A MOCINHA EM CADEIRA DE RODAS: MULHER, CORPO, SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA: UM OLHAR SOBRE A TRAJETÓRIA DA PERSONAGEM LUCIANA DA

Melina de la Barrera Ayres 1 Carmen Silvia Rial 2 Adriano Henrique Nuernberg 3

Resumo : Quando se pensa em uma mocinha de novela certamente se imagina uma mulher fisicamente linda, com corpo esguio, que luta pelo amor, pela família, pela liberdade, etc. Dificilmente se pensa em uma mulher sentada em uma cadeira de rodas, que deseja prosseguir sua vida depois de um acidente, ser modelo, ser mãe, sendo uma pessoa com deficiência. Esta personagem é Luciana, da telenovela Viver a Vida (Rede Globo, 2009), que num primeiro momento tinha um papel secundário na trama de M. Carlos, mas logo deixou a protagonista Helena, em um segundo plano no relato. Uma análise da trajetória de Luciana permite refletir sobre as mudanças (ou não) nas representações do corpo feminino, do papel da mulher na sociedade, da sexualidade e maternidade de pessoas com deficiência; assim como na relação entre essas representações e o nosso contexto social. A partir do olhar dos estudos de gênero e de uma análise de cenas da novela, o que essa “nova mocinha” tem a nos dizer? Esta é uma das análises realizadas na Tese “Entre a telenovela e a realidade: um estudo sobre abordagem da deficiência em Viver a Vida” que está sendo desenvolvida no DICH–UFSC, com o objetivo de discutir a relação entre a abordagem proposta pela telenovela e os significados dados à deficiência no Brasil. Palavras-chave : Gênero. Telenovela. Representação. Corpo. Deficiência.

Telenovela e realidade

As são um dos programas de maior audiência no Brasil 4e, embora sejam produtos ficcionais, muitas vezes incluem em suas tramas discussões que estão presentes na sociedade no momento em que estão sendo veiculadas. Nesse sentido, a ficção e o contexto social estão em constate diálogo. Estas ficções transmitem uma quantidade de mensagens sobre atitudes e valores chegando, inclusive, a promover mudanças na forma de pensar e de agir dos/as telespectadores/as (AYRES, 2009a, 2009b); como afirma Almeida “[...] as novelas promovem um processo de reflexão e revisão

1Doutoranda Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), Mestre em Jornalismo (UFSC-2009), Bacharel em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo (Universidade Católica do Uruguai – 2006). 2Doutora em Antropologia Universidade de Paris V, professora do Departamento de Antropologia, atuando nos PPG’s em Antropologia Social e Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora 1C do Cnpq. 3 Doutor Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), professor do Departamento de Psicologia, atuando na Graduação e Pós-graduação (UFSC). 4 Apesar de que nos últimos anos vem sofrendo uma queda de audiência, a telenovela é um dos principais produtos midiáticos brasileiros, sendo um dos poucos exportados para outros países (MATTOS, 2010).

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das representações” (2003, p. 41). Esta característica das telenovelas é ampliada por outra, estas ficções geram um vínculo de identificação muito forte com os seus/suas telespectadores/as que se reconhecem facilmente nas penúrias dos protagonistas (MAZZIOTTI In: ANDALÓ, 2003, s.p.) As representações são entendidas aqui como: [...] o lugar das imagens que definem sua posição social e as relações que o conjunto de atores sociais estabelecem com um grupo. Estas representações são compostas de um núcleo central estável, permanente na apreensão das realidades que compõe o objeto da representação. Elas são também compostas por um anel periférico, maleável e plástico, que constitui o lugar das mudanças possíveis no âmbito das representações sociais (MERCIER, 2002, p. 341).

A análise que realizaremos se refere, portanto, a esse anel periférico, onde as mudanças são geradas. Neste caso a análise será realizada a partir da telenovela Viver a vida , de Manoel Carlos, autor que define sua escrita como realista. Viver a vida dialoga com um contexto social específico, o Brasil de 2009, momento em que entrou em vigor a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência 5, que garante os direitos básicos em equiparação de oportunidade aos serviços de saúde, reabilitação, educação, profissionalização, esporte, cultura e lazer. As telenovelas de Manoel Carlos se caracterizam, por incluir temáticas reais e atuais, com uma visão diferenciada sobre a mulher: ela sempre aparece como o centro das ações, ela é a que desafia, que luta, que gera mudanças. A centralidade da mulher remarcada por Manoel Carlos em suas telenovelas pode evidenciar uma nova forma de ver o lugar da mulher no mundo de hoje. Nesta perspectiva, Astrid Nilsson afirma que “[...] as sociedades estão em constante, e cada vez mais rápido, processo de mudança, sendo que nesse contexto geral insere-se a sociedade brasileira e, em particular, as mudanças na representação da mulher na mídia [...]” (In: BORNÉO FUNCK; WIDHOLZER, 2005, p. 150). Deste modo, quando se pensa em uma mocinha de novela certamente se imagina uma mulher fisicamente linda, com corpo esguio, que luta pelo amor, pela família, pela liberdade, etc. Dificilmente se pensa em uma mulher sentada em uma cadeira de rodas, que deseja prosseguir sua vida depois de um acidente, ser modelo, ser mãe, sendo uma pessoa com deficiência. Esta mudança foi apresentada em Viver a Vida (Rede Globo, 2009), através da história da personagem Luciana (Alinne Morais). A trajetória de Luciana será o nosso objeto de análise, buscando responder a pergunta: o que essa “nova mocinha” tem a nos dizer? A telenovela se inicia tendo como centro da história do mundo das supermodelos Helena (Thais Araújo) e Luciana, porém, esta abordagem muda a partir do momento em que Helena

5 Esta Convenção foi ratificada pelo Congresso Nacional em julho de 2008 e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro como emenda constitucional por meio do decreto nº 186/2008.

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conhece Marcos, pai de Luciana. Luciana, grande rival de Helena nas passarelas decide unir-se a sua mãe, Teresa (Lilia Cabral) para lutar contra esse romance, até que sofre um acidente de trânsito e fica tetraplégica. A partir desse momento o centro da trama se altera: os desafios vividos por Luciana, para recuperar-se e viver a vida passam a ser o foco da história.

Deficiência, gênero e telenovela

Há diversas formas de compreender a deficiência, a que prevaleceu durante muito tempo foi a proposta pelo modelo biomédico, formalizado em 1980 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) através da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID). Esta classificação relacionava a deficiência a perdas, anormalidades permanentes ou transitórias, restrições ou impedimento da realização de atividades, limitações ou impedimento no cumprimento de funções consideradas “comuns” de acordo a idades, sexos e fatores socioculturais. Essa concepção fortalece a lógica da deficiência como "tragédia pessoal" e como experiência restrita a uma minoria invisível e segregada (DINIZ, 2007). Opondo-se a esta concepção, o modelo social da deficiência (que surge na década de 70 no Reino Unido) e o seu campo de estudos, os Disability Studies , compreendem a deficiência como uma construção social e não como uma desigualdade natural, derivada de uma restrição funcional ou habilidade. O ponto de partida desta concepção está na distinção entre lesão e deficiência. Conforme Oliver “[...] lesão e deficiência não são a mesma coisa; lesão é causada por uma doença e deficiência é causada por organização social” (2009, p.44, tradução nossa). De modo que o problema não está nas limitações individuais e sim nas barreiras sociais (PALACIOS, 2008). O modelo social desloca a compreensão da deficiência do corpo lesado para o contexto, e a deficiência deixa de ser compreendida como uma “tragédia pessoal” para ser entendida com um “estilo de vida” (OLIVER, 2009). Entretanto, vale destacar que “afirmar que deficiência é um estilo de vida não significa igualá-la em termos políticos a outros estilos de vida disponíveis. Há algo de particular no modo de vida da deficiência, que é o corpo com lesão [...] É por meio do corpo que se reclama o direito de estar no mundo” (DINIZ, 2007, p. 73). O modelo social como os estudos de gênero questionam a percepção do corpo como um dado natural que antecede a construção dos sujeitos. Como afirma Ortega, “a dicotomia “lesão/deficiência” (impairment/disability) é construída de maneira análoga à dicotomia

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“sexo/gênero”, sendo o primeiro um atributo biológico e o segundo, uma construção social” (ORTEGA, 2009, p. 68). Nesta perspectiva, de acordo com Héritiér (1996), as relações humanas se apoiam, sobre um sistema ideológico baseado na igualdade e na diferença. Masculino e feminino, alto e baixo, são algumas “categorias de oposição” sendo que cada categoria determina também um “valor” aos integrantes da oposição. Assim, na oposição homem/mulher, a mulher ganha universalmente um status secundário nas sociedades e esta não é uma constatação ou uma realidade biológica, mas uma categoria construída, “[...] o sexo anatômico ou fisiológico é algo natural, mas de sua observação surgem noções abstratas apoiadas no protótipo igual/diferente, sobre o quais se apoiam todas as outras oposições conceptuais das quais nos servimos nos nossos discursos [...]” (HÉRITIÉR, 1996, p. 26, tradução nossa). A partir desta noção de valência as mulheres são compreendidas com um “menor valor” que os homens, e as pessoas com deficiência são entendidas com um “menor valor” em relação as não deficiente. Esse valor é determinado inicialmente, pela diferença biológica, mas logo construído através dos discursos sociais. Entre estes discursos sociais está o discurso da mídia que, de acordo com Oliver, continua estruturado no principio “[...] do‘triunfo sobre a tragédia’” (2009, p. 23, tradução da autora), as “[...] pessoas com deficiência são constantemente estereotipadas como vítimas heróis ou vilões amargurados” (Ibidem) e este discurso dialoga com a visão geral que a sociedade tem sobre a deficiência. O discurso das telenovelas é parte integrante do discurso da mídia e, no que diz respeito especificamente às telenovelas brasileiras, a abordagem da deficiência está presente desde 1965. Silveira (2012) realizou uma pesquisa sobre o tratamento da temática nas telenovelas da Rede Globo de 1965 até 2009. No seu levantamento foram consideradas as pessoas com deficiência física permanente ou que passaram a maior parte da história com a deficiência. No período de 44 anos, foram veiculadas pela Globo, nos três horários de sua programação destinados a telenovelas inéditas (18h, 19h e 21h), um total de 16 6 ficções que abordaram a pessoa com deficiência. Dentre elas, sete abordaram a deficiência física - sendo a paraplegia o impedimento mais frequente-, dentre as quais quatro eram protagonizadas por mulheres.

6 Rosinha do Sobrado (1965), Te Contei? (1978), Sol de Verão (1982), Fera Radical (1988), Sexo dos Anjos (1989), Meu Bem Meu Mal (1990), (1991), História de Amor (1995), Vira Lata (1996), Torre de Babel (1998), Esplendor (2000), Laços de Família (2000), (2002), América (2005), Caras e Bocas (2009), (2009).

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Conforme a Silveira (2012), a perspectiva através da qual a deficiência foi abordada permite categorizar os personagens como vítima, vencedor ou vilão. Quando o personagem deficiente é o vilão, a deficiência é apresentada como um “castigo” por suas maldades. Os personagens com deficiência apresentados como vítimas são aqueles de precisam “ser salvos” (SILVEIRA, 2012, p. 56). Já os vencedores são os que representam o “bom deficiente”, “[...] são dotados apenas de bons sentimentos, ajudam a todos e fizeram de suas deficiências uma vantagem e um motivo a mais para lutar para vencer e ser feliz” (Ibidem). No que diz respeito às telenovelas de Manoel Carlos, antes de Viver a vida , o autor já havia abordado a deficiência física: em Felicidade (1991), a vilã Débora fica paraplégica “como castigo” por suas maldades e em História de amor (1995), o esportista Assunção, fica paraplégico após um acidente de carro. Tais personagens tendiam a reforçar a concepção biomédica da deficiência, uma vez que relacionavam a experiência da deficiência à tragédia e à mítica da expiação da culpa. O levantamento realizado por Silveira (2012) permite verificar nas telenovelas brasileiras, aquilo Oliver (2009) já afirmava sobre a mídia em geral: apesar de que em alguns casos a abordagem busque positivar a deficiência e mostrar superação, na maioria dos casos ela está associada a um castigo para o vilão ou a uma vítima digna de cuidado e compaixão.

Metodologia

Para analisar a trajetória de Luciana em Viver a vida , será aplicada a etnografia de tela, ou seja, a observação em diálogo com a leitura antropológica e cinematografia. Como destaca Rial (2004), o estudo da mídia na antropologia é recente. A etnografia de tela, no dizer desta autora, [...] apresenta a capacidade de revelar os "espaços sociais" da televisão, a etnografia (de tela ou de audiência) sendo assumida aqui como uma prática de trabalho de campo, fundada em uma prática de coleta e análise de dados extensa e longa, que permite aos pesquisadores atingirem um grau elevado de compreensão do grupo social ou do texto estudado, mantendo uma reflexividade (RIAL, 2004, p.25).

A análise será guiada pelo conceito de trajetória de Gilberto Velho, e as noções de projeto, campo de possibilidades e metamorfose, aplicadas pelo autor para discutir a trajetória. De acordo com Velho, As trajetórias dos indivíduos ganham consistência a partir do delineamento mais ou menos elaborado de projetos com objetivos específicos. A viabilidade de suas realizações vai depender do jogo e interação com outros projetos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidades (1994, p.47, grifos do autor).

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Deste modo, a história de Luciana, será entendida como uma trajetória que transforma seu(s) projeto(s) 7 e campos de possibilidades 8 ao ‘tornar-se’ uma pessoa com deficiência física. A partir desta perspectiva e a ótica do modelo social, a representação da mulher com deficiência será analisada partindo da noção de metamorfose (VELHO, 1999), da possibilidade de mudança, de reconstrução.

A trajetória de Luciana

Para a análise foram selecionadas quatro cenas da telenovela, escolhidas partindo da distinção que se faz na trama de quatro momentos da vida da personagem: a vida de top-model, o ‘choque’ inicial ao ‘descobrir-se’ deficiente, a aceitação da deficiência, e a reconstrução de sua vida a partir da nova condição. Além das cenas foram utilizadas na análise as anotações realizadas no diário de campo no momento em que a telenovela estava sendo veiculada. No primeiro capítulo da novela, Luciana é apresentada dentro do núcleo central, junto a Helena, a protagonista. Ambas são modelos jovens e famosas. É neste contexto que se desenvolve a cena em que elas se encontram nas ruas de Búzios, antes de um desfile 9. No fala de Lucina fica clara a forma como ela vê a si mesma, como ela se projeta frente aos demais. Luciana (L) – [...] to lá encima no topo fazendo sucesso, super jovem e você me pergunta se eu parei [de desfilar]. Fofoca de jornal. [...] Você está sabendo que essa cara, essa cara que Deus me deu está entre as 20 mais fotografadas do Brasil, só no ano passado, Helena? Entre as 20! Eu não vi seu nome na lista! Sei lá, devo ter passado rápido, não devo ter nem reparado.

Analisando esta fala a partir do conceito de trajetória e projeto (VELHO, 1994), evidencia- se que Luciana não só se vê como uma mulher linda fisicamente e jovem, mas vê o sucesso em seu presente, passado e futuro. Ela relaciona o seu êxito e a impossibilidade de deixar de trabalhar ao fato de ser jovem. Ou seja, está clara a ideia de que uma modelo somente deixa de trabalhar quando não é mais jovem, não haveria outra possibilidade para este projeto. Os valores que ela destaca de si mesma estão relacionados ao seu físico, sua imagem, sua beleza. O fato de que ela cite a Deus não é casual, pois seria ele o ‘responsável’ pelo seu sucesso, e certamente seria ele quem garantiria o seu êxito no futuro. A autoconfiança, o amor próprio, e inveja com relação à Helena, são claros neste

7 O projeto, “[...] é o instrumento básico de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou coletivos [...] é resultado de uma deliberação consciente a partir das circunstâncias, do campo de possibilidades em que está inserido o sujeito” (VELHO, 1994, p. 103, grifos do autor). 8 O campo de possibilidades está “[...] circunscrito histórica e culturalmente, tanto em termos da própria noção de individuo, como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes” (VELHO, 1999, p. 27, grifos do autor). 9 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=PMJYVXF7KRg . Acesso em: maio 2013.

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momento. Esta inveja da trajetória de Helena, uma modelo um pouco mais velha e experiente, apresenta a personagem com um perfil de vilã. A trajetória de Luciana muda um mês e meio depois do inicio da novela. Ela sofre um acidente de trânsito em sua primeira viagem internacional como modelo. Luciana e Helena viajam a Petra para um desfile. Estando lá elas brigam, e Helena não permite que Luciana retorne ao aeroporto, rumo ao Brasil, no mesmo carro que ela. Assim, Luciana viaja em um ônibus junto com as demais modelos. No trajeto, o ônibus se envolve em um acidente e Luciana fica tetraplégica. Ela somente receberá a notícia de sua nova condição ao chegar ao Brasil, alguns dias depois. Estando no hospital, acompanhada por sua família e sob os cuidados de seu cunhado e médico, Miguel, ela recebe a notícia 10 . Na cena, Lucina aparece deitada em uma cama de hospital, seu corpo está paralisado. Entram ao quarto seus pais, Marcos e Tereza, Miguel e o Dr. Moreti. A cena começa buscando a ‘descontração’. Luciana ri do fato de que Miguel seja apresentado como médico, mas o clima muda quando o Dr. Moreti começa a falar: Dr. – Bem Luciana, nós já estamos com os resultados dos exames. Você sofreu uma fratura entre as vértebras C6 e C7, que ficam no pescoço [...] É por isso minha querida, essa impossibilidade de se mover. L- Não vou andar? É isso? Tô alejada? É isso que você quer me dizer? É isso? Pode falar!

Até este momento a cena ocorreu sem o acompanhamento de música e os planos intercalam a imagem dos médicos e de Luciana. Dr. – É minha querida. É isso! Nesse momento você está tetraplégica. E a tetraplegia consiste em que a pessoa não pode mover os braços e as pernas.

A partir deste momento a cena é acompanhada por um fundo musical triste. Os planos agora intercalam a imagem de Luciana e de seus pais. Há um breve silêncio, marcado a tensão do momento. A câmera se aproxima ao rosto da personagem, com um primeiríssimo primeiro plano, a música é retirada, Luciana grita.

L – Nããããããããão! Não! Não! Meu Deus! Meu Deus do céu! Por quê? Por que comigo? O que que eu fiz? Não acredito nisso! Isso não é verdade! Isso não é verdade! Isso não é verdade! Maldita Helena! Maldita Helena! Não era para eu estar dentro daquele ônibus! Meu Deus do céu! Ai! Ai! Essa história não é minha! Essa história não é minha! Esse destino não é meu! Tereza (T) – Minha filha. Minha filha, você está viva! Isso é mais que tudo! L- Meu Deus eu preferia ter morrido! [silêncio] De que adianta? De que adianta essa vida agora? Me diz de que adianta? Pra vocês é muito fácil, mas e eu? E eu? Como é que vai ser? Eu não vou mais andar? Eu não vou mais andar mãe? É isso? Dr – Luciana, por favor. Tenta se acalmar. Nós vamos precisar fazer uma cirurgia com urgência ainda hoje. L – Que cirurgia? Pra que cirurgia? Pra que?

10 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8xbhzqOIDTk . Acesso em: maio 2013.

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Dr – A operação é a única chance de tratar reverter esse quadro, um dia, talvez. Eu vou te explicar como funciona [...]

Luciana escuta atenta e confusa. Acompanhando a voz do Dr. se intercalam imagens do rosto de Luciana, de seus pais e de Miguel. L – Me deixem sozinha. Miguel (M) – Lu, quanto antes você fizer essa operação é melhor para você! L- Saaaaaaaaaaai! Saiam daqui! Saiam daqui! Saiam daqui! Me deixem sozinha!

A cena termina com enfermeiros levando a cama de Luciana por um corredor. Ao fundo, os pais de Luciana observam, inconformados. Lágrimas escorrem de seus olhos. Luciana chora e grita: L – Mãããe! Mãe você jurou! Mãe você prometeu! Mãe você prometeu que ia ficar boa, mãe!

Esta cena revela o momento no qual o projeto de Luciana se rompe. A partir daqui começa a transformação, a metamorfose (VELHO, 1999). Ao escutar o parecer médico, num primeiro momento Luciana se choca. Evidencia-se o modo como ela entende a deficiência “Tô alejada?”, visão que responde ao modelo biomédico, que associa à deficiência a lesão. Num segundo momento ela se revolta e cita Deus, e o questiona: “Porque comigo?”. Busca uma razão para o ocorrido, ligando a deficiência a um castigo por alguma atitude “O que foi que eu fiz?”. Esta perspectiva da deficiência responde a construção histórica de seu conceito que remonta as sociedades primitivas, reconhece-se nas sociedades grega e romana, nos pensamentos de Platão, no paradigma judeu- cristão, e no ideário do liberalismo, que se estende desde o século XVI até os dias de hoje (BIANCHETTI, 1995). Neste momento o projeto anterior, da Luciana super-modelo, se rompe, e segue a incerteza do que virá: “Como é que vai ser?”, pergunta. A cena está filmada a partir de dois olhares: o de Lucina, que está deitada na cama olhando para seus pais e médicos; e o dos pais e médicos, que estão de pé ao seu lado. A imagem de Luciana é registrada a través de um plano vertical plangê 11 . A imagem dos médicos e dos pais é registrada a partir de um plano vertical contra plongê 12 , Desta forma, os planos remarcam a vulnerabilidade da personagem, que é observada de cima. A fala da personagem, os silêncios, a música presente por um breve instante, a forma como os planos são construídos (muitos clouse-up ) e intercalados (vai dos médicos a ela, dela aos pais) e o modo como são posicionadas as câmeras para o registro da cena, contribuem para o entendimento

11 No plano vertical plangê ou picado a câmara está posicionada acima do seu objeto, que é visto, desde ângulo superior (BERNARDET, 1980). 12 No plano vertical contra plongê a câmara está posicionada abaixo do objeto o que faz com que o espectador veja a cena de baixo para cima (BERNARDET, 1980).

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da vulnerabilidade da personagem nesse momento. Essa sensação certamente é transmitida e sentida pelo público. Hoje Luciana recebeu o diagnóstico. A cena não durou nem cinco minutos, mas me deixou paralisada. A atuação da Aline Moraes, os planos muito próximos ao seu rosto, suas expressões, me transportaram para a cena. Eu nunca tinha pensado como seria receber uma notícia assim. [...] Ficou clara a intenção de passar informações sobre esta deficiência e explicar ao público como se procede. (DIARIO DE CAMPO, 5 de novembro de 2009).

Tempo depois da operação Luciana retorna a sua casa. Neste momento são contratados diversos profissionais para ajudá-la na recuperação. Entre eles, enfermeiras, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. Há diversas cenas que podem representar o período inicial de aceitação da deficiência. Para esta análise escolheu-se o momento em que Luciana 13 , buscando aceitar sua nova condição, aprende a utilizar extensões em seus punhos, permitindo-lhe realizar tarefas como comer, escovar os dentes, pentear-se. A cena ocorre na sala de jantar de sua casa. Luciana(L) está acompanhada pela Terapeuta Ocupacional (TO), sua mãe Tereza (T) e sua irmã Mia (M). TO – Lembra daquele movimento que você trabalhou com a Larissa, de levar o punho até a boca? É exatamente isso o que a gente vai fazer agora, tá? [...] Tenta levar um pedacinho de banana até a boca. L – [Faz esforço com o braço direito] TO – Isso! Isso ai Lu! L – Ai que saco! Gente, tô me sentido ridícula desse jeito. T – Que ridícula o que Luciana?! [...] M- Tô achando o máximo essas suas adaptações, vi Lu. Nossa! Eu nem fazia ideia de que existia isso! Vai ser para ajudar a sua vida, viu? Vai! L – Eu vou precisar sempre desse treco aqui na minha mão, para pegar as coisas, para comer? TO- Não, não. Você está trabalhando a extensão de seu punho. Mas com o tempo você vai conseguir pegar o talher sem nenhuma adaptação. O que acontece é que eu não posso esperar que você conquiste o movimento para começar o treino.[...] L- AAA! Treino! É ótimo! Eu pareço o que? Um animalzinho de estimação? É engraçado mesmo! [...] TO – Essa adaptação é só para te facilitar na atividade. Até a sua musculatura ficar mais forte. É isso o que vamos trabalhar aqui, na terapia ocupacional. L- Sei... TO – São suas atividades diárias. Entendeu Lu? É a hora do banho, a hora de escovar o dente, a alimentação. L- Aprender tudo, como uma criança. Comer, como uma criança. Vamos lá!.

A cena, em alguns momentos apela à comicidade, buscando gerar descontração. Na fala evidencia-se que a pesar de que Luciana procura aceitar sua nova condição física, por momentos se sente ridícula e infantil, chegando a comparar-se com uma criança ou um animal de estimação, que precisam de treino. A cena possui claramente um objetivo didático: se apresentam as extensões, se explica para que servem, se fala sobre a função da terapia ocupacional. Também se evidencia o

13 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=oiVulBmZHtc . Acesso em junho 2013.

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esforço e a disposição necessária para a melhoria. Esta cena representa o momento da metamorfose de Luciana, as mudanças começam a ser aceitas e a transformação se inicia. Em conversa com Flávia Cintra, a jornalista que assessorou o autor e a atriz para a construção da personagem, questionou-se sobre a inclusão destas informações e o fato de que Luciana tinha todo tipo de aparelho e profissional a sua disposição, facilitando sua melhoria. Flávia me contou que a inclusão de todos os equipamentos foi pensada. Então eu disse: “mas Luciana tem absolutamente tudo! Adaptações, carro adaptado, sala de fisioterapia em casa. Poucas pessoas no mundo podem ter tudo isso!”. Sua resposta foi: “É por essa razão que a família de Luciana é tão rica, senão ela não poderia ter tudo. Ser uma pessoa com deficiência física é muito caro!. A nossa intenção foi mostrar tudo o que há a disposição porque muita gente não sabe que essas possibilidades existem. O serviço de atendimento ao consumidor da Globo recebeu, durante a novela, milhares de consultas sobre os produtos que Luciana usava”. (DIARIO DE CAMPO, 30 de março de 2012).

Entre o momento do acidente e a efetiva aceitação da nova condição transcorre um longo tempo, que na trama corresponde a mais de sete meses. Nesse período Luciana se enfrenta as novas características de seu corpo, luta por um novo amor, redescobre sua sexualidade, se casa, e deseja ter filhos, etc. No último capítulo da novela, Luciana dá a luz a gêmeos e decide voltar a trabalhar como modelo. Na última cena 14 de Viver a Vida Luciana desfila junto a Helena e outras modelos. Ela aparece linda desfilando em sua cadeira de rodas sob o olhar de seu marido, seus pais e irmãs sentados na plateia. Não há diálogos, as imagens estão acompanhadas pela música do desfile. Esta cena marca ‘o fim’ da transformação, mostrando a possibilidade de superação e aceitação da nova condição. Luciana e Helena terminam a novela juntas na passarela, cada uma em sua condição, com sua trajetória. Este desfile traz a tona uma nova situação, pessoas com deficiências interagindo, compartilhando e trabalhando junto a pessoas sem deficiência. Instaura-se, assim, outro ideário em torno da deficiência que foca a pessoa, suas possibilidades e singularidades, o que aponta para concepções distintas ao modelo biomédico.

O que essa “nova mocinha” tem a nos dizer?

Este artigo teve como objetivo analisar a trajetória da personagem Luciana buscando refletir sobre as mudanças (ou não) nas representações do corpo feminino, do papel da mulher na sociedade, da sexualidade e maternidade das pessoas com deficiência. Para tanto, escolheram-se quatro cenas representativas da trajetória da personagem e de sua metamorfose. Certamente estas cenas não são suficientes para ser ter uma noção de um todo (o que são quatro cenas em uma telenovela que dura 9 meses?). Este trabalho é uma pequena mostra da análise que está sendo

14 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=wsJGiaIkh1g Acesso em: junho 2013.

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realizada para a Tese de Doutorado “Entre a telenovela e a realidade: um estudo sobre abordagem da deficiência em Viver a Vida” que está sendo desenvolvida no DICH–UFSC. Entretanto, as cenas discutidas aqui permitem verificar que o modo como a mulher está sendo representada na telenovela vem sofrendo algumas mudanças. Luciana é uma mulher linda, tão linda como outras protagonistas, porém, é a primeira protagonista que, uma vez que sofre um acidente não se recupera completamente. Luciana não levantou da cadeira e saiu andando, ela teve que se adaptar a nova condição. Em Viver a Vida a deficiência não foi apresentada como uma “punição”, e sim como um desafio que deve ser aceito e, dentro de certos limites, superado. Nessa adaptação sofreu como toda mocinha sofre. Lutou pelo amor, como toda mocinha luta, e buscou aceitar sua nova condição. Para isto, teve ao seu alcance todo tipo de equipamento, tecnologia e profissional a sua disposição. Esta situação certamente distancia a vida da personagem da vida da maioria das pessoas com deficiência física. Poucas pessoas no mudo teriam a possibilidade e o acesso a todos esses instrumentos. Retomando o conceito de valência (HÈRITIER, 1996), pode afirmar-se que a abordagem da telenovela mostrou a pessoa com deficiência como ‘vulnerável’ em algumas situações, porém, nas cenas analisadas não ouve nenhuma situação em que a personagem fosse colocada em um nível de ‘inferioridade” em relação as pessoas sem deficiência. Finalmente é preciso fazer dois esclarecimentos importantes: primeiro, o fato de que deficiência seja abordada pela mídia e que sua representação tenha sido positivamente modificada ao longo do tempo, contribui para que seu entendimento se amplie no contexto social. Em segundo lugar, a pesar de que a representação proposta por Viver a vida pode ser avaliada de maneira positiva, em nenhum momento pode perder-se de vista que uma telenovela é um produto comercial, que visa lucro. Suas abordagens não são inocentes ou despretensiosas, porém, textos como o desta telenovela mostram que as representações da mídia são fragmentada e não unívocas em seu sentido, e podem sim balançar ao sabor dos movimentos sociais, como parece ter sido o caso aqui.

Referências

ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero : “muitas mais coisas”. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003. ANDALÓ, Paula. Lágrimas, amores, traiciones y mensajes de salud. Revista Perspectivas de Salud : La revista de la Organización Panamericana de la Salud. v. 8, n. 1, 2003. Disponível em: http://www.paho.org/Spanish/DD/PIN/Numero17_articulo2_5.htm Acesso: 20 out. 2009.

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The heroine in wheelchair: woman, body, sexuality and disability. An analysis of the trajectory of the character Luciana of Viver a Vida Abstract : When we think of a soap opera heroin, we imagine certainly a woman physically beautiful, with slim figure, fighting for love, for family, for liberty, etc.

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Probably we don´t think of a woman sitting in a wheelchair, who wants to continue his life after an accident, being a model, being a mother, being a person with disability. This character is Luciana of Viver a Vida (Rede Globo, 2009). At first she had a minor role in the soap opera written by M. Carlos, but then she left the protagonist Helena in the background of the history. An analysis of the trajectory of Luciana lets think of the changes (or not) in the representations of the female body, the role of women in society, sexuality and parenthood of persons with disabilities, as well as the relations between these representations and our social context. Applying the gender studies and an analysis of some scenes of the soap opera (dialogues, images and sounds), what this "new heroin" has to say? This is one of the analyzes of the thesis "Entre a telenovela e a realidade: um estudo sobre abordagem da deficiência em Viver a Vida " which is being developed in Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas - UFSC, in order to discuss the relations between the soap opera approach and the meanings given to handicap in . Keywords : Gender. Soap opera. Representation. Body. Handicap.

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