Rompendo fronteiras A Cidade do Samba no *

Leila Maria da Silva Blass

Introdução Os fazedores dos desfiles carnavalescos saú- dam o surgimento da Cidade do Samba como, por Embora as manifestações de Carnaval na ci- exemplo, Joãosinho Trinta para quem a sua cons- dade do Rio de Janeiro sejam bastante variadas, trução significa, ao lado do incentivo aos blocos os desfiles suntuosos das escolas de samba per- independentes, “um sonho realizado”.1 No entan- tencentes ao Grupo Especial e ao de Acesso no to, esse empreendimento condensa uma tensão Sambódromo sobrepõem às demais formas de se entre aspectos tradicionais e modernos, na medida brincar o carnaval, prevalecendo a visão quase em que o velho é recriado e re-significado, sob consensual de que as brincadeiras estariam restri- tas a eles. A apresentação de blocos independen- outras condições históricas. Desse modo, são rea- tes, a realização de bailes em clubes, a premiação firmadas as imagens “glamourosas” que associam de fantasias e um conjunto de outras manifesta- essa cidade ao samba, aos desfiles carnavalescos, ções compõem, portanto, o panorama da festa de às festas, à alegria, às praias e ao estilo de vida Carnaval, nessa cidade. do “povo brasileiro” e, em particular, dos cariocas. Um modo de viver possível ou almejado por todos * Agradeço as generosas observações de Maria Lúcia no planeta. Montes e as valiosas sugestões de Sílvio César Sil- va que muito contribuíram para versão final deste Os turistas, chegando às dependências da texto. Cidade do Samba, recebem uma publicação edita- da pela Liga Independente das Escolas de Samba Artigo recebido em junho/2007 (LIESA) com o título “RIO, Cidade do Samba” e Aprovado em dezembro/2007 um subtítulo – “A fábrica dos sonhos se torna re-

RBCS Vol. 23 nº. 66 fevereiro/2008 80 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66 alidade” – que instiga a sua imaginação. O sonho dos carros alegóricos que se encontram no térreo, concretiza-se, atendendo às demandas dos sam- cuja área tem, aproximadamente, 2.700 m². Essa bistas e à curiosidade dos turistas que, através de área possibilita a construção simultânea de doze um balcão suspenso na altura do 3º piso, entram carros alegóricos. Um vão no teto do 3º pavimento em cada uma dessas “fábricas” pela passarela ex- permite ver o andar superior, onde são confec- terna que as circunda. Assim, podem apreciar a cionados as esculturas e os adereços dos carros construção das alegorias e o trabalho dos artesãos alegóricos. e dos artistas.2 Circulando esse vão, uma talha se move pre- A Cidade do Samba do Rio de Janeiro foi sa em um trilho amarelo que transporta enormes construída a partir de uma parceria firmada entre esculturas e as colocam no carro alegórico corres- dirigentes das grandes escolas de samba cariocas pondente. Ou seja, os carros não se movimentam e representantes dos órgãos governamentais lo- cais com vistas à expansão das atividades de tu- rismo, complementando as que acontecem, desde 1984, no Sambódromo. Para isso, a Prefeitura Mu- nicipal do Rio de Janeiro cede o terreno para edi- ficação da Cidade do Samba com área equivalente a dez campos oficiais de futebol. O projeto arquitetônico da Cidade do Samba segue as diretrizes de um parque temático, mas resulta de uma coleta sistemática de informações

históricas e dados técnicos acerca da produção Leila Blass artística dos desfiles de carnaval. Compreende quatorze prédios construídos um ao lado do ou- tro e um pátio interno. Nos prédios, funcionam os barracões denominados nos discursos oficiais por “fábricas dos sonhos”. Cada um desses prédios tem quatro pavimen- tos com área de 600 m². Neles estão instalados vá- rios almoxarifados; setor de ferragens; carpintaria; cozinha, refeitórios, sanitários; portaria; elevador para carga; administração; setores de criação tais como: construção das esculturas e sua modelagem em fibra de vidro, vime ou arame; oficinas de cos- tura e de adereços. O elevador de carga atende aos quatro andares, integrando as várias oficinas Leila Blass instaladas no último pavimento com a montagem

no barracão, mas a talha. As alegorias atingem até 8 metros de altura. No quarto pavimento de 2.700 m², encontram-se os ateliês de costura, de cha- péus e de outros adereços, além das oficinas de escultura e de modelagem. Cada barracão tem um

Henrique Matos portão verde central de 10 metros de largura por 7,5 metros de altura com entrada pelas ruas que circundam a Cidade do Samba. Cada prédio pos- sui três portas com tela de arame verde voltadas Rompendo fronteiras 81 para o pátio interno. Desse modo, se pode ver, a nais com interpretes, passistas e percussionistas partir de dentro dos barracões, as alegorias expos- ligados às diferentes agremiações carnavalescas tas nesse pátio, bem como as que fizeram parte do cariocas. desfile anterior da escola de samba à qual perten- No mesmo espaço urbano, concentram-se a ce o barracão. Essas portas ficam fechadas, mas produção dos carros alegóricos e a confecção de se abrem para limpeza diária do chão no térreo grande parte das fantasias, ou seja, os processos e no momento em que as alegorias são levadas, propriamente ditos de trabalho que se desenrolam completamente montadas, para o Sambódromo, às nos barracões e a movimentação nas quadras das vésperas dos desfiles oficiais de Carnaval. escolas de samba onde se realizam os ensaios se- manais, particularmente, às vésperas dos dias de Carnaval. A concepção da Cidade do Samba visa, sem dúvida, a preencher os olhares “estrangeiros” vol- tados para o exótico. Neste aspecto, reside a com- Leila Blass Leila Blass Leila Blass

Os prédios circundam, configurando uma área interna onde estão expostas alegorias e algu- mas esculturas das várias escolas de samba, com- pondo um cenário para os shows musicais sema- Henrique Matos Leila Blass 82 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66 petência global de seus idealizadores, mostran- tre a preservação de um saber fazer, visto como do que “muitos lugares turísticos de hoje têm de tradicional, e a adoção de algumas soluções con- vincar seu caráter exótico, vernáculo e tradicional sideradas modernas. para poderem ser suficientemente atractivos no Cada agremiação carnavalesca do Grupo Es- mercado global de turismo” (Santos, 2002, p. 65). pecial e a campeã do Grupo de Acesso alugam Contudo, suas fronteiras se rompem, interferindo esses prédios por um ano, mas a sua permanência na dinâmica urbana. Quer dizer, a sua construção no local depende do resultado alcançado no con- atua na cidade do Rio de Janeiro, enquanto pro- curso anual de Carnaval. As últimas colocadas no posta de revitalização da região da Gamboa aliada grupo Especial devem se retirar do prédio para à implementação da política de ativação social, via que as primeiras colocadas do Grupo de Acesso4 turismo, propiciada pelo samba, enquanto mani- possam participar do condomínio formado na Ci- festação cultural.3 Esse empreendimento demons- dade do Samba. tra, especialmente, que o samba constitui, hoje, Os prédios foram, inclusive, escolhidos pelos “parte de uma cultura musical globalizada” (Idem, dirigentes das grandes escolas de samba de acor- p. 64). do com a classificação obtida por elas no concurso Na Cidade do Samba, desenrolam-se múlti- anual de carnaval em 2004. Nesse ano, a Beija- plas práticas de trabalho e de emprego, atividades Flor de Nilópolis conquistou o bicampeonato, o com finalidades diversas, inclusive, as de admi- que lhe garantiu a escolha do prédio de número nistração condominial dos prédios, ou dos barra- 11; a Mangueira optou pelo prédio n. 13 e assim cões, ocupados pelas escolas de samba do Grupo sucessivamente, conforme as várias preferências e Especial e as do Grupo de Acesso associadas a disponibilidades. LIESA. Cada uma delas organiza e gerencia a pro- Os barracões estão dispostos5 de tal modo dução das alegorias e as práticas de trabalho e de que configuram em seu conjunto uma roda de emprego de modo independe, mas todas contri- samba. Vale lembrar que as rodas de samba sem- buem para manutenção e funcionamento da Cida- pre foram importantes momentos na formação das de do Samba. A concentração espacial de práticas redes de sociabilidade e de convivência nas es- e atividades relativas ao fazer artístico dos desfi- colas de samba. Os participantes de uma roda de les carnavalescos e do entretenimento facilita os samba sentam, em geral, uns ao lado dos outros, fluxos de pessoas, informações, de material e de mas tocam e cantam sempre voltados para o cen- peças enviadas por fornecedores, gerando uma tro do círculo, trocando olhares e sinais entre si. economia de tempo decorrente dessa circulação e Os turistas e “estrangeiros”, na qualidade de promovendo uma redução relativa aos custos ope- consumidores privilegiados das atividades ofere- racionais da produção. Assim, a forma de gestão cidas na Cidade do Samba, têm a oportunidade implementada na produção artística dos desfiles carnavalescos pelas grandes escolas de samba re- mete aos preceitos administrativos que orientam as empresas contemporâneas de alta tecnologia. Desse ponto de vista, instaura um proces- so de reestruturação produtiva fora das fábricas, demarcando um redesenho urbano, cujas tendên- cias também podem ser observadas em outras ci-

dades contemporâneas. A construção da Cidade Revista News Liesa , n. 5 p. 23 do Samba parece abranger tão-somente as ativi- dades de entretenimento destinadas, principal- mente, aos turistas, mas também institui as condi- ções para agregar valor aos recursos tecnológicos fornecidos pelas escolas de samba aos artistas e artesãos que trabalham na produção dos desfiles de Carnaval. Nesse ponto, revela-se a tensão en- Rompendo fronteiras 83 de escolher e vestir uma fantasia; subir em carros simples que consiste em fornecer incentivos fiscais alegóricos e acompanhar os shows musicais prota- para construir complexos de hotéis” (2005, p. 80). gonizados pelos componentes das várias escolas A instalação da Cidade do Samba caminha, de samba. Essa experiência constitui um simula- no entanto, em outra direção. Daí os discursos re- cro do que poderiam assistir nos dias de carnaval correntes que tentam difundir a idéia de que tudo no Sambódromo. As atividades incluem, portanto, mudou, inclusive, no antigo barracão. A partir de programas de entretenimento e uma visita aos bar- então, as suas características desapareceriam, sur- racões com acesso pela passarela externa que cir- gindo, a partir de então, a “fábrica dos sonhos”. Os cunda todos eles e de onde se pode apreciar uma nomes podem mudar, mas permanecem as tradi- parcela dos processos de trabalho envolvidos na ções, o modo de fazer a festa e quem a faz aconte- produção artística dos desfiles carnavalescos. cer. As práticas de trabalho e/ ou de emprego pou- A presença de turistas e visitantes não atin- co se alteram, sendo preservado, nos intramuros ge, diretamente, a vida cotidiana das escolas, nem das novas instalações, o modo de fazer alegorias, altera, de imediato, as formas de organização dos adereços e fantasias. barracões. Ao contrário do que apregoam alguns A análise desses vários aspectos implica desa- discursos nostálgicos e, até certo ponto românti- fios, dentre eles, o de desvendar as suas intercone- cos, em relação às mudanças na festa carnavalesca xões e inter-relações. O surgimento da Cidade do na cidade do Rio de Janeiro. A abertura das ativi- Samba no Rio de Janeiro exemplifica, de um lado, dades que se desenrolam nos barracões aos olha- a implementação de uma política governamental res externos, mesmo que seja por algumas horas, de ativação social, no Brasil, baseada na propos- permite avaliar a situação em que se encontra cada ta de turismo sustentável cujo objetivo seria gerar agremiação carnavalesca para o próximo concurso emprego e renda diante da expansão dos negócios anual de Carnaval. relativos ao comércio de drogas; de outro lado, Os investimentos na construção de uma constitui um marco importante no desenrolar dos Cidade do Samba demonstram ao mundo “que festejos carnavalescos naquela cidade, como ava- o samba tem valor”,6 mas a sua emergência está lia uma das pesquisadoras do carnaval carioca.7 permeada por ambigüidades ao tentar contemplar Importa ainda destacar, nessa análise, a dimensão tanto olhares internos – por dentro – das esco- simbólica do samba e do carnaval, cujo sentido se las de samba, quanto os olhares externos ñ de encontra na cidade em que se localiza. fora. Desse modo, combina aspectos tradicionais e modernos na sua gestão, substituindo repressão policial por negociação e, em vez de negação, o Cidade do Samba e demandas sociais reconhecimento dos festejos populares, como ma- nifestação cultural. Nessa medida, expressa a arti- Nasce o sol e com ele é fincada culação entre demandas sociais, econômicas e a a primeira estaca8 dos próprios sambistas, embora a cidade do Rio de Janeiro já detenha um patrimônio histórico ex- A vocação turística do Rio de Janeiro alia- pressivo ao lado da exuberância da sua natureza. se à implantação e à expansão das atividades de Apesar disso, a proposta da Cidade do Samba cor- entretenimento como, por exemplo, a criação da robora essa vocação, tornando a cidade cada vez Cidade do Samba. Os discursos de representantes mais um pólo atrativo aos investimentos voltados das escolas de samba e dos governos locais enal- para um turismo sustentável. tecem os investimentos gerados pelos bens intan- É evidente o despreparo dos governantes gíveis no contexto de uma política governamental para tomar decisões relativas ao desenvolvimento de ativação social que se configurou, no Brasil, de turístico. Por isso, a maior parte das políticas go- modo fragmentado no decorrer dos anos de 1990. vernamentais está restrita ao traçado de rotas tu- Embora tenham sido influenciadas pelo sucesso rísticas, ou à delimitação de áreas que atendam às das políticas européias e norte-americanas, a sua expectativas de turistas. Assim, a administração do implementação, nesse país, caracteriza-se por cer- turismo parece, segundo Ramos, “um fenômeno ta dramaticidade, respondendo às tendências do 84 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66 mercado de emprego (Silva, 2006) e diante do re- Carnaval. Nesse momento, ganham outro sentido, crudescimento “da guerra aberta contra os jovens” ao compor a narrativa de um enredo, enquanto (Negri e Cocco, 2005, p. 111).9 um dos elementos dos códigos não-verbais (Blass, Nas palavras de Silva, “a ativação é vista 2007). como a cura para todos os males sociais, espe- As visitas a Cidade do Samba e, principal- cialmente para as altas taxas de desemprego, para mente, os espetáculos musicais e a performance as situações de exclusão e/ ou marginalização do dos sambistas que se desenrolam no pátio interno mercado de trabalho (assalariado) de longa dura- estão direcionados aos turistas nacionais e estran- ção” que implicam em custos elevados no enfre- geiros. Desse modo, busca-se o retorno financeiro tamento dessa “nova questão social”. Torna-se ur- dos investimentos públicos e privados aplicados gente “transformar despesas passivas em despesas na sua administração e funcionamento. Em cer- ativas”. (Silva, 2006, p. 96). ta medida, os argumentos sobre a transformação O cenário histórico, particularmente na ci- dos “velhos” barracões em “fábricas dos sonhos” dade do Rio de Janeiro, propicia a rápida adesão e a expansão de uma “indústria da folia” basea- aos projetos de intervenção social por meio de da no samba fundamentam-se nessa perspectiva. políticas governamentais com vistas à geração de Importa difundir a idéia do “novo”, mesmo sendo emprego e renda para jovens do sexo masculino. o “velho” que se configura sob outras condições São eles, segundo indicadores estatísticos, que se históricas. Então, o que se entende por “fábricas encontram mais vulneráveis aos atrativos exerci- dos sonhos” e “indústria da folia” ? Qual a relação dos pelo comércio de drogas no Rio de Janeiro. entre essas noções? Declara José Júnior, coordenador do Grupo Cultu- ral Afro Reggae, em entrevista a um jornal paulis- tano: “ninguém gera mais emprego que o tráfico Fábrica dos sonhos e em subúrbios e favelas. Tem sempre vagas porque indústria da folia há muitas mortes e prisões [...] hoje o que resolve é emprego [...]. A educação, infelizmente, ficou em “...o Carnaval é uma opção de emprego e de segundo plano”.10 geração de renda.” O projeto da Cidade do Samba é freqüente- Ba r b o s a (2004, p. 77) mente reverenciado pela imprensa, pelos sambistas e por representantes empresariais, governamen- Os dirigentes das agremiações carnavales- tais e das escolas de samba a partir de sua inser- cas, assim como os sambistas em geral, associam ção nas políticas de ativação social promovidas freqüentemente a produção artística dos desfiles pelo governo local. Em certa medida, essa avaliação carnavalescos ao modelo fabril. Contudo, são as positiva se relaciona com o fato de que os olhares linhas de montagem para produção em série das externos sobre o Carnaval recaem nas grandes es- indústrias automobilísticas que tomam como re- colas de samba, principalmente as cariocas, cada ferência histórica. Assim, a fábrica moderna, na vez mais focalizadas pelos meios de comunicação sua universalidade abstrata, torna-se emblemática, eletrônica em várias partes do mundo. mais uma vez, das formas de organização do tra- A grande maioria dos admiradores e partici- balho coletivo, apesar das peculiaridades das prá- pantes dos festejos carnavalescos, assim como de ticas de trabalho no barracão. outras festas populares, desconhecem os seus pre- A denominação “fábrica de ilusões”, ou en- parativos. Os múltiplos processos de trabalho que tão “de sonhos”, seria, talvez, uma tentativa para viabilizam, por exemplo, os desfiles de carnaval conquistar o reconhecimento social na implanta- ainda permanecem invisíveis, até mesmo na Ci- ção e no funcionamento da Cidade do Samba. As dade do Samba. Além de ficar visível apenas uma imagens divulgadas pela LIESA buscam legitimar o parcela dos processos de trabalho requeridos na fazer e o saber fazer carnaval. Antes mesmo des- construção dos carros alegóricos, todo esplendor se empreendimento, a idéia de fábrica relativa ao das alegorias e das fantasias só será desvelado no funcionamento e à organização dos processos de próprio desfile da escola de samba nos dias de trabalho na produção dos desfiles já era bastante Rompendo fronteiras 85 recorrente. Sem dúvida, a divisão de tarefas e a in- Isto significa admitir que o modo de fazer serção de cada um(a) na produção das alegorias e alegorias, adereços e fantasias não se altera, nem das fantasias atendem aos princípios da divisão do a produção dos desfiles carnavalescos, envolvendo trabalho. Porém, a fragmentação das tarefas, que múltiplos locais e diferentes tempos, permanece cria o trabalhador coletivo no barracão, remete ao seqüencial, sincrônica e simultânea. Além disso, as processo produtivo da manufatura, conforme já me práticas de trabalho continuam, fundamentalmen- referi em outras publicações (Blass, 1998, 2007). te, manuais e artesanais. A confecção de alegorias, A produção dos desfiles carnavalescos das es- fantasias e adereços não atende aos requisitos de colas de samba diz respeito ao fazer artístico cuja uma produção em massa, embora sejam montados lógica responde ao consumo e não à acumulação. a partir de centenas, ou mesmo milhares, de peças Nesse fazer, cada passo é dimensionado, as etapas prensadas, recortadas, coladas e pintadas. Mesmo são redimensionadas para atender metas predefi- assim, foge das diretrizes padronizadas exigidas nidas, exigindo previsão e controle das ações in- pelo funcionamento de linhas de montagem. Se dividuais. Quem faz os desfiles de Carnaval acon- cada carnaval é um carnaval, todos os anos reno- tecer, detém um saber fazer no seu ofício que lhe vam-se enredos e, por conseqüência, o modo de permite desempenhar as suas práticas de trabalho apresentar uma narrativa. em outros lugares. Conforme analisa Barbosa, “o As composições musicais articulam, por trabalhador de escola de samba, muitas vezes, por exemplo, sons de instrumentos musicais e pala- desempenhar um ofício convencional (carpinteiro, vras escritas em versos que variam de intensidade serralheiro, costureira etc), embora sendo orien- conforme as imagens mobilizadas pela letra de um tado para um resultado artístico, não se restringe samba de enredo. Na produção artística das ale- ao trabalho no barracão, desempenhando sempre gorias e das fantasias, formas, cores e linhas com atividades paralelas” (2004, p. 73). variação de ritmos são imaginadas antes de serem Admitindo esse fato, alguns autores partem expressas e ganharem materialidade. O imaginar da concepção da chamada “cadeia produtiva da depende da materialidade específica de cada cam- economia do carnaval” para descrever a produ- po de trabalho. No caso da pintura, o imaginar im- ção artística dos desfiles de carnaval nas grandes plica, como explica Ostrower, “ordenar, ou preor- escolas de samba, supondo que essa produção denar – mentalmente – certas possibilidades vi- dependeria, como ocorre em outras organizações suais, de concordâncias ou de dissonâncias entre produtivas, de vários setores tais como: indústria cores, de seqüências ou contrastes entre linhas, têxtil, de madeira, couro, plástico, chegando até, formas, cores, volumes de espaços visuais com rit- a indústria fonográfica e à radiodifusão.11 No en- mos e proporções” (2001, p. 35). tanto, essas análises ignoram o fato de que o fazer Dessa perspectiva, considera Renato Theo- artístico, nas suas múltiplas formas de expressão, baldo, carnavalesco da escola de samba Vai Vai, segue “estilos e ritmos ligados à intuição, à emo- entre 1991 e 1993, que saberes e fazeres interferem ção, às descobertas e aos acasos que dificultam a na produção artística dos desfiles carnavalescos. padronização de tarefas e atividades. Nesse senti- Para ele, desde tapeceiros, soldadores, carpintei- do, persegue a lógica da não linearidade” (Blass, ros, eletricistas, até compositores, percussionistas, 2006, p. 18). cantores, escultores, estilistas, costureiras, dese- Ao contrário do que apregoam muitos sam- nhistas, aderecistas etc., acrescentariam algo ao bistas e idealizadores da Cidade do Samba, os pre- enredo proposto por um carnavalesco, seja dando ceitos da modernidade restringem-se às decisões sugestões, seja introduzindo alterações na propos- administrativas ligadas ao condomínio e ao funcio- ta inicial da narrativa de um enredo. Por esse mo- namento de uma “cidade de fluxos”. Não atingem, tivo, fica difícil delimitar o aspecto autoral de um portanto, a forma de organização desses proces- produto que é sempre coletivo. sos de trabalho que sempre vigoraram no barra- Os vários prédios construídos na Cidade do cão. Por esse motivo, os prédios, que compõem a Samba constituem um dos lugares da produção dos Cidade do Samba, permanecem sendo “barracão desfiles das escolas de samba, ao lado das quadras dos sonhos” e não “fábrica dos sonhos”. e dos ateliês de fantasias. O seu funcionamento 86 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66 não se enquadra no modelo fabril porque não se O projeto da Cidade do Samba torna-se re- “fabricam” sonhos. Os artesãos e artistas envolvi- alidade a partir da dedicação e do envolvimento dos na produção artística de desfiles carnavalescos dos fazedores do Carnaval. Se tal projeto não fosse objetivam os sonhos, ou viabilizam sonhos que, expressão dos seus próprios protagonistas, estaria antes, eram apenas imagens que narrariam um provavelmente ainda adormecendo nas gavetas de determinado enredo. Nessa medida, permanecem algum órgão governamental. sendo “oficinas dos sonhos”.12 A idéia de uma Cidade do Samba, enquanto indústria da folia, abrange os quatorze prédios, Olhares sobre nós mesmos um museu a céu aberto, mas principalmente diz respeito às apresentações musicais que ocorrem Os sambistas viam a obra como se fosse a no pátio interno13 onde se pode ouvir e dançar própria casa16 samba. Na abertura das comemorações carnava- lescas de 2007, por exemplo, houve baile, corso, Nada é negligenciado no projeto da Cidade desfile de fantasias de luxo, evolução de passis- do Samba no Rio de Janeiro, inclusive a escolha do tas e ritmistas e um pequeno desfile ao som do local para sua edificação naG amboa. Essa escolha samba-enredo de 2006 da Vila Isabel, agremiação demonstra, de um lado, o reconhecimento das tra- carnavalesca que se sagrou campeã naquele ano. dições culturais, da experiência histórica dos afri- A imprensa local noticiou que “todas as ativida- canos e da presença urbana dos negros no Rio des tiveram como mestres de cerimônias: Milton de Janeiro. De outro lado, remete à ruptura das Cunha (carnavalesco da Porto da Pedra, em 2007) “muralhas” socioeconômicas e simbólicas que se- e Carlinhos de Jesus (coreógrafo da comissão de gregam os habitantes da baixada fluminense e os frente da Mangueira)”.14 moradores na cidade do Rio de Janeiro; ou então, Os “localismos” culturais e artísticos alcan- que separam zona norte e zona sul dessa cidade, çam os mercados planetários e são globalizados ou ainda que dividem asfalto e morros. “pela combinação entre espetáculo e competição Sua localização em Gamboa significa um re- desportiva, de um lado, e televisão, de outro, pelos torno às origens, como anuncia a revista editada circuitos musicais”. (Fortuna e Silva, 2002, p. 441) pela LIESA na suas várias páginas. Esse territó- Desse ponto de vista, torna-se fundamental inserir rio “concentra grande tradição da cultura popu- manifestações culturais e artísticas nos processos lar da Cidade, nomeadamente, de personagens e sociais da globalização como, por exemplo, as di- entidades ligadas ao Carnaval carioca” como, por ferentes formas de se brincar o carnaval. exemplo, os batuques de Tia Ciata na Praça Onze; Essa visão também transparece na análise de os clubes de rancho sedimentados por Hilário Jo- Figueira que chamar a atenção para “a expertise vino Ferreira e que inspiraram escolas de samba brasileira” no modo de fazer carnaval, principal- como a “Vizinha Faladeira”, uma das mais antigas mente, na versão criada pelas grandes escolas de agremiações carnavalescas, organizadas por esti- samba no Rio de Janeiro. Para essa autora, os seus vadores (cf. p. 9). Além disso, “o principal local de desfiles de Carnaval constituem uma invenção bra- desembarque e comércio de negros era na atual sileira potencializada por fluxos simbólicos que Praça Quinze e seus arredores. O crescimento do “nenhum outro país possui”.15 tráfico e a presença maciça de cativos incomodava O foco dessas análises recai, basicamente, na a burguesia” (Idem, p. 6) Então, por volta de 1770, festa propriamente dita e não o seu efetivo acon- o mercado de escravos foi transferido “para a re- tecer que se sustenta em relações sociais construí- gião do Valongo, até então ocupada por chácaras das e reconstruídas no cotidiano de uma escola e hortas” (Idem, p. 7) Entre as chegadas e saídas de samba. O transcorrer dos desfiles oficiais, no dos negros para as minas e lavouras, eles “batuca- Sambódromo, funda-se nesse aspecto, mas tam- vam e cantavam para matar um pouco a saudade bém depende do empenho de seus integrantes e de sua terra, para onde, certamente, nunca mais da adesão dos foliões ao enredo narrado por uma voltariam”. Nessas proximidades, surgiriam as pri- determinada agremiação carnavalesca. meiras rodas de samba (Idem, p. 8). Rompendo fronteiras 87

O fazer carnaval, antes desprezado ou igno- desenvolvidas pelas escolas de samba fora desse rado, conquista, gradativamente, a legitimidade período. Tanto que está escrito em letras enormes junto aos órgãos governamentais locais, ganhan- nos cartazes fixados nas paredes externas no en- do maior visibilidade na sociedade brasileira. Para torno da Cidade do Samba: “aqui o Carnaval é o alguns autores, essa mudança decorre da trans- ano inteiro.” ferência da capital federal para Brasília. Escreve As referências ao passado, bastante recorren- Figueira, “como o Rio de Janeiro havia perdido a tes nos documentos oficiais consultados na elabo- função de capital federal, a condição turística da ração deste texto, são acompanhadas pela difusão cidade passou a ser enfatizada. O Carnaval tornou- de um ideário moderno associado às movimenta- se o principal produto no mercado de turismo de ções de britadeiras, guindastes, soldas para fun- entretenimento carioca (e assim) compete com ou- dações, terraplanagem etc. que são utilizados em tros carnavais – o de Salvador, por exemplo”.17 quaisquer edificações. Do ponto de vista dos diri- Os desfiles anuais de Carnaval das grandes gentes das escolas de samba e dos fazedores dos escolas de samba tornam-se, ao mesmo tempo, festejos carnavalescos, a construção de um local um evento cultural, político, econômico e alteram destinado exclusivamente à produção dos desfi- ainda a paisagem urbana.18 A construção da Ci- les carnavalescos reafirma e demonstra que esses dade de Samba poderia, nesse sentido, abrir um festejos devem ser levados a sério, extrapolando a debate em torno da proposta de revitalização ur- idéia de uma simples brincadeira. Nessa medida, põe a descoberto os múltiplos processos de traba- bana, ao interferir no entorno de um “pedaço” da lho que se desenrolam durante meses. cidade, ampliando ruas e avenidas para translado Enfatizando a racionalidade técnica suben- das alegorias até a área de concentração no Sam- tendida no projeto da Cidade do Samba, os seus bódromo, onde acontecem os desfiles nos dias de idealizadores lembram que “para montar uma li- Carnaval. O percurso é mantido, mas se alteram nha de produção aproximada do ideal, os arquite- “as facilidades de manobra no interior e no entor- tos passaram quase dois anos visitando os antigos no a Cidade do Samba”, promovendo um “espetá- barracões nos armazéns das Docas, estudando, culo que a cidade não vê”. detalhadamente, todo o processo de construção Desde a inauguração do Sambódromo na de alegorias e produção de fantasias”.19 Portanto, Marquês de Sapucaí, em 1984, sambistas e dirigen- o que já existia foi refeito com o uso de outros tes das escolas de samba reivindicavam alterações materiais e de recursos tecnológicos oferecidos no traçado urbano para atenuar os transtornos no pela construção civil. Não se trata de um “novo” tráfego em virtude do translado das alegorias às projeto, pois o layout dos “antigos” barracões não é alterado. A área central com uma altura equiva- lente a três andares, onde são construídos os car- ros alegóricos, encontra-se, contudo, em ambiente fechado e, portanto, protegida das intempéries. A revista da LIESA, tentando demarcar as Revista News Liesa , n. 5, p. 24 mudanças implementadas pelo projeto arquitetô- nico da Cidade do Samba, enfatiza especialmente o tamanho dos portões dos barracões e ao uso do ar comprimido para o translado dos carros alegó- ricos com altura excessiva para atravessar as ruas da cidade até o Sambódromo. Apesar das imagens divulgadas nessa publicação, essa solução técnica já havia sido introduzida na confecção dos car- ros alegóricos antes da construção da Cidade do vésperas dos dias de Carnaval. A construção da Cidade do Samba atende essa demanda, mas tam- Samba. bém torna mais visível uma parcela das atividades As descobertas e as soluções técnicas são, assim, reatualizadas. Se antes enormes esculturas 88 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66 e adereços saiam pelas janelas dos armazéns com de trabalho experimentadas pelos fazedores dos auxílio de talhas e guindastes e eram colocados, desfiles carnavalescos na Cidade de Samba.N o en- completando os carros alegóricos estacionados tanto, todas as tarefas e as atividades requeridas na produção artística dos desfiles de carnaval sempre foram, detalhadamente, planejadas e preparadas em suas diferentes etapas, como já apontei em ou- tros textos. As dificuldades diziam respeito à circulação de materiais e de peças, assim como à falta de re- feitórios e/ou à pouca disponibilidade de sanitários tanto para homens, como para mulheres. Barbosa Henrique Matos conclui, apoiando-se nas palavras de Louzada, car- navalesco da Beija Flor, que os antigos barracões lembram “os ambientes insalubres das fábricas dos primórdios da revolução industrial [sem qualquer] semelhança com o brilho e a beleza das alegorias nas ruas em frente aos barracões, agora na Cidade e adereços que ali são produzidos” (2004, p. 75). do Samba, eles “descem” pelo vão interno aber- Convém ressaltar que uma certa desordem to no teto do 3º piso e são posicionados sobre e uma aparente desorganização transparecem no os carros alegóricos distribuídos na área central funcionamento cotidiano dos atuais barracões, 20 dos barracões. Assim, esses carros saem dos bar- como pude constatar em visitas recentes. É forço- so reconhecer, nesse sentido, que todo ato criativo racões, completamente, finalizados. Ou seja, tudo supõe incertezas e descobertas que são, muitas ve- acontece dentro dos barracões. Alteram-se as con- zes, imprevisíveis no projeto inicial. Por isso, as so- dições de trabalho, sem modificar a base técnica luções parecem improvisadas, prefigurando uma da produção artística dos desfiles de carnaval cuja idéia de falta de organização, mas elas, na rea- gestão permanece sob a coordenação e respon- lidade, resultam, conforme Ostrower (2001), dos sabilidade do carnavalesco contratado para “fazer próprios desafios relativos aos atos de criar. um determinado carnaval” junto com a comissão Nas apresentações dos desfiles de carnaval, de Carnaval da escola de samba. no Sambódromo, as alegorias tornaram-se cada Os idealizadores da Cidade do Samba consi- vez maiores em largura e altura; os adereços e deram a denominação “barracão” ultrapassada na as fantasias ganharam mais volume para que pu- medida em que remete aos “tempos difíceis” da dessem ser apreciados pelo público das arquiban- produção dos desfiles. Que tempos difíceis eram cadas. Essas modificações exigiram mudanças no esses? Eram os tempos em que o próprio espaço desenho dos barracões e no tamanho dos portões para montar os carros alegóricos era criado e re- através dos quais entram e saem os carros alegóri- criado a todo instante na base do imprevisto. A cos. A reorganização espacial de antigos barracões improvisação começou, como ressalta a revista da provoca, por sua vez, algumas alterações no pro- LIESA, “nos subúrbios, passou pelo Pavilhão de jeto das esculturas, ou em parte delas. Nos barra- São Cristóvão e terminou nas Docas”. Eram “tem- cões da Cidade do Samba, elas são confeccionadas pos difíceis”, quando os carros eram acabados nas quase sem articulações e podem ser observadas ruas e nem havia lugar para mexer a tinta a ser de cima para baixo, isto é, elas são postas nos car- usada na arte final das esculturas e das alegorias. ros alegóricos como serão vistas por muitos espec- Os discursos institucionais difundem, assim, tadores nos desfiles oficiais de carnaval protagoni- a idéia da “falta de espaço interno” como “um obs- zados pelas grandes escolas de samba na cidade táculo à produção”, levando a improvisação, ba- do Rio de Janeiro. O manejo da talha, sob o piso gunça e sujeira. Em contraposição, aos “antigos” do 4º pavimento, abre essa possibilidade sem que barracões, ressaltam o planejamento sistemático, seja necessário muito esforço físico por parte dos a ordem e a limpeza que distinguem as condições artesãos. Além disso, as esculturas e os adereços Rompendo fronteiras 89 são colocados em várias posições, ampliando as sofrimento experimentado por grande parte da soluções estéticas população” diante de “um poder de fazer morrer” Essas transformações exigem outra tecnolo- arbitrário e generalizado disseminado pela cidade, gia, envolvendo o saber fazer dos antigos ferreiros como escrevem Negri e Cocco, (2005, p. 111). Esses e soldadores. Nos anos de 1980, esses artesãos de- autores tentam desvendar a dinâmica das cidades dicavam atenção especial na concepção das dobras contemporâneas no Brasil, em particular (a do) Rio das esculturas21 a fim de preservar as alegorias na de Janeiro, a partir do conceito de biopoder, for- sua montagem e desmontagem durante o transla- jado por Foucault. A concepção de biopoder, lem- do para as apresentações das escolas de samba, bra Pelbart, “destina-se a produzir forças e fazê-las no Sambódromo, uma vez que os carros alegóri- crescer, mais do que barrá-las [...]. Gerir a vida cos atingiam uma altura cuja medida ultrapassava mais do que exigir a morte” (2007, p. 22). Contu- a altura máxima dos telhados aonde eram produzi- do, Negri e Cocco ampliam esse conceito a fim de dos.22 Portanto, o produto final revela as condições ressaltarem, segundo Pelbart, a “dimensão racista sociais concretas em que o saber fazer dos artesãos ofuscada, quando não sistematicamente ocultada, se realizava. Por isso, muitos sambistas consideram da dominação no Brasil” (Idem, ibidem). que foram tempos gloriosos, mas difíceis. Essa dimensão converge, importa frisar, com As oposições entre tradicional e moderno, no a visão etnocêntrica que sobreleva o corpo que que se refere aos locais de produção das alego- dança e, justamente, o exotismo do “samba no pé”, rias, expressam-se na mobilização de um ideário cujos gestos e movimentos das passistas respon- fabril e nas imagens de uma “indústria da folia” dem à cadência da percussão de uma bateria de es- limpa e organizada que concretiza sonhos. Nada cola de samba. Os turistas desejam conhecer de é mencionado a respeito do entorno urbano que perto e vivenciar por alguns instantes essa expe- permanece tão deteriorado quanto era antes da riência, tentando mover o corpo ao ritmo do sam- construção da Cidade do Samba na Gamboa. ba, mesmo que sejam desajeitados. A Cidade do Tendo em vista essas considerações, seria im- Samba torna-se, assim, um dos lugares investidos portante distinguir, em primeiro lugar, o funciona- de significados e de interpretações dos próprios mento dos barracões, enquanto local de produção turistas. Comenta Fortuna a esse respeito: “dada artística, e as atividades relativas aos espetáculos a sua permanência, por definição, limitada nestes musicais nas quais atuam alguns componentes das lugares, e dado o seu descomprometimento com escolas de samba a fim de promover a “folia”. Em a história e a cultura locais, o turista pode exa- segundo lugar, é preciso observar que a divisão e gerar na avaliação simbólica do lugar e investi-lo a hierarquia entre as escolas de samba na cidade de qualidades extra-ordinárias” (1999, pp. 68-69, do Rio de Janeiro não só permanecem, mas prin- grifos do autor). cipalmente aprofundam-se. Os critérios estabele- Os fluxos econômicos dos eventos culturais cidos para a escolha e a ocupação dos barracões e artísticos, se sintonizados aos fluxos simbólicos, institucionalizam, sem dúvida, a predominância promovem o alcance das políticas governamentais das maiores em detrimento das escolas menores. de ativação social baseada nos pressupostos do turismo sustentável. Ou seja, esses fluxos com- plementam-se por meio de imagens e ideais vei- Considerações finais culados pelos meios eletrônicos de comunicação social e também pela movimentação de turistas As referências históricas que buscam justifi- que difundem outro modo de estar no mundo. car a escolha da localização urbana da Cidade do Assim, os fluxos culturais globais compreendem, Samba revelariam, na perspectiva deste artigo, o na perspectiva de Appadurai, cinco dimensões reconhecimento das tradições culturais, da experi- ou panoramas disjuntivos: etnopanorama, midia- ência histórica dos africanos e da presença urbana panorama, tecnopanorama, finançopanorama e dos negros no Rio de Janeiro. A sua implementa- ideopanorama,23 que se encontram em constante ção consistiria, no entanto, uma “resposta biopo- tensão entre homogeneização e heterogeneidade lítica” às “dimensões desumanas e o imensurável cultural. Importa considerar para a análise pro- 90 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66 posta neste artigo os etnopanoramas e os midia- va na Cidade do Samba. A programação das suas panoramas. Os primeiros dizem respeito às “pes- atividades busca atender, antes, aos olhares dos soas que constituem o mundo em transformação turistas que têm acesso, embora restrito, aos bar- em que vivemos: turistas, imigrantes, refugiados, racões e participam da programação musical e de exilados etc.”, incluindo a intensa circulação des- outras atividades na “indústria da folia”. sas pessoas pelo mundo; enquanto os segundos As políticas de ativação social são avaliadas abrangem a “distribuição das capacidades eletrôni- a partir da expansão dos níveis de emprego e das cas de produzir e disseminar informações através remunerações pagas na Cidade do Samba. A esse de jornais, revistas, estações de televisão, estúdios respeito é importante distinguir quem é contrata- de filmagens etc.”, bem como um vasto e com- do para atuar nos barracões e quem é contratado plexo repertório de imagens, de narrativas e de para as atividades fora deles, isto é, na “indústria etnopanoramas para os espectadores do mundo da folia”. inteiro...” (Appadurai, 1998, p. 315) Importa assinalar, mais uma vez, que cada A mediação eletrônica marca, portanto, um escola de samba seleciona e contratada os artesãos campo mais vasto do que as formas de mediação e artistas para as atividades a serem desenvolvidas escrita, oral, visual e auditiva. Por isso, estamos nos barracões, como já ocorria, anteriormente. A “perante uma nova ordem de instabilidade no que novidade reside na contratação de passistas, rit- respeita à produção de subjetividades modernas” mistas e de outros profissionais do carnaval para que extrapolam os limites nacionais e entrecru- atuar nos shows musicais e nos demais programas zam diferentes experiências locais na elaboração de entretenimento oferecidos na Cidade do Samba de projetos individuais e coletivos. Desse modo, com vistas à geração de capital. Se eles, por quais- “a imaginação é hoje fundamento para ação e não quer motivos, deixarem de receber seu pagamen- apenas para fuga” (Appadurai, 1998, p. 202). to, esse processo corre o risco de interromper-se, Diante do exposto, os discursos em torno da inviabilizando parte das atividades previstas no defesa das manifestações culturais nacionais como projeto de construção da Cidade do Samba no Rio mecanismo de resistência diante das tendências de Janeiro. históricas de homogeneização das práticas cultu- A sua implantação não alterou o funciona- rais em tempos de globalizações, perdem seu im- mento e a organização dos processos de trabalho pacto. O ressurgimento das manifestações locais, nos barracões. Institucionaliza, contudo, as desi- regionais ou mesmo nacionais não constituiria gualdades econômicas e sociais entre as agremia- “uma espécie de reação à globalização, mas uma ções carnavalescas, reafirmando, inclusive, as ima- espécie de combinação sincrética das culturas [...]. gens de que “o povo estaria fora da grande festa”. Desta forma, um número de variantes locais da- Os “estrangeiros” e os turistas são, sem dúvida, os quela que é a cultura globalizada desenvolve-se e principais consumidores, porém é difícil separar, integra-se, em vez de se contrapor” (Hobsbawm, de um lado, fazedores e, de outro, consumidores. 2000, p. 108, grifos meus). Não se pode ignorar que os fazedores da “da folia Tradições são, portanto, reinventadas e recria- na Cidade do Samba” são também consumidores das no contexto de trocas intensas de idéias, ideais em outros lugares, particularmente nas escolas de e pessoas, aumentando a sua interdependência samba às quais pertencem. nas sociedades contemporâneas. Esse intercâmbio Neste artigo, pretendi chamar a atenção para constante traz, segundo Fortuna e Silva, “também os múltiplos aspectos que envolvem a construção oportunidades de protagonismo na área da oferta da Cidade do Samba no Rio de Janeiro. Um deles cultural, que vários países vêm explorando, seja diz respeito a sua dimensão simbólica, pois é a por via de afinidades regionais ou lingüísticas, seja própria expressão dessa cidade. Outro aspecto tra- por via de valorizações mais ou menos conjuntu- ta da importância da desfolclorização dos festejos rais das suas imagens de marca” (2002, p. 442). carnavalescos, o que constitui uma visão bastante Os processos sociais da globalização alargam, difundida pelos olhares estrangeiros. Outro aspec- portanto, o mercado consumidor dos “localismos” to seria ainda mostrar que o Carnaval “é coisa sé- culturais e artísticos como, por exemplo, se obser- ria”. Essa festa faz parte da nossa vida cotidiana, Rompendo fronteiras 91 tendo em vista que algumas formas de sociabilida- homicídios por 100 mil habitantes, superando “as de e de convivência sobreviveram e persistem nas mortes causadas por acidentes de trânsito” (Negri sociedades contemporâneas. E, finalmente, explo- e Cocco, 2005, p. 111). rar um dos paradoxos do tempo presente quando 10 Folha de São Paulo, “Militar na rua não dá certo, as soluções de gestão e de organização considera- diz líder da ONG”, 2 de maio de 2004, C4. das mais modernas pressupõem tradições que são, 11 Cf. “Um mundo de significados”,Sociologia , ano 1 assim, preservadas. (4): 31, 2007. 12 essa designação remete à exposição fotográfica “Oficinas do sonho: a Beija-flor vista do barracão” de Valtemir Valle, realizada no MAC-USP, com a NOTAS curadoria de Maria Lúcia Montes, entre dezembro de 1993 e fevereiro de 1994. 1 Cf. News Liesa, 5, edição especial, p. 26. Publica- ção da Liga Independente das Escolas de Samba 13 Cf. as imagens fotográficas divulgadas pela LIESA, (LIESA), principal fonte de dados das reflexões ou mesmo as fotos feitas por mim. apresentadas neste texto. 14 “Baile: début da Cidade do Samba”, O Globo, 17 2 essas informações resultam das visitas que fiz nos de fevereiro de 2007, p. 3. dias 10 e 11 de dezembro de 2007 às dependên- 15 Cf. “Um mundo de significados”,Sociologia , ano 1 cias da Cidade do Samba. (4): 31, 2007. 3 Convém lembrar as experiências ocorridas em 16 Cf. News Liesa, 5: 18. Barcelona (Espanha), por ocasião das Olimpíadas de 1992, e em Lisboa (Portugal) com a realização 17 Cf. “Um mundo de significados”,Sociologia , ano 1 da Expo 98. (4): 30, 2007. 4 Alguns integrantes da bateria e componentes do 18 Os desfiles de Carnaval no Rio de Janeiro seriam, GRES Beija-Flor recebem, na Cidade do Samba, para Cavalcanti, a expressão mais acabada da ci- a São Clemente, escola de samba vencedora no dade contemporânea. Cf. entrevista com Maria grupo de Acesso, no concurso oficial de 2007. Laura Cavalcanti, publicada no jornal O Globo, 17 Instala-se no prédio antes ocupado pela Porto da de fevereiro de 2007, p. 6. Pedra, ou seja, o de n. 6. 19 Cf. News Liesa, p. 25. 5 na visita que fiz a Cidade do Samba, em dezem- 20 Ver nota 2. bro de 2007, a distribuição dos prédios apresen- ta algumas alterações. No prédio n.1, funcionam 21 Ver Montes (1993, pp. 10, 20 e 21). oficinas de formação profissional para o trabalho no carnaval. Essas oficinas são coordenadas pela 22 Idem, p. 14. LIESA. Nesse local, estão também expostas alego- 23 O sufixo panorama é usado por Appadurai para rias que foram feitas em várias escolas de samba. designar as interpretações prospectivas que se O prédio n. 3 pertence a e o n. 7 está moldam pela posição histórica, lingüística e polí- desocupado, tendo sido, até o Carnaval de 2007, tica de diferentes agentes sociais, sendo o agente alugado pela Império Serrano. Importa registrar individual o “último local deste conjunto” (1998, que essa agremiação carnavalesca e a Porto da p. 312). Pedra obtiveram as últimas colocações no Grupo Especial, nesse ano. Assim, os seus barracões dei- bibliogrAfia xaram de funcionar na Cidade do Samba. 6 expressão do samba A voz do morro, de Zé Ketti. APPADURAI, A. (1998), “Disjunção e diferença na 7 Cf. Entrevista com Maria Laura Cavalcanti (O Glo- economia cultural global”, in M. Fea- bo, 17 de fevereiro de 2007, p. 6). therstone, Cultura global: nacionaliza- 8 Legenda da fotografia reproduzida na p. 13 da re- ção, globalização e modernidade, Petró- vista News Liesa, 5. polis, Vozes. 9 Segundo os dados apresentados por Negri, no ano de 2000, 57,1% dos homicídios são de jovens ______. (2000), “Aqui e agora”. 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ROMPENDO FRONTEIRAS: A CI- BREACHING FRONTIERS: SAMBA FRONTIÈRES QUI S’ESTOMPENT: DADE DO SAMBA NO RIO DE JA- CITY IN RIO DE JANEIRO LA ville DU SAMBA À RIO DE JA- NEIRO NEIRO

Leila Maria da Silva Blass Leila Maria da Silva Blass Leila Maria da Silva Blass

Palavras-chaves: Rio de Janeiro; Keywords: Rio de Janeiro; Tourism; Mots-clés: Rio de Janeiro; Touris- Turismo; Escola de samba; Traba- “Samba schools;” Work; Festivities. me; École de samba; Travail; Fête. lho; Festa. The article deals with the project of Le texte aborde le projet “Ville du O texto aborda o projeto da “Cidade do a “Samba City,” built in a central area Samba”, cité construite dans une Samba”, construída numa zona cen- in Rio de Janeiro. The barracoes zone centrale de Rio de Janeiro. tral do Rio de Janeiro. Neles funcio- (warehouses and workshops) of the Dans cette “ville” ont été installés nam os barracões das grandes esco- biggest ‘samba schools,’ members of les barracões (entrepôts et ateliers) las de samba da Liga Independente the Liga Independente das Escolas des grandes écoles de samba de la das Escolas de Samba, onde são fei- de Samba (Samba Schools Indepen- Ligue Indépendante des Écoles de tas as alegorias e parte das fantasias dent League), are set up in those Samba, où sont fabriqués les allégo- e dos adereços dos desfiles carna- buildings, where the allegorical flo- ries et une partie des costumes et valescos anuais dessas escolas. Na ats and some of the costumes and des ornements portés par les mem- praça, há um palco para espetáculos props for the carnival annual parade bres de ces écoles dans les grands musicais e de dança sobre o ritmo of these schools are made. In the défilés carnavalesques annuels. Sur do samba, destinados aos turistas. square there is a stage for both mu- la place, une scène a été construite A análise considera os vários aspec- sical and dancing samba shows ai- pour des représentations de musi- tos – sociais, econômicos e histó- med at tourists visiting Rio de Janei- que et de danse sur des rythmes de ricos, além das reivindicações dos ro. The analysis considers not only samba destinés aux touristes. L’ana- próprios sambistas – inter-relaciona- the social, economic, and historical lyse considère les différents aspects dos nesse projeto. Assim, as frontei- aspects involved in the project, but – sociaux, économiques et histori- ras que separam práticas de traba- also the members’ de- ques, ainsi que les revendications lho, emprego e atividades conside- mands, since they are all interrela- des sambistas – liés à ce projet. En radas de lazer, e também a cidade e ted. Thus, the frontiers that separate conséquence, les frontières qui sé- as festas, tornam-se mais tênues, ou employment and working practices parent les pratiques de travail, d’em- mesmo acabam por se romper. from leisure activities are tenuous or ploi et les activités de loisir, ainsi may end up being broken, and the que la ville et les fêtes, deviennent same can be said of those which di- moins visibles ou finissent même vide daily life from festivities in the par se rompre. city.