caravana Farkas em finais dos anos 1960, nos quais se destacam duas figuras populares que tinham ficado de fora dos filmes da série: um “raizeiro” – homem que promovia curas a partir

352 Essas informações sobre trajetória do filme estão descritas nos letreiros inicias da versão publicizada em 2003. 353 Conforme relata à autora (2013) e Sobrinho (2012).

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de raízes e plantas – e uma rezadeira, aos quais o título faz referência. O “entre outros”, contudo, é o que diferencia este filme daqueles da série A condição brasileira pois ele não somente registra a cultura popular mas constrói um discurso caleidoscópico a partir da combinação de imagens, músicas, textos e trechos sonoros emprestados, por exemplo, de Morte e Vida Severina (João Cabra de Mello Neto, 1955) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964). Clara Ramos (2007) realiza uma análise detida deste filme que, segundo ela, se distancia do “modelo sociológico” por se afastar da tese unívoca e sugerir ao invés de afirmar, utilizando a combinação de argumentos por meio da colagem, da ironia e do humor. Essas características, embora retomem aspectos já apresentados em Roda & outras histórias (Sérgio Muniz, 1965), expressam também um diálogo com o tropicalismo, inclusive com a citação de trechos de canções do movimento que, ao lado das canções cubanas de Silvio Rodríguez e Pablo Milanés, funcionam como comentário às imagens. Conforme a análise da autora, um dos significados que pode ser depreendido do mosaico construído por Muniz é a sugestão de que “a violência não apenas é inerente à realidade do sertão, como é a única saída” (RAMOS, 2007, p.138), sendo um elemento a subsidiar o argumento a citação do trecho da canção Divino maravilhoso (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968) na voz de Gal Costa: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” que se combina a trechos de Deus e o diabo na terra do sol e a imagens documentárias que mostram a fabricação de armas. Marcelo Ridenti (2000, p.278-283) aponta elementos de afinidade entre o tropicalismo e a esquerda armada em seus aspectos de radicalidade e ruptura com o pecebismo, além de referências diretas em canções específicas. E Jean-Claude Bernardet (1978), tratando do cinema, considera que a guerrilha foi por vezes utilizada pelos cineastas não com um sentido político concreto mas com um sentido mítico, o que expressava justamente a impotência da intelectualidade. Em carta de 17 de novembro de 1967 ao amigo Alex Viany, o crítico já expunha este argumento ao comentar o filme de Person, Procissão dos mortos, em fase de realização:

Penso que o filme dele pode não ser muito bom (ele também acha isso), mas suponho que ele será curioso e suas falhas de roteiro poderão salientar alguns dos impasses e mitos de setores da intelectualidade brasileira atual, momentaneamente atual. Fundamentalmente o problema das guerrilhas. Tenho para mim a mais absoluta convicção de que valorização da guerrilha (embora tenha algumas raízes históricas) é uma atitude compensatória em relação ao fracasso, ao marasmo, à indecisão, à frustração. Não se pensa em guerrilha concretamente, nem se discute guerrilha num plano político ou de ação (pelo menos entre nós), usa-se a palavra guerrilha e figuras de guerrilheiros de modo puramente mítico. (BERNARDET, 1967b, p.2).

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Laura Cánepa (2009), escrevendo sobre esse episódio realizado por Person, explica que, assim como os demais episódios que compunham o longa Trilogia do terror, Procissão dos mortos foi inspirado em narrativas do programa Além, muito além do além, capitaneado pelo cineasta José Mojica Marins e pelo escritor e roteirista Rubens Francisco Luchetti, exibido com sucesso na TV Bandeirantes em 1967. O episódio homônimo da TV, escrito por Luchetti, entretanto, abordava simplesmente um menino que via fantasmas, tendo Person introduzido a ideia de guerrilheiros fantasmas, claramente influenciado pela morte de Che Guevara ocorrida em outubro de 1967. Na versão de Person, embora permeada pelo fantástico, a referência à guerrilha é muito direta: o garoto Quinzinho entra na mata para caçar passarinhos e encontra um cadáver de guerrilheiro; os boatos circulam pela cidade e um personagem mostra uma revista com a imagem de Che Guevara; o pai do garoto sai à noite para averiguar e é assassinado por guerrilheiros fantasmas que golpeiam seu peito atingindo explicitamente o símbolo da paz que levava no peito; no dia seguinte, o garoto volta à mata, encontra a metralhadora do cadáver guerrilheiro e a entrega a outro guerrilheiro que dessa vez está vivo e não se parece com os fantasmas cintilantes vistos na noite anterior; ele coloca munição na arma e a devolve ao garoto para que experimente e o filme se encerra com Quinzinho atirando diretamente para a câmera. Embora explícita, a referência à luta armada fica mesmo a um nível mítico ou catártico como assinalou Bernardet, visto que não são trazidos quaisquer elementos sócio- políticos que expliquem suas motivações. Causa estranheza, inclusive, que os guerrilheiros matem justamente o pai de Pedrinho, um humilde operário de pedreira, ainda que se entenda que ele representa no filme a paz, não vista como saída possível. De todo modo, o conteúdo “subversivo” do filme é evidente e, não obstante, ele conseguiu passar, com alguns contratempos, pela censura, uma vez que foi lançado antes do AI-5. De acordo com Cánepa (2009), o filme ficou pronto em março de 68 e foi censurado em 09 de abril de 68, tendo sido a princípio interditado e, depois das negociações do produtor Renato Grecchi, liberado com quatro cortes que, segundo a autora, “prejudicaram particularmente os filmes de Person e de Mojica”. (CÁNEPA, 2009, p.5). Em consulta direta aos arquivos do processo de censura de Trilogia do Terror, disponível no portal “Memória da Censura no Cinema Brasileiro (1964- 1988)”354, verificamos que os quatro cortes estabelecidos pela censura em 16 de abril de 1968

354 PINTO, Leonor Estela Souza (Org.). MEMÓRIA da censura no cinema brasileiro 1964-1988. Disponível em:

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voltaram-se para o episódio de Mojica, todos de cunho moral355, embora a temática da guerrilha tenha sido apontada como potencialmente problemática por um dos pareceres que sugere, no entanto, a liberação para maiores de 18 anos356. Certamente o destino do filme seria outro se fosse submetido à censura após o AI-5 – possivelmente nem seria realizado, se considerarmos que os objetivos dos produtores era comercial – quando houve o fechamento definitivo do regime e se intensificaram as ações da esquerda armada no Brasil. Se para a maioria dos cineastas a guerrilha fazia parte de um horizonte mítico, utópico ou metafórico, para Renato Tapajós ela foi uma realidade. Ainda em 1965, ele entrara para o PC do B (Partido Comunista do Brasil), partido defensor da “violência revolucionária”, nascido de uma cisão do PCB em 1962, e, em 1967, esteve entre os fundadores da Ala Vermelha do PC do B, cisão radicalizada do partido. 357 Conforme o cineasta relata a Costa (2011, p.150), até 1968 suas atividades na organização estavam ligadas ao movimento estudantil e após o AI-5 ele passou à clandestinidade, envolvendo-se diretamente com as ações armadas e com a montagem da infraestrutura em torno dessas ações. Em agosto de 1969, ele é detido pelos órgãos repressivos, passando por várias sessões de tortura, as mais intensas logo após sua detenção quando foi levado à OBAN (Operação Bandeirantes) : “oito dias de inferno mesmo” (TAPAJÓS apud COSTA, 2011, p.29). Na sequência passa quatro meses no DOPS-SP (Departamento Oficial de Política Social de São Paulo), seguido do Presídio Tiradentes, Casa de Detenção do Carandiru, novamente Presídio Tiradentes, presídio do Hipódromo, novamente Carandiru, totalizando cinco anos e um mês de prisão quando colocado em liberdade em setembro de 1974. 358 A clandestinidade e a prisão evidentemente representaram uma grande lacuna na trajetória de Tapajós como cineasta. Todavia, ele escreveu na cadeia Em câmera lenta que, desde o título, apresenta correlação com a linguagem cinematográfica. O livro possui vasta fortuna crítica359 e vários autores destacam o aspecto “cinematográfico” do romance que

. Acesso: 10 dez.2015. 355 REIS, Juvêncio Façanha Guedes dos. [Diretor da Polícia Federal. Lista de cortes Trilogia do terror]. Ministério da Justiça – Departamento de Polícia Federal, 16 de abril de 1968. Disponível em: Acesso: 10 dez.2015. 356 MENEZES, Carlos Lúcio. [Censor Federal. Parecer Trilogia do terror]. 9 de abril de 1968. Disponível em: Acesso em: 10 dez. 2015. 357 Sobre os programas, objetivos e constituição das organizações de esquerda armada durante o regime militar ver Jacob Gorender (1987) e Marcelo Ridenti (1993). 358 Dados de Carlos Augusto Carneiro Costa (2011, p.29). 359 Eloísa Maués (2008) estudou a história do livro desde o processo de escrita até a recepção, passando pela edição, lançamento e prisão de Tapajós e apresenta (2008, p.136-150) uma revisão bibliográfica das críticas e trabalhos acadêmicos sobre o romance. Mário Augusto Silva (2008) aborda o romance e a biografia de Tapajós em seu estudo sociológico sobre os “escritores da guerrilha urbana”. Há ainda diversos trabalhos recentes como o de Costa (2011) na área de literatura.

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utiliza técnicas como a montagem, elemento central na sua constituição formal, bem como o flashback e o close-up. Conforme assinala Costa (2011), o romance trabalha com cortes e modulações no tempo e no espaço que remetem ao cinema, alternando ritmos de narração e justapondo espaços. Repetições, cortes bruscos, alternância do foco narrativo são outros elementos que remetem ao cinema e também ao fluxo de memória e à elaboração do trauma. O livro foi escrito em 1973 em meio aos debates de autocrítica realizados no cárcere pelos militantes da Ala Vermelha e sob o impacto da morte de pessoas próximas, notadamente sua cunhada Aurora Maria Nascimento Furtado e o companheiro dela, José Arantes – ex- presidente do Grêmio da Faculdade de Filosofia que patrocinara Universidade em crise e Um por cento. O livro se inspira nas figuras dos dois e traz “em câmera lenta” a narração da aterradora tortura e morte de Aurora, que teve o crânio esmagado pela denominada “Coroa de Cristo” (fita de aço gradualmente apertada pelo torturador). O livro foi saindo da prisão clandestinamente – literalmente em “comprimidos” 360 – mas não conseguiu publicação até 1977, quando foi lançado pela pequena editora Alfa-Ômega. Kafkianamente, o livro foi considerado pelos órgãos repressivos como um instrumento de “incitação à subversão”, levando Tapajós novamente à prisão em 27 de julho de 1977, antes mesmo da formalização do processo de censura e interdição do romance. A repercussão foi ampla e atingiu âmbito internacional, conforme demonstram Mário Augusto Silva (2008) e Elóisa Maués (2008), o que provocou a libertação de Tapajós, em 23 de agosto de 1977, embora o julgamento do processo e sua absolvição só tenha ocorrido em 24 de abril de 1978. Voltaremos a Tapajós e suas realizações após a saída prisão, mas antes cumpre trazer as demais trajetórias ao mesmo passo temporal. Na virada dos anos 1960 para os 1970 um projeto mobilizou vários cineastas do foco desta pesquisa: Os sete pecados capitalistas, a que fizemos referência no capítulo 2. As informações sobre o projeto são esparsas e mesmo dados sobre nomes e datas são por vezes divergentes. Conforme assinalamos anteriormente, de acordo com John Herbert (197-), os sete realizadores seriam Luiz Sérgio Person, Maurice Capovilla, Roberto Santos, Anselmo Duarte, os publicitários Carlos Augusto de Oliveira (Guga) e Olivier Perroy, e o próprio John

360 Conforme explica o cineasta: “Eu escrevia em folhas de papel almaço, corrigia, ficava tudo riscado, aquela confusão toda que fica um texto original. Depois eu copiava o texto final, já corrigido, a lápis bem apontado, com uma letra minúscula, em papel de seda. [...] Aí eu embrulhava esse papel de seda até ele ficar do tamanho de um comprimido. Embrulhava isso daí com papel celofane de cigarro, de maço de cigarro, e depois com fita durex. Então fechava aquilo bem apertadinho e fazia um quadradinho assim, porra, do tamanho de um comprimido médio. E alguém – minha mãe, meu pai – saía com aquilo das visitas em baixo da língua. [...] Levavam na boca, chegavam em casa, eles abriam e meu pai datilografava. Então quando eu saí da cadeia eu tinha um original datilografado em cima do qual eu retrabalhei durante um certo tempo. (TAPAJÓS apud COSTA, 2009, p.143).

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Herbert. Fragmentos de roteiro encontrados na Cinemateca trazem três episódios: A livre iniciativa, de autoria de Person que retoma personagens de São Paulo S.A, A publicidade, de Lauro César Muniz e A herança atribuído a Sergio Porto, assinalando-se como data provável, 1967361, mesmo ano considerado pelo catálogo da Mostra LS Person (MOSTRA, 1986, p. 58). No verbete “Jean-Claude Bernardet” redigido por Alex Viany e disponível em seu acervo362, o crítico é apontado como colaborador no roteiro de Os sete pecados capitalistas cuja data é assinalada como 1968. Já a base de dados “Filmografia Brasileira” da Cinemateca Brasileira data o projeto de 1971 e traz os títulos dos sete episódios sem indicação de autoria: A publicidade; A herança; A livre iniciativa; A fortuna; O homem que comprou a morte; Leilão; Pecado de ter dinheiro. O cineasta Silvio Back em carta a Alex Viany de 05 de junho de 1972, coloca-se como integrante do projeto ao lado de “Capô [Capovilla], Roberto e Person” e informa que começaria a filmar na semana seguinte. E em entrevista de 1973 citada por Kaminski (2008, p.186), Back volta a fazer referência ao filme que seria “uma produção conjunta de diretores do Rio de Janeiro e de São Paulo”. Capovilla em sua biografia, elaborada por Mattos (2006), faz referência a O homem que comprou a morte – que está incluído na base de dados da Cinemateca como um dos episódios de Os sete pecados capitalistas – mas, traído pela memória, não o associa ao longa: Entre os frutos desse período está o meu curta O homem que comprou a morte. Era um exercício próximo da ficção científica, uma coisa maluca. Guarnieri, Fernando Peixoto e eu escrevemos a história de um vendedor de ilusões fazer suas ofertas numa feira de utilidades. Um jovem aparece para comprar a morte, melhor dizendo, o desejo de matar. Não me lembro que houvesse um sentido maior além da mera experimentação. Filmamos com negativos coloridos de 35 mm e equipamento da Blimp, sem prever algum destino para o produto final. (CAPOVILLA apud MATTOS, 2006, p.173-174).

Mattos (2006, p.286) data o curta (de 13 minutos) em 1973. Em entrevista à autora, Capovilla (2012) também não se lembrou de mais informações sobre o projeto. Sidnei Paiva Lopes em depoimento sobre Person (Cf. Campos Jr.e Moraes,1986a, p.58-59) recorda-se das reuniões na Blimp em que os cineastas Roberto Santos, Maurice Capovilla, Anselmo Duarte e Person discutiam o projeto no início dos anos 1970. E Roberto Santos, na mesma série de depoimentos, fala sobre o seu episódio:

361 PERSON, Luís Sérgio, MUNIZ, Lauro César, PORTO, Sérgio. Os sete pecados capitalistas. São Paulo? : s.n., 1967?. 34 p. Fot. 362 VIANY, Alex. Bernardet (Jean-Claude). Cadastro de cineastas: breve currículo de Jean-Claude Bernardet. Disponível em: Acesso em: 10 out. 2015

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O meu estava em andamento e eu estava sem dinheiro e possibilidade de realizar, terminar de realizar, o capítulo que se chamava “Caminhos da Fortuna”, que era a avareza. Eu cheguei a realizar uma boa parte faltando a finalização – nós filmávamos aos domingos – baseado num argumento dele [Person]; o argumento sobre a avareza. [...] E foi a partir da historia que ele contou que eu elaborei o meu roteiro, que tinha a base, a essência, a formulação dele, que era forte, e a partir daí eu consegui realizar uma parte. O projeto não se realizou, não terminou também porque realmente eu não sei – faltavam dois episódios não sei porque não houve a capacidade de... [interrompido por outro entrevistado] […] pra dar uma medida boa, ainda no tipo de colocação que ele tinha, quando eu falei que ia filmar o personagem principal – o Boko Moko – do Teobaldo ele vibrou. (SANTOS apud CAMPOS JR.; MORAES,1986a, p.89-90).

O “Boko Moko” a que se refere Roberto Santos foi uma figura criada pela campanha de publicidade do Guaraná Antártica como identificação geral para pessoas “cafonas”, de costumes ultrapassados, em contraponto ao “herói” cômico Teobaldo, que bebia o referido guaraná cujo slogan era “A senha contra o Boko Moko”. O primeiro comercial da série teria ido ao ar no ano 1970363, o que auxilia a situar cronologicamente Os sete pecados capitalistas, bem como propicia mais um índice das suas relações com o universo publicitário, que a um só tempo integra e critica. Pelos dados levantados, é possível supor que o projeto inicial desse longa em episódios tenha começado a ser concebido ao final dos anos 1960, sucedendo-se tentativas de execução que inclusive modificaram o grupo de cineastas envolvidos e que se estenderam até pelo menos 1973. Como assinalamos no capítulo 2, o único episódio lançado comercialmente foi o de John Herbert, Cartão de crédito que foi incorporado à pornochanchada Cada um dá o que tem (Adriano Stuart, John Herbert, Silvio de Abreu, 1975). É interessante notar que o projeto parece ter mobilizado diversos nomes não só do meio cinematográfico paulista – Luiz Sérgio Person, Maurice Capovilla, Roberto Santos, Anselmo Duarte, John Herbert, Jean- Claude Bernardet, Sylvio Back, Sidnei Paiva Lopes – como do meio publicitário (Guga e Olivier Perroy) e do meio teatral (Lauro César Muniz no episódio A publicidade e Gianfrancesco Guarnieri e Fernando Peixoto no episódio de Capovilla). A propósito, na biografia de Lauro César Muniz, encontram-se elementos que ajudam a esclarecer a gênese do projeto. O dramaturgo relata (a Basbaum, 2010, p.124), que em 1968 teve a ideia de reunir os principais autores e diretores de teatro de São Paulo em torno de uma peça chamada justamente Os sete pecados capitalistas. O projeto teve a adesão de , Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade e Plínio Marcos e foi produzido pelo Teatro

363 Cf. Magalhães Jr. (2014). Alguns comerciais da série estão disponíveis no Portal Youtube. Disponível em 20 de dezembro de 2015.

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de Arena com direção de Boal que alterou o título para Primeira feira paulista de opinião, espetáculo que foi aos palcos em junho de 1968, representado na íntegra desconsiderando veto da censura num conhecido ato de desobediência civil à ditadura. Conforme se depreende das sinopses apresentadas por Lauro César Muniz (a Basbaum, 2010, p.129-131), os episódios da Primeira feira paulista de opinião são totalmente diferentes daqueles do projeto cinematográfico.364 Ainda de acordo com Lauro, a proposta desde o início era “incluir outras áreas, como a de música, com sete compositores importantes, artes plásticas, pintando sobre o tema de resistência, enfim, fazer uma feira” (Basbaum, 2010, p.124). Curiosamente, o dramaturgo não faz qualquer menção ao cinema, embora seja dele um dos únicos documentos disponíveis sobre o projeto cinematográfico, o roteiro de A publicidade que, assim como o de Person, A livre iniciativa, corresponde a um material completo, com os diálogos e a estrutura do episódio. A persistência de referências sobre o projeto atravessando o final dos anos 1960 até 1973, assim como o vultoso conjunto de nomes envolvidos, indicam que Os sete pecados capitalistas se tratava de uma proposta ambiciosa e sobre a qual se insistiu, sem sucesso. Seria um interessante documento de época ver nas telas o empresário Arturo de São Paulo S.A vender sua fábrica a uma multinacional e terminar dançando ao som do iê iê iê ou acompanhar o dia-a-dia da agência de publicidade P.C.B. – Publicidade Comercial Brasileira como previam respectivamente os episódios de Person e Lauro César Muniz. 365 Os tempos eram particularmente difíceis para o cinema paulista. Na mesma época em que se situa Os sete pecados capitalistas, encontramos Roberto Santos, Person e Capovilla realizando filmes menos “autorais” após flertarem com o Cinema Marginal em seus singulares Vozes do medo, O profeta da fome e Procissão dos mortos. O filme de Santos que se seguiu, Um anjo mau (1971), é fruto de um convite do “universalista” Walter Hugo Khouri, detentor do espólio da Companhia Vera Cruz, que cumpria um contrato de coprodução com a

364Augusto Boal, A Lua muito pequena e A caminhada perigosa, Bráulio Pedroso, O Sr. Doutor, Gianfrancesco Guarnieri, Animália, Jorge Andrade, A receita, Lauro Cesar Muniz, O líder, e Plínio Marcos, Verde que te quero verde. Na descrição de Lauro: “Na peça do Plínio Marcos, o Renato Consorte fazia um general que cagava fardado, dizendo uma porção de besteiras. Chamava-se Verde que te quero verde. A do Guarnieri chamava-se Animália e era muito boa, discutia a dificuldade de linguagem dos jovens com os pais. A peça do Jorge era sobre uma infecção, um camponês fere a perna que vai gangrenando, sem que houvesse alguém para salvá-lo. E a peça do Bráulio chamava O Senhor Doutor, que era sobre um empresário que começava a verter pus por todos os poros. Entrava numa banheira, tentando se limpar, mas apodrecia ali. A do Boal era sobre o Che Guevara, uma colagem de textos do Che, do Fidel, e que encerrava o espetáculo. A minha peça era O líder, sobre um caiçara de Tabatinga, baseado num fato verídico. Antes do golpe de 1964, a Supra (Superintendência da Reforma Agrária), ensaiando o regime sindicalista que o Jango sonhava instalar no País, criou uma assembleia para defesa dos pescadores e, naquela praia, um pescador chamado Romão era o único que sabia ler e escrever. Ao constatar que só ele sabia ler, o representante da Supra o convocou para assinar a ata de fundação daquele grupo, como presidente. Quando veio o golpe, Romão foi preso, como líder subversivo, sem que entendesse o que estava acontecendo. Apenas sabia ler e escrever.” (MUNIZ apud BASBAUM, 2010, p.129-131). 365 Cf. PERSON; MUNIZ; PORTO (1967?).

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20th Century Fox e, detendo os direitos da história-título, do escritor Adonias Filho mas, sem se identificar com a temática, ofereceu a direção para Roberto Santos que, então, retomaria o universo de violência rural bem trabalhado por ele em Matraga. Embora tenha contado adicionalmente com recursos do INC, o filme foi realizado em difíceis condições, segundo conta Zetas Malzoni que participou da fotografia: “a filmagem era uma loucura, a filmagem tinha briga de facadas entre assistentes, tinha falta de comida, falta de água, é verdade, pô! Faltava tudo, faltava.” (MALZONI et.al., 1978, p.18). E, segundo ele, os problemas se agravaram no momento da montagem quando os produtores praticamente abandonaram o filme:

Anjo mau foi montado em quase todas as moviolas de São Paulo. Andavam debaixo de chuva carregando lata. Montaram um pouquinho no [Oswaldo] Massaini, um pouquinho no [Antonio Polo] Galante, montaram um pouquinho não sei aonde, outro pouquinho na Lynx, um pouquinho aqui. Porque a Vera cruz já não tinha mais interesse porque o filme era na base do adiantamento da Fox, né? (MALZONI et.al., 1978, p.18).

Com todas essas dificuldades, ou por elas mesmo, Um anjo mau é um filme belo e forte, com a marca de Roberto Santos na trágica narrativa da sertaneja Açucena, vendida pela mãe quando menina, prostituída quando adulta, e em busca de vingança pelo assassinato do companheiro e do filho. Filme de poucas palavras e de uma violência surda é marcante também em seu encerramento, quando Açucena e seu novo companheiro Martinho gritam enérgica e repetidas vezes: “Eu vivo é de viver lutando”. As noites de Iemanjá, filme que Capovilla realizou em 1971, é também um filme de encomenda, sob convite de Rubem Biáfora, crítico e cineasta paulista que encabeçava o grupo “universalista” e era conhecido por sua oposição ao Cinema Novo. De teor erótico e misterioso, o filme, baseado em conto Aquela que vem das águas de Ida Laura, contou, igualmente, com recursos de uma grande companhia estrangeira, a Paramount, que, como a Fox, valeu-se da lei em vigor que permitia o abatimento dos impostos sobre os lucros remetidos ao exterior pelas companhias estrangeiras que investissem na coprodução de filmes brasileiros. É interessante que, assim como o filme de Roberto Santos realizado sob encomenda de Khouri, o filme de Capovilla contém elementos da cultura popular brasileira, neste caso entremeando uma temática “universalista” (uma mulher insatisfeita no casamento burguês) aos rituais de religiões afro-brasileiras que aparecem no envolvimento da protagonista com o cotidiano das comunidades de pescadores do litoral norte de São Paulo. De sua parte, Person realiza depois de Procissão dos mortos, ainda em 1968, Panca de

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valente, lançado em novembro do mesmo ano e produzido mediante os recursos obtidos de empréstimos bancários por sua empresa Lauper Filmes. Como já mencionado, trata-se de uma comédia com elementos de faroeste realizada com diretas pretensões comerciais no intuito de viabilizar o acalentado projeto A hora dos ruminantes, adaptação do romance homônimo de José J. Veiga, cujo roteiro fora escrito logo após o lançamento de O caso dos irmãos Naves (1967) e daria continuidade à abordagem da opressão, desta vez de forma alegórica. Com o fracasso da comédia que frustrou suas pretensões comerciais, o cineasta dedica-se à publicidade, experiência bem sucedida que lhe garante recursos para a realização de seu último longa, Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), uma comédia erótica musical, ambientada no Rio de Janeiro. Antes de sua morte precoce num acidente automobilístico em 1976, Person realizaria apenas mais um filme, o documentário de curta-metragem Vicente do Rego Monteiro (1975) sobre o artista plástico título. E, no período entre 1972 e 1976, dedicou-se ao teatro, conforme mencionamos no capítulo 2. Roberto Santos e Capovilla irão igualmente se afastar da direção de longa-metragem entre 1972 e 1976/77, realizando diversos trabalhos para a televisão nesse período. Os demais cineastas do conjunto, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr. e Sérgio Muniz também estiveram afastados da realização cinematográfica na mesma época, assim como Renato Tapajós que estava na prisão. Sérgio Muniz após realizar dois trabalhos para o programa Globo Repórter – Vera cruz, fábrica de desilusões (1975) e Loucura nossa de cada dia (1977) – retorna ao documentário cinematográfico com Cheiro/gosto, o provador de café (1976) e Um a um (1976), ambos filmados em Santos em torno do tema café, a partir de edital do Ministério da Educação e Cultura. Seguiram-se A cuíca (1977) e O berimbau (1977), curtas-metragens que comporiam uma não efetivada série sobre instrumentos musicais, beneficiando-se da já mencionada Lei do Curta, e Andiamo In’merica (1977-78), sobre o tema a imigração italiana, realizado em parceria com a Embrafilme como parte do frustrado projeto de séries para televisão a que nos referimos no capítulo 2. Todos esses projetos contam com a coprodução de Thomaz Farkas, estendendo a parceria iniciada nos anos 1960. Roberto Santos, por sua vez, retorna ao longa-metragem com As três mortes de Solano (1976), projeto vinculado ao curso de cinema da ECA-USP e patrocinado pela universidade. O filme constituiu experimentação coletiva com ampla participação dos alunos na realização de três diferentes versões para o conto A caçada de Lygia Fagundes Telles, uma fantástica, outra realista e, por fim, a pantomima circense. Antes desse longa, Roberto colabora nos roteiros de Juliana do amor perdido (Sérgio Ricardo, 1970) e O predileto (Roberto Palmari, 1975), ambos voltados ao universo do Brasil rural, sendo o último

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produzido pela empresa de filmes publicitários Lynx Film que também produzirá o filme seguinte de Roberto, Arroz e feijão, episódio do longa Contos eróticos (Roberto Santos, Eduardo Escorel, Roberto Palmari e Joaquim Pedro de Andrade, 1977) que deriva de textos vencedores de um concurso de contos promovido pela revista masculina Status. O episódio de Roberto trata de um jovem que, morando na periferia de São Paulo, muito longe do seu trabalho numa fábrica de manequins, passa a almoçar na casa de uma comadre da família que, embora casada, começa a seduzi-lo. Mais do que teor erótico, sobressai no episódio a singeleza dos personagens e ambientações que de certa forma nos remetem ao primeiro filme de Roberto, O grande momento. Maurice Capovilla em seu retorno ao longa, com O jogo da vida (1977), igualmente retoma preocupações do início de sua carreira, conforme ele descreve:

Com esse filme, estou retomando preocupações de dez anos atrás, talvez a melhor época do cinema nacional, em São Paulo, ao menos. Trata-se de uma resposta a um tipo de cinema que se tentou fazer nesta cidade e que terminou se perdendo ao longo desses anos. Uma de suas características que ressurge neste meu novo trabalho está na abordagem da própria cidade, transformando-a em personagem central. […] Não há uma história propriamente dita, mas uma sucessão de acontecimentos. A mola de todo drama é o dinheiro. Em torno dele tudo se resume e a solidão, a solidariedade, a alienação, a violência, a valentia e a covardia entrelaçam-se numa luta feroz pela sobrevivência. (CAPOVILLA, 1977 apud NO CINEMA, 1977).

O filme baseia-se no conto Malagueta, Perus e Bacanaço do livro homônimo de João Antônio publicado pela primeira vez em 1963, época em que Capovilla cogitou-o para adaptação ao cinema, antes mesmo da realização de Bebel, conforme relata a Mattos (2006, p.145). O jogo da vida aborda uma noite de três malandros que circulam na noite paulistana buscando ganhar dinheiro por meio de golpes no jogo de sinuca. Em rápidas inserções são trazidos momentos de suas vidas, dando-nos a conhecer um pouco do seu passado: Malagueta, o mais miserável dos três é despejado de seu barraco logo após deliciar-se com uma feijoada apimentada, a seu gosto; Perus, ex-operário de uma fábrica de cimento no distrito periférico que lhe confere o apelido, assiste alheio a uma reunião do sindicato e, num outro momento, explica à namorada que não acredita na greve e que prefere tentar a sorte no jogo a morrer como “estátua de cimento”; sobre Bacanaço, sempre com “pose” e mais bem vestido, deduz-se que esteve envolvido em contrabando, jogo do bicho e exploração da prostituição. Esses fragmentos interrompem a narrativa principal e assim como são introduzidos são deixados de lado. São flashs que não permitem maior aproximação com os personagens. A construção do filme enfatiza a crueza e a amargura desses itinerantes sem

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perspectiva. Quando ganham uma partida, na próxima perdem tudo e encerram a noite na derrota de vidas fracassadas, como se frisa nos versos de Tabelas, canção que encerra o filme, composta por Aldir Blanc e João Bosco especialmente para O jogo da vida366:

Batendo pelas tabelas/meu jogo é elas por elas/ não quero nem dou partido./Numa jogada infeliz/resvala o tempo vivido/que nem um taco sem giz./Em cada bola tentada/existe, além da tacada, a fama do jogador./Num lance alguém se suicida/e a marca de uma ferida/não sai com o apagador./A partida está fechada,/a aposta deu em nada/e o que fazer desse cansaço?/Carregar nossa cruz feito o menino Perus,/cair na sarjeta que nem Malagueta/ou virar bagaço igual Bacanaço.

É interessante assinalar que embora a problemática da greve e do operariado seja lateral em O jogo da vida, aparecendo somente nos breves flashbacks relacionados a Perus, foi na realização da pesquisa para este filme que, de acordo com Marcos Corrêa (2015, p.208), o jovem cineasta e então estudante da ECA, Rogério Corrêa tomou contato com o que seria tema de seu primeiro filme profissional, Os queixadas (1978), qual seja: a greve dos trabalhadores da Companhia Brasileira de Cimento Perus Portland em 1962, dramatizada, quinze anos depois por aqueles que dela participaram. Bernardet assinala que “Os queixadas é provavelmente o primeiro filme dos anos 1970 que tenta fazer a história do proletariado urbano” (BERNARDET, 2003, p. 180). Marcos Corrêa (2015) lembra que antes, em 1976, houve Libertários de Lauro Escorel, sobre os primórdios do movimento operário brasileiro de inspiração anarquista, realizado como parte do projeto “Imagens e história da industrialização no Brasil (1889-1945)” ligado ao Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Importa destacar que, conforme aponta Bernardet no referido ensaio Operário, personagem emergente (1980a), em diversos filmes brasileiros dos anos 1970 os operários aparecem com centralidade, tanto nos documentários como em ficções. Doramundo (1978), o longa- metragem de retorno de Batista ao cinema de ficção, realizado oito anos após Gamal (1969), está entre esses filmes, tratando de misteriosos assassinatos que vitimam trabalhadores ferroviários em uma cidade do interior de São Paulo durante o Estado Novo. Baseado no romance homônimo de Geraldo Ferraz, Doramundo traz em si uma atmosfera de obscuridade e opressão que remete ao contexto ditatorial em que foi gestado. Durante suas filmagens ocorreria um episódio relevante de conflitos trabalhistas entre equipe e produção, conforme relata Batista, em terceira pessoa:

366 A canção “Jogador” também foi composta por Blanc e Bosco para o filme.

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A equipe se reunira um dia antes, à noite, após as filmagens (sem que o diretor ou produtor soubessem) e resolveram pedir o pagamento de horas extras após o cálculo detalhado pessoa por pessoa, dia por dia. Tal reivindicação criou um impasse de toda ordem, levando o próprio diretor (também produtor, o que se poderia chamar de produtor independente) a colocar para a equipe a impossibilidade de atender as reivindicações – (novas na produção brasileira) e ao mesmo tempo em que expunha o mal estar que sentia, tendo subitamente que assumir sua função, não mais de diretor, mas de produtor, num enfrentamento de classe com seus companheiros de trabalho. (ANDRADE, 1978, p.1).

Conforme assinala Bernardet, que se vale do episódio para sua argumentação no ensaio Operário, personagem emergente (1980a), as relações capitalistas alcançavam a área cultural e, se antes era possível compor equipes diletantes, que trabalhavam noite adentro praticamente sem remuneração como nos primórdios do cinema independente – lembremos o caso de O grande momento – agora “o técnico vê-se cada vez mais como um trabalhador remunerado e cada vez menos como auxiliar privilegiado de um artista.” (BERNARDET, 1980a, p.34). Para o autor, essa nova dinâmica foi fator desencadeante para que a dinâmica de classes, percebida na produção cinematográfica, passasse a ser mostrada nas telas, ou seja, propiciasse a emergência do personagem do operário no cinema brasileiro dos anos 1970. Maria Carolina Granato da Silva (2008, p.7), em sua tese sobre a relação do cinema com as greves de metalúrgicos do ABC na virada dos anos 1970 para os 1980, questiona a argumentação de Bernardet, considerando que ele leva em conta apenas um único caso, o de Batista e Doramundo, para generalizar suas conclusões, sendo para ela, fator explicativo mais importante a emergência do personagem na cena pública. Ainda que seja evidente que as greves operárias de fins dos anos 1970 tiveram grande impacto que reverberou no cinema com vários filmes a elas relacionados367, não consideramos o argumento de Bernardet simplista, mas, ao contrário, sugestivo. Embora tome como ponto de partida o caso de Doramundo, o que o autor coloca em questão são as transformações na dinâmica da produção cultural que decorrem do processo de modernização e desenvolvimento capitalista que avançou durante a ditadura militar, consolidando a indústria cultural, processo este analisado por outros autores368. Conforme afirma o ensaísta em outro texto: “Para que o povo [e poderíamos dizer, o operário] esteja presente nas telas, não basta que ele exista: é necessário que alguém faça os filmes” (BERNARDET, 2003, p.9). Como explicar, por exemplo, a

367 Entre outros, Greve! (João Batista de Andrade, 1979), Greve de março (Renato Tapajós, 1979), Braços Cruzados, Máquinas Paradas (Roberto Gervitz e Sérgio Segall 1979); Linha de Montagem (Renato Tapajós, 1981); Santo e Jesus, metalúrgicos (Cláudio Kahns e Antonio Paulo Ferraz, 1978-1983), Eles não usam black-tie (Leon Hirszman, 1981) e ABC da greve (Leon Hirszman, 1979-1990). 368 Cf., por exemplo, Ortiz (1988) e Ridenti (2000, 2014).

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ausência de filmes sobre as grandes greves dos anos 1950 e 1960369 justamente em momentos que o cinema brasileiro buscava problemáticas sociais? Para o autor, (Cf. Bernardet 1967, 1980a), um dos fatores explicativos seria a influência sobre o cinema do ideário que permeava o pensamento de esquerda da época e que previa uma conciliação com a suposta burguesia nacionalista na superação do subdesenvolvimento, ou seja, a conhecida estratégia da “revolução em duas etapas” que pautava o pensamento pecebista da época. O encaminhamento do Cinema Novo para os conflitos sertanejos, nesse sentido, poderia ser explicado por essa dificuldade em abordar as problemáticas urbanas e tipicamente capitalistas. Ainda que conclusões generalizantes como estas sejam arriscadas e possam se tornar alvo de contestação a partir de casos específicos, é curioso notar que filmes que abordariam diretamente a temática urbana, proletária e, inclusive, a greve, estavam previstos para serem realizados em São Paulo na mesma época em que o Cinema Novo se debruçava sobre o nordeste e a temática sertaneja. É o caso dos frustrados projetos de adaptação do romance de Armando Fontes Os corumbas por Ruy Santos em 1964370, no qual Sérgio Muniz seria diretor de produção, e da peça Eles não usam black-tie de Guarnieri por Roberto Santos no início dos anos 1960, além do inconcluso curta-metragem do CPC paulista, União, dirigido por Capovilla em 1962 com operários da construção civil. Ao longo dos anos 1960 foram os paulistas que mais claramente dedicaram-se à abordagem da consolidação da indústria cultural e da reificação das relações no capitalismo tardio, conforme vimos nos capítulos 3 e 4. E, nos anos 1970, percebe-se que, embora cinemanovistas também tenham colocado em tela o operariado, a maior parte dos filmes em que esse personagem aparece com centralidade, em documentário ou ficção, foi realizada pelo cinema paulista371. Não se trata, evidentemente, de desmerecer as outras vertentes, essenciais, de nossa cinematografia, mas de sugerir possíveis conexões entre os contextos de realização e as obras geradas. Essas conexões não são diretas e mecânicas e envolvem considerar não apenas as condições sociais gerais, mas

369 Bernardet (1980a), menciona a “greve dos 300 mil” em 1953, a “greve dos 700 mil” em 1957 e as mobilizações do Comando Geral dos Trabalhos de finais dos anos 1950 até o início dos anos 60. 370 Ao lado de Parque industrial de Patrícia Galvão, Os corumbas (1933), se destaca pela ambientação urbana e pela abordagem das condições de vida da classe operária, num contexto em que os romances sociais priorizavam a abordagem do rural. Ruy Santos, cineasta ligado ao PCB, fora responsável pelo documentário Comício – São Paulo a Luiz Carlos Prestes (1945), segundo Arthur Autran (2012), “uma das primeiras expressões cinematográficas de tendência comunista no Brasil” (AUTRAN, 2012, p.300) e porVinte e quatro anos de lutas (1947), sobre a história do Partido. 371 Cf., entre outros, Operários da Volkswagen (Jorge Bodanzky; Wolf Gauer, 1974); A história dos ganha- pouco (Roberto Gervitz e Sérgio Segall, 1977); Os queixadas (Rogério Corrêa, 1978); Greve! (João Batista de Andrade, 1979), Trabalhadoras metalúrgicas (Olga Futemma; Renato Tapajós, 1978); Teatro Operário (Renato Tapajós, 1979), Greve de março (Renato Tapajós, 1979), Braços cruzados, máquinas paradas (Roberto Gervitz e Sérgio Segall, 1979); O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1980); Linha de Montagem (Renato Tapajós, 1981); Santo e Jesus, metalúrgicos (Cláudio Kahns e Antonio Paulo Ferraz, 1978-1983); Chapeleiros (Cláudio Kahns, Jorge Hue, 1983).

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também as mediações das condições sociais do meio cinematográfico, sendo o meio cinematográfico paulista aquele que foi mais prematura e fortemente atravessado pelas relações capitalistas, como vimos ao longo da tese. Voltando à cronologia dos itinerários, um dado importante a mencionar é que após se organizarem em torno da APACI (Associação Paulista de Cineastas), fundada em 1975, e pressionarem publicamente a Embrafilme, o que suscitou diversas reportagens da época372, vários cineastas paulistas conseguiram obter recursos para seus filmes no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, tendo conquistado também a criação do Polo Cinematográfico Paulista, que previa a conjunção de aportes da Embrafilme e do governo de São Paulo. Os citados O jogo da vida (Maurice Capovilla, 1977) e Doramundo (João Batista de Andrade, 1978) contaram com aportes estatais, assim como Paula – a história de uma subversiva (1979), de Francisco Ramalho Jr; o O homem que virou suco (1980), de João Batista e Os amantes da chuva (1980) de Roberto Santos; além dos episódios-pilotos do frustrado projeto de séries de televisão: Os imigrantes – Andiamo in´Merica (Sérgio Muniz, 1978), Alice (João Batista de Andrade, 1978) e Caramuru (Francisco Ramalho Jr., 1978). No entanto, quando são aprovados os financiamentos para o cinema paulista, a Embrafilme já não vive mais sua fase áurea e diversas reportagens da época registram atrasos nos pagamentos que causam transtornos à viabilidade do Polo e geram reclamações dos cineastas paulistas da velha e da nova geração373. O caso de Os amantes da chuva é um exemplo. O projeto foi anunciado desde 1977374 e o seu lançamento só ocorreu em 1980. Santos explica que os atrasos da Embrafilme só não paralisaram as filmagens graças aos esforços da Oca Cinematográfica, empresa de Ramalho Jr., responsável pela produção do filme.375 A Oca contribuiu também na produção de vários filmes que seriam realizados por Renato Tapajós em parceria com o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema no final dos anos 1970, aparecendo creditada como coprodutora em Trabalhadoras metalúrgicas (co-dirigido por Olga Futemma, 1978); Teatro Operário (1979)e Greve de março (1979), também conhecido como Um dia nublado ou Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores, seu título original376. Sobre este último,

372 Cf., entre outras reportagens, “Como resiste....” (1976), “Promessa...” (1977), Soares (1977), “Incentivo...” (1979), Ferreira (1979), Vinício (1980). 373 Cf., entre outras reportagens, “Ameaçado...” (1978). 374 Capovilla cita Os amantes da chuva em reportagem de 1977. Cf. O JOGO... (1977). 375 Cf. Santos (1978). 376 O título original, que consta nos créditos, é citação de uma frase de Luís Inácio Lula da Silva como líder sindical. Um dia nublado foi o título conferido a fim de disfarçar o tema do filme durante o processo de

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Tapajós explica que a produção estava acertada com o sindicato, mas necessitava de equipamentos e negativos, tendo contado com a colaboração de várias produtoras de São Paulo, algumas das quais do chamado “jovem cinema paulista” que nascia na Vila Madalena, além da ECA, clandestinamente:

[...] primeiro eu fui na produtora do Ramalho, do fotógrafo, Zetas [Malzoni], que era OCA, que ficava ali na Treze de Maio. Eu falei pra eles “Eu assumi esse compromisso de filmar, mas eu não tenho nada”, e o Zetas já se prontificou: “eu tenho uma câmera e eu topo fazer a fotografia”. Falta película e equipamento de som, um Nagra e um técnico de som. A gente foi na ECA, na escola, e o Chico Coca, que era técnico do departamento de som do ECA, [falou] “mas tudo bem, eu topo também e vou pegar um Nagra da ECA”. Sem falar nada pra ninguém, vai um Nagra da ECA pra fazer o filme. […] Nós fomos na Vila Madalena, onde tínhamos várias produtoras, expusemos o assunto, o Claudio Kahns inclusive deve lembrar disso, porque ele era da Tatu, e nós fizemos uma coleta de material, dezesseis milímetros, de material sensível, dezesseis milímetros de diversas produtoras da coisa, cada uma deu um rolo, ponta de filme... (TAPAJÓS, 2013 apud CORREA, 2015, p.229).

Neste ponto, ao retomar a exposição da trajetória de Tapajós, cumpre esclarecer como se deu seu retorno ao cinema, assim como a sua aproximação com o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Ao sair da prisão, em setembro de 1974, o cineasta ingressou na publicidade, emprego que lhe permitiu obter a liberdade condicional, como assinalamos no capítulo 2. Em 1976, acontece o seu retorno à realização cinematográfica, com o média-metragem documentário Fim de Semana (1976), cuja produção esteve ligada à dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo da, atualmente, professora da FAU-USP, Ermínia Terezinha Menon Maricato, defendida em 1977 sob o título “Proletarização do espaço sob a grande indústria: o caso de São Bernardo do Campo”. O filme, que apresenta uma abordagem marxista da construção de casas populares no sistema de mutirão, conquistou o prêmio de melhor filme na V Jornada Brasileira do curta-metragem em Salvador e foi, segundo Tapajós (2015), bastante requisitado por associações de moradores, naquela época de abertura política e de ascensão dos chamados “novos movimentos sociais”. Depois deste filme, o cineasta ministrou no Museu Lasar Segall, dois “Cursos de Apreciação de Cinema”, cujo propósito, relatado para Ridenti (2000, p.341) era “preparar o espectador para ser capaz de decodificar ideologicamente os filmes que ele estava vendo”. A aproximação de Tapajós com o Museu Lasar Segall se deu, conforme explica Maurício Segall a Marcos Corrêa (2015 p.110), por meio de Sérgio Muniz que, conforme mencionamos, o substituíra, juntamente com Ramalho Jr, na direção da instituição durante a sua prisão. A

montagem e revelação de negativos. Já Greve de março foi o título dado a posteriori para facilitar a identificação. Cf. Maria Carolina Silva (2008, p.105-106).

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primeira turma do curso de “apreciação de cinema” foi formada essencialmente por estudantes, enquanto a segunda teve entre seus alunos vários dirigentes sindicais, como Djalma Bom e Expedito Soares Batista, levados pelo professor do curso supletivo do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, José Roberto Michellazzo, militante da Ala Vermelha.377 A partir dessa aproximação, em 1977 Tapajós ministrou outro curso semelhante, agora no próprio Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, e selou a partir daí uma longa parceria com esse Sindicato, que rendeu como frutos os curtas e média-metragens antes citados e o longa Linha de montagem (1981). Um caso Comum (1978) e A luta do povo (1980) são outros filmes resultados da articulação de Tapajós com os “novos movimentos sociais”. Batista também filmou sua abordagem das greves operárias de fins dos anos 1970 nos documentários de média-metragem, Greve! (1979), sobre a greve dos metalúrgicos do ABC, e Trabalhadores, presente! (1979) que aborda, além dessa greve, também a dos motoristas e cobradores de ônibus de São Paulo. Realizou, na sequência, o longa de ficção O homem que virou suco (1980), relacionado, igualmente, à temática do operário e da greve, como vimos no capítulo 3. Existe uma significativa fortuna crítica sobre os filmes que abordaram as greves operárias da virada dos anos 1970 para 1980, tratando das diferentes concepções estéticas e ideológicas, bem como dos contextos de realização, e que pode ser acompanhada tanto em fontes primárias, como debates, entrevistas e análises da época378, quanto em trabalhos acadêmicos como as teses de Maria Carolina Granato da Silva (2008) e Marcos Corrêa (2015), com abordagens mais amplas, ou a dissertação de Krishna Gomes Tavares (2011) que trata mais especificamente da produção de Tapajós. Alguns dos capítulos de Cineastas e imagens do povo de Jean-Claude Bernardet (2003) também abordam esse corpus. E se encontra em andamento um amplo projeto, Perspectivas e projeções: o protagonismo da classe operária no cinema dos anos 70 (Brasil e Argentina) coordenado pelo Prof. Rafael Rosa Hagemeyer da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)379. Sem adentrar

377 Cf. Maria Carolina Silva (2008, p.84). 378 Por exemplo, A revista Escrita/Ensaio de março de 1980 apresenta a transcrição de um debate, ocorrido em 2 de junho de 1979 na antiga sede da Livraria Escrita em São Paulo, entre os realizadores de filmes sobre as greves dos metalúrgicos: João Batista de Andrade; Renato Tapajós; Olga Futemma; Sérgio Toledo Segall e Roberto Gervitz (esses últimos realizadores de Braços cruzados, máquinas paradas, 1979). E o n.46 da revista Filme Cultura, publicada em abril de 1986 sob o título “Os operários e a fábrica de Lumière” é totalmente dedicado aos filmes sobre o movimento operário do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, contendo apreciações de críticos de cinema, entrevistas com cineastas e diretores de fotografia responsáveis por esses filmes, e inclui ainda a transcrição dos curtas-metragens Greve! De Batista e Greve de março de Tapajós. 379 Tomamos contato com o projeto pela tese de Marcos Corrêa (2015), um de seus integrantes. De acordo com o autor (2015, p.21) o projeto é parceria entre UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina), UFSC

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nessas questões, que extrapolariam os nossos objetivos, cabe assinalar que os cineastas aqui em pauta tinham diferentes concepções ideológicas que transparecem na construção dos filmes. No final dos anos 1970, João Batista de Andrade militava na reconstrução do PCB, participando da direção estadual do partido e do jornal A Voz da Unidade380, enquanto Renato Tapajós participou do processo de construção do Partido dos Trabalhadores (PT). Para Tapajós esse seu posicionamento pode ter sido um fator preponderante para ele não ter conseguido levar às telas seu projeto de ficção sobre o movimento operário. Seu roteiro O silêncio das máquinas, escrito em co-autoria com Antonio Fernando Bueno Marcelo, pleiteou recursos da Embrafilme via Polo Cinematográfico Paulista e não foi contemplado. Expondo sua perspectiva em entrevista à autora (Tapajós, 2015), o cineasta considera que pode ter contribuído para o filme ser preterido a censura oficial, corroborada pelo fato de ele ser um ex-preso político, mas ele considera mais decisivo o fato de que projetos como o de Leon Hirszman, Eles não usam black-tie (1981), alinhado a uma ideologia pecebista381, se afinavam mais com a “visão de mundo” da Embrafilme, somando-se ainda o fato de ele nunca ter sido muito afeito aos debates da política cinematográfica, não se empenhando pessoalmente em pleitear os recursos estatais382. De acordo com o projeto depositado na Cinemateca

(Universidade Federal de Santa Catarina) e a FAPSP (Faculdade do Povo). No Currículo Lattes do professor Hagemeyer o projeto é assim descrito: “O projeto visa estabelecer uma comparação entre os filmes realizados no Brasil e na Argentina que enfocavam os movimentos da classe operária no contexto dos anos 1970. Considerando o caráter variado dessas produções cinematográficas, que abordavam a temática a partir de diferentes perspectivas (ficção ou documentário), se pretende analisar as projeções feitas pelos autores em relação à tomada de consciência da classe operária em relação à luta econômica, social e política. Entendendo que o enfoque dado pelas tomadas de câmera e a organização da sequência das cenas presente na elaboração e execução dos roteiros operam uma caracterização dos personagens e conferem sentido aos seus conflitos dentro de um nexo narrativo, seria possível perceber, a partir da visão política que cada diretor em seu contexto, de que forma as diversas correntes históricas atuantes no movimento (anarquismo, socialismo, trabalhismo) foram representadas nesses filmes.” (HAGEMEYER, Rafael Rosa. Currículo Lattes. Disponível em: Acesso em: 15 dez. 2015. 380 Cf. Andrade apud Caetano, 2004, p.306. 381 Nas palavras de Tapajós: “uma visão mais paternalista, uma visão que delega muito mais a uma classe média instruída e ideologicamente formada a tarefa de conduzir os operários, enquanto a minha visão, tanto naquele filme como no Linha de montagem, era buscar no movimento operário a interpretação do processo político que fosse nova em relação aquela visão ideológica antiga”. (Tapajós, 2015). 382 Conforme Tapajós (2015): “Olha eu acho que revendo hoje minha trajetória em relação à Embrafilme etc eu acho que eu nunca fui um bom político na área do cinema, né? Eu nunca tive muita paciência como alguns outros cineastas pra ficar dias nas ante-salas da Embrafilme pra ver se conseguia falar com alguém ou como alguns outros que chegaram a montar acampamento, efetivamente um acampamento, no saguão da Embrafilme […] enfim meio que a Embrafilme era um feudo dos herdeiros do Cinema Novo, que nessa altura não faziam mais Cinema Novo coisíssima nenhuma, e eram os pais da Embrafilme então a Embrafilme era um feudo deles e muito pouca gente de fora conseguia entrar e conseguia dinheiro da Embrafilme e quem conseguia era quem tinha mais habilidade política nesse sentido, de se vender para a Embrafilme, de vender seu projeto. Então eu acho que num certo sentido o filme acabou não sendo feito porque eu não era das pessoas mais bem vistas dentro da Embrafilme e por outro lado naquele momento aquele roteiro era extremamente complicado [...] é preciso fazer o seguinte: foi mais ou menos nessa época, quer dizer, um pouco depois, mas é dentro do mesmo quadro de greves em São Bernardo etc que o Leon Hirszman fez Eles não usam black-tie [...] Eu acho que o Leon era um grande cineasta, tinha visão de cinema maravilhosa mas, num certo sentido, todo esse pessoal hoje dá pra

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Brasileira383, O silêncio das máquinas trataria do movimento operário grevista do final dos anos 1970 relacionando-o com a greve de Osasco de 1968 e a repressão sobre ela, tendo como protagonista o operário Ferreira que vive os dois momentos históricos. Outro argumento não filmado de Tapajós nessa época é Anotações esparsas a respeito de um homem violento384 que, por meio da trajetória do personagem Castanheira, operário imigrante nordestino, passa por diversas problemáticas histórico-políticas brasileiras, da jagunçagem no nordeste às péssimas condições de trabalho na construção de Brasília, dos comícios pelas reformas de base à união com estudantes na guerrilha urbana. Cabe mencionar que, como militante da Ala Vermelha do PC do B, Tapajós conviveu com os operários Aderval Gomes Coqueiro e os irmãos Carvalho – Devanir José de Carvalho, Daniel José de Carvalho e Joel José de Carvalho – companheiros de organização que viriam a ser assassinados pela ditadura385. Outro roteiro que, segundo Tapajós (2015), foi submetido sem sucesso à Embrafilme foi Joce (1977), escrito em parceria com Zetas Malzoni e que, segundo ele, “era a estória de uma imigrante boliviana que era levada a fazer trabalho escravo em São Paulo e acabava sendo protegida por um policial ligado ao Esquadrão da Morte; então... era uma estória extremamente violenta e levava essas relações humanas a um limite quase insuportável” (TAPAJÓS, 2015). Ramalho Jr. trabalha com contradições semelhantes em Paula – A história de uma subversiva (1979) quando o personagem (ex-)comunista Marco Antônio precisa contar com os serviços do ex-delegado do DOPS Oliveira para investigar o caso do desaparecimento de sua filha de quinze anos. O filme se passa no final dos anos 1970 e remete a acontecimentos de quase uma década antes, quando Oliveira foi responsável pela morte da estudante Paula, namorada de Marco Antônio e militante da esquerda amada. Conforme analisamos em Leme (2013), não obstante as eventuais deficiências estéticas, gente dizer isso com tranquilidade era ligado ao Partidão senão organicamente pelo menos pelo ponto de vista de uma certa visão de mundo, uma certa postura ideológica que batia com Embrafilme. Então o meu filme, o meu roteiro O silêncio das máquinas não era um filme que batesse com essa visão de mundo da mesma maneira como Linha de montagem não veio a ser um documentário que coincidisse com essa visão de mundo, né? Eu acho que havia muito claramente naquele momento, de um lado você tinha ABC da greve [Leon Hirszman] e o Greve do João Batista, e de um lado o Linha de montagem, outra proposta de abordagem política. Eu acho que O silêncio das máquinas radicalizava um pouco em relação a um tipo de proposta política que não era aceita, não era bem vista por essa tendência que dominava a Embrafilme, então lá uma eventual pressão da censura pode ter havido, censura oficial pode ter havido, mas eu acho que muito peso teve essa divergência de visão. 383 TAPAJOS, Renato. O silêncio das máquinas. São Paulo: s.n., 1979a. 32 p. Dat. Projeto apresentado à Embrafilme. Incl. orçamento e currículo. [Acervo Cinemateca Brasileira]. 384 TAPAJOS, Renato. Informações esparsas a respeito de um homem violento. São Paulo? : s.n., 1979?b. 30 p. Fot. [Acervo Cinemateca Brasileira]. 385 Tapajós relata a Costa (2011, p.153): “principalmente o Devanir e o Coqueiro foram caras com quem eu trabalhei na clandestinidade durante um bom tempo. E o assassinato deles foi uma coisa pessoal, uma coisa muito pessoal. É isso.” Sobre os irmãos Derly, Devanir, Joel, Daniel e Jairo, cinco irmãos militantes, três deles mortos pela ditadura, ver Yuri Carvalho e Diorge Konrad (2012) e o documentário Família Carvalho- retrato da resistência operária contra a ditadura produzido pelaTelevisão dos Trabalhadores (TVT).

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Paula é um filme bastante interessante por ser um dos pioneiros na abordagem direta da ditadura militar, da repressão e da tortura e por traçar um panorama da época por meio de personagens pertencentes às diferentes gerações. O filme tem também importância por assinalar a continuidade dos métodos violentos de interrogatório policial. Oliveira, no tempo presente do filme (1979), atua na chefia da Divisão de Tóxicos e utiliza-se dos mesmos “métodos” de outrora em suas investigações, como fica claro quando tortura um usuário de drogas a fim de obter informações sobre a filha de Marco Antônio, cena presenciada por este que se vê numa situação extremamente desconfortável pois afinal o delegado agora está “a seu serviço”, como faz questão de ressaltar. O filme é dedicado ao amigo “Benê”, que sabemos ser Antônio Benetazzo, amigo de Ramalho dos tempos de Politécnica que enveredou pela luta armada e foi assassinado pela ditadura, conforme já mencionado . É interessante notar que, não obstante a temática “difícil”, o filme obteve recursos da Embrafilme, via Polo Cinematográfico Paulista. Não há como chegar a conclusões definitivas, mas é possível que as causas que levaram os projetos de Tapajós a serem preteridos estejam associadas não só aos temas politicamente radicais de seus roteiros mas também à concorrência travada com os projetos dos colegas paulistas que detinham mais experiência com longa-metragem e, consequentemente, eram mais “confiáveis” do ponto de vista empresarial pela Embrafilme. Cabe lembrar que Tapajós não tinha realizado até o momento nenhum longa-metragem. Seu primeiro longa documentário foi Linha de montagem (1981) e sua estréia no longa de ficção deu-se somente em 2014 com Corte seco, filme que aborda centralmente a tortura e que demorou muitos anos para conseguir realização. Enquanto Ramalho, por exemplo, na época havia dirigido Anuska, manequim e mulher (1968), o episódio Joãozinho (1976) do longa Sabendo usar não vai faltar (1976) e À flor da pele (1976), este premiado como melhor filme, melhor roteiro e melhor atriz para Denise Bandeira no V Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, de 1977, como mencionado no capítulo 2; e dirigira ainda o episódio para piloto de TV, Caramuru (1978). À época das grandes greves metalúrgicas, Ramalho também escreveu um roteiro relacionado a elas, Cristais de Prata386, que tem como personagem um cineasta que filma o movimento operário do final dos anos 1970. O enfoque, entretanto, é metalinguístico, menos político e mais voltado às relações pessoais, o que é marca da trajetória de Ramalho, que argumenta buscar as estruturas sociais por meio das relações humanas, creditando sua

386 RAMALHO JUNIOR, Francisco. Cristais de prata. 1.trat. São Paulo? : s.n., 1979. 32 p. Fot. Incl. currículo. [Acervo Cinemateca Brasileira].

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inspiração à Lukács. Conforme nos diz em entrevista: “Ser radical é pegar o homem pela 387 raiz”, citando livremente Marx para esclarecer sua concepção de humanismo . Diferentemente de seus pares, Roberto Santos, ainda que não tenha ficado alheio às greves do ABC –lembremos que o personagem Antônio de Amantes da chuva é metalúrgico e são mostradas as suas condições de trabalho – não tratou das greves nos seus filmes. Na época em que Batista e Tapajós filmavam o movimento, ele fazia o documentário Judas na passarela, sobre a tradicional Malhação de Judas no bairro do Cambuci. Durante a montagem, o seu filme revezou a moviola com um dos documentários sobre as greves de São Bernardo e Roberto teria comentado, naquela circunstância , conforme Olga Futemma (1982, p.56-57): “é bonito ver esses operários organizados, lutando e reivindicando. É forte. Mas isso é coisa para vocês. Eu cuido do homem que não sabe, o que coça a cabeça. E não sabe.”

387 “Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem” (MARX, 2005, p.151).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Será brasileiro o cinema paulista?” pergunta o crítico Ronaldo de Noronha em artigo para O Estado de Minas publicado em 06 de março de 1979. Em tom acentuadamente ácido, Noronha menciona diferentes filmes paulistas então em exibição na capital mineira – Ilha dos prazeres proibidos (Carlos Reichenbach, 1979), Os depravados (Tony Vieira, 1978), O reformatório das depravadas (Ody Fraga, 1978), Ninfas diabólicas (John Doo, 1978), Parada 88 – limite de alerta (José de Anchieta, 1978) e A casa das tentações (Rubem Biáfora, 1977) – como ponto de partida para, globalmente, desqualificar todo o cinema produzido em São Paulo. Independentemente de “gêneros, pretensões artísticas, objetivos ideológicos e filiações estéticas”, o que une esses filmes, conforme a avaliação do crítico, é a malfadada característica de serem “paulistas”. Fazendo-nos recordar as palavras de Glauber Rocha que, como citado no capítulo 1, afirmara, no início dos anos 1960, que “os cineastas paulistas erram, e errarão sempre” (ROCHA, 2003 [1963], p.117), Noronha atribui as causas do fracasso do cinema paulista à herança da Vera Cruz. Detendo-se sobre Parada 88 e A casa das tentações, filmes de maiores pretensões “autorais” entre os listados, ele estende suas conclusões a respeito desses filmes de José de Anchieta e Biáfora ao conjunto da produção de São Paulo: cinema “pesado e sem graça”, incluindo aí nominalmente Khouri, Mojica Marins, Person, Capovilla, Roberto Santos (este corroteirista e coprodutor de Parada 88) e “todos os outros”. Em sua perspectiva, remetendo mais uma vez às palavras de Glauber Rocha:

O imenso erro histórico que foi a experiência da Vera Cruz – uma tentativa de europeizar o cinema brasileiro à força de transplantar pessoas e métodos de trabalho – foi decisiva, certamente, na formação dessa tradição de filmes elaborados e frios, infinitamente distantes desse nosso mundo. Definitivamente, São Paulo é um outro país388. O que não deixa de ser um bem para o cinema brasileiro, afinal. (NORONHA, 1979).

As considerações de Noronha, que reverberam, quase vinte anos depois, as palavras de Rocha, servem de ensejo para reflexão acerca das dificuldades do cinema paulista. Como vimos, o malogro da experiência industrial da Vera Cruz legou a São Paulo o estigma de “túmulo do cinema”, sinônimo de modelo a ser superado tanto em termos estéticos quanto de produção. O estigma atingia também o âmbito “econômico”, refletindo-se em dificuldades

388 Como já visto, Glauber afirmara em 1959: “São Paulo, no Brasil, é um país estranho como cultura” (GLAUBER, 1959 apud YUTA, 2004, p.102).

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de recursos para produção. Assim, a situação dos cineastas paulistas da “geração Cinema Novo” era bastante complicada, pois, de um lado, lidavam com a real influência do cinema “acadêmico”, que atravessava a formação dos mais velhos e era sentida, por exemplo, na necessidade de trabalhar com os profissionais técnicos disponíveis, em sua maioria egressos da experiência do cinema industrial. E, de outro lado, mesmo quando preocupados em buscar um “novo” cinema, afinando-se às críticas cinemanovistas à Vera Cruz, as condições econômicas hostis do meio cinematográfico paulista impunham a eles dificuldades concretas para a produção de filmes autorais. Assim, pode-se considerar que, num círculo vicioso, as próprias dificuldades de realização contribuíram para um maior apego à qualidade técnica e às pretensas fórmulas do cinema “comunicativo” e comercial, tolhendo voos artísticos mais altos, o que tornou, em muitos casos, o cinema paulista mais “pesado” do que aquele que floresceu no Rio a partir de experimentações – a exceção é a vertente Marginal do cinema paulista que radicalmente se rebelou contra o “academicismo” cinematográfico. No caso dos “paulistas do entre-lugar” atentar para essas questões ajuda a compreender, a partir de um olhar sociológico, as condições que contribuíram para que vários de seus projetos tivessem sua realização frustrada e vários outros não alcançassem grande representatividade estética. Nesse sentido, esta tese não pretendeu advogar a existência de um movimento cultural desconhecido representado pelo cinema dos “paulistas do entre-lugar” e, tampouco, atribuir aos filmes qualidades estéticas que, em vários casos, não estão presentes. Igualmente, conforme frisamos ao longo da tese, não defendemos que os cineastas analisados constituíram um grupo coeso. Evitamos, por isso, o uso da palavra “grupo” (e quando o fizemos utilizamos aspas), preferindo em seu lugar o termo “conjunto”. Eles não se reconheciam como uma “formação” – para utilizar a expressão de Raymond Williams (2000) – mas compõem um conjunto delimitado por esta pesquisa a partir dos traços comuns partilhados: estarem estabelecidos em São Paulo ao longo do período estudado; terem realizado o primeiro filme ainda na primeira metade dos anos 1960; serem oriundos dos meios universitários e apresentarem tendências políticas de esquerda. Partilhando todas essas características, estão os sete cineastas aqui reunidos, e somente eles. Nesse sentido, embora Sérgio Muniz e Renato Tapajós apresentem trajetórias que se diferenciam substancialmente dos outros cinco por terem eles realizado exclusivamente documentários e, desse modo, tenham ficado obscurecidos ao longo dos capítulos dedicados à análise dos filmes ficcionais, eles detêm as características definidas para a composição do conjunto de cineastas, tendo travado diversas relações com os demais e partilhado da mesma posição no meio cinematográfico, enfrentando as complicadas condições de produção em São Paulo que dificultaram, inclusive, a

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concretização de seus projetos de ficções. São, portanto, todos os sete, a contraparte paulista da “Geração Cinema Novo” e o que se buscou ao longo desta tese foi lançar luz a essa fração pouco conhecida do cinema brasileiro, contribuir para a compreensão dos meandros do meio cinematográfico e, por que não, conceder aos cineastas e aos filmes um espaço na historiografia que lhes foi negado. Entendemos que a condição de “entre-lugar” foi fator determinante para que o cinema aqui estudado ficasse encoberto historicamente. Estudos voltados para o interesse estético privilegiaram as obras do Cinema Novo e do Cinema Marginal, enquanto trabalhos voltados para objetos menos “nobres”, como a produção erótica da Boca do Lixo, adotaram enfoques que igualmente desconsideraram a produção dos “paulistas do entre-lugar”, ou seja, a meio caminho entre o polo autoral e o polo comercial, as obras desses cineastas foram em larga medida ignoradas. Outro fator causal que nos parece decisivo para o “esquecimento” da produção dos “paulistas do entre-lugar” é a ausência, em muitos de seus filmes, da problemática em torno da “identidade nacional” que, em geral, é fio condutor das análises sobre cinema brasileiro, sejam elas nacionais ou estrangeiras389. Como visto, ao longo dos anos 1960 e 1970 floresceu em São Paulo, à sombra do Cinema Novo, uma vertente de filmes nos quais a modernidade urbana capitalista é focalizada com centralidade. Enquanto o movimento radicado na capital carioca notabilizava-se ao se inserir nos debates em torno da “questão nacional”, determinada fração do cinema paulista dava forma a uma linha temática singular de abordagem da problemática da modernidade, retratando, com menor ou maior acuidade crítica, questões como a consolidação da indústria cultural no Brasil e a reificação das relações sociais. Esta linha de abordagem ficou relativamente obscurecida na história do cinema brasileiro, e isso pode ser explicado pela posição secundária ocupada pelo cinema paulista no meio cinematográfico da época, estando marcado pelas dificuldades de viabilização de projetos, pela deficiente coesão entre os cineastas e pela irregularidade de produção. No entanto, para além desse aspecto estrutural, consideramos fator explicativo chave do “esquecimento” dessa vertente da cinematografia, a ausência, nesse conjunto específico de filmes, da temática inerentemente “nacional”. A busca por uma “autenticidade” ou “originalidade” brasileira, em termos temáticos e estilísticos, foi elemento central na gênese do Cinema Novo, sendo, a partir de então, por vezes assumida pela crítica e pela

389 Mesmo quando se trata de apontar a ausência dessa problemática como no caso do Cinema Marginal. Cf., por exemplo, Debs (2002) ; Debois (2010); Johnson e Stam (1995); Medeiros (1992) ; Oliveira (2013); Shaw et Dennison (2007); Thomas (2009), Xavier (2006b, 2007, 2012).

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historiografia como baliza na apreensão dos filmes brasileiros. Se pensamos o contexto dos anos 1960 e 1970, quando a afirmação de um cinema nacional estava ligada à afirmação do país com uma perspectiva “descolonizadora” e de aposta no potencial revolucionário do “terceiro mundo”, é possível compreender o desinteresse por aquela fração do cinema paulista que trabalhava com um repertório comum ao cinema europeu da época – o vazio existencial, a crítica à sociedade de consumo e à reificação das relações etc – e não trazia notáveis rupturas estéticas. O Cinema Novo, buscando elementos na cultura popular e em referenciais brasileiros como Humberto Mauro, inventou uma “tradição” para o cinema brasileiro, inscrevendo-o no panorama internacional. O cinema paulista, mesmo nos exemplos refinados em termos de linguagem como São Paulo, sociedade anônima (Luiz Sérgio Person, 1965) – filme recorrente nas listas de melhores filmes brasileiros – foi visto como menos “original” tendo sido recebido pela crítica estrangeira com ressalvas e apreendido em comparações com filmes europeus390, diferentemente dos filmes do Cinema Novo que são tomados como representativos da “originalidade” do Brasil e/ou do Terceiro-Mundo. Ávida pela “autenticidade” revolucionária, a crítica estrangeira apreendeu o filme de Person, por exemplo, como um filme “intimista”, negligenciando seu caráter social. E, no Brasil, o “grupo” paulista também não desfrutava de um “suporte” da crítica, mal posicionados que estavam por não pertencerem ao Cinema Novo e ao mesmo tempo contestarem o antigo cinema de São Paulo que, conforme assinala Capovilla (apud Cardenuto, 2013, p.250), ainda detinha a hegemonia da crítica nos principais jornais do estado.391 Batista (Andrade, 2013) lembra ainda da dificuldade de afinar o discurso às novas propostas do Cinema Marginal que nasciam na Boca, explicando que sua posição era complicada pois estava no fogo cruzado entre a crítica dominante, que “era muito de direita, o principal deles era Biáfora, visão hollywoodiana do cinema, anticomunista ferrenho”, e as posturas “anarquistas” dos jovens da

390 Ver, por exemplo, “Novo chez Vigo” (1967), René Predal (1968), Jacques Belmans (1972) e os trechos de críticas italianas citados por Ninho Moraes (2010, p.88-90). 391 Mesmo os críticos Jean-Claude Bernardet e Paulo Emilio Salles Gomes que, como vimos, estavam próximos dos “paulistas do entre-lugar”, raras vezes escreveram sobre os filmes desses “conterrâneos” e nunca constituíram com eles um grupo de apoio, necessário para se formar uma “escola” ou “movimento”, como Michel Marie (2011) apontou no caso da Nouvelle Vague e como se observou no caso do Cinema Novo brasileiro, com seus integrantes a revezar funções na realização cinematográfica, na crítica e na divulgação, obtendo, ainda, amplo apoio da crítica francesa, como mostra Figueirôa (2000) e como avaliamos em Leme (2015). Salvo filmes próximos à estética marginal (O filho da televisão, Gamal, O profeta da fome e Vozes do medo), noticiados e avalizados pelo crítico Jairo Ferreira (2006), o mais próximo que os “paulistas do entre- lugar” estiveram da parceria crítico-cineasta na legitimação de seus filmes foi em meados dos anos 1960, com o apoio do jornalista Ignácio de Loyola Brandão, quase um “membro” do “grupo”, que partilhava espaços, discussões e preenchia sua coluna Cine Ronda com notas e comentários sobre os filmes dos amigos. Foi um breve momento forte dos “paulistas do entre-lugar”, assinalado na tese, com projetos inclusive de outras adaptações de Loyola, não realizadas.

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Boca. Falando sobre Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Jr, 1968), o crítico do Jornal do Brasil, Ely Azeredo (1968) comenta a diferença existente nos níveis de suporte concedidos aos filmes do Cinema Novo e aos filmes paulistas:

Da oferta de equipamento à promoção em colunas, do primeiro empurrão de financiamento até o jeitinho para ir a um festival, está tudo pronto para os que conheçam as pessoas certas e pensem de acordo com certas cartilhas. Com uma exceção parcial: São Paulo. Ser jovem cineasta paulista não é tão fácil, exige estágio no Rio. Talvez por isso a frustração do primeiro filme de Francisco Ramalho Júnior não encontre uma promoção defensiva tão grande. (AZEREDO, 1968, p.2, destaque do autor).

Um estudo interessante a ser feito com maior vagar é o da recepção dos filmes pela crítica nacional e estrangeira, considerando que, como defende Jean-Pierre Esquenazi (2004, 2007a, 2007b), cada filme constitui em si um processo social, adquirindo significados desde o momento de produção até a interpretação. Entretanto, o exame geral da recepção da filmografia dos “paulistas do entre-lugar” nos permitiu verificar que se trata de uma filmografia que, salvo raras exceções, não alcançou notoriedade nem pelas marcas estéticas e autorais, nem pela expressividade comercial, ficando numa espécie de limbo que está relacionado à oscilante ou indeterminada posição dos seus realizadores, situados num “entre- lugar”. Como objetivamos demonstrar ao longo da tese, tanto os filmes realizados como os projetos abortados depõem sobre os sinuosos percursos dessa fração do cinema paulista. No cotejo e entrelaçamento das trajetórias, saltam aos olhos pontos de contato, parcerias, dificuldades compartilhadas e objetivos comuns. E confirma-se a hipótese da existência dos “paulistas do entre-lugar”, cineastas irmanados na partilha de um (não) lugar comum. Publicidade, televisão, docência, jornalismo, militância político-partidária direta, são diversas as atividades extra-cinematográficas realizadas pelos “paulistas do entre-lugar”, que os singularizam em relação aos cinemanovistas ou mesmo a vários dos cineastas da Boca do Lixo que conseguiram se manter como profissionais exclusivos do cinema. Ao longo desta pesquisa atravessamos um vasto campo de investigação que envolveu não somente o estudo das múltiplas trajetórias e dos diversos filmes, mas também o conhecimento dos meios cinematográfico, publicitário e televisivo, assim como a compreensão do contexto sócio-histórico em torno de duas décadas, de finais dos anos 1950 até o início dos anos 1980. Cada uma das frentes de análise pode ser investigada com mais detalhes, desdobrando-se em outras pesquisas. O objetivo aqui foi precisamente adotar um enfoque global e sociológico, de modo a favorecer o deslindamento das relações entre cinema

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e sociedade, tendo como inspiração, no âmbito dos estudos de cinema brasileiro, notadamente, os trabalhos de Maria Rita Galvão (197-, 1981) e Jean-Claude Bernardet (1979, 1980a, 2003, 2007). Essas relações, como defendemos ao longo da tese, não são diretas e mecânicas e envolvem considerar não somente as mediações sociais de âmbito mais geral como também aquelas ligadas especificamente ao meio cinematográfico, o que, conforme já argumentado, contribui para explicar a notória atenção dedicada pelo cinema paulista às relações capitalistas de produção, nas quais ele próprio estava inserido. O Cinema Novo ficou célebre pelo seu vigor artístico, levando às telas imagens expressivas que alegorizavam o país. Enquanto isso em São Paulo, fazia-se um cinema mais “duro”, para utilizar a expressão que Batista usou em entrevista para esta pesquisa (Andrade, 2013a). De menor arrojo estético, o cinema paulista que estudamos aqui apresenta, porém, ligações fortes com a realidade social, revelando aspectos que passavam despercebidos, ficavam em segundo plano ou eram abordados acriticamente. Essa perspectiva atenta às contradições da sociedade de seu tempo, tem fundamento inclusive nas relações diretas ou indiretas estabelecidas por esses cineastas paulistas com as Ciências Sociais. Capovilla cursou Filosofia na USP e frequentou aulas ministradas por Antonio Candido e Florestan Fernandes392; Muniz e Tapajós cursaram efetivamente o curso de Ciências Sociais, o primeiro por um ano, o segundo quase até a conclusão; e os Politécnicos Batista e Ramalho tiveram relações com os cientistas sociais uspianos, frequentando sessões do célebre Seminário de estudos d´O Capital de Karl Marx, ao lado de Sérgio Muniz, sendo que este e Ramalho tiveram ainda atuação direta no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Person, por sua vez, declarou que se sentia um “um sociólogo frustrado” (PERSON, 1975, in LABAKI, 2002, p.29) e seu amigo Antunes Filho, como vimos, realizou seu único filme, Compasso de espera, tendo por inspiração estudos de Florestan Fernandes. Desse modo, seja pela herança da Vera Cruz, seja pelas dificuldades de produção que atrelavam os filmes a objetivos comerciais, seja pela “dureza” sociológica (ou, como defendemos, pela conjunção desses e outros fatores), o cinema paulista de que tratamos aqui pode não ter legado obras-primas artísticas, como as mais destacadas do Cinema Novo, mas deixou algumas obras vigorosas e outras que, mesmo tendo menor valor estético, não merecem ser desprezadas sobretudo por pesquisas de interesse sociológico, como a nossa. Em sua arguição à tese de doutoramento de Maria Rita Galvão, Antonio Candido (1979) fala do problema delicado de lidar com as relações entre o “condicionamento social”,

392 A Cardenuto, Capovilla declara: “ Eu estava aprendendo sociologia com o professor Florestan Fernandes e procurava uma arte com visão crítica sobre a sociedade”. (CAPOVILLA apud CARDENUTO, 2013, p.253).

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“a função cultural”, e o “significado estético” das produções artísticas. Conforme argumenta o mestre, pesquisadores embrenhados nessa difícil tarefa correm sempre o risco de “queimarem os dedos”. Chamuscada ou não, esta tese terá cumprido seu objetivo se, no trato das relações entre condicionamento social e significado cultural, houver contribuído para a historiografia do cinema brasileiro e, especialmente, para o desenvolvimento dos estudos da sociologia do cinema no Brasil.

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AMANTES da chuva, Os. Direção: Roberto Santos. Roteiro: Roberto Santos; Carlos Queiroz Telles; Francisco Ramalho Jr.. Produção: Letácio Camargo. Produção executiva: Francisco Ramalho Jr. São Paulo (SP): Roberto Santos Produções CinematográficasLtda; Oca Cinematográfica Ltda., 1978. (106 min.), son. color.

AMOROSAS, As. Direção: Walter Hugo Khouri. Roteiro: Walter Hugo Khouri. Produção: Walter Hugo Khouri; William Khouri. São Paulo (SP): Kamera Filmes; Columbia Pictures; INC - Instituto Nacional de Cinema, 1968. (104min), son. p&b.

ANJO mau, Um. Direção: Roberto Santos. Roteiro: Roberto Santos; Cláudio Afonso baseado na obra homônima de Adonias Filho. Produção: Walter Hugo Khouri; William Khouri. São Paulo (SP): Companhia Cinematográfica Vera Cruz; Twentieth Century Fox do Brasil; Kamera Filmes; INC - Instituto Nacional de Cinema; Cinedistri Ltda, 1971. (107min). son. color.

ANUSKA, manequim e mulher. Direção: Francisco Ramalho Jr. Roteiro: Francisco Ramalho Jr. baseado no conto “Ascensão ao mundo de Annuska” de Ignácio de Loyola Brandão. Produção: Sidnei Paiva Lopes. Produção executiva: João Batista de Andrade. São Paulo (SP): Tecla Produções Cinematográficas; R.P.I. Filmes Brasileiros de Distribuição; Cine Distribuidora Lívio Bruni S.A., 1968. (97min), son. p&b.

ARROZ e feijão. Direção: Roberto Santos. In: CONTOS eróticos. Direção: Roberto Santos, Eduardo Escorel; Roberto Palmari; Joaquim Pedro de Andrade. Produção: César Mêmolo Jr.; Jeremias Silva Filho; Yara Nesti; Cristiano Antonio; Sérgio Mesquista. São Paulo (SP):Lynxfilm S.A., 1977, (105min), son.color.

AUDÁCIA!. Direção: Antonio Lima; Carlos Reichenbach Filho. Produção: Percival Gomes de Oliveira. Rio de Janeiro (RJ); São Paulo (SP): Horus Filmes; Xanadu Produções Cinematográficas, 1970. (87 min). son. p&b.

AV E N T U R A , A . [ L'avventura]. Direção: Michelangelo Antonioni. Roteiro: Michelangelo Antonioni; Tonino Guerra; Elio Bartolini. Produção: Amato Pennasilico. [S.l] (Itália): Cino del Duca; Produzioni Cinematografiche Europee (P.C.E.); Societé Cinématographique Lyre, 1960. (143 min), son. p&b.

393 São citados aqui os filmes efetivamente visionados e analisados para esta pesquisa, excetuando-se aqueles apenas citados ao longo da tese, assim como aqueles dos quais não há copias disponíveis e que foram comentados a partir de fontes orais ou bibliográficas. Para a elaboração das referências foram coletados dados das fontes audiovisuais e/ou em consulta à base de dados “Filmografia brasileira” da Cinemateca Brasileira e ao portal IMDb. Disponível em: Acesso em: 10 fev. 2016.

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BEBEL, garota-propaganda. Direção: Maurice Capovilla. Roteiro: Maurice Capovilla; Roberto Santos; Afonso Coracy; Mario Chamie, baseado no romance “Bebel que a cidade comeu” de Ignácio de Loyola Brandão. Produção: Ivan Souza. São Paulo (SP): Difilm Distribuidora e Produtora de Filmes Brasileiros; Saga Filmes, 1967. (103 min), son. p&b.

BESTE. Direção: Sérgio Muniz. Roteiro: Sérgio Muniz. Produção: Thomaz Farkas. Produção executiva: Edgardo Pallero; Sérgio Muniz. São Paulo (SP): Thomaz Farkas Filmes(20 min), son.color.

BLOW-UP – Depois daquele beijo. [Blow-up]. Direção: Michelangelo Antonioni. Roteiro: Michelangelo Antonioni; Tonino Guerra; Edward Bond. Produção: Carlo Ponti; Pierre Rouve. Londres (Reino Unido): Bridge Films; Carlo Ponti Production; Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1966. (111 min). son. color.

BRASIL ano 2000. Direção: Walter Lima Jr.. Roteiro: Walter Lima Jr..Produção: Walter Lima Jr.; Claude Antoine. Rio de Janeiro: Mapa Produções Cinematográficas Ltda.; 2000 Film; Difilm Distribuidora e Produtora de Filmes Brasileiros Ltda, 1968. (95min),son.color.

BRAVO Guerreiro, O. Direção: Gustavo Dahl. Roteiro: Gustavo Dahl; de Azevedo Neto. Produção: Gustavo Dahl; Joe Kantor. Rio de Janeiro (RJ): Gustavo Dahl Produções Cinematográficas; Joe Kantor Produções Cinematográficas; Saga Filmes; Difilm, 1969. (80 min.), son.p&b.

BYE Bye Brasil. Direção: Carlos Diegues. Roteiro:Carlos Diegues. Produção: Luiz Carlos Barreto; Lucy Barreto. Rio de Janeiro (RJ): Produções Cinematográficas L. C. Barreto Ltda; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1979. (110min), son. color.

CAFAJESTES, Os. Direção: Ruy Guerra. Roteiro: Ruy Guerra; Miguel Torres. Produção: Jece Valadão. Rio de Janeiro: Magnus Filmes Ltda.; Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A., 1962. (93min), son. p&b.

CARIOCAS, As. Direção: Fernando de Barros; Walter Hugo Khouri; Roberto Santos. Produção: Fernando de Barros. Produção executiva: Alberto Miranda. São Paulo (SP): Wallfilme; A.A.F. Produções Cinematográficas – SP, 1966. (101 min), son. p&b.

CASO dos irmãos Naves, O. Direção: Luiz Sérgio Person. Roteiro: Luiz Sérgio Person; Jean- Claude Bernardet baseado na obra “O caso dos irmãos Naves” de João Alamy Filho. Produção: Glauco Mirko Laurelli; Luiz Sérgio Person. São Paulo (SP): MC Produção e Distribuição Cinematográfica; Lauper Filmes Ltda. 1967. (85 min), son. p&b.

CASO NORTE. Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade. São Paulo (SP): TV Globo; Raiz Produções Cinematográficas. (38min), son. color.

CASSY Jones, o magnífico sedutor. Direção: Luiz Sérgio Person. Roteiro: Luiz Sérgio Person; Joaquim Assis. Produção: Glauco Mirko Laurelli; Luiz Sérgio Person. São Paulo (SP): Lauper Filmes Ltda, 1972. (100min). son. color.

CINCO vezes favela. Direção: Marcos Farias; Miguel Borges; Carlos Diegues; Joaquim Pedro de Andrade; Leon Hirszman. Produção: Leon Hirszman; Marcos Farias; Eduardo

331

Coutinho; Fernando Drummond; Ivan Souza. Rio de Janeiro: C.P.C. - Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes; Saga Filmes Ltda, 1962. (99 min), son. p&b.

COMPASSO de espera. Direção: Antunes Filho. Roteiro: Antunes Filho. Produção: Antunes Filho. São Paulo (SP): Antunes Filho Produções Artísticas Ltda., 1969-1973. (98 min.), son. p&b.

CORDÉLIA, Cordélia. Direção:Rodolfo Nanni. Roteiro: Rodolfo Nanni baseado na peça “O começo é sempre difícil, Cordelia Brasil, vamos tentar outra vez?” de Antonio Bivar. Produção Rodolfo Nanni. São Paulo (SP): Ronan Filmes; INC - Instituto Nacional de Cinema; Cinedistri, 1971. (96 min.). son. color.

DARLING – A que amou demais. [Darling]. Direção: John Schlesinger. Roteiro: Frederic Raphael; John Schlesinger; Joseph Janni. Produção: Joseph Janni; Victor Lyndon; Joseph E.Levine. Londres (Reino Unido): Joseph Janni Production;Vic Films Productions; Appia Films Ltd., 1965. (128 min), son, p&b.

DE raízes e rezas, entre outros. Direção: Sérgio Muniz. Roteiro: Sérgio Muniz; Francisco Ramalho Jr. Produção: Edgardo Pallero; Sérgio Muniz; Thomaz Farkas. São Paulo (SP): Cinema de Cordel; Cinemateca do MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1972. (38 min.). son. color.

DESAFIO, O. Direção: Paulo César Saraceni. Roteiro: Paulo César Saraceni. Produção: Mario Fiorani; Sérgio Saraceni. Rio de Janeiro (RJ): Produções Cinematográficas Imago; Mapa Filmes; Difilm; Urânio, 1965. (100 min.), son., p&b.

DESINIBIDA do Grajaú, A. In: As cariocas. Direção: Daniel Filho. Escrito por: Euclides Marinho baseado na obra de Sérgio Porto. Texto de narração: Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro: TV Globo, 2011. (25 min)., son. Color.

DESINIBIDA do Grajaú, A. In: Terça nobre.Direção: Roberto Talma. Adaptação Geraldo Carneiro da obra de Sérgio Porto. Rio de Janeiro: TV Globo, 1994. (30 min)., son. Color.

DEUS e o diabo na terra do sol. Direção: Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha. Produção: Luiz Augusto Mendes; Jarbas Barbosa; Glauber Rocha. Rio de Janeiro (RJ): Copacabana Filmes; Banco Nacional de Minas Gerais, 1964. (110 min), son., p&b.

DORAMUNDO. Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade; Vladimir Herzog; Roberto Menezes; João Silvério Trevisan; David José; Alain Fresnot baseado no romance homônimo de Geraldo Ferraz. Produção executiva: Assunção Hernandes. São Paulo (SP): Raíz Produções Cinematográficas; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1978. (95 min.), son. Color.

DRAGÃO da maldade contra o santo guerreiro, O. Direção: Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha. Produção: Zelito Viana; Claude Antoine; Glauber Rocha; Luiz Carlos Barreto. Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 1969. (95min), son. color.

DUAS ou três coisas que eu sei dela. [2 ou 3 choses que je sais d'elle]. Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard ; Catherine Vimenet. Produção: Anatole Dauman; Raoul Lévy. Paris (França): Argos Films; Anouchka Films; Les Films du Carrosse; Parc Film, 1967.

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(87 min). , son. color.

ELICPSE, O. [L´eclisse]. Direção: Michelangelo Antonioni. Roteiro: Michelangelo Antonioni; Tonino Guerra; Elio Bartolini; Ottiero Ottieri. Produção: Raymond Hakim; Robert Hakim. Roma (Itália): Cineriz; Interopa Film; Paris Film, 1962. (126 min), son. p&b.

ELES não usam black-tie. Direção: Leon Hirszman. Roteiro: Gianfrancesco Guarnieri; Leon Hirszman baseado na peça teatral homônima de Gianfrancesco Guarnieri. Produção: Leon Hirszman; Carlos Alberto Diniz. Rio de Janeiro (RJ): Leon Hirszman Produções; Embrafilme, 1981. (122 min.), son., color.

EM busca do su$exo. Direção: Roberto Pires. Roteiro: Armando Costa; Sérgio Porto baseado no conto “A donzela da televisão” de Sérgio Porto. Produção: Roberto Pires; Tacito Val Quintans; Zelito Viana. Rio de Janeiro (RJ): Mapa Filmes, 1970. (72min), son. color. 1 DVD.

ESQUINA da ilusão. Direção: Ruggero Jacobbi. Roteiro: Ruggero Jacobbi. Produção: Vittorio Cusani. São Paulo (SP): Companhia Cinematográfica Vera Cruz S.A. Companhia Cinematográfica Vera Cruz, 1953 (90 min).son. p&b. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015.

FALECIDA, A. Direção: Leon Hirszman. Roteiro: Eduardo Coutinho; Leon Hirszman baseado na peça teatral homônima de . Produção: Joffre Rodrigues; Aluisio Leite. Rio de Janeiro (RJ): Meta Produções Cinematográficas Ltda.; Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1965. (85min.) son. p&b.

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FILHO da televisão, O. Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade. In: EM CADA coração um punhal. Direção Sebastião de Souza; José Rubens Siqueira; João Batista de Andrade. São Paulo (SP): Lauper Filmes; Tecla Produções Cinematográficas Ltda.; R.P.I., 1969. son. p&b.

FILHOS e amantes. Direção: Francisco Ramalho Jr. Roteiro: Francisco Ramalho Jr. Produção: Antonio Polo Galante. São Paulo (SP): Produções Cinematográficas Galante; Ouro Nacional Distribuidora de Filmes; Art Films, 1981. (96 min.), son., color.

FIM de semana. Direção: Renato Tapajós. Roteiro: Renato Tapajós. Produção: Elsa Lopes Kathuni; Erminia Maricato; Renato Tapajós; Washington Racy. São Paulo (SP). (31min), son., color.

FUZIS, Os. Direção: Ruy Guerra. Roteiro: Ruy Guerra a partir de argumento de Ruy Gyerra e Miguel Torres. Produção: Jarbas Barbosa. Rio de Janeiro (RJ): Copacabana Filmes, 1963. (80 min.). son. p&b.

GALANTE rei da boca, O. Direção: Alessandro Gamo; Luís Rocha Melo. Produção: Noel Carvalho; Alessandro Gamo; Luís Rocha Melo.São Paulo; Rio de Janeiro: CPC / Umes;

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Inventarte; Maloca Filmes, 2003. (50 min), son., color.,

GAMAL, o delírio do sexo. Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade. Produção: Percival Gomes de Oliveira; Assunção Hernandes. São Paulo (SP): Tecla Produções Cinematográficas Ltda; R.P.I. Filmes Brasileiros em Distribuição; U.C.B. - União Cinematográfica Brasileira S.A., 1969. (78 min). Son., p&b.

GAROTA de Ipanema. Direção: Leon Hirszman. Roteiro: Eduardo Coutinho; Leon Hirszman inspirado na canção homônima de . Produção: Leon Hirszman; Luiz Carlos Pires; Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Saga Filmes; Difilm - Distribuição e Produção de Filmes Brasileiros Ltda.; Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1967. (90min), son. color.

GRANDE cidade, A. Direção: Carlos Diegues. Roteiro: Carlos Diegues; Leopoldo Serran. Produção: Luiz Carlos Barreto; Zelito Viana. Rio de Janeiro: Difilm; Mapa Produções Cinematográficas Ltda.; LC Barreto, 1966. (85min), son. p&b.

GRANDE Momento, O. Direção: Roberto Santos. Roteiro: Roberto Santos; Norberto Nath. Produção: Nelson Pereira dos Santos. São Paulo (SP): Nelson Pereira dos Santos; Santa Clara Filmes, 1958. (80 min.), son. p&b.

GREVE! Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade. Produção: Assunção Hernandes. São Paulo (SP): Raíz Produções Cinematográficas, 1979. (37 min.), son. color.

HERDEIROS, Os. Direção: Carlos Diegues. Roteiro: Carlos Diegues. Produção: Jarbas Barbosa. Rio de Janeiro: J. B. Produções Cinematográficas; Produções Cinematográficas L.C. Barreto Ltda; Ipanema Filmes; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1969. (95 min.) son. color.

HORA e a vez de Augusto Matraga, A. Direção: Roberto Santos. Roteiro: Roberto Santos, baseado no conto “A hora e vez de Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa”, diálogos adicionais de Gianfracesco Guarnieri. Produção: Luiz Carlos Barreto. São Paulo (SP): Luis Carlos Barreto Produções Cinematográficas; Difilm, 1965. (106min). son. p&b.

HOMEM que virou suco, O. Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade. Produção executiva: Assunção Hernandes. São Paulo (SP): Raíz Produções Cinematográficas; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A.; Governo do Estado de São Paulo - Secretaria de Cultura, 1980. (97min.), son. color.

HOMEM nu, O. Direção: Roberto Santos. Roteiro: ; Roberto Santos, baseado no conto “O homem nu” de Fernando Sabino. Produção: Fernando de Barros. São Paulo (SP): Wallfilme; Pelmex Películas Mexicanas do Brasil S.A.; INC - Instituto Nacional de Cinema, 1968. (112 min), son. p&b.

JOGO da vida, O. Direção: Maurice Capovilla. Roteiro: Maurice Capovilla; João Antônio; Gianfrancesco Guarnieri, baseado no conto “Malagueta, perus e bacanaço” de João Antônio. Produção: Maurice Capovilla; João Carlos Betezelli. São Paulo (SP): Documenta Produções Artísticas; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A, 1977. (90 min). son. color.

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JUVENTUDE e ternura. Direção: Aurélio Teixeira. Roteiro: Aurélio Teixeira, Braz Chediak; Fernando Amaral. Produção: Jarbas Barbosa. Rio de Janeiro: Produções Cinematográficas Ltda.; Jarbas Barbosa Produções Cinematográficas, 1968. (85min). son. color.

LANCE maior. Direção: Sylvio Back. Roteiro: Sylvio Back a partir de argumento de Sylvio Back e Oscar Milton Volpini. Produção: Alfredo Palácios; Antonio Polo Galante. Curitiba; São Paulo (SP): Paraná Filmes; Produções Cinematográficas Apolo; Servicine - Serviços Gerais de Cinema Ltda, 1968; (95 min) son. p&b.

LIBERDADE de imprensa. Direção: João Batista de Andrade. Produção: Sidnei Paiva Lopes. São Paulo (SP): Gremio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP; Jornal Amanhã, 1967. (24min). son., p&b.

LINHA de montagem. Direção: Renato Tapajós. Roteiro:Renato Tapajós. São Paulo (SP):Tapiri Cinematográfica Ltda; Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1981. (90 min.) Son. Color.

LOUCURA nossa de cada dia, A. Direção: Sérgio Muniz. São Paulo (SP): Blimp Filmes, 1976, son. color.

LUTA do povo, A. Direção: Renato Tapajós. São Paulo (SP): APS - Associação Popular de Saúde; Misereor; Cebemo, 1980. (30 min). Son. Color.

MACUNAÍMA. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade baseado na obra homônima de Mário de Andrade. Produção: Joaquim Pedro de Andrade. Rio de Janeiro: Difilm; Filmes do Sêrro Ltda.; Grupo Filmes Ltda.; Condor Filmes S.A., 1969. (108 min). son. color.

MASCULINO, feminino [Masculin, féminin]. Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard inspirado parcialmente em contos de Guy de Maupassant. Produção: Anatole Dauman.Paris (França): Anouchka Films; Argos Films; Sandrews; Svensk Filmindustri (SF), 1966. (110 min). son. p&b.

MEMÓRIA do cangaço. Direção: Paulo Gil Soares. Produção: Thomaz Farkas. Produção executiva: Edgardo Pallero. Rio de Janeiro (RJ):Divisão Cultural do Itamarati; Departamento de Cinema do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Thomaz Farkas Filmes Culturais, 1964. (26 min.), son. p&b.

MIGRANTES. Direção: João Batista de Andrade. São Paulo (SP): TV Cultura, 1972. (7 min), son. p&b.

MORAL em concordata. Direção: Fernando de Barros. Roteiro: Abílio Pereira de Almeida; Carlos Alberto de Souza Barros; Fernando de Barros, baseado na peça homônima de Abílio Pereira de Almeida. Produção: Abílio Pereira de Almeida. São Paulo (SP): Produções Abílio Pereira de Almeida; Cinedistri - Produtora e Distribuidora de Filmes do Brasil, 1959. (80 min.), son. p&b.

MULHER casada, Uma. [Une femme mariée]. Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard. Produção: Philippe Dussart. Paris (França): Anouchka Films; Orsay Films, 1964. (96 min), son. p&b.

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NOITE, A. [La notte].Direção: Michelangelo Antonioni. Roteiro: Michelangelo Antonioni; Ennio Flaiano; Tonino Guerra. Produção: Emanuele Cassuto. Milão (Itália): Nepi Film; Sofitedip; Silver Films, 1961. (115 min). son. p&b.

NOITE vazia. Direção: Walter Hugo Khouri. Roteiro: Walter Hugo Khouri.. Produção: Nelson Gaspari. São Paulo (SP): Kamera Filmes; Companhia Cinematográfica Vera Cruz, 1964. (91 min)., son. p&b.

NOITES de Iemanjá, As. Direção: Maurice Capovilla. Roteiro: Maurice Capovilla baseado no roteiro poético “Aquela que vem das águas” de Ida Laura. Produção: Astolfo Araújo. São Paulo (SP): Data Cinematográfica; Paramout Pictures do Brasil; INC - Instituto Nacional de Cinema; Titanus Filmes, 1971. (84min). son. color.

PANCA de Valente. Direção: Luiz Sérgio Person. Roteiro: Luiz Sérgio Person. Produção: Glauco Mirko Laurelli; Luiz Sérgio Person. São Paulo (SP): Lauper Filmes Ltda; Banco Industrial de Campina Grande; Banco das Nações; R.P.I. Filmes Brasileiros em Distribuição, 1968. (95min), son. p&b.

PAULA – A história de uma subversiva. Direção: Francisco Ramalho Jr. Roteiro: Francisco Ramalho Jr. Produção: Sylvio Band; Stefan Burstini; Cid Gomes Fernandes. São Paulo (SP): Oca Cinematográfica Ltda; Embrafilme; Secretaria de Cultura do Governo de São Paulo, 1979. (93 min.), son., color.

PERSON. Direção: Marina Person. Roteiro: Marina Person. Produção: Sara Silveira; Regina Jeha. São Paulo (SP): Dezenove Som e Imagens; Lauper Films, 2006. (76 min.), son. color, p&b.

POETA e a cidade, O. Direção: Roberto Santos. São Paulo (SP): Fundação Padre Anchieta, 1974. 10 DVDs, son., color. (série televisiva em 10 episódios).

PORTO das caixas. Direção: Paulo César Saraceni. Roteiro: Paulo César Saraceni.Produção: Elísio de Souza Freitas. Rio de Janeiro: Equipe Produtora Cinematográfica; Produtora Cinematográfica Imago Ltda, 1962. (75 min.), son. p&b.

PRIMEIRA chance. Direção: Roberto Santos. Roteiro: Roberto Santos. Produção: Roberto Santos; Norberto Nath; Milton Namura. São Paulo (SP):RGE Lynce Filmes; Governo do Estado de São Paulo, 1959. (11 min.), son. p&b., 35mm.

PROFETA da fome, O. Direção: Maurice Capovilla. Roteiro: Maurice Capovilla; Fernando Peixoto. Produção: Hamilton de Almeida. São Paulo (SP): Fotograma Produtora e Distribuidora de Filmes Ltda; Cinedistri - Companhia Produtora e Distribuidora de Filmes Nacionais, 1970. (93 min). son. p&b.1 DVD.

PULGA na balança, Uma. Direção: Luciano Salce. Roteiro: Fabio Carpi. Produção: Vittorio Cusani.São Paulo (SP): Companhia Cinematográfica Vera Cruz, 1953. (86min). son. p&b. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015.

QUARTO, O. Direção: Rubem Biáfora. Roteiro: Rubem Biáfora. Produção: Rubem Biáfora; Astolfo Araújo. São Paulo (SP): Data Filmes; INC - Instituto Nacional de Cinema Columbia

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Pictures, 1968. (101min.) son. p&b.

RASTEJADOR, s.m. . Direção: Sérgio Muniz. Roteiro: Sérgio Muniz. Produção: Thomaz Farkas. Produção executiva: Edgardo Pallero; Sérgio Muniz. São Paulo (SP): Thomaz Farkas Filmes Culturais. (7 min), son.color.

RIO, 40 graus. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Nelson Pereira dos Santos; Olavo Mendonça. Rio de Janeiro: Equipe Moacyr Fenelon, 1955. (90 min). son. p&b.

RODA & outras estórias. Direção: Sérgio Muniz. Roteiro: Sérgio Muniz; Geraldo Sarno. Produção: Sérgio Muniz. São Paulo (SP): Magisom; Documental Produções Cinematográficas; Cinema de Cordel, 1965. (9 min), son.color.

RUA Chamada Triumpho 969/70. Direção: Ozualdo Candeias. Roteiro: Ozualdo Candeias. Produção: Jorge Alberto M.Teixeira; Antonio Roberto de Godoy; Cesário Felfeli.São Paulo (SP): Cinegeral; Longfilm, 1971. (11 min), son.p&b.

BOCA do lixo cinema. Direção: Ozualdo Candeias. Produção: Sady Scalante. São Paulo (SP): Lynxfilm, 1976. (12 min), son.p&b.

SAÕ PAULO, sinfonia e cacofonia. Direção: Jean-Claude Bernardet. Produção: Jean-Claude Bernardet. São Paulo: Teatra, 1994. (35min). son.p&b e color.

SÃO PAULO, Sinfonia da metrópole. Direção: Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig. Roteiro: Adalberto Kemeny. Produção: Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig. São Paulo: Rex Filme; Paramount Pictures, 1929. (90 min.), son. p&b.

SÃO PAULO, Sociedade Anônima. Direção: Luiz Sérgio Person. Roteiro: Luiz Sérgio Person. Produção: Renato Magalhães Gouvêa. São Paulo (SP): Socine Produções Cinematográficas, 1965. (111 min.), son. p&b.

SETE dias de agonia – O encalhe. Direção: Denoy de Oliveira. Roteiro: Denoy de Oliveira baseado no conto “O encalhe dos 300” de Domingos Pellegrini. Produção: Carlos Augusto de Oliveira. São Paulo (SP): Cooperativa de Artistas e Técnicos do Filme; Telemil Filmes; Blimp Film; Beca Produtora de Filmes; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1982. (105 min.), son. Color.

SOCIEDADE do espetáculo, A. Direção: Guy Debord. Roteiro: Guy Debord. Produção: Marcel Berbert. Paris (França): Simar Films, 1974. (88 min)., son, .p&b.

SUBTERRÂNEOS do futebol. Direção: Maurice Capovilla. Produção: Thomaz Farkas. Produção executiva: Edgardo Pallero. São Paulo (SP): Thomaz Farkas Filmes Culturais, 1964-1965. (30min), son.p&b.

SUPER fêmea, A. Direção: Aníbal Massaini Neto. Roteiro: Lauro César Muniz; Adriano Stuart; Aníbal Massaini Neto; Alexandre Pires. Produlão: Aníbal Massaini Neto. São Paulo (SP): Cinedistri Ltda, 1973. (100 min.). son.color.

TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha. Produção: Zelito Viana.

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Rio de Janeiro (RJ): Mapa Produções Cinematográficas; Difilm, 1967. (105 min.), son.p&b.

TRÊS mortes de Solano, As. Direção: Roberto Santos. Roteiro: criação coletiva sob coordenação Roberto Santos baseado no conto “A Caçada” de Lygia Fagundes Telles. Produção: Eduardo Peñuela Cañizal, Jan Joudela. São Paulo (SP): Departamento de Teatro, Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1976. (100min.) son., color. 35 mm.

TRILOGIA do terror. Direção: Ozualdo Candeias; Luiz Sérgio Person; José Mojica Marins; Produção: Antonio Polo Galante; Renato Grecchi. São Paulo (SP): P.N.F. - Produção Nacional de Filmes Ltda.; Produções Galasy Ltda.; Companhia Cinematográfica Franco- Brasileira, 1968. (101min), son., p&b.

ÚLTIMO dia de Lampião, O. Direção: Maurice Capovilla. Roteiro: Maurice Capovilla; Fernando Peixoto. São Paulo (SP): Blimp Filmes, 1975. (50 min), son.color.

UM por cento. Direção: Renato Tapajós. Roteiro: Acácio Yoshinaga; Fabian N.Yaksic; José Marreco; Renato Tapajós; René Lapyda; Sonia Amorim; Walter Rogerio; Wilson Vieira. São Paulo (SP): R.S. Filmes; Departamento de Cursos do Gremio da Faculdade de Filosofia da USP - Universidade de São Paulo, 1967. (24min). son., p&b.

UNIVERSIDADE em crise. Direção: Renato Tapajós. Produção: Renato Tapajós. São Paulo (SP): Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP; C.A. - Cásper Líbero, 1965. (20 min). son., p&b.

VERA Cruz, fábrica de desilusões. Direção: Sérgio Muniz. São Paulo (SP): Blimp Filmes, 1975. (45 min), son. color.

VIDAS secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Luiz Carlos Barreto; Herbert Richers; Danilo Trelles baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A., 1963 . (103min). son., p&b.

VILA da barca. Direção: Renato Tapajós. Produção: Abílio Couceiro. São Paulo (SP), 1965. (11min). son., p&b.

VIRAMUNDO. Direção: Geraldo Sarno. Roteiro: Geraldo Sarno.Produção: Thomaz Farkas. Produção executiva: Edgardo Pallero. São Paulo (SP): Thomaz Farkas Filmes Culturais, 1964-1965. (40min), son.p&b.

VIVER a vida. [Vivre sa vie]. Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard; Marcel Sacotte. Produção: Pierre Braunberger. Paris (França): Les Films de la Pléiade; Pathé Consortium Cinéma, 1962. (83 min), son. p&b.

VOCÊ também pode dar um presunto legal. Direção: Sérgio Muniz. Roteiro:Sérgio Muniz; Francisco Ramalho Jr. Produção: Sérgio Muniz. São Paulo (SP): 1971-2006. (39 min.) son., p&b.

VOZES do medo. Direção coletiva sob coordenação de Roberto Santos. Roteiro: Roberto Santos; Hélio Leite de Barros; Mamoru Miyao; Adilson Bonini; Augusto Correa; Roman

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Stulbach; Ruy Perotti Barbosa; Plácido Campos Jr; Gianfrancesco Guarnieri; Cyro Del Nero; Aloysio Raulino; Maurice Capovilla. Produção: Roberto Santos; José Carlos Matos; Cristina Algodoal; José Severo Lira; João Melo. Produção executiva: César Mêmolo Jr. São Paulo (SP): Roberto Santos Produções Cinematográficas Ltda; Lynxfilm S.A; Stúdio 13 Decorações Ltda; ECA/USP - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1970. (140min.), son. color e p&b.

WILSINHO Galiléia. Direção: João Batista de Andrade. Roteiro: João Batista de Andrade. Produção: Heloísa de Campos. São Paulo (SP): Raíz Produções Cinematográficas; TV Globo, 1978. (62 min.), son. color.

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ENTREVISTAS REALIZADAS EXCLUSIVAMENTE PARA ESTA PESQUISA

(em ordem de realização)

Maurice Capovilla, em seu apartamento, Rio de Janeiro, 07 dezembro 2012.

João Batista de Andrade, no Memorial da América Latina, do qual é Diretor Presidente, São Paulo, 16 de janeiro de 2013.

Sérgio Muniz, em seu apartamento, São Paulo, 08 de março de 2013.

João Silvério Trevisan, via e-mail, 03 de dezembro de 2013.

Renato Tapajós, via e-mail e skype, 17, 18 e 24 de agosto de 2015.

Francisco Ramalho Jr., via skype, 24, 25 e 26 de outubro de 2015 .

Foram contatados também Ignácio de Loyola Brandão e Jean-Claude Bernardet, porém não foi possível concretizar a entrevista com eles.

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ACERVOS CONSULTADOS

Arquivo Multimeios do Centro Cultural Sao Paulo (CCSP), São Paulo, SP Biblioteca Central (BCCL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP Biblioteca e Videoteca do Instituto de Artes (IA)- UNICAMP, Campinas, SP Biblioteca Octávio Ianni do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas (IFCH) -UNICAMP, Campinas, SP Biblioteca Jenny Klabin Segall do Museu Lasar Segall (SP), São Paulo, SP Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro, RJ Biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes/ Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira - São Paulo, SP Biblioteca Roberto Santos - São Paulo, SP Bibliothèque de la Cinemathèque Française – Paris, França. Bibliothèque de l´ Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3, Centre Censier – Paris, França. Bibliothèque du Cinéma François Truffaut – Paris, França. Bibliothèque Historique de la Ville de Paris (BHVP) – Paris, França. Centro Técnico Audiovisual (CTAv) – Rio de Janeiro, RJ Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) – Rio de Janeiro, RJ Museu de Imagem e Som de São Paulo (MIS-SP)

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FILMES DIRIGIDOS POR CADA CINEASTA (1958-1981)

(em ordem alfabética)

Francisco Ramalho Jr.: Menina moça (1963); Catadores de Lixo (Grupo Kuatro, 1963); TNP- Teatro Nacional Popular (Grupo Kuatro, 1963); Antologia do cangaço (1966); Anuska, manequim e mulher (1968); Joãozinho (episódio de Sabendo usar não vai faltar,1976); À flor da pele (1976); O Cortiço (1978); Paula – a história de uma subversiva (1979); Filhos e Amantes (1981). Institucionais/Para TV: Fertilizantes Ultrafértil (1978), entre outros filmes publicitários; Caramuru (1978), piloto para série televisiva.

João Batista de Andrade: Catadores de Lixo (Grupo Kuatro, 1963); TNP- Teatro Nacional Popular (Grupo Kuatro, 1963); Liberdade de Imprensa (1967); Portinari, um pintor de Brodósqui (1968); Gamal, o delírio do sexo (1969); O filho da televisão (episódio de Em cada coração um punhal, 1969); série Panorama do cinema paulista, com codireção de Jean- Claude Bernardet – Paulicéia Fantástica (1970), Eterna esperança (1971) e Vera Cruz (1972) –; Doramundo (1978); Greve! (1979); Trabalhadores, presente! (1979); O homem que virou suco (1980). Institucionais/Para TV: Diversificação Agrícola (1967); Erradicação Cafeeira (1969); Trabalhadores rurais (1972); Migrantes (1973); Pedreira (1973); Ônibus (1973); A batalha dos transportes (1974); A escola de 40 mil ruas (1975); Viola contra guitarra (1976); Mercúrio no Pão de Cada Dia (1976); Bóias Frias (1975); Vidreiros (1975); Greve! (1979); Caso Norte (1977); Wilsinho Galiléia (1978); Alice (1978); A ferrovia do diabo (1981); Por um lugar ao sol (1981).

Luiz Sérgio Person: Al Ladro(1962); L´Ottimista sorridente (1963); II Palazzo Doria Pamphili (1963), realizados na Itália; Um Marido Barra Limpa (1957, finalizado em 1967 por Renato Grecchi); São Paulo S.A (1965); O caso dos irmãos Naves (1967); A procissão dos mortos (1968, episódio de Trilogia do terror); Panca de Valente (1968); Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972); Vicente do Rego Monteiro (1974). Diversos filmes publicitários, alguns dos quais constam como extras no DVD de São Paulo S.A.

Maurice Capovilla:União (1962 – inconcluso); Meninos do Tietê (1963); Subterrâneos do

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futebol (1965); Bebel, a garota propaganda (1967); O profeta da fome (1970); segmento Loucura em Vozes do medo (1970); As noites de Iemanjá (1971); O jogo da vida (1977). Institucionais/Para TV: Esportes no Brasil (1966); Rally (1971); Terra dos Brasis (1971); A indústria da moda (1971); O poder jovem (1971); Revolução do consumo (1972); Do sertão ao beco da Lapa (1973); Bahia de todos os santos (1974); Cantoreadores do Nordeste (1975); O último dia de Lampião (1975); As cidades do sonho (1975); História de um político (1976); Os homens verdes da noite (1977, não exibido); O mundo maravilhoso do circo (1977); Raízes populares do futebol (1977); O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino (1980).

Roberto Santos: O grande momento (1958); A hora e a vez de Augusto Matraga (1966); As cariocas (3º episódio, 1966); O homem nu (1967); A João Guimarães Rosa (1968); Embu (1969); Vozes do medo (1970); Um anjo mau (1971); As três mortes de Solano (1976); Contos eróticos (episódio Arroz e feijão, 1977); Judas na passarela (1979); Os amantes da chuva (1979). Institucionais/para TV: Viadutos de São Paulo;Viaje Bem e Primeira Chance (1958/1959); Cooperativismo; Merenda Escolar; Caminhos e Águas (1963/1964); séries Personagens do Cinema Brasileiro; Caminhos do Curta; Raízes de Luz e Sombras; O Poeta e a Cidade; Cidade dos Meus Amores; O Grande Momento: 30 anos depois (para TV Cultura, 1972-1976); Sarapalha; O Poço; Antes do baile verde (especiais TV Globo, 1974/1975).

Sérgio Muniz: Roda & outras histórias (1965); O povo do Velho Pedro, anotações (1967); Projeto Ilha Grande (1967); Beste (1969); Rastejador, s.m.(1969); Você também pode dar um presunto legal (1971); De raízes e rezas, entre outros (1972); Cheiro/gosto, o provador de café (1976); Um a um (1976); A cuíca (1977); O berimbau (1977). Para TV: Vera Cruz, fábrica de desilusões (1975); A loucura nossa de cada dia (1976); piloto para série televisiva: Andiamo in´Merica (1978).

Renato Tapajós: Vila da barca (1964); Um por centro (1967); Universidade em crise (1968); Fim de semana (1976); Acidente de Trabalho (1977); Trabalhadoras metalúrgicas (codireção de Olga Futemma, 1978); Um caso Comum (1978); Teatro Operário (1979); Greve de março (1979); A luta do povo (1980); Linha de montagem (1981). Para TV: Os peçonhentos (1979), Agonia da natureza (1979); As Saúvas (1979); Com quem ficam nossos filhos? (1980) e A ilha do diabo (1980).