Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquista Filho’ - UNESP Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – FAAC Departamento de Comunicação Social

Missão e profissão: Caminhos da crítica jornalística

Mauro de Souza Ventura

Tese de Livre-Docência apresentada à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’ (FAAC/UNESP), como parte dos requisitos para obtenção do título de Livre-Docente em Jornalismo

Bauru, outubro de 2017

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Ventura, Mauro de Souza. Missão e profissão: caminhos da crítica jornalística / Mauro de Souza Ventura, 2018 152 f.: il.

Tese (Livre-Docência). Universidade Estadual

Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru,SP, 2018.

1. Crítica jornalística. 2. Crítica literária. 3. Imprensa e sociedade. 4. Jornalismo político.

5. Otto Maria Carpeaux. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título.

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Missão e profissão: caminhos da crítica jornalística

Mauro de Souza Ventura

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Em memória de Rejane Bernal Ventura (1963-2015), que presenciou o nascimento desta pesquisa e acreditou no sonho do intelecto.

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Agradecimentos Este trabalho não teria sido possível sem a colaboração e o apoio de algumas pessoas e instituições, a quem deixo meu agradecimento. Em primeiro lugar, ao Departamento de Comunicação Social e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAAC/UNESP, aos quais as pesquisas tópicas que resultaram neste texto sempre estiveram vinculadas.

A Parte II desta tese é fruto de duas viagens de pesquisa, de natureza bibliográfico-documental, que tive a satisfação de realizar. A primeira ocorreu nos meses de novembro e dezembro de 2011, e aqui agradeço ao professor Thomas Alfred Bauer, do Institut für Publizistik und Kommunikationswissenschaft, da Universidade de Viena, que generosamente me recebeu naquele ano para um estágio de pesquisa.

Nesse período, tive acesso aos arquivos das seguintes instituições em Viena, fundamentais para a pesquisa: Israelitische Kultusgemeinde; Biblioteca e Arquivo da Universidade de Viena; Biblioteca do Jüdisches Museum; Biblioteca da Prefeitura de Viena (Wienbibliothek im Rathaus); Biblioteca Nacional austríaca (Österreichische Nationalbibliothek) e Literaturhaus Wien/Österreichische Exilbibliothek. Esta produtiva viagem de pesquisa só foi possível graças ao apoio financeiro da Pró-Reitoria de Pós- Graduação da Unesp.

Igualmente importante para o estudo dos ensaios europeus de Otto Karpfen foi o período em que, em outubro de 2015, pude pesquisar no extraordinário acervo da Biblioteca Estadual da Baviera (Bayerische Staatsbibliothek). Destaco também a visita ao NS-Dokumentationszentrum, de Munique. Meu agradecimento à FAPESP, cujo auxílio tornou possível esta viagem de cunho bibliográfico-documental.

Inesquecíveis também nesta viagem foram o diálogo com a professora Ursula Prutsch, da Ludwig Maximilians Universität, em Munique, e a calorosa acolhida do professor e amigo Clemens van Loyen. Não posso deixar de lembrar da inenarrável visita que fiz, numa manhã de sábado, ao campo de concentração de Dachau.

Agradeço, por fim, aos membros da banca examinadora deste concurso pela inestimável disponibilidade de participar deste rito de passagem.

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VENTURA, M. S. Missão e profissão: caminhos da crítica jornalística. Tese de livre-docência. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação/Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018.

Resumo:

Este trabalho divide-se em duas partes: enquanto a Parte I busca compreender as relações de ruptura e continuidade que se estabelecem entre a instância da crítica e o campo do jornalismo, a Parte II dedica-se ao estudo de alguns aspectos e temáticas presentes nos ensaios europeus do jornalista e crítico literário austríaco-brasileiro Otto Karpfen (1900-1978). Ambas as partes estão unidas pelo objetivo comum de compreender os caminhos que se abrem com a crítica de linhagem jornalística. Deste modo, ao trazer para o campo do jornalismo a discussão sobre a função da crítica, a Parte I busca investigar como operam os mecanismos de criticabilidade e que sentido adquirem na prática do jornalismo e da crítica cultural. Os casos de crítica estudados no decorrer deste trabalho não podem ser isolados dos modos de organização, circulação e recepção dos bens simbólicos e estão ligados, igualmente, aos conceitos de campo e instâncias de difusão e de legitimação. A Parte II desta tese ocupa-se da compreensão da obra ensaística de Otto Karpfen. Esta tarefa implica o estudo do impacto provocado pelas rupturas políticas e pessoais ligadas ao processo histórico e social vivido pelo autor na Áustria durante os anos de 1930. Assim, são estudados tanto a trajetória europeia de Otto Karpfen, quanto seus artigos publicados no semanário Der Christliche Ständestaat e na revista Die Erfüllung, ambos de Viena, com vistas ao estudo sistemático da fase europeia da obra daquele que foi um dos mais importantes críticos literários e jornalistas culturais do Brasil.

Palavras-chave: crítica jornalística; critica literária; campo da difusão; instâncias de legitimação; imprensa e sociedade; jornalismo político; modernidade; Áustria; Nacionalsocialismo; questão judaica.

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VENTURA, M. S. Mission and work: paths of journalistic criticism. Tese de livre- docência. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação/Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2018.

Abstract:

This work is divided into two parts: while Part I seeks to understand the relations of rupture and continuity between the instance of criticism and the field of journalism, the second part studies the European essays of Austrian-Brazilian journalist and literary critic Otto Karpfen (1900-1978). The two sides are united by the common goal of understanding the paths that open up with journalistic criticism. Thus, it brings to the scope of journalism the discussion about the function of criticism and investigates how the mechanisms of criticism operate and what meaning they acquire in the practice of journalism and cultural criticism. The cases of criticism studied in this work can not be isolated from the modes of organization, circulation and reception of symbolic assets, and are also linked to the concepts of the field of diffusion and instances of legitimation. The second part of this thesis studies Otto Karpfen's essays. This task implies the study of the impact caused by the political and personal ruptures related to the historical and social process lived by the author in during the years of 1930. Thus, the European trajectory of Otto Karpfen and his articles published in the weekly Der Christliche Ständestaat and in the magazine Die Erfüllung, both in , are studied, with the purpose of making a systematic study of the European phase of the work of the one that was one of the most important critics and cultural journalists of .

Keywords: journalistic criticism; literary criticism; field of diffusion; instances of legitimacy; press and society; political journalism; modernity; Austria; National Socialism; the Jewish question.

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Sumário

Introdução 08

Parte 1: A crítica e o campo do jornalismo 1.1. Paradigmas em conflito 14 1.2. Missão e profissão: a crítica literária de Otto Maria Carpeaux 24 1.3. José Castello: o crítico enquanto leitor comum 38 1.4. Processos de legitimação na crítica cultural 57

Parte 2: Os ensaios europeus de Otto Karpfen 2.1. Uma trajetória europeia 72 2.2. Otto Maria Fidelis ou o jornalismo político-ideológico 82 2.3. Da assimilação à conversão: a questão judaica em Otto Maria Karpfen 108 2.4. Passagens do moderno: Karpfen leitor de Benjamin 127

Considerações finais: em busca da crítica jornalística 138

Referências bibliográficas 138

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Introdução

As pesquisas que estão na origem deste trabalho, que apresento como Tese de livre-Docência, dividem-se em duas partes: enquanto a Parte I busca compreender as relações de ruptura e continuidade, e os conflitos daí decorrentes, que se estabelecem entre a instância da crítica e o campo do jornalismo, a Parte II dedica-se ao estudo de alguns aspectos e temáticas presentes nos ensaios europeus do jornalista e crítico literário austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen, 1900-1978). Ambas as partes estão unidas pelo objetivo comum de compreender os caminhos que se abrem com a crítica de linhagem jornalística. Gênero textual híbrido e pendular, a crítica jornalística é uma espécie de escrita que oscila permanentemente entre o registro ligeiro do periódico, a liberdade autoral que é a marca do ensaio e um método que acredita mais na impressão pessoal do que na demonstração objetiva. Os autores aqui estudados são todos, em maior ou menor grau, ensaístas de periódico, cujos textos carregam os traços de uma escrita que, como aponta Hazlitt (2016:20), “está para a moral e os costumes assim como o experimento está para a filosofia natural, em oposição ao método dogmático”. Chamado por Alexandre Eulalio (2013: 07) de “península estética de maré muito variável”, o ensaio – seja ele literário, político, moral ou estético – costuma ultrapassar as fronteiras dos campos. Como diz o crítico, na vazante a superfície do ensaio “caminha em direção das áreas vizinhas, muitas vezes anexando, quase sem o perceber, vastas regiões limítrofes à sua própria”. (Eulalio, 2013:07). Talvez por isso mesmo recaia sobre ele na atualidade uma suspeita, já que suas apreciações são feitas mais de fait divers que de demonstrações, pois a escrita ensaística “não tenta provar que tudo é preto ou branco, antes espalha aquelas cores intermediárias”, que são a marca da vida. (Hazlitt, 2016:20). Assim, este trabalho está estruturado em duas partes de quatro capítulos cada uma. A Parte I toma como ponto de partida a mudança de paradigma vivida pela crítica brasileira em meados do século 20, problema que envolve diretamente as relações entre crítica e jornalismo, entre juízo crítico e competência científica. Discute-se no capítulo 1.1. a função da crítica segundo o velho e o novo criticismo, do juízo impressionista dos velhos homens de letras à análise científica da obra empreendida pela crítica acadêmica.

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O capítulo 1.2. estuda a obra do crítico literário e jornalista Otto Maria Carpeaux no contexto da crítica literária brasileira. Entre as décadas de 1940-1970, Carpeaux desempenhou papel destacado no processo de formação do leitor e da leitura no Brasil, como o demonstram sua intensa atividade de crítico, ensaísta e jornalista, expressa nas centenas de artigos que publicou durante sua trajetória no país. A pesquisa procura estabelecer reflexões sobre o lugar ocupado por Carpeaux em função das mudanças de paradigma ocorridas no campo da crítica e dos novos processos de legitimação daí decorrentes. Duas hipóteses são desenvolvidas: a) a obra de Carpeaux sofreu os efeitos da falta de legitimidade de seus contemporâneos nas décadas de 1940-1950, o que pode ser observado, por exemplo, no tratamento periférico a ele conferido pelo campo das instâncias de difusão e consagração – leia-se mercado editorial. b) herdeiro de Álvaro Lins no Correio da Manhã, Carpeaux herdou também um modelo de crítica que perdeu prestígio em função da influência crescente do New Criticism no país, que deslocou o eixo de atuação da crítica do jornal para a universidade. Já o capitulo 1.3. estuda os artigos de crítica literária do jornalista José Castello. O corpus da pesquisa é constituído pelos textos publicados em sua coluna semanal do Suplemento “Prosa & Verso”, do jornal O Globo, do . Do ponto de vista metodológico, foram descritos e analisados alguns dos procedimentos críticos e pressupostos conceituais adotados pelo jornalista em seus artigos. A análise contempla um conjunto de 114 textos de José Castello, publicados entre os anos de 2011 e 2013. Os resultados da análise identificaram alguns dos princípios que norteiam a atividade crítica de Castello, assim como sua posição em relação aos juízos críticos. Constatou-se que em Castello há, claramente, uma recusa das leituras feitas pelos especialistas, ou melhor, pela chamada crítica acadêmica. A interpretação fechada e o apego ao sentido do texto decorrentes da aplicação teórica são recusados insistentemente pelo crítico em suas colunas. Este lugar de fala bem definido assinala a distância de José Castello em relação à critica acadêmica, situando sua coluna no âmbito da crítica de linhagem jornalística, pois interessa-lhe sobretudo a comunicação com o leitor, que é, por sua vez, a marca que caracteriza os mediadores. Ao mesmo tempo, o compromisso de Castello com esse leitor o mantém distante do jargão especializado, que costuma deixar de fora camadas consideráveis de público, e cujos riscos, no âmbito das humanidades e de uma cultura generalista, merece cada vez mais nossa atenção.

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Durante muito tempo, o lugar natural para o exercício da crítica (seja de literatura, seja de teatro ou música clássica) foi a página do jornal ou da revista. Naquele momento histórico ainda não se verifica a atuação do especialista, problema abordado no capítulo 1.4., que se ocupa das relações existentes entre processos de legitimação e criticabilidade. Tais relações são estudadas a partir das reflexões de Pierre Bourdieu acerca das posições ocupadas pelos agentes (jornalistas, críticos e especialistas) no interior dos campos da produção, reprodução, consagração e difusão de bens simbólicos. Assim, visando a uma aplicação do problema da relação entre a posição dos agentes e suas respectivas tomadas de posição, são examinados três exemplos de posicionamentos críticos veiculados recentemente na mídia. Foram escolhidos três textos críticos: um artigo que contesta a consagração à obra de Marcel Duchamp; um texto que formula uma crítica veemente à 28ª Bienal de Arte de São Paulo; e uma análise dos processos de validação e de legitimação de determinadas obras literárias instituído pelo Modernismo brasileiro, no contexto de sua consagração como campo de estudos legítimo. O objetivo desta análise é mostrar a existência de uma relação de interdependência entre julgamento crítico e a posição ocupada pelo crítico no campo a partir de exemplos recentes da crítica cultural. Deste modo, ao trazer para o campo do jornalismo a discussão sobre a função da crítica, a Parte I busca investigar como operam os mecanismos de criticabilidade e que sentido adquirem na prática do jornalismo cultural, que necessita ser pensado a partir dos critérios que definem aquilo que será ou não criticado pelos agentes, na dinâmica própria do campo do jornalismo. Os casos de crítica estudados no decorrer deste trabalho não podem ser isolados dos modos de organização, circulação e recepção dos bens simbólicos e estão ligados, igualmente, aos conceitos de campo da difusão e instâncias de legitimação, aos quais a ação dos intermediários culturais está submetida. Vem daí, pois, a necessidade de pensar a crítica em sua relação com o campo do jornalismo.

A Parte II desta tese ocupa-se da compreensão da obra ensaística de Otto Karpfen. Esta tarefa requereu o estudo do impacto provocado pelas rupturas políticas e pessoais ligadas ao processo histórico e social vivido pelo autor na Áustria durante os anos de 1930, e que culminaram com a anexação de seu país em 1938 pela Alemanha e o conseqüente exílio forçado no Brasil a partir do ano seguinte. O objetivo geral desta

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Parte II é o estudo sistemático da fase europeia da obra daquele que foi um dos mais importantes críticos literários e jornalistas culturais do Brasil, e cujos ensaios sobre literatura, música e cultura constituem-se num capítulo especial do processo de formação do leitor e da cultura literária no país, entre as décadas de 1940 e 1970. Para isso, iniciamos o capítulo 2.1. com um relato biográfico de sua trajetória europeia, em especial no decorrer da década de 1930, em que ele desempenhou importante atividade como jornalista político em Viena. Quando chegou ao Brasil, em 1939, Otto Karpfen já havia publicado uma quantidade significativa de artigos e ensaios em jornais e revistas da Áustria e da Alemanha. Em Viena, publicou artigos em Die Erfüllung, Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte, Der Christliche Ständestaat e Neue Freie Presse. Na Alemanha, colaborou com Der Querschnitt (Berlim: Propyläen), Die Literatur (Sttuttgart e Berlim) e Signale für die Musikalische Welt (Berlim). Já o capítulo 2.2. concentra-se na análise interpretativa dos artigos publicados no semanário Der Christliche Ständestaat, de Viena. Esses artigos, publicados entre 1934 e 1936, são analisados a partir dos seguintes aspectos: a) o ambiente político e sociocultural da Áustria no decorrer da década de 1930, marcado pela ascensão do Nacionalsocialismo de Hitler. b) O significado político e ideológico da atuação jornalística de Otto Karpfen na imprensa austríaca, entre os anos de 1934 a 1938, tendo em vista seu engajamento na luta pela independência da Áustria frente à Alemanha e ao Terceiro Reich. No capítulo 2.3. o foco são os artigos sobre a questão judaica publicados pelo jornalista entre 1934 e 1938, também na imprensa de Viena, e que abordam, direta ou indiretamente, esse tema. Tais artigos são analisados no contexto das relações históricas, culturais e religiosas ligados ao antissemitismo e ressignificadas pelo autor, ele próprio um judeu assimilado, um exilado e herdeiro intelectual da concepção habsburga de império supranacional, como foi o austro-húngaro. Por fim, o capítulo 2.4. efetua uma aproximação entre Otto Karpfen e com a finalidade de identificar pontos de contato entre os dois autores. Nesta operação metodológica assume papel crucial o cotejo de Caminhos para Roma, de Otto Karpfen, com Passagens, de Walter Benjamin. Conforme procurou-se demonstrar, há entre os dois autores bem mais do que uma proximidade temática: trata-se de uma identificação e uma concepção de mundo que apresenta inúmeros pontos de contato, o que nos leva a falar de um Karpfen leitor de Benjamin.

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Assim, enquanto a primeira parte deste trabalho se nutre das contribuições teóricas de autores como Pierre Bourdieu, Zygmunt Bauman, Beatriz Sarlo, Frank Kermode e George Steiner, para estudar os processos de configuração da crítica, seja ela de linhagem literária, acadêmica ou jornalística, operados pelas e nas mídias; a segunda parte apresenta os resultados obtidos após vários anos de pesquisa da obra e da trajetória europeia de Otto Karpfen, em especial do seu jornalismo político e ideológico, expresso em artigos publicados na imprensa de Viena na década de 1930. A coesão ente as duas partes pode ser verificada tanto pelo procedimento metodológico – a análise e interpretação de textos críticos publicados na imprensa – quanto pela abordagem: o estudo dos vínculos socioculturais e interpretativos existentes entre jornalismo, crítica literária e crítica cultural, por meio da análise da produção textual de jornalistas e críticos contemporâneos ou do passado recente, como Otto Maria Carpeaux e José Castello. Em outras palavras, busca-se trazer para o campo da Comunicação (e do jornalismo em sentido estrito) a discussão da função da crítica – seja ela de linhagem acadêmica, literária ou jornalística --, em sua relação com o campo da produção e com o público leitor.

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Parte 1: A crítica e o campo do jornalismo

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1.1. Paradigmas em conflito

É por isso que a análise científica, quando é capaz de trazer à luz o que torna a obra de arte necessária, ou seja, a fórmula formadora, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificação, seu mais rico alimento. Pierre Bourdieu

A literatura é uma máquina de interrogar as coisas. Com suas bordas frouxas, seu olhar ‘de banda’, e sua inconstância, só a literatura pode desmascarar as ilusões da verdade. A rigor, os instrumentos científicos não fornecem respostas ao desconhecido. O que fazem? Enquadram o desconhecido no conhecido e, assim, acreditam dominá-lo. José Castello

As duas passagens destacadas acima expressam, em seu conjunto, as contradições e os conflitos vividos por uma das atividades mais antigas do pensamento humano: a crítica. Seja ela de linhagem jornalística, literária ou acadêmica, a instituição da crítica vem experimentando, em seu longo percurso histórico, movimentos, ora de ruptura, ora de continuidade em relação aos seus próprios métodos e paradigmas. A primeira parte desta tese procura, assim, discutir alguns dos aspectos deste movimento, buscando caracterizar o conflito de paradigmas vivenciado por alguns críticos e jornalistas contemporâneos ou do passado recente, como José Castello e Otto Maria Carpeaux. Como não se pode falar da crítica sem mergulhar na historicidade profunda que a caracteriza, este capítulo inicial efetua uma breve contextualização histórica do problema. No Brasil do início da década de 1940, a crítica literária apresentava duas características bastante definidas: ocupava as colunas fixas e rodapés dos jornais e de algumas revistas e era praticada em geral por profissionais liberais, os chamados

15 homens de letras, que, formados muitas vezes no autodidatismo, escreviam em tom de comentário, num gênero bastante próximo ao da crônica. A crítica literária desse período era obra de indivíduos que encaravam a atividade mais como uma missão do que uma profissão, e cujos principais expoentes eram Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Sérgio Milliet, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux, além do então novato , que debutou na crítica em 1945, com Brigada ligeira. Ocorre que, neste momento, o campo da crítica no Brasil passava por uma mudança de paradigma, com profundas transformações, seja em seu funcionamento interno, seja nas relações de poder entre os agentes. Os dois aspectos estão ligados ao processo de institucionalização da atividade crítica, que irá deslocar seu eixo de atuação da imprensa para a universidade. Esse processo ocorreu a partir da criação dos cursos de Letras no país e se intensificou na segunda metade do século XX, com a formação de um grupo de profissionais oriundos do incipiente meio universitário, que passam a ser legitimados enquanto críticos em suas intervenções nos jornais. Deste modo, os críticos legítimos serão aqueles que, possuindo uma base de atuação na universidade, passam a defender uma atitude crítica distinta daquela que era exercida pelos críticos “impressionistas”. A partir do início da década de 1950, Afrânio Coutinho passou a fazer verdadeira campanha em favor da crítica enquanto disciplina científica, amparado na tese de que a verdadeira crítica literária tinha como ponto de apoio a cátedra e não mais o jornalismo. Não esqueçamos que o momento refletia a influência poderosa do New Criticism, de quem Coutinho foi o porta-voz no país. Para os novos críticos, tratava-se de defender a autonomia do texto, isolando-o dos fatores externos, como o contexto histórico-biográfico. É curioso constatar que a campanha de Coutinho pela renovação da crítica foi feita por meio de artigos publicados na imprensa, o que indica que o veículo de difusão permanecia inalterado: o que mudava eram os agentes. Sussekind descreve com propriedade os protagonistas desta luta travada no campo literário.

De um lado, os antigos ‘homens de letras’, que se crêem a ‘consciência de todos’, defensores do impressionismo, do autodidatismo, da review como exibição de estilo, ‘aventura da personalidade. De outro, uma geração de críticos formados pelas faculdades de filosofia do Rio de

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Janeiro e de São Paulo, criadas respectivamente em 1938 e em 1934 e interessados na especialização, na crítica ao personalismo, na pesquisa acadêmica. (Sussekind, 2003: 17).

Estamos diante de um embate que coloca em cena dois modelos distintos de atitude crítica, assim como dois critérios de validade para o julgamento da obra literária. Com efeito, no momento em que um crítico como Otto Maria Carpeaux, por exemplo, inicia sua produção no Brasil (sua primeira coletânea de crítica publicada no país é A cinza do purgatório, de 1942), o campo da crítica literária atravessa um período de questionamento com relação à sua própria natureza e função. Uma fase de transição que passa da crítica não especializada, exercida então por profissionais de diversas áreas que escrevem para os jornais, ao surgimento dos primeiros críticos oriundos da universidade e ligados ao ensino de literatura. Mais uma vez recorremos a Sussekind, que descreve com propriedade esta passagem do crítico-cronista ao crítico-scholar:

Há, então, dois modelos bem diversos de críticos em disputa, que se encontram momentaneamente lado a lado nas páginas da imprensa diária. O que se inicia é uma mudança nos critérios de validação daqueles que exercem a crítica literária. A “carteira de habilitação’ em meados dos anos 1940 não é mais a mesma das primeiras décadas deste século.E parece prever um tipo de intelectual cuja figura não cabe mais nas funções, até então supervalorizadas, do jornalista, do crítico-cronista. (Sussekind, 2003: 17-18).

Ora, os novos qualificativos para o exercício da crítica passam, pois, pela órbita da cátedra, ou do ensino de literatura. Se o espaço de publicação permanece o mesmo, ou seja, o jornal e a revista de circulação ampla, o requisito se modifica; o lugar de fala do novo crítico de rodapé será o do professor, e não mais do diletante-cronista- jornalista-homem-de-letras. Esse antagonismo coloca em discussão a função da crítica segundo os parâmetros do velho e do novo criticismo. Como explica George Steiner, o velho criticismo “pensa a literatura não como existência isolada, mas sim como central para o jogo das energias históricas e políticas. Acima de tudo, o velho criticismo tem pensamento e alcance filosóficos.” (Steiner, 2006: 3). Já os novos críticos estavam preocupados em “devolver ao estudo e à apreciação da literatura um ‘espírito inteligente’, uma alta seriedade que havia sido perdida no 17 historicismo, positivismo e rotinas filológicas herdadas do século 19 e ainda prevalentes na maioria dos departamentos das universidades”. (Steiner, 2006: XIV). A crítica de Steiner a essa hipertrofia do texto literário, da auto-referencialidade defendida pelo New Criticism, parte da constatação de que os críticos abandonaram as tradições “mundanas” da crítica em favor do acúmulo teórico-metodológico. E o que se perdeu com essa guinada metodológica? Ora, a função da crítica enquanto mediação, tarefa esta se coloca como prioritária em relação ao julgamento da obra e à sua dissecação analítica. Como escreve Blackmur,

gostaria de acreditar na evidência de que nossa sociedade necessite mais do que nunca de uma tarefa específica do crítico e do erudito: o trabalho de colocar o público numa relação receptiva para com a obra de arte: fazer a tarefa do intermediário. (Steiner, 2006: 3).

Nessa mesma direção, o antagonismo entre crítica literária e crítica universitária pode ser interpretado à luz da imagem usada por Zygmunt Bauman quando descreve a passagem das “culturas selvagens” para a “cultura jardim”. Para ele, ao contrário das culturas “selvagens”, que se reproduzem sem cuidado ou vigilância, as culturas “jardins” sustentam-se “com a presença de pessoal letrado e especializado”. (Bauman, 2010: 78).

A passagem de uma cultura selvagem para outra de tipo jardim não é apenas uma operação realizada num pedaço de terra; também é, e talvez de maneira mais seminal, o surgimento de um novo papel, orientado para fins antes desconhecidos, exigindo capacidades antes inexistentes: o papel do jardineiro. Este assume o lugar do guarda-caça. (Bauman, 2010: 78).

Ainda que se refira a um processo de longa duração, como o surgimento da modernidade, o processo de transformação de culturas selvagens em culturas jardim, descrito por Bauman, parece-nos pertinente para pensar a mudança de paradigma vivenciada pela crítica brasileira no decorrer da segunda metade do século 20. Senão, vejamos. Segundo Bauman, os guarda-caças simplesmente deixam que as plantas e os animais que habitam no território sob sua guarda se desenvolvam naturalmente, sem restrições, sem regras. Ora, o ingresso na modernidade passa a requerer um novo papel

18 para os guardiões da cultura e das instituições que as legitimam: o papel de jardineiro. Escreve Bauman:

Guarda-caças não acreditam muito na capacidade humana de administrar sua própria vida. Por assim dizer, são pessoas naturalmente religiosas. Não tendo praticado qualquer tipo de ‘padronização’, ‘modelagem’ ou ajuste da cultura selvagem que supervisionam, carecem da experiência a partir da qual se pode formar a idéia de origem humana do mundo humano, de autossuficiência do homem, de maleabilidade da condição humana etc. (Bauman, 2010: 80).

Do ponto de vista intelectual, ocorre aqui uma”redefinição da ordem social como produto da convenção humana”, que passa agora a funcionar sob a lógica do controle humano. Em outras palavras, é o modo como a ordem da cultura se reproduz que passa por transformação. No caso específico em que estamos analisando, cabe destacar que uma das principais conseqüências da passagem da cultura selvagem dos tempos pré-modernos para a cultura jardim da modernidade configura-se na atuação de profissionais (como cientistas sociais e professores-especialistas), dotados agora de autoridade e de legitimação oriundos do campo.

A cultura tradicional autogerida e autoreprodutora foi posta em ruínas. Privada de autoridade, expropriada de seus ativos territoriais e institucionais, carente de especialistas e administradores próprios, agora expulsos ou degradados, ela tornou os pobres e humildes incapazes de autopreservação e dependentes das iniciativas administrativas de profissionais treinados. (Bauman, 2010: 98).

Embora descreva em específico o processo de destruição da cultura popular pré- moderna, o fenômeno da degradação ou expulsão dos guarda-caças do campo da crítica é correlato. No caso específico da crítica literária, é dos antigos homens de letras enquanto guardiões da crítica que estamos falando, ou seja, de indivíduos que exerciam seu ofício a partir de uma formação cujos traços eram o autodidatismo e o diletantismo no trato do saber. Um dos casos mais emblemáticos desta mudança de paradigma na crítica brasileira está, como veremos mais adiante, na figura de Otto Maria Carpeaux, ele

19 próprio uma espécie de guarda-caças que se viu preterido de legitimidade pelo surgimento da primeira geração de críticos universitários.

Crítica e competência científica A mudança de paradigma na crítica, que foi descrita de forma sintética em páginas anteriores, trouxe consequências sérias para o campo literário, aqui compreendido a partir das relações que estabelece com o campo do jornalismo. O primeiro e mais importante desses efeitos, como já afirmamos aqui, está na nova função que a crítica passa a assumir com essa ruptura de paradigma: o abandono da tarefa de intermediação entre obra e público. Há alguns anos, ao fazer um diagnóstico da situação da crítica no jornal, Silviano Santiago afirmou que tanto o gênero ensaio quanto a crítica literária encontravam-se num “beco sem saída”. Escreve Santiago: “aquele fenece por excesso de pedantismo e de notas de pé de página; esta, deixou de ser um exercício criterioso da razão e da sensibilidade, imersa que está em indagações de caráter teórico- metodológico, especializadíssimas”. (Santiago, 2004: 157-158). Pertencente à linhagem de críticos que se formaram no interior da universidade, ou seja, ele próprio é um especialista, mas, ao mesmo tempo, adepto de uma prática crítica que não deixa de se comunicar com o grande público, Silviano Santiago questiona se ainda será possível a existência de uma crítica e de uma ensaística literárias que ocupem os espaços da grande imprensa e que estejam sob a responsabilidade de acadêmicos. Preocupa-o também a necessidade de se “neutralizar o peso esmagador do mercado nos julgamentos de valor”. (Santiago, 2004: 158). A preocupação do autor de O cosmopolitismo do pobre reflete a face talvez mais visível do problema, que é, para falar nos termos de Bourdieu, da ordem da economia dos bens simbólicos. Como será visto mais adiante, trata-se de estudar as implicações de tais fatores no exercício da crítica, dos quais destaco dois aspectos: a condição de submissão das instâncias de difusão às contingências de mercado e a posição de inferioridade das demandas em relação à oferta de bens simbólicos. Consideramos esses dois aspectos cruciais para estabelecer uma posição crítica em relação aos critérios de noticiabilidade praticados, por exemplo, pelo jornalismo cultural na atualidade e, neste contexto, para compreender o exercício da crítica feita por autores como Otto Maria Carpeaux e José Castello, que serão objetos de estudo deste livro.

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Se, como assinala Traquina (2005: 63), os chamados valores-notícia são fatores centrais da cultura jornalística, pois são eles que determinam “se um acontecimento ou assunto é suscetível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável e, por isso, possuindo valor-notícia”, então caberá investigar aquilo que chamaremos de critérios de criticabilidade e a relação desses critérios com a noticiabilidade. Tão importante ou mais do que saber quem são os críticos em atividade é identificar os autores (produtores) criticáveis. As lutas entre os agentes num determinado campo ocorrem tanto em função do controle dos conceitos e das abordagens, quanto em relação à escolha de determinado objeto de estudo em detrimento de outro. “Quem estuda o que?” e “Quem critica quem?”, são as perguntas que precisam ser feitas. É neste contexto que consideramos pertinente e necessário o estudo da crítica no âmbito da Comunicação ou, no caso, do Jornalismo. Assim, será preciso investigar a relação entre criticabilidade e valores-notícia, ou critérios de seleção, daquilo que é legítimo e não legítimo de ser transformado em notícia, comentário ou análise. Correlato a esta questão está o conceito de cordialidade, tão crucial para se compreender as relações entre os atores sociais no contexto da cultura brasileira, e de saber de que modo esse fator – a relação de interdependência -- está presente no campo da crítica, seja ela literária, jornalística ou acadêmica. Ao mesmo tempo, é preciso destacar um outro aspecto da mesma questão, desta vez ligada ao controle institucional da instância da crítica e as implicações deste controle sobre a linguagem da mesma. Como afirma Frank Kermode, dirigir-se de maneira sensível a todas as camadas do público continua sendo a principal característica do crítico profissional. Escreve ele: “Falar de maneira sensível para todas essas platéias continua sendo, acho eu, a obrigação normal do crítico profissional”. (Kermode, 1993: 16). Entre os efeitos do controle institucional da crítica, Kermode identifica um florescimento de teorias e de metodologias, ao mesmo tempo em que observa uma indiferença e até mesmo uma hostilidade em relação à literatura da parte desses agentes. “(...) Toda essa grande florescência de teoria literária parece acarretar necessariamente uma indiferença e mesmo uma hostilidade em relação à ‘literatura’”. (Kermode, 1993: 17). Em outras palavras, a teoria toma o lugar da literatura não só no ensino, mas também no exercício da crítica, e muitos consideram “mais interessante e de certo modo

21 mais fácil estudar a filosofia e os métodos da crítica do que estudar literatura”. (Kermode, 1993: 20). Assim como os físicos teóricos, os especialistas em literatura eximem-se cada vez mais, e por necessidades profissionais, diga-se, de se dirigir ao público comum. O resultado, escreve Kermode, é que “cada vez mais aparecem livros classificados como sendo de crítica literária, que poucas pessoas interessadas em literatura, mesmo os profissionais, podem ler”. (Kermode, 1993: 20). É nesse contexto que deve ser pensado o êxito da campanha de Afrânio Coutinho em favor dos críticos acadêmicos e pelos métodos do New Criticism. A esse fenômeno estão ligadas também as novas demandas institucionais para a educação em geral e os processos de legitimação de obras, autores e métodos daí decorrentes. Nesse sentido, há homologia entre os posicionamentos metodológicos e teóricos e as posições ocupadas pelos agentes no interior do campo. A influência do New Criticism no Brasil correspondeu, em larga medida, a um deslocamento de posições no campo literário, que, por sua vez, corresponde a uma crescente autonomia do campo universitário no século XX. Ao examinar o caso dos professores de literatura francesa na França, Bourdieu observa a ocorrência de um afastamento progressivo das “tradições mundanas da crítica”, na razão direta do acúmulo teórico-metodológico por parte de tais críticos. (Bourdieu, 2011: 65). No contexto brasileiro, verifica-se a mesma demanda, ou seja, ocorre um reposicionamento metodológico e estilístico que corresponde às novas “posições no campo universitário” (Bourdieu, 2011: 54) em relação ao campo do jornalismo, até então detentor exclusivo da legitimidade crítica. Como explica Vagner Camilo, a perspectiva de Coutinho pretendia ser “uma forma de combate à conduta antiprofissional e imoral de nossa elite literária, que monopolizava os periódicos e rodapés literários”. (Camilo, 2008/2009: 120-121). A questão que subjaz a este problema diz respeito à linguagem usada no trabalho do crítico, ou seja, sobre a boa e a má escrita. Também nesse aspecto o que está em jogo é um conflito entre faculdades distintas, em que a competência científica passa a ser um requisito para a competência crítica. E quais são as condições para que uma determinada representação científica possa ser socialmente reconhecida? Em outras palavras, quais são os fatores capazes de gerar aquilo que Bourdieu denomina de “efeito de ciência”?

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Todo discurso com pretensão científica sobre o mundo social deve contar com o estado das representações que concernem à cientificidade e das normas que ele deve praticamente respeitar para reproduzir o efeito de ciência e alcançar assim a eficácia simbólica e os benefícios sociais associados à conformidade às formas externas da ciência. (Bourdieu, 2011: 54).

A julgar pela passagem anterior, o discurso da ciência pode estar em conformidade apenas aparente com as normas garantidoras do estatuto de cientificidade. E ao associar o rigor e a profundidade a um estilo que recusa toda facilidade e toda preocupação com a boa linguagem (Bourdieu, 2011: 54), as ciências sociais e humanas garantem os sinais de cientificidade de modo similar às ciências da natureza e/ou experimentais (leia-se tabelas, tom relatorial do texto, descrição de casos estudados em laboratório etc.). Sobre os riscos do uso do jargão especializado, que frequentemente aliena fatias consideráveis de público, Edward Said observa que, para as humanidades, dentro e fora da universidade, os riscos são óbvios: “eles simplesmente substituem um idioma pré- fabricado por outro”. (Said, 2007: 97). Em vez disso, pergunta Said, por que não tornar “os questionamentos e as desmistificações tão transparentes e tão eficientes quanto possível?” (Said, 2007: 97). Escreve o crítico: “A especialização como um instrumento de distanciamento saiu de controle, principalmente em algumas formas acadêmicas de expressão, na medida em que se tornaram antidemocráticas e até antiintelectuais”. (Said, 2007: 97). Os argumentos de Said reverberam na crítica feita pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa aos rumos tomados pela especialização. Mesmo reconhecendo os avanços inevitáveis trazidos pelo conhecimento especializado (como a experimentação e o avanço da ciência e da técnica), Vargas Llosa não deixa de destacar um efeito negativo desta situação, que é a “eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e sentir-se de algum modo solidários”. (Vargas Llosa, 2009: 21). Para o escritor, a especialização tem provocado uma situação preocupante de incomunicabilidade e de fragmentação do saber, a tal ponto que as comunidades fecham-se cada vez mais em seu esoterismo de linguagem e de códigos, gerando “guetos culturais de técnicos e especialistas”, que produzem saberes sempre parciais e setorizados. A conseqüência mais visível deste “estado da arte” em que se encontra o

23 conhecimento especializado reside no abismo cada vez maior entre este conhecimento e uma visão totalizadora dos fenômenos. Escreve ele:

A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos. (Vargas Llosa, 2009: 21).

Nem mesmo as humanidades, que, por sua natureza argumentativo-discursiva, sempre se preocuparam com o “como dizer”, ou seja, com o trabalho do texto, conseguiram permanecer ilesas a esta fragmentação e ao tecnicismo que são as marcas da pesquisa na atualidade. Diz o escritor que:

Nem mesmo os outros ramos das disciplinas humanistas -- como a filosofia, a psicologia, a história ou as artes – puderam preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao profano, porque, por trás da pressão irresistível da cancerosa divisão e fragmentação do conhecimento, acabaram por sucumbir também às imposições da especialização, por isolar-se em territórios cada vez mais segmentados e técnicos, cujas ideias e linguagens estão fora do alcance da mulher e do homem comuns. (Vargas Llosa, 2009: 22).

A questão que subjaz ao argumento de Vargas Llosa diz respeito aos riscos do jargão especializado para as humanidades, fato que tem motivado intensos debates não só entre os chamados intelectuais públicos – grupo ao qual poderíamos incluir tanto o escritor peruano, quanto o crítico Edward Said – mas também entre os próprios especialistas. *****

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1.2. Missão e profissão: a crítica literária de Otto Maria Carpeaux

Antigamente tivemos muitos críticos sem teoria alguma. Agora temos muita teoria, uma floresta tão densa que ninguém mais consegue distinguir as árvores. (Carpeaux, 1999: 848).

No decorrer das décadas de 1940 a 1970, o crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978) exerceu uma atividade crítica contínua e incansável, constituída por centenas de textos publicados em ritmo quase semanal. Vista com a distância de quase quatro décadas desde sua morte, a trajetória e a obra deste austríaco-brasileiro -- que chegou ao Brasil em setembro de 1939 vindo de Antuérpia, na Bélgica, onde se refugiara desde abril de 1938, após uma fuga desesperada da capital austríaca em 15 de março daquele ano, quando as tropas de Hitler entraram triunfantes na capital do ex- império austro-húngaro -- continuam a surpreender os leitores, seja pela necessária combinação de comentário, análise e julgamento, seja pelo viés ensaístico de sua escrita, além do domínio da língua portuguesa, idioma que aprendeu rápido, mas cujo estilo foi se depurando com o passar dos anos.

Autor de uma obra fragmentada em inúmeros artigos, ensaios, prefácios e introduções, Carpeaux foi também um ativo intelectual que desempenhou importante papel de mediador cultural, contribuindo assim para o processo de formação do leitor culto no Brasil. Isto se deveu, em grande parte, à sua atuação na imprensa, comentando autores pouco divulgados entre nós àquela época, como , de quem foi um dos primeiros comentadores, ou totalmente desconhecidos, como o holandês Simon Vestdijk e o eslavo Ivan Cankar.

Some-se a isso a publicação de obras de cunho introdutório, como a Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, de 1949, A Literatura Alemã, de 1964, ou a monumental História da Literatura Ocidental, publicada entre 1959 e 1966. Contribuiu igualmente para esse processo sua atividade de bibliotecário nas décadas de

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1940-50 e a participação no projeto das enciclopédias Barsa, Delta Larrousse e Mirador, nos anos subsequentes.

Com efeito, torna-se necessário demarcar e caracterizar a crítica literária de Otto Maria Carpeaux no decorrer de sua carreira, tarefa essa que apresenta não poucas dificuldades, na medida em que sua produção foi impulsionada por necessidades do momento em que foi escrita e orientada em função do público-leitor dos veículos para os quais se destinava.

Além dessas contingências, a crítica literária de Otto Maria Carpeaux situa-se num momento de mudança de paradigma da crítica brasileira. Este processo, já descrito no capítulo anterior, mas que será retomado mais adiante a fim de melhor situar o lugar ocupado por Carpeaux no campo da crítica brasileira, trouxe profundas transformações, seja em seu funcionamento interno, seja nas relações de poder entre os agentes. Os dois aspectos estão ligados a um processo de autonomização do campo, que desloca o eixo de atuação da crítica da imprensa para a universidade. Tanto a trajetória quanto a obra de Carpeaux trazem as marcas dessa mudança de paradigma e isso acarretou não poucas consequências para o crítico.

Um dos efeitos desse deslocamento está na pouca legitimidade de Carpeaux no campo literário nas décadas de 1940-1950, fato este que pode ser observado no tratamento periférico a ele conferido pelas instâncias de consagração – leia-se mercado editorial --, assunto que será desenvolvido mais adiante. Antes, porém, de avançar nesta análise, convém deter-se no contexto de produção da obra crítica de Carpeaux.

A crítica enquanto profissão

Otto Maria Carpeaux publicou seu primeiro artigo na imprensa brasileira em 20 de abril de 1941, no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro (Lins, 1943: 294). Era o início de uma intensa atividade dedicada à crítica literária, cultural e ao comentário mais ou menos ligeiro de autores, obras e ideias. Além do Correio da Manhã, a Revista do Brasil, O Jornal e A Manhã, todos do Rio de Janeiro, foram os periódicos para os quais Carpeaux passou a colaborar com regularidade no decorrer da década de 1940. A estréia de Carpeaux na imprensa brasileira foi registrada por Álvaro Lins, que credita ao diretor do Correio da Manhã, Paulo Bittencourt, a iniciativa de acolhê-lo. Mas deve-se,

26 na verdade, ao próprio Lins a proposta de transformar o então desconhecido “escritor” austríaco em articulista.

O escritor austríaco a que estou me referindo começará a escrever amanhã no Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Otto Maria Carpeaux. Porque conheço este escritor – sou talvez o único de seus colegas brasileiros a conhecê-lo de perto – estou certo que a sua atuação, na nossa vida literária, vai constituir um acontecimento de excepcional significação. (Lins, 1943: 294).

Foram bastante produtivos os anos de 1941 e 1942, tanto que ele seleciona e reúne textos para duas coletâneas, A cinza do purgatório e Origens e Fins, publicados em 1942 e 1943, respectivamente.

A primeira metade da década de 1940 foi um período bastante conturbado para Carpeaux. Além do processo de naturalização, concluído em 1944, o crítico envolveu-se em polêmicas com escritores e intelectuais brasileiros. Talvez a mais marcante dessas polêmicas tenha sido a que incluiu o escritor francês George Bernanos, que na época vivia no Brasil. O estopim foi um pequeno artigo publicado em dezembro de 1943 na Revista do Brasil, periódico fundado em 1916 e dirigido por Otávio Tarquínio de Souza. Intitulado A morte de Romain Rolland, o artigo era para ser apenas um necrológio do escritor francês, mas se transformou no estopim de uma campanha contra Carpeaux, protagonizada por George Bernanos, Genolino Amado, Guilherme Figueiredo e Carlos Lacerda.

Nesse período, Carpeaux trabalhou também na Biblioteca da Faculdade Nacional de Filosofia, da qual demitiu-se em 1944 para assumir cargo na Biblioteca da Fundação Getúlio Vargas. As cartas que trocou com Gilberto Freyre nessa época revelam as pressões sofridas por Carpeaux nesta difícil primeira fase de sua vida no Brasil. Numa delas, datada de 1944, Carpeaux se queixa das acusações de “fascista” feitas por Genolino Amado, Carlos Lacerda e Guilherme Figueiredo. Escreve:

Você deve estar informado quanto à conspiração que os senhores Genolino Amado, Carlos Lacerda e Guilherme Figueiredo montaram contra mim; sentiram-se incomodados por minha existência, e conseguiram, com a ajuda de Jorge Amado, transformar-me em ‘fascista’. Infelizmente, sei que, apesar das defesas do Álvaro e de José Lins, muita 27

gente continua a acreditar nisso, sobretudo na província. O prejuízo não me importa, mas sinto-me profundamente ferido. (Carpeaux, 1944).

Em dezembro de 1945, Carpeaux escreve a Ledo Ivo uma pequena carta, na qual refere-se ao fato de não estar mais “escrevendo regularmente nos jornais”. E acrescenta: “o motivo você bem sabe qual é” (Carpeaux, 1945). Em 1949, passa a publicar artigos no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.

As cartas que trocou com o historiador gaúcho Manoelito de Ornellas revelam a precariedade da situação de Carpeaux nesse período: “Vivo sem emprego, só do trabalho literário e jornalístico, o que é heroísmo involuntário, aliás”, escreve em 07/08/1949. (Carpeaux, 1949). Dois meses depois, em 04/10/1949, as preocupações financeiras são o assunto principal de suas cartas a Maoelito de Ornellas, que atuava como um contato de Carpeaux junto ao Correio do Povo.

Como sabes, estou deempregado, ‘chômeur’, e o trabalho jornalístico constitui minha única fonte de rendas. Podes calcular as dificuldades por que estou passando. [...] Desculpa a grande pressa e o tom direto desta carta. [...] Se pode providenciar a remessa dos 400 [cruzeiros] de Agosto ou dos 800 em uma vez, eu seria imensamente grato. (Carpeaux, 1949a).

Em 13 de setembro de 1950, Carpeaux escreve nova carta a Manoelito de

Ornellas, em que se permite fazer, em breves linhas, um balanço de sua vida após onze anos de Brasil: “Apesar de muitos esforços, o problema da minha vida não está resolvido até hoje; com 50 anos de idade, isso constitui experiência amarga. E nestes

últimos tempos pré-eleitorais o trabalho de redação me absorve todas as noites”.

(Carpeaux, 1950).

Por conta dessas dificuldades financeiras, Carpeaux precisava continuar escrevendo assiduamente para jornais e revistas, enviando artigos para os mais diferentes veículos, como Leitura, Jornal de Letras, O Jornal, Revista do Livro, entre outros, e não apenas situados no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas em diversas capitais do país.

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Além dessas publicações, destaca-se a produção para o jornal A Manhã, também do Rio, mantido pelo governo de Getúlio Vargas e dirigido por Cassiano Ricardo. Entre os anos de 1946 e 1953, Carpeaux publicou um total de 100 artigos no Suplemento Letras e Artes daquele veículo.

Espaço cultural ligado ao Estado Novo, A Manhã abrigava em suas páginas suplementos dedicados à literatura, como Autores e Livros (que circulou de 1941 a 1945) e Letras e Artes, onde Carpeaux publicou artigos de 1943 a 1953. Também importante neste jornal foi o encarte semanal Pensamento da América, produzido com o intuito de promover a ideia de pan-americanismo.

Veículo de imprensa pertencente às Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, assim como a Rádio Nacional, o jornal A Manhã não poderia permanecer ileso diante da avassaladora política cultural do Estado Novo (Sodré, 1999: 372; Gomes, 1999: 27-29). As décadas de 1930-1940 foram um período de transformações profundas no país, marcadas também pelo surgimento de lugares de sociabilidade diversificados, onde grupos distintos de jornalistas, críticos e intelectuais se reuniam para debater e divulgar suas propostas e ideias (Gomes, 2004).

Nesse sentido, torna-se fundamental mapear alguns desses lugares de sociabilidade, pois eles nos informam sobre o funcionamento do campo cultural e sobre suas relações com o campo político, instâncias essas que interferem decisivamente no fluxo de produção da imprensa (Bourdieu, 2007). Do ponto de vista metodológico, torna-se importante para este artigo o estudo de periódicos, da correspondência (no caso, as cartas de Carpeaux a Gilberto Freyre) e do funcionamento das casas editoriais, a fim de lançar luz sobre as relações de Carpeaux com os agentes desse campo político- cultural no Rio de Janeiro de então. Não se trata de efetuar uma contextualização histórica; o que interessa aqui é, como no dizer de Gomes, destacar “a existência de um campo intelectual com vinculações amplas, mas com uma autonomia relativa que precisa ser reconhecida” (Gomes, 2004: 81).

A Casa do Estudante do Brasil (CEB), por exemplo, era um lugar de sociabilidade em torno do qual se reuniam alguns intelectuais, jornalistas e escritores dos anos 40. As duas primeiras coletâneas de Carpeaux foram publicadas por esta editora e, na folha de rosto dessas obras, há propaganda das demais publicações da CEB e por este registro pode-se ter uma ideia concreta dos temas e autores que compunham o

29 catálogo da editora. Lá estão Gilberto Freyre, Aurélio Buarque de Holanda (a quem, aliás, Carpeaux agradece a revisão dos livros), Vianna Moog, Mario de Andrade, José Lins do Rego, Guilherme Figueiredo e outros. Os temas não deixam dúvida sobre o propósito de abordar os assuntos brasileiros, que norteavam as preocupações do período, centradas na construção de projetos nacionais.

Esta, por sinal, era a característica do pequeno campo artístico-cultural carioca da primeira metade do século 20. Tratava-se, no dizer de Ângela de Castro Gomes, de “um terreno privilegiado para a construção de projetos de intervenção social, sendo os intelectuais vistos e se representando como atores pioneiros e privilegiados na condução do futuro do país” (Gomes, 2004: 83).

Enquanto lugar de sociabilidade, a CEB vai se juntar a inúmeros micro-campos culturais em atividade no Rio de Janeiro de meados do século 20, todos imbuídos, em maior ou menor grau, do propósito de discutir, implementar e difundir projetos de Brasil moderno. Os campos literário, cultural e jornalístico são, nesse sentido, temas férteis para se conhecer e estudar o Brasil, a partir de duas orientações básicas: o modernismo e o nacionalismo vistos enquanto elementos para se estabelecer os parâmetros sócio- culturais da identidade nacional. A atuação de Carpeaux no campo cultural está inserida neste contexto.

A influência exercida pelo crítico no então pequeno campo literário brasileiro foi marcante, a começar pelo ineditismo e a originalidade de muitas de suas interpretações. A formação humanística consistente, que incluía, segundo ele próprio afirmou, onze anos contínuos de estudo da língua latina, o transformaram num de nossos primeiros e mais significativos mediadores culturais, atuando, de modo ainda que difuso, na formação do chamado leitor culto. Importante nesse processo foi o trabalho de divulgação e de comentário de autores até então praticamente desconhecidos entre nós, como Lichtenberg e Jacobsen, Hofmannsthal e Conrad, Alfieri e Verga, Burckhardt e Vico (aliás, duas de suas grandes influências). Isso sem falar em Kafka, de quem ele foi um dos primeiros comentadores em língua portuguesa. Em “Fragmentos sobre Kafka”, publicado em julho de 1946 em O Jornal, Carpeaux relembra, “não sem certo orgulho”, ter sido ele o autor do primeiro artigo que se publicou sobre Kafka no Brasil. (Carpeaux, 2005: 72). Trata-se de “Franz Kafka e o mundo invisível”, publicado em 1942 em A

30 cinza do purgatório. Também digna de nota foi a tradução de 20 aforismos de Kafka feita por Carpeaux e publicada em dezembro de 1943 na Revista do Brasil.1

Um crítico em busca de legitimação

Durante quase toda a década de 1940, Carpeaux esteve envolvido na elaboração de seu projeto mais ambicioso, que foi a História da Literatura Ocidental. Contratado pela Casa do Estudante do Brasil para escrever a obra, Carpeaux finalizou os últimos capítulos em novembro de 1945. Entregou ao editor cerca de quatro mil páginas datilografadas e, segundo ele, criteriosamente documentadas.2 Mas os originais ficaram parados, pois a Casa do Estudante do Brasil, órgão do Ministério da Educação, não possuía recursos para publicar a obra de Carpeaux. Como se não bastasse, o contrato com o editor estipulava uma pesada multa em caso de desistência do autor, e isso tornou inviável a publicação da obra por outra casa editorial. Quase dois anos depois, Carpeaux ainda vivia esse impasse. Em carta a Gilberto Freyre, datada de 31 de março de 1947, ele se queixa do editor, Arquimedes, que permanecia irredutível.3 Escreve Carpeaux:

Esgotei-me com esse trabalho, entregando os últimos capítulos em novembro de 1945. Não demorou a revelação desagradável: a C.E.B. é financeiramente incapaz de editar a obra. Naquele tempo, vários editores quiseram entrar no negócio, mas nosso amigo Arquimedes, possesso de ambição, não me largou, insistindo no contrato que não determina prazo de edição e me impõe no caso da rescisão da minha parte uma forte indenização (Carpeaux, 1947).

A obra somente seria publicada entre os anos 1959 e 1966, e pelas edições O Cruzeiro, dirigida por Herberto Sales. Mas as agruras de Carpeaux com este livro não pararam. Com tiragem imprecisa e diversos erros tipográficos, esta primeira edição foi revista e ampliada pelo crítico nos anos seguintes, para ser publicada a partir de 1978, pela pequena Alhambra, de Joaquim Campelo Marques.

1 O próprio Carpeaux explica em nota tratar-se da primeira tradução dos Aforismos de Kafka: “Esses aforismos, publicados postumamente, ainda não foram traduzidos para nenhuma língua”. (Revista do Brasil, 1943: 33-35) 2 Em 1943, na folha de rosto da primeira edição de Origens e Fins há uma relação dos lançamentos previstos pela editora, onde está anunciada a obra A literatura do Ocidente (3 vol.) de Carpeaux. 3 Arquimedes de Melo Neto, então editor da Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil. 31

Mas este não foi o único livro de Carpeaux a enfrentar problemas de natureza editorial. A Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, publicada em 1949 pelo Serviço de Documentação do MEC, chegou aos leitores com graves falhas de revisão. Tanto que foi motivo de comentário de Álvaro Lins na época:

Os erros de revisão desta Bibliografia saltam aos olhos de qualquer um, e por todos os lados, até no índice onomástico, onde a página indicada com precisão numérica para um Autor não é a que lhe corresponde de fato no texto” (Lins, 1952: 51).

Os incidentes editoriais envolvendo esses dois livros podem contribuir para uma reflexão sobre o interesse pela obra daquele que figura como um dos mais importantes críticos do país e fornece dados para reavaliar o lugar ocupado por seu autor no campo da crítica, assim como contribui para dimensionar sua importância no processo de formação do leitor e do próprio campo literário do país.

Cabe lembrar que, naquela época, já tínhamos no Brasil grandes casas editoriais, como a José Olympio, no Rio de Janeiro. Por que então a obra de Carpeaux foi publicada pela revista O Cruzeiro? Não será em vão lembrar aqui as palavras de Bourdieu (2007), por certo muito conhecidas, segundo as quais a posição ocupada por um autor em seu tempo está ligada à relação que mantém com as instâncias de difusão.

A forma das relações que as diferentes categorias de produtores de bens simbólicos mantêm com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis em um dado estado do campo cultural e, ademais, com sua própria obra, depende diretamente da posição que ocupam no interior do sistema de produção e circulação de bens simbólicos e, ao mesmo tempo, da posição que ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus de consagração. (Bourdieu, 2007: 154).

Em suma, não se pode ignorar a posição que um determinado agente ocupa na hierarquia das legitimidades culturais, posição esta que depende dos signos de reconhecimento ou de exclusão emitidos pelas instâncias de consagração. No jogo entre agentes pretendentes e dominantes no campo literário, pode-se dizer que Carpeaux não foi um autor legitimado por essas instâncias, pelo menos no período que estamos analisando. Em 2008 foi lançada uma terceira edição de História da Literatura

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Ocidental, pela editora do Senado Federal. Ainda que não se possa deixar de louvar a iniciativa das Edições do Senado Federal, é preciso considerar que as edições dessa obra ao longo da história foram feitas por editoras pequenas ou situadas à margem do sistema editorial brasileiro (é o caso das editoras O Cruzeiro, Alhambra e Senado) e que, por certo, não correspondem à imagem que o crítico obteve na posteridade. Em outras palavras, Carpeaux foi um autor de pouca legitimidade junto ao campo da difusão – leia-se mercado editorial – e isto pode ser comprovado pela história das edições de sua obra.

É evidente que a construção de uma reputação não se faz pela ação exclusiva deste ou daquele agente, desta ou daquela instituição, deste ou daquele veículo. Trata- se, como argumenta Bourdieu, de um sistema de relações objetivas, que inclui não apenas a concorrência entre agentes, cujos papéis estão associados a valores culturais diversos, mas também ao próprio conflito entre agentes que ocupam posições diferentes no processo. O que determina a fortuna de uma obra é, assim,

“(...) o campo da produção como sistema das relações objetivas entre esses agentes ou instituições e espaço das lutas pelo monopólio do poder de consagração em que, continuamente, se engendram o valor das obras e a crença neste valor”. (Bourdieu, 2008: 25).

Não obstante isso, a influência de Carpeaux é considerada um fator de relevância nas dinâmicas do campo no período em que estamos analisando. Como revela Junqueira (2005), que conviveu com Carpeaux nos anos 1950-60 e de quem se tornou amigo, a influência do crítico foi decisiva na formação de inúmeros futuros intelectuais brasileiros a partir da segunda metade do século XX. Junqueira recorda que, em 1956, já tendo abandonado o curso de Medicina para se dedicar à literatura, tomou contato com os artigos de Origens e fins, a segunda coletânea de Carpeaux publicada no país.

O fascínio pelo pensamento de Carpeaux estava obviamente vinculado a um processo de distensão e enriquecimento que cada um de nós viera acumulando ao longo dos anos do ponto de vista humanístico e cultural. Ele não alterou o rumo de nossas vidas, mas sua lição contribuiu de maneira notável para o nosso amadurecimento como intelectuais. (Junqueira, 2005: 24).

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Ao mesmo tempo em que contribuiu para a formação do campo da crítica literária no país, pois tornou-se referência na formação de muitos dos intelectuais hoje em atividade,4 Carpeaux empenhou-se para imprimir uma marca de profissionalismo (leia-se trabalho remunerado para garantir a sobrevivência) e de especialização a um ofício que até então era exercido por bacharéis e diletantes de todos os tipos.

Na confluência de dois modelos

No Brasil do início da década de 1940, a crítica literária apresentava duas características bastante definidas: ocupava as colunas fixas e rodapés dos jornais e de algumas revistas e era praticada em geral por profissionais liberais, os chamados homens de letras, que, formados muitas vezes no autodidatismo, escreviam em tom de comentário, num gênero bastante próximo ao da crônica. Ora, a formação de Carpeaux é bastante eclética. Formado em Química pela Universidade de Viena, profissão que jamais exerceu, Carpeaux, quando chegou ao Brasil, já era autor de três obras ensaísticas, como Wege nach Rom [Caminhos para Roma], Österreichs europäische Sendung [A missão européia da Áustria] e Van Habsburg tot Hitler [Dos habsburgos a Hitler]. Era também autor de vários artigos publicados em revistas como Der Christliche Ständestaat e Die Erfüllung, ambas de Viena, e Signale für die musikalische Welt, de Berlim. Não obstante, desde a juventude em Viena, o espaço ocupado por Carpeaux foi sempre a imprensa, caminho geralmente trilhado por publicistas e candidatos a escritor. Carpeaux possuía uma vocação natural para trabalhar na imprensa e isso costuma direcionar as habilidades individuais. Sua trajetória e sua produção textual estão marcadas por este direcionamento.

Como dissemos, neste momento, o campo da crítica no Brasil passava por uma mudança de paradigma, ligada ao deslocamento de seu eixo de atuação, que passa do jornal para a cátedra.

Estamos diante de um embate que coloca em cena dois modelos distintos de atitude crítica, assim como dois critérios de validade para o julgamento da obra literária. Para os objetivos deste capítulo, interessa saber qual é a posição ocupada por Carpeaux

4 Também o crítico Alfredo Bosi refere-se a Carpeaux como uma de suas leituras fundamentais de juventude: “Quando, por volta de 1950, comecei a me interessar por literatura, descobri, encantado, nas páginas do Diário de São Paulo, um mundo absolutamente novo para o ginasiano de treze anos. Era o mundo dos homens e dos livros trabalhados pela leitura de Otto Maria Carpeaux em artigos cheios de verve, poesia e paixão. Posso dizer que, durante anos a fio, não bebi de outra fonte em matéria de crítica literária”. (Bosi, 1992: 9). 34 nesse cenário e quais as implicações resultantes – do ponto de vista da legitimação – para a recepção de sua própria obra crítica. Nunca será demais lembrar que, como explica Bourdieu, a história de um determinado campo é construída pela luta dos agentes pelo “monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas.” (Bourdieu, 2008: 88).

Qual será o lugar de Carpeaux nesse movimento? Herdeiro de Álvaro Lins no Correio da Manhã, ele herda também um modelo de crítica que perde prestígio em função do surgimento de críticos “especialistas”. Ao crítico, portanto, não bastará ocupar o rodapé semanal – e vários, incluindo Carpeaux, continuarão a fazê-lo. A legitimação no campo da crítica virá cada vez mais da posição de determinado agente em relação à instância acadêmica.

Ao mesmo tempo, pode-se argumentar que a crítica de Carpeaux situa-se na confluência entre os dois modelos acima citados, apresentando característica de ambos. A própria biografia de Carpeaux o coloca a meio caminho entre o homem de letras não especializado e o crítico com formação específica em ciências humanas (ele teria cursado Filosofia e Sociologia em e Literatura Comparada em Nápoles, dados ainda não comprovados). Além do mais, Carpeaux inicia sua produção teórica em 1934, com Wege nach Rom [Caminhos para Roma], livro que, seja pela erudição, seja pelo tratamento formal dos temas, é uma obra marcadamente acadêmica, no contexto da tradição européia.

Por outro lado, razões de sobrevivência o levaram ao exercício da crítica profissional e a escrever com regularidade na imprensa. Nesse ponto poderíamos situá- lo na linhagem da crítica literária praticada nos rodapés dos jornais e vinculada a todo um conjunto de valores que o Afrânio Coutinho, sob a influência do New Criticism, procurava naquele momento estirpar da cultura brasileira.

No entanto, se foi por uma contingência que Carpeaux tornou-se crítico literário de jornal, sua formação humanística e o consistente trabalho dos conceitos que se depreende de suas análises da obra literária permitem-nos conjecturar que, fossem outras as circunstâncias, ele talvez tivesse produzido uma obra de natureza teórica (com ou sem vínculos acadêmicos), projeto este que o destino se encarregou de abortar. O próprio Carpeaux tinha consciência disso e não hesitava em afirmar que o jornalismo era apenas um meio de vida. Seja como for, a trajetória de Carpeaux o conduziu para a

35 imprensa e tanto sua obra quanto seu estilo refletem as contingências e marcas desta atividade. Não podemos esquecer também que, mesmo na Áustria, Carpeaux já trabalhava como jornalista, escrevendo sobre política e cultura.

Com efeito, em seus inúmeros artigos é possível encontrar exemplos tanto da antiga crítica literária como da análise especializada -- apoiada em citações, notas de rodapé e vasta bibliografia --, que se institucionaliza nas universidades brasileiras a partir dos anos 1950-60, mas que já era prática comum em seu país de origem. Não seria, portanto, exagero afirmar que o percurso ensaístico de Carpeaux movimenta-se entre os dois pólos da crítica enquanto gênero: do impressionismo dos homens de letras à abordagem teórica que será a marca da crítica acadêmica que se institui neste período.

Já no plano epistemológico, as interpretações de Otto Maria Carpeaux -- quase sempre intuitivas, impressionistas, ao mesmo tempo em que fortemente armadas de erudição -- deixam a lição de que as armas da crítica precisam ser forjadas apenas e na medida em que a obra as solicita. Contrário à aplicação mecânica e instrumental do método crítico à obra, Carpeaux percorre um movimento que pode ser traduzido pelo seguinte axioma: é a obra literária que funda o método. É ela que o elege e não o contrário. Nesse sentido, fica evidente sua oposição ao New Criticism, cujos preceitos cientificistas ele não deixa de ironizar:

Empregam-se métodos, criados em situações literárias diferentes, para explicar onde não há nada para explicar. Com impaciência estou esperando que um crítico da novíssima geração dedique trabalho de análise estilística às imagens da vida doméstica nos romances da Sra. Leandro Dupre ou à frequência de adjetivos astronômicos na poesia de Petrarca Maranhão. Antigamente não foi assim. Os nossos críticos antigos nem sequer sabiam o que é método. Num sentido muito diferente, Augusto Meyer também ‘não tem método’. Emprega ora este, ora aquele processo de interpretação, obedecendo só e exclusivamente à natureza da obra que pretende interpretar; o método estilístico, o método sociológico (nos seus estudos de literatura gaúcha) e last but not least – o método psicológico. (Carpeaux, 1999: 852).

Consciente das limitações e insuficiências inerentes a todo método quando se defronta com seu objeto, Carpeaux se movimenta, sempre, da parte para o todo e vice-

36 versa. Ao mesmo tempo, articula diferentes disciplinas teóricas, sem sacrificar ou submeter a obra literária a nenhuma delas. História, sociologia, psicologia, filologia, biografia e poética convivem lado a lado em suas leituras e são utilizadas pelo intérprete na medida de sua necessidade. Cada obra solicita um determinado tipo de abordagem e o resultado é uma crítica que se mantém equidistante de linhas, movimentos ou tendências.

Com efeito, a crítica de Carpeaux remete à atuação de um sujeito dotado de exuberante arsenal crítico e metodológico, disposto e capaz de mobilizar os mais diversos recursos do conhecimento em favor da exegese literária. Carpeaux parece confirmar aquele ideal de intérprete que, sabendo que não se é um bom crítico literário sendo apenas crítico literário, não hesita em transpor as fronteiras de sua área para invadir, resolutamente, o quintal dos outros. Assim, uma das questões suscitadas pelo contato com a obra crítica de Carpeaux diz respeito à existência ou não de limites ou de autonomia para o campo da crítica. O conceito de campo designa um espaço regido por leis próprias e dotado de relativa autonomia. No caso do campo da crítica, cabe indagar acerca do grau de autonomia que esta pode manter em relação aos campos do jornalismo e das letras. A questão do método não está imune a esta dinâmica.

Nesse sentido, não se pode classificar o método crítico de Carpeaux na mesma linhagem de Afrânio Coutinho, como o faz, por exemplo, Miguel Sanchez Neto. “As concepções de Carpeaux faziam eco às de Afrânio Coutinho, que vinha defendendo a nova crítica, de matriz universitária”, escreve. (Neto, 2005: 16). Para sustentar a hipótese de que Carpeaux teria endossado o movimento contra os homens de letras, Sanches Neto cita trecho do artigo em que o crítico austríaco-brasileiro enumera os requisitos exigidos ao exercício da crítica. “O crescimento do poder das faculdades de letras dar-se-á na esteira de ideias como a de Carpeaux”, escreve Sanches Neto, esquecendo-se, no entanto, de que o pressuposto fundamental do crítico, para Carpeaux, é o gosto. No mesmo parágrafo do artigo citado por Sanches Neto está a seguinte passagem, que anula a hipótese de uma sintonia de Carpeaux com o New Criticism. “E para tanto não basta toda a ciência literária do mundo, se não houver a colaboração daquilo que um espírito tão científico como Croce francamente admite: o gosto”. (Carpeaux, 1999: 849).

37

Mas é a passagem de abertura desse mesmo artigo que fornece elementos para situar o posicionamento de Carpeaux em relação à crítica: “Antigamente tivemos muitos críticos sem teoria alguma. Agora temos muita teoria, uma floresta tão densa que ninguém mais consegue distinguir as árvores.” (Carpeaux, 1999: 848).

Para compreender o significado de tal posicionamento, é preciso ter em mente que os textos de Carpeaux publicados na imprensa tinham como destinatário um público leitor dotado de certa cultura literária, que legitimava as posições assumidas pela crítica. Também é preciso lembrar que tal modalidade de escrita costuma hoje despertar a “desconfiança de profissionais que baseiam sua prática apenas na rotina do método”. (Sarlo, 2007: 15). Nesse sentido, o papel desempenhado por Carpeaux no campo da crítica brasileira foi o de um intermediário cultural, cuja função primeira – embora não a única -- é a de servir de mediação entre o autor e o público. Em outras palavras, uma atividade que possuía mais a marca de uma missão do que propriamente de uma profissão.

*****

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1.3. José Castello: o crítico enquanto leitor comum

Contra os adeptos da leitura dura e encrespada, em que a letra se faz grilhão, prefiro o sentido que lhe empresta a literatura, em que as palavras traçam estradas sinuosas em que nos perdemos. (Castello, 16/4/2011: 4).

Os argumentos referidos nos capítulos anteriores deste estudo podem contribuir para entender os motivos pelos quais a explicação do texto literário e a análise científica da obras artísticas têm sido, cada vez mais, encaradas com suspeita e desqualificadas como atividade secundária. Os motivos de tais reações – que envolvem também a figura do crítico – estão ligados à reivindicação da autonomia da literatura, como se esta somente comportasse explicações literárias. Outra razão repousa na idéia de transcendência da obra, de algo que não pode ser compreendido ou decifrado pelo conhecimento racional. Esses motivos já inspiraram inúmeros libelos contra a análise “científica” da arte, como o conhecido livro de Marcel Proust, Contra Saint-Beuve, escrito contra os procedimentos de um dos grandes nomes da crítica francesa. Mas estão também na base das críticas publicadas por José Castello na coluna semanal que manteve por muitos anos no Suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo. Castello é um dos principais representantes da crítica jornalística na atualidade e suas colunas carregam os traços típicos desta linhagem crítica, como a linguagem que instaura um clima de conversa com o leitor, a mistura de digressões e lembranças pessoais no texto, além de uma recusa deliberada em fazer uso de certezas e demonstrações teóricas. Tais elementos parecem fazer o texto deslocar-se para uma conversa fiada, mas, quando menos esperamos, nos conduzem a uma chave de leitura da obra em questão. Neste ponto, o leitor já está definitivamente convencido de seus argumentos. Mais do que isso: o leitor é, com freqüência, fisgado, motivado a ler o livro em questão. As colunas de Castello no Caderno Prosa & Verso são construídas para

39 manter uma relação bastante evidente com o leitor e esta função instrumental insere sua crítica no âmbito do jornalístico. É, portanto, de crítica jornalística que estamos falando. Além disso, há marcas textuais que podem muito bem ser caracterizadas como as de um cronista, de um narrador que se permite escrever em primeira pessoa, como na crítica em que procura uma definição para seu ofício: “Sou um leitor sentimental. Quando leio, guio-me por sentimentos vagos, que me ficaram de leituras antigas e de impressões resistentes, e que, de alguma maneira, formam o leitor que sou”. (Castello, 16/10/2010). Ou em outro trecho, na abertura de uma coluna: “Leio – tento ler, no meu jeito torto e precário de leitor solitário”. (Castello, 07/5/2011: 4). São essas características que procuraremos identificar e descrever neste capítulo. O corpus da pesquisa é constituído pelos artigos de José Castello publicados em sua coluna semanal do Suplemento “Prosa & Verso”, do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, no período de 2011 a 2013. Foram analisados um total de 114 textos, sendo 43 em 2011; 41 em 2012; e 30 em 2013. Assim, as críticas de José Castello no Suplemento Prosa & Verso foram classificadas em função de determinadas recorrências e características, tais como: concentrações temáticas, posicionamentos assumidos diante das obras, escolhas de objetos críticos, critérios de julgamento, além de outros traços observados na documentação coletada. A análise do corpus foi precedida de um tratamento estatístico do material, a fim de identificar as recorrências e as constantes temáticas presentes em suas colunas. Após essa etapa preliminar, efetuou-se a análise interpretativa, ou conteudística, dos dados classificados na fase anterior. Os textos críticos de José Castello, tomados aqui como dados empíricos, foram objeto de explicação e interpretação a partir dos operadores conceituais oriundos do quadro teórico de referência, com o qual temos trabalhado no decorrer deste estudo. Em 2011, foram localizados e examinados um total 43 textos de José Castello publicados em sua coluna de crítica no Suplemento Prosa & Verso. Desse total, 29 colunas têm como tema obras de Ficção; 13 abordam obras de Não-ficção e 01 coluna aborda obra classificada como Categoria não definida; 06 edições do Jornal O Globo não puderam ser localizadas e, portanto, não estão incluídas nesse levantamento. Das 29 colunas com temática de Ficção, 18 referem-se ao gênero Romance, 09 abordam obras de Poesia, e 02 colunas tem como tema livros de Contos, sendo que uma dessas colunas aborda, comparativamente, Romance e Conto. Ainda nessas 29

40 colunas dedicadas a obras de Ficção, constatamos que 20 referem-se a Autores Nacionais; 08 a Autores Estrangeiros e 01 coluna aborda 01 autor nacional e 01 estrangeiro, ao mesmo tempo. Entre as 13 colunas dedicadas a obras de Não-ficção, 09 são de Ensaio, 02 de Crônica, 01 de Ciência e 01 de Filosofia. Ainda entre as colunas de Não-ficção, 10 tratam de autores estrangeiros e apenas 03 de autores nacionais. O quadro a seguir sintetiza os dados.

Quadro 01 Artigos de José Castello no Suplemento Prosa & Verso – 2011

Categoria: Ficção Gênero Quant. Nac. Estrang. Nac. e Estrang.

Categoria: Ficção Romance 18 09 08 01

Categoria: Ficção Conto 02 02 -- --

Categoria: Ficção Poesia 09 08 01 --

Categoria: Ficção Infantil ------

Sub- total 29 19 09 01

Categoria: Não-Ficção Ensaio 09 02 07

Categoria: Não-Ficção Crônica 02 01 01

Categoria: Não-Ficção Ciência 01 -- 01

Categoria: Não-Ficção Filosofia 01 -- 01

Sub-total 13 03 10 --

Categoria não definida 01 -- 01

Total em 2011 43 22 20 01

Em 2012, foram localizados e examinados um total de 44 edições do Suplemento Prosa & Verso (08 edições do Jornal O Globo não puderam ser localizadas). Desse total, foram excluídas três edições, em que a coluna de José Castello não foi publicada,

41 embora tenha havido textos do autor.5 Assim, temos em 2012 um universo de 41 textos publicados na coluna fixa “José Castello”. Desse total, 30 colunas têm como tema obras de Ficção; 10 abordam obras de Não-ficção e 01 coluna foi classificada como categoria não definida. Ao mesmo tempo, 24 colunas são dedicadas a autores Nacionais, enquanto que 17 colunas abordam autores Estrangeiros. Das 31 colunas com temática de Ficção, 14 referem-se ao gênero Romance, 09 abordam coletâneas de Conto e 06 colunas tem como tema livros de Poesia. Há também 01 coluna dedicada a gênero não definido e 01 coluna abordando obra Infantil. Entre as 10 colunas dedicadas a obras de Não-ficção, 09 são de Ensaio e 01 de Crônica. O quadro abaixo sintetiza os dados.

Quadro 02 Artigos de José Castello no Suplemento Prosa & Verso – 2012

Categoria: Ficção Gênero Quantidade Nacional Estrangeiro

Categoria: Ficção Romance 14 08 06

Categoria: Ficção Conto 09 06 03

Categoria: Ficção Poesia 06 03 03

Categoria: Ficção Infantil 01 01 --

Sub- total 30 18 12

Categoria: Não-Ficção Ensaio 09 05 04

Categoria: Não-Ficção Crônica 01 01 --

Sub-total 10 06 04

Categoria não definida 01 01

Total em 2012 41 24 17

5 As três edições excluídas foram: 1) edição de 04/02/2012: dedicada integralmente aos 90 da Semana de Arte Moderna; Castello publicou resenha, em outro espaço do Suplemento, sobre a obra O santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade. 2) edição de 30/06/2012: dedicada integralmente à cobertura da FLIP; Castello publicou resenha sobre dois livros de Francisco Dantas. 3) edição de 07/07/2012: também dedicada à cobertura da FLIP, Castello publica resenha ao livro O Torreão, de Jenifer Egan. 42

Em 2013, foram localizados e examinados um total de 30 edições do Suplemento Prosa & Verso (22 edições do Jornal O Globo não puderam ser localizadas). Desse total, 28 colunas têm como tema obras de Ficção e 02 abordam obras de Não-ficção. Das 28 colunas com temática de Ficção, 13 referem-se ao gênero Romance, 12 abordam obras de Poesia 01 coluna tem como tema livros de Contos, e 02 colunas dedica-se a obras Infantis. Ainda entre essas 28 colunas dedicadas a obras de Ficção, constatamos que 19 referem-se a Autores Nacionais e 09 a Autores Estrangeiros. As 02 colunas dedicadas a obras de Não-ficção abordam Ensaio, e ambas tratam de autores estrangeiros. O quadro a seguir sintetiza os dados.

Quadro 03 Artigos de José Castello no Suplemento Prosa & Verso – 2013

Categoria: Ficção Gênero Quantidade Nacional Estrangeiro

Categoria: Ficção Romance 13 06 07

Categoria: Ficção Conto 01 01 --

Categoria: Ficção Poesia 12 10 02

Categoria: Ficção Infantil 02 02 --

Sub- total 28 19 09

Categoria: Não-Ficção Ensaio 02 -- 02

Categoria: Não-Ficção Crônica --

Sub-total 02 -- 02

Total em 2013 30 19 11

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Movimentos de leitura na crítica de José Castello O levantamento estatístico acima referido permite visualizar, em primeiro lugar, alguns aspectos daquilo que chamaremos de “agendamento crítico” para as colunas de Castello. Além disso, possibilita a identificação dos pressupostos conceituais e programáticos presentes nas colunas do crítico. O primeiro desses pressupostos surge a partir do seu conceito de leitura, como revela a coluna “O espírito da letra”:

O problema é que toda leitura – mesmo a mais atenta e sábia – é, sempre, uma desfiguração. Toda leitura é deformada. Para meu incômodo, voltam-me as palavras de Augusto Roa Bastos: ‘os livros não existem. Na cabeça de cada leitor, um livro é sempre outro livro. O problema não está na constatação de que a letra é um abismo sobrevoado por muitos espíritos. Está em esconder isso e supor que a leitura, ao contrário, é uma pedra. Leninistas e trotskistas ainda hoje discutem a maneira ‘correta’ de ler Karl Marx. Freudianos e lacanianos disputam a posse da ‘verdadeira leitura’ de Sigmund Freud. Um veio fundamentalista atravessa essas divergências. Contra os adeptos da leitura dura e encrespada, em que a letra se faz grilhão, prefiro o sentido que lhe empresta a literatura, em que as palavras traçam estradas sinuosas em que nos perdemos. (Castello, 16/4/2011: 4).

A passagem acima é repleta de significação, pois identifica o método utilizado pelo leitor José Castello diante da análise de uma obra. Ao reivindicar para a leitura o estatuto de uma desfiguração ou deformação, Castello desloca o exercício analítico para o inefável, para algo que jamais poderá ser explicado. Como veremos, a crítica de Castello conduz o leitor por estradas sinuosas, bem distantes da segurança (e das amarras) da abordagem científica da literatura. “O leitor é ele também um ficcionista. Entre um livro e quem o escreve abem-se muitas fendas”, assevera em outro artigo. (Castello, 01/1/2011: 4). Há, claramente, em Castello, uma recusa das leituras feitas pelos especialistas, ou melhor, pela chamada crítica acadêmica. A interpretação fechada e o apego ao sentido do texto decorrente da aplicação teórica são recusados insistentemente pelo crítico. Isso é evidente, por exemplo, na coluna em que escreve sobre a poesia de Rainer Maria Rilke:

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É preciso chegar ao avesso da letra. A palavra não passa de uma cortina através da qual tentamos delinear a silhueta do real. Ler através: é o que nos pede a poesia de Rilke, e não a leitura rigorosa – ‘ao pé da letra’ – feita pelos especialistas. Não ao pé, mas frente a frente: este é o desafio que ele nos propõe. (Castello, 02/06/2012: 4).

O que dizer do trecho acima? Passados mais de meio século desde a campanha de Afrânio Coutinho em favor da crítica especializada, estamos diante de uma postura interpretativa que pode ser situada no âmbito do impressionismo crítico. As colunas de Castello deixam evidente sua filiação à vertente da crítica literária, ou, como diria George Steiner, ao velho criticismo, o mesmo que foi alvo de Coutinho e de seus seguidores que, no decorrer do século 20, empenharam-se em dar um estatuto de cientificidade à tarefa da crítica. Mas Castello trabalha em outra órbita, como estamos procurando demonstrar nesta pesquisa. Em outro artigo, Castello confronta os métodos da literatura e da ciência para reafirmar seus postulados críticos, em que ler, é “ler de lado”:

Ler um poema é deslocar-se diante do poema. Não é ler de frente, é ler de lado. Não é decifrá-lo-- olhar reto do cientista – mas vigiá-lo – olhar transverso do poeta. Interrogar novas posições, duvidar das conhecidas, desconfiar dos sentidos imediatos. (Castello, 12/3/2011: 4).

A literatura surge como uma máquina de interrogações, ao passo que as provas fornecidas pela ciência são apenas “uma questão de poder, e não de verdade”:

A literatura não é uma fantasia ingênua, um divertimento sem consequências. Ao contrário, ela é uma máquina de interrogar as coisas. Com suas bordas frouxas, seu olhar ‘de banda’, e sua inconstância, só a literatura pode desmascarar as ilusões da verdade. (...) A rigor, os instrumentos científicos não fornecem respostas ao desconhecido. O que fazem? Enquadram o desconhecido no conhecido e, assim, acreditam dominá-lo. (Castello, 5/2/2011: 4).

Argumentos e experiências de ordem pessoal e histórias de família também informam a crítica de Castello, amarrando e sustentando seus critérios na tarefa da leitura. E nossa hipótese central é a de que esses elementos são mais relevantes para a

45 crítica de Castello do que razões teóricas e argumentos conceituais. Vejamos alguns casos. Pode ser, por exemplo, um vizinho de prédio do colunista, que surge no texto como um interlocutor, como é o caso do “barbeiro aposentado que depois de velho se tornou um grande leitor”. Certo dia, ao sair pela manhã com um romance do escritor angolano Pepetela embaixo do braço, ele encontra o vizinho, que despreza a literatura, por acreditar somente nos fatos e na história.

Por isso meu vizinho despreza a literatura – e, por isso também, Pepetela entra agora em sua lista negra. Meu miserável vizinho acredita que escritores só se interessam pelo inútil. (Castello, 12/05/2012: 4).

No decorrer do artigo, Castello empenha-se em demonstrar que seu vizinho – um leitor comum – está equivocado, e que a literatura não pode ser desprezada. Histórias familiares do próprio Castello são recorrências freqüentes em sua crítica e a memória funciona como uma chave para abrir caminho no mistério da obra. A coluna “O tio e o poeta” é exemplar desse método. Na abertura do texto, o leitor é informado sobre a paralisia infantil que deixou seu tio Luís Guimarães semi-paralisado. Movendo-se com extrema lentidão, o tio “saía de seu quarto cinco minutos antes do almoço para que não o esperassem à mesa”. Mesmo assim, Castello explica que a paralisia do tio era “capaz de movê-lo”. Essa observação atuará como um dispositivo de leitura, já que a lembrança do tio surge no momento específico, ou seja, no meio da leitura de um livro de poemas de Luciano Trigo, intitulado Motivo. Aos poucos, o leitor é conduzido para um movimento de leitura que busca aproximar a imagem do tio Luís com a do poeta Luciano.

O que movia meu tio, um homem que, contra todas as probabilidades, conservou, até sua morte, relativa autonomia? A pergunta, estranhamente, é muito parecida com outra, igualmente sem resposta: o que move um poeta (Luciano Trigo), o que o leva a, contrapondo-se à dureza do mundo, insistir em escrever versos? (Castello, 20/07/2013: 7).

É, pois, nessa capacidade ou dificuldade de se mover que o crítico encontra seus argumentos para a leitura de um livro de poemas, traçando paralelos entre um e outro, como se o poeta escrevesse em nome do tio. Como nos diz o próprio Castello ao final de sua coluna, 46

“esta é só a maneira que hoje leio os poemas de Luciano. É minha maneira de ler. Seus poemas me ajudam a ressuscitar um pouco meu tio querido. Poderia esperar mais da poesia? O que mais um poeta poderia me dar? (Castello, 20/07/2013: 7).

A leitura – como Castello a concebe – parece ser uma experiência imprevisível, única, pessoal. Seus motivos, histórias, argumentos, paralelismos, alusões e conclusões não podem ser tomados como modelares, nem são transferíveis a outros críticos. Em outras palavras, seus exemplos de leitura são marcados por uma não-exemplaridade tal que os impede de serem transformados em um método. Ao mesmo tempo, sou levado a pensar que essas recorrências, observadas no decorrer de três anos de colunas, permitem-nos falar de um certo padrão. Logo, não poderiam ser configuradas num método? Mas não haverá mesmo um método nesse procedimento, já que estão presentes nos seus textos, repetem-se, incidem com regularidade em sua crítica? Outro exemplo desse viés pessoal está na coluna em que revela a doença de sua própria mãe, que sofre de Parkinson, para falar de um livro de poemas cujo tema é o envelhecimento e a morte, e cuja autora retrata o drama da mãe, que sofre de Alzheimer. Como ler este poema? A experiência pessoal é, novamente, a chave: “sei do que fala Tamara [Tamara Kamenszain, a autora] porque também eu tenho uma mãe que se perde nos corredores do Parkinson”, escreve o crítico. (Castello, 20/4/2013: 7). O distanciamento cada vez maior provocado pela doença, que gera progressivamente uma lacuna, um vazio entre mãe e filha (retratado no livro de poemas) é também um sintoma do que se passa entre o crítico e sua mãe.

Sinto isso, cada vez mais, quando vejo minha mãe, Lucy. Quanto mais dela tento me aproximar, e quanto mais ela luta para se agarrar em mim, mais nos afastamos. Tem sido melhor, bem melhor, o silêncio. (Castello, 20/4/2013: 7).

De modo semelhante à crítica anterior, aqui também a experiência pessoal é o referencial para a interpretação. Aqui também Castello dirá que a poesia de Tamara fala por ele. O ponto central da leitura é também um ponto de identificação pessoal do crítico com a temática do Alzheimer e do Parkinson. Por fim, a constatação – frequente em Castello – de que a linguagem não consegue dar conta do real, e que esta é uma luta

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“fadada ao fracasso, para agarrar a coisa. Resta-lhes a grade da linguagem. Cheia de furos, por eles escorre o que não vemos”. (Castello, 13/4/2013: 7). Outro artigo em que a experiência pessoal é convocada para a tarefa da interpretação é “O mundo flutuante”. (Castello, 13/4/2013: 7). Aqui, o episódio do tio que desapareceu, Mário Guimarães, surge à lembrança de Castello no momento em que lê Histórias da outra margem, romance do japonês Nagai Kafu. O desaparecimento do tio, contado pelo crítico aos participantes de uma oficina literária (aliás, com frequência o crítico cita esta atividade em suas colunas), assim como o relato de uma participante da oficina que também teve um pai desaparecido, servirão de inspiração para a leitura do romance. Ao relatar o seu percurso de leitura, Castello conta ao leitor que, em certo momento do romance, reviu o semblante de seu tio Mário, mas não foi só isso: reviu, também, “a face branca de minha aluna enquanto relatava, aos trancos, o desaparecimento de seu pai.” (Castello, 13/4/2013: 7). Temos, pois, dois elementos extra-literários, ambos oriundos da esfera pessoal do crítico, informando e inspirando a leitura da ficção. Novamente não há referências teóricas, mas a convicção de que a própria literatura é capaz de produzir interpretações, como se fosse uma máquina.

A ficção tem o poder atordoante de arrastar consigo memórias perdidas e recordações desagradáveis. Ela é uma espécie de máquina que faz a mente se mover – e não podemos controlar a direção. (Castello, 13/4/2013: 7).

Em outros momentos, é a lembrança do convívio com escritores que Castello utiliza como argumento inicial de seu artigo. Pode ser a convivência com João Antonio na redação do Diário de Notícias ou uma carta enviada por Castello a Clarice Lispector, encaminhando-lhe um conto que ele, aos vinte e poucos anos, acabara de escrever. Essas figurações do autor diante do leitor deslocam o texto de Castello para a órbita de um discurso crítico que busca estabelecer um diálogo com o receptor. Está, pois, aqui, uma das funções que consideramos centrais do texto de Castello: o exercício de uma crítica situada numa posição intermediária entre a obra e o público. Vem daí a resistência do crítico em utilizar anteparos teóricos em suas leituras. Deste modo, não é dimensão teórica que constrói seus argumentos críticos, mas, antes, são os elementos textuais, extraídos, em boa medida, de sua experiência de leitor, como no trecho que abre a crítica intitulada “João de bermudas”: “Todo um passado –

48 os anos de minha formação – retorna assim que abro os Contos reunidos de João Antonio”. (Castello, 17/11/2012: 7). Não são as referências que surgem, mas é a própria vida pessoal que se manifesta, numa ativação da memória involuntária, para usarmos o conceito proustiano. Por exemplo, no artigo em que relata o telegrama que recebeu de Clarice Lispector, Castello deixa evidente seu afastamento do conceito e da abstração, lição que aprendeu com Clarice:

Aprendi muito mais com ela do que com qualquer professor. Aprendi? A palavra não é bem essa, mas eu a uso, por me ser mais conveniente. Não há palavra que explique o que a ficção de Clarice faz com seu leitor.” (Castello, 19/05/2012: 4).

Assim como Clarice, Castello não se interessa por conceitos, pois estes “só acorrentam e calam”. (Castello, 19/05/2012: 4) Consciente das insuficiências de todo método científico diante de seu objeto, Castello reafirma constantemente a autonomia do literário na arte da interpretação, vista aqui como pertencente à esfera do inexplicável, de algo que escapa ao conhecimento.

Quando chega ao leitor, a mensagem também continua indecifrável; por mais que tente, ele não consegue abri-la. Tudo o que lhe resta são as palavras. Ler um poema é tentar rasgar um envelope inviolável. (Castello, 22/1/2011: 4).

Pode-se, mesmo, constatar um viés anti-acadêmico na crítica de Castello, que se posiciona de modo firme na defesa de uma leitura desarmada da obra literária. É também uma resposta contundente aos efeitos devastadores para a crítica provocados pela institucionalização da teoria literária, que buscou revestir a atividade crítica, que sempre esteve ligada a uma linhagem literária e jornalística, de uma roupagem científica e, assim, controlar o trabalho de seus praticantes. “Os acadêmicos pretendem se apropriar dos textos literários através da interpretação teórica”, escreve ele. (Castello, 14/07/2012: 4). É evidente que Castello se arma para enfrentar a leitura de um texto literário, mas ele recorre à sua experiência de leitura e não a um arsenal de ordem teórico- metodológica. Assim, a obra ficcional assume o estatuto de chave interpretativa para a própria ficção. Que método é esse em que a ficção se transforma em ferramenta crítica? 49

Como classificar este procedimento, senão a partir de uma suposta autonomia da literatura, como se esta somente pudesse ser interpretada à luz de explicações literárias? Por isso, uma crônica de Rubem Braga surge como fator de explicação para um livro de poemas de Sérgio Alcides, por exemplo. Vejamos, mais uma vez, o movimento de sua leitura. Castello está lendo Rubem Braga enquanto “atravessa”, intrigado, os poemas de Alcídes (Píer).

Poemas desafiadores, que me pediam, desde os primeiros versos, um posto de observação – um Píer – desde onde eu pudesse contemplá-los com mais lucidez. Eis que encontro em Braga a plataforma que buscava. Ela me aparece na crônica “O mistério da poesia”, de 1949. (Castello, 06/04/2013: 7).

O crítico encontra no cronista, e na crônica, um referencial para a leitura da poesia. Procura demonstrar que a crônica não é um gênero menor, que veicula apenas futilidades, mas que pode comportar também argumentos de ordem interpretativa. Além de destacar elementos em comum entre a crônica de Braga (exegética?) e os poemas de Alcides, Castello se detém na falsa premissa de que os pensamentos profundos, complexos, requerem uma linguagem hermética. “Braga deplora a crença de que, quando turvamos um pouco as águas, elas se tornam mais profundas”, escreve. (Castello, 06/04/2013: 7). É justamente esta idéia de que o pensamento complexo está na superfície das coisas que leva Castello a recorrer à poesia de Manoel de Barros para explicar outra obra literária, desta vez o romance de Javier Cercas. Novamente temos um movimento de leitura nada convencional, embora semelhante ao exemplo anterior. Vejamos, mais uma vez, esta maneira enviesada de leitura praticada por Castello:

Li “A velocidade da luz” em Cuiabá, onde estive para uma palestra sobre Manoel de Barros. Às vezes, parava de ler o romance de Javier para reler poemas de Manoel. Esses saltos produzem interferências – como os chiados dos velhos rádios. De alguma forma (retorcida, ela também), a voz de Manoel se infiltrou em minha leitura de Javier. Acho que o li como se fosse um poeta. Talvez ele seja um poeta. (Castello, 04/05/2013: 7).

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Uma ficção se sobrepõe à outra, a voz poética buscando iluminar o romance, as interferências de leitura tomando o lugar dos conceitos, num método que nunca deixa o leitor entrever em que direção caminha. “Temos sempre uma maneira torta de ler – e é através deste empenamento que entramos em um livro”, escreve Castello. (04/05/2013: 7). Esta “maneira torta de ler” contamina também o ponto de vista da narrativa, caracterizada por uma voz crítica vacilante, construída mais por questionamentos do que por respostas. Castello é um crítico que não tem, e nem deseja ter, diante do leitor, o domínio pleno de suas leituras. Não se trata de um ponto de vista frágil, mas de uma reiterada recusa em assumir a posição de um crítico legislador. Aos que esperavam esta postura, o crítico responde:

Alguns leitores ainda esperam que eu faça a crítica das ficções que leio. Mas o que se passa aqui é outra coisa. Elas, sim, me interrogam e me criticam. Vão mais longe: interrogam e criticam a cena literária que as produz e dentro da qual eu tento pensar. (Castello, 08/06/2013: 7).

O que se passa, afinal, na crítica de Castello? Nela não se encontram certezas ou respostas prontas, resultantes da aplicação de um método. O crítico não deseja ocupar o lugar do crítico, no sentido tradicional da palavra, ou seja, do especialista. É esta autoridade legitimada que ele recusa, buscando, outrossim, legitimar-se no campo a partir de novos parâmetros. Procura, antes, envolver-se ou surpreender-se, com o que lê, como no trecho a seguir, em que reproduz a opinião de um leitor na própria coluna: “‘Que bom que você ainda se surpreende com livros’, me diz uma amiga querida. Seu comentário, sem que ela saiba disso, sintetiza o problema que venho propor a meus leitores”. (Castello, 12/01/2013: 7). Ora, um crítico que admite publicamente que se surpreende com a leitura de uma obra é, antes, um anti-crítico, que desce de seu pedestal para assumir a condição de leitor, de intérprete, no sentido de que cada interpretação é, sobretudo, uma possibilidade, entre outras. A obra é como uma partitura, em que cada intérprete produz sua versão. Castello parece levar às últimas conseqüências esta premissa. Para ele, ler uma obra é como empreender uma expedição na selva. “Sou um leitor. Não há um destino certo, tampouco existem placas de sinalização, acostamentos, ou mirantes. É tudo disperso e indefinido”. (Castello, 19/10/2013: 7).

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Como, então, apropriar-se de um texto? Qual é o caminho crítico? Ler é tomar posse daquilo que se lê e nesse ponto até mesmo Castello concorda: “um leitor é isso: alguém que se apossa de um livro. Que faz do texto alheio, seu texto. Que nele rasga uma segunda assinatura”. (Castello, 06/10/2012: 7). Mas é no conceito de leitura que encontramos a chave para compreender o método de José Castello. Está na própria condição fraturada do leitor, que não consegue jamais decifrar o enigma da obra. A literatura é aquilo que não pode ser plenamente conhecido. Por isso, ele dirá que “todo leitor é um detetive impotente, que não chega a decifrar o enigma que tem diante de si”. (Castello, 06/10/2012: 7). A reação à análise teórica, tão visível em suas colunas, remete-nos a uma visão da literatura como algo que se situa na esfera do incognoscível, que escapa à compreensão do analista: “todo pensamento a respeito da literatura esbarra em algo que é inerente à própria literatura: o caráter opaco do real”. (Castello, 08/12/2012: 7). A desconfiança de José Castello no aparato teórico vem, pois, desta opacidade do mundo, que faz com que a experiência estética seja irredutível ao trabalho dos conceitos. Talvez por isso a recorrência à obra e à figura de Clarice Lispector seja tão constante no crítico. “A análise literária a entediava”, escreve Castello. (Castello, 08/12/2012: 7). Recorro, aqui, a um argumento do crítico George Steiner, também ele um defensor do velho criticismo, para quem a arte possui sempre uma dimensão que não pode ser totalmente decifrada. Escreve Steiner:

Muito daquilo que é fundamental no discurso teológico, filosófico e estético, é ‘inanalisável’. Essa resistência à análise não representa uma refutação de seus valores de verdade nem de sua função indispensável nas prioridades geradoras da intuição. Pelo contrário. A análise pode ter chegado tarde na história da consciência, e pode mesmo haver uma espécie de consenso que deveria ser estudado com o mais escrupuloso cuidado, segundo o qual o ‘inanalisável’ coincide (em última instância) com o trivial.” (Steiner, 2003: 131).

Ora, vem daí o desejo latente na escrita de Castello, que se observa a cada leitura; uma escrita que está a um passo de se transformar em crônica, pelo tom de conversa com o leitor, e que acaba aderindo, por opção e por convicção, à órbita do literário. Deste modo, a ficção, objeto constante de sua coluna, se transforma em sujeito

52 na crítica de Castello. Assim, cabe perguntar se esta escrita de José Castello poderia situá-lo como um crítico-escritor, nos termos formulados por Leyla Perrone-Moisés, que considera como críticos-escritores todos aqueles “que se lançam numa aventura totalmente nova, um discurso ambíguo e ambivalente, sem predominâncias nem junturas”. (Perrone-Moisés, 1978: 85). O discurso crítico de Castello tende para o intransitivo, não está interessado em desvendar a verdade da obra; tudo o que ele tem é a si mesmo, suas recordações, suas experiências de leitor. Talvez se possa dizer dele algo semelhante ao que Leyla Perrone-Moisés disse de Maurice Blanchot:

A obra de Blanchot é uma obra de crítica-escritura. Crítica, porque ela nos ajuda a ler outros autores. Não se pode negar a pertinência de suas observações acerca dos autores estudados, que se tornam “claros”, coerentes, a partir do texto blanchotiano. Os traços por ele recolhidos podem até mesmo ser verificados em outros corpos: aplique-se a leitura de Blanchot a Fernando Pessoa, e ela se mostrará operante. Não é esta a antiga comprovação do valor científico de uma teoria? Escritura, porque essa obra reúne tais observações num fenômeno único e irrepetível (salvo por ele próprio) de enunciação, que é o discurso denso, trágico, inconfundível, onde o escritor Blanchot prossegue seu paciente trabalho de morte. (Perrone-Moisés, 1978: 93).

Voltemos à nossa hipótese central – a resistência de Castello à teoria como base de seu método crítico --, que transparece de modo mais radical no artigo intitulado “Borges, o desmemoriado”. (Castello, 18/02/2012: 4). Aqui, a teoria surge como uma ameaça à leitura. O crítico é classificado como alguém que pensa com a cabeça e a memória de outros. O gancho jornalístico da coluna é o lançamento de uma coletânea de contos de Jorge Luis Borges e, em especial, o conto intitulado “A memória de Shakespeare”, que relata a história de um professor que afirma possuir parte da memória de Shakespeare. Aos poucos, o professor constata que o peso da memória o massacra, tornando-o incapaz de escrever e de criar, já que perdeu a memória de si mesmo. Escreve Castello:

O relato de Borges me leva a pensar na força ameaçadora da influência. Pode ser reconfortante pensar com a cabeça (a memória) dos outros. Pode trazer brilho e aparência de grandeza. Você enche seu pensamento de

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orgulho e de notas de rodapé. Você estufa o peito e se sente maior do que é. (Castello, 18/02/2012: 4).

Da passagem acima, podemos concluir que, tanto quanto a memória, a influência teórica pesa como uma ameaça e uma limitação ao trabalho do crítico. Note-se que Castello não defende nem pratica uma leitura apressada ou superficial das obras. Ao contrário, ele propõe uma abordagem da obra literária que seja distante, tanto da resenha ligeira, que assola a imprensa cultural na atualidade, quanto da crítica acadêmica, repleta de referências alheias e notas de rodapé. “Prefira, como Borges, fazer-se de desmemoriado e lidar com memórias falsas”, alerta-nos Castello. (18/02/2012: 4). Ou ainda nesta sentença-diagnóstico sobre o trabalho do crítico acadêmico: “Penso na memória que, transformada em tradição intelectual, pode ser vendida – ainda que, comprando-a, o sujeito se perca de si e se embrenhe no labirinto do outro”. (Castello, 18/02/2012: 4). Quando a realidade é, ela também, uma ficção, não faz sentido ancorar o trabalho da interpretação no arcabouço (labirinto, diria Castello) de métodos e de teorias, caminho trilhado pela crítica acadêmica desde os anos de 1960. A crítica de José Castello nega constantemente essa herança, ou melhor, essa memória emprestada, postiça, que “sempre fará mais o mal do que o bem”. Esta é a ética da leitura de José Castello. O método de José Castello: algumas conclusões Nas páginas anteriores, foram descritos e analisados alguns dos procedimentos críticos e pressupostos conceituais adotados por José Castello em seus artigos. A análise de 114 textos do jornalista, publicados entre os anos de 2011 e 2013 permitem identificar alguns dos princípios que norteiam a atividade crítica de Castello, assim como sua posição em relação aos juízos críticos. O primeiro aspecto a ressaltar está no seu conceito de leitura, que em seus textos adquire o estatuto de uma desfiguração ou deformação, que desloca o exercício analítico para o inefável, para algo que jamais poderá ser explicado. Em outras palavras, a crítica de Castello conduz o leitor por estradas sinuosas, bem distantes da segurança (e das amarras) da abordagem científica da literatura. Argumentos e experiências de ordem pessoal e histórias de família também informam a crítica de Castello, amarrando e sustentando seus critérios na tarefa da leitura. Procurou-se enfatizar que esses elementos são mais relevantes, para Castello, do

54 que razões teóricas e argumentos conceituais. Histórias familiares do próprio Castello são recorrências frequentes em sua crítica e o passado funciona como uma chave para abrir caminho no mistério da obra. Deste modo, não é a dimensão teórica que constrói seus argumentos críticos, mas, antes, são os elementos textuais, extraídos, em boa medida, de sua experiência de leitor, que informam sua crítica. As colunas de Castello deixam evidente sua filiação à vertente da crítica literária, a mesma que foi alvo de Afrânio Continho e de seus seguidores que, no decorrer do século 20, empenharam-se em dar um estatuto de cientificidade à tarefa da crítica. Mas Castello trabalha em outra órbita, como estamos procurando demonstrar neste capítulo. O crítico e jornalista concebe a leitura como uma experiência imprevisível, única, pessoal. Seus motivos, histórias, argumentos, paralelismos, alusões e conclusões não podem ser tomados como modelares, nem são transferíveis a outros críticos. Seus exemplos de leitura são marcados por uma não-exemplaridade tal que os impede de serem transformados em um método. Estaríamos diante, então, de um ‘método sem método’, tal qual nos fala Carpeaux, ao comentar a obra crítica de Augusto Meyer? Ao mesmo tempo, somos levados a pensar que essas recorrências, observadas ao longo de três anos de colunas, permitem-nos falar de um certo padrão. Logo, não poderiam ser configuradas num método? Mas, que método é esse em que a ficção se transforma em ferramenta crítica? Como classificar este procedimento, senão a partir de uma suposta autonomia da literatura, como se esta somente pudesse ser interpretada à luz de explicações literárias? Mas será, portanto, inevitável que a análise científica da literatura esteja condenada a destruir a especificidade do elemento literário e a afastar os leitores do prazer da leitura? Por que tantos críticos e escritores, a exemplo de José Castello, fazem questão de proclamar a irredutibilidade da criação, esquecendo-se de que a arte também é uma forma de conhecimento? Entre os argumentos em favor da análise critica está o de Pierre Bourdieu, para quem tamanha resistência à análise, tanto por parte dos criadores quanto daqueles que pretendem se identificar com eles em prol de uma leitura “criativa” e não racional, na verdade omite o desejo de ver seu gênio decifrado, e isso seria uma agressão ao narcisismo do criador. Escreve Bourdieu:

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O amor pela arte, como o amor, mesmo e sobretudo o mais louco, sente-se baseado em seu objeto. É para se convencer de ter razão (ou razões) para amar que recorre com tanta freqüência ao comentário, essa espécie de discurso apologético que o crente dirige a si próprio e que, se tem pelo menos o efeito de redobrar sua crença, pode também despertar e chamar os outros à crença. É por isso que a análise científica, quando é capaz de trazer à luz o que torna a obra de arte necessária, ou seja, a fórmula formadora, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificação, seu mais rico alimento. (Bourdieu, 2010: 15)

Destaco da passagem acima dois elementos: o comentário como prova de apego (afetivo) do crítico ao seu objeto e a capacidade da análise científica para “trazer à luz” a razão de ser da experiência artística. A filiação de Bourdieu à tradição kantiana é evidente, como o demonstra a metáfora do “trazer à luz” como traço da razão crítica. Nesse sentido, a análise das colunas de José Castello permite que o situemos no extremo oposto da tradição kantiana. Para Bourdieu, por exemplo, Castello seria um “defensor do incognoscível”, pois seu propósito não seria outro senão “erguer as muralhas inacessíveis da liberdade humana contra as usurpações da ciência (...)”. (Bourdieu, 2010: 13). Leia-se, a esse respeito, sua posição sobre a teoria literária:

Vista de longe, a teoria literária muitas vezes se assemelha a uma construção abstrata e enigmática que, em vez de aproximar-se, se afasta em velocidade de seu objeto. Isso em parte é verdade, e é justamente esse intervalo de suspeita que lhe assegura sua idoneidade e força críticas. Abstrações, conceitos, sistemas teóricos podem funcionar, contudo, como armaduras com que pensadores se defendem de poemas e ficções. (Castello, 30/4/2011: 4).

A passagem é reveladora dos princípios que norteiam a atividade crítica de Castello, assim como sua posição em relação aos juízos críticos. Os sistemas teóricos são armaduras, mecanismos de defesa e a crítica somente adquire idoneidade se admitir que está situada num intervalo de suspeita. Há nessa passagem uma evidente relativização da força da atividade crítica no processo de interpretação de uma obra. Mais adiante, ele completa: “não só a crítica tem muito a dizer a respeito da ficção; a ficção também tem muito a dizer a respeito da crítica”. (Castello, 30/4/2011: 4). Assim,

56 crítica e arte situam-se no mesmo patamar; sua existência está sustentada por uma fragilidade de origem. Demarcado, portanto, o posicionamento de José Castello em relação à instância da crítica, cabe, por fim, delimitar seu lugar de fala: para ele, o crítico precisa ser um leitor comum, sem armaduras, sem anteparos.

O leitor comum lê mais por prazer do que por conhecimento. Guia-o o instinto de criar para si mesmo alguma forma íntima de plenitude – o desejo de encontrar o objeto que lhe falta. (...) Como se pauta pelo prazer, e não pelo protocolo, o leitor comum lê mais desarmado, e por isso o texto algumas vezes lhe rasga a alma e o derruba. (Castello, 25/01/2011)

O que se passa, afinal, na crítica de Castello? Nela não se encontram certezas ou respostas prontas, resultantes da aplicação de um método. O crítico não deseja ocupar o lugar do crítico, no sentido tradicional da palavra, ou seja, do especialista. É esta autoridade legitimada que ele recusa, buscando, isto sim, legitimar-se no campo a partir de novos parâmetros. Observa-se, assim, uma recusa das leituras feitas pelos especialistas, ou melhor, pela chamada crítica acadêmica. A interpretação fechada e o apego ao sentido do texto decorrente da aplicação teórica são recusados insistentemente pelo crítico em suas colunas. Este lugar de fala bem definido assinala a distância de José Castello em relação à critica acadêmica, situando sua coluna no âmbito da crítica de linhagem jornalística, pois interessa-lhe sobretudo a comunicação com o leitor, que é, por sua vez, a marca que caracteriza os mediadores. Ao mesmo tempo, o compromisso de Castello com esse leitor o mantém distante do jargão especializado, que, como afirma Edward Said (2007), costuma deixar de fora camadas consideráveis de público, e cujos riscos, no âmbito das humanidades e de uma cultura generalista, dentro e fora da universidade, são hoje evidentes. *****

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1. 4. Processos de legitimação na crítica cultural

A crítica cultural lembra geralmente o gesto do comerciante regateador, como no caso do especialista que contesta a autenticidade de um quadro ou o classifica entre as obras menores de um mestre. Despreza-se o objeto para lucrar mais. (Adorno, 1998: 11).

Como são construídas as reputações e qual é o papel desempenhado pela mídia nesse processo? Estudar o funcionamento do campo da crítica pressupõe o exame das relações objetivas entre agentes e instituições e, igualmente, das tensões desencadeadas pelo monopólio do poder de consagração, que irá determinar o valor das obras e a crença neste valor. Assim, tão ou mais importante do que saber quem são os críticos que exercem esse ofício na mídia será identificar os autores (ou agentes produtores) dignos de figurar como objeto de crítica. As lutas entre os agentes num determinado campo ocorrem tanto em função do controle dos conceitos e das abordagens, quanto em relação à escolha de determinado objeto de estudo em detrimento de outro. Dito de outro modo: quem critica quem e por quê? A busca de resposta para esta questão, central neste capítulo, decorre do estudo da lógica que instaura a relação entre criticabilidade e processo de legitimação no interior do campo da difusão ao qual a crítica jornalística, aqui concebida como gênero do jornalismo cultural, está ligada. Quando descreve o processo de autonomização do sistema de produção, circulação e consumo dos bens simbólicos, Pierre Bourdieu (2007: 99-100) enumera três grandes transformações operadas no decorrer dos séculos 18 e 19: a formação gradual de um público consumidor, a constituição de um segmento de empresários de bens simbólicos marcado pela profissionalização e, por fim, a diversificação de instâncias de consagração (como as academias e salões) e de instâncias de difusão (como as casas editoriais, os empresários de teatro e, em especial, a imprensa). O conjunto desses elementos, somado à formação de uma “categoria socialmente distinta de artistas ou de intelectuais profissionais” (Bourdieu, 2007: 101), atua paulatinamente rumo à formação de um campo artístico autônomo e contribui para a

58 elaboração de critérios para a definição da função desses agentes e de suas produções no interior do campo. Em outras palavras, o processo descrito por Bourdieu não é outra coisa senão a constituição da indústria cultural e, dentro desse sistema, interessa-nos examinar o processo de formação do jornalismo e da crítica enquanto produção de bens simbólicos culturais. Fator crucial nesse processo é a suposta autonomia que acompanha a própria constituição do campo cultural enquanto tal. Ora, se é verdade, como afirma Bourdieu, que a vida intelectual e artística libertou-se progressivamente do domínio da aristocracia e da Igreja, também é certo que esta liberdade revelou-se parcial, já que suas demandas éticas e estéticas passaram a estar vinculadas às leis do mercado.

A ruptura dos vínculos de dependência em relação a um patrão ou a um mecenas e, de modo geral, em relação às encomendas diretas (...) propicia ao escritor e ao artista uma liberdade que logo se lhes revela formal, sendo apenas a condição de sua submissão às leis do mercado de bens simbólicos, vale dizer, a uma demanda que, feita sempre com atraso em relação à oferta, surge através dos índices de venda e das pressões, explícitas ou difusas, dos detentores dos instrumentos de difusão, editores, diretores de teatro, marchands de quadros. (Bourdieu, 2007: 104).

Da passagem acima interessa-nos destacar dois aspectos: a condição de submissão das instâncias de difusão às contingências de mercado e a posição de inferioridade das demandas em relação à oferta de bens simbólicos. Consideramos esses dois aspectos cruciais para compreender o estabelecimento pela mídia dos critérios de noticiabilidade/criticabilidade praticados pelo jornalismo cultural na atualidade. Como assinala Traquina (2005), os também chamados valores-notícia são fatores centrais da cultura jornalística, pois são eles que determinam “se um acontecimento ou assunto é suscetível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável e, por isso, possuindo valor-notícia”. (Traquina, 2005: 63). Ao mesmo tempo, cumpre demarcar a filiação dos critérios de noticiabilidade à lógica de funcionamento do campo, que, por sua vez, é constituído por uma “rede de relações objetivas (de dominação ou de subordinação, de complementaridade ou de antagonismo etc.) entre posições”. (Bourdieu, 2010: 261). Dito de outro modo, ocorre uma homologia entre posições e tomadas de posição no campo.

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Nesse sentido, cabe investigar como operam os valores de criticabilidade e que sentido adquirem na prática do jornalismo cultural. Concebido enquanto instância especializada da práxis comunicacional, o jornalismo cultural necessita ser pensado a partir dos critérios de noticiabilidade que instaura na dinâmica própria de seu campo. Interessa, portanto, investigar os modos de organização, circulação e recepção dos bens simbólicos a partir dos conceitos de campo da difusão e hierarquia das legitimidades (Bourdieu, 2007), e tendo em vista igualmente o conceito de intermediação cultural, termo utilizado já há longa data, mas recentemente sistematizado por Featherstone (1995). De início, cabe destacar que o jornalismo cultural está situado no interior do campo da difusão, e que este, por sua vez, mantém relação direta com as instâncias de reprodução e de consagração. Vejamos, então, como funciona a relação entre esses campos. Tomando-se por base as reflexões de Bourdieu, interessa ao escopo deste estudo investigar o funcionamento das relações constitutivas do campo da difusão, pois é no interior deste que atuam os agentes de difusão, como jornalistas, críticos, editores e especialistas. Com efeito, observa-se uma relação de oposição e de complementariedade – ou interdependência, se preferirmos – entre o campo da difusão e as instâncias de reprodução e de consagração. Ao mesmo tempo, uma idêntica relação de interdependência, embora com funções distintas, marca a dinâmica entre os campos da produção (erudita e indústria cultural, para falarmos como Bourdieu) e da difusão. Todo o problema ligado aos critérios de noticiabilidade deriva desse conjunto de relações ou desta economia de trocas simbólicas. Como entender, por exemplo, as relações entre os produtores e as instâncias de consagração sem examinar o processo dinâmico e muitas vezes arbitrário que marca a hierarquia das legitimidades? (Bourdieu, 2007: 118). Tal estrutura de “relações de força simbólica exprime-se, em um dado momento do tempo, por intermédio de uma determinada hierarquia das áreas, das obras e das competências legítimas”. (Bourdieu, 2007: 118). Ora, tal hierarquia daquilo que é ou não legítimo influencia a relação que os agentes dos campos de produção, reprodução ou difusão estabelecem entre si e com as diferentes instâncias de legitimação. De acordo com Bourdieu, todas as formas de reconhecimento “não passam de formas diversas de cooptação cujo valor depende da posição dos cooptantes na hierarquia da consagração”. (2007: 119).

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Posições e posicionamentos na crítica jornalística Essas relações objetivas entre agentes e entre estes e as instâncias de consagração estão na base daquilo que pode ou não obter legitimidade para ser transformado em notícia ou de ser objeto de crítica (cultural, literária, cinematográfica etc.) na mídia. É nesse sentido que procuramos acentuar a relação entre o exercício da crítica jornalística e os chamados critérios de noticiabilidade, na medida em que obedecem a uma lógica que os precede.6 Assim, interessa saber a que mecanismos estão submetidos tais valores e quais são os fatores responsáveis por transformá-los em critérios da crítica em sua vertente jornalística. Nesse sentido, o jornalismo cultural, mas não apenas este, cumpre uma função de legitimação ao transformar estes ou aqueles fatos culturais em notícia, delimitando aquilo que merece ser transmitido, difundido, criticado e, por isso mesmo, conservado, daqueles fatos que não o merecem. O mesmo pode ser dito das fontes. A partir de que momento, ou em função de que contingências, determinado agente é transformado em fonte de informação? Como se dá esse processo de legitimação? Também no plano narrativo poderíamos dizer que há uma maneira legítima e uma maneira ilegítima de narrar as notícias legítimas. Com efeito, talvez não seja um exagero afirmar que a grande mídia acaba por cumprir uma função homóloga à da igreja, já que está investida do poder de defender uma ortodoxia jornalística, cristalizada nos valores-notícia acima referidos e que, no dizer de Stuart Hall, fornecem os parâmetros para as atividades produtivas do jornalismo. São esses elementos que

permitem aos jornalistas, diretores e agentes noticiosos decidir rotineiramente e regularmente sobre quais as ‘estórias’ que são ‘noticiáveis’ e quais não são, quais as ‘estórias’ que merecem destaque e quais as que são relativamente insignificantes, quais as que são para publicar e quais as que são para eliminar. (Apud Traquina, 2005: 176).

No âmbito específico da chamada crítica cultural -- que é aquela produzida, em grande parte, ou por especialistas, ou por diletantes, para ser publicada na mídia, além do conteúdo produzido por jornalistas no interior das redações -- os argumentos de Bourdieu encontram fértil aplicação. Em especial, no que se refere às posições ocupadas pelos agentes (jornalistas, críticos e especialistas) no interior dos campos de produção,

6 Conforme Ericson, Baranek e Chan, são seis os valores-notícia de construção: simplificação, amplificação, relevância, personalização, dramatização e consonância. Cf. Traquina, 2005: 91-93. 61 reprodução, consagração e difusão de bens simbólicos. De acordo com Bourdieu, há uma relação direta entre a tomada de posição de um agente e a posição por ele ocupada no campo. Mais ainda: observa-se entre os agentes de difusão uma tendência a conservar e reforçar as hierarquias oriundas do campo da produção. Escreve Bourdieu:

Sabendo-se a posição que os especialistas da difusão ocupam na estrutura do sistema e que lhes obriga, como vimos, a procurar em favor de sua atividade contestada as cauções mais consagradas pelo recurso ao poder que lhes assegura o controle dos instrumentos de difusão, envolvendo em seu próprio terreno os produtores de bens legítimos, sua ação vai se exercer paradoxalmente no sentido da conservação e do reforço das hierarquias mais conhecidas e reconhecidas. (Bourdieu, 2007: 157).

O que é importante destacar é a relação de interdependência existente entre os agentes de difusão e os produtores. Veja-se, por exemplo, o uso intensivo que o jornalismo cultural faz das autoridades acadêmicas, a tal ponto que leva Bourdieu a falar em uma troca de notoriedade por legitimação cultural.

Embora não contem com os meios para conceder uma consagração cujos princípios estariam em suas mãos, o jornalista e o vulgarizador não fazem outra coisa senão mercadejar a notoriedade que estão em condições de oferecer em troca da caução que lhes podem dar com exclusividade os membros das instâncias mais consagradas de consagração, caução que lhes é indispensável na produção plena do efeito de allodoxia, princípio de seu poder aparentemente cultural sobre o público. (Bourdieu, 2007: 156).

As palavras de Bourdieu ecoam a conhecida, e profundamente pessimista, avaliação de Adorno sobre as relações do crítico cultural com o mercado.

A crítica cultural lembra geralmente o gesto do comerciante regateador, como no caso do especialista que contesta a autenticidade de um quadro ou o classifica entre as obras menores de um mestre. Despreza-se o objeto para lucrar mais. (Adorno, 1998: 11).

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Ao equiparar a tarefa da crítica à atitude do comerciante, Adorno na prática liquida as possibilidades de atuação isenta do crítico, já que este inevitavelmente necessita se envolver na esfera da mercantilização da cultura. Acreditamos, no entanto, que a formulação de Bourdieu pode significar um avanço para o beco sem saída da posição adorniana, na medida em que desloca a questão para o âmbito da relação entre tomadas de posição e posicionamento do crítico no campo da cultura. Muito embora possuam o poder de difundir e, com isso, contribuir para a consagração de um determinado produtor – e nesse sentido as instâncias de difusão atuam também como instâncias de consagração – os intermediários culturais (sejam eles repórteres, editores e críticos) parecem estar imunes a este poder de quase consagrar, quando se trata de si mesmo. É evidente que, tanto a tendência à espetacularização da notícia, quanto o culto às celebridades podem transformar o jornalista numa espécie de oráculo, ganhando legitimação a ponto de deixar de ser apenas um intermediário para assumir uma posição de pseuso-especialista, fazendo e desfazendo reputações. Dito de outro modo, acreditamos que recorrer a uma abordagem sociocultural da produção intelectual e artística para fundamentar este estudo sobre algumas práticas do jornalismo cultural na atualidade pode iluminar as marcas de posição que determinados agentes de produção e de difusão apresentam e, com isso, estabelecer uma relação com o lugar que ocupam em seus respectivos campos. Seja como for, não se pode refletir sobre os valores-notícia no jornalismo cultural sem levar em conta a posição que os agentes (produtores e intermediários) ocupam na hierarquia da legitimidade cultural, construída por meio de signos de reconhecimento ou exclusão, do legítimo e do não-legítimo. Assim, os critérios de noticiabilidade acima elencados devem ser analisados à luz desta lógica, que preside a própria lógica do mercado de bens simbólicos. Tomadas de posição e lugar dos agentes no campo cultural A fim de buscar uma aplicação do problema da relação entre a posição dos agentes e suas respectivas tomadas de posição, vamos examinar três exemplos de posicionamentos críticos veiculados na mídia em anos recentes. Foram escolhidos três artigos críticos, dois publicados na grande mídia e um veiculado numa revista de cultura. Os exemplos escolhidos são: um artigo que contesta a consagração dada à obra de Marcel Duchamp; um texto que formula uma crítica veemente à 28ª Bienal de Arte de São Paulo; e uma análise dos processos de validação e de legitimação de

63 determinadas obras literárias instituído pelo Modernismo brasileiro, no contexto de sua consagração como campo de estudos legítimo.7 Os três posicionamentos críticos têm em comum o fato de seus autores – Affonso Romano de Sant’anna, Aracy Amaral e Luís Augusto Fischer, respectivamente – estarem situados fora ou, no mínimo, à margem dos campos artístico e literário aos quais pertencem os objetos e eventos que criticam. O objetivo desta análise será mostrar a existência de uma relação de interdependência entre julgamento crítico e a posição ocupada pelo crítico no campo. A crítica de Affonso Romano de Sant’anna a Marcel Duchamp tem como gancho factual a retrospectiva do artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O crítico inicia sua análise com uma argumentação que questiona precisamente as leituras legitimadas da obra do artista.

Duchamp tem sido vítima de dois tipos de leitura: a primeira é uma leitura precária, superficial, repetitiva do que vem sendo dito há 100 anos. Pura celebração, escrita de endosso, subserviente, intimidada diante da celebridade e da história. A rigor, é uma leitura antiduchampiana. É o que se faz nos cursos de arte e nos manuais. O segundo tipo de leitura que vitimou Duchamp é a hiperinterpretação. Aí se situam grandes ensaístas, tanto Octávio Paz e sua alucinada interpretação do grande vidro ou Jean Clair que compara Marcel Duchamp a nada mais nada menos que Leonardo da Vinci. (Sant’anna, 2008).

Além de uma crítica às interpretações legitimadas de Duchamp, Sant’anna lembra que tais leituras são adotadas pelas instâncias de reprodução, em especial pelo sistema de ensino (cursos de arte e manuais). Quando faz objeções a Octavio Paz, Sant’Anna está questionando a recepção crítica legitimada do artista, já que Paz é um ensaísta consagrado pela academia, ainda que tenha feito carreira à margem dela. É este o ponto que gostaria de destacar: Sant’anna é um produtor situado fora do campo da crítica de arte, e, muito embora seja consagrado enquanto poeta, ainda não é detentor, enquanto crítico, desta mesma legitimação. Penso que seus posicionamentos sobre a arte conceitual (tema legitimado e hegemônico tanto na academia quanto na mídia) devem dificultar ainda mais sua legitimação enquanto crítico de arte. Estamos

7 As críticas escolhidas são: “Que fazer de Marcel Duchamp?”, de Affonso Romano de Sant’anna; “Esta Bienal reflete a arte contemporânea?”, de Aracy Amaral e “Conversa urgente sobre uma velharia. Uns palpites sobre a vigência do regionalismo”, de Luís Augusto Fischer. 64 diante de um agente de reprodução não legitimado, que se posiciona sobre um tema legítimo a partir de uma abordagem não-legítima. Ou seja, a abordagem legítima seria endossar Duchamp, mas o que o poeta e cronista Afonso Romano de Sant’anna faz é criticá-lo. Isto ocorre, segundo o ponto de vista que adotamos neste estudo, em função da existência de abordagens legítimas e não-legítimas para temas e/ou autores legítimos ou não-legítimos. Nossa hipótese é a de que, quanto mais à margem de determinado campo situa-se um agente, maior é a possibilidade de que este agente se posicione de maneira não legitimada, já que o grau de interdependência do agente em relação às instâncias de difusão e consagração é menor. A crítica de Sant’anna à consagração da obra de Duchamp é reveladora também de um conflito que envolve duas maneiras distintas de aquisição dos bens culturais: o conhecimento herdado e o conhecimento adquirido, configurados respectivamente nas instâncias da família e da escola. Quando o que está em jogo é a relação com a obra de arte, verifica-se, como no dizer de Bourdieu,

uma oposição entre aqueles que estão identificados com a definição escolar da cultura e com o modo escolar de aquisição, por um lado, e, por outro, aqueles que se tornam os defensores de uma cultura e de uma relação com a cultura mais ‘livres’, menos estritamente subordinadas às aprendizagens e aos c\ontroles escolares. (Bourdieu, 2008a: 88).

Transferindo o raciocínio para o campo estrito do jornalismo e da crítica culturais, poderíamos falar de abordagens e critérios hegemônicos (legítimos) e não- hegemônicos (não-legítimos). Na esteira de um pensamento crítico sobre a cobertura de cultura na mídia, esta dimensão somente seria atingida se buscássemos estabelecer novos parâmetros e critérios de noticiabilidade para esta área. Sant’Anna vai além em sua crítica, chegando a propor uma revisão conceitual da modernocontemporaneidade: “o dessacralizador foi sacralizado e os que o seguem são paradoxalmente antiduchampianos”, escreve. (Sant’anna, 2008). Preocupado em desconstruir o mito Duchamp, Sant’Anna parece ter consciência do quanto sua crítica permanece à margem das abordagens estabelecidas. Como último argumento, ele cita a ironia de Duchamp ao ingressar, no final da vida, na Academia Nacional de Letras e Artes dos Estados Unidos. “Assim o apóstata voltou ao seio da Igreja”, escreve.

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Ao entrar numa instância de consagração, como a Academia, é o próprio potencial iconoclasta de Duchamp que se dilui na distinção. Com isso, o artista ganha seu passaporte para a legitimação. Desconstruir essa dominância cultural, fazer frente a esta violência simbólica é o objetivo da crítica de Sant’Anna, crítico não legitimado e, portanto, segundo nossa hipótese, em condições mais favoráveis de formular tal posicionamento. O problema não é simples, e segue sua formulação, agora com a análise da crítica de Aracy Amaral à 28ª Bienal de Arte de São Paulo. Este talvez seja o exemplo mais incisivo dos três escolhidos para análise. Sua autora, uma prestigiada historiadora e crítica de arte, formula uma crítica ao campo das artes em três dimensões: são objeto de sua atenção a instituição Bienal, os artistas legitimados pela instituição e a produção dos especialistas vinculados ao campo. O argumento de Amaral norteia-se pela pergunta se a edição da Bienal em questão refletiria ou não o atual estágio da arte. Eis a resposta, direta e incisiva. “A indigência presente na Bienal não reflete a arte contemporânea. Ela é antes espelho da debilidade de uma instituição.” (Amaral, 2008). A crítica à instituição estende-se à presidência, à curadoria e ao conselho da Bienal.

Se entre nós o problema foi falta de verba que caberia à presidência da Bienal providenciar, essa presidência está no lugar equivocado, pois essa é a sua competência. Se a escolha do curador foi tardia, a responsabilidade é da instituição e da curadoria que aceitou. (Amaral, 2008).

A análise se desdobra também num ataque virulento ao “Conselhão”, classificado por ela de círculo fechado formado por aqueles que “decidem o que entra e o que não entra”. (Amaral, 2008). O segundo aspecto do texto de Amaral concentra-se na crítica aos artistas selecionados, todos representantes da arte conceitual e legitimados apenas em função de pertencerem a esta corrente artística, que, aliás, ocupa o topo da hierarquia das legitimidades. “Esta Bienal parece antes preconceituosa – em sua preocupação em não mostrar artistas de outras tendências, mas apenas aqueles rigorosamente conceituais.” (Amaral, 2008). É por este motivo que Amaral sustenta que a Bienal correu o risco de passar ao visitante a “falsa impressão de que nada mais ocorre na área”. (Amaral, 2008). O artigo

66 em questão é relevante no contexto de uma economia das trocas simbólicas, na exata medida em que elege como alvo de crítica todos os agentes do campo, incluindo aí os próprios críticos, a mídia e o sistema de galerias e museus.

Na verdade, há algo de cinismo murmurado, reconhecido e vivenciado no meio artístico contemporâneo. O conceitual é bem imaterial, mas aqueles que sobrevivem vendem, ou viajam a convite para expor suas criações. A própria crítica, as curadorias, a mídia, o sistema de galerias e museus, todos enfim contribuímos amplamente para esse fim, apesar do que se publica em vários países sobre esse fenômeno. Isso se deve ao fato de se escrever, em geral em literatura pouco acessível ou pedante, sobre obras sem nenhum ou parco valor, para um público reduzido que acredita erroneamente que quanto mais hermético mais elevado. (Amaral, 2008).

A passagem acima, além de sintetizar os argumentos já elencados da crítica de Amaral à 28ª Bienal de Arte, aprofunda a questão ao tocar no problema da linguagem, do hermetismo que caracteriza as teorizações a respeito da arte conceitual. Há determinadas categorias de críticos que, diante da necessidade de se legitimar, lançam mão de signos exteriores em sua tarefa de conceder a consagração cultural. Decorre disso a “necessidade de adotar o tom douto e sentencioso, o culto da erudição pela erudição da crítica universitária, ou de procurar uma caução teórica, política ou estética nas obscuridades de uma linguagem tomada de empréstimo.” (Bourdieu, 2007: 155). Tal fenômeno ocorreu com a recepção da arte conceitual: ao esforço dos artistas em defender suas criações veio juntar-se o trabalho de interpretação do campo acadêmico, que não apenas conferiu consagração cultural, mas impôs um cânone aos estudiosos da arte contemporânea, com a delimitação de temas, autores e abordagens legítimas. Problema idêntico pode ser verificado no posicionamento do crítico Luís Augusto Fischer em relação à “centralidade excessiva que o modernismo de feição paulistana ocupa na atual descrição da literatura e da cultura brasileiras”. (Fischer, 2007: 128). Na hierarquia das legitimidades, o modernismo é um tema hegemônico, ao passo que a expressão “regionalismo” padece de um rebaixamento nessa mesma hierarquização. Explica Fischer:

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A validação das obras, o carimbo de legitimidade que elas podem receber, pelo menos desde o Modernismo brasileiro, está ligado à ideia de que (a) a cidade é a totalidade, a cidade grande em particular; (b) a ponta do processo de modernização é o que importa, em qualquer nível (social, econômico, político), a ponta e não as bordas ou a retaguarda, porque na ponta é que os conflitos se expressariam de modo direto, se tornam visíveis a pleno; (c) arte é igual a novidade, a vanguarda, arte verdadeira implica conquista de novo território temático, de novo procedimento formal, e toda arte que apresentar qualquer aspecto de permanência rebaixa imediatamente o valor dessa arte. (Fischer, 2007: 134).

Estamos diante daquilo que Bourdieu identifica como uma luta no interior de um determinado campo. Os agentes tendem a “transformar em escolhas epistemológicas os interesses associados à posse de um tipo determinado de capital científico e a uma posição determinada no campo científico.” (Bourdieu, 2007: 171). Com efeito, o objeto da crítica de Fischer está em caracterizar a posição que o modernismo ocupa na hierarquia propriamente cultural da legitimidade e a conseqüente deslegitimação do conceito de regionalismo.

A soma desses pressupostos resulta na entronização de certo tipo de literatura não como um estilo, uma variedade, mas como a melhor literatura e, nos casos mais extremos, a única literatura (a única arte, nos casos delirantes) válida. (Fischer, 2007: 134).

O argumento de Fischer concentra-se na identificação daqueles fatores que interferem nas leis de funcionamento de um determinado campo. Trata-se das escolhas metodológicas e epistemológicas operadas pelos agentes -- no caso, os produtores do campo acadêmico, responsáveis pelo processo de consagração, e os agentes das instâncias de difusão, como a mídia – com a finalidade de legitimar ou não este ou aquele conceito, fazendo com que se tornem dominantes os juízos da crítica legitimadora no que se refere ao depreciado conceito de modernismo e o seu correlato regionalismo. Escreve o crítico:

Antes de mais nada, preste um pouco de atenção à faca com que está sendo fatiada a história da literatura brasileira, e veja que ela existe, para começo de conversa; depois tente avaliar a natureza dessa faca, o ângulo

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de corte que ela opera; depois tente retornar para a literatura brasileira ela mesma, quero dizer, para os livros, os importantes e os não importantes, e tente ver se eles não seriam mais bem descritos segundo outras fatias, mediante outros recortes, com o uso de outra faca. (Fischer, 2007: 135)

Não obstante, também a posição ocupada por Fischer no campo da crítica literária brasileira é relevante para a discussão: situado geográfica e academicamente numa posição periférica, Fischer busca levantar suspeitas sobre um tema legitimado tanto pelo campo da produção quanto pelas instâncias de consagração. Ora, como toda tomada de posição é determinada em boa medida pela posição ocupada por aquele que a produz, lançamos a hipótese de que a tomada de posição assumida por Fischer, deslegitimadora em relação ao Modernismo paulista (assim como a supervalorização de Mário de Andrade pela recepção crítica), está determinada pela posição não hegemônica (periférica) ocupada por seu autor na hierarquia propriamente cultural da legitimidade. A pergunta que fica é a seguinte: estivesse Fischer posicionado no centro do campo acadêmico, estaria ele em condições (leia-se livre de condicionamentos) de formular tal posicionamento crítico? E o que dizer Aracy Amaral? Por certo que se trata de uma figura consagrada enquanto crítica e historiadora. No entanto, a posição que ela ocupa no campo no momento em que publica a crítica – desvinculada das instâncias de legitimação e consagração – faz com que possa criticar livremente os agentes do campo. Seus posicionamentos, portanto, decorrem desta posição que está – pelo menos em tese – livre dos condicionamentos e da relação de interdependência que os agentes de um campo mantém entre si. As hipóteses acima não parecerão descabidas se levarmos em conta, como temos ressaltado ao longo deste estudo, que as posturas críticas assumidas por determinados agentes de produção e de difusão estão diretamente ligadas ao lugar que ocupam em seus respectivos campos. Toda reflexão sobre os critérios de noticiabilidade e de criticabilidade no jornalismo cultural precisa estar ancorada sobre um trabalho de esclarecimento sobre as posições ocupadas pelos agentes (produtores e intermediários) na hierarquia da legitimidade cultural, construída por meio de sinais de distinção ou de exclusão, de legitimação ou de não-legitimação.

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Nossa hipótese é a de que, quanto mais à margem de determinado campo estiver situado um agente, maior é a possibilidade de que este agente se posicione de maneira não legitimada – e com isso escolha temas e abordagens igualmente não legitimados. E como o grau de interdependência do agente em relação às instâncias de difusão e consagração tende a ser menor nesses casos, acreditamos que, por conta da posição ocupada pelo agente, o potencial de crítica ao campo tende a ser maior e mais favoráveis são as condições para a prática deste posicionamento.

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Parte 2:

Os ensaios europeus de Otto Karpfen

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2.1. Uma trajetória europeia

Para mim, minha atividade literária engloba-se na atividade de jornalista. O que sou, no fundo, é só isso. Não ignoro que a qualificação de jornalista não é das mais bem vistas. Quando se diz de alguém "esse é jornalista", a impressão é sempre de que isso é uma atividade inferior, etc. Mas me considero, globalmente, em primeira linha, um jornalista. Meus ensaios e artigos são parte da minha atividade jornalística. (Carpeaux, 1976).

Eram pouco mais de oito horas da noite de 11 de março de 1938 quando o chanceler austríaco Kurt von Schuschnigg encerrou seu discurso em cadeia de rádio anunciando a renúncia. Em sua fala, o chanceler comunicara aos austríacos as mesmas ordens ao exército para que não oferecesse qualquer resistência a uma possível invasão da Alemanha, a partir da fronteira em direção a Linz, a fim de não derramar sangue alemão. Schuschnigg despediu-se do povo austríaco com um solene e breve “Deus proteja a Áustria”.

Mas a Áustria já não podia mais ser protegida. Quando o hino nacional encerrou a emissão radiofônica de Schuschnigg, as ruas de Viena imediatamente encheram-se de gritos, correria, buzinas. No centro da cidade, por todos os lados ouviam-se gritos: “Ein Volk, ein Reich, ein Führer” ou então “Heil Hitler, Sieg Heil”. Na Ringstrasse, caminhões lotados de integrantes da polícia, que já exibiam braçadeiras com a suástica, passavam pela frente da Universidade e seguiam em direção ao imponente prédio da Rathaus, a Prefeitura de Viena. “E os caminhões levam suásticas, e os bondes têm suásticas, e há rapazes e meninos pendurados, berrando e acenando”, descreveu Edmund de Waal, impressionado com a rapidez dos acontecimentos daquela noite. (De Waal, 2010: 220).

Nas primeiras horas do domingo, 12 de março de 1938, a Áustria já era oficialmente nacionalsocialista. Nessa madrugada fatídica, Viena permaneceu acordada:

72 pelas ruas, ouviam-se sem cessar os sons da tragédia que se anunciava: “Juden verrecken!”, “Morte aos Judeus”. Residências dos judeus vienenses eram invadidas e as vitrines de suas lojas, quebradas. Quem podia, fazia as malas e corria para Westbahnhof, a estação de trem por onde poderão chegar a Praga ou outro local bem longe daquela cidade que já escolhera os judeus como seus inimigos. Mas a fronteira tcheca está um caos e os trens são revistados por homens com a suástica no braço. Como descreve Edmund De Waal:

Por toda Viena portas são arrombadas, crianças escondem-se atrás dos pais, debaixo das camas, nos armários – qualquer lugar longe do barulho de pais e irmãos sendo presos, espancados e levados embora em caminhões, enquanto mulheres e irmãs sofrem abusos. E por toda Viena as pessoas vão se servindo daquilo que deveria ser delas, que era delas por direito. (De Waal, 2010: 223).

O dia 13 de março foi de perseguição e prisões em Viena: políticos, jornalistas, funcionários do governo e todos aqueles que, de uma forma ou de outra, haviam se posicionado contra o , eram agora caçados pelos membros da NSDAP. Não é possível descrever o que Otto Karpfen e sua família viveram naquela madrugada e manhã de 13 de março. Mas não será difícil imaginar o cenário, visto que ele era um jornalista político e cultural bastante ativo na imprensa vienense, com artigos publicados em revistas como Die Erfüllung e Berichte zur kultur und zeitgeschichte.

Sua atuação no semanário Der Christliche Standestaat, apoiado e financiado pelo governo de Engelbert Dollfuss, tornava ainda mais explícita sua posição em defesa da independência da Áustria e contra o Nacionalsocialismo. Além disso, Karpfen já era autor de duas obras ensaísticas que publicizavam seus vínculos políticos e religiosos: Wege nach Rom [Caminhos para Roma] e Österreichs europäische Sendung [A missão européia da Áustria].

Assim, para o jornalista militante Otto Karpfen a fuga era a única saída possível. Após ter ficado alguns dias escondido, deixou Viena em 15 de março rumo a Antuérpia, na Bélgica, última parada antes do exílio no Brasil. Deixou em Viena seus pais já idosos, deixou sua casa, sua biblioteca, sua língua materna, enfim, tudo ficou para trás. “Fugi de Viena com uma pequena mala de mão e sem um tostão. Perdi pátria, casa, móveis e vários milhares de livros”, afirmou ele em 1949. Nessa entrevista, concedida à

73 extinta Revista do Globo, de Porto Alegre, Otto Karpfen (já então conhecido como Otto Maria Carpeaux) forneceu alguns poucos detalhes desse momento crítico:

A luta pela independência austríaca, de 1934 a 1938, retardou durante quatro anos a agressão geral à Europa. Os outros não souberam aproveitar esse tempo. Mas nós, cumprindo nosso dever, lutávamos. Lutávamos sob as ordens de Dollfuss, que era bem mais do que "meio fascista". Mas nem todos teriam falado tão alto como eu, lá na Áustria e aqui no Brasil. (Senna, 1966).

A desesperada fuga de Otto Karpfen da capital austríaca, em março de 1938, foi o ponto final de sua trajetória europeia, marcada por intensa atividade na imprensa, com a publicação regular de artigos e ensaios sobre política, cultura e literatura em jornais e revistas da Áustria e da Alemanha, trajetória essa que tivera início em 1931, com artigos sobre música clássica na revista Signale für die musikalische Welt.

Otto Karpfen nasceu em 09 de março de 1900, em Viena, e viveu seus anos de juventude e formação numa cidade mergulhada em profunda crise econômica, política e institucional. Era filho de Max Karpfen e de Gisella Schmelz. O pai era vienense e a mãe, originária de Krakau, na Galícia (atual Polônia). Max e Gisella eram descendentes de judeus e se casaram em Viena em 21 de maio de 1899. Pelo lado paterno, os avós de Otto chamavam-se Anton David Karpfen, nascido em 14 de julho de 1844, na atual República Tcheca, e Julia Wilhelm, nascida em Viena, em 05 de dezembro de 1840. Pelo lado materno, seus avós eram Herman Schmelz e Natalia Birnbaum.

Filho único de Max e Gisella, Otto nasceu antes mesmo que eles completassem um ano de casados. Em 1911, ingressou no Sophien Gymnasium, uma escola pública de Viena, onde fez o Primeiro e o Segundo Graus, e, em 1918, entrou para o curso de Direito da Universidade de Viena. Um ano depois, desistiu da advocacia e ingressou no curso de Química, que freqüentou de setembro de 1919 a julho de 1923. Nos dois anos seguintes, entre 1924 e 1925, freqüentou o Laboratório da Fundação Ludwig Spiegler, também em Viena, onde desenvolveu uma pesquisa na área de Química, sob a orientação do professor Sigmund Fränkel.

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Sobre os anos seguintes, ou seja, entre 1926 e 1930, pouco ainda se sabe da trajetória de Otto Karpfen. Uma das poucas informações que se tem sobre suas atividades após a conclusão dos estudos em Viena diz respeito ao período em que teria residido na Alemanha. Segundo ele mesmo revelou em entrevista, entre 1927 e 1929 teria trabalhado em Berlim escrevendo roteiros para o cinema mudo. (Senna, 1996: 295).

Neste período, teria ainda feito cursos de Física em , de Filosofia e Sociologia em Paris e de Literatura Comparada em Nápoles. Em Berlim, teria cursado a Escola Superior de Sociologia e Política (Hochschule für Politik). No entanto, tais atividades ainda carecem de confirmação. Em entrevista, em maio de 1949, ele chegou a afirmar que estudara em Viena e em outras universidades européias. “Poucos sabem que, antes de estudar Letras, estudei (até o fim) Matemática, Física e Química. Nunca me aproveitei praticamente desses estudos”, explicou na época. (Senna, 1996: 295).

O retorno a Viena teria ocorrido provavelmente em 1929, já que em 12 de fevereiro do ano seguinte, Otto casou-se com Helena Silberherz, oriunda de Ottynia, na Polônia, mas que já devia morar em Viena. O casamento foi realizado numa sinagoga da capital austríaca, portanto, segundo os hábitos da religião judaica. Mas quando retornou à sua cidade natal, Karpfen encontrou a metrópole mergulhada no caos e na agitação política.

Em setembro de 1931, Otto Karpfen publicou um artigo sobre música na revista Signale für die musikalische Welt, de Berlim, colaboração que se estenderá até 1934. Em outubro do mesmo ano, assinou um artigo sobre literatura no jornal Neue Freie Presse, de Viena. São esses os marcos iniciais de suas atividades na imprensa, às quais ele se dedicará durante toda a vida.

Desde a juventude em Viena, o espaço ocupado por Otto Karpfen foi sempre a imprensa, caminho geralmente trilhado por publicistas e candidatos a escritor. Dotado de uma vocação natural para trabalhar na imprensa, atividade que costuma direcionar as habilidades individuais, sua trajetória e sua produção textual estão marcadas por este direcionamento.

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Otto Karpfen morou em Viena até março de 1938, quando foi obrigado a deixar sua cidade natal para escapar da perseguição nazista, por ocasião da anexação da Áustria pela Alemanha de Hitler.

Na década de 1930, todo o esplendor do Império Habsburgo já fora substituído pela decadência das instituições, pela crise político-social e pelo colapso dos valores religiosos e morais que haviam sustentado durante séculos o poderoso Império Austro- Húngaro. Conhecida pelas iniciais A.E.I.O.U., Austria erit in orbi ultima (A Áustria sobreviverá a todos na terra), inscrição que desde o século XV podia ser encontrada gravada em portais e arcadas de castelos, catedrais e palácios de diversos países do Império, a dinastia católica dos Habsburgo chegou a abrigar em seus tempos de glória até quinze comunidades étnicas e lingüísticas.8 (Brook-Shepherd, 1996: 11).

Como lembra o escritor austríaco Stefan Zweig em suas memórias, vivia-se num mundo de segurança absoluta. Naquela monarquia quase milenar, “tudo parecia ter sido criado para perdurar” e a garantia de tamanha imutabilidade provinha da linhagem dos Habsburgo. Observa Zweig:

Nesse grande império tudo se encontrava no seu lugar e solidamente estabelecido, sob a égide suprema do velho imperador. Se ele morresse -- sabia-se ou, pelo menos, assim se pensava -- outro lhe sucederia, e o fato não alteraria de nenhum modo o ritmo da ordem assegurada. (Zweig, 1953:24).

Esse sentimento coletivo de habitar um mundo seguro, em que se podia olhar o futuro sem medo, dava sentido à vida cotidiana de milhões de pessoas. No século XIX o liberalismo austríaco conseguiu expandir esta sensação de segurança para camadas cada vez mais amplas da sociedade. Mas quando o novo século começou, sob as trincheiras da Primeira Guerra, os sentimentos de crise e insegurança tornam-se cada vez mais concretos.

A conversão de Otto Karpfen ao catolicismo data também desta época, provavelmente do início dos anos de 1930, pois o “Maria” já aparece incorporado ao seu nome quando publica seu livro sobre teologia, Wege nach Rom (Caminhos para

8 O historiador Andrew Wheatcroft cita a inscrição latina com uma pequena variação, Austria erit in omne ultimum, o que não altera de forma substancial o sentido dado por Brook-Shepherd (1996). Cf. Wheatcroft, 1996, p.189. 76

Roma), em 1934. De acordo com dados obtidos no Israelitische Kultusgemeinde, em Viena, Otto Karpfen retirou-se da religião judaica em 18 de abril de 1933.9 Não se sabe quando ocorreu sua conversão ao catolicismo, se é que houve um documento formalizando tal mudança. Em seu processo de naturalização não consta nenhuma certidão de batismo.10 É difícil confirmar a existência de um batismo formal para casos de conversão tardia, como o de Otto Karpfen. Note-se que, em 1932, ele ainda assina artigo na revista Der Querschnit, de Berlim, como Otto Karpfen. E em artigo publicado em Neue Freie Presse, de 07 de maio de 1933, ele também assina como Otto Karpfen, assim como em todos os artigos publicados na revista Signale für die Musikalische Welt, entre julho de 1931 e fevereiro de 1934.

Pelo que foi possível averiguar até o momento, a incorporação do “Maria” ao seu nome público, refletindo sua conversão ao catolicismo, ocorreu com a publicação de Wege nach Rom, em 1934. Em específico, podemos citar o mês de julho deste ano – data de seu primeiro artigo em Der Christliche Ständestaat -- como o momento em que o jornalista vienense assumiu publicamente sua conversão ao catolicismo, ao passar a assinar com o pseudônimo de Otto Maria Fidelis. O fato é que o tema da conversão era difícil para Carpeaux, e todos os que, no Brasil, conviveram com o crítico se referem à sua relutância em falar de seu passado na Europa.

Em documento enviado por intelectuais brasileiros ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores em 07 de outubro de 1942, com o objetivo de agilizar o processo de naturalização de Carpeaux, consta uma pequena biografia. Pelo teor, observa-se que o texto pretendia ser o mais favorável possível ao interessado. Este é o único documento brasileiro em que há referência às obras de Carpeaux escritas antes de sua vinda para o Brasil. Precisando afirmar sua condição de intelectual e sabendo que o documento era de natureza estritamente burocrática e que não se tornaria público, Carpeaux se permitiu fazer referência aos livros escritos antes de sua vinda ao Brasil, fato que não se repetiria jamais. Quando perguntado, dizia somente que considerava esses livros superados. O documento contém ainda informações sobre suas atividades na Europa:

Foi redator e diretor do suplemento literário do Reichspost, o mais importante jornal católico da Europa Central; redator-chefe de Berichte

9 Entrevista de Wolf–Erich Eckstein ao autor, realizada em 15/11/2011 no Israelitische Kultusgemeinde, em Viena, Áustria. 10 Documento No. 10345/42 do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 77

zur Kultur und Zeitgeschichte, revista de cultura; colaborador de numerosos jornais e revistas de diversos países europeus, como Die Neue Rundschau (Berlim), Literarisches Echo (Stuttgart), La Cité Chrétienne (Bruxelas), La Vie Intellectuelle (Paris), De Gemeenschap (Amsterdam). Dirigiu a Biblioteca de Estudos Sociais, em Viena, de 1936 a 1938.11 (Brunn, 1999: 842-843).

Influenciado pela cultura da Jovem Viena [Jung-Wien ou Jung-Österreich], círculo de jovens poetas e escritores que se reuniam nos cafés vienenses em torno de Arthur Schnitzler, Hermann Bahr, Hugo von Hofmannsthal e Stefan Zweig, Otto Karpfen partilhava com seus antecessores o ideal estético segundo o qual o teatro ocupava uma posição central na forma de ver o mundo. Os ensaios europeus de Otto Karpen não deixam entrever tal influência, mas isso torna-se bastante perceptível quando se lê os artigos brasileiros. De acordo com esta concepção de mundo, era do teatro que todos retiravam seus modelos de vida, desde o modo de falar e de se vestir até os hábitos cotidianos. Assim como muitos dos artistas e intelectuais de sua geração, Karpfen possuía ancestralidade judaica, aceitou o batismo cristão na juventude e era um patriota. Mas, ao contrário deles, manteve-se fiel ao conservadorismo católico e distante do liberalismo austríaco.

Outro traço que o distinguia da geração precedente era sua filiação ao catolicismo político, enquanto que para a geração de Zweig não havia imperativos categóricos, ou melhor, o ideal de vida estava no esteticismo e no culto absoluto da arte. Dezenove anos mais velho que Karpfen, Zweig pertencia ao ambiente cultural da Viena anterior à Primeira Guerra Mundial, época em que ainda não tivera início a “guerra de todos contra todos”, como ele próprio escreveu em sua autobiografia. Nesta época, os problemas políticos e a crise social ainda não preocupavam Zweig e seus amigos.

Entretanto, nós, inteiramente dedicados a preocupações culturais, quase não notávamos as perigosas perturbações que assaltavam a Pátria: -- vivíamos apenas para os nossos livros e para os nossos quadros. (...) Não nos preocupávamos com o futuro, rodeados como estávamos pelas preciosas iguarias da cultura. Só mais tarde havíamos de compreender, quando o telhado e as paredes desabaram sobre nós, que os fundamentos

11 Cf. “Brief der brasilianischen Intellektuellen zugunsten von Otto Maria Carpeaux”. Processo de naturalização, dossiê no. 10345/42 do Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Apud Brunn, 1999: 842-843. 78

do edifício social havia muito tempo estavam minados e que, com o novo século, tivera início também, simultaneamente, na Europa, o ocaso da liberdade individual. (Zweig, 1953: 100).

Stefan Zweig retrata com nitidez a visão de mundo segura e imutável que se apoderou dos membros da “Jovem Viena”. Esta ilusão de felicidade, típica do esteticismo fin-de-siècle, não compõe a mentalidade do jovem Karpfen, que se depara, após a conclusão de seus estudos, com o questionamento religioso e moral, e o engajamento político, ambos tomados como uma necessidade do momento.

Com o crescimento da influência do Nacionalsocialismo na Alemanha e na Áustria, Karpfen passou a atuar em defesa da independência de seu país em órgãos de imprensa católicos, como o semanário Der christliche Ständestaat. É interessante notar que este jornal, assim como Neue Freie Presse e a revista Die Erfüllung são omitidos pelo já então Otto Maria Carpeaux em sua biografia destinada ao governo de Getúlio Vargas em 1942. O motivo parece evidente: tratava-se de evitar, por parte de seus amigos brasileiros, toda e qualquer associação de Carpeaux com os acontecimentos políticos da Áustria naquele período ou órgãos de imprensa engajados nesse processo (como os acima citados), para evitar obstáculos em seu processo de naturalização.

Otto Karpfen teve uma atuação destacada na imprensa austríaca durante os anos de 1930. Sua atuação como jornalista, crítico e ensaísta tem início com os artigos sobre música para a revista Signale für die Musikalische Welt, de Berlim. Entre 1931 e 1934, publicou um total de 13 artigos sobre música erudita nesta revista. Fundada por Bartholf Senff em 1842, Signale für die Musikalische Welt foi uma das mais importantes revistas dedicadas à música erudita na Europa. Karpfen colaborou, de Viena, com artigos sobre Mozart, Haydn, Strawinsky, Beethoven e outros compositores, discutindo questões ligadas à estética musical e ao valor da obra de arte.

Em Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte, de Viena, Otto Karpfen trabalhou como uma espécie de redator. Esta revista circulou de 1927 até 1938. Dirigida por Nikolaus Hovorka, o veículo se autodefinia como uma revista das revistas. Sua edições eram semanais e continham cerca de 60 páginas em média. De formato pequeno, quase de bolso, Berichte trazia em cada edição duas grandes seções: uma sobre política e outra sobre assuntos culturais. Um anúncio na contracapa da revista Die Erfüllung, também de Viena, a revista define suas diretrizes editoriais:

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Para quem tem pouco tempo e deseja conhecer sobre os grandes movimentos na política, economia, cultura e religião, Berichte informa em primeira mão, de maneira concisa, objetiva e abrangente. Fascículos semanais com informações sobre todas as tendências. Suplementos especiais sobre problemas de interesse geral.12 (Die Erfüllung, 1934).

Como se vê pela propaganda, Berichte era, na verdade, uma espécie de clipping, reunindo trechos ou resumos dos principais assuntos políticos e culturais da semana, recolhidos em jornais e revistas da Áustria, Alemanha, Polônia e outros países. A ideia da publicação era oferecer ao leitor austríaco uma seleção das notícias políticas e culturais veiculadas em outros jornais e revistas.

Ao examinar alguns exemplares, percebe-se que o trabalho de Carpeaux deve ter sido o de garimpar e selecionar as notícias, resumindo-as ou escolhendo trechos para publicá-las nas edições semanais da revista. Ao pesquisar as diversas edições da revista, constata-se que não há artigos assinados por Karpfen no periódico. Como redator, provavemmente seu trabalho era de bastidor. Afinal, ele era o novato da turma. De acordo com Kugler (1995:179), Carpeaux trabalhou como redator da revista a partir de 1935 e lá ficou até 1938, quando ocorreu a anexação da Áustria pela Alemanha de Hitler. De fato, no Volume XIII (Nr. 302-303) de 05 de julho de 1936, Otto Maria Fidelis aparece como Redator, juntamente com Nikolaus Hovorska e Viktor Matejka. Será por esta casa editorial que Carpeaux publicará seus dois primeiros livros, Wege nach Rom e Österrreichs europäische Sendung, respectivamente em 1934 e 1935.

Berichte foi também uma espécie de selo editorial que publicou inúmeras obras de política, cultura, filosofia e teologia. O contexto austríaco dos anos 1930 e a busca por uma “nova Áustria” eram as motivações dos seus editores e importantes autores austríacos do período foram publicados com a chancela Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte. Um dos principais títulos é “Dolfuβ na Oesterreich: eines Mannes Wort und Ziel, em 1935, uma reunião de falas e discursos de Dolfuβ recolhidos e organizados por Edmund Weber.

12 Wer wenig Zeit hat und unterrichtet sein will über die groβen Bewegungen der Zeit in Politik, Wirtschaft, Kultur, Religion, der lieft die Berichte, die knapp, objektiv und umfassend aus erster Hand berichten. Wöchentliche Hefte mit allseintiger Information. In kurzer Folge Sonderhefte über allgemein interessierende Probleme. 80

A atuação de Karpfen em Die Literatur é bem menos expressiva. Em 1934 e 1935, ele publica alguns artigos nesta revista sob a assinatura de Otto Karpfen, e há a indicação de que ele escreve de Herrsching, cidade ao Sul da Alemanha, próxima de Munique.

Aos poucos, o jornalista vienense foi se transformando em um ideólogo de vertente social-cristã, cujo ápice foi sua ligação com o governo de Engelbert Dolfuss. A atuação política do jovem Karpfen na Viena das primeiras décadas do século passado é evidenciada por sua atuação como articulista do jornal Der christliche Ständestaat, que era apoiado e financiado por Dollfuss e seu estado corporativo.

De acordo com Andreas Pfersmann, Otto Karpfen atuou “muy activamente a favor del catolicismo político y del régimen austrofascista, para lo cual colaboró, por ejemplo, en la revista Der christliche Ständestaat”.(Pfersmann, 1995: 53). Também para Albert von Brunn, Karpfen foi um verdadeiro baluarte da Igreja Católica contra o Nacionalsocialismo, o comunismo e a revolução”. (Brunn, 1999: 834).

Ainda que suas ideias tenham sido mais uma reação do que propriamente uma adesão ao liberalismo, o ambiente em que ele se formou corresponde à chamada modernidade vienense, entendida aqui como o conjunto de mudanças políticas, filosóficas e culturais ocorridas de 1880 a 1910, mas cujo estopim remonta aos acontecimentos de março de 1848, data que assinala a primeira manifestação do liberalismo na Áustria. Até o momento da anexação do país pela Alemanha, em 1938, as idéias políticas e as tensões sociais que marcaram a modernidade vienense permaneceram vivas na sociedade e Otto Karpfen reagiu e dialogou com elas. É o que procuraremos compreender nos capítulos posteriores, a começar pelo estudo de seus artigos políticos.

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2.2. Otto Maria Fidelis ou o jornalismo político-ideológico

Lutamos contra o Bolchevismo em outra dimensão. Como católicos e austríacos, não estamos nem a favor dos capitalistas, nem tampouco dos Nacionalsocialistas. Buscamos uma posição alternativa: Hitler ou Stalin? Schuschnigg!, respondemos com convicção. (Karpfen, 1936: 660).

Os artigos de Otto Karpfen publicados no semanário vienense Der Christliche Ständestaat caracterizam-se por sua proximidade com o catolicismo político, em conexão com o contexto histórico da crise austríaca do anos de 1930. Tal fato deve ser tomado como um indicador do grau de inquietação e de engajamento que o então jovem jornalista mantinha diante dos desafios daquele momento em seu país.

Além disso, esses artigos (Quadro 1) ocupam posição central no conjunto de seus escritos europeus. Otto Karpfen publicou um total de 14 artigos neste veículo, entre 01 de julho de 1934 e 21 de fevereiro de 1937. Todos os artigos, em maior ou menor grau, abordam temas ligados ao contexto político austríaco. Os títulos, aliás, não deixam dúvida sobre o enfoque dos textos: catolicismo político, Sacrum Imperium, Nacionalsocialismo, papel do Estado austríaco, messianismo, nova Áustria, Terceiro Reich, antisemitismo e questão judaica.

A decisão de abandonar o judaísmo, registrada formalmente como vimos no capítulo anterior, no Israelitische Kultusgemeinde, de Viena, está baseada em sua firme convicção quanto ao papel histórico desempenhado pela religião cristã (um papel público, repetirá ele várias vezes), ou melhor, pela Igreja de Roma. Tal convicção está amparada na noção de Romanitas, apresentada em seu pequeno livro sobre a missão européia da Áustria na Europa, que é, por assim dizer, uma extensão e um aprofundamento dos artigos publicados em Der Christliche Ständestaat.

Romanitas significa estar sob os auspícios da Igreja Católica Romana, pertencendo ao seu círculo religioso e cultural, juntamente com os povos latinos e não-latinos, como os alemães do Sul, os irlandeses, os

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poloneses, os eslavos ocidentais e também os austríacos alemães.13 (Karpfen, 1935:38).

Este círculo religioso e cultural ao qual a Áustria pertencia, denominado por Karpfen de Imperium Romanum, explica não apenas sua conversão ao catolicismo, mas sobretudo a visão de mundo na qual ele se incluía, ao defender ardorosamente a religião de Roma em oposição à heresia da Reforma protestante.

Assim, a Áustria é, com muito orgulho, um corpo que atua vivamente no organismo da Romanitas. Sim, nós austríacos vivemos no Império Romano. Todavia, não apenas no campo das relações culturais latinas, mas também no âmbito de nossa sagrada fé romano-católica. A Áustria é um representante do pensamento do Sacro Império, defensora da eterna Reichsidee, que tem seu Estado principal em Roma, contra o Gegenreich herético-protestante dos reis da Prússia e seu epígono Nacionalsocialista.14 (Karpfen, 1935:38).

Um dos elementos presentes nos artigos sobre política de Otto Karpfen está na ideia de Sacro Império, enquanto entidade política e religiosa que congrega a Cristandade. Ao mesmo tempo, a ideia de Reich é vista por ele como uma entidade supranacional, em oposição ao moderno conceito de Estado nacional, cujos principais representantes na Europa do século XIX eram a Prússia e a Alemanha. A passagem acima também deixa evidente a posição de Karpfen em relação ao Nacionalsocialismo, considerado pelo crítico como um desvio desta concepção supranacional de Estado, na medida em que se ligava à ideia de Grande Alemanha. Fica evidente, portanto, a

13 Romanitas, das ist der unter den Auspizien der römisch-katholischen Kirche religiös und kulturell geeinigte Erdkreis, in dem neben den Lateinern auch nichtlateinische Völker, wie die Süddeutschen, die Iren, die Polen, die Westslawen, ihren Platz haben, und unter ihnen auch die deutschen Österreicher. (Esta e as demais traduções dos textos de Otto Karpfen são de autoria do autor).

14 So ist Österreich ein wichtiges, lebendig mitwirkendes Glied an dem Organismus der Romanitas. Ja, wir Österreicher leben im Imperium Romanum. Freilich nicht nur aus Gründen unserer lateinischen Kulturbeziehungen, sonder auch aus Gründen unseres heiligen römisch- katholischen Glaubens. Österreich ist Träger des Gedankens vom sacrum imperium, Verteidiger der ewigen Reichsidee, die in Rom ihre Hauptstadt hat, gegen das häretisch- protestantische Gegenreich des Königs von Preuen und seiner nationalsozialistischen Epigonen.

83 rejeição de Otto Karpfen a Hitler e a toda e qualquer ideia de pangermanismo, visto que contrariava o princípio de independência da Áustria e o laço histórico com a Igreja de Roma.

“Sacro Império” é, aliás, o título do artigo publicado por Otto Karpfen em agosto de 1934 em Der Christliche Ständestaat.15 Neste texto, o autor procura situar a discussão sobre a essência do Nacionalsocialismo a partir de uma perspectiva religiosa. Assim, o NS será caracterizado como o ponto de confluência de todas as heresias de sua época. Escreve Otto Karpfen:

A pergunta sobre a essência do Nacionalsocialismo tem recebido, na maioria das vezes, respostas de cunho político, histórico e sociológico. (...) E, além do mais, será suficiente caracterizar o Nacionalsocialismo como uma heresia e, por extensão, este movimento, como sendo o ponto de convergência das heresias de todos os tempos, sintetizado na pessoa de um homem?16 (Karpfen, 1934a: 15).

O trecho seguinte chama atenção por referir-se, ainda que não explicitamente, à figura de Hitler que, segundo Karpfen, se autodeclara o fundador de uma igreja e o salvador do mundo:

Quem é este homem? Eles colocam sua imagem sobre o altar. Comparam-no com o fundador de sua igreja, com o salvador do mundo. Eles o tratam como um messias. Como consequência, esperam do seu messias o reino de Deus na terra, o paraíso. E então, ele lhes fala desse paraíso, e eles o seguem.17 (Karpfen, 1934a:15).

15 No original, Sacrum Imperium, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 26/Agosto/1934, p.15-16.

16 Der Frage nach dem Wesen des Nationalsozialismus ist politisch, historisch, soziologisch oft genug gestellt und beantwortet worden. Darf uns, die wir an einen religiösen Sinn in der Geschichte glauben, eine positivistische Antwort genügen? Und weiter, ist die Kennzeichnung des Nationalsozialismus al seiner Häresie schon genügend, um die Ausweitung dieser Bewegung zum Sammelbecken aller Häresien des Zeitalters, um ihre Verdichtung in der Person eines Mannes zu erklären?

17 Wer ist dieser Mann? Sie stellen sein Bild auf Altäre, sie vergleichen ihn mit dem Stifter ihrer Kirche, ja mit dem Erlöser der Welt. Sie halten ihn für den Messias. Von ihrem Messias

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Quanto ao significado do Nacionalsocialismo, Karpfen classifica-o como um “movimento messiânico”, para, em seguida, afirmar que existem crenças messiânicas legítimas e ilegítimas. “Uma é a Utopia e a outra é o Apocalipse”, escreve.18 (Karpfen, 1934a: 15).

Ele prossegue caracterizando os messianismos, sejam eles utópicos ou apocalípticos, para dizer que o pensamento que inspira a ideia de Terceiro Reich tem exercido, desde o século 13, e, por influência do historiador e teórico do Estado Möeller van den Bruck, um “encanto mágico em espíritos heréticos de todos os tempos e povos”. (Karpfen, 1934a: 15). Observa-se nesse trecho uma interpretação do nazismo como sendo a expressão de um falso messias, uma manifestação do anticristo, o que nos permite concluir que se trata de uma crítica, a partir de uma matriz judaico-cristã, do Nacionalsocialismo. E, mais adiante, ele escreve: “o pensamento do Terceiro Reich é a sombra do Anticristo”. (Karpfen, 1934a: 15). O que podemos fazer?, pergunta Karpfen, para responder em seguida: não podemos descansar. Ele exorta o leitor a lembrar da figura de Joana de Orléans, cujo exemplo remete aos ensinamentos da Igreja e aos fundamentos do Cristianismo, e é por ele chamada a “santa da Ação Católica” (die Heilige der Katholischen Aktion). (Karpfen, 1934a: 15).

Deste modo, tratava-se de lutar contra a tentativa de dessacralizar aquilo que necessitava, pela ótica de Karpfen, permanecer sagrado, ou seja, o pensamento do Sacrum Imperium, ou o ideal do sagrado Reich, que corria o risco de ser confundido com o estado autoritário do Nacionalsocialismo, “parodisticamente chamado de Reich”, escreve Karpfen:

Enquanto católicos, devemos permanecer firmes contra a tentativa de dessacralização ligada à ideia de Reich, assim como não podemos

erwarten sie folgerichtig das Reich Gottes auf Erden, das Paradies. Und weil er ihnen das Paradies versprochen hat, folgen sie ihm nach.

18 Der Nationalsozialismus ist oft schon eine messianische Bewegung gennant worden. (...) Es gibt einen legitimen und einen illegitimen messianischen Glauben. Der eine heiβt Utopie, der andere heiβ Apokalypse.

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confundir o Sacrum Imperium com um poder despótico, parodisticamente chamado de Reich.19 (Karpfen, 1934a: 15).

Ao explicar os objetivos e a missão da Ação Católica na Áustria, Karpfen relembra que este ideal sagrado do Reich não se limitava às fronteiras de seu país, visto que era uma herança dos povos católicos alemães. Por isso os austríacos deveriam empunhar a bandeira desta causa para além das fronteiras da Áustria:

Como austríacos, devemos empunhar a bandeira, na árdua defesa do verdadeiro ideal do Reich, indo além de nossas fronteiras. Deste modo, o verdadeiro ideal do Reich não permanecerá restrito aos austríacos, mas viverá como um patrimônio do povo católico alemão.20 (Karpfen, 1934a: 15).

Em sua juventude, Otto Karpfen vivenciou todo este processo de revitalização do catolicismo político ocorrido na Áustria da virada do século, a ponto de se tornar um judeu convertido. É nesse contexto que devem ser inseridos e compreendidos tanto seus artigos para Der Christliche Ständestaat quanto seu livro Österreichs europäische Sendung.

19 Als katholiken müssen wir uns fest machen gegen die Versuchung, den heiligen Gedanken des Reiches zu entsakralisieren und das Sacrum Imperium mit einem despotischen Gewaltstaat zu verwechseln, der sich parodistisch ‘Reich’ nennt.

20 Als Oesterreicher müssen wir die Fahne ergreifen, die den müden Verteidigern des wahren Reichsgedankens jenseits unserer Grenzen entglitt. Denn der wahre Reichsgedanke war bis zu unserer Zeit nicht auf Oesterreich beschränkt. Er lebt als heiliges Erbgut im deutschen katholischen Volke. 86

Quadro 1: Artigos de Otto Karpfen em Der Christliche Ständestaat

Título Data de Assinatura publicação/página Politischer Katholizismus und 01/Juli/1934, Dr. Otto Maria Fidelis Katholische Aktion. S. 14-15.

Und jetz: Konservative Revolution? 29/Juli/1934, Dr. Otto Maria Fidelis S. 12-14.

Sacrum imperium 26/August/1934, Dr. M. Fidelis S. 15-16.

Zweimal ‘dermalen’ 26/August/1934, O.M.F. S.21.

Ist Österreich ein Totaler Staat? 16/Sept/1934, Dr. Otto Maria Fidelis S. 07-09.

Ende und Glück des politischen 10/Februar/1935, Dr. Otto Maria Fidelis Katholizismus S. 138-140.

Traum und Wirklichkeit 24/Februar/1935, Dr. Otto Maria Fidelis S. 181-183.

Italien und der österreichische 24/März/1935, Dr. Otto Maria Karpfen Gedanke. Zur Einweihung des S. 288-290. italienischen Kulturinstitutes in Wien

Bücher aus dem Phaidon-Verlag 11/August/1935, O.M.F. S. 775.

Unordnung in der Judenfrage 26/April/1936, Dr. Otto Maria Karpfen S. 399-401.

Echter und falscher 12/Juli/1936, Dr. Otto Maria Fidelis Antibolschevismus S. 658-660.

Geisteswissenschaft oder Paranoia? 19/Juli/1936, Dr. Otto Maria Fidelis S. 686-690.

Dogmen und “Dogmen” 04/October/1936, Dr. Otto Maria Fidelis S. 950-951.

Die Frage aller Fragen (Neue Leben- 21/Februar/1937, Dr. Otto Maria Fidelis Jesus-Literatur) S. 166-168.

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Em fevereiro de 1934 ocorreram intensas manifestações de trabalhadores em Viena, que culminaram com uma greve geral decretada pelo Partido Socialdemocrata. Esses acontecimentos conduziram o país a uma verdadeira guerra civil, que durou alguns dias. Foi o pretexto para Dollfuss dissolver os partidos políticos, com exceção do seu próprio, a Vaterlandische Front. Ao mesmo tempo, Dollfuss convocou o Parlamento para instituir o Estado Corporativo Cristão. Alguns meses depois, no auge da crise política na capital austrícaca, houve uma tentativa frustrada de golpe de estado protagnizada por um grupo de nazistas austríacos que, disfarçados de policiais, invadiram o prédio da chancelaria para tomar à força o poder, e que resultou no assassinato de Dollfuss, em 25 de julho daquele ano.

Assim, o contexto imediato desses artigos é o ano de 1934, marcado por dramáticos acontecimentos políticos na Áustria, como a crise no governo Dollfuss que o levou a reprimir manifestações de trabalhadores em Viena e Linz e, por fim, a conspiração nazista que culminou com o assassinato do chanceler austríaco. Otto Karpfen refere-se explicitamente a esse episódio ao escrever que “o sacrifício do chanceler Dollfuss foi um sinal apocalíptico em uma época apocalíptica”. Em seguida, escreve, em tom apologético que, “no sangue deste mártir germina a semente do reino de Deus, que nós temos que defender contra o Reich do Anticristo”.21

Os vínculos políticos e ideológicos entre Otto Karpfen e Engelbert Dollfuss são evidenciados não apenas por sua atuação no semanário austríaco, mas pelo tom veemente e apologético com que se refere ao chanceler austríaco que acabava de sofrer um atentado fatal.

Um semanário engajado

O jornal Der Christliche Standestaat começou a circular em dezembro de 1933 e a última edição foi publicada em março de 1938. Seu diretor era Dietrich von Hildebrand e o chefe de redação era Klaus Dohrn e ambos eram alemães que emigraram para a Áustria durante o Terceiro Reich. Chegando em Viena, engajaram-se na luta contra a crescente influência do Nacionalsocialismo, a partir de um ponto de vista que

21 Der Opfertod des Bundeskanzlers Dollfuβ war ein apokalyptisches Zeichen in einer apokalyptischen Zeit. Aus dem Blut dieses Märtyrers erwächst der Samen des Gottesreiches, das wir gegen das Reich des Antichrist zu verteidigen haben. (Karpfen, 1934:15-16).

88 considerava a Áustria como o único estado da Europa a ter uma posição de resistência ao Nacionalsocialismo baseado em um fundamento católico. De acordo com Ebneth (1976: 2), tais ideias vinham ao encontro dos interesses do chanceler Engelbert Dolfuβ, que apoiou e financiou o surgimento do veículo. Escreve Ebneth:

Ao lado de Hildebrand e Dohrm, outros emigrantes alemães também atuaram em Der Christliche Ständestaat. No entanto, em sua maioria, a equipe era formada por austríacos. O título do jornal inspirava-se no programa de governo de Dollfuβ, que concebia o estado austríaco como uma instituição cristã e alemã. O posicionamento central do veículo estava, porém, na luta contra o Nacionalsocialismo.22 (Ebneth, 1976: 2).

Der Christliche Ständestaat surge, portanto, como um jornal explicitamente alinhado com o governo do então chanceler Engelbert Dolfuβ. Ebneth destaca a posição de Hildebrand à frente de Christliche Ständestaat, principalmente no que se refere à sua compreensão quanto ao papel que a Áustria poderia exercer ao liderar um movimento de resistência ao Nacionalsocialismo. Nesse sentido, a visão que Otto Karpfen expressa em seus artigos para o jornal Christliche Ständestaat está intimamente ligada a essa concepção.

Os emigrantes Hildebrand e Dohrm insistiam em fundamentos católicos como forma de resistir ao Nacionalsocialismo e, com isso, buscavam garantir a particularidade e a independência da Áustria.23 (Ebneth, 1976: 15).

Com periodicidade semanal, o jornal possuía uma média de 22 a 24 páginas por edição e, no aspecto editorial, dividia-se em três grandes seções: a primeira parte concentrava os artigos longos, com cerca de 2 a 5 páginas, e que variavam de 04 a 08

22 Neben Hildebrand und Dohrn wirkten beim ‘Christlichen Ständestaat’ weitere deutsche Emigranten, die überwiegende Mehrheit der Mitarbeiter wurde jedoch von Österreichern gebildet. Der Titel der Zeitschrift lehnte sich zwar an Dollfuβ’ Staatsprogramm an, das die Errichtung des christlichen, deutschen, ständisch gegliederten Bundesstaates Österreich vorsah. Die Hauptzielsetzung des Blattes lag jedoch im Kampf gegen den Nationalsozialismus.

23 Die Emigranten Hildebrand und Dohrn wollten aus einer betont katholischen Grundhaltung dem Nationalsozialismus Widerstant leisten und hierbei Österreichs Ringen und Eigenständigkeit und Unabhängigkeit unterstützen und für ihre Ziele benützen.

89 artigos por edição; em seguida, vinha a seção Blick in die Zeit, com cerca de 2 páginas, dedicada a assuntos de política interna e externa. A terceira parte do jornal, intitulada Notizen und Glossen, com cerca de 2 a 3 páginas, cobria assuntos especiais de política austríaca, como entrevistas com políticos importantes, ocorrências no Terceiro Reich, como leis e decretos, políticas da igreja católica e comunicados emitidos por autoridades do Nacionalsocialismo, assim como assuntos culturais ocorridos na Áustria e na Alemanha.

Nesse espaço – Notizen und Glossen – também eram comentados livros recém- lançados e explicados resumidamente artigos publicados em órgãos de imprensa do país e do estrangeiro. Nesta editoria, não raro havia uma nota polêmica, motivada por algum artigo que gerava uma contenda ou réplica. Era nesse espaço, aliás, que o jornal Christliche Ständestaat manifestava sua posição condescendente em relação ao Nacionalsocialismo. (Ebneth, 1976: 17).

No que se refere a assuntos ligados ao Nacionalsocialismo, com frequência eram reproduzidos trechos de outros jornais ou revistas. Por fim, cabe ressaltar que, a partir da edição No. 33, de 18 de agosto de 1935, Der Christliche Ständestaat passa a publicar uma seção intitulada Notizen vom deutschen Kulturkampf, destinada a cobrir assuntos relacionados ao crescimento da influência e da pressão oriundas das forças de poder do Nacionalsocialismo contra os opositores a esse regime político na Alemanha, assim como eram relatadas as pressões sofridas pela Igreja Católica e pelos católicos na Alemanha. Nesse sentido, cabe ressaltar que, como explica Ebneth, o objetivo principal do jornal vienense era a luta contra o Nacionalsocialismo e o Bolchevismo e a defesa da independência do país, e em sintonia com o programa de governo do chanceler Engelbert Dollfuβ, que manifestava declaradamente seu apoio ao projeto editorial de Der Christliche Ständestaat:

Assim, ao decidir-se pela luta determinada da Áustria contra o Nacionalsocialismo e o Bolchevismo, Christliche Ständestaat leva em consideração os valores da cultura ocidental cristã preentes no programa de governo de Dollfuβ e o desejo dos austríacos por um Estado independente.24 (Ebneth, 1976: 19).

24 Da Österreich sich zum Kampfe gegen Nationalsozialismus und Bolschewismus entschlossen habe und dadie Werte christlich-abendländischer Kultur im Staatsprogramm Dollfuβ’ berücksichkeit würden, 90

Após o acordo de 11 de julho de 1936 entre Áustria e Alemanha, diversos artigos deixaram de ser publicados em Der Christliche Ständestaat, visto que este acordo enfraqueceu consideravelmente a posição da Áustria em relação ao Reich alemão, além de ter prejudicado enormemente o trabalho da imprensa austríaca a partir de então, principalmente os veículos que publicavam opiniões contrárias ou com algum conteúdo crítico ao Terceiro Reich.

O catolicismo político e a Ação Católica

O projeto político do catolicismo e da Ação católica encontrou na imprensa austríaca da época grande espaço de discussão e os artigos de Otto Karpfen em Der Christliche Ständestaat inserem-se nesse contexto. Manifestação da religiosidade na vida pública, o catolicismo político aqui citado precisa ser compreendido como uma ação religiosa que se utiliza de meios políticos no contexto maior de um enfraquecimento das posições públicas da Igreja no mundo moderno e contemporâneo. Esta manifestação da religiosidade na política (Erscheinungsform der Religiosität im Politischen) surge, assim, em decorrência do processo de secularização do mundo moderno, que se consolida com a dissolução da unidade religiosa que havia até o período absolutista e, portanto, pré-revolucionário.

É nesse contexto, pois, que deve ser compreendida a atuação de Otto Karpfen em Der Christliche Ständestaat, assim como o próprio papel desempenhado pelo veículo, que era bem mais do que um jornal católico: era um veículo dirigido à intelectualidade católica, conforme explica Ebneth:

A profissão de fé de Christliche Ständestaat no catolicismo político inclui um convite ao engajamento político de todos os católicos e está baseado na concepção de uma igreja e uma religião universais.25 (Ebneth, 1976: 31).

unterstützte der CS den österreichischen Staatsgedanken und Unabhängigkeitswillen. 25 Das Bekenntnis des CS zum politischen Katholizismus beinhaltete die Aufforderung zum politischen Engagement für alle Katholiken und stützte sich vornehmlich auf eine für Kirche und Religion postulierte Universalität.

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No artigo “Catolicismo político e Ação Católica”, publicado em 1934,26 Otto Karpfen deixa explícita sua concepção de Estado, assim como o significado da Ação católica, cuja tarefa era auxiliar o Estado na condução da vida pública. Escreve Karpfen:

O Estado não deve ser demoníaco, mas pode vir a ser. E é, justamente, em nossa missão católica de auxiliar o Estado a libertar-se de sua existência demoníaca que temos observado esse risco. Acolhemos essa tarefa com a graça de Deus e ‘in Christus’.27 (Karpfen, 1934b: 14-15).

Como se vê, tratava-se de auxiliar o Estado a libertar-se de sua existência “diabólica” e, “com a graça de Deus”, propiciar sua “instauração em Cristo”. Mais adiante, Karpfen reitera a urgência desta missão, pois “o demônio, o inimigo, está rondando e rugindo como um leão, e quer devorar a todos.” (Karpfen, 1934b: 15).

A Ação Católica, por sua vez, é definida por Karpfen como um instrumento da Igreja com a finalidade de ajudá-la na divulgação e na defesa das lições e dos fundamentos morais que regem tanto a vida privada quanto a vida pública. Escreve ele:

A Ação Católica não deve ser um instrumento político e de modo algum deseja sê-lo. Ela é um instrumento que, com a ajuda da Igreja, que, aliás, não é apenas uma religião, mas um ensinamento de ordem moral, que nos ajuda na interiorização daqueles princípios religiosos e morais que nos guiam na vida pública e na vida privada.28 (Karpfen, 1934b: 14).

Neste ponto, cabe perguntar sobre o significado da atuação do catolicismo político na Áustria daquele período. Diante do crescente recolhimento dos padres católicos da vida pública, observa-se um processo de laicização da atuação católica.

26 No original, Politischer Katholizismus und katholische Aktion, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 01/julho/1934, p. 14-15. 27 Der Staat muβ nicht teuflisch sein, aber es kann es werden. Und wo wir solches bemerken, da ist es eben unsere katholische Aufgabe, dem Staat zu helfen, sich von diesem Teuflischen zu befreien und seine Existenz, die er von Gottes Gnaden empfangen hat, ‘in Christus einzurichten’.

28 Die katholische Aktion ist kein politisches Instrument, soll und will es auch gar nicht sein. Sie ist ein Instrument, mit dessen Hilfe die Kirche, die nicht nur ein religiöses, sondern auch ein moralisches Lehramt verwaltet, ihre religiösen und moralischen Grundsätze in das private wie in das öffentliche Leben hineintragen will.

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Otto Karpfen era, ele próprio, um católico laico. Ele ocupou-se desta questão em artigo publicado em Viena em 10 de junho de 1934 29, ao resenhar uma obra que criticava justamente a situação da Igreja Católica naquele momento.

O autor do livro resenhado por Otto Karpfen, Ignaz Zangerle, critica os católicos por terem se isolado da vida pública. Para Karpfen, a crítica não é justa, na medida em que o afastamento do clero da vida pública seria resultado de uma nova configuração do Estado, que agora era uma República. Ao mesmo tempo, ele reconhece a necessidade que os católicos – conscientes de sua responsabilidade junto à opinião pública – tem de deixar o isolamento. “A responsabilidade dos católicos no mundo deve ser a de abandonar o isolamento da Igreja”, escreve ele.30 (Karpfen, 1934d: 641).

Interessa destacar, neste artigo, a visão de Otto Karpfen sobre a questão. No contexto do processo de secularização do mundo moderno, Karpfen relata o fenômeno da deseuropeização da Igreja Católica. Mais do que isso, ele constata um processo de desterritorialização da Igreja, que deixa de estar centralizada neste ou naquele país. “Não há mais países católicos ou povos católicos, e a Igreja passa a ter uma existência sem pátria”, escreve.31 (Karpfen, 1934d: 641).

A igreja se desterritorializa; ela assume a difícil feição da diáspora. E paga o preço de uma cada vez maior interiorização, contribuindo assim para o destino medíocre de seus numeroos convertidos.32 (Karpfen, 1934d: 641).

Apesar desse processo, Karpfen insiste para que os católicos de seu país abandonem o seu isolamento. Ele parece perceber que a Ação Católica necessita da atuação dos padres, num trabalho conjunto com os laicos. Para ele, no entanto, não se trata de uma retirada dos bispos e padres da vida pública, mas sim de assumir uma postura mais adequada ao momento político.

29 No original, Um den Sinn der Katholischen Aktion, publicado em Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte, No. 208, em 10/junho/1936, p. 640644. (Karpfen, 1934d). 30 Die Verantwortlichkeit für katholisches Wesen in der Welt aber muβ die Kirche den ‘einzelnen’ überlassen. 31 Es gibt keine “katholischen Länder” und “katholischen Völker“ mehr, die Kirche löst sich, vom Boden los. 32 Die Kirche entterritorialisiert sich. Sie nimmt die schwierige Lebensform der Diaspora na, erkauft aber um diesen Preis eine stets wachsende Verinnerlichung, zu der schicksalmäβig auch die zahlreichen Konvertiten beitragen. 93

Trata-se, pois, de criar as condições apropriadas para a consolidação de um Estado cristão. Por fim, ele argumenta que a situação política na Áustria não pode ser compreendida em sua totalidade sem levar em conta o fenômeno do fascismo. Está, ele, aqui, referindo-se às crescentes pressões exercidas pelo Nacionalsocialismo sobre a Igreja, tanto na Áustria quanto na Alemanha. “Quando a gente olha para a evolução dos acontecimentos na Áustria, e para a sua roupagem teocrática, então, podemos concordar de coração”.33 (Karpfen, 1934d: 644). Ainda que a passagem seja um tanto quanto ambígua, não deixa dúvida sobre o alinhamento de Otto Karpfen com o catolicismo político.

O artigo “Destino e fim do Catolicismo político” é, talvez, aquele em que Otto Karpfen mais se preocupa em explicitar as bases históricas de sua defesa do catolicismo político.34 Inicia referindo-se à decadência desta visão política na Europa Central que, após 1918 parece estar morta. Em países como Hungria, Tchecoslováquia, Bélgica, Holanda e Suíça, o enfraquecimento de partidos situados ao centro do espectro político ou mesmo ligados ao movimento socialcristão provoca uma decadência do catolicismo político. “O catolicismo político parece morto“, escreve Karpfen (1935a: 138). A luta da Igreja católica, explica, é uma luta para instaurar o reino de Deus, que não é deste mundo, é espiritual. Ao mesmo tempo, Karpfen escreve que esta Igreja não cede nem à paixão das massas, nem à paixão do Führer:

A Igreja católica não serve nem à paixão das massas, nem à paixão do Führer, mas intervém em favor da efetivação da sublime lei moral, deixando à posteridade, como um legado, seus fundamentos sagrados.35 (Karpfen, 1935a: 138).

O trecho acima revela a posição contrária de Otto Karpfen ao Nacionalsocialismo, na referência explícita à figura do Führer. Seu ponto de vista é

33 Wenn man übersieht, daβ die Entwicklung in Österreich einen Zug ins Theokratische trägt, den wir von Herzen zu bejahen haben. 34 No original, Ende und Glück des politischen Katholizismus, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 10/fevereiro/1935, p. 138-140. 35 Die katholische Kirche dient weder den Leidenschaften der Masse noch den Leidenschaften der Führer, sondern tritt in der Welt für die Durchführung des erhabenen Sittengesetzes ein, das ihr von ihrem göttlichen Stifter hinterlassen wurde.

94 sempre histórico e teológico, ao destacar que a atuação do catolicismo político remonta à Idade Média e ao papel exercido pelos papas, pelos reis e pelos senhores feudais, responsáveis pelo processo de cristianização dos povos, assim como pela consolidação da cultura européia pelos papas durante a Renascença. Hoje, no entanto, os mecanismos de ação do catolicismo político materializam-se nos partidos políticos, instituições apropriadas e típicas do século da democracia e dos movimentos de massa. “No século da democracia e dos movimentos de massa, os mecanismos de ação do catolicismo político estão nos partidos”, escreve Karpfen. (1935a: 138).

Mas isso não quer dizer que haja sempre uma identidade entre o Catolicismo politico e os partidos políticos católicos. Essa é a questão que ele procura destacar, e o faz examinando o contexto dos partidos políticos católicos na Alemanha que, para ele, naquele momento, parecem-lhe pouco católicos. Ao defender a necessidade de uma atuação política dos católicos, Karpfen não deixa de enfatizar a devastação política e religiosa, moral e cultural que tomou conta do povo alemão sob o nazismo.

Devemos lembrar do enorme estrago político e religioso, moral e cultural que o Nacionalsocialismo tem infringido ao povo alemão e reconhecer a necessidade de uma política da fé para os católicos.36 Karpfen (1935a: 139).

Enquanto representante da Igreja Católica na vida pública, o catolicismo político tem uma tarefa importante a desempenhar, a começar pela ideia de que “não pode haver separação, para o catolicismo, entre moral pública e moral privada”. (Karpfen, 1935a: 140). Deste modo, o ideal da Ação Católica inclui lições tanto para a vida pública quanto para a vida privada, tanto para a política interna quanto para a externa, incluindo também orientações para as políticas sociais e culturais.

Para Karpfen, “esta fé despertará a alma e trará resultados”.37 (Karpfen, 1935a: 140). O fecho do artigo não deixa dúvidas desta verdadeira profissão de fé e de política:

36 Man muβ sich nur der ungeheuren politischen und religiösen, sittlichen und kulturellen Verheerungen erinnern, die der Nationalsozialismus über das deutsche Volk gebracht hat, um die Notwendigkeit einer Politik aus dem Glauben, aus dem katholischen Glauben, sofort einzusehen.

37 Dieser Glaube, der in den Seelen erweckt wird, muβ auch Früchte tragen. 95

“este é também o significado da palavra do Papa: Omnia instaurare in Christo.38 (Karpfen, 1935a: 140).

Também merece destaque o momento, em outro artigo, em que Otto Karpfen examina a situação da Igreja na Alemanha, que vinha sofrendo pressões crescentes do Partido Nazista a partir de 1933.39 Para o crítico, primeiro foi a igreja evangélica que viu-se rebaixada à condição de subserviência ao Estado e, agora, as coerções do Nacionalsocialismo direcionam-se à igreja católica, que passa a ser vista como inimiga do Estado. O posicionamento do autor diante do avanço do Nacionalsocialismo é ainda mais explícito no trecho a seguir, em que ele faz referência à delicada situação política vivida pela Alemanha, com ameaças cada vez maiores aos direitos individuais e à livre- expressão.

(...) bens das associações roubados, jornais reprimidos, clubes incomodados, sacerdotes fechados em campos de concentração, bispos insultados, outros sitiados em suas igrejas, crucifixos cobertos.40 (Karpfen, 1934b: 15).

Uma das perguntas que buscamos responder diz respeito ao posicionamento de Otto Karpfen em relação à ascensão do Nazismo não só na Alemanha, mas principalmente na Áustria. Karpfen critica a apropriação de bens pessoais e de propriedades, a censura à imprensa e a repressão sofrida pelas associações e grupos diversos da sociedade civil. Cabe destacar aqui o trecho em que ele se refere ao confinamento de padres em campos de concentração. Portanto, em julho de 1934, quando este artigo foi publicado, Karpfen não apenas tinha conhecimento da existência de campos, como os critica, ainda que sua preocupação neste artigo recaia exclusivamente sobre os padres e sacerdotes católicos.

38 Auch das ist ein Sinn des Papstwortes: Omnia instaurare in Christo. 39 No original, Politischer Katholizismus und Katholische Aktion, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 01/julho/1934, p. 14-15.

40 (...)Vereinsvermögen zu stehlen, Zeitungen zu unterdrücken, Vereine zu drangsalieren, Priester in Konzentrationslager zu sperren, Bischöfe zu beschimpfen, Bischofspalais zu belagern, Kruzifixe zu bespeien.

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As preocupações de Otto Karpfen sobre a situação da igreja católica na Alemanha refletiam a perturbação provocada pelo regime nazista às igrejas protestante e católica. Como explica Baranowski, “apesar das garantias de Hitler, ao subir ao poder, de que o regime respeitaria a posição social, cultural e legal das Igrejas, e o sincero, mas não ortodoxo, Cristianismo da liderança nazista, as práticas de militantes locais e regionais do partido minaram tais garantias.” (Baranowski, 2014: 216).

Tanto a Igreja Católica quanto a Protestante buscaram reagir, cada qual a seu modo, ao avanço do Nacionalsocialismo, mas sem obter sucesso. Houve perseguição e destituição de bispos protestantes nos Estados da Baviera e Württemberg, em 1934, no contexto de uma campanha “germânico-cristã para ‘nazificar’ a estrutura da Igreja”, o que acabou gerando uma igreja confessional, simpática ao regime nazista. (Baranowski, 2014: 216-217).

Ao final, o sentimento de Otto Karpfen era de preocupação com aquilo que ele denomina de “desgraça” que se aproxima. Para ele, a Ação católica é o instrumento que a Igreja possui para impedir que isso aconteça, ou seja, que o Nacionalsocialismo “estenda suas garras sobre a Igreja de Roma”. Como escreve em seguida, “o Reich germina sobre o sangue dos mártires“.41 (Karpfen, 1934b: 15).

A crítica a uma concepção totalitária de Estado e a comparação entre o que se passava na Alemanha e na Áustria em 1934 é o tema central do artigo “A Áustria é um Estado total?”.42 A preocupação de Karpfen neste artigo está em buscar argumentos de ordem moral e pressupostos religiosos para fundamentar sua luta contra o totalitarismo que vem de Berlim. O autor se pergunta se a nova Áustria é ou não um Estado totalitário e também sobre o que seria, em essência, um Estado totalitário. (Karpfen, 1934c: 7).

Mas, afinal, o que vem a ser um Estado totalitário?, pergunta Karpfen. O autor desenvolve uma análise histórica sobre a democracia enquanto vontade do povo, que tem seu símbolo maior com a revolução francesa de 1789, em que o Estado já não pode mais servir aos interesses de poucos, mas de todo o povo. Mas como reconhecer a vontade do povo?, pergunta Karpfen. Muito simples, pelo voto, é a resposta. Mas a

41 Das Blüt der Märtyrer ist der Same des Reiches. 42 No original, Ist Österreich ein totaler Staat?, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 16/setembro/1934, p.7-9. 97 questão não se esgota aí. Para o autor, garantir a vontade do povo por meio do voto não é uma operação tão fácil, pois o jogo político faz emergir os grupos de interesse e a defesa de diferentes visões de mundo representadas pelos partidos. Aos poucos, estes acabam por defender seus próprios interesses e não mais os daqueles que os elegeram. “O sufrágio universal é uma panacéia política e, ao mesmo tempo, o calcanhar de Aquiles da democracia”.43 (Karpfen, 1934c: 7).

Este artigo apresenta outra particularidade relacionada à posição política de Otto Karpfen: aqui, ele dirige uma crítica a Goebbels, ministro do Reich responsável direto pela propaganda nazista e pela diminuição crescente das liberdades civis e de opinião na Alemanha. Escreve:

Assim afirmou o ministro do Reich, Dr. Goebbels, com apreciável consequência, e para gáudio do mundo: ninguém está no seu direito fora do Nacionalsocialismo. Ou seja, aqueles que não são nacionalsocialistas, então não tem razão, ou, se tem, logo são Nacionalsocialistas.44(Karpfen, 1934c: 8).

O tom do artigo é de ironia, e de crítica, como no trecho seguinte, em que ele diz que, diante de tal afirmação, o mundo só pode existir se for Nacionalsocialista. As consequências são o predomínio de um Estado total, onipresente e onipotente sobre a sociedade (o tecido social).

Assim, não há caminho no mundo senão no Nacionalsocialismo. Na política, na igreja, na arte, na literatura, na economia em muitas outras coisas, não há nada que não seja Nacionalsocialista.45 (Karpfen, 1934c: 8).

43 Das allgemeine Wahlrecht war die staatspolitische Panacee der Demokraten und zugleich die Achilesferse der Demokratie. 44 So hat Reichsminister Dr. Goebbels mit anerkennenswerter Konsequenz und zum Gaudium der Welt einmal erklärt: “Auβer uns Nationalsozialisten hat niemand recht. Denn entweder der andere ist kein Nationalsozialist, dann hat er unrecht, oder er hat recht, dann ist er Nationalsozialist”.

45 Nun besteht aber die Welt keineswegs aus lauter Nationalsozialisten. Ja, nicht einmal Deutschland besteht aus lauter Nationalsozialisten. In Politik, Kirche, Kunst, Literatur, Wirtschaft gibt es eine ganze Menge Dinge, die nicht nationalsozialistisch sind.

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É evidente aqui o tom de ironia com que Karpfen critica o totalitarismo subjascente à ideologia do Reich alemão. Mesmo quando discute a natureza do Estado total, que implica um movimento sem fim, dialético, que tem início com a Revolução, mas que deve ser permanente, ao qual se seguirá uma segunda Revolução. Karpfen identifica nesse movimento o caminho do mito na política, que se alimenta da autoglorificação e de um alvo sedutor, que é a Revolução. Notemos que Otto Karpfen se distancia tanto do Nacionalsocialismo, quanto da concepção marxista da história. Nessas duas vertentes políticas, são os valores cristãos que estão sendo esquecidos e, para ele, a solução passa pelo catolicismo.

Este argumento, aliás, parece ser uma das constantes do pensamento de Otto Karpfen em seus artigos europeus. A recusa tanto do Nacionalsocialismo quanto do Bolchevismo dá o tom do artigo “Antibolchevismo autêntico e falso”.46

Nesse texto, cujo mote é uma conferência do Cardeal Innitzer ocorrida na Sophiensaal, em Viena, ele procura deixar claro que a crítica ao Bolchevismo se dá em outra dimensão, qual seja, a partir de sua condição de católico e de austríaco, e busca, assim, uma posição alternativa tanto a Hitler quanto a Stalin. A abertura do artigo parece-nos significativa para compreender seu ponto de vista, explicitamente católico:

Em um momento em que a Áustria sai vitoriosa do perigo bolchevista, o cardeal Innitzer profere, numa reunião na Sophiensaal, palavras memoráveis que ainda hoje merecem ser seguidas. O cardeal disse: “a Igreja condena e rejeita o bolchevismo, mas, nem por isso, apoia ou aprova indistintamente todos os movimentos e métodos dirigidos contra o bolchevismo.”47(Karpfen, 1936: 658).

A crítica que Otto Karpfen dirige ao Bolchevismo não pode ser confundida com a crítica que o Nacionalsocialismo dirigia ao regime soviético. Seu ponto de vista é distinto e Karpfen tinha plena consciência de que era preciso marcar essa posição.

46 No original, Echter und falscher Antibolschevismus, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 12/julho/1936, p. 658-660. 47 In einem Zeitpunkt, als in Oesterreich selbst eine schwere bolschewistische Gefahr, eine weit schwerere als heute, sprach Kardinal Innitzer bei einer Versammlung im Sophiensaal denkwürdige Worte, die auch heute beherzigt zu werden verdienen. Der Kardinal sagte damals: „Die Kirche verdamme und verwerfe wohl den Bolschewismus, aber sie begrüβe und billige deswegen noch nicht unterschiedslos alle Bewegungen und Methoden, die sich gegen den Bolschewismus richten.“ 99

“Podemos ser antibolchevistas, desde que continuemos a ser culturalmente católicos e ocidentais”, escreve ele em outro trecho.48 (Karpfen, 1936: 659).

A dicotomia ocidental-católico é a chave pela qual ele vai examinar as matrizes teóricas do bolchevismo, composto, segundo ele, por três elementos. O primeiro elemento está na anti-religiosidade de seu messianismo social, na natureza eslava, de uma matriz pan-eslava que, por sua vez, deriva do messianismo judaico-profético de Marx. Há também um fator europeu no Bolchevismo, que traz as marcas de um cristianismo secularizado. E, por fim, Otto Karpfen identifica um elemento alemão no Bolchevismo, traduzido na negação da religiosidade pela filosofia de Feuerbach e pela dialética de Hegel. Não obstante isso, os métodos bolchevistas são, para Karpfen, “não europeus, não ocidentais e não cristãos”.49 (Karpfen, 1936: 659-660).

Por fim, fica a convicção de Otto Karpfen quanto à necessidade de marcar uma posição frente ao Bolchevismo, mas também, e principalmente, frente ao Nacionalsocialismo. O trecho a seguir não deixa dúvida disso:

Lutamos contra o Bolchevismo em outra dimensão. Como católicos e austríacos, não estamos nem a favor dos capitalistas, nem tampouco dos Nacionalsocialistas. Buscamos uma posição alternativa: Hitler ou Stalin? Schuschnigg!, respondemos com convicção.50 (Karpfen, 1936: 660).

Essa declaração, feita em 12 de julho de 1936, quando a situação política austríaca que conduziria ao Anschluss já atingia seu ponto crítico, e dois anos depois do assassinato de Dollfuss, era não só uma prova do distanciamento de Karpfen em relação a Hitler, mas, principalmente, um indicativo de que ele permanecia fiel às suas convicções, e leal ao grupo político ao qual estava ligado, sinal de que não acreditava no colapso da Áustria sob o domínio de Hitler.

O argumento de Otto Karpfen se completa ao afirmar que o Estado totalitário é governado por um único partido, todo poderoso, uma elite que possui capacidade para gerir os destinos do Estado, de uma Nação. Nesse ponto, Karpfen faz menção a uma

48 Man kann nämlich Antibolschewist sein, weil man Katholik und abendländischer Lulturmensch bleiben will. 49 Ganz und gar uneuropäisch, unabendländisch und unchristlich aber ist die bolschewistische Methode. 50 Wir bekämpfen den Bolschewismus aus anderen Tiefen heraus. Weder als Kapitalisten, noch als Nationalsozialisten, sondern als Katholiken und als Oesterreicher. Und vor die Alternative gestellt: Hitler oder Stalin? Antworten wir mit Ueberzeugung: Schuschnigg! 100 experiência política na Espanha, em que o conceito de elite deriva do universalismo cristão, representado por um “Stand-Staat”, com origens no catolicismo medieval.

O posicionamento crítico de Otto Karpfen diante do Nacionalsocialismo está presente também no artigo “Sonho e realidade”, de fevereiro de 1935.51 Aqui, o jornalista é veemente ao escrever que a essência do Nacionalsocialismo é o Estado totalitário, que representa uma perigosa secularização dos valores cristãos. Para ele, este Estado totalitário imposto pelo Nacionalsocialismo não é outra coisa senão uma Igreja do ateísmo (eine atheistische Kirche). Escreve Karpfen:

A essência do vitorioso Nacionalsocialismo é o Estado total. E o que temos a temer deste Estado total é a perigosa secularização dos valores cristãos. A concretização deste Estado total passa por uma Igreja ateísta, que vem acompanhada de um ateísmo sem consciência. 52 (Karpfen, 1935b: 182).

Karpfen fecha o artigo referindo-se à atmosfera pesada, de opressão, instaurada pelo Terceiro Reich, que turva a visão dos estudiosos. Refere-se aos acontecimentos de 25 de julho de 1934, quando nazistas austríacos invadiram da Prefeitura de Viena, numa tentativa de golpe que resultou na morte de Dollfuss, e alerta para a necessidade de não esquecermos a lição do catolicismo político.53 (Karpfen, 1935b: 183).

Em 29 de julho de 1934, Otto Karpfen publica um artigo que considero emblemático pelo conteúdo e de extrema importância para o conhecimento de suas posições políticas e, igualmente, para situar o seu lugar de fala. Trata-se de “E agora: revolução conservadora?”54 Nele, Otto Karpfen pergunta sobre o significado da palavra conservador e sua relação com o conceito de Revolução.

51 No original, Traum und Wirklichkeit, publicado em Der Chistliche Ständestaat, 52 Das Wesen des siegreichen Nationalsozialismus ist der totale Staat. Von diesem totalen Staat ist aber nichts mehr zu befürchten als eine gefährliche Säkularisation der christlichen Werte. (...) Dieser so verwirklichte totale Staat ist nichts anderes als eine atheistische Kirche, nur mit dem gefährlichen Begleitumstand, daβ der Atheismus den Beteiligten nicht zum Bewuβtsein kommt.

53 (...) nur an eine deutsche Lehrkanzel sollte er vorsichtshalber nicht übersiedeln. 54 No original, Und jetzt: Konservative Revolution?, publicado em Der Christliche Ständestaat, em 101

O jornalista inicia seu artigo referindo-se a Hitler e sua declaração, ocorrida em 30 de junho daquele ano, de que o Terceiro Reich teria a duração de mil anos. Em seguida, compara os seguidores de Hitler aos velhos conservadores prussianos, questionando se estes teriam condições, quer por sua estrutura, quer por sua linhagem, de assumir um papel de liderança na Alemanha.55 (Karpfen, 1934e: 12). Em seguida, o jornalista escreve que o Nacionalsocialismo está, naquele momento, personificado não mais em Hitler, mas em Hermann Göring que, por sua vez, “não permitirá que o poder lhe seja tirado tão facilmente”.56 (Karpfen, 1934e: 12). Isso implicará, segundo Karpfen, uma segunda revolução, desta vez de direita, ao que ele propõe discutir no artigo o problema da “revolução conservadora”.

Para Karpfen, o Nacionalsocialismo tem atuado com duas palavras de ordem, ambas inspiradas no teórico Moeller van den Bruck. São elas: Terceiro Reich e Revolução conservadora. Ao discorrer sobre o conceito de Terceiro Reich, Karpfen ressalta que se trata de palavra antiquíssima e que, agora, vem sendo usada numa referência ao futuro. Remete a Dostoievski, Fichte, Lessing, Thomaz Münzer, e outros mais, desfilando extensa genealogia.

Karpfen reconhece que a essência do Nacionalsocialismo é revolucionária mas, de modo algum, é conservadora. Para ele, importa mais o conceito de conservador, e o modo como o Nacionalsocialismo vinha se apropriando de tal conceito. Como entender isso? Ao associar o Nacionalsocialismo ao conservadorismo prussiano, ele busca preservar a ligação do conceito de Conservadorismo com a tradição do catolicismo ocidental, romano.

O que deseja, no fundo, a revolução conservadora?, pergunta. Por trás do questionamento sobre as condições de possibilidade de uma revolução conservadora e se seria possível ou não uma revolução não conservadora e, também, se seria possível um conservadorismo não revolucionário, Karpfen conclui que o Nacionalsocialismo se

29/julho/1934, p. 12-14. 55 (...) ob der preuβische Konservativismus nach seiner Struktur und seiner Herkunft heute überhaupt noch die Fähigkeit bezitst, eine zukünftige Führerrolle in Deutschland zu übernehmen. 56 Der Nationalosozialismus, verkörpert nicht mehr in Hitler, sondern in Goering, wird sich die Macht nicht gutwillig entwinden lassen. 102 anuncia como conservador mas, na verdade, pratica um falso conservadorismo. “O que é, com efeito, ser conservador?”, pergunta.57 (Karpfen, 1934e: 14).

Para Karpfen, o conceito de conservadorismo está ligado à consciência do pecado. É isso o que ele espera do governante ou do estadista conservador: que reconheça o peso e a importância do pecado.58 (Karpfen, 1934e: 14). “Os grandes teóricos do Estado do século 19, conservadores, como De Maistre e Donoso Cortés, mostram esta ligação entre consciência do pecado e tradicionalismo, que é próprio ao pensamento conservador”, escreve Otto Karpfen.59 (Karpfen, 1934e:14). Este argumento está na base, também, da crítica ao Nacionalsocialismo, que recusaria, segundo ele, o conceito cristão de pecado. “Esta é a sentença sobre o Nacionalsocialismo”, escreve.60(Karpfen, 1934e: 14). “Somente aqueles que abraçam o conceito cristão de pecado fazem parte do Ocidente cristão”, completa.61 (Karpfen, 1934e: 14).

Para o jornalista vienense, esta é a “verdadeira face da revolução nacional- socialista”, cujos métodos de ação, seus instrumentos, servem ao conservadorismo prussiano (numa referência indireta mas inequívoca ao Estado prussiano de Frederico, o Grande e ao império alemão de Bismarck), derrotado na Primeira Guerra Mundial e pela República de Weimar.62 (Karpfen, 1934e: 14). Na sequência do artigo, Karpfen questiona o próprio significado de Weimar, e a falsa oposição entre esta e Potsdam. “A política na Alemanha dos últimos 15 anos tem sido interpretada como uma luta entre Potsdam e Weimar. Mas o que foi, afinal, Weimar?”, pergunta. Para ele, a “verdadeira luta de Potsdam não é contra Weimar, mas sim contra Köln e Munique.” 63 (Karpfen, 1934e: 14).

57 Was ist eigentlich konservativ? 58 Der konservative Staatsmann weiβ um die Sunde. 59 Die groβten konservativen Staatsdenker des 19. Jahrhunderts, ein de Maistre oder Donoso Cortés, weisen diese Verbindung von Sündenbewuβsein und Tradicionalismus auf, die dem konservativen Denken eigen ist. 60 Es ist der Urteilsspruch über den Nationalsozialismus. 61 Nur wer aber diesen christlichen Sündenbegriff annimmt, gehört zum christlichen Abendland. 62 Dies ist das wahre Gesicht der nationalsozialistischen Revolution. (...) Dies ist das Wesen des Instrumentes, dessen sich die preuβischen Konservativen bedient haben, um den Staat von Weimar zu stürzen. 63 Der wahre Kampf von Potsdam ging nicht gegen Weimar, sondern gegen Köln und München. 103

Decorre daí a antiga rivalidade entre Prússia e Áustria, cuja história remonta aos tempos de Maria Tereza e à derrota da Áustria para a Prússia em 1866, rivalidade esta que opõe o conservadorismo prussiano ao catolicismo político.

O catolicismo político, com a força da sua ideia de Reich católico, opõe-se a Potsdam, e esta ligação significa a oposição entre a ideia de Estado de Direito e Estado de Violência. Todos os grandes pensadores e autores do catolicismo político alemão, de Görres até Windhorst, reconhecem a tarefa política dos católicos alemães, que são minoria, que veem sentido na luta dos partidos confessionais contra o onipotente Estado de violência. Esta era a luta da ideia de Reich contra todo prussianismo.64 (Karpfen, 1934e: 14).

Otto Karpfen jamais abandonou esta interpretação histórica, que coloca em disputa adversários com visões de mundo inconciliáveis. Nesse sentido, ser verdadeiramente conservador é reconhecer e aceitar o conceito cristão de pecado que caracteriza a Cristandade a partir da ideia de Reich católico. Esta é a matriz teórico- teológica que recobre a crítica de Otto Karpfen tanto ao prussianismo quanto ao Nacionalsocialismo. Assim, o autêntico conservadorismo alemão não tem sua sede em Potsdam. Ele mudou-se para Köln e Munique. E, hoje, escreve Karpfen, “ele está em Viena e, por fim, em Roma.”65 (Karpfen, 1934e: 14).

No contexto do fascismo austríaco

Com efeito, a experiência da Primeira Guerra Mundial trouxe para os austríacos um rompimento drástico e traumático com o passado. Os habsburgo detinham o poder há tanto tempo que sua presença se fundira com a própria identidade do país. Quando desabou a guerra, e principalmente quando esta terminou, reduzindo a geografia do Império a cerca de 40% do que era, seus súditos viram o até então inabalável poder aristocrático ruir como um castelo de cartas. A sensação de perda foi ainda maior para as gerações de vienenses nascidas na última década do século XIX e na primeira década

64 Gegen Potsdam hat der politische Katholizismus mit aller Kraft die katholische Reichsidee verfochten, die in diesem Zusammenhang nichts anderes war als die Idee des Rechtsstaates gegen die Idee des Gewaltstaates. Alle groβen Denker und Täter des deutschen politischen Katholizismus, von Görres bis Windhorst, erkannten die politische Aufgabe der deutschen Katholiken in ihrer Minderheitsstellung begründet, sahen den Sinn der konfessionellen Partei im Kampf gegen die gewalttätige Staatsomnipotenz. Es war der Kampf der Reichsidee gegen jenes preuβische. 65 Der wahre Deutsche Konservativismus ist nicht in Potsdam zu Hause. Er ist aus Köln und München verjagt worden, er ist emigriert. Sein legitimer Sitz ist heute in Wien; und letzten Endes in Rom. 104 do século XX. Otto Karpfen pertenceu à geração que chegou à juventude e à idade adulta em meio aos escombros da guerra e ao turbulento nascimento da República. Na antológica frase de Karl Kraus, a Viena do jovem Karpfen assemelhava-se a um “campo de provas para a destruição do mundo”. (Janik-Toulmin, 1991: 67).

A Áustria posterior à Primeira Guerra era como uma majestosa árvore sem membros, pálida sombra daquilo que já fora. Além da escassez de produtos básicos e da crise monetária, a Pequena Áustria não podia mais contar com as fábricas, minas e os campos de petróleo que tinham até então produzido a riqueza do país, a maioria situados nos países anexados após a guerra. O debate sobre a independência da Áustria deu-se, portanto, neste contexto de crise econômico-política.

Com a Primeira Guerra desapareceu toda a autoridade política e administrativa que caracterizava a monarquia dual dos Habsburgo. Uma autocracia construída pelo imperador Francisco nos anos 1800 e mantida pelas políticas centralizadoras de Metternich e Francisco José, mas que no final do século XIX experimentava um lento e silencioso processo de destruição. Todo o monumental território que se estendia do Vale do Pó aos Cárpatos, criado há 300 anos com a finalidade de proteger a Europa dos turcos, agora estava reduzido à Pequena Áustria. Aos vienenses, portanto, impunha-se a tarefa de construir o futuro de uma sociedade que, no alvorecer do século, precisava superar o complexo de redução e enfrentar sua nova realidade geopolítica.

A missão europeia desempenhada pela Áustria e defendida por Karpfen em seu livro corresponde exatamente a esta vocação geopolítica da Áustria para defender a Europa dos turcos. O equilíbrio europeu, garantido pela presença de um Estado forte e independente como era a Áustria até a Primeira Guerra era outro aspecto desta “missão”. Para esta vocação política não faltavam exemplos. Como relata o historiador Paul Hofmann, “a geografia condenou Viena a ser o baluarte do Ocidente contra os turcos”.

O império otomano, herdeiro do dinamismo do Islã, avançou em todas as direções durante centenas de anos -- no mar Mediterrâneo, pelas expedições quase anuais da sua frota, no Oriente Médio, em direção à Ásia e à Europa. O Danúbio e as planícies da Hungria induziram os sultões a montar expedições militares dirigidas para o noroeste. Budapeste esteve século e meio nas mãos dos turcos, administrada por

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um vizir. Se Viena tivesse caído, a Boêmia e a Baviera teriam sido os próximos objetivos dos otomanos. (Hofmann, 1996: 62-63).

Durante séculos os Habsburgo estabeleceram uma fronteira militar nos Balcãs. Uma função histórica de barricada, linha divisória entre Ocidente e Oriente, entre a Cristandade e o Islã. Para uma parcela significativa da opinião pública austríaca, a ideia de missão permanecia viva ainda nas primeiras décadas do século XX. Alguns intelectuais vienenses das gerações anteriores e contemporâneos de Karpfen, como Seipel, Vogelsang, Funder e Dollfuss, acreditavam que sua cidade tinha um desígnio especial a cumprir na Europa no campo da política, das artes e da cultura e isso servia para amenizar o sentimento de estarem vivendo num império decadente e à beira do abismo.

Otto Karpfen se considerava herdeiro desta função histórica do império Habsburgo e por isso opunha-se à união com a Alemanha. A luta pela independência da Áustria foi a grande questão de seu tempo e quando isso não foi mais possível, viu seu mundo ruir. Como filho da casa da Áustria, Karpfen adotou um conceito de missão européia derivado de um ideal habsburgo e incorporou a visão de mundo de uma aristocracia já fossilizada. Sua visão era monarquista e católica, como convinha, aliás, à linhagem conservadora do Império Habsburgo.

Na década de 30, Karpfen engajou-se na construção das instituições e na viabilização de iniciativas sociais necessárias para dar fôlego e sustentação à nova realidade do país. Há todo um trabalho em prol da sociedade a ser feito nesta pequena Áustria e ele empenhou-se nesta missão. Como relatam Janik e Toulmin, o colapso das velhas dinastias da Europa central havia deixado um novo mundo para ser construído. “Havia uma Constituição a elaborar, um parlamento a organizar, um sistema efetivo de democracia social a pôr em funcionamento. Era um tempo para construção e para olhar em frente.” (Janik-Toulmin, 1991: 288-293).

Talvez por isso o jovem Karpfen tenha trocado a ciência pela carreira de publicista. Quando, a partir dos artigos publicados em Der Christliche Ständestaat, Otto Karpfen se propôs a fazer um diagnóstico da situação política da Áustria no contexto europeu posterior à Primeira Guerra, ele o fez a partir de um ponto de vista que era, ao mesmo tempo, político, filosófico, histórico e moral e orientado para a preservação da herança intelectual e religiosa da civilização da casa da Áustria.

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Assim, os dois principais elementos do pensamento de Carpeaux em Viena eram o clericalismo político e o conceito de missão histórica a ser desempenhada pela Áustria na Europa. Ora, essas duas ideias -- o catolicismo e a missão geopolítica -- derivam da visão habsburga de mundo. Tanto a vertente eclesiástica quanto a política refletem visões essencialmente conservadoras da sociedade. Ao se engajar na renovação católica, Carpeaux desejava resgatar, ainda que em novo tom e envolvendo outros protagonistas, a velha vocação habsburga de controlar os destinos do império, agora enfraquecido militar e geograficamente.

Carpeaux se manteve fiel à filosofia da casa da Áustria ao defender a visão supranacional do Reich. Sua visão conservadora da política fica evidente a partir da leitura dos artigos publicados em Der Christliche Ständestaat, assim como em seu livro Österreichs europäische Sendung. O conservadorismo político e clerical de Carpeaux em sua fase austríaca deriva desta concepção de mundo católica ligada à dinastia da casa da Áustria, à qual ele se manteve como um herdeiro intelectual.

*****

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2.3. Da assimilação à conversão: a questão judaica em Otto Maria Karpfen

Mas para a comunidade judaica, a perseguição e a assimilação são igualmente uma ameaça, podendo a Palestina ser uma solução a isso. Esta poderá constituir-se não em uma pátria política, mas uma pátria cultural. Isso não elimina o mal dos judeus, mas o mal do judaísmo. (Karpfen, 1938: 217-218).

Assimilação, conversão, deportação. Essas três palavras sintetizam a trajetória de Otto Karpfen na Europa. Revelam também os principais aspectos que envolvem a questão judaica e apontam para os três estágios vividos pelo jornalista austríaco- brasileiro em seus anos de Viena.

Oriundo de uma família de judeus assimilados -- o pai, Max Karpfen, era vienense, mas a mãe, Gisella Schmelz, nascera em Cracóvia, então Galícia, e atual Polônia --, Karpfen levaria ao limite máximo essa experiência quando decidiu desligar- se, oficialmente, da religião judaica, em 18 de abril de 1933. A incorporação do “Maria” ao nome -- talvez para esconder sua condição de Taufejude, ou seja, de judeu batizado -- e a publicação, no ano seguinte, de Caminhos para Roma são uma inequívoca manifestação pública desse processo de assimilação. Esta obra, que talvez não seja mais do que um encômio, um elogio à visão de mundo católica, é, certamente, uma profissão de fé na herança barroco-católica da Casa da Áustria, da qual ele sempre se considerou um herdeiro intelectual.

Assimilação, conversão e deportação sintetizam, pois, o destino dos judeus austríacos naquela angustiante década de 1930 em Viena. Foi nesse período que Otto Karpfen escreveu sobre a questão judaica.

Ele ocupou-se do tema em poucas oportunidades. Identificamos sete artigos de sua autoria em que a questão aparece já no título, embora o assunto esteja presente, com maior ou menor ênfase, em ouros textos (Quadro 2). Foi na revista Die Erfüllung, no entanto, que o jornalista mais abordou a questão. Dirigida pelo padre Johannes Oesterreicher, esta publicação destinava-se a promover o diálogo entre cristãos e judeus na Áustria e na Alemanha.

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Mas o primeiro artigo de Otto Karpfen abordando a questão judaica data de 01 de julho de 1934 e foi publicado em Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte. O artigo é pequeno e limita-se a resenhar dois livros lançados naquele momento pelo sociólogo Artur Ruppin, e que se ocupavam do tema. Intitulado “O judeu hoje”, a resenha informa o leitor sobre o conteúdo dos livros, mostrando-se favorável às obras.66

Quadro 2: Artigos de Otto Karpfen sobre a questão judaica

Título Publicação Data Assinatura

Die Juden heute Berichte zur Kultur 01/julho/1934, Dr. Otto Maria und Zeitgeschichte p. 781-784 Karpfen

Traum und Der Christliche 24/julho/1935, Dr. Otto Maria Wirklichkeit Ständestaat p. 181-183 Fidelis

Unordnung in der Der Christliche 26/abril/1936, Dr. Otto Maria Judenfrage Ständestaat p. 399-401. Karpfen

Die Juden und der Die Erfüllung Jahrgang, 1935, Otto Maria Sozialismus (Zweites Heft), Karpfen p.23-29.

Die Religionssoziologie Die Erfüllung 2 Jahre/Heft 2, Juni, Otto Maria zur Judenfrage 1936, p. 61-70. Karpfen

Zur Ideengeschichte Die Erfüllung 3 Jahre/Heft 5, Janner, Otto M. Karpfen des Zionismus 1938, p. 211-225.

Mas é em artigo de fevereiro de 1935, publicado em Der Christliche Standestaat, que Otto Karpfen se refere às teorias raciais. Após mencionar os acontecimentos de 25 de Julho de 1934, data da tentativa de golpe que resultou na morte do chanceler Engelbert Dollfuss, Karpfen faz referência a Othmar Spann, um filósofo e sociólogo austríaco, expoente do pensamento conservador à época, que exerceu enorme influência na Alemanha e na Áustria no período posterior à Primeira Guerra Mundial. O referido artigo é “Sonho e realidade” 67 e põe em discussão temas como utopia,

66 No original, “Die Juden heute”, publicado em Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte. Viena, 01/julho/1934, p. 781-784. 67 No original, “Traum und Wirklichkeit”, publicado em Der Christliche Ständestaat. Viena, 24/Fevereiro/1935, p.181-183.

109 liderança sobre as massas, soluções políticas, o papel do Estado, o Terceiro Reich, tudo no contexto do Nacionalsocialismo e de seus teóricos. Um deles é o próprio Otmar Spann, cujo pensamento é caracterizado por Karpfen como sendo o de um romântico, cujas teorias misturam economia, sociologia e filosofia para propor uma ideia de Estado (whare Staat) que se revela, ao final, utópica. Para além do tom de ironia de Otto Karpfen que perpassa este artigo, ao dizer, por exemplo, que Othmar Spann “está de mal com o mundo”, interessa destacar que, para o jornalista austríaco, poucos partidos políticos em países vizinhos defendem esta bandeira, ou seja, a do Estado real (whare Staat), considerada por ele uma ideia platônica e irrealizável.68 (Karpfen, 1935: 181).

Note-se que Othmar Spann foi também um dos teóricos do Estado corporativo, e líderes políticos como Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg – e que, como estamos vendo, eram defendidos por Karpfen em seus artigos – não apenas foram influenciados pelas teorias de Spann, como faziam parte do círculo político-intelectual do filósofo austríaco.

O que os separava era o fato de Spann ser um pangermanista, ideia esta que o aproximava do Nacionalsocialismo de Hitler. Spann defendia a separação de grupos étnicos em diferentes Estados. Com isso, tornou-se um defensor da união entre Áustria e Alemanha, pois acreditava que o povo alemão poderia ser unificado sob um único Reich. (Tudor, 2013).

Além de dialogar com as ideias de Spann, Karpfen procura demarcar suas restrições ao filósofo austríaco. “O professor Spann representa para o Terceiro Reich o mesmo que Rousseau representou para a Terceira República”, escreve ele.69 (Karpfen, 1935: 181). Outro ponto que os separa está na crítica de Spann à chamada Nova Áustria, que ele desqualifica ao classificá-la, em uma de suas obras, de “carnavalesca”. Escreve Karpfen:

68 Zum Beispiel Prof. Othmar Spann ist böse auf die Welt. Da gräbt man jahrelang lebendige und tote Romantiker aus, destilliert aus Nationalökonomie, Soziologie, philosophia perennis und weniger ewigen Philosophemen eine Wissenschaft vom wahren Staat heraus und bemerkt nicht, daβ diese Staatslehre sich letzten Endes al seine Utopie, al seine wohl fundierte Lehre von einem letzten Reich enthüllen wird. Man bemerkt es um so weniger, als eine mächtige politische Partei in einem benachbarten Lande die Idee vom wahren Staat auf ihre Fahnen schreibt und zu verwirklichen verspricht. Man ist zwar platoniker und weiβ über die Unverwirklichbarkeit der Idee allerlei zu sagen; aber wer weiβ, ob nicht ein Uebermensch, der sozusagen den “Stand Staat” in sich verkörpert, die Sache schaffen wird. 69 Dann würde, was Rousseau für die Dritte Republik ist ist, Prof. Spann für das Dritte Reich sein. 110

Na página 246 desta obra [o livro Kämpfende Wissenschaft] encontramos uma anotação, uma frase assombrosa, em que o professor catedrático da Universidade de Viena, com ousadia extrema, chama a nova Áustria de “carnavalesca”.70 (Karpfen, 1935: 181-182).

A resposta de Karpfen vem com certo tom de ironia: “Deixemos seu sonho continuar a ser sonho”. (Karpfen, 1935: 182).71

No entanto, o aspecto que interessa destacar deste artigo é a discussão em torno do conceito de “gute Rasse”. Neste ponto, convém estabelecer algum paralelo entre Karpfen e Spann, pois este conceito servirá de entrada para a questão judaica, que é o tema deste capítulo. A discussão remete à figura de Hitler, aqui chamado de Führer por Karpfen. De início, portanto, citemos passagem de Otto Karpfen em que ele se coloca diante de um problema que, para ele, está muito mal proposto pelo Führer, na medida em que todos aqueles indivíduos que acabam se incorporando ao movimento Nacionalsocialista são considerados como pertencentes à “raça boa”.

Um problema que tira o sono até mesmo do Führer do Terceiro Reich. Em um discurso ao Partido em Nuremberg, ele solucionou o problema com a elegância própria de seu aparato mental: no Terceiro Reich governa o Partido nacionalsocialista; e deve governar a “raça boa”. Mas sabemos para onde vai o Partido nacionalsocialista; e seu líder, de fato, se identifica com a escolha racial do povo alemão? (...) O Führer resolve esse problema tão facilmente como a pergunta sobre o ovo de Colombo; ele meteu isso na cabeça: raça boa são todos aqueles que aderiram ao movimento de apelo do Führer.72(Karpfen, 1935: 182).

70 Auf Seite 246 dieses Werkes findet sich, in den Anmerkungen versteckt, ein erstaunlicher Satz, in dem ein ordentlicher Professor an der Universität in Wien das Auβerordentliche wagt, das neue Oesterreich einen “Fastnachtscherz” zu nennen. 71 Man laβt ihn seinen Traum weiterträumen. 72 Ein Problem, das auch die Führer und sogar den Führer des Dritten Reiches nicht schlafen läβt. Auf einer Nürnborger Parteitagsrede hat er das Problem mit der seinem Denkapparat eigenen Schneidigkeit gelöst: Im Dritten Reich regiert die nationalsozialistische Partei; und regieren soll die „gute Rasse“. Woher weiβ man aber, ob die nationalsozialistische Partei; und ihre Führer wirklich mit der rassischen Auslese des deutschen Volkes identisch sind? (Beunruhigendes Problem, namentlich wenn man Haarfarbe und Schädebildung des Reichsministers für Volksaufklärung und Propaganda in Augenschein nimmt. Anm. d. Ref.) Dieses Problem löst der Führer so einfach wie die Frage nach dem Ei des Kolumbus; er stellt es auf den Kopf: Gute Rasse sind alle diejenigen, die sich auf den Aufruf des Führers in die Bewegung eingegliedert haben. 111

Como revela a passagem acima, Karpfen é enfático ao escrever que o “Terceiro Reich é governado pelo Partido Nacionalsocialista e quem deve governar é a raça boa”.

Ainda com relação ao conceito de raça, cumpre dizer que, mesmo que aceitasse as premissas de uma concepção cristã do ser humano, Othmar Spann propunha uma teoria social distante do dogma religioso. Segundo Tudor:

Spann rejected the common conception of race as a biological entity, for he did not believe that racial types were derived from biological inheritance, just as he did not believe an individual person’s character was set into place by heredity. Rather what race truly was for Spann was a cultural and spiritual character or type, so a person’s ‘racial purity’ is determined not buy biological purity but buy how much his character and style of behavior conforms to a specific spiritual quality. (Tudor, 2013).

As discussões raciais eram centrais naquele momento, e Karpfen não foge desse debate. Não só reconhece a dificuldade de se estabelecer o conceito de raça como critica a forma simplista como essa questão é resolvida pelo Nacionalsocialismo.

Todos os teóricos raciais podem ser surpreendidos. Conhecer o conceito de raça é sempre algo duvidoso e que causa enorme dificuldade. Mas agora a questão está resolvida. Um dogma é tornado público e vejam quem diz sim a isso. Os apoiadores são da raça boa.73 (Karpfen, 1935: 182).

Em trecho seguinte, o jornalista é irônico com o próprio Hitler, a quem chama de “nosso sábio de Munique”.

Pois os teóricos raciais e os estatísticos estão admirados. Mas nosso sábio de Munique está desesperado. Em seu desespero, está disposto a utilizar-se de todos os meios para fazer desaparecer com o vergonhoso carnaval. Até o catolicismo político morder a maça, ele tinha esse objetivo.74 (Karpfen, 1935: 182-183).

73 Alle Rassetheoretiker dürften überrrascht gewesen sein. Die zweifelsfreie Erkennung der Rasse hat ihnen immer groβe Schwierigkeiten bereitet. Nun ist die Frage gelöst. Man veröffentlich ein Dogma und paβt gut auf, wer dazu ja sagt. Die Jasager sind von guter Rasse. 74 Also waren die Rassentheoretiker und die Statistiker daβ verwundert. Unser Münchener Gelehrter aber war verzweifelt. In seiner Verzweiflung war er zu jedem Mittel bereit, um diesen beschämenden 112

Neste mesmo artigo há também uma referência ao “Super-homem”, visto por ele como um vencedor, graças à força do seu partido. Novamente há aqui uma crítica incisiva ao Terceiro Reich:

Aquele ‘super-homem’ e aquele partido forte venceram. O Terceiro Reich está estabelecido. Mas a prometida construção desta situação está interrompida desde os primeiros dias da tomada do poder, e não se efetivou nos países vizinhos, impondo-se acima de todas as esperanças. Mas coloca-se, nesses países, o fato de que seus partidos não querem se submeter e estão sempre em luta, vivendo e aprendendo.75 (Karpfen, 1935: 181).

Já no fim do artigo, Karpfen se refere à atmosfera pesada, de opressão, instaurada pelo Terceiro Reich, que turva a visão dos estudiosos. Faz referência aos acontecimentos de 25 de julho de 1934, com a invasão da Prefeitura de Viena por nazistas austríacos e que resultou na morte de Dollfuss, e alerta para a necessidade de não esquecermos a lição do catolicismo político: “devemos ter um pouco de cautela para não aderir à lição do púlpito alemão”, escreve.76 (Karpfen, 1935: 183).

Desordem na questão judaica

O artigo intitulado “Desordem na questão judaica”77 remete à situação dos intelectuais judeus assimilados que viviam em Viena na virada do século dezenove para o século vinte. Em específico, está em discussão a situação dos judeus convertidos e as incertezas quanto à sua aceitação no interior da comunidade católica.

Ora, Otto Karpfen convertera-se ao catolicismo no início dos anos de 1930 e certamente recaía sobre ele a acusação generalizada, ou mesmo a desconfiança, de que o fizera por motivos de ordem profissional. De acordo com o historiador Jacques Le

Fastnachtscherz verschwinden zu machen. Sogar in den sauren Apfel des politischen Katholizismus zu beiβen, war er zu diesem Zwecke bereit. 75 Jener “Uebermensch” und jene mächtige Partei haben gesiegt. Das Dritte Reich ist errichtet. Aber der versprochene ständische Aufbau ist seit den ersten Tagen der Machtergreifung abgestoppt und vollzieht sich nicht in jenem Nachbarlande, auf das man alle Hoffnungen gesetzt hat, sondern ausgerechnet in jenem Lande, das sich jener Partei nicht unterwerfen will, und das man befehdet hat, obzwar man zufällig in ihm lebt und lehrt. 76 Nur an eine deutsche Lehrkanzel sollte er vorsichtshalber nicht übersiedeln. 77 No original, Unordnung in der Judenfrage, publicado em Der Christliche Ständestaat. Viena, 26/Abril/1936, p.399-401. 113

Rider, “aos olhos dos judeus culturalmente assimilados, o judeu convertido ao catolicismo, o Taufjude, era uma figura pouco gloriosa”. (Le Rider, 1992: 315).

Se considerarmos que até mesmo Karl Kraus se convertera ao catolicismo em 1911, sob o argumento de que agia “a favor do amanhã e facilitava a vida das gerações futuras” (Le Rider, 1992: 315), muito embora tenha mantido o fato em segredo, então podemos concluir que a atitude de Karpfen foi transparente e legítima. A publicação de seu livro Caminhos para Roma, em 1934, é uma prova pública da convicção com que se convertera ao catolicismo.

No final do século dezenove, com o esgotamento politico do liberalismo austríaco, que, de certa forma, conquistara a confiança dos judeus vienenses “modernos”, o que significava dizer, assimilados e laicos, a Áustria passou a vivenciar uma política de germanização e de centralismo. Como resultado desse novo contexto, a comunidade Judaica de Viena passou a vivenciar crescentes controvérsias e discussões envolvendo, por exemplo, o direito de se definirem enquanto nacionalidade. Ainda que Francisco José tivesse se empenhado em conter o antissemitismo durante o Império, o início do século vinte coincidiu com o crescimento deste sentimento.

Dos diversos sentimentos que compunham o antissemitismo austríaco, cumpre- nos destacar o antijudaísmo de origem clerical. Naquele momento, tornam-se comuns a publicação de textos católicos antissemitas, e é este tema que motiva o artigo “Desordem na questão Judaica”, de Otto Karpfen.

Além da situação dos judeus vienenses assimilados, como destacamos acima, o artigo aborda também o significado específico daquilo que Karpfen chama de “antissemitismo religioso”. O ponto de partida é uma conferência proferida pelo prelado católico Georg Bichlmair78, em Viena, cujo tema é justamente o antissemitismo.

Karpfen reconhece, de início, o mérito da palestra de Bichlmair para os judeus de Viena, pois aborda diferentes aspectos do pensamento antissemita, assunto que, para o jornalista, está permeado de incompreensão e equívocos.

Além de falar sobre o difícil processo de incorporação dos judeus na linhagem e na cultura alemã da Áustria, Karpfen observa que Bichlmair está mais preocupado com

78 Georg Bichlmair (1890-1953), padre jesuíta que liderou um grupo de missionários com o propósito de converter judeus austríacos ao catolicismo. 114 questões religiosas envolvendo cristãos e judeus. Isso não o impediu, no entanto, de proferir palavras contundentes de crítica às teorias raciais.

P. Bichlmair falou sobre a incorporação dos judeus na comunidade de linhagem alemã na Áustria. Mas ele falou também de modo contundente contra as teorias raciais. Além disso, observamos em sua palestra que ele abordou o problema religioso que separa cristãos e judeus, salientando as diferenças entre alemães e judeus.79 (Karpfen, 1936: 399).

O tom do artigo é um pouco ambíguo. Percebe-se que Otto Karpfen hesita em classificar o padre Bichlmair como antissemita. Há um esforço no sentido de evitar o conflito. O antissemitismo de origem católica era um fato e Karpfen procura desviar da questão. Para ele, a posição de Bichlmair não é antissemita. “Uma leitura correta da palestra mostra muito mais, ou seja, que as palavras de P. Bichlmair não podem ser sempre interpretadas como sinônimo de antisemitismo.80 (Karpfen, 1936: 399).

Ainda que Karpfen identifique na palestra de Bichlmair elementos de crítica aos judeus e às peculiaridades do povo judeu, o jornalista prefere concluir que são acusações de ordem geral (Pauschalbeschuldigungen), idênticas às que, no passado, foram dirigidas a prelados de todas as ordens católicas.

P. Bichlmair conhece bem os judeus. Sabe muito bem P. Bichlmair que acusações assim são muito comuns, são coisas diabólicas, ilusão das massas. E ele se lembra de que já houve no passado visão semelhante dirigida contra os reverendos e todas as altas ordens católicas.81 (Karpfen, 1936: 399).

Interessante observar que Karpfen se lembra de situação semelhante ter ocorrida na Rússia, em que o ideólogo e político Pobedonostsev82 colocou da seguinte forma a

79 P. Bichlmair hat sich zwar gegen die Eingliederung der Juden in die Volksgemeinschaft des deutschen Stammes in Oestereich erklärt; aber er erklärte sich auch mit starken Worten gegen die Rasentheorie; obgleich man bemerken konnte, daβ sein Vortrag, der dem religiösen Problem zwischen Christen und Juden gewidmet war, mehr die Differenz zwischen Deutschen und Juden betonte. 80 Eine genauere Durchsicht des Vortrages zeigt vielmehr, daβ P. Bichlmairs Auβerungen nicht durchweg in antisemitischen Sinne interpretiert werden können. 81 Dazu kennt P. Bichlmair die Juden zu gut. Dazu weiβ P. Bichlmair zu gut, daβ solche populäre Pauschalbeschuldigungen gewöhnlich Ausgeburten eines Massenwahnes sind; und er erinnert sich gewiβ, daβ ein solcher Massenwahn sich einst auch gegen den ehrwürdigen und von jedem Katholiken hochgeschätzten Orden gekehrt hat (...). 82 Konstantin Petrowich Pobedonostsev (1827-1907), jurista, político e pensador russo, considerado um 115 resolução para a questão judaica na Rússia: “A única solução para a questão judaica na Rússia é: batizar um terço, emigrar outro terço e matar o outro terço”.83 (Karpfen, 1936: 399). Ao mesmo tempo, Karpfen explica que Bichlmair deseja manter os judeus afastados da linhagem alemã. Isso por que, mesmo quando se batizam, continuam sendo cristãos judaicos, escreve. Com isso, os judeus convertidos, como era o caso de Karpfen, também não estavam livres de ser alvo da doutrina antissemita.

Todavia, P. Bichlmair deseja manter os judeus afastados do sangue alemão. Ele estende sua pretensa doutrina antissemita também aos judeus convertidos. Efetivamente, P. Bichlmair defende um antissemitismo que não é político, mas religioso. Pois quando os judeus convertidos são batizados segundo o costume católico-romano adquirem uma linhagem judaico-cristã. Assim, P. Bichlmair deixa, neste ponto, o terreno político e põe em questão o aspecto teológico, e ele está muito à vontade como teólogo.84 (Karpfen, 1936: 399-400).

Segundo o argumento do citado prelado, quando os judeus convertidos são batizados segundo o ritual católico, mesmo assim permanecem na linhagem judaico- cristã. Não é difícil supor que o próprio Otto Karpfen jamais tenha se libertado dessa linhagem, ou melhor, da alcunha de ser um judeu convertido. Desta forma, o argumento deixa de ser político para ser religioso. Nem por isso, perde seu conteúdo antissemita. “P. Bichlmair não está satisfeito com os judeus convertidos”, escreve Karpfen, em tom de desabafo.85 (Karpfen, 1936: 400).

Karpfen vai, deste modo, reconstituindo o argumento do prelado, que deseja batizar os judeus, mas retirar dessa condição de aceitação aqueles que não possuem credo religioso, ou que abandonaram sua religião, como os judeus laicos e assimilados. A conferência do padre Bichlmair teve grande repercussão à época. O historiador Bruce

dos principais representantes do conservadorismo russo e importante autoridade laica da Igreja Ortodoxa. 83 Die einzige Lösung für die Judenfrage in Ruβland ist: ein Drittel taufen, ein Drittel auswandern, ein Drittel totschlagen. 84 Von diesem deutschen Blut freilich will P. Bichlmair die Juden nach Möglichkeit fernhalten. Darum erstreckt er seine angeblich antisemitische Doktrin auch auf die Judenkonvertiten. Tatsächlich vertritt auch P. Bichlmair gewiβ keinen politischen, sondern höchstens einen religiösen Antisemitismus. Wenn dieser aber sich auch auf die Judenkonvertiten, auf nach römisch-katholischem Ritus getaufte Christen jüdischer Abkunft bezieht, dann verläβt P. Bichlmair hier endlich das politische Gebiet und betritt jenen Bereich, in dem er als Theologe zu Hause ist: das Gebiet der Theologie. 85 P. Bichlmair ist mit den getauften Juden nicht zufrieden. 116

Pauley refere-se a ela em seu importante estudo sobre o anti-semitismo austríaco. Realizada em março de 1936 e intitulada “Os cristãos e os judeus”, Bichlmair reclamava da forte influência que os judeus exerciam, há décadas, na cultura e na tradição cristã da Alemanha e da Áustria. O padre jesuíta que lançou uma campanha em Viena para converter e batizar judeus declarara, entre outras coisas, que os judeus pertenciam a uma raça distinta do povo alemão. Escreve Pauley:

Father Georg Bichlmair, the Jesuit leader of a missionary group for the conversion of called the “Paulus-Missionswerke”, declared in a public speech in March 1936 that Jews belonged to a different race than the German people. Sympathy for the Jews should not blind Christians to the dangerous, contagious effects of the Jewish national character and to the spiritual homelessness of the Jews. Because of their race, Bichlmair believed, Jews remained different from Christians even if they were baptized. He therefore opposed baptized Jews holding any high office in the church hierarchy or the civil service up to the third generation. In this respect, Bichlmair’s policy was in accord with that of the Jesuits, wo would not accept as novices anyone whose grandfather had not already converted to Catholicism. Bichlmair also believed that the ‘Aryan Paragraph’ was necessary for certain organizations in order to defend Christian ethics. (Pauley, 1992: 161-163).

Ora, uma fala pública com esse teor não podia ficar sem resposta de Otto Karpen, ainda que possa se observar um esforço do jornalista no sentido de afastar qualquer sentimento antissemita oriundo da Igreja Católica. Assim, ele invoca trecho de um decreto da Congregação do Santo Ofício sobre a questão judaica, que diz:

A Santa Sé condena com veemência o ódio contra o povo eleito de Deus, todo o ódio que hoje tem sido usado por meio da palavra antissemitismo.86 (Karpfen, 1936: 400).

Mas não há como negar as duras palavras do padre contra os judeus convertidos O esforço de Karpfen em não romper com Bichlmair – embora fosse necessário afirmar seu lugar de fala enquanto jornalista e intelectual --, é evidente quando escreve que,

86 Der Apostolische Stuhl verdammt aufs schärfste den Haβ gegen das einst von Gott erwählte Volk, jenen Haβ, den man heute gewöhnlich mit dem Worte Antisemitismus bezeichnet. 117 apesar de tudo, tem bons sentimentos em relação a Bichlmair e está disposto a esquecer de sua falta de clareza mental ao tratar da questão judaica.

Falta de clareza, aliás, que perpassa também a discussão como um todo, pois é precisamente a mistura (Vermischung) dessas duas formas de abordar o antissemitismo (pelo viés político ou pelo viés religioso) a razão dessa incompreensão da questão judaica. No trecho a seguir, Karpfen chega à conclusão de que nem mesmo uma reparação da condição judaica por meio do batismo seria capaz de promover uma “elevação caracterológica” capaz de equipará-la à raça ariana.

Esta mistura produz, em si, confusão. Logo, a apostasia religiosa é o único motivo evidente da frágil caracterização semita e da forte caracterização antissemita. Assim, a reparação desta apostasia por meio do batismo não é suficiente para se obter a elevação caracterológica da raça ariana. Deste modo, continuamos sem saber se recorremos ao Espírito na Raça ou à Raça no Espírito. Bem entendido: o Espírito Santo. Portanto, somente o pecado é contrário ao Espírito Santo.87 (Karpfen, 1936: 400-401).

O que é preponderante aqui, pergunta Karpfen: a raça ou o espírito? O religioso ou o racial? É evidente a posição do jornalista em prol do elemento religioso capaz de superar o sentimento antissemita, argumento este que não era unanimidade nem mesmo entre as autoridades do Catolicismo austríaco.

A questão que nos interessa ressaltar, neste capítulo, diz respeito à estratégia adotada por Otto Karpfen para reagir ao antissemitismo vienense. A questão passa, por certo, pela conversão ao catolicismo (não sabemos se ele chegou a ser batizado, mas comprovamos que se retirou oficialmente da religião judaica).

Conforme Jacques Le Rider (1992: 337), foram diversas as estratégias adotadas pelos intelectuais judeus vienenses para enfrentar, de modo pessoal, o desafio do antissemitismo. Stefan Zweig, por exemplo, enfrentou a crise da identidade judaica por

87 Diese Vermischung aber bringt eine gewisse Unklarheit mit sich: Bald ist die religiöse Apostasie die einzig richtige Ursache semitischer Charakterschwäche und antisemitischer Charakterstärke, bald ist die Gutmachung dieser Apostasie durch Annahme der Taufe nicht zureichend, um die charakterologische Höhe der „arischen“ Rasse zu erreichen. So bleibt es dauernd unklar, ob vom Geist an die Rasse appelliert wird oder von der Rasse an den Geist. Wohlgemerkt, an den Hl. Geist. Denn nur die Sünde wider den Hl. Geist ist die, die nicht vergeben wird, nicht aber die Sünde wider das Blut. 118 meio de uma postura cosmopolita, de cidadão do mundo. “O cosmopolitismo de Stefan Zweig, evidentemente, remediava a impossibilidade de uma cidadania nacional, perdida na Áustria, sob o duplo efeito da decomposição da antiga coesão política austro-húngara e do antissemitismo”. (Le Rider, 1992: 338).

A solução de Zweig, ainda que ilusória, coincide em muito com a postura de Otto Karpfen, também ele um cosmopolita, capaz de circular com desenvoltura entre as culturas europeias, e de trafegar por referências italianas, inglesas, francesas, holandesas, espanholas e eslavas.

Seria possível pensar a trajetória europeia de Otto Karpfen sob o ponto de vista de um judeu assimilado? Nesses ensaios europeus em que o tema é a questão judaica, o problema da assimilação é uma presença constante, seja de modo explícito, seja latente, em suas posições.

Sionismo: resposta ao antissemitismo

Em janeiro de 1938, Otto Karpfen publica o artigo “Para uma história das ideias do Sionismo”, em Die Erfüllung.88 O problema já é abordado no início do texto, quando seu autor se refere ao processo de assimilação dos judeus como um caminho que foi construído de modo brutal. Para Karpfen, enquanto os teóricos raciais veem a assimilação como um exagero, os radicais veem o mesmo processo como insuficiente.

Essas esperanças tem se revelado ilusórias. O caminho da assimilação tem sido construído de uma maneira brutal e deixa sem resposta se esta assimilação é um exagero, como tem lamentado os teóricos raciais, ou se ela não é ampla o suficiente, como defendem muitos pensadores radicais.89 (Karpfen, 1938: 211).

Publicado apenas dois meses antes do Anschluss, este foi, provavelmente, o último artigo de Karpfen antes de sua fuga inevitável de Viena, em março de 1938. Mesmo tendo formalizado seu afastamento da religião judaica em 1933, Karpfen, pelo

88 No original, Zur Ideengeschichte des Zionismus, publicado em Die Erfüllung, Wien, Das Pauluswerk, Janeiro de 1938 (3º. Jahre/Heft 5), p. 211-225. 89 Diese Hoffnungen haben sich jedoch als trügerisch erwiesen. Der Weg zur Assimilation ist in brutaler Weise verbaut worden, wobei man es hier dahingestellt lassen mag, ob diese Assimilation zu weit ging, wie die Rassentheoretiker beklagen, oder ob sie nicht weit genug ging, wie manche radikal Denkende behaupten. 119 que podemos observar por seus escritos, jamais deixou de refletir e de se posicionar sobre essa questão.

Ao abordar o antissemitismo, Karpfen argumenta que não faz diferença indagar se este sentimento é “um resíduo de um modo medieval de pensar ou se é algo que surgiu no século 20”.90 (Karpfen, 1938: 211-212). Para o jornalista, o mais grave dessa situação é a pressão e o medo que recaem sobre os judeus vienenses: “De todo modo, ele está aí, e possui hoje uma extensão jamais vista até então. Todo o povo está contagiado por uma pressão e um medo histéricos”, escreve.91 (Karpfen, 1938: 212). A passagem a seguir expressa bem a angústia que o acometia naqueles dias difíceis de 1938:

Em todo mundo os judeus são indistintamente difamados e sua dignidade humana é jogada ao chão; são privados dos fundamentos de sua existência e obrigados a pegar o cajado, ao mesmo tempo em que veem a porta dos outros países se fechar.92 (Karpfen, 1938: 212).

Na antevéspera da invasão nazista a seu país e cinco anos depois de sua retirada oficial da religião judaica, Otto Karpfen expressa sua consciência quanto à questão judaica e sua solidariedade aos judeus diante da gravidade da situação em Viena. Novamente vem-lhe à mente a dura sentença do jurista e político russo Konstantin Pobedonostsev aos judeus do Leste: “Assassinar um terço, batizar um terço e outro terço emigrar”.93 (Karpfen, 1938: 212).

Para ele, o momento estava mais para o assassinato de um terço de judeus do que as duas outras opções: batizar e emigrar. Se, por um lado, fecham-se as possibilidades de emigração para os judeus austríacos, visto que o antissemitismo se intensificava, por outro, o caminho da assimilação também se torna difícil.

Otto Karpfen, a exemplo de muitos outros intelectuais vienenses, cresceu no contexto de um judaísmo esclarecido e foi educado no ambiente do liberalismo

90 Es ist hier auch gleichgültig, ob der Antissemitismus der Tat ein Rückstand mittelalterlicher Denkweise oder eine neue Errungenschaft des XX. Jahrhunderts ist. 91 Jedenfalls, er ist da, und er ist da in einem solchen nie gekannten Ausmaβ, daβ er ganze Völker mit Zwangsneurosen und Angsthysterien infiziert (...). 92 Daβ er in aller Welt die Juden unterschiedslos diffamiert und ihre Menschenwürde mit Füβen tritt, ihnen die primitivsten Grundlagen der materiellen Existenz, sie zwingt, den Wanderstab zu ergreifen und ihnen gleichzeitiz die Tore aller Länder sperrt. 93 Ein Drittel erschlagen, ein Drittel taufen, ein Drittel auswandern. 120 austríaco, em que a cultura alemã cosmopolita dava o tom. O aprendizado dos idiomas, a educação no Sophien Gymnasium e, depois, na Universidade de Viena, foram elementos responsáveis por uma crescente assimilação, pela via da formação cultural.

Assim, a escolha de uma profissão ligada às humanidades era comum aos jovens judeus vienenses, e a atuação no jornalismo era o caminho natural para isso naquela Viena da Ringstrasse, da estetização e do cosmopolitismo. Quem podia, fugia de ocupações no comércio, que era o caminho natural para os filhos da classe média judaica de Viena. A esse respeito, escreve o historiador Carl Schorske:

A assimilação através da cultura, como uma segunda etapa da assimilação judaica, era apenas um caso específico entre as fases de mobilidade vertical da classe média, onde à ocupação econômica se seguia a ocupação intelectual. (Schorske, 1988: 154).

Ao retirar-se do judaísmo em 1933, Otto Karpfen tomou uma atitude bastante comum naquele tempo. Não foi possível comprovar ainda se ele aceitou o batismo no Catolicismo, mas, tendo em vista que esta era uma condição necessária para ingressar em determinadas carreiras, não será um exagero concluir que ele deve tê-lo feito. Afinal, os dois veículos para os quais escreveu com maior frequência em Viena – Der Christliche Standestaat e Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte – eram órgãos de imprensa assumidamente católicos.

Quatro décadas antes, Theodor Herzl experimentara dilema semelhante. Tendo vivido sempre como um europeu culto, esclarecido e refinado, aquele que viria a ser o principal teórico do sionismo chegou, em 1893, a um impasse em relação ao processo assimilacionista, que até então era sua bandeira de luta contra o antissemitismo. Como relata Schorske, Herzl deu um passo atrás no seu assimilacionismo, quando chegou a propor publicamente uma conversão em massa de judeus vienenses, que ele mesmo se encarregaria de liderar, desde que a Igreja Católica ajudasse na luta contra o antissemitismo. A proposta não foi adiante e, como sabemos, a situação empurraria Herzl de vez para o sonho de fundar uma nação própria para seu povo.

Nas primeiras décadas do século 20, a situação dos intelectuais judeus vienenses era extremamente perturbadora, visto que a velha ordem liberal – que buscava estabelecer garantias ao indivíduo (em especial, aos judeus) com vistas à sua

121 socialização e à integração na sociedade vienense – chegara ao colapso com a falência completa do processo de assimilação.

São muitas as causas do antissemitismo austríaco, mas sua irrupção se acentua a partir da década de 1880. Nesse período, viviam em Viena 72.588 judeus (10% da população). Pouco mais de duas décadas antes, em 1857, moravam em Viena apenas 6.000 judeus. Quando Otto Karpfen nasceu, em 1900, a população judaica de Viena era de 146.926 pessoas. (Le Rider, 1992: 326). Como aponta o historiador Jacques Le Rider, seria um equívoco estabelecer relação de causa e efeito entre imigração judaica e antissemitismo. Não obstante, pode-se sem dúvida argumentar que o “antissemitismo tornou os vienenses sensíveis a esse crescimento demográfico”. (Le Rider, 1992: 327).

A pesquisa histórica identifica também certa concentração de moradias judaicas em alguns bairros vienenses, como Leopoldstadt, onde residiam 34% dos judeus, e no Primeiro Distrito, onde Otto Karpfen morou, e que concentrava 20% dos judeus de Viena.

Também contribuíram para o fortalecimento do antissemitismo as ideias de Georg von Schönerer (1842-1921), representante do liberalismo alemão e austríaco e, como tal, lutava, entre outras coisas, por uma espécie de proteção contra a forte concorrência comercial dos judeus vienenses. Tornou-se muito popular junto à pequena burguesia e setores dos trabalhadores, principalmente artesãos. No Parlamento, promoveu uma verdadeira cruzada contra judeus e jornais judaicos, transformando o antissemitismo num dos pilares do nacionalismo austríaco. Note-se que Otto Karpfen sempre defendeu a autonomia da Áustria frente à Alemanha, mas essa postura não fazia dele um nacionalista. Do ponto de vista político, era muito mais um antinacionalista, na medida em que suas concepções alinhavam-se a uma visão do Império austro-húngaro como entidade supranacional, possibilitando a convivência entre as diferentes nacionalidades que formavam o ex-império.

Contribuiu igualmente para o fortalecimento do antissemitismo a atuação de Karl Lueger (1844-1910), o sucessor de Schönerer junto aos partidos políticos burgueses, em que germinava com força o sentimento antissemita. Lueger usou para suas próprias finalidades políticas esse sentimento, catalisando na União Cristã – o grande partido antissemita de massas que ajudou a fundar -- as demandas oriundas da burguesia, da pequena burguesia e, inclusive, da Igreja Católica em torno de interesses

122 nacionalistas. Em certo momento de sua carreira, Lueger chegou a defender publicamente que a solução para os problemas sociais “só poderiam ser resolvidos depois de se resolver a questão judaica”. (Lorenz, 2010: 325).

É, deste modo, significativo neste artigo o apoio de Karpfen à constituição de um Estado judeu, assim como ao projeto de construção de colônias judaicas na Palestina. Na passagem a seguir, esta posição fica bem clara: “Ninguém intervém em favor dos judeus. Eles não tem Estado. Por isso os judeus também precisam de um Estado, a exemplo dos demais povos, um Estado judeu. E assim resolve-se a questão judaica”.94 (Karpfen, 1938: 218).

Não seria de surpreender que um católico, militante do Catolicismo político, ligado a órgãos de imprensa católicos para os quais escrevia, venha defender o Estado judeu? Sua posição em relação a Theodor Herzl e ao sionismo parece um tanto hesitante. Não há uma crítica explícita, mas Karpfen parece pender mais para o lado dos judeus do Leste (Ostjuden).

Karpfen também não esconde sua admiração pelo filósofo e fundador da nova prosa hebraica Achad Haam. Vejamos como ele o caracteriza:

Achad Haam foi um político e um homem de cultura como raras vezes se viu em todos os povos. Com determinação radical, ele rompeu com a ideia de salvação político-nacional de Chowewe Zion, transformando-a em um programa cultural-nacional, do qual derivam a poesia e a ciência hebraica moderna. Mas Achad Haam não quer saber de falsos políticos, de demagogia e de diplomacia. Ele considera uma perigosa demagogia quando se coloca, enganadoramente, que a solução para a salvação dos povos e de suas necessidades esteja na emigração para a Palestina. Os falsos profetas da Antiguidade vinham até nós para guiar-nos pelo deserto. Hoje, opina ele, os falsos profetas escrevem belos folhetins e apresentam-se como diplomatas. Mas o judaísmo, para renascer, necessita de profetas e não de diplomatas.95 (Karpfen, 1938: 218).

94 Aber für die Juden interveniert niemand. Sie haben keinen Staat. Darum brauchen auch die Juden einen Staat, wie ihn alle anderen Völker haben, einen Judenstaat. Und dann wird die Judenfrage gelöst sein. 95 Achad Haam war ein Kulturpolitiker, wie sie unter allen Völkern selten sind. Mit radikaler Entschlossenheit schnitt er die nationalpolitische Erlösungsidee der Chowewe Zion ab, verwandelte sie 123

A referência a Theodor Herzl aqui é inequívoca, já que ele era muito conhecido em Viena como autor de comédias e de folhetins, além de ser editor da seção de literatura de Neue Freie Presse, um dos mais prestigiosos jornais do Império austro- húngaro.

Por trás dessas palavras temos também uma ácida crítica de Achad Haam a Theodor Herzl. E observa-se uma simpatia de Karpfen pelo primeiro. Ele identifica um conflito entre as esperanças dos judeus do Leste, que “em seus guetos escutam a voz dos velhos profetas” e a bandeira de luta contra o antissemitismo protagonizada por Theodor Herzl em Viena.96 (Karpfen, 1938: 219).

Em Wilna e Odessa, em Warschau, Grodno, Pinsk, na Galícia, na Bessarábia, na România e na Lituânia o povo judeu se levanta e segue a bandeira azul e branca, agitada por Herzl em Viena.97 (Karpfen, 1938: 219).

E qual a razão dessa falta de sintonia entre os judeus do Leste e Theodor Herzl em Viena? A resposta passa pelos dramáticos acontecimentos ocorridos na Rússia entre 1881 e 1884, e que ficaram conhecidos como Pogroms, palavra de origem russa que virou sinônimo de perseguição aos judeus. Conforme relata o historiador Hakon Harket, “entre a Páscoa de 1881 e o verão de 1884, as residências judaicas em mais de 160 cidades foram invadidas por hordas de camponeses, incitados pela imprensa com uma retórica febril e muitas vezes ajudados pela polícia local, que só de vez em quando intervinha”. (Harket, 2010: 277). Esses episódios, que atingiram um grau de violência inacreditável, e que se seguiram à morte do czar Alexandre II, interrompeu um ciclo de liberalização na economia e no sistema de ensino, em que a escola russa foi aberta aos estudantes de origem judaica.

in ein nationalkulturelles Programm, dem die moderne hebräische Poesie und Wissenschaft ihre Entstehung verdanken. Von falscher Politik, von Demagogie und Diplomatie aber wollte Achad Haam nichts wissen. Er erachtete es für eine gefährliche Demagogie, wenn man dem Volke die Erlösung von seinen Nöten durch Auswanderung nach Palästina vorspiegelte; die falschen Propheten des Altertums kamen ihm in den Sinn, die das Volk in die Wüste geführt hatten. Heute, meinte er, schreiben die falschen Propheten elegante Feuilletons und tragen den Diplomatenfrack. Aber das Judentum, das wiedergeboren werden soll, bedarf der Propheten und nicht der Diplomaten. 96 Aber die Ostjuden in ihren Ghettos hörten von dem groβen Propheten. 97 In Wilna und Odessa, in Warschau, Grodno, Pinsk und Kiew, in Galícia, in Bessarabien, in Rumänien und Litauen stand das Judenvolk auf und folgte der blau-weiβen Fahne, die Herzl in Wien emporgehoben hatte. 124

No século 19, as comunidades judaicas da Rússia habitavam um território situado a oeste do império, que fora demarcado por Catarina, a Grande, em 1794, e que se estendia da Lituânia, no norte, até o mar Negro, ao sul; e da então província polaca, a oeste, até a Bielorússia, no extremo oposto. Nesse grande gueto russo, os judeus vivenciavam um amplo processo de assimilação no interior da cultura russa.

Os pogroms representaram uma ruptura desse processo, cujos efeitos serão sentidos também na Áustria, já que os judeus do Leste precisarão sair em busca de novos lugares para viver. Houve, a partir de então, uma fuga em massa de judeus para o Ocidente.

Para os judeus do Leste não havia separação ente nação e religião, pois, ao contrário dos judeus ocidentais, não houve um processo de secularização. Isso afeta, inclusive, a concepção dos judeus do Leste quanto ao nacionalismo judaico e foi no Leste que surgiram os primeiros movimentos sionistas, como Chowewe Zion (Amantes de Sião), citado por Otto Karpfen em seu artigo.

Seja como for, nesse artigo de janeiro de 1938, em que se dedica a historiar e contextualizar a ideia de Sionismo, Karpfen deixa explícita sua posição em favor da construção de uma Nação judaica. Sem alimentar mais esperanças no sonho da assimilação, esse judeu convertido ao catolicismo parece submergir numa profunda crise em relação à identidade judaica. Crise esta, aliás, muito semelhante à vivida por outras grandes personalidades vienenses, como Stefan Zweig, Sigmund Freud. Theodor Herzl e Karl Kraus.

Não pode ser esquecido também que o ceticismo em relação ao processo de assimilação ligava-se, em boa medida, ao forte e tradicional anti-judaísmo católico. Este sentimento, generalizado em vários níveis hierárquicos da Igreja Católica, não tinha raízes nas teorias raciais; tratava-se, antes, de um anti-semitismo espiritual e ético, como pudemos ver no comentário de Otto Karpfen à conferência do padre Georg Bichlmair.

De acordo com Einhart Lorenz, “os líderes eclesiásticos não promoviam os pogroms, mas quase todos queriam que se controlasse a desmedida influência judaica na Áustria”. (Lorenz, 2010: 405). Poucos meses antes de ter sua vida pública de intelectual vienense completamente destruída, Karpfen manifesta lucidez em relação às suas próprias origens. Escreve ele em 1938:

125

Mas para a comunidade judaica a perseguição e a assimilação são igualmente uma ameaça, podendo a Palestina ser uma solução a isso. Esta poderá constituir-se não em uma pátria política, mas uma pátria cultural. Isso não elimina o mal dos judeus, mas o mal do judaísmo.98 (Karpfen, 1938: 217-218).

Como se vê, a solução, ou a salvação, para a comunidade judaica estava na construção de uma Pátria (Heimat) e, ainda que não resolvesse a situação dos judeus, que enfrentavam perseguição em vários países naquele momento da história, podia significar uma saída para o judaísmo. A identidade judaica sobrepõe-se, assim, à própria convicção religiosa, expressa por esse judeu que talvez fosse visto apenas como um Taufejude, como eram chamados pejorativamente os judeus convertidos ao Catolicismo. Dolorosa constatação para aquele que, educado num ambiente propício à assimilação, aprofundou-a por convicção ao converter-se ao Catolicismo e cujo epílogo foi a deportação, com a perda de seus direitos políticos, sua cidadania e sua pátria.

*****

98 Aber für das Judentum, das Verfolgung und Assimilation gleicherweise bedrohten, konnte Palästina eine Rettung werden. Nicht die politische, aber die kulturelle Heimat konnte esbieten; nicht das Leid der Juden (Zorath hajehudim) aufheben, aber das Leid des Judentums (Zorath hajehudath). 126

2.4. Passagens do moderno: Karpfen leitor de Benjamin

Uma grande morte tem início. E é uma obra católica, o Réquiem de Mozart, que acompanha ao túmulo esta arte e esta sociedade. (...) Os temas cristãos da arte se perdem. Uma grande deformação da alma tem início. A Igreja empobrece e um outro público toma seu lugar. (Karpfen, 1934: 112).

O conhecimento e a recepção da obra ensaística de Otto Maria Carpeaux sempre estiveram circunscritos à sua fase brasileira. Admiradores, amigos, discípulos confessos e todos os que, com maior ou menor intensidade, conviveram com o crítico e jornalista sabiam que Carpeaux chegara ao Brasil em 1939 com vários livros publicados. No entanto, um véu espesso passou a cobrir esta etapa de sua vida, sobre a qual ele próprio se recusava a falar ou escrever. Uma dessas obras esquecidas é “Caminhos para Roma – Aventura, queda e triunfo dos espíritos”, publicado em Viena em 1934. (Karpfen, 1934).

A interpretação desse livro europeu de Otto Karpfen abre novas perspectivas sobre a obra do jornalista e crítico austríaco-brasileiro. A principal delas está na possibilidade de se ter uma compreensão sistemática do pensamento daquele que é considerado um dos mais importantes críticos literários do país, e cujos ensaios sobre literatura tornaram-se um marco da formação da crítica no Brasil. Uma dessas leituras possíveis é a aproximação que aqui se faz entre Karpfen e Benjamin, com a finalidade de identificar pontos de contato e de afastamento entre os dois autores. Nesta operação metodológica, assume papel crucial o cotejo de Caminhos para Roma, de Otto Karpfen, com duas obras de Walter Benjamin: Passagens e Origem do drama barroco alemão.

O primeiro ponto de contato entre os dois está na valorização do Barroco enquanto referência estética e concepção de mundo. Nesse sentido, para a análise de Caminhos para Roma, o enfoque metodológico será norteado pela leitura de Buci- Glucksmann (1984) e pela busca de indícios do pensamento benjaminiano nesta obra, o que nos leva a argumentar em favor de um Karpfen “leitor” de Benjamin.

127

No decorrer do livro, o autor empenha-se em demonstrar que a religião de Roma é o ponto para onde convergem todos os movimentos do espírito, ideia esta que se ancora numa concepção do catolicismo enquanto religião positiva. Apesar de construir um sistema de idéias e analogias marcadamente intelectualista, o exercício filosófico de Karpfen neste livro não o insere no contexto de um deísmo ou mesmo de uma religião natural. Há um esforço evidente do crítico no sentido de contrapor aos conceitos de racionalismo, iluminismo e autonomia da moral uma concepção de mundo centrada nas ideias de dogma, tradição e fé. Para sustentar tal operação teórica, o jornalista e crítico austríaco invoca Hegel. “Ele entende a religião como uma pré-forma da filosofia e o dogma como uma arte rudimentar e imperfeita.” (Karpfen, 1934: 83).99

Outro aspecto relevante desta obra está na relação entre experiência religiosa e expressão literária que, em Karpfen, transita de uma visão da religião como dogma para uma posição mais atenuada: o fenômeno religioso enquanto consciência, presença latente no espírito de alguém cuja religiosidade também sofreu transformações. Nesse sentido, uma das hipóteses levantadas neste artigo está na afirmação de que a própria fé católica de Otto Karpfen passou por um processo de secularização, cuja causa parece estar em sua trajetória pessoal.

O crítico constrói, nesta obra, um diagnóstico da situação da arte nos séculos XIX e XX e formula alguns dos critérios a partir dos quais sua concepção estética se orienta. Assim, será feita uma aproximação entre Karpfen e Benjamin com a finalidade de identificar pontos de contato e de afastamento entre os dois autores. Uma dessas aproximações está na visão teologizante da Arte e da História. Cumpre assinalar senão o parentesco, pelo menos a proximidade com o “fundamento divino de toda história (“die götlich Grundlage aller Geschichte”) presente em Friedrich Schlegel e que tanta influência exerceu sobre Benjamin. Nossa hipótese é a de que tanto o conceito de arte quanto o diagnóstico severo de Otto Karpfen, presente em Caminhos para Roma, a respeito do processo de secularização sofrido pela arte contemporânea, assentam-se sobre este fundamento teológico a que nos referimos.

Também próxima desta fundamentação está a visão hegeliana segundo a qual a arte é vista enquanto celebração, culto.

99 Er erklärte die Religion als eine Vorform der Philosophie, das Dogma als eine Art unentwickelte und unvollkommene. A tradução deste e dos demais trechos citados de Otto Karpfen é do autor. 128

Ao longo das Lições sobre estética a consideração da obra de arte pela via da religião é extremamente freqüente. O universo artístico é visto como um estado de religiosidade: a celebração, o culto, as oferendas. A obra de arte confere materialidade aos rituais. (Knoll, 1996: 113).

Nesse sentido, escreve Karpfen na abertura do quinto capítulo, “A luz de Satã” [Die Sonne Satans], objeto de análise deste capítulo: “a verdadeira arte é adoração a Deus, é religião”.(Karpfen, 1934: 107) 100 Cabe destacar também que, tanto em Benjamin quanto em Karpfen, as considerações sobre a arte e a literatura estão centradas na ideia de perda da tradição, perda da narração clássica e perda da aura. (Gagnebin, 2004).

A estreita relação entre arte, religião e história é a chave para se compreender os argumentos teóricos contidos em Caminhos para Roma. No referido capítulo, ele descreve o momento em que a arte troca a inspiração divina por temas seculares. Para ele, a perda é irreparável.

Antes, porém, ele relembra aqueles momentos em que a arte encontrava na Igreja sua inspiração. Sempre em tom apologético, Karpfen ressalta a fidelidade da arte, em todos os tempos, à Igreja de Roma. De Dante a Celano, de Palestrina a Bellini, passando pelo pintor Anselm Feuerbach, Carpeaux invoca inúmeros artistas que fundamentaram na Igreja a temática de suas criações.

Devemos apenas lembrar de alguns nomes para saber que o espírito católico conduziu a arte dos temas baixos da moribunda Renascença para o ápice do Barroco. Não são evidentes a cúpula abobodada da Catedral de São Pedro no Vaticano, obra de Michelangelo, ou o triunfo de Cristo no comovente episódio da Graça? (Karpfen, 1934: 111).101

Além de glorificar o barroco e a contra-reforma, o crítico destaca a presença viva do espírito católico em diversas criações artísticas:

100 Wahre Kunst ist Gottesdienst, ist Religion.

101 Man muβ nur einige Nammen erinnern, um zu erkennen, wie es katholischer Geist war, der die Kunst von den Niederungen der sterbenden Renaissance zu den Gipfeln des Barock emporführte. War es nich der greife Michelangelo, der die Kuppel von St. Peter beim Vatikan emporwölbte, und nachts in erschütternden Gedichten und die Gnade Christi rang?

129

Vive o mesmo espírito católico tanto no estilo e nas formas ambiciosas dos céus de El Greco como também nas imagens de piedade popular de Madonas e anjos de Murillo, assim como nos ornamentos para festas religiosas feitos por Rubens ou nos admiráveis e rústicos aldeões de Caravaggio. Vive o espírito católico nos grandes mestres sonoros do Barroco, em Benevoli e seus cânticos para 48 vozes, em Scarlatti, em que a suave melodia do Sul está a serviço da religião. Vive o espírito católico na poesia espanhola de Lope a Calderón (...). Vive o espírito católico e cristão nos grandes poemas clássicos dos franceses, em mestres da língua como Pascal e Bossuet, Racine e Fénelon, pois todos esses eram cristãos. (Karpfen, 1934: 111).102

Karpfen recorre ao contexto da história da arte para demonstrar o quanto foi íntima a relação entre criação artística e catolicismo e o quanto a primeira sempre beneficiou-se desta proximidade. Mas um novo capítulo da história da arte tem início com este processo de secularização, que faz os temas cristãos serem deixados de lado. Escreve o crítico:

Uma grande morte tem início. E é uma obra católica, o Réquiem de Mozart, que acompanha ao túmulo esta arte e esta sociedade. (...) Os temas cristãos da arte se perdem. Uma grande deformação da alma tem início. A Igreja empobrece e um outro público toma seu lugar. (Karpfen, 1934: 112).103

102 Es lebt derselbe katholische Geist in den steil zu mystischen Himmeln aufstrebenden Gestalten des Greco wie in den volkstümlich innigen Madonnen und Schutzengeln des Murillo, in den rauschenden Kirchenfesten des Rubens wie in den bäuerlichen Anbetungen des Caravaggio. Es lebt katholischer Geist in der groβen Tonmeistern des Barock, in Benevoli, der achtundvierzig Stimmen übereinander zu türmen wuβte, in Scarlatti, der die süβen Melodien des Südens der Kirche dienstbar machte. Es lebt katholischer Geist in der spanischen Dichtung, die von Lope bis Calderon sich mit besonderer Innigkeit der Verherrlichung des allerheiligsten Altarsakramentes weihte. Es lebt christicher und katholischer Geist in der groβen klassischen Dichtung der Franzosen, deren Meister der Sprache von Pascal und Bossuet bis zu Racine und Fénelon alle gute Christen waren.

103 Ein groβes Sterben beginnt. Es ist ein katholisches Kunstwerk, Mozarts Requiem, das diese Kunst und diese Gesellschaft zu Grabe geleitet. (...) Dann gehen die christlichen Themen der Kunst verloren. Die groβe Deformation der Seelen beginnt. Die Kirche verarmt; und andere Auftraggeber treten an ihre Stelle.

130

Karpfen identifica em obras como Ifigênia e Fausto, de Goethe, e nos cantos de Hölderlin e Novalis, assim como na Missa Sollemnis, de Beethoven, os últimos acordes de uma época em que a arte se alimentava da religião ou, para usar as palavras do crítico, tempo em que a arte verdadeira era culto e adoração ao divino.

O conjunto de mudanças no âmbito da arte descrito por Carpeaux neste livro de 1934 coincide com aquilo que Ernst Cassirer denominaria, também nos anos 30, de uma nova consciência religiosa. Um ethos substitui o antigo pathos religioso, que havia causado tantas guerras de religião nos séculos precedentes. A liberdade individual passa a reger a própria concepção de religião. Ao homem recém saído de sua condição de menoridade não cabia mais submeter-se a forças superiores. “O homem não deve mais ser dominado pela religião como por uma força estranha; deve assumi-la e criá-la ele próprio na sua liberdade interior”, escreve Cassirer. (1994: 225).

Mas o movimento de Otto Karpfen segue direção oposta, ou seja, de crítica ao racionalismo da Aufklãrung e de defesa do barroco: “a pompa sagrada do barroco converte-se nos adornos luxuriosos de uma sociedade decadente”, escreve. (Karpfen, 1934: 112).104

Estamos diante de um rompimento com a tradição e, para usar um termo importante em Benjamin, diante do ocaso da ideia de aura. Ao descrever o momento em que a arte deixa de ser fruto do mecenato para guiar-se pelos condicionamentos do incipiente mercado de bens culturais e do nascente público consumidor, Karpfen lamenta o rebaixamento do conteúdo artístico e as adaptações de tempo, espaço e de estilo em função do novo público a que a arte agora se dirige. Como em Monsieur Jordain, comédia de Molière em que aparecem dançarinos,cantores e poetas, mas cuja atuação está submetida ao gosto do próprio Monsieur Jordain.

Não mais as lentas missas solenes ou as sussurrantes cerimônias religiosas. Monsieur Jordan deseja aquilo que seus amigos comerciantes

104 Der gottgeweihte Prunk des Barock verwandelte sich in den luxuriösen Zierat einer verfaulenden Gesellschaft.

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bem-sucedidos querem, ou seja, coisas mundanas e burguesas. No século 19, Monsieur Jordan é o cliente da arte. (Karpfen, 1934: 112).105

Impregnado de uma visão aristocrática e, por vezes, até ingênua, Karpfen lamenta o abandono dos temas religiosos e, ao mesmo tempo, o vínculo com os imperativos do mercado. A epopéia termina, a música sacra morre e a ópera se transforma em dramalhão, pois já não se tem mais tempo para obras longas e reflexivas. “A epopéia acaba, pois é muito longa e lenta para um homem de negócios, que tem pouco tempo. Reduzem-se primeiro o romance, depois a novela e finalmente o conto”, escreve. (Karpfen, 1934: 113).106

Ao mesmo tempo em que deixa de ser expressão do mundo religioso, a criação artística perde a projeção que possuía até então. Como explica Knoll, “o valor estético passa a ser dimensionado pelo mundano. Os heróis, os semi-deuses, os santos, aqueles que portam um notável ou um terrível destino deixam de ser os grandes atores da arte. Entra em cena o homem comum. A arte como momento da ‘totalidade divina’ já cumpriu sua missão”. (Knoll, 1996: 115). É evidente que esse momento histórico não é considerado por Karpfen, que continua a exigir da arte que cumpra uma missão que a história já enterrou.

O diagnóstico sobre a secularização da arte se completa com esta abordagem histórico-social, em que o fazer artístico é, cada vez mais, visto como dependente do mercado. O inconformismo do crítico com os rumos tomados pela modernidade chega a tal ponto que ele não hesita em afirmar que “a arte se prostituiu”. Prostituiu-se, primeiro, ao abandonar a religião enquanto fonte de inspiração e, em segundo lugar, ao se submeter às regras do mercado. Assim como rejeita qualquer ampliação da idéia de religião, seja no sentido de um deísmo ou de uma religião natural, Otto Karpfen não

105 In einem Lustspiel von Moliere nimmt ein reichgewordener Parvenu, Monsieur Jourdain, Tanzmeister, Sänger und Dichter in reichlichen Sold. Aber sie müssen tanzen, singen und dichten, was dem Monsieur Jourdain gefällt. Nichts mehr von langweiligen Hochämtern und rauschenden Festen. Monsieur Jourdain will sehen und hören, was seinem Kaufmannsherzen Freude macht, weltliche und bürgerliche Dinge. Im 19. Jahrhundert wurde Monsieur Jourdain der Auftraggeber der Kunst.

106 Das Epos hört auf; es ist zu lang und zu langweilig für einen Geschäftsmann, der wenig Zeit hat. Es verkürzt sich erst zum Roman, dann zur Novelle und endlich zur Kurzgeschichte.

132 aceita igualmente qualquer dilatação do horizonte da arte. À religião positiva corresponde, pois, uma arte positiva.

Esta é a época na qual passamos a apreciar um artista após sua morte e a obra é rebaixada à condição de objeto de especulação. Gostamos mais de construir prédios para a Bolsa e galerias do que igrejas. (Karpfen, 1934: 113).107

A passagem acima encontra correspondência na conhecida análise de Benjamin sobre as condições de produção e consumo da obra de arte na época da reprodução técnica. Mas é quando escreve sobre a Paris do século 19 que a correspondência entre Karpfen e Benjamin torna-se mais explícita. “Paris vive o auge da especulação. A atividade especulativa nas bolsas supera as formas do jogo de azar herdadas da sociedade feudal”. (Benjamin, 2006: 49). É interessante confrontar com outro trecho de Benjamin, também de Passagens, no exposé de 1935:

A imprensa organiza o mercado de valores espirituais provocando no primeiro momento uma alta. Os inconformados rebelam-se contra a entrega da arte ao mercado. Agrupam-se sob a bandeira da ‘arte pela arte’. (Benjamin, 2006: 48).

As observações de Karpfen sobre os rumos tomados pela arte estão fundamentadas na ausência de um estatuto ou de uma norma (no caso, de natureza moral e religiosa) regendo a atividade artística.

O drama necessita de uma norma religiosa e moral absolutas, a favor ou contra, para o triunfo ou a queda dos seus heróis. Mas a sociedade burguesa liberal não tem mais nenhum valor absoluto, deixando os valores subirem ou descerem ao sabor das cotações da Bolsa. (Karpfen, 1934: 113).108

107 Es ist die Zeit, da man die Künstler erst nach ihren Tode zu schätzen beginnt und die Werke der Verhungerten zu Spekulationsobjekten erniedrigt. Man baut lieber Börsenpaläste und Ausstellungshallen als Kirchen. 108 Das Drama bedarf absoluter religiöser und sittlicher Satzunger, für oder gegen die seine Helden siegen oder fallen; die liberale bürgerliche Gesellschaft glaubt aber an keine absoluten Werte mehr, sie läβt die Werte steigen und fallen wie die Börsenkurse. 133

Por trás desta ausência de valores assinalada por Otto Karpfen, é possível identificar uma atitude de reação à nascente indústria de bens simbólicos, principalmente pelos efeitos desses novos valores de classe na condição humana, no esgarçamento das relações entre fé e moral, entre arte e fé. Em suma, Caminhos para Roma é uma obra pautada pela crítica à modernidade a partir de um ponto de vista religioso.

A questão de fundo remete-nos ao contexto histórico e cultural do século 19, em que os inimigos costumavam ser desqualificados como bárbaros e demônios. Nesse sentido, a reconstrução histórica do período feita por Dolf Oehler em O velho mundo desce aos infernos pode ser útil para contextualizar esta obra, principalmente quanto ao teor de crítica à modernidade. Segundo Oehler, no século 19:

Os poderes das trevas, segundo o entendimento conservador, são os radicais, os democratas, os republicanos vermelhos, os socialistas, os comunistas e anarquistas, os agitadores, raivosos e subversivos. Eles desviam o povo, bom em si mesmo, do caminho direito e o conduzem ao erro. (Oehler, 1999: 40).

Ilustrativos dessa abordagem são os termos usados por Karpfen para se referir a Baudelaire: “alma católica moralisticamente deformada”, que veste a “máscara do anticristo” e que descobriu a “deformação de sua alma cristã”. (Karpfen, 1934: 115).109

É interessante observar que o crítico Jean Royère considera Baudelaire um místico católico. (Auerbach, 2007: 320). Outros exemplos podem ser encontrados não só no título do capítulo que enfocamos neste artigo (“A luz de Satã”), mas também pelo uso frequente de expressões de conotação religiosa e moral, tais como, “deformação bárbara” e “paganismo bárbaro”, ou ainda, a observação de que vivemos numa sociedade “decaída em brutal materialismo e ateísmo”.

Karpfen classifica Baudelaire como um poeta anticristão e de vida tumultuada, e sua poesia reflete esse estado de coisas: “assim era sua poesia, como a cintilante e fétida

109 (...) so hat uns der Franzose Fumet den unglücklichen Baudelaire als eine moralistisch deformierte Katholische Seele gezeigt. Baudelaire nahm die Maske des Antichrist vor, in seinem wütenden Protest gegen eine Zeit und eine Gesellschaft (...). 134

Flores do Mal, um enorme hino à Lúcifer”. (Karpfen, 1934: 115).110 Quando contrapomos as visões de Karpfen e Benjamin sobre Baudelaire, observa-se uma similitude entre as expressões “Hino à Lúcifer”, empregado por Karpfen, e as “Litanias de Satã”, poema de As flores do mal.

Ao mesmo tempo, o crítico não deixa de reconhecer em Baudelaire a coragem para protestar “contra uma época e uma sociedade que se denomina cristã mas que se encontra decaída em um brutal materialismo e ateísmo”. (Karpfen, 1934: 115). 111 Karpfen observa que Baudelaire considerva-se como vítima desses novos tempos e em seu desespero invoca, ao mesmo tempo, anjos e demônios. “Baudelaire sente-se como uma vítima dessa época liberal. Em seu desespero, chama pelo anjo e pelo demônio; e o demônio vem”. (Karpfen, 1934: 116).112 Como assinala Auerbach, Baudelaire “degrada a si mesmo e a toda a vida terrestre, mas, em meio à sua degradação, faz o possível para preservar seu orgulho”. (Auerbach, 2007: 324).

Oehler argumenta que o uso de categorias teológico-morais para interpretar o movimento histórico e, por que não, artístico, era um dos traços do pensamento do século 19. “Para os conservadores como para os defensores do progresso e mesmo da revolução, a história e a atualidade apresentam-se como uma luta entre o bem e o mal, entre os poderes da luz e o das trevas”, escreve Oehler. (1999: 42). Ora, o mal é uma ideia fixa entre os teóricos, escritores e publicistas do período. Não será exagero inferir que Caminhos para Roma é uma obra cujo contexto de produção remete a esse ambiente, ou melhor, a esse combate típico do século 19, contra o mal e contra a luz de Satã. Em seu estudo, Auerbach argumenta em direção idêntica, ou seja, que a interpretação não apenas de Baudelaire, mas também de outros artistas desesperados do século 19, como “casos exemplares de luta pela fé”, era comum aos críticos católicos do período. (Auerbach, 2007: 325). Ilustrativa desta concepção é o modo como Karpfen se refere a Baudelaire:

Ele, que colocou a arte no mais alto patamar – a arte pela arte – sente, no entardecer de sua vida, a estupidez rondando sobre sua cabeça. Então

110 Wüst war sein Gedicht, das die schillernden und übelriechenden Blumen des Bösen feiert und in einen Hymne an Luzifer gipfelt.

111 (...) gegen einer Zeit und eine Gesellschaft, die sich christlich nannten und dabei dem wüstesten Materialismus und Atheismus verfallen waren. 112 In seiner Verzweiflung rief er die Engel und die Dämonen an; und die Dämonen kamen. 135

cai por terra esta anima naturaliter catholica. E cai também a arte no abismo do esteticismo, no vazio. Mas a adoração possui exigências, a adoração ocupa o lugar de Deus, ela é a luminosa luz de satã. (Karpfen, 1934: 116).113

Uma citação de Thibaudet, recolhida por Benjamin no “arquivo temático I – Baudelaire”, e incluído em “Notas e Materiais” [Passagens], permite estabelecer correlação com a visão de Karpfen sobre o poeta francês, que, em seu desespero, pede socorro tanto ao anjo quanto ao demônio.

O catolicismo filosófico e literário de Baudelaire precisava de um lugar intermediário onde se alojar entre Deus e o Diabo. O título Les limbes (Os limbos) marcava essa localização geográfica dos poemas de Baudelaire; permitia perceber melhor a ordem que Baudelaire quis estabelecer entre eles, que é a ordem de uma viagem e, precisamente, de uma quarta viagem depois das três viagens dantescas do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. O poeta de Florença continua no poeta de Paris. (Benjamin, 2006: 279).

As confluências não cessam: Karpfen cita o personagem de Molière, Monsieur Jordan, como o novo cliente da arte; Benjamin, por seu turno, refere-se mais de uma vez, à nova situação social em que a arte “põe-se a serviço do comerciante”. (Benjamin, 2006: 55).

Neste ponto uma questão se impõe: estamos nos anos 1930, época em que começam a surgir importantes formulações críticas à Modernidade, cujos elementos de análise são: Baudelaire e as Flores do mal, o ideal urbanístico de Haussmann, a técnica, as relações entre arte, público e mercadoria, o novo processo de produção da arte, o surrealismo e o papel das vanguardas. Todos esses assuntos estão presentes, em maior ou menor grau, neste primeiro livro de Otto Karpfen, Caminhos para Roma, e integram, como é sabido, os temas e as reflexões que perpassam o pensamento de Benjamin, principalmente em Passagens, sua obra-prima inacabada.

113 Er, der die auf sich allein gestellte Kunst – l’art pour l’art – auf ihren höchsten Gipfel gefürt hatte, fühlte am Abend seines Lebens den Flügelschlag des Blödsinns über seinem Haupte. So stürzte diese anima naturaliter catholica. Und mit ihr stürzte die Kunst in den Abgrund des Aesthetizismus, in das Nichts. Sie hatte Abentung gefordert, Abentung an Stelle Gottes; sie war zur leuchtenden Sonne Satans geworden. 136

De acordo com Tiedemann, as primeiras notas para este livro começaram a surgir em 1927 e Benjamin trabalhou neste projeto durante treze anos, até sua morte em 1940. (Benjamin, 2006: 13-14). Considerando que as primeiras anotações de Benjamin para o texto Paris, a capital do século XIX datam de 1935 (o chamado Exposé de 1935), enquanto que Caminhos para Roma data de 1934, não será um despropósito concluir que Karpfen e Benjamin refletiram no mesmo período sobre essas questões, ainda que não exatamente com o mesmo enquadramento teórico.

Com efeito, o mínimo que se pode dizer é que há entre Karpfen e Benjamin bem mais do que uma proximidade temática: trata-se de uma identificação e uma concepção de mundo que apresenta inúmeros pontos de contato, e cujos indicadores preliminares este capítulo buscou evidenciar.

*****

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Considerações finais: em busca da crítica jornalística

Em seu ensaio sobre a leitura desconstrutivista da obra literária, Joseph Hillis Miller recorre a uma metáfora ao mesmo tempo paradoxal e fértil para pensar os caminhos e descaminhos da crítica. O que acontece quando um crítico extrai uma passagem de outro crítico e a cita em seu texto?, pergunta ele. A citação da citação, ou a interpretação da crítica, remete a um encadeamento reflexivo que o leva à metáfora do hospedeiro e do parasita.

“Será que uma citação é um parasita estranho no corpo do texto principal, ou o texto interpretativo é que constitui o parasita ao enlaçar e estrangular a citação que lhe serve de hospedeira? O hospedeiro alimenta o parasita e torna sua vida possível, mas ao mesmo tempo é morto por ele, assim como costumam dizer que a crítica mata a literatura. Ou será que hospedeiro e parasita podem viver felizes juntos, residindo no mesmo texto, alimentando um ao outro, ou compartilhando alimento?” (Miller, 1995: 12).

No decorrer deste trabalho, procurou-se caracterizar alguns caminhos críticos abertos por aqueles autores que denomino ensaístas de periódico. São críticos que exerceram seu ofício em páginas de jornal, estimulados pelo acontecimento e premidos pelo tempo, divididos entre a profissão que exercem e a crítica enquanto missão . Há muito que os caminhos tomados pela crítica – em específico, por aquela crítica de linhagem jornalística, que em geral é desprezada – tem se constituído na principal linha de força de minhas pesquisas. Com efeito, a caracterização das trajetórias críticas de Otto Maria Carpeaux e José Castello, o estudo dos processos de legitimação da crítica cultural ou mesmo a discussão sobre a função da crítica e seus paradigmas no Brasil são temas que orbitam em torno daquilo que, acredito, pode sintetizar o esforço empreendido no decorrer deste trabalho: investigar os caminhos da crítica jornalística, buscando caracterizá-la em relação às suas congêneres literária e acadêmica. Insere-se igualmente nessa órbita o estudo sistemático do jornalismo político-ideológico de Otto Karpfen na Áustria dos anos de 1930, contemplado na Parte II desta tese, e que pode contribuir para o conhecimento da obra daquele que foi sobretudo um jornalista no sentido nobre da palavra.

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Estudar a crítica de Otto Maria Carpeaux implica reconhecer que sua produção foi impulsionada por necessidades do momento em que foi escrita e orientada em função do público-leitor dos veículos para os quais se destinava. Como dissemos, a caracterização da crítica jornalística, buscando distingui-la da crítica literária ou mesmo da produção teórica acadêmica, tem sido o principal tema de nossas preocupações, desde o já muito distante Doutorado em Teoria Literária, em que o estudo da fase brasileira de Otto Maria Carpeaux acabou, não sem certa ironia, por me trazer de volta ao Jornalismo. A assustadora metáfora do parasita que destrói o hospedeiro, que, por sua vez, torna a vida do parasita possível, contamina minhas reflexões sobre os impasses e caminhos da crítica. Será possível que hospedeiro e parasita possam conviver de forma harmoniosa? A resposta que buscamos está na afirmação de que a verdadeira e principal função da crítica jornalística está nessa capacidade de hospedar o parasita, dando sentido à sua existência, exercendo uma função de mediação entre a obra e o leitor, tarefa esta se coloca como prioritária em relação ao julgamento da obra e à sua dissecação analítica. Ou, para lembrar as palavras de Frank Kermode, dirigir-se de maneira sensível a todas as camadas do público continua sendo a principal característica do crítico profissional. (Kermode, 1993: 16). Para a crítica jornalística, a análise teórica é necessária, embora não seja sua razão principal, que está, antes, na sua capacidade de se comunicar com o leitor. É isso que encontramos na crítica de José Castello, a quem consideramos um dos principais representantes da crítica jornalística na atualidade. Seus artigos trazem as marcas típicas desta linhagem jornalística da crítica, como a capacidade natural para instaurar um clima de conversa com o leitor, ou a mistura de digressões e lembranças pessoais no texto, além de uma recusa deliberada em fazer uso de certezas e demonstrações teóricas. Tais elementos parecem fazer o texto deslocar-se para uma conversa fiada, num comentário de dicção amena que conduz, sem recorrer a expedientes demonstrativos, à uma chave de leitura para a obra em questão. Por esse mecanismo discursivo, o leitor sente-se motivado a ler o livro sobre o qual se está falando. Além disso, há marcas textuais que podem muito bem ser caracterizadas como as de um cronista, de um narrador que se permite escrever em primeira pessoa. A crítica de Castello deixa, assim, bastante evidente sua proximidade com o leitor e esta função instrumental insere-a no âmbito da esfera comunicacional, e dentro desta, na crítica jornalística.

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Esta função comunicativa está presente também nas críticas de Otto Maria Carpeaux, que soube como poucos combinar, na tessitura do texto, o comentário, a análise e o julgamento, numa escrita de viés ensaístico. Mas está presente também na sua imensa capacidade de exercer a função de mediador cultural, seja pelos inúmeros artigos, ensaios, prefácios e introduções que escreveu, seja pelo papel de intelectual ativo, orgânico, que contribuiu de forma extraordinária para o processo de formação do leitor culto no Brasil. O caminho da crítica jornalística sustenta-se, em primeiro lugar, por meio da atuação como intermediário no sistema da cultura, esclarecendo e sistematizando a obra para o leitor. Deste modo, não há como negar que a velha crítica de rodapé, tão combatida por Afrânio Coutinho, ainda germina na crítica jornalística da atualidade. Como observa o crítico João César de Castro Rocha, “uma das heranças da institucionalização dos estudos literários foi precisamente a desqualificação da figura do mediador” (Rocha, 2011: 159). O espírito do rodapé ainda germina, não obstante as mudanças ocorridas na própria linguagem jornalística, esta sim, como argumentam Castro Rocha (2011) e Silviano Santiago (1993; 2004), as verdadeiras responsáveis pela mudança de paradigma da crítica e pela desliteraturização da imprensa e do jornalismo. O problema não é só brasileiro, mas da cultura contemporânea, em que as mídias audiovisuais e digitais deslocaram a mídia impressa de seu papel, até então hegemônico, na transmissão dos valores culturais. Ora, os exemplos de atuação crítica abordados neste trabalho são todos, em maior ou menor grau, de intermediação cultural. É este o lugar de fala de José Castello e sua defesa do crítico enquanto leitor comum, que se coloca sem armaduras e anteparos na tarefa da crítica. Castello, aliás, insiste em não ocupar o lugar do crítico, no sentido tradicional da palavra, ou seja, do especialista. É esta autoridade legitimada que ele recusa, buscando, isto sim, legitimar-se no campo a partir de novos parâmetros. Este lugar de fala bem definido contribui para que o situemos no âmbito da crítica de linhagem jornalística, pois interessa-lhe sobretudo a comunicação com o leitor, que é, por sua vez, o rastro deixado pelos mediadores e por aqueles que encaram essa atividade mais como uma missão. Esta foi também a missão exercida por Karpfen/Carpeaux em sua atividade crítica, vocação que pode ser sentida já nos seus artigos de juventude na Europa, cheios de convicção, ideologia, verve e paixão. Pode-se questionar sua orientação ideológica ou suas contradições, como procuramos fazer na segunda parte deste trabalho. Mas não

140 se pode negar a vocação deste jornalista militante que, desde a juventude, em Viena, ocupou sempre o lugar do publicista. Dotado de uma vocação natural para trabalhar na imprensa, atividade que costuma direcionar as habilidades individuais, sua trajetória e sua produção textual estão marcadas por esta vocação. Como vimos, o jovem Karpfen foi um jornalista político e cultural bastante ativo na imprensa vienense, que começou escrevendo sobre música clássica numa revista de Berlim e viu sua trajetória europeia sucumbir devido ao seu engajamento no semanário Der Christliche Standestaat, apoiado pelo governo de Engelbert Dollfuss. Esse engajamento foi fruto de suas convicções políticas e religiosas, que o fizeram explicitar suas posições em defesa da independência da Áustria e contra o Nacionalsocialismo. Sua atuação como jornalista militante, que ele encarava como uma missão – que, por sua vez, se coadunava com a missão da Áustria na Europa, que ele acreditava -- foi a responsável por sua tragédia pessoal e pelo colapso de sua vida na Europa, e cuja desesperada fuga foi a saída inevitável. Essa verve e essa missão, que inspiraram o início de suas atividades na imprensa, permaneceram vivas também no decorrer de sua trajetória brasileira, e foi a esses valores que ele permaneceu fiel em seu caminho crítico e durante toda a sua vida. *****

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