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Análise das condições de produção de Cidade dos homens: articulações entre Educação e Comunicação

Suzana Feldens Schwertner Universidade Federal do

Resumo

O presente artigo propõe articulações entre Comunicação e Educação ao investigar as condições de produção de um programa televisivo. Partindo do pensamento arqueológico de Michel Foucault e ressaltando a inseparabilidade entre teoria e método, questiona as noções de causalidade e linearidade na busca de uma ‘origem’ do objeto de pesquisa que intentamos estudar. Procura, sim, apontar para múltiplas condições de emergência da microssérie Cidade dos homens. Para tanto, seleciona os programas veiculados no período de 2002 a 2004 na Rede Globo, destacando a originalidade de sua temática e a contemporaneidade de sua produção. Pergunta-se também de que modo o programa apresenta verdades sobre jovens negros e moradores da periferia, personagens até há pouco excluídos do espaço de protagonistas em um seriado de ficção. O estudo procura considerar a força que os movimentos sociais vêm conquistando na sociedade brasileira, movimentos reconhecidamente políticos, marcados pela contestação e que começam a fazer parte também da esfera televisiva. Torna-se importante, a partir disso, considerar a forma como a televisão incorpora o discurso desses movimentos e o transforma para ser devolvido ao público. O trabalho de investigação sobre a mídia televisiva, mais precisamente a partir da análise de imagens, ao implicar uma posição ética e política, torna-se tarefa fundamental para qualquer interessado na formação de sujeitos comprometidos com cultura, ética e educação.

Palavras-chave

Televisão — Educação — Michel Foucault — Cidade dos homens.

Correspondência: Suzana Feldens Schwertner Rua João Telles, 306, apto. 415 90035-120 – – RS e-mail: [email protected]

Educação e Pesquisa, , v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 47 Analysis of the conditions of production of Cidade dos homens (City of Men): connections between Education and Communication

Suzana Feldens Schwertner Federal University of Rio Grande do Sul

Abstract

This article proposes connections between Communication and Education through the investigation of the conditions of production of a program. Starting from the archeological thinking of Michel Foucault, and highlighting the inseparability of theory and method, it questions the notions of causality and linearity in search of an “origin” for the research object we intend to study. It seeks to signal to multiple conditions for the emergence of the miniseries Cidade dos homens (City of Men). For that, it selects the programs broadcast in the period between 2002 and 2004 on Rede Globo, emphasizing the originality of their themes and the contemporaneity of their production. The article also searches the way in which the program presents truths about black youngsters and inhabitants of the city peripheries, characters until recently excluded from the leading roles in fiction shows. The study tries to take into account the strength that social movements have acquired in Brazilian society, movements admittedly political, characterized by controversy, and that begin to be part also of the sphere of television. It thus becomes important to consider the way in which the television incorporates the discourse of these movements, and transforms them before returning them to the public. The research work on the television medium, more specifically based on the analysis of images, by entailing an ethical and political stance, becomes a fundamental task for anyone interested in the creation of individuals committed to culture, ethics, and education.

Keywords

Television – Education – Michel Foucault – Cidade dos homens.

Contact: Suzana Feldens Schwertner Rua João Telles, 306, apto. 415 90035-120 – Porto Alegre – RS e-mail: [email protected]

48 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 Estudar a mídia é um risco [...]. Isso implica, tregamos como a maioria dos telespectadores. inevitável e necessariamente, um processo de Como problematizar, a partir de estudos, algo desfamiliarização. Questionar o dado-por-certo. que é tão presente e cotidiano? Inicialmente, Mergulhar abaixo da superfície do significado. diríamos que por meio do estudo das teorias, das Recusar o óbvio, o literal, o singular. Em nosso análises de pesquisas, de discussões em seminá- trabalho, muitas vezes e com razão, o simples rios, congressos, em trabalhos de recepção. se torna complexo, o óbvio opaco. Luzes bri- Posteriormente, acreditamos que é preciso acei- lhantes fazem desaparecer as sombras. Está tar a parcialidade do trabalho, apostar no mer- tudo nos cantos. (Silverstone, 2002, p. 35) gulho no mundo das imagens, do qual nunca retornamos neutros. Não há como nos separar- Estudar a mídia. Demorar-se nas imagens. mos do pesquisador que há em nós: o objeto Deixar-se tocar por elas, surpreender-se com empírico que escolhemos é parte de nós e tam- novas formas de linguagem, com a sonorização bém nos escolhe a partir de nossas perguntas, que invade as cenas. Estranhar o cotidiano, o de indignações, motivo que nos instiga a procu- rotineiro, o ‘dado-por-certo’ do discurso. Pois rar respostas a um desassossego. não são essas também tarefas inerentes à Edu- E a escolha do programa Cidade dos cação? Acreditamos que sim, e é a partir de tais homens não se fez ao acaso. Em 2002, foi lan- problematizações que o presente artigo procu- çado pela Rede Globo um seriado de ficção ra colocar em jogo discursos acerca de imagem baseado na repercussão do enorme sucesso de e educação, assumindo os riscos que se apresen- bilheteria do longa-metragem Cidade de Deus3 . tarem pelo caminho. A introdução que se segue Programa diferencial desde a sua concepção: os pretende tratar das escolhas que fizemos – e que protagonistas, assim como a maioria do elenco, se fizeram em nós – e apresentar as idéias ge- eram negros e a temática de ficção, narrada pela rais contidas no trabalho de pesquisa. visão de duas crianças, chamavam nossa aten- As imagens escolhidas para análise não ção e reacendiam a chama do desassossego. são meras imagens, tampouco são selecionadas Em recente artigo, a professora e crítica de ao acaso: fazem parte da história do nosso cinema da Universidade Federal do Rio de Janei- presente, mobilizam-nos, seja por nos tocarem ro, Ivana Bentes (2005), discorre acerca de inova- e nos surpreenderem, seja por nos chocarem. dores produtos da televisão brasileira que parecem Acreditamos que a microssérie1 de TV Cidade se libertar de um imaginário popularesco, de uma dos homens2 proporciona esses dois tipos de homogeneização da cultura popular representada sentimentos: surpreende pelas passagens sen- por algumas figuras características. Como exemplo síveis, que abordam compromissos de solidari- de diferenciação com aqueles limitados produtos, edade, convivência, cuidado com o outro. E Bentes cita os programas Brasil legal, Turma do também choca ao nos mostrar esses pontos gueto, Cidade dos homens como “potência do sensíveis em meio à violência urbana, ao tráfi- novo e signo da desmassificação” (p. 17), tornan- co de drogas, à exclusão social e racial, assun- do-se objeto de desejo social. Destaca a autora: tos pungentes e urgentes na sociedade brasilei- ra contemporânea. Com a visibilidade social e o debate político em A escolha por trabalhar com imagens, torno da pobreza, a televisão e o cinema des- analisar programas da mídia televisiva, não ocor- re de forma neutra e insípida – como ainda 1. Denominação utilizada pela própria emissora, informação obtida no fantasiam alguns pesquisadores. Pesquisar a te- site do programa, no endereço www.cidadedoshomens.globo.com. levisão é investigar um evento/acontecimento do 2. Produção da O2 Filmes e realização da Central Globo de Produções, exibida entre 2002 e 2004 na Rede Globo. qual também fazemos parte: assistir à televisão 3. Direção de , co-direção de Kátia Lund, co-produção é também um hábito rotineiro, ao qual nos en- da O2 Filmes, GloboFilmes e VideoFilmes. Brasil, 130 min, 2002.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 49 cobriram novos sujeitos do discurso: pobres, pensar que ela não pode proporcionar algo subempregados, artistas precários, rappers, gente novo e revolucionário, eximindo-nos, dessa das periferias que têm uma fala sobre si e sua forma, de nossa responsabilidade perante esse condição e exigem visibilidade, além de mudan- veículo de mediação, dos mais importantes na ças reais. Personagens que povoam as novelas, atualidade? videoclipes, institucionais, filmes, não mais tão humildes e conformados ou como figuras do ris- Condições de emergência do co, mas como portadores de discursos afirmati- produto televisivo Cidade dos vos e de reivindicação. (p. 18) homens

A nosso ver, é sobre esses novos perso- As condições para que apareça um objeto de nagens do discurso que o seriado Cidade dos discurso, as condições históricas para que dele homens versa: os moradores da periferia, que se possa ‘dizer alguma coisa’ e para que dele sobem o morro para reclamar ao seu ‘patrão’ a várias pessoas possam dizer coisas diferentes, as falta de dinheiro para comprar remédio; as cri- condições para que ele se inscreva em um do- anças pobres que fogem da luta entre policiais mínio de parentesco com outros objetos, para e traficantes na ; os jovens negros que que possa estabelecer com eles relações de se- procuram, com muita luta, o primeiro emprego. melhança, de vizinhança, de afastamentos, de No presente artigo, procuramos realizar diferença, de transformação – essas condições, uma apresentação do material televisivo seleci- como se vê, são numerosas e importantes. Isto onado para o estudo, mas não uma apresenta- significa que não se pode falar de qualquer coi- ção qualquer: procuramos fazer emergirem as sa em qualquer época; não é fácil dizer alguma condições de produção do programa Cidade coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar dos homens. Seguindo os ensinamentos de atenção, ou tomar consciência, para que novos Foucault (1996; 2002), procuramos não pela objetos logo se iluminem e na superfície do origem ou causalidade dos acontecimentos, solo, lancem sua primeira claridade. Mas essa mas pelas diversas maneiras por meio das quais dificuldade não é apenas negativa; não se deve o produto pode ser visibilizado e tornado pú- associá-la a um obstáculo cujo poder seria, ex- blico em nosso tempo. Apresento breves pon- clusivamente, de cegar, perturbar, impedir a des- tuações a respeito do lançamento do programa coberta, mascarar a pureza da evidência ou a nos respectivos anos de exibição: 2002, 2003 obstinação muda das próprias coisas; o objeto e 2004. Finalizo pontuando a importância de não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo uma pesquisa pelas condições de emergência e permitir-lhe que se encarne em uma visível e em uma área de estudos que procura relacio- loquaz objetividade; ele não preexiste a si mes- nar Comunicação e Educação. mo, retido por algum obstáculo aos primeiros Julgo importante também problematizar a contornos da luz, mas existe sob as condições televisão não apenas como mero lugar de entre- positivas de um feixe complexo de relações. tenimento, mas também como locus educativo; (Foucault, 2002, p. 51) não apenas um lugar produtor de programas de baixa qualidade, mesquinharias, alienação, mas Em seu livro, A arqueologia do saber, como espaço de transgressão. Pergunto-me Michel Foucault (2002) apresenta-nos uma acerca das contundentes críticas em relação à nova forma de interrogar os fatos da história televisão: seria ela que nos persegue, aniquilan- das ciências, mais precisamente das ciências do qualquer experiência, anulando o pensa- ditas ‘humanas’. No polêmico livro – considera- mento crítico, impossibilitando a reflexão ou do por seus comentadores Dreyfuss e Rabinow seríamos nós os perseguidores da televisão, a como um texto árido, de maior complexidade e

50 Suzana F. SCHWERTNER. Análise das condições de produção de Cidade dos homens:... elaboração –, o autor procura mostrar uma envolvem o objeto de pesquisa – e não uma inseparabilidade entre método e teoria ao ex- suposta origem que estaria dada anteriormente. plorar a maneira como os objetos e os discur- Passaremos a relacionar tais idéias a sos são construídos e formados. Mais do que questões próprias ao objeto de estudo, finali- isso, Foucault coloca em suspensão a unidade zando o artigo com algumas idéias a respeito e essencialidade das coisas, buscando – por do lançamento do programa Cidade dos ho- meio de um árduo trabalho – a provisoriedade mens na rede Globo em 2002 e suas exibições das verdades. Assim mesmo, no plural, para nos anos 2003 e 2004. evidenciá-las como modos de construção e ex- plorar a multiplicidade de relações que trazem Paradoxo do objeto: um entre- consigo: investigação arqueológica de verdades. lugar O trecho selecionado como epígrafe está localizado na terceira seção do segundo capí- Idéias paradoxais estão presentes em tulo de A arqueologia do saber, intitulada “A todo o livro A arqueologia do saber, da intro- formação dos objetos”, e aborda as condições dução à conclusão. Entre elas, podemos desta- de aparecimento de um objeto e o quanto ele car os pares (nem tão) opostos ocultação e é formado – e não simplesmente ‘encontrado’ visibilidade, superfície e profundidade, unidade – de acordo com o discurso em que aparece e diferença. Os paradoxos instaurados por inserido e com a época em que é analisado. Foucault são instigantes, no sentido de produzir Foucault (2002) nos mostra o quanto as rela- uma conversão no nosso modo de olhar: como ções que se evidenciam em um discurso permi- aprender a pesquisar algo que não é visível e ao tem a formação de determinados objetos. Na mesmo tempo não é oculto? É relevante notar conclusão dessa seção, localiza-se a famosa como o autor utiliza expressões que nos levam frase de Foucault sobre o discurso (talvez a pensar em uma interdependência do olho e marca constitutiva desse livro), citada inúmeras da claridade revelada por esse olhar: ‘abrir os vezes em trabalhos que tratam de análise de olhos’, objetos que se ‘iluminam’ e lançam sua discurso. O autor inova ao problematizar ‘primeira claridade’, ‘contornos da luz’. Quando achamos que entendemos a relação, em que ele (...) uma tarefa inteiramente diferente, que con- parece privilegiar o sentido do olhar, Foucault siste em não mais tratar os discursos como lança novo desafio: mostra-nos então o quan- conjunto de signos (elementos significantes que to o olhar pode, simultaneamente a uma clari- remetem a conteúdos ou a representações), mas vidência da visão, ‘cegar’, ‘perturbar’ e até evi- como práticas que formam sistematicamente os tar que se veja o próprio objeto. objetos de que falam. (p. 56) Dessa forma, o autor nos faz entrar em um jogo de composições, em um jogo de olhar A epígrafe escolhida traz em si algumas e não-olhar, combinação de olhares, como num idéias constantemente trabalhadas por Foucault movimento do caleidoscópio, que abre as nos- em outras de suas obras (como As palavras e as sas percepções para várias possibilidades de coisas, A ordem do discurso e até mesmo O imagem à vista. Paulo Veyne (1982), estudioso que é um autor?). O assunto que pretendemos da obra de Foucault, escreve o seguinte: aprofundar nessa primeira parte do artigo envol- ve dois pontos principais de discussão: aquilo A cada momento, este mundo é o que é: que que denominamos de paradoxo do objeto – suas práticas e seus objetos sejam raros, que quando o autor destaca o objeto como algo haja vazio em volta deles, isso não quer dizer não-visível e ao mesmo tempo não-oculto – e as que haja, em derredor, verdades que os homens condições de produção de um discurso, as quais ainda não apreenderam: as figuras do caleidos-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 51 cópio não são nem mais verdadeiras nem mais jogo de relações e que traz à tona inúmeras falsas do que as precedentes. (p. 176) multiplicidades: eis o objeto de pesquisa, que não cessa de nos questionar. Atentos a esse Foucault nos provoca, a todo o instan- objeto, a esse paradoxal ‘entre-lugar’, passamos te, a abrir mão das nossas formas tradicionais a esmiuçar as condições de produção do pro- e fixas de pensar, colocando-nos em uma po- grama selecionado. sição nômade, fugidia e efêmera, naquele espa- ço definido como entre-lugar: aquele que, Análise das condições de quando pensamos encontrar, voltamos a procu- emergência: negação da origem rar – pois já não se trata mais desse lugar e sim de outro “...lugar intersticial que não está, a No trecho da obra de Foucault, citado priori, demarcado” (Schäffer, 1999, p. 166). anteriormente, também nos deparamos com um Assim, Foucault pontua o objeto como amplo questionamento aos conceitos de causa- algo que não está oculto por um discurso, que lidade e linearidade que orientam diretamente se possa ler entre as linhas de um texto ou que para uma essência, para uma origem. Em seu se vislumbra por detrás da cortina cerrada. Não, estudo sobre a análise do discurso em Foucault, definitivamente o objeto não é esse que está Rosa Fischer (2001b) reforça o conceito de além e, por isso, apenas acessível a certo tipo descontinuidade proposto pelo arqueólogo: de especialista. Ao mesmo tempo, o objeto de nossas pesquisas não está aqui, imediatamente [...] o caminho não é buscar, indefinidamente, às nossas mãos e claramente visível aos nossos um ponto originário e saber onde tudo come- olhos: ele não se apresenta curvando-se aos çou. As datas e locais que fixamos não signifi- nossos pés tal como um súdito devotado. cam pontos de partida nem dados definitivos; O objeto é o próprio paradoxo: não são, antes, referências ligadas às condições de oculto e não visível ou invisível por se encon- produção de um dado discurso, que se enuncia trar justamente na superfície, que não acredi- diferente, que é outro em cada um desses luga- tamos ser caracterizada pela complexidade, já res e instantes. (p. 220) que estamos sempre a procurar a verdade nos mais recônditos espaços, nos fundo dos profun- Ao se estudar um objeto de pesquisa, é dos abismos, por detrás da cortina cerrada. preciso, desde o início, fazer cessar a procura pela Foucault preza o cuidado da análise dos obje- origem absoluta e incontestável e se deparar com tos, a fim de que não nos deixemos levar por uma multiplicidade de condições de emergência um imediatismo interpretativo: desse tipo de objeto. Michel Foucault contrapõe, assim, a noção de influência (que remeteria a uma Em vez de interpretar os elementos significantes causalidade dos fatos, a uma linearidade) à idéia a partir de um suposto ‘sentido’ comum às pa- de condições de produção – que tem a ver com lavras, às instituições e às técnicas, a arqueolo- história, com política, com acontecimentos e gia estuda a raridade positiva dos enunciados – irrupções nesses mesmos acontecimentos; estes, e rastreia os procedimentos de apropriação que por sua vez, propiciam aberturas a vazios do ela suscita, ou seja, a exegese, que compensa a discurso, a resistências. pobreza dos enunciados pela multiplicação dos O fundamental, então, é remeter não a um sentidos, e a ‘luta política’ que visa apoderar-se ponto essencial nem a causalidades que poderi- desse raro bem. (Billouet, 2003, p. 111) am propiciar o surgimento de algo, mas interes- sar-se por uma infinidade de relações que coexis- Estudar o que está na superfície, mas tem em um determinado momento histórico. que por isso mesmo é complexo, imerso em um Relações: eis a palavra-chave ao se falar em con-

52 Suzana F. SCHWERTNER. Análise das condições de produção de Cidade dos homens:... dições de produção de algum discurso ou obje- Antes de mais nada, convém lembrar que to. Na epígrafe destacada, Foucault diferencia tais programas de ficção produzidos especialmente relações em alguns tipos, como semelhança, vi- para jovens começaram se multiplicar com inten- zinhança, afastamento, diferença e transformação. sidade no início da década de 1990 no Brasil, Pensar nessas relações, implicá-las no objeto de principalmente a partir da série Confissões de ado- análise, colocar em jogo as relações que eviden- lescente, exibida pela TV Cultura de São Paulo. ciem multiplicidades na formação do objeto são Malhação, soap opera veiculada pela Rede Glo- tarefas constituintes do pesquisador arqueólogo. bo desde 1995, também obteve muito sucesso Ao pensar no objeto empírico da pesqui- (o programa continua no ar ininterruptamente sa, a microssérie Cidade dos homens, há que se durante esses dez anos, sendo transmitida de se- atentar para os diferentes acontecimentos que gunda a sexta-feira). Programas de ficção que envolvem o lançamento desse produto para a procuram reconstruir o mundo jovem – de cer- televisão. Foucault (2002) chamava atenção to tipo de jovem, muitas vezes chamado adoles- para o fato de não poder se “falar de qualquer cente – por meio da publicização de suas dores coisa em qualquer época” (p. 51), de ser neces- e alegrias privadas (no caso da série Confissões sário considerar o momento histórico, político de adolescente, os acontecimentos apresentados e social em que é possível a construção e a foram retirados de registros de um diário pessoal) manifestação de certos discursos, de determi- e da convivência em lugares privilegiadamente nadas formas de agir e pensar. E também for- jovens: a academia e a escola (a história de mas de tornar visível: o que leva uma rede de te- Malhação inicialmente se passava em uma aca- levisão comercial a exibir um programa ficcional, demia de ginástica e, com o desenrolar do tem- em horário nobre, protagonizado por persona- po, o local tornou-se uma escola). gens negros e jovens, moradores de uma favela Cidade dos homens, no entanto, surgiu do ? Como foi possível apresen- como um programa diferente dos acima mencio- tar esse programa no final do ano de 2002, na nados por utilizar como protagonistas – assim Rede Globo de Televisão – e ele ter seguimen- como a maioria do elenco – jovens negros e po- to nos anos posteriores? bres e não mais teens pertencentes à classe média- Isso não significa dizer que tais sujeitos alta, representada em sua maioria por jovens bran- nunca estiveram ‘visíveis’, nunca estiveram presen- cos e esbeltos, vestidos com as roupas da moda e tes na televisão brasileira anteriormente: jovens, de cabelos alisados. Os protagonistas de Cidade negros, pobres e favelados já estiveram presentes dos homens vestem abrigo da escola, camiseta e no horário nobre, mas a condição de sua aparição chinelo de dedo. Seus cabelos são rebeldes, arre- se dava por meio do telejornal, de notícias que piados, crespos, black power4 ou adornados com evidenciavam a tríade inseparável pobreza/tráfico/ dreadlocks5 . O ambiente em que se passa a história violência. Quem não se lembra das reportagens também difere contrastadamente: em Cidade dos sobre a chacina dos meninos da Candelária, ocor- homens, a favela e a própria rua, incluindo o Pa- rida em 1992, no Rio de Janeiro? Ou outros 4. Estilo de cabelo que surgiu nos anos 1970, nos EUA, e que simbolizava incontáveis noticiários que tematizam a violência o orgulho do movimento Black Power, representado por Jimmi Hendrix e urbana e a associam diretamente aos negros – Diana Ross. Aqui no Brasil, teve como representantes o cantor Tim Maia e muitas vezes –, jovens moradores de favela? Aqui o também cantor e ator Toni Tornado. Atualmente, faz sucesso na cabeça do cantor Lenny Kravitz. Capturado em http://www2.uol.com.br/tododia/ podemos estabelecer as relações consideradas por ano2004/maio/210504/triboz.htm, em 21/12/2004. Foucault como relações de diferença: no produto 5. Adornos utilizados no cabelo, influenciados pelo movimento rastafari, também difundido pelo movimento Black Power, sendo as tranças uma Cidade dos homens, há uma mudança no gênero versão mais radical do movimento. Bob Marley é o maior representante, – de telejornal a um programa de ficção. O que sendo seguido aqui no Brasil por Gilberto Gil e . Dreadlock produz essa mudança de lugar em termos de no- é a junção de dread – assustador, espantoso – e lock – fechadura. Captu- rado em http://www2.uol.com.br/tododia/ano2004/maio/210504/ vas formas de visibilidade? triboz.htm, em 21/12/2004.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 53 lácio do Planalto e um baile funk, servem como políticos e sociais, também não podemos dei- lugar privilegiado em que os acontecimentos se xar de problematizar a forma de incorporação desdobram. Renata Petrocelli (2004), jornalista, em dessas mobilizações a partir de sua visibilidade sua crítica ao programa, destaca: através da televisão (e da mídia, de uma forma mais geral). Ao mesmo tempo em que a visibi- É justamente na criação de dois ‘heróis’ nada lidade de sua luta política é sinal de conquista idealizados, pobres, marginalizados, fora dos – de espaço, de direitos civis, de respeito, de padrões de beleza valorizados pelos meios de discussão em sociedade –, é preciso atentar comunicação e sujeitos às pressões do tráfico para a incorporação desses movimentos pela nas comunidades carentes, que reside o grande mídia e para a apropriação mercadológica dos mérito de Cidade dos Homens. (p. 01) diferentes/excluídos. Conforme Fischer (2001):

Além disso, é preciso considerar a força O importante aqui é acentuar que todas essas que os movimentos sociais vêm conquistando na questões em torno do tratamento das diferenças sociedade brasileira, especialmente os de minorias estão também relacionadas a modos de repre- que lutam por igualdade de direitos, como os sentação, de enunciação, a formas de interpre- trabalhadores rurais, os negros, os portadores de tação e de comunicação. Ou seja, há uma deficiência física, as mulheres, o movimento GLS imensa responsabilidade dos meios de comunica- (gays, lésbicas e simpatizantes). Além do mais, ção, particularmente da TV, [...] no que se refe- movimentos reconhecidamente políticos, iniciados re aos modos de nomear os diferentes. (p. 42) há longos anos, marcados pela contestação e que lutam por uma democracia mais justa, também Aqui se fala também sobre modos de começam agora a fazer parte da esfera televisiva. narrar, modos de mostrar e encerrar visibilida- Conforme Bucci (2004), para se adquirir status de des desses excluídos. Há que se considerar a cidadania em nosso país, torna-se necessária a forma como a televisão incorpora o discurso visibilidade através das telas da TV. Segundo o dos diferentes e o transforma – quase como se autor, a lei da era audiovisual – essa mesma em adequasse esse discurso à linguagem da televi- que vivemos – dita que tudo aquilo que não são, uma espécie de ‘domesticação’ – para ser aparece na TV não acontece de fato: “A visibili- devolvido ao público telespectador. E, muitas dade social foi ficando tão amarrada à tela da TV vezes, essa devolução acontece sob a roupa- que, para ganhar o estatuto de realidade, as coi- gem mercadológica. Um exemplo importante sas precisam aparecer na TV” (p. 228). E cita sobre a apropriação mercadológica das mino- como exemplo a divulgação do Movimento dos rias pode ser aqui apresentado: em uma nota de Trabalhadores Rurais Sem Terra na novela O rei de produção da agência publicitária enviada à gado, exibida pela Rede Globo em 1996. O mo- equipe produtora responsável pela filmagem de vimento negro – muito longe de ser composto um comercial do McDonald´s, notamos a insis- por uma minoria no Brasil – também ganha es- tência em incluir alguns ‘diferentes’ na propa- paço ao ser discutida uma gama de questões re- ganda – exigência étnica dos nossos tempos, o lacionadas à política de cotas em universidades e politicamente correto. Eis um trecho escrito do em concursos e cargos públicos. Como a televi- memorando em questão, encontrado no livro são está atenta a esses movimentos sociais e de de Isleide Fontenelle (2002): que forma procura mostrar e tratar essas mobili- zações? Como elas são transpostas para esse meio Vinhetas de realismo. [...] Não queremos jovens de veiculação? com aspecto ‘largado’ mas também não quere- Assim como não podemos deixar de re- mos jovens com cara de bebê. Eles devem pare- conhecer a legitimação de tais movimentos cer maduros, inteligentes e com personalidade.

54 Suzana F. SCHWERTNER. Análise das condições de produção de Cidade dos homens:... Não queremos ruivos com sardas ou louros de O boom da indústria cinematográfica olhos azuis. [...] Queremos mostrar o real. Por brasileira a partir do ano 2000 trouxe questões isso, temos que cobrir as exigências étnicas: referentes ao ‘Novo Cinema Novo’, inspirado no alguns negros, alguns latinos. Não é para ser movimento ocorrido a partir de 1960 no Bra- um comercial típico do McDonald´s. (p. 253) sil, o Cinema Novo, cujo maior expoente foi o cineasta Glauber Rocha. A grande novidade da O que interessa aqui é pensar tais questões recente safra de filmes brasileiros caracteriza-se no programa analisado: como estabelecer as re- pela inteira produção em território brasileiro: lações entre visibilidade da legitimidade de um da gravação à pós-produção, tudo é realizado movimento social e visibilidade da domesticação no Brasil. Apenas em 2002, trinta filmes foram desse mesmo movimento? Ou seja, é legítimo lançados nacionalmente, a maioria com enorme apresentar e conceder maneiras de tornar visível aceitação do público, entre eles os longas Ci- um movimento político e social dos nossos tem- dade de Deus (Fernando Meirelles), Madame pos, mas ao mesmo tempo questionamos a ma- Satã (Karin Aïmouz), O invasor (Beto Brant), Uma neira como essa visibilidade acontece. Stuart Hall onda no ar (Helvécio Ratton) e os documentários (2001), estudioso da cultura contemporânea, ao Edifício Master (Eduardo Coutinho), Janela da tratar sobre o pós-modernismo e as culturas de alma (João Jardim e Walter Carvalho) e Ônibus ‘margem’, destaca: 174 (José Padilha) (Avellar, 2003). Nessa nova fase de produção cinematográfica, assim como Dentro da cultura, as margens, embora conti- ocorreu no Cinema Novo, figuras representan- nuem periféricas, nunca foram um espaço tão tes da minoria são novamente colocadas em produtivo como o são hoje, o que não se dá cena: o nordestino, os moradores das periferi- simplesmente pela abertura dentro da dominan- as, os pobres e os negros, em produtos que te dos espaços que podem ser ocupados pelos de tratam, entre outras idéias, das questões da fora. É também resultado de políticas culturais (im)possibilidade de identificação nacional. da diferença, de lutas em torno da diferença, Glauber Rocha, protagonista do movimento do da produção de novas identidades e do apare- Cinema Novo, propõe que a identificação do cimento de novos sujeitos na cena política e povo brasileiro é muito mais complexa do que cultural. (p. 150) se imagina – isso na mesma época, por volta de 1960/1970, em que a televisão no Brasil Ao mesmo tempo em que o autor consi- recebia os maiores incentivos do Governo Mi- dera de extrema importância a abertura de novos litar para instituir uma aura de unificação na- espaços de contestação que o pós-modernismo cional6 . Segundo Leandro (2003), autora que proporciona, ele também critica a abertura ambí- analisa a Trilogia da Terra do cineasta Glauber gua para a diferença e para as ‘margens’, um tipo Rocha (composta pelos filmes Deus e o Diabo na de diferença que, ao fim e ao cabo, não faz di- terra do Sol, Terra em transe e Idade da terra), é ferença nenhuma, um ‘toque de etnicidade’, ‘um sabor do exótico’. No entanto, ainda assim, Hall [...] por essa via que a trilogia de Glauber vai considera que a vida cultural tem sido modifica- desestabilizar um dos mitos mais poderosos da da por esse tipo de enunciação. cultura brasileira, o de um povo unido e harmo- Podemos seguir analisando e problema- nioso, mito de dimensões exóticas para olhares tizando essas condições de visibilidade a partir estrangeiros e que esteve, historicamente, a ser- de algumas discussões acerca do cinema naci- viço dos interesses do Estado. Uma diversidade onal, desde a época do Cinema Novo até os dias atuais, por tratar exatamente sobre as ‘figuras de 6. Sugestão de leitura: artigos de Eugênio Bucci no livro Videologias, em particular “A crítica de televisão” (p. 27-42) e “Ainda sob o signo da Globo” margem’ das quais estamos tratando. (p. 220-240).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 55 desconcertante de povos brasileiros, de minorias questões que assolam o Brasil: uma delas seria singulares, de rostos anônimos captados na mul- por meio da não-cristalização de sentido sobre tidão, chega aos filmes da Trilogia como teste- as figuras minoritárias e da legitimação das munha de um longo processo de exclusão. (p. 19) conquistas de certos grupos sociais, o que abrange, sim, uma forma de estética. A outra O movimento que observamos no cine- forma seria caracterizada por uma estetização ma nacional contemporâneo traz, novamente, a ‘globalizada’ do cinema (advinda da televisão?), colocação em cena de um sujeito ‘marginal’ e que amarra completamente os sentidos, domes- seu discurso, bem como a legitimação desse ticando as manifestações e encerrando em um discurso, por mais aterrorizante que seja – como grand finale tudo aquilo que não se incluiria destaca Ivana Bentes em entrevista a Lílian nesse fim. Fontes (2003). A adaptação desse discurso ao A título de exemplificação, podemos ci- cinema – diferentemente do Cinema Novo, e tar o final do seriado Cidade dos homens do aqui reside seu ponto diferencial – aconteceu ano de 2004, que pode ser pensado a partir por meio da cultura de massa, dos “funks que desse processo de ‘estetização’. O último capí- falam do tráfico, da MTV, dos clipes do MV Bill tulo se encerra tal como um conto de fadas: o e dos Racionais MCs, dos rappers e da cultura príncipe Acerola e sua princesa Cristiane dan- hip hop, da televisão” (p. 17). No entanto, há çam vestidos a caráter – pois é o baile de aqui também uma problematização a desmembrar: debutantes da menina na quadra da escola de paralelamente à legitimação desse novo discurso – samba da Mangueira – e se beijam apaixona- que coloca em cena a minoria –, há a idéia de uma damente. A cena seria mesmo de romance, isso estética da pobreza e da marginalidade que con- se não houvesse no meio dos dois um bebê quistam lugar no mercado, que aumentam os sendo amamentado. Ou seja, há uma enorme números da audiência, que proliferam a exporta- diferença: os personagens são outros, o cená- ção de um ‘tipo’ diferente. Como destaca Bentes rio é outro, a condição social é outra – o que (2003), ao criticar aquilo que intitulou de “cosmé- poderia ‘render’ uma boa história, com suas tica da fome”, trata-se de “uma domesticação dos particularidades e singularidades específicas. temas mais radicais da cultura e do cinema brasi- Entretanto, o final tem que ser sempre o mes- leiro (e do próprio Cinema Novo) num ‘folclore’ mo, independente de todas as diferenças apre- para exportação. Miséria, sertão e favela como sentadas e bem demarcadas durante os capítu- produtos de exportação” (p. 18). los veiculados. O final precisa se adaptar a uma Podemos defender a idéia de que há linguagem televisiva, tornar-se ‘palatável’ para formas e formas de mostrar e falar daquele que a televisão, para o melodrama. raramente esteve em cena: ao mesmo tempo em Ao tratar mais especificamente a condi- que os filmes citados proclamam a denúncia, a ção dos negros no Brasil, o sociólogo Jessé apresentação daquilo que ‘vai mal’ em nosso Souza (2003) coloca uma questão atual – país (críticas ácidas à desigualdade social, ao intimamente relacionada à condição de produ- preconceito racial e sexual, à miséria), também ção do produto televisivo e objeto dessa pes- destacam tudo aquilo de sonho e fantasia que quisa – sobre o reconhecimento de quem é e faz parte também desse mesmo mundo. O de quem não é cidadão no nosso país. O tema imenso sucesso do cinema nacional é eviden- do reconhecimento, diz o autor, envolve respei- ciado pelo vasto número de espectadores nas to e auto-estima e é fundamental para a forma- salas de cinema, em todo o país (isso seria ção da identidade nacional, tanto em nível in- resultado apenas de uma estética glamorosa da dividual quanto coletivo. O autor destaca a fome e da miséria?). Talvez seja possível dizer importância de se entender que “somos forma- que há diferentes maneiras de se apresentarem dos através do reconhecimento ou da sua au-

56 Suzana F. SCHWERTNER. Análise das condições de produção de Cidade dos homens:... sência e que o reconhecimento tem uma base surgimento da favela Cidade de Deus, no Rio de cultural, comunitária e lingüística” (p. 37). A Janeiro, misturando temas como violência, trá- partir dessa idéia, Souza pontua como objetivo fico de drogas e a vida na favela. O filme rece- político a urgente atenção a minorias e às cul- beu quatro indicações ao Oscar em 2004 (nas turas minoritárias. De que forma poderia acon- categorias Diretor, Roteiro Adaptado, Edição e tecer essa proteção? Poderíamos entender Fotografia), mas não recebeu nenhuma estatueta. como uma das formas de proteção à criação e Em fevereiro de 2004, após as indicações, inicia- veiculação de programas como Cidade dos ram-se reprises nas salas de cinema de todo o país. homens ou Turma do gueto? Um dos grandes assuntos retomado pela Retomando as questões de visibilidade equipe de produção do filme nas entrevistas à na mídia, no ano de 2000, a Rede Record ini- imprensa relaciona-se com o caráter ficcional do ciou a exibição de um programa protagonizado filme: apesar de ser baseado na história do exclusivamente por atores negros em uma his- surgimento da favela Cidade de Deus, no Rio de tória de ficção: Turma do gueto foi ao ar em Janeiro, e de os atores principais serem pessoas da novembro, inaugurando um novo tipo de pro- comunidade da favela, o diretor faz questão de dução. Exibido em horário nobre, nas segun- frisar que o filme é do gênero ficcional. Até o fi- das-feiras, o programa alcançou os mais altos nal de 2003, rendeu mais de 3,5 milhões de números no IBOPE, constituindo-se num dos espectadores. E é na esteira desse sucesso que programas mais vistos naquela emissora, tanto Cidade dos homens vai ao ar: já não é mais em 2000 quanto no ano subseqüente7 . Cidade tão inovador falar e mostrar personagens ne- dos homens foi exibido na Rede Globo inicial- gros como protagonistas de um programa de mente em 2002, contudo, até a sua primeira ficção. No depoimento dos diretores, contido veiculação, houve uma série de experimentações nos extras do DVD Cidade dos homens 2002, e propostas em andamento, coordenadas pela Fernando Meirelles (2003) argumenta sobre a mesma equipe responsável pela microssérie. relação e também sobre o distanciamento en- Ao analisarmos o surgimento da micros- tre as duas produções: série, acompanhada de algumas experiências anteriores, podemos estabelecer relações de seme- Cidade dos homens é um desdobramento do fil- lhança e de vizinhança, tal como destaca Michel me Cidade de Deus. Mesmos criadores, mesma Foucault. O curta-metragem Palace II8 , exibido equipe, mesmos atores. Mas podemos dizer na série especial da Rede Globo intitulada Brava também que esse projeto é o avesso do outro: gente brasileira, foi levado ao ar em dezembro de Cidade de Deus é um drama com um toque de 2001, apresentando Acerola e Laranjinha – meni- comédia sobre traficantes no Rio, a comunidade nos negros e moradores de uma favela – como aparece apenas como pano de fundo. Cidade protagonistas. O curta foi apresentado em al- dos homens é uma comédia, com um toque de guns eventos internacionais, sendo premiado drama sobre uma comunidade do Rio de Janei- no festival de Berlim em 2002. Segundo um dos ro, os traficantes aparecem só como pano de diretores, Fernando Meirelles (o curta é dirigi- fundo. Um projeto complementa o outro (con- do por ele e por Kátia Lund), tal curta foi um forme declaração do diretor). ensaio para o longa-metragem Cidade de Deus, levado aos cinemas brasileiros em 2002 (dire- Todavia, o que pode ser considerado ino- ção de Fernando Meirelles e co-direção de vador é mostrar os jovens negros e pobres se di- Kátia Lund). Recorde de bilheterias, sucesso de vertindo em um baile funk, num sábado à noite, público no Brasil e no exterior, Cidade de Deus também foi bastante premiado e elogiado inter- 7. Informação obtida no site do programa: www.turmadogueto.com.br. 8. Direção de Fernando Meirelles e Kátia Lund, produzido pela O2 Fil- nacionalmente. O filme inovou ao narrar o mes, 15 min, São Paulo (BR).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 57 sem mostrar violência ou apelo sexual, da forma dam seus pertences e comentam: “E olha lá quem como nos apresentam os noticiários. Inovador é tá começando: branquinho, playboyzinho, tudo acompanhar os dois jovens viajando de ônibus bandido! E amanhã vai dá no jornal: quem co- para Brasília com ‘uma câmera na mão, uma idéia meçou? Favelada! É, não tem nada a vê, não, na cabeça’. Ou a diversão nas areias e nas águas de rapá, porque é preto, porque é pobre!” uma praia do Rio de Janeiro, em que os favelados Ainda assim, não se pode deixar de atentar chegam de ônibus lotado e acabam sendo alvo de para o fato de a exibição de programas como arrastão, que é iniciado pelos ‘playboys do asfal- Cidade dos homens acontecer de uma forma rare- to’. Aqui podemos lembrar o livro de Micael feita na grade da programação: uma produção Herschmann (2000), no capítulo em que o autor como a que estamos discutindo ainda possui uma realiza uma breve análise sobre os arrastões nas presença marginal na televisão brasileira, seja em praias do Rio de Janeiro. Extremamente alardea- relação à freqüência ou em relação ao horário. dos pela mídia impressa e televisiva, os arrastões Basta compararmos um programa teen como foram logo relacionados à turma do funk e do hip Malhação, citado anteriormente, e o programa hop, ou seja, ligados à juventude da periferia e da Cidade dos homens, alvo do presente estudo. favela carioca. Entretanto, quem esteve presente Enquanto o primeiro é exibido durante cinco dias nas cenas de ‘ameaça à ordem urbana’, tal como da semana, por volta das 17h30min – horário por transeuntes e até mesmo agentes de segurança excelência da programação dos jovens –, o segun- pública que serviram como testemunhas, indagou do é veiculado apenas uma vez ao ano, em horá- sobre o acontecimento, tratando-o como algo cri- rios mais tardios. Não deixamos de exaltar a impor- minal. Comenta o autor: tância da veiculação desse tipo de produto e aqui podemos destacar o avanço no aumento de capí- Assalto ou não, o fato é que as imagens exibidas tulos exibidos (de quatro episódios em 2002 a pelos jornais e TV ficaram impregnadas na memória cinco episódios nos anos de 2003 e 2004) e a urbana carioca [...]. Os ‘Cadernos Cidade’ [...] dos fixidez dos horários – que contribuem para criar o principais jornais do país passaram a dedicar espa- hábito de assistir ao programa. No entanto, tam- ços expressivos (em alguns momentos atingindo bém não podemos deixar de destacar que ainda há quase a totalidade dos cadernos) à tematização do certa precariedade nessa exibição. Apontamos, funk, surgindo em profusão, na época, matérias como Stuart Hall (2001), a respeito da visibilidade com títulos bastante sugestivos, como ‘Arrastões da cultura popular negra na mídia: aterrorizam Zona Sul’, ‘Hordas na praia’, ‘Galeras do funk criaram pânico nas praias’, ‘Pânico no Reconheço que os espaços ‘ganhos’ para a diferen- paraíso’, ‘Movimento funk leva à desesperança’, ça são poucos e dispersos, meticulosamente polici- que incrementavam o clima de terror. (p. 96) ados e regulados. [...] Eu sei que o que substitui a invisibilidade é um tipo de visibilidade segregada No episódio intitulado ‘Tem que ser ago- que é cuidadosamente regulada. Mas simplesmente ra’, o arrastão aparece sendo combinado por apelidá-la de ‘o mesmo’ não adianta. Depreciá-la garotos da classe alta, que estão revoltados com desse modo reflete meramente o modelo específico um ‘neguinho’ que ‘roubou’ a onda que era de de políticas culturais ao qual continuamos ape- um playboy – ou seja, a briga iniciou-se dentro gados, precisamente um jogo de inversão. (p. 151) do mar. Os playboys carregam consigo seus ca- chorros pitbull, que são largados em cima dos Lançamento de Cidade dos negros, e a confusão se inicia. As pessoas na homens praia começam a guardar suas coisas e fogem desesperadamente, algumas gritam que é um ar- Cidade dos homens é lançado na televi- rastão. Dois homens mais velhos, negros, guar- são inicialmente no ano de 2002, mais precisa-

58 Suzana F. SCHWERTNER. Análise das condições de produção de Cidade dos homens:... mente na semana de 15 a 18 de outubro (de Janeiro. O programa também modifica sua for- terça à sexta-feira), semana em que se come- ma de exibição: em vez de ser apresentado morava a passagem do dia das crianças (come- durante uma semana inteira, passa a ser exibi- morado em 12 de outubro). Nas chamadas do do nas noites de terças-feiras, durante cinco programa, que antecederam em uma semana a semanas. O horário de apresentação dos progra- exibição dos episódios, o locutor dizia que o mas gira em torno de 22h30min e 23h. Vale programa era “um presente para as crianças”. destacar que o dia e o horário da semana (ter- Entretanto, Cidade dos homens não era um ça-feira, 22h30min) acaba por se tornar, na- programa direcionado às crianças – era um quele ano, uma data em que os programas de programa protagonizado por crianças, o que é experimentação9 são veiculados na Rede Glo- bem diferente. Nos extras do DVD Cidade dos bo (basta lembrar que o programa Cena aber- homens (2002), um dos autores do programa, ta10 substitui a microssérie Cidade dos homens Jorge Furtado, comenta: “A gente concebeu, já na semana seguinte). Os programas de experi- pensou nela [microssérie] para ser uma série in- mentação da emissora são também desenvolvidos fantil, quer dizer, ela não é uma série para cri- pelo núcleo Guel Arraes, responsável pela direção anças, mas sobre crianças, com crianças, pra de programas como Os normais e Sexo frágil. passar na semana da criança”. Ainda, é preciso Já no ano de 2004, as histórias vividas considerar o horário de exibição da série – a por Acerola e Laranjinha voltam à cena novamen- partir das 22h30min –, que se caracteriza como te reformuladas no dia de veiculação: em vez da um horário bem posterior àquele destinado às terça, o programa é exibido em cinco sextas- programações infantis. feiras, entre os dias 24 de setembro e 22 de É importante aqui lembrar que nessa data outubro. Devido à exibição do horário político o Brasil estava em ebulição com as campanhas gratuito, a veiculação dos dois primeiros episó- políticas, pois se aproximavam as eleições pre- dios da série passa a acontecer em um horário sidenciais. Não nos esqueçamos de que a dispu- posterior às 23h; os três episódios restantes são ta apontava a liderança de Luis Inácio Lula da veiculados por volta das 22h45min. Dois pontos Silva, que vencia nas pesquisas eleitorais e con- nos chamam a atenção: primeiramente, a maci- tava com um carisma popular muito elevado. ça propaganda que envolve as chamadas do Relações de semelhança podem ser aqui destaca- programa, antecedendo em duas semanas a das: o país praticamente escolhera um líder po- exibição dos episódios; e em segundo lugar, os bre, metalúrgico, sindicalista e não-letrado, mui- ‘efeitos’ do retorno do programa nessa época do tas vezes marginalizado (inclusive pela própria ano – ou os efeitos que podem estabelecer so- emissora Rede Globo) como presidente da Repú- bre outros programas da emissora. blica. Seria essa uma das condições para a Rede O exemplo máximo pode ser conferido Globo se autorizar a colocar no ar, em horário no programa Domingão do Faustão (exibido (nem tão) nobre, uma produção ficcional com pela Rede Globo nas tardes de domingo) do dia atores marginalizados e pobres? 26 de setembro de 2004: o programa, que No ano de 2003, o retorno do programa geralmente possui em sua fórmula a apresenta- foi marcado pelo desenvolvimento das crianças ção de atrações musicais ‘da moda’ (tais como em jovens: agora, Laranjinha e Acerola cresce- Titãs, , Capital Inicial – representan- ram e passaram a freqüentar bailes funk, viaja- ram para Brasília e começaram a namorar. A 9. Denomino assim os programas realizados pelas produtoras indepen- dentes com quem a emissora de televisão mantém parceria; no caso, a 02 escola segue aparecendo como cenário em que Filmes e a Casa de Cinema de Porto Alegre. se desenvolvem as histórias, mas a partir de 10. Cena aberta, programa dirigido por Regina Casé, propunha uma fór- mula nova de programa, em que clássicos da literatura (nacional e inter- agora novos lugares ‘participam’ dos episódios, nacional) eram representados por pessoas comuns, ao lado de atores con- tal como a praia de São Conrado, no Rio de sagrados da própria emissora.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007 59 tes do pop/rock nacional), nesse dia – lembre- dos homens, procurando entender as configu- mos que é o domingo que segue à exibição do rações de uma época que parece demandar uma primeiro capítulo de Cidade dos homens da maior discussão a respeito da realidade em temporada 2004 – traz como atração musical o nosso País. A partir disso, podemos argumen- funk, incluindo o dj Malboro – que foi um dos tar que a mídia televisiva responde a uma ur- personagens principais do episódio sobre o gência do nosso tempo ao construir uma tra- baile funk no ano de 2003 em Cidade dos ma de visibilidades e de enunciabilidades sobre homens – e a dupla carioca Cidinho e Doca. A jovens negros e pobres, moradores da periferia. dupla cantou uma música bastante disseminada Aqui também o discurso televisivo é definido nos últimos dez anos, a qual fez sucesso também pelo paradoxo de, paralelamente, oportunizar a na voz da apresentadora – que também visibilidade de certos movimentos sociais e aparece no programa, dançando e cantando ao também de domesticá-los e talvez até mesmo lado do sambista Jorge Aragão e de atores do implodir a manifestação de qualquer germe elenco de Malhação e Senhora do destino11 . Diz revolucionário, característico de um movimen- o estribilho da música (Rap da Felicidade): to político e social. Eis um esboço para se pensar nas condi- Eu só quero é ser feliz ções de emergência de um produto televisivo Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci como Cidade dos homens. Tentamos estabelecer, E poder me orgulhar como destacou Foucault (2002), um “domínio E ter a consciência que o pobre tem seu lugar de parentesco com outros objetos”, relações de (Mc Cidinho e Mc Doca) semelhança, de diferença, de transformação, para que se pudesse dizer algo sobre o programa: eis O que interessa aqui não é o conteúdo da as “condições positivas de um feixe complexo de música, não também a interrogação da presença relações”. Talvez essa seja uma das maneiras de se de Xuxa no programa nem a mélange de convi- pesquisar a mídia no campo educacional: atentar dados dançando timidamente o funk no palco do para todas as relações possíveis coexistentes ao Faustão. Interessa, sim, questionar a presença de produto midiático e, a partir dessas relações, esta- um ritmo mais ‘marginal’ como o funk, ao se apre- belecer um – ou mais – pontos de análise. Essa sentar em uma tarde de ‘domingão’ na televisão proposta considera a importância de um trabalho brasileira. Acredito que a veiculação do programa que priorize a posição interrogativa do pesquisa- Cidade dos homens, que de alguma forma já dor (seja ele pedagogo, psicólogo, comunicador garantiu o seu espaço – ainda que parco e ínfimo etc.) que se proponha a priorizar a experiência da diante de outros programas da emissora –, tem mídia, a falar ‘de dentro’ das imagens, analisar a lin- muito a ver com essa ‘permissão’ global. Nova- guagem e os efeitos de sentido ali produzidos. So- mente recairíamos na questão: seria essa uma for- mente assim seremos capazes de realizar um ma legítima ou domesticada de manifestação? estudo comprometidamente ético e político que Talvez possamos pensar na coexistência desses dois momentos, talvez possamos aceitar que, ao problematize nossos modos de ver hoje, ar- mesmo tempo em que a presença de programas ticulando um mergulho nas imagens da como Cidade dos homens na televisão legitima o mídia, nos discursos que ela faz circular e discurso de um movimento social, também acaba nos modos de subjetivação que eles inci- por enquadrar qualquer espécie de manifestação tam. (Fischer, 2002, p. 91) desse mesmo movimento. O percurso principal desse trabalho foi atravessado pela análise das condições de 11. Dois programas da Rede Globo: o primeiro já foi citado no trabalho; o emergência do programa de televisão Cidade segundo foi a do horário nobre veiculada em 2004/2005.

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Recebido em 17.01.06 Aprovado em 22.05.06

Suzana Feldens Schwertner é psicóloga, mestre em Educação (PPGEDU/UFRGS), membro do NEMES (Núcleo de Estudos sobre Mídia, Educação e Subjetividade, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS) e membro do corpo clínico do GAEPSI (Grupo de Atendimento e Estudos em Psicoterapia).

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