TRABALHO E CONDIÇÕES DE VIDA NA ZONA DA MATA NORTE DE (NAZARÉ DA MATA – 1964 A 1979) Joana Maria Lucena de Araújo Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História Universidade Federal de Pernambuco

1. Introdução Este trabalho tem como proposta apresentar um estudo sobre o trabalho e cotidiano dos trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco1, em especial, do município de Nazaré da Mata2. Privilegiamos esse espaço por conta do rico material de estudos proporcionados pela Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ) do município. Criadas ainda no governo Vargas, em 1932, mas implementadas em maio de 1941, as Juntas de Conciliação tinham por objetivo resolver litígios trabalhistas individuais e funcionar como primeira instância da Justiça do Trabalho3. Depois da

1 Segundo classificação do IBGE, a Zona da Mata é uma das cinco mesorregiões do estado de Pernambuco e é formada pela união de 43 municípios. Estendendo-se por uma área de 8.738 km², faz fronteira ao norte com a Paraíba, ao sul com e ao leste com a Região Metropolitana do tendo o a oeste. É servida pelas rodovias federais BR-232, BR- 101 e BR-408. Segundo o Censo Populacional de 2013, a região possui população estimada de 1.193.661 habitantes. O relevo é ondulado e argiloso, com alturas variando do litoral ao interior. Com economia predominantemente baseada na plantação e manufatura da cana-de-açúcar, as características do relevo da região são fundamentais para o modo como são desenvolvidas as atividades econômicas e das relações de trabalho neste espaço. 2 O município de Nazaré da Mata está localizado na Zona da Mata pernambucana, mais especificamente, segundo divisão oficial, na Mata Setentrional (ou norte). Segundo as informações disponibilizadas no site do município, a cidade teve início no século XVIII, numa propriedade onde foi edificada uma capela oferecida a Nossa Senhora da Conceição. Em homenagem a santa, a localidade passou a chamar-se Nossa Senhora da Conceição de Nazaré. A Vila foi elevada à categoria de cidade em 11 de junho de 1850, através da Lei número 258. Atualmente Nazaré da Mata é amplamente conhecido como a terra do Maracatu e caboclos de lança. As agremiações advindas da cidade fazem muito sucesso no carnaval do Recife e atraem muitos turistas. 3 As Juntas de Conciliação e Julgamento, os Conselhos Regionais do Trabalho e o Conselho Nacional do Trabalho compunham as três instancias da Justiça do Trabalho. Depois da edição do Decreto-Lei nº 9.797, de 09 de setembro de 1946, a Justiça do Trabalho passou a compor o Poder Judiciário Federal, os Conselhos Regionais do Trabalho se transformaram em Regionais 1

aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, as JCJ’s foram instaladas gradualmente no interior do país a fim de acolher as demandas dos que ali viviam, especialmente, trabalhadores rurais. É possível perceber, a partir da leitura dos processos das Juntas de Conciliação, que houve uma grande aceitação por parte dos trabalhadores do campo de Pernambuco do âmbito da Justiça do Trabalho como forma de reivindicação. Com a ampliação e interiorização das Juntas a alternativa jurídica ficou mais acessível a essa camada da população. A promulgação do Estatuto de Trabalhador Rural (ETR) em 1963 estabeleceu uma série de direitos aos trabalhadores do campo que antes só eram acessíveis aos trabalhadores urbanos, tais como 13º salário, férias e aviso prévio, legitimando suas reivindicações. O ETR forneceu bases legais fundamentais para a atuação das JCJ’s no interior do estado. A introdução da Justiça do Trabalho no campo teve grande impacto na forma como se configuram as relações de trabalho nesse espaço. Segundo Christine Dabat, [...] o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) permitiu a grandes massas de empregados uma existência legal enquanto assalariados, no sentido de garantir regras às relações de trabalho e propor uma solução legal aos conflitos, em harmonia com os princípios estabelecidos pelo aparato legal varguista (DABAT, 2008).

Os processos trabalhistas provenientes da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata foram escolhidos porque possuem uma gama de situações que montam um rico panorama sobre as relações de trabalho no campo. Mais de 90% das reclamações trabalhistas registradas envolvem trabalhadores rurais. Também por se tratar de um volume documental considerável (são mais de 20.000 processos que vão de 1963 a 1985). Ainda se destaca a presença, nos municípios abrangidos por esta JCJ, de grandes empresas do setor sucroalcooleiro como a Pessoa de Melo Indústria e Comércio S/A, proprietária da Usina Aliança. Segundo Christinne Dabat e Tomas Rogers, o uso dos processos trabalhistas como fonte para a História permite ao pesquisador analisar os desdobramentos de

Tribunais do Trabalho e o Conselho Nacional do Trabalho passou a ser Tribunal Superior do Trabalho.

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acontecimentos marcantes, como o regime civil-militar e a redemocratização, sob uma perspectiva inovadora: “Dados destes processos permitem aos estudiosos medir e comparar as demandas dos trabalhadores e procurar desvendar suas condições enquanto assalariados, ao juntar informações sobre salário, jornada de trabalho, estabilidade no emprego e mobilidade, assim como outros fatores (DABAT, ROGERS, 2014 p. 331)”.

A mão-de-obra no setor sucroalcoleiro de Pernambuco no século XXI. Para construir essa parte do texto, tomei como base duas pesquisas realizadas por diferentes instituições brasileiras. A primeira é um estudo da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), intitulado “Instantâneos da realidade social 2: desemprego sazonal na atividade açucareira da zona da mata pernambucana: relatório de pesquisa”, publicado em 20054. O relatório tinha por objetivo analisar o comportamento dos trabalhadores desempregados durante o período de entressafra na Zona da Mata de Pernambuco. O segundo texto é uma compilação de dados realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) intitulado “Produção agrícola municipal” que comenta os dados sobre a produção agrícola de todos os municípios do país divididos por região publicado em 2007. A economia da Zona da Mata de Pernambuco é baseada, em sua maior parte, na plantação e manufatura de cana-de-açúcar. A depender dos rumos da economia a produção é direcionada para a fabricação de etanol ou de açúcar e seus derivados. Segundo os relatórios citados, a produção de cana na Zona da Mata de Pernambuco vem apresentando instabilidade ou estagnação desde o início a década de 1990. Mesmo com uma breve recuperação a partir de 2001, o volume produzido no ano de 2005 ainda não alcançou o patamar do início dos anos 1990. Além desta dinâmica de queda na produção, a atividade canavieira, assim como toda atividade agrícola, passa por períodos de sazonalidade que produzem efeitos

4 Os resultados apresentados nesse relatório também serviram como bases para diversos estudos de pesquisadores do Brasil e da própria FUNDAJ entre eles destaca-se o texto “Empregabilidade do cortador de cana-de-açúcar da zona da Mata pernambucana no período de entressafra” dos pesquisadores Luís Henrique Romani de Campos, Isabel Raposo e André Maia. Publicado na Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set. 2007. 3

diretos sobre os trabalhadores locais. Segundo dados da FUNDAJ, na Zona da Mata de Pernambuco um contingente de 90 a 100 mil trabalhadores é empregado nesta atividade e cerca de 2/3 desses são dispensados na entressafra (FUNDAJ, 2007). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que em 2004, o PIB per capita desta região foi menor do que o observado em todo o estado de Pernambuco. Os dados do mesmo Censo sobre a esperança de vida ao nascer também ilustram que a população da Zona da Mata não alcança idades mais avançadas quando comparadas ao resto do estado (IBGE, 2007). No que diz respeito à educação, os indicadores demonstram que a força de trabalho da região não possui alto grau de escolaridade, já que se especializou quase que exclusivamente para o trabalho rural. Em 2000, cerca de 21% da população da Zona da Mata tinha menos de um ano de estudo, enquanto que, em Pernambuco, esse número era de 16%. A grande maioria dos habitantes da Zona da Mata (80%) tem apenas sete anos ou menos de estudo (FUNDAJ, 2007). O grau de escolaridade dos cortadores de cana entrevistados era relativamente mais baixo do que o da população da Zona da Mata como um todo. A maioria (46,60%) só havia estudado no máximo até a 4ª série. O percentual de analfabetos entre os cortadores, assinando ou não o nome, é de 30,70%, valor relativamente elevado quando comparado ao percentual de pessoas sem instrução ou com menos de um ano de estudo da população de toda a Zona da Mata, que é de 21% (FUNDAJ, 2007). No âmbito do deslocamento populacional, os dados do IGBE mostram que a atividade canavieira na Mata pernambucana não atrai, de maneira expressiva, contingentes populacionais para a região. Entre os anos de 1970 e 2000, a Zona da Mata apresentou um crescimento populacional inferior ao das demais mesorregiões do estado (IBGE, 2007). Ou seja, a atividade agrícola, especialmente voltada para a produção de cana, não está atraindo mão-de-obra para a região nem tampouco melhorando os indicadores de qualidade de vida da população. Em 2005, ano em que os pesquisadores da FUNDAJ realizaram uma série de entrevistas com trabalhadores de diversos municípios da Zona da Mata a fim de mensurar como era a dinâmica do trabalho nessa região, eles chegaram a conclusão que

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em média, os cortadores entrevistados trabalham na atividade do corte há cerca de 15 anos. Considerando que a idade média é de 34 anos, isto implica que, desde os 19 anos, os entrevistados se ocupam desta atividade. A jornada média de trabalho é de 9,2 horas por dia e, neste período, o trabalhador corta cerca de 4,3 toneladas de cana. Por esta quantidade, recebe aproximadamente R$434,00 (quatrocentos e trinta e quatro reais) líquidos por mês (FUNDAJ, 2007). A grande maioria dos entrevistados tem o corte da cana como sua única atividade de trabalho. Durante a época da colheita, apenas 4,5% desses exercem uma atividade secundária para complementar a renda. Se o período de safra durar seis meses, um trabalhador que não tem outra fonte de renda a não ser o corte da cana, teria uma renda mensal de R$217,00 (duzentos e dezessete reais). De maneira geral, seja na safra ou na entressafra, os entrevistados tinham na atividade canavieira sua principal ocupação. Cerca de 74% deles nunca conseguiram outro trabalho assalariado além do corte da cana. 92% têm sua certeira assinada e 88% contribuem para a previdência social (FUNDAJ, 2007). Os pesquisadores da FUNDAJ chamam a atenção para a importância dos benefícios concedidos pelo governo na vida desses trabalhadores. Aproximadamente 45% dos entrevistados recebem algum tipo de benefício com valor médio de R$67,37 ao mês. O recebimento de pensão por parte de membros da família e o cultivo de outras culturas também compõem a renda mensal dessas famílias. Cerca de 5% dos entrevistados recebem pensões ou aposentadorias e 21% têm acesso à área de plantio. Eles cultivam mais frequentemente macaxeira, feijão, milho, inhame, mandioca e banana. A maioria dessas culturas é destinada ao consumo de subsistência, mas, quando há excedente, esse é direcionado para venda (FUNDAJ, 2007). Aproximadamente 60% dos trabalhadores possuíam domicilio próprio, 28% habitavam em casas cedidas e 11% em alugadas, que custavam, em média, R$62,00 por mês. Apesar de haver uma predominância de domicílios na zona rural (55,9%) um percentual significativo dos entrevistados (44,1%), habitavam em áreas urbanas (IBGE, 2007).

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Ao final do período da colheita, cerca de 94% dos entrevistados são dispensados pela usina/engenho. Os que permanecem, são considerados empregados “fixos”, já que trabalham, em média, 5,5 meses, tempo que coincide com a duração da entressafra. Dentre os que eram dispensados, a grande maioria, 53%, não consegue trabalho. Nessa época da entressafra, a renda média familiar cai de R$622,28 (no período de corte) para R$294,74 (FUNDAJ, 2007). E as principais fontes de renda advêm do trabalho rural, programas governamentais, ajuda financeira de parentes e amigos e aposentadorias. Ao compararmos os estudos da FUNDAJ e do IBGE que dizem respeito ao inicio do século XXI e de pesquisadores que estudaram a região na segunda metade do século XX, percebemos o desenho de uma situação que persiste, mas com novas configurações. A capacidade de atração e retenção de mão-de-obra do setor sucroalcoleiro é alvo de debates constantes. Desde a década de 1980 pesquisadores alertam para a queda da criação de empregos na Zona da Mata. Os economistas José Ferreira Irmão e Jony Sampaio afirmam que a “participação do setor agrícola no emprego total vem declinando de uma década para outra” (IRMÃO E SAMPAIO, 1984). Ainda na década de 1980 os autores participaram de um estudo no qual comparavam os principais sistemas de produção do Nordeste a fim de levantar dados sobre a estrutura agrária, produção e emprego rural na região. No texto aqui citado, os autores reuniram os principais resultados, no tocante a parte rural, da pesquisa intitulada “Diagnósticos e proposições com vista a uma política de emprego para o Nordeste”, realizada pelo PIMES/UFPE em convênio com Ministério do Trabalho. Como ferramenta de análise, Irmão e Sampaio optaram por dividir o Nordeste em regiões agrárias, em função de seus sistemas de produção “a fim de compreender a dinâmica do processo de desenvolvimento da agropecuária regional” (p. 43). Na Zona da Mata do Nordeste, os pesquisadores destacam a predominância de quatro sistemas de produção: canavieiro, cacaueiro, arrozeiro e coco/policultura. Eles chegaram à conclusão de que em áreas nas quais a expansão industrial e o aumento do setor de serviços vêm ocorrendo de forma mais rápida e dinâmica, a participação do emprego rural nos indicadores de emprego total é menor, e continua em

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declínio. Entretanto, os dados mostram que o emprego rural cresce mais rapidamente nas áreas de fronteira ou de ocupação mais recente, onde há maior disponibilidade de terras, e de forma mais moderada nas regiões de ocupação mais antiga (IRMÃO E SAMPAIO, 1984). O sistema canavieiro também apresenta concentração de terra mais acentuada, comparado a outros sistemas. Os estabelecimentos com área superior a 200 hectares aproveitam quase 73% das terras disponíveis. Para os autores, a monocultura da cana- de-açúcar, não só impõe uma maior concentração na utilização da terra, mas vem recriando reservas externas de mão-de-obra, especialmente o trabalho familiar que representa 57% da mão-de-obra total empregada nesse sistema (IRMÃO E SAMPAIO, 1984). O estudo apresentado nos ajuda a observar que mesmo com a criação de vagas de trabalho em áreas mais tradicionais sofrendo quedas sucessivas, como é o caso da Zona da Mata de Pernambuco, por exemplo, há um grande contingente de mão-de-obra disponível muito dependente do setor. Como não possuem outras qualificações, esses trabalhadores ficam impossibilitados de procurar emprego em outras áreas. Uma parcela da população rural vê como alternativa a migração, se dirigindo para as novas regiões de fronteira, como citado por Irmão e Sampaio. A maioria, resiste, vivendo de suas lavouras de subsistência ou em sub-empregos informais. É nesse âmbito que se insere a questão do sistema de “moradas” que será discutido mais detidamente no próximo tópico.

2. As relações de Trabalho na Zona da Mata Norte de Pernambuco: Considerações sobre o sistema de morada. Minha pesquisa trata das condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais da Zona da Mata Norte de Pernambuco, em especial do município de Nazaré da Mata, entre os anos 1964 e 1979. Contudo, analisar os dados fornecidos pela FUNDAJ e IBGE sobre o mercado de trabalho no setor sucroalcoleiro no início do século XXI é fundamental para podermos perceber as mudanças e permanências nas relações de trabalho nesse espaço.

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O primeiro ponto que nos chama a atenção é a sazonalidade dos postos de trabalho na plantação de cana-de-açúcar. Ter trabalho disponível apenas em média 5 meses por ano afeta sobremaneira a vida desses homens e mulheres. Como observado tanto na década de 1980 pelos economistas da UFPE, quanto nos anos 2000 pelos pesquisadores da FUNDAJ e IBGE, o setor sucroalcoleiro se esforça para manter um grande contingente de mão-de-obra disponível para atuar nos momentos de safra. Com o término do período de colheita e tratamento da cana-de-açúcar a maior parte desses trabalhadores é dispensada, apenas uma pequena parcela continua a trabalhar nas Usinas e Engenhos. Entretanto, é preciso ter cuidado com a análise de dados que mostram resultados de maneira mais generalizada. O trabalho com fontes documentais antes não extensamente exploradas, tais como os processos trabalhistas das Juntas de Conciliação e Julgamento permitem novos caminhos de análise de períodos históricos importantes do Brasil, e também observar as diferenças apresentadas por cada região estudada. Isso porque a Zona da Mata é uma vasta região do Brasil que apresenta um espaço multicultural e heterogêneo, que absorve mudanças e influencias de forma diferenciada. Para muitos pesquisadores o chamado “período da morada”5 começou logo após o fim da escravidão e se estendeu até a primeira metade do século XX. Obras importantes como a da historiadora Christine Dabat (DABAT, 2003), que estudaram a mão-de-obra empregada nos canaviais de Pernambuco, colocam os anos 50 como data final do período da morada, descrevendo como os trabalhadores rurais e suas famílias, vão sendo expulsos de suas casas nos engenhos e se mudando para as “pontas de rua”, em um lento processo de urbanização dos pequenos municípios que compõem a região (DABAT, 2003). Entretanto, o estudo de Nazaré da Mata, através dos processos trabalhistas impetrados nesse município, demonstram que esse processo está longe de ser homogêneo. Encontramos nos processos, trabalhadores que ainda residem no Engenho até o ano de 1980, demonstrando que cada região apresenta diferentes formas de desenvolvimento.

5 Ficou conhecido como “morada” a época em que grande parte dos trabalhadores rurais morava em casas pertencentes aos engenhos ou usinas para os quais prestavam serviço. 8

Depois de analisar as várias entrevistas que fez com trabalhadores rurais que passaram pela experiência da morada Dabat afirma categoricamente que os entrevistados “[...] não manifestam saudade. Ao contrário, eles descrevem em detalhes um sistema de exploração perfeitamente orquestrado que lhes extorquia suas forças vivas, geração após geração, mantendo-os na mais profunda pobreza possível. Eles reivindicam um futuro diferente para seus filhos e netos, destacando entre as liberdades às quais aspiram, ter terra sua” (DABAT, 2003).

A historiadora Clarisse Pereira em dissertação intitulada “A precarização do trabalho e as táticas dos trabalhadores rurais na luta pelos direitos trabalhistas na Justiça do Trabalho” afirma que o regime de morada persiste na segunda metade do século XX em novas configurações. São dois processos diferentes aquele implantado no século XIX e que se apresenta ainda em finais do século XX. “Apesar dos dois processos serem descritos pelo mesmo nome, eles representam situações e relações distintas” (PEREIRA, 2017). São novas configurações, novas personagens, relações de trabalho resignificadas. Essas mudanças tem como força motriz diversos acontecimentos, tais como a mudança nas relações de compadrio e trabalho, a promulgação e implementação do Estatuto do Trabalhador Rural e a popularização e interiorização da Justiça do Trabalho. Entretanto, é preciso salientar que as mudanças no regime de morada não significam melhoria efetiva nas condições de vida e trabalho da população rural (PEREIRA, 2017). As pesquisas do IBGE e FUNDAJ reforçam que o sistema de exploração continua, apresentando novas nuances. Mesmo que a diminuição significativa dos trabalhadores que moram em áreas pertencentes aos engenhos e usinas tenha significado mais independência em relação a seus empregadores, os trabalhadores rurais da Zona da Mata pernambucana ainda vivem uma condição precária por outros fatores. Um deles é o fato de que as grandes propriedades agropecuárias ainda controlam, em grande parte, a oferta de trabalho na região. No período de entressafra, quando não são necessários,

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estes ficam sem nenhuma fonte de renda disponível a não ser os benefícios do governo. Sua falta de qualificação, os impedindo de se dedicar a outra atividade. Celso Furtado em “Formação Econômica do Brasil” afirma que a hegemonia da atividade canavieira nesta região se dá, em grande parte, por conta do não desenvolvimento de um mercado interno que estimulasse a demanda por outros tipos de bens consequentemente influenciando na formação de uma mão-de-obra mais diversificada capaz de ser alocada em outros tipos de atividade (FURTADO, 1987). Ainda segundo o autor, essa falta de diversificação, aliada a outros fatores, criou um ambiente propício para a concentração fundiária e de renda. Enquanto um pequeno grupo de pessoas monopoliza o acesso a terra e os meios de produção, a maioria da população apresenta baixos indicadores sociais e econômicos (FURTADO, 1987). Analisando os processos da JCJ-Nazaré da Mata nos deparamos com um material bastante rico para analisar o sistema de morada e suas nuances. Isso porque um significativo número de trabalhadores que recorrem a Justiça do Trabalho ainda reside nos Engenhos e Usinas para os quais prestam serviço. Esse fator é fundamental em uma série de aspectos que afetam a vida dessas pessoas. O funcionário que vive no engenho/usina não costuma ser dispensado no período de entressafra. Geralmente ele é aproveitado para outras tarefas, seja na manutenção da propriedade, no cuidado com os animais ou na plantação da cana. Ele também pode se dedicar a sua lavoura de subsistência e vender o excedente da plantação, se houver. Entretanto, se por um lado morar no Engenho garante trabalho o ano todo e acesso a um pedaço de terra para ajudar na produção de alimentos, também reforça a relação de forte dependência entre patrão e empregado, dependência essa que abre espaço para abusos. Isso porque além de depender do patrão para ter onde morar, este também é o responsável por lhe “arranjar serviço”. As casas e sítios ocupados também são utilizados com freqüência como instrumento de barganha por parte dos proprietários, seja como retaliação por conta de alguma “ofensa” contra a empresa, como uma reclamação trabalhista, por exemplo, ou como recompensa para os funcionários mais fiéis.

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2. Condições de vida e trabalho na Zona da Mata Norte de Pernambuco: um estudo de caso.

Um caso que pode ser utilizado para análise é o descrito no processo 223/77 proveniente da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. O autor da ação é Luís Delmiro da Silva, brasileiro, solteiro, trabalhador rural, afiliado ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Nazaré da Mata, residente e domiciliado no Engenho Cumbé. O trabalhador moveu uma reclamação trabalhista contra Ricardo de Moraes Cavalcanti, proprietário do engenho supracitado, em setembro de 1977. Ele afirma que começou a trabalhar na propriedade ainda menor de idade, com 13 anos, e apesar de menor, sempre exerceu todas as tarefas exigidas por seus patrões. O reclamante acusa o dono de engenho de demissão indireta, afirmando que esse parou de lhe pagar vários direitos importantes tais como férias e 13º salário. A primeira audiência de instrução e julgamento foi realizada em 11 de outubro de 1977, presidida pela Juíza presidente da JCJ-Nazaré da Mata, Ana Maria Schuler, com a presença de dois vogais. O reclamado, acompanhado de seu advogado, contesta as acusações descritas na petição inicial. Afirma que o reclamante somente foi admitido em 3 de janeiro de 1977, em conformidade com as anotações existentes em sua carteira de trabalho e acusa o ex-funcionário de abandono de emprego. Diante da divergência de versões, a juíza marca nova audiência na qual as partes deverão apresentar provas escritas e testemunhais. Depois de ouvidas as testemunhas e as provas analisadas, em 17 de novembro de 1977, a JCJ decide, por unanimidade, julgar procedente em parte a reclamação, condenando o requerido ao pagamento de parte dos direitos pleiteados. É importante salientar que a Junta considerou a data inicial do contrato aquela informada pelo reclamante, baseando-se no relato de testemunhas que, quando apresentadas a Justiça, alegaram que Luís Delmiro acompanhando o pai em suas tarefas, já labutava no engenho desde tenra idade. Todavia, a reclamação não se encerra com a proclamação da sentença. Em 25 de novembro de 1977, o advogado José Gonçalves Moisés, designado pelo Sindicato para

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representar o reclamante, encaminhou Recurso Ordinário ao Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região solicitando a reforma da sentença. Entre os argumentos apresentados, o advogado afirma que, depois de proclamada a decisão da Junta, o representante legal do reclamado dirigiu-se a residência de Luís Delmiro, invadiu sua casa e quebrou todos os bens ali encontrados, além de vandalizar o teto. A invasão motivou uma queixa na delegacia de polícia que está juntada aos autos. Também são anexadas fotografias da propriedade e do estrago realizado, especialmente, a porta arrobada e o teto destruído. Essas fotografias nos fornecem outra forma de apreender como se davam as condições de vida daqueles que moravam nos engenhos. Por mais que tenhamos diversos relatos tanto nos processos trabalhistas como na bibliografia que trata do assunto, ver essa parte da realidade representada em imagens nos eleva a outro patamar de compreensão. Na primeira fotografia, podemos ver uma casa feita de tijolos rústicos e teto de telhas de barro. O telhado apresenta diversas falhas e aberturas. A casa é pequena, precária. Tem duas janelas e piso de terra batida. O terreno ao redor da propriedade, a partir do ângulo em que a foto foi tirada, é tomado por vegetação dando uma sensação de isolamento.

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Na segunda fotografia aparece a porta de madeira destruída e mais uma parte do teto danificado.

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O caso de Luís Delmiro não é raro entre os processos trabalhistas da JCJ de Nazaré da Mata. É recorrente encontrarmos proprietários ou administradores de Engenho que em retaliação a uma ação trabalhista destroem ou até mesmo tomam as casas dos trabalhadores. Muitas vezes danos feitos a lavouras ou a casas, são colocados como objeto de reclamações trabalhistas a fim de conseguir indenização pelo trabalho perdido. Em alguns casos, o trabalhador consegue reparação pelos transtornos sofridos, mas, na maioria das vezes, a Justiça do Trabalho pouco pode fazer, pois as propriedades pertencem às empresas. Ao contrário do que acontece em muitos casos no ambiente urbano, em especial em processos trabalhistas que envolvem fábricas e a disputa pelas propriedades pertencentes a essas empresas (as chamadas vilas operárias) no ambiente rural, é muito raro que o trabalhador reclamante consiga na Justiça a propriedade da casa em que

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vive6. Independente do tempo de ocupação, as ações raramente terminam com o ganho da casa ou até mesmo de um terreno. Pelo contrário, a desocupação do imóvel, com frequência é colocada como condição para o comprimento do acordo. Reparos nas casas também são difíceis de serem conseguidos. O que encontramos constantemente são trabalhadores que pleiteiam, e muitas vezes conseguem, indenização por danos causados a suas plantações. Mas, recebido o dinheiro, o trabalhador e sua família desocupavam suas casas e se dirigiam as cidades próximas. Como o valor das indenizações não era suficiente para a aquisição de um imóvel. Logo, eles se viam em situação ainda mais precária visto que ficavam dependentes de aluguéis ou de construções precárias.

3. Conclusão Seja na segunda metade do século XX ou no início dos anos 2000 muitas similaridades são encontradas nas condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco. Seguindo a trilha indicada por Judith Butler entendemos que a condição precária, vivenciada por uma significativa parcela da população mundial, não é apenas uma questão de falta de recursos, mas, uma condição politicamente criada. Tomamos como exemplo claro o que acontece com os trabalhadores do setor sucroalcooleiro de Pernambuco. Este sistema se esforça em cultivar um enorme contingente de mão-de-obra para alimentar as usinas e engenhos por cinco meses por ano. O que acontece nos outros meses? Não importa. Contanto que na próxima safra essa reserva esteja novamente disponível7. Enquanto isso, em Nazaré da Mata, a ação trabalhista de Luís Delmiro da Silva encontra seu fim em 12 de abril de 1978 com a publicação do acórdão do Tribunal

6 Para aprofundar o tema recomendo a leitura da obra de José Leite Lopes “A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés” sobre a Companhia de Tecidos Paulista e a dissertação de mestrado de Emanuel Moraes Lima dos Santos, intitulada “A Fábrica de Tecidos da Macaxeira e a vila dos operários: a luta de classes em torno do trabalho e da casa em uma fábrica urbana com vila operária (1930-1960)”. 7 A filósofa norte-americana Judith Butler em seu livro “Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?” disserta sobre temas como cidadania, democracia, estado de direito, entre outros. Entre suas teorias mais importantes, está a de que “uma vida específica não pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva”.

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Regional do Trabalho da 6ª Região o qual estabelece, por unanimidade, o provimento parcial ao recurso apresentado. Mesmo com a decisão favorável, o que lhe garantiria com juros e correção monetária uma quantia de aproximadamente Cr$50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros), o trabalhador decide assinar um acordo de conciliação com o engenho, no qual este se compromete a pagar uma quantia de Cr$16.500,00 (dezesseis mil e quinhentos cruzeiros) em troca da retificação da data de admissão para 30 de janeiro de 1970 (livrando a empresa da acusação de trabalho infantil) e a data de demissão para 5 de setembro de 1977. E o reclamante dá quitação de todos os direitos recorrentes do contrato de trabalho. Bibliografia BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

DABAT, Christine Rufino. ROGERS, Thomas. “Uma peculiaridade do trabalho nesta região” A voz dos trabalhadores nos arquivos da Justiça do Trabalho na Universidade Federal de Pernambuco. In. Revista Mundos do Trabalho. Vol. 06. N 12. Julho- dezembro de 2014. P. 327-342.

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História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2017.

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