Sertão é “Sertão é do do Viver é muito tamanho perigoso tamanho do do mundo Sertão é o sozinho mundo” 50 anos da sertão é sem lugar Quem obra de João Viver é um desconfia, descuido fica sábio Guimarães prosseguido Deus é paciência

Rosa

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Leia nesta edição Editorial pg. 2

Tema de capa Entrevistas Walnice Nogueira Galvão : Uma obra do tamanho do mundo pg. 4 Bernardo Marçolla : Perspectivas metapoéticas do sertão pg. 7 Lélia Parreira Duarte: Sherazade do sertão pg. 12 Gilvan Procópio Ribeiro : Um mestre na linguagem pg. 14 José Carlos Barcellos : O milagre da existência pg. 18 Paulo Soethe: O espaço e o tempo no sertão pg. 20 Marcel Vejmelka : O sertão também existe na Alemanha pg. 25 Kathrin Rosenfield: O sertão também existe na Alemanha pg. 29 Faustino Teixeira : O sagrado no Grande Sertão pg. 37

Destaques da semana

Entrevista da Semana: Agostino Petrillo: O trabalho nas metrópoles pg. 41

Destaques on-line: Martin Sander : Um panorama da gripe aviária pg. 48 Cristiano Costa: Liberdades e limitações do software livre pg. 53 Mario Novello: A refundação da Física pela Cosmologia pg. 55

Memória: pg. 58

Deu nos jornais: pg. 62

Frases da Semana: pg. 64

IHU em revista Eventos pg. 668888

IHU Repórter pg. 776666

Carta do Leitor pg. 778888

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Sertão é do tamanho do mundo. 50 anos da obra de João Guimarães Rosa

“Na arte, não há regras fixas. Por isso recomendo, num primeiro momento, que cada leitor observe tão somente suas reações - prazer, desgosto, tédio, entusiasmo, incompreensão. Os bons livros são como a própria vida, na qual nós podemos nos situar de modos diversos, assumindo posturas e posições flexíveis. O gosto vem com o tempo, e, às vezes, os livros que parecem ser árduos no início tornam-se bem mais interessantes e belos quando aceitamos as asperezas”. A recomendação é da Prof.ª Dr.ª Kathrin Rosenfield, pesquisadora e professora de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao discorrer sobre o livro Grande Sertão: Veredas , de João Guimarães Rosa, na entrevista publicada nesta edição.

Um diálogo com a filosofia da arte, com a teoria literária, com a psicologia, com a teologia e com elementos de outros saberes sobre a obra roseana é o tema de capa da edição da IHU OnOn---- Line desta semana que celebra os 50 anos da publicação do livro, que é um marco na literatura latino-americana, senão mundial.

Grande Sertão:Veredas. 50 anos também é tema de um ciclo que iniciou na semana passada com a conferência do Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho, da UFRJ e que continua nesta semana com a exibição e o debate do filme A terceira margem do rio, de Nélson Pereira dos Santos.

As notícias diárias da página web do IHU publicam, diariamente, uma entrevista especial. A entrevista com o Prof. Martin Sander, professor na Unisinos sobre a gripe aviária, com o físico brasileiro Mario Novello, comentando o seu novo livro O que é cosmologia e com Cristiano Costa, professor na Unisinos, sobre o 7? Fórum Internacional Software Livre foram algumas das entrevistas que reproduzimos nesta semana.

Celebrando os 50 anos do Instituto Anchietano de Pesquisas, publicamos o artigo de Martin Sander. Uma visita guiada ao Instituto está prevista na programação do Seminário Internacional A globalização e os jesuítas: origens, história e impactos,pactos a ser realizado de 25 a 28 de setembro, na Unisinos.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

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Uma obra do tamanho do mundo Entrevista com Walnice Nogueira Galvão

Já faz meio século do lançamento do livro Grande Sertão: VeredasVeredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956 (1. ed.) de João Guimarães Rosa e a professora Titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, escritora, ensaísta, crítica de literatura e de cultura, Walnice Nogueira Galvão, diz que nenhuma obra chegou ao patamar de o Grande Sertão . “Uma outra vertente pode ter chegado ao ponto alto que o livro atingiu. Mas dentro da linha do Grande Sertão não existe nada que corresponda ao choque que ele deu a tudo que vinha antes na literatura”.

Walnice está preparando uma edição crítica sobre o Grande Sertão: Veredas . Entre suas publicações, estão os livros As Formas do Falso - Um Estudo sobre a Ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Perspectiva, 1972; No Calor da Hora - A Guerra de Canudos nos Jornais. São Paulo, Ática, 1974; Saco de Gatos. São Paulo, Duas Cidades, 1976; Mitológica Rosiana. São Paulo, Ática, 1978; Saptamatr . São Paulo, Brasiliense, 1978; Gatos de Outro Saco . São Paulo, Brasiliense, 1981 e , organização. São Paulo, Ática, 1984.

A professora concedeu uma rápida entrevista por telefone à IHU OnOn----LineLine .

IHU On-Line - Por que Grande Sertão: Walnice Nogueira Galvão - O livro Veredas causou tanto impacto ainda é ilegível para o grande público. quando foi publicado em 1956? Eu posso falar de maneira geral da Walnice Nogueira Galvão - Porque linguagem. Por exemplo, a extensa era uma novidade nas letras brasileiras. criação de neologismos e o uso de uma Até então, o regionalismo tinha pouca sintaxe não-usual. elaboração estética e privilegiava muito o documento. Então aparece um livro IHU On-Line - Em relação à produção ligado ao regionalismo pela matéria, literária da época, o que a senhora pelo assunto, pelos personagens, mas acredita que efetivamente apareceu com um grau de elaboração estética de novo desse romance em relação a nunca visto antes. outros? Walnice Nogueira Galvão - Enquanto IHU On-Line - A partir da sua era uma época que o romance publicação a obra foi qualificada regionalista procurava ser documental e, como difícil e quase ilegível para o portanto muito aderido à matéria, grande público. Quais os exemplos Guimarães Rosa com os altos vôos de linguagem usados por Guimarães que mostram essa dificuldade?

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estéticos do Grande Sertão: Veredas 111 se pode falar de cada um desses despregava desse tipo de programa pontos? estético. Walnice Nogueira Galvão - Geográfico porque ele tem uma geografia, uma IHU On-Line - Quais as ambigüidades topografia, uma zoologia, uma botânica, que podemos encontrar no livro? uma metereologia toda do sertão de Walnice Nogueira Galvão - Todas! Só Minas Gerais, ao pé da letra. Guimarães tem ambigüidades do começo ao fim : Rosa é muito exato nas descrições que ambigüidade de tratar a matéria faz do clima, da fauna, da flora, dos sertaneja com um nível de elaboração acidentes geográficos. Basta lembrar o estética que é absolutamente que ele faz com as veredas 2 e os buritis 3, cosmopolita. Mistura o neologismo, a que são um traço marcamente da criação de palavras, com os arcaísmos geografia da região. As veredas no livro sertanejos, ou seja, o muito novo com o são as águas, não é o mesmo significado muito velho. Na criação de personagens, do resto da língua portuguesa, não é por exemplo, a ambigüidade também caminho, são águas que afloram existe. Riobaldo é ao mesmo tempo um formando espécies de riachinhos que jagunço, um pobre coitado, sem pai, um dão origem às fileiras de buritis. Eles órfão no sertão, mas ele não sabe que é banham os pés dos buritis. Isso é o herdeiro de um grande fazendeiro. Ele extremamente fiel à paisagem do sertão. transita em duas classes. E a Diadorim Na análise do mítico, o autor vai pegar que se veste de homem, mas é uma as grandes sagas, guerras, batalhas mulher. O livro inteiro está partido entre sertanejas, a memória da região e vai Deus e diabo, entre o bem e o mal, que é usar. No metafísico, Guimarães Rosa vai outra ambigüidade. transformar tudo isso numa grande guerra entre Deus e diabo, entre o bem e IHU On-Line - Quais as relações que o mal, disputando as almas dos homens. o Guimarães Rosa faz entre mito e tradição popular? IHU On-Line - Qual é o desafio Walnice Nogueira Galvão - Ele não faz permanente que Grande Sertão: relação nenhuma propriamente falando. Veredas representa para a literatura Ele vai costurando mito e tradição e o mundo acadêmico? popular sem se deter nem em um, nem Walnice Nogueira Galvão - Para a em outro, com a maior falta de literatura brasileira, nenhuma obra cerimônia. Guimarães Rosa costura no chegou ainda neste patamar. Já faz meio livro mito, tradição popular e história do século, e o ponto alto que Guimarães Brasil através da narrativa. Rosa atingiu com Grande Sertão: Veredas ninguém conseguiu. Poderia ser IHU On-Line - A senhora escreveu que Guimarães Rosa apresenta um sertão que para efeitos de análise 2 Vereda : Cabeceira e curso de água, orlados de pode ser percebido segundo três buritis, especialmente na zona são-franciscana pontos de vista: o geográfico, o (termo brasileiro), comumente encontrado no Estado de Minas Gerais e na Região Centro-Oeste. mítico e o metafísico. A senhora (Nota da IHU On-Line )

1 Sobre Grande Sertão : Veredas publicamos a 3 Buriti: palmeira de estipe elegante e ereto, entrevista sob o título Guimarães Rosa na literatura encimado por folhas enormes e brilhantes. Suas brasileira concedida pelo Profº Dr. Eduardo de Faria folhagens, abertas em forma de estrela, formam Coutinho à IHU On-Line da semana passada, 177º uma copa arredondada, uniforme e linda, vista de edição, de 24 de abril de 2006. (Nota da IHU On- baixo sob o céu azul e limpo. (Nota da IHU On- Line ) Line )

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atingido, mas não na mesma linha. É um uma guerra em que um dos lados era o livro que está muito bem estudado, exército brasileiro, e Guimarães trata quanto a isso não existe dúvidas. metaforicamente de uma guerra, pois Importantes críticos, como Antonio são lutas entre bandos. Há mais um Candido 4, trabalharam bastante com a outro aspecto que acho notável : os dois obra. autores se preocuparam muito com a linguagem. IHU On-Line - A senhora fez estudos sobre Grande Sertão: Veredas e IHU On-Line - O que significa o também sobre Os Sertões . Existem símbolo mais infinito no final da comparações que possamos fazer obra? As edições atuais mantém o entre as duas obras? símbolo? Walnice Nogueira Galvão - São muitas Walnice Nogueira Galvão - Esse comparações que podemos fazer. Não símbolo só está na primeira edição 7. Se são exatamente as mesmas regiões, é as editoras não o mantiveram, e como se fossem regiões contíguas. Os Guimarães Rosa ainda estava vivo, Sertões 5 falam do sertão baiano e provavelmente ele mesmo mandou tirar. Grande Sertão , do mineiro. As duas Geralmente funciona assim. É a vontade obras diferem pela linguagem, pelos do autor que permanece enquanto ele costumes e, sobretudo pela paisagem. O está vivo. O que queria dizer? Que sertão baiano é muito mais seco, muito Guimarães visava ao infinito com aquele mais árido, muito mais hostil, e o sertão livro. Ele gostava de símbolos. O livro é mineiro é bonito. A palavra jagunço é um aglomerado de símbolos. mais usada em Minas, na Bahia, é cangaceiro, e as duas querem dizer o mesmo. Euclides da Cunha 6 trata de

4 Antonio Candido (1918 ): N asceu no Rio de Janeiro, mas viveu desde a primeira infância em Minas Gerais . Entrou em 1939 para a Faculdade de Direito e para a de Filosofia (Seção de Ciências Sociais), na qual recebeu, no começo de 1942, os graus de bacharel e licenciado . De 1958 a 1960 foi professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia de Assis . Aposentando-se em 1978, anos de idade, foi educado pelas tias. Freqüentou continuou a trabalhar em nível de pós-graduação conceituados colégios fluminenses e, quando como orientador de teses . Fora da vida acadêmica, precisou prosseguir seus estudos, ingressou na foi crítico da revista Clima (1941-4) e dos jornais Escola Politécnica e, um ano depois, na Escola Folha da Manhã (1943-5) e Diário de São Paulo Militar da Praia Vermelha. Entre suas obras, além (1945-7). N a vida política, participou de 1943 a de Os Sertões (1902), destacam-se Contrastes e 1945 na luta contra a ditadura do Estado Novo no confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907), À grupo clandestino Frente de Resistência . margem da história (1909), a conferência Castro Atualmente é vice-presidente da TV do Trabalhador Alves e seu tempo (1907), proferida no Centro e membro do Conselho Editorial da revista Teoria e Acadêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito), de Prática . (Nota da IHU On-Line ) São Paulo, e as obras póstumas Canudos: diário de uma expedição (1939) e Caderneta de campo (1975). Durante o I Ciclo de Estudos Sobre o 5 Os Sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1902. vii + 632 p. il. Brasil, que aconteceu na Unisinos em 2003, a Considerada a obra-prima de Euclides da Cunha. professora Mária Lopes Duarte apresentou o livro (Nota da IHU On-Line ) Os Sertões (Nota da IHU On-Line )

6 Euclides da Cunha (1866-1909): O engenheiro, escritor e ensaísta brasileiro Euclides Rodrigues da 7 A primeira edição foi publicada em maio de 1956. Cunha nasceu em Cantagalo (Rio de Janeiro), em (Nota da IHU On-Line ) 20 de janeiro de 1866. Órfão de mãe desde os três

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Perspectivas metapoéticas do sertão Entrevista com Bernardo Marçolla

Bernardo Marçolla é psicólogo, mestre em Psicologia Social pela UFMG (2000), doutorando no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas (Área de concentração: Literaturas de Língua Portuguesa ) e professor do Instituto de Psicologia da PUC Minas desde 1999. Sua tese de doutorado (ainda em andamento) aborda o livro Grande Sertão: Veredas numa perspectiva metapoética, ou seja, tomando a narrativa do jagunço Riobaldo como um aprendizado poético (o que envolve a constituição do lugar do artista e a descrição de uma poética que possui contornos bem específicos). Marçolla, que concedeu entrevista por e-mail à IHU OnOn----Line,Line, busca explorar e desenvolver todas essas dimensões com base no diálogo com a filosofia da arte, com a teoria literária e, ainda, com elementos oriundos de outros sistemas semióticos.

IHU On-Line - Qual seria a relação mas, acima de tudo, apresenta a arte entre Grande sertão: veredas e o como um caminho relacionado à fazer poético ? articulação entre diversas dimensões da Bernardo Marçolla - No contexto da realidade e do homem. obra, talvez seja possível pensar a poesia no sentido presente na própria IHU On-Line - Como a natureza do poiesis dos gregos – algo ligado à homem está retratada no livro? criação artística tomada em sua forma Bernardo Marçolla - Creio que, em mais ampla, numa relação direta com Grande sertão: Veredas, a natureza do os processos de vida. Sendo assim, homem é considerada sob uma acredito que possamos considerar perspectiva absolutamente Grande sertão: Veredas como uma multidimensional. Os contornos do grande narrativa metapoética: a homem ali retratado podem ser trajetória do jagunço/narrador Riobaldo apreendidos em uma infinidade de relaciona-se ao modo como ele próprio perspectivas, que vão desde a do se constitui pela arte narrativa. Esta, por homem que se relaciona com condições sua vez, descreve um movimento sociais e econômicas bem concretas ao espiralado em que obra e artista mesmo tempo em que também constituem-se mutuamente. estabelece relações com dimensões No que se refere especificamente a esse transcendentes e metafísicas, chegando fazer poético que, de forma enigmática à do homem que busca, na medida do e complexa vai se desvelando no (im)possível, conciliar a pluralidade do decorrer da obra, eu ousaria dizer que seu universo interior (que é espiritual, ali talvez resida não apenas a anímico, emocional, mental, cultural, possibilidade de se criar a obra de arte, afetivo e sexual) com as tantas

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exigências de um mundo que é exterior sentidos a elementos de sua história e a ele e que o interpenetra. de si mesmo. Isso implica repensar A pluralidade de nuances que podem diversos conceitos, acontecimentos e ser apreendidas na natureza humana relações. retratada na obra, talvez explique, em parte, a infinidade de perspectivas sob IHU On-Line - Quais são as conexões as quais a obra tem sido abordada pela entre natural e sobrenatural na crítica até hoje, sem que tenham se obra? esgotado tais esforços. Bernardo Marçolla - Acredito que a natureza não se apresente na obra IHU On-Line - Quais são as intenções como mero cenário ou elemento do Riobaldo ao contar sua vida para regional. A ênfase em sua descrição, sua o tal interlocutor? Qual seu conflito? nomeação e o relacionamento vivo que Bernardo Marçolla - Como eu dizia ao Riobaldo e Diadorim estabelecem com responder à questão anterior, a essa dimensão parecem fornecer infinidade de aspectos que podem ser elementos para que a própria natureza apreendidos na obra pode dar origem a seja considerada como personagem. Ao uma ampla gama de abordagens mesmo tempo, temos a força imperiosa críticas, ao mesmo tempo em que cada das relações que as personagens um desses aspectos pode dar origem a estabelecem com dimensões metafísicas diversas interpretações, muitas vezes e transcendentes, muitas vezes contraditórias entre si. Faço questão de personificadas nas forças de Deus ou do deixar isso claro porque, ao conferir um demo. A dimensão metafísica é algo sentido às “intenções” de Riobaldo, ou “natural” no sertão . A natureza talvez mesmo buscar compreender qual é o atue como um grande suporte no qual conflito que vivencia, estarei somente as apresentações do transcendente estabelecendo mais um ponto de vista tenham lugar. Pode-se, desta forma, possível, que não esgota os sentidos que considerar o sertão em sua constituição podem conviver na obra. multidimensional, onde distintas forças, Do meu ponto de vista, talvez consideradas “naturais” ou influenciado por minha formação em “sobrenaturais” (dependendo das psicologia, tendo a ver a situação crenças e do posicionamento daquele dialógica que se estabelece entre que com elas se depara), não apenas se Riobaldo e seu suposto interlocutor sobrepõem e se interconectam, mas como uma espécie de diálogo interno. formam um mesmo todo complexo. Ainda que sua narrativa se dirija a um Este é o terreno sobre o qual o humano outro, a exposição de Riobaldo floresce. converge para a possibilidade de uma elaboração interna, relacionada à IHU On-Line - Quais são os diálogos atribuição de novos sentidos que se possíveis que o livro faz no contexto acoplam a elementos do seu passado, da pós-modernidade? bem como aglutinam elementos Bernardo Marçolla - Este é um tema presentes, buscando produzir um saber complexo. Para além de uma questão acerca de si mesmo. E como a natureza estética – ligada não apenas à criação humana está atravessada pela infinidade ou contemplação artísticas, mas a uma de elementos sobre os quais discorri há forma diferenciada de apropriação do pouco, vemos que essa não é uma tarefa real – creio que poderíamos considerar nada fácil. Seu conflito fundamental a multiplicidade de saberes que residiria, portanto, na constituição de convivem e buscam dialogar tanto no contexto da obra, quanto no contexto

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das sociedades ocidentais suporte a articulação dinâmica de três contemporâneas. A própria situação eixos. dialógica que se estabelece entre O primeiro desses eixos seria o ritmo . Riobaldo, barranqueiro e ex-jagunço, e Associado ao movimento, à seu suposto interlocutor, doutor da musicalidade, à cadência e à harmonia, cidade, é emblemática nesse sentido. No presente na própria linguagem que contexto pós-moderno, temos a compõe a obra, o ritmo se apresenta ao possibilidade de nos distanciar da mesmo tempo como uma condição e centralidade representada por um único como uma característica fundamental discurso de referência e dar voz a da poética de Riobaldo. O ritmo outros discursos – o que pode dar também estaria associado às formas de origem a diálogos interessantes e relação que o jagunço estabelece com a produtivos. Dentre tais diálogos, eu realidade ordinária – o que, a meu ver, apontaria aquele que se estabelece entre abriria as portas para o acesso a outras o saber científico e outras formas de dimensões do real. saber, como os saberes míticos, místicos O segundo eixo seria aquilo a que me e aqueles ligados às tradições refiro como transcendência . espirituais. Tais diálogos, muitas vezes Compreendida de forma ampla, a evitados por colocar em cena transcendência estaria relacionada não posicionamentos tidos como apenas ao acesso às dimensões contraditórios e mutuamente metafísicas, como também às excludentes, trazem consigo também permutações que se estabelecem entre um potencial que considero dos mais dimensões ordinárias e importantes: a possibilidade de tornar “extraordinárias” da existência. Pela via relativos os nossos próprios da linguagem, Riobaldo alcança (ou é posicionamentos, reconhecendo-os não alcançado?) pelo transcendente. como “verdades”, mas como Relacionada à permeabilidade que se posicionamentos possíveis e, desta constrói entre as dimensões do real e forma, abrir espaço para sondar outras aos hibridismos que daí decorre, a possibilidades. transcendência também seria uma marca fundamental da arte que Grande IHU On-Line - O senhor pode falar sertão: veredas descreve e apresenta. um pouco do seu trabalho que está O terceiro eixo fundamental que em andamento? acredito caracterizar a poética de Bernardo Marçolla - Minha tese de Riobaldo vem a ser a própria doutoramento está sendo construída experiência estética . Acredito que o buscando articular muitos dos ritmo e transcendência fundem-se e se elementos sobre os quais aqui tenho apresentam justamente neste tipo de discorrido. Procuro colocar em vivência. Vale ressaltar, como já busquei evidência a dimensão metapoética de adiantar, que tomo a estética não como Grande sertão: veredas , compreendendo disciplina que se ocupa do “estudo do a trajetória narrada por Riobaldo sob belo”, mas como uma possibilidade um duplo papel: ao mesmo tempo que diferenciada de apreensão da realidade, narra um percurso que culmina com o não dirigida racional ou aprendizado da arte narrativa, o teleologicamente, produtora de novos narrador Riobaldo também nos sentidos acerca do real. Outra apresenta as linhas-mestras daqueles característica importante que eu que seriam os processos de criação associaria a esse tipo de vivência é o descritos na obra. Minha leitura é que a caráter intersubjetivo que ela implica – poética assim constituída tenha como o qual também acredito possuir

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especial relevância na poética de integração do feminino em si mesmo. O Riobaldo. segundo elemento que acredito merecer Meu grande objetivo, portanto, é uma ampliação é o próprio “amor”. Em desvelar os processos de criação que, minha visão a principal questão desta forma, se articulam na obra. Para relacionada ao amor em Grande sertão: isso, estabeleço diálogos não apenas veredas não está ligada ao amor com a teoria literária e a filosofia da sentimento romântico que une duas arte, mas também com outros sistemas pessoas, embora o relacionamento semióticos. No caso destes últimos, pessoal que se estabelece entre tomo especificamente alguns ligados a Riobaldo e Diadorim pareça sugerir antigas tradições espirituais que, a meu isso. Creio que o grande aprendizado de ver, avançam nas possibilidades de amor vivenciado por Riobaldo – e cujo articulação entre os três suportes por mestre teria sido Diadorim – relacione- mim considerados, dentre os quais se à abertura de seu coração para uma destaco o xamanismo 8 e a cultura celta. dimensão maior do amor, que envolve a IHU On-Line - Riobaldo tem três relação com a vida e o contato empático amores: Otacília, Nhorinhá, com a natureza humana. No contexto Diadorim. O que cada um desses da obra, acredito que um dos temas amores representa? fundamentais que percorre toda a Bernardo Marçolla – Eu diria que cada passagem que vai desde a constituição uma dessas personagens estaria ligada a do chefe Urutu-Branco até o desfecho uma forma de relação que Riobaldo na batalha final seja justamente esse: a estabelece com o feminino, de maneira abertura ao humano, presente em si e que cada uma delas poderia ser no outro. relacionada a um arquétipo feminino. Penso que o mais importante seja IHU On-Line - Existe alguma ampliar a nossa compreensão acerca de conotação homossexual no amor de alguns elementos envolvidos em tais Riobaldo com Diadorim? relacionamentos. O primeiro seria a Bernardo Marçolla - Confesso nunca própria noção de “feminino” que não se ter dado muita importância para esse restringe às personagens do sexo tipo de reflexão ao pensar em Grande feminino. Considerando as noções sertão: Veredas . Para mim, o mais jungianas de animus e anima , cada um importante tem sido abordar esse de nós teria que desenvolver e relacionamento com base nas linhas harmonizar em si as dimensões gerais que tracei anteriormente. Eu iria masculina e feminina de seu próprio ainda mais além: creio que a obra nos ser. Dessa forma, o relacionamento que apresenta elementos para tomar Riobaldo estabelece com tais Diadorim como uma figuração da personagens poderia ser compreendido própria alma de Riobaldo. Atuando como um aprendizado relacionado à como uma espécie de guia, essa alma representada por Diadorim seria o elemento catalisador de diversas 8 Xamanismo: é um conjunto de crenças experiências fundamentais que se ancestrais, uma filosofia de vida muito antiga que apresentam na trajetória do jagunço. visa ao reencontro do homem com os ensinamentos, com o fluxo da natureza e com seu Dessa forma, é com sua mediação – e próprio mundo interior. Sua prática estabelece no contato com sua ambigüidade contato com outros planos de consciência, a fim constitutiva – que Riobaldo aos poucos de obter conhecimento, poder, equilíbrio e saúde. vai aprendendo a estabelecer relações O xamã pode ser homem ou mulher. (Nota da IHU On-Line ) diferenciadas com o mundo (natural e

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transcendente) e com o humano (de si reter, entre tantos desvãos e tantas mesmo e do outro). veredas, o sentido da leitura? Bernardo Marçolla - Vou começar pela IHU On-Line - As personagens do última parte da pergunta – não acredito livro são muito religiosas? Em que que exista um sentido “correto” ou momentos podemos encontrar esta único a ser apreendido com base na religiosidade? leitura de Grande Sertão . Não quero Bernardo Marçolla - O próprio Rosa dizer com isso que todos os sentidos falava abertamente de sua religiosidade sejam possíveis, mas que pelo menos e da importância dessa dimensão em um grande número de interpretações sua vida. Em Grande sertão: Veredas, possam ser geradas no encontro que se essa é também uma vertente muito dá entre o livro e seus leitores. valorizada. O narrador Riobaldo fala Creio, entretanto, que normalmente a disso em muitas ocasiões, bem como nossa expectativa é esta, a de desvelar o recorre à lembrança de compadre sentido oculto na obra. Mas acho que Quelemém, espécie de mentor nos Rosa nos preparou uma grande assuntos espirituais. As recorrentes armadilha e que um dos caminhos mais referências às figuras de Deus e do louváveis ao se trilhar o sertão de demo, bem como às suas formas de Riobaldo é realizado por aquele leitor atuação, também trazem o tema da que se permite perder o passo e o rumo. religiosidade à tona. No que se refere a É fato que muitas pessoas não dão essas forças, acredito ser importante não conta de ler a obra, desistindo após tomá-las apenas em seu sentido literal, algumas dezenas de páginas. Eu tenho mas também simbólico. Assim podemos um posicionamento pouco ortodoxo a evitar maniqueísmos e posicionamentos respeito disso tudo: acho mesmo que dogmáticos. Acredito que por detrás de uma das formas de se ler Grande sertão: uma discussão aparentemente veredas é com base nos sentidos que se simplória, a versar sobre a natureza das constroem sem que saibamos disso. A forças divinas ou diabólicas, a obra nos linguagem ali construída por Rosa se ofereça elementos para refletir acerca assemelha a uma música, composta por do tema da religiosidade sob uma assonâncias, ressonâncias e por palavras perspectiva mais aprofundada. cujo sentido apenas intuímos. Como Enraizado na própria condição e um grande mantra, acredito que se experiência humanas, o religioso surge pudermos “embarcar” nessa linguagem como decorrência das relações que o e por ela nos deixarmos levar, haverá homem estabelece consigo mesmo e uma mudança operando em nossa com um universo complexo, consciência – sem que possamos nos multidimensional e misterioso. O dar conta disso. Talvez o grande desafio religioso então ultrapassa as fronteiras e aprendizado seja justamente este: do instituído e das convenções sociais, perder o passo e o rumo, para inserir-se no âmago da própria desaprendendo os lugares estabelecidos existência – sem fórmulas prontas. e aprendendo algo novo e impensado com cada desvão e cada vereda – a cada IHU On-Line - Como navegar nas nova leitura. mais de 600 páginas do livro sem perder o passo e o rumo? Como

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Sherazade do sertão Entrevista com Lélia Parreira Duarte

Guimarães Rosa comparado à personagem Sherazade do livro As 1001 noites ? De acordo com a doutora em Literatura Portuguesa pela USP, professora titular de Literatura da UFMG e da PUC Minas, Lélia Parreira Duarte, a escrita de Guimarães Rosa tem a função de lidar ambiguamente com a morte e a vida e, sempre, a de adiar a morte. A professora concedeu por e-mail uma entrevista à IHU OnOn----LineLine , em que, entre outros assuntos, falou do humor contido nas obras de Guimarães. O mais recente livro de Lélia, chama-se Ironia e humor na literatura . Minas Gerais: Editora PUC Minas e Alameda, 2006. Na obra, podemos encontrar três estudos sobre Guimarães Rosa.

IHU On-Line - Em suas análises quais IHU On-Line - O que o universo as correlações que podemos fazer literário de Guimarães Rosa tem que da obra Grande Sertão: Veredas com faz muitas pessoas estudarem e a psicanálise, o cinema, a fotografia analisarem suas obras? Quais as e até mesmo a arquitetura? características marcantes do texto Lélia Parreira Duarte - Em Grande roseano? sertão: veredas, Guimarães Rosa lida Lélia Parreira Duarte - O universo essencialmente com a linguagem e a literário de Rosa é atraente e intrigante sua potencialidade, com as ânsias e porque a sua linguagem, aparentemente carências do ser humano e com a complexa e difícil, fascina pelo jogo entre importância do desejo para a o conhecido e o desconhecido, a continuidade da vida. Como esses realidade e a imaginação, o desejo e a sua elementos são fundamentais para a contenção. Daí o interesse pelo seu psicanálise e a arte, são infindáveis as estudo. correlações possíveis entre a obra de Rosa e a psicanálise e a arte em geral. IHU On-Line - A senhora acha que tudo que foi feito em relação à obra IHU On-Line - Mesmo falando (filmes, vídeos, lançamento de livros, somente do sertão, Guimarães pode painéis) ajudou no entendimento do ser considerado um escritor livro? universal? Lélia Parreira Duarte - Acho Lélia Parreira Duarte - Essa principalmente que tudo o que foi feito universalidade está no fato de que Rosa, contribuiu, de alguma forma, para a ao tratar do sertão, trata de questões e divulgação da obra de Rosa e por isso problemas de um ser humano que não valeu a pena, já que o importante é que está apenas no sertão: não disse ele que se leia repetidas vezes toda essa obra, se o sertão está em toda parte? possível em voz alta, pois a sua sonoridade é fundamental para a sua compreensão.

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IHU On-Line - Em um artigo, a IHU On-Line - Existe humor na obra de senhora chamou Guimarães de Guimarães Rosa? Sherazade? Por quê? Lélia Parreira Duarte - O humor é o Lélia Parreira Duarte - O sultão ingrediente mais importante da obra de Shariar, furioso por ter sido traído por Rosa, porque o humor trabalha com a sua esposa, decidiu casar-se a cada dia ambigüidade da linguagem. Como com uma jovem, mandando matá-la, no mostrou Freud, em seu estudo sobre As dia seguinte, evitando assim ser palavras antitéticas ou sobre O estranho , novamente traído. Preocupada com a existem nas palavras elementos dizimação das jovens do reino, contraditórios, que podem ser utilizados, Sherazade resolveu oferecer-se para ser com ironia, para o exercício do poder e a esposa do sultão e, na manhã do dia para a dominação do outro. No caso do seguinte, antes que o sultão saísse (e humor, essa ambigüidade é voltada para determinasse a sua morte), começou a o próprio eu que fala; um eu que deseja contar-lhe uma história, interrompida o poder, mas sempre se envolve em jogos em vista dos compromissos do rei. de enganos e se coloca como o que não Interessado em ouvir o restante da compreende ou se engana, de modo a narrativa, o sultão concede mais um dia tornar-se ridículo, risível, ou digno de de vida a Sherazade, o que resulta nas pena. Não será isso o que acontece, por "1001 noites" (ou 1001 histórias), exemplo, com Riobaldo, com o suficientes para que Sherazade tenha Jimirulino, de "Uai, eu?", com o narrador três filhos com o sultão, restaure a sua de Os irmãos Dagobé e tantos outros confiança nas mulheres e cure o seu personagens/ narradores de Guimarães coração ferido pela infidelidade da Rosa? primeira esposa. Isso significa que as IHU On-Line - Na sua opinião, qual o histórias de Sherazade fizeram-na personagem mais interessante da vencer a morte. Penso que a escrita de obra roseana? Guimarães Rosa (e geralmente a de Lélia Parreira Duarte - Talvez Riobaldo todo escritor) também tem essa função seja uma condensação das personagens de lidar ambiguamente com a morte e a roseanas e o mais importante, porque vida e, sempre, a de adiar a morte. Daí a fazendo-o narrador, Rosa colocou nele a relação de Guimarães Rosa com sua arte de contador de histórias (como Sherazade. Sherazade).

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Um mestre na linguagem Entrevista com Gilvan Procópio Ribeiro

Guimarães Rosa é, sem dúvida, um dos autores mais importantes da literatura brasileira e latino-americana do século XX . As considerações acerca da sua obra Grande Sertão: Veredas são muitas. O professor de Literatura Brasileira, Literatura Comparada e Teoria da Literatura na Universidade Federal de Juiz de Fora, Gilvan Procópio Ribeiro, também estuda muitos aspectos da obra. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU OnOn----LineLineLine, o mestre em Teoria da Literatura pela UFJF e doutorando em Literatura Comparada pela UFF, aborda muitas questões levantadas sobre Rosa e o seu sertão, desde as possibilidades de significação do Riobaldo ás comparações com Joyce e a escolha dos nomes dos personagens por Guimarães Rosa.

IHU On-Line - Qual a importância de Veredas , como foi o caso de Arlindo Guimarães Rosa para a literatura Daibert? brasileira e latino-americana? Gilvan Procópio Ribeiro - Arlindo Gilvan Procópio Ribeiro - Guimarães Daibert 9 foi uma figura muito especial Rosa é, sem dúvida, um dos autores de intelectual e artista. Sendo artista mais importantes da literatura brasileira plástico, tinha, no entanto, uma e latino-americana do século XX, tendo formação acadêmica em Letras, o que o construído uma obra de uma dimensão leva a fazer, em vários trabalhos, uma e densidade impares. Sua importância ponte entre as duas atividades. Ele o não se restringe ao Brasil e à Latino faz, inicialmente, com Lewis Carrol 10 ; América, tendo em vista o intenso diálogo que as literaturas africanas de

língua portuguesa mantêm com a obra 9 Arlindo Daibert (1952-1993): desenhista, do escritor. Rosa deglute gravador, pintor, construtor de objetos e antropofagicamente aspectos relevantes professor. Bacharel em Letras pela UFJF, onde do imaginário europeu – o mito mais tarde tornou-se professor do Departamento de Artes. Fez curso de técnicas de gravura em faustiano, a donzela guerreira, entre metal no Atelier Calevaert Brun, em Paris, prêmio outros – apropriando-se deles e que lhe foi concedido pela Embaixada da França sertanizando-os, não só por meio do no II Salão Global de Inverno realizado em Belo contexto em que os insere, mas, talvez Horizonte, em 1974. (Nota da IHU On-Line ) principalmente, pela linguagem por 10 Lewis Carol (1832 – 1898): Este nome foi o meio da qual os expressa. Dessa forma, pseudônimo adotado pelo matemático e escritor pode apontar algum caminho para Charles Lutwidge Dodson, que nasceu em literaturas ainda, de alguma forma, Cheshire, Inglaterra. Lewis Carrol teve uma manietadas pelo eurocentrismo. carreira como professor de matemática na Christ Church, origem da famosa Universidade de Oxford, tendo sido um bom matemático e lógico, porém não-brilhante. Sua fama vem de seus dois IHU On-Line - Quais são as livros infantis, Alice no país das maravilhas particularidades de fazer um livro (1865) e Através do espelho ( Alice do outro lado de imagens sobre Grande Sertão: do espelho, título mais conhecido em Portugal), ambos escritos sob inspiração de Alice Liddell, filha do deão da Christ Church, de apenas 10 anos

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em seguida, com Macunaíma e, IHU On-Line - Grande sertão pode finalmente, com Grande sesertão:rtão: veredas . ser considerada uma história de Esta ligação entre um leitor especialista amor? em literatura e um artista plástico se Gilvan Procópio Ribeiro - Certamente, reflete, para falar de modo específico do Grande sertão : veredas é uma história Grande sertão , numa leitura visual do de amor, de amores, de várias maneiras texto de Rosa. Não se trata, de forma de amar. Temos os amores alguma, de uma ilustração do livro, mas diferenciados de Riobaldo por antes, para usar um termo cunhado por Diadorim, por Otacília, por Nhorinhá. Haroldo de Campos 11 , de uma Por Diadorim, durante a maior parte da “transcriação”, livre e pertinente, narrativa, parece ser o amor “que não instigante e impactante. ousa dizer seu nome”. Por Otacília, o amor “honesto”, que garante a família e IHU On-Line - Existe como fazer um a posteridade. Por Nhorinhá, o amor retrato e uma identidade cultural de ocasional, fortemente sexualizado. Há Minas Gerais com base na leitura um momento na narrativa em que a de Grande Sertão ? E com o Brasil? tensão entre os três amores aparece de Gilvan Procópio Ribeiro - Uma das forma muito contrastiva com referência questões que tem sido objeto de muitas à florzinha que poderia se chamar “casa discussões nos últimos anos envolve o comigo”, para Otacília; “dorme comigo”, problema da “mineiridade”. Vários para Nhorinhá e Otacília, ao perceber a autores já se debruçaram sobre isso. relação emocional muito forte entre Com certeza, podemos falar de Riobaldo e Diadorim, diz, secamente, o mineiridade em Guimarães Rosa, mas é nome da flor é “liro liro”. Além disso, algo extremamente complexo, pois vejo amor também no lirismo da restringir o livro a esse aspecto seria canção de Siruiz e no prazer afetivo das ignorar a preocupação metafísica nomeações. A sucessão de presente no livro, em que o sertão é antroponímicos e toponímicos, no Minas e é mais do que Minas, plano da linguagem, é uma imensa projetando-se numa dimensão tal que declaração de amor aos seres e lugares discute questões ontológicas essenciais, nomeados. para além do mero espaço geográfica e emocionalmente determinado. Com IHU On-Line - Guimarães Rosa relação ao Brasil, o recente trabalho de conseguiu unir o sertanejo com o Willi Boile 12 parece apontar nessa mundo acadêmico. Como se deu direção. É algo que merece ser esta união? discutido mais a fundo. Gilvan Procópio Ribeiro – Guimarães Rosa, se, por um lado, tem uma profunda identificação com o sertanejo, de idade, por quem ele nutria uma paixão por outro lado, projeta este sertanejo platônica. Lewis foi o inventor de inúmeros jogos numa dimensão para além do espaço e quebra-cabeças infantis com que ele entretinha em que concretamente ele se move. A suas amigas crianças. (Nota da IHU On-Line ) linguagem é, ao mesmo tempo, fortemente marcada por certa oralidade e elaborada numa síntese deliciosa com 11 Haroldo de Campos : poeta concretista brasileiro. (Nota do IHU On-Line ) outras falas, outras criações, muito mais, digamos, letradas. Assim, Riobaldo, 12 Willi Bolle é professor de literatura no como invenção é uma síntese Departamento de Letras Modernas da Faculdade maravilhosa dessa simbiótica de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. elaboração, e se presta, às mil

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maravilhas, a inúmeras pesquisas, IHU On-Line - Assim como há um investigações, elocubrações e invenções estilo na escrita de Guimarães, há acadêmicas. uma maneira de se ler Grande sertão ? IHU On-Line - Riobaldo se pergunta: Gilvan Procópio Ribeiro – GrandGrandee "Afinal o que é que eu era?". O que sertão: veredas é um longo fluxo senhor acredita que Riolbaldo era? narrativo, centrado na voz enunciadora Gilvan Procópio Ribeiro – Riobaldo de Riobaldo. tem várias possibilidades de Esse é um pressuposto básico do jogo significação. É um jagunço letrado que de linguagem que o texto estabelece. A se move angustiado entre voz e letra leitura do livro – como aliás de para usar a bela expressão de Laura 13 qualquer livro – depende da aceitação (Cavalcante Padilha), entre as das regras estabelecidas por esse jogo possibilidades que o texto escrito lhe de linguagem. Se o leitor se recusa a oferece e a crueza da vida que leva. Ao aceitar as regras, se não se entrega mesmo tempo, Riobaldo é uma síntese totalmente ao fluxo da linguagem, o da aflição do ser humano, sempre livro permanecerá hermeticamente diante de alternativas que as fechado, incompreensível. Ademais, encruzilhadas da vida lhe oferecem. como já disse Arnold Hauser 14 , a obra Talvez a melhor forma de dizer de arte só tem algo a dizer a quem lhe Riobaldo esteja no próprio livro, ele é faz perguntas. Para quem é mudo, a “homem humano. Travessia.” obra é muda também. Acrescente-se a isso o sinal de infinito. IHU On-Line - É pertinente a IHU On-Line - Os nomes dos comparação de Grande sertão: personagens roseanos deixam de veredas com Ulysses , de Joyce? ser meros indicadores de identidade Gilvan Procópio Ribeiro - Ulysses , de e passam a ser significativos. O que James Joyce 15 , é uma das obras mais provavelmente Guimarães tinha em mente quando os escolhia? Gilvan Procópio Ribeiro – O grande 14 Arnold Hauser (1892–1978 ): historiador e crítico conhecimento lingüístico de Guimarães de arte húngaro. Formado em Viena, desenvolveu Rosa oferecia a ele um amplo espectro sua teoria da arte, que relaciona as manifestações de escolhas. O nome dos personagens artísticas com os fenômenos oócioeconômicos, nunca é aleatório, obedece sempre a no livro Historia social de la literatura y el arte (1957), El manierismo (1965) e Sociología del algum critério pré-estabelecido, e já há arte (1975). (Nota da IHU On-Line ) estudos significativos sobre isso. As interpretações podem variar, mas 15 James Joyce (1882 1941): escritor irlandês. De buscam sempre alguma razão que educação judaica, passou grande parte da sua projete o nome numa esfera além da vida fora da Irlanda, trabalhando como professor. Aos 22 anos, instalou-se em Trieste, Itália, e simples identificação. começou a escrever poesia (Chamber Music) e contos (Gente de Dublin). Em meados de 1914, publicou Dedalus, romance autobiográfico de grande complexidade construtiva. A profunda 13 Laura Cavalcante Padinha é doutora em Letras identidade do protagonista, o jovem escritor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Stephen Dedalus reside nas palavras. No romance, Professora Adjunta IV da Universidade Federal ocupam um lugar especial os sonhos e os Fluminense, na área de Literaturas de Língua desejos. As preocupações de Joyce com a Portuguesa, em particular nas Literaturas linguagem e com o mito manifestam-se na sua Africanas. e representante da sua área no CNPq. obra-prima, Ulisses. É um romance com poucos (Nota da IHU On-Line ) acontecimentos. O dia 6 de Junho de 1904 decorre em Dublin e o leitor vê-a através de um

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seminais do século XX, pelas experimentações, pela construção de uma nova linguagem narrativa. Mesmo para um autor que não o tenha lido – o que certamente não é o caso de Rosa – a obra permanece como um parâmetro, ainda que para ser contrariado. Talvez se possa comparar algo do processo criativo de Rosa ao de Joyce – ambos poliglotas, ambos capazes de gestar neologismos com base em seus conhecimentos lingüísticos, ambos criadores de maravilhosas palavras- valise, prenhes de sentidos. Acredito, no entanto, que Rosa fique mais a dever a Macunaíma ,,,161616 do que propriamente a Joyce.

personagem: Leopold Bloom, agente de publicidade. Cada capítulo está escrito segundo um modo de narrar peculiar. Ulisses. (Nota da IHU On-Line )

16 Macunaíma: romance de Mário Raul de Morais Andrade, publicado em 1928. O livro é uma das obras-primas da literatura brasileira e reúne inúmeras lendas e mitos indígenas para compor a história do “herói sem nenhum caráter”, que, invertendo os relatos dos cronistas quinhentistas, vem da mata para a cidade de São Paulo. (Nota da IHU On-Line )

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O milagre da existência Entrevista com José Carlos Barcellos

José Carlos Barcellos é doutor em Letras pela USP e em Teologia pela PUC-Rio. É professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU OnOn----Line,Line, o professor abordou o diálogo entre as obras literárias e o pensamento teológico e das questões religiosas no Grande sertão: Veredas IHU On-Line - Quais autores da IHU On-Line - Quais seriam os Literatura Brasileira foram principais livros em que esta influenciados pela teologia? aproximação tem sido tentada? José Carlos Barcellos - Não se trata de José Carlos Barcellos - Já há uma autores influenciados pela teologia. Os bibliografia bastante vasta nas estudos interdisciplinares de literatura e principais línguas européias. Aqui no teologia buscam, por diversos métodos, Brasil, poderíamos citar, entre outros. estabelecer uma forma de diálogo entre Teologia e literatura . São Paulo : Loyola, as obras literárias e o pensamento 1994, de Antônio Manzatto, sobre Jorge teológico. Esse diálogo pode se dar  e Amado, O roteiro de Deus . São Paulo : eventualmente pode ser muito rico  1996, de Heloísa Vilhena de Araújo, mesmo com obras alheias a qualquer sobre Guimarães Rosa, Os escritores e referencial religioso. No entanto, há as Escrituras . São Paulo : Paulus, 1995, inúmeros autores nos quais a presença de Karl-Josef Kuschel, sobre autores de de questões religiosas e teológicas é língua alemã, e Literatura e muito forte. Na literatura brasileira, espiritualidade .. Bauru : Edusc, 2001, de basta lembrarmos os nomes de Lúcio minha autoria, sobre o escritor francês Cardoso 17 , Cornélio Pena 18 ou Adélia Julien Green. Prado 19 , por exemplo. IHU On-Line - Onde está a religião 17 Lúcio Cardoso (1912–1968): m ineiro de no sertão descrito no livro Grande Curvelo, chamado pelo crítico de Sertão: Veredas ? Quais as relações "inventor de totalidades existenciais". Lúcio foi entre fé e linguagem no livro? escritor, dramaturgo, jornalista, e poeta. Realizou com Paulo César Saraceni, o primeiro longa- metragem do Cinema Novo. Nos últimos anos de sua vida, pintava. Para ele, a arte era vital. (Nota com o livro O homem da mão seca . Conta a da IHU On-Line ) autora que o livro foi iniciado em 1987, mas, depois de concluir o primeiro capítulo, foi 18 Cornélio Pena (1896-1958): diplomado em acometida de uma crise de depressão, que a Direito, posteriormente, passou a exercer bloqueou literariamente por longo tempo. Em atividades como jornalista, pintor e ilustrador, 2000, estreou o monólogo Dona da casa , em São vindo mais tarde a dedicar-se à literatura. Paulo, adaptação de José Rubens Siqueira para Escreveu, entre 1935 e 1954, quatro romances na Manuscritos de Felipa . Em 2001, apresentou no linha psicológica de ficção brasileira. (Nota da IHU Sesi Rio de Janeiro e em outras cidades, o sarau On-Line ) onde declamou poesias de seu livro Oráculos de Maio, acompanhada por um quarteto de cordas. 19 Adélia Luzia Prado Freitas (1935): escritora (Nota da IHU On-Line ) brasileira. Em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum verso, ressurgiu

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José Carlos Barcellos - A teologia em Casmurro 202020 , São Bernardo 212121 ou Grande Grande Sertão é muito complexa, como SertãoSertão. Em última análise, essa mostra a obra de Heloísa Vilhena de valorização do indivíduo e de sua Araújo. Antes de qualquer coisa, há esse história de vida tem matriz cristã e é símbolo muito rico e inesgotável que é inaugurada pelas Confissões , de Santo o próprio sertão na obra. Conforme Agostinho 22 . O mais importante não são Riobaldo vai tecendo seu discurso, o os pecados, mas a tentativa de se sertão vai se estendendo para a perceber um fio condutor que atravessa totalidade do mundo, da vida, e vai se toda a existência e lhe dá sentido. Para abrindo a possibilidades de leitura que isso, é preciso o olhar de um outro que apontam para o mistério, o absoluto ou lance uma nova perspectiva de o transcendente. compreensão e aceitação.

IHU On-Line - Existem milagres no IHU On-Line - Riobaldo está numa sertão de Guimarães? eterna busca da salvação. Esta é a José Carlos Barcellos - O milagre busca dos homens? Onde se insere maior parece-me ser o milagre da a religião neste caminho? existência e do mistério que está em José Carlos Barcellos - Ao narrar sua tudo. vida, Riobaldo vai construindo aos poucos uma idéia de destino. Este é o IHU On-Line - Existe alguma religião percurso de qualquer narrativa: que possa ser atribuída aos transformar o acaso em necessidade e, personagens do livro? Os assim, dar um sentido aos personagens do livro são muito acontecimentos. Em perspectiva cristã, religiosos? esse destino é tecido no embate entre a José Carlos Barcellos - Sim, trata-se liberdade do homem e a graça de Deus claramente de um referencial religioso e é aí que se coloca a questão da católico que convive com outras salvação. tradições, como o kardecismo. Há vários estudos que procuram mostrar também alusões mais ou menos cifradas a outras doutrinas, o que é um procedimento comum em Guimarães Rosa. 20 Obra de . Dom Casmurro . IHU On-Line - O romance organiza- Erechim: Edelbra, 1997. (Nota da IHU On-Line ) se do encontro de Riobaldo, homem do sertão, com um "senhor" para quem Riobaldo narra sua vida. Será 21 São Bernardo é um romance escrito por que podemos considerar que Graciliano Ramos, publicado em 1934 . São Bernardo é uma afirmação da literatura de Riobaldo está se confessando? Graciliano Ramos, projetando-o no panorama Quais seriam seus maiores pecados? artístico-nacional. Após sua publicação, o autor José Carlos Barcellos - Boa parte da passa a ser um escritor importante do momento literatura moderna tem um caráter literário que o País estava vivendo, preparando o terreno para seus futuros livros. (Nota da IHU On- biográfico e, muitas vezes, Line ) autobiográfico. Não no sentido de ser a autobiografia do autor, mas no de colocar o personagem a narrar sua 22 Aurélio Agostinho (354-430): Conhecido como autobiografia, como vemos em Dom Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, bispo católico, teólogo e filósofo (Nota do IHU On-Line )

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O espaço e o tempo no sertão

Entrevista com Paulo Soethe

Paulo Soethe leciona atualmente na Universidade Federal do Paraná (UFPR) na linha de pesquisa Teologia e Literatura. É graduado em Letras Alemão/Português pela UFPR, e mestre e doutor em Letras, com ênfase em Língua e Literatura Alemã pela USP com a tese Ethos, corpo e entorno. Sentido ético da conformação do espaço em Der Zauberberg" e "Grande sertão: veredas" . Realizou diversas atividades de formação complementar na Alemanha, entre elas dois estágios pelo CAPES/DAAD na Eberhard Karls Universität Tübingen, e na Áustria. Desde 2003 Soethe dirige e administra o departamento de Letras Estrangeiras e Modernas da UFPR, e é coordenador de Convênio com a Universidade de Leipzig, Alemanha, entre outras atividades.

Por e-mail, Soethe falou à IHU OnOn----LineLine sobre a ética dentro do sertão de Guimarães Rosa e como se determinam tempo e espaço na obra Grande Sertão: Veredas. Confira a íntegra da entrevista.

IHU On-Line - O senhor pode falar do ethos , que significava originalmente seu trabalho desenvolvido no “abrigo protetor”. Esse espaço comum doutorado sobre o mundo roseano? era partilhado por animais ( ethos significava “estábulo” ou “toca de feras”, Paulo Soethe - Meu trabalho pretendeu por exemplo) ou também pelos homens. compreender como se dá a conformação Esse termo tão concreto assumiu sentido do espaço em textos literários (o entorno abstrato ao longo do tempo e passou a das personagens e o ambiente que elas significar a dinâmica das relações que partilham) e qual o sentido ético desse torna possível a partilha de um espaço elemento formal quando se considera o comum. Assim, o significado que a texto literário como manifestação em palavra “ética” assume nos dias de hoje, meio a um discurso social mais amplo. como conjunto de hábitos, Ou seja, interessou-me entender de que procedimentos e preceitos para o bom maneira a figuração do espaço, em si convívio, é também uma metáfora do mesma, apresentava força declarativa espaço que dividimos ao conviver. Foi ética. O insight inicial dessa abordagem sob essa perspectiva teórica que analisei surgiu de um argumento do filósofo e o espaço nos romances Grande sertão: jesuíta brasileiro Henrique de Lima veredas , de Guimarães Rosa, e A Vaz 23 sobre a etimologia do termo grego

filósofos católicos do Brasil da segunda metade do século XX. (Nota da IHU On-Line ) 23 Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921– 2002): Padre Vaz foi um dos mais importantes

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montanha mágica , de Thomas Mann, forma é tão importante na leitura e aproximando-os no que têm em comum. interpretação. Mas isso não exclui a literatura do universo da comunidade IHU On-Line - Onde está inserido a argumentativa em que ela nasce; pelo ética na obra Grande sertão: contrário, a forma é seu modo de veredas ? inserção discursiva. No caso de Grande Paulo Soethe - Segundo argumentei em sertão: veredas alguns dos elementos do meu trabalho, a força declarativa ética romance contêm indicações referenciais, de um texto narrativo ficcional não se permitem-nos situar a ação na realidade encontra na enunciação argumentativa histórica e inserir o texto ficcional no de princípios ou normas éticas. A debate em curso na realidade, na época reflexão ética, e mesmo a enunciação de de Rosa e até nossos dias. princípios éticos, ocorre no romance em Sobre o papel cognitivo do espaço, especial por meio da figuração e considero bem elucidativa uma série de conformação do espaço partilhado pelas exemplos em que às noções de personagens. Elementos como a interioridade e exterioridade física do consciência de interioridade e corpo do outro desempenham um papel exterioridade do corpo, a preservação ou central. No texto roseano, Riobaldo invasão da integridade física do outro, a expressa diversas vezes sua consciência percepção sensível do espaço natural sobre a linha que separa o corpo do pelas personagens, a delimitação do espaço circundante. Essa linha está espaço geográfico construído representada plasticamente em ficcionalmente segundo princípios metáforas que assumem com freqüência econômicos, políticos ou militares, entre sentido ético ou afetivo. Uma das outros elementos, funcionam como uma primeiras situações vividas por Riobaldo espécie de “vocabulário” na constituição depois de ser reconhecido como o chefe de imagens, motivos e situações que Urutu Branco – que agora, pactário, compõem o romance e dizem sobre a pode dispor da vida e morte de outras reflexão ética que ele encerra. pessoas – é o encontro com uma série de figuras indefesas. A primeira delas é IHU On-Line - Como se determina “nhô” Constâncio Alves, um senhor tempo e espaço na obra roseana? O assaltado pelo bando. Riobaldo, que espaço físico participa ativamente acabara de se declarar incapaz “de ser das atividades mentais dos uma coisa só o tempo todo”, terá essa personagens de Guimarães? sua inconstância posta à prova pela Paulo Soethe - Como eu dizia, espaço e presença do homem indefeso. Durante a tempo são compostos a partir de interpelação, surge em Riobaldo o elementos dados na obra. Não desejo de matar nhô Constâncio. preexistem um espaço ou um tempo; Riobaldo mesmo entende esse impulso ambos são construídos por elementos como diabólico, “luz de Lúcifer”: “se formais presentes no romance. Por outro esquentou em mim o doido afã de matar lado, texto algum habita uma torre de aquele homem, tresmatado”, é o que ele marfim, e a literatura é tudo menos afirma. Mas não aceita passivamente o “pura forma”, como pretendem alguns. “doido afã”, e diz logo a seguir: “Ah, mas, As obras literárias são partes de um então, do sobredentro de minhas idéias discurso social, com valor proposicional (...) uma minha-voz, vozinha forte e argumentativo. Sua especificidade demais, suministrou um cochicho. (...) formal, no entanto, é a de recorrer às Ah, um recanto tem, miúdos remansos, dimensões estética, mimética e ficcional aonde o demônio não consegue espaço da linguagem, e por isso a atenção à de entrar, então, em meus grandes

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palácios. No coração da gente, é que eu Riobaldo um recurso para escapar ao estou figurando.” Essa voz da projeto “luciferino”. E por fim ele consciência, que no final leva Riobaldo a declara: “Por uma greta me saí, levando poupar a vida de Constâncio Alves, a salvo comigo o desgraçado nhô abriga-se dentro dele, no próprio corpo. Constâncio Alves.” As dimensões do E Riobaldo manifesta tal coisa utilizando corpo e de sua realidade externa são as uma metáfora herdada das Confissões metáforas usadas para exprimir o de Santo Agostinho, como apontou o conflito ético que Riobaldo começa a filósofo Benedito Nunes: a imagem do viver, entre a arbitrariedade do uso do corpo como um “grande palácio”. Nesse poder que ele acabava de assumir e o palácio mantém-se intacto o recanto do respeito e temor diante do mais fraco. A “coração”, sede da memória, cômodo palavra, num primeiro momento, está inacessível ao impulso instintivo de presa no interior do chefe jagunço que aniquilação do outro. “mascava os beiços”, como instância de O corpo afigura-se no romance sua mera vontade e desejo “luciferino”. como espaço dividido entre a existência Quando Riobaldo, no entanto, se remete natural impulsiva e a existência cultural à memória ética figurada pelo “nome da e moral. Para Riobaldo, “aquilo de ruim- Virgem” e pela “doçura de Deus”, essa querer” diante de sua vítima “carecia de palavra se transforma e possibilita a dividimento – e não tinha”. É o Riobaldo fugir do interior de si. Para momento da decisão ética, do resolver o impasse, o chefe Riobaldo, “dividimento” entre bem e mal. Riobaldo como Esfinge poderosa, propõe uma pergunta-se: “o demo então era eu pergunta misteriosa, nhô Constâncio mesmo?”. Nesse episódio, a existência responde a contento, e é então liberado pulsional, sentida claramente no corpo, para seguir seu caminho. equivale ao “demônio”, e Riobaldo A esse episódio seguem dois precisa lutar consigo para manter outros. Primeiro, Riobaldo quer matar audível a voz do “coração”. Ao narrar o um leproso a faca, mas é dissuadido por episódio, ele exprime isso ao dizer: “Ru, uma visão de Diadorim, que, eh, masquei meus beiços, eu transfigurado na Virgem, conclama-o à arrebentasse. Vi que acabava tendo de piedade. Depois que o leproso se vai, matar, e era o que eu mesmo queria”. Riobaldo ainda pergunta, sem grande Para sufocar o “doido afã” de matar, convicção: “Que aquele homem leproso Riobaldo apela às noções de justiça era meu irmão, igual, criatura de si?” divina, conteúdo da memória (sediada A pergunta será respondida em no coração) de uma tradição ética outro episódio, o terceiro nesse caminho milenar, que na realidade do sertão formativo de Riobaldo. Ao atravessar o sobrevive na instância religiosa. Essa Liso do Sussuarão, ele acaba tendo que dimensão da memória e da tradição são matar um dos homens de seu bando. explicitados no texto pela duração do Treciziano, desnorteado pelo calor no “perfume do nome da Virgem” que “dá deserto, ataca Riobaldo, e é morto por saldos para uma vida inteira”. Riobaldo, ele, a faca. Riobaldo mata em legítima logo depois de “mascar os beiços” para defesa e invade, afinal, a interioridade conter-se, diz que “em instantâneo” do corpo alheio. Ao lembrar desse achou “a doçura de Deus”: “Eu clamei episódio, no entanto, quando narra o pela Virgem... Agarrei tudo em escuros – ocorrido, afirma ter finalmente mas sabendo de minha Nossa Senhora! entendido que “sangue é para restar O perfume do nome da Virgem perdura sempre em entranhas escondida, a muito; às vezes dá saldos para uma vida espécie para nunca se ver”. E pergunta- inteira...” Essa lembrança oferece a se: “Será por isso também que imensa

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mais é a oculta glória de grandeza da IHU On-Line - O medo está muito hóstia de Deus no ouro do sacrário – presente na vida de Riobaldo. Como toda alvíssima – e que mais venero, com ele lida com isso? meus joelhos no duro chão?” Ao longo Paulo Soethe - O medo, como a culpa, desses três episódios, Riobaldo marca decisivamente a perspectiva do compreende de maneira plena que o narrador Riobaldo. “Demo” seria mesmo corpo alheio não é para ser ferido, deve um significativo anagrama de “medo”, ficar intacto, e deriva disso um princípio no romance. Riobaldo não é o herói ético de preservação da vida alheia, corajoso, mas a personagem que se sabe como valor. São as noções de espaço limitada em sua criaturalidade, narrador próprio e alheio, interioridade e inevitavelmente auto-irônico ao contar exterioridade do corpo, que acabam por suas peripécias. Em sua fala, nada de configurar o caminho cognitivo trilhado autoconfiança pretensiosa; ela é por Riobaldo – e também pelo leitor marcada, isso sim, pela clarividência de atento do romance. grandes figuras na literatura moderna, cientes de sua fragilidade e dos perigos IHU On-Line - Como é o contato entre inerentes aos projetos totalizantes de os personagens do livro Grande nosso tempo, como também ocorre em sertão ? Há criação de vínculos figuras centrais nas obras de Dostoiévski, duráveis? Como o senhor Kafka, Thomas Mann, Robert Musil 24 . caracterizaria os vínculos de Riobaldo com as outras personagens IHU On-Line - O senhor teve contato da obra? com cadernos de anotações do Paulo Soethe - Riobaldo é a figura em escritor. O que senhor viu e formação no romance, e ao mesmo percebeu sobre Guimarães Rosa? tempo o narrador que fala sobre sua Paulo Soethe - O Arquivo e a Biblioteca vida em retrospectiva. Há vínculos Guimarães Rosa no Instituto de Estudos duráveis com o amigo Zé Bebelo e com Brasileiros da USP oferecem muito Otacília, a mulher. Há também vínculos material inexplorado sobre o escritor. comprometidos por uma possível culpa Está sistematizado de maneira muito social, ao menos da perspectiva do competente e profissional pela equipe leitor: Riobaldo mantém vários de seus do IEB. Ao contrário do que às vezes se companheiros jagunços como ouve, ainda há muito, muito mesmo, que empregados em suas terras, depois que descobrir sobre Rosa, a partir desse herda as fazendas de seu pai, Selorico material. Em conjunto com Jaqueline Mendes, em testamento. E há ainda, sob Koehler, desenvolvi pesquisa, por o signo da culpa e da dúvida, o mais exemplo, sobre sua recepção da cultura importante dos vínculos: com Diadorim, de língua alemã, e disso resultaram a “neblina” de Riobaldo, a força que informações sobre procedimentos de impulsiona toda a narração. Esse vínculo criação lingüística a partir do idioma, ambivalente está marcado pelo amor suas referências em filosofia, artes, diante do corpo morto, que afastara em história e religião, seu entendimento sacrifício a figura diabólica de sobre a presença de alemães no Brasil, Hermógenes, e pelo desejo irrealizado

de união física. Os vínculos de Riobaldo, 24 Robert Musil (1880-1942): Exilado na Suíça por afinal, são densos e capazes de avivar força da repressão nazi, o autor austríaco escreveu muitas dimensões de significado uma novela, A Portuguesa , que faz parte da presentes no romance. trilogia Três Mulheres (Grigia, A Portuguesa e Tonka). A obra-prima de Musil é O Homem sem Qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989. (Nota da IHU On-Line ).

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imigrantes e viajantes. A pesquisa e paisagem (de André Lothe 25 ), entre também foi elucidativa sobre a estada de outros, bem como mediante as Rosa na Alemanha entre 1938 e 1942, anotações sistemáticas durante visitas a como cônsul-adjunto enviado pelo Brasil exposições. Diante de um quadro sob o Estado Novo, e sobre sua relação “Paysage avec une ville”, de Aelbert com o que viu naquele país, sob o Cuyp 26 , pintor do século XVII, por domínio nazista. Quanto a isso há um exemplo, ele anota em uma caderneta artigo meu no número mais recente da de estudos para a obra: “Sinto, colho o revista Scripta da PUC-Minas, em que espaço.” Um trabalho breve que destaco a figuração de certa culpa em publiquei em 2000 em coletânea da contos de Ave, palavra por parte de um Universidade Federal de Pelotas diplomata brasileiro em Hamburgo, que apresenta alguns resultados de minha nega vistos de imigração a pessoas pesquisa, e em artigo recente para ameaçadas pelo nazismo e pela guerra. revista Letras , da UFPR, escrito com Um assunto difícil. Outro material que Sibele Paulino, apresentamos um estudo pesquisei dizia respeito à recepção das sobre o tratamento da paisagem na obra artes plásticas por Rosa. O contato com de Rosa. o material revela uma gama de Em Grande sertão: veredas , percebem-se interesses muito grande na pessoa do os resultados dos estudos do escritor, escritor. Também um grande cuidado por exemplo na figuração de ambientes seu com a sistematização de suas escuros. Há um episódio em que o anotações de leitura e estudos, bando de jagunços está reunido em uma especialmente para a constituição de um noite de breu, logo depois que Riobaldo grande vocabulário que servisse como trava conhecimento com Otácilia, e reserva criativa para a escrita de seus Diadorim trai seu ciúme. Já nas textos. O próprio Rosa disse na famosa primeiras páginas do caderno “Estudos entrevista que concedeu a Günter sobre Pintura”, presente no Arquivo do Lorenz que sua biografia teria a forma IEB, Rosa havia feito anotações sobre a de um dicionário. Infelizmente, foi um utilização dos claro-escuros, dos valores, dos projetos suspensos por sua morte em um quadro ou desenho. Com a prematura. Afinal, o contato com o descoberta dos claro-escuros Rosa se Arquivo e a Biblioteca de Guimarães depara com a possibilidade de Rosa pode ser muito elucidativo sobre a representar com “verdade absoluta”, vida e obra do escritor. O material ainda como ele mesmo escreve no caderno de tem muito de novo a oferecer e está estudos, a realidade física dos corpos acessível a todos. humanos face a face, e ainda o espaço IHU On-Line - Como a pintura e as entre eles, como dados visuais palpáveis artes plásticas em geral influenciaram o livro Grande sertão: veredas . Quais os principais 25 André Lothe , pintor francês e teórico de um exemplos desta influência, na obra? cubismo purista como novo procedimento de Paulo Soethe – Para a análise da criatividade, que entendia que uma regulação conformação do espaço na literatura é interna e articulada de toda composição permitia o muito importante ter presentes os acesso a sua inteligibilidade. (Nota da IHU On- Line ) recursos de visualidade utilizados pelo escritor. Rosa aprende a lidar com esses

recursos mediante o estudo de tratados 26 Aelbert Cuyp (1620-1691): pintor Holandês. (Nota de pintura e desenho (de René-X. Prinet) da IHU On-Line )

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e significativas para a relação humana aí Jesus e a visita dos reis magos, em que o envolvida. estábulo em Belém está bem povoado Também é curiosa a atenção que com os animais. A revista Realidade , em Guimarães Rosa dedica, em suas dezembro de 1967, pouco depois da anotações e desenhos, a quadros em que morte do escritor, publicou uma série de se destaca a figuração de animais, poemas inéditos de Rosa sobre o Natal, cavalos e vacas em especial. Por caracteristicamente ilustrados com a exemplo, em quadros renascentistas e reprodução de telas como essas, bem barrocos com motivos do nascimento de adequadas ao gosto do escritor.

O sertão também existe na Alemanha Entrevista com Marcel Vejmelka

Marcel Vejmelka é alemão, formado como tradutor em português e espanhol. Em 2000, sua dissertação abordou as traduções da obra de na Alemanha. Depois, entrou no doutorado em estudos latino-americanos, especificamente, literatura brasileira, com a professora gaúcha Ligia Chiappini a única catedrática de literatura brasileira na Alemanha. O tema da tese foi Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa e Doutor Fausto de Thomas Mann: uma comparação intercultural. Vejmelka comparou as trajetórias dos dois escritores, suas ligações e a recepção de suas obras. Atualmente, realiza vários projetos na área da literatura brasileira e latino- americana. Também ministra aulas nessa área na Universidade livre de Berlim e na Universidade de Potsdam. O professor trabalha com teoria literária e teoria cultural.

IHU On-Line - A sua tese de doutorado dado interessante para uma aproximação faz uma comparação entre Grande entre Mann e Rosa: a ligação que cada um Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e teve com o país do outro. A mãe de Doutor FaFaustousto de Thomas Mann. Quais Thomas Mann 27 era brasileira, Guimarães as conexões que podemos fazer entre os dois autores e suas obras? Marcel Vejmelka - Os dois são, cada um 27 Thomas Mann (1875-1955): romancista alemão, no seu país, escritores decisivos no século considerado por alguns como um dos maiores vinte e no contexto da problemática sobre romancistas do século XX, tendo recebido o prêmio a identidade nacional e ao processo da Nobel da Literatura em 1929. Foi o irmão mais novo formação histórica da nação. E há outro do romancista Heinrich Mann e o pai de Klaus, Erika, Golo (aliás Angelus Gottfried Thomas), Monika,

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Rosa esteve na Alemanha durante o Leverkühn 28 , pactário sifilítico, em troca regime nazista e a Segunda Guerra da inspiração musical como alegoria da Mundial, como cônsul adjunto em Alemanha que se entrega ao nazismo - os Hamburgo. Então, comecei a ver como dois livros vão descobrindo camadas eram vistos os dois no outro país, profundas da modernidade, das suas constando, por exemplo, que, na contradições inerentes e dos seus avessos. Alemanha, não é tão conhecido o fato de a mãe de Mann ser brasileira, e isso quase IHU On-Line - Existe alguma maneira nunca aparece nos estudos da obra dele, especial de analisar Rosa? Como mantendo, assim, uma visão "pura" do funcionou isso para o senhor? escritor "alemão". Rosa sempre falou da Marcel Vejmelka - Existem numerosas sua grande admiração pela língua e "modalidades" nos estudos roseanos: cultura alemãs, e realmente há muitas esotéricas, históricas, estruturalistas, referências à Alemanha nas interpretações psicanalistas etc. Entendo isso como sinal da obra dele, inclusive se pode constatar da riqueza de significados e valores que a um certo exagero por parte de alguns obra de Rosa tem capacidade de pesquisadores, como essa ligação do mais transmitir, criar e inspirar. Isso já é valor à obra. Além disso, comparei a também uma questão de posicionamento recepção crítica e as traduções do Grande como pesquisador. A meu ver, a crítica sertão: veredas na Alemanha e do Doutor literária exige certo rigor metodológico, Fausto no Brasil. Terminei com uma mas também certa adaptação à obra. O leitura dialogante dos dois romances que crítico deve reagir ao que a obra lhe se confrontam com conflitos passou como impressão, intuição, fundamentais e cruciais de seus países no preocupação e tentar organizar essas século vinte, Mann com a sedução dos idéias e fazê-las dialogar com o próprio alemães pelo nazismo e Rosa com a texto literário. Claro que algumas leituras modernização acelerada do Brasil. Nos da obra de Rosa não me parecem lá muito dois casos, essa problematização se realiza adequadas ou pouco fundamentadas pelos mediante uma revisão crítica e criativa das textos dele. Entretanto, assim, se mantêm tradições culturais nacionais e de um as discussões, que são um elemento vital trabalho material com as dimensões do nosso trabalho crítico que nos fazem históricas e regionais das línguas alemã e repensar nossos pontos de vista e portuguesa. Lidos assim em conjunto e entender mais os dos outros. confronto, os romances de Rosa e Mann estabelecem realmente um diálogo tanto IHU On-Line - Como foi a recepção da entre si quanto com a cultura e história de obra Grande Sertão: Veredas na seus respectivos países: a "estória" de Alemanha? Como é visto o livro pelos Riobaldo, de seu pacto e seu amor por acadêmicos e o grande público? Diadorim, situada no sertão mineiro e Marcel Vejmelka - Rosa foi traduzido e narrada numa linguagem "sertaneja publicado na Alemanha na época do artística", alegorizando a "formação do "boom" da literatura latino-americana. Brasil" e a vida do compositor Adrian Grande sertão: veredas foi o primeiro livro traduzido, isto em 1964. Então, ocorreram

vários deslocamentos: Rosa foi Elisabeth e Michael Mann. Thomas Mann ganhou repercussão internacional, aos 26 anos, com sua apresentado como uma versão brasileira primeira obra, Os Buddenbrooks ( Buddenbrooks ), do realismo mágico, como parte de uma um romance que conta a história de uma família protestante de comerciantes de cereais de Lübeck ao longo de três gerações. (Nota da IHU On-Line ) 28 Compositor. Personagem do livro Doutor Fausto. (Nota da IHU On-Line )

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alternativa literária e imaginária ao Marcel Vejmelka - Falando de modo esgotamento europeu no pós-guerra. Ao geral, uma linguagem como a de mesmo tempo, críticos influentes na Guimarães Rosa, com essa densidade época divulgavam uma imagem de Rosa poética e inúmeras conotações a cada como exceção absoluta tanto na literatura momento, terá de ser "alterada", latino-americana quanto na universal: inevitavelmente, ao ser traduzida para algo nunca antes visto, sem precedentes - outra língua. No caso da língua alemã, me mas nessa lógica também sem tradição, parece que a única diferença "estrutural" sem raízes nem no continente nem no estaria no fato de não se tratar de uma país nem na região. Acredito que essas língua românica (assim se diferenciando categorizações se deviam mais ao das traduções para o italiano, o francês e o marketing do autor e do grupo de autores espanhol que, de certo modo, trabalham latino-americanos lançados na época e ao com analogias ao texto original). Isso não desejo dos mediadores de se é, entretanto, uma característica exclusiva posicionarem eles mesmos num espaço do alemão. O importante é, a meu ver, novo que eles poderiam passar a ocupar sempre estabelecer a maior consistência depois. A visão que se tem do Brasil na possível do que um colega de Curitiba Alemanha, especificamente na literatura, (Maurício Mendonça) chama de "projeto até hoje continua norteada por uma tradutório": uma leitura e análise indecisão entre o "exótico" exuberante e profunda do texto original, determinação uma literatura "absolutamente outra". Por dos aspectos fundamentais e decisivos da isso, muitas obras não encontram o seu linguagem a ser traduzida, a realização público, ficam limitadas a um círculo de concreta disso no texto traduzido. No caso leitores de "literatura brasileira ou latino- de Rosa, a inovação lingüística, o recurso americana", não têm divulgação e da fala popular, sertaneja, a ambigüidade interpretação fora desses mundos dos significados, a estrutura musical. A especializados. Hoje não há nenhum livro recriação desses elementos no sistema de Rosa no mercado alemão, as últimas lingüístico e cultural alemão. edições datam de 1994, ano em que o Brasil foi país-tema da feira do livro de IHU On-Line - Quando o senhor leu Frankfurt. Grande sertão: veredas teve um Grande Sertão qual foi a imagem que certo sucesso comercial nos anos 1960, teve do Brasil? com várias reedições, mas depois Marcel Vejmelka - Foi uma experiência desapareceu simplesmente. No meio muito marcante para mim, que só sei universitário, a situação está melhor, mas explicar com minha leitura do Doutor existem poucos trabalhos sobre ele feitos Fausto de Thomas Mann. Li o romance na Alemanha. Nos últimos anos, parece enquanto estava estudando no Brasil, quer que só eu e um colega de Viena (o Dr. dizer: estando fora da Alemanha. E a Stefan Kutzenberger) fizemos teses sobre leitura me vez perceber algo como as Rosa nos países de fala alemã. Também bases profundas da identidade alemã e existem poucos cursos sobre a obra dos conflitos a ela inerentes. Algum tempo roseana, talvez porque se acredita que seja depois li Grande sertão: veredas (demorei muito difícil para os estudantes. para "juntar coragem" porque todos diziam que o livro era extremamente IHU On-Line - Sabendo da dificuldade difícil), também no Brasil, no Rio de da linguagem proposta por Guimarães Janeiro. O texto me encantou desde o como funciona a tradução de um livro início, nem lembro quanto tempo levei como esse para o alemão? Existem para terminar o livro, mas foram só diferenças estruturais? poucos dias. O que Rosa me revelou com esse romance foi algo como a constituição

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interna da brasilidade, uma concepção de conseguia encontrar provas disso no identidade que foge de todos os próprio texto alemão, do qual eu não estereótipos presentes ainda hoje no gosto nada. Então comecei a formular a mundo com relação ao Brasil. A história minha crítica dessa tradução, tentando ver se passa no sertão, o texto se reveste de quais poderiam ter sido as razões tanto uma linguagem também do sertão, uma pela má qualidade da tradução quanto força arcaica revitalizada, como se fosse o pela sua fama de ser boa, ótima, a melhor. passado, a experiência histórica O problema básico da tradução é o seu acumulada do Brasil. O Prof. Willi Bolle tratamento da linguagem: o texto alemão é diz que Grande sertão: veredas é o um que respeita todas as regras da língua romance de formação do Brasil, concordo alemã: gramaticais, lexicais, inclusive plenamente com isso, o romance contém estilísticas e discursivas. Portanto, o uma reflexão profunda e crítica do que momento da transgressão, que é vem se formando como nação moderna responsável pela força da linguagem no Brasil, com todas a suas contradições, roseana, desaparece na tradução. Vejo dois seus conflitos e seus problemas. motivos: Por um lado, uma competência lingüística e cultural - ou intercultural - IHU On-Line - Por que o interesse em do tradutor muito menor do que se trabalhar com a literatura latino- costuma afirmar até hoje em dia, por americana? outro, um problema "ideológico": o gesto Marcel Vejmelka - Difícil de explicar ou da tradução alemã é um gesto de determinar um motivo concreto. Meu apropriação do texto alheio, do mundo interesse pelas línguas portuguesa e alheio que nele se expressa, dos espanhola, pelo continente latino- significados que dele surgem: o texto é americano se foi formando aos poucos. adaptado às regras vigentes da língua Sempre fui um leitor ávido. Pela leitura alemã, o texto é interpretado sob uma tento me aproximar de fenômenos e perspectiva limitada sobre o a América complexos culturais. Assim, tudo se foi Latina, o Brasil, o sertão. Esses dois juntando nessa direção, com a decisão de aspectos se manifestam na contradição estudar línguas e literatura latino- existente entre o discurso de Meyer- americana. Se tivesse que indicar um Clason sobre o texto e o próprio texto momento inicial, certamente foi minha traduzido. Ele apresenta Grande sertão: primeira visita ao Brasil com 15 anos, um veredas como romance metafísico, encanto irresistível, um fascínio pela universal, filosófico, mas apresenta um variedade e riqueza cultural do país, pela texto banal, vulgar, sem as características simpatia das pessoas. do original nem poeticidade própria. Desse modo, para mim fica evidente que IHU On-Line - O senhor tem um ensaio os problemas da recepção de Guimarães chamado Guimarães Rosa na Rosa na Alemanha se devem, em grande Alemanha: a metafísica enganosa . parte, aos problemas da tradução de Quais as principais idéias desse Grande sertão: veredas e dos outros livros ensaio? roseanos. São textos que não inspiram Marcel Vejmelka - Esse ensaio foi um nem sustentam as leituras profundas ou núcleo da minha tese de doutorado. É o complexas que são características para resultado imediato de minha leitura e entender Rosa. análise da tradução alemã de Grande sertão: veredas, realizada em 1964 por IHU On-Line - Os conflitos do Curt Meyer-Clason. Essa tradução até hoje personagem Riobaldo são conflitos é considerada uma das melhores universais? traduções do romance, mas eu não

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Marcel Vejmelka - São. Na medida em consegue uma expressão literária que Riobaldo é concebido e criado por universal, é preciso criá-la com uma base Rosa como jagunço e sertanejo, ele vai cultural e histórica concreta. É o que Rosa representando conflitos e significados faz com o mundo dele, o sertão mineiro. universais. E toda essa dimensão universal Esse processo se condensa de forma mais só existe graças ao trabalho "regional" de impressionante e eficiente no tratamento Guimarães Rosa. Motivos como o pacto ou da linguagem de Rosa: os recursos de o amor impossível e trágico, da culpa oralidade, dos “causos”, dos ditados, das pessoal e coletiva, do sofrimento e consolo músicas populares, tudo isso é o que mais que dá o contar da estória da própria vida, dá corpo e forma ao que se poderia são universais, mas só com eles não se chamar de "universal" no romance.

Desvendando o projeto de Rosa Entrevista com Kathrin Rosenfield

Kathrin Rosenfield nasceu na Áustria e vive no Brasil, desde 1984. É pesquisadora e professora de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com doutorado em Literatura pela Universidade de Salzburg e formação em Psicologia Clínica pela Universidade de Paris VII , é autora de Sófocles & Antígona.. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005 , Antigone --- de Sophocle à Hölderlin . Paris: Galilée, 2003, entre outros. Ensaísta de rara erudição e sensibilidade, aprendeu português para ler Guimarães Rosa. Nesse campo de interpretações acerca da obra Grande Sertão: Veredas , a professora Kathrin Rosenfield lança seu trabalho Desenveredando Rosa: A obra de J. G. Rosa e outros ensaios roseanos. Rio de Janeiro, Topbooks, 2005. O livro abre novas trilhas nos estudos roseanos, e analisa, entre outros temas, a presença da poesia popular na obra de Guimarães Rosa; suas afinidades com o universo de Goethe e Dostoievski; as semelhanças e as diferenças com Machado de Assis, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Rosenfield Kathrin concedeu entrevista à IHU OnOn----LineLine por e-mail. Na edição 139 da IHU OnOn----Line,Line, de 2 de maio de 2005, concedeu a entrevista A banalização torna a tragédia atual , sobre a peça teatral Antígona, exibida na Unisinos em 5 e 6 de maio do ano passado ...

IHU On-Line - De que maneira, ou Kathrin Rosenfield - Na arte, não há por qual enfoque a senhora acha regras fixas. Por isso recomendo, num que Guimarães Rosa deva ser lido? primeiro momento, que cada leitor

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observe tão somente suas reações - gregos e romanos, os místicos orientais e prazer, desgosto, tédio, entusiasmo, ocidentais), isto é, em obras que incompreensão. Os bons livros são como desconhecem a separação dos aspectos a própria vida, na qual nós podemos nos filosóficos, religiosos e psicológicos. situar de modos diversos, assumindo Rosa coloca pensamentos sutis e posturas e posições flexíveis. O gosto complicados na mente de um vem com o tempo, e, às vezes, os livros personagem aparentemente simples. que parecem ser árduos no início É a vivência e a simples observação tornam-se bem mais interessantes e desse herói que fazem desabrochar um belos quando aceitamos as asperezas. personagem multifacetado (um menino Isso vale também para Rosa. abandonado que se torna jagunço, IHU On-Line - Qual foi sua nova depois chefe, e termina sendo herdeiro percepção sobre a obra de Rosa em de fazendas de um pai rico que o seu novo livro Desenveredando reconhece somente tardiamente). E a Rosa: A obra de J. G. Rosa e outros narrativa de Rosa mostra que é o ensaios roseanos ? Qual é o ângulo registro consciencioso das coisas da sua interpretação? concretas que desencadeia a reflexão. É Kathrin Rosenfield – Neste com as coisas reais que surgem as coisas livro,procurei abordar a multiplicidade da sabedoria - não é preciso formular de elos com os pensadores brasileiros, abstratamente para filosofar, os com os poetas-pensadores alemães, as conceitos e pensamentos especializados semelhanças de mentalidades entre o perdem muitas facetas da existência, do Brasil e a Europa Central e a Rússia de sofrimento humano, da experiência Dostoievski 29 , e a questão dos gêneros (a psicológica e religiosa etc. Rosa acredita fusão do épico e do lírico na narrativa na poesia como Nietzsche e R. Musil - roseana). Mas o novo volume contém eles apostam na arte como um espaço também uma reedição do ensaio sobre, no qual as diversas dimensões da vida Grande Sertão: Veredas (estudo das confluem e no qual elas podem ser estruturas míticas e do imaginário reordenadas ou reconfiguradas. filosófico-religioso) IHU On-Line - Quais eram as IHU On-Line - Como se relacionam na inspirações literárias de Guimarães? obra do autor filosofia, religião e Ele pode ser comparado a quais psicanálise? escritores e por quê? Kathrin Rosenfield – Rosa se inspira Kathrin Rosenfield – Para além dos em grande parte dos antigos textos "grandes, formidáveis clássicos" que já sagrados (Veda 30 , Upanishades 31 , mitos mencionei, Rosa tem muito dos poetas populares brasileiros, mas também dos 29 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): grandes líricos alemães (Novalis 32 , um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. De sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os atualmente considerados como uma das suas Demônios e Os Irmãos Karamázov . (Nota da IHU partes. (Nota da IHU On-Line ) On-Line ) 32 Friedrich von Hardenberg (1772- 1801), mais 30 Veda é a mais antiga e sagrada escritura do conhecido por seu pseudônimo literário, Novalis , hinduísmo. (Nota da IHU On-Line ) foi um dos principais representantes do 31 Upanishades são uma coleção de textos escritos, romantismo germânico de fins do século dezoito. na sua maioria, entre os séculos VIII e IV a.C. e que Quando criança, sofreu uma grave enfermidade, surgiram como extensão das quatro obras originais que o deixou acamado durante vários meses. que compõem os Vedas ( Rig Veda , Yasur Veda , Depois de curado foi que demonstrou seu Samma Veda e Atharva Veda ). Na realidade, os temperamento: uma grande sensibilidade religiosa Upanishades são também conhecidos como e poética, singulares numa criança. (Nota da IHU Vedanta , ou seja, o fim dos Vedas , e são On-Line)

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Rilke 33 ) que têm, como os poetas tão bem as complexidades e perversões populares, o dom da observação dos da alma). Dostoievski é outra fonte detalhes concretos de bichos e plantas, importante, pelo retrato interessante da das atmosferas da natureza, das maldade humana e pelo volume sensações e sentimentos íntimos. Nesse emocional. E não esqueçamos tampouco nível, cabe mencionar também Simões os ensaístas brasileiros - Gilberto Lopes Neto 34 que transformou os causos Freyre 37 , Sérgio Buarque de Holanda 38 , populares gaúchos, enriquecendo-os Euclides da Cunha, Oliveira Vianna 39 , com a arte dos romancistas franceses Paulo Prado 40 , cujas análises da (Flaubert 35 e Maupassant 36 que tratam mentalidade brasileira sustentam a construção do romance.

33 Rainer Maria Rilke (1875 - 1926): escritor conhecido não apenas pelos franceses, como austríaco, considerado um dos poetas modernos também por leitores de todo o mundo. Um mais importantes e inovadores da literatura alemã, aspecto que chama a atenção na sua obra é a por seu estilo preciso, pelas imagens simbólicas e variedade de temas que aborda . (Nota da IHU On- suas reflexões. Poeta hermético, trabalha com os Line ) limites sensoriais da existência, da melancolia, a sua poesia traduz o fundamento da busca de ser. 37 Gilberto Freyre (1900-1987): Escritor, professor, Entre suas obras, citamos: O livro da vida conferencista e deputado federal. Colaborou em monástica , O livro do peregrino e O livro da revistas e jornais brasileiros. Foi professor pobreza e da morte . (Nota da IHU On-Line ) convidado da Universidade de Stanford (EUA). Recebeu vários prêmios por sua obra, entre os 34 João Simões Lopes Neto (1865-1916): escritor quais, em 1967, o prêmio Aspen do ano, do gaúcho. A ele a revista IHU On-Line dedicou a Instituto Aspen de Estudos Humanísticos (EUA) e o edição 73, chamada João Simões Lopes Neto: força Prêmio Internacional La Madoninna, em 1969. da literatura brasileira e latino-americana. O oitavo Ainda recebeu o título de Doutor Honoris Causa da número dos Cadernos IHU Idéias é intitulado Universidade de Münster (Alemanha) e da Simões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho, de Universidade Católica de Pernambuco. Sua autoria da Profª Drª Márcia Lopes Duarte, produção literária é muito importante. Entre seus professora do Centro de Ciências da Comunicação livros, citamos: Casa grande & Senzala e da Unisinos. A publicação tem como base a Sobrados e Mocambos. O Prof. Dr. Mário Maestri, apresentação da professora no IHU Idéias de 4 de do PPG em História da Universidade de Passo setembro de 2003. É possível conferir sobre o autor Fundo (UPF), apresentou o segundo livro na uma entrevista concedida por Márcia na IHU On- programação do II Ciclo de Estudos sobre o Line número 73, de 1º de setembro de 2003. Entre Brasil , promovido no dia 15 de abril de 2004, pelo as principais obras do escritor, destacamos Instituto Humanitas Unisinos. Sua palestra originou Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos o artigo publicado no Cadernos IHU número 6, de (1912), Lendas do Sul (1913), Casos do Romualdo e 2004, intitulado Gilberto Freyre: da Casa-Grande o primeiro volume de Terra Gaúcha, estes dois ao Sobrado. Gênese e Dissolução do últimos surgidos muito tempo após sua morte, em Patriarcalismo Escravista no Brasil. Algumas 1950. (Notas da IHU On-Line ) Considerações. (Nota da IHU On-Line )

35 Gustave Flaubert (1821-1880): escritor realista 38 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): francês. Flaubert leva à perfeição o romance historiador brasileiro, também crítico literário e realista e consegue a mais completa harmonia jornalista. Entre outros, escreveu Raízes do Brasil, entre a arte e a realidade. Escreveu: Madame de 1936. Obteve notoriedade através do conceito Bovary , Bouvard et Pécuchet, Salambô, Os Três de “homem cordial”, examinado nessa obra. (Nota Contos e A Educação Sentimental . (Nota da IUH da IHU On-Line )

On-Line) 39 Francisco José Oliveira Vianna: sociólogo, ensaísta carioca e autor considerado, junto com 36 Guy De Maupassant (1850-1893). Entre 1875 e Sérgio Buarque de Holanda, como primordial para 1885, produziu a maior parte de seus romances e a compreensão da formação ideológica e da contos. Escreveu pelo menos 300 histórias curtas, questão territorial do país. (Nota da IHU On-Line ) das quais algumas se tornaram universalmente 40 Paulo Prado (1869-1943): escritor e ensaísta conhecidas, como Bola de sebo, O colar, Uma brasileiro, considerado junto de Monteiro Lobato aventura parisiense, Mademoiselle Fifi, Miss um dos que melhor dominaram a arte e a prática Harriett , entre outras. Rapidamente, tornou-se de interpretar. (Nota da IHU On-Line )

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Fantini 42 ) como obra aberta que rompe IHU On-Line - O que liga e separa a com as fronteiras e explora inúmeras obra Grande Sertão: Veredas do margens, tanto na ficção como na nosso novo milênio? existência humana. Também já foi Kathrin Rosenfield – Rosa tem uma criticado por ter escrito uma obra complexidade e um cuidado formal que regional, de ter assumido uma atitude não está muito na moda de épocas regressiva, criando uma estética da propensas à dispersão, ao consumo e ao pobreza (segundo Mainardi). divertimento fácil. Mesmo assim, há um É preciso constatar que, por mais aberta carinho, um não sei quê amoroso que e poligonal que seja a obra de Rosa, ele seduz sempre e graças a isso mesmo os escolheu o universo – limitado – do leitores do novo milênio são atraídos sertão que não é um universo por essa obra. O que é particularmente romanesco, mas pende bem mais para interessante em Rosa, nesse nosso novo os gêneros do epigrama, da epopéia e da milênio que começou com lenda (problema dos gêneros que demonstrações de violência aparece nos ensaios de Regina inimagináveis, é o retrato fiel da lógica Zilbermann 43 ). Isso é um sinal que cabe maligna do ressentimento e do ódio. meditar menos sobre analogias Não seria fácil fazer um paralelo entre o joyceanas de Grande Sertão:Veredas do ódio que move os jagunços e os ódios que sobre suas diferenças. Rosa usa a que vimos nos Balcãs ou no Oriente ruminação reflexiva ao seu modo, com o Médio. Essa é uma das facetas que vago objetivo de criar uma narrativa desenvolvi bastante no meu ensaio sobre predominantemente lírica (e esta é uma Grande Sertão . grande diferença para com Joyce) que traz à tona um fundo emocional IHU On-Line - Muitas questões sobre fundamental da mentalidade luso- Grande Sertão foram levantadas brasileira. O verniz, a superfície (exemplo questões ligadas à moderna e joyceana cria um tênue linguagem). Todas elas já foram estranhamento que prepara outros respondidas? Quais as principais argumentações sobre a obra? 42 Kathrin Rosenfield – Entre as questões Marli de Oliveira Fantini: Escritora brasileira e professora do Departamento de Semiótica da que mobilizam os leitores de Guimarães Faculdade de Letras da UFMG. Escreveu, entre Rosa, apenas uma começou a se resolver outros: Fronteiras em falso: a poética migrante razoavelmente: Grande Sertão : Veredas de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Faculdade de não é mais considerado um romance Letras da UFMG, 2000 e Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo: “ilegível”, embora nunca se tornou Senac; Ateliê, 2004. (Nota da IHU On-Line ) popular no sentido da preferência do 43 Regina Zilberman: profesora e escritora, foi grande público. No entanto, há outras conferencista da noite de 13 de setembro, no questões sem nenhum consenso – e isso Seminário Erico Verissimo: vida, obra e atualidade , promovido pelo IHU em 2005, com a é um bom sinal, porque revela a palestra Incidente em Antares. Sobre o assunto complexidade da obra. Rosa foi elogiado falou à IHU On-Line 154, de 12 de setembro de (e de perspectivas bem diversas, como 2005, sob o título Um autor “amado por seu mostram os livros de Hansen 41 e público e criticado pelas instituições. Entre as publicações de Zilberman, destacam-se: A literatura no Rio Grande do Sul (1980); Literatura 41 João Adolfo Hansen: Escritor brasileiro e gaúcha: temas e figuras da ficção e poesia do atualmente professor na USP. Entre outros, Rio Grande do Sul (1985); A leitura e o ensino da escreveu: A Ficção da Literatura em Grande literatura (1988); Estética da Recepção e História Sertão: Veredas. São Paulo: Hedra, 2000 e da Literatura (1989); Pequeno dicionário da Solombra ou A sombra que cai sobre o eu . São literatura do Rio Grande do Sul (1999). (Nota da Paulo: Hedra, 2005. (Nota da IHU On-Line ) IHU On-Line )

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deslocamentos da temática regional e da de Musil. Esses representam a fina flor saudade. Isso já nos leva ao segundo de um longo processo de fermentação problema – o do regionalismo, tão artística e acúmulo intelectual, de uma criticado como jogo coquete com o “tradição formal”: essa não consiste atraso do Brasil (por exemplo, por Diogo apenas em um desenvolvimento Mainardi 44 ). Entendo, em parte, as narrativo, mas na plasmação de hábitos críticas contra o universo reduzido que comunicativos diversificados que não aparece na obra de Rosa. Acredito, existia no Brasil de Guimarães Rosa. Os porém, que essa crítica é excessivamente temas amorosos que Rosa escolhe, por cosmopolita. Mainardi, por exemplo, exemplo, podem parecer limitados coloca-se a distância, medindo o mérito quando pensamos que desde o século de Rosa (que é imenso no panorama da XVIII, o romance chamado “licencioso” literatura brasileira) a partir de integra os sentimentos e desejos parâmetros inadequados. Na arte, é bom desviantes na reflexão moral, força uma avaliar o que o que foi feito e o que foi porta para um continente não tanto possível fazer. Rosa começou como desconhecido, mas antes não-falado: o poeta e contista e desenvolveu sua mundo de emoções complicadas, dúbias técnica “romanesca”, com base nesses e fora da teia dos discursos legítimos. seus pendores predominantes. Seu Crébillon Fils 47 é apenas um dos Magma queria transformar a poesia popular em poesia popular-e-erudita, Seus talentos literários se manifestaram desde o mas o próprio poeta julgou que essa colégio. Cedo começou a freqüentar os salões tentativa redundara num beco sem parisienses, como os de Mme. Arman, amiga de saída. Dessa constatação e da grandeza Anatole France, que o apoiou no lançamento do primeiro livro, que obteve pouco sucesso. Durante de abandonar a poesia nasceu uma nova alguns anos Proust dedicou-se a traduzir e maneira de contar, aliando o realismo comentar o crítico de arte inglês John Ruskin. Em muito concreto com fantasias amorosas 1905, a morte da mãe o deixou profundamente e místicas e com o desejo de elevação abalado. metafísica. Tudo isso representa uma A obra de Proust foi, enquanto ele viveu, objeto de grandes controvérsias entre os que a consideravam criação bastante voluntarista, com base genial e os que a proclamavam impossível de ser em dados históricos especificamente lida. Hoje é reconhecida como fundamental na brasileiros. O gênero que Rosa criou e literatura francesa. Em Busca do Tempo Perdido , sua pré-história são muito distantes do um monumental trabalho literário, é um painel da vida social da alta burguesia francesa do final do romance (gênero europeu) propriamente século XIX, analisada não do ponto de vista dito. Essa observação assinala a científico da moda naturalista, mas por meio da diferença com os romances modernos introspecção subjetiva do narrador. Proust morreu de Proust 45 e Henry James 46 , de Joyce e de pneumonia em novembro de 1922. (Nota da IHU On-Line )

46 44 Diogo Mainardi (São Paulo, 1962) escritor e Henry James (1843-1916): Escritor estadunidense jornalista brasileiro. Mainardi tornou-se conhecido (naturalizado britânico ao fim de sua vida), autor com sua coluna na Revista Veja , com críticas à de alguns dos romances, contos e críticas literárias sociedade brasileira e à esquerda. Controverso, mais importantes da literatura de língua inglesa. vem ganhando muito destaque nos meios de Era filho do teólogo Henry James Sr. e irmão do comunicação. Atualmente também é membro do filósofo e psicólogo William James. (Nota da IHU programa dominical Manhattan Connection, da On-Line ) GNT, transmitido no Brasil e em Portugal. (Nota da IHU On-Line ) 47 Crébillon Fils (1707-1777):nasceu e morreu em 45 Marcel Proust (1871-1922): É considerado um dos Paris, filho de Jolyot Prosper Crébillon, moralista maiores e mais influentes escritores do século XX. considerado rival de Voltaire. Cedo começou a Nasceu em Paris, em 10 de julho de 1871 . Seu pai freqüentar salões e bailes e não demorou a pintar era médico e sua mãe, de família judia, rica e culta. tais ambientes em seus textos libertinos, nos quais Desde a infância Proust sofria com crises de asma. tecia análises psicológicas e retratava costumes da

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representantes dessa tradição de narrador, embora quase desconhecido “libertinos” no século XVIII, Proust é o no Brasil, assumiu, diante de Goethe, o apogeu dessa tradição. Ambos são papel dos que, com mais ou com menos representantes de uma longa e lenta humor, riram do que chamam às vezes complexificação da arte narrativa. É de “matutices sentimentais” do grande absolutamente impossível julgar Rosa Rosa: escreveu que “morre de tédio” nesse tipo de parâmetro que pressupõe com os romances de Goethe, “obusado” não só um mundo e seus discursos, mas [metralhado] pelos clichês das suas um longo processo de ambientação figuras femininas, pela repetição do mimética desses discursos na literatura... “éternel tricot” que parodia, evidentemente, o “eterno feminino", a IHU On-Line – Podemos comparar representação goetheana do feminino com quem? que os alemães apreciaram como algo Kathrin Rosenfield – ...seria muito inimitável e preciosíssimo. Pessoalmente mais útil comparar Rosa com Goethe 48 e gosto dessas vozes dissonantes que os pré-românticos alemães (Novalis e aguçam o olhar. Rilke, por exemplo), do que com o romance moderno de Proust e Joyce. IHU On-Line – Guimarães Rosa foi Isso não significa que Rosa cultive o engajado ou omisso na elaboração “atraso”. Ele faz o que é possível e dos problemas políticos, religiosos e necessário em um determinado sociais do país? contexto. Isso aconteceu também em Kathrin Rosenfield – Rosa se sentiu outras culturas. Goethe, por exemplo, um autor muito engajado com a coisa que tanto fez para alçar a literatura política latu sensu . De certa forma, ele alemã a certo patamar, também foi alvo tinha uma posição bastante próxima de de remoques sarcásticos que o um Hölderlin 50 ou de Musil que eram censuraram como provinciano e muito sinceros na sua convicção de que sentimental. Sempre é possível criticar – um artista é “político” e “engajado” na até um monumento literário como medida em que cuida seriamente da sua Goethe – quando se escolhe uma linguagem, do refinamento estilístico de perspectiva perspicaz, por exemplo, sua expressão, enfim, levando a sério sua parâmetros franceses para um narrador arte. As implicações políticas da alemão. Barbey d’Aurevilly 49 , grande literatura – desde o surgimento das literaturas vernáculas, nas quais a mera escolha do francês ou do português (em época. Por causa deles, foi aprisionado durante vez do latim) já tinha implicações alguns anos na Bastilha, de onde saiu para ocupar o cargo de censor real. Além de O sofá, publicado sociais, religiosas e políticas – surgiram, em 1742, é autor de Égarements du coeur et de durante séculos, da complexidade da l'esprit (1736), La nuit et le moment (1737), Le cultura, das diferenças de expressão dos hasard du coin du feu (1740). (Nota da IHU On- diversos estratos sociais, grupos de Line ) interesse em conflito etc. Quem lê uma 48 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): escritor alemão, cientista e filósofo. Como escritor, boa biografia de Shakespeare (por Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. 50 Johann Christian Friedrich Hölderlin : (1770- Juntamente com Schiller foi um dos líderes do 1843), poeta alemão, considerado uma das figuras movimento literário romântico alemão Sutrm und mais notáveis da poesia alemã. Preparou-se para Drang. De suas obras, merecem destaque Fausto e ser pastor luterano, mas não tomou ordens. Os sofrimentos do jovem Werther. (Nota da IHU Ganhou a vida como tutor de crianças de famílias On-Line ) de destaque na Alemanha, na Suiça e na França. 49 Jules Amédée Barbey d'Aurevilly (1808 –1889) Seu gênio poético somente foi reconhecido no Novelista francesa. (Nota da IHU On-Line ) século XX. (Nota da IHU On-Line )

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exemplo, a de Stephen Greenblatt 51 ) amorosa e estética alemã (Fräulein) da conhece bem a plasmação desses do adolescente paulista. Todo esse conflitos estilísticos nos sermões e problema, contudo, se resume em uma correspondências, provérbios e contos, curta cena, numa alusão importante, nos jogos de mistérios e as nas tragédias ainda que germinal, às atitudes que preparam o salto estilístico e a totalmente diversas (brasileira e alemã) densidade da arte de Shakespeare. Acho diante da natureza, do corpo físico, do legítimo para um artista não querer ser corpo feminino. Ainda nos anos 1920, mais político do que Shakespeare, esses problemas de adequar forma e mantendo-se no limiar da arte, conteúdo da interioridade são pouco recorrendo somente a sugestões, elaborados – Clarice 52 , Osman Lins 53 , analogias. A Rosa pareceria de mau Mario de Andrade, Oswald de Andrade 54 , gosto e artisticamente ilegítimo entrar no domínio dos conceitos e das 52 Clarice Lispector (1920-1977): escritora nascida ideologias. Ainda mais na sociedade na na Ucrânia. De família judaica, emigrou para o qual ele vive: carente de formas de Brasil quando tinha apenas dois meses de idade. expressão, de práticas e instituições com Começou a escrever logo que aprendeu a ler, na modos e estilos próprios. Certamente cidade de Recife. Em 1944 publicou seu primeiro romance, Perto do coração selvagem . A literatura não é por acaso que Rosa escolhe o brasileira era nesta altura dominada por uma mundo sertanejo, o tema do pacto como tendência essencialmente regionalista, com veículos para a fusão de elementos vivos personagens contando a difícil realidade social do da cultura brasileira. As realidades país na época. Lispector surpreendeu a crítica com políticas que ele reelabora são os seu romance, quer pela problemática de caráter existencial, completamente inovadora, quer pelo problemas dos pensadores do Brasil: o estilo solto elíptico, e fragmentário, reminiscente caráter melancólico-saudoso com sua de James Joyce e Virginia Woolf, ainda mais oscilação entre volúpia e violência; a revolucionário. Seu romance mais famoso embora cordialidade com suas cumplicidades menos característico quer temática quer estilísticamente, é A hora da estrela , o último malignas que permeiam todos os publicado antes de sua morte. Neste livro a vida de estratos da sociedade; o forte imaginário Macabéa, uma nordestina criada no estado Alagoas do clã (parental e eleitoral). e vai morar no Rio de Janeiro, e vai morar em uma pensão, tendo sua vida descrita por um escritor IHU On-Line – Que projeto literário fictício chamado Rodrigo S.M. (Nota da IHU On- Line ) Rosa tinha em mente Kathrin Rosenfield – A tentativa de 53 Osman Lins (1924-1978): Nasceu a 05 de julho de reforçar os elementos propícios para 1924 em Vitória de Santo Antão, Pernambuco. criar uma tradição autenticamente Autor de contos, romances, narrativas, livro de viagens e peças de teatro, e distinguido com vários brasileira. No Brasil, o problema da prêmios estaduais (Pernambuco e São Paulo). Em expressão literária de sentimentos conferências a universitários, artigos de jornal, interiorizados, das perversões, das mil palestras com editores e no livro Guerra sem dobras interiores da alma, surge testemunhas , Osman Lins levanta problemas fundamentais da profissão de escritor. (Nota da abruptamente, sem o preparo lento, no IHU On-Line )

século XX. Mario de Andrade, por 54 Oswald De Andrade, poeta, romancista e exemplo, no romance-novela Amar, dramaturgo, nasceu em São Paulo em 11 de verbo intransitivo toca na diferença janeiro de 1890. Filho de família rica, estuda na abissal que separa a sensibilidade Faculdade de Direito do Largo São Francisco e, em 1912, viaja para à Europa. Em Paris, entra em contato com o Futurismo e com a boemia estudantil. Além das idéias Futuristas, conhece 51 Stephen Greenblatt (1943): crítico literário norte- Kamiá, mãe de Nonê, seu primeiro filho, nascido americano Professor da Universidade da California em 1914. Em 1926, Oswald casa-se com a Tarsila do em Berkeley. Autor de Possessões Maravilhosas . Amaral e os dois tornam-se o casal mais importante São Paulo: EDUSP, 1996. (Nota da IHU On-Line ) das artes brasileiras. Apelidados carinhosamente

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e muitos outros se debruçam sobre a conquista das formas especificamente brasileiras de sutilezas que já fazem parte de uma longa tradição européia. Rosa percebeu muito claramente os desafios históricos da literatura brasileira e tinha um extraordinário dom artístico que lhe permitia expressar – numa nova forma! – alguns dos elementos essenciais da cultura luso- brasileira: a saudade, o pendor lírico, o fundo melancólico, o ativismo pragmático. Acho que isso é mais do que se possa esperar de um artista. Cabe à crítica descrever detalhadamente como essa fusão foi possível e como o valor de cada tema muda em qualidade e expressividade nessa fusão.

por Mário de Andrade como "Tarsiwald" , o casal funda, dois anos depois, o Movimento Antropófago e a Revista de Antropofagia , originários do Manifesto Antropófago . A principal proposta desse Movimento era que o Brasil devorasse a cultura estrangeira e criasse uma cultura revolucionária própria. O ano de 1929 é fundamental na vida do escritor. A crise de 29 abalou as suas finanças, ele rompe com Mário de Andrade, separa-se de Tarsila do Amaral e apaixona-se pela escritora comunista Patrícia Galvão (Pagu). O relacionamento com Patrícia Galvão intensifica sua atividade política e Oswald passa a militar no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Além disso, o casal funda o jornal "O Homem do Povo", que durou até 1945, quando o autor rompeu com o PCB. Do casamento com Patrícia Galvão, nasceu Rudá, seu segundo filho.

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“Muita religião, seu moço!” O sagrado no Grande Sertão Por Faustino Teixeira

O texto a seguir é de autoria do Prof. Dr. Faustino Teixeira do Departamento de Ciência da Religião no Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Teixeira é também consultor da Capes e do

ISER- Assessoria do Rio de Janeiro. É pós-doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália, doutor em Teologia, pela mesma universidade com tese intitulada A fé na vida: um estudo teológicoteológico----pastoralpastoral sobre a experiência das CEBs no Brasil , mestre em Teologia, pela PUC-Rio e graduado em Filosofia e em Ciências da Religião pela UFJF. Entre os livros publicados citamos No limiar do mistério. Mística e Religião . São Paulo: Paulinas. 2004. Ele foi o organizador do livro. Teixeira concedeu as seguintes entrevistas à IHU OnOn----LineLine : Sobre mística comparada na 133ª edição, de 21-3-2005; sobre John Hick e o pluralismo religioso, em 31-10-2005 sobre sua trajetória de vida, na entrevista intitulada Uma declaração de amor a Teologia, publicada nas Notícias Diárias do sítio do IHU de 16-12-2005, sobre as mudanças no campo religioso brasileiro, na edição 169ª de 19 de dezembro de 2005.

Em sua tese doutoral, o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão assinalou que a cultura popular ganha uma compreensão particular, quando abordada sob a luz da religião. Os pesquisadores das formas populares de cultura consideram que a religião é a porta de entrada da consciência, não havendo esfera alguma da vida social que não esteja envolvida e significada pelos valores do sagrado. Para os setores populares, “a religião dá nome a todas as coisas e torna, até mesmo o incrível, o possível e o legítimo. Para os efeitos da vida, ela pretende sempre envolver o repertório mais abrangente das questões e fazer as respostas mais essenciais, de acordo com os interesses políticos, mas também de acordo com os medos e esperanças das mais diversas categorias de pessoas”. Para tais setores, a religião é, muitas vezes, o explicador “mais usual e, muitas vezes, o mais acreditado”. 55 O livro de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas , é um exemplo bem concreto desta tese de Brandão. É uma obra que retrata, de maneira admirável e

55 Carlos Rodrigues BRANDÃO. Os deuses do povo . São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 16-7.

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criativa, as formas populares de religião no Brasil. É um traço da genuinidade brasileira a rica ampliação das possibilidades de comunicação com o sagrado ou com o “outro mundo”. O que para o protestante tradicional ou católico romanizado seria uma expressão de pernicioso sincretismo ou superstição, para boa parte dos fiéis significa um modo de alargar as “possibilidades de proteção” 56 . Em várias passagens desta obra de Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo Tartarana expressa a força da presença religiosa e a dinâmica de sua complementaridade:

Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da- alma... Muita religião, seu moço! Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. 57

O sagrado acompanha os jagunços por toda a jornada nos sertões. Não há como escapar de sua mirada. Não há lugar para a lógica secularizada. Ao relatar a posição de um doutor do vale do Araçuaí, que desacreditava na presença de Deus, Riobaldo reage de forma contundente:

Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. (...) Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. 58

A presença de Deus atua como um “escudo contra o terror”, mas não livra os jagunços da presença sempre ameaçadora do “demo”, que traduz uma situação de vulnerabilidade psicológica e de precariedade social extrema. Riobaldo expressa uma preocupação, que é comum, de evitar que o diabo nele ponha sela ou que o governe. O diabo está sempre rondando: “na rua, no meio do redemoinho”. Ele pode surgir, de repente, e exige uma vigilância constante. Ele é o “arrenegado”, o “cramulhão”, o “tisnado”, o “temba”. Para fazer-lhe frente é necessário muita firmeza e coragem, e “Deus é alegria e coragem”. Na expressão do jagunço Jôe Bexiguento, “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta”. Visto na perspectiva da religião, esta obra de Guimarães Rosa traduz, de forma magnífica, a sabedoria popular, animada e reforçada pelo traço dinamogênico da presença do sagrado, de seu poder que ajuda a viver, a enfrentar as dificuldades da existência e a impulsionar a ação transformadora. A compreensão positiva da vida é uma das mensagens mais ricas que o livro traduz, permeando as singulares reflexões do jagunço Riobaldo:

Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. 59

56 Roberto DA MATTA. O que faz o brasil Brasil . Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 115. 57 Guimarães ROSA. Grande sertão: veredas . 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 15 58 Ibidem, p. 48. 59 Ibidem, p. 143.

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Na visão de Tartarana, a vida é invenção e continuação permanente. Nunca está acabada. É construída na partilha e mutirão de todos. Tem momentos de dureza, dor e ingratidão, mas também lumiares de esperança, que brotam no fundo do desespero e da escuridão. Para enfrentar a vida, “carece de ter muita coragem”, foi o que sempre disse Diadorim, uma presença permanente, terna e enigmática na vida de Riobaldo. Há que aprender a levantar, mesmo quando o caminho é “resvaloso”.

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza!60

60 Ibidem, p. 241-2.

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destaques da semana

Entrevistas da Semana pg. 37 Destaques onon----lineline pg. 55 Memória pg. 57 Deu nos jornais pg. 57 Frases da Semana pg. 57

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Entrevista da Semana

O trabalho nas metrópoles Entrevista com Agostino Petrillo

Dando continuidade ao tema de capa da edição 177ª da IHU OnOn----LineLine sobre o trabalho veiculada na semana do dia 24 de abril, entrevistamos Agostino Petrillo, professor da Universidade Politécnica de Milão sobre o tema O trabalho na metrópole e no novo capitalismo . Segundo Petrillo, falar de trabalho e metrópoles, quer dizer procurar compreender a essência das metrópoles contemporâneas. «A metrópole atual é atravessada por enormes contradições, assinalada por maciços processos de desfrutamento e de exclusão, de criação de renda e de lucro », completa. Entre seus trabalhos, está o livro Città in rivolta. Los Angeles, Buenos Aires, Genova ... Verona, 2004, em que o sociólogo retorna ao seu tema de predileção: as metrópoles. Petrillo se debruça sobre as chamadas “revoltas urbanas” do decênio 1992 – 2001. O professor procura analisar de que modo o mercado de trabalho imigrante e a globalização se tornaram o combustível para organizadas ações de resistência. Pretrillo concedeu uma entrevista por e-mail à IHU OnOn----LineLine .

IHU On-Line - Seu livro Cidades em num contexto metropolitano Revolta de 2004, fala da situação de profundamente mudado quanto à Los Angeles, Buenos Aires, Gênova, composição social, a modalidade de com milhares de pessoas indo às funcionamento e a valências ruas. Agora temos as mobilizações complexivas. No que se refere à França, na França e em várias cidades a fácil profecia contida no livro, no qual americanas (imigrantes). Contra o se considerava inevitável em breve prazo que estão em revolta as grandes uma nova explosão dos subúrbios, era o metrópoles? resultado unicamente de uma Agostino Petrillo - A idéia central de consideração objetiva da situação. Na Città in rivolta. Los Angeles, Buenos verdade, sobre os subúrbios quase tudo Aires, Genova: Verona, 2004, era a de já fora dito, a análise era completa e considerar as sublevações dos últimos realizada sob diversas vertentes quinze anos numa perspectiva global, disciplinares, as lógicas segregadoras em não mais unicamente nacional, dando questão tinham sido analisadas em particular atenção à emergência de profundidade, tinham sido analisados os realidades de massa de contestação e aspectos de “etnicização” dos problemas, conflito urbano com características os erros na intervenção do Estado, o diversas do passado, que se inscreviam crescimento das barreiras internas, o

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nascimento de formas de um verdadeiro difícil assegurar o controle de e próprio “ apartheid escolástico ”. A determinados territórios com falência da politique de la ville era instrumentos de governo atualizados, evidente, como também era notório mas, no fundo ainda tradicionais. Tanto entre os jovens o rancor e o sentimento mais quanto me parece que elementos de serem vítimas de uma injustiça. Para de convencimento e de consciência criar uma mistura explosiva, política sejam ainda embrionários, que contribuíam as promessas de integração elementos de “requisição de política” não mantidas, os sacrifícios feitos para surjam com força da revolta de “tornarem-se franceses”, sem que novembro, precisamente dos objetivos, houvesse o mínimo retorno quanto à da escolha da “violência contra os mobilidade e às chances de promoção objetos”, e não contra as pessoas. social, e as responsabilidades públicas Entretanto, o que ocorreu na França não eram claras, faltando apenas uma é o fruto de uma específica falência ocasião para exprimir este totalmente francesa, pois em outros ressentimento. países europeus, com diferenças, é claro, Por isso considero mais interessante existem condições análogas. O problema explorar brevemente as modalidades dos migrantes e de sua inserção nas com que a revolta se expressou, antes do realidades urbanas européias está bem que refletir uma vez mais sobre as longe de ter encontrado uma solução causas, aliás, bem conhecidas e, nesta satisfatória. E, não são só os migrantes a altura, há anos abundantemente sofrerem o processo de repulsa, faixas ilustradas nas bibliotecas acadêmicas. amplas da população autóctone são Significativo é o fato que, durante a jogadas às bordas físicas e metafóricas revolta, tenham sido com freqüência das cidades. Cresce a precariedade do tomados em consideração precisamente trabalho jovem, crescem assentamentos os símbolos da politique de la ville , marginais, enclaves, periferias novas. escolas, centros culturais, Não se pode, todavia, pensar que as departamentos. Não há aí insensatez populações penalizadas e “autolesiva” na escolha de objetivos marginalizadas na Europa atual ficarão deste tipo, senão antes a consciência de tranqüilas para sempre, confinadas nos que as intervenções políticas foram espaços que lhes foram reservados. interpretadas como uma “gestão do Existe na Europa uma grande hipocrisia, status quo ” da segregação. A violência que cobre a desigualdade, que nega ser a contra os équipements collectifs é o insegurança social o resultado de sinal de que esses não foram vistos mudanças estruturais intervindas, que como expressão de uma vontade de apela a sempre mais distantes confins de melhoria da situação, mas como legalidade estabelecidos em outras elementos de uma estratégia de épocas históricas para defender contenção, de redução do dano. A privilégios e injustiças. Semelhante politique de la ville nascera como situação não pode durar por muito constatação do fato de que as políticas tempo, novas formas de política e de welfarianas ou pós-welfarianas eram participação são necessárias, caso se insuficientes para enfrentar situações de queira evitar a deflagração de processos marginalidade e de exclusão, mas o involutivos, com conseqüências fracasso atual das intervenções faz dificilmente avaliáveis. O que pensar que os instrumentos utilizados permanece da esquerda européia, sejam insuficientes, caso se queira todavia, parece incapaz de enfrentar um realmente incidir sobre as causas da quadro rapidamente modificado, e ela segregação, ou, que seja sempre mais

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continua paralisada em posições assinalada por maciços processos de amplamente desatualizadas. exploração e de exclusão, de criação de Diversa, ao invés, me parece ser a renda e de lucro. O fato de o sistema da situação dos Estados Unidos, nos quais produção fabril do século 19 ter sido as mobilizações das últimas semanas são ultrapassado, produziu, como sua um poderoso exemplo do arraigamento conseqüência, a dispersão e e da força dos movimentos dos fragmentação das formas de trabalho, migrantes. Mas, os Estados Unidos são bem como daquelas do conflito. O um país no qual é difícil pensar uma panorama que a metrópole atual nos política radicalmente antiimigrados, oferece é o de um enorme repertório das sabem-no bem também os formas históricas do trabalho, e, para conservadores mais acalorados e o apelo dizê-lo com uma bela expressão do às temáticas identitárias tem valor bem filósofo italiano Paolo Virno 62 , ela é “a mais do que simbólico, dado que os exposição universal” das formas do americanos sabem que descendem em trabalho. Não só do trabalho moderno: boa parte de “ illegal aliens”. Ser assalariado ou independente, nele “americano”, como escreveu Michael reafloram formas arcaicas: trabalho Walzer 61 , é algo bem diverso de ser clandestino, forçado, gratuito, escravista. “alemão”, “francês” ou “italiano”. E estas formas arcaicas convivem com as Não quero, com isso, negar que também “superiores” e sofisticadas, com o nos Estados Unidos não estejam em trabalho sempre mais refinado e curso processos de “etnicização” dos abstrato das novas elites ligadas ao migrantes, de precarização do seu conhecimento e às tecnologias. Nas trabalho e do seu status de cidadania, cidades globais, como por diversas vezes mas estes processos são, em todo o caso, freados por uma consciência histórica de massa das modalidades com que ocorrem os ciclos migratórios e suas 62 Paolo Virno (1952): filósofo e semiólogo italiano implicações geracionais. de orientação marxista. Atualmente, leciona na Universidad de Cosenza. Em 1977, apresentou sua tese de doutorado sobre o conceito de trabalho e a Metrópole: teoria da consciência de Theodor Adorno. Entre exposição universal das formas de seus livros estão: Gramática de la multitud. Para trabalho un análisis de las formas de vida contemporáneas . Madrid: Traficantes de Sueños, 2003; A Grammar of the Multitude: For an IHU On-Line - O tema do trabalho Analysis of Contemporary Forms of Life . New pode ser considerado a chave de York: Semiotext, 2004 e Cuando el verbo se hace leitura para compreender a carne. Lenguaje y naturaleza humanas . Madrid: desagregação que acontece nas Traficantes de Sueños, 2005. Paolo Virno concedeu grandes cidades? a entrevista O desemprego de massa: O direito à vida não passa mais pelo trabalho assalariado à Agostino Petrillo - Falar de trabalho e IHU On-Line na 98ª edição, de 26 de abril de 2004. metrópoles, quer dizer procurar Na 161º edição, de 24 de outubro de 2005, compreender a essência das metrópoles publicamos a entrevista de Virno concedida à IHU contemporâneas. A metrópole atual é On-Line O cerebro social como interação direta entre sujeitos de carne e osso. atravessada por enormes contradições, Também publicamos a resenha de dois livros do filósofo: Gramática de la Multitud e El Recuerdo del presente , na 71ª edição, de 18 de agosto de 2003. 61 Michael Walzer (1935): prestigiado ensaísta Dele também reproduzimos uma entrevista americano é filósofo e político. Autor do livro concedida ao jornal Clarín, em 24-12-04, na edição Esferas da Justiça: uma Defesa do Pluralismo e número 132, de 14 de março de 2005. (Nota da da Igualdade, São Paulo: Martins Fontes, 2003. IHU On-Line ) (Nota da IHU On-Line ) (Nota da IHU On-Line )

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fez relevar Saskia Sassen 63 , por vezes, no Bücher 64 . De outra parte, esta capacidade mesmo arranha-céu, nos andares mais produtiva necessita de um elemento altos encontramos os profissionais cooperativo comum, para poder liberais dos saberes e, nos porões, os concretizar-se. Linguagens, culturas, trabalhadores semi-escravizados do modos de vida são postos a trabalhar e trabalho negro. É como se o capitalismo se tornam elementos de uma produção extremo, no qual nos encontramos a na qual se acentuam os componentes viver, tivesse decomposto o trabalho na cognitivos, em redes sociais, como intuiu somatória das “figuras” que o entre os primeiros Henri Lefebvre 65 nos contradistinguiam em outras épocas. anos 1970. Fatores políticos, porém, Delineia-se um tempo final e decisivo controlam e determinam o das relações entre trabalho e capital, no desenvolvimento desta enorme força qual a atomização e a individualização produtiva que emergiu da fábrica. Novas das relações de trabalho parece fazer elites fazem, sim, a metrópole se tornar intuir um limite insuperável às formas um enorme recipiente de atividades, e de exploração, fazendo oscilar o de exploração, e impõem pêndulo da história entre a sujeição compartimentações, freios e bloqueios. extrema e as novas liberdades. Num plano mais amplo, o próprio papel desenvolvido pelas cidades globais Metrópole e novas formas de trabalho parece, em boa parte, uma função A metrópole atual é indispensável para o política de determinações da funcionamento das novas formas do distribuição das riquezas em escala trabalho, e representa um modelo que planetária. faz assinalar continuidade, mas, sobretudo cortes com respeito às Os fios de novas resistências realidades metropolitanas da história Na metrópole, pode-se ler em filigrana urbana precedente, enquanto nela se um ponto de chegada e, ao mesmo manifesta um entrelaçado hegeliano de tempo, um momento de parada, se não tendências e contratendências, de se trata precisamente de uma “forma possibilidades e negações destas antagônica do desenvolvimento”, como possibilidades. Na metrópole dizia da sociedade civil o Marx dos contemporânea, parece, de uma parte, Grundrisse. Individualização do trabalho chegar à plena maturação uma tradição e, ao mesmo tempo, integração e que vê, no urbano, a progressiva cooperação elevados a níveis concentração de enormes capacidades impensáveis no passado. Sem dúvida, o produtivas, a realização de uma trabalho associado, a cooperação, são tendência secular a transformar as desde a Antigüidade as cifras do destino cidades de parasitas dos campos em da cidade, como relevou, primeiro que comunidades produtivas, todos, Aristóteles. Há uma destinação do Produktionsgemeinschaft, como dizia, urbano entendido como dimensão em fins do século dezenove, Karl coletiva, como elemento comum. E, não obstante, estas tendências aparecem

64 Karl Bücher (1847–1930): economista e político 63 Saskia Sassen (1949): nascida em Haia, na Holanda, durante muitos anos foi especialista de alemão. (Nota da IHU On-Line ) planejamento urbano na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e atualmente é 23 Henri Lefebvre (1901-1991): foi um importante professora de Sociologia na Universidade de filósofo marxista e sociólogo francês. (Nota da IHU Chicago. (Nota da IHU On-Line ) On-Line )

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freadas, bloqueadas, as gigantescas Arendt 67 , na importância e na potências criadoras desenvolvidas pela centralidade da dimensão pública, máquina metropolitana acabam sendo equivale a insistir na existência de um cotidianamente detidas e expropriadas, mundo sempre mais comum, no qual a como repetidamente observou Antonio própria produção está profundamente Negri 66 . Entretanto, na metrópole, atam- ligada à permuta lingüística e à se também os fios de novas resistências, comunicação interpessoal. Precisamente cresce um proletariado diverso, neste crescimento subterrâneo e, no composto, dividido, que alude, embora entanto, contínuo do que é comum, do em forma ainda episódica, a uma Gemein , teria dito Marx, é possível organização diversa da vida urbana e do colher o perfilar-se de uma outra trabalho. metrópole entre as formas enrijecidas da velha. A metrópole contemporânea IHU On-Line - Hannah Arendt fala hesita entre esses seus possíveis destinos, que a era moderna, com o perpetua estruturas e aparências do surgimento da Revolução industrial, passado, quando nela já estão presentes trouxe consigo a glorificação teórica e operantes os germes de uma evolução do trabalho, e resultou na e de um desenvolvimento diversos. Mas, transformação efetiva de toda a as formas do urbano consuetudinário sociedade em uma sociedade correm continuamente o risco de fechar- operária. Agora com a crise do se, como uma pedra sepulcral, sobre emprego como ficam as sociedades? estas potencialidades, de bloqueá-las, Agostino Petrillo - Além da aparente encerrando-as entre velhas e novas paralisia das alternativas nas quais gira a situação atual, existem, portanto, também todas as condições de 67 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica, nasceu em Hannover possibilidade de uma evolução ulterior, (Alemanha). Foi influenciada por Husserl, aquela permitida pela liberação das Heidegger e Karl Yaspers. Em conseqüência das enormes potencialidades que o perseguições nazistas, em 1941, partiu para os crescimento das tecnologias, das EUA, onde escreveu grande parte das suas obras. capacidades humanas, dos Lecionou nas principais universidades deste país. Propôs, em uma distinção inusitada, que os termos conhecimentos, estaria em condições de labor, trabalho e ação fossem entendidos como desencadear. Insistir, como fazia diferentes formas de atividades fundamentais do ser humano, sendo aquele vinculado às necessidades biológicas, o intermediário ao artificialismo da vida moderna e esta às relações 66 Antonio Negri: nasceu em Pádua, em 1933. entre os homens sem a mediação das coisas ou da Durante a adolescência, foi militante da Juventude matéria. Sua filosofia assenta numa crítica à Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e sociedade de massas e à sua tendência para outros intelectuais italianos. Em 1954, entrou no atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a PSIUP de Pádua (partido que posteriormente se uma concepção política separada da esfera integraria ao Partido Socialista), que possuía a econômica, tendo como modelo de inspiração a maioria do movimento operário, em virtude da antiga cidade grega. Entre suas obras, citamos : grande concentração industrial da região. No Eichmann em Jerusalém - Uma reportagem mesmo ano, recebeu uma bolsa para estudar na sobre a banalidade do mal . Lisboa: Tenacitas. Sorbonne, onde seguiu cursos de Georges 2004; O Sistema Totalitário . Lisboa: Publicações Gurvitch, Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty Dom Quixote.1978; O Conceito de Amor em e Jean Hyppolite. Em 2000, publicou o livro Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget; A Vida manifesto Império , com Michael Hardt. do Espírito . v.I. Pensar. Lisboa: Instituto Piaget; Atualmente, ele vive entre Paris e Veneza, escreve Sobre a Revolução . Lisboa: Relógio D`Água; para revistas e jornais do mundo inteiro e publicou Compreensão Política e o Futuro e Outros recentemente Multitudes, com Michael Hardt. Ensaios . Lisboa: Relógio D`Água (edição da (Nota da IHU On-Line ) Perspectiva, 2002). (Nota da IHU On-Line )

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divisas e fronteiras. Uma metrópole maneiras de viver tradicionais, aos quais verdadeiramente “comum” só poderá freqüentemente não se confronta emergir da ruptura dos vínculos atuais, e nenhum tipo de certeza e de segurança somente caso se criarem as condições para quem se transfere à grande cidade para semelhante ruptura. em busca de uma vida melhor. Nem sequer se pode falar de um progresso Crescimento urbano se dissociou do que, todavia, não obstante as desenvolvimento econômico e social dificuldades e os sofrimentos resultaria, em última análise, destas tendências do IHU On-Line - Com a intensificação desenvolvimento urbano. Certamente a da globalização, que papel cidade continua aparecendo aos desempenharão as cidades no século migrantes como o único remédio à XXI? pobreza rural, mas se difundem modelos Agostino Petrillo - Antes de tudo, é de cidades que têm cada vez menos preciso dar-se conta de alguns dados de pontos em comum com aquelas do fato: o destino metropolitano da passado. Crescimento urbano e humanidade, o “fazer-se cidades do desenvolvimento econômico e social planeta”, apenas intuído e pressagiado não andam mais de braços dados. As por grandes sociólogos do início do megacidades terceiro-mundistas são século 20, tornou-se comum para boa muito limitadamente máquinas parte dos homens do terceiro milênio. produtivas, mas funcionam também Neste sentido, o século 21 se apresenta como portadoras de desocupação, como a época da generalização das precariedade, trabalho informal e condições metropolitanas, nas quais a pobreza extrema. Nelas, a miséria maioria da humanidade já vive e sempre tornou-se uma condição de normalidade mais viverá em grandes aglomerações e, para uma grande parte dos seus urbanas. habitantes, é um desafio de cada dia. E o Para muitos dos novos citadinos, o salto processo certamente não está concluído: realizado com respeito às condições de as previsões das agências das Nações vida precedentes foi enorme: milênios Unidas nos dizem que nos próximos de tradições e de culturas locais foram trinta anos a população urbana crescerá queimados no breve lapso de tempo que em outros dois bilhões de pessoas, requereu uma viagem das aldeias de enquanto a população rural origem às metrópoles. Quando se permanecerá tendencialmente estável. O percorre a lista das cidades mais crescimento ainda estará concentrado populosas do mundo, é fácil encontrar nos países menos desenvolvidos, em nomes que nos falam de cidades- particular no Sul e no Sudeste asiático e gigantes crescidas num punhado de na África sub-saariana onde, nos anos. Lagos, Dacca, apenas para citar próximos 15 anos, muitas grandes algumas, que viram os seus habitantes cidades duplicarão a própria dimensão. multiplicarem-se por cinqüenta, por Também mudam as cidades do mundo cem, num giro de pouco mais de um desenvolvido, nelas se afirmam trinta anos. tendências novas, com base nos Não é um processo indolor, a processos de globalização e de acrescida urbanização acelerada que caracteriza competição entre as cidades, e tomam vastas zonas da Ásia e, mais forma realidades extremamente recentemente, também da África, é um diferentes do passado, estruturam-se crescimento selvagem e em certos traços diversas modalidades de organização, de desumana, que ocorre ao preço da funcionamento e de disciplinamento da destruição de elos consolidados e de vida dos habitantes da própria cidade.

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A nova centralidade das metrópoles pobreza e marginalidade, quanto os fatores de uma progressiva integração Este panorama mundial das cidades em mundial maior, como portadoras de rápida mudança, no qual a situação das uma cooperação que vai além dos realidades urbanas singulares aparece confins nacionais e, por estes elementos mais ligada a um quadro global de de um novo sistema de organização andamento da economia, que prescinde planetária ainda em via de definição, das velhas estruturas de relação e de tecer o mosaico de uma constelação subordinação que se haviam ainda em via de definição. Entre os consolidado com o tempo, deixa em estudiosos, parece, no entanto, aberto hipóteses contrastantes sobre prevalecer um certo pessimismo: os desenvolvimentos futuros. O que geógrafos alemães sublinharam nos emerge, com certeza, é uma nova últimos anos, com crescente centralidade das metrópoles, que preocupação, as tendências à interage numa relação complexa com os fragmentação atualmente em territórios e com as outras realidades andamento, seja num plano geopolítico urbanas. Criam-se redes planetárias de mais geral, seja no interior das próprias cidades que estão hierarquizadas em metrópoles. Nas grandes aglomerações, sentido econômico-funcional e que começar-se-ia a distinguir zonas parecem, em parte, substituir o papel “globalizadas”, nas quais reina o bem- outrora desenvolvido pelos estados estar e que estão conexas à grande rede nacionais. internacional das cidades, e zonas Por esses motivos, no que se refere à marginais nas quais predominam reproposição em escala mais ampla da pobreza, tribalismo e violência. dialética interna às metrópoles que se procurou traçar precedentemente, e Neste confuso co-existir de pré-história e porque se torna mais clara a percepção de pós-história, são procuradas, por isso, do fato de que uma parte considerável as respostas que verdadeiramente nos das mudanças e dos conflitos atuais importam, desenham-se os diversos passa por uma “disputa pelo espaço” de futuros urbanos possíveis. Ainda cabe a dimensões planetárias, o conflito em nós, em todo o caso, procurar definir o curso apresenta numerosos aspectos quadro de um espaço no qual nos enigmáticos. De fato, não é fácil definir agradaria viver e atuar para a sua as modalidades de desenvolvimento realização. nem é muito viável indagar os futuros que este conflito parece começar a prefigurar. O destino último que nos reserva a globalização sob o perfil da nova articulação das metrópoles é ainda obscuro. A teoria das cidades parece hesitar diante da quantidade de problemas com que elas se encontram confrontadas. As metrópoles do século XXI poderiam representar tanto o momento de passagem a um capitalismo diverso, dominado por um “arquipélago de ilhas do bem-estar” em que se concentraria o poder econômico, financeiro e decisório, circundadas, porém, por oceanos de

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Destaques on-line

Essa editoria veicula entrevistas exclusivas publicadas no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu ) durante a última semana. As entrevistas podem ser conferidas na editoria Notícias Diárias do sítio, nas datas indicadas na introduão de cada entrevista.

Um panorama da gripe aviária Entrevista com Martin Sander

Nas Notícias Diárias do site do IHU do dia 28 de março de 2006, reproduzimos uma reportagem publicada no Jornal da Unicamp de 27 de março sobre a gripe aviária. A referida matéria noticiou um plano de emergência que começou a ser traçado por pesquisadores da Unicamp e da Unisinos em uma reunião realizada no último dia 23 de março, no Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc) da Unicamp. Na ocasião, biólogos, matemáticos, veterinários e ornitólogos discutiram diversas questões ligadas ao avanço do vírus causador da doença, esperando que o plano de emergência seja destinado ao monitoramento extraterritorial de uma potencial rota de entrada da gripe aviária no Brasil, por meio das aves migratórias.

Esse foi o tema de uma entrevista realizada pela equipe da IHU OOnnnn----LineLine com o professor Martin Sander, pesquisador do Laboratório de Ornitologia e Animais Marinhos da Unisinos, que participou da reunião, fazendo uma minuciosa explanação sobre o comportamento das aves migratórias, mais especificamente as originárias da Antártica. A entrevista a seguir, foi publicada nas Notícias Diárias do sítio do IHU do dia 28 de abril de 2006. A entrevista foi realizada pessoalmente, no gabinete do professor.

IHU On-Line --- Quais os principais a gripe aviária traçado pela Unicamp pontos do plano de prevenção contra

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e pela Unisinos? Como se deu essa apanhador de aves, esse é o nosso parceria? principal papel: ir até as diversas ilhas, Martin Sander - Ainda não foi feito um segurar as aves, uma por uma, para que o plano de prevenção. A Unicamp achou pessoal da Unicamp possa coletar interessante trabalhar com gripe aviária, material com um cotonete na cavidade porque, por meio do Instituto de do bico delas e da cavidade cloacal, Matemática, que trabalha com fazendo um esfregaço, que deverá ser modelagem matemática, associado a examinado, em laboratório, para ver se é outros dados locais e biológicos, pretende positivo ou negativo em relação ao vírus fazer um modelo dinâmico. A idéia era da gripe H5N1. Chegamos a montar o projetar quanto tempo a gripe aviária projeto que, em função da pressa no levaria para se alastrar até o centro do acesso aos órgãos de fomento, não teve País, por exemplo, se ela entrasse pelo muito apoio. Devido a estes fatos, Nordeste do Brasil, em um determinada perdemos a logística de ir para a cidade, e que tipo de problema ela traria, Antártica no último verão. Agora, com quantas pessoas seriam atingidas. Tudo mais apoio, estamos planejando ir para lá isso seria feito por meio de um modelo em novembro desse ano, para fazer essa que simula uma espécie de realidade, coleta. com base em estatística e em banco de dados ambientais. Paralelamente a isso, a IHU On-Line - Quais as principais Unicamp tem um laboratório de questões ligadas ao avanço do vírus virologia. Esse laboratório se colocou à causador da doença? disposição para analisar aves, no sentido Martin Sander - Isso tudo começou na de ver se elas estão contaminadas ou não. Ásia. Olhando os dados desses últimos cinco anos, não me assusto diante dos A tradição da Unisinos com pesquisa fatos. Em primeiro lugar: o vírus não está de migração de aves se propagando de humanos para Procurando o banco de dados sobre humanos. Não temos nenhum caso dessa migração de aves, a Unicamp encontrou a transmissão. Tudo iniciou, Unisinos. Nossa universidade vem provavelmente, não com aves silvestres, trabalhando com migração de aves desde mas com aves de fundo de quintal, 1981, quando começou a pesquisar na domésticas. Na Ásia, esse problema é Antártica e, um pouco antes, com a cultural. As pessoas criam seus gansos, migração de aves de praia do Rio Grande galinhas e patos convivendo com eles no do Sul e nas matas do Estado. Temos um dia-a-dia, a cada segundo, morando certo know-how , seja em publicações ou juntos. Eles são nômades, se deslocam em congressos sobre o tema. Foi por junto com as aves. Foi aí que surgiu o meio deste contato inicial que problema de alguns humanos "pegarem a começamos a montar um projeto para ir gripe", vindo a falecer. Claro que muitas à Antártica, para coletar amostras em aves aves também morreram. A gripe, então, que atingem a costa brasileira. Nesse vem pela Ásia Menor e Ásia Maior nesse trabalho, o papel da Unisinos modelo e, nesse mesmo modelo, ela simplesmente seria dizer em que lugares alcançou a Europa. na Antártica há grandes grupos de aves, quais são as espécies, como as mobiliza e as coleta. A Unisinos seria um grande

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O caso europeu Martin Sander - Isso é difícil de dizer. Na Europa, o vírus da gripe aviária, o Ninguém no mundo tem a idéia de qual H5N1, surgiu pela primeira vez em aves o caminho. Nós suspeitamos que as aves silvestres que foram encontradas mortas e vêm do norte para o sul, sendo a maior que tinham o vírus. Só não se sabe a parte delas as de praia. Então, espera-se forma de contaminação. Eram aves que a gripe aviária chegue ao Brasil em silvestres de zonas muito agrestes ou de setembro, outubro, porque grandes zonas com as quais as aves domésticas bandos de aves migratórias do norte também compartilham. Não se sabe bem chegam ao Brasil nessa época. Ninguém, como isso chegou nelas. Temos apenas porém, tem essa certeza de marcar a data uma suspeita: provavelmente aves para setembro. Tudo depende se, naquele migratórias que convivem lá na Ásia momento, a gripe já vai estar linear, e se Menor e na Ásia Maior em contato com ela contaminou esses plantéis de aves, essas aves nômades, de fundo de quintal, esses grandes bandos. Daí ela pode vir trouxeram, durante a migração, o vírus transportada por essas aves. Nesse grupo para a Europa. Muitas aves têm o vírus da de aves, há uma que é a Calidris gripe, inclusive aqui no Brasil, só que não fuscicollis . Agora no verão ela esteve aqui é o H5N1, que é o mais letal de todos. no Rio Grande do Sul, ainda está por aí. Este vírus possui, na sua estrutura ,uma Ela foi à Patagônia e depois até a seqüência de proteína, denominada de H, Antártica. Grandes bandos ficam no sul que permite a sua entrada nas células, do Brasil e na Patagônia. Poucos vão para com receptadores de outra proteína, a Antártica. Se lá já existir a gripe aviária, denominada N, que possibilita a sua esse grupo, que migra de norte a sul, no liberação. No caso da gripe das aves, a seu retorno, já pode estar trazendo a seqüência é de 5H e um N. Portanto, daí gripe, porque esse bandinho está vem o nome de H5N1. Na realidade, são voltando da Antártica, vai passar pela mais de 16 formas de H e 9 de N. Nas Patagônia, vai passar pelo Brasil, pelo aves silvestres, já foram registrados o H3, México, vai entrar nos Estados Unidos e o H7, o H2, o H1, e elas não morreram retornar para cá em setembro. Só que isso por isso. É por essa razão que existe o são apenas teorias. Para provar que um temor das rotas das aves migratórias. caminho desses é possível, temos que ir a Temos que parar um pouco com isso, campo e ver se essa gripe está instalada pois as rotas migratórias fazem parte da ou não, se o vírus está lá ou não. homeostasia ambiental na Terra. Agora é Ninguém tem essa resposta. a hora de aglutinar informações de pesquisa. Infelizmente, existe Outras possibilidades de transmissão pouquíssima informação de pesquisa Outra coisa: qual é a ave transportadora, sobre isso. Pouca gente foi ao campo caso seja uma ave silvestre? E se for, por pegar informação. Sem ela, é difícil fazer exemplo, um carcará, ou um ximango, qualquer plano de contenção ou de que é residente, que dificilmente migra, manejo. que mora aqui no Rio Grande do Sul? E se ele estiver com H5N1? De quem ele IHU On-Line - Qual o caminho mais conseguiu? Pode ser que foi quando se provável para a entrada da gripe alimentou de uma ave que estava aviária no Brasil? Há alguma previsão morrendo, como, por exemplo, um petrel de data? gigante, que nasceu na Antártica, foi até a

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Austrália, via sul da África, Índia, se avicultura, que é uma preocupação contaminou pelas rotas norte-sul da Ásia, maior, somos muito avançados no Brasil. voltou para cá, chegou agonizante na A criação é feita geralmente em praia, morreu na nossa costa, onde o confinamentos, em lugares apropriados, carcará o comeu, contaminando-se. É não é de fundo de quintal. Existe outro caminho. Ninguém tem, nem na avicultura de fundo de quintal também, Europa, nem nos Estados Unidos, que são mas é em menor escala. Nossa avicultura países altamente desenvolvidos, a idéia não é migrante ou itinerante como o é dos reais caminhos. O que eles fazem é o em outros países. Isso tudo são vantagens. que nós estamos fazendo aqui nos Outro aspecto é que o governo já tomou Laboratórios de Ornitologia e de medidas para o transporte de aves pelas Ecossistemas Aquáticos da Unisinos: uma rodovias. Tudo depende de autorização e lista das espécies migrantes, que vêm de de laudos de sanidade animal. A equipe fora para cá, e que podem ser espécies de veterinários de cada estado está transportadoras da gripe se, no lugar de capacitada para, quando fizer uma origem, o vírus estiver instalado. autorização, só permitir o transporte de Entretanto, ninguém tem caminhos aves do lugar de origem até o abate, ou assegurados. até o porto, ou até outro local, analisando primeiro a saúde de ave por ave. No A pior projeção Brasil, o governo tem uma equipe do Mas o pior caminho não seria esse. O Ibama que faz coletas em várias problema não é tanto pelas aves. Nós não localidades, especialmente em áreas de temos contato direto com as aves banhado, para ver a presença ou não migratórias. O maior problema é se a desse vírus em aves silvestres. Até hoje, gripe se instalar em humanos. Se uma nas inúmeras coletas feitas, nada foi pessoa contaminada, transportando o localizado. O País está bem preparado, vírus já vem mal para cá, seja da também porque tem controle da Alemanha, ou da África, do Japão, ou aqui importação de aves. da Argentina, e o vírus se instalar em alguém e começar a se mudar, se adaptar, IHU On-Line - O que cada brasileiro teremos um agente altamente patogênico. pode fazer para contribuir com esse Daí, sim, o problema poderá ser grande. processo? Esse é o medo maior. Com certeza a Martin Sander - O que cada um pode gravidade aumenta com o passar dos fazer é ter a responsabilidade de anos, pois os agentes infectantes ou de comunicar aos órgãos de saúde transporte neste período também estarão ambiental, veterinários, às inspetorias em maior número. regionais, casos de anormalidade com as aves. Os sintomas são: fraqueza da ave, IHU On-Line - Qual sua opinião sobre aparência de moribunda, com secreção o manual de procedimentos para na região respiratória, acompanhado de prevenir e/ou combater a doença no diarréia ou não, ou até o aparecimento de País? algumas mortas. Nesses casos, é preciso Martin Sander - Eu vi parte desse comunicar a Secretaria Regional de Meio manual, que vem a cada dia sendo Ambiente e Saúde ou entidades de apoio atualizado. O País tem algumas aos produtores, que vai buscar estes vantagens. Em primeiro lugar, na animais e, em pouco tempo, dar o laudo

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dos fatos. Quanto ao consumo da carne, Quais as previsões para os próximos foi feito o alerta para consumir produtos meses? avícolas bem cozidos, porque o vírus, se Martin Sander - Essa é uma questão bem presente, não suporta calor. É preciso preocupante. Muitas pessoas pararam de cozinhar e fritar bem o frango, assar bem, consumir carnes e produtos da não comer carne crua. avicultura. Vimos que os preços despencaram no mercado e já houve IHU On-Line - Está sendo realizada desemprego em algumas áreas. Se alguma espécie de controle do vírus? continuar assim, os problemas com Martin Sander - O vírus não está aqui. certeza serão maiores. Por isso é Não há como fazer controle de algo que importante dar empenho total à pesquisa. não existe. O controle em lugares onde já Por exemplo, ir à Antártica e fazer coletas se detectou o vírus tem sido o abate das de amostras. Se nestas amostras nada for aves. Há lugares onde se abateram todos encontrado, já estaremos diante de uma os gansos, todas as galinhas. Uma das nova certeza. Este tipo de informação formas é o isolamento pontual, fazendo o pode auxiliar na planificação dos abate ou aplicação de vacinas. investimentos, na comercialização, além de dar tranqüilidade ao sistema IHU On-Line - Em que pé estão os produtivo. prejuízos da avicultura comercial?

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Liberdades e limitações do software livre Entrevista com Cristiano Costa

De 19 a 22 de abril de 2006, Porto Alegre foi sede de um dos maiores eventos de software livre do mundo. O 7 ° Fórum Internacional Software Livre reuniu, no Centro de Eventos FIERGS, pessoas de 24 países. O evento bateu recorde de público, recebendo 5.339 pessoas, principalmente do Brasil, Uruguai, Estados Unidos, Canadá e Argentina. Entre os participantes do evento estava o professor Cristiano André da Costa, do Instituto de Informática da Unisinos. Ele concedeu uma breve entrevista, por e-mail, à IHU OnOn----LineLine sobre o Fórum e a discussão acerca da proposta do software livre. Na entrevista, Cristiano afirma que vê como um empecilho a forte conotação ideológica que o movimento do software livre alcançou no Brasil. Cristiano é mestre e doutorando em Ciência da Computação. Sobre o tema, confira duas entrevistas com Richard Stallmann, o guru do software livre, publicadas nas Notícias Diárias do sítio do IHU, nos dias 20 e 24 de abril de 2006, e a edição número 136 da revista IHU OnOn----LineLine , de 11 de abril de 2005. A entrevista foi publicada nas Noticias Diárias do sítio do IHU.

IHU On-Line - Qual a importância de Cristiano da Costa - Os assuntos que um evento para discutir o software mais repercutiram foram novas livre? O que motiva cinco mil pessoas tecnologias e ferramentas livres. Além a discutir a democratização da disso, aplicações com sucesso de software tecnologia? livre em países em desenvolvimento e em Cristiano da Costa - O Fórum projetos sociais. Internacional de Software Livre (FISL) está na sétima edição. Já é o evento mais tradicional de software livre do Brasil e IHU On-Line - Qual a sua visão dos um dos maiores do mundo. Isso motiva a freaks (excêntricos) da computação e visita de pessoas dos mais diversos locais. o seu movimento? O FISL é um dos poucos eventos que Cristiano da Costa - São pessoas discute essa temática. apaixonadas pela área e em especial pelo movimento. Especialmente os freaks IHU On-Line - Quais os assuntos que participantes do FISL defendem o mais repercutiram nos bastidores do software livre acima de tudo em qualquer 7 º Fórum Internacional de Software área e para qualquer aplicação. Livre?

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política. Existem situações em que é IHU On-Line - De qual workshop o melhor utilizar software livre, outras em senhor participou? O que destacaria que o software proprietário é mais da temática trabalhada que mais lhe interessante. Esta é uma escolha impressionou? tecnológica e financeira. Cristiano da Costa - Participei do Workshop de Software Livre (WSL). O IHU On-Line - O senhor acredita que a WSL é um evento científico, promovido proposta do software livre é possível pela Sociedade Brasileira de Computação em uma universidade privada como a (SBC), dentro do Fórum. É constituído de Unisinos? O que faz grandes apresentação de trabalhos, previamente empresas como a Unisinos ainda submetidos e avaliados por um comitê de usarem o software proprietário? programa. Os trabalhos são relacionados Cristiano da Costa - Acho que é viável com a área de software livre. Ocorreram para alguns setores das universidades. A três trilhas dentro do WSL: internacional, Unisinos não utiliza somente software nacional e de software livre na proprietário. Por exemplo, ela utiliza universidade. Essa última temática me software livre no seu servidor Web (de interessou bastante. Alguns casos de páginas da Internet) e no apoio ao sucesso de uso de software livre em desenvolvimento do conteúdo do site. universidades brasileiras foram Nos sistemas de gestão, os softwares apresentados. Especialmente para apoio proprietários, como o ERP da Peoplesoft, ao ensino. ainda são muito mais avançados. Não existe nenhuma tecnologia equivalente, IHU On-On -Line--Line - Como o senhor vê a ou seja, com as mesmas funcionalidades, proposta do software livre? Quais em software livre. seus maiores problemas e vantagens? Cristiano da Costa - Vejo como uma IHU On-Line - O senhor concorda com proposta muito interessante. A maior Richard Stallmann quando ele diz que vantagem está nas quatro liberdades "o software proprietário é um perigo propostas pelo software livre: a liberdade para todos e seus desenvolvedores de executar os programas para qualquer têm poder para introduzir funções de propósito; a liberdade de modificar os vigilância"? programas e adaptá-los à necessidade de Cristiano da Costa - Concordo em parte. cada um; a liberdade de copiar e Acho que as pessoas costumam tomar a redistribuir; a liberdade de aperfeiçoar e afirmação ao pé da letra e imaginar que o liberar para outras pessoas a nova versão. software proprietário "controla" as ações Acho que o principal problema está no dos usuários. Entretanto, concordo que, fato de, no Brasil, o software livre ter por não termos acesso ao código-fonte de tomado uma conotação ideológica muito um aplicativo, não conseguimos saber forte. Isso faz politicamente a proposta com certeza o que o software faz. ser somente apoiada por partidos de esquerda como, por exemplo, o PT. IHU On-Line - Como o software livre Quando, na verdade, a proposta não tem pode ajudar a reduzir a exclusão nada a ver com isso. Software livre digital? deveria ser usado independentemente de Cristiano da Costa - O software livre convicção partidária ou tendência pode ser utilizado para criarmos espaços

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como laboratórios de informática a um muito maior em capacitação e suporte custo menor. Isso porque não será técnico. Não adianta ter um laboratório necessária a aquisição de licenças de com equipamentos e software livre, e não software proprietário. Entretanto, o ter professores à disposição da investimento em infra-estrutura não é comunidade e treinados nas ferramentas suficiente. É necessário um investimento livres.

A refundação da Física pela Cosmologia Entrevista com Mario Novello

Mário Novello é professor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, onde é coordenador do Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias. É mestre e doutor em Física, pós-doutor pela University of Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pela Universidade de Lyon (França). É autor de mais de 150 artigos e de diversos livros, entre eles Cosmos e Contexto . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989; Os jogos da natureza . Rio de Janeiro: Campus, 2004; Máquina do tempo Um Olhar Científico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005; O que é Cosmologia , lançado recentemente pela Jorge Zahar. Este último livro é o tema da entrevista que segue, feita pela redação da IHU OnOn----LineLine , por e-mail e foi publicada nas Notícias Diárias do sítio do IHU no dia 26 de abril de 2006 .

IHU On-Line- que é Cosmologia?" favor de uma visão simplista que diminui Mario Novello - Nos últimos tempos, sua importância e impede que uma apareceram muitos livros, exibindo importante (talvez a mais fundamental) algumas das maravilhosas conquistas dos função da cosmologia apareça: a de cosmólogos, envolvendo aspectos globais refundação da Física. Meu objetivo neste do universo. Entretanto, a quase totalidade livro consiste em exibir e enfatizar este destes livros não se preocupa em seu aspecto, que para mim, consiste em examinar os fundamentos da cosmologia, sua verdadeira função. sua posição em relação às outras ciências IHU On-Line - Por que a obra tem e, em particular, sua relação com a Física. como subtítulo "a revolução do Desde o início da cosmologia moderna, pensamento cosmológico"? com a aplicação por Einstein de sua teoria Mario Novello - Isso se refere à mudança da gravitação ao universo, este papel da produzida pelo Programa Cosmológico de cosmologia tem sido deixado de lado, em Einstein, o que ocorreu nas primeiras

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décadas do século XX, e aos formidáveis Mario Novello - A mais importante lição avanços a partir dos anos 1980, que que devemos tirar da primeira tentativa de transtornaram completamente o cenário Einstein de empreender uma cosmologia cosmológico anterior. é essa: a Física não esgota esta estrutura que chamamos universo. É preciso IHU On-Line - Quais as principais alguma coisa a mais. Ao examinarmos contribuições da obra para o futuro do essa estrutura e esta totalidade, nos damos conhecimento científico relativo do conta de que uma das idéias mais Universo? maravilhosas de uma união (ainda que Mario Novello - A caracterização de que é fragmentada e incompleta) do mundo possível ir além da simplista visão do Big- quântico com a cosmologia leva a um Bang que, tanto grande parte da resultado inesperado: a inevitabilidade da comunidade dos cientistas, quanto à quase existência de alguma coisa, deste (ou de totalidade da mídia internacional e outro) universo. Assim, ao mesmo tempo nacional, divulgaram e espalharam como em que a cosmologia cria uma visão um verdadeiro programa ideológico, científica dos mecanismos possíveis de impedindo o acesso da ciência à análise criação do Universo, ela está ousando do que teria dado origem àquela tentar responder a questão fundamental: "explosão". por que existe alguma coisa e não nada? Desse modo, retoma-se uma conversa que IHU On-Line - O que caracteriza a a ciência interrompeu com outros saberes, retomada do diálogo entre a quando tomou a dianteira na organização cosmologia e a tradição humanista? do cenário mental com que devemos Qual a importância desse diálogo? entender a natureza. Sua eficácia social, a Mario Novello - Todas as civilizações, em produção de um sistema autoritário, com seu passado, produziram "mitos uma aparência impessoal, absoluta e cosmogônicos de criação". A ciência, por retrógrada, colocando o homem fora da meio da cosmologia, está produzindo o natureza, liquidando com as tentativas seu. Reconhecer que este é um modo de alternativas de outros saberes para olhar o mundo, mas não o único, entender a natureza, produziu um sistema relativizando sua função na sociedade, faz que enfraquece o homem, tornando-o parte de um diálogo que a ciência deixou poderoso na fabricação de máquinas de de ter com outros saberes. Isso não foi guerra. bom, nem mesmo para a ciência que produziu, ou melhor, deixou prevalecer IHU On-Line - Quais as principais seu lado autoritário e arrogante. Creio que novidades da cosmologia um diálogo continuado, permanente e contemporânea? tentando entender historicamente nossas Mario Novello - A cosmologia moderna verdades como espécie, certamente será está produzindo uma tentativa de criar útil para o crescimento de nós todos. uma harmonia do mundo e uma comunhão de interesses, na elaboração de IHU On-Line - Quais as conseqüências uma ciência da totalidade, na qual o de suas afirmações para as raízes do homem aparece como o seu ponto central. conhecimento científico, como a E isso está além da geografia. teoria da relatividade de Einstein e as teorias sobre a origem do Universo?

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Confira outras entrevistas no sítio www.unisinos.br/ihu .

Entrevistado Publicada em: Título

César Sanson 25 de abril Os bastidores e as entrelinhas do lançamento do Manifesto das Américas Joanildo Burity e 27 de abril Os votos de Deus: Maria das Dores as relações entre Campos Machado religião e política Martin Sander 28 de abril Um panorama da gripe aviária

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Memória

Instituto Anchietano de Pesquisas - O cinqüentenário de um sonho Por Martin Sander

No sábado, dia 22 de abril, o Instituto Anchietano de Pesquisa, localizado em São Leopoldo, RS, celebrou 50 anos de existência. Recebemos e publicamos, abaixo, o artigo do Prof. Martin Sander. Ele é professor na Unisinos e curador dos Acervos e Coleções da Unisinos. Ele é conhecido também na comunidade acadêmica e já foi citado nesta página, recentemente, pelas expedições na Antártica.

Eis a íntegra do artigo:

"Dia 22 de abril de 1956. Eu era, então, marca registrada nacionalmente e um jovem jesuíta, que morava e internacionalmente do Instituto. Foi lecionava no Colégio Anchieta, em criado e estabelecido como uma Porto Alegre, ao mesmotempo que fundação exclusivamente jesuítica, mas estudava História e Geografia na não se caracterizando como uma Universidade Federal do Rio Grande do entidade fechada. (RABUSKE, 1976). Sul. Lembro-me da tarde em que uns Seus sócios efetivos deviam pertencer à poucos jesuítas maduros, agrupados Ordem, mas seus colaboradores, numa das salas de reunião do benfeitores, sócios honorários ou estabelecimento, me chamaram para integrantes pesquisadores poderiam ser secretariar a sessão de fundação do que leigos. A participação no Instituto exigia seria o Instituto Anchietano de merecimento, valores reais da pessoa e Pesquisas. Escrevi a ata e, como todos trabalhos já realizados, portanto não os que a subscreveram, fui declarado bastava somente a defesa de uma tese e sócio fundador da nova entidade. Nos nem era o sistema automatizado (Ata da cinqüenta anos que passaram desde Primeira Assembléia, 22-04-1956). então, sempre estive muito envolvido na sua história..." (Pe. Pedro Ignacio Um movimento pioneiro difuso Schmitz.) Os principais objetivos eram "Era domingo em Porto Alegre, na Rua desenvolver a pesquisa científica do Duque de Caxias, 1247, onde se situava Brasil, manter coleções e acervos o principal colégio jesuítico do Sul do científicos, formar e abrigar uma Brasil, o Anchieta, onde um grupo de biblioteca especializada, promover e padres jesuítas realizou um velho desenvolver a ciência e a cultura. O sonho: criar uma entidade científica (...), Instituto surgiu em momento de crise, a qual demos o nome de Instituto as escolas secundárias não dispunham Anchietano de Pesquisas", conforme de condições para apoiar a pesquisa e escrito, em 1956, na apresentação do as universidades, limitadas aos primeiro volume da revista Pesquisas , currículos, ainda não tinham programas

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de continuidade científica. Segundo o antigos foram desaparecendo. O Pe. Ignacio, atual diretor do Instituto, Instituto foi transferido para a periferia "tratava-se de um movimento pioneiro da cidade de Porto Alegre, difuso, que antecedeu a instalação da acompanhando a construção do atual pesquisa e da pós-graduação nas Colégio Anchieta. Além dos fatos universidades brasileiras; este se deu a mencionados, adicione-se aí a mudança partir do final da década de 1960 e, de de orientação geral da Igreja Católica, forma mais acentuada, nas décadas de na década de 1960. Os jovens que 1970 e 1980". deveriam dar continuidade ao trabalho dos pioneiros abandonam a Companhia O início da caminhada que se de Jesus, e os demais se dedicam mais transformou em jornada ao ensino de jovens do colégio e seminários. Os fundadores foram os padres jesuítas: Provincial Jorge Steiger, Luis Gonzaga Novas contribuições Jaeger, Balduíno Rambo, Inácio Valle, Pio Buck, Ernesto Maurmann, Aloysio Mesmo assim, o Instituto continua Sehnem, Arnaldo Bruxel, Arthur integrando, desenvolvendo pesquisas e Bohnen, José Hauser, Eugenio Santini, cultura. Muitos pesquisadores Pio Buck, Antonio Loebmann, participavam nominalmente no Bertholdo Braun, Alfredo Rohr e os Instituto, mas desenvolviam suas jovens Germano Junges e Pedro Ignacio atividades em outras localidades da Schmitz, conforme a Ata da Primeira Companhia de Jesus no Brasil Assembléia Geral do IAP. O Pe. Luis Meridional, como por exemplo: Gonzaga Jaeger ficou com o cargo de Florianópolis, Diamantino no Mato diretor e, com o Conselho Deliberativo Grosso e Faculdade de Filosofia e e apoio do secretário, o jovem jesuíta Teologia de Cristo Rei em São Pedro Ignacio Schmitz, iniciaram a Leopoldo. Novos padres, com funções caminhada que se transformou em uma no ensino e pesquisa, foram jornada. Segundo relatos e testemunhos incorporados: Milton Valente, Arthur documentais, a desenvolvimento do José Rabuske, Herbert Wetzel, Evaldo Instituto, não foi tão fácil assim. Eram Heckler, Guido Wenzel, Josafá Carlos poucos os recursos e, em 1961, morreu de Siqueira, além de outros. Inclusive, o idealizador e principal patrocinador em 1963, o Instituto passa a contar com do Instituto, o Pe. Rambo. o apoio de membros não jesuítas, entre eles a pesquisadora Ítala Irene Basile As perperdasdas eas dificuldades Becker, DANI (1988).

Na realidade, o IAP não nasceu do O Instituto, segundo o Pe Ignacio, "... era nada, ou somente de sonhos planejado para se tornar um centro de prospectados de uma sólida visão do pesquisa multidisciplinar, semelhante futuro. Desde o início, na sua base ou aos grandes centros científicos então bagagem, já contavam com toda conhecidos na América Latina". Para tal, produção literária e científica dos seus os jovens jesuítas eram estimulados em fundadores e sócios efetivos, além das sua formação para que cobrissem a coleções e acervos existentes e maior parte dos diversos setores do anteriores ao Instituto como, por conhecimento. exemplo, o Herbário Anchieta, fundado em 1931 pelo Pe. Rambo. Em 1963, A mais nova universidade jesuíta das morreu o Pe. Jaeger e, assim, os mais "terras austrais"

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acadêmicas clássicas: o ensino e a O espaço em Porto Alegre ficou pesquisa. Também atua na extensão, pequeno, as atividades na Faculdade mas como uma das conseqüências da Cristo Rei em São Leopoldo, pesquisa. Inclusive para a biologia, na aumentavam e nascia, em alguns graduação e pós-graduação, o IAP está membros da Companhia, a vontade de presente, em especial por meio do criar uma universidade jesuíta, a Herbário Anchietano, e no segmento de Unisinos. Portanto, era necessária a zoologia ou bioarqueologia. Nestes presença de doutores, além de levar o cinqüenta ano, foram mais de 60 Instituto para São Leopoldo, ofertando a projetos de pesquisa, com apoio do base científica e cultural da mais nova CNPq, da FAPERGS, da SEC, da universidade jesuíta das "terras Unisinos e outras universidades ou austrais". Com o crescimento da institutos similares nacionais e Universidade, as pesquisas de muitos internacionais. Muitos pesquisadores, sócios efetivos do Instituto passaram a estudantes e colaboradores ser desenvolvidas na Unisinos. Entre participaram de projetos. É neste local ambas as instituições, existe um que encontramos o exemplo de convênio firmado, desde 1969, mas atividades integradas e fixado por escrito somente em 1981. transdiciplinares. Nele ficou estabelecido que a Unisinos deveria oferecer a infra-estrutura A experiência de compartilhar temas e material, além de manter os descobertas funcionários para os serviços de apoio. De modo mutual, ambas as instituições Também no meu tempo de estudante oferecem uma à outra acesso às fontes de Biologia, passei bons momentos no de pesquisa e vagas para estagiários e Instituto, buscando literatura e levando pesquisadores. ao Pe. Sehnem plantas que serviam de alimento às aves. Pe. Sehnem, com 50 anos de ensino e pesquisa em mais muita calma e apoio de sua pequena e de 60 projetos potente lupa de mão, examinava uma a uma, dando, de pronto, o nome e outros Nos anos 1980, o Instituto muda-se dados bioecológicos. Aí também para o espaço atual, nas dependências conheci o Professor Pe. Ignacio, da antiga sede da Unisinos, na Praça fundador e atual diretor do Instituto. Tiradentes, 35, em São Leopoldo. Ali, Sempre atento e carinhoso com todos encontra mais espaço e recebe novos aqueles que buscam informações. Ainda acervos: a Biblioteca da Província Brasil hoje é no IAP que encontro referências Meridional, formada pelos livros de bibliográficas históricas, textos de várias escolas e seminários que leitura dos mais diversos assuntos e encerraram suas atividades; os acervos pessoas para compartilhar temas e do Pe. Bruxel e documental dos estudos descobertas. e pesquisas do Pe. João Alfredo Rohr, oriundos de Santa Catarina. Neste A qualificação do ensino e da pesquisa mesmo período, é estabelecido o Programa Arqueológico do Mato Grosso O principal referencial teórico do IAP é do Sul, e a Unisinos cria o Mestrado de sua revista, denominada Pesquisas . No História, naturalmente com apoio e passado, um anuário. Hoje, devido à base do Instituto. diversificação dos estudos e envolvimentos de mais pesquisadores, a O IAP sempre atuou nas duas áreas revista foi dividida em setores: Botânica;

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Zoologia, História e Antropologia. para a continuidade das pesquisas e Ainda encontramos no Instituto as estudos especializados de ambas as publicações avulsas e a série instituições. A base e a história Documentos . preservada no IAP, e a Unisinos, pelo ensino e, em especial, a pesquisa e a Hoje o Instituto tem vários acervos: o pós-graduação, inovam e mantêm a Museu Arqueológico e Etnográfico; O vida do Instituto. Quem sabe também Museu Capela; O Museu Histórico do desta integração, surgirá o museu Herbarium Anchieta; a Sala Dr. João universitário da Unisinos, movimento Dutra; várias bibliotecas e coleções original com identidade própria, científicas. Recentemente, o Herbário necessário para dialogar com a Prof. A. Sehnem, da Unisinos, com cerca comunidade o nosso conhecimento de 20 mil plantas, foi incorporado ao revelado pela pesquisa, provocando Herbário Anchieta, ampliando a coleção mudança de valores. de plantas para mais de 140 mil exemplares. O uso destes acervos, em Com certeza, chegar ao cinqüentenário especial pelos alunos da Unisinos, é foi uma dura e competente jornada cada vez mais intenso e, sem dúvida, provocada no jovem jesuíta Pedro qualifica o nosso ensino e a pesquisa. Ignacio Schmitz que, em 1956, na tarde de domingo, foi chamado para lavrar a Inovando e mantendo a vida do primeira ata. De lá para cá, muitas Instituto transformações, muitos títulos, prêmios e reconhecimentos, mas a simplicidade, Este comprometimento entre o IAP com o carinho e dedicação com as pessoas e a Unisinos a cada dia mais intenso, o trabalho foram constante ao Pe. provoca um sistema mutual de gestão e Ignacio, transformando o sonho dos uso. Provavelmente é o melhor modelo pioneiros em realidade.

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Deu nos jornais

Diariamente a página do IHU ( www.unisinos.br/ihu ), editoria Notícias Diárias, apresenta uma síntese das notícias com base nos principais jornais do País e do exterior. Abaixo algumas notícias selecionadas, extraídas desse link do sítio do IHU.

Crise da política faz ressurgir o fenômeno do anarquismo Um sentimento generalizado de frustração com a política e os políticos tem despertado novamente o interesse dos estudantes pelo anarquismo. Essa é a opinião do cientista político e filósofo Francisco Foot Hardman, professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor do livro Nem Pátria Nem Patrão . Para mais detalhes veja notícias do dia 25/04/2006.

As notícias do dia desta semana informaram, amplamente, a América do Sul, a política brasileira interna e as reações à entrevista do cardeal Martini.

• América do Sul se move

Eis os títulos:

- Evo Morales qualifica a EBX, empresa brasileira de Eike Batista, como uma "empresa fora-da-lei" – notícias do dia de 25/04/2006.

- Lula, Kirchner e Chávez negociam o supergasoduto – sobre o tema as notícias diárias publicaram dois artigos e outras informações nos dias 27-28/04/2006. Destaque-se a oposição da Bolívia que classifica o projeto de “maluco” – notícias do dia 27/04/2006.

Sobre este tema vale conferir a entrevista de Darc Costa publicada nas notícias do dia 30/03/2006 e também a entrevista de Gilberto Dupas publicada na edição 170ª da revista IHU OnOn--Line--Line , dia 6/03/2006.

- Chávez sai da Comunidade Andina, movimentou a semana na América Latina. O presidente colombiano pede a intermediação do Brasil. Enquanto isso Chávez oferece óleo diesel grátis ao Haiti e reforça o Mercosul e a ALBA, assinando o Tratado de Comércio dos Povos com Cuba e Bolívia. Para maiores informações veja as notícias do dia de 25/04/2006.

BNDES financia 20 projetos de integração sul-americana foi notícia no dia 28/04/2006.

- Hugo Chávez. Um dilema para Lula e Kirchner . Este foi o tema de uma reportagem do jornal argentino Clarín no dia 28/04/2006. Veja notícias do dia 28/04/2006. O apoio de Chávez ao programa nuclear iraniano é uma das preocupações dos dois presidentes.

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- O conflito entre o Uruguai e a Argentina por causa da construção de duas fábricas de papel às margens do Rio Uruguai, na fronteira Argentina, foi um dos temas tratados nesta semana nas notícias diárias nos dias 25- 28/04/2006 e 2/05/2006 . Lula tenta conciliar e fala com a presidenta da Finlândia já que uma das empresas é daquele país. Lula tenta convencer a Kirchner para que não leve o caso ao Tribunal de Haia. Não consegue. Kirchner sai contente da reunião com Lula. Kirchner convoca uma grande manifestação, no dia 4/05/2006, contra as fábricas no Uruguai. No sábado, dia 30 de abril, o Uruguai desloca tropas militares para a fronteira com a Argentina.

O Uruguai sente-se cada vez mais fora do Mercosul e acena com um tratado bilateral com os EUA.

E o 1o. de maio é o dia em que Evo Morales anuncia a nacionalização do hidrocarbonetos . Ver notícias do dia do dia 2/05/2006.

Uma entrevista com Jorge Castañeda complementa a ediçao da revista IHU OnOn---- Line no. 176 com o tema de capa América Latina. Um giro à esquerda ???

• Na política brasileira

-A candidatura do PSDB, Geraldo Alckmin, não decola. Eis os títulos das notícias do dia da semana passada:

- "Um velório completo no PSDB", afirma analista político;

- Alckmin pode ser trocado por Serra, diz Lula;

- PFL desembarca da candidatura Alckmin:

- PFL fala no fim da aliança com PSDB.

Enquanto isso, o pré-candidato do PMDB, Anthony Garotinho é bombardeado por uma série de denúncias que favorecem setores do partido que não querem uma candidatura própria mas preferem apoiar Lula. Rosinha pagou R$ 112 milhões a doadores de Garotinho é o título do dia 27/04/2006.

Por sua vez, Alain Touraine, sociólogo francês, em entrevista concedida ao jornalista Merval Pereira, estranhando que José Serra não tenha sido escolhido candidato a presidente pelo PSDB, afirma que Lula se reelege. A mesma opinião expressa Carlos Augusto Montenegro, do Ibope. Ele dá como certa a reeleição de Lula. Confira as notícis do dia 25/04/2006.

13º Encontro Nacional do PT- As notícias do dia da semana passada também destacaram o 13º Encontro Nacional do PT. A carta de Tarso Genro, insistindo na refundação do PT, a mobilização dos movimentos sociais e da CUT na reeleição de

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Lula e o consenso obtido, apesar da reação dos petistas gaúchos, quanto à formação das alianças foi outro tema das notícias dos dias 28/04/2006.

Um outro título noticiou que César Benjamin é vice de Heloisa Helena . Notícias do dia 25/04/2006.

O dia 1o. de maio foi a ocasião para avaliar as políticas para o trabalho do governo Lula : crescimento do emprego e da rotatividade e queda na renda parecem sintetizar a política trabalhista. O governo teve o mérito de não levar à frente a reforma trabalhista do governo FHC. As notícias diárias di sítio do IHU juntamente com a revista IHU OnOn---- Line no. 177, com o tema de capa As mudanças depois de 120 anos do 1o de Maio , especialmente as entrevistas de José Dari Krein e Marcio Pochmann contribuem para a análise da política trabalhista e sindical do governo Lula.

• A Igreja e os preservativos

A entrevista do cardeal Carlo Maria Martini à revista italiana L’espresso , no dia 21-4-06, continua repercutindo intensamente em vários países, especialmente no Vaticano. As notícias do dia 29/04/2006, publicaram na íntegra a tradução da longa e importante entrevista. Um internauta, professor na Unisinos comenta: “muito interessante o diálogo com o cardeal Martini publicado no sábado nas notícias diárias. Como ele é claro! Aí não estaria um jeito de transcrever os valores cristãos na hiper-modernidade? Não parece que por aí haveria algumas possibilidades?”

Vaticano parece que vai mudar, levemente, a posição sobre o uso do preservativo, título da notícia do dia 26/04/2006 parece ser uma das reações à entrevista do cardeal.

Para mais reações à entrevista confira as notícias diárias do dia 29/04/2006.

• Concluindo, chama a atenção o seguinte título:

A CIA seqüestrou suspeitos na Europa para torturá-los em vários países árabes.

Para maiores informações veja as Notícias Diárias do dia 27/04/2007.

Frases da semana

Superávit primário “A meta de 4,25% é cláusula pétrea.” - Paulo Bernardo, ministro do Planejamento - Estado de S. Paulo ,,, 30-4-06.

“No próximo mandato presidencial, haverá déficit zero. Para isso, vamos manter o superávit de 4,25%.” - Paulo Bernardo, ministro do

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Planejamento, comentando a proposta de déficit zero de Delfim Netto - Estado de S. Paulo , 30-4-06.

Lula e as Casas Bahia

"Embora não seja presidente das Casas Bahia, seja presidente do Brasil, a minha concepção de tratamento deste país é a concepção que o senhor teve de estabelecer a sua parceria com a parte pobre da população." - Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República - Estado de S. Paulo , 29-4-06.

"O senhor (Samuel Klein, presidente das Casas Bahia) fez, teve resultado e disse agora há pouco para mim: "Eu gostaria que o Brasil fosse que nem as Casas Bahia, todo mundo feliz". O senhor fez isso porque acreditou na parte pobre da população." - Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República - Estado de S. Paulo , 29-4-06.

Ô, ô Bornhausen... "O PFL e o PSDB estão dando uma pequena lição à esquerda de como fazer oposição."- Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República - Estado de S. Paulo , 29-4-06.

"A prioridade é derrubar o Lula, que é um governo incompleto e corrupto" - Jorge Bornhausen, presidente do PFL - Portal Terra , 26-4-06.

"Ô, ô Bornhausen, eu estou aqui, a nossa raça tu vai (sic) ter que engolir" - refrão cantado no Encontro Nacional do PT - Estado de S. Paulo , 29-4- 06.

Venezuela e Irã "Não tenho nenhuma razão para duvidar da palavra das autoridades iranianas sobre seu programa nuclear pacífico. Querem atacar o país como fizeram com o Iraque e o Afeganistão." - Hugo Chávez, presidente da Venezuela - Agência Carta Maior , 26-4-06.

Chávez e as eleições no Peru "Não seja sem-vergonha, o senhor pede aos peruanos e aos colombianos que não negociem com os EUA e 80% do comércio exterior de seu país é com os EUA, senhor Chávez. " - Alan García, candidato à presidência do Peru - Estado de S. Paulo , 28-4-06.

"Vou antecipar que, se por obra do demônio, García chegar à presidência do Peru, vou retirar meu embaixador, porque não vamos ter relações com um presidente canalha e ladrão." - Hugo Chávez, presidente da Venezuela, referindo-se a Alan García, candidato a Presidente do Peru - Estado de S. Paulo , 29-4-06.

Dalai-Lama no Brasil

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"Não dá para pegar um pouco daqui e um pouco dali e jogar tudo no liquidificador. É um erro. Você pode pegar o melhor de cada fé, mas deve seguir uma tradição autêntica." - Dalai Lama, ao falar de que pretendem criar um "novo budismo" - Estado de S. Paulo , 27-4-06.

“Em geral, na minha visão, o aborto é um assassinato, deve ser evitado. No entanto, pode ser praticado em situações particulares, como quando há risco à vida da mulher. Porém, se for feito por luxo ou por conveniência, acho que sim [a mulher deve ir para a cadeia].” - Dalai- Lama - Folha de S. Paulo , 30-4-06.

Hippie e chique “Só a gente é assim, hippie e chique; um pouco Daslu, um pouco Woodstock."- Ana Carolina Vieira Lustosa, publicitária paulistana descrevendo a platéia que assistiu a conferência do Dalai Lama em São Paulo - Folha de S. Paulo , 28-4-06.

Viagra e a privatização do sexo “Minha intuição é que os homens usam Viagra principalmente para demonstrar que ainda conseguem ter uma ereção. Eles querem, principalmente, ter a certeza de que conseguem isso, mas poucos se perguntam se a parceira também quer.” - John Gagnon, sociólogo americano - Folha de S. Paulo , 30-4-06.

“Acho que drogas como essas podem reforçar uma espécie de privatização do sexo, já que o indivíduo passa a ser mais importante do que a relação social entre duas pessoas.” - John Gagnon, sociólogo americano - Folha de S. Paulo , 30-4-06.

A terra é gaia “A mesma lógica que explora as pessoas, as classes, aos países, explora também a natureza.”- Leonardo Boff, teólogo - El País , 29-4-06.

“É preciso convencer-se que a Terra é Gaia , isto é, tem um comportamento típico dos seres vivos. Somos mais que filhos e filhas da Terra ( homo vem de humus , terra fértil, ou adam , que vem de adamah , terra fecunda). Nossa singularidade é a de ser aqueles que cuidam da Terra, os jardineiros no Éden terreno, e não o Satã da Terra.” – Leonardo Boff, teólogo - El País , 29-4-06.

Sonhos "Não se faz um país sem sonhos. Não se faz um grande país sem grandes sonhos." - Clóvis Rossi, jornalista - Folha de S. Paulo , 28-4-06.

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IHU em revista

Eventos pg. 61 IHU Repórter pg. 70 Carta do Leitor pg. 70

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Eventos

Guimarães Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Veredas

A segunda atividade do evento Guimarães Rosa: 50 anosanos de Grande Sertão: Veredas acontecerá nesta quarta-feira, 3 de maio, das 19h45min às 22h15min, na Sala 1G119 do IHU. Trata-se da exibição do filme A terceira margem do rio , do cineasta brasileiro Nelson Pereira dos Santos. Após a apresentação, o Prof. Dr. João Guilherme Barone, da PUCRS, irá conduzir um debate com o público. As inscrições continuam abertas no sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu . Por e- mail, Barone disse à IHU OnOn----LineLine que o filme “narra a história de um homem que abandona a mulher e os filhos e tudo mais, para viver isolado numa canoa, no meio de um rio. Ele nunca mais volta, nunca mais deixa o rio e nunca mais é visto por ninguém. A esposa cria sozinha os filhos, mas mantém-se sempre observando o rio, na esperança de que um dia o marido possa regressar.” Em sua análise, característica que distingue essa produção “é a experimentação de mesclar as cinco histórias de Guimarães Rosa, ao invés de adaptar cada uma isoladamente”. Barone é graduado em Jornalismo pela Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, e em Jornalismo Gráfico, Radiofônico, Cinematográfico e Televisivo pela PUCRS. Cursou mestrado em Comunicação e Indústrias Audiovisuais no Espaço Ibero-Americano na Universidade Internacional da Andaluzia, Espanha e doutorou-se em Comunicação Social pela PUCRS. Atuou como roteirista e diretor das produções Cone Sul, Inverno no Trópico, diversos episódios das séries Mundo Grande do Sul , Na Trilha dos Farrapos , A ferro e Fogo e Histórias Extraordinárias . Leciona Cinema na PUCRS, desde 1985, onde implantou e coordenou as Oficinas de Realização Cinematográfica. É secretário geral do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (FORCINE), além de membro do Conselho Executivo da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (SOCINE).

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Um filme para refletir a condição humana do brasileiro

Entrevista com João Guilherme Barone

IHU On-Line - Nelson Pereira dos dias leva um prato de comida para o Santos parte do título do conto de pai na beira do rio. Com base nessas Guimarães Rosa para batizar seu trajetórias vão se incorporando os filme. Em linhas gerais, qual é o outros personagens, como a menina enredo da produção? santa Nhinhinha que acaba sendo João Guilherme Barone - Na verdade, explorada pelos irmãos Dagobé e assim, Nelson Pereira dos Santos usou o título histórias e personagens vão interagindo de um dos contos, mas o roteiro do entre situações rurais e urbanas que são filme mistura outros quatro contos de um retrato do Brasil contemporâneo. Guimarães Rosa: A menina de lá , Os irmãos Dagobé , Seqüência e Fatalidade . IHU On-Line - Quais seriam as Ele selecionou estes, entre os 21 contos principais características da publicados no livro PrimeirasPrPrPr imeiras estórias , adaptação do livro de Guimarães de João Guimarães Rosa. É importante Rosa para essa produção observar que Nelson tinha a intenção cinematográfica? de filmar estes contos já desde a década João Guilherme Barone - Creio que a de 1950, quando filmou Rio quarenta principal característica é a graus , seu primeiro longa. Glauber experimentação de mesclar as cinco Rocha era um dos que mais o histórias de Guimarães Rosa, ao invés estimulava a fazer logo este filme. O de adaptar cada uma isoladamente. enredo de A terceira margem do rio , Nelson trabalhou muitos anos neste entretanto, é um projeto bastante roteiro, criando uma estrutura narrativa ousado, na medida em que Nelson em que os personagens de uma história Pereira dos Santos optou por fazer um entram em outra e assim cruzamento ou uma mistura das cinco sucessivamente, resultando numa histórias, utilizando a Terceira margem , dramaturgia cinematográfica bastante como base para inserir as outras. densa e complexa. Inicialmente, o filme narra a história de um homem que abandona a mulher e IHU On-Line - O jornalista Alexandre os filhos e tudo mais, para viver isolado Werneck, do JB On-line, disse que numa canoa, no meio de um rio. Ele "adaptar Guimarães Rosa para o nunca mais volta, nunca mais deixa o cinema é tão difícil quanto adaptar rio e nunca mais é visto por ninguém. A a lista telefônica". Qual é o mérito esposa cria sozinha os filhos, mas dessa obra cinematográfica? mantém-se sempre observando o rio, na João Guilherme Barone - Adaptar esperança de que um dia o marido literatura para o cinema é sempre uma possa regressar. Esta é a base para a tarefa difícil. São narrativas diferentes, fusão dos outros quatro contos, além do para suportes diferentes e para casamento da filha que vai morar em experiências de recepção diferentes. Brasília e da permanência do filho do Como obra cinematográfica, A Terceira casal que vive com a mãe, e todos os margem do rio não é um filme

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considerado pela crítica como o melhor momento em que a produção estava de Nelson Pereira dos Santos. Não tem quase paralisada e a exibição a mesma relevância de Rio quarenta absolutamente dominada pelo cinema graus , Vidas secas ou de Memórias do norte-americano. O filme foi lançado cárcere . A crítica reconhece, entretanto, em 1994, num momento em que ser um filme ousado e corajoso, talvez começava a se desenhar o que seria a pelo mérito das soluções encontradas retomada do cinema brasileiro. Não foi para fundir as cinco histórias no roteiro. aplaudido pela crítica e muito menos Entretanto, não há referências muito pelo público. Foi selecionado para o exaltadoras ou elogiosas quanto ao Festival de Berlim e convidado para resultado estético do filme. diversos outros festivais internacionais, teve repercussões positivas e negativas. IHU On-Line - Esse mesmo jornalista Entretanto, não brilhou como outros afirmou que, com diversas filmes de Nelson. "desobediências" do cineasta ao livro de Guimarães, ele segue seu IHU On-Line - Que reflexões o filme caminho cheio de pedras. Concorda suscita para a pós-modernidade no com isso? Por quê? que diz respeito à subjetividade do João Guilherme Barone - Concordo indivíduo? na medida em que Nelson optou por João Guilherme Barone - Não creio desobedecer à versão literária pronta e que seja um filme adequado para uma criou uma nova narrativa concebida análise pós-moderna. O filme é para o filme, bastante ousada e não totalmente impregnado pelo olhar menos complexa do que é a literatura roseano de um país cheio de contrastes de Guimarães Rosa. Provavelmente a e desigualdades, confrontando o rural e referência ao "caminho cheio de o urbano, somado pelo olhar de Nelson, pedras" esteja relacionada ao resultado militante comunista histórico e do filme, como já disse, visto pela profundamente preocupado em retratar crítica como algo que passa longe do esse Brasil desigual. Assim, a brilhantismo do diretor de Memórias subjetividade do indivíduo está imersa do cárcere . Por outro lado, pode ser num universo emoldurado por também uma referência ao processo elementos do realismo mágico, com conturbado de produção do filme que personagens que se ambientam numa começou em 1989 e só foi concluído espécie de releitura de Vidas Secas e em 1994. Este filme foi, inclusive, uma Rio quarenta graus . das vítimas da extinção da Embrafilme e do confisco dos ativos financeiros, IHU On-Line - Num prisma promovidos pelo presidente Collor, em existencialista, qual é o papel do 1990. Nelson enfrentou todo o tipo de filme na "travessia" do leitor a uma dificuldades para a sua realização, terceira margem? mesmo sendo um nome consagrado do João Guilherme Barone - Não estou cinema brasileiro. convencido de que no filme, a metáfora da busca de uma terceira margem seja IHU On-Line - Qual é a importância tão eficiente como no conto original. desse filme na obra do cineasta? Mas eu destacaria que o filme propõe João Guilherme Barone - Não é um tempo de reflexão sobre a condição efetivamente o melhor filme de Nelson, humana do brasileiro, entregue à sua embora tenha cumprido um papel própria sorte, na medida em que o importante no processo de reaproximar Estado não funciona, pela corrupção e o público do cinema brasileiro, num ineficiência, e a sociedade se deteriora

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pela tensão do abandono e do dialeticamente o confronto entre o isolamento. campo e a cidade, o rural e o urbano. Da mesma forma, o sagrado e o IHU On-Line - De que forma o profano, o rico e o pobre, o dominador cineasta trabalha as polaridades e o dominado. O filme está totalmente presentes na obra? construído com base nas polarizações João Guilherme Barone - Creio que a em que habitam e vivenciam os polaridade é bem clara no filme. Como personagens. bom marxista, Nelson soube trabalhar

IHU Idéias O homem solteiro, que mora sozinho, procura... Entrevista com Vanice Domingues

O IHU Idéias desta quinta-feira, 4 de maio, traz como tema o Trabalho de Conclusão de Curso de Publicidade e Propaganda da Unisinos, de Vanice Domingues. Intitulado O homem solteiro, que mora sozinho, procura... Uma visão do seu cotidiano e de suas práticas de consumo , o trabalho foi aprovado com distinção, nota 10. Em entrevista por e-mail à IHU OnOn----LineLine , adiantando alguns dos aspectos do evento, a publicitária disse que “os estereótipos que caracterizavam o homem até meados da década de 80, abriram passagem a um novo comportamento. Os homens estão assumindo novos papéis e se posicionando melhor diante das diversas situações, como, por exemplo, morar sozinho e cuidar dos filhos. Acredito que a grande influenciadora de toda esta “metamorfose social” tenha sido a mulher e a mudança na concepção da família”. Em função disso, o mercado tem em mira um alvo segmentado, composto por um “novo homem”, preocupado com sua aparência, que pensa em ter a pele bem-cuidada, corpo perfeito, peso adequado e que admite fazer cirurgia plástica somente por estética.

IHU On-Line - Qual foi sua Vanice Domingues - Hábitos de motivação para a pesquisa que consumo é um assunto interdisciplinar apresentou no TCC e de que forma a que envolve inter-relações não somente desenvolveu? na área de comportamento consumidor, como também de psicologia, de

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sociologia, de marketing e de Vanice Domingues - O título Homem antropologia. Influências da cultura, da solteiro, que mora sozinho, procura... família, de valores pessoais e de mídia faz uma referência bem humorada no são relevantes para buscar o sentido de visualizarmos este entendimento das preferências de personagem em suas compras. A compra, porém insuficientes para intenção no desenvolvimento deste entender suas razões. Influências vindas estudo foi, inicialmente, buscar de todos os lados atravessam o evidências do comportamento de indivíduo, compondo seu cenário de compra em supermercados, as bases de consumo. escolha e os critérios de avaliação. A opção por buscar informações acerca Contudo, as informações obtidas nas do comportamento de compra do entrevistas, considerando as homem solteiro que mora sozinho particularidades e diversidades de cada torna o tema demasiadamente amplo. entrevistado, mostraram um panorama Com isso, observou-se a necessidade de do comportamento deste público. focalizar em um determinado Em relação ao que “procura”, segmento, como a aquisição de bens de atualmente o homem solteiro tem conveniência - produtos que não quase todas as suas necessidades precisam de uma decisão de compra realizadas "na rua", ou seja, fora de casa. muito elaborada e que o consumidor Tanto para alimentação quanto para, geralmente compra com freqüência, de lazer, trabalho ou amor, dando vazão ao imediato e com o mínimo esforço seu instinto de caçador. Este fator faz (exemplo: jornal, pão, fósforos). Isso dele um consumidor potencial desde restringe a pesquisa de campo à um “mercadinho de esquina” até uma aquisição em supermercados, pois agência de turismo. praticamente todos os consumidores urbanos freqüentam esse tipo de loja IHU On-Line - Como se dá a sua pela ampla gama de produtos atuação, sem a influência diária da oferecidos e também por ser família ou afins? considerado outro campo de domínio Vanice Domingues - No homem feminino. solteiro, as características de A análise das diversidades e identificação e consumo são marcantes, peculiaridades desse consumidor, a sem a presença direta de familiares, observação das diferenças de atitude esposa ou namorada, as instituições ou nos níveis socioeconômicos, as atitudes objetos passam a se transformar em e comportamentos, crenças e substitutos culturais. Esta busca por necessidades, permitiram traçar um afirmação ou identificação vai se panorama de quem é o consumidor consolidar no local de trabalho, com solteiro contemporâneo, como ele suas casas, animais de estimação, pensa e o que ele espera de produtos e automóveis, clubes e assim por diante, serviços de bens de conveniência. As criando símbolos de vinculação. O que informações foram coletadas pela “sugerem também um mercado pesquisa O homem solteiro e seus crescente para ‘substitutos culturais’ – hábitos de consumo, nome do roteiro coisas que permitam que as pessoas de pesquisa utilizado neste estudo. que estejam sozinhas sintam-se como se não tivessem, como a televisão, os IHU On-Line - Em linhas gerais, o videogames e as salas de bate-papo na que o homem solteiro que mora Internet” 68 . sozinho procura? 68 KOTLER, 2000, p.175. (Nota da entrevistada)

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esta evolução, segmentando cada vez IHU On-Line - Qual é o perfil dos mais seu público. Esta “revolução homens solteiros na mira do social” influenciou drasticamente o mercado? mercado de produtos e consumo. Vanice Domingues - Saindo de casa Alguns segmentos, atentos a esta cada vez mais jovens e priorizando a mudança, procuram adequar seus carreira profissional, estão se tornando meios de produção de maneira a alvos da indústria de consumo. Por não atender em cada detalhe essa nova ter uma família a sustentar, suas demanda. Acredito que há uma necessidades de consumo e prioridades reciprocidade mercado X consumidor. domésticas são diferentes. O que leva a acreditar que este público, tem dinheiro IHU On-Line - De que forma os de “sobra” para outros tipos de homens vêm se preocupando com compras. sua estética e vestuário? A própria mudança do comportamento Vanice Domingues - A evolução masculino, a qual vem se delineando comportamental e mercadológica desde a década de 1980, revelando um possibilitou ao homem que se “novo homem”, dá subsídios ao expusesse mais. Atitudes até então ditas mercado para uma atualização de femininas, principalmente no campo da conceitos. Habituados à posição de estética, como tirar a sobrancelha, fazer decididos, seguros, responsáveis pelo a unha, fazer bronzeamento artificial, sustento da família, fortes, dominadores, utilizar técnicas para pintar o cabelo, corajosos, auto-suficientes entre outros cirurgia plástica com fins estéticos, adjetivos sustentados durante muitos estão sendo atitudes realizadas também anos viram-se acuados, pois por homens. O máximo, que era levado constantemente “seu território” era em consideração pela sociedade há invadido e em muitas situações alguns anos atrás, era a barba bem feita dominado pela “revolução feminina”. e o terno bem alinhado, atualmente os Na atualidade, observa-se exatamente o cuidados vão desde sua imagem, oposto, uma inversão nesta “revolução”, aparência, como se comunica e o que há uma incursão masculina no universo consome. Segundo estatísticas feminino, em que os sentimentos estão publicadas na revista Veja 69 destaca-se a emergindo, caracterizando o homem preocupação do brasileiro com a não como um ser inabalável, um super- aparência: herói, papel que eles mesmos tentavam • 82% acham importante ter a pele desempenhar, mas um ser humano bem-cuidada; sensível, delicado e vaidoso e, o homem • 80% gastam mais de cinco minutos solteiro atual é o reflexo desta alteração diários com a aparência; comportamental. • 78% acham importante ter o corpo perfeito; IHU On-Line - Como o mercado atual • 72% se pesam regularmente; reagiu a essa mudança de • 68% acham certo fazer cirurgia comportamento? plástica somente por estética; Vanice Domingues - Este público está • 25% já fizeram dieta; ganhando espaço gradual e definitivo • 5% já fizeram cirurgia plástica 70 . na mídia e na produção/adequação de produtos. O mercado comercial (publicitários, mídia, administradores 69 1 out. 2003, p.65 (Nota da entrevistada) 70 de marketing, desenvolvedores de Fonte: 2B Brasil Research & Consulting, com homens entre 25 e 64 anos, em São Paulo. (Nota novos produtos) vem acompanhando da entrevistada)

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A edição Veja Especial Homem , também apresenta os seguintes dados: 66% dos homens brasileiros dão importância à aparência; 35% deles usam cremes para as mãos e para o rosto. Em 2000, esse índice era de 30%; cresceu 4 vezes o número de homens no Brasil que se submetem à cirurgia plástica nos últimos dez anos. Hoje eles somam 120 mil 71 .

IHU On-Line - O homem como couraça indestrutível é um mito? Como está se dando a desconstrução desse mito na pós- modernidade? Vanice Domingues - Há muito tempo esta “couraça” já não existe. Os estereótipos que caracterizavam o homem até meados da década de 1980, abriram passagem a um novo comportamento. Os homens estão assumindo novos papéis e se posicionando melhor diante de diversas situações, como, por exemplo, morar sozinhos e cuidar dos filhos. Acredito que a grande influenciadora de toda esta “metamorfose social” tenha sido a mulher e a mudança na concepção da família. A partir da “emancipação feminina”, cujo papel foi se definindo por décadas, houve grande alteração do seu comportamento e atuação perante a sociedade. A mulher “saiu para a rua”, procurou direitos iguais, absorveu novas funções, deixou de ser somente a “rainha do lar”. Com isso, tornou-se mais exigente, forçando uma mudança também no comportamento masculino. E este em busca de adequação à nova realidade, procurou o seu lugar neste cenário.

71 A metamorfose do macho . Ago. 2004, p.12. (Nota da entrevistada)

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História do Brasil e Cinema

O Prof. Dr. Glênio Nicolas Póvoas, da PUCRS, é o responsável pela condução do evento História do Brasil e CinCinemaema neste sábado, 6 de maio, das 8h30min às 12h30min, Sala 1G119 do IHU. O pesquisador realiza a palestra e a discussão teórica A história do Brasil através do cinema: contribuições e comprometimentos .

Encontros de Ética

O ensino de línguas estrangeiras na educação infantil . Esse é o tema proposto pela Prof.ª Dr.ª Ana Maria Stahl Zilles, da Unisinos, no Encontros de Ética desta segunda-feira, 8 de maio. A atividade, aberta a toda comunidade acadêmica, tem entrada franca e vai das 17h30min às 19h, na Sala 1G119 do IHU. Confira uma entrevista exclusiva sobre esse assunto no sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu.

Zilles é graduada em Letras – Licenciatura Plena Inglês e Letras Bacharelado em Tradução e Interpretação pela PUCRS. Mestrou-se e doutorou-se em Lingüística e Letras pela PUCRS com a dissertação Escolha do livro-texto de língua estrangeira, e com a tese A ordenação de sujeito, verbo e objeto no discurso narrativo de crianças de 4 a 6 anos . Na Universidade de Nova Iorque, EUA, cursou pós-doutorado.

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IHU Repórter

Republicamos a entrevista feita com o Prof. Dr. Sílvio Cazella. A entrevista da semana passada foi publicada com erros de informação. Pedimos desculpas ao entrevistado e aos leitores e leitoras.

Sílvio César Cazella

Um apaixonado por biologia que entrou para a academia pela via inversa. O amor pela natureza foi herança da avó que o ensinou a cuidar qualquer forma de vida, animal ou vegetal, por mais simples que pudesse parecer. O curso dos sonhos de criança foi adiado, mas não descartado. Ainda é um projeto a ser pensado. A vida tomou outros rumos, oportunidades foram surgindo e nasceu uma segunda paixão, todavia, não menos importante. A tecnologia o seduziu e hoje é mestre e doutorando em Ciência da Computação. Estuda áreas como sistemas de recomendação, webmining e sistemas multiagentes, além de trabalhar como analista e projetista de sistemas de informação estruturados e orientados a objetos. A essas atividades se somam duas outras: aulas ministradas nos cursos de informática e coordenação do curso de Ciências da Computação da Unisinos. A racionalidade exigida para desempenhar tais tarefas não se sobrepôs à sua sensibilidade. O que gosta de ganhar de presente? Plantas que possam ser replantadas. Nunca plantas cortadas ou flores!!

Origens – Nasci e vivo em Porto Alegre. Sou descendente de italianos. Meus bisavós vieram da região de Vicenza, comune de Sarego e se situaram em Santa Maria, isso em 1890. Curioso que parte da Universidade Federal de lá foi construída num terreno que foi deles. Minha mãe, Siglia Maria Cazella, era professora e hoje está aposentada, e meu pai, Sergio Cazella, é militar da reserva. Meu irmão, Sérgio Ery Cazella, sete anos mais velho do que eu, também é um profissional da área de tecnologia e foi um dos responsáveis por despertar meu interesse.

Trajetória profissional – Costumo dizer que sou um biólogo frustrado. Este era meu curso dos sonhos desde criança, porém, acabei me apaixonando por tecnologia e resolvi me dedicar à área o que não impede que futuramente eu decida ainda fazê-lo. No final da década de 1980, tive o meu primeiro contato com computadores, ainda

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como curioso, e resolvi fazer a graduação em Informática. Percebi que esta profissão me abriria oportunidades de trabalho fora do País e era isso que queria à época. Este foi um dos motivos pelos quais fiz o mestrado e estou fazendo o doutorado em Ciências da Computação. Era uma área que estava criando asas, vi naquelas máquinas simples que tínhamos grandes possibilidades futuras. Quis saber como aplicar, como utilizar e como obter ganhos com tecnologia. Tive a oportunidade de estudar e fazer estágios e intercâmbio como profissional no exterior, em países como Dinamarca, EUA e Canadá. Durante o período que estive fora, vi que não temos nada a dever em tecnologia. Lógico, eles têm mais recursos, todavia, podemos falar a mesma língua e isso desperta a vontade nos jovens de querer encontrar essas portas abertas e poder fazer essas descobertas. A universidade surgiu na minha vida como uma oportunidade impar. Considero um talento um professor conseguir dar aula e ser um bom educador. Dar aula, educar e ver que o aluno aprendeu e saiu para o mercado, fazendo um trabalho de qualidade, é muito compensador.

Influências – Aprendi a gostar de tecnologia um pouco pela competência do meu irmão neste campo. Ele também tem suas frustrações, queria fazer Física e ainda quer concluir o curso. Hoje entendo que a computação é integradora e desafiadora, ela pode agregar várias outras áreas. No início, tinha-se a idéia que se poderia controlar tudo através de um CPD. Hoje tivemos que sair da sala, atender os outros, falar outras línguas e negociar com outros setores. Atualmente vejo como uma área muito interdisciplinar.

Dica – O estudante tem a possibilidade de se tornar, aqui na Universidade, um profissional altamente qualificado em tecnologia. É importante, porém, que esse profissional cresça sendo humilde, deve ter a consciência que por mais que ele aprenda ainda será pouco. É uma profissão em constante movimento e para se dar bem é imprescindível ser curioso e aceitar desafios e essas mudanças bruscas de empresa e de mercado.

Lembranças de infância – Minha avó era muito ligada à natureza e à qualquer forma de vida, seja animal, seja vegetal. Aprendi muito com ela sobre a importância do verde, da preservação e do cuidado com o meio ambiente, por isso me defino como um biólogo frustrado. A menor forma de vida era importante para ela, essa é uma lembrança muito marcante e que procuro preservar.

Meta – Diria que como professor quero continuar sempre aprendendo e ter condições e oportunidade de estar sempre ensinando. É uma troca constante, quero continuar conseguindo que meus alunos estejam sempre aprendendo e também me ensinando, quero conseguir sempre manter essa dinâmica Não quero jamais imaginar que sou o detentor do conhecimento e não dividir mais, quando isso acontece se deixa de ser educador. É preciso ter o discernimento de saber quando você tem que aprender e quando pode ensinar. Quero conseguir manter esse equilíbrio.

Autor – Lya Luft e Cora Coralina. Tenho gostado muito da obra delas, principalmente por falar em mudanças, ou em perdas e ganhos que temos com o passar dos anos.

Livro – A Revolução dos Bichos , de George Orwell. Acho que esse livro não poderia deixar de ser lido por nenhum brasileiro. Também indico A Montanha Mágica , Thomas Mann.

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Presente – Plantas. Quando recebo sei que é um presente que vai durar por muito tempo.

Unisinos – A Unisinos tem, no meu entender, um grande zelo pela educação, pela qualidade. Vejo que a Universidade foi pressionada por modificações socioeconômicas bem claras que a fez precisar atualizar-se para não desaparecer. Não existem mudanças sem sacrifício e sem dor, as modificações são difíceis, mas necessárias. É uma instituição que está num mercado que sofre grandes modificações. O governo criou possibilidades para que surgissem várias outras instituições de ensino superior que estão ainda engatinhando e tentando ganhar espaço, e isso gerou um mercado de extrema disputa.

Instituto Humanitas Unisinos – Conheço muito pouco sobre o Instituto, mas acho que o IHU foi uma grande criação na Universidade. Acredito que já faça parte dessas modificações de que falei.

Cartas do leitor

Prezados colegas,

As publicações dos artigos na Revista IHU, que aparece semanalmente, são de excelente qualidade e alto nível intelectual. Vocês estão de parabéns. Eu estou fazendo propaganda ente os alunos e professores do ITESC e recomendo a leitura e o estudo dos artigos. Grande impacto me causou o conjunto dos artigos da semana passada "Paulo de Tarso e a Contemporaneidade" e desta semana "América Latina: Um giro à esquerda". A abordagem do assunto é de interesse em assuntos, visando ao aprofundamento da matéria e que tenham "mordência" atual, sem enveredar pela tangente da novidade, crítica destrutiva e irreverência, como acontece em abordagens por escritores (do tipo de Gore Vidal). Os artigos sobre São Paulo são de peso e de respeito à doutrina e mensagem do grande apóstolo e autor inspirado das Cartas Paulinas.

Saudações cordiais,

Pe. Luís Stadelmann, SJ – Florianópolis – SC

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