UNIVERSIDADE FEDERAL DE ESCOLA DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS, CAMPUS GUARULHOS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

JOSÉ HENRIQUE LIMA SANTOS

EXPANSÃO COM EXPULSÃO: a ocupação territorial do Estado imperial às margens do Rio Tietê e as resistências e negociações das populações indígenas no Oeste paulista (1858­1879)

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em História. Orientação: Prof.º Dr.º André Roberto de Arruda Machado

GUARULHOS 2021

JOSÉ HENRIQUE LIMA SANTOS

EXPANSÃO COM EXPULSÃO: A OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO ESTADO IMPERIAL ÀS MARGENS DO RIO TIETÊ E AS RESISTÊNCIAS E NEGOCIAÇÕES DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS NO OESTE PAULISTA (1858­ 1879)

Trabalho de conclusão de curso, sob orientação do Prof.º Dr.º André Roberto de Arruda Machado, apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em História.

GUARULHOS 2021 Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

SANTOS, José Henrique Lima.

Expansão com expulsão: a ocupação territorial do Estado imperial às margens do Rio Tietê e as resistências e negociações das populações indígenas no Oeste paulista (1858­1879) / José Henrique Lima Santos. – Guarulhos, 2021. 123 f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2021.

Orientação: Prof.º Dr.º André Roberto de Arruda Machado.

Título em inglês: Expansion with expulsion: the territorial occupation of the Imperial State

on the banks of the Tietê River and the resistance and negotiations of indigenous populations in the

Western São Paulo (1858­1879).

1. Populações Indígenas 2. Estado imperial; 3. Oeste paulista I. MACHADO, André Roberto de Arruda. II. Expansão com expulsão: a ocupação territorial do Estado imperial às margens do Rio Tietê e as resistências e negociações das populações indígenas no Oeste paulista (1858­1879). EXPANSÃO COM EXPULSÃO: A OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO ESTADO IMPERIAL ÀS MARGENS DO RIO TIETÊ E AS RESISTÊNCIAS E NEGOCIAÇÕES DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS NO OESTE PAULISTA (1858­ 1879)

Trabalho de conclusão de curso, sob orientação do Prof.º Dr.º André Roberto de Arruda Machado, apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em História.

Aprovação: __/__/____

Prof.º Dr.º André Roberto de Arruda Machado Universidade Federal de São Paulo

Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Ferreira de Oliveira Universidade Federal de São Paulo

Prof.ª Dr.ª Soraia Sales Dornelles Universidade Federal do Maranhão

Este trabalho é dedicado à todas as pessoas que não puderam concluir uma faculdade devido aos percalços da vida e à perversidade do sistema capitalista; especialmente aos meus pais (Eloiza e Jocelino). Um salve para todas as quebradas.

AGRADECIMENTOS Este momento foi, sem dúvida, a parte mais esperada deste trabalho. Poder agradecer as pessoas que fizeram parte desse processo é algo realmente especial. Ademais, é o momento mais explícito de que toda produção acadêmica é permeada de percalços, angústias, superação e redes de companheirismo. Primeiramente, gostaria de agradecer à minha mãe, Maria Eloiza Soares de Lima, por me permitir viver, me educar e ser minha maior referência em como lidar com as surpresas da vida. Parabéns pela sua caminhada (sofrida e repleta de vitórias) e obrigado por sua existência. Sua maneira de encarar os problemas com toda calma e racionalidade ainda hoje me causa espanto e admiração. Um salve especial para o meu irmão Eduardo – o MC Duzera SP, que sempre me ensina que existem outras maneiras de viver a vida, e que todas podem estar corretas e devem ser respeitadas. Tamojunto até o final, irmão. Um salve ao meu irmão Guilherme – o Guiga. Obrigado por sempre levar a vida com alegria e autenticidade, sua coragem e disposição para viver sempre me inspiram. Aquele salve pro meu pai, Jocelino Antônio dos Santos. O senhor, sua história e seu proceder estiveram comigo nos momentos mais difíceis e me mantiveram (e me mantém) no jogo. Esse diploma é para o senhor, que teve que largar a graduação em matemática pela incompatibilidade com o mundo do trabalho, presente em sua vida desde cedo. E gostaria de finalizar esse parágrafo agradecendo toda sabedoria da minha querida avó, dona Arlinda. Sua admiração por quem se empenha em estudar, derivada do fato de ter sido impedida de frequentar a escola desde criança, também foi combustível para essa empreitada. Que fique registrado que os maiores conhecimentos apreendidos por mim até o momento são frutos das suas histórias de vida, que sempre adoro ouvir e fazer perguntas. Salve, minha guerreira. Ao meu professor e orientador, André Machado, agradeço imensamente por ter acreditado em meu desenvolvimento como historiador. Seu repertório intelectual e compromisso com o rigor científico são admiráveis e motivos de orgulho para este orientando. Sua atenção, paciência e palavras de conforto nos momentos mais difíceis tornaram a realização deste trabalho mais tranquila. E ao mesmo tempo, destacam a importância do professor ao longo da vida de um estudante. André, obrigado pela confiança e apoio depositados. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento de dois anos de bolsa de Iniciação Científica. O incentivo financeiro a pesquisadoras e pesquisadores é primordial para trabalhos qualificados e com potencial de contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa. Um salve ao pessoal do pós­aula da Unifesp­Guarulhos­Pimentas, Vanderlei, Fil, Rodrigo, Sam, Leandro, Elias, Edgar, Adriano, Suhet, Daniel, Marcão, Ana e Jhow. As conversas sobre temáticas das aulas ou sobre assuntos totalmente aleatórios foram momentos de suma importância para minha formação acadêmica. Compartilhar experiências e ideias em construção mostrou que a sala de aula é apenas um dos espaços de produção do conhecimento. Ao pessoal do basquete, aquele salve. Giovana, Antônio, Yukio, Matheus, Karen, Claiton, Marolo, Ygor, Madhusyan, Carlos e Danieu, obrigado pelos momentos de fuga em meio ao universo de textos. Gostaria de agradecer às professoras e professores da EFLCH­Guarulhos. À professora Ilana Goldstein, do Departamento de História da Arte, obrigado pelas discussões sobre antropologia e arte ameríndia. Saiba que suas aulas foram primordiais para a construção deste trabalho. Agradeço especialmente aos docentes do Departamento de História. Ao professor Renato Rodrigues da Silva, agradeço por pontuar em suas aulas a importância da educação pública, gratuita e de qualidade para a construção de uma sociedade menos desigual. À professora Maria Luiza Ferreira de Oliveira – a Malu, sou muito grato por sempre estar acessível aos meus questionamentos sobre o processo de militarização nos sertões do Império. Obrigado também pelas indicações de textos de fundamental importância para essa monografia. À professora Márcia Eckert, agradeço pela introdução na área da História Econômica e por me ajudar a pensar em novas perguntas para um projeto que já parecia bem definido. E um salve especial à professora Márcia Barbosa Mansor D’Alessio, pessoa detentora de um conhecimento historiográfico inefável e de uma humildade incrível. Sua capacidade e entusiasmo em explicar assuntos extremamente densos com toda paciência à alunas e alunos de uma universidade pública localizada em um bairro periférico, são lembranças que guardarei vivamente em minha memória. Agradeço aos colegas do grupo de estudos Herança e Reinvenção, coordenado pelo professor André Machado. Obrigado ao Samuel, Augusto, Amanda, Thaís, Caio, Mayara e Isabela pelas trocas. Realmente, esses momentos de discussões mais aprofundadas são de extrema importância para a formação. Agradeço também aos discentes e docentes do grupo de estudos Laboratório XVIII­XIX, especialmente às professoras Wilma Peres Costa, Andréa Slemian e Maria Luiza Ferreira. Um agradecimento ao professor Télio Cravo, cuja tese de doutorado serviu como referência para o presente trabalho, tanto pelas problematizações e hipóteses levantadas como pela maneira clara e objetiva em escrever seu texto. Agradeço a atenção dispendida pela banca na leitura e apontamentos feitos a este trabalho. Novamente à professora Maria Luiza, obrigado por indicar pontos sensíveis do texto e também por apontar possíveis desdobramentos desta pesquisa. À professora Soraia Dornelles, cuja tese de doutorado motivou nosso interesse sobre a província paulista, sou grato pelos comentários, indicações de bibliografia e pela abertura de diálogo. Agradeço aos funcionários terceirizados do campus Guarulhos. Ao pessoal da limpeza, do restaurante universitário e da segurança. A presença de vocês é vital para o funcionamento da faculdade, de modo geral, e foi imprescindível para minha formação, de modo particular. Obrigado por fazerem tudo funcionar tão bem, mesmo com os sucessivos cortes de gastos que a Universidade Pública vem passando. Agradeço também as funcionárias e funcionários do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que durante meses me receberam e auxiliaram na busca por documentos nos diferentes fundos da instituição. Obrigado à todas e todos da portaria, recepção e consulta, principalmente Márcia e Alexandre. Sem a colaboração de vocês esse texto não seria possível. Por fim, agradeço à minha companheira Claudiane e à sua família, que me receberam tão bem no período de escrita deste trabalho, no qual me encontrava com um modo de vida praticamente nômade. Clau, obrigado por entrar em minha vida no meio dessa jornada e ter fortalecido a caminhada. A cada dia, mesmo com novas dificuldades surgindo, me sinto mais forte estando ao seu lado e me orgulho de ser seu companheiro. Nossa vitória é questão de tempo. Mesmo com toda essa incrível rede de apoio material, intelectual e emocional, destaco que todas as falhas, equívocos e omissões presentes neste trabalho são de inteira responsabilidade do seu autor.

Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.

Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak.

RESUMO

A presente pesquisa pretende analisar a expansão do Estado imperial ao longo do Rio Tietê, entre 1858 e 1879. Mais especificamente, nosso olhar está concentrado na região do Oeste paulista, grosso modo entre as atuais cidades de Bauru e Avanhandava. Nesse processo, interessa­nos particularmente a relação dessa expansão com as populações indígenas. Nosso recorte espacial justifica­se na medida em que, diferentemente de outros territórios paulistas, na referida região não foram criados aldeamentos indígenas, mesmo com a legislação vigente prevendo o empreendimento desses núcleos em áreas habitadas por esses grupos. Nossa hipótese, a partir da bibliografia e das fontes consultadas é a de que haviam indígenas na região e a ausência de políticas estatais mais claras levou a diversos conflitos. O processo de ocupação territorial empreendido pelo Estado no interior da província paulista sofreu grande resistência por parte das populações indígenas, especialmente da sociedade Kaingang. As tentativas de abertura de estradas, instalação de colônias militares, ferrovias, expedições científicas e comitivas de homens armados foram alguns dos braços lançados pelas elites políticas no objetivo de consolidar o território nacional e criar novas áreas econômicas. Nosso recorte temporal é embasado no Relatório de navegação fluvial pelo Rio Tietê, em 1858, até as ações indígenas ocorridas nas “matas de Bauru” em 1879, colocando em risco o projeto imperial. Utilizamos como fontes documentos administrativos diversos, localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Também recorremos aos jornais do período disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A realização deste trabalho é motivada pela renovação historiográfica sobre a História Indígena, iniciada no Brasil, sobretudo, a partir da década de 1990. Tal movimento busca destacar o protagonismo indígena no processo de formação do país, sem desconsiderar as relações assimétricas de poder em que estas populações agiam perante o Estado e os seus agentes.

Palavras­chave: Oeste paulista. Sociedades Indígenas. Kaingang. Estado imperial. Expansão. Território. Fronteiras.

ABSTRACT

The following investigation aims to examine the expansion of Brazilian’s Imperial State along the Tietê River, between 1858 and 1879. Particularly, the focus is on the region of western São Paulo. Broadly speaking, between the actual cities of Bauru and Avanhandava. In this process the interest is in the relationship between this expansion and the indigenous populations. The spatial selection is justified because, unlike other territories in São Paulo state, no indigenous villages were created in this region even though the legislation in force provided for the development of these centers in areas inhabited by these groups. The hypothesis based on the bibliography and the sources consulted is that there were indigenous people in the region and the absence of clearer state policies led to several conflicts. The process of territorial occupation undertaken by the State in the interior of the São Paulo province suffered great resistance from the indigenous populations, especially the Kaingang society. The attempts to open roads, install military colonies, railroads, scientific expeditions and armed men convoys were some of the arms launched by the political elites in order to consolidate the national territory and create new economic areas. The time frame is based on the Report of the fluvial navigation on the Tietê River, in 1858, up to the indigenous actions that took place in the "Bauru woods" in 1879, putting the imperial project at risk. As sources used various administrative documents, located in the Public Archives of the State of São Paulo. In addition, for this research it was also used newspapers from the period located in the National Library's Hemeroteca Digital. This work is motivated by the historiographic renewal of Indigenous History, which began in , especially in the 1990s. Such movement seeks to highlight the indigenous protagonism in the country's formation process, without disregarding the asymmetric power relations in which these populations acted before the State and its agents.

Keywords: Western São Paulo. Indigenous Societies. Kaingang. Imperial State. Expansion. Territory. Borders.

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Localização aproximada dos aldeamentos existentes no Império e da região habitada pelo povo Kaingang até meados do século XX...... 18 Mapa 2 – As diferentes regiões da província paulista...... 66 Mapa 3 – Diferentes ritmos de avanço governamental nas margens do Rio Tietê...... 100 Mapa 4 – Caminhos percorridos na margem direita do Rio Tietê e as territorialidades indígenas na margem oposta...... 107

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo CM – Colônia Militar CEFNOB – Companhia da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil HD – Hemeroteca Digital RD – Repositório Digital RPPSP – Relatórios do Presidente da Província de São Paulo SPI – Serviço de Proteção ao Índio TI – Terra Indígena

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

A Historiografia, a Memória e a História Indígena ...... 23

1. A economia­mundo no século XIX: expansão com expulsão ...... 27

1.1 Capitalismo, vias de comunicação e transporte e a expropriação de territorialidades indígenas: expansão com expulsão ...... 31

1.2 O nacionalismo conformando contradições: superação das diversidades? ...... 37

1.3 A terra, o trabalho e o café: uma modernização inevitável? ...... 41

2. Um Estado em construção e seus “sertões desabitados” ...... 49

2.1 O processo de construção do território e do Estado nacional ...... 56

2.2 O Regulamento das Missões ...... 60

3. A província de São Paulo entre o moderno e o tradicional ...... 64

3.1 As populações indígenas na província de São Paulo: aproximações entre história e antropologia ...... 75

3.1.1 Kaingang ...... 80

3.1.2 Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva ...... 85

3.1.3 Oti­Xavante e Opaié (Ofaié)­Xavante ...... 89

3.2 A região ...... 92

3.3 Aldeamento, farda ou bala? As diretrizes governamentais para avançar sobre as territorialidades indígenas no sertão paulista ...... 94

3.4 Caminhos que unem, colidem e dispersam ...... 103

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 113

FONTES ...... 115

FONTES IMPRESSAS ...... 116

REFERÊNCIAS ...... 116

13

INTRODUÇÃO

A atual conjuntura sanitária, política e econômica tem impactado principalmente a população pobre de todo o mundo. No Brasil, especialmente nos últimos anos, observamos o aumento do avanço de diferentes atores sobre Terras Indígenas (TIs), impulsionados por altos investimentos financeiros e pela conivência do Estado brasileiro. No momento em que essas páginas são escritas tramita no Superior Tribunal Federal o julgamento do chamado “marco temporal”, medida defendida por ruralistas e interessados na exploração econômica das TIs. Tal dispositivo jurídico coloca em risco o direito dos povos indígenas a suas terras tradicionais, garantido em lei com a Constituição de 19881. Nesse sentido, considerando a globalidade de problemas como a fome e a falta de acesso à educação, e a perpetuação de práticas violentas contra as populações indígenas no Brasil e no mundo, este trabalho monográfico é conscientemente “filho de seu tempo”, fruto das inquietações do momento presente. Do mesmo modo, o interesse em pesquisar a temática indígena teve logo de início um recorte espacial bastante definido e caro a este pesquisador, o atual estado de São Paulo. O discurso oficial e presente em parte da população, enaltecendo o território paulista como região de progresso e desenvolvimento para nação brasileira sempre foram pontos de inquietude. O mito bandeirante, as grandes fazendas cafeicultoras e a instalação de ferrovias ainda aparecem como modelos explicativos para a formação do território paulista2. Havia populações indígenas no atual Estado de São Paulo? Até quando estiveram presentes? Haveria descendentes? Qual a relevância dessa presença para a formação de uma identidade paulista? Como as autoridades da época lidaram com essa questão? Como se deu esse contato? A análise sobre a crescente produção historiográfica da História Indígena e em fontes do século XIX nos mostraram que os povos indígenas estiveram presentes nessa conjuntura global de formação dos Estados nacionais e de intensificação da economia capitalista. Além disso, seus descendentes permanecem existindo e resistindo no atual território paulista e demais localidades do mundo3.

1 O julgamento do Superior Tribunal Federal foi adiado para o dia 25 de agosto deste ano. Para informações sobre o assunto, consultar o endereço eletrônico do Instituto Socioambiental, especialmente: . Acesso em: 05 jul. 2021. 2 Sobre a expansão cafeeira na província e depois estado de São Paulo, há uma extensa bibliografia. Cabe destacar: MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984; SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Editora Alfa­Ômega, 7ª ed., 1986; SOBRINHO, Alves Motta. A civilização do café. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978; WAIBEL, Léo H. “As Zonas Pioneiras do Brasil”. Tradução: Walter Alberto Egler. Revista Brasileira de Geografia. Ano XVII, nº 4, out.­dez. 1955, p. 389­422; e MATOS, Odilon Nogueira de. Café e ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: Alfa­Omega, 1974. 3 O povo indígena mais afetado pela violência do Estado brasileiro e seus agentes no interior da então província de São Paulo foi a população Kaingang, que sofreu com expedições de homens armados até as primeiras décadas 14

Um dos primeiros contatos com a História Indígena se deu com a obra do professor John Manuel Monteiro, intitulada Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo4. Os principais avanços da obra consistiram em “dar visibilidade ao protagonismo dos índios na construção da sociedade colonial da capitania de São Paulo”5, e também ao lançar novas questões à historiografia do bandeirantismo. De modo mais amplo, John Monteiro contribuiu na maneira de interpretar as fontes produzidas pelas autoridades coloniais, ao articular os campos da história e da antropologia. Ao evidenciar as relações de poder que regiam a produção de tais documentos, Monteiro entendia que estes “não apenas registram a história que nos interessa, mas são parte dela, porque são parte de processos sociais de dominação, resistência, negociação, acomodação”6. Constatada a forte presença indígena no período colonial na capitania paulista, decidimos buscar os indícios dessa presença no século XIX, na então província de São Paulo. Considerando a pujança da produção cafeeira ao longo do processo de formação do Estado nacional brasileiro, encontramos o interessante trabalho de Marcelo Sant’Ana Lemos, O índio virou pó de café?: resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba7. O autor focou a região do Vale do Paraíba no atual estado do Rio de Janeiro, porém, as questões colocadas no trabalho serviram como guias para pensarmos o mesmo fenômeno em São Paulo. Ao analisar uma região de territorialidades indígenas que sofria com o forte avanço da fronteira agrícola, Lemos demonstrou as diferentes dinâmicas lançadas pelos indígenas para permanecerem em uma região marcada por fortes mudanças, além de privilegiar a “espacialização dos fenômenos históricos, tão pouco explorada”8. Essa dimensão espacial foi primordial para a elaboração desta pesquisa.

do século XX, no já estado de São Paulo. Os descendentes desse grupo vivem atualmente nas Terras Indígenas de Vanuíre e Icatu, nas respectivas cidades de Arco­Íris e Braúna, no interior paulista. Outros grupos étnicos estiveram presentes nesse processo histórico e também habitam atualmente Terras Indígenas em São Paulo e demais estados. Sobre a violência contra a população Kaingang no século XIX e sua presença no atual interior paulista, ver especialmente: PINHEIRO, Niminon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850­1912. 1992. 146 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1992; e da mesma autora: VANUÍRE, CONQUISTA, COLONIZAÇÃO E INDIGENISMO: OESTE PAULISTA, 1912 – 1967. 1999. 292 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1999. Sobre a presença de diferentes grupos étnicos pela província de São Paulo, conferir o item 3.1 deste trabalho. 4 MONTEIRO, John M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. 5 ALMEIDA, Maria Regina C. de. O lugar dos índios na história: a contribuição de John Monteiro. Fronteiras & Debates. Macapá, v. 2, n. 1, jan./jun. 2015, pp. 3­4, p. 3. 6 ARRUTI, José Maurício. John Monteiro e o projeto ampliado de história indígena: Apresentação do Dossiê História e Índios. História Social, n. 25, segundo semestre de 2013, p. 8. 7 LEMOS, Marcelo Sant’ Ana. O índio virou pó de café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. 8 Idem. Ibidem., p. 31. 15

Conforme avançamos o recorte cronológico pelo XIX, parecia que a abertura de fazendas cafeicultoras e a instalação de ferrovias buscando essa produção haviam conformado inevitavelmente o território paulista. Porém, fomos constatando que houve diferentes momentos da produção cafeeira paulista em distintas regiões da província/estado. O primeiro grande marco das fazendas de café surgiu no Vale do Paraíba, a partir da década de 1830 e tendo seu ápice na década de 1850, com a fronteira agrícola avançando do Rio de Janeiro e entrando na província de São Paulo em sua porção leste. Já a continuidade desse movimento vai ocorrer a partir da segunda metade do XIX, em um contexto de proibição legal do comércio de escravizados africanos e com a inserção de novos maquinários nesse processo9. Esse segundo momento ocorreu ao norte da capital paulista, com destaque para as cidades de , Limeira, Rio Claro e São Carlos. Essa região vai consolidar a província paulista, e por consequência o Estado brasileiro, como o principal produtor mundial de café. Por ter sido a região que alavancou a produção desse item agrícola, o norte geográfico da província ficou conhecido como “Oeste paulista”10, por se encontrar a oeste da região do Vale do Paraíba. Desse modo, quando pensávamos qual teria sido o processo de formação do oeste geográfico da província, a presença de grandes fazendas cafeicultoras predominando a paisagem aparecia somente no início do século XX11, no então estado de São Paulo. Foi então que decidimos avançar sobre essa ampla região entre os Rios Tietê, Paraná e Paranapanema, e investigar os motivos desse descompasso da produção de café nos diferentes espaços da província. O oeste geográfico paulista, atual interior do estado de São Paulo, foi durante todo o século XIX uma região que o Estado brasileiro sofreu sérias dificuldades para conformar seus interesses. Nossa resposta para esse problema, que pretendemos confirmar nas páginas que seguem, é que as presenças indígenas, especialmente da população Kaingang, tiveram um impacto decisivo no processo de formação da região. O encontro com uma bibliografia em diálogo com a História Indígena12, iniciada, sobretudo, na década de 1990, foi nos mostrando que os povos ameríndios não haviam “virado pó de café”, como havia apontado Lemos. Provavelmente o primeiro trabalho a analisar a população Kaingang da província paulista na segunda metade do século XIX, é a dissertação de João Francisco Tidei Lima,

9 MENDES, Felipe Landim R. Ibicaba revisitada outra vez: espaço, escravidão e trabalho livre no oeste paulista. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.25. n.1. p. 301­357. jan.­abr., 2017. 10 A utilização desse termo entre aspas ocorre quando o mesmo estiver se referindo ao norte geográfico da província paulista, região de grande destaque na produção cafeeira a partir da segunda metade do século XIX. O uso do termo sem aspas é quando estivermos nos referindo ao oeste geográfico da província, região de territorialidades indígenas ao longo do XIX e nosso recorte espacial de análise. 11 GHIRARDELLO, Nilson. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 12 O contexto de formação desse campo historiográfico é explorado no item 3.1 deste trabalho. 16 intitulada A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru13. O trabalho de Lima se destaca por levantar a questão indígena em um momento que a temática pouco interessava os historiadores e pela ampla pesquisa bibliográfica e documental. Porém, ao observar a presença indígena na região dentro de uma análise estruturalista de desenvolvimento do capitalismo, o autor acaba por dar pouca atenção às ações dos povos originários. Na década de 1980 foi a vez da antropóloga Silvia Helena Simões Borelli investigar os Kaingang no Oeste paulista14. Não tivemos acesso a esse trabalho, porém, encontramos um texto da autora sobre o mesmo tema em uma publicação organizada por John Monteiro15. O texto de Borelli aponta como o avanço de ferrovias, produções agrícolas e expedições científicas impactaram drasticamente o modo de vida dos Kaingang. O interessante é notar a preocupação da autora em analisar as ações indígenas à luz de referenciais antropológicos e a indicação de que os descendentes Kaingang permaneciam em São Paulo, mesmo que em condições desfavoráveis. O trabalho de Borelli demonstra que até as primeiras décadas do século XX, a população Kaingang continuava a impedir o avanço das ferrovias e das fazendas cafeicultoras na região. Assim, constatada a presença indígena no território paulista em um período de exaltação do café e dos trilhos, nos interessava detalhar esses embates e sua importância para a formação da região. Em 1992, a historiadora Niminon Suzel Pinheiro defendeu sua dissertação de mestrado intitulada Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850­191216. A autora elenca como marcos temporais a Lei de Terras em 1850, e a “pacificação” dos Kaingang com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) em 1912. Pinheiro desenvolve um excelente trabalho ao aproximar os campos da história e antropologia, recorrendo a documentos de arquivos e também realizando trabalho de campo com os Kaingang do interior paulista entre as décadas de 1980­90. Porém, em alguns pontos do trabalho, a autora sobrepõe os relatos colhidos em campo em relação às fontes da época, privilegiando aqueles em relação aos documentos.

13 LIMA, João Francisco Tidei. A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1978. 14 BORELLI, Sílvia Helena Simões. Os Kaingang no Estado de São Paulo: Transfiguração e Perplexidade Cultural de uma Etnia. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica ­ São Paulo, 1983. 15 Idem. Os Kaingang no Estado de São Paulo: Constantes Histórias de Violência Deliberada. In: Índios no Estado de São Paulo: Resistência e Transfiguração. São Paulo, Yankatu/CPI­SP, 1984. 16 PINHEIRO, Niminon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850­1912. 146 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1992. 17

No trabalho de Maria do Carmo Sampaio Di Creddo17, ao analisar a formação da propriedade de terra no Vale do Paranapanema na segunda metade do século XIX, a autora traz à luz um corpus documental de estimado valor histórico para entender o processo de povoamento e seu impacto nas populações indígenas da região. Ao destacar o extremo grau de violência com que posseiros e autoridades locais agiam nas expedições de tentativa de extermínio dos povos indígenas, Di Creddo elenca fontes referentes tanto à região do Paranapanema quanto à região do Vale do Tietê, próxima à Bauru, sem pontuar que as referidas localidades tiveram processos de povoamento distintos, por mais que apresentem algumas similaridades. A atuação de “homens práticos do sertão” variava conforme o nível de presença e resistência dos indígenas nas diferentes localidades, resultando em avanços estatais mais promissores ou fracassados a depender da região18. Nesse ponto, uma constatação se faz necessária. A política indigenista imperial, o Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios, vigente entre 1845 e 1891, previa a criação de aldeamentos em territórios de circulação indígena19. A existência destes empreendimentos possibilitou a pesquisadores analisarem em alguma medida as dinâmicas indígenas no século XIX a partir da documentação produzida e recebida pelos funcionários destes aldeamentos. Soraia Sales Dornelles, em sua tese de doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, defendida em 2017, analisa a expansão do Estado brasileiro para o interior paulista a partir de uma ótica que problematiza aspectos indígenas, na segunda metade do século XIX20. Ao elaborar um “mapa com a localização aproximada dos aldeamentos paulistas no século XIX”21, nos surgiu a dúvida do porquê da inexistência de aldeamentos indígenas na região mais à noroeste da província, precisamente na região que tem o Rio Tietê como eixo. A recorrência de conflitos envolvendo as populações originárias e a sociedade não indígena até meados do século XX, em diferentes trabalhos sobre a região, atesta a presença indígena tanto mais a sudoeste, próximo a região do Rio Paranapanema, passando pela região central do oeste paulista, nos sertões de Botucatu, até atravessar o Rio Tietê e chegar nos Campos de Araraquara.

17 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios: Proprietários da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003. 18 Idem. Ibidem. 19 AMOROSO, Marta. “Descontinuidades indigenistas e espaços vividos dos Guarani”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2015, vol. 58, nº 1, p. 105­148, p. 113. 20 DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e violência na província paulista, 1845­1891. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2017. 21 Idem. Ibidem. p. 58. 18

Ou seja, os conflitos promovidos pela expansão do Estado imperial brasileiro sobre a territorialidade indígena a oeste da província paulista permearam toda esta ampla região.

Mapa 1. Localização aproximada dos aldeamentos existentes no Império e da região habitada pelo povo Kaingang até meados do século XX

Fonte: Mapa elaborado pelo autor a partir das obras de DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. p. 58; e também de LIMA, João Francisco T. A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru. p. 20. A nomeação “Sertões Desconhecidos” era recorrentemente utilizada para designar a região oeste da província paulista, conferir especialmente BEIER, José Rogério. Artefatos do poder, 2015. O termo “Campos de Araraquara”, grosso modo se referia à região da margem direita do Tietê, para maiores detalhes ver MARCEL, Mano. Os Campos de Araraquara, 2006. A existência de aldeamentos indígenas na ampla área do histórico Oeste Paulista se restringiu à região do Vale do Paranapanema, situada próxima ao Rio Paranapanema, com a existência dos aldeamentos de São Sebastião do Pirajú (depois denominado Tijuco Preto) e Itacorá ou Salto Grande22. No restante da parte ocidental da província paulista, tais

22 No período em que vigorou o Regulamento das Missões (1845­1891) estiveram em funcionamento onze aldeamentos indígenas na província de São Paulo, sendo criados novos e restabelecidos aldeamentos do período colonial. Principalmente estes últimos foram sistematicamente reportados pelas autoridades como inexistentes, alegando a assimilação dos índios à população geral. Os dois aldeamentos da região oeste foram criados após o decreto do Regulamento. Cf.: AMOROSO, M. R. Catequese e Evasão Etnografia do Aldeamento Indígena São 19 empreendimentos de catequese e civilização não foram criados, mesmo sendo recorrente a presença de populações indígenas. Quais foram os motivos que levaram o Estado Imperial e os seus agentes, a lançarem outros meios que não os aldeamentos indígenas, na região em análise, mesmo com a presença de diversos grupos étnicos? Partindo dessa questão, o espaço ao longo do Rio Tietê, entre as atuais cidades de Bauru e Avanhandava, numa região conhecida na época por suas “sezões, bugres, onças etc”23, nos parece um lócus privilegiado para análise da ocupação territorial promovida pelo Estado e seu impacto nos povos indígenas. Nosso recorte limita a análise do percurso do Rio e de suas margens até a localização do Salto de Avanhandava, que além de ser o local de instalação de uma Colônia Militar, também aparece como região em que transeuntes realizavam a travessia do Rio, ligando os Sertões de Botucatu aos Campos de Araraquara. Um documento emitido pela vila de Botucatu, cinco anos após a instalação da Colônia Militar em Avanhandava, demonstra a dificuldade do Estado em obter controle sobre os indivíduos que circulavam pela região: Existem, a légua e meia, à margem esquerda do Tietê, umas fazendas de audazes mineiros que lá se foram estabelecer nos centros dos gentios, mas que se começou com Araraquara, por uma vereda que fizeram abaixo do Salto do Avanhandava [...] que sai no picadão chamado de Cuiabá, que os põe em comunicação com Araraquara, Brotas e Piracicaba, e por via desse caminho diferentes povoações que se acham à margem do Tietê [...]; existem veredas que vão dar no picadão pelo qual esses indivíduos vão ter à Piracicaba, ou então pelo rio quando satisfazerem em necessidades religiosos. O resto da povoação é sem nome [...] selvagens da civilização, são piores que os gentios … fugitivos da polícia, como a família dos Balduínos [...]24. Sobre a montagem da análise espacial tendo como ponto de partida a localidade de Bauru, segundo Lima: “a posição nuclear de Bauru nas etapas mais agudas da luta (entre 1890 e 1910) é que o torna o ponto de referência mais importante”25. O pesquisador aponta que o ponto de inflexão no conflito entre indígenas e não índios ocorreu exatamente ao término do nosso recorte temporal (1879), quando Bauru começa a se caracterizar como sede urbana mais avançada no Oeste paulista. No entanto, o período anterior à essa inflexão dos conflitos não é isento de disputas entre colonos, grandes proprietários e povos indígenas. Desde o primeiro registro cartorial com a nomenclatura Bauru, em 185626, até o final da década de 1870, a própria

Pedro de Alcântara, Paraná (1855­1895). Tese (Doutorado). FFLCH, USP. São Paulo, 1998; e DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império. Op. cit., 2017. 23 Relatório do Primeiro Tenente d’Armada Antônio Mariano de Azevedo sobre os exames de que foi incumbido no interior da província de São Paulo. Rio de Janeiro: Typ. De Peixoto, 1858, p. 23. 24 Ofício da Câmara Municipal da Vila de Botucatu solicitando a abertura de estrada (12 de outubro de 1863). APESP. Apud: DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios: Op. cit., p. 137 25 LIMA, João Francisco Tidei. A destruição dos índios de Bauru. Op. cit., p. 25. 26 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios. Op. cit, p. 98 e 111. A primeira menção da região com essa nomenclatura ocorreu no dia 15 de abril de 1856, em um registro de terras feita por Felicíssimo Antônio 20 incerteza sobre o desenvolvimento da região por parte das autoridades torna sua análise relevante do ponto de vista da participação indígena nesse processo. A escolha da região de Avanhandava como limite espacial deste trabalho ocorreu principalmente pela existência de uma Colônia Militar, instalada na margem direita do Rio Tietê no ano de 1858. No mesmo ano, outro decreto autorizava a criação de outra Colônia Militar na margem direita do Tietê, em Itapura, já na fronteira com a então província do . De modo a não analisar um recorte espacial tão amplo, optamos por delimitar o estudo em Avanhandava, mesmo que à época da pesquisa não houvesse trabalhos acadêmicos sobre o núcleo que pudessem auxiliar nossa investigação. Enquanto nos debruçávamos sobre uma interessante documentação do Arquivo Público do Estado de São Paulo no início de 202027, analisando relatórios emitidos pelos diretores que passaram por Avanhandava, estava sendo redigida uma dissertação de mestrado de extrema importância para a compreensão dessa Colônia Militar28. O trabalho de Ferrari, mesmo que focando a Arquitetura e Urbanismo do núcleo militar imperial em Avanhandava, apresenta uma forte sensibilidade histórica além de trazer à luz uma vastidão de fontes, principalmente cartográficas. De todo modo, enquanto pesquisávamos a documentação de Avanhandava buscando indícios das presenças indígenas na região, fomos constatando que a implantação daquele empreendimento não resultou no desaparecimento dos Kaingang, dos Guarani Kaiowá e dos Oti­Xavante. Assim, elencamos duas regiões que dispunham de documentação acessível e que seus conteúdos apontavam para a presença de povos originários nos seus respectivos processos de formação. Importante destacar que mesmo com a delimitação do recorte espacial entre as atuais cidades de Bauru e Avanhandava, a análise de fenômenos envolvendo as populações indígenas e os diferentes setores da sociedade imperial não deve ficar restrita a esse contorno. Essa maleabilidade na investigação decorre do fato dos modos de vida indígenas compartilharem um acentuado grau de mobilidade. Nesse sentido, veremos que grandes deslocamentos de grupos indígenas não só pela província paulista, mas por todo Império, eram extremamente comuns ao longo do século XIX. Portanto, acreditamos que restringir a análise dentro do recorte espacial proposto é desconsiderar a dinâmica dos eventos e do contexto da época, em que os povos

de Sousa Pereira. Veremos que esse sujeito foi uma figura central na relação entre o Estado e os indígenas, sendo o primeiro encarregado da abertura de uma estrada entre Bauru e Avanhandava e lançando mão de métodos extremamente violentos. 27 APESP – Ofícios Diversos Colônia Militar do Avanhandava – CO820 e CO821. 28 FERRARI, Daniel Cadeloro. O PROJETO DA COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA NO ENSAIO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL PAULISTA (1858­1878). Dissertação de Mestrado, UNESP – Bauru, 2020. 21 indígenas eram elementos centrais para os planos de conformação do Estado e do território brasileiro. Com a carência de rotas terrestres entre as regiões mais interioranas, o principal meio de comunicação entre as regiões de Bauru e Avanhandava era o Rio Tietê ­ mesmo que este também apresentasse sérias dificuldades de navegabilidade. Muito exaltado em meados do século XVIII como percurso das monções, seu trânsito começa a arrefecer em oposição à escolha de rotas terrestres pelos Campos de Araraquara. Já em meados do século XIX o Rio Tietê como caminho fluvial encontra­se abandonado29. Na metade do século XIX, mais precisamente em 1857, Antônio Mariano de Azevedo, um jovem oficial da Marinha, é encarregado de fazer incursão pelo Rio a fim de verificar as condições de povoamento em suas margens, resultando no ano seguinte no Relatório do Primeiro Tenente D’armada30. No ano da publicação do referido relatório, foram lançados os decretos que estabeleceram a criação das Colônias Militares de Itapura e Avanhandava, ambas instaladas nas margens do Rio Tietê31, demonstrando a preocupação do Estado em se fazer presente na região. A recorrência de insatisfações com o desenvolvimento das colônias militares e da falta de estradas próximas ao Rio que auxiliem no comércio de “núcleos de povoamento ilhados”32 nos remete a um processo de expansão territorial vagaroso. No ano de 1879, sucessivas ações indígenas efetuadas nas “matas de Bauru” colocaram em risco o projeto imperial33. Após essa data, as tensões envolvendo as populações originárias e a sociedade imperial brasileira permaneceram. A existência destas ações indica que haviam outras possibilidades de projetos existentes no período. Os indígenas foram atores importantes no retardamento do avanço da fronteira econômica na região. Tentar avaliar os interstícios e impactos dos braços lançados pelo Estado sobre os territórios indígenas no período e espaço elencados é nosso objetivo. O referencial teórico que motiva este trabalho é oriundo da renovação historiográfica sobre a história indígena, iniciada no Brasil, sobretudo, a partir de 1990. A principal contribuição desse movimento foi trazer novas possibilidades de interpretação sobre as ações indígenas, buscando ampliar as modalidades de resistência e negociação acionadas por esses

29 MANO, Marcel. OS CAMPOS DE ARARAQUARA: Um estudo de história indígena no interior paulista. Trabalho apresentado ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais – área de concentração: Antropologia, como requisito para obtenção do título de doutor, UNICAMP, 2006, p. 80­1. 30 Relatório do Primeiro tenente D’armada Antonio Mariano de Azevedo, sobre os exames que foi imcubido no interior da província de S. Paulo, Rio de Janeiro, 1858 31 BEZERRA, Jéssika de Aquino. Civilizar Os Sertões, Consolidar O Estado: A Colônia Militar do Jataí e os Aldeamentos Indígenas no Tibagi (1845­1897). Dissertação (Mestrado) ­ Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós Graduação em História, 2015; FERRARI, Daniel Cadeloro. O PROJETO DA COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA. Op. cit. 32 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios: Op. cit., p. 135. 33 APESP ­ Ofícios Diversos Lençóis ­ CO1091. 22 grupos. Esse olhar é fundamental para a compreensão de que os povos indígenas não estiveram – e não estão ­ observando passivamente as investidas da população não indígena sobre seus espaços. Dentre as principais contribuições dessa revisão historiográfica, destaca­se as obras de Manuela Carneiro da Cunha34 e John Manuel Monteiro35. Importante pontuar que mesmo buscando destacar o protagonismo indígena no processo de formação do país, tal movimento não desconsidera as relações assimétricas de poder em que essas populações agiam perante o Estado e os seus agentes. A base documental deste trabalho são documentos administrativos variados localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, abrangendo especialmente o período denominado como Segundo Reinado (1840­1889). Durante o primeiro ano de pesquisa de Iniciação Científica fomos durante quatro meses ao Arquivo, analisando ofícios diversos das localidades do Oeste paulista, avisos expedidos pelos ministérios do Império endereçados à província paulista, relatórios dos funcionários do Império relatando as dificuldades em se empreender benfeitorias nas regiões afastadas da capital paulista e transitadas por indígenas, escravos em fuga, desertores, criminosos e tropeiros, entre outras fontes. Já no segundo ano de pesquisa, em um contexto de pandemia e do necessário isolamento social, recorremos aos documentos administrativos disponíveis no Repositório Digital do Arquivo Público do Estado de São Paulo, buscando os registros não encontrados durante a pesquisa presencial. Outra alternativa encontrada foi a busca da presença indígena na região a partir das páginas do periódico Correio Paulistano, disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Nosso objetivo é caracterizar como o Estado imperial e seus diferentes agentes lançaram dispositivos diversos para avançar sobre as territorialidades das populações indígenas que habitavam o Oeste paulista na segunda metade do século XIX. Partimos do entendimento de que esse avanço estatal sobre regiões não exploradas da província estava em consonância com um movimento global de expansão da economia capitalista e de formação dos novos Estados nacionais. Ao mesmo tempo, buscamos demonstrar como esses diferentes grupos étnicos, com principal destaque para o povo Kaingang, souberam mobilizar diferentes estratégias num período de intensas transformações econômicas, políticas e sociais que se refletiam no interior da província paulista.

34 CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992. 35 MONTEIRO, John M. Negros da terra. Op. cit. 23

A Historiografia, a Memória e a História Indígena

Analisando os ofícios de cidades localizadas em nossa região de análise, encontramos nos documentos relativos à freguesia de Lençóis, o clamor de um colono pela vigilância do governo na assistência de sua fixação na região: José Baptista do Nascimento, morador no distrito da freguesia dos Lençóis, vem a presença de V. Ex.ª chorar lágrimas amargas pelos padecimentos que ele e muitos moradores daquele lugar tem sofrido [...] Processos continuados são agitados contra os pobres miseráveis, que não tendo meios de pagar advogados e custos, perdem sempre, e assim famílias inteiras são despejadas dos lugares que elas tem regado por tantos anos com o suor do seu rosto, lugares que até conquistarão dos indígenas com perigo de suas vidas.36 O pedido feito pelo morador da freguesia de Lençóis reflete a fragilidade da Lei de Terras, decretada em 1850 (e regulamentada em 1854), no tocante à disputa entre posseiros e fazendeiros por terras não demarcadas, e aponta também para a expropriação das terras indígenas feitas por ambos os grupos. Ao mesmo tempo em que uma desigual correlação de forças, principalmente entre senhores de terra e posseiros, implicava na constituição de uma sociedade em que poucos consagravam o direito à propriedade e muitos eram privados desse direito e vistos como invasores37; havia já previamente as populações indígenas, sofrendo a pressão para a liberação de suas terras tanto por parte do Estado quanto dos múltiplos atores presentes no interior da província. Esse processo de cerceamento da territorialidade indígena no Oeste paulista foi sistematicamente apagado das narrativas históricas oficiais das cidades interioranas paulistas. Vejamos esta breve narrativa histórica da cidade de Bauru: Foi o início da marcha para o Oeste, o desabrochar de uma esperança para aquela região do Estado de São Paulo. De diferentes pontos do território brasileiro chegavam homens destemidos, e até mesmo representantes de outros povos que para o Brasil imigravam, para Bauru vinham e, assim, naquela mescla de raças se alicerçava a pequenina localidade.38 Tanto no pedido feito à época pelo morador de Lençóis, como na história oficial contemporânea da cidade de Bauru, a presença indígena na região é mitigada ou ocultada. Seriam essas narrativas reflexos do desaparecimento por completo das sociedades indígenas ali

36 APESP ­ CO1091 – Ofícios Diversos de Lençóis – CO1091 – Pasta 2 – doc. 4 – pedido de José Baptista do Nascimento, 27 jul. 1863. Grifos nossos. As transcrições das fontes consultadas no APESP foram modificadas para o atual Acordo Ortográfico, de modo a facilitar a leitura. 37 MOTTA, Márcia; GUIMARÃES, Elione (Orgs.). Propriedades e disputas: fontes para a história do oitocentos. Guarapuava: Unicentro, 2011; Niterói: UFF, 2011, p. 14 38 Trecho extraído no endereço eletrônico oficial da Prefeitura de Bauru, na seção Primeiros Tempos da nossa Bauru. Disponível em: < https://www2.bauru.sp.gov.br/arquivos/arquivos_site/publicacoes/Primeiros%20Tempos%20da%20Nossa%20B auru.pdf>. Acesso em 28 mar. 2021. 24 existentes? Este relato contemporâneo, resultado da “divulgação da visão e dos conhecimentos indígenas sobre a história do oeste paulista e sobre si mesmos” nos mostra que não: Antes de tudo acabar, antes destes ferroviários invadirem nossas berras, elas eram de uma beleza... uma terra pura, virgem e que escondia seus segredos, seus mistérios, que fascinavam aqueles que as viam... as árvores de copas grandes e escuras, pareciam uma onda do mar...montanhas cobertas de árvores, tudo era verde, tudo era mata, tudo era vida. [...] Mas nós sobrevivemos como grupo, como comunidade e continuamos lutando pela preservação de nossas tradições, língua e costumes.39 Em ambas as histórias de suas origens, as cidades de Bauru e Avanhandava mencionam em sua história coletiva oficial o contato com grupos indígenas da etnia Kaingang. Porém, a nosso ver, o modo como essas histórias institucionais são moldadas acabam por reproduzir a indiferença de boa parte da historiografia brasileira com a importância das sociedades indígenas no processo de formação do país, e mais especificamente da história do estado de São Paulo40. No caso paulista, principalmente nas cidades da região oeste e de ocupação mais tardia, muito se exalta sobre o legado bandeirante na formação desses municípios. Nos endereços eletrônicos oficiais das prefeituras de Bauru e Avanhandava, na seção onde constam as histórias de fundação de cada município, a presença indígena se insere de maneira residual, como um simples obstáculo anterior ao avanço do progresso e da civilização41. Tomamos como apoio para refletir sobre os discursos oficiais dessas cidades interioranas paulistas e seus reflexos na construção de suas memórias coletivas, a análise de Ayalla Silva sobre a região de Itabuna, na Bahia42. Segundo a autora, há uma forte relação entre história e política evidenciada nas práticas discursivas das autoridades políticas locais43. Em nosso caso, nas duas cidades analisadas são forjadas narrativas que enaltecem o protagonismo de colonos proprietários­posseiros de grandes extensões de terras na formação dessas cidades. Em contrapartida, a presença e história indígenas são obliteradas, servindo mais como curiosidades a respeito da história dessas cidades. A questão é observar a relevância desses grupos no processo de povoação dessas cidades e as sucessivas tentativas de invisibilização dessas histórias. Tal prática fica evidente em

39 Uma história kaingang de São Paulo: trabalho a muitas Mãos / MACEDO, Ana Vera (org.) ­ Brasília: MEC; Coordenação­Geral de Apoio às Escolas Indígenas, 2001, p. 15 e 19. 40 MONTEIRO, John. Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. São Paulo: Yankatu, 1984, p. 21. 41 Para o caso de Bauru: < https://www2.bauru.sp.gov.br/arquivos/arquivos_site/publicacoes/Primeiros%20Tempos%20da%20Nossa%20B auru.pdf > Acesso em 27 mar. 2020. Para Avanhandava: < https://www.avanhandava.sp.gov.br/portal/cidade/1/Hist%C3%B3ria > Acesso em 27 mar. 2020. 42 SILVA, Ayalla Oliveira. Ordem Imperial e Aldeamento Indígena: Camacãs, Gueréns e Pataxós no Sul do Bahia. Ilhéus: Editus – Editora da UESC, 2018. 43 Idem, p. 39­40. 25 produções promovidas por famílias descendentes dos primeiros fazendeiros­posseiros da região, que buscam criar um elo entre seus patriarcas e bandeirantes: Se as expedições exploradoras que penetram os sertões paulistas, em fins do século passado e começo da centúria em curso, não foram as mais remotas explorações que devassaram as terras até então ignotas da província bandeirante, foram elas sem dúvida, as que anunciaram o dealbar de uma nova expansão do povoamento bandeirante, já de muitas décadas estacionado nos espigões do Oeste [...].44 No site da prefeitura da cidade de Avanhandava, com menções às autoridades policiais e políticas, a única referência sobre a participação dos povos indígenas na região é resumida em uma frase: “Nessa época, os índios que habitavam a região, agrupados em duas grandes tribos ­ e caingangues, viviam em constantes escaramuças com os brancos colonizadores, com grandes perdas para os primeiros.”45 Além da utilização de nomenclatura inadequada ­ coroados46 ­ para indicar a presença do povo Kaingang na região, o site simplifica todo o processo de disputa entre sociedades indígenas e sociedade imperial como “constantes escaramuças”. Tentaremos demonstrar que a presença e a ação indígenas não foram tão diminutas como reproduzem os escritos memorialistas das localidades analisadas, em que “o índio e a mata (de forma correlacionada) desapareceriam em nome do progresso da região.”47 Assim, compreendemos que esmiuçar as características do processo de formação da região escolhida é fundamental para evitar que processos de apagamento das presenças indígenas continuem ocorrendo. Na medida em que escrever sobre o passado reflete questões do tempo presente e aponta para um projeto de futuro, é primordial destacar a importância das lutas das populações indígenas diante de métodos violentos lançado por diferentes atores com a conivência do Estado brasileiro. Em 1875, o diretor da Colônia Militar do Avanhandava remetia um ofício ao presidente da província de São Paulo. Quase duas décadas após o decreto que autorizava a criação do núcleo militar, o Oeste paulista ainda se apresentava como região de diferentes territorialidades indígenas:

44 ANDRADE, Edgard Lage. Sertões da Noroeste. São Paulo: Ed. do Autor, 1945. O prefácio da obra, de onde tiramos a referida citação, foi escrito por Carlos Borges Schmidt, que assina como membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Este é filho de Cornélio Schmidt, engenheiro que participou das primeiras expedições científicas pela região paulista a serviço do Instituto Geográfico e Geológico. Ao longo de dez páginas, Carlos Schmidt destaca a ação de ‘bugreiros’ como sujeitos heroicos para o progresso da região. A obra segue a mesma tônica. 45 Disponível em: Acesso em 7 abr. 2020. 46 O termo “coroado” foi uma nomenclatura utilizada pela população não indígena para se referir aos Kaingang devido ao corte de cabelo utilizado por esse grupo, que remetia a uma coroa. Cf.: PINHEIRO, Niminon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850­1912. 146 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 53. 47 SILVA, Ayalla Oliveira. Op. cit. p. 51. 26

Ciente de que V. Exª. é o Diretor Geral dos Índios nesta província, por isso tenho a honra de informar, que existindo na margem direito do Rio Tietê 3 tribos de Índios, Chavantes, Coroados e Guarany nas vizinhanças desta Colônia [...], os quais fazem suas correrias, matando e roubando pela pouca povoação [...] aqui neste sertão, e por consequência fazendo com que homens aliás já bem sitiados mudassem deixando suas terras e benfeitorias abandonadas [...]. Em vista pois de todas ocorrências tomei a deliberação de mandar buscar no Sapé perto de Lençóis 3 homens sertanejos e práticos de lidar com os Índios para me acompanhar com mais gente do povo, e passearmos nos aldeamentos [...]. Fomos 25 pessoas e demoramos muitos dias, e muito conseguimos a favor da Catequese principalmente dos Gauranys onde tem muitos mansos e ladinos e para isto se fez não pequena despesa não só com presentes aos mesmos, jornais de camaradas e comedorias somente de matula, porque as viagens nestas matas não permitem levar­se caldeirão [...]. Lancei na despesa desta Colônia no corrente semestre de janeiro a junho [...] a quantia de R$500$000 para ajudar a Catequese aqui afim de poder não só fazer mais presentes aos Índios Guarany, como para ver se chamo para o povoado os Chavantes e Coroados, pois um destes aqui já esteve e depois de vários presentes retirou­se para o aldeamento. Tenho conseguido ter aqui na Colônia cerca de 30 Guarany e até fazem roças para milho, mandioca e mais legumes isto por alguns meses, pagando generosamente seu trabalho, e dando pólvora, chumbo e espingarda aos chefes das partidas, e miudezas a todos no geral porque são muito desconfiados, e depois retiram­se para seus aldeamentos. A meu convite tenho estado com muitos deles no lugar denominado Macuco para baixo desta Colônia cerca de 3 léguas na beira do Rio Tietê [...], caçando e pescando com eles e sempre levo presentes aos mesmos e desta forma vai se Catequizando48. Essa longa citação, parte do ofício produzido pelo diretor da colônia militar do Avanhandava, João Pereira Lima Júnior no ano de 1875, traz pontos interessantes para pensarmos sobre o processo de expropriação das territorialidades indígenas no Oeste paulista. Diversidade étnica, conflitos bélicos, expedições de homens “práticos” sob o discurso da catequização e do progresso, utilização da mão de obra indígena, dentre outros fatores, fazem parte do processo de formação do atual território paulista, especificamente, e do Estado nacional brasileiro, de modo geral. Assim, nossa investigação busca trazer avanços nos seguintes aspectos: ao dialogar com uma perspectiva de análise global, em que processos similares aconteciam em outras regiões da América e do mundo; ao dar atenção à dinâmica espacial da região, visto que o termo Oeste paulista é comumente utilizado para designar regiões distintas: o Oeste geográfico da província paulista – nossa região de análise ­ e o “Oeste paulista” cafeeiro, grosso modo entre as atuais cidades de Campinas e Limeira; e ao apontar para a ausência de políticas estatais claras no trato com as populações indígenas, que em contrapartida, mobilizaram dispositivos diversos no intento de preservar seus modos de vida. A estruturação desse trabalho está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo busca mostrar o contexto político e econômico do século XIX e suas interações com o Oeste paulista. A conjuntura de intensificação das relações de produção capitalistas em paralelo com a

48 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Encaminha ofício do diretor da colônia militar de Avanhandava, relativo a ocorrências praticadas por índios, e solicita o reembolso da quantia de quinhentos mil réis.”, 16 abr. 1875. 27 formação dos novos Estados nacionais impactou diferentes regiões do globo. Em decorrência disso, a construção de estradas e ferrovias visando a aceleração na circulação de mercadorias, pessoas e ideias afetou especialmente os povos indígenas espalhados ao redor do mundo. O processo de construção dos Estados nacionais e as tentativas de conformação dos novos territórios também foram fenômenos que abalaram o modo de vida de diferentes grupos. Nesse sentido, o interesse por novas áreas produtoras e a conformação da propriedade privada, em conjunto com a busca por braços ao longo do XIX, reverberaram em distintas regiões, especialmente naquelas em que povos originários exerciam seus modos de vida. O segundo capítulo tenta expor os principais aspectos contidos no processo de formação do Estado e da nação brasileira. A discussão de alguns dispositivos jurídicos é primordial para a compreensão do período, especialmente o Regulamentos das Missões (1845), a Lei Eusébio de Queirós (1850) e a Lei de Terras (1850). Tais mecanismos, mais do que representarem a sobreposição de interesses das elites sobre a população pobre em geral, refletem as disputas de diferentes atores em um período de intensas transformações. O uso da violência dispensado pelo Estado e seus agentes contra os grupos destoantes da nova ordem social projetada, foi muitas das vezes respondida na mesma equivalência, com ataques e revoltas colocando em risco o projeto imperial. Ademais, as populações indígenas no Império brasileiro souberam se utilizar das novas oportunidades advindas com o período, não ficando suas ações restritas a confrontos bélicos. O terceiro e último capítulo busca aprofundar a análise sobre os acontecimentos ocorridos no Oeste paulista, dando destaque para o avanço das fronteiras de expansão sobre as territorialidades indígenas. As tentativas de avanço da sociedade imperial sobre as regiões nomeadas à época como “sertões habitados por índios ferozes” encontraram sérios recuos. Estabelecer a comunicação com a província do Mato Grosso, construir rotas fluviais e terrestres entres os incipientes núcleos urbanos da província e viabilizar a formação de novas áreas produtoras estavam entre os principais interesses das elites do Império. Porém, tais objetivos precisaram ser adequados à forte presença indígena na região, que impediu por mais de meio século a implantação de uma linha férrea em suas terras tradicionais.

1. A economia­mundo no século XIX: expansão com expulsão

Os acontecimentos envolvendo a criação de equipamentos buscando auxiliar o ser humano na sua relação com a natureza foram eventos marcantes nos seus respectivos períodos históricos. A utilização da roda, a construção de moinhos, a criação da máquina de imprensa, 28 entre outros, são exemplos de fenômenos que proporcionaram mudanças importantes nas relações sociais de cada época. A Revolução Industrial iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, em paralelo com as transformações econômicas, políticas e sociais decorrentes, provocaram uma mudança estrutural nas relações comerciais a partir do século XIX49. Anterior a esse período, no modelo do Antigo Regime e na estrutura colonial desenvolvida nas Américas, a acumulação de riquezas e a ascensão social eram possibilitadas, primordialmente, por diferentes comandos políticos não relacionados com atividades comerciais50. A criação da máquina a vapor na metade dos Setecentos possibilitou um drástico aumento na produção de mercadorias não essenciais para a manutenção da vida humana. Em conjunto com esse acontecimento que impactou significativamente a economia mundial, processos políticos importantes marcaram o final do século XVIII: a Revolução Americana (1776), a Revolução Francesa (1789) e a Revolução de São Domingos (1791). De acordo com Dale Tomich, na virada do século XVIII para o XIX, “a emergência da hegemonia econômica e política britânica assinalou o princípio da transformação estrutural do mercado mundial”51. A intervenção britânica cada vez mais presente na mediação das relações comerciais entre metrópoles europeias e suas respectivas colônias na América, resultou no enfraquecimento desse intercâmbio colonial. Nesse renovado cenário que marca o início do Oitocentos, terá destaque a formação de novos Estados nacionais e uma circulação mais intensa de mercadorias por partes desses territórios, antes controlados pelos poderes dinásticos e monopolistas. A profunda urbanização nos principais países da Europa e também nos Estados Unidos ocorrida ao longo do século XIX foi palco de uma nova ideologia que se consolidava, a da sociedade de mercado52. O aumento da fatura de produtos por países europeus industrializados foi um dos principais reflexos desse período. Coube às antigas colônias o papel de fornecer matérias primas num volume sem precedentes históricos. Produzir cada vez mais para assim aumentar o volume de trocas, o poder de barganha e o lucro era a tônica dos homens de negócios (capitalistas) daquele período, sejam eles residentes na Europa ou não.

49 TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mercantil. Trad.: Antonio de Pádua Danesi. Edusp: São Paulo, 2011, p. 84. 50 FRAGOSO, João. “Para que serve a História Econômica? Notas sobre a história da exclusão social no Brasil”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 29, 2002, pp. 3­28. O autor foca sua análise na dinâmica colonial desenvolvida na América portuguesa apontando que determinados dispositivos políticos – como a concessão de mercês e relações parentais, por exemplo – acabavam tendo maior relevância do que a atividade comercial por si só. 51 TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão. Op. cit. p. 84. 52 LIMA. Henrique Espada. “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX”. Topoi, v. 6, jul.­dez. 2005, pp. 289­326. 29

Essa divisão internacional do trabalho ocorrida no século XIX configurou uma demanda crescente de terras e mão de obra, resultando em uma conjuntura de expropriação de terras comunais e em diferentes modalidades de trabalho análogas à escravidão. Nos países periféricos do ponto de vista do capital industrial, restava a produção acelerada de itens agrícolas e matéria prima a serem exportados para as indústrias europeias e outras estadunidenses. Consequentemente, foi observada uma forte mudança nas paisagens dessas diferentes regiões, principalmente com a criação de estradas e ferrovias. Segundo a perspectiva de quem se beneficiava com essa nova configuração da economia mundial, era preciso aumentar a produção e reduzir os custos desse processo. Para isso, além precarizar as condições de trabalho dos indivíduos que formavam a mão de obra tanto na produção de matérias prima quanto na manufatura de mercadorias fabris, a circulação desses produtos precisava atravessar distâncias cada vez mais longas em tempos mais curtos. Desse modo, veremos como as tentativas de consolidar rotas terrestres e fluviais no interior da província paulista estiveram em consonância com um movimento mais amplo, de caráter global. Nesse sentido, veremos que distintos grupos étnicos espalhados ao redor do mundo, partilhando em comum o uso comunal da terra e com diferentes níveis de “contato” com a civilização ocidental, sofreram e participaram desse processo de expansão da economia mundial. Cabe aqui alguns apontamentos sobre a tentativa de analisar nosso objeto histórico por uma abordagem transnacional e global. Primeiramente, a abordagem transnacional. De modo geral, podemos afirmar que tal análise busca fugir de uma visão do processo histórico centrada em uma perspectiva nacional, questionando a concepção teleológica de nação e seu viés modernizador53. O princípio não é negar o conceito de nação, mas sim complexificá­lo. De acordo com Weinstein, uma das vertentes desse campo de estudos é problematizar a ideia de um centro irradiador de modernidade – ou centros, no caso Estados Unidos e Europa central – levando progresso, tecnologia e desenvolvimento econômica para as demais regiões da América Latina, África e Ásia. Para os adeptos da abordagem transnacional, mesmo que não desconsiderando as relações assimétricas de poder entre países industrializados e não industrializados, é preciso destacar a circulação e reformulação de ideias, instituições e práticas culturais de uma região para a outra. Os modos pelos quais tais discursos da modernidade foram circulados, implementados e apropriados apresentam mais relevância do que sua aparente

53 WEINSTEIN, Bárbara. “Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e seu viés transnacional”. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 14, p. 9­36, jan.­jun. 2013. 30 origem54. Assim, podemos avaliar melhor os recuos sofridos por esse ideário modernizante tanto em nossa região de análise como em demais pontos da América Latina55. No que se refere à perspectiva global, além de ultrapassar uma concepção histórica de viés nacionalista, essa abordagem busca compreender a dinâmica mundial não somente como contexto, mas sim como condição para a emergência de fenômenos diferentes em suas particularidades, porém, que se encontram globalmente integrados56. Longe de ser uma história do mundo, essa abordagem busca identificar as questões da conjuntura global que interessam e estão integradas com manifestações da localidade analisada. Na medida em que as tentativas de avanço do Estado imperial pelo interior da província paulista ocorriam em sincronia com outras medidas de espacialização, unificação e expansão dos territórios57 nacionais por diferentes regiões do globo, a escolha pela perspectiva global pode auxiliar na revisão de estudos históricos fortemente estruturados em concepções nacionalistas e eurocêntricas. Ademais, segundo Conrad, embora a abordagem transnacional tenha contribuído para superar a importância do conceito de nação, tal abordagem coloca o contexto global mais como cenário para narrar os acontecimentos do que como um contexto que interfere em sua dinâmica58. Acreditamos ser possível trabalhar em conjunto ambas perspectivas, ressaltando os pontos mais frutíferos e relacionados a nossa pesquisa, e buscando evitar possíveis desvios de análise pertinente a toda abordagem teórica. Um exemplo de como esse ideário de progresso e modernização circulava por regiões de colonização incipiente e distantes dos centros políticos e econômicos, está no primeiro relatório do diretor da Colônia Militar do Avanhandava59, Manoel Giraldo de Barros. Ao descrever as características da área onde se planejava desenvolver a Colônia Militar, Barros lamentava a ausência do serviço de correios, a falta de estradas seguras que permitissem o tráfego de correspondências e de estarem as terras do entorno “todas aposseadas”, pedindo que o governo indenize a “desapropriação” das mesmas. Mesmo com o cenário desfavorável ao desenvolvimento da Colônia, já implementada há dois anos, Barros expressava sua crença em

54 Idem. 55 LARSON, Brooke. TRIALS OF NATION MAKING. LIBERALISM, RACE, AND ETHNICITY IN THE ANDES, 1810­1910. Cambridge University Press, 2004; PASSETTI, Gabriel. Indígenas e Criollos: Política, Guerra e Traição nas Lutas no Sul da Argentina (1852­1885). Ed. Alameda: São Paulo, 1ª ed. 2012. 56 CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016. 57 BELLUCCI, Stefano; CORRÊA, Larissa Rosa; DEUTSCH, Jan­Georg; JOSHI, Chitra. “Labour in transport: histories from the Global South (África, Asia and Latin America), 1750 to 1950”. International Review of Social History, n. 59, p. 1­10, 2014. 58 CONRAD, Sebastian. Op. cit. p. 46­47. 59 Explicaremos adiante o que foram as Colônias Militares no contexto do século XIX. 31 um projeto modernizante que passaria a modificar a paisagem daquele espaço: “tem o Ribeirão Ferreira um salto que possui água para volver qualquer máquina”60. O núcleo militar permaneceu em funcionamento na região por aproximadamente duas décadas, sofrendo com falta de recursos públicos, baixo número de funcionários, ausência de uma comunicação regular com regiões desenvolvidas, a presença de povos indígenas, desertores e escravos em fuga, entre outros reveses. Mesmo assim, o discurso de que a Colônia Militar poderia ser um local em que seus terrenos férteis possibilitariam “a produção, mais produção, muita produção”61, foi uma constante em meio aos recuos reais que esse projeto modernizador sofreu.

1.1 Capitalismo, vias de comunicação e transporte e a expropriação de territorialidades indígenas: expansão com expulsão

O século XIX presenciou a consolidação de um sistema econômico baseado, em termos gerais, na intensificação da circulação de mercadorias entre diferentes regiões do mundo. De um lado, a lógica de funcionamento desse modelo consistia, basicamente, na exportação de matérias primas oriundas de países não industrializados para países europeus e o Estados Unidos, principalmente. De outro lado, estes países com acentuado desenvolvimento industrial exportavam seus produtos manufaturados para as regiões menos desenvolvidas. Essa dinâmica conformou a expansão do capitalismo pelo mundo ao longo do Oitocentos62. De acordo com Giovanni Arrighi, a economia capitalista mundial passou de um sistema em que as relações de acumulação estavam inteiramente inseridas nas redes de poder e subordinadas a elas para um sistema em que as redes de poder estão inteiramente inseridas nas redes de acumulação e subordinadas a estas63. Nesse contexto de fundamental importância para a expansão da economia capitalista em nível mundial, esteve presente também a sistemática exclusão de determinados grupos étnicos, sociais e/ou políticos que destoavam da nova ordem social burguesa que se projetava. O desejo do progresso econômico viabilizado com a exploração de regiões produtoras, a garantia da propriedade privada e a criação de caminhos para o fluxo de mercadorias encontrou uma série

60 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO820 – Diretor da Colônia, Manoel Giraldo do Carmo Barros, 28 mar. 1860. 61 Fala do deputado Antônio Mariano de Azevedo na sessão da Assembleia Legislativa Provincial, dia 29 abr. 1862. In: Hemeroteca Digital, BN. Correio Paulistano, nº 1812, 21 mai. 1862 62 HOSBAWM, Eric. A era do capital 1848­1875. Editora Paz e Terra: São Paulo, 1979. 63 ARRIGHI, Giovanni. O longo século XIX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, São Paulo: Contraponto/Unesp, 2006. APUD: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica [recurso eletrônico]. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. 32 de obstáculos para sua conformação. Em diferentes regiões do globo houve a expropriação de territórios indígenas e a desconfiguração drástica dos seus modos de vida. Na região sudeste do atual território estadunidense, na virada do século XVIII para o XIX, “period characterized by frontier violence, warfare, and the territorial dispossession and removal of Native Southerners”, as sociedades Creek, Cherokee, Choctaw, Chickasaw, Seminoles, Tuscaroras, Yamasees, Natchez e Nottoway foram duramente impactadas64. Na região de Cuyo, Argentina, no mesmo período, os Huarpe foram sistematicamente perdendo seus territórios para os espanhóis por meio de processos de concessão de terra fraudulentos65. Na região de Bengala, na Ásia, no decorrer dos Oitocentos, a construção de estradas buscando arrecadar cobranças e viabilizar a “missão civilizadora”, “were seen as the principal means to connect the native to the wider world”66. Na África, o tráfico de pessoas escravizadas desde finais do século XV desarticulou seriamente a dinâmica interétnica das múltiplas sociedades nativas. Já no século XIX, o ideário de aumentar “a produção para aproveitar a ampliação crescente das possibilidades de circulação das mercadorias no século XIX com a revolução tecnológica e dos meios de transportes”, implicou na utilização da mão de obra de sociedades africanas na construção de estradas e edifícios, em Moçâmedes, Angola67. Essa expansão da economia capitalista com a expulsão de povos originários de suas terras não foi exclusividade do século XIX. Porém, é nesse período que uma nova ideologia de mercado se assenta no horizonte de dirigentes governamentais e autoridades locais, mobilizando novos dispositivos tecnológicos para a abertura de áreas produtoras em regiões não industrializadas68. Longe de ser novidade, a força econômica desse contexto é maior e por isso precisa de uma expansão mais acelerada. Nesse mesmo período, auxiliando o projeto do liberalismo econômico, o fenômeno de construção dos Estados­nações acabou por reforçar a exclusão de grupos e sujeitos não enquadrados dentro dos respectivos projetos nacionais69.

64 SMITHERS, Gregory D. Indigenous histories of the American South during the long nineteenth century. AMERICAN NINETEENTH CENTURY HISTORY, 2016 VOL. 17, NO. 2, 129–137. 65 ESCOLAR, Diego. Huarpe Archives in the Argentine Desert: Indigenous Claims and State Construction in Nineteenth­Century Mendoza. Hispanic American Historical Review (2013) 93 (3): 451–486, p. 458. 66 BISWAS, Paulami Guha. The Road Cess, Civilizing Missions and the World of the Landholders in Nineteenth­ century Bengal. Studies in History, Vol 34, Issue 1, 2018, pp. 1­28, p. 11. 67 OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Dimensões do governo colonial em Moçâmedes e suas conexões com o Brasil: trabalho, negócios e conflitos, 1840­1860. Mundos do Trabalho, Florianópolis | v. 12 | p. 1­27 | 2020, p. 6. 68 LIMA. Henrique Espada. “Sob o domínio da precariedade:” Op. cit. 69 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Tradução: Maria Célia Paoli e Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Embora o autor centre sua análise na formação de Estados­nações no continente europeu, é possível identificar aspectos em comum na construção dessas entidades em outras regiões, como a violência contra grupos minoritários destoantes dos programas nacionalistas. 33

Observar as tentativas de estabelecimento de caminhos terrestres e fluviais em nossa região de análise têm grande importância, considerando um contexto global em que “connecting people and markets is a prerequisite for the functioning of capitalist economies”70. De acordo com essa recente vertente historiográfica que busca analisar o trabalho nos transportes, a necessidade de consolidar vias de comunicação para o fluxo de mercadorias, transportes e ideias teve um impacto significativo e pouco analisado no denominado Sul Global – regiões da América Latina, África e Ásia que em algum momento histórico fizeram parte dos Impérios europeus. Importante destacar que dentro desse “mundo do trabalho dos transportes” estão inseridos uma série de modalidades de trabalhadores: responsáveis pelas malas postais, pela condução de barcos e canoas, guias por vias terrestres, carregadores de bagagens, entre outros. E claro, os construtores das diferentes vias de comunicação: estradas, pontes, ferrovias, canais fluviais etc. Desse modo, tal abordagem contribui diretamente para questionar a transição do trabalho escravo para o livre, mostrando que havia diversas modalidades do emprego da mão de obra na construção e manutenção dos transportes, “exploring the entangled histories of freedom and force, coercion and consent”71. Antes de prosseguirmos é necessário fazer ponderações a respeito do nível e da qualidade da integração da nossa região de análise com o contexto global do século XIX72. Enquanto determinadas áreas situadas na região Centro­sul do Império brasileiro tiveram suas atividades produtivas incentivadas com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 e com os desdobramentos políticos e econômicos desse acontecimento, grande parte do interior da província paulista se encontrava distante das características de uma importante região produtora agrícola. Minas Gerais se destacou ao longo do século XIX como a principal província escravista do Império, apresentando uma intensa dinâmica econômica interna e externa, e tendo a construção de pontes e estradas como dispositivos essenciais para a comunicação com a Corte no Rio de Janeiro73. A produção cafeeira no Vale do Paraíba, na região leste da província paulista, também apresentou índices elevados de crescimento, sobretudo na primeira metade do

70 BELLUCCI, Stefano et al. “Labour in transport: histories from the Global South (África, Asia and Latin America), 1750 to 1950”. International Review of Social History, n. 59, p. 1­10, 2014. 71 Idem. p. 5. CONRAD, Sebastian. Op. cit., 2016. 73 CRAVO, Télio A. CAMINHOS DO MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL DO SÉCULO XIX: LIVRES, LIBERTOS E ESCRAVIZADOS NAS CONSTRUÇÕES DE PONTES E ESTRADAS DA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS. 2018. 291 f. Tese de Doutorado para obtenção do título de Doutor em Desenvolvimento Econômico, área de concentração de História Econômica. Universidade Estadual de Campinas, Campinas­SP. Defendida em 31 ago. 2018. 34 século, tornando o Brasil o principal produtor de café74. O auge da produção cafeeira paulista na década de 1870 irá atingir principalmente a região norte da província, com destaque para as cidades de Campinas, Rio Claro, São Carlos, Limeira e demais cidades do entorno. Já em nosso espaço de análise, embora houvesse o interesse estratégico de ligação com a província do Mato Grosso e a demonstração de interesse em explorar terrenos classificados como “ubérrimos”, a região da margem esquerda do Tietê será até fins do século XIX classificada como “sertões desconhecidos” ou “terrenos desconhecidos habitados por selvagens”75. À medida que áreas produtoras agrícolas foram sendo abertas não só no Império brasileiro, mas em diversas localidades do Sul Global, também foram aumentando os conflitos e disputas com populações indígenas que lutavam pela manutenção de suas territorialidades. Mesmo com a ausência de atividades econômicas relevantes na região analisada em relação a outros núcleos do Império, entendemos que as tentativas de consolidação de caminhos fluviais e terrestres no Oeste paulista são reflexos de uma dinâmica global. Neste caso, servindo como frente de expansão e não propriamente como frente pioneira para a economia capitalista. A utilização desses termos (frente de expansão e frente pioneira), na concepção do sociólogo José de Souza Martins76, nos parece interessante para avaliar o grau de integração dos sertões paulistas na economia mundial do século XIX. De acordo com Martins, a história da fronteira “é uma história de destruição. Mas, é também uma história de resistência, de revolta, de protesto, de sonho e de esperança”77. O autor destaca que os estudos sobre a fronteira no Brasil, iniciados em grande medida por geógrafos na década de 1940, estavam centrados na “reprodução ampliada do capital: a sua reprodução extensiva e territorial, essencialmente mediante a conversão da terra em mercadoria”78. Desse modo, os geógrafos mal viam os povos indígenas e demais populações nesse novo cenário projetado com a instalação de ferrovias, novas cidades e a expansão de atividades agrícolas. Já nos anos de 1950, os antropólogos, principalmente na figura de Darcy Ribeiro, vão analisar esse fenômeno da fronteira tendo como referência as populações indígenas, e assim destacando os conflitos entre estes grupos e o avanço de não índios sobre suas territorialidades. Martins pontua que essas duas concepções

74 MARQUESE, Rafael. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; e SALLES, Ricardo. (orgs.). O Brasil Imperial: vol. II (1831­1870). Civilização Brasileira, 2010. 75 Termos encontrados na documentação analisada e utilizados pelas autoridades governamentais para se referir a regiões distantes dos núcleos urbanos. Cf: BEIER, José Rogério. Artefatos do Poder: Daniel Pedro Müller, A Assembleia Legislativa e a Construção Territorial da Província de São Paulo (1835­1849). Dissertação de Mestrado em História, USP­FFLCH, 2015. 76 MARTINS, José de Souza. “O tempo da fronteira. Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira”. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(1): 25­70, maio de 1996. 77 Idem., p. 26. 78 Idem., p. 30. 35 não se tratam de “realidades específicas e substantivas”, mas sim dos distintos lugares sociais existentes entre aqueles geógrafos e antropólogos. Tal divergência de concepção sobre o fenômeno é “essencialmente expressão da contraditória diversidade da fronteira, mais do que produto da diversidade de pontos de vista sobre a fronteira”79. Nesse sentido, a fronteira é, “simultaneamente, lugar da alteridade e expressão da contemporaneidade dos tempos históricos”. Desse modo, para Martins, o movimento de constituição das fronteiras é caracterizado por “momentos históricos distintos e combinados de diferentes modalidades da expansão territorial do capital”80. A frente pioneira seria caracterizada por uma nova sociabilidade implementada em regiões antigas, “fundada no mercado e na contratualidade das relações sociais”. Ou seja, a formação da propriedade privada burguesa. Já a frente de expansão tem como principal aspecto o avanço populacional e não planejado sobre as territorialidades indígenas, onde o mercado opera “com critérios monopolísticos, mediados quase sempre por violentas relações de dominação pessoal”. Um ponto importante destacado pelo autor é o de que essas duas unidades analíticas devem ser utilizadas na sua unidade e não como tipologias isoladas81. Ambas as temporalidades se interpenetram na medida em que são atravessadas e mediadas pelo capital. Não se trata de um processo meramente etapista, cada uma dessas fronteiras carrega componentes históricos e antropológicos em sua formação. E também não se trata de uma simples distinção espacial, mas sim de avaliar o quanto as relações sociais de cada região estão mais ou menos estruturadas com a economia de livre comércio82. Embora Martins desenvolva sua tese sobre as diferentes temporalidades históricas da fronteira baseado nas populações indígenas da Amazônia no contexto da ditadura civil­militar (1964­85), acreditamos que esse aporte teórico pode auxiliar nossa análise sobre o Oeste paulista na segunda metade do XIX. Nosso recorte temporal se situa exatamente em um momento em que interesses estratégicos e econômicos buscavam a consolidação do território nacional, a desconfiguração das territorialidades indígenas e a formação da propriedade privada. Como consequência, as negociações, resistências e principalmente os conflitos, envolvendo indígenas e a sociedade imperial, se tornaram mais frequentes. Portanto, a ausência de um sistema produtivo e de trocas intenso no recorte espacial não significa a falta de interesse

79 Idem., p. 30. 80 Idem., p. 59, nota 15. 81 Idem., p. 32. 82 QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. “José de Souza Martins e os conceitos de frente de expansão e frente pioneira”. Democracia e Ditaduras no Mundo Contemporâneo – XII Encontro da Associação Nacional de História. Seção Mato Grosso do Sul, 13 a 16 de out. 2014 – UFMS/CPAQ – Aquidauana­MS. 36 de governantes e negociantes pela região. Como em outras áreas das Américas e do mundo, diversos grupos étnicos resistiram às tentativas de avanço da economia capitalista em moldes nacionalistas. O intento de expor tal conjuntura internacional se justifica na medida em que nossa região de análise – parte do Oeste paulista – era um reflexo das tentativas de modernização no contexto da Segunda Revolução Industrial. Diante desse panorama, diversos dispositivos foram lançados de modo a viabilizar os processos de expansão do imperialismo europeu, a emergência do capitalismo em nível mundial e a globalização83. Podemos apontar a formação dos Estados nacionais como um dos principais artefatos para a consumação desses interesses. Nesse sentido, compreendemos que nossa região de análise é um interessante lócus de reflexo das tentativas de modernização Estado imperial84. No arcabouço pragmático do nacionalismo, uma série de mecanismos foram implementados em distintas regiões do globo, buscando a espacialização, unificação e expansão dos territórios nacionais que se formavam. A expropriação de terras indígenas, a instalação de colônias militares em áreas de contestação aos poderes governamentais, práticas de trabalho coercitivas, criação de estradas e ferrovias, entre outros, foram alguns dos principais dispositivos empregados nesse contexto e que tiveram impacto em nossa região de análise. Nesse enredo de produções monocultoras, edificações, estradas e ferrovias buscando atingir regiões não exploradas pela civilização ocidental e assim conformar novos territórios com a delimitação de suas fronteiras, diversos povos originários viam suas territorialidades sendo expropriadas e mobilizavam estratégias de ação adquiridas ao longo das experiências de “contato”. Diferentemente da noção burguesa de propriedade privada, com a delimitação de suas fronteiras separando uma propriedade de outra, a diversidade de grupos étnicos85 espalhados pelo mundo partilhavam e partilham em comum a ausência de fronteiras no reconhecimento de suas territorialidades. Sobre o conceito de territorialidade, é preciso considerar “que nenhuma sociedade existe sem imprimir ao espaço que ocupa uma lógica territorial”86. No caso da territorialidade indígena, deve­se levar em conta que cada grupo étnico desenvolve sua lógica espacial própria,

83 BELLUCCI, Stefano et al. “Labour in transport”. Op. cit. 84 MACHADO, André R. de A. Entre o nacional e o regional: uma reflexão sobre a importância dos recortes espaciais na pesquisa e no ensino da História. Anos 90, Rio Grande do Sul, v. 24, n. 45, 2017. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/61317>. Acesso em: 03 mar. 2021. 85 As discussões acerca das características de cada um dos grupos étnicos presentes em nosso período histórico se encontram no item 3.1 deste trabalho. 86 GALLOIS, Dominique Tilkin. “Terras ocupadas? Territórios? Territorialidade?”. In: RICARDO, Fany (org.). Terras Indígenas & Unidades de Conservação da Natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p. 40. 37 não sendo esta “natural ou de origem”, mas sim o resultado de processos históricos que remetem a diferentes experiências de territorialidade, principalmente a depender das características do território – que podem suscitar maior ou menor interesse na região ­ e da intensidade do contato87.

1.2 O nacionalismo conformando contradições: superação das diversidades?

Tentamos expor até aqui o quanto a expansão do capital industrial ao longo do século XIX proporcionou o crescimento econômico e tecnológico ao mesmo tempo que catalisou desigualdades locais, e sobretudo globais. Esses contrastes se fizeram presentes, principalmente entre regiões industrializadas – Norte Global e não industrializadas – Sul Global. E também na dinâmica interna de cada uma dessas áreas houve uma pequena elite se beneficiando com as ações desse ideário e a maior parte da população sentindo suas condições materiais de existência serem precarizadas ou subtraídas. De modo a conformar essas disparidades internas e evitar a emergência de movimentos insurgentes ou separatistas, a formação dos Estados­nacionais teve papel primordial. Ou seja, foi preciso criar uma “unidade natural” com critérios pouco coerentes entre si para a formação de uma nova ordem social burguesa, moderna, liberal e progressista88. De acordo com Eric Hobsbawm, para a compreendermos o fenômeno de construção das nações modernas no século XIX é preciso um considerável grau de agnosticismo. Não podemos encarar os critérios que definem uma determinada nacionalidade – como língua, etnia, hábitos, costumes e histórias em comum, habitar o mesmo espaço etc. ­ como válidos para sua definição. Tais critérios foram mobilizados por políticos e intelectuais de modo a criar uma entidade “imutável” e “originária”. Nesse contexto, “a nação moderna era parte da ideologia liberal”89. Alguns pontos precisam ficar em evidência para a análise desse fenômeno: (i) o princípio do nacionalismo sustenta que a unidade política e a nacional devem ser indissociáveis; (ii) a nação tal qual conhecemos hoje é exclusiva “de um período particular e historicamente recente”, tendo como sustento o nacionalismo e o Estado; (iii) a construção dos Estados­nações acontecem na intersecção de aspectos econômicos, políticos, militares, tecnológicos e administrativos; (iv) a construção da nação moderna ocorre em uma via de mão dupla: reunindo

87 Idem, p. 39­41. 88 HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. p. 100. 89 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. p. 52. 38 interesses e aspirações tanto de quem está em cima quanto dos grupos subalternos; e (v) a “consciência nacional” se desenvolve de maneira desigual dentro de um país90. A utilização do conceito de nação já circulava pela Europa e outras regiões antes dos nacionalismos do século XIX. Porém sua utilização era pouco rígida e não estava necessariamente ligada a um Estado ou território definido. As transformações políticas do final do século XVIII na Europa e na América trouxeram um caráter político na utilização do conceito, porém, ainda distante da concepção moderna de nação91. A heterogeneidade social exposta nessas nações revolucionárias trouxe novas questões para as elites políticas, que enxergaram no fortalecimento do Estado e na formulação de critérios nacionalistas, ferramentas para atenuar a força de possíveis inimigos internos ao novo tecido social que se formava. As incertezas políticas provocados pela Revolução Francesa e o temor sentido pelas elites dominantes da época, observaram no fenômeno do nacionalismo uma forma de salvar tal impasse92. A partir de então, o nacionalismo passou a vincular o Estado a um território definido como princípio para a construção de uma nação moderna93. No processo de construção de um Estado nacional, além do evidente uso da força coercitiva, essa nova organização necessitava também estender outros braços por meio da ideologia94. Nos diferentes contextos espaciais onde os Estados­nações se desenvolveram, as escolas, a imprensa, os exércitos, os feriados nacionais, entre outras instituições, práticas e símbolos, foram dispositivos primordiais para a construção de uma identidade nacional. Mesmo que os nacionalismos apresentem particularidades marcantes em cada uma das regiões onde se originaram, tornando sua análise bastante complexa, trabalhamos na direção que as diferentes nações emergidas ao longo do século XIX terão o Estado como principal dispositivo de consolidação. Assim, no caso da América portuguesa, precisamos distinguir a criação do Estado nacional brasileiro, da nação em cujo nome ele foi instituído95. Da instituição do Estado com suas estruturas fiscais, centralização política, monopólio da força legítima e manutenção do

90 Idem. p. 18­20. 91 José Carlos Chiaramonte demonstra que a associação do conceito de nação a um Estado, ou seja, em um sentido estritamente político, ocorreu anteriormente à Revolução Francesa, no contexto de “um substrato jusnaturalista do vocabulário político do século XVIII”. CHIARAMONTE, José Carlos. “Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII”. In: JANCSÓ, István. Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003. 92 ANDRESON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Companhia das Letras: São Paulo, 2008. 93 Idem. p. 28­35. 94 MATTOS, Ilmar Rohloff de. “O gigante e o espelho”. In: GRINBERG, Keila; e SALLES, Ricardo. (orgs.). O Brasil Imperial: vol. II (1831­1870). Civilização Brasileira, 2010, p. 44. 95 JANCSÓ, István. Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003. 39 território, até o estabelecimento de critérios que definiriam quem seriam os cidadãos nacionais, estiveram presentes inúmeras controvérsias. No que se refere à construção da nação brasileira, dentre os indivíduos enquadrados nos critérios definidos pela elite política da época para assegurar a forjada identidade nacional, grande parte das populações indígenas foram excluídas desde o início desse projeto nacional96. Durante o século XIX, período de construção do Estado e da nação brasileira, os indígenas foram exaltados no imaginário e violentados na política97. A exaltação do indígena ficava restrita no campo retórico, que consistia na busca de diferenciação da nação brasileira em relação as demais nações europeias. Tal discurso exaltava a pureza de um índio cristalizado no período colonial como atributo nacional, rejeitando o indígena contemporâneo que irá ser um obstáculo ao avanço da expansão capitalista e da consolidação do Estado brasileiro durante todo o século XIX98. Ainda de acordo com Sposito, naquele contexto de formação da nacionalidade brasileira com critérios muito bem estabelecidos de modo a manter o controle da ordem social, para o índio se tornar cidadão, era preciso deixar de ser índio99. Ou seja, a construção da nação brasileira implicava na subtração de diferentes nações indígenas que habitavam o território. No entanto, é preciso considerar os diferentes interesses e estratégias em disputa. Mesmo com a permanência de métodos violentos lançados pelo novo Estado no trato com os indígenas, o novo horizonte de perspectivas políticas aberto com o processo de Independência permitiu a determinados grupos étnicos projetarem novas expectativas de negociação e integração naquele cenário recém­formado100. Analisando a documentação, observamos que as expedições de indígenas com destino à Corte para barganhar suas prioridades e interesses perante a figura do imperador foi algo bastante frequente pelo menos até meados da década de 1870. Isso aponta que as populações indígenas não se encontravam isoladas das transformações do período e detinham determinada leitura política a partir das experiências de confronto com não indígenas. Mas claro, a consolidação do território, elemento primordial para a conformação do Estado brasileiro, resultou em processos cada vez mais violentos na medida em que avançava sobre as diferentes territorialidades indígenas.

96 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822­1845). São Paulo: Alameda, 2012. 97 Idem, p. 45­7. 98 MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência, UNICAMP, 2001, principalmente Introdução e Capítulo 7. 99 SPOSITO, Fernanda. Op. cit., p. 33­4. 100 MACHADO, André R. de A. A quebra da Mola Real: a crise política do antigo regime português na província do Grão­Pará (1821­1825). São Paulo: Hucitec, 2010; COSTA, João Paulo Peixoto. Na Lei e na Guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1789­1845). Campinas: UNICAMP, 2016. Tese de Doutorado. 40

De acordo com Wilma Peres Costa, as redes de fiscalidade atuam como processo estratégico na construção do Estado101. Nessa perspectiva, o domínio sobre o território tem papel central. Manter a ordem interna, garantir vias de transporte para circulação de mercadorias e garantir o controle desse fluxo evitando descaminhos e contrabandos foram obstáculos presentes durante todo o período imperial. A unidade territorial foi um ponto nevrálgico tanto na disputa com as nações vizinhas recém criadas, quanto, é claro, com a diversidade de povos indígenas que sentiram o avanço dos braços do Estado Imperial102. Conflitos envolvendo populações indígenas e as diferentes instâncias do Estado imperial brasileiro foram constantes ao longo de todo o século XIX. Seja nas localidades mais interioranas do território, seja nas regiões que orbitavam entorno dos centros políticos e econômicos do Império. Por hora, cabe pontuar que principalmente desde a renovação da Historiografia Indígena na década de 1990, já citada anteriormente, uma ampla produção de estudos vem demonstrando que a presença indígena no século XIX foi uma constante na maioria das regiões que hoje comportam as unidades federativas do Brasil. Ao longo do texto tentaremos relacionar o processo histórico da nossa região com dinâmicas semelhantes em outras regiões do Brasil e do mundo. Isso para mostrar que além da questão indígena no período estar diretamente relacionada com a expropriação de suas terras e também com a utilização da sua mão de obra, ambos processos estavam conectados para além das fronteiras nacionais ainda mal definidas, tratava­se de um fenômeno em escala global. Apontado o fato da nação e do Estado brasileiro serem coisas distintas e fenômenos históricos construídos ao longo do século XIX, podemos melhor compreender as semelhanças e particularidades desse processo em outras regiões no mesmo período. A violência contra populações nativas, em específico, e contra grupos subalternos, de modo geral, teve no século XIX um impacto maior com a formação dos Estados­nações. A afirmação de que a concretização da nacionalidade brasileira “dependia da superação da diversidade cultural e racial existente”103 estava em consonância com outros projetos de nação, forjando suas nacionalidades a partir da violência e da exclusão contra determinados grupos.

101 COSTA, Wilma Peres. Cidadãos e contribuintes. São Paulo: Alameda, 2020. Apresentação – Breve percurso pelas matrizes teóricas. 102 MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política.” Almanack Brasiliense n.1, Fórum, 2005; OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. O Exército e “A difícil luta contra a independência dos homens do campo”: embates na construção do Estado do Brasil, 1840­1870. In: Adriana Barreto de Souza, Luis Edmundo de Souza Moraes, Maud Chirio, Angela Moreira Domingues (orgs), Pacificar o Brasil, das guerras justas às UPPs. São Paulo: Alameda, 2017, p.197­224. 103 OLIVEIRA, Laura Nogueira. Os Índios Bravos e o Sr. Visconde: os Indígenas Brasileiros na Obra de Francisco de Adolfo Varnhagen. 170 f. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Fafich/UFMG, 2000. Resumo. 41

1.3 A terra, o trabalho e o café: uma modernização inevitável?

A elaboração de leis regendo o acesso à terra e as relações de trabalho foi um ponto comum e de intenso debate em diferentes regiões do globo a partir do século XIX. No caso das regiões que formariam novas nações nas Américas, na África e na Ásia, com grandes extensões territoriais, tais legislações buscaram “modernizar” antigos modos de produção. Ambas as esferas jurídicas – terra e trabalho – foram aplicadas em consonância em diferentes partes do mundo, demonstrando uma dinâmica global de interesse pela expansão da economia capitalista. Porém, não podemos conceber que esses dispositivos jurídicos foram implementados sem nenhum tipo resistência ou contestação pelos grupos afetados por tais marcos regulatórios. Para determinados autores que analisaram o processo de constituição da propriedade privada na segunda metade do século XIX no Brasil, a principal motivação para a formulação da Lei de Terras – legislação que regulou o acesso à terra no Segundo Reinado, foi o contexto de expansão capitalista, com a divisão internacional do trabalho104. Embora não desconsideremos a influência da conjuntura internacional, nessa perspectiva, a Lei de Terras acaba sendo vista como uma imposição das elites imperiais, em que populações indígenas e pessoas comuns ficaram totalmente fora da disputa. Mesmo que as ideias de “colonização sistemática” do inglês Wakefield circulassem nas discussões da Lei de Terras do Conselho de Estado105, sua aplicação na América, e em especial no Brasil, foi substancialmente moldada de acordo com os interesses de diferentes atores. De acordo com Lígia Osório da Silva, a proposição da Lei de Terras intentava resolver a questão da mão de obra com o iminente fim da escravidão africana e também solucionar a falta de colonos para o povoamento das áreas mais interioranas106. Porém, conforme a mesma autora, é preciso distinguir o projeto da Lei de Terras de seu resultado final107. Márcia Motta ao analisar os processos judiciais envolvendo a disputa por terras no contexto da nova Lei, buscou dar ênfase nos “interstícios no interior do campo jurídico” de

104 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios: A propriedade da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003, capítulo 1; GHIRARDELLO, Nilson. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002, capítulo 2. 105 Edward Gibbon Wakefield foi um político e economista clássico atuante na primeira metade do século XIX. Ficou conhecido por seus projetos de “colonização sistemática” e também pelos fundamentos de uma teoria econômica da escravidão. Cf.: MARTINS, Roberto Borges. “Se Deus quiser, semana que vem... ou na outra...” – Terra, trabalho e liberdade.In: XI Congresso Brasileiro de História Econômica & 12 Conferência Internacional de História de Empresas, 14 a 16 set. 2015 – Vitória­ES. 106 SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2˚ ed. Campinas: Editora Unicamp, 2008, especialmente os capítulos 7 e 8. 107 Idem. p. 151. 42 modo a observar que havia várias interpretações jurídicas possíveis na época108. Veremos que mesmo com a predominância de latifundiários apossando grandes parcelas de terras, não faltaram processos jurídicos movidos por pessoas pobres buscando garantir sua gleba de acordo com a legislação. E claro, as populações indígenas, parcela da sociedade mais impactada com a expansão do território nacional, não ficaram omissas nessas disputas. Assim, mesmo que a Lei de Terras no Brasil tenha sido elaborada em um contexto global de monetarização e privatização de terras, tal projeto de modernização encarou sérios obstáculos. Segundo Nilson Ghirardello, que analisou a construção da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (CEFNOB)109, é a partir da década de 1880 que se inicia a formação de latifúndios na região analisada110. Um relato publicado no Correio Paulistano no ano de 1875, envolvendo uma disputa territorial entre um grupo de colonos e o comandante interino da guarda nacional, Joaquim de Oliveira Lima, mostra que a Lei de Terras não era vista como um dispositivo jurídico para servir as elites, mesmo após mais de duas décadas de seu regulamento. O jornal publica detalhadamente a disputa entre as partes, descrevendo os acontecimentos e transcrevendo os documentos envolvidos no processo. De modo geral, o periódico relata que o grupo de moradores residiam na região de Barra Grande, em Lençóis, quando tiveram suas terras invadidas pelo comandante acompanhado por seu genro e seu filho, ambos autoridades locais. Após o evento, os moradores, representados por Tito Correia de Melo, entraram com um pedido de corpo de delito pelos vestígios deixados com a invasão de Lima e seus auxiliares. Mesmo que a disputa por aquelas glebas fosse resultado do confronto entre grandes proprietários, o interessante é o jornal citar a Lei de Terras de modo a garantir “o direito dos moradores pobres”111. No que se refere ao aspecto do trabalho durante o século XIX, a precarização das relações de trabalho era uma exigência para a nova sociedade de mercado funcionar112. Embora

108 MOTTA, Márcia M. M.. Nas Fronteiras do Poder: Conflitos de Terra e direito Agrário no Brasil de meados do século XIX. Tese de Doutorado, UNICAMP ­ SP, 1996, p. 12. 109 GHIRARDELLO, Nilson. Op, cit. 110 Idem, p. 76. 111 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 5678, p. 1. O comandante superior interino da guarda nacional de Lençóis, 11 set. 1875. Disponível em: . Acesso em: 20 mai. 2021; Correio Paulistano – Ed. nº 5732, p. 1. O comandante superior interino da guarda nacional de Lençóis, 16 nov. 1875. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_03&Pesq=Avanhandava&pagfis=6573>. Acesso em: 20 mai. 2021; Correio Paulistano – Ed. nº 5733, p. 1. O comandante superior interino da guarda nacional de Lençóis, 17 nov. 1875. Dsiponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_03&Pesq=Avanhandava&pagfis=6577>. Acesso em: 20 mai. 2021. 112 LIMA, Henrique Espada. Op. cit. p. 292. 43 o foco central desta pesquisa não seja a análise do “mundo do trabalho” no interior da província paulista, alguns indícios sobre as relações de trabalho apontados nas fontes analisadas nos forçam a uma observação mais atenta sobre o tema. A passagem linear do modelo de trabalho escravista para o denominado trabalho livre é baseada em uma concepção de tempo homogêneo113 que não reflete a complexidade do período histórico analisado. Em uma discussão iniciada por Dale Tomich, o termo Segunda escravidão buscou mostrar que em conjunto com a crescente política abolicionista internacional promovida pela Inglaterra no início do século XIX, houve a mobilização de setores econômica e politicamente relevantes que atuaram pela manutenção do sistema escravista em regiões específicas da América: Cuba, Estados Unidos e Brasil114. Tal fenômeno apontado por Tomich ocorre no contexto da já mencionada divisão internacional do trabalho liderada pela Inglaterra. A industrialização, urbanização e crescimento demográfico dos países europeus que presenciavam o desenvolvimento da Segunda Revolução Industrial, aumentaram significativamente a demanda por produtos agrícolas e demais matérias primas oriundas de regiões não europeias. Importante destacar que mesmo liderando a posição de principal potência econômica, a Inglaterra e os demais países industrializados dependiam tanto da remessa de produtos alimentícios como da exportação de suas manufaturas para as periferias globais115. Nesse contexto de aumento da demanda por itens agrícolas e da crescente pressão britânica pelo fim do modelo escravista, os atores responsáveis pela produção de açúcar, algodão e café (itens essencialmente importantes no período) se viram num impasse. Aceitar as diretrizes dos movimentos abolicionistas com principal força na Inglaterra e buscar alternativas com o mercado de trabalho livre, ou contornar essas proibições com a união das elites locais interferindo politicamente e sustentadas em pautas nacionalistas? A segunda opção predominou nas principais regiões produtoras, inclusive o Brasil. No caso do Oeste paulista, a ausência de fazendas cafeicultoras no período analisado não impossibilitou a utilização de mão de obra de africanos e afrodescendentes nos trabalhos das colônias militares paulistas. A peculiaridade dessa região no tocante à mão de obra empregada, se deu com a categoria de africanos livres. Esse grupo social originou­se a partir do estatuto legal de 1831 que proibia o comércio de africanos escravizados para o Brasil. Assim, de acordo com a lei: “todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos

113 CRAVO, Télio Anísio. Op. cit. p. 43. 114 TOMICH, Dale. Op. cit. 115 Idem. p. 85. 44 de fora, ficam livres” (art. 1º)116. Foi exatamente nesse momento, em que as perspectivas de manutenção do tráfico de escravos para parte da elite política não eram positivas, que tal grupo passou a se articular para garantir o fácil acesso à mão de obra africana. Segundo Jaime Rodrigues, “anos após a promulgação da lei, o dispositivo que previa a reexportação de africanos para seu continente de origem caíra em descrédito sem nunca ter sido cumprido”117. Desse modo, uma série de dispositivos jurídicos foram sendo colocados direcionando o acesso à mão de obra desse grupo a serviços públicos e também particulares118. O serviço dos estafetas, indivíduos responsáveis pela circulação de correspondências oficias, pouco analisado pela historiografia, indica formas de trabalhos bastante precárias no interior da província paulista. Sobre esse tipo de serviço, a historiadora Chitra Joshi analisou como os “dak runners”, os estafetas no caso do território indiano, também foram fortemente impactados com as tentativas de modernização lançadas pelo império britânico ao longo do século XIX119. As tentativas de implantação das primeiras linhas postais na capitania de São Paulo com destino ao Rio de Janeiro, sob o governo de Morgado de Mateus, se mostraram bastante infrutíferas, como também foram durante todo o período imperial120. O decreto que estabeleceu o Regulamento da Administração Geral dos Correios no Brasil, foi promulgado no ano de 1829 e esteve marcado sob a jurisdição de uma administração geral centrada no Rio de Janeiro. Porém, o Ato Adicional de 1834, dando maior poder às províncias sobre seus orçamentos e nomeação de funcionários públicos, passou esse serviço cada vez mais para a responsabilidade dos presidentes de províncias. Em 1860, com os Correios subordinado à Secretaria de Agricultura e Vias Públicas, todos os documentos postais deveriam ter o aval do presidente de província121. Considerando a importância desse serviço num período de expansão das vias de comunicação e transportes, principalmente em uma região de fronteiras com outros Estados em formação e com intensa circulação de povos indígenas, os conflitos envolvendo a figura dos estafetas parecem ter sido bastante significativos no Oeste paulista.

116 RODRIGUES, Jaime. FERRO, TRABALHO E CONFLITO: OS AFRICANOS LIVRES NA FÁBRICA DE IPANEMA. História Social, nº 4/5, Campinas­SP, 1997­8, p. 29­42. 117 RODRIGUES, Jaime. Op. cit. p. 31. 118 Idem, p. 31­4. 119 JOSHI, Chitra. Dak Roads, Dak Runners, and the Reordering of Communication Networks. International Review of Social History, 57(2), 169­189, 2012. 120 OLIVEIRA, Helena de. Edição semidiplomática e análise diacrítica de manuscritos do século XIX da administração geral dos Correios em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) ­ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 14­17. 121 Idem., p. 18­19. 45

O emprego de estafetas no contexto da Colônia Militar do Avanhandava teve grande importância visto que esse núcleo foi pensado como sendo essencialmente postal, no intuito de estabelecer conexão com a província do Mato Grosso e assim frear a influência platina naquela região em constante disputa. Nesse sentido, em outubro de 1863, o diretor da Colônia Militar do Itapura, instalada na fronteira com o Rio Paraná e de caráter mais estratégico, enviava um ofício à presidência da província. A autoridade de Itapura afirmava não ser possível enviar estafetas para Avanhandava, pois os colonos que não possuíam lotes de terra em Itapura “são constantemente empregados no serviço das monções do estabelecimento, que sem eles, se veria forçado a pagar a camaradas as enormes quantias que vossa excl. conhece”122. Em dezembro daquele ano, a Administração Geral dos Correios de São Paulo solucionava a questão enviando um aviso do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, dizendo que o transporte de correspondências entre Piracicaba e Santana de Paranaíba fosse realizado pelos “estafetas inativos” do Avanhandava123. No contexto de esquadrinhamento geográfico de novos territórios administrativos do século XIX, a tentativa de controle sobre a circulação desses trabalhadores por regiões desconhecidas do projeto colonizador gerou inúmeras disputas. No caso indiano analisado por Joshi, os dauriyas, se destacavam pela velocidade e resistência em relação aos demais grupos de runners na Índia (indivíduos conhecidos por transportarem correspondências e mercadorias, públicas ou privadas, por longas distâncias)124. A autora aponta como essa distinção física dos dauriyas criou substrato tanto para o surgimento de uma literatura romantizado as aventuras enfrentadas por esse grupo, como também para investigações médico­científicas estabelecendo estereótipos entre grupos étnicos “bons” ou “ruins”125. Ao mesmo tempo, tal classificação serviu aos próprios dauriyas para estabelecerem uma autorrepresentação que os diferenciavam positivamente dos demais runners. Ao serem designados a transitar por regiões de floresta densa, onde existiam perigos reais e também “stories of tiger and other predatory beasts”, os dauriyas estabeleciam salários mais robustos que deviam ser pagos pelos empregadores126. Os perigos envolvendo animais e outras possibilidades de ataque sobre a mala do estafeta e sobre sua própria vida, também se faziam presente no interior paulista. Um dos primeiros pedidos feitos pelo então diretor da colônia

122 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO820 – Ofício do Diretor do Estabelecimento Naval do Itapura, 23 set. 1863, doc. 1B. 123 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO820 – Administração Geral dos Correios de São Paulo, 9 dez. 1863, doc. 1. 124 JOSHI, Chitra. Dak Roads, Dak Runners, and the Reordering of Communication Networks. International Review of Social History, 57(2), 169­189, 2012, p. 170. 125 Idem., p. 171. 126 Idem. Ibidem. 46 militar de Avanhandava no ano de 1859, Manoel Giraldo do Carmo Barros, consistia em que a presidência da província mandasse espingardas e cavalos aos estafetas para o serviço dos correios127. No ano de 1869, a Câmara Municipal da Vila de Araraquara, cidade com grande influência sobre a Colônia Militar do Avanhandava, informava à presidência da província que o serviço dos correios se encontrava debilitado devido à redução da gratificação dos estafetas com destino a Rio Claro. O ofício terminava com um pedido ao presidente para que aumentasse a quantia da remuneração128. Alguns meses depois a Tesouraria provincial responderia indeferindo o pedido. Com condições de trabalho inseguras e salários baixos, mal remunerados ou não pagos, não era incomum o abandono do serviço pelos trabalhadores. No caso indiano, Joshi chega a citar o caso de greve dos “jungle runners” que paralisou o tráfego de correspondências sobre a importante rota entre Calcutá e Mumbai129. Com o controle cada vez maior sobre as rotas terrestres no espaço indiano, a Companhia das Índias Orientais foi exercendo uma coerção cada vez maior sobre o trabalho dos runners, buscando maior eficiência e velocidade. Nesse sentido, legislações foram sendo elaboradas de modo a restringir a autonomia desses trabalhadores, com contratos estabelecendo tempo mais curtos de viagem e o pagamento de multas e até a prisão por atraso130. Em 1865, o Diretor da Colônia Militar do Avanhandava, informava ao presidente da província que o estafeta Joaquim Laureano Ferreira, que partira em direção a Itapura com destino a Cuiabá, havia retornado três dias depois do previsto para Avanhandava, alegando a morte da besta em que vinha cavalgado. Segundo o diretor da Colônia Militar, ao lançar “indagações precisas” sobre Joaquim, constatou que havia sido o estafeta o causador da morte do animal. O diretor diz ter finalizado o caso recolhendo o estafeta “ao xadrez da Colônia tantos dias quanto foram os de demora do correio, e obrigado a pagar outra besta, pelo que peço aprovação de vossa excelência”131. Abordaremos no terceiro capítulo um pouco mais sobre a importância desses trabalhadores nos conflitos resultantes de práticas de trabalho compulsório e na própria consolidação do território nacional. O intento em realizar a comparação entre os “dak runners” e os estafetas é apontar para a simultaneidade das tentativas de reconhecimento e consolidação de rotas comerciais e estratégicas nos diferentes espaços. Mesmo que em contextos regionais bastante diferentes, ambas as áreas foram impactadas com as definições de fronteiras administrativas e a

127 APESP – Ofícios Diversos – CO821 – Ofícios Diversos Avanhandava, pasta 1 – dez. 1859, doc. 25. 128 APESP – Ofícios Diversos – CO806 ­ Câmara Municipal da Vila de Araraquara – 19 dez. 1869, doc. 11. 129 JOSHI, Chitra. Op. cit. p. 173. 130 Idem., p. 175­76. 131 APESP – Ofícios Diversos – CO821 – Colônia Militar do Avanhandava – Pasta 1, 3 nov. 1865, doc. 94. 47 intensificação da circulação de mercadorias e pessoas, compartilhando também práticas de trabalho compulsório no decorrer desse processo. A presença de africanos livres na província paulista é bastante conhecida na Fábrica de Ferro de Ipanema e na Colônia Militar do Itapura132. Nos ofícios e relatórios da Colônia Militar do Avanhandava também notamos a disputa pela mão de obra desse grupo nos trabalhos internos do núcleo e na construção de estradas. Em 1861, o diretor da Colônia Militar do Avanhandava, Manoel Giraldo de Barros, pedia à presidência da província “dois africanos do Itapura” para o serviço da botica e enfermaria133. Em novembro do mesmo ano, o médico do estabelecimento, Marcos José Pereira do Bonfim, elaborou um relatório encaminhado ao governo provincial dizendo que muitos escravos do Itapura eram deixados ali enfermos134. Já em janeiro do ano seguinte, o ofício de um colono, José Antônio de Sousa, propondo dar conta da estrada que deveria ligar as colônias paulistas de Avanhandava e Itapura, foi encaminhado à presidência da província solicitando a remessa de 30 africanos “disponíveis no Itapura” para arrematar o serviço135. No ano de 1858, a Câmara da vila municipal de Paraibuna dirigiu um ofício ao poder provincial solicitando que se mantenha as despesas com a construção de uma estrada que ligava a região aos centros produtores do Vale do Paraíba. Em seu pedido, a Câmara demonstrava o quanto o emprego de africanos livres favorecia a construção de serviços públicos com uma redução considerável dos custos. Além de solicitar que tais trabalhadores não sejam demitidos, enfatizava que, “sendo escravos, fazem o duplo do serviço, com metade da despesa”136. A crescente demanda por mão de obra no século XIX não afetou somente as sociedades africanas e seus descendentes diaspóricos. Essa conjuntura de busca crescente por braços também afetou de maneira direta as populações indígenas situadas na América137. De acordo com André Machado, a história global do trabalho no século XIX foi marcada por dispositivos jurídicos objetivando o controle de homens e mulheres em diversas modalidades de trabalho

132 RODRIGUES, Jaime. Op. cit. p. 34. 133 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava ­ CO820 – Ofício do Diretor da Colônia Militar do Avanhandava, Manoel Giraldo do Carmo Barros, 26 abr. 1861. 134 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava ­ CO820 – Relatório do Médico da Colônia Militar do Avanhandava, Marcos José Pereira do Bonfim, 15 nov. 1861, doc. 81. 135 APESP ­ Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava ­ CO820 – Ofício de José Antônio de Sousa, 10 fev. 1862, pasta 2, doc. 92. 136 HD. Correio Paulistano – Ed. nº 799, p. 2. Parte Oficial – Expediente da Presidência, 20 nov. 1858. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=090972_01&pasta=ano%20185&pesq=&pagfis=5903>. Acesso em: 27 mai. 2021. 137 MACHADO, André R. de A. Between heritage and reinvention ­ Indigenous forced labour in the brazilian Amazon in the context of the Americas (1820s­1830s). Texto inédito gentilmente cedido pelo autor. 48 forçado138. Embora a análise do autor foque na diversidade de modelos de trabalhos que variam entre o trabalho livre e o trabalho escravo na primeira metade do século XIX, podemos notar em nossas fontes que boa parte dessas práticas se mantiveram ao longo do Segundo Reinado no interior da província paulista. A referência nos documentos sobre a utilização de indígenas em serviços públicos e particulares, mesmo que não seja expressiva, traz indícios sobre os interesses de governantes e autoridades locais entorno desses grupos. Outro indicativo de modalidades de trabalho forçado é a recorrência do termo de “camaradas” nas fontes da época. Estes se caracterizavam como sujeitos que oscilavam entre práticas de trabalho por contrato e bastante coercitivas139. Além disso, esses sujeitos, os camaradas, poderiam apresentar uma forte relação com indígenas que passaram a viver em integração com a sociedade imperial, seja por escolha ou não. A elaboração de políticas e discursos modernizantes ao redor do mundo nos Oitocentos tinham como principal objetivo o aumento da produção e circulação de mercadorias. No caso do Estado brasileiro em processo de construção, a cultura cafeeira assumiu posição de destaque e tornou­se o mote aglutinador das diferentes elites políticas do Império. No Vale do Paraíba, as tentativas de expulsão dos índios Puri140 e o desenvolvimento da Segunda escravidão tornaram o Brasil o principal produtor cafeeiro já na primeira metade do século XIX141. Exauridos os recursos naturais dessa região, a produção avançou em direção ao norte da província paulista. Embora muito se fale da região Oeste como grande continuadora das lavouras de café, nossa região de análise presenciou somente no século XX propriedades cafeeiras com impacto na economia nacional. Em nosso entendimento, a presença e participação das populações indígenas tiveram papel preponderante nesse processo. Nossa intenção nesse tópico foi tentar mostrar como as esferas da terra e do trabalho foram alvos de um discurso modernizante que de modo geral, colocava as territorialidades indígenas (e de pequenos posseiros) como obstáculo para a formação de grandes centros produtores sob a tutela de fazendeiros e/ou políticos; e como o acesso à mão de obra, tão primordial para esses interesses e sob sério ataque com as leis abolicionistas a partir de 1831,

138 Idem. 139 AMOROSO, Marta. Terra de Índio: imagens em aldeamentos do Império. São Paulo: Terceiro Nome, 2014; SENA, Divino Marcos. CAMARADAS: Livres e pobres em Mato Grosso (1808­1850). 201 f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Grande Dourados – Dourados, MS, 2010. 140 LEMOS, Marcelo Sant’ Ana. O índio virou pó de café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016 141 MARQUESE, Rafael. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. Op. cit. 49 também foi objeto de disputa e impactou indígenas, africanos escravizados e pobres e livres submetidos aos diversos modos de trabalho forçado. O próximo capítulo busca focar a análise nas disputas envolvendo a consolidação do Estado e da nação brasileira, objetivos primordiais às elites políticas do Império. Porém, para alcançar tais interesses, diferentes desafios se apresentavam, dentre eles, a conformação do território nacional.

2. Um Estado em construção e seus “sertões desabitados”

Após o processo de Independência com a metrópole portuguesa, o novo corpo da elite política que se formava na América encarou como herança o vasto território do Império do Brasil e, logo, a integridade e unidade deste foram vistas como primordiais para a consolidação do Estado Nacional142. Para Ilmar de Mattos, esta herança “gerava sentimentos diversos e apropriações diferenciadas”143. Apesar das diferenças entre o desejo de maior ou menor centralização administrativa, a defesa da unidade territorial parece ter sido um dos elementos de homogeneidade das elites políticas apontados por José Murilo de Carvalho144. A chamada “expansão para dentro”, consolidada com a impossibilidade de expandir o território do Império para fora de seus limites145, terá como principais objetivos a consolidação de suas fronteiras, protegê­las contra a invasão de inimigos estrangeiros, abafar movimentos insurgentes, arregimentar trabalhadores nacionais ou imigrantes para o desenvolvimento agrícola e ocupar territorialmente os vastos sertões desconhecidos. Sobre a utilização do conceito de sertão para designar regiões não reconhecidas pelas autoridades governamentais, Beier diz se tratar de um conceito histórico, para além de “uma noção puramente geográfica”146. Ou seja, nos primeiros séculos de colonização na América portuguesa o significado do conceito poderia remeter a um espaço promissor para a colonização, com o sertão fazendo da parte da vida de muitos colonos que viviam distantes da costa litorânea. Já no século XIX, o sentido atribuído ao conceito por viajantes e sertanistas tinham “usos práticos e ideológicos” muito bem definidos147. Apoiando­se no estudo da

142 MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Construtores e herdeiros:”. Op. cit. 143 Idem, p. 23. 144 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem, a elite política Imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 249. 145 Cf.: MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Construtores e herdeiros:” Op. cit. 146 BEIER, José Rogério. SERTÃO DESCONHECIDO? A REPRESENTAÇÃO DO “OESTE PAULISTA” NO MAPPA CHOROGRAPHICO DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO (1841). Tempos Históricos ­ Volume 18 ­ 2º Semestre de 2014, p. 457­490, p. 461. 147 Idem. Ibidem., p. 463­4. 50 historiadora Dora Shellard Corrêa, Beier aponta que a caracterização do sertão, na virada do XVIII para o XIX, tratava­se “de um espaço que não era necessariamente coberto por matas, mas que era reconhecidamente de domínio indígena e, portanto, hostil aos colonizadores”148. A unidade territorial “era o mantra discursivo do período”, mesmo que ainda se apresentasse bastante frágil e incompleta149. Mesmo com a demonstração de aspectos que caracterizam o período que vai de 1837 até 1870 como um período conservador, guiado pelos “Saquaremas” na centralização do poder da Corte do Rio de Janeiro150, é clara a presença de conflitos sociais. Entre outras tensões, permanecia o debate sobre como organizar o território nacional. Para Miriam Dolhnikoff, as reformas liberais ocorridas na década de 1830 não foram totalmente eliminadas “mesmo depois da revisão conservadora da década de 1840”, havendo uma revisão que não alterou os “pontos centrais do arranjo liberal”151. Inserindo complicadores na tese de que houve uma forte centralização no poder durante o Segundo Reinado, a autora mostra como as duas esferas estatais ­ “governo central e governo provincial” ­ souberam se combinar com vistas a garantir “a representatividade apenas para os grupos dominantes”152. E no caminho de interesses dessas elites políticas estavam as populações indígenas, que souberam a seu modo e conforme as condicionantes do período, resistir, negociar e reivindicar seus interesses e prioridades. Segundo John Monteiro, após o processo de independência com a metrópole portuguesa, o novo projeto nacional pretendia jogar a imagem do índio para o passado, fixo no período colonial153. Na construção da nova nação, emergia o embate entre uma corrente de pensamento científico­antropológica, típica do período, em que as populações indígenas estariam no estrato mais inferior da hierarquia da espécie humana; e outra corrente de cunho político, que buscava valorizar os “antecedentes indígenas da nação brasileira – o que, afinal, a diferenciava dos países europeus”, mas também inferiorizando as populações indígenas contemporâneas ao período154. As interações entre “o pensamento científico e a política indigenista” resultaram em uma variedade de ações por parte do Estado e de seus agentes, “ora promovendo a inclusão das populações indígenas no projeto de nação, ora sancionando sua exclusão”155.

148 Idem. Ibidem., p. 464. 149 OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. O Exército e “A difícil luta contra a independência dos homens do campo”. Op. cit., p. 199. 150 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 2004. 151 DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial. Origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005, p. 14. 152 Idem, p. 15. 153 MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência, UNICAMP, 2001, p. 130. 154 Idem. Ibidem., p. 131. 155 Idem. Ibidem. 51

A formação de um discurso etnográfico no Brasil, buscando revelar o passado dos povos ameríndios, reflete também o projeto de uma história nacional reservado à nova nação156. De acordo com Rodrigo Turin, para os intelectuais do Império que se debruçavam sobre o emergente campo da etnografia, concentrados nas discussões promovidas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), havia dois tipos de preocupações acerca das populações indígenas no Brasil: primeiro, se os povos indígenas seriam a degeneração de outros povos, e como desdobramento dessa questão, se seria possível ou não a catequização157. As discussões sobre o conhecimento do passado e a catequização acabaram por permitir e justificar “o estabelecimento de algum juízo seguro sobre as ações adequadas a serem tomadas pelo Estado, já que as possibilidades de ação estariam condicionadas ou, pelo menos, justificadas, de acordo com o desenvolvimento histórico que fosse trazido à luz”158. Essas discussões dos letrados do Império acerca dos índios no Brasil, bem como as expedições de naturalistas de diferentes nações com destino às áreas de Mata Atlântica, eram respostas às expedições realizadas por Johann Friedrich Blumenbach e Alexander von Humboldt na entrada do século XIX159. Principalmente Blumenbach, considerado o “fundador da antropologia física”, influenciou uma série de pensadores do período com a tese da monogenia – fortemente relacionada com as leituras bíblicas, em que a espécie humana teria uma origem comum, porém, com diferentes estratificações. Nessa linha interpretativa, para os indígenas localizados no Império do Brasil restavam duas alternativas: a assimilação­catequização, caso fosse constatado a decadência a partir de civilizações anteriores; ou o extermínio, partindo da premissa que se tratava de povos primitivos, incapazes “de sair de seu estado de natureza”160. Portanto, a circulação de ideias promovidas por homens na Europa e absorvida pelos intelectuais do Império, direcionaram o modo como o Estado e suas instituições pensaram projetos para os povos indígenas. O embate entre os poderes central, provinciais, de grandes proprietários e comerciantes contra os diferentes grupos étnicos que circulavam pelo território brasileiro, foi se acirrando na medida em que o avanço de novas áreas econômicas sobre regiões interioranas aumentava e as territorialidades indígena diminuíam.

156 TURIN, Rodrigo. Tessituras do tempo: discurso etnográfico e historicidade no Brasil oitocentista. EdUERJ, Rio de Janeiro, 2013. 157 TURIN, Rodrigo. A “obscura história” indígena. O discurso etnográfico no IHGB (1840­70) [p. 86­113] In: Estudos sobre a Escrita da História, 2006, p. 90. 158 Idem. Ibidem. 159 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit., p. 31­4. 160 TURIN, Rodrigo. A “obscura história” indígena. O discurso etnográfico no IHGB (1840­70). Op. cit., p. 99. O autor destaca que o principal expoente no Império brasileiro que afirmava que as populações indígenas não teriam espaço no projeto da nova nação foi Francisco Adolfo de Varnhagen. 52

Nestas regiões, desconhecidas pelas instâncias governamentais e aventuradas por bandeirantes e sertanejos em períodos anteriores, configurava­se uma região de territorialidade de diferentes grupos indígenas. Dentre os grupos étnicos existentes na região oeste da província paulista, nesse período de avanço apoiado pelo Estado Imperial, sabemos da participação dos Guaranis­Kaiowá, Kaingang, Oti­Xavante e em alguma medida os Kayapó­Meridionais161, tendo cada grupo uma presença mais ativa em determinada região do vasto Oeste paulista. Como o modo de vida indígena não estava restrito a uma área fixa, variando o grau de mobilidade a depender do grupo étnico, os deslocamentos podiam ocorrer por questões de recursos materiais conforme a época do ano162. Desse modo, estes grupos circulavam por regiões mais amplas observando as condições ecológicas e climáticas. Havia também o deslocamento por questões políticas. O fluxo de grupos indígenas circulando de um ponto a outro da província, solicitando passagens nas recém­instaladas e ainda modestas linhas de ferro e indo diretamente negociar perante a Corte Imperial, foram algumas das ações empreendidas por esses grupos. Em 1872, o Ministério da Agricultura Comércio e Obras Públicas, emitia um aviso aos Diretores de Índios responsáveis pelos aldeamentos existentes, para que eles acatassem os pedidos de instrumentos feito pelos indígenas, de modo que estes cessassem a circulação rumo as capitais das províncias reivindicando solicitações não atendidas pelos diretores163. Por volta de 1850, tendo a região do Vale do Paraíba chegado ao seu ápice na produção cafeeira, demais áreas da província paulista entraram no interesse de fazendeiros e políticos como novos espaços para a produção de café.164 Como já ressaltado no primeiro capítulo, ao norte da província novas e modernas fazendas eram instaladas em conjunto com as primeiras linhas férreas. Já na região oeste, no mesmo período, a presença indígena foi um fator decisivo

161 LIMA, João Francisco Tidei. A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru. Dissertação de Mestrado, USP, 1978, p. 34 e 44. 162 As longas distâncias percorridas pelos povos indígenas podem ser derivadas tanto pela demanda de um ambiente propício à subsistência do grupo a depender da época do ano, bem como por processos migratórios oriundos de manifestações religiosas, além de divisões internas gerando grupos independentes. Sobre a mobilidade e territorialidade indígena conferir: TOMMASINO, Kimiye. A ecologia dos Kaingang da bacia do rio Tibagi. In: MEDRI, Moacyr E. [et al.]. Bacia do Rio Tibagi. editores . ­­ Londrina, PR : M.E. Medri, 2002; AMOROSO, Marta. “Descontinuidades indigenistas e espaços vividos dos Guarani”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2015, vol. 58, nº 1, p. 105­148; MARCEL, Mano. OS CAMPOS DE ARARAQUARA: Um estudo de história indígena no interior paulista. Trabalho apresentado ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais – área de concentração: Antropologia, como requisito para obtenção do título de doutor, 2006; VEIGA, J. Contribuição da etnografia dos Jê Meridionais à Arqueologia. R. Museu Arq. Etn, 27: 21­29, 2016; e DORNELLES, S. S. De Coroados a Kaingang: as experiências vividas pelos indígenas no contexto de imigração alemã e italiana no Rio Grande do Sul do século XIX e início do XX. Dissertação de Mestrado, PPGHUFRGS. Porto Alegre, 2011. 163 APESP ­ Diretoria dos Índios ­ Livro E733 ­ p. 100. 164 MARQUESE, Rafael. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; e SALLES, Ricardo. (orgs.). O Brasil Imperial: vol. II (1831­1870). Civilização Brasileira, 2010, p. 360. 53 para o retardamento do processo de incorporação daquela região ao projeto do Estado nacional brasileiro. Para alcançar o intento de garantir a presença estatal e explorar economicamente terras férteis no sertão paulista, foram diversos os braços lançados pelo Estado Imperial. Aldeamentos indígenas, colônias militares, abertura de estradas, trilhos de ferro e perseguições sistemáticas aos povos indígenas foram algumas das tentativas lançadas pelo governo para a construção de sua unidade territorial. No interior da província paulista, parte considerável das políticas centrais eram sobrepostas por decretos provinciais ou por interesses de mandatários locais, resultando num processo de expropriação dos territórios indígenas com acentuado grau de violência. Conforme destacou Niminon Suzel Pinheiro, pensar e projetar outras alternativas possíveis para o período que não a tentativa do etnocídio, se faz relevante na medida em que processos análogos ocorrem atualmente em diferentes regiões do Brasil165. Como já visto anteriormente, no processo de formação das novas unidades políticas da América e demais regiões, diferentes dispositivos jurídicos foram elaborados visando a criação de novas áreas produtoras sob a conivência desses Estados nações em formação. No caso brasileiro, a Lei n˚ 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, procurou regularizar a propriedade de terra de acordo com as novas necessidades econômicas e os novos conceitos de terra e trabalho inseridos no contexto mundial166. Promulgada duas semanas após a Lei Eusébio de Queirós, a implementação desta política fundiária demonstra como temáticas aparentemente distintas – civilização indígena, fim do tráfico de escravos africanos e direito à propriedade de terras – estavam intimamente relacionadas. Para Márcia Motta, a elaboração desta legislação fundiária foi formulada em um contexto complexo envolvendo diferentes forças e interesses. Segundo a autora, é necessário considerar as várias interpretações da Lei possíveis à época, de modo a dar luz às leituras jurídicas de outros atores que não os grandes fazendeiros.167 Os indígenas sabiam da promulgação da Lei e suas ações passaram a ser mais sentidas pela população branca. Segundo relato do presidente da Câmara Municipal de Botucatu em 1858, ao falar da importância da

165 PINHEIRO, Niminon Suzel. Os Nômades: Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850­1912. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 87. Em diferentes governos sempre foi violenta a ação do Estado brasileiro e de grupos interessados na exploração de bens naturais, assim como também sempre houve luta por parte dos grupos indígenas na defesa de suas terras tradicionais. Como mencionado na introdução deste trabalho, dentre os diversos ataques sofridos pelos povos indígenas no Brasil, destaca­se atualmente a votação no Superior Tribunal Federal do projeto “marco temporal”. Maiores informações em: . Acesso em: 05 jul. 2021. 166 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. 8ª ed rev. e ampliada. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007, p. 178 167 MOTTA, Márcia M. M.. Nas Fronteiras do Poder: Conflitos de Terra e direito Agrário no Brasil de meados do século XIX. Tese de Doutorado, UNICAMP ­ SP, 1996, p. 12. 54 criação de estradas para sustar os ataques indígenas que se faziam frequentes em Botucatu, a autoridade expõe como os indígenas estavam cientes dos possíveis ganhos advindos com a nova legislação: Lembro também a V. Excia. que se tirará alguma utilidade em abrir­se duas picadas paralelas só para conhecimento dos terrenos e vias de comunicação, como para melhor observar os indígenas daqueles lugares; depois que estes conheceram que não se penetrava mais em matas (o que tem observado depois da proibição da Lei de Terras), tem se tornado mais audaciosos em seus ataques, e que talvez o trabalho destas picadas concorra para que eles se tornem mais dóceis para com os habitantes, e que procurem as relações de amizade por nós tão desejadas.168 A Lei de Terras (1850) previa em seus artigos iniciais que dali em diante só se poderia adquirir terras por meio de compra, ficando as restantes, chamadas de devolutas, sob domínio do Estado. Previa também a reserva de terras para a “colonização indígena”169. Como boa parte das invasões aos territórios indígenas ocorriam por posseiros intentando aumentar suas terras, os índios viram­se inicialmente amparados pela Lei. A fala de um membro na Assembleia Legislativa Provincial, novamente acionando a importância de estradas para “afugentar os índios”, exemplifica o caso: [...] estes têm se mostrado mais ousados ultimamente e têm até as proximidades e cometido assassinatos. Os práticos e sertanejos têm dito que depois da Lei de Terras, os assaltos dos índios têm sido frequentes, e isto se vê pelas correrias que tem tido no lugar. Têm dito esses práticos que o índio que reconhece o sertão como propriedade, tem se enchido de coragem e tem assaltado Botucatu e fazendas próximas170. Os povos indígenas tinham sua leitura sobre a Lei de Terras sustentada nos artigos da mesma. O alto custo monetário ocorrido por longas disputas judiciais é que favorecia o ganho de processos por fazendeiros, e não a Lei em si171. A falta de clareza da Lei sobre itens importantes proporcionava esse cenário. Muitos debates contemporâneos à aplicação da Lei levantaram essa questão. A partir dos silenciamentos e ambiguidades presentes no texto da lei, a definição de terras devolutas passou a ser: as que não estavam aplicadas a algum uso público e as que não estavam em domínio particular172. Ou seja, os territórios habitados por povos

168 Relatório de Francisco de Paula Vieira ao Governo Provincial (21 abr. 1858). Apud. DONATO, Hernani. Achegas para a História de Botucatu. 3 ed. reescrita. Botucatu: Banco Sudameris Brasil/ Prefeitura Municipal de Botucatu, 1985, p. 110. Apud. DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios: A propriedade da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003, p.134. 169 SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2˚ ed. Campinas: Editora Unicamp, 2008, p. 156. 170 Anais da Assembleia Legislativa Provincial. São Paulo, p. 159 e 481. APESP. Apud. DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios. p. 135. Ao buscarmos essas falas da Assembleia Legislativa no APESP, fomos informados que a citação indicada pela autora não corresponde a atual organização do Arquivo. 171 MOTTA, Márcia M. M.. Nas Fronteiras do Poder: Conflitos de Terra e direito Agrário no Brasil de meados do século XIX. Tese de Doutorado, UNICAMP ­ SP, 1996, p. 17. 172 SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2˚ ed. Campinas: Editora Unicamp, 2008, p. 179. 55 indígenas que evitavam o contato com a população branca eram passíveis de serem considerados devolutos. Nesse sentido, em 1882, o juiz do distrito de Lençóis, Joaquim Antônio do Amaral Gurgel, afirmava que “a comarca de Lençóis [...] é a que tem mais terras devolutas”. Segundo Amaral Gurgel, essa área era composta por “matas e campos de primeira qualidade que vai até o Avanhandava e Itapura calculada em 50 léguas de comprimento e 20 de largura”173. Ou seja, as territorialidades indígenas no Oeste paulista eram reportadas pela autoridade local como “terras devolutas”. O interessante é que o ofício do juiz endereçado ao presidente da província era motivado justamente pelas irregularidades cometidas contra a Lei de Terras. O juiz informava que diversos fazendeiros realizaram a ocupação daquelas terras “depois da Lei e do Regulamento de 1854”. A prática consistia no seguinte: Os posseiros tem feito contratos com o Juiz Comissário dando a metade de suas terras em troca dele medir; consta­me que o ex. Juiz Comissário Theodoro Prado, escrivão, agrimensores e mais empregados todos vão ficando com fazendas por contrato que eles fizeram com os posseiros174. Em outubro do mesmo ano, a presidência da província enviou um ofício ao chefe de polícia de Lençóis. O documento pede que a autoridade policial investigue sobre a participação do “Juiz Comissário de medições de terras Miguel de Paula Medeiros e seu escrivão Porfírio Alves da Cruz e mais indivíduos” em uma expedição que efetuou “14 tiros de arma de fogo em um grupo de Índios da Tribo Chavantes que caminhavam nos campos do Capivara”175. Assim, veremos que de certo modo houve a permanência da prática de apossamento por colonos com a conivência de políticos – que em boa medida eram os mesmos fazendeiros que se apossavam dos territórios indígenas. Outra frente investida pelo Estado Imperial foi a construção de colônias militares. Articuladas desde o século XVI176, a implementação de colônias militares foi uma ação presente em diferentes regiões do globo ao longo do século XIX. Neste período, mesmo com as especificidades locais, havia uma “dimensão da consciência de um novo tempo, uma disputa ressignificada, com novos elementos em pauta no século XIX liberal, pós­revoluções e independências”177. Conforme Oliveira, “a rearticulação de novos saberes, emprestados de

173 APESP – Ofícios Diversos de Lençóis – CO1091 – Pasta 2 ­ Juiz de Distrito de Lençóis, Joaquim Antonio do Amaral Gurgel, 11 jun. 1882. 174 Idem. Ibidem. 175 APESP ­ Ofícios Diversos de Lençóis – CO1091 – Pasta 3 – Ofício da presidência da província ao chefe de polícia de Lençóis, 14 out. 1882. 176 OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. O Exército e “A difícil luta contra a independência dos homens do campo”. Op. cit., p. 199. 177 Idem. Dimensões do governo colonial em Moçâmedes e suas conexões com o Brasil: trabalho, negócios e conflitos, 1840­1860. Mundos do Trabalho, Florianópolis | v. 12 | p. 1­27 | 2020, p. 5. 56 experiências mais modernas”, circulavam entre militares e intelectuais das jovens nações que se formavam. Os diferentes modelos de colônias militares instalados pelo mundo, como na Rússia, Áustria, Austrália e África, com principal destaque para a colonização empreendida pelo governo francês na Argélia, eram absorvidos e debatidos pelas autoridades do Império brasileiro178. No caso brasileiro, as colônias militares foram empreendimentos lançados pelo Estado a partir da década de 1850, visando o policiamento das regiões interioranas e de fronteiras, além de almejar o povoamento dessas regiões com a adesão de imigrantes179. Como destacou Jéssika Bezerra, ao analisar o funcionamento da Colônia Militar do Jataí na província do Paraná, estes empreendimentos tiveram estreita relação com as populações indígenas180. Em nosso caso, ao analisarmos o funcionamento da Colônia Militar do Avanhandava, fundada em 1858 na margem direita do Rio Tietê181, constatamos além da circulação de indígenas pela região, a dificuldade das instâncias governamentais em controlarem o modo de vida de colonos nacionais e estrangeiros, fazendeiros, escravos fugitivos, criminosos e desertores. Um fator considerável para a fomentação dessa política de avanço não planejado sobre florestas e regiões interioranas é a conjuntura global do período, “the first international division of labor”182. “O Sul continuou fornecendo commodities (itens agrícolas tropicais e subtropicais), e o Norte agora fornecia bens manufaturados”183. O desenvolvimento industrial em parte da Europa, Japão e Estado Unidos condicionou as elites do Império do Brasil a investir na exploração de regiões consideradas desabitadas, mas que eram espaços de morada e circulação de grupos indígenas. O ideário de progresso nacional alimentado pelo avanço da economia capitalista mundial não surtiu o efeito desejado, pelo menos de imediato, sendo recorrente a dificuldade do Estado em fixar núcleos de povoação e produção nos denominados sertões.

2.1 O processo de construção do território e do Estado nacional

178 Idem. O Exército e “A difícil luta contra a independência dos homens do campo”. Op. cit., p. 200­1. 179 BEZERRA, Jéssika de Aquino. CIVILIZAR OS SERTÕES, CONSOLIDAR O ESTADO: A COLÔNIA MILITAR DO JATAÍ E OS ALDEAMENTOS INDÍGENAS NO TIBAGI (1845­1897). Dissertação de Mestrado em História, UNIFESP, 2015. 180 BEZERRA, Jéssika de Aquino. Op. cit. 181 APESP – Ofícios Diversos Colônia Militar do Avanhandava – CO820 e CO821. 182 LINDEN, Marcel van der. At the end of a very long cycle: Why the global labor movement is in crisis. Global History, Globally Seminar. Weatherhead Initiative On Global History, 16 fev. 2021, p. 4. 183 Idem. Ibidem. No original: “The South continued to supply commodities (tropical and subtropical cash crops), and the North now provided manufactured goods”. Tradução nossa. 57

Considerando a imensa extensão territorial projetada como território da jovem nação brasileira, o desafio em consolidar as fronteiras e unificar as diferentes regiões não foram tarefas fáceis. Dentre os principais obstáculos enfrentados pelas autoridades em conformar o território da nação estavam os chamados “inimigos internos”, podendo variar desde grupos indígenas que não aceitavam o avanço de atividades exploratórias em suas territorialidades, até quilombos instalados nas regiões de mata, passando por desertores e rebeldes. Em suma, a missão de militares e políticos era conter “a independência dos homens do campo”184. E mesmo com as divergências partidárias permeando o cenário político imperial, havia um pacto entre as elites de adesão ao “território imaginado” para o Império185. Portanto, nessa conjuntura de formação dos Estados nacionais e delimitação de suas fronteiras, diferentes grupos foram impactados, especialmente os povos indígenas. O período colonial na América Latina criou e reforçou desigualdades entre suas regiões. Ao longo do século XIX, com o fenômeno de formação dos Estado nacionais, tais divisões internas se apresentaram como um grande desafio para políticos, literatos e intelectuais dos novos países186. No processo de formação da nação argentina, por exemplo, o discurso do progresso e da civilização em oposição “ao universo bárbaro interiorano”, serviu para caracterizar as territorialidades indígenas como extensos territórios “vazios”187. Para as elites dos novos corpos políticos que se formavam, principalmente os de grandes extensões territoriais, era preciso dominar os espaços não ordenados dos sertões. No que se refere à definição das fronteiras externas do Império brasileiro, a questão foi resolvida em diferentes momentos do período oitocentista: a fronteira Brasil­Uruguai conformada nas primeiras décadas do século XIX; a fronteira Brasil­Paraguai firmada em 1872; e a fronteira Argentina­Brasil consolidada somente no final do XIX188. Às vésperas da eclosão do conflito bélico contra o Paraguai, os próprios aldeamentos indígenas acabaram servindo como núcleos estratégicos para o Império. Em 1862, em um ofício reservado, o Ministério da Marinha comunicava a presidência da província de São Paulo, a partir de informações

184 Fala do Ministro da Guerra Manoel Felizardo de Souza e Mello, Anais da Câmara, 7 fev. 1850. In: OLIVEIRA, Maria Luiza F. de. O Exército e “A difícil luta contra a independência dos homens do campo”. Op. cit. Apud: SOUZA, Adriana Barreto de, O Exército na consolidação do Império: um estudo histórico sobre a política militar conservadora. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999, p. 129. 185 MAGNOLI, Demétrio. O Estado em busca do seu território. In: JANCSÓ, István (org.) Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 285­296, p. 295. 186 NETO, José Alves de Freitas. A formação da nação e o vazio na narrativa argentina: ficção e civilização no século XIX. REVISTA ESBOÇOS, v. 15, nº 20 — UFSC, pp. 189­204, 2008, p. 190. 187 Idem. Ibidem. p. 199. 188 FERRARI, Daniel Cadeloro. O PROJETO DA COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA NO ENSAIO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL PAULISTA (1858­1878). Dissertação de Mestrado, UNESP – Bauru, 2020, p. 104­5. 58 recolhidas no aldeamento indígena de São Jerônimo, na província do Paraná, “os paraguaios se haviam estabelecido na margem direita do Iguatemi, e abrindo uma estrada pelo nosso território, fundaram acampamentos permanentes [...] e dirigem­se ao Ivinhema”189. O ofício designava a questão para o diretor da Colônia Militar do Itapura, que deveria averiguar a exatidão daquelas informações. Especialmente na porção meridional do novo Estado nação os conflitos envolvendo disputas fronteiriças com nações vizinhas eram mais candentes, bem como a participação das populações indígenas no processo de comunicação das diferentes províncias. As expedições de reconhecimento pelo território, por vias terrestres ou fluviais, e intensificadas ao longo do XIX, contavam majoritariamente com indígenas190. Na busca por braços e terras indígenas, os diferentes agentes imperiais prosseguiram com o avanço por espaços distantes do controle do Estado. No caso da província do Espírito Santo, por exemplo, essa transformação do espaço com a abertura de áreas agrícolas e a desconfiguração dos modos de vida das populações indígenas, ocorreu “tardiamente no Império e durante os anos da República Velha”191. Adentrada a década de 1850, o avanço governamental sobre a região Oeste da província paulista tinha como ponto mais avançado a cidade de Botucatu192, denominada na época como “boca do sertão”193. É a partir desta região que colonos e funcionários do Estado observavam as movimentações indígenas e planejavam suas ações intentando a comunicação com a província do Mato Grosso194. Uma das principais preocupações das autoridades locais era a

189 APESP – Ofícios do Ministério – Pasta da Fazenda – C5247 – Ministro da Marinha, Joaquim José Ignácio ao presidente da província de São Paulo, João Jacintho de Mendonça, 28 jun. 1861. 190 É sabido que as próprias entradas realizadas por bandeirantes paulistas no período colonial contavam com um grande número de índios. Cf.: MONTEIRO, John. Negros da Terra. Op. cit.; HOLANDA, Sérgio Buarque. O extremo oeste. Editora Brasiliense: São Paulo, 1986. No século XIX, as Jornadas Meridionais realizadas pelo Barão de Antonina na região do Rio Paranapanema, são bastante emblemáticas sobre a importância de grupos indígenas no reconhecimento dos melhores caminhos e no contato com demais grupos étnicos. Sobre as Jornadas Meridionais, ver: WISSENBACH – Desbravamento e Catequese na Constituição da Nacionalidade Brasileira: as Expedições do Barão de Antonina no Brasil Meridional – Rev. Bras. de Hist. 1995. 191 MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do império e da nação: trabalho indígena e fronteiras étnicas no Espírito Santo (1822­1860). Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 31, p. 13­55, jul. 2010, p. 17. 192 A freguesia de Botucatu teve o início de seu povoamento pela população branca em meados da década de 1840. Em 1854 foi criado um aldeamento indígena na região, já sob a vigência da política do Regulamento das Missões. Em 1855 é elevada à categoria de Câmara Municipal. Cf.: DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios: A propriedade da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003, p. 56­7; e AGUIAR, Marco Alexandre de. Botucatu: imprensa e ferrovia. São Paulo: Agbook, 2. ed., Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2015, p. 31. 193 A referência ao conceito sertão para designar regiões desconhecidas pelo poder institucional variou ao longo do tempo, porém sempre com uma carga negativa e marcadamente como “espaço do outro”. Cf: AMADO, Janaína. “Região, sertão e nação”. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n.5, p. 145­151, 1995. 194 A comunicação com a província do Mato Grosso era uma questão candente para o Império, visto sua posição “estratégica por seu enquadramento em período de conflitos nos países vizinhos”. Cf.: OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Circulação de saberes e de práticas governativas: caminhos de articulação da política no Brasil, 1845­1860. Almanack, Guarulhos, n. 18 p. 248­288 abr. 2018, p. 250. 59 distância entre as vilas, freguesias e cidades. No ano de 1861, no ofício do Inspetor de Instrução Pública de Botucatu, Salvador Ribeiro dos Santos Mello, comunicava reiteradamente ao presidente da província a distância entre as freguesias de Lençóis e São Domingos195. Cabe lembrar que Lençóis começava a se desenvolver como ponto de povoamento mais avançado para a região oeste e os relatos de embates com as populações indígenas perduraram até o findar do século. Bauru, nosso ponto de partida, não surgia se quer como povoação reconhecida pelo governo provincial. A conformação do território nacional implicava não somente na demarcação e reconhecimento de suas fronteiras externas por nações vizinhas, mas também e principalmente, na fácil comunicação entre as partes desse todo. Nesse sentido, em 1872 o Correio Paulistano circulava a notícia de um periódico produzido em , o Ypanema. A notícia informava que havia sido apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, um plano de navegação pelo Rio Tietê. O projeto consistia no prolongamento das linhas férreas até então existentes, buscando cada vez mais a parte ocidental da província. Chama atenção a relação desse projeto com outro mais ambicioso, “de colonização em larga escala”. Tratava­se da projeção de uma linha telegráfica até a Colônia Militar do Itapura196. O interessante é observar o mesmo desafio – integrar diferentes regiões dentro de um mesmo território – em outros contextos. No caso argentino, como nos demais Estados de grandes extensões territoriais, o intento em consolidar o território esteve marcado “pela construção de inimigos internos, pela noção de barbárie e pela delimitação de espaços de vazio civilizacional a serem ocupados, fossem ‘desertos’ ou ‘sertões’”197. No contexto das investidas militares contra os grupos indígenas da região “pantagônico­pampeana”, a troca de informações entre as autoridades pelos novos cabos telegráficos instalados, possibilitaram o reconhecimento do “deserto”, a desconfiguração dos grandes cacicados e um novo discurso “pela aniquilação física dos indígenas”198. Nesse contexto de esquadrinhamento geográfico dos novos territórios nacionais, o desenvolvimento cartográfico detalhando cada região acabava por representar o grau de civilidade do Estado nação199. De acordo com Manoel Neto, nesse contexto de modernização

195 APESP– Instrução Pública – Botucatu Ofícios – CO5028, 9 ago. 1861. 196 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 4872, p. 1. Noticiário Geral ­ Sorocaba, 14 nov. 1872. Disponível em: . Acesso em 10 jul. 2021. 197 PASSETTI, Gabriel. Apogeu e colapso dos grandes cacicados no sul da Argentina: estratégias de resistência e iminência de combate (1861­1872). Topoi, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 57­79, jan./abr. 2018, p. 62. 198 Idem. Ibidem, p. 74­5. 199 NETO, Manoel Fernandes de Sousa. Linhas d’água na delimitação do território: O Mapa dos Limites do Império do Brasil com o Paraguay de 1872. Terra Brasilis (Nova Série), São Paulo, [online], 2019, pp. 1­12. 60 do território e do Estado brasileiro, a produção de mapas institucionais buscava manter as possessões territoriais e corroborar o argumento bélico em contextos de guerra, como no caso contra a república do Paraguai200. Portanto, podemos observar diferentes dispositivos lançados pelo Império brasileiro no intuito de assegurar o território e, consequentemente, forjar a nacionalidade brasileira. Em consonância com esse movimento de tentativas de modernização do Estado brasileiro a partir da segunda metade do século XIX, um fator diretamente relacionado com os povos indígenas desse período foi a política indigenista do Regulamento das Missões. O próximo item busca analisar esse tema.

2.2 O Regulamento das Missões

A política indigenista vigente na segunda metade do século XIX em todo o Império, prevendo a criação de aldeamentos, não se aplicou em nossa região de análise. Mesmo com a recorrência de diferentes grupos indígenas circulando por aquele espaço em todo período de vigência da lei, a política de aldeamentos não foi aplicada. Buscando esclarecer os motivos da não execução da lei, se faz necessário elucidá­la para termos o referencial jurídico da época no tocante às populações indígenas. O período propriamente abordado nesta pesquisa tem a política indigenista já sob a órbita do chamado “Regulamento das Missões”. Em 24 de julho de 1845, “foi aprovado, sem alterações, por maioria de votos e publicado por meio do Decreto Imperial n.º 426”, o Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios201. Para Marta Amoroso, a aplicação do Regulamento das Missões causou a maior expropriação das terras indígenas. O Decreto destinava­se aos indígenas que habitavam as regiões recém­povoadas pela sociedade imperial brasileira. Localizados os grupos indígenas, o objetivo era reduzi­los nos espaços dos aldeamentos para assim que estivessem integrados à sociedade nacional, suas terras fossem devolvidas ao Estado por serem consideradas devolutas202. Porém, mesmo atuando numa correlação de forças assimétricas, os povos indígenas souberam atuar e disputar seus próprios interesses perante ao Estado e aos seus agentes.

200 Idem. Ibidem. 201 SAMPAIO, Patrícia Melo. “Política indigenista no Brasil imperial”. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. (Orgs.) O Brasil Imperial (1808­1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, pp. 175­206, 2009, p. 176. 202 AMOROSO, Marta. “Descontinuidades indigenistas e espaços vividos dos Guarani”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2015, vol. 58, nº 1, p. 105­148, p. 113­4. 61

De acordo com Patrícia Sampaio, é necessário distinguir o projeto do Regulamento de sua real aplicação. Boa parte da historiografia que analisou o Regulamento das Missões tendeu a confirmar seu caráter de expropriação das terras indígenas. Porém, a novidade do arrendamento de terras indígenas presente na lei, é um bom indicador de que em sua elaboração haviam diferentes projetos sobre o modo avançar nas terras indígenas. Sampaio destaca ainda a recorrência da temática da mão de obra indígena, mesmo com a forte presença da questão de incorporação de terras pelo Estado203. Outro ponto que contribui para elucidar a agência indígena nessa conjuntura de expropriação de suas territorialidades, é a busca destes grupos pelas oportunidades advindas com a nova lei indigenista. Os deslocamentos em direção aos novos aldeamentos buscando obter alimentos e ferramentas, mostram o quanto os indígenas tinham conhecimento sobre os mecanismos lançados pelo Estado e analisavam as possibilidades de ganhos e perdas. Nesse sentido, em 1862, no aldeamento de São Sebastião do Pirajú, em Botucatu, os índios que ali viviam passaram a migrar para a região de Salto Grande do Paranapanema. Muitos desses deslocamentos de evasão dos aldeamentos eram vistos pelas autoridades como incompatibilidade do índio ao trabalho. Porém, um ano antes, a verba liberada pela Assembleia Provincial e destinada ao aldeamento foi cortada204. Diante da escassez de recursos, o diretor do aldeamento, José Joaquim Alves Machado, indicou que a saída dos indígenas era decorrente “da abundância de peixes” na região do Paranapanema, e não deserção ao trabalho205. Conforme as verbas dos núcleos indigenistas eram reduzidas, cortadas ou direcionadas para outros empreendimentos, e o avanço da fronteira agrícola se intensificava, os grupos indígenas destinavam­se cada vez mais à capital da província buscando auxílio dos governantes. Em 1864, o Diretor Geral dos Índios da província de São Paulo, José Joaquim Machado de Oliveira, enviou um ofício à presidência solicitando auxílio da Assembleia Provincial em decorrência dos “índios que vem a capital para receber ferramentas e vestuários [...]”206. No mesmo documento, Machado de Oliveira indica a proposta de realizar a catequese indígena pela via militar: “pôr os índios em colonização regular pelo teor das colônias militares estabelecidas nesta província e na do Paraná”207. É exatamente nessa época, início da década

203 SAMPAIO, Patrícia Melo. Op. cit., p. 186­8. 204 DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. Op. cit., p. 121. 205 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Informa sobre as arguições feitas pela Câmara Municipal ao diretor do aldeamento de São Sebastião do Piraju, José Joaquim Alves Machado”, 6 abr. 1862. 206 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Solicita que sejam tomadas providências pela Assembleia Legislativa Provincial em relação a necessidade de dar destino aos índios pertencentes aos aldeamentos da Província de São Paulo e de outros índios foragidos da Província do Paraná”, 9 mai. 1864. 207 Idem. Ibidem. 62 de 1860, que Amoroso afirma que houve um direcionamento da verba da catequese e civilização dos Índios da província de São Paulo para o Paraná, onde eram criados novos aldeamentos208. Para aplicar a política indigenista de criação de aldeamentos em uma região era preciso suspender os recursos de outra região atendida anteriormente. Essa economia do “lençol curto” era percebida pelos indígenas, “que circulavam em torno dos aldeamentos, seguindo o compasso das verbas que eram encaminhadas para uma ou outra unidade do sistema”209. O início do aldeamento de São Sebastião do Pirajú demonstra a importância desses empreendimentos na esfera política do Império. Criado em 1854, na então freguesia de Botucatu210, seu fundador foi o fazendeiro e deputado José Joaquim Alves Machado. A criação do aldeamento se deu pela iniciativa de 88 índios do grupo “Guatá” que se apresentaram na fazenda de Alves Machado, tornando­se este diretor do aldeamento.211 Ao mesmo tempo que chama a atenção o fato dos próprios indígenas tomarem a ação para a criação do núcleo, podemos cogitar o interesse do fazendeiro tanto pela mão de obra indígena quanto pela renda recebida do governo por conta da manutenção do aldeamento: 400$000 (quatrocentos mil réis)212. Um ano após a criação do empreendimento, Alves Machado solicitou demissão de outro cargo público, o de Diretor de Instrução Pública, alegando que o cargo de Diretor do aldeamento ocupava boa parte de seu tempo.213 Anos mais tarde o aldeamento sofreu acusações de má administração. Um ofício do Diretor Geral dos Índios, José Joaquim Machado de Oliveira, ao presidente da província no ano de 1861, dá uma amostra de como o controle sobre o aldeamento escapava das autoridades localizadas na capital da província. O Diretor Geral ordenou que o juiz municipal de Botucatu verificasse o que de fato acontecia em Pirajú. Informou também ao presidente da província que o diretor Alves Machado fazia uso abusivo das despesas e que o aldeamento era “abroquelado pela poderosa proteção da Assembleia, [..] sendo o Diretor um influente e prestimoso agente de eleições, e à cuja sombra não hesita em preservar seus desmandos”214. No mesmo ano desse

208 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit., p. 79. 209 Idem. Ibidem. 210 Importante destacar a distância entre o aldeamento e a sede da freguesia de Botucatu. Com poucos núcleos de povoação na região oeste da província, as cidades existentes possuíam grandes extensões territoriais. O aldeamento (onde atualmente localiza­se a cidade de Pirajú, próximo ao Vale do Paranapanema) distava cerca de 140 km da Câmara Municipal de Botucatu (na atual cidade de Botucatu). 211 RPPSP. Discurso com que o Illustrissimo e excellentissimo senhor dr. José Antonio Saraiva, presidente da província de S. Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia 15 de fevereiro de 1855, p. 50. 212 Idem. 213 APESP ­ 5028 – Instrução Pública – Botucatu Ofícios – ofício para o Inspetor Geral de Instrução Pública da Província, 16 abr. 1855. 214 APESP – Diretoria Geral dos Índios – CO5521 – Ofício do Diretor Geral dos Índios, Joaquim Machado de Oliveira ao presidente da província, 21 set. 1861; e 9 dez. 1861. 63 ofício a verba do aldeamento foi cortada pela presidência da província215. Não sabemos se confere a acusação de Machado de Oliveira sobre a improbidade do diretor do aldeamento, ou se foi uma justificativa para redirecionar o orçamento da catequese em outros empreendimentos, como a abertura de estradas. Nesse embate, os indígenas inicialmente fixados em Pirajú, se deslocam para outra região, onde passaram a formar “rancharia no Salto Grande do Paranapanema”.216 Tomando por base que a distribuição de poder de um sistema político se mede pelas contas do governo217, podemos inferir que as verbas direcionadas – ou nesse caso, cortada ­ para a criação e manutenção dos aldeamentos indígenas refletem a importância e utilidade destes núcleos nos projetos imperiais. Conforme pontuou Rosângela Ferreira Leite, a criação de aldeamentos indígenas em regiões interioranas tinha um duplo caráter. Em um primeiro momento servia como proteção e auxílio à incipiente população branca que se pretendia formar. Consolidada esta povoação com o aumento de fazendas e colonos, os indígenas tinham suas terras pressionadas e buscavam assim regiões mais interioranas218.Veremos que diferentes políticas de modernização estatal atuaram em conjunto no objetivo de liberar terras indígenas com o intuito de incorporá­las dentro do circuito de produção capitalista. A política de aldeamentos, na região analisada, foi cada vez mais preterida em relação a outros dispositivos de penetração nos territórios indígenas. Consideramos que o uso da mão de obra indígena ocorreu simultaneamente com a utilização da mão de obra africana durante o século XIX, guardada as devidas proporções219. Com a promulgação da Lei Eusébio de Queirós (1850), que decretou o fim do comércio transatlântico de escravos africanos, e o receio de senhores de terras e de escravos pela falta de braços para a lavoura, o direcionamento para a utilização de braços indígenas tomou nova força. Reflexo disso é a obra O Selvagem, em 1876, produzida pelo general José Vieira Couto de Magalhães a pedido do imperador220. Segundo Magalhães, domesticar os indígenas seria a única

215 DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império. Op. cit., p. 121. 216 APESP – Diretoria Geral dos Índios – CO5521 – Ofício do Diretor Geral dos Índios, Joaquim Machado de Oliveira ao presidente da província, 9 dez. 1861. 217 CARVALHO, José M. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 263. 218 LEITE, Rosângela Ferreira. Nos limites da exclusão: ocupação territorial, organização econômica e populações livres pobres (Guarapuava, 1808­1878). São Paulo: Alameda Casa, 2010, p. 101. 219 MACHADO, André Roberto de Arruda. “O trabalho indígena no Brasil durante a primeira metade do século XIX: um labirinto para os historiadores”, p. 5. Texto inédito gentilmente cedido pelo autor para elaboração do presente texto. O autor ressalta que o uso da mão de obra indígena no século XIX variava a depender da região, mas não era uma prática restrita às periferias do Império. 220 Cf.: AMOROSO, Marta. Crânios e Cachaça: coleções ameríndias e exposições no século XIX. Revista de História, 154, (1º ­ 2006), 119­150, p. 121­3. 64 forma de usufruir de seus territórios e ainda conseguir “um milhão de braços aclimatados”221, indicando assim a relevância da mão de obra indígena para os projetos imperiais. Uma década antes outro membro do corpo político tecia suas considerações sobre a utilização dos territórios e dos braços indígenas. Perdigão Malheiro publicou em 1867 a obra A Escravidão no Brasil, analisando o desenvolvimento da política indigenista empregada até então222. Em São Paulo, veremos que a escassez de mão de obra era reiterada tanto por particulares quanto por funcionários do Império. A seguir veremos como a província de São Paulo acomodava as políticas decorrentes dessa conjuntura de expansão da economia capitalista em um cenário ainda bastante permeado por paisagens, hábitos e costumes do período colonial, com principal destaque para ausência e deficiência de rotas fluviais e terrestres.

3. A província de São Paulo entre o moderno e o tradicional

Uma das principais questões motivadoras desta pesquisa foi sobre as transformações da província paulista no decorrer do século XIX e seu impacto na vida das populações indígenas que ali viviam. Parte considerável da historiografia tradicional sobre a história de São Paulo costuma colocar o século XIX como o período de modernização e progresso, sendo a cultura cafeeira e a ferrovia seus principais vetores223. Porém, a passagem de uma região com parcos caminhos terrestres e baixa densidade demográfica não­indígena para a posição de maior região produtora de café mundial, foi repleta de avanços e recuos. Essa irregularidade no avanço da fronteira econômica pode ser melhor analisada quando diferenciamos as distintas regiões da província e atual estado de São Paulo. No período analisado desta pesquisa, 1858­1879, a região do Vale do Paraíba (leste geográfico) encontrava­se exaurida, tendo atingindo seu ápice na produção de café em 1850224. Dali em diante, a produção agrícola desse item seguirá pelo norte

221 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem: Trabalho preparatório para aproveitamento do selvagem e do solo por ele ocupado no Brasil, 1876. Apud: DORNELLES, Soraia. Op. cit. p. 169. 222 Idem, p. 167. 223 Sem dúvida a cultura cafeeira paulista ao longo do século XIX proporcionou um considerável crescimento econômico regional e nacional. Porém, acreditamos que esse avanço sofreu sérios recuos, especialmente em nossa região de análise e por conta da presença dos povos indígenas. Sobre a historiografia tradicional que analisa a produção do café na história de São Paulo, ver: MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984; SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Editora Alfa­Ômega, 7ª ed., 1986; SOBRINHO, Alves Motta. A civilização do café. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978; WAIBEL, Léo H. “As Zonas Pioneiras do Brasil”. Tradução: Walter Alberto Egler. Revista Brasileira de Geografia. Ano XVII, nº 4, out.­dez. 1955, p. 389­422; e MATOS, Odilon Nogueira de. Café e ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: Alfa­Omega, 1974. 224 MARQUESE, Rafael de Bivar. Op. cit. 65 geográfico da província, nas proximidades da “Estrada dos fazendeiros”, caminho que ligava Campinas à Limeira e onde se concentravam as principais fazendas cafeicultoras paulistas da segunda metade do XIX225. Esta região, por ter sido o local onde a produção cafeeira prosseguiu e aumentou sua intensidade devido à implementação de novas tecnologias, inserindo tal produção cada vez mais na dinâmica da economia­mundo226, foi denominada de “Oeste paulista” por se encontrar à oeste da região do Vale do Paraíba. Então, o norte geográfico da província de São Paulo, que marcou São Paulo como grande produtor mundial de café, foi comumente chamado de “Oeste paulista”. Já no Oeste paulista geográfico – nossa região de análise, adentrada a segunda metade do século XIX, o ponto mais avançado da sociedade imperial era a vila municipal de Botucatu, servindo como ponto de apoio para incursões com destino à província do Mato Grosso. Ou seja, neste período essa imensa região entre os Rios Tietê, Paraná e Paranapanema – o Oeste paulista geográfico, tanto as relações de produção capitalista não avançaram em comparação com outras partes da província, como a própria consolidação do território nacional foi durante muito tempo questionada. Pelo menos até meados da década de 1880, parte considerável dessa imensa área encontrava­se sobre territorialidade de diferentes povos indígenas, principalmente os Kaingang. A chamada “pacificação” desse grupo étnico ocorrerá oficialmente apenas em 1912, com a criação do SPI, não cessando, porém, os conflitos com segmentos desse mesmo grupo e nem a ação de “bugreiros” a mando da Companhia da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil227. Ao demonstrarmos a dinâmica dessa presença indígena em meio a um contexto de expansão do capitalismo pelo mundo, pretendemos questionar a ideia de uma fronteira agrícola conformando um território de modo inevitável e sem conflitos na região.

225 APESP – CO5158 ­ Estradas, pastas 1 e 2; CO5159 ­ Estradas, pastas 1, 2 e 4; e CO7808 – Estradas. 226 MENDES, Felipe Landim R. Ibicaba revisitada outra vez: espaço, escravidão e trabalho livre no oeste paulista. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.25. n.1. p. 301­357. jan.­abr., 2017 227 GHIRARDELLO, Nilson. Op. cit.; PINHEIRO, Niminon Suzel. Op. cit. 66

Mapa 2. As diferentes regiões da província paulista

Fonte: Mapa elaborado pelo autor tendo como base o Mapa Hipsométrico do Estado de São Paulo, disponível no endereço eletrônico do Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em 14 abr. 2021.

A distinção espacial da província paulista durante o século XIX pode nos servir para melhor identificar as transformações ocorridas durante o período e suas diferentes intensidades e temporalidades em cada uma dessas regiões. O discurso criado durante o Império de um progresso alavancado pelo café e pelas ferrovias, tendo São Paulo como palco dessa modernização, acaba por ocultar uma conjuntura de expropriação das territorialidades indígenas, insuficiência de rotas terrestres comerciais e estratégicas, práticas de trabalho compulsório e ainda bastante ligadas ao modelo escravista e a reatualização das bandeiras coloniais em determinadas regiões da província. Desse modo, esta parte do trabalho pretende compreender os descompassos dessa ‘modernização’ entre as diferentes regiões paulistas, centrando o foco de análise no Oeste paulista geográfico. O início de nossa pesquisa no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no segundo semestre de 2019, teve como ponto de partida a documentação referente à Inspetoria das Estradas de Ferro, no intuito de encontrar indícios da participação indígena nesse processo. Não obtivemos êxito nesse objetivo, porém, a análise desse fundo documental nos mostrou um nítido interesse econômico na construção das primeiras ferrovias paulistas e uma espacialidade bem 67 definida. Essa documentação compreende o período de 1865­1890, momento de grande investimento de capitais ingleses e de grandes latifundiários no desenvolvimento desse modelo de transportes, buscando primordialmente as grandes fazendas produtoras de café228. Como mencionado anteriormente, a primeira grande produção cafeeira na província paulista se deu no Vale do Paraíba, com a continuação dessa cultura advinda da província do Rio de Janeiro. É nessa espacialidade que será implantada a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II, inaugurando um padrão da construção ferroviária no Sudeste brasileiro, e principalmente em São Paulo: “a busca pelo café”229. Como a produção cafeeira nessa região já se encontrava em decadência, a Companhia Pedro II não teve tanta relevância quantos suas sucessoras na província paulista, que passaram a buscar as novas regiões produtoras. Provavelmente por ter sido um projeto encabeçado pela Corte imperial, não encontramos documentação dessa Companhia no Arquivo Público do Estado de São Paulo. A primeira linha férrea genuinamente paulista – pelo menos territorialmente, pois o investimento de capital foi predominantemente inglês ­ foi a The São Paulo Railway Company Ltd., também conhecida como Santos­Jundiaí, cidades onde se localizavam os terminais da linha férrea. Numa conjuntura global de expansão da economia capitalista capitaneada pela Inglaterra, a construção dessa linha (1860­67) definitivamente marcou o início do desenvolvimento férreo em São Paulo. A contratação de engenheiros ingleses na execução do projeto, tendo destaque a figura de Daniel Makinson Fox, aprovando a planta da estrada férrea em Londres230, poderia remeter a ideia de progresso dominando a província. Porém, diferentemente do que os contemporâneos mais entusiastas dessa modernização poderiam projetar, tal desenvolvimento não seguiu um caminho linear. Assim como a planta da linha férrea, demais itens do projeto eram definidos em Londres, restando ao presidente da província somente a aprovação de tais decisões231. Desse modo, em junho de 1865, o superintendente da linha, J.J. Anhertri, alertava a presidência sobre as condições “insatisfatórias do aterro do Cubatão”, apresentando o perigo de ceder os trilhos. O aviso continuava informando que haveria altos custos caso a estrada não fosse conservada e continuasse a ser “invadida por carros e tropeiros”232. A abertura de estradas para a implantação da ferrovia foi utilizada por tropeiros

228 GHIRARDELLO, Nilson. Op. cit. 229 Essa linha ferroviária também expandiu seus ramais para a região de Minas Gerais. GHIRARDELLO, Nilson. Op. cit. 230 APESP ­ CO5604 – Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79, doc. 43, 21/06/1865. 231 Idem. Ibidem. Entre os itens decididos em Londres, destaca­se as características dos materiais empregados na construção da linha férrea (bitola do trilho, extensão da linha, valor gasto como cada etapa etc.) 232 APESP ­ CO5604 – Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79, doc. 33, 20/06/1865. 68 como rota de transporte, sendo um obstáculo para o desenvolvimento da linha férrea. Ou seja, diante da conjuntura global de criação de meios de transporte mais eficazes para a circulação de mercadorias, a província paulista apresentava particularidades que revelam uma modernização com ritmos próprios. Não se trata de uma modernidade tardia, mas sim de como esse discurso modernizante circulava e se aplicava com intensidades distintas, é claro, por todo mundo233. O ano em que a documentação da Estrada de Ferro Santos­Jundiaí inicia, 1865, é exatamente quando o recrutamento para a Guerra do Paraguai (1864­1870) se agrava. As dificuldades em recrutar homens para conflitos bélicos sempre foi um ponto de tensão entre a população em geral e as autoridades234. Nem mesmo os trabalhadores da linha férrea ficavam isentos do assédio dos “recrutadores”235. Em fevereiro de 1865, o inspetor da linha enviou um ofício ao presidente da província pedindo que “tome providências sobre recrutadores que assediam os trabalhadores da Railway”236. Poucos meses depois um novo pedido era enviado à presidência provincial solicitando a liberdade de um “trabalhador” da linha férrea “que foi preso como recruta”237. Considerando que em períodos de acirramento dos conflitos o recrutamento também se intensificava, os segmentos à margem da sociedade imperial é que acabavam por sentir essa violência do Estado de maneira mais impactante238. Nesse sentido, alguns documentos da construção da ferrovia nos dão indícios do trabalho empregado. Em um dos relatórios enviados ao presidente de província, há o registro das despesas feitas com os trabalhadores. Chama a atenção a distinção entre as categorias de “capatazes” e “trabalhadores”, que parecem exercer as mesmas funções (colocação e corte dos trilhos, e reparo da área) com remunerações distintas – os trabalhadores recebendo menos do que os capatazes239. A incerteza sobre a origem e função dessas duas categorias pode ser

233 WEINSTEIN, Bárbara. “Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e seu viés transnacional”. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 14, p. 9­36, jan.­jun. 2013, p. 18. 234 Ao analisar a documentação referente às localidades do interior da província paulista na primeira metade do século XIX, Fernanda Sposito narra o caso de livres e pobres que se refugiavam no mato ao saberem da presença de recrutadores. Cf.: SPOSITO, Fernanda. Nem cidadão, nem brasileiros. Op. cit. p. 199. 235 “Fazia­se geralmente assim: fixadas as necessidades dos quadros, os agentes recrutadores saíam à cata de vítimas; não havia hora ou lugar que lhes fosse defeso e entravam pelas casas a dentro, forçando portas e janelas, até pelas escolas e aulas para arrancar delas os estudantes”. In: PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 330. 236 APESP ­ CO5604 – Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79 – pasta 1, doc. s/n, 1 fev. 1865. 237 Idem. Ibidem., mai. 1865. 238 MARTINS, Cesar Eugênio Macedo de Almeida. A Guerra do Paraguai e as modalidades de mobilização militar In: Anais Eletrônicos / I Seminário Dimensões Políticas na História: Estado, Nação, Império. BARBOSA, Silvana M.; BATATA, Alexandre Mansur; CANO, Jefferson (orgs.). Juiz de Fora: Clio Edições, 2007, p. 103­ 116. 239 APESP ­ CO5604 – Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79 – pasta 1, doc. 108. O relatório traz as despesas dos primeiros quatro meses do ano de 1865. 69 cotejada com os relatórios de despesas de passagens da linha férrea. Durante as duas primeiras décadas de construção e funcionamento, os grupos mencionados como passageiros da estrada de ferro são principalmente oficiais, praças e “presos pobres”, com maior destaque para estes dois últimos segmentos240. O fluxo de praças vindo de Santos com destino à capital e ao interior paulista era constante, seja transportando presos ou não. Havia também um considerável movimento de presos nesse mesmo sentido, Santos­São Paulo, sendo esse grupo remetido para Jundiaí e Campinas. Não conseguimos confirmar a presença de prisões nessas localidades recebendo os presos. É sobretudo no início década de 1870 que essa afluência de presos para Campinas aumenta, no mesmo período em que a linha Santos­Jundiaí começa a ser estendida até Campinas pela Companhia Paulista241. A constante remessa de detidos para as regiões de construção das ferrovias na província paulista pode indicar a utilização dessa mão de obra nesses empreendimentos, em que se fazia presente a figura dos “capatazes”. Esse fluxo de praças e presos como passageiros da estrada de ferro continua pela década de 1880, porém com uma intensidade menor, em contraste com vinda de imigrantes, que passa a apresentar maior relevância como passageiros em direção ao interior paulista. Além do assédio dos recrutadores e da presença de capatazes ­ provavelmente vigiando a movimentação dos trabalhadores ­, os ferimentos e mortes por acidentes relacionados à construção da linha férrea não eram irrelevantes. Na tabela demonstrando o número de feridos e mortos para o ano de 1865, assinada por Joaquim Alberto de Mendonça, ajudante do engenheiro fiscal, é indicada a quantia de 128 ferimentos e 9 óbitos242. No ano de 1869, com a ferrovia em funcionamento, o juiz municipal José Joaquim de Moraes Navarro enviou um telegrama consultando o presidente da província sobre “o decreto de 1865, que trata sobre a venda de escravos por propostas”243. Não encontramos nenhuma documentação comprovando a utilização de mão de obra escrava na construção da linha. Porém, o ofício de Navarro deixa entrever a persistência das autoridades na manutenção dessa modalidade de trabalho. Mesmo não aprofundando a análise sobre o universo do trabalho na Estrada de Ferro Santos­Jundiaí, é possível observar que as condições do emprego de mão de obra nesse setor estavam bastante

240 APESP – CO5604 ­ Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79; e CO5597 ­ Inspetoria das Estradas de Ferro. 241 Em ofício ao presidente da província do dia 23 de março de 1870, o presidente da Companhia Paulista, Clemente [?] Falcão de Souza Filho, informava que no dia 15 daquele mês foram “encetados” os trabalhos de ligação de Jundiaí à Campinas. In: APESP – 5612 – Companhia Paulista da Estrada de Ferro de Jundiahy a Campinas – doc. s/n, 23 mar. 1870. 242 APESP ­ CO5604 – Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79 – pasta 1, doc. 117 – Anexo 2 do Relatório de 28 nov. 1865. Os acidentes e mortes foram calculados para o período de janeiro à outubro de 1865. 243 APESP ­ CO5597 ­ Inspetoria das Estradas de Ferro – 4 ago. 1869. 70 distantes da noção de progresso movida pelas elites políticas e econômicas do período. O discurso linear que marca o fim do trabalho escravo e a consolidação do trabalho livre na construção de ferrovias pode, assim, ser seriamente questionado. Não negando a expansão de relações de trabalho capitalistas no modal ferroviário, mas questionando a suposta oposição entre expansão do capitalismo e escravidão, e assim, mostrar os diferentes níveis de trabalho entre esses dois marcadores244. Terminada a construção dessa linha férrea, fortemente sustentada por capitais ingleses e que direcionou a exportação do café paulista para o porto de Santos, a década seguinte ficou marcada com o surgimento de diversas companhias férreas sustentadas cada vez mais pelo investimento de grandes latifundiários, buscando a extensão dos ramais férreos até suas fazendas cafeicultoras245. Entretanto, a expansão do modal ferroviário na província paulista ficará bastante restrita a atividade cafeeira. Até o final da década de 1870, os trilhos paulistas se estendiam ao norte até o município de Mogi­Mirim, com a Companhia Mogiana; e a Oeste até Sorocaba, com a Companhia Sorocabana246. Portanto, na região analisada como em outras partes da província, durante quase todo o período imperial, os caminhos terrestres e fluviais foram os mais utilizados. É justamente em meados da década de 1870 que surgem as primeiras discussões sobre projetos de ferrovias buscando comunicação com a província do Mato Grosso247, mas ainda bem distantes do trajeto final que essa linha terá somente no início do século XX248. No que se refere ao transporte fluvial, este foi o meio mais utilizado na América portuguesa durante o período colonial e se manteve como um importante dispositivo de comunicação e circulação no século XIX brasileiro249. No caso da região analisada, o Rio Tietê foi a principal alternativa para os agentes colonizadores na incursão sobre áreas interioranas, principalmente com as descobertas de ouro em Cuiabá no início do século XVIII. Porém, o

244 CRAVO, Télio. Op. cit. Especialmente o capítulo 1. 245 GHIRARDELLO, Nilson. Op. cit. p. 17­19. 246 AZEVEDO, Fernando de. Um trem corre para o Oeste. [S.l: s.n.], 1950. 247 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 6384, p. 2. Seção particular ­ Memória sobre a utilidade e vantagens de uma via férrea de S. João do Rio Claro as margens do Jacaré­Pepira Guassú, passando entre Brotas e S. Carlos do Pinhal, 17 fev. 1878. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_03&Pesq=Avanhandava&pagfis=9140> Acesso em: 27 mai. 2021. 248 GHIRARDELLO, Nilson. Op. cit. 249 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. p. 253­5; e QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. Articulações econômicas de comunicação do antigo sul de Mato Grosso (séculos XIX e XX). In: Lamoso, L. P. (org.). Transportes e Políticas Públicas em Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora da UFGD, v. 1, 2008. 71 fraco fluxo comercial desse item e a presença das populações indígenas Kayapó e Kadiwéu no percurso das monções acabou por enfraquecer a trânsito dessa rota fluvial250. No relatório de 1858 elaborado pelo primeiro tenente da Armada, Antônio Mariano de Azevedo, este atribui a queda na navegação do Tietê na primeira metade do XIX devido a questões diplomáticas envolvendo disputas territoriais entre Portugal e Espanha, como “o tratado de paz de Badajoz, em 1801”. Em seguida, Azevedo elenca outros acontecimentos que contribuíram para a diminuição daquele tráfego fluvial: “o longo período da primeira época napoleônica, das restaurações dinásticas que lhe sucederam, e das posteriores reformas constitucionais de Portugal”; a descoberta pelos cuiabanos da navegação do Rio Arinos, estabelecendo “relações comerciais com Santarém, no Pará”; “as trabalhosas dificuldades das cachoeiras e saltos do Tietê”; “as ideias de liberdade e independência inoculadas pela constituição, [que] tornarão sumamente difícil a aquisição de trabalhadores para as canoas do já definhado comércio”; e “uma devastadora epidemia de febre tifoide [que] apareceu no Tietê [em 1838], e exterminou quase todos os indivíduos que compunham duas monções que então percorriam o rio”251. Portanto, concordamos que nas tentativas de avanço do Estado imperial sobre o Oeste paulista durante o século XIX predominaram interesses estratégicos – consolidação do território nacional, diminuir a influência paraguaia na região do Mato Grosso e combater as populações indígenas da região252. Porém, isso não é o mesmo que negar a existência de interesses econômicos no período e espaço analisados. Visto que consolidação do Estado nação, tendo o território nacional como um dos principais fatores de coesão, é que vai permitir a expansão das relações de produção capitalistas por diferentes regiões do mundo, não se pode afirmar a inexistência de objetivos econômicos nesse processo253. Nesse sentido, a caracterização do fenômeno da fronteira de expansão em nossa região se torna interessante. Ainda sobre as tentativas do Estado em modernizar os caminhos fluviais pela província paulista, a designação da viagem feita por Antônio Mariano de Azevedo e a instalação das colônias militares de Avanhandava e Itapura nas margens do Rio Tietê, ambas no ano de 1858, indicam o retorno de uma preocupação das autoridades com a região. Mesmo com a recorrência

250 QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Articulações econômicas de comunicação do antigo sul de Mato Grosso (séculos XIX e XX). Op. cit. p. 18­19. O autor aponta que o ouro encontrado na região era de aluvião, se caracterizando por uma presença efêmera, contida basicamente nas margens e leitos dos rios. 251 Relatório do Primeiro Tenente d’Armada Antônio Mariano de Azevedo sobre os exames de que foi incumbido no interior da província de São Paulo. Rio de Janeiro: Typ. De Peixoto, 1858, p. 8­10. 252 QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Op. cit. p. 19; e WISSENBACH, Maria Cristina C. Desbravamento e Catequese na Constituição da Nacionalidade Brasileira: as Expedições do Barão de Antonina no Brasil Meridional – Rev. Bras. de Hist., v. 15, nº 30, São Paulo, pp. 137­155, 1995, p. 142. 253 HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. p. 40. 72 de relatos apontando as dificuldades de navegação pelo Rio254, os relatórios da Colônia Militar do Avanhandava do início da década de 1870 – já findada a Guerra do Paraguai – informam sobre uma relativa estabilidade desse trânsito, principalmente com a remessa de objetos e medicamento vindos de Piracicaba255. No ano de 1873 é fundada a Companhia Fluvial Paulista, com o direito de explorar a navegação fluvial pelo Tietê256. Segundo um comunicado do Correio Paulistano, no mesmo ano de 1873, um de seus fundadores realizou viagem por regiões da Europa averiguando a navegação por lá e retornando com “tecnologias e informações”257. No entanto, enquanto a navegação vinda da capital até Avanhandava parecia se firmar, o trecho mais a Oeste, de Avanhandava até Itapura continuava a apresentar obstáculos diante do projeto colonizador. Eliseu Dantas Bacellar, nomeado diretor da Colônia do Avanhandava em 1876, fez um relato de sua viagem pelo Rio com destino a Avanhandava e iniciada na Colônia do Itapura. Um dos primeiros apontamentos feitos por Bacellar em seu relatório de viagem endereçado ao presidente da província era a de efetivar o caminho terrestre entres as Colônias Militares da província, visto ser muito “penosa” a viagem pelo Rio. Para o novo diretor, todo o caminho entre Piracicaba e Itapura deve ser terrestre, pois o trajeto pelo Rio é “horrível”. Ao descrever a importância econômica e estratégica da região de Avanhandava para a consolidação do Governo imperial, diz que a Colônia Militar do Avanhandava acaba servindo de abrigo para colonos “buscarem garantia de suas vidas tão arriscadas pelos índios que infestam aquela margem [esquerda]”258. No mesmo ano, o ministro e secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Thomaz José Coelho de Almeida, pediu ao presidente da província de São Paulo, Sebastião José Pereira, que formasse uma comissão de exploração pelos Rios Piracicaba, Tietê e Mogi­Guaçu259. Na exploração feita pelo engenheiro Benjamin Franklin, este deixa entrever que mesmo a navegação entre de Piracicaba e Avanhandava não se

254 Por conta da irregularidade do leito do Rio, sua navegação era privilegiada na época das cheias, havendo menos acidentes. FERRARI, Daniel Cadeloro. O PROJETO DA COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA NO ENSAIO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL PAULISTA (1858­1878). Dissertação de Mestrado, UNESP – Bauru, 2020, p. 72. 255 APESP ­ Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO821. 256 DECRETO nº 5.405, de 17 de setembro de 1873. Concede à Companhia Fluvial Paulista autorização para funccionar, e aprova seus estatutos. In: Coleção de Leis do Império do Brasil ­ 1873, Vol. 2 (Publicação Original), p. 729. 257 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 6375, p. 1. Comunicado – A Companhia “Navegação Fluvial Paulista”, 7 fev. 1878. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_03&Pesq=Avanhandava&pagfis=9103>. Acesso em 28 mai. 2021. 258 APESP ­ Ofícios Diversos CM Avanhandava – CO821 – doc. 15, 31 mar. 1877. 259 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 6328, p. 1. Navegação Fluvial, 7 dez. 1877. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_03&Pesq=Avanhandava&pagfis=8911>. Acesso em: 27 mai. 2021. 73 encontrava tão estável como tentaram mostrar as autoridades da região anos antes. Para o engenheiro, seria preciso a quantia de 413:000$000 (quatrocentos e treze contos de réis) para a melhoria da navegação até Avanhandava, “valor baixo se comparado aos melhoramentos que a obra trará”. A pouca exploração da região se daria pelas “dificuldades de transporte”, inclusive a falta de estradas auxiliando as embarcações nos portos. Assim, acaba por pedir mais 32:000$000 para a abertura de uma estrada entre as colônias militares, concorrendo essas obras para “abrasileirar” a província do Mato Grosso260. Na região Sudoeste da província paulista, tendo o Rio Paranapanema como dispositivo de incursão colonizadora, tais explorações fluviais foram encabeçadas por uma figura de relevância da política imperial, o barão de Antonina. Segundo Wissenbach, Antonina conciliou seus interesses de enriquecimento pessoal com os objetivos estratégicos do jovem Estado nacional, principalmente a comunicação com o Mato Grosso, a catequização dos indígenas da região e o desenvolvimento de atividades agropastoris261. Porém, mesmo com seus relatos de viagem exaltando as potencialidades econômicas da região e as dificuldades presentes “nos sertões”, publicados regularmente nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tal comunicação também não se efetivou durante o XIX262. As dificuldades de navegação pelo Rio Paranapanema se assemelhavam bastante com as encontradas no Tietê: navegação irregular, doenças e a presença de grupos indígenas resistindo aos avanços do Estado nacional e da economia capitalista. Enquanto os primeiros quilômetros de modal ferroviário construídos na província paulista seguiam a direção das fazendas produtoras de café, a preocupação do governo provincial com a construção e manutenção das melhores estradas seguiu o mesmo procedimento. Como citado anteriormente, a chamada “Estrada dos Fazendeiros”, ligando os municípios de Campinas e Limeira, foi um trajeto que demandou bastante atenção e investimento das autoridades governamentais e de grandes proprietários. Ao analisar a construção de pontes e estradas na província de Minas Gerais, Télio Cravo, baseado na tese de Miriam Dohlnikoff sobre a capacidade orçamentária provincial de investimentos em obras viárias, afirma que o aperfeiçoamento da “infraestrutura viária significava investimento com garantia de retorno”263. O autor argumenta que o incremento do comércio com a construção de

260 Idem. Ibidem. 261 WISSENBACH, Maria Cristina C. Desbravamento e Catequese na Constituição da Nacionalidade Brasileira. Op. cit., p. 139. 262 Idem, p. 141. 263 CRAVO, Télio A. ESTRUTURA E DINÂMICA DO TRABALHO COMPULSÓRIO E LIVRE NA INFRAESTRUTURA VIÁRIA DO IMPÉRIO DO BRASIL: AFRICANOS LIVRES, ESCRAVIZADOS E LIVRES NA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS (1854­1856), p. 6. 74 estradas pelas províncias, processo esse consolidado com a promulgação do Ato Adicional de 1834 ­ garantindo autonomia provincial na execução de obras públicas, gerava o aumento das receitas públicas264. É inegável que a expansão de caminhos terrestres por regiões em que determinadas atividades econômicas – como o café – se encontram já instaladas, tem por consequência o aumento do fluxo comercial e seu retorno financeiro. Porém, acreditamos que a margem de lucro para os cofres provinciais na construção de estradas dependia se na região almejada predominavam relações capitalistas ou não­capitalistas de produção. No caso da região norte paulista da segunda metade do século XIX, a preocupação das elites provinciais com a Estrada do Fazendeiros, situada na região que mais produzia café no circuito mundial, é bastante razoável considerar que o retorno financeiro advindo com circulação de quantidades expressivas daquela mercadoria era extremamente vantajoso para as rendas provinciais. Nesse caso, de uma região tipicamente caracterizada como frente pioneira, em que a terra é convertida em mercadoria, permitindo assim, a reprodução capitalista do capital265, há o controle dos agentes governamentais e demais atores econômicos envolvidos no processo e a garantia de retorno financeiro. Diferentemente é o cenário em regiões em que predomina a fronteira de expansão, como no Oeste paulista, marcado pela ausência de atividades econômicas relevantes para a reprodução do capital, onde não há formação da propriedade fundiária moderna e predomina relações não­capitalistas de produção e conflitos entre colonos e populações indígenas266. As tentativas de construção de estradas pelos governos provincial e central, além de não garantirem retorno financeiro com esse empreendimento, foram impedidas de se expandirem por décadas. Em nossa hipótese, foi primordialmente a presença Kaingang que impossibilitou a efetivação de estradas na região e período analisados. Numa perspectiva global de meados do século XIX, a implementação de estradas estabelecendo contato com regiões pouco exploradas pelo processo de colonização, foi vista pelos principais agente econômicos do período como um modo de expansão do capitalismo, permitindo a rápida circulação de mercadorias e pessoas267. Mas em nosso caso, como em outras áreas do mundo – principalmente as que passaram pelo processo colonizador na condição de

264 Idem. Ibidem. Sobre o arranjo político­institucional que configurou maior autonomia orçamentária para as províncias, ver: DOHLNIKOFF, Miriam. “Elites regionais e a construção do Estado nacional”. In: JANCSÓ, István (org.) Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 431­468. 265 MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira. p. 30. 266 Idem, p. 47­8. 267 BELLUCCI, Stefano et al. “Labour in transport: histories from the Global South (África, Asia and Latin America), 1750 to 1950”. International Review of Social History, n. 59, p. 1­10, 2014. 75 colônia, o avanço da economia­mundo sofreu sérios recuos. No Oeste paulista, diferentemente da região da Estrada dos Fazendeiros no mesmo período, as estradas tiveram por função afastar os indígenas, e não permitir o escoamento de mercadorias. O projeto de estrada ligando os sertões de Botucatu aos Campos de Avanhandava, criado no ano de 1859 e que ao término do recorte temporal desta pesquisa não se efetivou, sofreu intensos debates na Assembleia Legislativa provincial desde seu início. Um dos deputados interessados nesse empreendimento, Pedro Taques, afirmava que “a estrada tem que partir da vila de Botucatu, atravessar o sertão infestado pelos índios selvagens, e chegar ao Salto do Avanhandava”. Desse modo, indicava que o objetivo era a comunicação, mas também garantir a “segurança contra os ataques indígenas”268. Já na sessão do dia seguinte, um deputado que era contra o projeto, identificado como Sousa, sustentava sua oposição argumentando que a região não era um centro de produção, não valendo “a pena tentar atravessar o sertão infestado de indígenas pois dali saem males para as povoações ao redor”269. Sousa diz que o projeto é bom, mas que há maior necessidade de comunicação com os grandes centros produtores mais próximos da capital, como Campinas, “que sofrem com a má comunicação”270. Assim, tentamos demonstrar um pouco dos descompassos entre os discursos de exaltação de uma modernidade que trazia avanços para a província e a real situação de aplicação desses empreendimentos – estradas, ferrovias, máquinas, barcos a vapor etc. Buscamos também identificar os diferentes níveis de avanço da economia capitalista nas distintas regiões da província paulista, mostrando que a região Oeste ficou marcada como área que predominou a frente de expansão durante quase todo o século XIX. Não houve, portanto, a consolidação de atividades econômicas relevantes devido à presença e atuação das populações indígenas.

3.1 As populações indígenas na província de São Paulo: aproximações entre história e antropologia

Tentar desenvolver qualquer tipo de análise histórica em diálogo com a antropologia é tarefa extremamente difícil no que se refere às populações indígenas, visto a diversidade de

268 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 881, p. 1. Sessão em 24 fev. 1859 – Expediente ­ Estrada de Botucatu ao Avanhandava ­ 2 mar. 1859. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_01&pagfis=6230>. Acesso em: 20 abr. 2021. 269 HD – Correio Paulistano – Ed. nº 881, p. 2. Sessão em 25 fev. 1859 – Expediente ­ Estrada de Botucatu ao Avanhandava ­ 2 mar. 1859. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_01&pagfis=6231>. Acesso em: 20 abr. 2021. 270 Idem. Ibidem. 76 grupos, línguas, culturas e histórias presentes atualmente no território brasileiro271. Porém, propor um estudo no campo historiográfico da História Indígena sem buscar ferramentas de análise na antropologia seria um grave deslize deste trabalho. Assim, tentaremos desenvolver relações entre esses dois campos de estudo – antropologia e história – no que se refere aos povos ameríndios que habitavam e transitavam pela província de São Paulo na segunda metade do século XIX. Uma das premissas apontadas pelo professor John Manuel Monteiro e seguida neste trabalho é a de rever a tendência seguida por antropólogos e historiadores em cristalizar as identidades e culturas indígenas, fixando tais povos em um período histórico determinado272. O movimento de renovação desse campo historiográfico, também chamado de “Nova História Indígena”, ocorreu no início da década de 1990, trazendo implicações para o campo teórico e prático do tema273. Para Monteiro, superar a escassez de fontes sobre os grupos indígenas no contexto brasileiro – em comparação com a América espanhola – e a resistência de historiadores pelo assunto é fundamental para a inclusão dos índios como agentes históricos e socias conscientes das transformações do período274. De fato, a construção da disciplina história durante o século XIX no Império do Brasil buscou definir de modo bastante esquemático o lugar dos povos indígenas. Enquanto à história caberia a análise das sociedades letradas, restava à etnologia os dados fornecidos pela oralidade de povos que “negavam a contemporaneidade”275. Ficavam desde então, isoladas entre si, as disciplinas história e antropologia. Quando analisados por lentes historiográficas, os povos indígenas foram majoritariamente vistos pela ótica da assimilação ou do extermínio, restando a “conversão” à civilização ou “sua condenação a um estado de barbárie”276. A segmentação desses campos do conhecimento, e consequentemente, de seus profissionais, foi sendo superada justamente com a articulação de John Monteiro entre as duas áreas nos anos de 1990. Para o professor, cabia aos historiadores darem maior importância aos eventos do cotidiano, considerarem a importância da cultura para a

271 Um excelente meio de informação sobre as populações indígenas presentes atualmente no Brasil é o site Povos Indígenas no Brasil, parte do portal do Instituto Socioambiental (ISA). “Criado com o propósito de reunir verbetes com informações e análises de todos os povos indígenas que habitam o território nacional, além de textos, tabelas, gráficos, mapas, listas, fotografias e notícias sobre a realidade desses povos e seus territórios [...]”. Disponível em: Acesso em: 20 jun. 2021. 272 MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência, UNICAMP, 2001, p. 24. 273 CARVALHO, Juliana Saez. O indígena na produção historiográfica da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839 – 1860). 2009. 142 f. Dissertação de Mestrado em História –Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2009, p. 11. 274 MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores. Op. cit., p. 2­3. 275 TURIN, Rodrigo. A “obscura história” indígena. O discurso etnográfico no IHGB (1840­70) [p. 86­113] In: Estudos sobre a Escrita da História, 2006. 276 TURIN, Rodrigo. p. 96. 77 compreensão de processos mais amplos; por outro lado, era preciso que os antropólogos não interpretassem as dinâmicas culturais dos povos indígenas como processos congelados no tempo, sem indícios de mudança277. Portanto, estabelecer tal conexão se insere no desejo de colocar as populações indígenas que viveram e vivem no território que hoje conhecemos por Brasil, exatamente no processo de formação dessa sociedade diversa, não como meras vítimas, mas sim como atores históricos conscientes de suas escolhas. Importante salientar que anterior a esse movimento de articulação acadêmica com foco nas populações indígenas presentes no território brasileiro a partir da década de 1990, esses povos se encontravam altamente organizados pelo menos uma década antes. Os debates envolvendo a demarcação das terras indígenas no contexto de elaboração da Constituição de 1988 foi um momento de grande articulação dos povos indígenas de diferentes regiões do Brasil. Essa forte mobilização formou o cenário para o movimento de aproximação entre pesquisadores de diferentes áreas (como história e antropologia) e demais setores da sociedade civil (ONGs) contribuindo nas lutas indígenas pela demarcação de terras278. Enfrentar a documentação do século XIX no tocante aos povos indígenas da província de São Paulo apresentou um duplo desafio: um teórico e outro prático. O primeiro diz respeito à procedência das fontes documentais e sua implicação na tentativa de reconstituir parte da história dos povos originários. Sabemos que essa documentação institucional foi produzida com propósitos específicos, na maioria das vezes para exaltar a máquina administrativa, cabendo a devida crítica interna. Porém, mesmo assim, é o meio mais direto de recompor parte daquele passado, revelando vestígios das relações humanas. Outra questão, de ordem prática na lida com os arquivos, foi encarar a dispersão de indícios da participação indígena em diferentes fundos documentais, geralmente sem nenhuma menção prévia na descrição dos mesmos fundos. O trabalho minucioso de ler páginas e páginas em busca da presença indígena mostrou a dificuldade de se debruçar sobre o tema e ao mesmo tempo, como é possível pesquisar a história indígena paulista na segunda metade do século XIX. De modo a auxiliar essa empreitada pelos documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo, a interpretação de Ana Paula da Silva279 nos parece bastante pertinente. Para a autora, a partir da década de 1980 e com a

277 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. “História indígena e interdisciplinaridade: a contribuição de John Monteiro”. Revista Almanack – live no Instagram da Revista, 6 abr. 2021. 278 AMOROSO, Marta. Terra de Índio: Imagens em aldeamentos do Império. p. 11; AMOROSO, Marta. Desafios ­ Terras indígenas: por que tanta resistência? (39min e 11s). Disponível em: Acesso em: 23 abr. 2021. 279 SILVA, Ana Paula da. O Rio de Janeiro continua índio: território do protagonismo e da diplomacia indígena no século XIX. Tese (Doutorado)–Programa de Pós­Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2016. 78 renovação da História Indígena nos anos de 1990, tanto historiadores passaram a se apropriar de ferramentas de análise da antropologia, como antropólogos iniciaram um movimento em direção aos arquivos documentais. Nessa troca, alguns antropólogos estabeleceram a relação dos arquivos como campo. Aprofundando essa ideia, Silva buscou “estabelecer uma relação entre arquivos e territórios indígenas, e, desse modo compreendê­los, os arquivos, como um campo, um território indígena [...]280. Assim, pretendemos também considerar os indícios dos grupos indígenas na documentação paulista como territórios indígenas fundamentais para compreender “o movimento dos índios na História”281. No que se refere ao período colonial, a presença de indígenas dentro do território que hoje compreende o Estado de São Paulo é inquestionável282. A alternância de leis regulando o uso da mão de obra indígena nos três primeiros séculos de colonização demonstram a importância desses povos para a formação social e econômica da região da província paulista, especificamente, e da América portuguesa, de modo geral283. Já quando observamos o século XIX o número de pesquisas relacionando povos indígenas e a formação do Estado nacional é bem menor, embora nas últimas décadas tenham surgido diversos e instigantes trabalhos284. Seguindo os passos de trabalhos pioneiros que abordaram as populações indígenas no Oeste paulista, são identificados três principais grupos étnicos que habitavam­circulavam pela região em meados do século XIX: Kaingang, Oti­Xavante e Guarani Kaiowa285. Trata­se de grupos étnicos bastante distintos entre si. Além das “divisões” internas presentes de maneira mais intensa em alguns desses povos, havia conflitos acirrados entre eles. E os contatos com a sociedade colonial­imperial foram agravando e ao mesmo tempo desarticulando cada vez mais essas dinâmicas intra e interétnicas286.

280 Idem., p. 20. 281 Idem. Ibidem. 282 MONTEIRO, John M. Negros da terra. Op. cit.; MANO, Marcel. Dos campos de Araraquara. Op. cit. Sobre a presença indígena no processo de formação da cidade de São Paulo, ver: MONTEIRO, John M. Dos Campos de Piratininga ao Morro da Saudade: a presença indígena na história de São Paulo. In: PORTA, Paula (org.). História da Cidade de São Paulo, 2004. 283 MONTEIRO, John M. Negros da terra; PERRONE­MOISÉS, Beatriz. Índios Livres e Índios Escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII) In: CUNHA, Manuela C. da. História dos Índios no Brasil, 1992. 284 Embora seja uma área de estudo ainda pouco desenvolvida se comparada com temas historiográficos mais tradicionais, elencar os principais trabalhos sobre a temática indígena no contexto de formação do Estado nacional brasileiro tornaria esta nota bastante extensa. Para conferir um panorama sobre a historiografia indígena brasileira e sua relação com a historiografia estadunidense, ver: DORNELLES, Soraia Sales; MELO, Karina Moreira R. da Silva e. Sobrevoando histórias: sobre índios e historiadores no Brasil e nos Estados Unidos. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p. 173­208, jul. 2015. E sobre a questão do trabalho indígena na historiografia brasileira, conferir: MACHADO, André R. de Arruda. “O trabalho indígena no Brasil durante a primeira metade do século XIX: um labirinto para os historiadores”. Texto inédito gentilmente cedido pelo autor. 285 LIMA, João Francisco Tidei. A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru. Op. cit. e PINHEIRO, Niminon Suzel. Nômades: Op. cit. 286 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Especialmente capítulo 7. 79

Em um estudo antropológico que buscou analisar o desenvolvimento da região dos Campos de Araraquara – a grosso modo, separada da nossa região pelo Rio Tietê – e a importância das populações indígenas nesse processo, Marcel Mano se debruçou sobre documentos textuais e em estudos arqueológicos287. Ao tecer um panorama sobre “o povoamento proto­histórico” da região, o autor, baseado em pesquisas de sítios arqueológicos, aponta que o povoamento humano no atual interior paulista foi promovido pela migração de grupos de tradições líticas meridionais e centrais288. De modo geral, essas tradições apresentam artefatos e costumes distintos, principalmente no que se refere à preferência climática e vegetativa, com os grupos meridionais mais afeitos a climas úmidos das florestas do sul, e os grupos centrais mais habituados com climas secos e sazonais do cerrado289. Assim, a localização geográfica da região paulista, como área de transição entre o clima mais ameno do Sul e o clima mais seco da região central, caracteriza o interior paulista como “área de diferentes ingerências culturais” no período pré­colonial290. Esse quadro sobre a presença de povos de tradições culturais distintas circulando por nossa região de análise no período anterior a invasão europeia na América, ilustra parte da mobilidade territorial dos povos indígenas pelo continente. Esses fluxos migratórios podiam variar desde questões ecológicas do ambiente e as variações sazonais de fauna e flora, até processos religiosos e de segmentação interna do grupo. Com o início da colonização nas Américas, tais expedições poderiam ocorrer também buscando áreas de floresta mais densa, evitando, assim, o contato com as frentes de expansão. E principalmente ao longo do século XIX, terão grande destaque as expedições indígenas com fins políticos visando negociar a manutenção territorial do grupo diante de figuras políticas do Estado imperial. Desse modo, é importante ressaltar que na conjuntura do século XIX de esquadrinhamento geográfico dos novos territórios nacionais, as tentativas de estabelecimento de fronteiras administrativas terão como um de seus obstáculos as mobilidades dos grupos indígenas. Nos próximos itens tentaremos abordar alguns aspectos históricos de cada um dos principais grupos étnicos presentes na província paulista e sua relação com as investidas do Estado imperial na região. Portanto, o foco da análise são os deslocamentos indígenas interprovinciais e os conflitos envolvendo estes grupos e os agentes da sociedade imperial. Por

287 MANO, Marcel. Dos Campos de Araraquara. Op. cit. 288 Idem. Ibidem., p. 179­84. O autor destaca ainda que tal tese é de caráter provisório e “só poderá ser inteiramente afirmada ou refutada quando estudos arqueológicos na região [...] se avolumarem para colocar em evidência um sistema regional de ocupações pré­coloniais”. 289 MANO, Marcel. Dos Campos de Araraquara. Op. cit. p. 184. 290 Idem. Ibidem., p. 231. 80 fim, será dada maior ênfase na análise da população Kaingang, visto ter sido a sociedade mais afetada pelo avanço da economia capitalista no Oeste paulista. Esse movimento expansionista se deu com expedições armadas e na forma de latifúndios, sob a proteção e conivência do Estado nacional brasileiro. E a despeito desses reveses, os Kaingang se encontram atualmente no Oeste paulista, nas Terras Indígenas de Vanuíre e Icatu.

3.1.1 Kaingang

Inicialmente deve­se destacar que a sociedade hoje conhecida como Kaingang pertence ao tronco linguístico Macro­Jê, sendo da família linguística Jê. Mais especificamente, fazem parte do ramo constitutivo dos Jê Meridionais, composto além dos Kaingang, também pelos Xokleng e os Ingain (estes pertencentes ao território que hoje compreende a Argentina e atualmente desaparecidos)291. No presente os Kaingang estão distribuídos pelos três estados da região Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) além do Estado de São Paulo, totalizando quase cinquenta mil indivíduos292. Uma característica marcante dos povos Jê é a recorrência de metades formadas por pares assimétricos e complementares. No caso dos Kaingang, essa organização social é constituída a partir das metades exogâmicas Kamé e Kanhru que se opõem e se complementam. Esse princípio totalizador do mundo é personificado no mito de origem dos Kaingang e nos ajuda a compreender a formação de suas “metades clânicas”293. Embora a relação entre as metades Kaingang ­ Kamé e Kanhru, sejam bastante expressivas na organização desse grupo, tal “relação não transparece nas ações cotidianas, mas apenas na cerimônia do Kiki e nos enterramentos”, como veremos adiante294. Os estudos etnográficos e históricos sobre a população Kaingang não afirmam com precisão sobre a origem do grupo. Para Marcel Mano, se apoiando no trabalho do arqueólogo André Prous, a dispersão dos Jê Meridionais teria se dado partir da atual cidade de Lajes, em Santa Catarina e também da região do norte gaúcho295. Para Niminon Suzel Pinheiro, seguindo as investigações levantadas por John Monteiro, os Kaingang seriam descendentes dos Guaianá, grupo étnico presente na capitania paulista durante o período colonial296. Ao realizar uma

291 VEIGA, J. Contribuição da etnografia dos Jê Meridionais à Arqueologia. R. Museu Arq. Etn, 27: 21­29, 2016, p. 21. 292 KAINGANG. Povos Indígenas no Brasil, 2021. Disponível em: Disponível em: 20 jun. 2021. 293 VEIGA, J. Op. cit. p. 21. 294 VEIGA, J. METADES CLÂNICAS. In: Portal Kaingang. Disponível em: . Acesso em 01 jul. 2021. 295 MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 191­2. 296 PINHEIRO, Niminon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto. Op. cit., p. 57­9. 81 comparação de fontes do período colonial tratando sobre os Guaianá com descrições do século XIX a respeito dos Kaingang, a autora destaca o caráter recalcitrante de ambos os povos297. Uma das marcas distintivas dos Kaingang ao longo do século XIX era o caráter belicoso do grupo298. Com o avanço da frente de expansão paulista sobre suas territorialidades acabaram se refugiando nas matas “quase impenetráveis”, mesmo tendo preferência pelos campos299. Importante apontar que a nomenclatura Kaingang passou a ser adotada somente no final do século XIX a partir da produção etnográfica de Telêmaco Borba. Este ficou reconhecido pela observação direta no convívio com os Kaingang, pelo domínio da língua e uma atuação por quase vinte anos nas colônias e aldeamentos indígenas da província do Paraná300. Anterior a utilização cunhada por Borba, uma das nomenclaturas mais recorrentes para se referir aos Kaingang era a de “Coroados”301. Desse modo, em 1875, o diretor da colônia militar do Avanhandava, João Pereira Lima Júnior, informava ao diretor geral dos índios que existiam nas vizinhanças da colônia “três tribos de índios, Chavantes, Coroados e Guarany”302. Três anos antes, o diretor da colônia militar do Itapura303 remetia um ofício ao presidente da província paulista informando que enviou um grupo de cinquenta “índios Guaranys” para a capital. O remetente preveniu o presidente “de que o fato que ultimamente anunciaram os jornais sobre correrias de índios em Avanhandava, deu­se com Chavantes e Coroados, índios estes que vivem entre os rios Tietê e Paranapanema304”. Mesmo que os estudos etnográficos buscando compreender as particularidades de cada grupo étnico fossem bastante incipientes à época, os produtores dos relatos acima faziam distinção entre os grupos indígenas que circulavam pela província de São Paulo. Geralmente, os relatos acabavam por atribuir determinados comportamentos a grupos étnicos específicos. No caso dos “Coroados” paulistas, a representação era quase sempre de povos arredios e combatentes, configurando o principal obstáculo para o avanço do Estado nacional e da produção cafeeira.

297 Idem. Ibidem. p. 60. 298 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit. p. 150. 299 PINHEIRO, Ninimon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto. Op. cit., p. 53. 300 Idem. Ibidem. p. 130. 301 “Os Kaingang foram muitas vezes denominados pelos moradores de ‘coroados’ devido ao seu corte de cabelo de forma a lembrar uma coroa”. In: PINHEIRO, Niminon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto. Op. cit. p. 53. 302 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Encaminha ofício do diretor da colônia militar de Avanhandava, relativo a ocorrências praticadas por índios, e solicita o reembolso da quantia de quinhentos mil réis.”, 16 abr. 1875. 303 Não conseguimos identificar a nome completo do diretor do estabelecimento naquele período. Somente identificamos o primeiro nome como Francisco. Cf.: RD – APESP – Ofícios Diversos – “Remete ofícios do diretor geral dos índios, informando a respeito do crédito disponível para as despesas com a catequese e a civilização dos índios, sobre o crédito disponível para o pagamento dos funcionários da Diretoria Geral dos Índios e dos aldeamentos da província.”, 31 dez. 1872. 304 Idem. Ibidem. 82

Uma das propostas dessa seção é compreender como as populações indígenas acompanharam as transformações do período, e como suas leituras políticas daquela conjuntura implicaram em reestruturações de suas estratégias de luta e sobrevivência. A imagem construída pela sociedade imperial em torno dos “Coroados” e “Botocudos”305 foi sendo cada vez mais de grupos étnicos violentos e sem chance de serem “convertidos” à civilização. Não negando o caráter belicoso dos Kaingang ­ e que talvez tenha sido essa característica que impediu por mais de meio século a formação das frentes pioneiras em suas territorialidades ­, outros aspectos culturais podem ser ressaltados desse grupo. Segundo Amoroso, a distribuição dos diferentes grupos Kaingang pela província paulista e por toda a região Sul do Império, além da província de Missiones na Argentina306, não se tratava de uma divisão territorial, mas sim de um princípio que regia toda a vida social e religiosa dessa etnia307. Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que iniciou sua carreira entre os Guarani e os Kaingang aldeados na região do Tibagi, foi quem pela primeira vez aprofundou­ se sobre a organização social dos Kaingang a parir das descrições de Telêmaco Borba308. Para o etnólogo, o caráter divisor dos “Kaingang já estavam presentes nos registros coloniais do início do século XIX sobre o aldeamento de Atalaia, no contexto posterior à Guerra da Coroa contra os Coroados em Guarapuava”309. O mito de origem dos Kaingang centrado nas figuras ancestrais dos irmãos Kamé e Kanhru é que rege o princípio totalizador e divisor desse grupo, estabelecendo determinada hierarquia entre as metades e suas subdivisões. Porém, como ressalta Veiga, é preciso cuidado em não aplicar lentes ocidentais na interpretação dessa hierarquização310. Considerando a articulação Kaingang através do reconhecimento do sistema de metades, tentaremos analisar como o ritual funerário do kiki­koi311 expressava o amplo alcance das redes de relações que os Kaingang das diferentes províncias estabeleciam entre si. O culto aos mortos

305 Marco Morel cita que além dos grupos do tronco linguístico Macro­Jê que habitavam o litoral no século XIX e recebiam essa denominação, os Xokleng e os Kaingang também eram nomeados Botocudos. Cf.: MOREL, Marco. A saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistência indígena. Hucitec: São Paulo, 2016, p. 16. 306 D’ANGELIS, Wilmar da Rocha; FERNANDES, Daniela Sampaio Bonafé. O vocabulário Kaingáng de Ambrosetti (1894) e as relações linguísticas e históricas da Aldeia de Ingacorá (RS) com Missiones (Arg.). LIAMES 4 – pp. 83­89, Primavera 2004. 307 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit. p. 140. 308 Idem. Ibidem. p. 140­1. 309 Idem. Ibidem. 310 VEIGA, J. Contribuição da etnografia dos Jê Meridionais à Arqueologia. Op. cit. p. 27. 311 O kiki­koi é uma cerimônia funerária Kaingang, considerado um segundo enterro do indivíduo um ano após sua morte. Nesse cerimonial “o universo social kaingang se reafirma por meio de serviços cerimoniais, trocas de cantos e de homenagens recíprocas, superando oposições hierarquizadas que cotidianamente podem chegar a gerar conflitos entre facções”. In: AMOROSO, Marta. Terra de Índio. p. 192; e ver especialmente VEIGA, J. Contribuição da etnografia dos Jê Meridionais à Arqueologia. Op. cit. 83 representa o centro da vida ritual entre os Kaingang312. Segundo a cosmologia Kaingang, a morte de alguém do grupo demanda um cerimonial para que o espírito siga seu caminho e não fique circundando a aldeia. Para a efetivação desse objetivo era necessária uma grande festa que reunia diferentes grupos Kaingang no local da cerimônia313. Ao analisar a morte do cacique Arepquembe, liderança Kaingang atuante no Oeste da província paranaense, Amoroso mostra a repercussão desse evento entre os diferentes grupos Kaingang espalhados na porção meridional da América. Consequentemente, a movimentação desses grupos em direção ao aldeamento de São Pedro de Alcântara gerou um alerta entre os responsáveis pela política indigenista da região: Com tudo o grande número de índios Coroados, que tem frequentado o aldeamento, na atualidade do sertão os grandes movimentos, por causa do assassinato do seu cacique, não foi alterado o sossego; nem passageiramente amedrontado o pessoal do aldeamento, pois foram sempre atenciosos para conosco e obedientes e humildes para comigo; se bem o receio é natural314. Além da visita de grupos Kaingang de aldeamentos vizinhos de Guarapuava, do Ivaí e da colônia militar do Jataí, havia a presença dos Kaingang do “sertão”315. Como os Kaingang que habitavam a província paulista não foram fixados em aldeamentos durante a vigência do Regulamento das Missões (1845­1889), é bastante provável que esses indígenas do “sertão” que participavam da cerimônia fossem os mesmos que viviam entre os Rios Tietê, Paraná e Paranapanema. O relato do frei Luís de Cimitille, responsável pelo aldeamento de São Jerônimo, também na província do Paraná, nos fornece indícios de como se estabelecia essa rede de comunicação Kaingang: “Em cada cabana grande há um ou dois índios que governam os mais, e cada mês sai um destes para os alojamentos que ainda existem no sertão vizinho (que segundo me contou um índio, andam por uns doze); fazem estas viagens mensais para colher notícia se tem morrido algum”316. Mesmo que a descrição do frei tenha sido centrada na realização da cerimônia funerária do kiki­kói, destacando que os indígenas trocavam informações sobre a morte de parentes, pode­ se presumir que outros tipos de informações eram trocados entre os indígenas em trânsito. Um exemplo disso é o fato de Amoroso citar a primeira aparição dos “Coroados” no aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1858. A partir de então, o grupo “nunca mais tem­se retirado do lugar, mas tem feito seus arranchamentos a meia légua, três léguas e cinco léguas de distância

312 KAINGANG. Disponível em: Acesso em 22 jun. 2021. 313 PINHEIRO, Niminon Suzel. OS NÔMADES: Etnohistória Kaingang e seu contexto. Op. cit., p. 71­2. 314 Frei Timotheo de Castelnuovo ao padre comissário, 9 de maio de 1872. Apud: AMOROSO, Marta. Terra de Índio. p. 193. 315 AMOROSO, Marta. Ibidem. 316 Idem. Ibidem. p. 195. 84 desse aldeamento, e que todos os dias vem pedir quando não pode furtar, tal que mais mantimentos consomem eles do que o mesmo aldeamento”317. Importante destacar que nessa altura a política indigenista de aldeamentos não era novidade, e os índios souberam se aproveitar das oportunidades surgidas com aquela conjuntura. O mesmo ocorria nos núcleos imperiais da província paulista, conforme o relato do diretor da colônia militar do Avanhandava, citando a retirada de “presentes” no núcleo por “Coroados e Chavantes” e que depois retornaram para suas aldeias. Por fim, outro relato do período que demonstra essa rede entre índios que orbitavam na lógica dos aldeamentos e os que viviam nos chamados “sertões”. O engenheiro Franz Keller, em suas investigações de obras viárias a mando do Império, “notou que colares kaingang produzidos com a matéria­prima fornecida nos aldeamentos (miçangas brancas) serviam de moeda de troca para se obter kurus de urtiga pelos Kaingang do sertão”318. Portanto, podemos constatar que diferentemente do que os relatos da época dizem sobre a “selvageria” e “ferocidade” dos Kaingang, este grupo desenvolveu outros mecanismos de sobrevivência para além do confronto bélico. As análises das transformações que ocorriam à época eram interpretadas e avaliadas considerando as perdas e os ganhos em jogo. Novamente recorremos ao trabalho de Amoroso focado no sistema de aldeamentos na província do Paraná. O diálogo entre o frei Luís de Cimitille, do aldeamento de São Jerônimo, e o cacique Arepquembe, liderança Kaingang largamente citada na documentação, deixa entrever as prioridades do seu grupo ao orbitarem na lógica dos aldeamentos: Se estava morando conosco, continuou, não era por encontrar a felicidade, pois mais feliz se achava nas matas virgens, onde a caça, o peixe e a fruta eram mais abundantes, e nunca lhe faltava mantimentos suficientes para o próprio sustento e o da numerosa família. O verdadeiro motivo que justificava sua permanência entre nós era porque não podia passar mais sem as nossas ferramentas; que já era tarde para aceitar uma nova religião, sendo já velho, tanto que nunca pudera aprender a fazer o sinal da cruz. Enfim, despediu­se com uma risada e deu­me as costas, dizendo­me [um] sarcástico adeus319. Muito mais do que se refugiarem nas matas ou enfrentarem as frentes de expansão com suas armas, os Kaingang souberam desenvolver estratégias no trato com os agentes do Império. Essa maleabilidade em lidar com as mudanças do período e não aceitar passivamente as diretrizes da política indigenista, levou o frei Cimitille a afirmar que os índios “impõem o peito de bronze à civilização”320.

317 Frei Timotheo de Castelnuovo, carta ao imperador dom Pedro II, 23 de agosto de 1860, BNRJ. Apud: AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit. p. 147. 318 Idem. Ibidem. p. 184. 319 CIMITILLE, (OFM. CAP) Luís de. “Memória dos costumes e religião da numerosa tribo dos Camés que habitam a província do Paraná”. In: TAUNAY, Visconde de. Entre os nossos índios. São Paulo: Melhoramentos, 1931, p. 98­99. Apud: AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit., p. 191. 320 AMOROSO, Marta. Terra do Índio. Op. cit., p. 191. 85

3.1.2 Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva

Os povos da cultura Guarani pertencem ao tronco linguístico Tupi, sendo da família linguística Tupi­Guarani. Atualmente no Brasil, existem três subgrupos Guarani: os Guarani­ Kaiowa, os Guarani­Ñandeva e os Guarani­Mbya, com “diferenças nas formas linguísticas, costumes, práticas rituais, organização política e social, orientação religiosa, assim como formas específicas de interpretar a realidade vivida e de interagir segundo as situações em sua história e em sua atualidade”321. Nesta seção abordaremos principalmente os Kaiowa e em alguma medida os Ñandeva, visto que estes subgrupos se formaram a partir das dinâmicas da invasão europeia na América e apresentam histórias de contato bastante semelhantes. De acordo com Amoroso, a documentação histórica do século XIX se refere aos Guarani Kaiowa como Cayuás, e aos Guarani Ñandeva como Guaranis322. Atualmente os Kaiowa se distribuem pelos territórios do Mato Grosso do Sul e Paraguai, enquanto os Ñandeva estão localizados nos três estados da região Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), em São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraguai e Argentina323. No que se refere às experiências vivenciadas pelos grupos Guarani com o processo de colonização da América, destaca­se a relação desses grupos com a missão jesuítica ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Tal dinâmica – marcada não só por violência e exploração por parte das autoridades europeias, mas também por decisões e ações indígenas – se deu no contexto das colônias portuguesa e espanhola. Em porções da região que hoje compreende os estados do Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, o norte da Argentina e boa parcela do território paraguaio, se formaram “dezenas de reduções jesuíticas”324. No interesse pela disputa da mão de obra Guarani no alvo dos encomenderos, os bandeirantes paulistas realizaram diversos ataques sobre os aldeamentos da região ao longo do

321 GUARANI KAIOWA. Disponível em: . Acesso em 25 jun. 2021. 322 AMOROSO, Marta. Catequese e Evasão. Etnografia do Aldeamento Indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855­1895). 1998, p. 10. 323 GUARANI KAIOWA. Disponível em: . Acesso em 25 jun. 2021; GUARANI ÑANDEVA. Disponível em: . Acesso em 25 jun. 2021. 324 GUARANI KAIOWA. Disponível em: . Acesso em 26 jun. 2021. 86

XVII, gerando cifras elevadas de mortes e aprisionamento de indígenas325. Nesse sentido, na primeira metade do XIX, a descoberta dos Guarani Kaiowa na região “da antiga civilização jesuíta do Guairá” pelas expedições organizadas pelo Barão de Antonina, teve um significado singular naquele contexto de construção da nação326. Mesmo que em desacordo com os princípios da missão jesuíta, Antonina buscava legitimar seu projeto no passado daquela “civilização”327. E ao mesmo tempo, o político e fazendeiro, destacava o envolvimento dos Guarani Kaiowa com a sociedade não indígena, para ele, fruto da obra dos jesuítas328. Vale destacar aqui também, a questão da mobilidade dos Guarani, estruturada pelo messianismo em busca da terra sem males. Conforme Mano, apoiado em Meliá, esse movimento migratório dos Guarani trata­se de uma economia da reciprocidade ampla entre homens, entre homens e animais, entre esses e os espíritos. A reciprocidade é o fulcro sobre o qual se assenta a vida e a visão de mundo dos guaranis. Para eles, as relações de homogeneidade e equilíbrio só podem ser mantidas por meio da reciprocidade, o maior grau de perfeição de ser e estar no mundo, um verdadeiro dom –jopói ­em guarani­, palavra que Meliá traduz como mão aberta reciprocamente (Pó = mão, i = sufixo que indica abertura, jô = recíproca). Assim, o messianismo é interpretado como a visão profética da sociedade da excedência e da reciprocidade que garantem o Jopói. Para não destruir essa relação com a saturação do ambiente ou com o aparecimento de conflitos internos, os guarani migram329. Portanto, além desse fluxo regido por questões de decisão interna a cada grupo, o movimento dos Guarani pela América meridional foi motivado cada vez mais pelas ações dos diferentes agentes colonizadores. Nesse sentido, o trânsito dos Guarani pelo atual interior paulista é mencionado na documentação histórica abrangendo o período do século XVI ao XX330. No século XIX, o interesse da política indigenista pelos Kaiowa girava em torno de dois pontos centrais: conter a ambição paraguaia nas fronteiras com o Império brasileiro e a movimentação dos Kaingang, “tidos como inimigos dos Guarani Kaiowa e demais Guarani da região”331. Ao analisar o sistema de aldeamentos implementado na segunda metade do XIX no Oeste da província paranaense, Marta Amoroso apontou para a recorrente utilização dos Kaiowa nas fazendas do interior paulista. As duas regiões apresentavam uma forte relação: “os

325 Sobre os aldeamentos indígenas implementados pela missão jesuíta na região do Guairá e os ataques bandeirantes, ver: MONTEIRO, John. Negros da Terra; HOLANDA, Sérgio Buarque. O extremo oeste. 326 WISSENBACH, Maria Cristina C. Desbravamento e Catequese na Constituição da Nacionalidade Brasileira: as Expedições do Barão de Antonina no Brasil Meridional – Rev. Bras. de Hist., v. 15, nº 30, São Paulo, pp. 137­ 155, 1995, p. 143. 327 Idem. Ibidem. 328 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. p. 74. 329 MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 146. 330 Idem. Ibidem. p. 252. Importante destacar que atualmente, no século XXI, os diferentes grupos Guarani continuam presentes pelos territórios de países localizados na América meridional. 331 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. p. 72. 87

Kaiowa, Kaingang e Guarani de ambas as províncias eram ligados pelo parentesco”332. Uma das aplicações da categoria de “camaradas” se referia a utilização dessa mão de obra indígena Kaiowa no Oeste paulista. A exploração desse mecanismo pelos fazendeiros paulistas gerava reações por parte dos capuchinhos instalados no Paraná: Não é de hoje que os índios vão daqui acolá são sem mais razões assassinados impunemente. Eles mesmos os convidam­nos, veem aqui ajustarem para suas lavouras, e depois de servidos os pagam com a morte, ou os assassinam imputando­ lhes crimes dos quais são insuficientes e nem para tanto habilitados e até incapazes333. Do mesmo modo, na colônia militar do Avanhandava temos o registro do emprego dos Guarani nas atividades agrícolas do núcleo: Tenho conseguido ter aqui na Colônia cerca de 30 Guarany e até fazem roças para milho, mandioca e mais legumes isto por alguns meses, pagando generosamente seu trabalho, e dando pólvora, chumbo e espingarda aos chefes das partidas, e miudezas a todos no geral porque são muito desconfiados, e depois retiram­se para seus aldeamentos334. No estabelecimento naval do Itapura, o relato de uma autoridade recém chegada no empreendimento imperial, lamentava a “perda do camarada Joaquim Tupinambá”, guia da monção “que foi vítima de sua imprudência”335. A imagem dos Guarani como indígenas “mansos” em contraposição a “ferocidade” dos Kaingang foi bastante trabalhada pelos agentes imperiais e provinciais. De acordo com Dornelles, as referências sobre populações indígenas na documentação do século XIX “não contêm em si precisão alguma sobre a etnia dos grupos por elas apontados”. Porém, de acordo com a mesma autora, “isso não quer dizer que inexista alguma forma de precisão sobre qual grupo étnico compunha alguns aldeamentos ou ocupantes de algumas áreas geográficas específicas”336. Portanto, é preciso uma crítica documental constante no que se refere à menção das etnias ameríndias. Mesmo que haja determinados tipos de tendências relacionados especificamente aos diferentes grupos indígenas, estas populações estão em constante transformação – assim como todo e qualquer indivíduo em sociedade ­, acompanhando e se relacionando com as mudanças políticas de cada período histórico. Nesse sentido, além da fragilidade etnográfica nos escritos do século XIX, é necessário considerar que os povos indígenas acionavam e acionam a estratégia mais adequada para cada situação, não estando presos em um tipo de comportamento padrão.

332 Idem. Ibidem. p. 173. 333 Frei Timotheo de Castelnuovo ao presidente da província do Paraná, 16 de dezembro de 1885, DEAPP, vol. 025, ap. 760, pp. 194­5. In: AMOROSO, Marta. Terra de Índio. p. 174. 334 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Encaminha ofício do diretor da colônia militar de Avanhandava, relativo a ocorrências praticadas por índios, e solicita o reembolso da quantia de quinhentos mil réis.”, 16 abr. 1875. 335 APESP – Ministérios – C5247 – Pasta 1859 – [Camilo de Lelis], 15 mar. 1859. 336 DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. Op. cit. Nota de rodapé 198, p. 99. 88

Ainda sobre o binômio recorrente no século XIX entre Guarani ­ “manso” e Kaingang ­ “selvagem”, para além da imprecisão etnográfica do período, havia um projeto de historiografia nacional de viés político. Tal projeto consistia em um discurso que diferenciasse a nação brasileira das demais nações europeias, exaltando a figura de um índio puro e preso no período colonial, e rejeitando o indígena contemporâneo, considerado um obstáculo para a expansão da economia capitalista nas territorialidades indígenas337. Desse modo, a depender do tipo de comportamento apresentado pelo grupo indígena diante do Estado e seus agentes, estes poderiam acionar a categoria de “mansos” ou “selvagens”, acabando por interferir na denominação etnográfica e no tratamento dispensado pela política indigenista. Feitas essas observações, o caso dos ataques cometido na colônia militar do Avanhandava no ano de 1875, em que “que homens aliás já bem sitiados mudassem deixando suas terras e benfeitorias abandonadas”, foi cometido “pelos Guaranys mansos”338. O ofício do diretor da colônia lamenta o ocorrido e destaca o trabalho exercido pelos Guarani na lavoura da colônia. O óbito provocado foi do “infeliz João Paulo Ribeiro que tinha ido buscar um animal de sela em uma palha de milho (roça) distante de sua morada cerca de 500 braças [...]”. Para Lima Júnior, o acontecimento foi uma espécie de acidente, como se quisesse proteger os Guarani de possíveis represálias por parte do Estado e assim garantir parte da mão de obra empregada em Avanhandava: “esta última morte foi feita pelos Guarany que suponho por descontentamento de alguma coisa refugiarão­se para as matas, porém já tem voltado alguns aos quais com muito agrado no Aldeamento”339. O suposto caráter “manso” atribuído aos Guarani no século XIX parecia não corresponder à dinâmica do grupo indicado por Lima Júnior no interior paulista. Outro aspecto bastante citado na documentação do período são os conflitos entre Guarani e Kaingang. Amoroso ressalta o receio dos missionários capuchinhos com a convivência de ambos os grupos em um mesmo aldeamento. Quando do primeiro surgimento e posterior ataque dos Kaingang no sistema de aldeamento do Paraná, no final de 1858, “funcionários e os índios Guarani­Kaiowá aldeados reagiram com armas, afastando temporariamente os visitantes, que voltaram mais uma dúzia de vezes ao longo do ano, sendo sempre repelidos à bala”340. Mesmo que os conflitos entre esses dois grupos indígenas

337 MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência, UNICAMP, 2001, principalmente Introdução e Capítulo 7. 338 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Encaminha ofício do diretor da colônia militar de Avanhandava, relativo a ocorrências praticadas por índios, e solicita o reembolso da quantia de quinhentos mil réis.”, 16 abr. 1875. 339 Idem. Ididem. 340 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit. p. 147. 89 existissem anteriormente ao processo de colonização na América, tais disputas foram catalisadas e ao mesmo tempo rearticuladas por essas etnias. Um caso emblemático da congregação de etnias vistas pelas lentes ocidentais como antagônicas é o analisado pela historiadora Karina Melo341. No contexto da Guerra do Paraguai, o engajamento voluntário de três lideranças Kaingang com um contingente de 150 a 200 Guarani, traz o questionamento sobre o binômio “manso­selvagem” e também elucida o compartilhamento de espaços por etnias diferentes conforme as territorialidades indígenas iam sendo expropriadas342.

3.1.3 Oti­Xavante e Opaié (Ofaié)­Xavante

Os Oti­Xavante, grupo étnico considerado extinto a partir de 1910 (que se autodenominavam Oti)343, nada tem a ver com os Xavante do atual estado do Mato Grosso (que se autodenominam A’uwe – “gente”), e nem com os Ofaié (Opaié)­Xavante do atual sul do Mato Grosso do Sul (que se autodenominam Ofaié)344. As nomenclaturas “Xavantes” ou “Chavantes” encontradas na documentação da província paulista se referem principalmente aos Oti, podendo em alguma medida se referir também aos Ofaié. Essa maior presença dos Oti na documentação paulista se deveu à sua localização na região do Rio Paranapanema e Campos Novos, na província paulista. Enquanto os Ofaié habitavam e circulavam na margem direita do Rio Paraná, na então província do Mato Grosso345. Importante lembrar que muitas das nomenclaturas atribuídas aos grupos indígenas foram feitas por não índios. O mesmo parece ter acontecido com os Oti e Ofaié que circulavam pela província paulista na segunda metade do XIX. Segundo Nimuendaju, “nos campos circunjacentes aos rios Capivara, Jaguaratê e Laranja Doce descobriram os colonizadores uma pequena tribo que se distinguiam perfeitamente dos selvícolas coroados e dos Kaioás mansos dos rios; e, como era povo indestro do mato, os chamaram de Chavantes”346. A nomenclatura “Xavante” decorre por viverem esses grupos em regiões de vegetação do tipo savana

341 MELO, Karina M. R. S., A aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios Guaranis (séculos XVIII­XIX). Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGH. Porto Alegre: UFRGS, 2011. 342 DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. Op. cit., p. 99 (nota de rodapé 198) e p. 180­1. 343 DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. Op. cit., p. 231. 344 OFAIÉ. Disponível em: < https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ofai%C3%A9>. Acesso em 29 jun. 2021. 345 Idem. Ibidem. 346 NIMUENDAJU, Curt. Textos indigenistas. São Paulo: Loyola, 1982. In: MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 296. 90

“(šhavante, os que vivem nas savanas), com predomínio de vegetação rasteira e árvores de pequeno e médio porte”347. Nimuendaju, que esteve em contato com os Oti no início do século XX, destacou o caráter provisório de suas moradias, a ausência da utilização de canoas e cerâmicas, além do forte aspecto da caça e coleta348. As projeções etnográficas feita a partir desses dados classificaram os Oti “como grupos caçadores­coletores, muitos belicosos que construíam seus abrigos em zonas descampadas”. Talvez por conta desse caráter combatente e por habitarem a mesma territorialidade (Oeste paulista), Oti e Kaingang foram confundidos, mesmo sendo inimigos entre si349. Considerando o próprio nomadismo dos Oti somado aos avanços das frentes de expansão sobre suas territorialidades, a mobilidade do grupo e os conflitos com outros grupos indígenas e com não índios terá um aumento na segunda metade do XIX. Assim, no ano de 1865, nas páginas do Correio Paulistano, na seção de Noticiários, os Oti aparecem circulando pelas imediações do Rio Tietê e acabam por alertar colonos e autoridades. Em carta enviada da Colônia Militar do Avanhandava “por pessoa de toda confiança”, ficamos sabendo que em 26 de abril “a tribo Chavantes que é a que aparece por aqueles lugares, aproximara­se muito do lugar, onde ele noticiador estava, e queimara grande pedaço de campo, que pelo clarão pareceu­lhe ser nas cabeceiras do ribeirão dos Patos”350. Um mês depois, outra missiva chegava de Avanhandava relatando sobre a presença dos “Chavantes”. O relator inicia a carta dizendo: No dia 26 de maio tinham os índios posto fogo nos campos, da margem esquerda do Tietê, nas cabeceiras do Ribeirão dos Patos, o que era pouco digno de atenção, porque por esses lugares vagueia constantemente a tribo Chavantes, e como nunca ofenderam nem a pessoa alguma, nem criação ou roças dos moradores daquele lado, nem um abalo produziu esse indicio.351 Além da relativa convivência da população de colonos com aquele grupo étnico apontado pelo informante, que segundo seu relato tratava­se dos “Chavantes”, chama a atenção o fato de circularem constantemente pela região e não terem experenciado conflitos. Novamente retornamos à questão já discutida anteriormente sobre a confiabilidade das classificações étnicas do século XIX, visto que as projeções etnográficas do século XX apontaram os Oti como

347 OFAIÉ. Disponível em: < https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ofai%C3%A9>. Acesso em 30 jun. 2021. 348 NIMUENDAJU, Curt. Textos indigenistas. São Paulo: Loyola, 1982. In: MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 297. 349 PINHEIRO, Niminon Suzel. Etnohistória Kaingang e seu contexto. Op. cit. p. 54. 350 HD. Correio Paulistano. Ed. 2712, p. 2. Avanhandava, 1865. Disponível em: . Acesso em 01 jul. 2021. 351 HD. Correio Paulistano. Ed. 2757, p. 2. Avanhandava, 22 de julho de 1865. Disponível em: . Acesso em 30 jun. 2021. 91 grupo altamente belicoso352. Porém, também não devemos congelar determinados comportamentos elencados por estudos etnográficos a um grupo indígena específico, e acreditar que esse padrão comportamental se manteve (ou se mentem) inalterado independente da situação ou da conjuntura histórica vivenciada. De todo modo, a carta prossegue: No dia 19 do corrente – julho – deu­se porém um acontecimento digno de maior atenção: três moços daquelas vizinhanças estavam fazendo uma roça junto ao referido Ribeirão dos Patos, onde já trabalhavam há dias sem inconveniente algum, embora tivessem visto vestígios certos de terem andado por ali os índios, como fossem paus furados de onde eles tinham tirado mel e etc., a que deram pouco apreço por estarem acostumados sempre a encontrar vestígios idênticos, e a não sofrerem agressão dos índios, por evitarem estes sempre o encontro com os nossos: e por isso continuavam na fatura da sua roça, onde incautos pernoitavam. Nesse dia porém foram os três acometidos pelos índios [...]353. Ainda sobre fragilidade da classificação étnica informada pelo autor da carta, embora a prática da extração de mel fosse comum a grupos que habitam tanto regiões de floresta como em áreas de cerrado354, os Oti foram cada vez mais mencionados na documentação oitocentista (ainda que com a classificação genérica de “Xavantes”). Como desdobramento desse conflito no Ribeirão dos Patos e a morte dos três colonos que faziam roça na região, ficamos sabendo que em 25 de setembro um grupo de moradores da região resolveu vingar a morte de seus companheiros. A carta publicada em 11 de outubro relata que os moradores trataram “de explorar a aldeia, e conseguiram descobri­la, cerca de meia légua distante da roça feita por Modesto e que foi causa de sua morte e depois de convenientemente preparados marcharam ao assalto e à traição”355. O avanço de colonos estabelecendo roças sobre a territorialidade dos Oti parece ter sido o desencadeador desse evento. A descrição feita pelo autor da carta sobre a expedição de homens armados que cercaram a aldeia Oti, destaca o método recorrente utilizado nas “batidas” contra grupos indígenas ao longo do século XIX356. A despeito do alto grau de violência empregado contra as populações indígenas do Oeste paulista – que o autor da carta ironiza e reprova –, o relato traz dados etnográficos interessantes

352 PROUS, André. Arqueologia brasileira. Brasília, ed. da UNB, 1992, p. 330­1. In: MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 297. 353 HD. Correio Paulistano. Ed. 2757, p. 2. Avanhandava, 22 de julho de 1865. Disponível em: . Acesso em 30 jun. 2020. 354 MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 154. 355 HD. Correio Paulistano. Ed. 2819, p. 2. Avanhandava, 25 de setembro de 1865. Disponível em: . Acesso em 2 jul. 2021. 356 Conforme Dornelles, as dadas ou batidas do século XIX eram expedições que tinham por fim matar indígenas em suas aldeias. O plano desses “modernos bandeirantes” consistia em localizar e cercar as aldeias indígenas enquanto os índios ainda dormiam. “Principiavam a matança pelas mulheres e crianças, escapando apenas as que se decidia aprisionar”. DORNELLES, Soraia S. A questão Indígena e o Império. Op. cit. p. 93. 92 que nos ajudam a uma melhor verificação da etnia mencionada. Nimuendaju, ao descrever a moradia dos Oti, relata [...] choças construídas em linha nas margens de qualquer corente d’água, em pleno campo, eram feitas de ramos metidos no solo e cobertas de folhas de palmeiras e tão pequenas e baixas que dificilmente poder­se­ia ficar assentado dentro delas; cada aldeia compunha­se de 30 – 40 cabeças e a tribo poderia ter 500 almas357. Do mesmo modo, a aldeia atacada pelos moradores da região de Avanhandava “constava de um só rancho de palha comprido e estreito, onde estavam os índios dormindo, descuidados”358. Outro dado, decorrente “de um saque geral na aldeia” realizados pelos “caçadores”, é a menção a “muitas mantas tecidas pelos índios, de um fio que ninguém conhece, com pinturas esquisitas – que os que as tem não as vendem por menos de 10$000 rs.”359. A partir da década de 1870 começa haver uma perseguição sistemática contra esse grupo, do mesmo modo que ocorreu contra os Kaingang. Os Oti “foram criminosamente exterminados no início do século XX pelas frentes de expansão ferroviária e cafeeira que praticamente limparam os campos da região de Bauru avançando até as margens do rio Paraná”360. Mesmo que atualmente extintos, é de suma importância pontuar – como fizeram trabalhos anteriores361 – a presença dos Oti no processo de formação da região paulista e do Estado nacional, fortemente marcado pela violência contra as populações indígenas.

3.2 A região

Como já mencionado, nosso recorte espacial tem como marco inicial a atual cidade de Bauru, localizada do lado esquerdo do Rio Tietê e reconhecida oficialmente como território indígena Kaingang durante todo o século XIX362. A aparição da nomenclatura da cidade em um

357 NIMUENDAJU, Curt. Textos indigenistas. São Paulo: Loyola, 1982, p. 34­5. In: MANO, Marcel. DOS CAMPOS DE ARARAQUARA. Op. cit. p. 297. 358 HD. Correio Paulistano. Ed. 2819, p. 2. Avanhandava, 25 de setembro de 1865. Disponível em: . Acesso em 2 jul. 2021. 359 Idem. Ibidem. 360 DUTRA, Carlos Alberto dos Santos. Uma flecha no coração de Hans Kelsen. Brasilândia–MS: edição do autor, 2009, p. 62­3. 361 Especialmente os trabalhos de LIMA, João Francisco Tidei. A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru. Dissertação de Mestrado, USP, 1978; BORELLI, Silvia Helena Simões. Os Kaingang no estado de São Paulo: constantes históricas e violência deliberada. In: MONTEIRO, John (et al). Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. São Paulo: Yankatu, 1984; PINHEIRO, Niminon Suzel. Os Nômades: Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850­1912. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1992; DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios: A propriedade da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003; e DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e violência na província paulista, 1845­1891. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2017. 362 LIMA, João Francisco Tidei. A ocupação da terra e a destruição dos índios na região de Bauru. Dissertação de Mestrado, USP, 1978, p. 37. 93 documento oficial foi registrada em 15 de abril de 1856, por Felicíssimo Antônio de Sousa Pereira, dizendo possuir uma propriedade no local denominado “Matas do Bauru”. Importante destacar o papel que Felicíssimo exerceu, sendo representante dos grandes proprietários da região e propondo posteriormente “uma nova política de tratamento dos índios” que fosse mais eficaz que a prática dos aldeamentos, no sentido de proteger a grande propriedade e liberar terras férteis para expansão agrícola.363 Desde o registro de posse feito por Felicíssimo, o vilarejo de Bauru pertenceu ao município de Lençóis e depois de Fortaleza. Em 1893 é criado um Distrito de Paz na região que ainda se encontrava anexa à municipalidade de Fortaleza. Somente em 1896 é reconhecida a emancipação de Bauru como município paulista. Portanto, em meados da década de 1850, quando é registrado posse de terras nas “Matas do Bauru”, a região se apresentava como “sertão 364 bruto, ou região de terras desconhecidas, habitadas por índios ferozes” . Já a região de Avanhandava, distante “vinte e poucas léguas” da freguesia de Lençóis, apresentava­se como “um vasto território de campo e mata na margem do Tietê defronte a Colônia do Avanhandava”365. Seu desenvolvimento está relacionado com a Colônia Militar do Avanhandava, criada pelo Decreto Imperial nº2.126, de 13 de março de 1858. No caso da Colônia Militar do Avanhandava, seu objetivo imediato esteve relacionado com a comunicação interprovincial com Mato Grosso. Importante destacar que a criação da Colônia Militar do Avanhandava ocorreu do lado direito do Rio Tietê. O desenvolvimento do seu núcleo populacional, e o consequente confronto com os Kaingang, se deu sobretudo do lado esquerdo do Rio. Quando nos referimos ao Oeste paulista, trata­se de um termo histórico largamente utilizado no século XIX para designar a região da parte ocidental da província. Particularmente, tendo como ponto de partida a cidade de Botucatu entre os rios Tietê, Paraná e Paranapanema. Tal região também foi largamente denominada como “sertão desconhecido”, tanto pela falta de informações geográficas sobre a região quanto pela reconhecida presença de povos

363 DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e violência na província paulista, 1845­1891. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2017, p. 86; e DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios. Proprietários da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003, p. 98 e 111. 364 CAVASSAN, Osmar. “Bauru: terra de cerrado ou floresta?”. Ciência Geográfica ­ Bauru ­ XVII ­ Vol. XVII ­ (1): Janeiro/Dezembro – 2013, p. 46­54, p. 48. 365 APESP – Ofícios Diversos Lençóis ­ CO4789 – Ofício do Juiz de Direito de Lençóis, Joaquim Antônio do Amaral Gurgel, 1 jun. 1879. 94 indígenas366. Somente com o reconhecimento das rotas fluviais e a expansão das ferrovias no início do século XX é que a região será dividida, levando em conta os rios que apresentam algum paralelismo entre si e cortam o interior da província em direção ao Rio Paraná367. A penetração e as tentativas de fixação do Estado nessa região reverberaram em outras localidades, ocasionando conflitos em vilas mais afastadas do Rio Tietê.

3.3 Aldeamento, farda ou bala? As diretrizes governamentais para avançar sobre as territorialidades indígenas no sertão paulista

Como já dito, a legislação indigenista vigente durante o Segundo Reinado foi o Regulamento das Missões368. Esta lei previa a criação de aldeamentos reservados aos grupos indígenas que se encontravam “errantes pelas matas” ou não “assimilados” ao restante da civilização. Tal política indigenista decretada em 1845 e válida para todo Império, teve que se acomodar conforme as peculiaridades locais de cada província. A variedade de marcos regulatórios decretados na província de São Paulo a partir da segunda metade do século XIX, era motivada em grande medida pelo interesse em explorar as regiões “desconhecidas” que tinham como principal entrave para a expansão agrícola os povos indígenas. A redução ou o corte de verba para os aldeamentos, bem como portarias promovendo a expedição de “bandeiras missionárias” pelo interior paulista, foram algumas das medidas decretadas pelo poder provincial. Conforme as tentativas governamentais e as ações locais de particulares em penetrar nesses territórios esbarravam nos povos indígenas, as verbas com a manutenção dos aldeamentos eram reduzidas e o investimento na criação de estradas e em ações militares eram incentivados. Sendo a nossa região de análise um dos últimos refúgios em que os Kaingang resistiram à invasão da população branca, o empreendimento de aldeamentos indígenas foi preterido em relação às ações armadas, à construção de estradas e da via férrea.

366 BEIER, José Rogério. Artefatos do Poder: Daniel Pedro Müller, A Assembleia Legislativa e a Construção Territorial da Província de São Paulo (1835­1849). Dissertação de Mestrado em História, USP­FFLCH, 2015, p. 217­8. 367 GHIRARDELLO, Nilson. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 69. A presença de rios entre os Rios Tietê e o Paranapanema não foi destacada nos mapas deste trabalho de modo a facilitar a visualização da região de análise. 368 CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislação indigenista no século XIX: Uma compilação: 1808­1889. São Paulo: Comissão Pró­Índio de São Paulo, 1992. 95

Nesta seção, tentaremos analisar as principais motivações e condicionantes que permitiram um avanço violento sobre aqueles territórios, mesmo que em desacordo com a legislação central vigente no período. Segundo relatório de viagem realizado pelo tenente Antônio Mariano de Azevedo em 1858, o Rio Tietê gozou de muito prestígio durante o período colonial, onde “ousados e belicosos argonautas descobrirão as províncias de Goiás e de Mato Grosso”. No entanto, lamenta que “as cousas tem marchado de tal modo, que o Tietê é hoje menos conhecido do que nos tempos coloniais.”369 Como já analisado anteriormente, para Azevedo havia fatores determinantes para o abandono do Tietê como rota fluvial para o Mato Grosso. As disputas diplomáticas entre Portugal e Espanha, e posteriormente entre Império brasileiro e demais repúblicas vizinhas na porção meridional do território; a própria inavegabilidade do Rio em muitos trechos; a recusa da população interiorana em aceitar os trabalhos de uma viagem fluvial; e a recorrência de doenças nas margens do Rio se apresentavam como os principais fatores de definhamento daquele caminho370. Para o jovem engenheiro e tenente, o que manteve por toda a primeira metade do século XIX essa rota fluvial esquecida, eram as “maravilhosas hipérboles sobre caças, bugres, etc.”. Os poucos canoeiros das antigas monções que Azevedo foi encontrando em sua missão, “deixam­se dominar por essa tendência para a exageração, que parece inseparável de quem viaja por lugares desconhecidos, e dos velhos quando nos falam das cousas do seu tempo.”371 Para Azevedo, tais dificuldades – “sezões, bugres e onças” – fantasiadas pelos moradores da região não deviam impedir o empreendimento de núcleos imperiais nas margens do Rio. Adiante afirma: “cumpre não pensar mais em bugres, nem em onças”. São raras as menções do tenente sobre indígenas, e quando surgem são para afirmar sua inexistência ou irrelevância na região. Porém, logo em seguida aponta: fundado o estabelecimento do Itapura, teremos talvez excelentes ocasiões de atrair os pobres indígenas ao grêmio da civilização, por meios catequizadores mais convincentes e profícuos, do que o embrutecedor e degradante sistema empregado pelos capuchinhos, que o governo tem mandado para o interior do país372 Após reiterar que são exageradas as narrativas de colonos que falam sobre os perigos de animais selvagens, da nocividade de epidemias nas margens do Rio e da presença de povos

369 Relatório do Primeiro Tenente d’Armada Antônio Mariano de Azevedo sobre os exames de que foi incumbido no interior da província de São Paulo. Rio de Janeiro: Typ. De Peixoto, 1858, p. 5­6. 370 Relatório do Primeiro Tenente d’Armada..., p. 8­10. 371 Idem, p. 6. 372 Idem, p. 44. 96 indígenas, Azevedo propõe a criação da Colônia Militar do Itapura como meio de atrair indígenas – que até então não apresentavam relevância em seu relatório – para o grêmio da civilização. Sobre sua crítica ao Regulamento das Missões (1845) empregado pela missão capuchinha no Brasil, é difícil apontar que um método militar, com a criação do Estabelecimento Naval do Itapura, fosse mais atrativo para os povos indígenas do que a política do Regulamento, que em alguma medida garantia maior possibilidade de ações indígenas373. Cabe ainda pontuar que mesmo que Antônio de Azevedo não tenha relatado encontro com grupos indígenas em sua viagem, não significa que estes não circulassem por aquele território. Diferentes grupos indígenas tinham conhecimento sobre as investidas da população branca sobre a região, e evitar o contato poderia ser uma de suas estratégias. Porém, ao fazer sugestões de como o Governo deveria proceder com as benfeitorias projetadas nas margens do Rio, se referindo à autoridade responsável pela Colônia Militar do Itapura, pede: Seria conveniente que o governo o habilitasse competentemente para isso, dando­lhe certas autorizações especiais. Por outro lado, mandando explorar e descortinar os sertões fronteiros ao estabelecimento, deve esforçar­se por atrair ao povoado os pobres indígenas, que por ali vagueiam. Mandando­se aos seus aldeamentos partidas de gente com alguns desses insignificantes presentes que eles tanto apreciam. E, depois de atraí­los ao estabelecimento, fazendo­se­lhes conhecer por si mesmo os frutos do trabalho, e da civilização, conseguir­se­há, não só arranca­los ao estado selvagem, como também transformá­los em homens dignos, úteis, e inteligentes; conquista que jamais fará a catequese dos capuchinhos [...]374. Ao mesmo tempo em que exagerações sobre a presença de indígenas não deveriam bloquear o avanço de expedições científicas e comerciais pelo interior da província, Azevedo enxergava a possibilidade de obter “homens dignos, úteis e inteligentes” a partir da atração de indígenas nessa mesma região. Em sua visão, o índio era irrelevante enquanto obstáculo para a colonização e ao mesmo tempo útil como possível mão de obra para o Império. Até essa data, fins da década de 1850, havia espaço para ideias e métodos não violentos na tentativa de ocupação dos territórios indígenas375. Segundo Marcel Mano, a região do lado direito da margem do Rio Tietê após sua confluência com o Rio Piracicaba, então denominada como Campos de Araraquara, sofreu um

373 Nos últimos anos houve um questionamento sobre o caráter prejudicial que a política do Regulamento das Missões acarretou aos povos indígenas, no tocante à expropriação de suas terras. Nesse sentido, autoras como Patrícia Sampaio insere outras formas de apropriação dos territórios por parte dos indígenas, como o arrendamento. Cf.: SAMPAIO, Patrícia Melo. “Política indigenista no Brasil imperial”. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. (Orgs.) O Brasil Imperial (1808­1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, pp. 175­206, 2009. 374 Relatório do Primeiro Tenente d’Armada..., p. 43­4. 375 Isso não quer dizer que até esse período não houve práticas de violência e trabalho escravo indígenas, e nem que posteriormente não houvesse abertura para métodos mais brandos. Porém, a partir da década de 1860 parece haver uma inflexão no modo pelo qual o Governo, especialmente nas ações de autoridades locais, passou a lidar com as populações indígenas. Cf.: DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. p. 74­97; e DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios. p. 107­131. 97 processo de colonização anterior em comparação com seu lado oposto, motivado principalmente pelo interesse aurífero nas regiões de Goiás e Mato Grosso a partir do século XVIII376. Foi marcante a existência de diferentes grupos étnicos movimentando­se por esse território antes e durante todo período colonial377. Tal presença manteve­se já avançado o século XIX e era sentida pelas autoridades. Em 1861, a Câmara Municipal da Vila de Araraquara, encaminhando à presidência da província um abaixo­assinado dos moradores de Avanhandava378, mostrou que havia indígenas na região e sua presença implicava no malogro do projeto colonizador. Manoel Jacinto Correia, Inspetor de Araraquara, ao endossar o pedido dos moradores de Avanhandava pela criação de um Distrito de Paz, alegava a distância de “trinta léguas” que os moradores tinham que percorrer por falta “de autoridade civil e de um escrivão público”. A movimentação de Avanhandava a Araraquara era penosa “não só pela longitude como pelos maus caminhos”, tornando o deslocamento “muito oneroso aos habitantes desse lugar”. Para a autoridade de Araraquara era fundamental a fixação das instâncias governamentais naqueles sertões de Avanhandava: [...] O estabelecimento da Colônia Militar Avanhandava no Ribeirão Ferreira, abaixo do dito Salto pouco menos de uma légua, muito concorre para animar aos que tem deixado de vir para este sertão pelo bem fundado receio de serem acometidos por algumas hordas de Índios, por isso é inquestionável que em muito pouco tempo a atual população ter­se­há elevado a um número que presentemente não é imaginado [...].379 Diferentemente do tenente Azevedo que não via a presença indígena como obstáculo para o avanço do Estado – talvez por ter percorrido a região alguns anos antes e não ter avançado sobre o interior das margens do Rio Tietê ­, a autoridade de Araraquara sabia do impacto que tal presença causava aos colonos. Porém, ambos viam no avanço governamental sobre o interior paulista o inevitável desaparecimento dos povos indígenas naquelas regiões. Ao longo da pesquisa com os ofícios enviados à Secretaria da Província pelas autoridades locais do interior, sabíamos da dificuldade em encontrar registros sobre os povos indígenas nos documentos oficiais. Contudo, ao encontrarmos tais fontes foi possível notar que a irregularidade da presença indígena nos ofícios governamentais não refletia a realidade do que de fato ocorria no interior da província.

376 MARCEL, Mano. OS CAMPOS DE ARARAQUARA: Um estudo de história indígena no interior paulista. 2006, p. 59. 377 Idem, p. 237­241. 378 Com a Colônia Militar do Avanhandava localizada na margem direita do Rio Tietê, seus moradores encontravam­se sob jurisdição da Câmara Municipal de Araraquara. Mais tarde, com o desenvolvimento de colonos defronte à Colônia, na margem esquerda, a municipalidade de Lençóis passou a contestar a jurisdição exercida por Araraquara sobre Avanhandava. 379 APESP – Ofícios Diversos – Araraquara – CO805 – Ofício do Inspetor de Quarteirão, Manoel Jacinto Correia, 7 set. 1861, doc. 88C. 98

O primeiro diretor da Colônia Militar do Avanhandava, Manoel Giraldo Barros, devia enviar semestralmente um relatório detalhado sobre a condição e o progresso alcançado pela Colônia. Além desse relatório, o diretor enviava inúmeros ofícios solicitando verba para realizar benfeitorias no núcleo e mesmo que sempre apontasse o “estado miserável” em que se encontravam os colonos por falta de verba liberada pela Tesouraria da Fazenda, o diretor se mostrava esperançoso com o desenvolvimento do empreendimento, desde que apoiado pelo Governo. Nos primeiros relatórios não encontramos nenhuma menção a grupos indígenas na região. Entretanto, no relatório de 15 de novembro de 1861, Barros deixa entrever que a situação na região estava longe de estar tranquila. Ao descrever a situação que enfrentava a Colônia Militar naquele momento, o diretor indica que não era a primeira vez que diferentes grupos indígenas circulavam e estabeleciam algum tipo de contato com a população do núcleo: [...] 24 léguas acima do Salto Avanhandava (na cachoeira Guamicanga) apareceram no ano passado, e neste, porção de Índios, que mais parecem ser fugidos de alguma Aldêa do que bravio, por isso que além de usarem machados e outras ferramentas, entendem o que se lhes diz, e faltam alguma cousa que se entenda, e parecem estarem dispostos a arrancharem­se em nossa vizinhança. A 8 léguas se tanto, abaixo do Salto Avanhandava (na cachoeira Itupanema, mais conhecida hoje por Macuco) tem aparecido frequentemente outra porção de Índios que parecem ser bravios, pois ainda não chegaram a falar com pessoa alguma e tem atacado algumas monções e procurados hostilizá­las. [...]380 Novamente percebemos a classificação de grupos indígenas sustentada no binômio manso­bravio. Mesmo que errôneo, este apontamento do diretor mostra que se tratavam de grupos étnicos diferentes, ou pelo menos com intensidades de contato com a sociedade imperial diferentes. Além da frequência com que diferentes grupos indígenas se mostravam aos colonos, o entorno da Colônia Militar via­se cercada por esta presença. Um ano depois o relatório da Colônia ressalta que a entrada de colonos no núcleo vinha aumentando. Porém, vemos que este fato é apontado pelo diretor como argumento para que o governo auxilie a Colônia Militar que se encontra “há três anos neste sertão” e sem “nenhuma obra permanente” iniciada.381 Aponta ainda a preocupação com colonos que até então se encontravam sem moradia. Como modo de reduzir as despesas, Giraldo Barros propõe que a morada dos empregados da Colônia: [...] cuja edificação sendo de baixo de um só teto ficará muito mais econômica ao Estado e mais cômoda aos habitantes, pela facilidade de a qualquer hora se comunicarem independente de se exporem as intempéries do tempo, e assim melhor se socorrerem se uns aos outros e defenderem se de qualquer agressão que haja, pois

380 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO820 – Relatório do Diretor da Colônia, Manoel Giraldo do Carmo Barros, 15 nov. 1861. 381 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO820 – Relatório do Diretor da Colônia, Manoel Giraldo do Carmo Barros, 27 nov. 1862, doc. 30A. 99

existem na vizinhança da Colônia Índios selvagens a menos de seis léguas de distância.[...]382 No seu início, a região da Colônia Militar do Avanhandava, situada à margem direita do Rio Tietê, esteve permeada pela presença de sociedades indígenas. Colonos e autoridades reconheciam o território do lado esquerdo do Rio como espaço onde viviam diferentes grupos indígenas. Quando realizou a viagem fluvial pelo Tietê – anterior ao decreto que criou a Colônia do Avanhandava, Mariano de Azevedo propôs que o núcleo no Salto do Avanhandava, fosse erguido na margem esquerda do Rio. Este lado do Tietê a partir dos sertões de Botucatu, foi durante o século XIX oficialmente reportado como sendo área de circulação indígena.383 Mariano de Azevedo parece não ter se importado com esse fato, tendo relativizado as memórias de monçoeiros sobre ataques indígenas, porém, não descartando a possibilidade de transformá­ los em homens úteis. Mesmo após a produção do relatório de Azevedo com suas proposições, o Governo Central decidiu por implementar a Colônia na margem direita do Rio. Devido à essa forte presença indígena na região do Espigão dos Agudos, na margem esquerda do Tietê, a penetração do Estado e as fundações das cidades nessa região teve um avanço mais tardio. Lençóis, elevada à freguesia no mesmo ano de fundação da Colônia do Avanhandava, 1858, e situada como ponto mais avançado do Estado na margem esquerda do Tietê, encontrava­se mais de 200 km distante da atual cidade de Avanhandava.

382 APESP – Ofícios Diversos – Colônia Militar do Avanhandava – CO820 – Relatório do Diretor da Colônia, Manoel Giraldo do Carmo Barros, 27 nov. 1862, doc. 30A. 383 Iniciado o século XIX, toda a região oeste da província era grafada nos mapas como “Sertões Desconhecidos”, Cf: BEIER, José Rogério. Artefatos do Poder: Daniel Pedro Müller, A Assembleia Legislativa e a Construção Territorial da Província de São Paulo (1835­1849). Dissertação de Mestrado em História, USP­FFLCH, 2015. Com o avanço da população branca a partir da segunda metade do século XIX, a territorialidade indígena na província paulista vai se restringindo na região da margem esquerda do Rio Tietê. 100

Mapa 3. Diferentes ritmos de avanço governamental nas margens do Rio Tietê.

CM Avanhandava (1858)

Avanhandava

Araraquara

Espigão Bauru (1896) Dos Agudos N Lençóis (1858) Ti etê Botucatu (1855)

Fonte: Mapa elaborado pelo autor tendo como base o Mapa Hipsométrico do Estado de São Paulo, disponível no endereço eletrônico do Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em 14 abr. 2021.

Os documentos oficiais de Botucatu e Lençóis, que à época eram os povoados que mais se aproximavam da região de Bauru, demonstram que a penetração sobre a área esquerda do Tietê foi dificultosa. No ano de 1858, dois fazendeiros que intentavam expandir a área de produção agrícola e pecuária sobre a região, mandaram proposta ao presidente da província para avançarem sobre os “sertões de Botucatu” e os ”sertões de Bauru”384. Felicíssimo Antônio de Sousa Pereira, que vimos ter declarado posse de terras na região de Bauru em 1856, e Francisco de Paula Vieira, também fazendeiro e à época presidente da Câmara Municipal de Botucatu, enviaram por meio do Diretor Geral dos Índios da Província de São Paulo, “um plano de retirar os indígenas da parte fértil do sertão”385. Segundo Francisco Vieira, no mesmo relatório em que afirmou que com a promulgação da Lei de Terras (1850) os grupos indígenas passaram a se sentir mais protegidos, a maior necessidade naquele momento era firmar vias de comunicação: [...] A outra necessidade, Exmo. Sr., é a falta de comunicação, o terreno de Cima da Serra é aquele dotado pela natureza de fácil meio de comunicação, sem grande

384 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e índios: A propriedade da terra no Vale do Paranapanema. São Paulo: Arte&Ciência, 2003, p. 134. 385 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Op. cit. p. 133. 101

dispêndio do Cofre Provincial; mas que precisam ser atendidas estas necessidades com urgência pelo Exmo. Governo, na certeza de que será muito coadjuvado pelos habitantes daqueles lugares, porém precisando de um homem prático em tais trabalhos para lhes dar direção.386 O documento dizia que se tratava de um empreendimento “fácil”, tendo como suporte para tal caminho o Espigão dos Agudos, referido como “terreno de Cima da Serra”. Chama a atenção que tal empreendimento mesmo sem dificuldades, só poderia ser realizado com auxílio de moradores e de “um homem prático” que guiasse o trabalho. Nesse cenário de penetração dos territórios indígenas por meio de “picadas”, teve destaque a figura de Felicíssimo Pereira, “homem prático” daquela região. Todavia, como veremos, mais de duas décadas após essa recomendação de Francisco Vieira, a estrada que buscava chegar à região do Avanhandava pelo lado esquerdo do Rio Tietê não se encontrava consolidada. O movimento de avanço da sociedade imperial sobre as territorialidades indígenas era percebido pelas autoridades, mesmo que em um ritmo lento se comparado com outras regiões da província. Adentrada a década de 1860, a territorialidade Kaingang foi ficando cada vez mais restrita, tendo como um de seus pontos de concentração a Serra dos Agudos. A percepção de que os indígenas reconheciam o avanço de colonos e se escondiam nas matas, poderia servir como motivação para os planos do Estado nacional. Ao mesmo tempo, mecanismos mais pragmáticos eram aplicados. Ao invés da catequese regular no modelo dos aldeamentos indígenas, foram privilegiados mecanismos como: a construção de estradas, a formação de comitivas de homens armados e expedições científicas de reconhecimento do território. Nesse sentido, em 1861, o Diretor Geral dos Índios da província de São Paulo, Machado de Oliveira, relatava a seguinte situação do Oeste paulista ao presidente da província: Talvez que por mais de um século não deixassem eles as margens do Paraná e Tietê, enquanto se frequentou por estes rios o trajeto desta província para Cuiabá, atacando as frotas de canoas que iam por eles logo que conheciam a possibilidade de empresa favorável, e assaltando as comitivas que pernoitavam em terra. Porém, é certo que se internaram pelo sertão de Botucatu logo que pressentiram que pelo seu lado oriental começava o povoamento, e ali apareceram os seus primeiros povoadores, fazendo o seu principal alojamento entre a Serra dos Agudos e a margem esquerda do Tietê387. Cabe pontuar que em conjunto com a tentativa de consolidação de caminhos terrestres pelo interior paulista, o governo provincial também adotou uma política de tentativa de extermínio dos grupos indígenas. No início da década de 1860, devido à forte resistência indígena em não abandonar seus territórios nos sertões de Botucatu, o juiz municipal daquela

386 Relatório de Francisco de Paula Vieira ao Governo Provincial (21 abr. 1858). Apud. DONATO, Hernani. Achegas para a História de Botucatu. 3 ed. reescrita. Botucatu: Banco Sudameris Brasil/ Prefeitura Municipal de Botucatu, 1985, p. 110. Apud. DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Op. cit. p.134. 387 RD – APESP – Ofícios Diversos – “Acerca da catequese e civilização dos índios aldeados desta província”, José Joaquim Machado de Oliveira, Diretor Geral dos Índios, 31 out. 1861. 102 vila, Felipe Correa Pacheco, designou a Secretaria de Polícia para que fizesse “repressão aos assaltos e hostilidades do Índios bravios”. Essa ação policial foi referendada com a Portaria de 14 de março de 1862388. Além da atuação do juiz de Botucatu, estavam envolvidos diretamente nessa política, Felicíssimo Pereira, encarregado de abrir a estrada e posteriormente responsável pela catequização dos índios; e o próprio Diretor Geral dos Índios, Joaquim Machado de Oliveira389. Nesse mesmo período, com a formulação de ações mais violentas por parte das autoridades provinciais e locais, o governo central pareceu ter dado respaldo a tal prática. Também em 1862, a partir de um informe do Diretor dos Índios de São Paulo, Machado de Oliveira, o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas emitiu um aviso específico para São Paulo – e depois repassado para Pernambuco, Paraíba e Sergipe – em que “recomenda extinguir os aldeamentos abandonados”390. Analisando a documentação referente à política indigenista, é possível observar a redução no fornecimento de verbas para a manutenção e construção de novos aldeamentos na província paulista. Ao mesmo tempo, como apontou Amoroso, é exatamente entre as décadas de 1850­60 que começa haver um deslocamento dos recursos da política de aldeamentos de São Paulo para a província do Paraná, onde era construído um sistema de aldeamentos e colônias militares em conjunto com a província do Mato Grosso391. E enquanto a política de aldeamentos era preterida, os investimentos com a construção de estradas eram cada vez maiores, mesmo que seus resultados não surtissem o efeito esperado pelas autoridades392. A conjuntura global de criação de rotas terrestres e também fluviais buscando a intensificação da circulação de mercadorias393, pode ajudar a explicar essa mudança no modo de lidar com as populações indígenas. Com parte das freguesias e vilas mais avançadas sobre a região oeste estabelecidas, aumentava a invasão da população branca sobre os territórios indígenas, principalmente sobre as áreas de aldeamentos, fazendo com que muitos indígenas migrassem para outros núcleos ou retornassem para o interior das matas. Assim, ficava mais fácil para o governo decretar o

388 DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. p. 112. 389 Idem, p. 103. 390 CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislação Indigenista no Século XIX: Uma compilação: 1808­1889. São Paulo: Comissão Pró­Índio de São Paulo, 1992, p. 259. 391 AMOROSO, Marta. Terra de Índio. Op. cit., p. 79. 392 A “constatação” de que houve uma relação inversamente proporcional entre diminuição da verba da política de aldeamentos e aumento de repasses para a construção de estradas na região, trata­se muito mais de uma impressão analisando uma vasta quantidade de documentos administrativos. Talvez uma pesquisa futura possa quantificar esses números e comprovar essa dinâmica no Oeste paulista a partir da década de 1860. 393 BELLUCCI, Stefano et al. Labour in transport. Op. cit. 103 abandono de aldeamentos indígenas e se apoderar daquelas terras. Porém, os índios mantinham presença e acumulavam experiência no trato com a civilização imperial, fazendo com que suas ações fossem noticiadas de forma mais alarmante pelas autoridades locais. Tanto o receio de ver o projeto colonizador malogrado com a presença indígena em terras férteis quanto o interesse na possibilidade de utilizar sua mão de obra, fomentaram uma política baseada em “meios brandos e conciliatórios com força e terror”.394

3.4 Caminhos que unem, colidem e dispersam

O serviço de criação de estradas no século XIX demandava um longo processo. Antes de se ter uma estrada consolidada com os estudos e planejamentos que a antecediam, era necessário abrir uma picada, ou picadão. Aberta a picada e feito o levantamento do caminho, restava “aterrar” e “pedregulhar” a via. A manutenção dos picadões395 abertos sobre regiões de mata, garantindo o trânsito e a segurança de tropeiros e estafetas dos correios era um trabalho árduo para as autoridades. Retroceder algumas décadas, mais precisamente no ano de 1840, na mesma província de São Paulo, pode nos remeter a importância da manutenção – ou falta dela – nas estradas pelo interior do Império. Ao descrever sua passagem pelo sul da província, Francisco de Adolfo Varnhagen, membro do recém­criado Instituto Histórico­Geográfico Brasileiro, justificava sua mudança de perspectiva em relação aos indígenas do Império. Tendo uma concepção romântica do índio brasileiro, Varnhagen mudou de opinião quando se viu intimidado por uma suposta emboscada armada por índios próximos “à fazenda Morungaba”. O ataque por parte dos índios acabou não ocorrendo devido a Varnhagen estar acompanhado de um número suficiente de homens e “que eles [os índios] não gostam de ataques em que corram o menor risco”, deixando­ os passar sem levar nenhuma flechada. A indignação do futuro Visconde de Porto Seguro se fazia maior por tal fato ter ocorrido “nada menos que na estrada real, bastante frequentada por todas essas tropas e pontas de gado que concorriam à feira de Sorocaba etc.”396.

394 DORNELLES, Soraia S. A questão indígena e o Império. p. 105. 395 Embora mais fáceis de serem executados, os “picadões” poderiam durar poucos meses, principalmente a depender do crescimento da vegetação sobre o caminho aberto. Um ofício da Inspetoria Geral de Obras Públicas elucida a diferença orçamentária entre o picadão e a estrada que se pretendia construir entre Constituição e Campinas. Com a verba de 10.000$000 liberada pela Assembleia Provincial, podia “abrir­se desde logo o picadão em toda a linha, ou fazer­se com perfeição cerca de um terço da estrada.” In: APESP – Ofícios de Inspetores de Estradas – CO5158 – Pasta 1, doc. 98. 396 Informação colhida no trabalho de Laura Nogueira de Oliveira: Os indios bravos e o Sr. Visconde: os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen. Dissertação de Mestrado, UFMG, 2000. O relato de Varnhagen está em Os índios bravos e o Sr. Lisboa. Cf. VARNHAGEN, 1867, p. 36­8. 104

Durante todo século XIX a construção e manutenção de estradas demandou grande esforço dos governos provincial e central. Analisando os ofícios da época referentes a esse empreendimento, observamos que parte considerável das estradas consolidadas na província paulista foram aquelas que buscavam as grandes fazendas de café – grosso modo na região norte da província e no Vale do Paraíba. Estas estradas recebiam forte patrocínio de fazendeiros e do governo. Quanto mais se avançava para Oeste, especificamente a partir da região de Botucatu, mais as tentativas de consolidar rotas comerciais eram frustradas, prevalecendo a ação de “homens práticos”. Conforme já apontamos, houve diferentes ritmos de avanços por parte do Estado e da população branca entre os territórios separados pelo Rio Tietê. As sucessivas empreitadas buscando cortar os sertões paulistas com sentido à província do Mato Grosso demonstram isso. Havia um caminho terrestre fundamental para o intento do governo de facilitar a comunicação com a província do Mato Grosso. Este foi a estrada que ligaria a cidade de Constituição – atual município de Piracicaba – até Sant’Ana de Paranaíba, vila da província do Mato Grosso – e atual município do Estado do Mato Grosso do Sul. Tal caminho, grosso modo, pretendia­se implementar pela margem direita do Rio Tietê. Para nós interessa o trecho situado no território paulista, que vai da cidade de Constituição até o Estabelecimento Naval do Itapura, na foz do Rio Tietê. Este trecho, devido à grande distância397, foi dividido pelo governo em duas seções: a primeira de Constituição até a Colônia Militar do Avanhandava; e a segunda da Colônia Militar do Avanhandava até a Colônia Militar do Itapura. O desejo por esse caminho precede a criação da Colônia Militar do Avanhandava, ficando este núcleo durante seus dois primeiros anos de funcionamento sendo chamado de “Colônia Militar entre a cidade de Constituição e a Villa de Santana de Paranaíba”398. Além do receio do confronto com grupos indígenas, haviam outras dificuldades: a construção de pontes sobre os rios, a falta e/ou demora de verba liberada pela província, a presença de quilombos, falta de trabalhadores que se dispusessem a realizar tal tarefa, a manutenção com a vegetação que em poucas semanas fazia o caminho desaparecer, a presença de fugitivos da justiça etc. O início mais sistemático de consolidar um caminho terrestre em direção à região oeste da província paulista parece ter sido no início da década de 1850, contexto de alinhamento das instâncias governamentais. No ano de 1852, Antônio José da Conceição, foi nomeado inspetor

397 A distância entre a cidade de Piracicaba e Itapura ultrapassa 500 km. 398 APESP ­ Ofícios Diversos – Colônia Militar Avanhandava ­ CO820. 105 da “Estrada nova de Cuiabá”, partindo “da freguesia de Brotas até o Rio Paraná”.399 No ano seguinte, um ofício do Ministério do Império pedia informações à presidência paulista sobre “as estradas da Vila de Constituição para Santa Anna de Cuiabá”, que se encontram “intransitáveis não só por falta de pontes, como pelo mato que nelas tem crescido”.400 Em 1858, com a criação das Colônias Militares de Avanhandava e Itapura, o projeto da estrada de Constituição até Itapura, pelo lado direito do Rio Tietê, foi dividido em duas seções. Antônio Mariano de Azevedo, que em 1859 exercia o cargo de “Diretor do Estabelecimento Naval e Colônia Militar do Itapura”, enviava ofício ao presidente da província informando sobre o trecho da estrada entre as Colônias Militares de Avanhandava e Itapura. Ao indicar João Gonçalves Peixoto como pessoa apta para a feitura daquele serviço por ser “homem conhecedor minucioso destes sertões, e de uma autoridade e dedicação superiores a todo elogio”, Azevedo também apontava a “absoluta falta de braços” para tal empreendimento.401 A autoridade atribuída a Peixoto parece derivar do modo como este arregimentava trabalhadores para a abertura da estrada. Azevedo conta que tendo Peixoto “contratado um camarada”: depois de um quarto de légua feito para experiência, pediu um preço tão despropositado que o Sr. Peixoto nada tratou. Apesar disso, com sua infatigável autoridade conseguiu o Sr. Peixoto acabar no mês corrente dez a onze léguas a rumo d’agulha, com quatro camaradas que pode conseguir402. O diretor de Itapura reiterou repetidas vezes a autoridade exercida por Gonçalves Peixoto no serviço da abertura de estradas. Mesmo com a reiterada falta de braços, Peixoto conseguiu realizar uma distância considerável do caminho por meio de trabalhadores contratados. Com a chegada da época das chuvas e a cessão dos trabalhos, “os camaradas retiraram­se decididos a não voltar”. Mariano de Azevedo continua o ofício dizendo que se o Governo Imperial não intervir, [...] perderemos o pouco que se tem feito, e as quantias com ele dispendidas. O único meio de evitar este resultado é mandar o Governo Imperial trinta escravos africanos especialmente destinados para a abertura dessa estrada. [...] Há meios de abri­la sem ser com Africanos livres mandados pelo Governo?: ­ Não: redondamente não. Tudo o que se fizer fora disso é despender dinheiro e trabalho em pura perda.403 O mecanismo de abrir estradas por regiões interioranas escancarava as fraquezas do Império. O intento em explorar os sertões esbarrava na presença das populações indígenas e na falta de trabalhadores para este serviço, que poderia ser realizado por meio de contratos nada justos ou pela prática do trabalho escravo.

399 APESP ­ Registro de ofícios encaminhados e recebidos dos Inspetores de Estradas – E643. 400 APESP ­ Avisos do Ministério – CO7707. 401 APESP ­ Ofícios dos Ministérios ­ CO5247 ­ Ofício 126, 25 de dezembro de 1859. 402 Idem. 403 Idem. 106

Um dos objetivos da Colônia Militar do Avanhandava era encurtar a distância com a província do Mato Grosso tendo como eixo central o Rio Tietê, fazendo com que os agentes do governo não tivessem que se deslocar pelos sertões de Araraquara. Ao solicitar do Administrador do Correio Geral da Província de São Paulo que “os estafetas do correio” passassem por Avanhandava, o diretor da Colônia Militar expunha a situação de duas estradas. A mais curta, projetada para ligar Constituição à Santana de Paranaíba: “devendo ser a mais zelada, está em pior estado mormente para o tempo das chuvas”. Por conta disso, há “dois ou três anos” o Administrador do Correio deliberou que os estafetas não percorressem este caminho, preferindo presentemente fazerem essa jornada pela estrada que vai ao Aldeamento de São Francisco com volta maior de vinte léguas, e prejuízo desta estrada que assim abandonada está precisando de limpezas e meios de passagem nos ribeirões e córregos [...]404 O diretor Giraldo de Barros indica que o caminho que deveria ser utilizado após a instalação da Colônia Militar, por ser mais curto, encontrava­se em más condições. Além disso afirma que os estafetas preferindo alongar o caminho para terem uma viagem mais segura, utilizavam a “estrada que vai ao Aldeamento de São Francisco”. Na leitura da bibliografia elencada para esta pesquisa não encontramos nenhuma referência a esse núcleo. Nem em outros documentos. Cogitamos a possibilidade de existirem índios na região onde hoje existe o município de São Francisco405, situado no provável caminho “mais longo” que seguia para a província do Mato Grosso. Outra possibilidade seria referente ao município de São Francisco Salles, em Minas Gerais, que até meados do século XX foi povoado por índios Kayapó406. Havia o deslocamento da cidade de Constituição para a província do Mato Grosso, por mais debilitado que fosse. No entanto, as “exagerações” apontadas por Mariano de Azevedo referentes à “onças, bugres e sezões” quando de sua navegação pelo Tietê, parecem não ter desaparecido. Ao longo do funcionamento da Colônia do Avanhandava foram recorrentes os pedidos dos diretores feitos à província solicitando médicos e medicamentos, e as notificações de colonos mortos atingidos por febres causadas pelas várzeas do Rio Tietê. Na circulação das estradas por colonos havia a “necessidade de viajar­se com espingarda de caça, facão do mato, e mesmo faca de ponta [...]”407.

404 APESP ­ Ofícios Diversos CM Avanhandava ­ CO820, doc. 50A, 28 de março de 1860. 405 Ao buscarmos informações no endereço eletrônico da Prefeitura de São Francisco, “A História da Cidade” inicia­se na década de 1940, sem nenhuma menção aos povos indígenas. 406 MANO, Marcel. Os Campos de Araraquara. p. 284. 407 APESP ­ Ofícios Diversos CM Avanhandava ­ CO820, doc. 77, 6 de agosto de 1860. 107

A penetração governamental pela margem direita do Tietê pareceu ter sofrido mais com a própria desarticulação dos diferentes níveis de poderes e com as condições físicas do território ­ rios, ribeirões, córregos e vegetação. Já na margem oposta, além desses fatores e da circulação mais intensa de outros atores ­ quilombolas, criminosos, pequenos agricultores, entre outros ­, havia diferentes grupos indígenas esbarrando as tentativas institucionais de desconfigurar seus territórios.

Mapa 4. Caminhos percorridos na margem direita do Rio Tietê e as territorialidades indígenas na margem oposta.

Região de circulação e

moradia de diferentes povos

indígenas

Fonte: Mapa elaborado pelo autor tendo como base o Mapa Hipsométrico do Estado de São Paulo, disponível no endereço eletrônico do Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em 14 abr. 2021.

Como visto no capítulo anterior, o relatório do juiz municipal de Botucatu, Francisco de Paula Vieira, enviado ao governo provincial em 21 de abril de 1858, alertava sobre segurança da “grande propriedade” na região.408 Com sucessivos “ataques indígenas” às fazendas de Botucatu, em julho daquele mesmo ano, Felicíssimo Pereira se apresentou como porta voz de uma representação enviada à presidência da província por 350 moradores daquela localidade.409

408 DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios. p. 99. 409 DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império. p. 81. 108

No ano seguinte Felicíssimo foi encarregado “da abertura de um picadão entre a Vila de Botucatu e o Salto do Avanhandava”410. Com o aval da província para que Felicíssimo avançasse com “as bandeiras missionárias” no projeto de expansão da propriedade agrícola, os casos de violência envolvendo a morte e o sequestro de indígenas reverberaram nos jornais411. O periódico carioca Correio Mercantil narrou o fato de uma bandeira ter resultado na morte de 16 índios, sendo uma das vítimas uma criança de 13 anos. Tanto o Diretor Geral, Machado de Oliveira, quanto o Diretor dos Índios, Felicíssimo Pereira, acusavam o jornal de adulterar os fatos.412 Um ofício do governo central, do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, após ter recebido da província paulista as informações solicitadas sobre o ocorrido, também parece não ter dado importância para a notícia veiculada: [...] o Diretor dos Índios Felicíssimo Antônio de Souza Pereira procurando atrair os Índios que vagueiam no sertão da Freguesia de Lençóis penetrado a frente de uma bandeira no Aldeamento do mesmo, de cujo encontro resultou na morte de uma Índia, tenho a dizer­lhe que fico inteirado de todas as circunstâncias que acompanharam esse sucesso, do qual pelo Diário Oficial se mandou dar a devida publicidade para corrigir a inexatidão com que tinha sido referido pelo Correio Mercantil desta Corte.413 Interessante destacar que anos antes, em 1854, o Diretor Geral dos Índios de São Paulo, acusou a Diretoria da província de Minas Gerais de praticar maus tratos contra os indígenas daquela região414. Talvez decorrido oito anos desde este fato, Machado de Oliveira tenha mudado sua perspectiva em relação ao modo de lidar com as populações indígenas. Provavelmente o fato da denúncia do Correio Mercantil recair sobre um de seus encarregados e em uma região de seu interesse, fez com que Oliveira não fizesse ressalvas quanto aos assassinatos cometidos por Felicíssimo Pereira em 1862. Com investidas mais coercitivas sobre os territórios indígenas ao longo da década de 1860, tornaram­se frequentes as notícias envolvendo confrontos entre índios e a população branca na região próxima à margem esquerda do Tietê. Parte considerável das informações relatadas por autoridades locais buscavam exaltar a violência exercida pelos índios de modo a justificar ações repressivas por parte dos colonos. Além da presença dos povos indígenas como obstáculo para o projeto colonizador, a conformação de outros grupos sociais também preocupava as autoridades. Na região da atual cidade de Avanhandava, na margem esquerda do Tietê, aglomeravam­se indivíduos que

410 APESP ­ Registro de ofícios encaminhados e recebidos dos Inspetores de Estradas ­ E643. 411 DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império. p. 110. 412 Idem. 413 APESP ­ Ofícios Ministérios do Império ­ CO5247 ­ 30 de dezembro de 1862. 414 APESP ­ Ofícios Ministérios do Império ­ CO7707 ­ 15 de dezembro de 1854. 109 buscavam ocupar terras próximas da Colônia Militar, mas sem se sujeitarem ao seu regulamento. Boa parte desses indivíduos chegavam pelo caminho de Araraquara e no ponto em que se localizava a Colônia, atravessavam o Salto do Avanhandava para o lado esquerdo.415 Foi nessa região que três colonos foram surpreendidos no Ribeirão dos Patos em 1865. Diferentemente de Felicíssimo e outros fazendeiros que pretendiam expandir suas propriedades, as quais se encontravam bloqueadas devido a presença dos índios que impedia o acesso de Lençóis a Avanhandava, havia quem não via necessidade de abrir picadas para acessar “fugitivos da polícia”: Existem, a légua e meia, à margem esquerda do Tietê, umas fazendas de audazes mineiros que lá se foram estabelecer nos centros dos gentios, mas que se começou com Araraquara, por uma vereda que fizeram abaixo do Salto do Avanhandava [...]; o resto da povoação é sem nome [...] selvagens de civilização, são piores do que os gentios... fugitivos da polícia, como a família dos Balduínos. Serão, todos dignos de qualquer sacrifício da província em conjuntura tão esperada, quando temos de fazer necessidades muito reais dos centros de produção? [...]416 Não conseguimos identificar o autor desta fala, mas o mesmo aparentava discordar com o projeto de construir estradas pelos sertões do Oeste paulista, onde não havia relevantes centros produtores. Adiante, a partir de informações colhidas de “um índio importante do aldeamento do Piraju”, expõe os interesses de Felicíssimo: A questão principal é desde o Bauru a Avanhandava, percorrendo a Serra dos Agudos. [...] para por em comunicação o bairro do Bauru com Avanhandava, onde se supõe existir grande porção de habitantes. Conversei com um índio importante do aldeamento do Piraju que informou­me da existência de uma povoação branca a três ou quatro dias de viagem de Bauru. Também informou­me que nesse espaço existe um quilombo de escravos, é por isso que o Sr. Felicíssimo e outras pessoas de Lençóis e Botucatu acharam conveniente pedir ao governo uma quantia para fazer essa estrada de Bauru até o lugar chamado Avanhandava417. No entanto, ao relembrar a “incomoda” presença causada pelos indígenas aos moradores de Lençóis, o autor da fonte acaba por concordar que a “estrada” é o meio que “facilita a catequese”. Chegou a propor outra alternativa: “até quis estabelecer uma espécie de aldeamento no Bauru, mas o Sr. Felicíssimo declarou que não era o meio mais fácil, mas sim era o de abertura de uma estrada que trata o projeto”418. Em meados da década de 1860, com o aumento dos conflitos decorrentes da Guerra do Paraguai e a preocupação da ligação com o Mato Grosso, a margem esquerda do Tietê foi

415 APESP – CO820 ­ Ofícios Diversos CM Avanhandava ­ Pasta 5. 416 Ofício da Câmara Municipal de Botucatu solicitando a abertura de estrada (12 de outubro de 1863). Anais da Assemblei Legislativa Provincial. São Paulo, p. 159 e 481. APESP. Apud. DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios. p. 136. 417 Ofício da Câmara Municipal de Botucatu solicitando a abertura de estrada (12 de outubro de 1863). Anais da Assemblei Legislativa Provincial. São Paulo, p. 159 e 481. APESP. Apud. DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios. p. 137. 418 Idem. 110 preterida como rota terrestre. O próprio caminho pela margem direita que encurtava consideravelmente a distância e motivou a criação das Colônias Militares do Avanhandava e Itapura anos antes, também mostrou sua fragilidade. O deslocamento de soldados e outros agentes que saiam da capital paulista em direção a Santana do Paranaíba – importante posto militar durante a Guerra – se fazia pela região norte da província paulista. Mariano de Azevedo relata em 1865, no início da Guerra, que os soldados utilizavam o caminho por Uberaba, em Minas Gerais, aumentando em 80 léguas a distância por falta de estradas mais seguras entre Itapura e Avanhandava.419 Findando a década e constatada a fragilidade dos caminhos terrestres durante a Guerra do Paraguai, o governo parece novamente empenhado em resolver a questão. Em 1868, na tentativa de centralizar a administração da construção de estradas na província, foi criada a Inspetoria Geral de Obras Públicas420. A fala de um deputado na Assembleia Legislativa de São Paulo, no mesmo ano de criação da Inspetoria de Obras Públicas, retoma a utilidade de “homens práticos” no serviço de abrir picadas sobre os sertões que separam as províncias de São Paulo e Mato Grosso: Um homem muito prático daqueles lugares, por nome de José Theodoro de Souza, cogminado ­ O Bugreiro ­ porque está sempre com os bugres, anda por si só descobrindo campos, fazendo posses e vendendo­as. Procede, é verdade, contra o que dispõe a Lei de Terras, mas, no entanto este seu procedimento traz grandes benefícios, pois ele, com seus recursos próprios, sem pedir auxílio a ninguém, vai descobrindo os campos, e assim, nos ministra dados que mais nos fortalecem neste projeto. Eu não quero que se faça reconhecimento em regra, com todo aparato da ciência, pois lá mesmo há homens práticos que se podem prestar a esse trabalho421. Parecia haver pressa no intento de desbravar os territórios indígenas, sendo preferível a ação de homens práticos do que a contratação de engenheiros. O relato exalta o conhecimento – indígena – de José Theodoro em desbravar campos e matas, que mesmo procedendo contrariamente à Lei de Terras trazia benefícios ao governo. Em novembro de 1870, a província mandou um ofício à Vila de Lençóis solicitando informações sobre a distância e viabilidade da construção de uma estrada com sentido aos “Campos do Avanhandava”. A autoridade de Lençóis respondeu no dia nove do mês seguinte que esse beneficiamento favoreceria não só aquela localidade como toda província e também os “sessenta fazendeiros que se aglomeram naquela região”.422 Em 14 de dezembro, era liberada verba para João Antônio Damasceno realizar a picada. Um ofício anexo informa que em janeiro

419 APESP ­ Ofícios dos Ministérios do Império ­ CO5248 ­ 8 de maio de 1865. 420 APESP ­ Ofícios ­ Inspetoria Geral de Obras Públicas ­ CO5158 ­ 11 de maio de 1858. 421 Abertura de estradas entre a Vila de Botucatu e o Mato Grosso (1871). Relatório da Assembleia Legislativa Provincial 1871. p. 110. APESP. Apud. DI CREDDO, Maria do Carmo Sampaio. Terras e Índios. p. 143. 422 APESP ­ Ofícios Lençóis ­ CO1091 ­ doc. 38, 9 de dezembro de 1870. 111 do ano seguinte “seguirão José Teixeira Dias e seus camaradas” realizando a picada e afirmando “ser de grande proveito”.423 Contudo, o relato do diretor da Colônia Militar do Avanhandava, informando sobre a situação dos fazendeiros que intentavam se comunicar com a Vila de Lençóis, mostra que a picada feita por “José Teixeira Dias e seus camaradas” não obteve o sucesso afirmado. O diretor da Colônia, João Pereira Lima Júnior, dizia que contatou o morador da região defronte à Colônia, José Antônio de Castilho e então: [...] coalizamos o povo dali, entrando eu com maior quantia e direção, passei um contrato com Francisco Rodriguez (conhecido por Francisco Bugreiro) por que já há um ano veio dos Lençóis sair nos Campos do outro lado e ficou na fazenda do finado Castilho, ganhando a quantia de R$400$000 com o único serviço de fazer refugiar os Índios, pois há um ou dois tribos de Chavantes, que fazem suas correrias [...]424 O número de colonos invadindo a região da margem esquerda do Tietê foi aumentando conforme a Colônia Militar do Avanhandava, situada do lado direito da margem, servia como um núcleo de apoio àqueles indivíduos. Os indígenas viam seus territórios sendo invadidos e agiam para repelir a presença da população branca. Estas ações eram retratadas de modo a caracterizar “as correrias” como práticas “selvagens” que colocavam em risco o desenvolvimento da “civilização”. Sabendo que os índios não desistiriam de suas terras e que muitos colonos não aceitavam isso, Lima Júnior solicitou a vinda de um sacerdote para a região, “para que fazendo suas prédicas a esse povo ignorante os guiasse com moralidade, procurando acabar com esse ódio mortal aos Índios”.425 No final do ano de 1871, mesmo após diversas investidas em desconfigurar as territorialidades indígenas na Serra dos Agudos, colonos e governo não obtiveram êxito. Um relatório da Diretoria Geral de Índios, assinado por Luiz Joaquim de Castro, em dezembro de 1871, faz um breve histórico sobre a presença indígena na província paulista, expondo sua visão sobre a recorrência de índios na região em que se pretendia “a realização da estrada de Bauru e os Campos de Avanhandava”: [...] A estrada de Botucatu e de Avanhandava seria de grandes resultados políticos e comerciais, a freguesia de Lençóis precisa de fácil comunicação com o Avanhandava. São os selvagens da Província tem sido infrutíferos os meios empregados para os civilizar, eles têm por vezes afrontado diversas povoações. Não havendo Catequese e civilização regular, o meio eficaz para extinguir suas correrias e dar segurança as populações civilizadas dos lugares adjacentes, é sem demora abrir estradas que vão ter ao Tietê no sertão do Avanhandava e outras ao Paranapanema”426.

423 APESP ­ Ofícios Lençóis ­ CO1091 ­ doc. 38A, 22 de junho de 1871. 424 APESP ­ Ofícios CM Avanhandava ­ CO821 ­ 10 de janeiro de 1871. 425 APESP ­ Ofícios CM Avanhandava ­ CO821 ­ 10 de janeiro de 1871. 426 APESP ­ Ofícios do Ministério do Império – CO5248 – Ofício da Diretoria Geral de Índios, 31 dez. 1871. Grifos nossos. 112

Em 1877, com o aumento de colonos defronte à Colônia Militar do Avanhandava, o novo diretor Eliseu Dantas Bacellar, apontava a construção da estrada entre a região de Avanhandava e a Vila de Lençóis como meio mais eficaz para afugentar os indígenas: Outro resultado benéfico que nos traz essa comunicação, e este superior a todos os outros, é a fuga ou catequese de índios que entorpecem o desenvolvimento d’um tão importante ramo de riqueza, trazendo em completo sobressalto os moradores e ­ fazendeiros, e roubando vidas preciosas de pais de famílias numerosas, que ficam no abandono.427 Em novembro daquele mesmo ano, ao solicitar médico e capelão para a Colônia, Bacellar dizia que os moradores do lado esquerdo do Tietê ficaram felizes com “com abertura da estrada de Lençóis a este porto”428. Porém, mesmo que de fato a estrada tenha sido feita, sua existência não se manteve por muito tempo, tampouco sustou a presença indígena na região. Em junho de 1879 o juiz de Direito de Lençóis, Joaquim Antônio do Amaral Gurgel, encaminhava à presidência da província um pedido. Se tratava da abertura de uma estrada para comunicar moradores “que habitam um vasto território de campos e matas na margem do Tietê defronte a Colônia do Avanhandava, entre estes moradores há muitos que dispõe de recurso que são fazendeiros de criar gado”429. Três meses após esse pedido, a falta de comunicação terrestre era novamente reiterada pela municipalidade de Lençóis. A motivação era alegada por outro ataque indígena, ocorrido no dia 3 de setembro na “fazenda que foi do finado Felicíssimo Antônio de Sousa, distante desta Vila dez léguas”. O fato é descrito de modo similar a outros do tipo. Estariam alguns indivíduos “ocupados no derrubamento de matos para plantação” até que “foram surpreendidos por um bando de índios [...]”430. A prática de destruição dos territórios indígenas, com a derrubada de matas, era vista como um ato valorativo, com o propósito da “plantação”. Ao defenderem suas terras que eram sistematicamente invadidas, as ações indígenas de ataque eram classificadas como “traiçoeiras”. Em contrapartida, a caça de índios pela mata com grupos de homens armados, como fez Francisco Sabino após a ação indígena, era classificada como uma atitude de “intrepidez e valor”431. O ataque ocorreu no local onde se pretendia a estrada entre Lençóis e Avanhandava, “[n]as fraldas da Serra dos Agudos.” A autoridade local lamentava a falta de instâncias governamentais naquelas paragens, tanto pela população civil que não se subordinava a nenhuma jurisdição, quanto pela presença dos próprios índios, impedindo a comunicação do município com a região do Avanhandava. Além disso, chegou a propor a

427 APESP ­ Ofícios Diversos CM Avanhandava ­ CO821, doc. 15, 31 de março de 1877. 428 APESP ­ Ofícios Diversos CM Avanhandava ­ CO821, doc. 63, 22 de novembro de 1877. 429 APESP ­ Ofícios Diversos Lençóis ­ CO4789 ­ Pasta 4, 1 de junho de 1879. 430 APESP ­ Ofícios Diversos Lençóis – CO1091 – Pasta 1, doc. 64, 9 de setembro de 1879. 431 Idem. 113 criação de uma Colônia entre Lençóis e Avanhandava, onde se encontra “aldêas de Índios”. A insatisfação ocorria pois: Desta Vila para Avanhandava não temos estrada. Nossas relações e até os oficiais para aquele lugar, se fazem por intermédio do Rio Tietê, com grandes dificuldades, com extraordinários trabalhos, com desperdícios de tempo, com perigo de vida, constantemente ameaçada pelos índios, ou pela febre paludosa. Entretanto é notoriamente sabido que por terra pelo lugar aludido dista o Avanhandava desta Vila pouco mais de vinte e seis léguas. Ao passo que pelo Rio Tietê e com as dificuldades apontadas, temos um curso de navegação de mais de 60 léguas!432 Três dias após esse fato, outro “assalto” indígena, “nas margens do Rio Alambary”, era relatado pela autoridade de Lençóis433. A criminalização do modo de vida indígena, lutando na defesa de seus territórios, foi um importante dispositivo utilizado pelas autoridades. A oposição do “índio selvagem” pondo em risco o “homem de bem” foi uma constante nos documentos governamentais analisados. Ao iniciar a década de 1880, mesmo com a entrada cada vez maior de imigrantes e a instalação das primeiras fazendas, nossa região ainda se encontrava incerta sobre a configuração territorial que se formaria. Uma aglomeração de fazendeiros nos Campos do Avanhandava passava a forçar o cerceamento das populações indígenas que residiam nas matas projetadas como caminho para a província do Mato Grosso. A partir de suas lutas, que poderiam se dar em diferentes modalidades, estes povos retardaram por décadas o avanço da fronteira pioneira sobre o Oeste paulista. Especialmente a etnia Kaingang, defendendo suas terras contra as ações de bugreiros armados contratados pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil até a criação do SPI, em 1912.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabíamos das dificuldades em encontrar registros sobre a participação dos povos indígenas nos documentos governamentais do século XIX. Ao mesmo tempo, tínhamos conhecimento que estes grupos estiveram presentes e permanecem lutando e vivendo atualmente na mesma região, mesmo que em áreas delimitadas. A despeito dessa invisibilização bancada pelas elites do Império, foi possível localizar documentos que comprovassem a atuação dos povos indígenas na história do processo de formação do território paulista. Conseguimos localizar atores políticos importantes servindo como braços do Estado no objetivo de expansão da propriedade agrária privada. Esse projeto, movido pelo ideário de

432 APESP ­ Ofícios Diversos Lençóis – CO1091 – Pasta 1, doc. 64, 9 de setembro de 1879. 433 APESP ­ Ofícios Diversos Lençóis – CO1091 – Pasta 2, doc. 58, 9 de setembro de 1879. 114 progresso e civilização, mesmo com opiniões divergentes à época, não hesitou em lançar mão de ações violentas com a própria participação do Estado. A descrença de boa parte das autoridades com a prática da catequese e civilização como modo de “converter” o índio, serviu de mote para que o governo se preocupasse cada vez menos com o papel das populações indígenas na sociedade que se formava. Nosso objetivo foi mostrar a relevância das presenças indígenas no processo de formação da região do Oeste paulista. Durante o período histórico analisado, foi possível constatar que as territorialidades de diferentes grupos étnicos foram sendo sistematicamente expropriadas por diferentes setores da sociedade imperial. Dentre os dispositivos lançados pelo Estado brasileiro em processo de construção, observamos o descumprimento da política indigenista vigente à época e o aumento de métodos mais pragmáticos no intento de afastar os indígenas de suas territorialidades. A opção por um modelo de catequese cada vez mais militarizada em conjunto com a construção de estradas pela região foram os mecanismos privilegiados pelo Estado contra a sociedade Kaingang concentrada na margem esquerda do Rio Tietê. A partir de fins da década de 1850, com a iminência do conflito com o Paraguai e a necessidade de estabelecer rotas seguras que garantissem a segurança interna e a guarnição das fronteiras com nações vizinhas, o Estado nacional buscou garantir sua soberania sobre uma porção do território permeada de conflitos. Alcançar uma comunicação estável com a província do Mato Grosso era um objetivo estratégico vital para conformação do Estado brasileiro. Em uma conjuntura global de formação dos Estados nacionais, garantir a soberania sobre o território projetado era fundamental para a consolidação daquele projeto. Ao mesmo tempo, outro movimento global, o de expansão e intensificação da economia capitalista, aumentando a demanda por novas áreas produtoras de bens agrícolas, impulsionava comerciantes, fazendeiros e políticos a avançarem sobre as territorialidades indígenas do Oeste paulista. Ao aprofundarmos a análise sobre as tentativas de avanço do Estado nacional ao longo do Rio Tietê, pudemos notar que houve diferentes ritmos de avanço a depender do lado da margem do Rio. Do lado direito, na região dos Campos de Araraquara, a construção de estradas apresentou um avanço mais regular. Já na margem esquerda do Tietê, na região dos Campos de Avanhandava, até o findar do nosso recorte cronológico (1879) não foi efetivada a construção do caminho terrestre proposta em 1859. Como discutido, as estradas se constituíram como um elemento fundamental para a expansão da economia capitalista e para a conformação do Estado nacional ao longo do século XIX. A presença Kaingang nas imediações das atuais cidades de 115

Bauru e Avanhandava foi um fator determinante para um ritmo mais lento de avanço das estradas em comparação com a região da margem direita do Rio. No Oeste paulista – o oeste geográfico, diferentemente da região do Vale do Paraíba e do norte da província – comumente chamada de “Oeste paulista”, não ocorreu a formação de fazendas cafeicultoras que marcaram o período imperial. A presença desses elementos conformando a paisagem do interior paulista ocorrerá somente nas primeiras décadas do século XX. Até a chamada “pacificação” dos Kaingang na região em 1912, inúmeros confrontos entre indígenas e não indígenas marcaram a formação das cidades do interior paulista. A criação SPI marca um novo ciclo na relação entre Estado – agora no modelo republicano – e os povos indígenas que sobreviveram às linhas férreas e aos ataques dos chamados “bugreiros”. Compreendemos que a importância das presenças indígenas na história do processo de formação do território paulista está para além dos nomes que carregam inúmeras cidades, bairros, ruas e rios do Estado de São Paulo. A busca atenta e paciente na documentação do Arquivo Público do Estado de São Paulo nos mostrou que é possível contribuir para o desenvolvimento da historiografia indígena. Assim, almejamos combater distorções e simplificações que reforçam estereótipos e preconceitos acerca dos povos indígenas e reproduz seu ocultamento na formação da sociedade brasileira.

FONTES Arquivo Público do Estado de São Paulo Fundo Secretaria do Governo da Província de São Paulo (1823­1892)

Instrução Pública Ofícios dos Inspetores de Instrução Pública (1831­1896): C5028 (Ofícios Botucatu).

Agricultura, Comércio e Obras Públicas Diretoria de Obras (1844­1895): C5159 e C5196 (Botucatu). Ofícios de Inspetores de Estradas, arrematadores de obras e engenheiros (1823­ 1892): C5158 e C7808 (1869 a 1870). Registro de ofícios encaminhados e recebidos dos Inspetores de Estradas (1844­ 1890): E643. Estradas de Ferro (1865­1890): C5597 (Companhia Inglesa – Estrada de Ferro Santos­Jundiaí 1870­71); 5604 (Ofícios enviados ao Presidente pelos Inspetores da SP Railway – 1865­79); 5609 (Estrada de Ferro Ituana); 5612; 5615; e 5616. Diretoria Geral de Índios (1883­1887): CO5521 e E733. 116

Ministérios do Império Ofícios dos Ministérios (1821­1891): C5247 e C5248. Avisos dos Ministérios (1824­1891): C7707.

Ofícios Diversos CO805 ­ Ofícios Diversos ­ Câmara Municipal da Vila de Araraquara 1861 a 1862; CO806 ­ Ofícios Diversos ­ Câmara Municipal da Vila de Araraquara; CO820 ­ Ofícios Diversos ­ Colônia Militar do Avanhandava 1859­64; CO821 ­ Ofícios Diversos ­ Colônia Militar do Avanhandava 1865­82; CO859 ­ Ofícios Diversos ­ Campos Novos do Paranapanema; CO1091 ­ Ofícios Diversos ­ Câmara da Vila Municipal de Lençóis; CO8461 ­ Ofícios Diversos ­ Espirito Santo do Turvo; CO4789 ­ Ofícios Diversos ­ Câmara da Vila Municipal de Lençóis 1882; E939 ­ Ofícios Diversos enviados à Colônia Militar do Avanhandava.

Acervo Cartográfico

Repositório Digital Ofícios Diversos.

FONTES IMPRESSAS Acervo Digital da Biblioteca Brasiliana Mindlin Relatório do Primeiro tenente D’armada Antônio Mariano de Azevedo, sobre os exames que foi imcubido no interior da província de S. Paulo, Rio de Janeiro, 1858

Coleção de Leis do Império do Brasil ­ 1873, Página 729 Vol. 2 (Publicação Original) DECRETO nº 5.405, de 17 de setembro de 1873. Concede à Companhia Fluvial Paulista autorização para funccionar, e aprova seus estatutos.

Hemeroteca Digital Correio Paulistano Relatórios dos Ministros de Guerra

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