UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE MÚSICA PÓS-GRADUAÇÃO

A IMPORTÂNCIA DA IMPROVISAÇÃO NA FORMAÇÃO MUSICAL

DO INTÉRPRETE

Claudio Peter Dauelsberg

Rio de Janeiro 2001

CLAUDIO PETER DAUELSBERG

A IMPORTÂNCIA DA IMPROVISAÇÃO NA FORMAÇÃO MUSICAL DO INTÉRPRETE

Dissertação apresentada à Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música.

Orientador: Prof. Dr. Samuel Mello Araújo Júnior

RIO DE JANEIRO 2001

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE MÚSICA PÓS-GRADUAÇÃO

A Dissertação:

A IMPORTÂNCIA DA IMPROVISAÇÃO NA FORMAÇÃO MUSICAL DO INTÉRPRETE elaborada por:

CLAUDIO PETER DAUELSBERG e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pela Escola de Música e homologada pelo Conselho de Ensino para Graduados e Pesquisa como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM MÚSICA

Rio de Janeiro, 28 de Agosto de 2001.

Banca Examinadora:

______Prof. Dr. Samuel Mello Araújo Junior (Orientador)

Prof. Dr. Almeida Prado

Prof. Dr. Leonardo Fuks

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Dedico esta pesquisa a todos os músicos que, a exemplo de Keith Jarreth e Friedrich Gulda, buscam a ousadia em cruzar as fronteiras de sua formação, não se acomodando e enveredando no aprofundamento em atingir o “expertise” em áreas que não detêm domínio, mesmo quando já são reconhecidos e estabilizados em suas áreas específicas.

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AGRADECIMENTOS

Ao orientador Samuel Mello Araújo Júnior pelo incentivo, por acreditar no meu trabalho e pela orientação competente e amiga.

À Professora Fátima Tacuchian, pela contribuição inicial em parte do aspecto formal e delimitação do tema.

Ao Professor Antonio Jardim, pela contribuição valiosa e disponibilidade de uma tarde inteira no apoio à conclusão da pesquisa etimológica.

Aos entrevistados: Marlos Nobre, Mauricio Carrilho, Marcelo Fagerlande,

Mario Sève, Rodolfo Caesar e Alexandre Rachid, pela colaboração com informações específicas sobre suas áreas de atuação, tornando possível a realização desta pesquisa.

Ao Telmo Cortes, por sua competente orientação pianística.

À Maria Nilda Bizzo, pela valiosa Co-orientação e amizade. Mesmo não sendo da área da música prestou uma importante contribuição na estruturação desta Dissertação, além de uma assistência permanente, com profunda dedicação em cada etapa, indispensáveis para a elaboração desta pesquisa. Agradeço, ainda, por me encorajar nos momentos difíceis.

À Cirlei de Holanda, pela competente revisão final.

À Maria Luiza Nobre e Eliane Salek, pelas informações preciosas e pelo acesso aos seus documentos particulares.

A todos que colaboraram de alguma forma e influenciaram decisivamente este trabalho: Tamara Ujakova, Sergio Tavares, Giulio Draghi, Nadje Breide, Paulo Peloso,

Luis Orlando Carneiro, Jeanine Freire e Eloisa Rezende.

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À Heloisa Feichas, pelo apoio e tradução de um capítulo do Nettl e revisão do material referente ao anteprojeto.

Aos professores do Programa de Mestrado em Música da UFRJ, pela excelência dos cursos ministrados.

Ao amigo Ricardo Chemas, pela troca intelectual mesmo à distância.

Ao colega de mestrado Sergio Monteiro, pela amizade e companheirismo.

Agradeço à meus pais, Myrian e Peter Dauelsberg, meu irmão Steffen, minha avó Mariuccia, e todos meus familiares, pela confiança e força durante o período da pesquisa. Agradeço especialmente à Alexandra Santos pela compreensão e companheirismo.

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“Assim como a criação, a invenção, a improvisação é um começo: é o estado germinal ou inicial do canto, a música nascente. Mas o improvisador não procuraria se já não tivesse encontrado; na realidade ele não inventa do ‘nada’, já que a partir do nada a imaginação nada cria. O improvisador, por mais despreparado que seja, não começa do nada, pois é herdeiro de um passado e de sinais virtuais que se tornarão visíveis ao calor da inspiração”(JANKÉLÉVITCH,1998:111).

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SUMÁRIO

A IMPORTÂNCIA DA IMPROVISAÇÃO NA FORMAÇÃO MUSICAL DO INTÉRPRETE

Pág.

INTRODUÇÃO...... 15 CAPÍTULO I - A IMPROVISAÇÃO MUSICAL: Seu Histórico na Música Ocidental de Concerto e sua manifestação no século XX...... 20 1.1- Introdução...... 20 1.2 – A Improvisação na Era Cristã e no Período Barroco ...... 20 1.3 - A Improvisação no Período Romântico e Impressionista...... 32 1.4 – A Improvisação no Século XX...... 38 1.4.1 - Música Aleatória...... 38 1.4.2 – Música Popular ...... 47 1.5 – Síntese e Reflexões...... 58

CAPÍTULO II - A IMPROVISAÇÃO EM PERSPECTIVAS MUSICOLÓGICA E INTERCULTURAL...... 59 2.1 - Introdução...... 59 2.2 – Conceitos sobre Improvisação...... 60 2.3 – Improvisação, Composição e suas Fronteiras...... 70 2.4 - Síntese e Reflexões...... 78

CAPÍTULO III - A IMPROVISAÇÃO: UMA QUESTÃO DE TALENTO “NATURAL”?...... 81 3.1 – Introdução ...... 81 3.2 – Aspectos Psicológicos que envolvem as práticas improvisatórias...... 82 3.2.1 - Estruturas Cognitivas e suas Implicações ...... 88 3.2.2 - Desenvolvimento do Intérprete e suas Práticas...... 94 3.3 – Levantamento de Diversas Formas relacionadas à Improvisação Musical ...... 127 3.3.1 - A Improvisação em forma de Seqüência Harmônica Pré-estabelecida...... 128 3.3.2 - Improvisação em forma de Ornamentação de uma melodia dada ...... 128 3.3.3 - Improvisação em forma de Variações...... 133 3.3.4 - Improvisação em forma Livre ...... 135 3.3.5 - Improvisação em forma de estrutura de Fuga...... 139 3.3.6 - Improvisação Interpretativa...... 142 3.3.7 - Improvisação Aleatória Controlada ...... 148 3.4 – Síntese e Reflexões ...... 149

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CONCLUSÃO...... 152

REFERÊNCIAS CITADAS...... 164 • 1. Referências Bibliográficas...... 164 • 2. Entrevistas ...... 169

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RESUMO

A presente Dissertação discute a importância do resgate da prática improvisatória na formação musical do intérprete, procurando desmistificá-la enquanto talento nato. Para tanto, recorremos a abordagens histórica, filosófica, etnomusicológica e psicológica, tendo como referenciais conceituais autores como Ferand, Jankélévitch, Nettl,

Berliner e Pressing.

Esta Dissertação está estruturada em três capítulos e baseada em pesquisa bibliográfica e entrevistas com especialistas em suas áreas, considerados relevantes para este trabalho, como Marlos Nobre, Maurício Carrilho, Marcelo Fagerlande, Mário Sève,

Rodolfo Caesar e Alexandre Rachid.

No primeiro capítulo desta Dissertação, verificamos os elementos improvisativos na música, presentes historicamente, desde o período cristão, com os cantos gregorianos, até o século XX, com as músicas de concerto e popular, observando semelhanças em cortes sincrônicos entre os diversos elementos improvisativos dos diferentes períodos históricos.

No segundo capítulo, apresentamos um mapeamento com diferentes conceituações sobre a improvisação, sua evolução e relação com a composição, criando analogias e examinando suas problemáticas.

No terceiro capítulo, examinamos os processos que envolvem a prática de tornar “espontâneo” e “natural” a execução de um material musical, ou seja, procura-se investigar se esses processos resultam unicamente de uma habilidade inata.

Na conclusão, apresentamos aspectos relativos à desmistificação da improvisação enquanto talento nato e sua importância na formação musical do intérprete,

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procurando elucidar questões “nebulosas” que cercam as práticas improvisatórias, bem como levantando considerações sobre causas e conseqüências da separação do intérprete- compositor.

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ABSTRACT

The present Dissertation discusses the importance of the improvisational practice redemption in the interpreter background, trying to demystify it while innate talent. To do that, we made use of historical, philosophical, ethno-musicological and psychological approaches, based on conceptual references of authors such as Ferand, Jankélévitch, Nettl and Pressing.

The following Dissertation consists of three chapters, based on bibliography research and interviews with experts in their respective areas considered pertinent to this work, such as Marlos Nobre, Maurício Carrilho, Marcelo Fagerlande, Mario Sève, Rodolfo Caesar and Alexandre Rachid.

In the first chapter, we have the improvisational elements in music, which have been historically present since the Christian Period, throughout the Gregorian chants, until the 20th Century, throughout concert music and popular music, and we observe the contemporary similarities among many principles in different historical periods.

In the second chapter, we make an analysis of the different appraisals about the improvisation, its evolution and its relation with the composition, producing analogies and examining their problematic points.

In the third chapter, we focus on the processes related to the practice of making the performance of a musical theme spontaneous and natural, in other words, we aim to investigate whether these processes result only from an inherent skill.

In the conclusion, we present the aspects related to the demystification of improvisation while innate talent and its importance in the musical background of the interpreter, seeking to clarify obscure questions that surround the improvisational practices, as well as taking into consideration some causes and consequences of the separation interpreter/.

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LISTA DE FIGURAS

Pág.

Figura 1 - Canto Gregoriano - Gradualverse Domine refugium und Ad nnuntiand...... Capítulo 0 21

Figura 2 - Lied (Paul Hofhaimer)...... 23

Figura 3 - Adagio für Violine und Basso Continuo (Arcangelo Corelli)...... 25

Figura 4 - Kammerduett für Sopran und Alt (Francesco Durante)...... 26

Figura 5 - Freie Fantasie für Kavier (Carl Philipp Emmanuel Bach)...... 28

Figura 6 – Trecho do Adágio da Toccata (J.S. Bach)...... 30

Figura 7 - Capriccio für das Pianoforte (Czerny)...... 30

Figura 8 – Prelúdios de Clara Schumann...... 36

Figura 9 - Indeterminação quanto ao valor de duração das notas...... 45

Figura 10 - Elementos de improvisação com relação a extensão de notas...... 45

Figura 11 – Sonâncias III, Opus 49 (Marlos Nobre)...... 46

Figura 12 – Formação de Estruturas Cognitivas...... 66

Figura 13 – Expansão de Estruturas Cognitivas...... 66

Figura 14 – Formas de Criação Musical: improvisação e composição como pólos opostos de um mesmo contínuo...... 74

Figuras 15a e 15b – Representação esquemática do Processo de Formação e Expansão das Estruturas Cognitivas...... 91

Figura 16 – Dinâmica dos possíveis direcionamentos da atenção do intérprete durante a performance improvisada...... 104

Figura 17 – SUINGUE...... 111

Figura 18 – Prática de Fusão...... 117

Figura 19 - Prática de Interligação Direta ( através da PCV)...... 118

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Figura 20 – Representação de Intercâmbio entre Idéias Melódicas...... 119

Figura 21 – Extração...... 120

Figura 22 – Truncamento...... 121

Figura 23 – Contração de Frases...... 121

Figura 24 - Substituição de Material Musical...... 122

Figura 25 – Truncamento e Contração combinado com substituição...... 123

Figura 26 – Refraseamento com utilização de embelezamento...... 124

Figura 27 – Refraseamento radical...... 125

Figura 28 – Refraseamento radical gerado por fragmentações...... 125

Figura 29 – Expansão de frases por Interpolação...... 126

Figura 30A – Ornamentação no Barroco...... 130

Figura 30B – Ornamentação no Choro...... 131 Figura 30C – Melodia Ornamentada no Jazz...... 132 Figuras 31 – Transposição de Vocabulários...... 134

Figura 32 – Compasso 42-49 da Toccata de Bach em mi menor...... 137 Figura 33 – Trecho da Parte I do recital The Köln Concert (Keith Jarret)...... 138

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Locuções adverbiais européias relacionadas à improvisação (de 1810)...... 61 Quadro 2 - Evolução dos termos...... 62

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INTRODUÇÃO

A improvisação musical é uma das manifestações mais antigas da humanidade, sempre presente na evolução da história da música, assumindo características e papéis de importância que variaram de acordo com os períodos estilísticos.

Poderia-se supor que a improvisação musical deverá ser tão antiga quanto a própria existência da música, pois ela não poderia passar a existir sem um meio através do qual se utilizasse a improvisação como uma ferramenta.

Na Europa, até o século XIV a composição, a performance e a improvisação eram atividades comuns inerentes ao músico.

O elemento improvisador da música também encontra seu correlato histórico nas interpretações barrocas. Durante este período era freqüente que um compositor assinalasse apenas uma linha melódica e as cifras do baixo que indicavam a intenção em relação à estrutura harmônica. O acompanhamento e a elaboração dos ornamentos eram deixados a cargo da criatividade dos intérpretes.

Uma breve retrospectiva da história da música ocidental de concerto ressalta a importância que um compositor como Bach, por exemplo, dava à improvisação. Sua genial versatilidade legou à posteridade inúmeras obras onde a maior parte da ornamentação era sempre improvisada, o que, mais tarde, suscitou controvérsias entre os estudiosos de sua obra e divergências profundas entre os revisores e editores. Algumas fugas de Bach por exemplo, nasciam através da improvisação e posteriormente então eram escritas. Mozart improvisava com grande facilidade. As cadências de seus concertos eram o espaço destinado à improvisação, o momento em que o intérprete tinha direito a seu espaço

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criativo. E o que dizer de Liszt, que não contente apenas com sua vasta produção musical utilizou temas de outros compositores exercendo o seu talento de improvisador, deixando um legado significativo de "Paráfrases" (FERAND, 1961).

Ainda no Romantismo, o intérprete em seus estudos passava necessariamente pelo desenvolvimento da habilidade da improvisação. Clara Schumann improvisava seus prelúdios em concertos, evidenciando a prática da improvisação de introduções para peças de .

Várias formas musicais incluíram o livre improviso como rapsódias, scherzos e fantasias, entre outras. Carl Phillip Emanuel Bach afirmou que um pianista pode conduzir de muitas maneiras as emoções de seus ouvintes através de fantasias improvisadas (DOLL,

1989).

Constata-se que o hábito da improvisação na música ocidental de concerto, com exceção das classes de orgão, ficou esquecido. O que era no passado um requisito natural inerente à carreira de músico, passou a ser um atributo raro sobretudo entre os músicos de formação "erudita". Poucos músicos de formação erudita tiveram oportunidade de desenvolver a arte da improvisação. A prática do improviso, até final do século XVIII, não era separada da prática da formação musical de um intérprete. Registros apontam os benefícios do exercício de improviso em forma de prelúdios como recurso de desenvolvimento técnico, harmônico, além de encaminhar a platéia para a atmosfera da obra a ser apresentada (PRESSING, 1988).

Recentemente, alguns estudos (BERLINER, 1994; DOLL, 1989; NETTL,

1998) vêm demonstrando que a capacidade de improvisar - sobretudo para os pianistas - é de grande importância. Através dela o aluno desenvolve sua percepção auditiva, seu sentido harmônico e melódico, o que o leva a melhor compreensão das obras, enriquecendo suas

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possibilidades interpretativas. Neste sentido, examinar a importância da improvisação musical na formação do intérprete torna-se o objeto de investigação da presente

Dissertação.

A inexistência de trabalhos sistemáticos sobre a improvisação nos meios acadêmicos brasileiros ressalta a importância da investigação sobre a prática da improvisação na formação do intérprete.

O objetivo desta Dissertação é o de evidenciar a importância do resgate da prática improvisatória na formação musical do intérprete, procurando desmistificá-la enquanto talento nato.

A análise foi desenvolvida com base em pesquisa bibliográfica e entrevistas com especialistas em suas áreas, relevantes para o desenvolvimento deste trabalho, como:

Marlos Nobre, Maurício Carrilho, Marcelo Fagerlande, Mario Sève, Rodolfo Caesar e

Alexandre Rachid.

Vale ressaltar as dificuldades em que nos deparamos quanto à pesquisa documental, principalmente àquelas relacionadas à obtenção de fontes bibliográficas precisas e confiáveis como o caso da obra de Ferand. Foram necessários seis meses somente para conseguirmos obter este material para podermos em seguida realizarmos sua devida tradução.

Das traduções de obras de diferentes autores (mais de nove), destacaram-se como de particular complexidade as de Jankélévitch e Egidius Doll, cujos textos, em alemão arcaico (alt deutsch) – caso específico de Egidius Doll -, certas formulações requisitaram um critério minucioso na tradução de cada frase – bem como a tradução da obra filosófica de Jankélévitch. Acreditamos que este material poderá ser de grande utilidade para pesquisas futuras.

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Com o objetivo de disponibilizar material fichado para o início da tese procuramos traduzir também com muito critério uma parte da obra literária de Nettl (In the course of Performance – Studies in the world of Improvisation). Pesquisamos outras fontes, também consultada por Nettl como o Musik Lexikon, Ferand, Derek Bailey, etc., o que nos permitiu ter uma maior compreensão da importância de sua obra, bem como da etnomusicologia para o estudo da improvisação. A etnomusicologia, através da análise de diversas formas de manifestações musicais em diferentes culturas, contribui para a ampliação da visão sobre a improvisação na medida em que fornece informações de diferentes campos de pesquisa (como Pressing, Berliner, Malm, etc.), oferecendo com isso uma perspectiva intercultural da improvisação. Isto nos levou “naturalmente” a um privilégio da obra de Nettl (no Capítulo II e seção 3.2 do Capítulo III).

A presente Dissertação está estruturada em três capítulos. No primeiro capítulo, verificaremos os elementos improvisativos presentes historicamente na música, desde o período cristão, com os cantos gregorianos, até o século XX, através da música de concerto e música popular, observando semelhanças em cortes sincrônicos entre diversos princípios e formas manifestadas em diferentes períodos históricos. O objetivo é o de evidenciar a presença das práticas improvisatórias em todos os períodos da história da música e a importância que lhe era atribuída.

Apresentaremos, no segundo capítulo, um mapeamento de diferentes conceitos sobre a improvisação, examinando sua evolução, criando analogias e observando suas problemáticas.

Examinaremos, no terceiro capítulo, os processos que envolvem o ato de

“espontaneizar” ou “tornar natural” um material musical, ou seja, procuraremos investigar se estes processos resultam unicamente de uma habilidade inata.

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Finalmente, procuraremos ressaltar na conclusão a importância da improvisação na formação musical do intérprete e as causas do fato da improvisação ocupar um espaço tão pequeno no campo da musicologia, visto que estas práticas sempre estiveram presentes na história da música de concerto e em diferentes culturas. Apresentaremos aspectos relativos à desmistificação da improvisação enquanto talento nato e considerações sobre causas e conseqüências da separação do intérprete-compositor, procurando elucidar questões “nebulosas” que envolvem as práticas improvisatórias.

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CAPÍTULO I - A IMPROVISAÇÃO MUSICAL: Seu Histórico na Música Ocidental de Concerto e sua manifestação no Século XX

10.1- Introdução Antes do aparecimento da notação musical na história da música do ocidente a conservação das melodias antigas processava-se através da tradição oral transmitida de geração em geração, vigorando uma prática musical improvisadora na qual o intérprete expressava levemente sua fantasia em ornamentos e variações (FERAND, 1961). Mais tarde, com o desenvolvimento da notação, a ânsia por expressões musicais “instantâneas” não foi suprimida. Em algumas fases da história a improvisação se revela extremamente rica, enquanto em outros períodos se manifesta num plano secundário.

Neste capítulo, procuraremos examinar a existência da improvisação desde a

Era Cristã ao Século XX, objetivando ressaltar suas diversas formas de manifestação assim como sua importância no decorrer dos períodos históricos. Esta retrospectiva histórica sobre a improvisação será realizada mediante um exame bibliográfico.

1.2 – A Improvisação na Era Cristã e no Período Barroco Podem ser encontradas evidências da existência da prática improvisativa nos primórdios do cristianismo, apesar do difícil acesso às informações referentes a esta época.

No período do cristianismo, Ernest Ferand1 assinala que os cultos de reverência eram marcados por êxtases religiosos manifestados através de expressões musicais emocionais e espontâneas (FERAND, 1961:6). A criação musical na era cristã, ainda

1 Musicólogo e autor do trabalho Improvisation in Nine Centuries of Western Music, an anthology with a historical introduction. Ed. K.G. Fellerer. Arno Volk Verlag Köln, 1961.

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segundo Ferand, baseou-se não somente nos costumes e cultos orientais, como os dos judeus, mas também nas práticas musicais dos povos primitivos (Ibidem).

Os cânticos ambrosianos (dos anos 333 a 397 D.C.) e gregorianos (anos 540 a

604 D.C.), segundo Ferand, insinuavam elementos de improvisação nos adornos melismáticos. Todas as formas de canto litúrgico como Aleluia, Ofertório, Graduais e

Jubilus revelavam as diversas transformações e elaborações de sua linha melódica fundamental através da prática improvisadora. As formas de canto gregoriano também eram executadas de maneira variada devido à imprecisão da notação neumática (Ibidem).

A ilustração abaixo (Figura 1) apresenta uma forma de canto litúrgico praticada por volta dos anos 600 D.C. Através de uma comparação entre as figuras Ia, Ib e IIa, IIb, podemos notar alterações nas notas de uma mesma melodia que sinalizam a presença da improvisação em forma de embelezamento melódico, originado durante o ato da execução.

Ferand (1961:25) afirma que as alterações nas linhas da melodia são decorrentes do ato improvisativo.

Figura 1 - Canto Gregoriano - Gradualverse Domine refugium und Ad annuntiandum

Fonte: Ferand, 1961:25. Considere os termos “old Roman” e “Frankish” como nomenclaturas utilizadas naquele período, que evidenciavam diferentes tradições. Estes termos já não mais existem.

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Até o século XII, a interpretação dos textos musicais era muito incerta, freqüentemente mutável. O ritmo não era assinalado até o século XV e somente no século

XVIII se determinara com exatidão a expressão e a instrumentação (FERAND, 1961: 8).

Na metade do século XVI, houve o desenvolvimento do contraponto improvisado que abrangeu várias práticas e técnicas. A habilidade de inventar e variar melodias dadas e improvisar em todos os intervalos ou combinação de intervalos era sistematicamente realizada por vários cantores e meninos de coro (Ibidem, p. 9).

Também no século XVI, vigorou a arte do contraponto improvisado sobre o cantochão, não somente para o canto como também para os instrumentos de teclado, o que introduziu a prática de execução por músico solista. A improvisação do músico solista nos instrumentos de teclado e cordas tornava-se cada vez mais importante no alaúde, na viola e no órgão (Ibidem).

A ornamentação, originária das práticas improvisatórias, foi desenvolvida da música Renascentista à Barroca. Recitar e cantar com o acompanhamento de viola e alaúde era muito popular na Itália dos séculos XV e XVI. Estes instrumentos permitiam aos intérpretes realizarem ricas passagens com ornamentos e acréscimo de vozes2 (Ibidem, p.10).

Reproduzimos abaixo a ilustração (Figura 2) de uma canção polifônica popular de Paul Hofhaimer que constantemente era transcrita com variadas ornamentações para o

órgão e alaúde em performance inquestionavelmente improvisada. É interessante observar as diferenças da exposição dos mesmos temas e as suas diferentes formas de ornamentá-los

2 Essas práticas foram amplamente utilizadas tanto por solistas como por conjuntos.

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em a, b, c e d. Essas diferenças denotam a presença da improvisação na interpretação de melodias (afirmando a existência de um emprego excessivo de fórmulas estereotipadas de ornamentação).

Figura 2 - Lied (Paul Hofhaimer)

Fonte: FERAND, 1961:33.

A ornamentação também representa uma forma de improvisação; o instrumentista ou cantor adorna uma linha melódica determinada, em geral com muita liberdade, para aumentar a expressividade e exibir sua inventividade e brilho (Ibidem, p.10).

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Na música vocal, a ornamentação alcançou o seu apogeu no século XVIII, com o desenvolvimento do Bel Canto. Era sempre esperado que os cantores, em sua ânsia de improvisar, exibissem seu virtuosismo em versões diferentes nas árias de óperas e de oratórios. A tradição do acréscimo de ornamentação, importante nas seções repetidas de

árias operísticas, nos movimentos de adágio italiano e em passagens esquematizadas pelo compositor, persistiu através do século XIX ocupando uma posição de destaque, especialmente na ópera italiana. Os intérpretes que eram capazes de improvisar o canto em latim e o acompanhamento musical simultaneamente eram considerados fenômenos excepcionais (Ibidem).

Outros recursos improvisativos nos períodos do Renascimento ao Barroco incluem a “Diminuição”, uma técnica em que a quantidade de notas de uma melodia é reduzida em proporção inversa ao aumento do valor de sua duração. Este processo era realizado por um intérprete – geralmente na viola – que improvisava de acordo com um determinado padrão harmônico (Ibidem, p. 14).

Particularmente significativa durante o período barroco foi a tradição de improvisação do intérprete do Contínuo, cuja função era fornecer, geralmente num instrumento de teclado ou dedilhado, o fundo harmônico exigido (para o qual podem ser fornecidas indicações de cifras na parte de Baixo) (Ibidem).

Uma outra forma de improvisação no Barroco foi o preenchimento de uma dada seqüência de acordes como à maneira dos Prelude Non Mesuré, que revelava uma das características da tradição francesa do cravo. Esta tradição originou-se do hábito de

“preludiar”, que passou a ocorrer em meados de 1630. Neste período, o ato de “preludiar” consistia na execução de uma pequena peça destinada somente a um instrumento de cordas, cujo ritmo era literalmente livre. Pouco a pouco, esses pequenos fragmentos passaram a ser

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escritos, elaborados, permanecendo contudo uma certa liberdade em relação aos aspectos rítmicos (FERAND, 1961:16). A prática de “preludiar” era, pois, o espaço que o intérprete encontrava para contribuir com a obra.

Outra forma de contribuição improvisatória refere-se às práticas de ornamentação e variação, amplamente utilizadas neste período. Como exemplo, podemos citar a famosa Sonata Op.5 para violino de Corelli, que foi publicada até 1700 sem ornamentos e após 1710 repetidamente publicada com ornamentos adicionados pelo próprio

Corelli.

Figura 3 - Adagio für Violine und Basso Continuo (Arcangelo Corelli)

1700

Fonte: FERAND, 1961:112.

Os embelezamentos melódicos realizados em b em relação a a denotam a presença da improvisação.

A partir do desenvolvimento do acompanhamento do Baixo Contínuo ou

“Baixo Cifrado”, no período barroco, sua prática se estendeu a todas as formas da música barroca, como as árias de óperas, os oratórios, as cantatas profanas, os motetos e outras

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peças vocais para solista além das formas de música instrumental, especialmente sonatas e concertos. O elemento de improvisação no desenvolvimento do Baixo Cifrado resultou em uma nova maneira de pensar em termos de acordes, o que Ferand (1961) descreveu como

“uma espécie de taquigrafia musical onde os símbolos indicavam os intervalos de acordes a serem formados sobre cada nota importante do Baixo".

Figura 4 - Kammerduett für Sopran und Alt (Francesco Durante)

Embellished version (by for two sopranos – 1720)

Fonte: FERAND, 1961:122.

Pode-se notar duas possibilidades de manifestação de improvisação na figura acima: na primeira possibilidade, a melodia embelezada em b incorpora elementos provenientes do ato improvisativo em relação a melodia dada em a. Na segunda possibilidade, o acompanhamento a partir da cifra implica que o acompanhador tome decisões durante o ato da performance.

Um caso especial de improvisação é a cadenza: um momento, geralmente perto do final do movimento de um concerto para solista, ou perto do final de uma ária vocal, em que o compositor indica com um sinal de fermata que alguma coisa deve ser acrescentada -

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ou um simples floreio, ou, a partir dos tempos de Mozart, uma passagem mais trabalhada, que pode envolver a elaboração de temas já conhecidos (Ibidem).

As cadências livres que ornamentavam tanto os concertos grossos quanto os concertos para violino, órgão, cravo, oboé e outros instrumentos não eram escritas pelo compositor, ficando a cargo do intérprete. O ato de improvisar a cadência estimulou esta prática, impulsionando o seu desenvolvimento para as formas de variações ou fantasias livres. Várias obras didáticas de autores famosos continham instruções para improvisar fantasias. Mas foi principalmente no órgão que a arte de improvisar atingiu um alto grau de perfeição nunca antes alcançada com organistas italianos e alemães como Frescobaldi, J. S.

Bach e Händel (Ibidem).

Ainda no século XVII, as cadências3 finais das composições polifônicas ornamentais transformaram-se em longas peças instrumentais, as quais assumiram o caráter de Toccatas, Caprichos, Fantasias e Prelúdios.

Em sua pesquisa sobre improvisação, o musicólogo Egidius Doll (DOLL,

1989)4 realizou um importante levantamento de depoimentos de músicos eminentes do período de 1619 a 1762, como Carl Philipp Emmanuel Bach e Czerny.

3 Carl Czerny (Apud DOLL, 1989:264) divulgou sugestões de como desenvolver e proceder em uma cadência, ressaltando alguns aspectos como: - o sentido da obra deveria estar contido na cadência, assim como as partes principais que sucedem/precedem combinem com a obra principal; - a cadência nunca deve ser muito longa e nem rhapsódica para não perder o sentido de linha do todo; - o executante não deve se desviar demais da principal tonalidade e procurar encerrar em acordes de sétima da dominante; - o executante deverá ter o senso melódico desenvolvido de forma que saiba fazer a elisão com relação ao motivo anterior e posterior à cadência, podendo se valer de recursos como diminuendo, rallentando e outros. Caso o tema subseqüente à cadência seja vigoroso e allegro, o executante poderá realizar uma passagem rápida e virtuosística, utilizando crescendos e acelerandos.

4 Michael J. F. Wiedeburg, citado por Doll, assinalou em 1775 que “aquele que almeja o progresso na arte da fantasia deve, antes de mais nada, conhecer bem as consonâncias e dissonâncias que ele consegue a partir de um baixo cifrado sem complexidades e realizar a improvisação instantaneamente, de tal maneira que um simples baixo já lhe oferece a possibilidade de improvisar” (DOLL, 1989:47).

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A menção das citações desses autores constitui-se de particular relevo uma vez que oferecem uma visão conceitual da época sobre as diferentes formas livres que envolviam a prática improvisatória.

Curiosamente – cumpre notar - hoje não se pratica mais o improviso em formas de Prelúdios, Fantasias ou Toccatas.

Com relação à Fantasia, Carl Philipp Emmanuel Bach (1753:32) afirma:

“um pianista pode conduzir de muitas maneiras as emoções dos seus ouvintes, através de Fantasias improvisadas (além disso são necessários gestos e mímicas para realçar a apresentação). Uma Fantasia nunca deve conter idéias pré-estabelecidas, mas devem originar de uma bela alma musical”.

Ainda segundo C.P.E. Bach (1762, Apud DOLL, 1989:251):

“pode-se dizer que uma Fantasia é livre quando não contém uma unidade de compasso estabelecida e constante, se direcionando para várias tonalidades. Uma Fantasia livre é formada por frases sugerindo outras diversas em diferentes tonalidades”.

Figura 5 - Freie Fantasie für Kavier (Carl Philipp Emmanuel Bach)

1762

Fonte: FERAND, 1961:150.

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Sobre Fantasia, Wiedeburg cita, em 1775 :

“A Fantasia não é diferente que o ato de compor com pouca pre- meditação e grandes preocupações artísticas. Uma Fantasia deve conter uma boa melodia, portanto, um aprendiz deve se exercitar em criar constantemente novas melodias e cantos que ele possa em seguida variar de todas as formas assimilando as linhas de baixo e a partir daí realizar a ex tempore [improvisar]” (Apud DOLL, 1989:302).

É interessante observar que o conceito acima exposto, de Wiedeburg, sobre

Fantasia, remete ao mesmo sentido que hoje se tem do ato de improvisar.

Com relação ao Prelúdio5, Samuel Jadassohn afirma em 1890:

“ O ato de preludiar diferencia-se do Prelúdio [como forma musical] no aspecto em que o primeiro compreende uma seqüência harmônica não pré-estruturada, cujo propósito é estabelecer a tonalidade sem se prender a uma forma determinada. Enquanto a forma Prelúdio em si é uma peça musical conduzida em forma ‘Lied’ ou uma espécie de variação sobre um motivo apresentado. O ato de preludiar não precisa conter uma determinada forma musical, embora a métrica, em determinadas peças, não deva ser desconsiderada” (Apud DOLL, 1989:248).

Quanto à Toccata, Michael Praetorius (1619) assinalou que “...Toccata é um preâmbulo ou prelúdio em que o organista ou clavinecista ‘fantasia’ livremente utilizando coloraturas, com dedilhado próprio, improvisado, antes de iniciar um Moteto ou uma Fuga”

(Apud DOLL, 1989:248).

5 Ainda iremos abordar o “preludiar” em relação à improvisação na seção do Romantismo deste capítulo.

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Figura 6 - Trecho do Adágio da Toccata (J. S. Bach)

Fonte: FERAND, 1961:22

O trecho do Adágio da Toccata em Mi menor de Bach, que antecede a Fuga, acima apresentado, evidencia uma atmosfera improvisativa.

Quanto à forma Capricho, Friedrich Erhard Niedd (1717) em Outras formas livres, ressaltou que “‘caprice’ é uma palavra francesa que é traduzida em italiano como

‘capricci’”. Os ‘capricci’, segundo Niedd, “não têm uma forma determinada, seguindo a idéia de uma Fantasia em que o intéprete acrescenta a sua contribuição” (Apud DOLL,

1989:272).

Figura 7 - Capriccio für das Pianoforte (Czerny) 1836

Fonte: FERAND, 1961:153.

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É importante notar, nas citações acima expostas, que naquele período já estavam presentes as mesmas questões e problemáticas que existem atualmente referentes à compreensão do pensar o ato da improvisação. Naquela época ainda não existia o termo improvisação, sendo freqüentemente utilizados outros termos como: “fantasiar” e

“preludiar”, entre outros. Notamos, porém, que determinados paradigmas permanecem ao longo da História como, por exemplo, o aspecto relativo à necessidade do desenvolvimento de um estudo apropriado para a prática do improviso em contraste com a visão lúdica da improvisação como algo espontâneo, embutido no conceito de “talento natural”.

A idéia de executar uma improvisação numa forma musical fixa sempre teve seu atrativo. Bach e Händel foram famosos por suas fugas improvisadas, Mozart e

Beethoven por suas variações improvisadas (FERAND, 1961:153).

Já no final do século XVIII, a tendência era das ornamentações serem escritas pelo próprio compositor. A influência alemã, cada vez mais importante em toda a Europa, ressaltava a vontade do compositor sobre a do intérprete. Em Beethoven, por exemplo, era inconcebível a colaboração criativa do intérprete nas ornamentações. O intérprete deveria submeter-se à vontade do compositor. Os compositores no século XIX passam a indicar o valor exato das apogiaturas e a escrever outros ornamentos por extensão ao invés de usarem símbolos. Há uma grande proliferação de manuais de instruções instrumentais (Ibidem).

Uma das razões para essa postura foi a crescente complexidade da música neste período, além da crescente individualidade dos estilos de muitos compositores na interpretação variada de ornamentos, que mudavam de compositor para compositor. As cadências de concertos, que no período Clássico eram improvisadas, passam a ser escritas no século XIX. Entretanto, na primeira metade deste século (séc. XIX), a improvisação livre continuou a ser cultivada pelos intérpretes solistas, tanto nos salões como em salas de

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espetáculos. Pode-se destacar uma série de grandes improvisadores, ao teclado e em outros instrumentos, que foram significativos na história da música como Frescobaldi, J. S. Bach,

Händel, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Mendelssohn, Lizst, Cesar Franck,

Brahms, Bruckner (Ibidem).

Na segunda metade do séc. XIX, Ferand enumera duas das causas que levaram a improvisação a desaparecer gradualmente na performance da música ocidental de concerto:

- o declínio dos pequenos salões para concertos, onde a improvisação

mostrava-se mais à vontade do que na atmosfera formal das grandes salas

de espetáculos;

- o declínio do “compositor-intérprete”, no qual a arte de improvisar havia

alcançado o seu auge e o mito romântico de que os compositores da época

criavam as suas obras-primas numa espécie de “improvisação inspirada”,

muitas vezes encaradas mais como uma habilidade do que como um ato de

gênio (FERAND, 1961:21).

1.3 - A Improvisação no Período Romântico e Impressionista Segundo Jankélévitch, em seu livro Rhapsodie et Improvisation, os filósofos e músicos românticos, extremamente atentos aos problemas da gênese, foram de certa forma os metafísicos e os práticos da improvisação (JANKÉLÉVITCH, 1998:113-114).

A improvisação no período romântico, segundo Jankélévitch, tornou-se quase um gênero musical. O trabalho da invenção transformou-se em parte do espetáculo.

“Longe de oferecer ao público apenas obras concluídas, muitas vezes o compositor ousou pensar em voz alta, ou melhor, trabalhar perante testemunhos: o homem do período romântico caracteriza-se pela curiosidade em relação aos problemas de origem e gênese, fato característico de uma época que viu nascer o transformismo e o

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evolucionismo. O homem romântico quer surpreender a mensagem reveladora do gênio e o “como” da criação. A confidência da criação não é mais um mistério esotérico e secreto que é profanado se divulgado. O homem se esconde para acoplar-se ou para morrer, mas ele se representa, na fase mais íntima, nos primórdios da invenção, na fase menos propícia a ser mostrada, a fase da Improvisação” (JANKÉLÉVITCH, 1998:117).

Para Jankélévitch, “a improvisação é a aproximação profetizada. A hesitação provoca no ouvinte uma grata simpatia pela tentativa imperfeita, errante, cheia de fracassos que, por vezes, refletem a vida” (Ibidem).

Na verdade, o cenário desta procura em público chamada improvisação, nem sempre é tão espontânea quanto aparenta. Segundo Debussy, “o pintor que publica seus rascunhos e seus esboços, divulga as etapas sucessivas pelas quais sua obra passou. A improvisação musical, ao contrário, na maioria das vezes, finge que improvisa” (Apud

JANKÉLÉVITCH, 1998:119).

Liszt encontrou, na música sem regras dos ciganos, um nomadismo, uma certa incoerência que estimularam no compositor o espírito do improviso. O termo “quase improvisando” é freqüentemente usado por Liszt em suas obras para piano (Aprés une lecture de Dante, Berceuse, Rhapsodie espagnole, 1ª Polonaise).

Para Chopin, o verdadeiro sentido do verbo improwizowac incluía a liberdade de tocar como ele desejava, o que era suscetível de estar mais prontamente disponível numa situação íntima do que num teatro (BLUM, Apud NETTL, 1998:39).

Ainda no Romantismo, é essencial que se faça referência à Clara Schumann, considerada uma das maiores improvisadoras de seu tempo, tendo se especializado na arte da improvisação em formas de prelúdios. Neste período, o intérprete, em seus estudos passava necessariamente pelo desenvolvimento da habilidade da improvisação

(GOERTZEN, 1996; WIECK, 1988. Apud NETTL, 1998:28).

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Clara Schumann, no final da sua vida (1819-1896), registrou em partitura uma série de prelúdios exemplificados em duas categorias: exercícios e introduções. Seus prelúdios, de ambos os tipos, são baseados nos treinamentos de improvisação que recebeu em aulas durante a sua juventude e que foram improvisados em seus concertos durante sua carreira. Esses prelúdios evidenciam a prática da improvisação de introduções para peças de piano, inicialmente muito utilizada para o cravo e alaúde no século XVIII, sendo absorvida para a prática pianística no século XIX (GOERTZEN, 1996. Apud NETTL,

1998:29).

Os prelúdios de Clara Schumann encontram-se preservados em manuscritos em

Berlim, juntamente com uma nota de sua filha Marie Schumann, datada de 1929, ressaltando que:

“ No último ano de sua vida nossa mãe escreveu, a nosso pedido, os exercícios com os quais ela começava sua prática diária. Assim como alguns prelúdios do tipo que ela estava habituada a improvisar antes da execução das obras de forma livre de acordo com o impulso do momento. Ela também realizou seus improvisos em público de forma que se pode ter uma idéia de que modo as harmonias fluíam para ela. Apesar dela insistir que não era possível capturar este tipo de improvisação livre para a partitura, minha mãe (Clara) finalmente se rendeu a nossos pedidos e estes pequenos prelúdios passaram a existir” (LITZMANN, 1902-1908:601. Apud NETTL, 1998:30).

O ato de improvisar prelúdios era uma prática já estabelecida. Dezenas de coleções foram publicadas no período de 1760 para capacitar os amadores que poderiam, a partir daí, ou memorizar ou usar tais publicações como modelo para a construção de prelúdios originais para cravo ou piano. Nomes famosos como Czerny (1839) e Hummel

(1828) orientavam através de livros as diretrizes básicas para o desenvolvimento da habilidade de improvisar um prelúdio. A prática de inserir prelúdios e interlúdios em

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concertos por parte do performer ainda vigorava na Europa no início de 1870

(GOERTZEN, 1996).

O prelúdio possuía diversos significados como:

− reconhecer o instrumento e adaptação ao instrumento6;

− aquecer os dedos antes da execução de obras pesadas;

− focar a concentração do Performer;

− estabelecer a tonalidade;

− demonstrar habilidades técnicas;

− atrair a atenção do público e adaptá-lo para a atmosfera da obra a ser apresentada em

seguida (NETTL, 1998:29).

Clara Schumann tinha consciência do importante papel que a improvisação de um prelúdio exercia como influência sobre o público para a aceitação da obra. Ela cuidava para que a obra de Robert Schumann não tivesse um efeito de “perplexidade” para o público. Com seus prelúdios, Clara Schumann procurava criar um ambiente favorável para a compreensão da obra de Schumann (Ibidem).

Na Figura 8 abaixo, o prelúdio que Clara Shumann realizou para o Aufschwung

(Fantasiestück, Op12 ) pode ter sido uma de suas improvisações com o objetivo de criar uma atmosfera para a compreensão da obra de Schumann (NETTL, 1998:249).

6 Friedrich Wieck, pai de Clara Schumann, recomendava “Preludiar” em bases práticas, a fim de proteger-se de possíveis experiências desagradáveis de adaptação inadequada ao instrumento durante suas viagens em concertos: “ Antes de iniciar uma peça, toque alguns arpejos flutuantes e algumas passagens descendentes ou escalas, com sentido musical, de forma que o piano, na condição em que se apresenta, não irá lhe colocar dificuldades antecipadamente…E teste o ‘inevitável’ pedal! Um pedal quebrado ou que range pode significar uma catástrofe para o concerto caso o artista não saiba se adaptar” (WIECK, 1988. Apud NETTL, 1998:29).

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Figura 8 – Prelúdios de Clara Schumann a. Prelúdio Aufschwung (Fantasiestück, Op 12) (Clara Schumann); b. Aufschwung (Robert Schumann); c . Aufschwung mm.16 ff. (Robert Schumann).

a.

Fonte: NETTL, 1998:252.

c. b.

Fonte:NETTL,1998:252. Fonte:NETTL, 1998:252.

Existem relatos que evidenciam que Clara Schumann realizou embelezamento

agregando ornamentações ao concerto em MI bemol Maior de Beethoven (1844) e ao

improviso em Dó#m de Chopin (1871). A presença de diversas páginas em branco em seus

manuscritos evidenciavam que estes espaços eram destinados para a notação de prelúdios

adicionais (GOERTZEN, 1996; WIECK, 1988. Apud NETTL, 1998:28).

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Os prelúdios de Clara Schumann acabaram por desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento do que veio a ser o formato de um recital convencional: uma obra de Bach ou Scarlatti, uma Sonata ou obra similar, e um ou mais grupos de pequenas peças. Já a execução da Sonata em Fá menor, por exemplo, e outras peças consideradas longas, Clara Schumann preferia apresentá-las para uma platéia seleta em sua residência (WIECK, 1988. Apud NETTL, 1998:253).

No impressionismo, Jankélévitch afirma que em Ravel a improvisação foi de certa forma “forjada”. Seu estilo preciso, estrito e extremamente requintado utilizou o processo improvisativo quase como artifício sutil de seu dandismo (Tzigane, Rhapsodie pour violon et luthèal). Nas palavras de Jankélévitch, “se a improvisação não fosse uma estilização ambígua da divagação (errância), Ravel não teria se utilizado dela”

(JANKÉLÉVITCH, 1998:120). Provavelmente Jankélévitch se refere a Ravel, remetendo-o ao conceito de uma procura por uma “atmosfera musical improvisada”, porém, detalhadamente escrita.

Ainda no impressionismo, Marlos Nobre (Entrevista, 2000) aponta evidências da presença de uma prática improvisatória em Debussy, durante seus estudos. Nobre relata um episódio em que o professor de Debussy havia comentado sobre sua extravagância exagerada, pelo fato de, em seus estudos, tocar acordes sem a busca de concatenação direta.

“Na verdade, Debussy criou passagens de uma harmonia à outra sem modulá-las, como se fossem pontos distintos” (NOBRE, Entrevista, 2000).

Na visão de Jankélévitch, a improvisação representa um momento de expressão de uma herança cultural. Segundo Jankélévitch,

“assim como a criação, a invenção ou a inspiração, a improvisação é um começo: é o estado germinal ou inicial do canto, da música nascente. Mas o improvisador não procuraria se já não tivesse

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encontrado; na realidade ele não inventa do ‘nada’, já que a partir do nada a imaginação nada cria. O improvisador, por mais despreparado que seja, não começa do nada, pois é herdeiro de um passado e de sinais virtuais que se tornarão visíveis ao calor da inspiração” (JANKÉLÉVITCH, loc. cit.). 1.4 – A Improvisação no Século XX

No século XX, a improvisação continua sendo um elemento sempre presente tanto na música ocidental de concerto, que apresenta a aleatoriedade como uma de suas principais manifestações improvisatórias, como em diversas correntes da música popular.

Nesta seção, apresentaremos como a improvisação se manifesta através das práticas da música aleatória e da música popular.

1.4.1 - Música Aleatória

A idéia da improvisação como um retorno a uma forma mais espontânea de realização musical, em que diferentes membros de um conjunto respondem ao que os outros intérpretes estão tocando, foi estimulada por alguns compositores do século XX, particularmente no campo da composição aleatória.

Pelo fato da aleatoriedade ser um campo muito amplo, onde a mensagem plurivalente proporciona uma “multiplicidade de intervenções pessoais” (RIBEIRO,

1985:213), limitamo-nos a apresentar uma visão geral de forma a cumprir o objetivo desta seção.

Em grande parte dos casos, a música aleatória apresenta o elemento improvisador com grande importância em relação a outros aspectos musicais, sendo abordado e manipulado de diversas formas, ficando muitas vezes para o intérprete o desafio de participar criativamente e exercitar sua inventividade no momento da performance.

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Alguns compositores contemporâneos brasileiros compuseram obras para piano contendo trechos aleatórios que são interpretados através da improvisação musical pelos seguintes intérpretes:

- Ernest Widmer: Suíte Mirim para piano, opus 101, o eterno e o cotidiano, 1977;

- Rondo Mobile para piano solo, 1968;

- Swave Mari Magno para piano solo, 1968;

- Ludus Brasiliensis: cinco cadernos de peças para piano solo, 1996

- Fla II para flauta e piano, do compositor Lindeberg Cardoso;

- Cíclicos opus 13 n° 1 para piano solo, do compositor Agnaldo Ribeiro;

- Mini Suíte das três Máquinas para piano solo de Aylton Escobar;

- Blirium 9 para piano ou vários instrumentos, de ;

- Concerto Breve opus 33 e Sonâncias III, para piano e orquestra de Marlos Nobre;

- Diagramas cíclicos para piano e percussão de Claudio Santoro.

Partindo do princípio de que na música contemporânea toda interpretação de um trecho aleatório envolve uma forma de improvisação, levantamos alguns conceitos de aleatoriedade para melhor fundamentá-la.

Segundo Eric Salzmann (1967), “o aleatório descreve diversas classes de música onde os elementos de azar, de casualidade e de indeterminação figuram na realização de sua execução” (RIBEIRO, 1985:213).

Já Stuckenschmidt expõe a seguinte visão:

“Por meio de noções como ‘rubato’, ‘ad libtum’ e ‘Fermata’ que concedem ao intérprete certa liberdade na música tradicional, a música moderna chega a vários métodos mais complicados para absorver o acaso. Um destes métodos, Boulez denomina como aleatório (alea = acaso)” (RIBEIRO, 1985:220). Na Enciclopédia Mirador o termo aleatoriedade é entendido como:

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“... a evolução do elemento indeterminação na obra musical, a mercê de uma série de diversos procedimentos técnicos. Na verdade não se pode falar numa única música aleatória, pois cada obra musical que utiliza o indeterminismo em sua estrutura sempre o faz em graus distintos, com maior ou menor liberdade, atingindo numa determinada obra apenas a estrutura rítmica, em outra, a melódica ou formal, em mais outra a indeterminação total, chegando então a improvisação” (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, vol.15, 1975:7962).

Acredita-se que nas citações acima, a referência ao termo improvisação remete- se à noção de acaso. No entanto, Herzfeld (1975) afirma que a casualidade não deveria ser absoluta e os intérpretes não deveriam ter a liberdade de modelar as obras ao seu capricho.

Ele alega que a casualidade terá sido melhor prevista pelo compositor.... Assim, algumas composições estariam formadas por fragmentos e o intérprete se incumbiria de formar com eles um conjunto. Também deste ponto de vista, à interpretação estaria reservada alguma liberdade, dentro de certos limites (Apud RIBEIRO, 1985:120).

A música aleatória surgiu na metade do século XX, com a procura de equilibrar princípios matemáticos rigorosos com elementos de indeterminação e do acaso, dentro da estrutura musical. A crescente complexidade do sistema serial e multiserial teve uma grande influência no advento da aleatoriedade. Stockhausen e Boulez, durante a década de

60 e 70, abriram novas e importantes possibilidades aos intérpretes, estabelecendo uma relação entre ambos os sistemas e resgatando a reconquista do imprevisto, promovendo uma superação do método serial com a integração de fatores aleatórios (Ibidem).

Nos primeiros anos da aleatoriedade, muitos compositores criavam obras para seus próprios conjuntos de instrumentistas, onde a homogeneidade do pensamento era completa, podendo se criar obras com as características do grupo de acordo com as habilidades técnicas dos executantes. Assim as “partituras escassamente anotadas podiam

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ser interpretadas” (GROVE’S, 1980). No Grove’s Dictionairy of Music and Musicians

(1980) há menção de que o jazz exerceu sobre estes grupos uma significativa influência na prática aleatória da música ocidental. Os grupos que mais se destacaram neste período foram: “Grupo Fluxus”, ligados ao compositor americano John Cage, “Sonic Arts Union”, conjunto de Stockhausen, e “New Phonic Art”, conjunto de Globokar (RIBEIRO,

1985:154).

Herzfeld (1975:392) aponta o advento do aleatório como uma possível saída para a perda do “encanto da interpretação” provocada pela música eletrônica ao suprimir o intérprete e o sistema de notação por completo (Apud RIBEIRO, 1985:120).

O compositor deliberadamente concederia ao intérprete, através de determinados procedimentos técnicos, tanto a liberdade de escolher quanto a de improvisar dentro da estrutura musical. Para tal realização, a grafia musical é profundamente reformulada.

Como fato histórico a se considerar, existem evidências de exemplos de práticas musicais aleatórias no Século XVIII, onde os esboços eram publicados para a composição de músicas simples a partir de dados pré-estabelecidos na notação. Estes dados geralmente deixavam um aspecto de “acaso dirigido”. Por exemplo: fornecia-se a disposição dos compassos e o esboço de uma melodia a ser colocada sobre um dado padrão rítmico-harmônico, como uma espécie de sistema de notação aproximativa (Ibidem).

A introdução do elemento aleatório na música provocou uma ruptura dos conceitos tradicionais de formas fixas e imutáveis. Surgem composições com princípio e fim não determinados. Trata-se, então, de um campo aberto à múltiplas possibilidades no qual a liberdade concedida ao intérprete o permita interagir de forma a transformar a fisionomia da obra, não a sua linguagem, mas sua construção. É uma possibilidade com

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multiplicidade de intervenções pessoais, mas não um convite à intervenções indiscriminadas, nem totalmente orientada (Ibidem).

A relação entre a liberdade e as formas fixas (entre leis variáveis e sua aplicação mais flexível na música) constituem sempre uma preocupação para o compositor.

Umberto Eco menciona a relação que se estabelece entre autor e intérprete com relação à aleatoriedade7. O compositor, ao oferecer uma “obra aberta” ao intérprete - e este, mesmo inserindo-se livremente no mundo musical da obra, ela (a obra) será sempre aquela desejada pelo autor - ele (o autor/compositor) não sabe exatamente de que maneira a obra será levada à termo, mesmo havendo proposto algumas possibilidades já racionalmente organizadas, mas, ao terminar o diálogo interpretativo, ter-se-á concretizado uma forma que

é a sua própria forma, ainda que organizada por outro (ECO, 1966).

Na maior parte das músicas aleatórias, o criador concede a qualquer intérprete um certo grau de liberdade (GROVE’S, 1980:238).

A música aleatória, em sua diversidade, exige do intérprete maior ou menor participação criativa. Poderia-se dizer que a improvisação na música aleatória é controlada pela vontade do compositor, variando o grau de liberdade (RIBEIRO, 1985:121).

Mas, partindo do princípio que improvisação é a tomada de decisões durante o ato de performance e escolhas ensaiadas quanto à disposição das partes da música, o nível de indeterminação define a participação do intérprete com maior ou menor grau improvisativo. Em obras onde a notação torna a música ainda mais indeterminada, a responsabilidade do intérprete vem a ser mais significativa quanto a uma participação mais inventiva na obra musical através do elemento improvisador (RIBEIRO, 1985:152).

7 Participação mais criativa com a obra, sistema de notação através de grafismo, pois a notação tradicional se tornou insuficiente ante as novas exigências musicais e a interatividade autor-intérprete (embora controlada).

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A improvisação aleatória controlada provoca reformulações no sistema de notação tradicional adotando novos grafismos e incorporando a representação por símbolos.

Cada gráfico pode ser explicado à parte, induzindo assim o intérprete a escolher o caminho certo a realizar novos sons e conceber novas estruturas globais (RIBEIRO, 1985:123). Os novos sinais gráficos surgiram para atender a novas necessidades exigidas pela música aleatória e a música eletroacústica. Alguns grafismos se tornaram convencionais devido a sua eficácia junto aos intérpretes (Ibidem).

Segundo Kurt Stone, em seu livro Notação Musical no Século XX (1980), as mudanças de maior impacto no sistema de notação ocorreram através de três grandes rupturas fundamentais em toda a história da música ocidental de concerto:

1) A primeira ruptura se deu através da transferência da monodia para a polifonia, por volta de 900 D.C. As conseqüências foram notáveis: “ a indeterminação da notação neumática de diapasão se tornou obsoleta e foi substituída com a precisão de intervalos de notação de pauta”. E a mais importante, “a especificação mensural”.

2) A Segunda ruptura ocorreu quando a polifonia se viu gradualmente ameaçada pelo fenômeno vertical que vinha surgindo: “acordes e progressões de acordes”.

3) A terceira transformação radical ocorreu no período de 1950, se desenvolvendo em duas direções:

− uma direção caracterizada pela rigorosa precisão de todos os elementos

concebíveis a uma estrutura musical englobando elementos que eram até

então considerados secundários, tais como: dinâmica, timbre, modulações

de diapasão (microtonalismo), localização de fontes sonoras, entre outros.

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− a outra direção rejeitava a precisão e introduzia ambigüidades deliberadas,

graus variados de indeterminação, escolhas entre alternativas e

improvisação.

É importante notar que a música popular no Século XX se desenvolve a partir do sistema de cifras, que gradualmente foi se sofisticando e criando diversas linhas de simbologia. De certa forma, o procedimento da prática de cifra da música popular, embora estilisticamente diferente, assemelha-se ao procedimento com relação ao grau de inventividade, criação do sistema de cifras do período Barroco. A realização da cifra no período Barroco tem pontos em comuns com a realização da cifra na Música Popular do

Século XX. É curioso notar que esta prática, embora separada por cerca de 400 anos de diferença, sobreviveu mantendo o seu princípio, ainda que variando seus códigos estilísticos. Pode-se afirmar que qualquer tipo de realização de cifra envolve maior ou menor grau de improvisação.

Marina Scriabine e Boris Federovich (1959) assinalam como transformações ocorridas, a bifurcação em duas direções: a primeira, a música eletrônica eliminando o intérprete e a notação, ou seja, o compositor se utilizaria do aparato eletrônico tornando-se ao mesmo tempo criador e intérprete de uma realidade sonora definitiva e imutável. A segunda direção seria a abertura para o aleatório, introduzindo o acaso na música

(RIBEIRO, 1985:117).

A Figura 9 abaixo, demonstra uma indeterminação quanto ao valor de duração das notas representadas pelo traço, ao mesmo tempo que existe uma indicação, esta por sua vez não determina precisamente quanto tempo as notas devam permanecer soando, cabendo ao intérprete fazer a sua escolha, controlada pelos limites estabelecidos pelo compositor.

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Cabe ao intérprete a tomada de decisão quanto ao valor da nota, podendo realizar esta escolha de forma improvisada.

Figura 9 – Indeterminação quanto ao valor de duração das notas

Fonte: RIBEIRO, 1985:133

A Figura 10a, abaixo, inclui improvisação (em termos de quais notas irá escolher para realizar a improvisação e como elas serão distribuídas ritmicamente dentro da pulsação) de um ornamento notado em forma de legato ondulante. Outro aspecto importante é o ato de improvisar dentro dos quadrados (Figura 10b). Presume-se que o intérprete tenha, neste caso, a liberdade de improvisar com as 4 notas assinaladas dentro do quadrado, tendo como referência um andamento previamente estabelecido pelas setas (o espaço entre uma seta e outra é indicado no metrônomo 40).

Figura 10: Elementos de improvisação com relação a extensão de notas

Fonte: STONE, 1980:139. Apud RIBEIRO, 1985:133

Pode-se perceber, ainda, que certas notações utilizadas na música aleatória se assemelhem ao sistema de notação dos cantos gregorianos pelo aspecto da indeterminação

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do tempo (ver Figura 1, p. 21 deste Capítulo). Neste período, ainda não existia uma grafia que determinasse o valor de duração das notas. Em cada performance ocorreram variações imprevisíveis (que podem ser classificadas como um ato improvisativo) cujo princípio de variação pode se assemelhar as ilustrações Ia, Ib, IIa e IIb do canto gregoriano (Figura 1, p.

21 deste Capítulo).

Na Figura 11 abaixo, Sonâncias III, Opus 49, compassos 95-99, de Marlos

Nobre, os acordes dos são adotados pelo compositor através de notação parcialmente aleatória, utilizando “clusters” (blocos de sons, tocados com a mão fechada ou a palma da mão do pianista), cuja altura é indeterminada, mas encontra-se sugerida pelo compositor mediante uma notação de registros de alturas (NOBRE,1994:27).

Figura 11 - Sonâncias III, Opus 49 (Marlos Nobre)

Fonte: NOBRE, In: Revista de Música Latino americana, vol.15, n°2, 1994:231.

O executante evidentemente tem liberdade relativa na escolha da altura dos

“clusters”, mas nunca poderá, por exemplo, executar um “cluster” agudo no lugar do grave indicado pela partitura, no caso, o elemento improvisativo com referência aos parâmetros da região do teclado (NOBRE, 1994:28). No parâmetro referente aos aspectos do tempo musical (compassos 95-99), da pulsação métrica e seu fluir temporal, o compositor utiliza,

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ao mesmo tempo que o aleatório controlado (que afeta as alturas), o sistema de notação proporcional. O intérprete utiliza a notação rítmica sugerida pela partitura e constrói com certa liberdade o desenvolvimento das pequenas células rítmicas (microcélulas) às quais constituirão o microrítmo da seção inteira (NOBRE, 1994:29).

No campo da música eletroacústica não existe a improvisação em forma de execução em tempo real. A improvisação ocorre durante o processo de montagem da obra.

Apesar deste conceito se aproximar mais à composição planejada, existe sempre um elemento de imprevisibilidade devido ao fato do artista nunca saber como irá soar exatamente o seu produto final (CAESAR. Entrevista Informal, 2000).

1.4.2 – Música Popular

Como não nos seria possível abordar todos os segmentos da Música Popular e suas inúmeras manifestações improvisativas, limitaremos a apresentação desta seção à quatro gêneros de grande relevância na música popular: o Jazz, a Bossa Nova, o Choro e a

Música Popular Contemporânea Brasileira.

Jazz

O Jazz sem dúvida contribuiu de forma importante para a revitalização da improvisação na música popular no Séc.XX. Segundo Bailey, o Jazz teve o papel de lembrar que a música executada e criada não são necessariamente atividades separadas, podendo atingir um alto nível de expressão musical (BAILEY, Apud BERLINER,

1994:132).

O Jazz se desdobrou em diversas correntes estilísticas dentre as quais iremos citar algumas de grande relevância que impulsionaram transformações na área da improvisação, como: Ragtime, Be bop, Jazz Modal e Free Jazz.

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1. Ragtime: Fats Waller e P. Morton exploraram o piano em todo o seu potencial

utilizando toda a tessitura do teclado e distribuindo em pesos iguais os padrões

executados em ambas as mãos. Suas improvisações são consideradas densa, polifônica

e orquestrais. A partir de 1920, Scott Joplin e outros influenciados pelo Ragtime e

posteriormente grandes pianistas de “Stride”, como James P. Johnson, executava com a

mão direita melodias contrapontuadas como acordes, tremolos, utilização de

dissonâncias e simulação de Blue notes.

2. Be bop: O Be bop nasceu com Charlie Parker na década de 50, revolucionando a era do

Jazz dividindo-o em dois momentos: antes e após o advento do Be bop. Trata-se de

tempos extremamente acelerados, com progressões harmônicas apresentando rápidas

mudanças de acordes, obrigando ao improvisador deter um conhecimento técnico do

instrumento, assim como um padrão de vocabulário desenvolvido em forma de estrutura

cognitiva para que possa frasear com fluência sobre as rápidas progressões harmônicas.

Tais progressões foram baseadas no “Rythm Changes”, extraídas da obra de Gerschwin,

I’ve Got Rythm (que curiosamente é a trilha sonora original dos Flintstones). Charlie

Parker conseguiu desenvolver linhas melódicas coerentes em seus improvisos e

construiu um discurso com andamentos e progressões harmônicas acelerados. Seus

gráficos melódicos se tornaram uma referência para grandes nomes que vieram a dar

seqüência ao seu estilo como Bud Powell, que absorveu para o piano as linhas

melódicas do improviso de Charlie Parker, revolucionando a utilização da mão

esquerda no piano, tornando o acompanhamento mais livre.

A década de 50 presenciou mudanças significativas com o advento do Be bop que se

desdobrou ainda em novas correntes como Hard bop.

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3. Jazz Modal: Miles Davis foi responsável pelo advento do modalismo no jazz. O CD

Kind of Blues permanece como um marco na história, constando como o CD mais

vendido em toda a história do Jazz. De fato, este CD foi um marco para mais uma nova

era do Jazz. Participaram desta gravação nomes como: Bill Evans (Piano), John

Coltrane (Sax), Cannonball Adderley (Sax alto), Paul Chambers (Baixo) e Jimmy Colb

(Baixo). Miles Davis inovou em seus improvisos com a utilização de longas pausas

entre uma frase e outra. Esses grandes espaços de silêncio entre suas frases marcaram

um novo estilo e uma nova atmosfera.

Coltrane impulsionou uma segunda revolução no Jazz com obras como Giant Steps,

Count Down, incluindo progressões harmônicas mais espessas. Ele revolucionou a

linguagem da improvisação no Jazz através da construção de frases com densidade

rítmica do Be bop, incorporando modulações à tons afastados, agregando maior

complexidade às estruturas harmônicas

McCoy Tyner inovou através do emprego da mão esquerda, utilizando formação de

acordes em estruturas quartais, enquanto realizava na mão direita um improviso

contrapontuado, baseado nas escalas pentatônicas.

4. Free jazz: Cecil Taylor foi um dos responsáveis pela prática do Free jazz nos anos 50.

Segundo Steve Lacy, “os resultados eram tão livres como tocar de qualquer maneira,

mas não era feito de forma livre e sim construídos de forma muito sistemática com uma

nova estética” (BAILEY, 1992:55). Cecil Taylor utilizou em seus improvisos

estruturas de clusters, desenvolvimentos melódicos atonais e ritmos pouco usuais,

trabalhando com as cordas do piano e absorvendo os elementos da música

contemporânea atonal e dodecafônica , incorporando-os no Jazz.

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Bossa Nova

As primeiras manifestações do que viria a ser conhecido como Bossa Nova ocorreram na década de 50 com o lançamento dos discos Canção do Amor Demais, com

Elizeth Cardoso interpretando composições de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e Chega de Saudade com o clássico de Tom Jobim e Vinícius de Moraes de um lado e Bim-bom, de

João Gilberto, de outro, nos quais João surpreende a todos com a nova batida de violão na casa de Nara Leão (FEITOSA et all, 1995).

Provavelmente a Bossa Nova foi um dos gêneros brasileiros que se tornou mais conhecido no exterior, revolucionando a Música Popular Brasileira (M.P.B.) e absorvendo influências do Jazz, da área erudita com Villa Lobos, Debussy, Chopin, Ravel e outros.

Teve influências, ainda, de compositores brasileiros que antecederam o movimento como:

Ary Barroso, , Pixinguinha, , entre outros. Sua estrutura harmônica e formal é semelhante ao Jazz, porém, com melodia e seção rítmica com caráter brasileiro, abrindo espaço para a improvisação após a exposição do tema. A improvisação, neste sentido, se desenvolve com base na estrutura harmônica da própria canção. Podería-se considerar a Bossa Nova um movimento que tenha sido responsável pela incorporação de um enriquecimento na estrutura harmônica da Música Popular Brasileira8.

Choro A Música Popular Brasileira (MPB), no início do século XX, começou a adquirir características nacionais próprias. Foi com o Choro que surgiu as primeiras manifestações mais evidentes de improvisação em forma de ornamentações melódicas, contrapontos improvisados, assumindo um caráter rítmico com a presença de todas as

8 Com a utilização de tensões como sétimas maiores (7M), nona menor (b9), nona maior (9) e nona aumentada (#9), décima-primeira aumentada (#11), décima-terceira menor (b13) e décima-terceira (13).

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possíveis síncopes características da Música Popular Brasileira (SILVA & OLIVEIRA

FILHO, Apud CALDI, 2000:252).

O Choro nasceu por volta de 1870, ainda como um jeito brasileiro dos conjuntos tocarem os gêneros dançantes europeus em voga na época (valsa, polcas, mazurcas, shottisch) e acabou por se impor como um fascinante gênero musical, tendo em

Pixinguinha uma de suas maiores expressões revolucionária. Além de Joaquim Antonio

Callado, considerado como um dos primeiros nomes ligados a esse gênero, outros como

Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Garoto, Jacob do Bandolim,

K-ximbinho, entre muitos outros, foram responsáveis pela construção das características importantes do fraseado melódico. O Choro exerceu forte influência sobre Villa Lobos, e outros grandes compositores como Radamés Gnatalli, e outros que agregaram em suas composições novas harmonias a esse gênero, transformando-o em sua vertente contemporânea (CALDI, 2000).

Dentre os gêneros da tradição instrumental brasileira, o Choro é o que demonstra maior vigor de transformação criativa (MOURA, 1999).

Para falarmos sobre improvisação no Choro é necessário compreender a dinâmica da relação entre os instrumentos, suas funções e os músicos.

Os instrumentos acompanhadores do Choro, como o violão de sete cordas, tendem a elaborar contracantos graves, correspondendo às “baixarias”. O contracanto por parte do instrumento acompanhador, por vezes, é mais livre e improvisado que a própria melodia do solista (CALDI, 2000:33). O Cavaquinho normalmente cumpre a função de instrumento acompanhador, embora possa eventualmente executar a melodia. Também pelo fato de cumprir uma função mais rítmica devido a sua sonoridade percussiva, é no ritmo

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que se baseiam as improvisações dos tocadores de cavaquinho expressas através das mais variadas divisões rítmicas e de sua inserção na “levada” da música (Ibidem).

No Choro tradicional, a harmonia se apresenta de forma simples (em geral de caráter triádico com poucas utilizações de tensões), porém, é nas variações e inflexões melódicas que o Choro encontra o seu maior desafio no que concerne ao aspecto de improvisação, ficando geralmente à cargo do executante, com o violão de sete cordas, a tarefa de improvisar as “Baixarias” - frases que interligam as seções (SEVE. Entrevista

Informal, 2000).

Um Choro típico geralmente possui três partes e cada parte dezesseis compassos. A forma padrão é: A-A-B-B-A-C-C-A.

Naturalmente existem obras que facilitam a inclusão de variações e ornamentações. O nível de complexidade do tema determina a possibilidade de espaço para inclusão de idéias improvisadas. Se a melodia for mais espaçada, ou seja, composta por notas de longa duração, possibilita ao intérprete contribuir mais com idéias de ornamentação e variação9 (conforme demonstra a Figura 30B, Capítulo III, performance improvisada de sobre a melodia Lamento de Pixinguinha). No entanto, há limites para a improvisação no Choro - convencionado silenciosamente em muitos anos de tradição e diferenciado para cada instrumento – de acordo com a função que o instrumento ocupa dentro da roda de Choro.

Não existe no Choro uma hierarquia determinando que o solista improvisa mais do que os outros músicos. É a contribuição de cada músico que irá determinar o grau de

9 O nível improvisativo do intérprete é facilmente percebido pelos chorões através dos temas lentos (choro canções) onde as melodias são espaçadas.

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improvisação presente em sua performance. Pode ocorrer que o solista se limite apenas à execução da melodia ao passo que o acompanhador (o cavaquinho por exemplo) pode estar realizando variações na “levada”. Neste caso, o cavaquinista, mesmo na condição de acompanhador, improvisa mais que o solista.

O fato é que o solista não improvisa necessariamente mais do que seus acompanhantes. As funções e os referenciais podem ser distintos para cada membro de uma roda de Choro. “É a contribuição criativa pessoal de cada músico que vai determinar o grau de improvisação presente em sua performance” (CALDI, 2000).

As contribuições improvisadas no Choro muitas vezes se firmam como estruturas reaproveitadas em execução posteriores, e em raros casos podem se tornar referências para chorões de uma geração mais jovem, alterando e tornando-se parte integrante da “espinha dorsal” daquela música. Neste ponto, um novo conceito sobre improvisação pode ser mencionado:

“A improvisação pode ser considerada, em definitivo, como uma realização sonora de uma dialética entre reproduzir e renovar... e pode ganhar como conseqüência extrema a criação e a estabilização de novos enunciados, modelos e formas” (GIAMNASTASIO, 1987:69. Apud CALDI, 2000:26).

Numa roda de Choro tocam-se músicas conhecidas e desconhecidas. Lidas na partitura ou executadas “de ouvido”. Cada situação confere aos músicos maior ou menor conforto de acordo com suas habilidades, e aquele que não contribui criativamente no momento da performance poderá ser considerado um mal chorão.

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A prática do acompanhamento de ouvido (sem partitura à frente) requer do acompanhador grande experiência, pois exige percepção aguçada10 e perícia técnica, principalmente em obras que estão sendo executadas pela primeira vez.

Tratando-se de música conhecida, por exemplo, todos tem em mente, numa roda de Choro, o que seja sua “espinha dorsal”, definida basicamente pela forma, o perfil melódico, as progressões harmônicas, o gênero (que define a “levada”), as obrigações

(“baixarias”) e às vezes o andamento. Em geral esta “espinha dorsal” é transmitida oralmente – entre os músicos durante as rodas de Choro através de gravações – e mais recentemente por registros escritos (partituras) (CALDI, 2000:25).

Muitas vezes, no Choro, o solista executa uma peça desconhecida para seus acompanhadores obrigando-os a improvisar, enquadrando um acompanhamento, neste caso, a improvisação como criação imediata da condução das seqüências harmônicas e acompanhamento rítmico (Ibidem).

Entre alguns dos grandes improvisadores deste gênero podemos citar

Pixinguinha, considerado como um competente improvisador entre chorões, estudiosos e biógrafos. Discute-se, no entanto, se suas improvisações seriam “criações em tempo real” ou “composições” abertas à possibilidades de contribuições improvisadas (Ibidem).

É importante observar a analogia entre o Jazz e o Choro. Ambos trabalham com o processo de assimilação de padrões de vocabulário. No entanto, no Choro não se tem o costume de desenvolver improvisos sobre a estrutura harmônica da obra. Porém, as frases de ligação entre as seções (as “Baixarias”), são improvisadas com base em padrões de vocabulários. Caldi afirma que “recentemente a prática de improvisar melodicamente sobre

10 No sentido de perceber o tom, intuir os encadeamentos harmônicos e acompanhá-los com o movimento dos Baixos, eventualmente adicionando algumas “baixarias”.

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os encadeamentos harmônicos sem maiores referências à melodia como no Jazz, vem ganhando força, mas ainda se constitui numa exceção à regra” (Ibidem).

O improviso sobre as estruturas das progressões harmônicas do Choro corresponderia a um maior nível de dificuldade de realização do que no Jazz, pois as estruturas harmônicas são menos espaçadas, envolvendo mudanças de acordes em menor espaço de tempo, obrigando ao improvisador ter um grande desenvolvimento da habilidade de fluência e domínio harmônico (SEVE, Entrevista Informal, 2000).

Apesar da improvisação ser um elemento inerente ao Choro, existem contradições sobre o que realmente é improvisado e o que é composto. Não se sabe ao certo até que ponto as inovações e contribuições do performer são realmente improvisação ou uma mera reprodução de uma idéia previamente criada. A novidade era recebida pelos músicos como improvisação. Loureiro de Sá afirma que o termo “improviso” vem sendo associado ao Choro de forma nebulosa por outros autores como Cabral (1977) e Siqueira

(1970).

É importante observar que o termo improvisação foi muito confundido no

Choro. Acreditou-se que a performance que não se valia da escrita e leitura musicais eram improvisadas. No entanto, podiam ter sido memorizadas. Já que, conforme Siqueira observa, “somente um dos componentes sabia ler música. Todos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmônico” (SIQUEIRA, 1970:98. Apud CALDI,

2000). Caldi, entretanto, enfatiza que “a execução de uma variação melódica (modelo musical) utilizada em outros contextos sem predeterminação, constitui-se uma forma de improvisação no Choro” (CALDI, 2000:29).

Loureiro admite a hipótese de não se improvisar (no sentido de ornamentar ou variar) em Choro de andamentos muito rápidos (LOUREIRO. Apud CALDI, 2000).

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Vale ressaltar que muitos empregaram o termo improvisação ao ato de fazer música sem partitura (como Dino Sete Cordas, por exemplo), enquanto outros (como

Pixinguinha), compreenderam o termo improvisação como o ato de fazer música sem ensaio. Os diversos significados que se agregam ao termo improviso pelos próprios chorões e por seus estudiosos contribuíram para que este termo fosse compreendido de forma nebulosa. Recentes trabalhos (CALDI, 2000; SEVE, 1999) visam resgatar uma compreensão mais clara sobre os reais atos improvisativos no Choro.

Música Popular Contemporânea Brasileira

Devido ao fato de alguns movimentos significativos da Música Popular ainda não conterem uma nomenclatura definida e unificada, sugerimos compreender a Música

Popular Contemporânea Brasileira (ou Música Instrumental Brasileira) como um movimento que visa explorar os elementos rítmicos e melódicos das raízes brasileiras, como Maracatú, Baião, Frevo entre outros, unindo a performance que inclui a improvisação com estruturas muitas vezes semelhantes ao Jazz, contudo não necessariamente obedecendo

à algum parâmetro específico, variando o grau de influências regionais e suas fusões com o

Jazz e outras culturas.

A Música Popular Contemporânea Brasileira surgiu durante o movimento da

Bossa Nova - e já está se estabelecendo -, impulsionada pela influência do Jazz, por um lado, e elementos da música erudita contemporânea por outro, tendo como eixo central o objetivo de explorar as raízes brasileiras. Este gênero contribuiu com a implementação de uma sofisticação no tratamento harmônico, rítmico e formal na Música Popular Brasileira.

Podemos citar, entre outros, e Hermeto Pascoal, como os grandes

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expoentes deste gênero musical que exploraram e ampliaram as possibilidades do improviso nos aspectos harmônicos, rítmicos e de estrutura formal variada.

A Música Popular Contemporânea Brasileira se desenvolveu em direções variadas intensificando, a partir dos anos 80, novas fusões que já ultrapassavam o regionalismo e nacionalismo (por exemplo a mistura de samba com jazz, maracatú com funk, etc.). Os rítmos nordestinos foram intensamente explorados por Hermeto Pascoal que muitas vezes os estruturou sob compassos alternados ou compostos, exercitando novos raciocínios com estas fórmulas rítmicas. Hermeto Pascoal causou grande impacto no período em que morou nos Estados Unidos, despertando interesse de grandes nomes americanos como Miles Davis que gravou sua obra Igrejinha batizando-a de Little church;

Ron Carter gravando o CD Slaves Mass que entraria para a história. Neste disco, Hermeto

Pascoal estabelece novas referências para a utilização dos elementos brasileiros integrados com novas estruturas rítmicas e harmônicas (PASCOAL, Entrevista Informal, 2000).

A improvisação, na Música Popular Contemporânea Brasileira (M.P.C.B), incorporou diversas linguagens e diferenciações estilísticas, sempre se recriando através das fusões.

Durante os anos 80 experimentaram-se, no âmbito da M.P.C.B, praticamente todas as combinações possíveis de elementos das raízes brasileiras (Frevo, Maxixe, Xote,

Baião, Maracatú, Olodum, Samba, Choro, Partido Alto, etc.). É curioso notar que este movimento ocorreu dez anos antes da música popular “comercial” revelar nomes como

Chico Science, Lenine, Pedro Luiz A Parede, etc., que resgataram os elementos brasileiros na música popular comercial.

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1.5 – Síntese e Reflexões Podemos perceber que ao longo da história da música ocidental as práticas improvisatórias permeiam diversos gêneros musicais – além de abranger a música erudita se estende à música popular - como também diversas áreas de atuação musical - o compositor que se vale da improvisação como ferramenta, o intérprete que pode utilizar a improvisação para ornamentar e variar melodias e o improvisador solista que desenvolve as diversas práticas improvisatórias, executando o improviso sob estruturas harmônicas da obra ou sob formas livres.

Vimos também que cada novo movimento musical incorpora certos aspectos e desconsidera outros. A Bossa Nova incorporou alguns códigos do Jazz no que se refere a harmonia e vocabulário da improvisação. Comparando analiticamente a Bossa Nova com o

Choro pode-se afirmar que esta se expandiu harmonicamente, no entanto, perdeu a riqueza dos contracantos praticados no Choro.

Podería-se dizer também que Hermeto Pascoal se tornou um “movimento” dentro da Música Instrumental Brasileira. Ele faz Choro incorporando uma influência universalista que compreende harmonias de alta complexidade, melodias e ritmos que absorvem novas influências contemporâneas, mas sem perder o caráter brasileiro. Poderia- se dizer que Charlie Parker e John Coltrane estão para o Jazz assim como Pixinguinha e

Hermeto Pascoal estão para a M.P.B., respectivamente, no que se refere às transformações que empreenderam através de suas contribuições. Charlie Parker e Pixinguinha revolucionaram o estilo trazendo sofisticações. John Coltrane e Hermeto Pascoal abriram as portas para profusões e mistura com outros elementos, densificando as estruturas harmônicas e estabelecendo novos referenciais.

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CAPÍTULO II - A IMPROVISAÇÃO EM PERSPECTIVAS MUSICOLÓGICA E INTERCULTURAL

2.1 - Introdução

Constata-se na história da musicologia que a improvisação tem ocupado um papel secundário. Musicólogos vêm focalizando atenção na composição, concentrando-se mais em trabalhos finalizados do que nos processos que envolvem a improvisação

(NETTL, 1974:2). Neste sentido, a proposta deste capítulo é apresentar uma série de estudos sobre improvisação musical em perspectiva intercultural, realizando um mapeamento de definições e conceitos existentes na literatura sobre os diversos aspectos e abordagens da improvisação e sua relação com a composição em diferentes culturas.

O propósito de mapear os diversos estudos sobre improvisação musical e sua relação com a composição visa oferecer algumas generalizações possíveis sobre improvisação a partir de uma perspectiva musicológica, bem como avaliar o seu entendimento e o grau de importância que lhe é dada.

Para a realização deste capítulo nos apropriamos de diversas leituras dentre as quais a de Nettl, refletindo alguns capítulos de seu trabalho In the Course of Performance

(1998) sobre a improvisação e sua evolução na área musicológica. Nettl coordenou uma equipe multi-disciplinar realizando um levantamento de grande importância sobre a improvisação numa abordagem histórica e etnomusicológica, incluindo estudos de diversos autores como Blum, Pressing, Goertzen, entre outros. Sob este enfoque, Nettl corroborou

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com a pesquisa histórica de Ferand, ampliando o conceito de improvisação para além das fronteiras da música ocidental de concerto.

2.2 – Conceitos sobre Improvisação

Nesta seção examinaremos os diferentes conceitos abordados na literatura sobre a improvisação musical e sua evolução, a partir de uma abordagem etimológica, com o objetivo de oferecer uma visão mais ampla sobre o tema.

A improvisação equivalente ao grego “autoshediazzo”, significa “trazer à superfície aquilo que lhe é próprio”. “Autòs” significa “eu próprio”. “Automatizar” eqüivale a “tornar espontâneo, fazer espontaneamente a partir do seu próprio movimento”.

Como a automatização é um processo implícito na improvisação, o automático então seria aquele que responde a partir de si os fundamentos (JARDIM. Entrevista Informal, 1999).

Com relação ao termo “autoshediazzo”, Aristóteles utiliza “autoschediasmãton” para relacionar a improvisação à poesia, afirmando:

“ Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evidente que os metros são partes do ritmo), na origem, os homens mais aptos por natureza foram aqueles que eram dotados de uma capacidade especial natural, que através de um processo lento e gradual trouxeram a improvisação à poesia [autoschediasmãton]” (BLUM, Apud NETTL, 1998:35).

Apesar do termo improvisação ser uma palavra relativamente nova nas línguas européias, tornou-se rapidamente indispensável para se falar de música e de várias outras

áreas da vida. Stephen Blum realizou uma pesquisa de grande contribuição sobre o surgimento do termo improvisação e seus cognatos, ilustrando a relação entre o substantivo

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e o verbo11. Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, os termos europeus para fazer música improvisada formavam 2 grupos bem distintos: as práticas vocais e as instrumentais. Estas práticas, baseadas em torno de locuções adverbiais (de improviso, à l’improviste, unexpected, etc.- ver Quadro 1 abaixo) são usadas para qualificar “cantando de improviso” “tocando de improviso” ou “compondo de improviso”. Alguns verbos referem-se a tipos específicos de cantos improvisados (por exemplo, o sortisare do latim) ou à performance instrumental improvisada (por exemplo, fantasieren e capriciren do alemão, ricercare do italiano, rechercher e préluder do francês). Substantivos relacionados aos verbos designam os resultados de uma atividade (como exemplo uma fantasia instrumental, capriccio, prelúdio, sortisatio) (BLUM, Apud NETTL, 1998:36-38).

Quadro 1 - Locuções adverbiais européias relacionadas à improvisação (de 1810) Latin Italian French German English ex improviso de improviso à l’impourvue unvorsehender unexpected Weise ac improvisa all’ improviso à l’improviste unvershens all’ improvistà alla sproveduta Sprovedutamente ex tempore Estemporaneamente all’ impronto impromptu ex sorte a caso sur-le-champ auf der Stelle aus dem Stegereif on the spur of the moment auf zufällige Art by chance on the sudden accidently repente alla mente de tête aus dem Kopfe ad placitum a piacere a plaisir ad libitum ad arbitrio di fantasia à phantasie sine arte senza arte sine meditatione unbedachtsam Fonte: BLUM, In: NETTL, 1998.

11 Segundo Stephen Blum, as razões obrigatórias para falar sobre improvisação incluíram não apenas um interesse em como os músicos adquirem competência, mas também um desejo de imaginar o desenvolvimento histórico das artes performáticas (Apud NETTL, 1998).

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Os termos em latim e italiano (conforme o Quadro 1 acima), escolhidos por tradutores e comentaristas do século XVI, formam um conjunto de noções intimamente associadas, culminando (talvez com diferentes associações) em relatos dos gêneros de performance européia do Renascimento até o presente. Podería-se aprender muito sobre a história do pensamento musical europeu seguindo o uso de cada palavra ou frase deste conjunto de noções – ou seja, como os grupos de termos foram formados, depois reconfigurados, a fim de descrevermos modelos contemporâneos de performance e pontos de vista do passado sempre em mudança12 (BLUM, Apud NETTL, 1998:35).

O desenvolvimento de termos europeus para práticas improvisadoras iniciou, segundo Blum, com advérbios e locuções adverbiais, depois continuou com verbos e substantivos para práticas específicas ou gêneros (ex. sortisare e sortisatio, ricercare e ricercar), e substantivos para agentes (ex. o italiano improvisatore) (Ibidem).

Procuramos sintetizar no Quadro 2 abaixo a evolução de alguns termos referentes às práticas improvisatórias a partir das informações de Blum.

Quadro 2 - Evolução dos termos

Locução Adverbial Verbos Substantivo (modifica o verbo denotando uma circunstância) di fantasia fantasiar fantasia al capriccio capricciare capriccio Define a forma com que A ação. O processo da Resultado. O produto devería-se tocar (“estado de realização, a criação durante decorrente da ação criativa. espírito”) a execução em tempo real Fonte: Quadro elaborado pelo autor com base no Quadro 1 de Stephen Blum apresentado neste capítulo.

12 Stephen Blum recomenda a bibliografia de Kirkendale, Warren, 1979. “Ciceronians versus Aristotelians an the Ricercare as Exordium”. Journal of the American Musicological Society, 32:1-44, para um estudo mais aprofundado sobre a linguagem usada.

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Pode-se observar no Quadro 2 acima o resultado da improvisação quando relacionada à locução adverbial, verbo e substantivo respectivamente. Conclui-se, portanto, quando o termo improvisação relaciona-se à locução adverbial expressa a forma e com que estado de espírito se deveria tocar. Quando a improvisação está relacionada à verbos, denota a ação, o processo da realização, criação durante a execução em tempo real. Quando a improvisação refere-se à substantivo expressa o resultado, o produto decorrente da ação criativa (Vide Quadro 2).

Somente entre os séculos XIX e XX o verbo mais recente “improvisar”, o substantivo “improviso” e seus cognatos foram tratados como termos genéricos, aplicáveis a um número de práticas (embora às vezes usados como substitutos para termos mais antigos com uma referência mais restrita) (BLUM, Apud NETTL, 1998:36).

O (relativamente novo) substantivo verbal improvisieren aparece apenas com um significado no Musikalisches Lexikon de Koch (1802): “a habilidade de um compositor em ajustar à música um poema que nunca viu enquanto executa ao mesmo tempo o novo cenário” (BLUM, Apud NETTL, 1998:38).

A improvisação, por vezes, aparece associada à visão relacionada apenas às emoções conforme descreve o músico inglês H. C. Colles ao afirmar que “extemporização”

(“extempore” - termo ligado à improvisação, vide Quadro 1) seria “o ato primitivo de fazer música, nascido a partir do momento no qual o indivíduo, sem qualquer orientação prévia, obedece ao impulso de desabafar suas emoções introjetando-as na canção” (COLLES,

1935. Apud NETTL, 1998:12). Colles insiste, de forma significativa, que “toda composição sem notação começa como improvisação” (Ibidem). Esta idéia da improvisação relacionada

à performance sem notação também está presente no Riemann Musik Lexikon que apresenta a improvisação como resultado do “ ‘caráter de performances práticas individuais’. Ela

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exclui a fixação de notação bem como a realização de uma obra já existente” (NETTL,

1998: 11). Outra menção deste tipo refere-se à definição, feita por Willi Apel13, da improvisação como “arte de executar música espontaneamente, sem a colaboração de partitura ou texto-memória” (Ibidem).

Outras obras de referência se limitam a uma definição genérica para o termo improvisação. No New Harvard Dictionary of Music encontra-se simplesmente: “a criação de música durante o ato de performance” (Apud NETTL, 1998:10).

Significados mais abrangentes são atribuídos à improvisação como os que se referem ao ato “repentino, súbito, inopinado, improvisado (adj.); produto intelectual inspirado na própria ocasião e feito de repente, sem preparo (s.m.); gênero musical surgido na época romântica e usado sobretudo no repertório pianístico” (DICIONÁRIO AURÉLIO,

1986: 926).

A improvisação costuma também ser definida do ponto de vista de um produto final, usando o conceito do trabalho musical como seu ponto de partida, ou seja,

“a criação de uma obra musical, ou de sua forma final, à medida que está sendo executada. Pode significar a composição imediata da obra pelos executantes, a elaboração ou ajuste de detalhes numa obra já existente, ou qualquer coisa dentro desses limites” (GROVE’S, 1988: 450).

Ainda numa perspectiva mais ampla sobre improvisação, Andreas

Werckmeister, em 1698, afirma conceitos semelhantes aos atuais no que concerne ao estudo referente aos modos (muito praticado no jazz) e sua relação com a improvisação:

“aquele que almeja ‘extempore’[improvisar] deve necessariamente conhecer os modos musicais, além das ferramentas na composição” (DOLL, 1989:45).

13 Para Willi Apel, Bach, Handel, Mozart e Beethoven eram mais conhecidos por sua habilidade de improvisar do que compor (NETTL, 1998:11).

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John Bailey em uma conferência sobre improvisação14, em 1987, ressalta:

“improvisação é a intenção de criar uma expressão musical única no ato de performance”

(Apud NETTL, 1974: 67-69). Nesta conferência, Michéal O’Suilleabhain enfatiza que a improvisação é: “o processo de interação criativo (em público ou solitário; consciente ou inconsciente) entre o músico executante e um modelo musical o qual pode ser mais ou menos fixado” (NETTL, 1998:11).

A perspectiva que ressalta a improvisação como resultado de um processo criativo, levando em consideração um modelo, é explorado na área da musicologia sistemática. Nettl afirma que o trabalho de Jeff Pressing (1984; 1988) é de particular interesse, pois lida com psicologia e neuropsicologia, com o controle motor e conceitos de intuição, criatividade e inteligência artificial, propondo modelos de improvisação para a compreensão dos processos do aprendizado e performance (Ibidem).

A improvisação como meio de lidar com emergências possui pontos comuns com o “discurso sobre improvisação musical”, embora possam ser considerados como completamente diferentes. Os acadêmicos vêm lidando com o conceito de improvisação mais como um modelo com o objetivo de se compreender os processos de aprendizado que envolvem as práticas improvisatórias (conforme uma das propostas de Pressing, apresentadas acima).

Quando falamos em modelo, referente às práticas improvisatórias, poderíamos pensar em uma estrutura esquemática seguindo as Figuras 12 e 13 abaixo, para representar um quadro da ação improvisatória mediante infinitas possibilidades de combinações que,

14 A síntese da conferência sobre improvisação foi incorporada em um pequeno capítulo da edição Lortat- Jacob (1987:67-69) com diversas definições formuladas por quatorze participantes. Como este exemplar consiste de uma série de estudos que lidam com improvisação em considerável diversidade de pontos de vista, nos parece essencial apresentar algumas dessas definições.

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pelo fato de se interligarem, acabam se multiplicando, formando novos “corpos de estruturas cognitivas” (entendido aqui como conjunto de informações perceptivas ou emocionais utilizado como referencial). Quanto maior a quantidade de corpos de estruturas cognitivas, maior as possibilidades de combinações e portanto maior o potencial de possibilidades improvisatórias. É importante notar que a “qualidade” dos corpos de estruturas cognitivas determinam diretamente o resultado final do produto gerado pelo processo de interligação no ato improvisativo15.

Figura 12 – Formação de Estruturas Cognitivas

Figura 13 – Expansão de Estruturas Cognitivas

= Estruturas Cognitivas (EC).

= a Prática de Combinação e Variação (PCV), de interligar os corpos de

estruturas cognitvas.

= novos corpos de estruturas cognitivas advindos do processo de interligação.

15 Podería-se presumir um político que tenha duas ou mais frases de “impacto” incorporadas em seus conjuntos cognitivos, tendo mais chances de obter um resultado mais efetivo em seu discurso. Certamente pode-se transpor este princípio tanto para a música como para outras áreas de atuação.

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A Figura 12 representa a associação entre dois corpos de estruturas cognitivas gerando um novo. A Figura 13 representa a expansão dos corpos de estruturas cognitivas denotando que quanto maior a quantidade de corpos maior a possibilidade associativa, ou seja, mais opções de escolhas de material durante o ato da improvisação.

Dois processos iniciais são de grande importância para a formação dos corpos de estruturas cognitivas:

1. a aquisição de conhecimento;

2. exercício de combinação e variação das estruturas cognitivas, interligando-as, provocando conclusões e conseqüentes reproduções em novos corpos.

Nesse sentido, a “prática” cumpre a função catalisadora, permitindo uma operação constante de permutas de informações, promovendo transformações e reproduções das estruturas cognitivas. Podemos associar este aspecto da prática com a visão poética de ao citar: “Repetir, repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo” (BARROS, 1994:13).

Em relação ao item 1, sobre a aquisição de conhecimento, o nível de profundidade da assimilação do material determina o quão disponível está para a sua utilização no ato improvisativo. Neste sentido, o corpo de estruturas cognitivas deve ser assimilado com tal profundidade que não haja dúvida no momento de acesso à informação.

A dúvida implica em atraso da realização da idéia durante a performance em tempo real, no ato improvisativo e certamente numa perda da pulsação rítmica. Os novos corpos de estruturas cognitivas, formados pela interligação do ato improvisativo, só sobrevivem em seu “meio ambiente” caso eles sejam praticados para uma fixação de forma mais profunda da assimilação da estrutura do corpo cognitivo.

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Quanto ao item 2, referente à Prática de Combinação e Variação no ato improvisativo, alterna de acordo com diversos aspectos: quando as associações decorrentes do ato improvisativo são realizadas de forma intelectual, onde a lógica e a busca por coerência determinam a qualidade das associações. Estas associações podem ser motivadas por intenções emocionais, o que vai gerar a busca de acesso em outros arquivos do mesmo reservatório. Por fim, estas associações poderiam ser motivadas por aspectos metafísicos ou transcendentais. Em se tratando de música, vimos no Capítulo I que eram freqüentes os

êxtases religiosos nos cantos gregorianos. Poderiam estes êxtases, ligados ao plano emocional, serem os elementos responsáveis pelas variações na música (o ato improvisativo)? (ver Figura 1 sobre “Canto Gregoriano” de Ferand, Capítulo I, p. 21 desta pesquisa).

É comum observarmos expressões do tipo “eu não tenho talento para improvisar”, por parte de músicos que possuem um significativo corpo de estruturas cognitivas musicais. Sob esta ótica poderia-se questionar se um performer que atinge um considerável patamar como intérprete na área da música de concerto (tendo absorvido um grande repertório contendo inúmeros elementos formadores de estruturas cognitivas), não teria talento para a improvisação ou apenas não a praticou? (Este aspecto será explorado no próximo capítulo – Capítulo III).

Para se buscar maior compreensão de uma performance improvisada, nos deparamos com alguns questionamentos tradicionais que visam possibilitar um melhor entendimento acerca dos “mistérios” que envolvem a improvisação. Tais questionamentos são:

• Como se pode definir os limites da improvisação na música ?

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• Como deve o “Performer” aprender os padrões arquetípicos? • Como pode a improvisação influenciar a música que não é improvisada, ou vice-versa? (NETTL, 1998:8).

A busca por respostas sobre os questionamentos acima citados visa determinar as fronteiras do que é estabelecido como improvisação, além da repercussão desta prática no processo da composição, procurando não fechar o foco da atenção para culturas ou repertórios específicos que possam ter feito da improvisação uma especialidade.

Para cada área da cultura surgem novas abordagens paradigmáticas, uma vez que diversos acadêmicos têm se concentrado em problemas concernentes a cada área específica. O estudo do Jazz, por exemplo, se concentrou na compreensão de técnicas de músicos individuais analisando também os detalhes de suas performances. O saxofonista

Harold Ousley16 quando ouve composições de jazz, afirma que muitas vezes as melodias já foram solos. “Eu sei porque muitas canções que compus vieram da simples execução de certas frases solo. Quando estou solando, ouço uma certa frase e digo: ei, gostei disso, acho que vou compor uma canção com esta frase” (BERLINER, 1994: 221). Ao criar solo após solo, os improvisadores de jazz exploram continuamente o relacionamento de idéias musicais, negociando dentre uma combinação de elementos fixos, que derivam de suas reservas (estruturas cognitivas), e elementos variáveis novos, que apresentam desafios e surpresas sem igual. Refletindo esta dicotomia, temos os diferentes usos aos quais os artistas aplicam o termo improvisação em diferentes contextos, iluminando assim, várias facetas de suas atividades criativas.

16 Saxofonista tenor, atuou ao lado de grandes nomes como Billie Holiday, Freddie Hubbard, Count Basie, Duke Ellington, entre outros (DELMARK JAZZ, 2000).

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Segundo Berliner, quando os músicos empregam o termo improvisação como substantivo, referindo-se à improvisações como produtos artísticos, concentram-se na relação precisa dos produtos com os modelos originais que os inspirou. No entanto, quando os artistas empregam o termo improvisação como verbo, concentram-se não só no grau em que os velhos modelos são transformados e novas idéias criadas, mas nas condições dinâmicas e nos processos precisos subordinados às transformações e suas criações

(BERLINER, 1994:222) (Vide Quadro 2 deste capítulo).

É importante ressaltar que os pequenos progressos ocorridos no campo das pesquisas sobre improvisação, desde os anos 50, são em parte atribuídos ao estabelecimento da etnomusicologia e ao crescente número de pesquisas sobre diversas culturas, tendo também o campo da educação musical contribuido com diversos trabalhos. Outro fator que desempenhou um papel fundamental para os progressos realizados nas pesquisas sobre improvisação foi o avanço tecnológico das gravações de áudio e vídeo. Mesmo assim, é preciso repetir que dentro das atividades e processos estudados pelos historiadores de música e também pelos etnomusicólogos, o improviso ocupa apenas um pequeno espaço.

2.3 – Improvisação, Composição e suas Fronteiras

É comum as pesquisas e literatura referente ao estudo da improvisação dedicar um capítulo à relação entre improvisação e composição. Esta seção se propõe então a examinar a relação entre a improvisação, composição e suas fronteiras.

O termo “composição artística” é entendido pelos etnomusicólogos como o processo de construções minuciosas (NETTL, 1998:4).

A diferença entre música ocidental de concerto e outras tem sido um paradigma em musicologia. Antigos etnomusicólogos como Bartòk, por exemplo, insistiam nesta

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questão indagando se os camponeses eram capazes de inventar novas canções (NETTL,

1998:5). Para Nettl, não existem motivos para categorizar a composição em culturas com tradição oral e escrita como departamentos diferentes. O modelo de pré-composição17, composição e revisão, enquanto amplamente utilizado por compositores ocidentais que dependem muito de notação, também funciona para aquelas culturas que não seguem este modelo. Na música clássica hindú , por exemplo, o improvisador aprende as Ragas e as

Talas, o material para poder lidar com melodia, ritmo e certos fragmentos de peças que o possibilite internalizar técnicas para improvisação. Estes fatos representam a pré- composição na performance da música hindú, assim como um grupo de decisões sobre qual

Raga e qual Tala deve ser executada em cada ocasião. O improvisador na música hindú precisa fazer constantes ajustes para retornar à idéia original após afastar-se de sua intenção, o que ocorre de vez em quando. Já a composição, por si só, ocorre durante a performance e somente aquilo que foi tocado é considerado como composição completa. O compositor precisa revisar o seu manuscrito, pois erros precisam ser encobertos e rápidos ajustes devem ser feitos. Inesperados deslizes são absorvidos na estrutura que o músico determinou com antecedência (NETTL, 1998:8). Aqui percebemos o estabelecimento do contraste entre tomadas de decisão de forma improvisatória e planejamento com preparação, execução e revisão.

Robert Haas (1931), examinou extensivamente como a prática da performance leva à improvisação em muitos aspectos, como por exemplo em técnicas de composição em culturas que não possuem sistemas de notação e na música artística do sul asiático

(NETTL, 1998:12).

17 processo de pré-definir uma forma e criar a partir deste formato estabelecido (NETTL, 1974:6).

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Devemos reconhecer o fato de que diferentes sociedades possuem visões diferenciadas no que se refere à criação musical, apesar de Nettl sugerir que até certa medida de conceituação todas as formas de criação musical (incluindo composição, improvisação e performance) em todos os lugares são semelhantes. Segundo Merriam, em muitos casos existe o reconhecimento de que “algo” já existe e o compositor teria a tarefa de traduzir este “algo” em uma forma musical aceitável (Apud NETTL, 1998:12).

Jankélévitch também compartilha desta visão quando afirma que “...a improvisação é o primeiro passo da invenção criativa, a partir do nada de uma folha em branco. È o começo do começo” (JANKÉLÉVITCH, 1998:111).

Diversos autores - como Blacking, Gerson, Merriam e outros citados por Nettl - ressaltam exemplos de diferentes visões sobre criação musical. Os índios Prina, por exemplo, acreditam que todas as músicas já existam em algum lugar do Cosmo e que é uma tarefa do compositor captá-las. Para os Esquimós todas as canções já foram esgotadas. Eles recolhem algumas já existentes e acrescentam suas idéias criando uma nova música. O músico iraniano começa sua formação musical estudando e memorizando o radif (que significa o corpo da música), que funciona como repertório fundamental assim como guia para técnicas improvisatórias e estruturas globais de performance. Já os músicos da tradicional música ocidental de concerto aprendem o corpo básico da teoria musical incorporando um específico vocabulário e regras quanto à sua utilização no qual ele é desafiado a compor nova música (NETTL, 1998:12).

Estas visões nos demonstram que cada cultura provê ao músico referências musicais e ele tem o desafio de acrescentar algo de si, ou seja, a música existe como material para uma nova obra a ser criada através da recombinação de material já existente.

Podemos nos referir a um típico exemplo de tradição oral, no qual alguém aprende uma

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canção com seus pais ou amigos e em seguida canta esta canção introduzindo pequenas variações e gradualmente incluindo novas variantes, mas o original se mantém claramente reconhecível. Novas músicas foram compostas, mas elas foram baseadas nos moldes rítmicos, melódicos e do texto formal, de material previamente existente.

Observa-se que não existe no ato da composição uma ausência absoluta de prescrição ou de modelos. Nota-se, na visão musicológica, que todas as culturas comportam graus variáveis de prescrição, não existindo uma total ausência de referência como também não seguindo uma referência absoluta. Existe uma tendência em rotular aqueles que obedecem menos regras como os que improvisam, assim como eventualmente ouve-se declarações sugerindo que a improvisação não pode ser explicada, analisada nem descrita.

No entanto, os etnomusicólogos procuram ter muito cuidado em examinar o aspecto da real inexistência de prescrição e a inexistência de regras.

Nettl afirma que o conceito de improvisação é de fato mais amplo e engloba diversos tipos de atividades criativas que o conceito de composição. A improvisação e composição não se posicionam como processos opostos, mas sim como dois pontos de um mesmo contínuo separados pelo estágio de espontaneidade, podendo ser vistos também como o tempo de duração entre criação e execução (NETTL, 1998:4). Transpondo este pensamento para uma visão gráfica, em analogia com um termômetro, podemos observar a partir da Figura 14 abaixo, a existência de dois pólos: calor e frio. No entanto, percebemos que calor e frio são em essência “algo” único que poderia ser considerado como temperatura, variando apenas em graus, sendo ainda impossível determinar exatamente onde começa o calor ou o frio para os indivíduos, pois, o que para uns é calor para outros pode ser frio. Transpondo este pensamento para a improvisação musical, também nos seria

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impossível determinar exatamente onde começa a composição e onde começa a improvisação, uma vez que variam apenas em graus de formas de criação e inventividade.

Figura 14: Formas de Criação Musical: improvisação e composição como pólos opostos de um mesmo contínuo.

IIII -3 -2 -1 0 1 2 3 C I=Improvisação C=Composição

Improvisação (escala de progressão gradual Composição (escala de progressão gradual para esquerda) para direita) Quanto maior graduação para a Quanto maior graduação para direita: esquerda: - Maior precisão da notação; - Maior indeterminação da notação; - Maior colaboração do intérprete com a - Menor colaboração do intérprete com a obra. obra. Fonte: Figura elaborada pelo autor.

Pode-se encontrar, na música ocidental, improvisação em um estilo composicional rígido, mas também, composição cuidadosamente notada em estilo improvisatório, além de várias graduações entre estes dois pólos deste contínuo

(improvisação e composição) (NETTL, 1998:13).

Bailey considera que a improvisação ocupa uma posição central para a música como um todo, e a compreensão da música de forma ampla depende da compreensão de algo sobre improvisação. O autor ainda sugere que um paradigma adequado do ato de fazer música incluiria necessariamente o improviso como foco central, com subdivisão da composição (Ibidem).

Todavia, na literatura da musicologia geral, a improvisação aparece em menor escala e de forma menos diversificada que a “pré-composição” (NETTL, 1998:6). Existe a

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tendência na musicologia em associar a improvisação à uma prática musical, todavia mais como um conceito, pois a considera ainda como um gênero de “música secundária”. Talvez pelo aspecto que “...a vocação da ciência foi sempre organizar a vida humana num mundo onde a parte de improviso seria minimizada” (JANKÉLE´VITCH, 1998:111). O que deve ter contribuído para a visão da improvisação como um gênero de “música secundária” reside no que Nettl afirmou ser a dificuldade em descobrir processos relativos à criatividade musical e particularmente à questão da intenção (Ibidem).

Pode-se citar casos como o de Marlos Nobre, em que a improvisação aparece nitidamente como uma “arte negligenciada”. Nobre, ao descrever sua experiência no

Conservatório de Música de , comenta: “Fui chamado atenção pelo diretor quando me flagrou improvisando. Era como se aquilo fosse algo ruim. Ou seja, o estilo pessoal era proibido pelos professores porque não era considerado um estilo sério”

(NOBRE 2000:Entrevista). Aqui podemos perceber a postura adotada por uma instituição de ensino musical com relação às práticas improvisatórias.

A improvisação na concepção de música ocidental de concerto envolve, segundo Treitler, ausência de planejamento preciso e disciplina. A idéia da existência de músicos que espontaneamente podem fazer o que querem, de acordo com o impulso do momento, é estranha para os músicos eruditos que escandalizaram-se por tamanha falta de disciplina, todavia sentiram-se atraídos pela liberdade presumida que envolve a improvisação. Para Treitler, não seria surpresa que a musicologia, um campo desenvolvido na Alemanha, enfatize valores como disciplina e previsibilidade, os quais são amplamente respeitados na cultura germânica e tem privilegiado os músicos associados com estes conceitos (Apud NETTL, 1998:8).

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As obras mais estimadas no repertório da música ocidental de concerto são obras extensas, que apresentam organização intrincada como: sinfonias, óperas, concertos e talvez obras mais significativas na área de música de câmara, sonatas para piano, mas raramente esta lista incluiria pequenas obras que sugerem criação no impulso do momento, como “improvisos”, fantasias, momentos musicaux, e rapsódias. Sob este enfoque, dentro do campo da música de concerto a improvisação esta posicionada em um patamar inferior

(Ibidem).

Na concepção de música ocidental de concerto, existe um grupo de relacionamentos paralelos contrastantes com a composição elaborada e inspirada. Podemos comparar visões do século dezenove, com o século vinte sobre o método composicional esmerado e por vezes delongado de Beethoven em contrapartida ao estilo de criação rápido e espontâneo de Schubert. Os hábitos de Beethoven de criar esboços nos motiva a ver sua obra como o resultado de um trabalho árduo, e a lenda de que muitos “lied” de Schubert foram compostos no verso de cardápios de restaurante, enquanto esperava o seu jantar, sugere um método de composição bastante diferente do de Beethoven. No entanto,

Beethoven era um famoso improvisador e Schubert possuía grande complexidade na estrutura formal em várias de suas obras (EINSTEIN, 1951:92 apud NETTL, 1998:9).

Clara Schumann por exemplo em seus primeiros concertos, “preludiava” para demonstrar suas habilidades improvisacionais e técnicas. Era esperado de um pianista concertista que ele “preludiasse”, ou seja, que compusesse e improvisasse em temas dados.

Mas em muitas ocasiões, Clara Schumann expressou insegurança sobre suas habilidades como compositora. Em contrapartida, ela não demonstrou ter tido nenhuma dúvida sobre sua habilidade para improvisar. Possuía tamanha facilidade espontânea que Robert

Schumann (seu marido) a aconselhava canalizar sua inventividade em partituras notadas: “

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um conselho, não improvise tanto assim, pois em demasia, poderia te distanciar de um uso mais adequado da inventividade. Improvise sempre de uma maneira que consiga colocar tudo na partitura logo em seguida” (GOERTZEN apud NETTL, 1998:243). Todavia, Bailey afirma que o sentido real da improvisação voluntária se opõe aos objetivos e contradiz a idéia de documentação (Apud NETTL, 1998:13). Vários músicos utilizam a improvisação como primeira etapa do processo, documentando os melhores momentos da performance improvisada, transpondo-a, em seguida, para a composição.

Autores especializados no tema concordam que improvisação envolve pelo menos algum nível de espontaneidade em tomadas de decisão musical durante o ato de performance (FERAND 1961: 5; NETTL, 1998). O termo “composição em tempo real” envolve tomadas de decisão instantâneas na aplicação e alteração do material musical e na concepção de novas idéias (NETTL, 1998:4).

Acredita-se, segundo Bailey, que na composição todos os componentes são iguais e definitivamente pretendidos pelos compositores tal qual é apresentado. Já em improvisação, deve-se encarar a probabilidade que parte da execução pode ser precisamente pretendida enquanto outras passagens são inseridas sem um pensamento específico predeterminado, possivelmente para permitir ao performer pensar o que fazer em seguida18

(BAILEY, 1992 apud NETTL, 1998:13).

Espontaneidade na performance certamente envolve responsabilidade – a responsabilidade do performance em criar (isto é, “compor”) e executar passagens que são esteticamente aceitáveis para a maior parte dos ouvintes. E com esta responsabilidade vem

18 Para se ter certeza, deve haver analogias em composição como poderíamos citar na distinção entre material temático e material de desenvolvimento na forma Sonata do século dezoito. Ainda assim, enquanto pode-se analisar a transcrição de uma improvisação praticamente como se fosse uma Sonata ou uma Rhapsódia de Brahms, a importância relativa de vários componentes seria mais difícil de estabelecer.

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o risco potencial – o que é composto espontaneamente e executado poderá não ser recebido favoravelmente. Mas estão os compositores livres deste risco ?

Pode-se trabalhar sobre uma peça previamente a sua apresentação inicial para uma platéia ouvinte, mas ainda assim existe a responsabilidade de se expor a um julgamento. O que composição escrita faz, com certeza, é remover muito da responsabilidade criativa do performer, deixando-o ser julgado no tópico da técnica e nuança. O compositor pode estar sujeito ao risco do embaraço com a imprensa, mas protegido de um encontro face a face com o público durante ou imediatamente após a performance da obra.

2.4 - Síntese e Reflexões

Este capítulo teve como objetivo contribuir para a ampliação da visão sobre improvisação e suas diversas formas de manifestação musical (na música ocidental de concerto e em outras culturas), procurando oferecer em síntese um mapeamento sobre suas diferentes conceituações, criando analogias e examinando suas problemáticas.

Observando a posição da improvisação no meio acadêmico e na cultura da música ocidental de concerto, na qual a musicologia está fundada , pode-se estabelecer as seguintes visões:

− A improvisação como algo definitivamente diferente da performance e precomposição.

− A improvisação como imitação de material precomposto com o afastamento da notação

permitindo variações do material já existente.

− A improvisação contendo elementos essenciais adquiridos através de transmissão oral.

− Uma arte através da qual os grandes compositores se sobressaíram.

− A improvisação como uma habilidade, mas não uma arte.

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− A improvisação como algo a ser avaliado com o mesmo critério que a composição.

− A improvisação como um processo que não pode ser explicado ou analisado.

Pode-se concluir que a distinção entre os conceitos relativos à prática de performance, improvisação e composição em tradições orais permanece como uma questão não solucionada.

Dentre as práticas improvisatórias, encontram-se músicas em diversos estilos e com tipos diferentes de níveis de prescrição e regras. Uma parte da literatura musicológica aponta a improvisação como um aspecto da interpretação de composições estabelecidas, e, também como uma arte independente. No entanto, o conceito de improvisação envolve liberdade, ausência de planejamento, e relações pouco coerentes entre partes e seções.

Jankèlèvitch (1998:111) compartilha da visão que o processo criativo envolve necessariamente estruturas cognitivas. Esta opinião contrasta com a visão de Bailey que desencoraja a tentativa de compreender a improvisação, pois envolve riscos de deturpação

(NETTL, 1998:13). No entanto, Bailey acredita que a improvisação deva ocupar uma posição central em relação às práticas musicais. Em contrapartida, a musicologia ainda concentra-se mais em trabalhos finalizados (composição) do que nos processos que envolvem a improvisação.

Como já observado, não se pode improvisar a partir do nada. Mas a improvisação não necessariamente é algo totalmente construído e pré-determinado, apesar de vários conceitos e afirmações questionarem a verdadeira liberdade durante a improvisação. Certamente, o improvisador está contribuindo e criando algo novo durante sua execução. Este “novo” pode se restringir apenas à forma “como” ele interliga seus padrões de vocabulário que derivam de suas reservas cognitivas. O grau de inventividade com o qual o executante escolherá as “fórmulas” musicais ou “corpos de estruturas

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cognitivas” e como efetuará a manipulação e alteração destas unidades durante a execução, determinará a qualidade e o nível de desenvolvimento de sua habilidade como improvisador. Este aspecto será particularmente estudado no próximo capítulo.

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CAPÍTULO III - A IMPROVISAÇÃO: UMA QUESTÃO DE TALENTO “NATURAL”?

3.1 – Introdução

O caminho para a compreensão do desenvolvimento da habilidade de improvisar raramente é claro e linear. Envolve questões aparentemente paradoxais

(conforme já observadas no capítulo II deste trabalho) como: o processo de tornar um elemento automático (no sentido “autòs”) sem remeter necessariamente à prática unicamente mecânica; a improvisação como decorrente de um ato de espontaneizar, de tornar um elemento externo uma “segunda natureza”, sem todavia representar um dom especial inerente ao ser.

Contudo, estaria a improvisação dependente unicamente de um talento

“natural”?

As questões paradoxais referentes à improvisação, acima mencionadas, quando estudadas e examinadas nos seus aspectos mais profundos podem ajudar a romper com possíveis mistérios que permeiam a improvisação e suas práticas como algo que não pode ser explicado e descrito por estar relacionado a um talento “natural”, ou seja, uma habilidade que não se aprende, simplesmente existe. Procuramos entender a improvisação como uma prática, e como em qualquer prática haverão aqueles com maior ou menor grau de facilidades.

Neste sentido, a proposta deste capítulo é examinar os processos que envolvem o ato de tornar “espontâneo” e “natural” um material musical, ou seja, os processos que abarcam as práticas improvisativas com o objetivo de buscar desnaturalizá-las; investigar se

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essas práticas resultam unicamente de uma habilidade inata, que faz parte do ser, e, portanto, não necessitam de um aprendizado. Para tanto, dimensionamos este capítulo em duas seções: na primeira, examinaremos alguns estudos existentes no campo da psicologia sobre a existência de fatores influenciadores de uma habilidade determinada a fim de verificarmos as práticas e elementos que estão presentes no processo de construção de um improviso. Na segunda seção, procuraremos relacionar alguns resultados verificados na primeira seção, buscando realizar um levantamento das formas de improvisação musical, até então verificadas no decorrer desta pesquisa, bem como suas respectivas técnicas.

Considerando-se que o complexo biológico do ser humano representa o dado bruto sobre o qual irá trabalhar a cultura, buscamos explicações do campo da psicologia para o tratamento de questões relacionadas à improvisação, procurando ampliar a visão nesta área, sem, contudo, encerrar a problemática no campo psicológico.

As questões aqui examinadas serão realizadas a partir de uma análise bibliográfica.

3.2 – Aspectos Psicológicos que envolvem as práticas improvisatórias Para abordar fatores que compreendem aspectos essencialmente individuais no ato da improvisação, examinaremos nesta seção alguns aspectos psicológicos que envolvem as práticas improvisatórias.

O ato de se tornar um “expert” é desde a renascença visto pela psicologia do folclore ocidental e opinião leiga como conseqüência do desenvolvimento do talento

“natural”. Neste caso, o “talento nato” é visto sob o enfoque da alta perfeição.

A visão de talento nato tem sido abalada por uma série de estudos mais recentes no campo da psicologia (ERICSSON e CHARNESS, 1994:47-725 apud NETLL, 1998:48).

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Há fortes evidências que apontam diversos tipos de prática e treinamento19, assim como os efeitos de fatores culturais e do meio ambiente como aspectos principais e preponderantes para se chegar ao “expertise” (PRESSING,1984:63-345).

De acordo com a visão de Galton, três fatores são centrais no desenvolvimento do “expertise”: habilidade nata, motivação e esforço (GALTON, 1979. Apud NETTL,

1998:47).

Se os efeitos principais do treinamento são direcionados para desenvolver habilidade a um alto nível de potencial individual, seria a habilidade nata um fator dominante diferenciador para se atingir o “expertise” ?.

Aspectos como prática e predisposição são importantes e sofrem profunda influência de fatores como o grau de apoio dos pais, professores e amigos e forças culturais gerais. Vários métodos foram escritos ao longo da história por ilustres compositores como

Andreas Werckmeister (1698), C. P. E. Bach (1762), Czerny (1840), Friederich Wieck

(1875) e outros em diferentes períodos da história com o objetivo de orientar os intérpretes para o seu desenvolvimento na habilidade de improvisar prelúdios, fantasias, cadências, etc.

O aspecto prática-predisposição também é afetado por fatores pessoais como: temperamento, motivação intrínseca, ambição por prêmios, prazer da atividade, nível de atividade preferida, os quais podem estar também associados à componentes genéticos.

Além desses fatores pessoais existe, ainda, um grande número de diferenciação de características de personalidade de músicos, performers e compositores a ser considerado.

19 Um exemplo que podemos citar é o de Clara Schumann. Alguns testemunhos de contemporâneos atestam a importância da improvisação na formação musical de Clara Schumann e como ela utilizou em toda a sua carreira essa habilidade. Clara foi severamente treinada por seu pai na arte do improviso de prelúdios, o que a ajudou a tornar-se uma das maiores pianistas do seu tempo (GOERTZEN, 1996).

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Recentes pesquisas evidenciam que características de personalidades de instrumentistas podem variar com o instrumento, assim como compositores tendem a ser mais auto-suficientes, emocionalmente instáveis, dominantes, introvertidos e reflexivos do que outros grupos, exibindo sensibilidade, imaginação e radicalismo com uma forte atração por empreendimentos complexos (KEMP, 1996. Apud NETTL, 1998:49).

Um aspecto tradicional da visão de talento nato tem sido a noção de que

“expertise” é encontrado em habilidades básicas excepcionais, em níveis considerados superiores de alguns aspectos como: vigilância ou foco de atenção, força muscular, memória, coordenação de mão com olho, rápida reação, fluência lógica, percepção espacial, ou velocidade e profundidade de pensamento. Mesmo que essas idéias tenham sido colocadas em teste, elas não foram bem fundamentadas. Por exemplo, atletas campeões que tiveram notável atuação no contexto de seu esporte, não exibem reflexo ou percepção acusada ao simples estímulo que os diferencie de atletas normais ou do público em geral.

Pelo contrário, “experts” desenvolvem domínio específico de certas habilidades

(ERICSSON e CHARNESS, 1994; ERICSSON e SMITH, 1991; KRAMER, 1993).

Uma das habilidades desenvolvidas com domínio por “experts” é a de codificar atitudes da memória, que conquistam através de interligar simples elementos da memória em grupos maiores baseados em estruturas especiais, desenvolvidas na memória a longo prazo. Treinamentos específicos vem demonstrando que indivíduos que detém uma memória excepcional conseguem realizar largos poderes associativos generalizados em curto espaço de tempo criando assim estruturas de memória especial em uma série de domínios (ERICSSON e CHARNESS, 1994, 49:47-725). Esses estudos afirmam a possibilidade da existência de treinamentos especiais capazes de melhorar e aperfeiçoar a

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memória musical com efeitos potencialmente poderosos no ato da improvisação. A habilidade para reproduzir música com todos os detalhes contidos depois de somente uma ou duas audições e reproduzí-las em um instrumento é uma virtude rara e valiosa. Um exemplo de tais atitudes refere-se aos casos de prodígios musicais tais como o jovem

Mozart. Alguns estudos sobre gênios musicais afirmam que esta habilidade pode ser completamente independente de outros subskills20 musicais (habilidade).

Existem evidências em forma de anedota sobre os requerimentos exigidos para os candidatos a emprego como organistas no período da Renascença e Barroco. Tais candidatos deveriam ser capazes de improvisar sobre uma melodia dada e em seguida realizar a notação da performance improvisada em partitura (FERAND, 1961). Isto poderia ser considerado pelos padrões de improvisadores atuais como uma memória excepcional.

É importante lembrar “façanhas” impressionantes sobre os casos de memorização, mesmo que não estejam ligadas à improvisação, como maestros que regem sem a grade orquestral (ERICSSON e CHARNESS, 1994:47-725). Concertistas ou solistas executam extensas obras musicais sem a partitura, provavelmente pelas referências tonais.

No entanto, a memorização da música atonal ocorre com maior dificuldade, conforme revelam os estudos de Sloboda, Hermelin e O’Connor (1985, Apud NETTL, 1998:55).

Pode-se citar como uma referência significativa que liga o aspecto da improvisação como elemento facilitador para memorização de obras atonais, o caso do pianista Michael Kieran Harvey. Famoso por memorizar extensas obras atonais em curto espaço de tempo, Harvey afirma que pratica improvisação no estilo da peça para sua segurança em caso de lapsos de memória (PRESSING, 1984. Apud NETTL, 1998:56).

20 Conjunto de características que formam a habilidade.

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Segundo Pressing, estudos de mapeamento cerebral, técnicas de imaginação podem prover alguns insights valiosos (Ibidem).

Uma importante ferramenta para fluência improvisacional emerge da criação, manutenção e enriquecimento de uma base de conhecimentos associados, formando a

“memória a longo-prazo”. A riqueza e refinamento da organização de conhecimentos estruturados caracteriza fortemente a diferenciação entre um expert e não-expert. Embora a

“expertise” possa ser facilitada por um bom ajustamento entre o espectro de disposições individuais e o domínio de determinadas habilidades, estas disposições podem ter um largo componente do meio ambiente. Desse modo, torna-se difícil, no geral, predizer quais crianças se tornarão eventuais “experts” na música, a despeito das bem conhecidas histórias de compositores que desde cedo, florescendo prodígios, não tarde desenvolvem seus potenciais projetados e são eventualmente ultrapassados por aqueles que começam mais tarde.

Estudos demonstram que um “expert” em uma área específica, não apresentam vantagens naturais fora do domínio de sua especialidade, a menos que as novas habilidades sejam congruentes com seu campo de ação. Sob este enfoque, não é surpresa que as habilidades musicais de leitura, performance memorizada, composição e improviso são aparentemente independentes, mesmo que elas compartilhem uma extensa base de conhecimento. Este conceito de independência reforça a idéia de uma inteligência musical separada, e de fato, existe um número de casos relatados de perda seletiva de habilidades musicais devido a danos neurológicos e referências da existência, o que Gardner denomina como “sábios idiotas”, com considerável habilidade de improvisação musical (GARDNER,

1983. Apud NETTL, 1998:51).

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Qualquer ato improvisativo envolve uma ação criadora, sendo esta, considerada uma das principais qualidades de uma personalidade artística. Iremos portanto, examinar alguns aspectos referentes à criatividade.

Para criar, segundo Novaes, é preciso não se estar preso à idéias preconcebidas

(NOVAES, 1980:18). Todos os indivíduos possuem potencial criador, podendo desenvolver o comportamento criativo em diversos níveis de intensidade, como:

− Nível Expressivo: relativo às descobertas e novas formas de expressar

sentimentos.

− Nível Produtivo: onde a técnica de execução é aumentada e desenvolvida.

− Nível Inventivo: maior dose de inventividade e capacidade de desenvolver

novas realidades.

− Nível Inovativo: implica na originalidade e é esse o “nível que diferencia o

artista do mero fazedor de arte”.

− Nível Emergente: máximo poder criador. Pressupõe não apenas

“modificações de princípios antigos, mas criação de princípios novos”

(NOVAES, 1980:21).

A criatividade pode ser desenvolvida, desde que se reforce as funções envolvidas e se consiga uma melhor utilização dos recursos individuais. Para que isto ocorra, é necessário que o indivíduo aproveite todas as suas potencialidades e não se deixe entorpecer por atitudes de conformismo (NOVAES, 1980:68).

O comportamento criativo pode ser estimulado pelas condições do meio ambiente, desenvolvido e dinamizado através de experiências educativas visando a busca dos aspectos como: originalidade, apreciação do novo, inventividade, curiosidade e pesquisa, auto-direção, percepção sensorial ou percepção da realidade. A busca desses

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aspectos tem como objetivo criar necessidades para o pensamento criativo, prever os seus períodos de ativação e de incubação, propiciar o pensar até o fim, desenvolver a crítica construtiva e a aquisição do conhecimento em diversos campos, propiciando o ato de não se aprisionar à idéias preconceituosas e não prosseguir num estado mecanizado de pensar e fazer (NOVAES, 1980:51-75).

Assim como a criatividade pode ser desenvolvida, também pode ser tolhida, segundo Novaes (NOVAES, 1980:75). Isto porque existe a possibilidade de bloqueios do desenvolvimento da criatividade decorrentes:

- da falta de conhecimentos e informações;

- de hábitos pessoais negativos, atitudes de pessimismo e de conformismo;

- da falta de esforço pessoal;

- da procura de critérios de julgamentos estereotipados (Ibidem, p.75).

Tratamos, até agora, de questões relacionadas ao desenvolvimento de uma habilidade determinada (o “expertise”) através do treinamento, prática e predisposição que, por sua vez, sofrem influências de fatores individuais: emoção, personalidade, percepção, memória, pensamento associativo (portanto, de fatores cognitivos); e de fatores externos ao indivíduo: métodos, instrumentos, suporte familiar e do meio ambiente (portanto, de fatores culturais). Tais fatores, não podem ser vistos de forma isolada, já que se trata de relações de complementaridade inseridas num contexto mais amplo. Examinaremos a seguir alguns aspectos relacionados aos fatores cognitivos.

3.2.1 - Estruturas Cognitivas e suas Implicações “Repetir, repetir,

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até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo” (BARROS, 1994:13).

As idéias musicais individuais, com todo o seu poder associativo, podem produzir vários tipos de união imaginativa cujas características precisas poderão sugerir uma rica derivação de idéias a serem consideradas e incorporadas. Sob este enfoque, abordaremos nesta seção os processos de formação e expansão das estruturas cognitivas e suas implicações para a construção do material musical.

Para conquistar uma boa fluência e coerência, improvisadores utilizam um

“referente”, entendido aqui como um modelo, estruturas cognitivas, perceptivas, ou emocionais que guiam e acrescentam na produção de materiais musicais. No Jazz, por exemplo, as estruturas referenciais estão na forma da canção, melodia e progressões harmônicas. Neste caso, compreendemos “estruturas referenciais” como a base ou delimitação do percurso sobre o qual o artista irá desenvolver o seu improviso21.

O termo “estruturas referenciais” nos remete às delimitações impostas por modelos externos (por exemplo, as progressões harmônicas de uma obra sobre à qual o intérprete irá desenvolver o seu improviso), enquanto o termo “referente” nos remete às estruturas cognitivas (modelos internos, blocos de conhecimento) adquiridas pelo improvisador através da prática (com a qual o intérprete irá construir o seu discurso).

21 Para um estudo mais aprofundado, acreditamos ser de grande importância a inclusão de novos termos, utilizados ao longo desta dissertação, como: “padrões de vocabulários”, “estruturas cognitivas”, “depósitos”, “referenciais”, “referente”, “material referencial”, “reservas”, “depósitos cognitivos”, “figuras musicais”, “superposição de redes de células melódicas de uma corrente”, “combinação de elementos fixos”, “modelos musicais pré-assimilados”, “blocos de conhecimento”, etc., uma vez que eles nos permitirão ampliar o vocabulário do estudo sistemático da improvisação, bem como aprofundar a compreensão para além das fronteiras que abarcam conceitos como “clichê” – termo ainda empregado entre improvisadores. É necessário, contudo, que haja um consenso com relação aos significados destes termos.

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A descrição da natureza das rotinas preliminares que envolvem o processo de formação das estruturas cognitivas, requer a incursão nas complexidades do pensamento musical dos improvisadores. Para tanto, apresentaremos uma representação esquemática dos elementos que envolvem o ato da improvisação musical (Figuras 15a e 15b), construída a partir dos dados de alguns autores (BERLINER, 1994:561; KNELLER apud RIBEIRO,

1989; PRESSING, 1984 apud NETTL, 1998; MOLES, 1998), sem todavia perder de vista que tal representação não se explica por um processo mecânico e simples e que está sujeita

à variações e influências de fatores emocionais, heranças culturais, portanto, estruturas complexas e subjetivas.

A Figura 15a, abaixo, representa o processo de formação das estruturas cognitivas e suas combinações, que, posteriormente darão seqüência à criação de novas estruturas maiores.

Notamos, ainda (a partir da Figura 15a), que o aluno à medida que internaliza as estruturas cognitivas através de uma prática mecânica (PM) intensa, elas passam a estar disponíveis a um acesso imediato, ou seja, tornam-se automatizadas no sentido de espontaneizadas (ação de autòs = tornar espontâneo).

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Figuras 15a e 15b - Representação esquemática do Processo de Formação e 22 Expansão das Estruturas Cognitivas FIGURA 15a

FIGURA 15b PCV

Figura 15a= Processo de Formação de uma estrutura cognitiva em fase inicial (PFEC). Figura 15b = Processo de expansão das Estruturas cognitivas (PEEC).

= Material (ou idéia) musical (MM) ainda não absorvido profundamente, que virá a se tornar estrutura cognitiva (etapa de preparação).

= Prática mecânica (PM) permanente das estruturas cognitivas permite ao intérprete o aprofundamento do conhecimento e seu armazenamento na memória para acesso imediato (estudo mecânico).

= Estrutura Cognitiva (EC) (padrões de vocabulários ou blocos de conhecimento); material internalizado. Atua com o objetivo de fermentar o material adquirido para a viabilização da síntese.

= Prática de combinação e variação (PCV) de estruturas cognitivas representa o processo de autòs, ou seja, de tornar espontâneo, além do processo criativo.

= Representa a expansão do material musical, formando um Bloco de conhecimento, decorrente de uma prática contínua de interligação de estruturas cognitivas.

22 Fonte: Figura esquemática elaborada pelo autor.

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A prática mecânica (PM) permanente das estruturas cognitivas permite viabilizar o processamento da síntese23 mediante práticas de combinação e variação (PCV) de estruturas cognitivas, cujo nível da síntese dependerá do conteúdo da informação e do nível de familiaridade com as estruturas cognitivas.

Harold Ousley24, em sua juventude como músico, afirma:

“Existe uma ‘consciência interna’ que gradualmente começa a realizar todas estas coisas por ele, fazendo conexões entre as várias habilidades requeridas. O improvisador atinge a fase em que o material de suas reservas [memória] emergem ‘naturalmente’ em determinados momentos de sua performance, sem que haja uma intenção voluntária. Como se a improvisação correspondesse ao estágio de um fluxo ‘espontâneo-involuntário’ ” (Apud BERLINER, 1994:178). Ousley esclarece, acima, como o material assimilado é automatizado através da prática mecânica (PM), se transforma em matéria-prima disponível para o processo criativo

(através da PCV).

A Figura 15b, acima, representa a síntese e a interconexão entre os diversos materiais musicais assimilados, e, possivelmente, a combinação de material novo com o material arquivado é realizado nesta etapa.

A utilização das estruturas cognitivas (ou referente), segundo Pressing, ajuda a realçar o resultado da performance, uma vez que fornecem material para variação fazendo com que o executante direcione menor grau de atenção (capacidade de processamento) para selecionar a criação de material (PRESSING, 1984: 63-345 apud NETTL, 1998).

A prática mecânica (PM) viabiliza a automatização e a espontaneização das estruturas cognitivas (de idéias musicais), permitindo o aumento da velocidade do

23 O termo processamento da síntese foi baseado em Pressing (1984:63), apud Nettl (1998). 24 Grande saxofonista tenor, atuou ao lado de grandes nomes como Count Basie, Billie Holiday, Freddie Hubbard, Duke Ellington, entre outros (DELMARK JAZZ, 2000).

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processamento da atenção simultânea. Desde que o material musical esteja disponível no momento imediato anterior à performance, uma pre-análise irá permitir a construção de uma ou mais estruturas segmentadas adequadas do modelo das estruturas cognitivas original e também uma gama de fontes apropriadas e bem ensaiadas para manipulação e variação (PCV), o que permitirá reduzir a quantidade de tomadas de decisão requeridas na performance.

Não podemos também deixar de considerar os aspectos referentes ao processo da criatividade musical, uma vez que estão intimamente associados à improvisação. Kneller identifica quatro etapas pela qual o pensamento criativo se processa:

- Preparação: aquisição de material, conhecimento adquirido para o surgimento

do ato criador;

- Incubação: etapa inconsciente, como fermentação do material adquirido,

disposição a novos princípios;

- Inspiração: precede a formalização do pensamento criativo completo e

acabado;

- Verificação: julgamento crítico daquilo que se produziu (KNELLER, Apud

RIBEIRO, 1989:68).

Transportando o pensamento de Kneller para as Figuras 15a e 15b, pode-se identificar as etapas 1 e 2 (preparação e incubação, respectivamente) plenamente representadas. O material musical (MM), por intermédio da prática mecânica (PM) permanente é internalizado, formando estruturas cognitivas. Quando o performer atingiu a assimilação de uma quantidade significativa de estruturas cognitivas, logo percebe as infinitas implicações de como seu conhecimento pode servir, descobrindo sua utilidade para diversos contextos como modelo composicional.

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As etapas 3 e 4 (inspiração e verificação), mencionadas por Kneller, remetem à fase de processamento de síntese através das práticas de combinação e variação (PCV). O material musical é profundamente absorvido por intermédio da prática mecânica (PM), que, por sua vez, provoca uma fermentação do material adquirido para a viabilização da síntese que ocorrerá através da prática de combinação e variação (PCV). Como exemplo, pode-se citar o momento em que um aluno, ao se familiarizar com determinado campo harmônico, se liberta, podendo, assim, focar sua atenção na construção de fraseados, ou seja, no momento em que um aluno domina o conhecimento de diversos fraseados inicia um procedimento de combinação, variação do material.

Os músicos, atentos, perseguem engenhosos caminhos para a construção e ornamentação de frases particulares, extraindo e transportando certos gráficos melódicos ou rítmicos para novos contextos, os quais se tornarão modelo (ou matéria-prima) para a criação de novas idéias musicais (BERLINER, 1994:146). Este processo requer um trabalho técnico criterioso e intenso.

Examinaremos, a seguir, procedimentos pelos quais os músicos atravessam durante o ato da criação de novas idéias musicais e suas práticas improvisativas.

3.2.2 - Desenvolvimento do Intérprete e suas Práticas

É comum que um aluno, no início dos seus estudos de performance, arrisque – mesmo que escondido – algumas tentativas de improvisação, embora desprovido de qualquer técnica e conhecimento sobre esta prática. Estas tentativas costumam não ser encorajadas e os impulsos “espontâneos” de uma prática improvisativa acabam por não serem estimulados e consequentemente desenvolvidos.

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Nesta seção iremos nos concentrar especificamente nas práticas de improvisação do Jazz, embora exista uma variedade de possibilidades improvisativas

(conforme serão examinadas na próxima seção, 3.3, deste trabalho). No entanto, diversos procedimentos da prática improvisativa podem ser semelhantes, mesmo que em áreas diferentes.

Berliner descreve três fatores impulsionadores para o desenvolvimento da improvisação no Jazz: o treinamento desde jovem, a prática grupal e o aprendizado de modelos para o desenvolvimento de vocabulário musical.

1.Treinamento desde jovem– Sem dúvida a herança musical através do gene dos pais tem algum tipo de influência quanto à formação do performer. Contudo, isto não é determinante, pois sabemos que muitos dos grandes improvisadores tinham pais que o introduziram muito jovens às práticas musicais e improvisatórias. Também se beneficiam aqueles que desde cedo ouvem música, contribuindo para desenvolvimento da formação musical (Mozart), assim como aqueles que desde jovens absorvem o material musical das performances de outros. A Igreja, principalmente o GOSPEL, também contribui para a formação musical de futuros improvisadores em potencial. São inúmeros os grandes expoentes no Jazz que tiveram sua iniciação musical em Igreja, como Art Farmer, Max

Roach e outros (BERLINER, 1994:25).

2. A prática grupal – É importante evidenciar que a prática grupal na Música

Popular e no Jazz é considerada tão importante quanto a atividade do estudo solitário, assim como assistir concertos. Depoimentos de Winton Marsalis afirma que “o Jazz não é somente tocar o que se ‘sente’. Existe toda uma estruturação que vem de uma tradição e que requer muito pensamento e estudo” (Apud BERLINER, 1994:95).

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3. Aprender modelos para desenvolvimento de vocabulário musical - Assim como crianças aprendem a falar sua língua nativa imitando os mais velhos, que “já sabem falar” , jovens aprendem a desenvolver a linguagem do improviso utilizando recursos da imitação de músicos veteranos que “já dominam o discurso”. Benny Bailey afirma que “quando criança, não se tem o conhecimento harmônico para o desenvolvimento do improviso por si, portanto, inicia-se copiando improvisos de outros que nos agradam” (Apud BERLINER,

1994:95).

Outros recursos da imitação utilizados como ferramenta para o desenvolvimento da linguagem do improviso são: transcrição e identificação da personalidade musical de outros improvisadores.

Transcrição

O processo de transcrição consiste em extrair um trecho de um improviso e escrevê-lo, tendo como referência a audição. Como ferramenta fundamental para o enriquecimento do vocabulário, o material transposto terá diversas utilidades tanto em sua

íntegra, como material para ser transformado e recriado para outros improvisos com base na utilização de fragmentos da transcrição. Analogamente poderíamos relacionar ao procedimento de uma pesquisa: inicialmente você extrairia o material integral do original e passaria a combiná-lo em uma segunda etapa com outras fontes. Desse modo, a transcrição está para a improvisação assim como o processo de fichamento por citação estaria para a pesquisa.

Art Farmer cita sua experiência em transcrever solos.

“Decidi que o melhor que podia fazer seria transcrever os solos na íntegra; nota por nota, alinhando-os à harmonia da música; analisando as notas de acordo com os acordes que estavam sendo

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tocados. Só assim eu aprendi. É como se você estivesse enriquecendo o seu vocabulário” (Apud BERLINER, 1994: 95).

Existem diversas formas de absorção de estruturas cognitivas, em geral, como variantes de recursos imitativos. Assim como Beethoven, Mozart, Bach e tantos outros compositores utilizavam a cópia de partituras de seus predecessores como ferramenta de aprendizado, os jazzistas, instrumentistas da área da música popular utilizam a transcrição como meio de absorção de estruturas cognitivas. Existem provavelmente outros recursos imitativos além dos processos de cópia de partituras e transcrição, aqui, no caso, entendido como uma reprodução mecânica de uma estrutura absorvida por via auditiva.

Identificação da personalidade musical

Eventualmente estudantes aprendem a identificar a personalidade musical de grandes improvisadores através da compreensão e decodificação de novas constelações de traços e conceitos.

Podería-se afirmar que a tradição que fez com que Beethoven, Mozart e Bach se preocupassem em estudar as partituras é a mesma que faz com que os estudantes de improvisação de diversos gêneros ( como no Jazz, por exemplo) se ocupem em decodificar os expoentes de cada estilo. De ambos os casos citados o objetivo não seria o de reproduzir os seus referenciais, tal qual foram assimilados, mas sim transformá-los, dando-lhes uma nova roupagem. Como por exemplo, Mozart em relação às obras de Händel.

Portanto, embora uma imitação bem sucedida cumpra uma finalidade de grande importância, o objetivo maior no desenvolvimento da improvisação requer a criação de novos solos, além dos limites de apenas um estilo artístico.

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Os recentes conhecimentos adquiridos encorajam os músicos a cruzar estas fronteiras, explorando relacionamentos entre as idéias de diferentes improvisadores através de processos como o da combinação e variação do material assimilado com inclusão de novas idéias.

Processo de combinação e variação do material assimilado com inclusão de novas idéias

O material assimilado por imitação, quando transformado por inclusão de novos elementos, também representa um processo de criação. Trata-se de um processo de combinação do material assimilado e transformado por inclusão de novas idéias criadas pelo próprio estudante, originadas por acaso ou intencionalmente.

Quando um artista está tocando o seu discurso musical improvisado, menciona os vocabulários que foram absorvidos de todos os artistas transcritos. Hillyer afirma que “é como se você tocasse através de todos eles” (Apud BERLINER, 1994:138).

Arthur Rhames expõe a visão sobre grandes improvisadores que tem “a habilidade de absorver diferentes perspectivas musicais e integrá-las com a sua própria perspectiva. Eles simbolizam o potencial que todos têm em mergulhar em várias fontes e processar a síntese de diferentes compreensões sob a sua própria perspectiva” (Apud

BERLINER, 1994:138).

Quando os estudantes redefinem suas metas iniciais (o que representa o processo de absorção por imitação) para incluir uma combinação nas características absorvidas de seus mestres referenciais25 (que podem ser vistos como estruturas referenciais), eles caminham na direção da transformação do processo de imitação. Este

25 Aquele que o aluno transcreveu no início do seu desenvolvimento na prática de improvisação.

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processo permite aos estudantes caminhar em busca de uma direção de forma a construir um estilo pessoal, enquanto simultaneamente já atuam com mais confiança no território do improviso (independente dos estilos que vêm trabalhando). Os estudantes, cercados por uma coleção de modelos podem vir a medir e pesar meticulosamente os valores de cada influência. Alguns deles, podem vir a se deparar com o fato de terem absorvido mais material de alguns artistas que de outros (BERLINER, 1994:138).

Esta etapa é de grande importância para que o estudante possa criar sua própria identidade. No momento em que ele cria transformações no material absorvido por imitação, é como se estivesse legitimando o seu uso, pois, ao improvisador, segundo Max

Roach, “foi conferido o crédito por ser inovativo como solista. A heterogeneidade é inerente à natureza humana; a busca em ser um pouco diferente do outro” (Apud

BERLINER, 1994:139).

Estudantes procuram apreender padrões de vocabulários discretos através da observação em discos e shows, copiando a maneira como usar as inflexões – pois é natural que se tenha uma referência do nível artístico que se almeja atingir no início (no caso, um

ídolo referencial). Todavia, será de grande importância se desprender e absorver várias outras referências, procurando se expandir para além das suas primeiras influências, criando suas próprias.

“Tudo passa de imitação para assimilação e então para inovação. Você passa do estágio de imitação para o estágio de assimilação quando absorve um pouco de cada um dos diferentes músicos e amalgama todos dentro de um estilo identificado, criando seu próprio estilo” (BERLINER, 1994:120).

O processo para o estudante descobrir a própria maneira de “como aplicar” os padrões de vocabulário adquiridos e já transformados, ou seja, descobrir sua própria forma

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de aplicar modelos de frases, requer que ele desenvolva a análise de frases a partir do seu elemento central como base, para criar padrões similares.

Existem diversas possibilidades de formas de estudo com relação aos processos acima mencionados. Para ilustrar esta idéia, Berliner afirma que:

“Você pode copiar ‘Wes Montgomery’ – apenas um pequeno trecho – somente uma frase de um compasso ou quatro compassos. Trata- se de uma melodia tão bem desenvolvida, tão bem composta, que você pode produzir dez milhões de outros padrões, ou um solo integral, a partir do extrato de uma frase” (BERLINER, 1994:142). Neste estágio emergem, para os novos artistas, questões sobre:

- como desenvolver “uma lógica musical” e “continuidade estilística”;

- como dar continuidade a trechos de uma transcrição com passagens inacessíveis de solos gravados;

- como compor transições melódicas entre duas passagens e modelá-las apropriadamente à forma harmônica.

Observa-se que quando o aluno está buscando o seu estilo pessoal através da modificação do material assimilado por imitação (de um mestre ou ídolo), ele recorre às técnicas das práticas fundamentais de “variação” (BERLINER, 1994:145).

O ato de construir um improviso pode ocorrer pelo exercício da improvisação em forma de variação. Em depoimento, Benny Bailey descreve como aprendeu a improvisar.

“Pensar em rítmo pode ser muito eficiente; você pode tocar apenas algumas notas e com o ritmo adequado pode torná-las de grande interesse. Outras vezes, você pode estar pensando em intervalos ou em escalas. Na verdade, a primeira coisa que fiz foi tocar verticalmente, percorrendo as notas de acorde. Realmente aprendi acordes de cima para baixo. Esta foi a maneira como eu iniciei o aprendizado. Até então eu não conhecia as escalas em relação aos acordes, e só vim a conhecer mais tarde. Depois comecei a tocar intervalos: era uma maneira de fugir realmente dos arpejos e

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somente percorrer pelas notas dos acordes” (Apud BERLINER, 1994:145).

Para o aprendiz, a descoberta das escalas e sua relação teórica com os acordes constituem uma penetração em um novo “ponto conceitual”, permitindo aplicações imediatas. Eles podem construir a escala ou modo que seja compatível com cada acorde, preenchendo as notas diatônicas entre as notas que formam acordes, aumentando as possibilidades de utilização de 4 para 7 notas em relação ao acorde (em caso do acorde ser representado por uma tétrade). As opções de agrupamento do material tonal também aumentam no momento em que existem 7 notas disponíveis para combinar ao invés de 4.

Paralelamente às escalas diatônicas, o improvisador que busca o desenvolvimento no segmento das práticas improvisativas sob base harmônica estabelecida como o Jazz, a

Bossa Nova, etc., passa pelo aprendizado de outras escalas como a pentatônica (que eliminaria a 4a e 7a ), a escala de Blues, escalas alteradas, os tons inteiros, entre outras.

Uma vez que jovens músicos, munidos com reservas básicas de modelos musicais, arriscam a aplicar seus conhecimentos adquiridos, deparam-se com diversos desafios que acompanham esta tarefa. O aluno passa pela comprensão de como as frases soam em relação a diferentes acordes – clareiam as diversas formas de empregar uma frase e como assumem cores diferentes de acordo com a harmonia. Nesta etapa, quando o aluno já tem uma boa noção harmônica e já reconhece os intervalos com facilidade, colocando-o em prática, começa a exercitar o pensamento musical - que para improvisadores se constitui numa simples rotina. O desafio é o de transformar o acorde em melodias viáveis

(BERLINER, 1994:177).

Curtis Fuller descreve a trajetória da construção do improviso como uma

“estrada com muitos obstáculos pela qual os estudantes devem atravessar para adquirirem

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um vocabulário, através do polimento do material que envolve o seu uso rudimentar e trabalhar em direção a fluência” (Apud BERLINER, 1994:176).

Com relação aos aspectos que envolvem a prática de transformar o acorde em melodias viáveis, é comum os alunos nesta etapa, ainda se perderem no tempo harmônico, pois a sua atenção está focada em acessar a idéia melódica e rítmica e executá-la sobre as progressões harmônicas (conforme a Figura 16 mais adiante demonstra). À medida em que se familiarizam com a coordenação motora que envolvem a realização de idéias musicais, os alunos podem balancear melhor o foco de atenção entre a sincronização da realização dos modelos de idéias musicais e sua colocação em relação ao tempo harmônico de uma progressão. Através da prática disciplinada e intensa, corrigem estas deficiências, à medida em que os estudantes memorizam gradualmente as progressões harmônicas, aprendendo a prever os próximos acordes.

Músicos aspirantes, em seu desenvolvimento, podem descobrir repentinamente que adquiriram o controle de manipular frases, precisamente no tempo em relação as características harmônicas das diferentes progressões (BERLINER, 1994:178).

Berliner, ao citar Ousley que utiliza a analogia de uma criança aprendendo a andar de bicicleta, afirma:

“Ela necessita desenvolver diferentes operações para adquirir a maestria(...) ‘no início ela desequilibra perigosamente de um lado para o outro’, mas após horas de prática ‘encontra o centro do equilíbrio e de repente ela tem o poder de controlar de tal forma que não irá cair para nenhum dos dois lados. É a mesma coisa com a música’ ” (BERLINER, 1994:178). Como já mencionado, os improvisadores experimentam aplicar estruturas cognitivas (um modelo) em diferentes contextos rítmico-harmônicos possíveis, exercitando então o relacionamento vertical de suas idéias, onde estas diversas combinações assumirão

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características distintas. Ao mesmo tempo, perseguem um relacionamento linear entre suas idéias através da combinação de padrões de vocabulário de diversas maneiras, para criar novas frases (BERLINER, 1994:184) (vide Figura 16 abaixo).

Curtis Fuller questiona a continuidade e o prosseguimento de uma idéia musical em analogia com o discurso verbal. “Devo parar de vez em quando enquanto falo e me perguntar: Qual a melhor palavra para se usar aqui?” (BERLINER, 1994:184). Com referência a este assunto, Jankélévitch abre uma questão pertinente: em que espaço do tempo está focada a atenção de um improvisador durante a sua execução?

Henri Allen aponta a importância de focar a atenção sempre à frente do “tempo real” de execução: “Eu concentro alguns compassos à frente durante todo o tempo. É preciso ter uma idéia para onde se está indo” (Apud BERLINER, 1994:178).

A afirmação de Henri Allen leva-nos a acreditar que a improvisação, mesmo não sendo previamente planejada, requer uma previsão para onde está sendo conduzida, ou seja, uma parcela da atenção está focada à frente de sua realização física, mesmo porque um gesto ou uma ação não existiria sem ser precedido por uma intenção.

A Figura 16, abaixo, pode nos auxiliar no entendimento sobre a atenção do intérprete durante uma performance improvisada. Todavia, devemos lembrar que tal figura representa apenas “alguns aspectos” a serem considerados pelo intérprete durante a performance, não representando portanto, a totalidade das operações da atenção do performer durante o ato da improvisação.

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Figura 16 - Dinâmica dos possíveis direcionamentos da atenção do intérprete durante a performance improvisada

C MELODIA - Procura seletiva de linhas melódicas-rítmicas; - Aplicação de padrões de vocabulário em diferentes partes de uma peça harmônica-rítmica; - Procura de relações lineares melódicas de suas idéias; - Variação e combinação de material melódico (padrões de vocabulário) em diferentes formas para criação de novas frases; - Atenção constante ao rumo da condução das melodias; - Desenvolvimento e articulação das melodias compatíveis com a cifra.

ATENÇÃO DO PERFORMER IMPROVISADOR A B

HARMONIA RÍTMO − Realização das cifras e escolhas de determinadas notas para a formação de acorde; - Rítmo, tempo e pulsação; − Realização de progressões harmônicas; - Constantes criações de − Tensões harmônicas e resoluções; variações rítmicas. − Procura de variadas formações de acordes (Voicings); − Reharmonizações.

Fonte: Figura elaborada pelo próprio autor com base em informações de Berliner (1994); Ericsson (1991); Moles (1998).

Harmonia (A)

Os aspectos relacionados à harmonia compreendem: estudo da harmonia, conhecimento das Cifras e sua realização, domínio de formações de acordes, o uso de tensões harmônicas, rítmos harmônicos, domínio sobre diversas progressões harmônicas, etc. A memória cumpre o papel de um depósito para o referente; uma espécie de um display em tempo real. Muitas tradições improvisativas não utilizam notação; e para aquelas que utilizam, existem uma margem de relacionamentos entre notação e execução. Diferentes tradições de improvisação fazem usos diferenciados de notação que por sua vez está vinculada ao sistema composicional (NETTL, 1998:58).

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Na improvisação, a notação deve ter símbolos (cifras) com sentidos coerentes, mesmo que indeterminada. É necessário haver imprecisão, indeterminação no sistema de cifras e isto deveria ser numa ordem de maior magnitude que qualquer tradição composicional associativa e grafada. A forma de indeterminação é melhor vista através de um olhar da nomenclatura na mais conhecida tradição da música ocidental contemporânea

(Ibidem).

O sistema de cifras de acorde no Jazz também foi apropriado pela Música

Popular. Entretanto, as diferenças são mais profundas. As cifras, especificamente no Jazz, posicionam a classe das doze notas dentro de uma das duas categorias de estruturas funcionais. Por exemplo, a cifra C9 (#11) distribui a classe de doze notas separando em dois grupos:

- as notas pertencentes ao acordes (C, E, G, Bb, D, F#)

- as notas não pertencentes ao acordes (Db, Eb, F, Ab, A, B).

As notas, sejam elas “pertencentes” ou “não pertencentes” ao acordes, provocam desafios e dúvidas ao performer em como irão funcionar quanto ao seu posicionamento no tempo e registro, além da sua relação com notas que formam o acorde em questão (Ibidem).

Uma cifra dada não pode ser demasiadamente soletrada. Em função da natureza indeterminada e suas infinitas variações, o ato de precisar o sistema simbólico da cifra se torna impossível. As dificuldades que estão implícitas na realização das cifras são surpreendentemente extensas (NETTL, 1998:58-59).

Espera-se do improvisador, ao improvisar melodias sobre as cifras, que desenvolva as idéias melódicas de forma articulada e compatível com as cifras. As notas pertencentes ao acordes normalmente agem como entidades melódicas estáveis; as classes

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de notas não pertencentes aos acordes são associadas com outras notas específicas apontadas pelos parênteses que constam nas cifras, cumprindo o papel de dissonâncias. Em geral, uma nota não pertencente ao acorde resolve em nota do acorde (NETTL, 1998:59).

O fluir na leitura da cifra fornece uma base de referência com a qual se avalia desvios, expectativas e indeterminações que abrem espaço para a execução da obra improvisada.

Rítmo (B)

O estudo dos aspectos relacionados ao rítmo (no Jazz e na Música Popular

Brasileira) compreende: conhecer e desenvolver o domínio sobre os diversos ritmos estilísticos de cada gênero a ponto de poder executar uma música empregando constantes variações rítmicas sem perder a referência da quadratura estabelecida; desenvolvimento de precisão metronômica; domínio do suingue e as diversas possibilidades de síncopes utilizáveis.

No estudo da Música Popular Brasileira, como no Jazz, existe a necessidade de se compreender profundamente o rítmo com a finalidade de atingir o seu domínio e incorporá-lo com alto nível de precisão. Em função da espontaneização (= autòs) dos padrões assimilados, disponibilizando-os como matrizes para a criação de variações rítmicas, o performer ganha maior vitalidade e consistência em sua improvisação rítmica.

Com relação aos aspectos interpretativos no Jazz, existem expressões como

“playing late back”26 que denota a importância de não se tocar precisamente com a inflexão que a notação sugere e também não absolutamente de forma rigorosamente metronômica no tempo. Porém, isto não quer dizer falta de precisão, sendo apenas uma questão de inflexão

26 Interpretação incluindo um leve retardando.

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da execução rítmica, não interferindo na pulsação do andamento em geral. O ato de tocar em forma “late back” acaba se tornando um desafio para o intérprete, pois requer que ele execute o rítmo na pulsação do andamento, incluindo um leve atraso, sem contudo se afastar demasiadamente da pulsação do tempo.

As “Notas Fantasmas” (Ghost Notes) podem ser representadas, em geral, por notas em parênteses, sugerindo que o intérprete realize apenas a intenção da execução da nota sem, todavia, evidenciá-la, requerendo do performer um certo grau de independência rítmica e melódica.

Diversas culturas costumam, em geral, interpretar tempos sincopados de forma ligeiramente diferenciadas da notação correspondente, atribuindo pequenas variações nas inflexões, acentuações e interpretações do tempo. Estas inflexões detalhadas que envolvem cada estilo e formam um conjunto de características inerentes ao termo “suingue” (que trataremos mais adiante) não é de fácil descrição. O próprio sistema de notação musical, por mais preciso que seja não costuma ser suficiente para evidenciar todas as questões que envolvem a performance e os detalhes da execução. Até mesmo o sistema de notação no

Jazz e na Música Popular não possui a tradição de uma notação detalhada. Na Música

Popular Brasileira e no Jazz, o desafio é compreender as inflexões e as intenções rítmicas relativas a cada estilo específico em questão.

Antes de nos aprofundarmos nas questões que envolvem o “suingue”, iremos examinar os aspectos relativos à absorção de diversos rítmos básicos e suas variações que compreendem determinado estilo (Jazz, MPB, etc.).

O estudante de improvisação deve, então, saber variar as diferentes figuras rítmicas sem perder o referencial do tempo em relação às progressões harmônicas sobre a qual está improvisando. Com isto, conquistam a liberdade de inserir novos elementos

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rítmicos em suas improvisações, além de padrões de vocabulário precomposto e estruturas de frases interligadas. Muitas vezes ouvimos grandes expoentes da improvisação nesta área afirmarem que a partir de uma idéia rítmica, eles apenas adicionam notas melódicas.

Ainda sobre a questão que envolve a inflexão e execução rítmica e aspectos do tempo, é importante que os estudantes exercitem o rigor intelectual que a improvisação exige e a agilidade requerida para traduzir idéias em sons instantaneamente. O desafio consiste em praticar a coordenação entre a mente (a idéia musical) e os dedos (execução da idéia musical) sem permitir um “hiato de tempo” entre o pensamento e a realização para que não haja um atraso na execução do estudante e consequentemente a perda do andamento. Neste sentido, é fundamental haver uma conexão entre a idéia e a realização motora. É aconselhável que pianistas desenvolvam a independência entre a mão esquerda e mão direita, em metodologia similar ao procedimento de independência rítmica que engloba o estudo da Bateria. Por exemplo, o estudo dos fundamentos e rudimentos aplicados ao piano pode contribuir para que o aluno desenvolva uma “inteligência pianística” que o permita aplicar os rítmos no instrumento. O desafio se torna em saber arranjá-los de forma a dar um sentido musical no piano, sem perder a característica das células rítmicas assimiladas.

O corpo também exerce um papel ativo quando, através do seu aparato motor sensorial, interpreta e responde a sons como impressões físicas; sutilmente informa ou remodela os conceitos mentais. Neste sentido, o movimento corporal pode interferir na precisão rítmica.

Berliner afirma que, à medida que estudantes aprendem desde cedo seu instrumento, o corpo pode se ajustar mais rapidamente na composição de novas frases revelando confortavelmente sua própria capacidade para o pensamento criativo. “É o

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mundo da imaginação corporal convidando a explorar seus relacionamentos, onde sentimentos de prazer e conforto podem influenciar uma performance” (BERLINER,

1994:177).

Em outros momentos, as idéias que solistas realizam durante a performance improvisada dependem em grande parte da ação corporal. Nesta etapa, corpo e mente não somente estão estreitamente conectados como também completamente absorvidos dentro do progresso imediato na performance da expansão de suas linhas.

Músicos comumente exercitam sincronização entre a idéia musical e sua realização mecânica, mesmo quando estão fora do instrumento, simulando figuras melódico-rítmicas e executando em mímica seus dedilhados simultaneamente. O objetivo final é conquistar uma coordenação tão estreita entre a realização e a idéia, assim como articular padrões musicais com a facilidade e fluência da “fala” em qualquer expressão gestual (BERLINER, 1994:178). Sobre esta questão, Art Farmer ressalta:

“Você precisa estudar descobrindo suas idéias em seu instrumento, conseguindo executá-las ao mesmo tempo em que a idéia vem à sua cabeça. É uma questão de ‘toque instantâneo’ conectado com a idéia” (Apud BERLINER, 1994:178).

Com referência às práticas que envolvem os deslocamentos rítmicos durante a improvisação, podemos perceber que o nível de complexidade pode ser o mesmo, tanto para criar e assimilar o conteúdo de novas idéias musicais, como para exercitar suas diversas possibilidades de aplicabilidade em performance em tempo real. Um requisito fundamental para improvisadores é o de desenvolver estas flexibilidades que se conquistam após considerável tempo de dedicação em seus estudos práticos. Ousley afirma:

“Música é sentimento [rítmico]. Você precisa aprender como sentir a frase que quer tocar em relação aos acordes. Você tem que saber como inseri-las dentro do tempo harmônico, pois dependendo do

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que está ‘tocando’ e o que está ‘ouvindo’, a frase pode não começar no tempo um do novo acorde. Poderá iniciar no ‘contratempo do um’ ou no ‘dois’, ou no meio do compasso, avançando para a metade do compasso seguinte. É necessário que se sinta isto” (Apud BERLINER, 1989:189).

Berliner afirma que a intenção deve ser clara e previamente sentida.

Improvisadores praticam estas manobras simultaneamente, enfrentando os desafios de conciliar suas idéias musicais e a demanda de negociar sua realização em seus instrumentos. Eles lutam com relacionamentos diferentes entre uma ‘idéia musical’ e a realização física de sua execução (Ibidem).

Os deslocamentos rítmicos causados por desorientação rítmica ou por dúvidas geradas pela não assimilação integral das estruturas cognitivas podem gerar, conforme mencionado anteriormente, pequenas “dúvidas” durante a performance e também podem refletir atrasos na execução do estudante e consequentemente a perda de referência da quadratura no compasso. Estes deslocamentos rítmicos fazem os padrões melódicos assumirem um caráter radicalmente diferente de suas expectativas em relação às progressões harmônicas, produzindo a sensação de “reverter o tempo”.

Somente após considerável tempo de prática o estudante consegue introduzir as frases e idéias melódicas de forma fluente e com segurança na música. Eventualmente ele aprendeu a manter a estrutura conceptual para o tempo, enquanto se diverte no pulso rítmico da frase (BERLINER, 1989:189).

A questão do “Suingue”27 envolve aspectos relativos à variações e nuanças de precisão rítmica de difícil descrição. Trata-se de aspectos interpretativos do rítmo e

27Suingue é entendido aqui como interpretação do rítmo, incluindo um grupo de determinadas características próprias de cada estilo.

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inflexões específicas - ligadas à questão do valor da duração da nota, stacatto, portato ou legato, antecipações e questões como onde acentuar grupos sincopados, além do nível e balanceamento da calibragem da precisão rítmica. Portanto, o conhecimento deste conjunto de aspectos específicos relacionados à interpretação rítmica musical na Música Popular e no Jazz é necessário para se atingir o domínio do que se considera “suingue”.

Figura 17 – SUINGUE

T.I O

Fonte: Figura elaborada pelo autor.

T.P = Tempo Preciso

T.I = Tempo Impreciso

O = Oscilação

= Oscilação da precisão rítmica durante a performance

= Limite do raio de ação possível para a oscilação da precisão rítmica do performer

É importante notar, na Figura 17 acima, que a variação ocorre dentro de uma

área delimitada para variações e pequenas oscilações de precisão rítmica. Quanto maior a aproximação da oscilação (O) para T.I, o performer estará utilizando recursos interpretativos como “late back” e outras pequenas variações concernentes ao estilo em

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questão. Quanto maior a aproximação da oscilação (O) para T.P, o performer estará interpretando próximo ao tempo da precisão metronômica28.

Uma performance improvisada, cuja oscilação seja similar à Figura 17 acima, denota que o intérprete alterna o estágio de flexibilidade quanto ao nível de precisão rítmica na sua execução. Estes aspectos rítmicos da performance, são fundamentais para os músicos, improvisadores na área do Jazz e Música Popular, dentro de sua escala de valores.

Os grandes intérpretes desenvolvem a habilidade no seu código (seja no jazz ou M.P.B.) com minúsculas flutuações controladas em suas interpretações do tempo.

A aquisição do “suingue” depende da influência de inúmeros fatores (alguns já descritos anteriormente), posicionando uma diversidade de concepções rítmicas de diversos artistas, inclusive o modo estilístico no qual articulam e fraseiam embutidos com qualidades de sincopes e movimentos progressivos. Tais sutilezas dependem, em parte, do senso rítmico e do senso de pulsação do executante. No outro extremo, perde-se também o suingue quando se relaxa o aspecto “precisão rítmica absoluta”, em excesso, podendo soar

“impreciso” (conforme demonstra a Figura 17- Suingue, acima).

Na opinião de Paul Wertico “existem alguns bateristas que são tecnicamente fantásticos e conseguem tocar as poliritmias mais complicadas. Sua execução é matematicamente precisa, mas soam mecânicos e sem suingue” (Apud BERLINER,

1989:245). Seria como recitar poesia com o rítmo errado. O trabalho constante faz com que o performer atinja o domínio sobre o tempo, trazendo a compreensão das características que envolvem o suingue. Em geral, este processo ocorre à base de “tentativa e erro”.

28 Refere-se ao “ato de tocar com pegada” . Expressão comumente empregada por intérpretes da M.P.B. para designar uma forma de execução que envolve precisão rítmica e firmeza no toque.

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Hersch assinala: “dependendo ‘com quem’ está tocando e ‘o que’, haverão centenas de maneiras de tocar. Um mestre deve saber tocar todas estas diferentes formas interpretativas. Não basta somente achar o seu groove29 e pronto” (Apud BERLINER,

1989:245). Estas considerações abrem para uma questão que tem sido especulada entre os músicos populares quando se menciona: “este músico é um bom performer, mas soa muito acadêmico”. Estaria esta afirmação relacionada à falta de um vínculo do músico com as práticas nas “rodas” de Choro e nas “jam sessions” ?. Uma importante ilustração para este caso relaciona-se ao fato das partituras no Jazz apresentarem uma notação que inclue figuras e no entanto devem ser interpretadas como uma divisão intermediária entre

e sendo quase .

Já no Choro, é muito comum transformar uma figura característica como

para ou em andamentos mais lentos. Da mesma forma, na música brasileira geralmente a síncope está em sua interpretação entre e .

Vale ressaltar também que no Jazz os acentos fortes do compasso 4 por 4 estão nos segundo e quarto tempos.

Observamos que as variações acima expostas pelas notas musicais podem ser remetidas à Figura 17, Suingue, denotando que as mesmas ocorrem dentro do limite do raio de ação possível da oscilação da performance rítmica.

29 “levada” , determinada seqüência rítmica no qual está incluído uma série de detalhes e inflexões rítmicas relativas ao estilo.

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Na música brasileira em 2 por 4 os acentos se localizam na maioria das vezes no segundo tempo (samba, choro, frevo, etc.). Em geral, costuma ser difícil para um estudante brasileiro incorporar as características da execução estilística do Jazz compreendendo os acentos no segundo e quarto tempo.

Mauricio Carrilho reforça:

“É importante que o aluno freqüente a roda de choro, sente numa mesa de um bar, converse e toque com os músicos que absorveram o choro pela vivência e convivência com os próprios criadores e fundadores desta expressão musical; ouça as histórias e absorva as inflexões e nuanças das interpretações de expoentes consagrados do Choro ” (CARRILHO, ENTREVISTA INFORMAL, 2000).

É fato, para aqueles que almejam se desenvolver em um determinado segmento da música popular, que o aluno, paralelamente ao seu estudo acadêmico, conviva com experts de sua área, assista shows, ouça gravações de diversos artistas sobre determinada obra em que está trabalhando, com a finalidade de criar à partir de diversas referências, sua própria.

Melodia (C)

Estudo da melodia compreende: desenvolvimento de linhas melódicas; conhecimento de relação acorde-escala; assimilação e criação de padrões de vocabulário; interligação e combinação de idéias melódicas e modelagem, realização de pequenos ajustes para a formação de novas frases; desenvolvimento do raciocínio linear; domínio das diversas possibilidades de ornamentações, variações melódicas; adaptação do material melódico criado e assimilado a diversos contextos harmônicos possíveis; constante renovação do material melódico através de combinações com outros padrões de vocabulário dentro de uma certa comunidade de idéias.

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Estudantes começam a vislumbrar estes aspectos da improvisação melódica quando, ao executar uma transcrição30 de um improviso, percebem que podem misturar e intercambiar a mesma frase em diferentes combinações. Similarmente, Walter Bishop Jr. ao ser questionado sobre como improvisava as “longas linhas melódicas tão fluentes”, ele respondeu: “é realmente fácil, basta juntar várias melodias menores” (Apud BERLINER,

1994:184). As partes, componentes de referenciais padronizados, também funcionam desta forma para Bishop Jr.. Ele as enxerga como sendo “estruturas para brincar”, o que sabe facilmente rearranjar, segundo Berliner (Ibidem).

J. Schneider faz uma analogia em adquirir habilidade com um segundo idioma;

“inicialmente aprendi as palavras, depois, tendo adquirido a maestria sobre elas, passei à recombiná-las de forma ‘natural’ quando improvisava” (Ibidem).

Eventualmente artistas aprendem a desenvolver a concepção da estrutura de uma obra, de forma que eles consigam incluir seleções apropriadas do vocabulário. Dentro de um desenho melódico estrutural de uma composição, artistas muitas vezes, começam a prever e prefigurar padrões associados com acordes específicos, além de variações relacionadas à melodia da composição. De acordo com o material cognitivo, rítmico e teórico do músico, estes modelos tonais concebidos fornecem inúmeras opções para improvisação (BERLINER, 1994:179). Dependendo de seu ‘background’, artistas podem encontrar diversos desafios em conquistar uma versatilidade no uso destas opções.

Quando a compreensão de um aluno se desenvolve inicialmente de forma auditiva em relação à teoria, comumente se requer um período de reajustamento antes de assimilar o conhecimento recentemente adquirido em seus depósitos e mapas

30 Transcrição compreendida, aqui, como prática de absorção de material musical por referência auditiva para formação de padrões de vocabulário.

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composicionais, de forma que pensar em termos de cifras, ele associe aos padrões melódicos assimilados e vice versa.

A habilidade para traduzir rapidamente, entre domínio auditivo e teórico, pode ser útil para o improvisador quando enfrenta “dilemas musicais”31. Vários pensamentos de natureza teórica se interpõem de forma intermitente durante o fluxo de uma improvisação, quando problemas ameaçam a compreensão auditiva sobre a forma composicional

(BERLINER, 1994:180). No ato de transcrever um “solo” que contenha um trecho de grande complexidade e que esteja fora das suas possibilidades de transcrição, o desenvolvimento de sua capacidade do “ouvido interno”32 permite ao músico revisar mentalmente a parte, analisando e imaginando possíveis linhas melódicas e quais materiais ele pode disponibilizar de suas reservas. Este processo requer um constante raciocínio de análise harmônica sobre a adaptabilidade de seus conhecimentos adquiridos (BERLINER,

1994:180).

Os mesmos conceitos harmônicos que guiaram inicialmente os estudantes em suas análises teóricas, pode prover princípios para sistematização e eficiente interligamento das figuras musicais para a integração com outros modelos estruturais existentes

(BERLINER, 1994:185). Apresentaremos abaixo algumas das diversas técnicas e possibilidades de combinação e variação de material melódico como: Fusão, Interligação direta, Extração, Truncamento, Contração, Substituição de material musical,

Refraseamento, Interpolação e Inserção de notas cromáticas.

31 Situação de difícil solução musical. Por exemplo, ao se deparar diante da necessidade de construir linhas melódicas sobre progressões harmônicas complexas. 32 Capacidade de reconhecer e referenciar, dentro de um contexto harmônico, o material assimilado por vias auditivas sem a presença do instrumento.

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1. Fusão Ocorre no caso da última nota de uma frase ser coincidentemente a mesma de outra frase, localizada nos “depósitos cognitivos” (memória) do improvisador. Nesta situação as idéias musicais se unem com facilidade, sem necessidade de empreender mudanças ou pequenos ajustes em nenhuma das partes (BERLINER, 1994:186) (ver Figura

18, abaixo).

Figura 18 – Prática de Fusão

Fonte: Figura elaborada pelo autor.

2.Interligação direta (Direct Coupling)

Outra forma de interligação de idéias melódicas, ou seja, interligação de estruturas cognitivas arquivadas nos depósitos ou memória do improvisador, ocorre quando a última nota de uma frase (da estrutura cognitiva) estiver próxima à nota inicial da nova estrutura, permitindo unir-se em movimento por grau conjunto ou quando se tratar de intervalos maiores formados pelas notas que proporcionem uma passagem suave entre as duas figuras (ver Figura 19, abaixo).

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Figura 19 - Prática de Interligação Direta33

Fonte: Figura elaborada pelo autor.

A prática de interligação direta requer pequenos ajustamentos de deslocamentos no tempo (gerados pela junção), para acomodar o novo gráfico melódico dentro da quadratura. Neste caso, a nota sol entre parênteses, da Figura2 ( Figura 19), foi adicionada para uma melhor adequação ao compasso.

Os processos de fusão e interligação direta, freqüentemente atuam como parceiros para formular encadeamento de idéias. Segundo Berliner,

“o processo de fusão é parte do estudo prático metodológico de formulação de frases sobre progressões harmônicas, no qual estudantes descobrem novas associações de estruturas cognitivas, criando novos modelos para estruturas mais amplas de idéias. Estes modelos geram um campo ilimitado para serem explorados” (BERLINER, 1994:186).

Os Músicos podem praticar frases criadas com diferentes durações, podendo começar e terminar sua performance em diferentes pontos desta corrente de interligação.

Podem também experimentar fixar uma Figura1 específica (conforme Figuras 18 e 19

33 Este processo normalmente ocorre através das práticas de combinação.

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demonstram) dentro de uma “corrente”34, enquanto experimentam novos pontos de partida para a primeira nota (ou o próprio tom) da Figura2 (vide Figuras 18 e 19 acima), que será inserida no interligamento da corrente, descobrindo esquemas de estruturas de substituições através da permutação de variados componentes, um pouco maiores ou menores que o original, provocando uma expansão ou contração da corrente (ver Figura 20 abaixo).

Na Figura 20 abaixo, Berliner ilustra as diversas possibilidades de intercâmbio entre as idéias melódicas. Cada experimento criativo contribui com novas possibilidades melódicas para a formação de uma infinita “rede de idéias” que compreendem o sistema pessoal de improvisação do artista35.

Figura 20 – Representação de Intercâmbio entre Idéias Melódicas

Fonte: Berliner, 1994:561.

34 Corrente representa a estrutura formada pela Fusão, Direct Coupling, Variações ou outros procedimentos. 35 Esta figura criada por Berliner (1994:561) pode nos remeter à idéia de algumas fórmulas sugeridas na aleatoriedade. Muitos improvisadores podem vir a não ter consciência desse processo, enquanto que compositores na área da música aleatória o descrevem detalhadamente.

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3. Extração Outras formas de invenções emergem através de técnicas como a de extração de um fragmento melódico ou um fraseado, inserido em outro contexto melódico, dando surgimento a novos gráficos dentro de seu contorno.

Figura 21 – Extração

Fonte: Berliner, 1994:562.

Os experimentos de extração de um fragmento melódico podem conduzir os performers a descobrir o valor de duas outras práticas relacionadas: “truncamento e contração”.

4. Truncamento O truncamento ocorre quando há supressão da última parte da frase original, deixando a parte conservada firmar-se por si, como um padrão viável (BERLINER,

1994:562) (ver Figura 22 abaixo).

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Figura 22 – Truncamento

Fonte: Berliner, 1994:562

5. Contração

Ocorre quando há supressão da seção central da frase original produzindo dois segmentos que se juntam confortavelmente (vide Figura 23 abaixo).

Figura 23 – Contração de Frases

Fonte: BERLINER, 1994:562.

6. Substituição de Material Musical Os artistas podem ainda operar sobrepondo um componente de uma frase, assim como sua seção central, realizando a substituição rítmica periodicamente (por

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colcheias ou semicolcheias e uma quiáltera por colcheias, ou vice versa), adicionando ou eliminando notas que não comprometem o caráter do gráfico geral (vide Figura 24, abaixo)

(BERLINER, 1994:187-564).

Figura 24 – Substituição de Material Musical 24a) Substituição de Material Musical Rítmico

Fonte: BERLINER, 1994:565

24b) Substituição de Material Musical Melódico

Fonte: BERLINER, 1994:565.

7. Truncamento, Contração combinado com substituição Estas operações de truncamento e contração podem coexistir em um mesmo trecho. Por exemplo: um intérprete opera o truncamento no primeiro componente de uma frase modelo, formada por dois componentes, e leva-o para ser um substituto ou variante no segundo componente, podendo formar frases complexas (vide Figura 25 abaixo).

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Figura 25– Truncamento e Contração combinado com substituição

Fonte: BERLINER, 1994:563.

As operações de extração e truncamento (coexistindo no mesmo trecho ou não) provê opções para rápidas criações de figuras de frases (vide Figura 25 acima)

(BERLINER, 1994:187). Os músicos ganham fluência ao pensar em termos de figuras específicas, à medida que eles tratam as idéias com crescente flexibilidade a cada momento que as executam. Com controle virtuoso, os músicos eventualmente administram dramáticas operações de juntar padrões de vocabulário em frases mais amplas, à medida em que eles, autoconscientemente, aplicam os diversos processos de interpretação, embelezamento e variação em seus modelos padronizados - processos que cultivaram anteriormente para transfigurar os elementos temáticos composiçionais. Paralelamente, pode-se operar mudanças de notas do contorno melódico de um padrão (Ibidem).

8. Refraseamento

A operação de refrasear pode estender a frase além das fronteiras (limites, região) da frase original. Abaixo ilustramos diversas possibilidades de refraseamento como:

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- Refraseamento através de embelezamento melódico, podendo neste caso

inserir ou suprimir notas e criar novas configurações rítmicas-melódicas e

estabelecer ornamentos (Figura 26);

− Refraseamento radical, que envolve menor grau de transfiguração do material

melódico original através da utilização de recursos como deslocamentos do

modelo melódico, alteração dos valores das notas componentes da melodia

(Figura 27);

− Refraseamento radical, gerado por fragmentações através de pausas. A

melodia, embora mantenha seu gráfico melódico sofre constantes variações

através da inserção de pausas que geram pequenos deslocamentos alterando suas

características originais. Os músicos podem substituir pequenas pausas por notas

ou inserir pausas em diferentes pontos dentro do contorno de uma frase (Figura

28).

Figura 26 – Refraseamento com utilização de embelezamento Fonte: BERLINER, 1994:565.

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Figura 27 – Refraseamento Radical

Fonte: BERLINER, 1994:566.

Figura 28 – Refraseamento radical gerado por fragmentações

take 1

take 3

take 4 Fonte: BERLINER, 1994:566.

Bary Harrys em sua técnica de contorno e delineamento afirma que os estudantes aprendem a criar novo material, preservando a parte da frase favorita enquanto altera seletivamente as características rítmicas das mesmas, cortando elementos específicos ou criando variações.

9. Expansão de frases A expansão de frases pode ocorrer através de processos como Interpolação e inserção de notas cromáticas, elementos tonais, ou pequenos padrões dentro de um modelo melódico (vide Figura 29, abaixo).

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Figura 29 – Expansão de frases por Interpolação

Fonte: BERLINER, 1994:567.

A utilização das técnicas de combinação e variação correspondem a alguns dos processos de criação. Em última instância, podería-se afirmar que as transformações criativas são operadas pelas técnicas de combinação e variação e a manipulação do material, acima expostas. Uma vez que o performer tenha o domínio sobre um padrão de vocabulário considerável, além de sua aplicabilidade com fluência sobre as diversas obras, o seu próximo desafio será a construção de um estilo pessoal, ou seja, a busca do seu próprio discurso. Nesta etapa ele se depara com difíceis escolhas quanto a caminhos estilísticos a se especializar, além de criar uma nova referência mais ampla com relação à utilização das técnicas improvisatórias.

Aspectos relacionados à renovação do repertório de fraseados e criação de constantes inovações no discurso improvisativo se torna um permanente desafio para o improvisador. Não podemos desconsiderar que freqüentemente ocorrem situações em que os músicos deparam-se com o processo de auto-repetição. As evoluções estilísticas da

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linguagem improvisativa ocorrem a cada geração (por exemplo no Jazz), provocando turbulências ou levando artistas a reavaliar seus valores pessoais, práticas musicais e estilos com vista à inovação em curso.

Vimos que após a prática de absorção de um material musical, os padrões de vocabulário não ficam disponíveis imediatamente para serem utilizados na improvisação, requer-se uma série de combinações, encaixes e interligações necessárias para a transformação do material absorvido, portanto, para a criação. Mas esse processo de aproveitar as partes e encaixá-las no improviso exige um trabalho técnico criterioso e intenso, conforme foi até agora apresentado. Embora esta seção tenha focado os aspectos do desenvolvimento na área do Jazz e da Música Popular, os procedimentos que requerem a assimilação e domínio sobre as estruturas cognitivas, suas constantes variações e combinações indicam que o princípio é similar às diversas outras formas de improvisação que iremos expor na próxima seção (seção 3.3).

3.3 – Levantamento de Diversas Formas relacionadas à Improvisação Musical

Nesta seção examinaremos algumas das diversas formas existentes de improvisação em seus diferentes contextos com o objetivo de fornecer um mapeamento sintético sobre algumas possibilidades de improvisação musical encontradas no decorrer desta pesquisa sem, contudo, fechar este quadro para a existência de outras formas improvisatórias. Algumas subseções irão se estender mais que outras pelo fato de ainda não haverem sido mencionadas ao longo desta Dissertação, como: Improvisação em forma

Livre, Improvisação em forma de estrutura de Fuga e Improvisação Interpretativa.

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3.3.1 - A Improvisação em forma de Seqüência Harmônica Pré- estabelecida Pelo fato de já termos examinados este assunto extensivamente na seção 3.2.2 deste capítulo, iremos nos estender menos nesta forma de improvisação. Como mencionado anteriormente, esta forma de improvisação requer que o intérprete desenvolva aspectos referentes aos campos harmônicos, melódicos e rítmicos como: absorção de padrões de vocabulário através de transcrição e análise; combinação e variação do material musical assimilado através de métodos; entre outros. Durante o improviso sobre progressões harmônicas pré-estabelecidas, o improvisador deve desenvolver o domínio do conhecimento harmônico e suas escalas correspondentes, criando linhas melódicas e estruturas rítmicas. Os aspectos que envolvem tais processos de desenvolvimento podem ser encontrados na seção 3.2.2.

3.3.2 - Improvisação em forma de Ornamentação de uma melodia dada

A ornamentação, originária das práticas improvisatórias, foi desenvolvida da música Renascentista à Barroca. Esta forma de improvisação representa o ato de criar a partir de uma melodia estabelecida novos elementos de floreio e ornamentos que agregam

às frases maior expressividade (FERAND, 1961). A ornamentação também representa uma forma de improvisação; o instrumentista ou cantor adorna uma linha melódica determinada, em geral, com muita liberdade, para aumentar a expressividade e exibir sua inventividade e brilho. Na música vocal, a ornamentação alcançou o seu apogeu no século XVIII, com o desenvolvimento do Bel Canto. Era sempre esperando que os cantores, em sua ânsia de improvisar, exibissem seu virtuosismo em versões diferentes nas árias de óperas e de oratórios (Ibidem).

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Assim como no período Barroco utilizava-se a improvisação através de ornamentações de melodias dadas, o Choro e o Jazz também utilizam tais práticas

(conforme examinados no Capítulo II desta pesquisa).

Naturalmente existem obras que facilitam a inclusão de variações e ornamentações. O nível de complexidade do tema determina a possibilidade de espaço para inclusão de idéias improvisadas. Se a melodia for mais espaçada, possibilita ao intérprete contribuir mais com idéias de ornamentação e variação.

Em analogia, o Choro encontra princípios improvisativos semelhantes aos da música Barroca36 a partir do momento em que a liberdade da improvisação melódica se restringe às variações e ornamentações (FAGERLANDE, Entrevista Informal, 2000). Sob este enfoque, como a música Barroca praticamente se restringe à ornamentações, o Choro possui uma maior liberdade nos aspectos concernentes à variação. Com relação aos aspectos harmônicos, as práticas do Baixo Contínuo envolvem a leitura de uma cifra e o acompanhamento é elaborado a partir de diversas combinações possíveis cuja decisão será tomada improvisadamente pelo acompanhador. Já o Choro, tem sua tradição no acompanhamento “de ouvido”, onde o melodista solista lança desafios ao acompanhador. O bom acompanhador cria também o seu acompanhamento a partir de inúmeras possibilidades de escolhas de acordes e principalmente improvisando suas inversões. As escolhas são também realizadas de forma improvisada.

Com relação à música Barroca, em 1710, Corelli publicou seu Adágio para violino e Baixo Contínuo, criado em 1700, incluindo ornamentos adicionados por ele mesmo (ver Figura 30A, pentagrama b, abaixo).

36 Há também na música barroca a ornamentação livre e a cadência (FAGERLANDE. Entrevista Informal, 2000).

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Figura 30A – Ornamentação no Barroco

1700

Fonte: Ferand (1961:112).

Acredita-se que a forma de improvisação com inclusão de ornamentos (Figura

30A, acima) originou-se do hábito de preludiar que ocorreu em meados de 1630. Pouco a pouco as melodias ornamentadas passaram a ser escritas, elaboradas e permaneceram muitas vezes integradas à própria composição.

Em analogia, dois séculos após, Altamiro Carrilho utiliza o mesmo princípio de ornamentação para a obra de Pixinguinha, demonstrando que esta prática permanece inerente ao processo de criação (ver Figura 30B) . É importante notar que a melodia apresentada na Figura 30B, pentagramas 2b e 4b, abaixo, não representa uma melodia composta, mas sim a transcrição de uma performance improvisada sobre a obra, com à qual poderemos comparar com a partitura original (vide Figura 30C abaixo).

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Figura 30B – Ornamentação no Choro37 – Transcrição de Eliane Salek da improvisação de

Altamiro Carrilho (Figuras 1b, 2b) sobre o tema de Pixinguinha Lamento (1962) (Figuras 1a e 2a).

37 Fonte: Elaborada pelo autor com base nas fontes Salek (1999:83) e Irmãos Vitale S/A (1962).

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Práticas semelhantes ocorrem em termos de embelezamento de frases no Jazz

(Vide Figura 30C, abaixo). Um simples mordente triplo que ocorra como um embelezamento incidental em uma frase, pode ser aplicado a cada nota em outra frase, onde, densamente embutido neste perfil, ele compreende uma parte integral da idéia. Em outros casos, o aparecimento do mordente como um ornamento em meio a passagens consecutivas não temáticas pode servir como um sutil elemento unificador, reunindo as passagens. Um gesto similar ao grupetto, que simplesmente ornamenta uma composição em alguns cenários, pode servir em outros, como o componente catalítico de uma frase improvisada ou a característica principal da frase (BERLINER, 1994:222).

Figura 30C – Melodia Ornamentada no Jazz

Fonte: Berliner (1994:598).

Vale observar que nas áreas assinaladas, Booker Little utilizou estruturas cognitivas similares, envolvendo pequenas variações em diferentes obras e contextos harmônicos (a e b), considerando o deslocamento de um tempo.

132

3.3.3 - Improvisação em forma de Variações

A improvisação em forma de variações, apesar de semelhante à anterior

(ornamentação de uma melodia dada), é contudo mais complexa, podendo abranger também práticas de outra natureza, onde a melodia pode ser radicalmente transfigurada, mesclando novas idéias inseridas ao elemento temático inicial. A Variação envolve a transformação de um tema utilizando técnicas composicionais de transformação e retorno.

No Musik Lexikon consta que a Variação já era praticada nos primórdios do século XVI

(MUSIK LEXIKON, 1951, 3a ed.).

A Variação, no Barroco, se desdobra em forma de sutis deslocamentos do tempo (Variações Suítes). Mais tarde, como Correntes de Ostinato (Ostinatokettung),

Chaconnes, Passacaglia, e principalmente como Diminuições, mantendo este formato até

Mozart. O tema poderá ficar irreconhecível através do emprego de fortes variações melódicas, rítmicas e harmônicas. Grandes obras em forma de variações foram compostas a partir do período Barroco, entre elas destacamos: Goldberg Variation de Bach; Carnaval de

Schumann; 32 Variações de Beethoven e a Variação Brahms-Handel.

Segundo Doll, “sortisatio” significa em seu sentido original o oposto à

“composition” que remete à técnica de variações (DOLL, 1989:146).

No âmbito da Música Popular Brasileira, o Choro e o Jazz também utilizam recursos de variações melódica, harmônica e rítmica, já examinados no Capítulo II desta pesquisa.

Sob a perspectiva da improvisação existem três tipos de Variações: harmônica, rítmica e melódica.

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− Variação harmônica: incluindo a variação das diferentes possibilidades de

formação de acordes e reharmonizações.

− Variação rítmica: incluindo a variação de síncopes, deslocamentos de

tempo, seja de estrutura harmônica ou melódica, utilização de ostinatos,

variações de compasso e Diminuição.

− Variação melódica: incluindo utilização de Fusão, Interligação direta,

Truncamento, Contração, Substituição de material melódico,

Refraseamento, Interpolação e Inserção de notas cromáticas e também

alterações de notas; inversões de gráficos melódicos; mudanças de registros

de oitavas, além da combinação de diversos elementos.

Segue abaixo uma representação de dois momentos de um mesmo improviso de

Charlie Parker, no qual ele repete material temático sob uma mesma harmonia, criando, no entanto, variações através dos deslocamentos rítmico-melódicos, sucedendo com fusão em novo material.

Figura 31 – Transposição de vocabulários

Fonte: BERLINER, 1994:559.

134

No Jazz, pode-se distinguir as improvisações como transfiguração mais radical da melodia com inserção simultânea de novas idéias, de alterações progressivamente mais sutis, que caem nos domínios da variação, adorno e interpretação.

3.3.4 - Improvisação em forma Livre

Entende-se por improvisação livre àquela que não contém uma estrutura previamente definida, anterior ao seu início, desenvolvimento e conclusão. A improvisação livre pertence a uma categoria mais complexa, a começar pelo termo “livre” que pressupõe uma improvisação a partir do “nada”; uma forma de criação em que os elementos musicais surjam por si, ignorando-se todo um sistema fundamentado com base em estruturas cognitivas previamente adquiridas pelo executante. Pode-se imaginar não ser possível tal tipo de improvisação, pois, como afirma Jankélévitch, “(...) a partir do nada, a imaginação nada cria...” (JANKÉLÉVITCH, 1998:111).

Um conceito sobre “improvisação livre” mais realístico poderia ser a performance de uma improvisação na qual não estivesse previamente determinada uma estrutura melódica, harmônica, rítmica e formal desde o seu início sem, contudo, desprezar os referenciais cognitivos do improvisador, ou seja, improvisação sobre uma estrutura com maior grau de indeterminação que outras formas de improvisação. Este tipo de improvisação ocorreu sob diversas formas musicais ao longo da história como a livre

Fantasia.

Conforme já examinado no Capítulo II, sobre a existência de uma estreita associação entre o “verbo” e a “forma” no passado, considerando a hipótese que a forma

Fantasia, por exemplo, poderia ser uma conseqüência do verbo fantasiar, poderíamos remeter à linha de pensamento que as formas livres seriam conseqüência direta de uma

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improvisação. Contudo, as formas livres como “Fantasia”, “Prelúdio”, “Ricercare”,

“Sortisatio” entre outras, poderiam ser produtos originados do exercício de “fantasiar”,

“preludiar”, “ricercare”, “sortisare” ?.

As formas “Prelúdio”, “Toccata” e “Fantasia”, embora consideradas formas livres, não possuem fronteiras nitidamente diferenciadas. Em algumas fontes referenciais

(como DOLL, 1989:230), o “Prelúdio” aparece descrito como “a arte de fantasiar”. Em alguns casos pode ser sugerido que o organista preludie livremente na tonalidade de uma determinada música para preparar o coral para novas tonalidades. Doll afirma que, “embora se encontre com freqüência a descrição de elementos formais, o ‘Prelúdio’ pode ser ritmicamente concebido livre e deve se orientar pelo espírito da obra que o sucederá”

(DOLL, 1989:230-231).

A “Toccata” é um termo que determina que a obra seja tocada em instrumento de tecla. Uma possível diferenciação em relação ao “Prelúdio”, embora vaga, seria talvez, uma indicação de que as figuras musicais deveriam ser executadas em movimentos independentes de forma a exibir destreza em ambas as mãos (DOLL, 1989:233). Esta forma inclui um caráter improvisativo de uma livre Fantasia.

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Figura 32 – Compasso 42-49 da Toccata de Bach em mi menor

Fonte: FERAND, 1957:22.

Ainda com relação às formas livres, existe a indicação de dois tipos de

Fantasia: a “estruturada”, que significa enquadrada ritmicamente ou em estilo de Fuga e a

“livre”, sem enquadramento rítmico e movimentada de forma livre. A determinação de vozes fica a cargo de quem está fantasiando. Segundo Doll, existem outras formas livres como: Capriccio, Allemande, Cadenza/Fermate, Schluss-Fermate (Konzertkadenz),

Potpourri e Variation (DOLL, 1989:231).

A arte da improvisação solo em forma de variações ou fantasias livres para teclado, continuou a ser desenvolvida cada vez mais. as cadências finais das composições polifônicas ornamentais transformaram-se em longas peças instrumentais, no século XVII, as quais assumiram o caráter de Prelúdios, Caprichos, Fantasias e Tocattas.

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Personalidades musicais como Bach, Liszt, entre outros, enveredaram pela improvisação em forma Livre, cada um dentro de um código estilístico de acordo com o período em que viveram.

No âmbito da Música Popular, o Free Jazz incorporou a livre improvisação tendo em Ornette Colleman uma de suas maiores expressões. Também Keith Jarrett, em outra vertente, ousou a incursão na improvisação Livre de forma bem sucedida. O The Köln

Concert (1975) foi o recital improvisado que conferiu a Keith Jarrett maior notoriedade. A transcrição apresentada abaixo foi submetida à revisão pelo próprio autor.

Figura 33 – Trecho da Parte I de recital The Köln Concert (Keith Jarrett)

Fonte: Ed. Schott, Germany, 1991.

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O ato de variar cumpre um papel extraordinário no “progresso do entrelaçamento da forma” da Fantasia, assim como na forma Ricercare e Fuga, principalmente do ciclo sobre o mesmo tema como em arte da Fuga (MUSIK LEXIKON,

1951).

3.3.5 - Improvisação em forma de estrutura de Fuga

A Fuga é considerada uma das formas improvisatórias mais complexas, tendo encontrado o seu auge no período Barroco e o seu declínio com o advento do classicismo, sendo sua prática resgatada com freqüência como forma de improviso.

Bach foi provavelmente um dos maiores improvisadores no que concerne a improvisação sobre a forma de Fuga.

Embora hoje, a improvisação sobre a forma Fugal seja pouco praticada no mundo, ainda que haja a tradição de concursos de Fuga em países europeus (como o concurso de Montbrison, na França) - onde é comum permitir ao improvisador quarenta e cinco minutos para elaborar a partir do tema dado, a criação de material referente à contra- sujeito, stretto conclusivo e transposição do tema -, o nível de complexidade atingido por

Bach durante o processo de sua improvisação, dificilmente tenha sido superado no que se refere à arte da improvisação da Fuga nos parâmetros referentes ao contexto do período

Barroco (RACHID, Entrevista Informal, 2000).

A estrutura da Fuga é composta basicamente por três seções: exposição, desenvolvimento e stretto. A partir desta estrutura, observamos os seguintes aspectos sob a

ótica do improvisador:

- Uma vez que a “exposição” compreende a apresentação do material temático

(sujeito, resposta e contra-sujeito), requer por parte do improvisador o domínio das práticas

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de transposição do sujeito, além de velocidade do pensamento na criação de um contra- sujeito (contraponto à resposta, ou seja, acompanhamento do sujeito e da resposta), desafiando o improvisador a elaborar um contraponto improvisado simultaneamante ao contra-sujeito. Nesta etapa o intérprete necessita de um determinado espaço de tempo para

“pre-elaborar” o contra-sujeito38 e suas respectivas transposições, bem como a criação de contraponto do material temático (Ibidem).

- A seção do “desenvolvimento” compreende subseções como “divertimentos” e “episódios”. O “divertimento” para o improvisador representa uma espécie de “ponte modulante” em que ele conduz a obra de uma tonalidade para outra utilizando fragmentos temáticos. Esta etapa é percebida como o momento em que o intérprete ganha tempo para pensar e predefinir as próximas entradas de vozes procurando prever a criação de contrapontos entre sujeito e resposta. Geralmente o improvisador utiliza-se de recursos imitativos (como aumentação e diminuição) além de estruturas cognitivas como material precomposto e fragmentos temáticos. Neste sentido, considera-se o “divertimento” como a subseção com maior grau de indeterminação, permitindo portanto, uma maior contribuição por parte do performer. Todavia, o divertimento, sendo uma seção que contém modulações, requer do improvisador o domínio cognitivo sobre estruturas modulantes. Uma vez que o performer atinja o domínio sobre a habilidade de modular, começa a perceber que este será o trecho da Fuga em que ele poderá fluir com maior grau de liberdade (Ibidem).

- O “stretto”, sendo uma seção que proporciona o contraponto entre sujeito e resposta, cada vez mais próximos, provoca uma maior densificação da textura sonora, conferindo maior intensidade à seção. Dependendo da extensão e grau de adaptabilidade do

38 Ns fuga livre pode-se omitir o contra-sujeito.

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tema (sujeito) podem ocorrer quatro ou mais “stretti” sucedidos por acompanhados por

“divertimentos” (Ibidem).

Cabe mencionar que nos “stretti” e “episódios” necessita-se de uma tonalidade estabelecida, enquanto que nos “divertimentos” o improvisador precisa ter o domínio sobre estruturas modulantes (Ibidem).

Nas partes rígidas como “exposições” e “stretti” os contrapontos criados simultaneamente à parte temática, são improvisados com maior grau de liberdade.

Principalmente no primeiro “stretto”, no qual o improvisador tem maior espaço para criar livremente, visto que as primeiras, segundas e terceiras entradas de vozes o tema não necessita se apresentado integralmente. No momento em que o tema pode vir incompleto, o improvisador pode criar com maior liberdade utilizando diversos recursos técnicos, entre eles a imitação através de aumentação e diminuição (Ibidem).

Para se atingir o “domínio” na improvisação sob estrutura da Fuga faz-se necessário um trabalho árduo, incluindo o estudo do desenvolvimento técnico que envolve muita prática de repetição e mecanização para torná-la espontânea. Deve-se trabalhar muito a prática de transposição instantânea e as modulações, principalmente para a seção do

“desenvolvimento” que exige do improvisador tais habilidades.

Outra importante prática para o desenvolvimento do improviso na Fuga é o solfejo das vozes em seus respectivos registros (Ibidem).

O improvisador da estrutura de Fuga, ao receber o tema dado, geralmente necessita pensar imediatamente na elaboração do “stretto conclusivo”, na criação do contra- sujeito e nas modulações que envolverão a “exposição” e o “desenvolvimento” (Ibidem).

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Em suma, notamos que as subseções de “divertimentos” e o primeiro “stretto” correspondem aos espaços que incluem maior grau de liberdade para a contribuição improvisativa do intérprete.

É importante lembrar que Bach, Mozart, Beethoven e outros compositores copiavam muitas partituras com a finalidade de estudá-las. Acredita-se que esta forma de estudo (através da cópia de partituras), assim como o trabalho de muita prática mecânica possa ser uma ferramenta importante para aqueles que almejam se desenvolver na improvisação da arte da Fuga.

A estrutura em forma de Fuga Escolar é menos utilizada por compositores atuais, embora não desprezem as formas Fugatos, procurando se libertar da rigidez que a forma da Fuga Escolar impõe. Geralmente os compositores adotam com maior freqüência a

Fuga Livre.

3.3.6 - Improvisação Interpretativa

“Quanto à interpretação, julgo inadequada aquela do músico que tecnicamente realiza, que segue estritamente aquilo que se encontra nas fontes, que emprega o instrumento correto, que toca em temperamento mesotônico, que escolhe o tempo correto, mas a quem falta uma coisa: a musicalidade, ou dito de forma mais poética, o favor das musas. Isso é cruel, mas nesta profissão aquele que não teve sorte de ser beijado pelas musas, jamais será um músico” (HARNONCOURT, 1990:125).

Podería-se considerar improvisação interpretativa aquela em que o intérprete colabora com a obra, reinventando aspectos interpretativos, sem prévia determinação, referentes às noções de dinâmica, intenção do fraseado, pesquisa de timbres, escolha de toques, criação de planos sonoros e exaltação de contracantos. Este tipo de improvisação não atua no plano da invenção de notas musicais ou agregação de rítmos, mas se refere aos aspectos da intenção musical. Neste processo, o aluno absorve e desenvolve o conhecimento das diversas correntes estilísticas interpretativas de cada período que se

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tornarão as bases de suas estruturas cognitivas para posterior contribuição criativa com a obra de forma improvisada.

O “portato”, o “rubato” e a “pedalização” são recursos passíveis de serem empregados de forma improvisativa durante a execução do intérprete (JANKÉLÉVITCH,

1998:111).

O “rubato” permite ao intérprete, no limite de um tempo previamente estabelecido, ter liberdade em relação à apreciação relativa dos tempos e valores. O tempo

“rubato” (roubado) é proposto e subtraído simultaneamente, havendo uma permissividade e ao mesmo tempo uma liberdade controlada (Ibidem).

As expressões “a piacere”, “senza tempo”, “sem metro” e, por conseguinte, “ad libitum” representam a liberdade permitida ao intérprete que refletirá seu talento improvisativo (Ibidem).

Outro aspecto relevante no campo da improvisação interpretativa refere-se às condições do instrumento. Esta preocupação já existia no romantismo, tendo como exemplo o ato de improvisar Prelúdios de Clara Schumann. Friedrich Wieck, pai de Clara

Schumann, a aconselhava a preludiar antes de executar a peça para conhecer o instrumento:

“Antes de iniciar uma peça, toque alguns arpejos flutuantes e algumas passagens descendentes ou escalas, com sentido musical, de forma que o piano, na condição em que se apresenta, não irá lhe colocar dificuldades antecipadamente...e teste o ‘inevitável’ pedal! Um pedal quebrado ou que range pode significar uma catástrofe para o concerto, caso o artista não saiba se adaptar” (WIECK, 1988. Apud NETTL, 1998:113).

O intérprete, ao se deparar com um instrumento desregulado se vê obrigado a realizar manobras de caráter improvisativo, como no caso do pianista, a mudança do calibre do toque em função de uma adaptação às condições do novo instrumento, obrigando o

143

performer a fazer rápidos ajustes e focar a atenção em outros aspectos que não os previamente planejados.

Não podemos desconsiderar que os hábitos auditivos influenciam alguns percursos que serão trilhados pelo intérprete improvisador. Harnoncourt (1990) já havia mencionado, com relação aos hábitos musicais, sobre o desejo que possuímos – embora totalmente estranho ao homem de outras épocas, como do período Barroco – de ouvir sucessivas vezes uma obra que amamos ser suficiente para mostrar a diferença essencial dos hábitos auditivos de ontem e de hoje. “Estou certo de que não há ninguém que queira deixar de repetir as obras que freqüentemente ouve, em favor de coisas novas”39

(HARNONCOURT, 1990:32-33).

A partir da reflexão de Harnoncourt, podería-se associar ao fato que, “o gostar” de uma obra apenas porque “a reconhecemos” não se trata de uma questão “natural” aos homens. Um standard de Jazz, por exemplo, pode ter o seu tema apresentado de tal forma desfigurado que o ouvinte pode não reconhecer o tema da obra em questão, impossibilitando-o de ter um maior grau de envolvimento e participação com a forma em que a obra está sendo apresentada.

Considerando-se, por outro lado, que a improvisação está relacionada ao

“novo”, ou seja, a algo que passará a existir, poderíamos entender porque a improvisação encontrou maiores espaços no passado que atualmente, sendo possivelmente determinada

39 No entanto, no passado esses hábitos eram radicalmente diferentes. O ouvinte possuía uma concepção muito diferente sobre a experiência musical. Ele só queria ouvir o novo, exclusivamente músicas que jamais houvessem sido antes ouvidas. Os compositores estavam perfeitamente conscientes de que uma obra não podia ser tocada várias vezes para um mesmo público. Estava-se, então, muito mais interessado na obra em si mesma do que na sua execução; os críticos se ocupavam praticamente só da obra e davam à execução uma importância apenas relativa, justo o contrário do que acontece hoje, quando só se comenta e compara quase que exclusivamente os detalhes da execução. A mensagem da obra, conhecida nota por nota, não é mais objeto de discussão em nossos dias (HARNONCOURT, 1990:159).

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pelos hábitos auditivos musicais que vigoraram em cada período - principalmente no que concerne a música ocidental de concerto - uma vez que no passado, o público queria ouvir exclusivamente obras que jamais houvessem sido tocadas. Sobre esta questão Harnoncourt afirma:

“caso não consigamos despertar nosso interesse por aquilo que ainda não conhecemos – seja antigo ou novo -, caso não consigamos também recuperar a significação do efeito da música – efeito que atua sobre nosso espírito e nosso corpo – é porque, então, a prática musical terá perdido todo e qualquer sentido. Terá sido inútil o esforço dos grandes compositores, quando preencheram suas obras com uma expressão musical que, hoje, já não nos toca e sequer compreendemos. Se eles houvessem desejado colocar nelas somente beleza – a única que tem, para nós, alguma significação, teriam poupado tempo, trabalho e esforço” (HARNONCOURT, 1990:33).

Uma outra faceta da improvisação interpretativa refere-se às diversas formas de se compreender a leitura do texto musical e sua devida relatividade quanto à “fidelidade” da interpretação. Ainda por volta de 1910, Harnoncourt afirma achar uma pena que seja precisamente a idéia da fidelidade ao texto que tenha extinguido a verdadeira autenticidade da obra, a ponto que se haja esquecido aquilo que anteriormente ainda era conhecimento vivo.

“Agora precisamos, com esforço, recuperar este conhecimento. O mesmo é também válido para a articulação. Hoje em dia, muitos músicos afirmam que, quando não há indicações de articulação, deve-se seguir como está escrito, pensando com isto estarem sendo fiéis ao compositor. Deste modo, por causa da chamada autenticidade, apenas a partitura é levada em conta e não a obra em si. Esta ‘autenticidade’, muitas vezes citada, me parece o maior inimigo de uma interpretação honesta, pois ela, em vez de procurar reviver o que está por trás da partitura, faz soar apenas o que está escrito” (HARNONCOURT, 1990:62).

Harnoncourt afirma, ainda, que:

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“escrita musical não pode, como tal, reviver uma obra musical, mas unicamente fornecer alguns pontos de referência para que isto aconteça. Autêntico, no puro sentido da palavra, é aquele que reconhece nas notas o pensamento do compositor e assim as reproduz” (HARNONCOURT, 1990:63).

Com estas afirmações Harnoncourt aconselha que o intérprete não se prenda somente à notação e reproduza as notas tal qual a grafia sugere, como também não se limite apenas a reproduzir os textos musicais dentro dos parâmetros considerados estilisticamente corretos e busque aproximação com o real pensamento do compositor. No entanto, ele só poderá se aproximar do pensamento do compositor no dia em que tiver acesso às práticas composicionais.

Mais uma vez a improvisação, que liga o intérprete às práticas composicionais aparece como grande elemento de interligação do intérprete com a compreensão da obra.

Podería-se pensar na possibilidade da contribuição do intérprete advir de processos improvisativos. Katia Labéque, renomada intérprete, afirma que “a improvisação

é uma necessidade vital, um meio de reencontrar uma certa espontaneidade musical. Esta espontaneidade é vista como um processo diferente para o intérprete” (Apud

LEVAILLANT, 1981:265).

Segundo Labéque,

“...tento também reencontrar a alegria de tocar obras como se eu as estivesse criando no momento. Mas para tocar, por exemplo, “Petrouchka” de Stravinski, para estes 15 minutos é necessário acumular horas de trabalho árduo. Na improvisação, que pede também um grande trabalho, o tempo de preparação não é o mesmo; o mistério do momento é certamente mais intenso” (Ibidem).

Katia Labéque diferencia o ato de improvisar e o de interpretar relacionando-os

à noção de controle. Para ela, na música clássica existe um preconceito enorme quanto a atitude física do intérprete:

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“Na improvisação não existe a menor preocupação com o controle da aparência. A preocupação consiste em buscar dentro de si no momento presente. Isto não quer dizer que não seja necessário recursos técnicos, qualidade de toque, de fraseado, de articulação, tudo o que na verdade é necessário também ao intérprete da música clássica. É necessário ainda a noção da linha musical. Mas, do momento que não se deve mais submeter-se à uma disciplina física absurda, pode-se ir muito além, num certo domínio como a procura ou a utilização da energia” (Ibidem).

O exemplo citado por Katia Labéque relacionado à noção de controle remete-se ao gesto como um impulso do corpo, que na maioria das vezes é espontâneo. Se este impulso é freado, pode ser perigoso. Katia Labéque afirma,

“se faço uma careta tocando, na tentativa de suprimi-la, eu corro o risco de suprimir também o sentimento que a provocou. O risco que toma-se é um suplemento de energia: este suplemento pode muito bem causar um erro. Se isto ocorre com um McCoy Tyner ou Keith Jarret não terá a menor importância. Se ocorre ao longo de uma obra de Mozart ou Schubert este erro poderá atrapalhar o desenvolvimento musical” (Ibidem).

A dificuldade no caso de uma música escrita, segundo Katia Labéque, é provavelmente de encontrar um equilíbrio entre a ordem e a desordem, o instinto e o controle, a luxúria e a vontade de disciplinar-se; é a tensão entre estes dois extremos que na sua opinião, deve-se desenvolver (Ibidem).

Contudo, é importante ressaltar que toda improvisação provém de um processo cognitivo. Harnoncourt afirma que:

“O ouvinte não deve ter a impressão que tocamos aquilo que aprendemos. A música precisa estar dentro do nosso ser, tornar-se parte de nossa personalidade. Acabamos por nem saber mais onde aprendemos tal regra, onde a lemos. Talvez, ainda estejamos cometendo uma quantidade de erros, pecando contra o rigor e a precisão. Contudo, um “erro” que provém da própria convicção, do próprio gosto e sentimento é bem mais convincente do que pensamentos traduzidos em sons” (HARNONCOURT, 1990:63).

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Os “erros” podem atuar como poderosos agentes impulsionadores para a improvisação interpretativa. Novas descobertas interpretativas podem ter sido ocasionadas por eventuais “erros” e “falhas de memória”.

Harnoncourt realizou um levantamento de prioridades de forma ousada, convicto que o verdadeiro artista, embora possa cometer erros e fazer coisas que se demonstrem erradas, é capaz de fazer com que a música penetre na “pele do ouvinte”, tornando-a realmente próxima dele. Ao passo que um outro, poderá dar-nos uma interpretação que, mesmo interessante, não consegue mostrar-nos o que é de fato a música, e é incapaz de oferecer-nos uma expressão que nos fale diretamente, que nos perturbe e nos transforme (HARNONCOURT, 1990:125).

3.3.7 - Improvisação Aleatória Controlada

O advento da aleatoriedade representou a criação de indeterminações no sistema de notação musical (após ter atingido alto grau de precisão), abrindo espaço para a contribuição improvisativa do intérprete, embora controlada pelo compositor.

A aleatoriedade provoca reformulações no sistema de notação tradicional adotando novos grafismos e incorporando a representação por símbolos para complementá- la. Cada gráfico pode ser explicado à parte, induzindo assim o intérprete a escolher seus caminhos, realizar novas sonoridades e conceber novas estruturas globais. No Capítulo I, subseção 1.4.1 desta Dissertação, encontra-se um estudo mais detalhado sobre a improvisação aleatória.

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3.4 – SÍNTESE E REFLEXÕES

Podemos identificar, em virtude do que foi apresentado neste capítulo, dois diferentes estágios relacionados ao improviso:

1. as práticas improvisatórias inerentes ao aspecto da criação que permitem construir as estruturas cognitivas, gerando a matéria-prima de modelos referenciais de vocabulários;

2. as práticas improvisatórias do “como” aplicar o modelo de vocabulário já assimilado.

São dois estágios (ou duas práticas) diferentes, embora sob o termo improvisação. O procedimento estrutural entre estes estágios é semelhante: um, atua em um plano micro (relacionado ao primeiro estágio), com escolhas de incisos musicais e combinações de notas que formarão a frase; o outro atua num plano macro (relacionado ao segundo estágio), envolvendo a seleção de frases assimiladas que formarão períodos maiores. Neste caso, a improvisação ocorre sob forma de tomadas de decisões quanto à escolha do vocabulário já disponível e assimilado em seus depósitos (memória) (vide

Figuras 15a e 15b).

Assim como cada operação durante o ato do improviso requer tomadas de decisão, é então a inteligência musical de cada artista - um “senso interno”- que direciona os processos de tomadas de decisão (OUSLEY, Apud BERLINER, 1994:179). A criação em “tempo real” ocorre com ágeis tomadas de decisões quanto a que material utilizar do depósito (memória) onde estão armazenados as estruturas cognitivas disponíveis. No entanto, a partir do momento em que se tem diversas opções, ou seja, um “menu de opções” de estruturas cognitivas disponíveis, seria necessário efetuar-se uma escolha. No momento

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da tomada de decisões não haverá tempo para se ponderar e experimentar o material que deverá ser utilizado do depósito (memória). Portanto, estas escolhas serão improvisadas porque não há tempo para tomadas de decisões sobre qual material do depósito será utilizado. Neste sentido, a performance improvisada, guiada por decisões de cunho

“instintivamente estéticos”; buscam uma coerência no discurso, e, alguns pequenos fragmentos podem também ser improvisados com o objetivo de amalgamar as idéias.

Diante do exposto, podería-se remeter à noção de que a prática da improvisação não compreenderia uma re-elaboração da composição e tampouco a repetição de idéias musicais pré-estabelecidas, que se tornarão parte das estruturas cognitivas (padrão de vocabulários) do improvisador. Compreenderia sim, o processo de escolha de material disponível num arquivo e tomadas de decisão quanto à forma como se irá interligar esse material. Quanto maior o bloco de conhecimento, ou seja, a quantidade de estruturas cognitivas assimiladas, maior o número de “escolhas” que estarão disponíveis. O músico poderá fazer uma escolha sem incorrer no risco de se repetir por limitação de vocabulário.

Pudemos observar, contudo, o que de fato é improvisado, em muitas situações, não são as frases ou idéias musicais, mas sim a aplicação delas no momento da performance (como e quando)40.

Em suma, após longo período de desenvolvimento na absorção de estruturas cognitivas e práticas de combinação e variação, além do desenvolvimento e fluência do discurso, segue uma das etapas mais desafiadoras que corresponde à etapa final do desenvolvimento do intérprete: a busca de um estilo próprio e o desprendimento de ídolos.

40 Pode-se fazer uma analogia com o discurso de um político que sempre tem em seu padrão de vocabulário algumas frases feitas para fechamento de discurso.

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Para tanto, não devemos perder de vista a contribuição filosófica que sugere pensar o objetivo final do improvisador como o de expressar o seu espírito; descobrir a sua própria

“verdade musical” a fim de se evitar uma postura demasiadamente técnica. Sobre esta questão, Harnoncourt afirma que,

“... a formação do músico não deveria se restringir apenas ao ensino de onde colocar o dedo no instrumento para produzir um determinado som, ou de como adquirir virtuosidade. Uma formação demasiada técnica não produz músicos, mas acrobatas insignificantes” (HARNONCOURT, 1990:31).

Neste sentindo, após a apropriação do conhecimento técnico, é chegado o momento em que necessitamos nos desprender do formato do conhecimento absorvido tal qual estudado e deixar a mente aberta para que as idéias surjam, não mais a partir de um referencial preponderantemente intelectual, mas sim, de um processo conectivo entre mente e coração (razão e emoção).

Em última instância, o objetivo final da improvisação seria deixar o “espírito criador” se manifestar livremente, expressar espontaneamente àquilo que é único em cada indivíduo, descobrindo assim a sua própria linguagem.

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CONCLUSÃO

Buscou-se com esta dissertação, contribuir com aspectos como:

- A desmistificação da improvisação vista como talento nato;

- A compreensão do processo de assimilação de modelos referenciais

(estruturas cognitivas, padrões de vocabulário) e que papel eles viriam cumprir no futuro a fim de despreconceitualizar a necessidade de assimilar modelos, através de um entendimento mais amplo do processo que envolve esta prática, bem como fazer escolhas mais conscientes sobre que material o intérprete pretende se dedicar em seu estudo improvisatório. Uma vez que se conscientizam à respeito de que área da música e seus respectivos períodos estilísticos pretendem atuar como improvisadores, devem se direcionar objetivamente ao estudo de estruturas cognitivas para a absorção de vocabulários

(similarmente ao processo de aprendizado de um idioma). Isto significa, quando o performer decide se desenvolver em uma área - seja ela Fuga, pequenas formas de

Prelúdios, Fantasias ou Jazz - deve procurar absorver as estruturas cognitivas referentes à cada código da área estilística no qual decidiu se desenvolver;

- A desmistificação de questões “nebulosas” referentes à real prática da improvisação no Choro;

- A consideração sobre as possíveis causas e conseqüências da separação do intérprete-compositor, uma vez que no passado estas atividades não eram separadas;

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- A percepção sobre o processo que envolve a assimilação de estruturas cognitivas (PM) e a necessidade da prática de combinação e variação (PCV) para o desenvolvimento inicial do improvisador.

- A sistematização de técnicas na prática de improvisação. Em geral, os músicos improvisadores percorrem diversas práticas e técnicas, muitas vezes, não dispondo de uma visão clara do processo como todo. Este fato contribui, em grande escala, como agente desmotivador para alunos que almejam se desenvolver na improvisação;

- A proposta de ampliar o emprego de novos termos no estudo da prática improvisatória a fim de aprofundar a compreensão para além das fronteiras que abarcam conceitos como “clichê”, ainda muito empregado entre músicos.

Conforme examinamos através do histórico da improvisação musical, as práticas improvisatórias permeiam diversos gêneros da música erudita à música popular de diferentes culturas, como também diversas áreas de atuação musical: o compositor que se vale da improvisação como ferramenta; o intérprete que pode utilizar a improvisação para ornamentar e variar melodias e o improvisador solista que desenvolve as diversas práticas improvisatórias, executando o improviso sob estruturas harmônicas da obra ou sob formas livres, o acompanhamento improvisado, entre outras.

Vimos que dentre as práticas improvisatórias encontram-se obras em diversos estilos e com diversos tipos de regras e níveis de prescrição, desde a improvisação em forma rigorosa de fuga a partir de um tema dado ao sabor do momento, até fantasias executadas como cadências de concerto e todas as maneiras irrestritas de criação de

“prelúdios”, apesar do conceito de improvisação envolver liberdade, ausência de planejamento, e relações pouco coerentes entre partes e seções. Observamos, também, que as possibilidades improvisativas possuem direções tão ramificadas quanto os diversos

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gêneros estilísticos composicionais. Um intérprete poderá se desenvolver na arte do improviso em forma de Fuga, Ornamentações, Prelúdios, Fantasias, Caprichos, Bossa

Nova, Free Jazz, Be bop, Choro, entre outras. Para que o performer atinja este domínio será requisitado um considerável tempo de dedicação para que ele possa se munir de conhecimentos básicos sobre aspectos harmônicos, melódicos, rítmicos, formais e estilísticos relativos à cada gênero, além do seu desenvolvimento técnico como performer.

Vimos que o conceito de improvisação envolve liberdade e ausência de planejamento como também engloba aspectos referentes à utilização de estruturas cognitivas, diversos graus de inventividade, criatividade e diversas práticas constantes. No momento em que a improvisação envolve a assimilação de estruturas cognitivas formando

“blocos de conhecimentos”, de certa forma absorve elementos já cristalizados. Estes elementos poderiam ser entendidos como micro estruturas composicionais pré-assimiladas.

Neste contexto, podería-se indagar onde estaria, então, o processo de improvisação? O que determina a junção destas micro estruturas composicionais e como elas serão interligadas por diversos fatores de forma indeterminada?

Para a compreensão destas questões notamos que existem pelo menos 2 estágios em relação ao improviso:

• a improvisação que existe inerente ao aspecto da criação que permite

fabricar o modelo e que gera a matéria-prima de padrões de vocabulários;

• a improvisação do “como” aplicar o padrão de vocabulário já assimilado de

forma improvisada.

São duas situações diferentes que poderiam ser categorizadas como improvisação, embora em planos diferentes. O procedimento estrutural é semelhante: uma atua em um plano micro (com escolhas de incisos musicais, combinações de notas que

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formarão a frase) e a outra num plano macro, que envolvem a interligação e seleção de frases assimiladas, com constantes reajustes, formando períodos maiores. Neste caso, o que de fato é improvisado na maior parte das vezes não são as frases ou idéias musicais, mas sim a aplicação delas no momento da performance (“como” e “quando”).

Diante de alguns conceitos relativos as fronteiras entre improvisação e composição, poderíamos remeter à noção de que a atividade da improvisação não compreenderia somente a reelaboração da composição e a elaboração de idéias musicais pré-estabelecidas que se tornarão parte do padrão de vocabulário do improvisador.

Compreenderia ainda a criação em “tempo real”, que ocorre com ágeis tomadas de decisões quanto a quê material (padrões de vocabulários assimilados) utilizar do depósito onde estão armazenadas as estruturas cognitivas disponíveis. No momento em que se tem um “menu de opções” de padrões de vocabulários, será necessário efetuar-se uma escolha. Estas escolhas serão improvisadas, uma vez que não há tempo para tomadas de decisões sobre qual vocabulário do depósito (memória) utilizar. Neste sentido, a performance improvisada visa explorar as diversas possibilidades, sendo necessário desenvolver uma soma de vigilância e flexibilidade acrobática no ato da tomada de decisões em tempo real, ao passo que na composição as decisões podem ser revisadas e reelaboradas.

Concluímos, portanto, quanto maior a quantidade de padrões de vocabulários assimilados, maior o número de “escolhas” que estarão disponíveis sem o risco do músico se repetir por limitação em seu repertório. Em analogia, podemos imaginar um aluno que não domine bem a língua, acabe por repetir termos por falta de opções em seu vocabulário.

Observamos, ao longo deste trabalho, algumas práticas fundamentais no desenvolvimento do intérprete para o enriquecimento do repertório de vocabulários de estruturas cognitivas, como:

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- a transcrição (imitação) como uma importante ferramenta para o

enriquecimento do vocabulário, além da assimilação e compreensão

estilística. O material transcrito terá diversas utilidades no processo

improvisatório, tanto em sua íntegra, como também na utilização parcial de

material opcional para recriar outros improvisos para sua combinação com

outros elementos (utilizando os fragmentos da transcrição). Neste caso,

deve-se considerar que as inflexões e detalhes que envolvem cada estilo

nunca foi de fácil descrição. O próprio sistema de notação musical, por mais

preciso que seja não é suficiente para passar todas as questões referentes à

performance e os detalhes da execução. A transcrição, neste sentido, é uma

poderosa ferramenta para a absorção de detalhes relativos à inflexões que

envolvem a questão de “suingue”, além de ajudar o intérprete a eliminar o

“sotaque” referente à interpretação estilística.

- o aprendizado de padrões de vocabulários através de discos e shows são

processos relevantes.

- A expansão para além das suas primeiras influências (é natural que se tenha

um ídolo no início, quando se é novo). Possuir um ídolo referencial e copiar

a maneira como ele executa a performance de improviso, observando

detalhadamente cada inflexão, pode ser muito importante como ponto de

partida, porém, será também de grande importância se desprender e

absorver várias outras referências para que o intérprete mais adiante, através

da prática de variação e interligação de material assimilado, possa criar seu

próprio estilo.

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Uma vez verificado que a improvisação se baseia em processos de absorção de estruturas cognitivas, levantamos algumas questões:

Porque o intérprete especializado na música de concerto não encontra a oportunidade em seu estudo acadêmico de se desenvolver na arte do improviso em sua área estilística, resgatando a prática do improviso sob formas consagradas como Prelúdio,

Fantasia, Capricho, etc.?

É importante notarmos que com freqüência associa-se a improvisação à área da

Música Popular, provavelmente porque esta inclui improvisação como elemento incorporado à sua prática. No entanto, deve-se excluir as práticas improvisatórias da formação de um intérprete da Música Ocidental de Concerto ?

Seria apropriado afirmar que das diversas formas de expressão musical (a música hindú, a chinesa, o jazz, a iraniana e as diversas formas de músicas africanas) a que atingiu maior nível de precisão em seu sistema de notação foi a música ocidental de concerto, sendo também, a que sofreu maiores restrições e diminuição de espaço em relação à improvisação quanto à colaboração do intérprete com a obra. Seria a relação

“avanço do sistema de notação” X “espaço para a improvisação” uma relação de proporção inversa ?

Para responder esta questão procuramos examinar a evolução do sistema de notação musical e concluimos, que, conforme o seu avanço, reduziram-se os espaços de colaboração do intérprete com a obra, limitando diversas possibilidades de práticas improvisatórias. À medida em que o compositor objetiva a garantia que sua obra será executada exatamente como ele deseja, sem riscos de surpresas (pelo menos no que se refere ao conteúdo composicional da obra), ao intérprete ficou restrito à execução dos textos já detalhadamente estabelecidos, podendo se utilizar apenas da improvisação

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interpretativa, (conforme examinado no Capítulo III, seção 3.3, subseção 3.3.6). No entanto, se confrontarmos esta situação compartimentada com a realidade do “compositor- intérprete” que vigorou durante o período de Bach, Mozart, Beethoven e Liszt, seríamos levado a concluir que algo se perdera com a fragmentação entre “compositor-intérprete”.

Embora as conquistas com as especializações possam ser evidentes, não podemos desconsiderar as perdas significativas decorrentes desta fragmentação: a falta de uma formação mais ampla do intérprete que inclua práticas da improvisação e composição, como também por parte do compositor que inclua as práticas interpretativas no instrumento, pois, as práticas improvisatórias interligam a interpretação e a composição simultaneamente. Neste contexto, pode-se afirmar que o declínio do “compositor- intérprete” trouxe como uma de suas conseqüências, a diminuição de espaço e possibilidade para a improvisação do intérprete na música ocidental de concerto.

Não podemos desconsiderar que, uma vez que as obras mais estimadas no repertório da música ocidental de concerto, são aquelas mais extensas, com organização intrincada como: sinfonias, óperas, concertos, etc., ficando as pequenas formas improvisadas como: fantasias, prelúdios, caprichos, rapsódias, etc., posicionadas em patamar de menor grau de importância, provavelmente porque musicólogos se concentraram mais em produtos acabados, considerando em menor grau de importância o processo de “como” estas obras vieram à existência. Há de se considerar também àquilo que Treitler havia mencionado (ver Capítulo II, p. 74) sobre o fato da musicologia, um campo desenvolvido na Alemanha, enfatizar valores como disciplina e previsibilidade – características inerentes à cultura germânica – e privilegiar os músicos associados a estes valores. A idéia da existência de músicos que espontaneamente podem fazer o que querem, de acordo com o impulso do momento, é estranha para os músicos eruditos que

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escandalizaram-se por tamanha falta de disciplina, todavia sentiram-se atraídos pela liberdade presumida que envolve a improvisação.

Pode-se considerar, contudo, que, mesmo que o intérprete erudito não seja exposto à necessidade de improvisar em tempo real em seus concertos e recitais, a improvisação, ainda assim, pode ocupar um espaço de grande importância em sua formação. O desenvolvimento nas práticas improvisatórias permitiria ao intérprete a elaborar ou precompor cadências para concertos, prelúdios ou até mesmo arranjos próprios de composições já existentes, além de ampliar sua visão para o entendimento da obra a ser interpretada. No momento em que o intérprete tenha uma formação que englobe práticas improvisatórias com ampla compreensão estilística, noção de forma, harmonia e rítmo referente à cada período específico que pretende desenvolver sua linguagem improvisatória, estará apto a improvisar ou precompor com maior segurança sua própria cadência de um concerto ou até mesmo criar um prelúdio para uma obra romântica, assim como estará apto a improvisar seus próprios ornamentos em obras barrocas.

Outras questões pertinentes a serem consideradas referem-se ao crescente intercâmbio no formato de repertórios em apresentação de concertos eruditos e populares

(apesar de não se constituir numa novidade). Observamos a crescente inclusão de obras de

Piazzola, Tom Jobim, Pixinguinha, Nazareth e Chiquinha Gonzaga, Egberto Gismonti, entre outros, no repertório da música de concerto e recitais solo, de música de câmara e orquestras sinfônicas. Por outra via, nota-se a inclusão de obras de Villa Lobos, Gershwin,

Ravel, Bach, Chopin, entre outros, no repertório em apresentações na área da música popular. Se examinarmos de perto este intercurso de repertórios para além das fronteiras de suas áreas de especialização, o intérprete é desafiado a conhecer cada vez mais sobre o código referente à linguagem da nova fronteira a ser explorada. Neste sentido, o músico

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erudito, ao incursionar por obras de músicos populares se confronta com diversos desafios como: as práticas de improvisação e questões relativas à “levadas”41 e “suingue”, entre outras. Não queremos dizer com isto que o músico erudito esteja necessariamente improvisando ao incursionar pela música popular. O que enfatizamos é que ele se depara com estes desafios (“improvisação”, “levada” e “suingue”) e se interroga quanto ao seu próprio desenvolvimento nestas habilidades, podendo se acomodar numa justificativa associada à questão do “não ter talento” ou buscando se desenvolver nestas práticas, o que requererá esforço e tempo para o seu aperfeiçoamento, envolvendo diversos aspectos estilísticos sobre que modelo de estruturas cognitivas irá assimilar e utilizar. Para tanto, será necessário para o músico erudito criar uma referência estilística para que possa incursionar nesta área com maior propriedade e domínio sobre a concepção harmônica, melódica e rítmica da obra a ser executada.

Já o músico popular ao incursionar pela música erudita se depara com questões como: senso polifônico, desenvolvimento do raciocínio pianístico, notação pianística, noções estilísticas referentes a cada período, desenvolvimento na compreensão da visão das grandes formas (formas complexas), interpretações, nuanças de toque e dinâmica. O estudo de obras polifônicas, por exemplo, permite ao intérprete desenvolver uma visão contrapontística em sua improvisação.

Pode-se afirmar que integrar áreas se constitui em um grande desafio para o performer, porque requer considerar o processo de despreconceitualização de paradigmas estabelecidos (no caso, compositor e intérprete ou música popular e música erudita). Para um intérprete da área da música popular mergulhar no código da música erudita, o processo pode ser extremamente árduo, com enormes obstáculos, assim como o inverso: um

41 “levada” – rítmo de base.

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intérprete da área erudita enveredar pelo terreno da música popular, também se depara com grandes dificuldades. No entanto, se houvesse uma formação mais direcionada para esta multidisciplinariedade, podería-se fazer com que estes processos se tornassem menos

árduos. Certamente há uma fecundação nesta busca em promover ações contra a desvitalização do espaço improvisativo originada pelas fortes segregações provocadas pelo movimento das “especializações”. Neste sentido Keith Jarreth e Friedrich Gulda, considerados expoentes em suas respectivas áreas (jazz e erudito), representam alguns dos exemplos de intérpretes que enveredaram pelas práticas de intercâmbio de repertórios

(“Crossover”42).

Ainda sobre a transição do intérprete entre as áreas da música erudita e popular,

Harnoncourt comenta que: “como conseqüência lógica, a separação entre ‘música popular’ e ‘música séria’, assim como entre a música e seu tempo, desaparecerá, e a vida cultural irá encontrar novamente sua unidade (HARNONCOURT, 1990:33).

É comum encontrarmos entre músicos, algumas visões preconceitualizadas sobre o estudo de estruturas cognitivas, no qual associam equivocadamente a prática do estudo das estruturas cognitivas à mecanização que comprometeria o processo criativo, chegando, às vezes, a reduzir à visão de que os músicos poderiam ficar “iguais”. Por outro lado, encontramos músicos que, embora fascinados pela improvisação, ao se conscientizarem de que o seu desenvolvimento passa pela prática da assimilação de estruturas cognitivas, perdem o “encanto”, acreditando que a improvisação estaria reduzida a uma prática mecânica. Isto ocorre pelo fato de não perceberem que a prática mecânica

42 termo associado à prática de intercâmbio de repertórios.

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tem como finalidade, “espontaneizar” o material a ser utilizado em futuras improvisações, correspondendo apenas a uma etapa preliminar (ou intermediária) de um processo.

O desenvolvimento da improvisação, na área das práticas interpretativas, permite ao intérprete se aproximar mais do pensamento do compositor, fornecendo-lhe ferramentas que o ajudem a reviver o que está por trás da partitura, ao invés de fazer soar apenas o que está escrito (sem contudo desobedecer os parâmetros estilísticos). Isto pode ser um meio de reencontrar uma certa espontaneidade musical na interpretação, afinal, o objetivo do intérprete é fazer com que a música “penetre na pele do ouvinte”, tornando-a próxima dele. Neste sentido, a espontaneidade musical parece ser fator diferencial entre uma interpretação “apenas interessante”, que não consegue mostrar-nos o que é de fato a música e a interpretação que nos fale diretamente, que nos perturbe e nos transforme. Se pensarmos que a espontaneidade passa pela prática de “espontaneizar”, nos remetem exatamente aos processos que envolvem as práticas improvisatórias. Portanto, concluimos que a improvisação pode contribuir efetivamente com o grau de vitalidade e espontaneidade na performance da obra por parte do intérprete.

Nos resta concluir que a visão do “encanto”, mencionada acima, que envolve as improvisações, é retroalimentada pela postura dos “mistérios” que o intérprete, muitas vezes, mantém à respeito de suas performances improvisadas. Conforme Blum afirma:

“ Felizmente, para todos os envolvidos, os músicos nunca podem contar cada detalhe de seus métodos de performance; se pudessem, sua performance seria supérflua assim como sem vida. Contudo, podemos esperar encontrar várias formas de improvisação, contrastantes com outros métodos de ação – e o fazemos. Enquanto alguns dos contrastes são escolhas binárias (quer deste tipo ou não), outros envolvem discriminações entre aspectos da performance mais ou menos improvisada” (BLUM, apud NETTL, 1998:28).

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Acreditamos que a hipótese de Blum possa ser de grande contribuição para revelar os aspectos envolvidos com a questão relacionada aos “mistérios”, no sentido que a preservação dos mesmos seja analisada de forma simbólica. O simbolismo aqui, entendido como aspecto de difícil objetivação pelo fato de estar ligado à representação do imaginário, mito, crença e tudo aquilo de mais íntimo do indivíduo, ocorrendo com grande incidência entre os músicos. Conforme observou Jankélévitch,

“(...) a confidência da criação não é mais um mistério (...) secreto que é profanado se divulgado. O homem se esconde para acoplar-se ou para morrer, mas ele se representa, na fase mais íntima, nos primórdios da invenção, na fase menos propícia a ser mostrada, a fase da improvisação” (JANKÉLÉVITCH, 1998:117. Grifo por nossa conta).

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2. Entrevistas - CAESAR, Rodolfo. Rio de Janeiro, 2000.

- CARRILHO, Mauricio. Rio de Janeiro, 2000.

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