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Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos científico-sociais proeminentes na educação comparada

Karin Amos Universität Tübingen

Resumo

Contrapondo-se ao retrospecto da existência de uma relação volátil entre o Estado e “seu” sistema educacional, este trabalho enfoca dois conceitos que podem ser empregados como ferramentas de análise para estudar as transformações em curso. O termo “governança” está mais relacionado a aspectos técnicos: tratam-se de instrumentos e modos, procedimentos e atores, além de suas constelações e formas de cooperação. Ele concentra a pesquisa em questões como: quem oferece serviços educacionais, qual é a rela- ção entre ensino público e privado etc. Ele também é extremamen- te útil na investigação da relação entre os diversos níveis de análise e provou-se particularmente importante para a compreensão teóri- ca adequada do papel das organizações internacionais na formula- ção de políticas educacionais. A sociologia e a ciência política são duas disciplinas cuja associação se mostra mais notável na elabora- ção do conceito sob diversas perspectivas. “Governamentalidade”, por sua vez, apesar de compartilhar muitas características com governança, é um termo foucautiano dedicado à geração de sub- jetividades distintas por meio de técnicas e modos de regulação e conduta em sentido lato. Assim, governamentalidade inclui inves- tigações do nexo tipicamente foucautiano conhecimento/poder. Consideramos ambas as perspectivas em conjunto para discutir suas implicações para a educação comparada.

Palavras-chave

Governança — Governamentalidade — Política educacional — — Governança educacional.

Correspondência: Prof. Dr. Karin Amos Institut für Erziehungswissenschaft Allgemeine Pädagogik Münzgasse 22-30 72070 Tübingen - Alemanha e-mail: [email protected]

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 23 and : relation and relevance of two prominent social scientific concepts for comparative education

Karin Amos Universität Tübingen

Abstract

Against the background of a changing relation between the state and “its" education system, the present contribution focuses on two concepts that can be used as analytical tools in order to analyze the current transformations. “Governance" is more concerned with technical issues: with instruments and modes, procedures and actors, with their constellations and forms of cooperation. It focuses research on questions such as: who provides educational services, what is the relation between public and private education etc. It is also very useful in investigating the relation between the various levels of analysis and has proven particularly useful for an adequate theoretical understanding of the role of international organizations in shaping educational po- licies. Sociology and political science are the two disciplines most prominently associated with elaborating the concept under various perspectives. Governmentality, on the other hand, although sharing many characteristics with governance, is a Foucauldian term concerned with the generation of different subjectivities through techniques and modes of ruling and guiding in an encompassing sense. Governmentality thus includes investiga- tions of the typical Foucauldian knowledge/power nexus. Both perspectives are brought together to discuss the implications for comparative education.

Keywords

Governance — Governmentality — Education policy — Foucault — Educational governance.

Contact: Prof. Dr. Karin Amos Universität Tübingen Institut für Erziehungswissenschaft Allgemeine Pädagogik Münzgasse 22-30 72070 Tübingen - Alemanha e-mail: karin.amos@uni- tuebingen.de

24 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 Governança e governamentalidade deno- a Teoria do Regime Internacional deve ser men- tam dois conceitos originados em tradições dis- cionada (Rittberger 1993; Hasenclever et al., ciplinares e intelectuais distintas que comparti- 1997), assim como suas apropriações pela edu- lham uma questão central: a problemática de cação comparada (Parreira do Amaral, 2007; direcionar, regulamentar, governar, conduzir etc. Radtke, 2006). na sociedade moderna – tendo em vista os in- Assim como é possível esboçar uma defi- divíduos, as organizações, os sistemas, o Estado nição geral de governança, também podemos e a própria sociedade como um todo. estabelecer uma distinção entre seu sentido am- O debate sobre governança é provenien- plo e seu sentido estrito. Em sentido amplo, te da ciência política e das ciências sociais e governança refere-se aos diferentes mecanismos foca as mudanças ligadas às novas constela- empregados para conferir ordem à população de ções das relações do Estado com os interesses atores, por adaptação, negociação, ordem e obe- sociais no sentido mais amplo possível. Sob diência; em sentido estrito, governança refere-se essa perspectiva, governança adquiriu o status às diferentes formas de ação resoluta voltada a de novo termo para analisar essas mudanças preocupações coletivas (Mayntz, 2009, p. 8). As tanto no contexto interno de um Estado-na- estruturas em forma de rede da governança e a ção como no âmbito das relações internacio- área movente das constelações específicas de nais. atores na política social e educacional levaram ao Uma explicação sucinta da origem e do levantamento de diversas questões voltadas, por desenvolvimento do termo nas respectivas dis- exemplo, a aspectos da legitimidade e autorida- ciplinas acadêmicas, i.e., na sociologia e na de (veja também Radtke nesta edição). ciência política, foi oferecida em um curto ar- A razão que levou governança a se tor- tigo por Renate Mayntz (2004; 2009). Nele, a nar um termo importante na política e na pes- autora esboça cada perspectiva e caracteriza os quisa educacional está ligada a mudanças pro- distintos contextos disciplinares refletidos nas fundas na área da educação. Essas mudanças diferenças entre os sentidos centrados no ator envolvem especificamente os instrumentos e os e aqueles centrados na instituição; ela enfatiza, meios de direcionamento, as novas formas de ainda, que “governança” e “direcionamento” proporcionar e organizar os serviços educa- não são conceitos idênticos. A autora reitera cionais e o surgimento de novos atores na po- que a governança é mais ampla, englobando lítica educacional. não só questões estritamente de Em um contexto extremamente diferente, direcionamento, mas também questões mais posicionado nos interstícios de diversas disciplinas complexas de regulamentação. A discussão so- típicas de sua obra, o termo “governamentalidade” bre governança também está ligada às voláteis foi cunhado por (1991) e poste- relações entre os níveis nacional e internacional, riormente assumiu um campo interdisciplinar que porém a adoção do termo governança nas re- se tornaria conhecido como estudos de gover- lações internacionais segue tradições disciplina- namentalidade, um rico e ramificado empenho in- res próprias. Um marco do emprego de telectual internacional de teorização e pesquisa governança nesse contexto é, sem dúvida, (para uma panorâmica crítica, veja Lemke 2007, p. Governance without government: order and 47-64; para uma panorâmica descritiva, veja change in world (Governança sem go- Fimyar, 2008). verno: ordem e transformação na politica mun- Esse termo denota uma preocupação dial, Brasília, Editora UnB, 2000), obra de com a problemática geral de regulamentar, Rosenau e Czempiel publicada em 1992; ela direcionar e governar nas sociedades modernas gerou uma preocupação generalizada com as em todas as principais áreas do Estado, o que questões de governança global. Nesse cenário, inclui a economia, o oykos, isto é, a família e

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 25 as crianças – tendo em vista tanto a coletivi- cias, ficou bem claro que Foucault não havia dade como cada indivíduo, que pode ser sub- feito apenas algumas poucas e esparsas refe- metido a técnicas autoaplicáveis. Sua origem rências ao elaborar seu neologismo como termo foucaultiano já indica que “gover- gouvernementalité, mas delineou sistematica- nabilidade” possui raízes filosóficas e históri- mente um campo de investigação. É caracte- as muito amplas e ricas; esse é um termo de rístico da abordagem de Foucault uma concep- meta-análise que pode ser empregado para ção da sociedade e de suas instituições que refletir criticamente sobre os resultados da relaciona o domínio político ao subjetivo. O pesquisa sobre governança. termo governamentalidade é o elo perdido Foucault nos oferece uma definição entre os dois principais projetos de Foucault sucinta de governamentalidade: após Vigiar e punir: o primeiro é a genealogia do Estado moderno, e o segundo envolve 1. O conjunto formado pelas instituições, questões éticas, uma genealogia do sujeito. procedimentos, análises e reflexões, os cálcu- Com esse projeto, ele alcança o cerne da rela- los e as táticas que possibilitam o exercício ção entre pedagogia e política. de sua forma assaz específica, embora com- Como primeiro passo, basta dizer que plexa, de poder, que tem por alvo a popula- tanto governança como governamentalidade ção, por principal forma de conhecimento a têm por denominador comum o Estado e a economia política e por meio técnico essen- “estati-cidade”, ainda que os termos estejam in- cial os aparatos de segurança. 2. A tendência seridos em tradições e áreas de enfoque distin- que, por um longo período e em todo o tas. Uma última, porém importante, observação mundo ocidental, tem levado sucessivamente preliminar é que governança, principalmente no à superioridade desse tipo de poder, que sentido assumido nas relações internacionais, pode ser denominado governo, sobre todas considera o surgimento e a influência do nível as outras formas de poder (realeza, disciplina internacional ou transnacional indicativo de etc.), resultando, por um lado, na formação transformações significativas no entrelaçamen- de uma série completa de aparatos governa- to dos Estados e as respectivas implicações des- mentais específicos e, por outro lado, no de- sas novas configurações em áreas tradicional- senvolvimento de um complexo inteiro de mente consideradas focos de tarefas e obriga- salvaguardas. 3. O processo, ou melhor, o re- ções primordiais do Estado. Wolfgang Mitter sultado do processo, pelo qual o Estado de (2006) cunhou o preciso termo Nationale Justiça da Idade Média transformou-se no Es- Bildung-ssouveränität, i.e., soberania educaci- tado administrativo durante os séculos XV e onal da nação, para destacar essa relação. XVI e tornou-se gradualmente “governalizado”. Foucault faleceu bem na época em que os (Burchell/Gordon/Miller, 1991, p. 102-103) impactos e efeitos dessas mudanças começa- ram a se tornar evidentes e passaram a ser A história desse conceito foucaultiano é objeto de análises sociocientíficas. Assim, em- bem conhecida: as conferências no Collège de bora Foucault estivesse preocupado com a France em 1977 e 1978 foram enfim publicadas constituição específica do Estado moderno e na França em 2004 — a versão alemã surgiu das sociedades modernas, ele não transcendeu também em 2004 com o título Governmentality o nível da nacionalidade enraizada e não focou I e II; a versão inglesa surgiu em 2007 com um o nível internacional como algo digno de con- título elaborado, mas, também, mais ambíguo: sideração por si só. Security, territory, population (Segurança, terri- As seções subsequentes deste artigo tório, população), palavras presentes no título focarão a relação tradicional Estado — educação, em francês. Com a publicação dessas conferên- e na sequência levarão em consideração as trans-

26 Karin AMOS. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos... formações em curso. A tese principal consiste na educacionais — i.e., sua tendência a tornarem- intersecção entre as perspectivas da governança e se cada vez mais parecidos em uma série de da governamentalidade no ponto em que a cor- aspectos, o que não quer dizer que eles se respondência entre as estruturas de tornem cópias ou até mesmo idênticos — está direcionamento e governo do Estado e a condu- relacionado ao compartilhamento da mesma ta individual tornam-se aparentes. De modo mais cultura cognitiva. Entre as feições em comum específico, como discutiremos adiante, os meca- estão modelos de filiação, princípios de nismos regulatórios se tornam mais rígidos por racionalidade, conceitos modernos de individu- conta de ambos: dos sistemas e dos níveis indivi- alidade, de aperfeiçoamento individual e de duais. progresso social por meio da educação. Nesse ponto, parece apropriado retomar A Educação e o Estado: um nexo Foucault, pois os teóricos neoinstitucionalistas moderno focam primeiramente o fato de que as coleti- vidades e os indivíduos são produzidos por A relação entre a educação e o Estado meio da educação e não tanto como isso acon- é vital em nosso contexto. Ao pensar nas re- tece, quais são as técnicas empregadas e como lações educativas modernas, especialmente na a tensão entre as técnicas de individualização forma dos sistemas educacionais, é o e coletivização é administrada. Outra diferen- neoinstitu-cionalismo sociológico que propor- ça entre as duas perspectivas é o fato de que ciona alguns dos mais profundos insights para embora os neoinstitucionalistas e Foucault re- o entendimento da relação entre o Estado e conheçam a centralidade do Estado ao analisar “seu” sistema educacional. Em outras palavras, as relações sociais modernas — dentre as quais é inegável o mérito do neoinstitucionalismo a educação assume papel de destaque —, eles macrossocio-lógico, fenomenológico, ao intro- diferem entre si porque os neoinstitucionalistas duzir aspectos das estruturas relacionais entre não teorizam sobre o Estado, mas pressupõem a política, i.e., o Estado-nação, e a pedagogia. sua existência, ao passo que Foucault prioriza Da mesma forma que se pode dizer que o Es- a genealogia do Estado moderno. Torna-se, as- tado-nação segue um modelo, ou seja, que ele sim, claramente identificável um ponto em é caracterizado por certas feições universais, os comum entre as teorias da governança e da sistemas educacionais também podem ser des- governamentalidade por um lado, mas também critos como algo extremamente padronizado uma diferença, por outro lado, que consiste em (veja Meyer et al., 1997). Dos diversos elemen- princípio na opção por manter ou rejeitar uma tos a lembrar nesse caso, os seguintes merecem “centralidade institucional”. ser enfatizados: acesso universal à Na primeira seção de suas conferências escolarização, diferenciação das séries e pro- sobre governamentalidade ocorrida em feverei- moção de uma série para outra, certificados ro, publicada pela primeira vez ainda em 1978 educacionais, aprendizado, material didático e e posteriormente no volume 3 de Dits et Ecrits treinamento dos professores padronizados etc., (Ditos e escritos, Rio de Janeiro, Forense Uni- sendo todos esses elementos controlados e fi- versitária, 2001, v. III), Foucault parte de uma nanciados pelo Estado; equipe de educação simples observação, assim como fez em Vigiar profissionalizada e uma organização burocrá- e punir (1977). Nessa obra, sua questão era: tica da educação pública — incluindo os ser- como as sociedades ocidentais mudaram tão viços sociais (veja Meyer; Rowan, 1978) são subitamente suas formas de punição? No caso outros exemplos da disseminação de um modelo de governança, ele também iniciou com uma universalizado. Em uma perspectiva observação. Apontou que no século XVI as neoinstitucional, o isomorfismo dos sistemas questões sobre governança apareciam em di-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 27 versas áreas: como governar a si próprio, como das tecnologias de governo. Dessa forma, ele governar as almas, como governar os filhos e inverteu a questão. Seu interesse não recaía no como os príncipes deveriam governar os Esta- Estado como objeto, mas sim na análise das dos. Essa súbita confluência de aspectos de técnicas de governança que constituem o Es- governança é identificada como algo relacio- tado. Sob essa perspectiva o Estado torna-se nado às transformações que resultaram nos Es- um explanandum em vez de um explanans. Em tados com ampla extensão territorial, colonial vez de simplesmente aceitar as respostas como e administrativa. Como já discutido em Vigiar dadas, ele pergunta: como um conjunto de e punir, havia uma presença disseminada de instituições e processos políticos pode tornar- técnicas disciplinares em toda a sociedade, nas se um Estado? Quais são as relações entre o escolas, na prisão, nas fábricas, no exército Estado e a sociedade civil, como essa justapo- etc., e elas produziam subjetividades específi- sição se dá em um primeiro momento? cas. Pensar na sociedade como um organismo De acordo com Lemke (2007a), três aspec- governável, mutável, disciplinável e organizável tos devem ser destacados para entendermos as era a base para pensar no Estado como uma perspectivas foucaultiana. Em primeiro lugar, ela espécie de união de administração ou, como o pertence àqueles teóricos que desontologizam o termo em alemão indica, como uma Estado. Perspectivas sociológicas tão díspares Zweckgemeinschaft1. Outras duas trajetórias tam- como o neoinstitucionalismo e a teoria da diferen- bém são importantes para compreender essa ciação compartilham essa visão desontologizante, transformação do Estado feudal medieval: a dis- observando o Estado como algo correlato das persão religiosa e a condensação e intensificação práticas sociais interessadas naquilo que é discu- das relações que geraram o Estado moderno. Três tido atualmente como regimes de conhecimento: modos de governança em especial, relaciona- como os diversos tipos de conhecimento formam dos a três áreas do conhecimento, tornaram- os sistemas de conhecimento que criarão um re- se importantes: a arte de governar-se com a gime de representação capaz de abrir espaços e moral, a arte de governar a família com a eco- tornar a realidade compreensível e calculável, de nomia e a arte de governar o Estado com a modo que seja possível estruturar e interferir para, política. Foucault conclui sua conferência com então, direcionar e regulamentar. Esse conheci- uma tipologia das sociedades ocidentais, sen- mento é composto por áreas distintas que englo- do o último tipo designado “Estado governa- bam tanto o conhecimento habitual cognitivo mental”. Ele baseia esse tipo derradeiro no como o afetivo, profundamente inseridos nas ro- conceito de população, entendendo e tinas de ação e na orientação normativa. Essa vi- complementando, assim, seu foco nos efeitos são extremamente ampla de Estado inclui os co- das técnicas disciplinares na formação das sub- nhecimentos produzidos nas ciências sociais, tais jetividades. As conferências sobre como as oposições entre estrutura e ação, entre governamentalidade focam a dinâmica entre as indivíduo e Estado. Tudo isso faz parte da cons- tecnologias de individualização e totalização, sen- tituição do estatismo, pois esses elementos cri- do a primeira fundamental para a formação das am a infra-estrutura simbólica na qual o Esta- subjetividades e a segunda voltada às populações do está posicionado e o modo como os sujei- como grandes coletividades. As duas áreas não se tos definem sua relação com o Estado. Essa confundem, mas estão intimamente inter-relaci- visão é, ao mesmo tempo, parecida e diferente onadas; há correspondência entre a modelagem do antirrealismo neoinstitucionalista. Em última das subjetividades e o Estado moderno. instância, o foco intenso e quase exclusivo so- O Estado e o estatismo foram concebi- dos por Foucault como o ponto de vista da 1. “Zweckgemeinschaft” pode ser traduzido literalmente como “soci- sociedade, como o efeito das práticas sociais e edade de objetivos”, conotando direção e orientação comuns.

28 Karin AMOS. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos... bre os símbolos e mitos característicos do recursos públicos etc. O Estado também é um neoinstitucionalismo não reflete o conceito de campo que privilegia alguns atores e ignora ou- Foucault. tros, proporcionando a alguns infraestruturas Foucault discute com vigor a tecnologia organizacionais e negando-as a outros. em relação à governança. Sua análise da A perspectiva geral disso tudo está muito governança preocupa-se com o modo como as próxima da noção neoinstitucionalista de consti- formas de subjetividade, os estilos de vida e os tuição top-down (i.e., descendente) dos atores regimes de gênero são produzidos pela práti- modernos: Estados, organizações e indivíduos. Os ca. Essas práticas incluiriam a disciplina física, atores são constituídos pelos modelos univer- mas, também, tecnologias políticas e salizados que seguem e não por autocriação. O tecnologias de individualização. Estas permitem indivíduo moderno é um fenômeno da sociedade, aos indivíduos influenciar seus próprios corpos, e não um fenômeno subjetivo. suas almas, seus pensamentos, seus comporta- mentos. É aqui, na intersecção entre essas di- A Educação e o Estado: ferentes tecnologias, que o elo entre a história características de uma relação da subjetividade moderna e a história do Esta- moderna do torna-se evidente. As tecnologias políticas referem-se a um O que o nexo destacado acima signifi- complexo de procedimentos práticos, instru- ca mais especificamente? mentos, programas, cálculos, medidas e apara- Tendo em vista principalmente o Esta- tos para modelar disposições, preferências e do moderno como Estado-nação, há uma re- modos de agir de acordo com determinadas lação muito importante, e central, entre os metas. Ao rejeitar uma visão determinista da aspectos pedagógicos e políticos, ou seja, a tecnologia, Foucault inegavelmente enfatiza assimilação dos indivíduos pela nação como com firmeza o papel das tecnologias ao con- uma comunidade étnica. A forma pastoril de ferir sentido e estabilidade às instituições. governança, que Foucault identificou clara- Por fim, há a dimensão do Estado como mente como provedora do modelo das moder- efeito, instrumento e campo de estratégias polí- nas relações de governança, detém laços aper- ticas. A ação do Estado é um efeito das estraté- tados com a pedagogia. Voltando à antiguida- gias, pois ela não pode ser atribuída a um ator de, ela se tornou o modo por excelência de único e coerente, mas sim como o resultado de governança no cristianismo, no que uma rela- práticas de governança conflitantes e competiti- ção especial foi formada entre o pastor e seu vas. Bob Jessop (1990) concorda com essa pers- rebanho, o ministro e sua comunidade. Esse pectiva ao também enfatizar o caráter relacional modo não coage, sendo definido como uma e, portanto, temporário dos “projetos do Estado”. ética de atenção baseada no seguinte lema: Situar o Estado em uma rede de relações de omnes et singulatim — todos e cada um. A governança não implica considerar o Estado nada antiga imagem de guiar e salvar as almas é um mais do que uma categoria secundária — muito dos arquétipos da pedagogia moderna e sua pelo contrário; o Estado assume uma posição es- principal preocupação não é o disciplinamento tratégica nas relações sociais. O Estado é, ainda, do corpo, mas a direção do espírito, a influên- instrumento de ação estratégica por estar envol- cia sobre as atitudes e as disposições. Não foi vido na criação de um território limítrofe no qual por mera coincidência que surgiu um elo his- distinções fundamentais entram em ação: nativo tórico entre a pedagogia e a teologia, com e estrangeiro, privado e público, onde as decisões repercussões ao longo de todo o século XIX. são tomadas a respeito de quem é protegido pelo Até o ponto em que é possível ser tentado a Estado e quem não é, as condições de acesso aos ver aqui o Sonderweg (tradução livre: “cami-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 29 nho particular”) alemão da Geisteswi- ças em qualquer forma de intervenção peda- ssenschaftliche Pädagogik (tradução livre: “pe- gógica — instrução, assistência, orientação, dagogia humanística”), a relação sistemática aconselhamento — caminham junto com o pode ser identificada em diversos contextos conhecimento correspondente do grupo parti- distintos, sejam quais forem as modificações cular que tais intervenções têm por alvo. específicas. Para corroborar essa afirmação, eu Marianne Bloch, Thomas Popkewitz e alguns gostaria de citar Culture and the State (1998), de seus colegas vêm mostrando em diversos de David Lloyd e Paul Thomas, uma obra que estudos como grupos particulares são investiga a correlação entre as teorias da cul- construídos pedagogicamente para ser subme- tura e as teorias do Estado no final do século tidos a intervenções particulares, frequente- XVIII. Elas eram apresentadas pelas figuras mente com resultados paradoxais. A pedagogia pastoris, que assumiam papel de destaque nos não constrói conhecimento somente ao lidar escritos de Wordsworth e Coleridge. O que está com indivíduos, o “eu” moderno, para citar o em questão aqui não é uma diferenciação in- que Popkewitz (2008) diz sobre John Dewey, terna entre a porção jovem da população em mas também ao lidar com as coletividades, vários segmentos, mas uma assimilação de crianças carentes, crianças “comuns”, crianças todos eles como futuros cidadãos. Essa assimi- em situação de risco, crianças superdotadas lação se dá por meio da representatividade e etc. Frank-Olaf Radtke e alguns de seus colegas da exem-plaridade. O conhecimento das tradi- mostraram como uma criança étnica e cultural- ções culturais, assim como as práticas de uni- mente diferente, das Migrantenkind (tradução ficação e homogeneização, entram em ação livre: o filho de imigrante), é produzida, pois, nesse nível de não diferenciação. A forma de por definição, ela não é um indivíduo, mas um conhecimento respectiva seria aquela da crian- ente isolado de um grupo coletivo (veja ça universal ou do pupilo sem origem social, Bommes; Radtke, 1993; Höhne; Kunz; Radtke, sexo ou cor. Seu conceito-chave é Bildung (tra- 1999; Gomolla; Radtke, 2009). Eis a razão de dução livre: formação) ou, como Heinz-Dieter sua crítica à educação intercultural: ela atribui Meyer (2006) afirmou de modo convincente, a posições ao sujeito de modo a talhar programas common school americana é um exemplo de educacionais, porém a posição do sujeito não é instituição desse tipo. definida pela individualidade, e sim pela cole- No entanto, a pedagogia está igualmen- tividade. Esse é o dilema da educação especial, te envolvida na tendência de dividir a popula- a qual, como outros programas e procedimen- ção como coletividade em segmentos e então tos é planejado para auxiliar a criança. O ideal clas-sificá-los de acordo com as intervenções pastoril também entra em ação aqui; basta pen- pedagógicas às quais estão potencialmente su- sar na obra de Thomas Popkewitz publicada em jeitos. Nesse sentido, a pedagogia apresenta re- 1998: Struggling for the soul: the politics of lação com a análise da estatística moral (1986) schooling and the construction of the teacher de Ian Hacking. Essa referência ao surgimento (tradução livre: Lutando pela alma: a política de da estatística moral é importante porque essa escola-rização e a construção do professor). área, também, está intimamente relacionada às Em um nível institucional, a distinção relações de governança. Produz-se conheci- entre os níveis de unificação e diferenciação mento pedagógico sobre a relação entre as dis- pode ser apontada como correspondente ao posições e capacidades pessoais e a respectiva ensino fundamental, por um lado, que cons- intervenção educacional em pauta. Assim, as titui a relação de homogeneização menciona- formas e práticas de conhecimento pedagógi- da anteriormente, e a distinção em diversas co são mutuamente constitutivas. As formas de ensino médio constitui a relação de tecnologias aplicadas na governança de crian- diferenciação. Além do mais, o historiador edu-

30 Karin AMOS. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos... cacional Bernd Zymek (2000) enfatizou com escola precisão a divisão histórica entre uma instân- cia superior e outra inferior do sistema educa- A escola pública, como instituição-cha- cional médio alemão, criando diferentes tipos ve do Estado-nação, deve ser descrita não só de subjetividade. O projeto de política educa- como um modelo burocrático, ela também pode cional nacional visava libertar os indivíduos — ser analisada como uma instituição dedicada ao mental e socialmente — de suas relações infle- processamento de pessoas. Novamente, é nessa xíveis, tradicionais, familiares, religiosas e pro- perspectiva do neoinstitucionalismo que as fissionais e socializá-los de acordo com prin- especificidades organizacionais das escolas têm cípios universais em um sistema educacional sido enfocadas (Meyer; Rowan, 2006; Meyer; estruturado de forma que eles pudessem tornar- Rowan, 1977). se Landeskinder (tradução livre: nativos) e cida- Ao comparar as escolas a outras institui- dãos (Zymek, 2000, p. 93). Não obstante, as ções, os pesquisadores descobriram duas “ano- tradições da instância inferior do sistema edu- malias”: em primeiro lugar, a falta de relações cacional — que apresenta uma natureza muito firmes na hierarquia das organizações, aspec- mais regional, para não dizer local, mais to para o qual foi cunhado o termo loose direcionada para a inserção dos indivíduos em coupling (tradução livre: vinculação instável) e, estruturas econômicas e religiosas localmente em segundo lugar, a falta de um núcleo preestabelecidas do que para o cosmopolitismo tecnológico (Meyer; Scott; Deal, 1983). Em re- e a universalização — persistiram até o século lação às escolas, isso significa que o núcleo XX. Em especial, o autor afirma que somente as tecnológico, i.e., os processos de aprendizado instituições de ensino superior orientavam-se e ensino nas salas de aula, não corresponde de por princípios universalizantes correspondentes modo estrito às expectativas externas atribuí- ao ideal humanístico da Bildung, uma adesão das à escola. Os pesquisadores concluíram que aos padrões profissionais e científicos para cri- as chamadas organizações institucionalizadas, ar uma elite de trabalhadores civis, advogados tais como as escolas, reportam-se em primei- e oficiais do alto escalão militar, ao passo que ro lugar a seu próprio ambiente e empregam os estratos mais baixos da população recebiam, de modo cerimonioso expressões como ideias, literalmente, uma “educação popular” ou imaginações, noções etc. “da casa”. É a confor- volkstümlich. A instrução era imediata e a vida midade com o ambiente institucional que con- orientada pela prática. Nenhuma das relações fere legitimidade à organização. Portanto, o universais tinha de ser mediada, mas sim enraizamento das expectativas externas pode ser inserida nos laços da ordem local. Em um arti- definido como um fator vital ao explicar a du- go recente, Martin Baethge (2008) fala sobre rabilidade das organizações educacionais que a persistência daquilo que chama cisma edu- deve ser levado muito mais a sério do seria de cacional alemão — referindo-se à diferença se supor por conta de sua real eficácia (Meyer; entre o ensino médio vocacional ou Rowan, 1977). O termo legitimidade deve assu- generalista. De modo parecido com Bernd mir um sentido abrangente para englobar não Zymek, ele identifica na persistente divisão um só as crenças, mas também as razões da legiti- fenômeno pré-industrial em uma era pós-in- midade. dustrial. De modo relativamente súbito, essa Isso vai de encontro ao histórico esboça- prática de longa data que sobreviveu a diver- do anteriormente no sentido de que as tensões sas eras de reforma educacional finalmente e contradições de classificar indivíduos em gru- parece ter-se tornado ineficiente e obsoleta. pos, ao passo que se assimila todos eles, precisa ser um processo com o qual a escola lida com O Estado, a pedagogia e a naturalidade, de modo que os resultados finais

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 31 pareçam ter sido justos e coerentes com a ideia- governança chave das sociedades modernas, i.e., a meritocracia. É aqui que nos situamos nos dias de Uma indicação preliminar do colapso hoje. Cada vez mais as formas antigas se tor- dessa lógica foi o surgimento dos movimentos nam ineficientes, pois os tipos de subjetivida- de eficácia da escola e de aprimoramento da de produzidos não correspondem mais ao tipo escola nos Estados Unidos nas décadas de de sociedade na qual vivemos. 1960 e 1970. Esse também foi o início da Para elucidar ainda mais as implicações governança educacional, chamada ainda de dessas observações, eu gostaria de citar uma nar- governança escolar. Isso tem como ponto de rativa metafórica apresentada por Thomas partida a organização burocrática das escolas Rauschenbach (2005). Ele indica que o atual de- e só então se pergunta sob quais condições, safio educacional consiste não só no domínio de com quais constelações de atores etc. a eficá- uma quantidade cada vez maior de informações, cia escolar poderá ser ampliada e, em termos fatos e conhecimento, mas simultaneamente em gerais, como as escolas poderão ser aprimora- aprender a dominar as oportunidades e os riscos das. Assim, a pesquisa sobre a eficácia da esco- de um — permitam-me empregar o termo alemão la anglo-americana debate as vantagens e des- — Lebensführung (tradução livre: conduta de vida) vantagens do controle comunitário, do controle individualizado, portanto, próximo ao nosso tema da administração municipal ou das clássicas de- de autogoverno: legacias de ensino, os efeitos da liderança esco- lar e o envolvimento dos pais, isso para menci- Antigamente, as pessoas podiam embarcar onar apenas alguns poucos aspectos. Na econo- diretamente nos trens, que iam e vinham ao mia da educação, o problema da governança longo de trilhos que tornavam o caminho escolar deve ser enfocado como um problema do invariável — e elas ainda seguiam a ordem principal-agente (sobre a teoria econômica do das classes e dos estratos sociais na hora de principal-agente, veja Eisenhardt, 1989; subir — agora, elas têm de conduzir suas vi- Grossmann; Hart, 1983) — novamente, relaciona- das por conta própria em um emaranhado de da à estrutura burocrática clássica do sistema ruas com diversos entroncamentos e atalhos educacional. “Como os ‘diretores’, os ministros da com ainda mais trânsito. Hoje, as pessoas educação e as secretarias de educação podem têm opções muito melhores para determinar exercer impacto sobre os agentes, i.e., os profes- a direção e o ritmo de sua viagem por conta sores responsáveis por colocar em prática os cur- própria, porém, isso também aumenta o risco rículos e outros construtos da política adotada?” de que se percam, errem o caminho ou sim- seria uma boa questão postulada sob essa pers- plesmente não consigam chegar ao seu des- pectiva. tino. Essas mudanças na condução da vida Nas diferentes trajetórias da crítica — são um desafio novo e independente com sejam elas sob a forma de pesquisa sobre a reflexos nos processos de educação e apren- avaliação, como ocorre nos Estados Unidos, ou dizado das crianças. (p. 89) da noção de que os arranjos tradicionais come- çam a se tornar ineficientes, como ocorre na Barack Obama, presidente dos Estados Alemanha —, os diagnósticos são muito simi- Unidos, afirmou sucintamente em um discur- lares, e é isso que discutiremos na próxima se- so sobre a escola em 8 de setembro de 2009: ção. E isso não é importante apenas para a sua pró- O desafio educacional da pria vida e o seu futuro. O modo como você atualidade e sua relação com a conduzir sua educação decidirá nada menos do

32 Karin AMOS. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos... que o futuro deste país. O que você aprende na do por Mundy e outros comparatistas que ilus- escola hoje determinará se a nossa nação conse- tram o conceito de governança de acordo com guirá superar nossos maiores desafios daqui em os postulados das relações internacionais em diante. (Obama, 2009) abordagens da ciência política (Rosenau; Czempiel, 1992) relaciona-se de modo direto a Isso reflete a mudança das práticas e uma abordagem do sistema-mundo. As atuais dos arranjos sociais, assim como das formas abordagens do sistema-mundo aplicadas à edu- coletivas de atribuição de sentido a essas trans- cação, por sua vez, são caracterizadas pela atri- formações, sejam elas relacionadas ao conhe- buição de um papel importante às organizações cimento ou à informação, aos serviços ou ao internacionais na modelagem das políticas edu- empresariado ou, ainda, às metas da educação cacionais. Embora organizações como a União e à mudança na governança. Europeia, a Unesco, a OCDE e o Banco Mundi- O termo governança educacional pode al tenham sido ativas na política educacional ser empregado para designar o conjunto de desde o período pós-Segunda Guerra Mundial, medidas para garantir a qualidade educacional seu papel é muito mais importante nos dias de nas escolas. Uma orientação-chave nesse senti- hoje do que foi nas últimas décadas (Reinalda; do é proporcionada pela mudança de paradigma Verbeek, 1998). Tendo em vista o controle da que consiste em partir do direcionamento inter- mídia a intensidade da influência, além da fir- no para o externo. Uma parte significativa da meza das interações, os comparatistas chegam autonomia escolar, a introdução de padrões cada vez mais à conclusão de que as organi- educacionais e a inclusão de novos atores, tais zações internacionais não estão apenas execu- como os econômicos e sociais, são traços adi- tando as políticas educacionais em um nível cionais da nova tendência. Espera-se que a mais alto, mas sim criando suas próprias agen- governança educacional traga novos atores, in- das e começando a constituir um nível serindo suas atividades e o domínio no qual transnacional na educação. Uma das questões exercem influência em uma estrutura analítica principais nesse contexto é o estudo das trans- coerente: a escola e sua administração, os ato- formações que distinguem as formas tradicio- res políticos, mas também os “novos” atores, nais de gover-nança educacional em um con- incluindo os internacionais. texto burocrático das novas formas de Vindo de encontro a esse histórico, a governança mais orientadas pelo mercado ou comparação internacional na educação não que se esforçam para controlar os resultados foca mais somente as relações de troca entre educacionais por meio da avaliação. No con- os países com base na distinção entre nações texto europeu, um projeto empírico denomina- “doadoras” e “receptoras”, entre “credores” e do Regulation and Education (Reguleduc) “devedores”, entre “importadores” e “exporta- (Maroy, 2004; 2009) mostra de modo convin- dores”, entre “políticas educacionais” de um cente a implementação dessas novas formas de país e sua “apropriação” e “adaptação” por governança. outro país. Ela é multirrelacional e multilateral O modo como a influência das organiza- no sentido proposto por Mundy (1998) como ções internacionais interfere nos sistemas educa- multilateralismo educacional e posteriormente cionais depende de constelações específicas en- discutido por Jones e Coleman (2005) com a tre os níveis internacional e nacional e o tipo de indicação de que os sistemas educacionais não impulso que esses atores supranacionais podem devem mais ser estudados em um contexto de proporcionar. No Brasil, por exemplo, o Banco Estado-nação, mas sim como parte de uma rede Mundial assume papel de destaque e tem influí- mais ampla de questões de governança global. do na educação de modo diferente do que faz, O termo “governança global”, como emprega- por exemplo, a União Europeia na Alemanha.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 023-038, 2010 33 Pode-se dizer que a maior parte da li- fraquecimento ou o desaparecimento do Esta- teratura especializada dedicada à “governança” do, voltando-se à ilustração de que as novas envolve uma análise das tecnicidades da regu- formas de regulamentação só se tornam com- lamentação. Em sentido contrário ao histórico pletamente evidentes quando observadas em esboçado acima, três áreas em especial afetam ampla perspectiva. o setor da educação: os modos de regulação, Em sua introdução à Transnational Gover- as formas de provimento e distribuição dos nance (2006), as editoras Marie-Laure Djelic e serviços educacionais e o surgimento de novos Kerstin Sahlin-Andersson concentraram-se na atores, tais como as organizações internacio- constituição política da ordem e regulamentação. nais, que são de especial relevância com rela- Elas enfatizaram que a transformação atual no ção às questões da educação comparada. enraizamento da educação não deve ser confun- Em resumo: a pesquisa sobre governança dida com desregulamentação, enfraquecimento, educacional preocupa-se com os atores, suas falta de ordem e estrutura, mas, ao contrário, constelações e os modos de coordenação entre aquilo que elas discutem com tanta proprieda- os diversos níveis de análise — os níveis local, de deve ser denominado formas transnacionais, nacional e internacional; as formas de ofere- e não globais (Djelic; Sahlin-Andersson, cimento da educação e dos programas educa- 2006, p. 3-5), de regulamentação — que se in- cionais; e os modos de governança (Martens; tensificam em vez de enfraquecer, e essa inten- Rusconi; Leuze, 2007; Jakobi, 2009; Chabbott, sificação está diretamente ligada a uma diminui- 2003; Altrichter; Brüsemeister; Wissinger, ção da confiança no sentido tradicional. 2007). E são os modos de governança que têm Com relação a estudos relevantes no recebido atenção redobrada na educação des- campo da governança transnacional, Djelic e de que foram trazidos à tona pela primeira vez Sahlin-Andersson (2006) sugerem que: sob o nome de “nova administração pública” (new public management) na década de 1980. O aumento do monitoramento e das atividades O objetivo das estratégias da nova administra- de auditoria estão associados ao declínio da ção pública não é apenas otimizar a qualida- confiança. A auditoria e o monitoramento re- de da performance, mas também influenciar de velam e deixam as coisas às claras. Em vez de modo positivo o custo-benefício. A eficácia e erigir confiança, a transparência pode, de fato, a eficiência da performance baseada em evi- miná-la ainda mais, levando a novas solicita- dências tornaram-se os termos-chave. ções de auditoria e monitoramento. Isso é par- ticularmente verdadeiro em relação a processos Governança transnacional de auto-regulamentação propensos a questionamentos. Dessa forma, a auto-regula- A seção anterior ilustrou o fato de que mentação tende a ser substituída ou transfor- as novas formas de governança educacional mada em uma forma regulamentada e não podem ser analisadas de modo satisfatório esquematizada, se não controlada, de auto-re- no contexto de um Estado-nação. Em vez dis- gulamentação. (p. 13) so, a reinserção do Estado no contexto de uma população nacional e de fronteiras territoriais Assim, há o que se chama de desconfiança precisa ser considerado de forma que a com- em espiral propagada pelas atividades de plexidade das relações que modelam os siste- governança transnacional. A governança educa- mas educacionais e a política da educação não cional no sentido de governança escolar é um seja artificialmente simplificada. A discussão bom caso a analisar. Como a argumentação na que eu gostaria de apresentar aqui não se ocu- seção anterior apontou, a persistente desconfi- pa com questões sobre a desintegração, o en- ança sobre a capacidade de as escolas cumprirem

34 Karin AMOS. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos... a tarefa de desenvolver capacidades individuais e truturalista e indica que ele se tornou proble- preparar a geração jovem para participar de for- mático. Zygmunt Bauman (2007) elaborou a ma bem-sucedida na sociedade deu origem à distinção entre modernidade sólida e líquida, pesquisa sobre avaliação na década de 1960. Essa que vai ao encontro do que queremos dizer tendência, uma fonte importante de expertise aqui. O termo adquiriu preferência em relação baseada em evidências, tem sido reiterada pelo a termos alternativos que também designam foco transnacional para alinhar os sistemas transformações em curso passíveis de menção. educacionais com as dinâmicas demandas so- O pós-modernismo e a pós-modernidade assim ciais, que não são mais consideradas algo com- como late modernity seriam candidatos plausí- parável com a situação na década de 1960, veis. Em conjunto, essas inseguranças e a bus- quando as sociedades baseavam-se no regime ca por uma terminologia adequada são um si- de produção fordista e eram marcadas pela nal claro de que estamos no meio de algo que divisão nas esferas de influência de duas su- significa, de fato, transformações significativas, perpotências, assim como as relações de de- porém ainda é muito cedo para definir o nome pendência entre o “primeiro” e o “terceiro” de cada coisa. Por ora, as apropriações são a mundo eram capazes de estabelecer e expan- melhor alternativa. dir seus sistemas de bem-estar social. Em con- Pela mesma razão, ainda não é possível traste com essas condições, o mundo tornou- simplesmente impor a análise de Foucault em se global, com respectivo aumento da compe- novas circunstâncias. Muitas questões devem tição e uma intensificação das interações em permanecer sem resposta, pois se encontram em seu início. Quando a pesquisa com orientação uma fase preliminar de discussão. Um exemplo baseada na governança pode nos dizer muito é a posição da educação: na moderni-dade clás- sobre os mecanismos e redes, as formas, os sica, a educação sob a forma de sistemas edu- meios e as mídias de influência, os atores e as cacionais organizados, geridos e financiados áreas, ela não está preocupada com a questão pelo Estado serviu claramente como elemento central da obra de Foucault: como o nexo de mediador entre o Estado, o indivíduo e a soci- subjetividade entre trans-Estado e educação edade como um todo, e a sociedade era dividi- pode ser descrito e analisado? Lidarei com a da em termos de posições sociais. À educação, questão na parte final deste trabalho. cabia a função assimilativa, assim como a de divisão e classificação. No atual contexto, essas Educação e trans-Estado: um relações são muito mais difíceis de descrever. nexo moderno Aparentemente, a função assimilativa incondi- cional aplicada a todos os cidadãos de uma na- Como ficou evidente no título acima, os ção “étnica”, que costumava prevalecer sobre dois termos são problemáticos. Como designar todas as outras relações sociais, é menos o re-enraizamento do Estado — que, sem dúvi- enfatizada. Em vez disso, as “qualidades” de da, permanece sendo um ator poderoso, senão cada um dos indivíduos são focadas para o único — e como falar de modo adequado mensuração e documentação, visando sobre nosso atual contexto social? O termo desenvolvê-las de modo intencional e comple- trans-Estado foi escolhido porque parece ser o to desde o primeiro instante. As indicações des- que melhor representa as implicações em ques- sa tendência seriam tentativas de alinhar os di- tão. Ele é mais preciso que “global” e, ao mes- versos níveis do sistema educacional, assim mo tempo, indica que algo no cenário atual como levar em consideração os ambientes de difere da simples replicação das atividades do ensino não formais e informais. O indicador Estado em um nível superior. Riscar o termo mais evidente de todos é a tendência da obser- moderno segue aqui a prática semiótica pós-es- vação e documentação, que se inicia na idade

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Recebido em 28.09.09 Aprovado em 03.02.10

Karin Amos é professora de educação na Universidade de Tübingen, Alemanha. Fez seu doutorado em American Studies (Universidade de Eichstätt, 1992) e seu estudo pós-doutorado (Habilitation) sobre a relação da educação na integração de individuos à nação (Universidade de Frankfurt, 2002). Dra. Amos publicou amplamente sobre temas educacionais como por exemplo: educação comparada e intercultural; papel de organismos internacionais em políticas públicas educacionais; e sobre as carreiras educacionais de migrantes. Karin Amos é coeditora da revista European Education (MESharpe) e da Erziehungswissenschaftliche Revue (Klinkhardt).

38 Karin AMOS. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos...