20º Congresso Brasileiro de Sociologia, 12 a 17 de julho de 2021 UFPA – Belém, PA

Comitê de pesquisa 02 - Ruralidades e Lutas sociais no campo

Pensando sobre os sentidos da terra para os agricultores cariocas

Ketyline Pimenta Genaro

Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade Federal Fluminense.

Pesquisa fomentada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) O presente artigo tem como objeto as agriculturas cariocas, com recorte específico para a relação entre os agricultores e a terra. O objetivo é trazer algumas reflexões sobre a multidimensionalidade de sentidos da terra para esses agricultores. A metodologia baseou-se no trabalho de campo a qual possibilitou que aqui laçássemos mão do artifício comparativo trazendo dois exemplos de experiências de agricultura em diferentes locais da cidade, a qual acompanhamos. A comparação nos permitirá enxergar o caráter multidimensional citado anteriormente. Como respaldo teórico traremos dois autores principais: Beatriz Heredia (1979) e João Marcelo Maia (2008), pois foram seus trabalhos que inspiraram este texto, mas também traremos outros referenciais que nos permitem pensar sobre o contexto que essas terras estão inseridas e a articulação dos agentes sociais na luta por elas. Heredia (1979), traz no início de seu trabalho a fala de um pequeno produtor que remonta o sentido de continuidade, de riqueza, de produtividade, de valor que ele dá para a terra, que de certa forma inspirou este artigo. Já Maia (2008), comenta que grande parte dos estudos que se dedicam a pensar as “imagens espaciais” no Brasil, se voltam para o olhar ao sertão, esse texto não foge à regra, já que um dos exemplos que serão trazidos trata justamente da região que outrora fora chamada de Sertão Carioca. A noção de terra como algo multidimensional1 é algo que possibilitou fazer algumas pontes entre os autores e relatos de agricultores de diferentes locais e épocas, da cidade do , que atribuem significados a esse espaço. A terra pode ser local de origem, de nascimento, de migração, de produção, de plantação, de luta, de resistência, de vida. Seja qual sentido o sujeito atribua a ela, ou mais de um, a terra pode carregar um peso que está para além de ser um amontoado de matéria em um espaço geograficamente definido, mas adentar um espaço de identidade, de trajetória, de ressignificação e se tornar um espaço político. Aqui traremos dois exemplos de diferentes significados, atribuídos por diferentes atores, em diferentes locais e tempos, da cidade carioca, mas todos

1 Multidimensionalidade se refere aos múltiplos usos, significados e sentidos que a terra pode adotar a depender de quem atribui. A terra como algo que não está encapsulado pela tradição ou mesmo pela fixidez do espaço, mas sim como um conceito polissêmico. Maia (2008), pensa numa metafísica da terra, uma forma de investigação das realidades que transcendem a experiência sensível, e não como algo plasmado. perpassados pela perspectiva da agricultura. O primeiro caso a ser aqui mostrado trata-se do Sertão Carioca, brevemente descrito a seguir. Desde meados do século XVI há registros de uma produção agrícola feita no espaço que hoje compreende a Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro (ABREU, 2006). Maurício de Abreu (2006), escreve sobre os engenhos na capitania do Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII, onde ele segmenta o território do Estado do Rio de Janeiro em oito áreas de produção agrícola, dentre elas estão: a área 2, que corresponde a Baixada de Jacarepaguá, e, a área 5, que corresponde a Campo Grande e , entre os maciços da Pedra Branca e do Mendanha. Ele apresentou dados da existência de onze engenhos na Baixada de Jacarepaguá e mostram que eles existiam nessa quantidade desde 1690. Em 1933 o naturalista Magalhães Corrêa (1933), viria a chamar essas terras de “Sertão Carioca”, para ele o termo designava as freguesias rurais da cidade e onde era possível encontrar a agricultura. A paisagem do Sertão, como encontramos nos registros, era formada por vastas áreas de floresta, rios, brejos, encostas e serras por onde as casas e cultivos se espalhavam, nas partes mais baixas eram encontradas as lavouras mistas, cultivo de laranja e chuchu, um pouco acima encontravam-se os bananais (SILVA, 1958; BERNARDES, 1959). Mais à frente alguns teóricos e pesquisadores do Sertão, como Manuela Pedroza (2003), viriam a alargar o uso desse termo levando até a Baixada Fluminense,

[...] A gênese da palavra sertão é desertão, terras desertas não porque nada nelas brotasse, mas porque, para os colonizadores, eram terras ainda não dominadas, não lucrativas e, portanto, vazias de significado. Os sertões cariocas serão, portanto, terras vazias de significado tanto para o Estado quanto para o capital agroexportador e especulativo no momento em que se instalaram os posseiros, mas que, num momento posterior, passarão a ter significado para seus supostos proprietários, e serão requeridas, gerando conflitos violentos [...]. (PEDROZA, 2003, p. 250-251)

Os escritos de Pedroza (2003) mostram que por volta de 1938 cerca de cinco mil famílias foram ameaçadas de despejo por conta da construção de loteamentos em diversos locais da Baixada Fluminense, a resistência a esses despejos foi a forma mais comum de luta durante as décadas de 40, 50 e 60. A existência dos conflitos de terra nessa região corroboram com as reflexões feitas a partir dos textos de Heredia (1979) e Maia (2008) quando dizem que diferentes significados atribuídos por diferentes sujeitos à terra, possivelmente a insere no centro de uma gama de conflitos de interesse, isso, pois, “terra” é um conceito polissêmico, de múltiplos sentidos para diferentes sujeitos, algo que caracteriza a gênese do conflito. Pedroza (2010), conta que em meados de 1938 iniciaram-se, a mando do governo federal, obras de drenagem e saneamento em cidades da Baixada Fluminense, mais precisamente nos municípios que ficavam mais próximos da cidade do Rio de Janeiro, visando melhorar a salubridade e facilitar a colonização. Essas obras coincidiram com um período de migração massiva para a cidade do Rio de Janeiro, que gerou uma alta no preço dos alugueis do centro da cidade e levou essa população a se instalar nas periferias e município vizinhos, assim, as obras que, segundo a autora, poderiam incentivar a produção agrícola, acabaram por aumentar a especulação para o loteamento urbano e a disputa dos grandes proprietários pelas terras dessa região. A escassez de terras nas regiões centrais da cidade fez com que o Sertão Carioca passasse por um período de valorização, não pela sua agricultura, mas por sua extensão territorial que despertava interesse para loteamento. Embora existisse uma legislação que falavam em privilegiar a produção agrícola, a realidade causada pela migração contradizia o que estava posto na legislação (PEDROZA, 2010). Segundo Pedroza (2010), o cenário levou ao surgimento de uma camada de pequenos lavradores que foram a origem da resistência organizada frente aos despejos que ameaçava cerca de 5 mil famílias a serem retiradas de seus locais de moradia por conta dos novos loteamentos. A autora mostra que a resistência a esses despejos foi a forma mais comum de luta durante as décadas de 40, 50 e 60. Os posseiros se organizavam em mais de uma modalidade de ação em sua luta contra os despejos, segundo a autora, resistiam à violência de jagunços e policiais, recorriam às autoridades, promoviam manifestações públicas, abaixo- assinados, pressionavam políticos e denunciavam arbitrariedades dos grileiros nos jornais. Para ela, a resistência à expulsão foi uma resposta à pressão externa, não foi prevista, foi necessária, e aos poucos pelo aprendizado e troca política, adquiriu caráter estratégico e oficial nos casos de desapropriações (PEDROZA, 2010). À terra fora atribuído mais de um significado, era ao mesmo tempo, local de moradia, de trabalho, cultural, de vida e algo pelo qual se devesse lutar, o que incentivou a organização política dos agricultores que viviam nesse espaço. O sentido de luta pode adotar diferentes significados a depender do contexto e de quem opera o termo, como mostrou John Comerford (1999) o termo pode ser associado a sofrimento, denúncias, reflexões, enfrentamento, mobilizações e ações jurídicas e políticas. O caso do Sertão Carioca remonta uma série de ações que causaram profundas transformações na então zona rural da cidade e na vida dos agricultores que ali estavam e que por conta disso, tiveram de se organizar e lutar pelo seu território não só por meio de ações pontuais, mas também no cotidiano. Nas palavras de Comerford (1999):

[...] luta é uma noção que qualifica a experiência cotidiana de pessoas que foram atingidas de forma muito desfavorável por processos de transformação no campo e passaram a viver precariamente como assalariados temporários, parceiros em situação muito instável ou tiveram uma difícil experiência de migração. (COMERFORD, 1999, p. 24)

A organização política dos lavradores cariocas foi paralela e dependente de mudanças políticas no, até então, Estado do Rio de Janeiro (PEDROZA, 2010), passou por fases que foram influenciadas por seus comandantes políticos que nem sempre favoreciam a resolução dos conflitos de terra. Até 1950, com o Decreto-lei de 10 de novembro de 1944 até 1950, somente o sindicato de empregados rurais era oficialmente reconhecido, e este excluía arrendatários, posseiros, pequenos proprietários do direito de se organizarem, foi então que setores de esquerda e as Ligas Camponesas2, passaram a incentivar o trabalho político com os trabalhadores rurais e formar organizações camponesas. A falta de organização desses camponeses até então, não os eximiu de sofrer pressões dos mecanismos de poder (PEDROZA, 2010), na verdade, sua organização era apenas feita fora do Estado e foi consequência da dominação que incidia sobre eles. No Sertão Carioca os lavradores defendiam suas terras e o direito de produzir nelas da forma como

2 Forma de organização camponesa datada de muitos séculos. Destaque para as Ligas Camponesas da Alemanha que desempenharam papéis importantes que deram origem a guerras no século XV e XVI (JULIÃO, 1917). No Brasil, as Ligas camponesas participaram dos principais movimentos de resistência durante a ditadura militar (SIGAUD; ROSA; MACEDO, 2008). eles viam as coisas, a novidade foi quando eles resgataram antigos princípios – suas lembranças de direitos e representações de justiça que conheciam – e os atualizaram para a nova situação de luta, culminando em reivindicações que foram incorporadas à legislação muito tempo depois (PEDROZA,2010). Percebemos que, tal qual a terra do pequeno produtor da Zona da Mata Pernambucana, era para ele algo pelo qual se deveria lutar (HEREDIA, 1979), as terras do Sertão Carioca davam aos agricultores o mesmo dever, afinal, toda sua unidade familiar e produtiva estava concentrada ali, que passara a incorporar esse sentido político que constituiu toda uma história de conflitos. A ideia de terra como permanência, que Maia (2008) comenta encontrar na literatura brasileira, é colocada em dúvida quando os ideais de modernização e urbanização comprimem os espaços outrora considerados rurais, já que a permanência é ameaçada por esses ideais. Também nas terras do Sertão Carioca a permanência não é algo definitivo, mas algo que se deve reconquistar, a custo de luta, conforme os impasses de seu tempo. Ainda hoje, conforme vão sendo atribuídos novos sentidos a um determinado espaço, encontramos pessoas mobilizadas em defesa de seu território, por exemplo, os moradores que se encontram no entorno do Parque Estadual da Pedra Branca3, passam por problemas causados pelo sentido turístico que fora atribuído ao PEPB e que atravessa sua terra e sua vida. Em fala colhida com uma agricultora, moradora do entorno do Parque, em Campo Grande, ela recuperou um pouco da história do Sertão Carioca e a atualizou dizendo que:

Os carvoeiros eram negros sujos e moravam no meio do mato, não por acaso a história se repete com a nossa agricultura e os nossos agricultores nesse processo de invisibilidade. [...] A paisagem conta a história, uma floresta construída socialmente, não é só o ecossistema, uma natureza, nós estamos falando de pessoas que viveram e vivem nesse lugar. A paisagem é um processo histórico e a floresta construiu a cidade. Agora a floresta tem um outro uso, um uso de lazer, pratica desportiva...teve um agricultor que um dia acordou com um grupo fazendo uma trilha no sítio dele, em cima das coisas que ele planta, então quer dizer, não é identificado, não

3 O Parque Estadual da Pedra Branca, compreende parte do Maciço da Pedra Branca, nele está a maior floresta urbana da América Latina, segundo o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), e passa pelos bairros de: Jacarepaguá, Taquara, , , Vargem Grande, , , Padre Miguel, Bangu, Senador Camará, Jardim Sulacap, , Santíssimo, Campo Grande, , Guaratiba e , na zona oeste do Rio. Parte do PEPB está dentro do que fora chamado de Sertão Carioca, por isso citado neste trabalho. é percebido. Do carvoeiro para o agricultor a gente vê esse processo se repetindo. A nossa agricultura é espaço de existir e resistir. (Agricultora e membra da Rede Carioca de Agricultura Urbana, 2019)

A fala nos remete aos escritos de Heredia (1979) quando fala dos sentidos de continuidade da terra, embora ela não seja algo permanente e sim algo pelo qual se está sempre lutando para permanecer, ela tem o sentido de continuidade imbricado nas trajetórias, nas histórias resgatadas, reivindicadas e ressignificadas. Nos dias atuais, o próprio termo “Sertão Carioca” tem sido reinventado e apropriado pelos “sertanejos” em uma série de ações afirmativas que ressignificam essas terras:

[...] o Sertão Carioca vem sendo revisitado e costurado por um pensamento simbólico que reúne dimensões cosmológicas, mágico-religiosas, sociais e morais. Como categoria, o Sertão Carioca reúne heranças culturais, religiosidade, saberes culinários, apreensões com o meio ambiente e resistências sociais [...] (CÁCERES, 2019, p. 8)

A luta pela terra rendeu ao sertão o status de categoria político-ideológica carregada de sentidos e trajetórias que recontam o passado, se reconstroem e apontam os próximos passos, além de remeter ao histórico de luta que ainda hoje permanece. Se a terra não carrega tamanha fixidez de permanência por conta das disputas a sua volta, a luta por ela traz essa constância e cria cada vez mais agentes políticos em defesa de seus espaços. Não somente a terra tem caráter multidimensional, a própria agricultura também é multidimensional e se faz de diferentes formas e por mais de um motivo, se no Sertão Carioca, ela é historicamente ligada ao comércio, subsistência e até forma de resistência, na direção do que colocou Santos (2011), quando diz que o cultivo de hortaliças era o único capaz de resistir frente a urbanização, em outras áreas o sentido político da terra também aparece e tendo a agricultura como ferramenta de possibilidade de emancipação e de resistência. Se para os agricultores essas terras tinham sentidos de produção, moradia e posteriormente sentido político, por outro lado, para a especulação imobiliária o sentido dessa terra era promover a urbanização, a modernização forçada e o lucro, esvaziando esse espaço de sentido moral, cultural e político. No segundo exemplo a multidimensionalidade da agricultura e da terra também aparecem, o que trago aqui é o exemplo do Verdejar Proteção Ambiental e Humanismo, uma organização sem fins lucrativos que atua na cidade do Rio de Janeiro desde um pouco antes dos anos 2000. Ele surge em 1997 de uma iniciativa de moradores do bairro de Inhaúma (entre a Serra da Misericórdia e o Morro do Alemão), na favela Sérgio Silva, como um movimento comunitário, e em 2004 se funda enquanto ONG (BARROS, 2013), com o objetivo de compartilhar saberes e experiências que contribuam para a valorização, recuperação e preservação do Maciço da Serra da Misericórdia, segundo dados encontrados no site4 do mesmo. Suas ações se baseiam em temas como: agroecologia urbana, gestão ambiental comunitária e cultura, tendo como área de atuação a Serra da Misericórdia, que se localiza entre o Maciço da e a Baía de Guanabara, como vemos, esse exemplo já introduz novos sentidos para a terra e para agricultura através da característica urbana e da iniciativa voltada para questões ambientais. A Serra da Misericórdia traz uma dinâmica um pouco diferente pois é um exemplo de agricultura que reivindica sua urbanidade, ela está inserida em um contexto de favela e leva para este local uma produção agrícola que, segundo falas colhidas em campo, se contrapõe aquilo que socialmente se imagina desse espaço, trazendo atividades agrícolas e culturais que mostram outras realidades possíveis, além de contribuir para a preservação da área de Mata Atlântica existente neste local,

Geralmente as pessoas imaginam esse espaço como um lugar de tiroteio e violência, nós viemos trazer o outro lado da moeda. A Zona Norte AP3 é a área que tem menos proporção de área verde por habitante, segundo os dados de 2010, era cerca de 3,74 metros por habitante, mas agora a prefeitura está trabalhando com um dado de menos de 1, a gente não sabe se a Serra da Misericórdia é reconhecida como área verde. É engraçado porque essa também é a área onde existe a maior proporção de pessoas morando em áreas não urbanizadas, uma comunidade que vive em interface com esse verde que é reconhecido ou não é reconhecido... está bem na linha dessas questões fundiárias. Nas linhas de transmissão não pode haver construções, essas são todas áreas de agricultura da Serra da Misericórdia, e não só nas áreas verdes

4 https://www.verdejar.org/ visíveis. (Morador da Serra da Misericórdia e membro do Verdejar Socioambiental, 2019)

Um dos motivos que inspirou a criação do Verdejar foi o receio de que aquelas áreas fossem tomadas pela favelização, o grupo, através do debate sobre ecologia trazido por um de seus fundadores, Luiz Poeta5, e depois disseminado pelo grupo (BARROS, 2013), tinha esta bandeira como mote de atuação. Dentre as aspirações do Verdejar, segundo Barros (2013), está a reivindicação da desativação de três pedreiras que existem na Serra da Misericórdia, por causarem a poluição local. Como um dos resultados, tiveram que, no ano de 1999, através do Decreto Municipal nº. 19.14446, de novembro de 2000, culminou com a criação de uma Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana, na Serra da Misericórdia (BARROS, 2013). Além disso, o Verdejar também se envolveu na luta contra um grupo de grileiros que ocuparam uma grande área da Serra (BARROS, 2013). Vemos que os conflitos causados pelos grileiros não são algo que ficaram para trás e nem presos nas áreas do Sertão Carioca, ele prossegue ao longo do tempo e adentra outros espaços fazendo com que, décadas depois, ainda seja necessária a organização de luta contra as tais. As falas nos levam aos escritos de Bourdieu (2013) quando formulou suas considerações sobre “Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado”, para ele, os indivíduos são, ao mesmo tempo, biológicos e sociais, e isso acontece como resultado da relação entre pessoa e espaço social, em seguida, o “lugar” seria o espaço onde um agente se situa (localização ou posição), já o “local” tem a ver com a dimensão ocupada por um agente (alcance). Os agentes sociais se encontram em um lugar do espaço social que se caracteriza pela sua posição e distância em relação aos outros, por consequência, o espaço social traduz-se então no espaço físico, ou seja, o arranjo distributivo entre agentes e propriedades (BOURDIEU, 2013) ou suas terras, para pensar nos termos deste artigo. Cada agente se caracteriza pelo lugar (domicílio) em que está situado e pelos locais temporários (posições, locais de honra) ou permanentes (endereço privado e/ou profissional)

5 Luiz Marins, o Luiz Poeta (1957-2011), ficou assim conhecido por toda a cidade do Rio de Janeiro por seu hábito de compilar suas experiências em versos que recitava àqueles que iniciava na preservação da Serra da Misericórdia (MORELATO, 2019, p. 3). 6 Cria a área de proteção ambiental e recuperação urbana da Serra da Misericórdia. que ocupa, na sequência, o autor fala daquele que se encaixa nos casos aqui expostos, o agente se caracteriza também pela posição que ocupa, como por exemplo: suas terras, de cultivo, de moradia, de luta. Nessa lógica entendemos que esse indivíduo que historicamente vive em seu espaço social cultivando em suas terras, tem uma identidade, tornando-se, portanto, o camponês, o agricultor, termos que remetem aos seus ofícios, modos de vida, espaços de circulação. Esse processo pode ser nitidamente compreendido quando vemos a reconstituição histórica da atividade agrícola nos sertões, quintais e favelas cariocas e, a necessidade também histórica, desses agricultores em se organizarem politicamente para garantir o direito às suas terras frente a ameaças, institucionais ou não, que os arrebataram (grilagem, loteamentos, expansão urbana, transformação de parte do maciço em parque, perda de espaços institucionais, dentre outros). Bourdieu (2013), diz-nos que o espaço físico, inscrito no espaço social, só pode ser alterado às custas de um “trabalho de transplantação”, de mudança, de desenraizamento, de deportação de pessoas, logo, se, considerarmos os exemplos trazidos, poderemos encontrar vários momentos que se encaixam nessa tentativa de transplantação do espaço físico.

Considerações finais

Como considerações finais sintetizo algumas reflexões. Primeiramente foi possível compreender que cada grupo tem um entendimento sobre o significado da terra, esse significado pode ser erudito ou popular, o primeiro diz respeito à concepção encontrada da literatura e na historiografia, o segundo, ao que os sujeitos da comunidade, dotados de sabedoria popular e tradicional, atribuem a ela. No primeiro exemplo, sobre o Sertão Carioca, podemos considerá-lo como exemplo da significação de “terra” no sentido “erudito” já que tratamos de um período distante através daquilo que pensadores sobre o tema escreveram dele. Já o segundo exemplo, da experiência de plantio na Serra da Misericórdia, se assemelha mais com a concepção popular da terra, isso pois, a iniciativa do plantio naquele espaço surgiu de mobilização popular e os registros são de uma experiência remontada e contada por eles próprios conforme o seu entendimento daquele local. Em segundo lugar, temos que quando João Marcelo Maia (2008), logo no início de seu texto, diz que “a lógica espacializante não implica em resistência a modernização, e sim aponta para a caracterização de distintas formas de ajuste social ao capitalismo e ao Ocidente” (MAIA, 2008, p. 1), entendemos que, no caso dos agricultores cariocas podemos pensar que o avanço da urbanização e da modernização da cidade está diretamente ligado à extinção de áreas rurais que, por vezes, no próprio pensamento social brasileiro fora tratado como o local do atraso, se o Sertão era rural, ele precisava se modernizar e isso seria feito a partir da urbanização dessas áreas, a relação entre espaço e modernidade é central no trabalho de Maia (2008) e instrumentaliza essa reflexão. Embora a urbanização tenha enfraquecido essa agricultura ela não deixa de existir, é aí que a agricultura escorre pelos vãos e passa a existir em pequenas unidades de produção não só no Sertão Carioca, mas em espaços como, por exemplo, as favelas, vide o exemplo da Serra da Misericórdia, é esse movimento que gera a multidimensionalidade da agricultura, ela deixa de ser algo localizado e passa a existir em forma de hortas urbanas, hortas comunitárias, quintais produtivos e até uma pequena produção de base familiar, alguns locais até lançam mão da horta como alternativa de embelezamento de locais turísticos, esse é um exemplo básico daquilo que Maia (2008), chamou de “ajuste social ao capitalismo”, o capitalismo se apropria das hortas para um fim voltado ao lucro obtido por meio do turismo. Por fim, Maia (2008) diz que as “alegorias espaciais” encontram personagens e formas de vida dinâmicas capazes de fazer a passagem para a modernidade, podemos pensar que quando os agentes tanto do Sertão Carioca quanto da Serra da Misericórdia se apropriam daquele espaço para imprimir nele a forma que querem o (re)construir, a passagem para a modernidade tem sua ponte construída. A agricultura deixa de ser a atividade praticada no meio do espaço de “atraso”, se reinventa, alarga seus espaços, sem esquecer sua trajetória e identidade e imprime nos espaços a ressignificação de uma terra carregada de conflitos de sentidos dados por diferentes sujeitos. Por tais motivos, concorda-se assim com Maia (2008) quando diz que essas formas não são apenas essências desajustadas ao tempo.

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