UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO SANTOS

O VIAJANTE NO LABIRINTO: A CRÍTICA AO EXOTISMO NA OBRA MUSICAL DE TEMÁTICA BRASILEIRA DE FERNANDO LOPES-GRAÇA

CAMPINAS

2018

GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO SANTOS

O VIAJANTE NO LABIRINTO: A CRÍTICA AO EXOTISMO NA OBRA MUSICAL DE TEMÁTICA BRASILEIRA DE FERNANDO LOPES-GRAÇA

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Música, área de concentração Música: Teoria, Criação e Prática.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Lenita Waldige Mendes Nogueira

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO SANTOS E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LENITA WALDIGE MENDES NOGUEIRA.

CAMPINAS 2018

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO SANTOS

ORIENTADORA: Profa. Dra. Lenita Waldige Mendes Nogueira

MEMBROS: 1. PROFA. DRA. Lenita Waldige Mendes Nogueira (ORIENTADORA)

2. PROF(A). DR(A). Suzel Ana Reily

3. PROF(A). DR(A). Carlos Gonçalves Machado Neto

4. PROF(A). DR(A). Flávia Camargo Toni

5. PROF(A). DR(A). Ana Cláudia de Assis

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica da aluna.

DATA DA DEFESA: 22.02.2018

À Raquel, de quem pela primeira vez ouvi o nome de Fernando Lopes-Graça.

Ao Marcão, pelas mãos de quem pela primeira vez cantei uma de suas composições.

Ao maestro José Robert e ao Coro Lopes-Graça, pela profunda lição de musicalidade.

AGRADECIMENTOS

À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa no país e no exterior.

À minha orientadora, profa. Dra. Lenita Nogueira e ao meu coorientador em Portugal, prof. Dr. Mário Vieira de Carvalho, pela confiança, paciência e generosidade.

Aos meus pais, Nilton José Lopes e Maria Zilda de Carvalho Lopes e ao meu esposo Volnei dos Santos, pelo incentivo e apoio incondicional aos meus estudos.

Aos professores Drs. Ana Cláudia de Assis, Flávia Toni, Suzel Reily e Cacá Machado, pelo intenso e proveitoso diálogo durante a defesa. Aos profs. Drs. José Roberto Zan, Lutero Rodrigues e Paulo Kühl, pela disposição em participar da banca. Aos professores que participaram das bancas dos exames intermediários, pelas valiosas sugestões: Drs. José Roberto Zan e Denise Garcia (Monografia I), Dras. Adriana Giarola Kayama e Maria José Carrasqueira (Monografia II) e Drs. Suzel Reily e Cacá Machado (Qualificação).

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Música da UNICAMP e convidados, com quem pude cursar disciplinas que muito acrescentaram à minha formação: Drs. Hermilson Garcia do Nascimento, Denise Garcia, Angelo Fernandes, Kathryn Hartgrove, Cacá Machado, Adriana Giarola Kayama, Eliana Asano Ramos e Carlos Fiorini.

Às coordenadoras do projeto temático “O musicar Local”, Suzel Reily, Flávia Toni e Rose Hikiji e a todos os colegas, pelo interesse nesta pesquisa, sugestões e contribuições nas desafiadoras leituras coletivas.

Ao Programa de Pós-Graduação em Música da UNICAMP, na pessoa de seu atual coordenador, prof. Dr. Alexandre Zamith Almeida e de todos os funcionários da secretaria, pelo apoio financeiro e esclarecimentos sobre as questões burocráticas.

A toda a equipe do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical e ao Núcleo de Doutoramentos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, pela acolhida e atenção.

Aos professores com quem cursei disciplinas no programa de Ciências Musicais da FCSH-NOVA, Drs. Maria de São José Côrte-Real, Manuela Toscano e Paulo Ferreira de Castro. Também aos profs. Drs. Paula Gomes Ribeiro, pela acolhida no Grupo de Investigação em Teoria Crítica e Comunicação e Manuel Deniz Silva, um dos coordenadores dos seminários “Cultura, Ciência e Política em Portugal no século XX”, com cujos trabalhos esta tese acabou por ter grande diálogo.

À professora Lucielena Terribile, pelas valiosas lições de análise musical durante a elaboração do projeto e o início da pesquisa.

A todos os colegas do PPG-Música-UNICAMP e dos cursos de Mestrado e Doutoramento em Ciências Musicais da FCSH, pela acolhida dentro e fora da sala de aula e sempre proveitosa troca de ideias.

Às equipes dos acervos, portugueses e brasileiros, a que tive acesso, especialmente à do Museu da Música Portuguesa-Casa Verdades de Faria, na pessoa de sua diretora Conceição Correia, bem como à Biblioteca Nacional de Portugal, à Divisão de Música da Biblioteca Nacional, ao Centro Cultural Banco do Brasil e à Fundação Casa de Rui Barbosa, no , ao Acervo Curt Lange, da UFMG, à biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, à divisão de obras raras da Biblioteca Central César Lattes e ao Centro de Documentação da Música Contemporânea, da UNICAMP. Também à Ana Paula Sampaio pelo acesso ao seu extraordinário arquivo pessoal e à Fundação Casa de e ao Acervo Vera Janacopoulos - UNIRIO, pela rápida resposta às dúvidas.

A Edino Krieger, António de Sousa, José Robert, Fernando Serafim, Ana Paula Sampaio, Francisco Jorge e José Eduardo Martins, pela solicitude e generosidade em suas entrevistas.

Ao maestro José Robert e ao Coro Lopes-Graça da Academia de Amadores de Música, pela “adoção imediata” e pela valiosa lição de “acção vivida”.

A todos os amigos da Casa e do Coro da Achada, pelas ricas e diversas experiências culturais e por me aproximarem da figura de Mário Dionísio.

À equipe do Museu Nacional da Música, por possibilitar a realização do recital “Fernando Lopes-Graça e seus Contemporâneos”. Aos pianistas Carla Ruaro e

Duarte Pereira Martins, pela parceria musical. À Fundação D. Luís, pelo convite para participar do Simpósio Fernando Lopes-Graça em retrospectiva.

A toda a equipe da revista Glosas, nas pessoas de Edward Luiz Ayres d’Abreu e Duarte Pereira Martins, por me permitir colaborar neste importantíssimo intercâmbio.

À profa. Lenita e aos alunos de História da Música e História da Música Brasileira, pela oportunidade de aprendizado no Programa de Estágio Docente.

À maestrina Elisabeth Alcântara e ao Coral da Escola de Engenharia de Lorena, por acolher a mim e à música de Lopes-Graça e fazer seu o “Acordai!”

A todos os pareceristas e intervenientes que nos projetos, artigos e eventos acadêmicos, abriram novas possibilidades a este trabalho.

Aos amigos Angela Portela, Gabriel Gagliano, Yasmin Portela Gagliano, Maria Aparecida Martins, (Lisboa/Amadora/Cascais), Laiana Oliveira, Cláudia Roberta Bortoletto e Rodrigo Lermes (São Paulo) Aoife Hiney, Manuela Valente e Jaime Cunha (Aveiro), Estêvão Amaro e Célia Nahas (Belo Horizonte), Gabriela Salomão Martins e Felipe Saliba, (Rio), por me receberem em suas casas.

Aos amigos especialmente próximos virtual e presencialmente nos últimos anos, uns por me fazerem falar mais da pesquisa, outros por me ajudar a descontrair.

É necessário conhecer seu próprio abismo E polir sempre o candelabro que o esclarece

Murilo Mendes – Poema Dialético

RESUMO

A multifacetada trajetória do compositor, ensaísta, crítico, regente, professor, pianista, pesquisador de folclore, ativista político e tradutor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994) é marcada pela dialética entre as noções de modernidade e tradição, bem como de local e universal. Apontam-se muitas similaridades entre o seu pensamento estético e o nacionalismo modernista brasileiro, bem como entre os momentos políticos vivenciados nos dois países. Mais que um paralelo, existe uma relação entre Lopes-Graça e o Brasil, abrangendo cerca de quatro décadas de correspondência com personalidades e instituições ligadas ao meio cultural do país, dedicatória de obras, duas viagens, promoção de concertos, escrita e publicação de textos e a composição de considerável obra musical de temática brasileira, a saber: as Sete Canções Populares Brasileiras (1954), para voz e piano, dedicadas à soprano Vera Janacopoulos, a canção Desafio (1958), sobre um poema de Manuel Bandeira, para a mesma formação, as Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras (1960), para coro misto a cappella, dedicadas à memória de Mário de Andrade, a abertura orquestral Gabriela, Cravo e Canela (1963), inspirada no romance homônimo de Jorge Amado e o quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos (1970). O conhecimento da existência desse repertório levou a perscrutar a natureza de seu olhar, enquanto compositor, sobre o Brasil. Como se posicionaria, num contexto pós-colonial informado por colonialismos vigentes, sobre a questão do exotismo (preocupação cara ao autor, embora nem sempre discutida nestes termos)? A partir da análise do corpus musical, tendo como foco a sua relação com o que denomino, num sentido alargado, “material temático” (fontes musicais e literárias, dedicatários, etc.), associada à comparação com algumas de suas composições coevas sobre a cultura portuguesa e outras, é possível perceber uma atitude de crítica, realizada em duas vias relacionadas. Uma é a do conhecimento, isto é, de sua aproximação com a cultura e a arte brasileiras, visível no refinamento de suas abordagens musicais. A outra é a da alteridade, seja por meio do trabalho sobre a música tradicional a partir do destaque dos elementos que a diferenciavam da produção mais difundida nos meios de comunicação ou da explicitação de suas idiossincrasias estilísticas, possível reconhecimento dos limites conferidos por sua condição de estrangeiro.

Palavras-chave: Fernando Lopes-Graça; Exotismo; Relações Musicais Luso- Brasileiras.

ABSTRACT

The many-sided career trajectory of Portuguese composer, essayist, critic, conductor, teacher, pianist, folklore researcher, political activist and translator Fernando Lopes- Graça (1906-1994) is marked by a dialectical approach to the concepts of modernity and tradition and of local and universal. Specialists point out many similarities between his aesthetic thought and Brazilian nationalist modernism, as well as between the political contexts in both countries. More than a parallel, there was a relationship between Lopes-Graça and Brazil, consisting of four decades of correspondence with personalities and institutions from Brazilian cultural milieu, work dedications, two trips, concert promotion, text writing and publication, alongside a substantial corpus of works on Brazilian themes, namely: Sete Canções Populares Brasileiras (Seven Popular Brazilian songs) (1954), for voice and piano, dedicated to Brazilian soprano Vera Janacopoulos, Desafio (1958), on a poem by Manuel Bandeira, for the same formation, Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras (Seventeen Traditional Brazilian Songs) (1960), for mixed choir a cappella, dedicated to the memory of Mário de Andrade, the symphonic overture Gabriela, Cravo e Canela (1963), based on the homonymous novel by Jorge Amado and the woodwind quintet O Túmulo de Villa-Lobos (1970).The cognizance of this repertoire made me question the nature of his view, as a composer, on Brazil. How would he stand, in a post-colonial context informed by remaining colonialisms, on the question of exoticism (an important concern to the author, although not always discussed in these terms)? Parting from the analysis of the musical corpus, focusing on the relation to what I call, in a broad sense, “thematic material” (literary and musical sources, dedicatees, etc.), in comparison with works from the same period on Portuguese and other cultures, it is possible to notice an attitude of criticism, in two related ways. The first one is Knowledge, by his experience of Brazilian culture and art, visible in his sophisticated musical approaches. The second is otherness, manifest through the highlight of the elements that distinguished traditional music from the one spread in the mass media, or through the explicitness of his stylistic idiosyncrasies, which can be regarded as awareness of the limits of his knowledge and experience as a foreigner.

Keywords: Fernando Lopes-Graça; Exoticism; Luso-Brazilian Musical Relations

LISTA DE FIGURAS Figura 1: Lopes-Graça (sentado, à esquerda), com os colegas do quinteto do Salão Paraíso...... 54 Figura 2: Lopes-Graça (assinalado) na reunião de apresentação do MUD...... 60 Figura 3: Coro da AAM em apresentação na Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, 1952...... 65 Figura 4: Frontispício das Marchas, Danças e Canções. (1946) ...... 66 Figura 5: Página inicial da partitura de Mãe Pobre...... 68 Figura 6: Página inicial da partitura de Senhora Santa Cat'rina...... 69 Figura 7: Partitura de Rezemos um Padre-Nosso...... 70 Figura 8: Apresentação do coro da AAM em Angola...... 75 Figura 9: Dedicatória da edição brasileira de Musicália ...... 100 Figura 10: Da esquerda para a direita: João José Cochofel, Camargo Guarnieri e Fernando Lopes-Graça. Esta foto aparece no artigo da Conversa e provavelmente foi tirada por ocasião da entrevista ...... 106 Figura 11: Café, 1935, de Cândido Portinari ...... 113 Figura 12: Programa da Sonata, de 26 de abril de 1948, com obras de Villa-Lobos, Guerra-Peixe e Mignone ...... 123 Figura 13: Postal de Ouro Preto enviado por Lopes-Graça a Manuel e Berta Mendes. Data ilegível...... 132 Figura 14: Postal de São Paulo, enviado por Lopes-Graça ao casal Mendes...... 133 Figura 15: Da esquerda para a direita - José Eduardo Martins, Fernando Lopes-Graça e António Saraiva na casa da família Martins em 1958...... 134 Figura 16: Programa do Recital de Lopes-Graça e Saraiva no Auditório do instituto de Educação Caetano de Campos...... 135 Figura 17: Postal enviado de Salvador a Manuel e Berta Mendes...... 137 Figura 18: Cidades visitadas por Lopes-Graça. Recife, Salvador (região Nordeste), Belo Horizonte, Ouro Preto, Rio de Janeiro, São Paulo (região Sudeste) e Florianópolis (região Sul)...... 138 Figura 19: Excerto da reportagem do jornal A Gazeta...... 141 Figura 20: Paralelismo de terças em Virgem do Rosário...... 150 Figura 21: Excerto das Tayêras, de Gallet...... 151 Figura 22: Anticlímax em Virgem do Rosário (c. 36 a 39)...... 152 Figura 23: Repetição com modificações cromáticas na escrita pianística...... 153

Figura 24: Repetição com modificações cromáticas na escrita vocal, c. 24 a 35. ... 153 Figura 25: Anticlímax em Tutu Marambá ...... 155 Figura 26: Conclusão de Ô três pêga...... 157 Figura 27: Início de Xangô...... 158 Figura 28: Início de Xangô...... 159 Figura 29: Início de Olê, Lionê...... 160 Figura 30: Excerto inicial da canção Colônia, usina Catende...... 162 Figura 31: Excerto de Ó, Léo, ó Léo...... 164 Figura 32: Início de Té minhã...... 165 Figura 33: Excerto de Eu plantei o roxo n'água...... 166 Figura 34: Início de Meu boi nasceu de manhã...... 167 Figura 35: Excerto de Dorme, Suzana...... 168 Figura 36: Excerto de É Lampi, é Lampi...... 169 Figura 37: Excerto de Samba Negro...... 170 Figura 38: Excerto de Ai! eu não sou daqui! ...... 171 Figura 39: Início de Tenho um vestido novo...... 173 Figura 40: Excerto de Eu não pensei, minina...... 174 Figura 41: Início de Meu irmão que vai passando...... 175 Figura 42: Excerto de Olha o rojão! ...... 176 Figura 43: Excerto de São horas de eu virá negro...... 178 Figura 44: Excerto de Pega a enxada e leva o pito...... 179 Figura 45: Excerto de Ia baiê...... 180 Figura 46: Início de Adeus, campina da serra...... 182 Figura 47: Excerto de Meus senhores eu sou a bota...... 183 Figura 48: Excerto de Ia baiê. Estrutura responsorial mantida...... 184 Figura 49: Jogo de alternância de vozes em excerto da canção Meus senhores eu sou a bota. Em azul a estrofe e, em amarelo, o refrão...... 185 Figura 50: Uso de notas pedais em Não segueis o trigo verde e Ó Léo, ó Léo ...... 187 Figura 51: Rarefação (azul) e adensamento (vermelho) da textura em excertos de Dorme, Suzana e À ordem de César...... 189 Figura 52: Dualidade modal, ambiguidade tonal-modal e cadência suspensiva em excerto inicial de ...... 191 Figura 53: Excerto inicial da canção Ai! Eu não sou daqui...... 192

Figura 54: Excerto da moda de viola Adeus, campina da serra...... 193 Figura 55: Excerto final da canção Samba Negro...... 195 Figura 56: Distribuição regional das Sete e Dezassete Canções ...... 198 Figura 57: Reportagem sobre a primeira audição brasileira de Gabriela...... 206 Figura 58: "Abrir do pano" em Gabriela ...... 207 Figura 59: Início da nona sinfonia de Beethoven, possível referência para o "abrir do pano" de Gabriela...... 209 Figura 60: Escala de si b mixolídio com quarta aumentada. O uso em um excerto (violoncelos soli) pode ser observado mais adiante...... 210 Figura 61: Piccoli “imitando pífaros” em Gabriela (c. 21 a 23)...... 211 Figura 62: Excerto do Quarteto nº 2, de César Guerra-Peixe...... 213 Figura 63: "Tópica urbana" em Gabriela ...... 215 Figura 64: Primeira aparição do “tema” de Gabriela (c. 78 a 83) ...... 216 Figura 65: Refrão “Prends garde à toi!” da Habanera de Bizet ([1877], p. 51)...... 217 Figura 66: Ritmo de habanera na tópica nordestina (3 violoncelos soli “imitando rabecas”, c. 12 a 14)...... 217 Figura 67: Segunda aparição do tema de Gabriela (c. 97 a 102)...... 220 Figura 68: Subversão musical da "morte necessária" (anticlímax) em Gabriela (c. 212 a 242) ...... 224 Figure 69: Uso do ritmo de habanera na mão esquerda do piano - início de Sorocaba, das Saudades do Brasil, de Milhaud ...... 230 Figura 70: Início de Noutros tempos a figueira da foz dançava o Lundum, das Viagens na minha terra...... 230 Figura 71: Introdução do Desafio de Edino Krieger ...... 243 Figura 72: Episódio instrumental no Desafio de Krieger ...... 244 Figura 73: Coda do Desafio de Edino Krieger ...... 244 Figura 74: Início do Desafio de Lopes-Graça. Tema (c.2 a 6) seguido de sua repetição modificada (c. 7 com anacruse a 9)...... 247 Figura 75: Seção B. Dualidade métrica na primeira parte e destaque para o uso de tons inteiros em "contra o vento zumbidor"...... 248 Figura 76: Episódio que liga B ao retorno de A. Destaque para a polirritmia no compasso 25 ...... 248 Figura 77: Seção C. Surpresa do lírico ao malicioso ...... 250 Figura 78: Última repetição de A (coda) ...... 251

Figura 79: c. 60-64 - Jogo ente barcarola e dança espanhola por meio do salto anacrústico de 4a ascendente, da articulação non legato e da alternância melódica de 3ª menor e maior (c. 62)...... 254 Figura 80: Início da canção El paño moruno - salto ascendente anacrústico de 4a e articulação non legato ...... 255 Figura 81: Jogo melódico de terças em Nana ...... 255 Figura 82: Contraste de dinâmica, articulação e textura nas Symphonies ...... 260 Figura 83: Contrastes em O Túmulo ...... 262 Figura 84: paralelismo nas Symphonies (c. 157 a 159) ...... 264 Figura 85: Paralelismo em O Túmulo – Prelúdio, c. 35 a 39...... 264 Figura 86: Aceleração rítmica em uma lógica aditiva - Symphonies ...... 265 Figura 87: Aceleração rítmica em uma lógica aditiva - O Túmulo ...... 266 Figura 88: Pedais e dissonâncias nas Symphonies - c.263 a 267...... 266 Figura 89: Pedais e dissonâncias em O Túmulo. Início do Prelúdio - c. 1 a 7...... 267 Figura 90: Início do Poslúdio ...... 267 Figura 911: Seção final do Chorale das Symphonies – c. 294-299 ...... 268 Figura 92 Iemanjá Otô - melodia base do Prelúdio, Poslúdio e meditações...... 270 Figura 93: Melodia utilizada em Ritual...... 271 Figura 94: Melodia utilizada em Pastoril ...... 271 Figura 95: Melodia principal utilizada em Baile ...... 272 Figura 96: Oh, minha iaiá de ôro, melodia utilizada no Baile...... 272 Figura 97: Nigue nigue ninhas - melodia utilizada no Acalanto com três variações 273 Figura 98: Oh, sinhá minha vizinha - primeiro tema da Pequena Rapsódia ...... 273 Figura 99: Oh, serena, oh serandina - segundo tema da Pequena Rapsódia ...... 274 Figura 100: Xô-xô, Barata - 3o tema da Pequena Rapsódia ...... 274 Figura 101: Aceleração rítmica, adensamento da textura e aumento da intensidade em O Túmulo ...... 276 Figura 102: Efeito de "massa sonora" e conclusão num cluster - Pequena Rapsódia, c. 98-111...... 277 Figura 103: Desenvolvimento a partir do fragmento final de Oh sinhá minha vizinha - Pequena Rapsódia, c. 13-37...... 278 Figura 104 : Excerto dos Choros 10, de Villa-Lobos ...... 290 Figura 105: Início do Poslúdio ...... 291

Figura 106: Início do Prelúdio das Bachianas 4 ...... 291 Figura 107: Excerto das Bachianas 6 de Villa-Lobos...... 292 Figura 108: Início da Meditação Segunda ...... 293 Figura 109: Ostinato de fagote - Pastoril, c. 20-24 ...... 294 Figura 110: "Sagração de câmara" - Ritual, c. 35-38 ...... 295

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Correspondência de Lopes-Graça com o meio cultural brasileiro ...... 84 Tabela 2: Composições de brasileiros apresentadas pela Sonata ...... 120 Tabela 3: Obras do VI Boletim apresentadas pela Sonata ...... 124 Tabela 4: Gênero, Estado e Fonte das Sete e Dezassete Canções ...... 197 Tabela 5: Gênero e região das melodias utilizadas em O Túmulo ...... 275 Tabela 6: recursos composicionais mais frequentes em O Túmulo ...... 288

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAM – Academia de Amadores de Música

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical

FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

FCSH – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

MPMP – Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa

MUD – Movimento de Unidade Democrática

PDSE – Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UNL – Universidade Nova de Lisboa

USP – Universidade de São Paulo

SUMÁRIO

Introdução ...... 21 Capítulo 1 – Falar de exotismo hoje? e outras inquietações ...... 30 1.1 – Falar de exotismo hoje...... 30 1.1.1 – Mas, afinal, o que quero dizer com “exotismo”? ...... 35 1.2 – O exotismo como questão para Fernando Lopes-Graça ...... 36 1.3 – Falar de exotismo no contexto pós-colonial? ...... 41 1.4. – Alguns discursos sobre o “outro” na música portuguesa de concerto ...... 44 1.5 - Relações luso-brasileiras e conhecimento musical ...... 47 Capítulo 2 - O local nos musicares de Fernando Lopes-Graça ...... 52 2.1 - Introdução à trajetória do autor: os musicares de Fernando Lopes-Graça ...... 53 2.2 - A articulação entre diferentes paradigmas de prática musical ...... 63 2.2.1 - O coro da Academia de Amadores de Música e as vertentes de seu repertório ...... 65 2.2.2 - Música participativa e apresentacional no Coro da AAM ...... 73 2.2.3 - Música de concerto, abordagem didática e intervenção ...... 75 2.2.4 - Os diversos mundos sociais e musicais ...... 76 2.3 - O local nos musicares de Fernando Lopes-Graça ...... 78 2.3.1 – O local concreto ...... 78 2.3.2 – O local como marca de especificidade ...... 78 2.3.3 – O local “ideal”, “utópico” ou “universal” ...... 82 Capítulo 3 – Fernando Lopes-Graça e o Brasil: as dimensões de uma relação ... 83 3.1 – Lopes-Graça e o meio musical brasileiro: mais de quatro décadas de Correspondência ...... 83 3.1.1 – Uma rede tecida pelo comunismo? ...... 89 3.2 – Imprensa portuguesa - obras literárias ...... 97 3.2.1 – Visões sobre o Brasil ...... 97 3.2.2 – Diálogos e polêmicas ...... 102 3.3 - A música brasileira nos concertos da Sonata ...... 119 3.4 – Dedicatórias ...... 125 3.5 – A tournée brasileira de Lopes-Graça ...... 127 3.5.1 – Preparativos ...... 127 3.5.2 – Atividades realizadas ...... 130 3.5.3 – Lopes-Graça na imprensa brasileira ...... 138 3.6 – O Festival de Música da Guanabara – Segunda vinda de Lopes-Graça ao Brasil ...... 143

Capítulo 4 - A obra vocal sobre temas melódicos brasileiros ...... 148 4.1 - As Sete Canções Populares Brasileiras ...... 148 4.2 – As Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras – breve panorama ...... 162 4.2.1 – O tratamento composicional das fontes nas Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras: alguns exemplos ...... 184 4.3 – Alteridade explícita como crítica ao exotismo ...... 196 4.3.1 – O diálogo com uma outra escuta ...... 199 4.4 - À memória de Mário de Andrade ...... 202 Capítulo 5 – Gabriela, cravo e canela: abertura para uma ópera cómica ...... 205 5.1 - Crônica de uma cidade do interior: as tópicas “urbana” e “nordestina” como retrato da Ilhéus do início do século XX ...... 210 5.2 - Cave carmen: o uso da Habanera em Gabriela ...... 216 5.2.1 – A transtextualidade no uso da Habanera ...... 217 5.3 – Espontaneidade e ingenuidade: o circense e o pastoral ...... 221 5.4 – Que fizeste, sultão, de minha alegre menina?...... 222 5.4.1 - Uma obra não característica ou uma faceta não percebida do compositor? ...... 229 5.5 – Habanera: instrumento consolidado de caracterização ou marca de exotismo? ...... 229 5.5.1 - O exotismo no romance de Jorge Amado ...... 232 5.6 - Gabriela, Carmen, o exótico e o “universal” ...... 233 Capítulo 6 - Desafio e O Túmulo de Villa-Lobos: dois curiosos retratos ...... 234 6.1 – Desafio: retrato [de um] “desconstelizador” ...... 234 6.1.1 - O poeta e a música ...... 234 6.1.2 - Bandeira, poeta vário e impuro ...... 236 6.1.3 - Desafio, o poema mais “puro”: retrato fiel de um gênero tradicional ...... 240 6.1.4 - O Desafio de Krieger: em busca do Brasil sonoro ...... 242 6.1.5 - A abordagem de Lopes-Graça como retrato [de um] “desconstelizador” . 245 6.2 - Tombeau para um artesão selvagem ...... 257 6.2.1 – Por que “O Túmulo?” ...... 258 6.2.2 – Tratamento do material folclórico em O Túmulo ...... 269 6.2.3 – O Túmulo em sua dimensão de retrato ...... 289 Conclusão - Conhecimento e alteridade: duas vias de crítica ao exotismo na obra musical de temática brasileira de Fernando Lopes-Graça...... 297 APÊNDICE ...... 320 21

Introdução

Após concluir uma pesquisa de mestrado centrada na análise de discursos verbais em livros de História da Música Brasileira, sentia a necessidade de um contato mais direto com material musical propriamente dito. Considerando a minha vivência acadêmica até aquele momento, questionava-me sobre as efetivas possibilidades de contribuição caso seguisse aquela linha que parecia exigir cada vez mais ferramentas de historiador e me levava a um distanciamento de conhecimentos específicos adquiridos na graduação em música que desejava manter ativos. Passei a conjeturar o quanto a análise musical poderia ajudar a responder questões para além das especificamente relacionadas a aspectos estruturais, estilísticos, de notação, etc. Essa questão, sobre a qual encontraria vasto material bibliográfico nos anos seguintes, foi o grande ponto de partida metodológico do trabalho, mesmo antes da escolha do objeto. A cultura portuguesa fascinava-me desde a infância, mesmo eu não sendo, apesar dos sobrenomes, uma lusodescendente próxima. No caso específico da música de Lopes-Graça, o interesse surgiu quando eu tinha cerca de 16 ou 17 anos, em 2003 ou 2004. O nome do compositor, mencionado casualmente pela professora Raquel Mantovani em uma aula teórica do curso técnico, tornou-se para mim uma grande referência em um meio musical, na minha região e nos livros didáticos, marcado pela forte presença de personalidades de origem italiana. A sua forte ligação à literatura, um dos poucos dados a que tive acesso naquela época, foi também um grande fator de identificação. Além do mais, um militante do século XX era mais inspirador para uma adolescente que a remota figura de Marcos Portugal, único português presente nos manuais de História da Música Brasileira, retratado, de maneira caricata, como o vilão invejoso que veio destituir o Padre José Maurício de seu posto de mestre de capela. O primeiro contato propriamente com a música de Lopes-Graça deu-se apenas em 2007, durante a minha participação como coralista no Festival Música nas Montanhas, em Poços de Caldas, Minas Gerais. Constava no repertório da oficina conduzida pelo professor Marco Antônio da Silva Ramos, da Universidade de São Paulo, uma de suas Canções Regionais Portuguesas: Oh, que janela tão alta, de Trás- os-Montes.

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O último dos felizes acasos ocorreu em 2009, quando meu professor de inglês José Luiz Loiola me fez uma doação de “livros antigos que não usava e que poderiam talvez me interessar”. Tratava-se da segunda edição do Dicionário de Música (1958), em dois volumes. Durante a minha primeira viagem a Portugal, em 2012, quando estava ainda no mestrado, adquiri uma gravação de algumas Canções Regionais pelo Coro Lisboa Cantat e O essencial sobre Fernando Lopes-Graça (1989), um livreto de pouco mais de 50 páginas escrito pelo professor Mário Vieira de Carvalho para uma coleção de abordagens introdutórias sobre diversos temas, editada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Destacaram-se logo, na leitura, as similaridades entre o seu pensamento estético e o de Mário de Andrade na questão do nacionalismo musical. Até hoje não sei por que misteriosos motivos não ficaram gravadas na minha memória, à altura, as referências a todas as obras de temática brasileira de Lopes-Graça, já ali presentes. Apenas no ano seguinte, numa releitura em busca de ideias para um projeto de doutorado, atentei para a existência dessa considerável e interessantíssima produção e decidi me lançar nesta pesquisa. Encontrei outros trabalhos de Mário Vieira de Carvalho, Ricardo Tacuchian, Ana Cláudia de Assis e Teresa Cascudo que, de alguma forma, abordavam a relação do compositor com o Brasil. Entrei em contato com os autores, que me indicaram ou enviaram outros textos. Encomendei ao Museu da Música Portuguesa, instituição onde se encontra a maior parte de seu acervo, cópias das partituras. A partir daí foi cada vez maior, por vezes desconcertante, o número de fontes. O contato com esse material despertou, logo de início, questões ainda um tanto imprecisas relativas ao seu olhar sobre o Brasil nessa produção. Iniciei a análise pelas composições vocais que utilizavam melodias de tradição oral brasileira, verificando o seu tratamento composicional em comparação com as transcrições nos livros utilizados como fonte e com obras para formação semelhante em que Lopes- Graça abordava melodias portuguesas e de outras culturas. Paralelamente, chamavam-me a atenção, sobretudo nas demais obras do corpus, referências paratextuais e musicais ao que denomino, num sentido amplo, o material temático (obras literárias e seus autores, homenageados, outros gêneros musicais, etc). A abordagem musical dessas referências foi, portanto, ponto de partida e questão central dessas análises. 23

Uma grande preocupação desde o início foi a busca de que a relação entre “contexto” e “análise” se refletisse, de maneira não estanque, na redação da tese, mesmo que a estrutura enfatizasse, em alguns momentos, um ou outro aspecto. Também procurei estar atenta, no texto, à necessidade de referências complementares, tendo em mente a origem portuguesa ou brasileira dos potenciais leitores deste trabalho. A natureza das questões norteadoras da análise acabou por remeter ao problema do exotismo e da própria pertinência do uso do termo no contexto desta pesquisa. Nesse sentido, o Capítulo 1 - Falar de exotismo hoje? e outras inquietações – funciona como uma justificativa da tese, onde procuro trazer um estado da arte das recentes abordagens musicológicas/etnomusicológicas do tema, especificando a conotação adotada neste trabalho, discutindo sua presença na obra literária de Lopes-Graça e em composições portuguesas sobre as explorações marítimas e as antigas colônias. Por fim, deixo ao leitor uma pequena provocação sobre a situação atual das relações musicais luso-brasileiras. O Capítulo 2 – O local nos musicares de Fernando Lopes-Graça – motivado pela necessidade de contextualização da trajetória do sujeito da pesquisa para o público brasileiro, surgiu do diálogo entre a bibliografia sobre e de Lopes-Graça com as leituras discutidas nas reuniões do projeto temático e grupo de pesquisa O musicar local: novas trilhas para a etnomusicologia, sediado na UNICAMP e USP e financiado pela FAPESP. A partir do conceito de musicking, proposto por Christopher Small, e das noções de música participativa/coloquial e apresentacional, abordadas por Thomas Turino e por Mário Vieira de Carvalho – a partir de Heinrich Besseler - destaco a articulação entre diversos paradigmas de sociabilidade e prática musical nas suas múltiplas formas de envolvimento com a música - como compositor, instrumentista, regente, produtor de concertos, professor, crítico, etc. Tive, durante o período de realização do estágio PDSE-CAPES, a oportunidade de participar do Coro Lopes-Graça, por ele fundado. Aliada às entrevistas realizadas com o atual maestro, José Robert, regente assistente desde fins dos anos 70 e com os coralistas Ana Paula Sampaio e Francisco Jorge, essa experiência permitiu-me melhor compreender a história do grupo e a relação com sua atual dinâmica social, pedagógica e estética. Como resultado, a atuação de Lopes-

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Graça junto ao Coro da Academia de Amadores de Música recebeu grande destaque, enquanto objeto de análise, no capítulo1. A partir de uma noção ampla de local, baseada, em grande medida, na sua definição como “estrutura de sentimento” por Arjun Appadurai, proponho a presença, em Lopes-Graça, de três dimensões do termo, a primeira delas referente aos seus ambientes concretos de atuação, a segunda à valorização das especificidades da música regional e a terceira à concepção metafórica de um ambiente de fraternidade plenamente realizada. Trago, no Capítulo 3 - Fernando Lopes-Graça e o Brasil: as dimensões de uma relação - um panorama das diversas manifestações da relação entre o compositor e o meio musical brasileiro, a partir da consulta aos trabalhos precedentes dos já mencionados autores, além de entrevistas e de fontes primárias – cartas, recortes de jornal, fotografias, etc. Apresento uma lista dos interlocutores brasileiros do compositor, indicando o período da correspondência. A referência, durante minha participação em congressos e exames, a nomes como Jorge Amado, Arnaldo Estrela e Cláudio Santoro tem despertado frequentes questionamentos a respeito do papel da militância comunista na construção da rede de relações brasileiras de Lopes- Graça, de maneira que incluí uma breve discussão sobre o tema. Comento ainda a presença de textos sobre o Brasil em sua obra literária, a publicação, por seu intermédio, de textos brasileiros em Portugal e sua participação em polêmicas estéticas vigentes no país, como a questão nacionalismo x dodecafonismo e denúncias de plágio em textos do compositor e professor alemão radicado no Brasil Hans-Joachim Koellreutter. Também são tratadas neste capítulo a apresentação de obras camerísticas brasileiras em Portugal pela sociedade de concertos Sonata, da qual era membro fundador, a dedicatória de obras a amigos brasileiros e uma composição a ele dedicada. Abordo, por fim, as atividades realizadas, a recepção pela imprensa e suas impressões durante as duas visitas ao Brasil, a primeira, em 1958, por 3 meses, numa digressão que abrangeu cinco cidades em cinco estados e a segunda, em 1969, por

1 Também tive a oportunidade de cantar suas canções solo de temática brasileira, apresentando algumas delas no recital Fernando Lopes-Graça e Contemporâneos Brasileiros, realizado no Museu Nacional da Música, em Lisboa, no dia 18 de novembro de 2016. Conforme observou a profa. Dra. Flávia Toni durante a arguição desta tese, o “musicar local”, para além de ferramenta teórica na abordagem da biografia do compositor, caracteriza a dimensão prática da metodologia utilizada nesta pesquisa. 25 poucos dias, limitada ao Rio de Janeiro, para a participação no júri do I Festival de Música da Guanabara. Seguem-se os capítulos propriamente dedicados à análise do corpus. Não estão organizados segundo a ordem cronológica das composições, mas de acordo com a similaridade de problemáticas abordadas na análise. Destaco, no capítulo 4 - A obra vocal sobre temas melódicos brasileiros – dedicado à análise das Sete Canções Populares Brasileiras (1954), para voz e piano e das Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras (1960), para coro a cappella, a citação integral dos temas folclóricos, aliada à presença de elementos idiossincráticos da paleta do compositor. Partindo da análise proposta por Mário Vieira de Carvalho (2012b) do distanciamento crítico, na composição de Lopes-Graça, em relação ao “povo”, interpreto essa coexistência como um reconhecimento dos seus limites ao conhecimento e vivência da música tradicional brasileira, a partir da explicitação da alteridade, uma das suas vias de crítica ao exotismo segundo nossa hipótese de trabalho. A outra via é a do conhecimento. Percebe-se, na diversidade regional e de gêneros entre as melodias selecionadas, a busca de alternativas a uma visão estereotipada da música brasileira. Referências, nas duas séries, a elementos contextuais das manifestações retratadas revelam um dedicado estudo das fontes. Com base em uma entrevista realizada em 2016, trago uma reflexão a partir do diálogo entre a minha análise das Dezassete Canções e a visão do maestro José Robert, a partir de sua vivência como intérprete na preparação e gravação da série com o Coro da Universidade de Lisboa, entre os anos de 1994 e 1995. Encerra este capítulo um breve levantamento de pontos comuns e principais diferenças entre o pensamento do autor e o de Mário de Andrade - a cuja memória as Dezassete Canções foram dedicadas - um tema sobre o qual muito ainda há que aprofundar e explorar. O Capítulo 5 - Gabriela, Cravo e Canela: abertura para uma ópera cómica, é dedicado à análise da abertura sinfônica Gabriela, Cravo e Canela, inspirada no romance homônimo de Jorge Amado. Aponto alguns aspectos da relação entre a ambientação no romance e na música, tomando como ferramenta de análise a identificação de tópicas, a partir da proposta de Acácio Piedade (2011). José Paulo Paes ([1991] 2008) destaca a

26 confluência de duas questões na narrativa amadiana: sujeição/libertação feminina e atraso/progresso urbano. Concentro-me na primeira problemática, a partir da análise do uso do padrão rítmico da habanera como elemento estruturador da partitura e, mais especificamente, do uso do motivo Prends garde à toi! entoado pelo coro na ária Habanera da ópera Carmen, de Georges Bizet. Utilizo categorias de relações intertextuais ou, mais precisamente, transtextuais, propostas por Gérard Genette em Palimpsestes (1982), baseando-me em sua adaptação à análise musical proposta por Paulo Ferreira de Castro (2015). Em diálogo com análises de Carmen em Feminine Endings ([1991] 2002), de Susan McClary e Musical Exoticism (2009), de Ralph Locke, destaco o paralelo entre as características de sensualidade e liberdade associadas às duas personagens. Acrescentando a ingenuidade e espontaneidade infantil de Gabriela, associo estas características ao que identifico como tópicas “circenses” e “pastorais”, estas últimas também destacadas na análise literária de José Paulo Paes e relacionadas por este autor aos conceitos de “bom selvagem” e “criança-juiz”. Tomando como base as análises de Carmen por McClary e de Gabriela na nota de encarte escrita por João de Freitas Branco (1967), discuto a ideia de “morte necessária” da mulher que foge às expectativas morais e sociais e sua subversão por Amado e Lopes-Graça, esta última realizada musicalmente a partir da noção de anticlímax, apontada por Mário Vieira de Carvalho (1999, 2006) como um recurso frequente em sua escrita, revelando um sentido de humor raramente associado à sua personalidade e produção. Retomo a questão da crítica ao exotismo ao destacar a sua busca de um retrato o mais sutil possível da personagem e do que a cerca e a sua defesa do potencial de universalidade da obra através da relação com um já consagrado “clássico” musical. No Capítulo 6 - Desafio e O Túmulo de Villa-Lobos: dois curiosos retratos - a canção sobre um poema de Manuel Bandeira e o quinteto de sopros são analisados na perspectiva das relações com os gêneros a que fazem referência (o desafio nordestino e o tombeau), bem como com aspectos mais gerais do estilo do poeta e do compositor homenageado. A primeira parte, dedicada ao Desafio, é aberta com um comentário sobre as diversas facetas da relação do poeta pernambucano com a música, tomando como base, além da análise de diversos poemas, as suas memórias no Itinerário de 27

Pasárgada, artigos de renomados estudiosos, reunidos na coletânea Manuel Bandeira: verso e reverso (1987) organizada por Telê Ancona Lopez e a tese de doutorado de Pedro Marques (2008) sobre o tema. A partir de um estudo de Adolfo Casais Monteiro (1943) sobre Bandeira, do livro Humildade, Paixão e Morte (1990), de Davi Arrigucci Jr e do ensaio Bandeira, o Desconstelizador ([1966] 2006), de Haroldo de Campos, destaco a “impureza” da sua escrita, marcada pela diversidade estilística, combinação de sentimentos e sensações aparentemente contraditórios e mistura, num mesmo poema, de vários registros linguísticos. Tomando justamente o poema mais “puro” da Lira dos Cinquent’anos - ou seja, o mais regular e fiel à estrutura do gênero folclórico em que foi inspirado - Lopes-Graça realiza musicalmente - e também por meio de uma alteração no texto original – a meu ver, uma homenagem à “impureza” e irreverência bandeirianas, por meio da sobreposição de lirismo, brejeirice e valentia, que se misturam nas indicações de caráter e no jogo entre barcarola e impulso de dança espanhola, envolvido por uma harmonia impressionista. A segunda parte do capítulo traz uma análise do elaborado tratamento composicional das melodias folclóricas no quinteto de sopros O Túmulo de Villa- Lobos, em que se destacam os recursos de aceleração rítmica, adensamento e rarefação da textura, formação de dissonâncias a partir de notas pedais, clusters, desenvolvimento a partir de fragmentos melódicos e intervalos, exploração dos extremos de tessitura e anticlímax. Também discuto a relação com as referências constantes no título: a evocação do gênero barroco tombeau e de algumas de suas célebres releituras do século XX e as diversas facetas musicais do homenageado. A hipótese de trabalho é retomada e discutida na conclusão, sob o título Conhecimento e alteridade: duas vias de crítica ao exotismo na obra musical de temática brasileira de Fernando Lopes-Graça. Observo, a partir da recapitulação de algumas análises, a presença e frequente indissociação dessas duas atitudes do compositor Quanto ao título poético, “O viajante no labirinto”, a primeira parte constitui um jogo de palavras com uma das vertentes etimológicas do nome próprio Fernando2

2 O “Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa”, de José Pedro Machado (1993), traça a origem a partir do nome Ferdinando, vindo do francês, Ferdinand, do gótico Frithunanths, de frithus, "paz" e nantjhan "ousar, arriscar". O Oxford Dictionary of First Names (HANKS, HARDCASTLE, HODGES, [2006]2016), por outro

28 e com a referência aos estrangeiros que visitavam o Brasil nos períodos colonial e imperial, em cujos relatos o exotismo é uma questão proeminente. O “labirinto” refere- se à consciência de Lopes-Graça sobre os limites de sua aproximação à música brasileira e aos momentos em que resvala, no discurso verbal, para uma abordagem exótica, ou no mínimo ambivalente, da questão, como se realizasse uma crítica da qual não consegue completamente se desvencilhar. Falar desse contexto hoje, separada por décadas marcadas por uma grande mudança de horizonte de expectativas e de paradigmas políticos, sociais, econômicos, tecnológicos e ideológicos, à qual se tem chamado, de maneira não consensual, pós-modernidade, coloca a mim própria numa espécie de “labirinto”, num constante esforço de distinguir de quem são os dilemas, se do sujeito da pesquisa ou meus e dos demais autores com quem dialogo. Trabalhei, portanto, com a intenção de que a escrita refletisse esse cuidado, buscando compreender e retratar o pensamento de Lopes-Graça da forma mais clara possível, sem condescendência ou crítica anacrônica. Antes de passarmos à tese propriamente dita, gostaria de esclarecer três questões práticas. A primeira delas refere-se à coexistência, nos exemplos musicais das obras de temática brasileira, de edições realizadas por mim através do software MuseScore e de imagens digitalizadas dos manuscritos autógrafos. Trata-se de uma opção política, com o intuito de valorizar o dedicado trabalho manual desse grande artista que, sem apoio para publicações comerciais, tornou-se seu próprio editor. A edição de alguns exemplos em software teve como objetivo facilitar a inclusão das análises harmônicas e/ou possibilitar uma visualização mais regular dos compassos selecionados. A segunda observação refere-se à inclusão de uma coletânea de exemplos de áudio em links para plataformas de acesso gratuito, como Deezer, Spotify e YouTube e para uma playlist privada na plataforma SoundCloud3. Para além do corpus, procurei familiarizar o leitor com algumas obras que com ele dialogam de maneira mais próxima. Os áudios de acesso público ou cuja autorização de compartilhamento me foi concedida encontram-se indicados nas notas de rodapé.

lado, relaciona o nome à forma moderna do espanhol Ferdinando, de origem germânica (visigótica), a partir da palavra farð, “jornada”. 3 Disponível em https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/sets/doutorado-guilhermina-lopes. 29

Quanto aos demais, aguardo ainda a resposta de algumas gravadoras. Havendo a aprovação, serão incluídos na playlist disponível no SoundCloud. Informo, por fim, que não foi possível, por ora, disponibilizar os manuscritos completos do corpus. Estou verificando, junto à direção do Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, a possibilidade de uma futura edição das partituras. Na esperança de proporcionar uma boa leitura, passo ao Capítulo I.

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Capítulo 1 – Falar de exotismo hoje? e outras inquietações

1.1 – Falar de exotismo hoje

Creio que a presença, no título desta tese, da palavra exotismo seja, à partida, intrigante para o leitor. O que estaria algo que nos remete, a priori, aos relatos dos viajantes, cronistas e missionários coloniais e ao imaginário romântico oitocentista de lugares e tempos remotos fazendo numa análise de obras compostas na segunda metade do século XX? Por que essa questão se aplicaria a um compositor português, quase um século e meio após a independência política do Brasil? Mais ainda, faz sentido falar de exotismo em pleno século XXI, passados cerca de trinta anos do advento da chamada Nova Musicologia, de discussão sobre a pós-modernidade, da globalização, do boom da internet, de tantos trânsitos e tanto acesso à informação nunca antes visto? Para tentar responder a essas questões, é necessário, antes de tudo, informarmo-nos como o exotismo tem sido abordado em musicologia e etnomusicologia nos últimos anos. A publicação, em 1978, de Orientalismo, de Edward Said, despertou a nível mundial o olhar crítico sobre a construção do “outro” na arte da Europa Central. Baseando-se, em grande medida, no trabalho de estudiosos pós-estruturalistas franceses, sobretudo Michel Foucault, Said concentrou sua análise em escritos do século XIX. Para além da literatura, o livro influenciou muitas outras áreas das ciências humanas e artes. Um dos primeiros trabalhos musicológicos em que essa referência pode ser percebida é a análise da ópera Carmen, de Georges Bizet por Susan McClary em seu livro Feminine Endings (1991), mais precisamente o tratamento dado à protagonista, que abordaremos em mais detalhes na análise da abertura Gabriela, Cravo e Canela, no capítulo 5. O livro de McClary é um dos pioneiros da chamada Nova Musicologia, marcada pela busca de análises críticas e interdisciplinares, em diálogo com os estudos culturais e por uma especial atenção às minorias. Esse último aspecto, aliado aos estudos pós-coloniais - que vinham sendo desenvolvidos desde a década de 50 e dos quais Orientalismo é considerado um marco – foi o principal gatilho para as abordagens críticas do exotismo em música. Uma abordagem ampla e diversa do tema foi trazida na coletânea Western Music and its others (2000) organizada por Georgina Born e David Hesmondhalgh e com textos de diversos autores, como Martin Stokes, Richard Middleton, Julie Brown, Philip Bohlman, Steven Feld e outros. Nem sempre o termo “exotismo” é utilizado de 31 maneira direta, mas são abordadas diversas questões referentes a identidade e relação com a alteridade, através de palavras como “diferença”, “representação”, “ocidente”, “oriente”, “outro”, “transnacional”, “apropriação”, “hibridismo”, “modernismo”, “pós-modernismo”, “discurso”, “fusão” e world music. Os objetos de estudo vão desde as variedades de orientalismo na música erudita francesa do início do século XX às modificações da abordagem da música cigana por Béla Bartók ao longo de sua trajetória e produção musical e literária, à experiência de compositores eruditos europeus como imigrantes na Los Angeles dos anos 30 e 40, massivamente tomada pela indústria cinematográfica, ao gênero turco Arabesk, ao pop pigmeu e à música dance eletrônica. O “outro” não é apenas o distante, mas também o “baixo”, como no trabalho de Middleton sobre a abordagem do negro e de sua música na ópera Porgy and Bess, de George Gershwin e o “interno”, como no estudo, por Philip Bohlman, da posição dos chazanim4 judeus na sociedade vienense da segunda metade do século XIX e início do século XX. Hesmondhalgh destaca a persistência, na música popular, de referências orientalistas, primitivistas, exóticas e relacionadas a raça e etnicidade que, a seu ver, fazem dela ainda hoje um terreno fértil para a análise pós-colonial. Aponta, no início do século XX, a simultaneidade do desenvolvimento do modernismo artístico ao da indústria do entretenimento e de novas formas de música popular urbana e comercial, bem como a busca das vanguardas por representar o outro. Segundo o autor, “as músicas não ocidentais e populares [inclusive e principalmente folclóricas] tornaram-se fontes de experimentação e inovação” (p. 12). É justamente neste contexto que se situa a “linhagem” do repertório analisado nesta tese. Na introdução de Western Music, Hesmondhalgh chama a atenção para o direcionamento do volume no sentido de abordar a interface entre o discurso coletivo e a subjetividade individual, a partir de análises “de momentos específicos e formas de representação musical dos outros, de sua variabilidade em contexto, das complexidades da agência autoral e prática em relação a formações discursivas mais amplas, e da mudança nos contornos dos debates e conflitos discursivos quando estes são projetados em forma de música5. “(p. 7).

4 Cantores responsáveis por conduzir as orações nas sinagogas. 5 As traduções são de minha autoria, a menos que diferentemente indicado.

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O autor assinala a crítica à abordagem de questões coloniais a partir de uma noção binária de hegemonia e resistência, destacando como referência o trabalho da historiadora indiana Gayatri Spivak, marcado pela ênfase nos aspectos de heterogeneidade e contradição e na variedade de experiências e expressões de opressão. A complexidade dos fluxos globais musicais e culturais pôs em xeque a noção unívoca de aculturação e outros conceitos derivados, que acabam por ser ressignificados. Por exemplo, o hibridismo, no contexto de crossovers entre músicas populares, eruditas e não ocidentais e movimentos transglobais de músicos, acaba por passar de negativo a desejado, nem sempre implicando em uma relação direta e previsível de dominação centro-periferia. Apesar disso, segundo Hesmondhalgh, em alguns campos essa assimetria ainda é mais visível, como no da música erudita contemporânea. A noção de “mercado” como um sistema homogêneo também tem sido bastante criticada. Estamos testemunhando, segundo Hesmondhalgh, “o fim das hierarquias unívocas de valor musical e autoridade características de um modernismo antigo, elas próprias enraizadas no universalismo dos discursos estéticos ocidentais pós-iluministas.” (pp. 18-19). O papel da música tem sido encarado de uma maneira cada vez mais ativa. Para além de reflexo da sociedade, do contexto histórico, enfim, do seu dito “entorno”, a música é considerada como um agente na construção, negociação e formação de identidades sociais. Também tem sido destacada a coexistência de muitas “identidades musicais”, até mesmo contraditórias em um mesmo indivíduo, a partir de múltiplas experiências. Especificamente sobre a questão do orientalismo, John Corbett, no ensaio Experimental Oriental: New Music and Other Others, distingue duas formas, as quais denomina orientalismo conceitual e orientalismo decorativo. O primeiro consistiria em uma arte influenciada por ideias filosóficas não ocidentais, sem necessariamente a busca de uma sonoridade ou aparência não ocidental. Um exemplo é o uso do I-Ching por Cage como princípio para a organização de algumas de suas composições. O orientalismo decorativo, o mais imediatamente evocado pelo senso comum, partiria da busca de um resultado sonoro ou estético não ocidental, podendo ser mais ou menos profundo o conhecimento da cultura retratada ou apropriada. Hesmondhalgh destaca, na defesa da atualidade e potencial do estudo das relações entre a música ocidental e seus “outros”, as suas especificidades, mais precisamente o seu caráter não tão diretamente referencial e representacional quanto 33 o da literatura ou das artes visuais. “As conotações associadas às representações e apropriações musicais são potencialmente mais variáveis e não fixas, e talvez ao mesmo tempo mais esteticamente e discursivamente férteis” (p. 46). Outro trabalho detalhado sobre o tema é o livro Musical Exoticism (2009), de Ralph Locke, em que o autor aborda desde o retrato dos déspotas babilônicos e incas nas óperas barrocas até o reino élfico nas trilhas sonoras de filmes como O Senhor dos Anéis, e também o exótico na música pop. Locke distingue, em sua análise, dois grandes paradigmas: Exotic Style Only (apenas estilo exótico), em que são evocados elementos musicais de outra(s) cultura(s), e All the music in Full Context (toda a música no contexto pleno), em que não necessariamente há referências musicais à cultura retratada, mas a visão exótica revela-se na caracterização da personagem, na narrativa e em elementos da performance específica, como cenário, figurinos, etc. O papel da recepção na construção do exotismo e as ressignificações de uma obra ao longo do tempo também são levados em conta. A ópera é um campo privilegiado de estudo do exotismo a partir desse segundo paradigma, e o gênero mais presente nos exemplos utilizados por Locke. Foram de especial importância para o desenvolvimento desta tese, mais precisamente para o capítulo 5, sobre a abertura Gabriela, Cravo e Canela, a leitura dos capítulos 7, Exotic Operas and two Spanish Gypsies (óperas exóticas e duas ciganas espanholas) e 8, Imperialism and “the exotic orient” (o imperialismo e o “oriente exótico”), em que o autor relaciona questões políticas, étnicas e de gênero, discutindo os dois extremos da femme fatale e da mulher frágil e submissa através de célebres obras dos séculos XIX e início do século XX como Carmen, de Georges Bizet, Samson et Dalila, de Camille Saint-Saëns, Il Trovatore, de Giuseppe Verdi, Turandot e Madama Butterfly, de Giacomo Puccini. Locke estabelece vários níveis de exotismo - de maneira geral, mas não necessariamente, relacionados a uma cronologia linear. O primeiro seria o exotismo declarado (Overt Exoticism), que se poderia definir, grosso modo, como um exotismo explícito e sem grandes preocupações de aprofundamento e representação realista, marcado no título ou na ambientação em um lugar e/ou tempo distante. O segundo seria o exotismo submerso (Submerged Exoticism), isto é, a incorporação de elementos musicais de outras culturas em uma obra musical. Sobre esse nível, Locke observa que o resultado sonoro não necessariamente remete imediatamente a uma

34 determinada cultura, mas a “aura” de exotismo permanece, não ocorrendo uma total absorção do elemento exótico, que geraria um resultado sonoro orgânico. Abordagens de aspectos externos à partitura que, de alguma maneira, trazem uma visão inferiorizada ou reducionista do outro também podem ser encaixadas nesta categoria. O terceiro nível, Transcultural Composing (composição transcultural), é descrito como desenvolvido “em um franco espírito de transculturalidade” (p. 228). A esse respeito o autor alerta para a divergência de opiniões entre estudiosos. Alguns incluem nesta classificação obras europeias dos primeiros anos do século XX, como por exemplo, algumas peças para piano de Debussy, atribuindo essa atitude dos artistas do período a uma crítica ao imperialismo e colonialismo ainda vigentes. Outros, por sua vez, apenas consideram como transculturais abordagens contemporâneas, num pleno contexto de globalização e com grande preocupação de pesquisa, ou, ainda, realizadas por artistas de origens étnicas mistas ou imigrantes radicados em outros países. O próprio “julgamento” de obras artísticas com uso de elementos de outras culturas como sendo ou não exóticas é motivo de grande divergência. Um importante ponto levantado nesse livro é a dificuldade de distinguir exotismo de nacionalismo, folclorismo e vernaculismo, presente especialmente na análise de obras inspiradas por culturas não tão distantes uma da outra. É o nosso caso, dado o grande número de pontos de identificação entre as culturas portuguesa e brasileira. Beyond Exoticism (2007), de Timothy Taylor, é outra obra de fôlego sobre o tema escrita no mesmo período. Diferentemente do livro de Locke e de alguns ensaios de Western Music, mais centrados em estudos de caso, a abordagem de Taylor, apesar de trazer exemplos de análises musicais e de “códigos” de representação da alteridade, é mais panorâmica, partindo de relações entre categorias mais amplas (sistemas, conceitos, valores, gêneros musicais, etc.). O autor afirma-se mais preocupado em oferecer ao leitor uma base histórica sobre as discussões em jogo, levando a questão música e diferença para além do especificamente musical. Destaca a falta de sentido em se falar de “exotismo” no singular; o que há são exotismos. Embora reconheça o esforço de outros estudiosos em desconstruir oposições binárias, chama a atenção do leitor para o quanto estas ainda estão presentes nos discursos e práticas contemporâneos. A grande divisão do livro busca retratar o poder de representação em distintos momentos históricos, tomando como pontos de observação a mudança 35 histórica de domínio do sistema feudal para os Estados-Nação e, posteriormente, as corporações multinacionais. Relacionados a esses contextos e na mesma direção cronológica, são tratados o colonialismo, o imperialismo e a globalização, que o autor classifica como os três principais sistemas de dominação e exploração. Taylor discute a influência do racionalismo iluminista, do sistema tonal e do darwinismo na determinação de identidade e diferença, centro e periferia, domínio e subalternidade.

1.1.1 – Mas, afinal, o que quero dizer com “exotismo”?

No item anterior, discutimos algumas das mais recentes abordagens da questão do exotismo sem, no entanto, determo-nos na definição do termo. Apesar disso, creio já ter sido percebido pelo leitor que a palavra está longe de possuir um sentido unívoco. Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (1977, p. 516), a palavra exōtikós, de origem grega, significava simplesmente “de fora, exterior”. Já no latim, exotĭcu adquiriu também o sentido de “estranho”. Atualmente é definida no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como “algo que trata de coisas ou costumes estrangeiros”. O Dicionário Caldas Aulete da Língua Portuguesa traz ainda o sentido de “esquisito, extravagante”. Na entrada Exoticism, do Grove Dictionary of Music and Musicians, escrita pelo já referido Ralph Locke, o termo é definido como a “evocação de um lugar, povo ou meio social que é (ou é percebido como) profundamente distinto das normas locais em suas atitudes, costumes e moral”. Em Musical Exoticism, Locke alterna, crítica e conscientemente, entre a definição mais neutra por ele apresentada no Grove e abordagens que enfatizam o sentido negativo.

Que tipo de “ismo” é o exotismo? A palavra se relaciona, etimologicamente, a lugares ou cenários “distantes de” algum ponto de vantagem considerado normativo, na maioria das vezes o do observador. Assim como muitos “ismos” (idealismo, Romantismo), pode ser abrangente e relativamente abstrato: uma ideologia, uma coleção de diversos preconceitos e “fatos”, uma tendência intelectual. Ou pode ser abrangente e concreto. Uma corrente cultural com ricas e variadas manifestações. (p. 43).

Como já comentado, além da palavra “exotismo” ou de alguma derivada, são utilizados outros termos no tratamento de questões relativas à análise crítica da representação da alteridade ou da representação de uma identidade coletiva para um público externo. Lopes-Graça, como veremos no item a seguir, tratou essa

36 problemática a partir de conceitos como “pitoresco” e “nacionalismo de cartaz”. Faz- se necessário, portanto, justificar a minha opção, recorrentemente problematizada ao longo desta pesquisa, pela palavra “exotismo”. A primeira razão é a abrangência do termo, associado não apenas ao objeto ou ao resultado e à aparência, como também a uma ideia de processo, possibilitando uma melhor referência à relação artista – objeto (tema) - obra. Embora desenvolvida num contexto muito diverso do deste trabalho, a associação entre exotismo e ignorância proposta por Tzvetan Todorov em Nous et les autres: la réflexion française sur la diversité humaine6 ([1989] 2001, p. 297) foi um importante ponto de partida para o refinamento da expressão do problema e da hipótese desta pesquisa. Segundo o autor, o exotismo é indissociável da ignorância do observador em relação à cultura retratada. O conhecimento do outro dotá-lo-ia de significações particulares, inviabilizando a idealização. O conceito de exotismo conteria um paradoxo: se o conhecimento é incompatível com o exotismo, a ignorância é incompatível com o elogio do outro. O exotismo, para o autor, desejaria ser o elogio do outro na ignorância. Deve-se reconhecer que a formulação de Todorov destaca o elemento de fascínio, não dando a devida atenção ao elemento do preconceito negativo, também presente em abordagens exóticas. De qualquer forma, a associação com a ignorância aplica-se aos dois casos. Seguindo esse raciocínio, podemos pensar que um artista se afasta do exotismo à medida que tem conhecimento ou se esforça por compreender não apenas o repertório, mas a cultura sobre a qual trabalha. Associado à ideia de processo e de conhecimento está o sentido de atitude ao qual se pode também relacionar a palavra “exotismo”. Seguindo esse caminho, utilizo, neste trabalho, o termo em seu sentido restrito e negativo, como sinônimo de abordagem apriorística e reducionista do outro. O outro motivo que me levou a optar por “exotismo”, é justamente o paradoxo entre a familiaridade cotidiana com a palavra e sua dificuldade de definição e abertura de significado, que, acredito, confere interesse à questão.

1.2 – O exotismo como questão para Fernando Lopes-Graça

6 Livro dedicado à análise de relatos de viajantes e literatura de ficção sobre o encontro com povos nativos das colônias francesas. 37

Conforme brevemente apontei no item anterior, o exotismo, embora nem sempre tratado a partir deste termo, foi uma preocupação presente na obra literária e nos pronunciamentos de Lopes-Graça. A crítica ao exotismo estava associada à sua defesa do que denominava um “nacionalismo essencial”. Em seu livro Introdução à música moderna, publicado em 1942, Lopes-Graça traz uma detalhada explicação deste conceito, partindo justamente da noção do amadurecimento de um nacionalismo “pitoresco” e “de superfície”. Transcrevo o excerto a seguir7:

Observa-se, pelos fins do século XIX, uma quebra no movimento nacionalista musical. Esta quebra ou afrouxamento significa, porventura, não tanto o abandono dos ideais que norteavam os seus primeiros representantes (e que já tinham produzido a magnífica floração da escola russa, dos “cinco”) como uma carência de verdadeiros génios que tirassem desse primeiro impulso as suas últimas consequências, achando ou criando-se uma técnica específica adequada à cristalização superior das ideias musicais nacionalistas, fazendo transcender estas o estádio [sic] de um mero nacionalismo pitoresco e de superfície. Apesar dos exemplos ilustres de um Chopin e de um Mussorgski, essa técnica específica só veio a ser encontrada (em parte, graças à revolução debussysta) pelos compositores deste século. É a segunda fase da história dos nacionalismos musicais, aquela em que o movimento é impulsionado não já directamente por fôrças de ordem política, mas, sobretudo, por considerações de ordem estética. O trânsito de uma fase à outra residiu, principalmente, nisto: na transformação do nacionalismo folclorístico num nacionalismo essencial, ou substancial. Quere dizer: a primeira fase do movimento caracterizou-se, essencialmente, pela criação de obras que se inspiravam directamente nas canções e danças populares de cada país. É claro que nem sempre se tratava de um mero “aproveitamento” dos ritmos e cadências populares; frequentemente, e nos melhores casos, o que se dava era uma verdadeira elaboração musical desses elementos populares, já tomados directamente da sua origem, já decalcados artificialmente pelos compositores. Em todo o caso, os produtos assim obtidos traziam sempre consigo um gôsto mais ou menos folclorizante, que, por muito saboroso que fôsse, por brilhantemente que fôsse defendido (e os exemplos de um Rimski-Korsakoff, de um Stravinsky, na sua primeira fase, ou de um Albeniz são de todo o ponto ilustres) não podia satisfazer as necessidades de uma arte largamente evolucionada e de amplo alcance universal8. (pp. 80-81). Mais adiante no referido texto, Lopes-Graça destaca o exotismo na apropriação da música folclórica portuguesa e em seu aproveitamento econômico e político:

A música portuguesa, para nós, ainda é sinônimo de música pitoresca, música folclórica, música “à moda do Minho”. [...] A contribuição do folclore para a criação de uma “música portuguesa” de superior envergadura só pode ser a que foi para os outros países que tentaram formar-se uma cultura

7 O conceito de “nacionalismo essencial” em Lopes-Graça, bem como as circunstâncias que levaram ao seu desenvolvimento e defesa serão retomados e discutidos em maiores detalhes no Capítulo 2 desta tese. 8 As relações desse pensamento com as fases nacionalistas apontadas por Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira, sobre a qual o leitor brasileiro já deve estar se perguntando, serão brevemente discutidas no capítulo 4 desta tese.

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musical individualizada: um método, que há-de ser transcendido logo que os nossos compositores se achem de posse de uma linguagem e de uma disciplina próprias, capazes, portanto, de levar ao mundo a expressão da nossa musicalidade, sim, mas da nossa musicalidade como elemento de cultura e não como matéria de propaganda turística (pp. 89-90). O livro Música e músicos modernos, publicado no ano seguinte9 e definido por Lopes-Graça, na própria introdução, como um complemento à Introdução à música moderna, contém um artigo intitulado Quatro apontamentos sobre Manuel de Falla e a sua obra, em que o autor estabelece entre La Vida Breve (1905), El Amor Brujo (1915), El Retablo de Maese Pedro (1922) e o Concerto para cravo, flauta, oboé, clarinete, violino e violoncelo (1926), uma linha evolutiva, no sentido de um amadurecimento de um nacionalismo pitoresco em direção a um nacionalismo essencial. Lopes-Graça procura deixar clara a importância da valorização e representação da cultura espanhola em sua profundidade e diversidade, em oposição a abordagens limitadoras e espetacularizadas. Sua defesa do alcance de uma mensagem universal através do estudo e uso da música local, recorrente em toda a sua vida e obra, é fortemente sentida neste texto. É interessante notar que o autor evoca o sentido etimológico da palavra “pitoresco” ao comparar essa fase a uma pintura elaborada de maneira irrefletida, visando a mera contemplação. Chega, por vezes, a usar o termo “pinturesco”.

Que salto de A vida Breve para o Amor Bruxo, deste para o Retábulo e daqui ainda para o Concerto de Cravo! Cada uma destas obras marca uma etapa decisiva, não só na produção de Falla como na própria música espanhola contemporânea, fazendo-a galgar quase de salto o caminho que vai de uma arte de pinturesco nacionalista a uma arte de interpretação e equivalência dos valores e símbolos profundos de uma cultura secular, das mais originais, fortes e significativas da velha Europa. Falla conheceu em determinado momento a celebridade; teria sido fácil explorá-la, prosseguindo na via que o conduziria ao triunfo e fornecendo ao público obras que, como o Amor Bruxo ou o Tricórnio10, o interessavam principalmente pelo seu “carácter”, pelo lado do seu exotismo, aliás admiravelmente realizado, forçoso é reconhece-lo, prolongando nele a ideia de uma Espanha de pitoresco e de cor, de aventura e de sonho, que o Romantismo tinha posto em moda e contra a qual já reagira em parte esse verdadeiro estimulador da música espanhola contemporânea, que foi o genial Claude-Achille Debussy. Falla sentiu, porém, que a Espanha não era apenas a Andaluzia; esta era a Espanha de “exportação”, a Espanha que o mundo musical conhecia desde a Carmen, de Bizet, a que ele próprio “sancionara” naquelas suas duas obras, as quais ficaram sendo a própria imagem da Espanha e as credenciais artísticas do génio de Falla aos olhos de um público mais amante e guloso da “paisagem” de um povo do que da realidade profunda do seu génio secular. Este era do conhecimento apenas de estudiosos e eruditos. A generalidade do público pouco ou nada sabia de Morales e Victoria, de Fray Luís de Léon [sic] e de Santa Teresa, de

9 Reeditado pela Caminho em 1986 como o 5º Volume de suas Obras Literárias. 10 Balé também conhecido como El sombrero de tres picos. 39

Cervantes e de Quevedo, de Velásquez e de Goya, de Unamuno e de António Machado. (LOPES-GRAÇA, [1943] 1986, pp. 93-94). [...] o Retábulo, afora o seu valor e a sua beleza própria, teve o condão de estimular no mais elevado grau toda ou quase toda a produção musical espanhola subsequente, fazendo-a sair do estreito beco do folclorismo ou do pinturesco regional, que, não sendo servido pelo génio de um Albeniz, será capaz de criar obras curiosas, a que não falta saber, técnica e estilo próprio mas dificilmente lhes conferirá validade e alcance universal, que só se atinge pela transcendentalização dos valores e dos caracteres puramente locais. (p. 100). Ao associar passagens do Concerto para cravo a uma “Espanha dos grandes místicos e pensadores”, Lopes-Graça descreve uma atmosfera de tensão e mau agouro, que se pode talvez entender como uma sutil referência à Guerra Civil Espanhola, que se iniciaria uma década após a composição da obra em apreço.

Nem o Tricórnio, nem o Amor Bruxo, nem as Noites nos Jardins de Espanha são obras erradas – o que são é, por assim dizer, obras unilaterais, no sentido de que nos dão da Espanha apenas uma visão: a visão de uma Andaluzia de pitoresco, de paixão e de sensualidade. Ora, o Concerto de Cravo é uma obra espanhola, sim, mas espanhola num sentido diferente do corrente e vulgar sentido de espanholismo musical, que é o do nacionalismo folclorista. No Concerto, pelo contrário (como, aliás, já anteriormente, embora não tão decisivamente, no Retábulo de Mestre Pedro), o autor da Vida Breve volta costas a toda e qualquer espécie de pitoresco, abandona o nacionalismo folclorista e revela-nos uma Espanha profunda, um nacionalismo essencial que não é, positivamente, o do canto jondo, das castanholas e dos ciganos, isto é, uma Espanha andaluza – mas, antes, uma Espanha castelhana, que é a Espanha dos grandes místicos e dos grandes pensadores – a Espanha de S. João da Cruz, de Cervantes, de Unamuno, dos quais o grande músico é, já agora, graças ao seu soberbo Concerto, um dos mais dignos pares. Só não o sentirá quem não compreender toda a grandeza trágica, mas sóbria, fúnebre, sem ser pomposa, e eloquente, sem declamação, do Lento, deste Concerto, que traz na partitura a inscrição do dia do Corpus Christi, em Sevilha, e que soa aos nossos ouvidos, sempre que o escutamos, como uma agourenta previsão de catástrofe e – coisa cruel e significativa – uma quase glorificação dela. Espanhola, terrivelmente espanhola, até nisto, a obra-prima de Falla... (p. 101). A questão do exotismo também está presente nos escritos de Lopes-Graça sobre a música brasileira e em pronunciamentos do compositor durante sua primeira visita ao Brasil. A reportagem realizada a partir de uma entrevista do compositor ao jornal paulistano A Gazeta, publicada em 15 de setembro de 1958, tem como título “O nacionalismo musical de simples indumentária vistosa ou de cartaz turístico não resolverá nada”. No contexto em questão, Lopes-Graça aplicava esta afirmação a todas as culturas, não apenas à brasileira.

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Na homenagem escrita por ocasião do falecimento de Heitor Villa-Lobos11, Lopes-Graça mostra uma postura ambivalente em relação à questão do exotismo. Ao definir o homenageado como “um primitivo que em todo o caso trocava com frequência o sertão (que podia situar-se mesmo no seu um tanto exótico apartamento da rua Araújo Porto Alegre, no Rio) pelas delícias e requintes da civilização parisiense” ([1959] 1966, p.178), sugere uma crítica à sua construção de uma imagem pública de “selvagem”. Por outro lado, destaca em sua obra justamente a exuberância, ao caracterizá-la como “uma torrente, uma força incontrolada da natureza” e ao afirmar que “compunha com a inocência de um primitivo”. Voltaremos a esta questão no Capítulo 3 e no capítulo 6, onde veremos, na análise do quinteto de sopros O túmulo de Villa-Lobos, um retrato bem mais complexo, com referências a outras facetas do compositor carioca. A arriscada ênfase na exuberância da música brasileira também ocorre na Conversa com Fernando Lopes-Graça, entrevista concedida a Mozart de Araújo em 1951, quando o compositor afirma que “a acção disciplinadora do dodecafonismo (a sua principal virtude) não poderá nunca sobrepôr-se àquilo que constitui a verdadeira essência da música brasileira: a sua luxuriância, a sua fôrça primitiva derivada de um contacto directo com as fontes da vossa rica música popular” (LOPES-GRAÇA, apud ARAÚJO [1951] 1952, p. 6). Se o conhecimento de sua obra literária e de sua visão estética leva a interpretar essa referência como relacionada à sua defesa do universal pelo local, a simples leitura dos termos “luxuriância” e “fôrça primitiva” remete a uma ideia de arte exótica e “de exportação”. Mas não seria a maioria dos posicionamentos discutidos neste item uma crítica ao autoexotismo em vez de ao exotismo? Se nos basearmos no argumento, proposto por Ralph Locke (2009), de que a música nacionalista de uma cultura é percebida pela outra como exótica, chegamos à conclusão de que todo autoexotismo é, por extensão, um exotismo. A crítica de Lopes-Graça ao exotismo, intimamente associada à sua crítica ao autoexotismo, manifesta-se de maneira mais profunda, embora não explícita, em sua atitude enquanto compositor do que em seus textos e falas. Podemos percebê-la tanto em sua música de temática brasileira quanto em sua produção sobre outras culturas. Este argumento será retomado e desenvolvido ao

11 Publicada na edição portuguesa de Musicália, em 1966. 41 longo de toda a tese. Com relação à abordagem de outras culturas que não a brasileira, veja-se o breve comentário sobre as Mornas caboverdianas, no item 1.4.

1.3 – Falar de exotismo no contexto pós-colonial?

Um dos objetivos desta pesquisa é trazer uma contribuição ao estudo das relações luso-brasileiras no século XX, pouco explorado, de maneira geral, nas ciências humanas e, sobretudo, nos estudos musicológicos sobre o tema, predominantemente centrados nos períodos colonial e imperial. A esse respeito, outra dúvida que o título desta tese e o tema desta pesquisa podem suscitar é relativa à pertinência da questão do exotismo entre duas nações que há muito já não têm entre si uma relação oficial de domínio político. Deve-se levar em consideração que Portugal, em pleno século XX, até o ano de 1975, possuía colônias na África. Em uma relação pós-colonial permeada por colonialismos vigentes, discursos sobre o passado ajudavam a sustentar o Império Português. Através de um olhar atento, descortinam-se tensões latentes, sob a aparência de superação. O discurso otimista sobre o domínio ultramarino português no século XX foi alimentado por uma apropriação portuguesa do luso-tropicalismo, teoria proposta pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que tem como ideias centrais, segundo Cláudia Castelo (2011, p. 114), “a mestiçagem, a interpenetração de culturas e a vocação ecumênica”. De acordo com a estudiosa, a teoria de Freyre nunca foi plenamente integrada no discurso do Estado Novo, profundamente nacionalista, que se limitou a veicular uma versão simplificada, marcada pelas ideias de ausência de sentimentos racistas, empatia e fraternidade em relação a outros povos, deixando de lado outros aspectos potencialmente subversivos, como a valorização dos contributos culturais das diferentes etnias para a civilização comum e as noções de que a unidade cultural sobrepunha-se às questões de soberania nacional e de que a comunidade luso- tropical poderia ser uma entidade transnacional. Estabelecido com base numa visão essencialista do “povo” português, o luso-tropicalismo, divulgado no meio cultural desde meados dos anos 30, ainda que não explicitamente com esse nome, foi manipulado pelo campo político e reproduzido no campo acadêmico, na conjuntura do pós-guerra, para legitimar a continuidade da presença portuguesa na África. Segundo Castelo, tais ideias servem, no [atual] contexto pós-colonial, para “ajudar a criação formal de uma comunidade lusófona com

42 propósitos culturais, económicos e de cooperação em matéria de política externa” (p. 116). A historiadora brasileira Ana Sílvia Scott (2012, pp. 332-333), embora reconheça a contribuição do autor para o estudo da colonização portuguesa e o sentido mais amplo do luso-tropicalismo, destaca a conivência do próprio Gilberto Freyre em relação à apropriação de suas ideias e suas relações diplomáticas com o governo português. E qual a reação do próprio Freyre diante dessa apropriação de suas palavras? Tudo indica que ele assumiu uma postura de complacência em relação a isso e suas consequências, pois, pelo menos ao longo das décadas de 1950 e 1960, manteve um vínculo próximo com o regime salazarista. Entre outras coisas, aceitou um convite oficial de Portugal para visitar as colônias na África e nas Índias. Mas não só. O intelectual brasileiro também permitiu a edição portuguesa patrocinada pelo governo de Salazar de vários textos de sua autoria – entre eles Aventura e Rotina, Integração portuguesa nos trópicos, O luso e o trópico – alguns também traduzidos para o inglês. No diário mantido por um membro do governo português daquela época (e posteriormente publicado)12 ficou registrado “Almoço no Ritz em honra de Gilberto Freyre. Pareceu ávido de honrarias, homenagens e elogios de cinco em cinco minutos. Diz-me que concorda inteiramente com a nossa política africana.” Esse trecho foi escrito em novembro de 1962, época em que a guerra colonial em Angola estava já em marcha. [...]. As ligações de Gilberto Freyre com o regime ditatorial português receberam, na época, críticas de alguns intelectuais brasileiros; entre elas destaca-se a de Rachel de Queiroz. Na revista O Cruzeiro de abril de 1952, a escritora desaprovou o fato de Freyre ter aceitado o convite do governo salazarista. Em resposta, Freyre defendeu-se afirmando que manteve encontros com intelectuais conhecidos por sua hostilidade em relação ao ditador... Independentemente do uso político das contribuições de Gilberto Freyre, ainda hoje há intelectuais que destacam a importância dos achados desse autor com relação às particularidades da colonização portuguesa e defendem, com razão, que o conceito de lusotropicalismo não pode ser limitado ao modo como o Estado salazarista dele se serviu nas décadas de 1950 e 1960.

Sobre a relação entre luso-tropicalismo e música, temos exemplos de análises críticas nas pesquisas de Marcos Cardão, especialmente o livro Fado Tropical: o Luso-Tropicalismo na cultura de massas (2015) e nos estudos de Bart Vanspauwen sobre o uso do conceito de lusofonia no cenário musical lisboeta contemporâneo, em sua dissertação de mestrado (2010) e tese de doutorado (2017). Uma recente reportagem do jornal Público (HENRIQUES, 2016) sobre representações nacionalistas, colonialistas e luso-tropicalistas em espaços como o Jardim Botânico Tropical, o Parque das Nações (em Lisboa) e o parque temático Portugal dos Pequenitos (em Coimbra) destaca a presença dessa questão no cotidiano dos portugueses.

12 Um Político Confessa-se (1986), de Alberto Franco Nogueira. 43

A jornalista Joana Gorjão Henriques denuncia o indeferimento do pedido do artista plástico Vasco Araújo para filmar no Portugal dos Pequenitos para uma exposição crítica sobre o tema, intitulada E daqueles que não queremos saber. A repórter destaca a permanência, no parque infantil, de textos com forte teor imperialista, sem qualquer contextualização ou comentário crítico. Em forma de protesto, o artista incorporou no espaço destinado à exibição do vídeo um filme de 9 minutos com a imagem de uma tela preta riscada em vermelho e o som do seguinte diálogo, por ele escrito: “Quem sou eu neste local?” “És a negação sistemática do outro, és uma decisão furiosa de privar o outro de qualquer atributo de humanidade.” Também foram incluídos na exposição um texto explicativo sobre o caso e as cartas trocadas com a fundação gestora do parque13. No mesmo artigo, a antropóloga Elsa Peralta, coordenadora da linha de investigação Legados do Império e do Colonialismo em perspectiva comparada, no Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, destaca, no Jardim Botânico, a persistência da imagem de seu propósito original de “laboratório das espécies que faziam parte da flora das ex-colónias” e, no Jardim do Príncipe Real, a presença dos jacarandás, “metáfora e paradigma da forma como o império está tão presente e inerte na paisagem”. A pesquisadora traça um paralelo entre os bairros de Belém - cuja aparência atual é em grande medida fruto da Exposição do Mundo Português (1940) e que possui monumentos que exaltam a história do imperialismo14, como o Forte do Bom Sucesso e monumento aos combatentes de guerra do Ultramar, o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o museu da Marinha e a Praça do Império, na qual ainda existem brasões das ex-colônias – e o Parque das Nações, totalmente reconstruído e modernizado para a Exposição Mundial de 1998 - onde encontramos nomes como Alameda dos Oceanos, Torre Vasco da Gama (edifício mais alto da cidade), Pavilhão Atlântico – e que, nas palavras de Joana Henriques, “vai actualizar essa épica a partir de uma outra, a dos oceanos, do encontro cultural”.

13 O parque foi fundado por Fernando Bissaya Barreto, amigo e médico pessoal de Salazar e defensor do Estado Novo. É atualmente gerido pela fundação que leva seu nome. 14 mesmo que algumas placas comemorativas nos monumentos sugiram um espírito de diplomacia e estreitamento de relações com as antigas colônias.

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Não se podem nem devem apagar os vestígios toponímicos da história do colonialismo portugês e do seu bom e mau legado, mas sim combinar a salvaguarda do patrimônio com novos discursos críticos que podem estar – apesar da maior abertura de interpretação – até mesmo na arquitetura contemporânea.

1.4. – Alguns discursos sobre o “outro” na música portuguesa de concerto

Durante a década de 60, vemos surgir no repertório sinfônico português obras alinhadas à narrativa otimista de um império multicultural e multirracial, como a Sinfonia nº 5, Virtus Lusitaniae (1966), de Joly Braga Santos e a Sinfonia Além-Mar (1969), de Rui Coelho. Virtus Lusitaniae foi desenvolvida a partir de uma encomenda para as comemorações dos 40 anos do golpe de 28 de maio de 1926, que deu início à ditadura militar em Portugal. O segundo movimento, Zavala15, faz referência à música dos “marimbeiros”, tocadores de timbila, um instrumento da família do xilofone, típico da região de Zavala, em Moçambique. Conforme refere Paulo Ferreira de Castro (2015a), o breve contato do compositor com esta manifestação durante uma viagem comissionada pelo governo já estava carregado de exotismo. Suas fontes foram gravações disponíveis na rádio nacional do país e uma apresentação, na capital Lourenço Marques (hoje Maputo), de um grande grupo de instrumentistas em conjunto – o que não era hábito em sua prática local – num evento oficial em que foi interpretado inclusive o hino nacional português. Castro e também Alexandre Delgado, em seu livro A sinfonia em Portugal (2002), não deixam de destacar o caráter embaraçoso desta encomenda. Num artigo publicado no Diário de Lisboa em 19 de julho de 1988, por ocasião da morte do compositor, Mário Vieira de Carvalho lembra o seu choque ao ouvir a transmissão da primeira audição da sinfonia em 1966, o que o fez enviar a Braga Santos um telegrama informando a sua reação diante do aceite dessa encomenda por um artista que tanto admirava. Encontrando o compositor em um concerto dias depois, ouviu deste a seguinte frase: “Eu próprio fiquei tão chocado como você!” Num excerto do referido artigo, que transcrevo a seguir, o autor destaca a complexidade da relação entre o estético e o político na vida e obra do compositor16.

15 Áudio disponível em http://www.deezer.com/track/37428861?utm_source=deezer&utm_content=track- 37428861&utm_term=129212263_1523051619&utm_medium=web. Acesso em 06 mar. 2018. 16 No programa do 1° ciclo de cultura musical, organizado em 1964 pela seção cultural da Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, da qual participava o próprio Vieira de Carvalho, consta o colóquio “Música Portuguesa Contemporânea”, proferido por Joly Braga Santos e Álvaro Cassuto e ilustrado com exemplos musicais. Note-se que, apesar de sua ambiguidade política – já manifesta no aceite da encomenda da música 45

A sua música é demasiado rica para se deixar absorver numa leitura que a reduzisse a uma relação linear com a realidade, com a vida, com a política. A sua música é uma pista, que seguiremos interminavelmente na tentativa de aproximações sucessivas ao pensamento do artista, ao que nele se exprime do todo a que pertence, a uma experiência ao fim e ao cabo tanto pessoal como colectiva. (VIEIRA DE CARVALHO, 1988, p. 23).

No livro de Delgado e nos encartes das gravações da sinfonia, há referências a um prêmio conferido pela UNESCO, cuja confirmação, contudo, não foi encontrada nas pesquisas documentais de Castro junto a esta instituição. Por mais artisticamente meritória que seja a obra, seria, de fato, estranho o reconhecimento, por parte de uma organização em que é proeminente o discurso humanitário, de uma composição sobre este tema em plena Guerra Colonial. Convém lembrar que estas não são as primeiras nem as únicas obras eruditas portuguesas do século XX que abordam a música de ou a relação com países que eram ou haviam sido colônias. Podemos citar, por exemplo, a Abertura comemorativa da chegada dos portugueses à Índia (1928), o Bailado Africano e a Suíte Africana (1930), de Rui Coelho (COELHO, 2016) e a fantasia colonial dramática O velo d’oiro, baseada no romance de Henrique Galvão, com música de Frederico de Freitas, que serviria de base à sua “Suíte Colonial” (1938) - cujo título o compositor alteraria mais tarde para o aparentemente neutro Suíte Africana. Dois movimentos da referida obra foram apresentados na Exposição do Mundo Português, em 1940. Além deste evento, a Exposição Colonial do Porto, realizada em 1934, e a participação de Portugal na Exposição Colonial de em 1931 foram iniciativas da ditadura com vistas a legitimar o domínio português sobre outros países aos olhos da população. Manuel Deniz Silva (2003, pp. 133-136) observa, na referida obra, uma visão de caos e irracionalidade, a partir do [...] recurso a elementos estilísticos associados ao primitivismo musical, e em particular a evocações da Sagração da Primavera, que se impôs como o modelo internacional desse movimento estético [...] utilização alternada de compassos ternários e quaternários, a sobreposição de padrões rítmicos diferentes, o recurso frequente a hemíolas, o cromatismo melódico e o paralelismo harmónico [...] construía-se assim uma rede de referências na qual os elementos estilísticos de um primitivismo musical genérico (neste caso de matriz stravinskiana) permitiam uma representação sonora da incomensurável alteridade que separava colonos e colonizados.

O autor destaca ainda o papel da revista Mundo Português na divulgação de um projeto de assimilação das populações nativas, centrado na noção de missão

para o filme de propaganda política “Chaimite” nos anos 50 - o compositor não deixou de ser convidado para uma iniciativa do movimento estudantil, marcado pela oposição e resistência cultural ao regime.

46 civilizadora do povo português. Aponta a recorrente relação, nos textos, entre música negra e sensualidade e a constante referência ao batuque, concebido como “uma entidade abstracta e irreal, uma sinédoque de toda a cultura africana e da sua natureza selvagem”. (p. 124). Na conferência O Império e a Música, proferida na Academia de Amadores de Música em 1942, Octávio Rodrigues dos Santos sublinhava a necessidade de “compormos grandes páginas sinfônicas que nos dêem a ideia de Império em marcha”. Seguiu-se um recital com canções portuguesas, harmonizações de temas populares pelo Pe. Tomás Borba, diretor da Academia, apresentadas pelo conferencista como exemplo do lirismo português. (DENIZ SILVA, 2003, p. 126). Não encontrei, até o momento, informações sobre a presença de Lopes-Graça, ex-aluno de Tomás Borba e docente na Academia, nesse recital-palestra ou qualquer manifestação de sua opinião sobre o mesmo. No mesmo período, por outro lado, José Belo Marques, apesar da imaturidade científica e de certo exotismo na escrita, talvez justificáveis pelo seu pioneirismo, já propunha uma abordagem musical a partir de uma recolha e de um contato mais próximo com a música africana, que teve condições de realizar. À semelhança de Mário de Andrade, exortava os compositores a aprofundar sua abordagem desse repertório. Apesar de não ter sido um compositor tão prolífico no campo da música de concerto, tendo alcançado mais notoriedade na música ligeira, podemos citar sua Fantasia Negra, em seis movimentos, para solista, coro e orquestra (1939). Deniz Silva vê nessa obra uma concepção ainda bastante ocidentalizada da música, a partir da constante referência a elementos de jazz, e relata que o seu caráter erudito e a pertinência de sua apresentação no Teatro Nacional São Carlos haviam sido questionados por Lopes-Graça em uma crítica na revista Seara Nova. De maneira geral, Manuel Deniz Silva interpreta a representação musical do “outro” nos primeiros anos do Estado Novo como “uma representação idealizada do Mundo português para a metrópole, a fim de consagrar e justificar a pretendida vocação imperial do regime”. (p. 113). O próprio Lopes-Graça não deixou de abordar a música das colônias portuguesas na África, mas num claro posicionamento anticolonialista. Um exemplo é Cosmorama (1963), suíte para piano, escrita no contexto da guerra colonial, em que convivem nações como Estados Unidos, Guiné, Moçambique, Suíça e Rússia. Os países africanos são colocados no mesmo patamar dos demais, sugerindo seu 47 tratamento como nações independentes, numa mensagem de solidariedade e apoio aos movimentos de libertação. Em 1978 Lopes-Graça compõe as Mornas cabo- verdianas, também para piano solo, três anos após a independência do país, e as dedica “Ao povo da nova nação Cabo Verde”. Aliado ao contexto e à dedicatória, o fato de utilizar melodias populares da região em vez de recorrer ao “primitivismo genérico”, para utilizar o termo de Deniz Silva, já o afasta, em certa medida, de uma abordagem exótica.

1.5 - Relações luso-brasileiras e conhecimento musical

“Há que soltar a “jangada de pedra” das amarras da sua condição periférica e trazê-la de volta carregada de potencial contra-hegemônico.” A frase, escrita por Mário Vieira de Carvalho no prefácio do livro Impressões sobre a Música Portuguesa ([2011] 2014, p.13), de José Eduardo Martins, faz referência ao romance A Jangada de Pedra, de José Saramago, publicado em 1986. A jangada em questão é uma metáfora da Península Ibérica que, na narrativa, desmembra-se do restante do continente europeu e fica à deriva. No ano em que Portugal tornou-se oficialmente membro da União Europeia17, Saramago discute, por meio de uma alegoria, a relação do país com o “centro” do mundo. Em A Máquina de Fazer Espanhóis (2010), Valter Hugo Mãe problematiza a questão da identidade dentro da própria Península Ibérica e chama a atenção para a sensação de inferioridade dos portugueses em relação ao país vizinho. Diz em certo momento o senhor António Silva, o protagonista:

sabem que mais, portugal ainda é uma máquina de fazer espanhóis, é verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o facto de sermos independentes, quem, mais do que isso até, não desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e para salários melhores, deixem-se de tretas, meus amigos, que o patriotismo só vos fica mal, bem iam assentar-vos uns nomes à maneira, como pepe e pablo, diego e santiago, assim a virar para o lado de lá da fronteira, onde se come mais à boca grande e onde sempre houve mais ritmo no sangue, aqui, enquanto houver um salazar em cada família, estamos entregues ao inimigo [...] as mulheres portuguesas é que faziam os espanhóis. abriam as pernas e pariam-nos a todos, estes espanhóis enjeitados, arrependidos, com vontade de voltar a casa, para terem melhor casa, melhores salários, uma dignidade à grande e não esta coisa quase a tombar ao mar, como se cada vez mais pressionada contra a parede, a suicidar-se, cheias de saudades, remorsos, queixas e tristezas frustrantes. (p. 185). 18

17 por meio da assinatura, no dia 1º de janeiro, do Ato Único Europeu, que eliminava as fronteiras entre os países signatários, visando estimular a livre circulação de pessoas e mercadorias. (SCOTT, 2012, p.355). 18 Optei por respeitar as idiossincrasias de pontuação e capitulação do autor.

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O “complexo” português não se faz presente apenas na literatura de ficção, mas também nas ciências humanas, na ensaística (vários são, por exemplo, os textos de Eduardo Lourenço sobre o tema) e em diversas modalidades de discursos não acadêmicos sobre questões políticas, econômicas e estéticas (reportagens, crítica e até mesmo discursos verbais). No campo dos estudos sobre a música, um grande esforço no sentido de abordar essa problemática à luz da sociologia, de maneira rigorosa e amplamente fundamentada, foi realizado por António Pinho Vargas no livro Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu (2011), fruto de sua tese de doutorado, realizada na Universidade de Coimbra, sob a orientação de Boaventura de Sousa Santos. Central ao desenvolvimento da tese é o conceito de “semiperiferia”, desenvolvido por Sousa Santos e aplicável ao caso português e sua simultânea e desconfortável “pertença e não pertença” à Europa, uma espécie de condição de outro interno, fator que só faz ressaltar a sua invisibilidade no panorama cultural dominado pelo “centro” europeu e estadunidense. São também de grande importância no desenvolvimento de sua argumentação a articulação de poder e saber no discurso, destacada na obra de Michel Foucault e as noções de capital cultural, capital simbólico e campo em Pierre Bourdieu. O próprio Vargas, pianista, compositor e acadêmico, é agente do campo que analisa, o que o coloca numa posição bastante delicada e surpreende pela lúcida autocrítica. O autor analisa discursos sobre a música e os músicos portugueses em obras de referência, como manuais estrangeiros e portugueses de “História da Música Ocidental”, manuais nacionais de “História da música Portuguesa/em Portugal” e entradas do Grove Dictionary of Music and Musicians e Die Musik in Geschichte und Gegenwart, escritas, em maioria, por musicólogos portugueses. Abordagens monográficas, via de regra mais críticas e problematizadoras, sobre questões relativas à identidade e reconhecimento nacional e internacional da música portuguesa – dentre as quais se destacam diversos textos de Lopes-Graça - também são discutidas. Vargas analisa ainda a presença da música portuguesa na programação das grandes salas de concerto e teatros do país e de alguns grandes eventos internacionais. A principal e triste conclusão a que chega essa extensa pesquisa é o protagonismo dos próprios portugueses como agentes nessa invisibilização. Uma tópica recorrente encontrada no discurso dos autores de entradas sobre compositores portugueses em dicionários e enciclopédias é a do “ir e voltar/ir e 49 ficar”, ou seja, na descrição de suas trajetórias recebe sempre destaque a passagem, mais ou menos breve, por algum país do “centro” europeu ou pelos Estado Unidos, na condição de estudante ou profissional. A residência definitiva em um desses países é considerada marca de ainda maior sucesso, caso de Emmanuel Nunes (1941-2012), radicado na França e sem dúvida o compositor português de maior projeção internacional. Das dezenas de personalidades retratadas apenas duas não têm essa experiência em suas biografias. Conversas com professores universitários de música e colegas ao longo desta pesquisa deram-me uma mostra do pouco conhecimento, no Brasil, sobre os compositores portugueses modernos e contemporâneos. Ao mencionar o nome de Fernando Lopes-Graça, a maioria dizia nunca ter ouvido falar. Alguns, geralmente mais velhos, perguntavam-me se ainda estava vivo e se referiam, com muita frequência, à sua produção como musicólogo e crítico. Um professor associou o nome ao concurso de composição organizado anualmente pelo Museu da Música Portuguesa. Um nome frequentemente lembrado pelos professores e colegas que se dedicam à composição ou ao estudo da música contemporânea é, justamente, o de Emmanuel Nunes. Outros são o de Jorge Peixinho (1940-1995) e o de João Pedro de Oliveira, professor universitário radicado há alguns anos em Belo Horizonte. O pianista José Eduardo Martins, amigo pessoal de Lopes-Graça e frequente intérprete de suas obras e das de outros compositores portugueses antigos e contemporâneos, lamentou em entrevista a pouca dedicação de instrumentistas portugueses de grande renome internacional à música de seu país, a falta de divulgação internacional da obra de Lopes-Graça e o pouco investimento da embaixada e de outras instituições oficiais nessa causa.

Os intérpretes portugueses mais ventilados no exterior não tocam Lopes- Graça [...]. Os músicos portugueses que lá [em Portugal] vivem, alguns músicos que eu admiro profundamente, tocam a música portuguesa. [..] O António Rosado gravou as Músicas Festivas, o In Memoriam Béla Bartók, todas as sonatas, gravou magistralmente essas obras. Mas essas obras teriam que ser divulgadas fora e para isso haveria necessidade de um patrocínio do governo. Esse programa que nós fizemos19, foi uma loucura para conseguir. Foi a primeira vez fora de Portugal em que três dias foram dedicados integralmente à música de Lopes Graça.

19 Série de recitais e palestras realizadas em outubro de 2015 em São Paulo, com a participação de José Eduardo Martins, da mezzo-soprano Rita Morão Tavares e do musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso.

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Se a música popular brasileira tem, há décadas, um lugar cativo no coração e nas mentes dos portugueses, impulsionada pela grande divulgação das nossas telenovelas e pela presença da comunidade brasileira residente no país, o mesmo infelizmente não ocorre com a nossa música de concerto. Um grande esforço no sentido do estreitamento dessas relações (e também entre outros países lusófonos) tem sido realizado pelo Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP), plataforma independente dirigida por jovens músicos e que conta com mais de uma centena de colaboradores nacionais e estrangeiros (entre eles a autora desta tese). Com o apoio da Secretaria do Estado da Cultura e de diversas outras empresas e instituições parceiras, o MPMP, criado em 2010, promove a edição de partituras, livros, CDs, a realização de concertos, palestras e recitais e publica a revista Glosas, periódico de divulgação musical, nas versões impressa e eletrônica. No ano de 2015, alguns integrantes realizaram uma tournée por diversas cidades brasileiras. Outro ponto destacado na tese de Vargas e constantemente abordado por Lopes-Graça é o status interno da música em relação ao da literatura (e, em menor medida, ao das artes visuais) em Portugal. Teresa Cascudo, em sua tese de doutorado (2010), discute a problematização, em Lopes-Graça, da existência de uma tradição musical portuguesa. Na conferência Claridades e sombras da História da Música Portuguesa, proferida durante sua visita ao Brasil, Lopes-Graça assim se manifesta a respeito: [...] tem-se a impressão de que, no processo espiritual mais ou menos orgânico, mais ou menos articulado, que se designa por “cultura portuguesa”, a música ocupa um lugar subalterno, apagado, e que, comparada com a literatura (mormente a poesia, de que fazemos nosso título de orgulho) e com as artes plásticas (não tão pouco significativas, ainda assim, quanto por vezes se imagina ou afirma), a arte dos sons pouco solicitou desde sempre a atenção, o fervor dos portugueses, ou pouco lhes excitou a inventiva[...] os nomes de um Fernão Lopes, um Gil Vicente, um Camões, um Vieira, um Bocage, um Garrett, um Eça, um Antero, um Camilo, um Pessoa, um Aquilino, nas belas letras, os de um Nuno Gonçalves, um Gregório Lopes, um Machado de Castro, um Sequeira, um Soares dos Reis, um Pousão, um Columbano, uma Vieira da Silva, nas belas artes, tais nomes constituem, na verdade, marcos ilustres numa trajectória espiritual de alguns séculos, a que constantemente nos referimos ao buscarmos os títulos e as razões da nossa configuração e da nossa idoneidade mental. Encontraremos na música algo semelhante, qualquer paralelismo assim simbólico? (LOPES-GRAÇA, [1958] 1973, p. 21).

No caso brasileiro atual, além da falta de valorização da própria música de concerto é problemático o desconhecimento, ou melhor, o desinteresse em conhecer a música portuguesa. O nacionalismo musical, de que se percebem manifestações a partir da proclamação da independência e que ganhou força, sobretudo, no início e ao 51 longo do século XX, foi acompanhado de um imperativo de afastamento das referências culturais coevas da antiga metrópole20. Ao mesmo tempo, um desejo de atualização, de cosmopolitismo, e de legitimação direcionava constantemente os ouvidos e a pena dos artistas para a produção dos países da Europa Central, com destaque para a França, a Alemanha e a Itália. Essa tensão entre cosmopolitismo e nacionalismo faz-se sentir na historiografia da música brasileira ao longo de todo o século XX21. Observa-se, no âmbito oral e cotidiano, que o discurso de alguns brasileiros sobre o seu passado colonial e a reflexão sobre a sua condição política e econômica presente são acompanhados de um certo ressentimento e de um descaso e desinteresse pelo Portugal contemporâneo, o que tem como consequência a privação do conhecimento de uma dinâmica realidade cultural com um imenso potencial de diálogo, ao alcance da língua materna. O olhar crítico é, sem dúvida, fundamental, mas seria a ignorância realmente necessária?

20 apesar de a influência portuguesa na formação da música brasileira ser reconhecida e seu estudo encorajado. 21 Essa foi inclusive uma das principais questões discutidas em minha dissertação de mestrado Princípios de observação em três obras historiográficas panorâmicas sobre a música brasileira (2013), onde analisei os livros A música no Brasil desde os tempos coloniaes ate o primeiro decenio da Republica (1908), de Guilherme de Mello, 150 anos de Música no Brasil (1956), de Luiz Heitor Correia de Azevedo e História da Música no Brasil (1981, com 7 reedições), de Vasco Mariz.

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Capítulo 2 - O local nos musicares de Fernando Lopes-Graça

Apesar de ter sua trajetória e produção bastante registrada em livros, teses, artigos, gravações, documentários, etc22, Fernando Lopes-Graça é pouquíssimo conhecido fora de seu país natal, inclusive no meio musical profissional e acadêmico brasileiro, malgrado a língua em comum. Percebi, portanto, desde o início da pesquisa, a necessidade de trazer na tese um capítulo de contextualização. Minha participação no projeto temático “O Musicar local: novas trilhas para a etnomusicologia” fez com que eu olhasse de uma nova forma para o meu trabalho, especialmente no que se refere à trajetória biográfica e profissional do sujeito da pesquisa. Iniciado oficialmente em 2016, o projeto, sediado na UNICAMP (Instituto de Artes) e USP (Laboratório de Imagem e Som em Antropologia e Instituto de Estudos Brasileiros) e financiado pela Fundação de Amaparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), reúne pesquisadores de diferentes níveis e áreas (notadamente etnomusicologia, antropologia e musicologia). O conceito de “musicar” é uma tradução de musicking, termo cunhado por Christopher Small (1998). Tomando a música como ação (daí o uso de um verbo) e processo - mais que como produto - e destacando as redes envolvidas em sua prática, a definição de musicking engloba todo e qualquer envolvimento com a música, seja em sua criação, interpretação, recepção ou viabilização. Por exemplo, estariam “musicando” tanto o compositor quanto o vendedor de ingressos, embora de diferentes formas. Com relação ao conceito de “local”, o termo é por nós tomado em sua mais ampla acepção, sendo discutidos não apenas o sentido físico, mas também o sentido de marca de especificidade em oposição ao global e nacional, os locais “virtuais”, os encontros, o local nos discursos, nas “comunidades imaginadas” (ANDERSON, [1983] 2016) e na “invenção das tradições” (HOBSBAWN e RANGER, [1983] 2000). Baseamo-nos, em grande medida, na definição de localidade proposta por Arjun Appadurai (1996), como “estrutura de sentimentos”, um ideal de pertencimento, vivência e convivência em comunidade, cuja manutenção depende de sua produção,

22 Em seu catálogo da obra musical de Lopes-Graça (1997), Teresa Cascudo observa que a dificuldade de edição comercial de partituras de sua obra durante o Estado Novo levou o compositor a se tornar ele próprio o editor. Esse problema persiste em toda a música portuguesa. António Pinho Vargas (2010, p. 473) destaca a problemática distribuição desse material e sua quase inexistente circulação internacional. Apesar disso, ainda causa surpresa a quantidade e diversidade da produção acadêmica e audiovisual recente que pude encontrar durante minha estada e viagens a Lisboa. 53 reprodução e incorporação por um grupo de pessoas que geralmente habitam um mesmo espaço físico. O projeto visa, portanto, discutir como os sujeitos, por meio do fazer musical, constroem a localidade e são por ela construídos. Partindo desta perspectiva, trago neste capítulo um breve panorama biográfico de Lopes-Graça, destacando seu envolvimento com a música em suas diferentes áreas de atuação. Na consideração de um “musicar” em determinado contexto sociocultural, observam-se diferentes paradigmas de prática e função da música, coexistindo, muitas vezes, aspectos tomados a priori como contrários. Essa questão será o foco da segunda parte deste capítulo, que toma como base os trabalhos de Mário Vieira de Carvalho (1999, 2012) e Thomas Turino (2008). Proponho, por fim, na terceira parte, uma discussão sobre algumas concepções de e relações com o local nos diferentes musicares de Fernando Lopes-Graça.

2.1 - Introdução à trajetória do autor: os musicares de Fernando Lopes-Graça

Ao considerarmos a trajetória profissional de Fernando Lopes-Graça ressalta-se imediatamente a multiplicidade de seu envolvimento com a música, desempenhando diferentes [e articuladas] atividades em diversos contextos. Conforme veremos neste item, esta atuação multifacetada deveu-se, em grande medida, a circunstâncias contingenciais. Nasceu em Tomar, cidade a cerca de 150km de Lisboa, a 17 de dezembro de 1906. Passados alguns episódios não tão promissores de contato com a música, como uma malsucedida apresentação orfeônica escolar e o não entendimento com o bandolim de sua amiga Rosa, por volta dos onze anos, Lopes-Graça estreita as relações com essa arte. Seu pai era dono de um pequeno hotel e lá havia um piano, instrumento que Fernando começou a explorar, tirando de ouvido algumas melodias. Seu talento logo foi percebido e os hóspedes começaram a sugerir a Silvério da Graça que seu filho estudasse música a sério. Começou então a ter lições com a jovem Maria Imaculada, filha de um tenente amigo de seu pai e, posteriormente, com D. Rita, renomada professora da cidade. Ainda adolescente, atuaria como pianista e arranjador no Cine - Teatro Salão Paraíso, inicialmente como parte de um quinteto e posteriormente como solista. As tarefas dos músicos ali eram promover um fundo sonoro para as sessões de cinema, acompanhar artistas de variedades e tocar em festas. (CARTAXO, [1986] 2006, LOPES-GRAÇA [1947] 1973, SOUSA, 2006).

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Figura 1: Lopes-Graça (sentado, à esquerda), com os colegas do quinteto do Salão Paraíso.

SOUSA, 2006, p. 66.

Em suas Recordações em dó maior, crônica dos primeiros anos passados em sua cidade natal, podemos ter uma ideia do ambiente musical e da paisagem sonora tomarense. Ficamos conhecendo tipos como o excêntrico filósofo-músico Tenente P, devoto do bilhar e das melodias do belcanto e o senhor Patrocínio, fiscal camarário e mestre da Banda Nabantina, temido pelas crianças por sua postura de bedel e autor de uma obra que fazia referência a uma locomotiva (apontada jocosamente por Lopes-Graça como precursora do Pacific 231 de Honegger). Acompanhamos as diferenças de instrução musical entre Lopes-Graça e seu irmão José e, no círculo social familiar, os debates entre os partidários da ciência (ter domínio da leitura de partitura) e da intuição musical (tocar de ouvido). Os agrupamentos musicais de destaque eram a Tuna23 Comercial Tomarense (da qual seu pai participou tocando viola francesa), a Serenata Tomarense, a Banda Republicana Marcial Nabantina24 e a Sociedade Filarmônica Gualdim Pais. Lopes-

23 Existentes na Península Ibérica até os dias atuais, as tunas são uma espécie de grupos de seresta, muito populares (mas não exclusivas) entre os estudantes. 24 Em referência ao rio Nabão, que corta a cidade. 55

Graça descreve a rivalidade entre os agrupamentos semelhantes, destacando a posição social e orientação ideológica de seus membros.

Dois dos outros organismos musicais nabantinos dividiam os apreciadores da chamada divina arte em dois campos: os aristocratas e os democratas. Os aristocratas eram pela Serenata Tomarense, agrupamento constituído por filhos d’algo, pela fina flor da cidade nabantina, assembleia o seu tanto hermética e com quotas “puxadas”, para dificultar o acesso às camadas inferiores e obter, assim, uma selecção25 dos melhores valores... soantes. Os democratas eram pela já citada Tuna, confraria mais ou menos heterofónica de pequenos empregados e artífices do comércio e indústria locais, que, à noitinha, tendo mandado á fava Mercúrio e Vulcano na pessoa dos respectivos patrões, distribuíam as sobras da sua vitalidade pela musa Euterpe e pela deusa Vénus [...]. A Serenata, além de possuir um par de timbales, que constituíam um dos principais títulos do seu orgulho aristocrático, gozava do privilégio especial de poder dar os seus concertos no coreto municipal, coisa que, creio, não era fàcilmente concedida aos tunantes. Contudo, [...] sucumbiu poucos anos após o advento da República, não tendo podido resistir à democratização dos costumes; ao passo que a Tuna ainda continua vivinha e musicalmente actuante, graças à sua origem e à sua seiva populares, assim como a um generoso sentido igualitário [...]. Quanto aos restantes dois organismos musicais tomarenses, esses não dividiam os espíritos: rachavam as cabeças dos seus respectivos prosélitos. Eram eles a Banda Republicana Marcial Nabantina, com sede no bairro de Aquém-da-Ponte; e a Sociedade Filarmónica Gualdim Pais, que se agremiava no bairro de Além-da-Ponte, também chamado “Espanha”. À rivalidade político-económica existente entre os dois bairros da cidade correspondia, naturalmente, a rivalidade artística das suas respectivas filarmónicas [...]. Os filarmónicos da Gualdim Pais encimavam os seus bonés por uma pluma enristada; ao passo que os barretes dos da Nabantina se distinguiam por um estranho orifício praticado logo acima da pala. Daí advinha o chamarem à Gualdim Pais a “Música do pau teso” e à Nabantina a “Música do cu aberto”. Está-se a ver que com tão frescas e irreverentes alcunhas aquilo devia ser mesmo um sarilho...E era. Sempre que as duas bandas se enfrentavam, tínhamos a música desafinada. Festa ou romaria abrilhantada por ambas elas desandava ordinàriamente em heróica e homérica refrega, da qual saíam os trombones amachucados, as flautas rachadas, os bumbos estoirados, à força de serem utilizados como armas agressivas ou pararem os golpes do adversário. (LOPES-GRAÇA, [1947]1973, pp. 24-26). Em 1917 inicia-se em Portugal a primeira ditadura republicana, com a ascensão ao poder do presidente Sidónio Pais, cujo assassinato no ano seguinte seria, ao mesmo tempo, uma consequência e um desencadeador de uma radicalização de posições. Além da Revolução Russa, acontecimento de grande repercussão mundial, esse também foi o ano do chamado milagre de Fátima, cuja devoção seria bastante explorada nas décadas seguintes. O fato de, ao lado da virgem, a foto do presidente assassinado ter se tornado objeto de culto, especialmente no meio rural, dá-nos uma mostra do envolvimento do clero nas questões políticas e,

25 Optei por manter a ortografia original nas citações diretas.

56 nas palavras de Mário Vieira de Carvalho (2012d, p. 2) “do caldeirão ideológico conservador em que política, religião e estética (incluindo a música) se misturavam, dando origem a várias conexões com o discurso mais amplo do nacionalismo”. Em 1924, Lopes-Graça transfere-se para Lisboa, dando seguimento aos seus estudos musicais no Conservatório Nacional até 1931, tendo estudado piano com Adriano Merea e José Viana da Motta, composição com Tomás Borba e musicologia com Luís de Freitas Branco (PICOTO, CASCUDO, 2001). Em maio de 1926, um golpe militar impôs ao país uma ditadura. Segundo a historiadora Ana Sílvia Scott (2012, p. 320), os acontecimentos na Europa dos primeiros anos do século geraram na população portuguesa uma ânsia pela manutenção da ordem, levando à aposta em soluções autoritárias, tal como ocorria na Itália e na Espanha. Dois anos mais tarde, um “golpe dentro do golpe” elevou ao poder um grupo de militares ainda mais rígidos. No comando do ministério das finanças, à altura em situação caótica, entrava António de Oliveira Salazar, professor da Universidade de Coimbra, que posteriormente assumiria a presidência do conselho de ministros. Em 1927, Lopes-Graça apresenta ao público a sua primeira obra, Variações sobre um tema popular português. Apesar do título, isto não configurava propriamente um alinhamento estético nacionalista; teria sido, na verdade, motivado pelo programa do Conservatório. Sua visão política e estética, internacionalista e informada por uma orientação comunista26, era incompatível com os movimentos nacionalistas vigentes em seu país, ligados ao saudosismo e ao Integralismo27. (VIEIRA DE CARVALHO, 2006, 2012d). Em 1928, funda e participa, como redator principal e posteriormente diretor, do jornal A Acção, em Tomar. De vocação pedagógica e politizadora, o periódico defendia os ideais republicanos e socialistas, ainda antes do estabelecimento oficial do Estado Novo, que então se reclamava apenas como “Ditadura necessária”. (SOUSA, 2006). No ano seguinte, fundaria, com Pedro Prado, o periódico De Musica, ligado ao Conservatório, onde se iniciou no jornalismo propriamente musical. Em 1931, quando prestava provas para professor no Conservatório (nas quais seria aprovado em primeiro lugar), foi preso por quase três meses, seguindo-se

26 Convém observar que Lopes-Graça, à altura, já tinha ligações com a Organização Comunista de Tomar. 27 Comentaremos brevemente esses movimentos no item 2.3.2.

57 mais três de exílio na vila de Alpiarça. Sobre o momento da prisão, seu antigo professor Luís de Freitas Branco, que estava na banca do concurso, registrou o seguinte depoimento em seu diário (apud SOUSA, 2006, p. 117).

A cena que se passou no Conservatório é grave e sintomática: Dois agentes da Polícia quiseram levar preso o candidato a concurso para a cadeira de Piano, Fernando Lopes-Graça. A Prisão era motivada por inscrições nas paredes da cidade de Tomar de que Fernando Lopes Graça teria sido autor e instigador, e que significavam pouco amor à Ditadura. O Júri protestou, impôs-se à Polícia. O candidato prestou as suas provas, seguiu preso para Santarém e ficou classificado em primeiro lugar com 18 valores.

Lopes-Graça mudou-se para Coimbra no ano seguinte, para lecionar na Academia de Música. Nesta cidade conheceu João José Cochofel, que seria seu aluno, grande amigo e colaborador. Particularmente importante nesse período foi também a convivência e colaboração com o grupo fundador das revistas Presença e Manifesto (Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Adolfo Casais Monteiro, José Régio, entre outros). Um recital, apresentado em Lisboa e Coimbra, com canções suas sobre poemas de autores presencistas e de outros inspiradores da revista, como Fernando Pessoa e Afonso Duarte, causou grande sensação. A crítica, mais favorável que desfavorável, destacou o caráter moderno das composições, que muito se adequava a essa característica marcante do grupo literário em questão (ALVES, CASCUDO, 2013, pp. 37-40). Uma nova constituição foi aprovada no ano de 1933, em substituição à primeira Constituição Republicana (de 1911). Foram também criados o Estatuto do Trabalho Nacional, que proibia os sindicatos livres, do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, comandado pelo governo, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), cujo objetivo era controlar a oposição28, e o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), com o intuito de “divulgar o ideário nacionalista, padronizar as manifestações culturais e artísticas e controlar os órgãos de imprensa”. (SCOTT, 2012, p. 325). Nas palavras de seu chefe, Salazar, a função do Secretariado era “reeducar” o povo português. O termo Estado Novo, que sugeria uma grande mudança em relação ao governo anterior, foi introduzido por Salazar e pelo grupo que ajudou a estruturar e manter o regime29.

28 Posteriormente tornar-se-ia a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). 29 É interessante observar que o mesmo termo foi utilizado para denominar o primeiro mandato de Getúlio Vargas no Brasil (1937-1945), e, na Espanha, o Nuevo Estado, chefiado por Francisco Franco, governos com grande semelhança em suas linhas ideológicas e política cultural.

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Em 1934, tendo conseguido uma bolsa de estudos para Paris, Lopes-Graça não a pôde usufruir, devido a “dificuldades de origem política”. Passaria por nova prisão, no forte de Caxias, por 224 dias, entre 1936 e 1937. Com recursos pessoais e ajuda do pai e de amigos conseguiria ir, nesse ano, a Paris e lá permaneceria até 1939, realizando estudos de musicologia na Sorbonne com Paul-Marie Masson e de composição e orquestração em aulas particulares com Charles Koechlin, com quem, durante esse período, o compositor brasileiro Mozart Camargo Guarnieri também estudou (TONI, 2007). Não se sabe ao certo se os dois se conheceram nessa época. A partir da documentação disponível, sabe-se que a correspondência entre ambos se iniciou em 1958, por ocasião dos preparativos da primeira vinda de Lopes-Graça ao Brasil. Tratarei em maiores detalhes esta questão no capítulo 3. O contato, na capital francesa, com o trabalho de Koechlin, Manuel de Falla e, sobretudo, Béla Bartók, o estímulo da cantora polonesa Lucie Dewinsky, especialista na interpretação de canções tradicionais, e o conhecimento das pesquisas do folclorista e diplomata inglês Rodney Gallop sobre a música portuguesa fazem com que se volte para o que denominaria um “nacionalismo essencial” ou “orgânico”, marcado pelo tratamento composicional do material folclórico a partir da consideração de seu contexto e assimilação de seus elementos harmônicos, melódicos e rítmicos. Tratava-se de aproveitar as potencialidades expressivas do material, respeitando a sua identidade, explorando, quando presentes, o modalismo e os arcaísmos, sem a tentativa de adaptação à harmonia tonal europeia, buscando pontos de contato entre as estruturas tradicionais e a música moderna de concerto. (VIEIRA DE CARVALHO, 2012b, p. 160). Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939, o governo francês não aceitava a permanência no país de estrangeiros oriundos de nações neutras, a menos que se naturalizassem. Foi dada esta opção a Lopes-Graça, que recusou. (SOUSA, 2006). O início da década de 40 marca o seu retorno a Lisboa e inserção, de maneira mais consistente, em dois musicares: a crítica/ensaística musical, por meio de sua colaboração como secretário de redação na revista Seara Nova, com a qual já colaborava desde o início da década anterior (ALVES, CASCUDO, 2013), e a produção musical, por meio da organização de concertos através da sociedade Sonata. Surgida no início dos anos 20 e tendo como fundadores Raul Proença, Jaime Cortesão, António Sérgio, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro e 59

Luís da Câmara Reis30, a Seara Nova se tornaria um dos principais periódicos de oposição a partir da instauração da ditadura em Portugal. Para além da atividade propriamente jornalística, a revista promovia conferências e congressos. Segundo Manuel Joaquim Fitas (2010), a década de 40, em consequência da entrada de jovens intelectuais e dos acontecimentos recentes na Europa, marca na revista a convivência, não sem tensões, do antigo paradigma idealista, voltado para a busca de uma mudança de mentalidade das elites, com um paradigma materialista, mais vocacionado para a ação, e que se refletia numa maior ênfase à denúncia das injustiças. Destaca-se, nesse período, a colaboração de intelectuais que, em suas palavras, “perfilhavam os ideais marxistas, sem se constituírem orgânicos no seio do Partido Comunista” (p.72). Entre estes, o autor inclui os nomes dos escritores Manuel Mendes, Mário Dionísio, Fernando Piteira Santos e o de Lopes-Graça. Convém observar que, embora a Presença fosse mais orientada para a atualização e liberdade estética e a Seara Nova para a crítica social e política, ambos os aspectos se faziam presentes, de diferentes formas, nos dois periódicos e havia uma admiração mútua entre os seus integrantes. (ALVES, CASCUDO, 2013, p. 13). Não é de causar estranheza, portanto, o contato de Lopes-Graça com os dois grupos. Veremos em sua trajetória e em muitos de seus posicionamentos a defesa intransigente da liberdade do artista, sempre em destaque na constante busca de conciliação entre o estético e o político. A sociedade de concertos Sonata, fundada em 1942 por Lopes-Graça e amigos, como a pianista Maria da Graça Amado da Cunha, a crítica, professora e compositora Francine Benoît e o escritor João José Cochofel, tinha por objetivo principal promover a divulgação da música contemporânea, tendo possibilitado a estreia, no país, de um grande número de obras, inclusive diversas de compositores brasileiros, sobre as quais comentarei em mais detalhes no próximo capítulo. Lopes- Graça, além de promover concertos, atuaria neles frequentemente como pianista e compositor. As atividades da sociedade encerrar-se-iam em 1960, por dificuldades financeiras. Em 1946, participa da fundação e assume a regência do coro do Grupo Dramático Lisbonense, ligado ao Movimento de Unidade Democrática (MUD),

30 A esposa deste, Ema, cantora amadora, promoveu centenas de concertos de divulgação musical, de notória atualização estilística, em muitos dos quais Lopes-Graça tomou parte como autor ou intérprete. (FERNANDES, 2010, p. 1107).

60 organização política de oposição ao governo salazarista, formada principalmente por intelectuais e profissionais liberais. A estreia pública do coro e a apresentação do MUD à população de Lisboa deram-se na mesma ocasião, no Teatro Taborda. (CORO LOPES-GRAÇA, 2017).

Figura 2: Lopes-Graça (assinalado) na reunião de apresentação do MUD.

Arquivo Pessoal Mário Dionísio - Centro Cultural Mário Dionísio - “Casa da Achada”

Segundo António de Sousa (2006, pp. 177-78), após ensaiar nos lugares mais diversos, o coro fixou-se no sótão da sede do Grupo Dramático Lisbonense. Com o incêndio do local em 1950, passou a integrar a Academia de Amadores de Música, instituição onde Lopes-Graça então lecionava e cuja direção dividia com seu antigo mestre Tomás Borba desde 1944. Passou então a designar-se "Coro da Academia de Amadores de Música (Secção de Folclore)", como forma de o distinguir de outro coro já existente na escola. Após a morte do maestro, o grupo passou a se chamar Coro Lopes-Graça da Academia de Amadores de Música (CORO LOPES- GRAÇA, 2017). O repertório inicialmente elaborado para o grupo eram as chamadas Canções Heroicas: composições relativamente simples sobre textos de forte cunho crítico, de diversos poetas portugueses contemporâneos ligados ao neorrealismo, corrente artística de ideologia esquerdista focada na descrição e representação da realidade das classes trabalhadoras. A Polícia política e a censura salazarista logo proibiram a sua apresentação pública. Como alternativa, Lopes-Graça iniciou a composição das Canções Regionais 61

Portuguesas, sobre melodias de tradição oral. Lopes-Graça permaneceria na direção do coro até 1988, tendo composto nove cadernos de Heroicas, totalizando cerca de uma centena de canções e cerca de duzentas Canções Regionais, reunidas e editadas em 24 cadernos. Em 1948, por ocasião do Congresso Mundial dos Intelectuais pela Paz, em Wroclaw, Polônia, conhece o escritor Jorge Amado, de quem já era leitor31. Nesse mesmo ano, participa do II Congresso de Compositores Progressistas, realizado em Praga, no qual estavam presentes o pianista Arnaldo Estrela e o compositor Cláudio Santoro. É preciso ainda destacar, na década de 40, a autoria de textos sobre música de caráter mais didático, em colaboração para a Biblioteca Cosmos, projeto de divulgação cultural de Bento de Jesus Caraça. Além da dimensão educativa, havia nesse projeto a dimensão de ativismo. De inspiração marxista, visava à formação das massas populares, estimulando e tornando acessível aos jovens um conjunto de conhecimentos e interesses que o Estado não promovia. Dentre os títulos elaborados por Lopes-Graça para essa coleção, podemos citar Bases Teóricas da Música e Introdução à Música Moderna. Em 1950, funda, juntamente com Francine Benoît e Maria Vitória Quintas, o periódico Gazeta Musical, que mais tarde passaria a se chamar Gazeta Musical e de Todas as Artes. A revista teria constante produção até a década de 60 e a partir daí algumas séries espaçadas, até 1990. Este periódico seria o mais frequente campo de atuação de Lopes-Graça como ensaísta/crítico musical. (CID, 2010). Em 1954, a publicação do artigo Cinco notas sobre forma e conteúdo, de António Vale (pseudônimo de Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista Português) desencadeia entre intelectuais esquerdistas uma polémica sobre a relação entre a liberdade estética e a arte engajada. Esta querela, conhecida como “polémica interna do neorrealismo”, da qual participariam Lopes-Graça e outros intervenientes, como João José Cochofel e Mário Dionísio, acaba por levar o compositor a um afastamento temporário do partido.32

31 Conta-nos António de Sousa (2006) que Jubiabá foi um dos romances enviados por seus amigos durante a sua estada em Paris. 32 Passarei novamente por esta questão no próximo capítulo, ao discutir o papel da ligação ao Partido e/ou à ideologia comunista na relação de Lopes-Graça com os brasileiros. Abordagens bastante aprofundadas desta polêmica podem ser encontradas no artigo Between political engagement and aesthetic autonomy: Fernando

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Nesse ano, o mesmo em que compõe sua primeira obra de temática brasileira - as Sete Canções Populares Brasileiras, para voz e piano - sua permissão para o ensino oficial privado é cassada - segundo Sousa (2006, p. 170), sob a alegação de que não teria cumprido o prazo legal para a elaboração de um novo cadastro - o que o impediria de lecionar na Academia de Amadores de Música33. Dependeria, a partir daí, de traduções34, escrita para periódicos e aulas particulares informais. Uma produção desse período relativamente conhecida no meio musical brasileiro é o Dicionário de Música (1956), desenvolvido a partir de um projeto de Tomás Borba, já falecido à época. Em 1958, realiza sua primeira visita ao Brasil, onde permaneceu cerca de três meses, realizando recitais e conferências em São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Florianópolis35. Também é o ano da composição do Desafio, para voz e piano, sobre um poema de Manuel Bandeira. Em 1960, Lopes-Graça compõe as Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras, para coro misto a cappella. Em 1963 é a vez de Gabriela, cravo e canela: abertura para uma ópera cómica e em 1970, seria composta sua última obra de temática brasileira: o quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos. Lopes-Graça visitou muito brevemente uma segunda vez o Brasil em 1969, como membro do júri do Festival de Música da Guanabara, passando apenas pelo Rio de Janeiro. De 1959 a 1990, realizou recolhas musicais por todo o território português, juntamente com o etnólogo corso Michel Giacometti. Apesar de seu interesse estético nas peculiaridades do material e em seu aproveitamento, buscava sempre compreender a música em seu contexto de ação vivida, isto é, não dissociada das funções, crenças e idiossincrasias da comunidade. (HABERMAS apud VIEIRA DE

Lopes-Graça’s Dialectical Approach to Music and Politics (2012), de Mário Vieira de Carvalho e em Cinco notas sobre o pensamento estético de Álvaro Cunhal, de Manuel Deniz Silva (in NEVES et al., 2013). 33 Continuaria, contudo, na direção do coro. 34 Destacam-se as traduções das Confissões, de Jean-Jacques Rousseau, A Viagem de Mozart a Praga, de Eduard Möricke, A música e a sociedade, de Elie Siegmeister e Tristan, de Thomas Mann (esta última em colaboração com Hildegard Bettencourt). 35 A maior parte dos textos que tratam da sua tournée brasileira faz referência apenas à sua passagem pelas quatro primeiras cidades listadas. A menção à capital catarinense é feita pelo próprio Lopes-Graça em entrevista ao jornal português República, publicada em 5 de novembro de 1958. O músico teria lá estado a convite do secretário da cultura, o filósofo Agostinho da Silva, então exilado no Brasil (OS COMPOSITORES, 1958). 63

CARVALHO,2012b). Tal abordagem da música enquanto cultura aproxima-o, segundo Mário Vieira de Carvalho (1999, 2006), do etnomusicólogo moderno36. O fim da ditadura e a abertura para a institucionalização de um regime democrático viriam com um novo golpe militar. O estopim da revolta ocorreu a partir de reivindicações de capitães do exército. Com o apoio de membros civis da oposição, deu-se uma rápida e ampla ação liderada por militares do Movimento das Forças Armadas, cuja principal reivindicação era o fim das Guerras Coloniais. A transmissão pelo rádio, à meia noite de 25 de abril de 1974, da canção Grândola, Vila Morena, de José Afonso, foi a senha para a tomada do poder pelos revoltosos, que se espalharam pelas ruas de Lisboa, exigindo a deposição de Marcelo Caetano, presidente do conselho de ministros do Estado Novo após a doença e morte de Salazar. Caetano fugiu para o Brasil, onde viria a falecer seis anos mais tarde. (SCOTT, 2012). O acontecimento ficou conhecido aqui como Revolução dos Cravos, em referência às flores que os manifestantes traziam nas mãos. Em Portugal, é comumente referido apenas pela data e é um feriado nacional, denominado Dia da Liberdade. A consequente redemocratização de Portugal inicia a consagração de Lopes-Graça como um dos grandes nomes da resistência antifascista. É a partir deste momento que passa a ter rendimentos significativos por seu trabalho como compositor. Assume a presidência da Comissão de Reforma do Ensino da Música. Assiste a apresentações de suas obras na Rússia, França, Polônia e Itália e recebe diversas condecorações. Por ocasião de seu 80° aniversário, recebe do então presidente de Portugal, Mário Soares, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Em 1989, a Universidade de Aveiro confere-lhe o grau de Doutor Honoris Causa. Compõe prolificamente até sua morte, em 27 de novembro de 1994.

2.2 - A articulação entre diferentes paradigmas de prática musical

Além da diversidade de envolvimentos com a música que podemos observar na trajetória de Lopes-Graça, são também notáveis e surpreendentes as suas articulações. Tomemos alguns casos: sua atuação, na juventude, como músico no Cine-Teatro tinha como objetivo produzir ora uma trilha sonora (embora não se tratasse de composições originais) ora uma música ambiente; em suma: a função da

36 Trataremos em mais detalhes essa questão no item 2.3.2.

64 música, nesse caso, estava em segundo plano, subordinada a outras finalidades (entretenimento, convívio). Segundo António de Sousa (2006), o repertório do quinteto era composto essencialmente de música ligeira, com ocasionais trechos famosos de óperas e operetas. Quando Lopes-Graça passou ao trabalho solo, incluiu algumas peças do repertório de concerto, como obras de Debussy e de compositores russos do final do século XIX. Sousa destaca a ausência, nessas ocasiões, de comportamento “menos próprio” do público. Teria o reconhecimento de um repertório concebido com uma função principal de contemplação estética direcionado os presentes para uma atitude associada ao ambiente da sala de concerto? Considerando a questão da função da música, Mário Vieira de Carvalho (2012a/c), utilizando as categorias música “coloquial” (ou funcional) (Umgangsmusik) e “apresentacional” (Darbietungsmusik) propostas pelo musicólogo alemão Heinrich Besseler37, destaca a atuação de Lopes-Graça nas duas vertentes, ressaltando, na primeira, relacionada às canções de intervenção, seu engajamento político e, na segunda, associada à sua música de concerto, a busca de autonomia estética. O etnomusicólogo americano Thomas Turino (2008, 2009), propõe dois paradigmas não estanques de performance musical muito semelhantes aos cunhados por Besseler: música participativa38 e música apresentacional. Turino toma como principal critério a forma de engajamento com a música. Segundo o autor, “uma característica distintiva elementar da performance participativa é que não há distinções formais entre artista e público, apenas participantes e participantes potenciais. [...] Como pretende atrair a todos, uma tradição participativa terá uma diversidade de papéis, variando em dificuldade e graus de especialização requeridos”. (2009, p. 98). Turino aponta ainda distinções referentes à sonoridade nos dois paradigmas: enquanto a música participativa seria marcada por “texturas densas [que seriam consideradas “sujas” pelos ouvidos educados na música de concerto], um grande grau de repetição e a falta de contrastes pré-arranjados, consistentes com a falta geral de solos destacados” (p. 100), a performance apresentacional favoreceria a clareza textural, os contrastes e desenvolvimentos, as formas fechadas e os solos virtuosísticos.

37 Tais categorias eram usadas por Besseler originalmente para descrever as estruturas de comunicação da música vocal polifônica europeia entre os séculos XVII e XVIII. 38 O próprio Vieira de Carvalho utiliza o termo “música de participação” em sua tese de doutorado sobre o Teatro Nacional de São Carlos (1993). 65

2.2.1 - O coro da Academia de Amadores de Música e as vertentes de seu repertório

Diferentemente do que se pode imaginar pelo primeiro nome de “Coro do Grupo Dramático”, nunca se tratou, na prática, de um coro cênico. Em entrevista a mim concedida, o maestro José Robert, assistente de Lopes-Graça desde 1974 e atual regente do coro da AAM, observa que, embora os números musicais fossem de início intercalados por leituras poéticas e, posteriormente, por representações teatrais, o coro apresentava-se sempre com uma postura corporal bastante tradicional (cantores em pé, enfileirados, sem movimentação).

Figura 3: Coro da AAM em apresentação na Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, 1952.

CAMILO, 1990, p. 74.

Conforme referido anteriormente, o repertório inicial eram as chamadas Canções Heroicas, com acompanhamento de piano, sobre textos de crítica política. De acordo com Sousa (2006, p. 211), tratava-se de “criar melodias apelativas e cantabile [...] como resposta às necessidades de actuação política imediata”. Uma primeira coletânea de 18 canções foi publicada pela revista Seara Nova em 1946, com o título Marchas, danças e canções: próprias para grupos vocais ou instrumentais populares. Apesar de as partituras estarem escritas para coro e piano, com indicações expressivas detalhadas, a proposta do autor não se prendia a esse modelo, deixando os eventuais intérpretes livres para as adaptar segundo o contexto e os recursos técnicos e humanos disponíveis. Na produção das Heroicas, ao longo de toda a vida do compositor, foram também adotadas outras formações, como voz solista e piano (5º caderno) e coro obrigatoriamente a cappella (3º caderno). Dependendo das

66 circunstâncias e sobretudo após a redemocratização portuguesa, elas cresceriam em complexidade. Figura 4: Frontispício das Marchas, Danças e Canções. (1946)

Tomemos como exemplo Mãe Pobre39, sobre um poema de Carlos de Oliveira (1921-1981), a primeira Heroica composta por Lopes-Graça, posteriormente publicada em Marchas, danças e canções. Podemos observar nessa canção a convivência de um texto extenso e grandiloquente, que poderia oferecer alguma dificuldade, e de uma estrutura formal de três repetições musicalmente idênticas que, em compensação, facilita o aprendizado e memorização. O vocalize na voz da soprano solista cria um contraponto que destaca a sequência harmônica, evocando a música do período Barroco tardio (especialmente a de Johann Sebastian Bach).

39 Disponível em https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/fernando-lopes-graca-mae-pobre/s-iXz2Y. Coleção Centenário Fernando Lopes-Graça. Arquivos da RDP (Radiodifusão Portuguesa) - Antena 2 67

Aliado a esse elemento, conecta a canção ao dito repertório “de concerto” a textura de acordes cheios da escrita pianística.

Terra Pátria serás nossa, Mais este sol que te cobre, Serás nossa, Mãe pobre de gente pobre.

O vento da nossa fúria Queime as searas roubadas; E na noite dos ladrões Haja frio, morte e espadas.

Terra Pátria serás nossa Mais os vinhedos e os milhos, Serás nossa, Mãe que não esquece os filhos.

Com morte, espadas e frio, Se a vida te não remir, Faremos da nossa carne As searas do porvir.

Terra Pátria serás nossa, Livre e descoberta enfim, Serás nossa, Ou este sangue o teu fim.

E se a loucura da sorte assim nos quiser perder, Abre os teus braços de morte E deixa-nos aquecer.

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Figura 5: Página inicial da partitura de Mãe Pobre.

LOPES-GRAÇA, [1960] 1974.

As Canções Regionais Portuguesas, a cappella, compostas após a proibição da apresentação pública das Heroicas, tinham como base, inicialmente, melodias de tradição oral portuguesa que o autor consultava em recolhas já realizadas por Rodney Gallop, Kurt Schindler, entre outros (ROBERT, 2006) e, posteriormente, melodias que ele próprio coletou no trabalho junto a Giacometti. Essa monumental série pode ser associada ao seu ideal de “nacionalismo essencial” do qual falamos anteriormente, e ao conceito habermasiano de “ação vivida”, já brevemente referido e que será tratado no item 2.3.2. Referências às circunstâncias e particularidades de prática musical podem ser encontradas nas partituras. Como exemplo, cito a canção Senhora Santa 69

Cat’rina40 da Beira Baixa, cujos acentos, que não coincidem com as sílabas tônicas, remetem ao toque do bumbo, que normalmente acompanhava a canção em seu contexto original41.

Figura 6: Página inicial da partitura de Senhora Santa Cat'rina.

LOPES-GRAÇA, 2010, Série V, p. 9.

Outro exemplo é a canção “Rezemos um padre-nosso”42, também da Beira- Baixa, que faz parte da série “Onze encomendações das almas”. A indicação de respiração cortando palavras (“Maria”, “agonia”, “nosso”), que seria um grave erro no repertório erudito clássico-romântico, constitui uma referência à prática popular. Respirações muito evidentes em uma mesma palavra também estão presentes em manifestações de outras regiões portuguesas, como no cante alentejano.

40 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6ujmCKs7HKE. Acesso em 18 abr. 2018. 41 Agradeço a informação ao maestro José Robert, durante um ensaio do grupo, do qual participei regularmente entre maio e julho de 2016. 42 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=jaXJ0SaTc1s. Acesso em 18 abr. 2018.

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Figura 7: Partitura de Rezemos um Padre-Nosso.

LOPES-GRAÇA, 2010, Série XIV, p. 10.

Pode-se relacionar tal característica ao que Vieira de Carvalho (2012b, c, d) denomina elementos “transgressivos” da música portuguesa, os quais, por não coincidirem com o padrão melódico/harmônico tonal, rítmico regular ou de performance “correta” - tomando como parâmetro a música da Europa Central mais difundida nos círculos eruditos e populares urbanos - chamavam a atenção do compositor e eram enfatizados em seus textos e criações musicais. Podemos 71 perceber essa sua impressão no seguinte excerto do seu “Apontamento sobre a canção popular da Beira Baixa”:

Eu creio que muitos dos nossos folcloristas, ou simples curiosos da arte popular, estão viciados por uma noção errada da fisionomia própria, ou, pelo menos, do aspecto mais inapreciável da canção popular portuguesa. Essa noção é a que lhes faz ter como eminentemente típicas aquelas canções de contornos melódicos simples, de ritmos regulares e mais ou menos enformados pela dança, de um diatonismo elementar, de um maior-menor básico ou, quando muito, aqui e ali matizado de modalismo, aquelas canções, enfim, ora saltitantes, alegres e levemente maliciosas, ora de um lirismo amoroso ingénuo e docemente sentimental, que ultimamente têm alimentado o repertório das nossas vedetas e orquestras de rádio, em aproveitamentos e arranjos de gosto muito duvidoso, mas que nem por isso deixam de se inculcar como de inspiração “muito portuguesa”... Ora, essa errônea concepção da nossa música popular exclui, a priori, manifestações de uma arte que se afigura a esses folcloristas e curiosos tosca, bárbara e primitiva, mas que é justamente a que revela, a quem sabe compreendê-la, as verdadeiras virtualidades estéticas do povo português. E o que é curioso notar é que as próprias populações desses lugares têm disso, da autenticidade profunda e radical dessas canções, uma consciência perfeita. Não foi raro observar eu que os cantadores de Monsanto, do Paúl ou das Donas repudiavam ou menosprezavam, como não correspondendo ao seu íntimo sentir, esta ou aquela canção mais fácil e correntia, para lhes preferir, com evidente satisfação quando percebiam a mesma preferência por parte das suas visitas, aquelas outras que estavam longe das fórmulas simplistas e de responderem aos conceitos estereotipados da música folclórica. É certo que a captação e fixação pela escrita de muitas destas canções não é tarefa fácil, e que algumas delas parecem mesmo, à primeira vista, furtar-se a qualquer tentativa de notação rigorosa. Estão neste caso, por exemplo, certas canções de Malpica, com as suas entonações microcromáticas, ou certas outras das Donas, com a sua luxuriança de vocalizações. E que apurada retentiva não será preciso para fixar e transmitir ao papel um espécime preciosíssimo, como é a Canção de Roda, do Paúl, na sua impressionante e quase onomatopaica polifonia? (LOPES-GRAÇA, 1953, pp. 50-51).

O Coro da AAM surgiu, segundo Sousa (2006), como alternativa ao movimento orfeônico e o seu conceito de exaltação patriótica, dominante sobretudo desde a década de 30. Ainda de acordo com este autor, a passagem do repertório das Heroicas para as Regionais abriu o círculo de recepção musical do coro, estendendo-se a camadas sociais com vivência do repertório coral de inspiração folclórica, mas não necessariamente ligadas a movimentos políticos oposicionistas. É curioso também notar que algumas Canções Regionais, pela presença de determinadas palavras ou pelo teor crítico de seu texto, eram tomadas como Heroicas ou acabavam recebendo esse sentido, sendo articuladas a questões cronologicamente muito posteriores ao seu surgimento. É o caso de Os homens que vão prá guerra (Douro Litoral), entendida como referência às guerras coloniais na

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África e Canta, camarada, canta, melodia de uma canção de contrabandistas da Beira Alta, associada por alguns ouvintes ao comunismo:

Os homens que vão para a guerra Vão para a guerra, vão morrer Os homens que vão para a guerra Vão para a guerra, vão morrer Diz adeus a pai e mãe Que vos não torno a ver Diz adeus a pai e mãe Que vos não torno a ver.

Os homens que vão para a guerra, Vão para nunca mais voltar Os homens que vão para a guerra, Vão para nunca mais voltar Diz adeus a pai e mãe Que vos não torno a abraçar Diz adeus a pai e mãe Que vos não torno a abraçar

Canta camarada canta canta que ninguém te afronta que esta minha espada corta dos copos até à ponta

Eu hei-de morrer de um tiro Ou duma faca de ponta Se hei-de morrer amanhã morra hoje tanto conta

Tenho sina de morrer na ponta de uma navalha Toda a vida há-de dizer Morra o homem na batalha

Viva a malta e trema a terra Daqui ninguém arredou nem há-de tremer na Guerra Sendo um homem como eu sou

Para além das Heroicas e das Regionais, Sousa distingue ainda uma terceira vertente na produção coral de Lopes-Graça: as que denomina Canções Corais ou Canções de Concerto, pensadas expressamente para o contexto de apresentação. A seu ver, tais canções, escritas sobre textos sacros ou poemas mais 73 elaborados (desde os trovadores até os contemporâneos), teriam como finalidade a valorização da prosódia da língua, por meio da utilização de toda a sua paleta musical. “Do contraponto à homofonia, das quatro às doze vozes, do spreshgezang [sic] e linguagem atonal ao bi-modalismo ou mesmo ao mais prosaico tonalismo, tudo serve como técnica da composição que suporta a divulgação do poema”. (SOUSA, 2006, p. 212).

2.2.2 - Música participativa e apresentacional no Coro da AAM

A partir da anteriormente citada divisão em categorias funcionais (coloquial e apresentacional) do macrocosmo da obra de Lopes-Graça, proposta por Vieira de Carvalho, tomo o microcosmo (nada micro, diga-se) de sua produção dedicada ao coro da AAM no contexto da atuação do grupo. Observo a coexistência e imbricação de coloquial/participativo e apresentacional, podendo essas categorias ser entendidas como duas dimensões inseparáveis no trabalho de Lopes-Graça junto ao coro, estando presentes socialização, educação e ativismo desde os ensaios até as apresentações públicas. As Canções Regionais, originalmente música participativa e coloquial (cantos de trabalho, religiosos, etc.), nas mãos de Lopes-Graça converteram-se em canções de concerto, com uma abordagem estilística cujo alcance performativo certamente exige considerável vivência técnica. A textura, associada à dinâmica, em conformidade com o argumento de Turino, recebe um tratamento que visa à clareza e aos contrastes. É frequente, além disso, a indicação de solos e duos em trechos que não necessariamente se configuravam dessa maneira no contexto original. As Canções Heroicas, após a proibição de sua apresentação pública, continuaram a ser cantadas em convívios privados após os concertos, em associações estudantis, recreativas e inclusive em prisões. Apesar da intenção participativa, que, na prática, se concretizou com bastante sucesso, não havia, no contexto de performance das Heroicas pelo coro da AAM, espaço para a improvisação musical e a criação coletiva e espontânea. Segundo relataram em entrevista o maestro José Robert e a coralista Ana Paula Sampaio, as canções eram criadas em sua totalidade e com detalhes previamente pelo compositor. A escrita pianística revela certa complexidade e o estilo geral das composições, apesar das melodias cantabile e com repetições, não nega sua herança na tradição erudita.

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Essa imbricação entre participativo e apresentacional também se revelava nos procedimentos de ensino. Apesar do formato tradicional da dinâmica de ensaio, inclusive com o uso da partitura, o aprendizado da música dava-se pela transmissão oral, prática mais frequentemente associada ao contexto da performance participativa. Segundo relataram os entrevistados anteriormente referidos e também o coralista Francisco Jorge, Lopes-Graça exigia de seus cantores a memorização do repertório, pois, a seu ver, mesmo os que sabiam ler música a ela se entregariam mais plenamente desse modo. Esta prática, apesar de não obrigatória, continua a ser fortemente incentivada. Após a redemocratização do país, estava inteiramente liberada a performance das Heroicas num contexto apresentacional. Não se perdeu, felizmente, o hábito do seu canto espontâneo em convívio. Durante meu estágio PDSE em Lisboa e minha participação no coro, tive ocasião de o experenciar várias vezes. Minha participação no Coro Lopes-Graça modificou bastante minha visão sobre o grupo e, consequentemente, sobre a música do compositor, principalmente com relação à sua acessibilidade de escuta e performance. Estando sediado em uma escola de música, cria que todos ou a maior parte de seus integrantes frequentavam, paralelamente, aulas de teoria musical e/ou de algum instrumento. Diferentemente do que havia imaginado, a maior parte dos membros, das mais diversas formações e ocupações profissionais, dedica-se exclusivamente ao coro e não lê partitura. Dada a considerável complexidade harmônica (paralelismos de quartas e quintas, dissonâncias – especialmente segundas e sétimas -, modalismos pouco usuais), melódica e rítmica do repertório, escrito majoritariamente a cappella, imaginava ser possível sua interpretação somente pelo fato de todos os coralistas terem “crescido” no grupo. Mais um ledo engano: a maioria ingressou recentemente, sendo esta a primeira experiência musical de alguns deles, já idosos. Nas entrevistas a mim concedidas, os maestros António de Sousa e José Robert, discípulos do compositor, lamentaram o preconceito em torno de sua obra coral, vista por muitos músicos como difícil, “arrevesada” e pouco apelativa, e sua pouca penetração no repertório dos grupos portugueses. No entanto, tem despertado considerável e surpreendente interesse, sobretudo entre jovens. É também de se destacar o recente ingresso de jovens cantores, oriundos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no coro da AAM, por muitos 75 anos composto basicamente de membros da terceira idade, embora nunca tenha sido indicada essa restrição.

2.2.3 - Música de concerto, abordagem didática e intervenção

Outra articulação que se deve apontar entre diferentes paradigmas é a entre música de intervenção e de concerto, seja na dedicatória (Requiem para as vítimas do fascismo em Portugal (1979), Mornas (1978): “Ao povo da nova nação Cabo Verde” ou mesmo na citação musical (uso do tema melódico da canção heroica Jornada em Morto José Gomes Ferreira, para piano solo, numa homenagem ao autor de sua letra). De maneira mais direta, pode-se destacar a atuação do coro da AAM na já independente Angola em 1979, em comemoração aos 5 anos do 25 de abril.

Figura 8: Apresentação do coro da AAM em Angola.

Arquivo pessoal Ana Paula Sampaio

A Sonata também foi um campo onde essa relação esteve presente. Mário Vieira de Carvalho (2006, p. 16) chama a atenção para o caráter contra-hegemônico dos concertos ali promovidos, destacando a presença de vários estratos sociais (inclusive operários) e de “práticas e representações musicais opostas e alternativas às da cultura dominante”.

A música contemporânea funcionava aí como instância de integração ideológica em sentido gramsciano: era incorporada organicamente num movimento social. Frequentar os concertos da Sonata [...] equivalia a tomar posição pela mudança no sentido mais lato, incluindo a mudança política, da qual a música, longe de ser neutra, não podia nem devia alhear-se.

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2.2.4 - Os diversos mundos sociais e musicais

Assim como os concertos da Sonata, conferências também foram outro instrumento de ativismo de Lopes-Graça onde se reuniam pessoas de diversas formações, profissões e círculos sociais. Em sua Autobiografia (1987, pp. 39-41), Mário Dionísio lembra uma série delas, realizadas no Grémio Alentejano (hoje Casa do Alentejo), organizadas por ele, o compositor e outros amigos, como os já mencionados Francine Benoît, Bento de Jesus Caraça e os escritores Sidónio Muralha e Alexandre Cabral. Dionísio narra a repressão a uma dessas sessões, ocorrida em 1943:

A primeira conferência, do Bento de Jesus Caraça – “Algumas reflexões sobre a arte” -, sala cheia, decorreu sem problemas de maior. Mas, na segunda (e última), já os mastins tinham acordado, tudo mudou de figura. Sala ainda mais cheia. Falava o Lopes-Graça sobre música medieval e punha um novo disco para documentar o que dizia, quando, no silêncio momentâneo, se ouviu, lá das últimas filas, uma voz avinhada, toda escorropichante: “Vira o disco e toca o mesmo!” Era o sinal. Os mercenários atiraram-se ao público como feras esfaimadas. Cães à solta. Confusão. As coisas não foram, no entanto, assim tão fáceis para eles. Nós tínhamos, a toda a volta da sala, um cordão de operários da Carris43, trazidos pelo Cabral, me parece, que trabalhava na empresa. De livre vontade ali estavam para o que desse e viesse. E o que veio foi uma sessão de brutal pancadaria. Brutal, não exagero. Os mastins excitavam-se a si mesmos, trepando a cadeiras para berrar: “Quem é que disse morra a Pátria?” E, dessas mesmas cadeiras se servindo como camartelos, berravam: “Viva a Pátria! Viva Salazar! “. Os corpos engalfinhavam-se nas salas, rebolavam pelas escadas do Grémio Alentejano abaixo até à rua e, na rua, até à esquadra do Rossio. Apesar da indignação que tudo isto provocava, ainda nos mais calmos, Caraça maravilhava-se: como era possível haver ainda gente pronta a bater-se, e de tal modo, em defesa da cultura!

Impressiona, na trajetória de Lopes-Graça, o seu trânsito por diferentes “mundos musicais”. O referido termo foi desenvolvido por Ruth Finnegan ([1989] 2007) a partir da adaptação dos “mundos da arte” (1982) de Howard Becker e designa grupos reunidos e redes desenvolvidas em torno de determinada formação vocal ou instrumental e/ou estilo musical. Tais “mundos” estão, com frequência, relacionados às classes sociais a que os sujeitos pertencem44. É necessário, contudo, observar que essa articulação não se dava sem tensões, tanto em relação aos grupos quanto internas a Lopes-Graça. Embora possa parecer, à partida, uma abordagem anedótica, menciono a seguir duas situações - uma narrada por António Pinho Vargas em seu

43 Empresa municipal de ônibus de Lisboa. 44 Convém observar que o conceito de “classe social” estava pouco presente nos discursos dos grupos pesquisados por Finnegan, dado que levou a autora a destacar uma latente mudança de paradigma. 77 livro “Sobre Música” e outra relatada por António de Sousa em entrevista – onde é possível perceber a presença de tais conflitos. Fernando Lopes Graça tinha participado no dia anterior num concerto [da festa do Avante45] na sala destinada à música “clássica”. Tocou peças dele e de Webern para viola ou violino e piano. Mas os camaradas do PC, naturalmente, não conheciam as regras de comportamento da música clássica. Não só no fim de cada peça saíam 50 pessoas e entravam mais 60, como aplaudiam entre os andamentos, etc. [...] perante essa indisciplina das massas, Lopes-Graça abandonou o palco sem terminar as peças de Webern, comentando que assim não podia ser! (VARGAS, 2002, p. 26).

Quando foi a estreia do Requiem [para as vítimas do fascismo em Portugal], o Lopes-Graça foi ver e quando acabou [...]minha mulher e eu [perguntamos] “Então, Graça, e o concerto?” Ele disse umas banalidades, não disse muito [...]. Normalmente depois desses concertos ele não dormia, ficava em transe durante horas. [...] Então eu disse “Olha, amanhã eu o vou buscar pra gente ir almoçar”. Quando cheguei à casa dele ele não estava em casa. Vou à procura dele... onde é que estava? Estava na mercearia ao pé, com o camarada “não sei quantos”, que era o merceeiro. Então estava uma série de gente à espera e estava ele a descrever... (eu decidi ficar escondido para ele não me ver) e a analisar o concerto do princípio ao fim “Olha, sabes... o Coro da Gulbenkian... houve por aí uns que não quiseram ir... mas ainda bem, porque normalmente eles têm volume demais e havia lá uns parlatos e umas coisas [...] Ah, gostei muito. Foi das vezes em que o Coro da Gulbenkian melhor cantou coisas minhas [...]”. (SOUSA, 2016).

À parte a atenção que devemos ter ao caráter de exceção desses eventos (elemento que possivelmente contribuiu para sua maior fixação na memória dos narradores) e à introversão/introspecção como traços característicos da personalidade de Lopes-Graça, a primeira situação pode ser interpretada, à partida, como o acionamento inconsciente de um padrão de comportamento incorporado comum a um determinado círculo social ou, melhor dizendo, “mundo musical” e seu choque com o contexto em questão, ou, ainda - segundo me sugeriu o professor Mário Vieira de Carvalho - a partir do conhecimento do posicionamento estético do compositor, como percepção da incompatibilidade do modelo de “música apresentacional” com aquele contexto e recusa à associação de sua obra com qualquer propósito demagógico. A segunda situação pode ser interpretada como uma recusa a uma avaliação apressada e irrefletida da performance, aliada ao afastamento de uma certa “hipocrisia das elites”, seguida de uma tentativa de diálogo com um leigo, num apelo

45 Conjunto de eventos culturais organizados anualmente pelo Partido Comunista Português.

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à sua empatia enquanto um trabalhador diante do resultado de instruções dadas a colegas ou subordinados.

2.3 - O local nos musicares de Fernando Lopes-Graça

Quanto aos conceitos de “local” que nos evocam a prática e o pensamento musical de Lopes-Graça, podemos aqui destacar três: o local concreto, literal, o local como especificidade e o local “universal”, “utópico” ou “ideal”.

2.3.1 – O local concreto

O primeiro, “local” como substantivo, faz-se presente na já amplamente discutida atuação do “musicante” Lopes-Graça na relação com seu entorno: as cidades onde viveu, a sala de aula, o coro, os teatros, o campo etnográfico, as redações, as prisões, etc. Observam-se, ao mesmo tempo, a influência dos sons e situações do meio como inspiração e sua influência sobre o meio e as comunidades com que se relaciona e em que se insere, por meio do ensino, da criação, da performance e da intervenção política, crítica ou musical.

2.3.2 – O local como marca de especificidade

O segundo aspecto, se tomarmos o uso do termo “local” como adjetivo, refere-se à definição do conceito de “local” como marca de especificidade, em oposição a “global” ou “nacional”. A ênfase na alteridade da música recolhida, em alternativa à oficialmente divulgada, domesticada, enquadrada num pretenso padrão europeu e enfeitada com elementos de pitoresco, isto é, no que a distinguia de uma “totalidade uniformizadora e repressiva”, configurava-se, segundo Mário Vieira de Carvalho (1999, p. 322), uma atitude contra-hegemônica do compositor. Vejamos esta questão em mais detalhes:

Decididamente: eu sou um desnaturado, um déraciné... Apesar de nado e criado em Portugal, cada vez mais me compenetro da minha incapacidade para sentir e compreender as coisas portuguesas; e assim é que estou em me considerar uma monstruosíssima excepção àquela genial lei etno- psicológica formulada por um conhecido jornalista português: a de que para sentir e compreender as nossas coisas é absolutamente indispensável ter nascido em Portugal. Atribuo eu esta deficiência do meu espírito à ausência de três virtudes rácicas fundamentais: versejar, gostar de toiros e amar o fado. (LOPES-GRAÇA, [1931] 1973, p. 149, grifos do autor).

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No campo da música erudita, segundo Vieira de Carvalho, o nacionalismo oficial, que tinha entre as linhas mestras de sua estética o catolicismo e o saudosismo, era seguido, por exemplo, por Rui Coelho46, em suas sinfonias Camões, no oratório Fátima e em suas Canções de Saudade e Amor, sobre textos de Afonso Lopes Vieira. Também nesse “mundo musical” outro movimento de tendência conservadora e nacionalista foi o Renascimento Musical. Ligado ao Integralismo Lusitano47, centrava- se na pesquisa e execução da música antiga portuguesa a partir da ideia de resgate de um passado glorioso e criticava a laicização do ensino musical. Também alguns integrantes desse movimento se dedicaram à composição, com referências à mística e à música antiga, caso de Ivo Cruz, ou à tradição rural popular - caso de Mário de Sampaio Ribeiro. A música popular maciçamente difundida tinha suas bases no fado lisboeta, promovido como “a” canção nacional, e em certas melodias e danças populares, reproduzidas [e reinventadas] para o teatro e o cinema. Os ranchos folclóricos também constituíam outra vertente desse nacionalismo estético administrado. Tratava-se de grupos que disseminavam danças e canções de diversas regiões do país, apresentando-se em festivais, eventos turísticos, turnês, rádio e, posteriormente, televisão48. A partir da assimilação de elementos das diversas vertentes acima referidas, a companhia de balé Verde Gaio seria outro importante difusor de uma arte portuguesa fortemente estilizada. Lopes-Graça opunha-se a esse nacionalismo “de cartaz”, ao “espetáculo folclorizante” resultante do estímulo e promoção do governo salazarista aos ranchos folclóricos, ao fado e aos orfeões49, que teria, a seu ver, forjado uma música nacional esteticamente empobrecida. Chamava a essa produção “contrafacção folclórica”. O compositor referia-se, segundo Mário Vieira de Carvalho, à reprodução das categorias “popular” e “nacional” como clichê e commodity.

46 Em 1931, Lopes-Graça travaria uma polêmica estético-política com este compositor, reunida no volume de textos A caça aos Coelhos... o último tiro. (ALVES, CASCUDO, 2013, p. 41). 47 Bloco político composto por católicos, monarquistas e republicanos dissidentes e apoiado numa ideia de integrismo a partir de uma origem racial superior. Para um breve, porém aprofundado histórico sobre os movimentos Integralismo Lusitano e Renascimento Musical, os quais tiveram grande adesão nos primeiros anos do governo de Salazar, cf. o artigo de Mário Vieira de Carvalho aqui referido (2012 d) e o terceiro capítulo da tese de Teresa Cascudo (2010). 48 Os ranchos folclóricos são atuantes até hoje, inclusive em regiões de grande imigração portuguesa como o Brasil e os Estados Unidos. A esse respeito, vale consultar os trabalhos de Castelo Branco (2008) e Holton (2005). 49 Aos quais já brevemente nos referimos ao comentar a atuação de Lopes-Graça junto ao coro da AAM.

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Em uma palestra proferida em Évora e publicada em 1947, o compositor assim se manifesta: Usa-se e abusa-se muito hoje da expressão “cultura popular” [..]. Não é raro vermo-la utilizada com intuitos reservados, como verdadeiro instrumento demagógico, com o fim de lisonjear com ela o povo para melhor se servirem dele [...]. Tanto a cultura popular como a arte popular, logo que são organizadas, logo que são dirigidas, deixam de ser verdadeiramente populares e passam a ser coisas artificiais, que perderam toda a sua razão de ser, todo o viço e toda a ingenuidade que lhes advém do facto de serem actividades espontâneas e desinteressadas da alma ou da vontade de expressão artística do povo. Deixam de ser um fim em si mesmas para se transformarem num meio ao serviço de interesses de outra ordem, interesses que nada têm que ver com a cultura, e com a arte, e que só não revelam o seu verdadeiro nome porque aos homens, a certos homens, pelo menos, sempre agradou mascarar as suas verdadeiras ideias, ambições ou apetites com palavras bem soantes, com palavras que garantam aos seus próprios olhos e, sobretudo, aos olhos dos outros, a pureza, a sublimidade dos seus actos... (LOPES-GRAÇA, [1947] 1992, 94-95). Contrário à ideia de incapacidade das classes populares para o acesso à cultura erudita, o compositor não buscava facilitar sua música para que a população a absorvesse. Apesar de sempre atento às possibilidades técnicas daqueles a quem cada canção se destinava, empregava recursos estilísticos pouco convencionais, mesmo nas composições destinadas a serem cantadas por amadores e/ou apresentadas fora das salas de concerto. Segundo Georges Bataille, o fascismo seria construído a partir de uma noção de heterogeneidade radical ou alteridade das elites, em oposição a uma ideia de povo como um outro inferior homogêneo [ou, mais precisamente, a ser homogeneizado]. Partindo dessa teoria, Mário Vieira de Carvalho argumenta que Lopes-Graça teria buscado uma “alteridade radical’ a partir de “estruturas sociocomunicativas alternativas” (2012d, p. 8). Para além da Sonata, ponto de encontro de intelectuais, artistas, estudantes e ativistas, e do coro da AAM, que, como já referido anteriormente, era composto de membros das mais diversas formações e origens sociais e apresentava-se (ainda se apresenta) para um público igualmente diverso, a proposta alternativa de Fernando Lopes-Graça também se dava em suas escolhas composicionais. Conforme já comentado anteriormente em relação à elaboração das Canções Regionais, Lopes-Graça buscava na música portuguesa o que fugia aos padrões da música erudita centro-europeia. Mário Vieira de Carvalho (idem, pp. 9-10) cita, além do já discutido uso de “erros” de respiração, alguns exemplos do que denomina elementos “transgressivos”: o emprego da dissonância, dos choques intervalares e das notas 81

estranhas ao acorde. Esta última ferramenta, marca estilística de Lopes-Graça, para além de um dos muitos recursos harmônicos da expansão da tonalidade na música erudita europeia do início do século XX, pode ser entendida como uma referência a diferenças de entonação no cantar popular. O mesmo pode ser entendido de defasagens e irregularidades rítmicas intencionalmente indicadas e, por vezes, enfatizadas pelo compositor. Outro elemento transgressivo destacado por Vieira de Carvalho é o anticlímax, abrupta e surpreendente mudança na condução harmônica, textural e/ou dinâmica. Seu uso por vezes sugere um refinado senso de humor, como veremos na análise da canção Desafio (capítulo 6) e da abertura Gabriela (Capítulo 5), e outras vezes evoca uma alegria popular ameaçadora e subversiva, como no caso da “risada” dos trompetes ao final do Malhão50, última das “Três danças Portuguesas” para orquestra (1941). Vieira de Carvalho busca compreender a crítica e resistência de Lopes- Graça a partir da teoria de dissociação entre “sistema” e “mundo vivido” proposta por Jürgen Habermas. O filósofo alemão aborda o processo por meio do qual, por exemplo, sistemas econômicos e administrativos se tornam autônomos e autorregulados, perdendo a conexão com os mecanismos, crenças e valores que dão sentido à vida de uma comunidade. Em oposição à homogeneização imposta, Lopes- Graça destacava a heterogeneidade da música que encontrava e utilizava, isto é, suas particularidades locais. A partir do que ele próprio denominava uma “análise musical, sociológica e psicológica”, buscava incorporar em suas composições elementos do mundo vivido da comunidade retratada. Adotou um “método crítico”, através do qual problematizava a abordagem das fontes populares, sugerindo um equilíbrio entre identificação e distância. Partindo da noção de alteridade radical proposta por Mário Vieira de Carvalho, interpreto a coexistência de material folclórico e marcas estilísticas pessoais em sua obra como parte da definição de sua alteridade enquanto compositor, em relação ao que considerava o “povo”. O argumento central a ser discutido no Capítulo 4 desta tese foi desenvolvido a partir de uma adaptação deste raciocínio à análise de suas composições brasileiras, entendendo essa coexistência como reconhecimento dos limites de sua alteridade enquanto estrangeiro.

50 Disponível em https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/malhao/s-77BVS?in=guilhermina- lopes/sets/doutorado-guilhermina-lopes/s-OLzcq. Coleção Centenário Fernando Lopes-Graça. Arquivos da RDP (Radiodifusão Portuguesa) - Antena 2

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2.3.3 – O local “ideal”, “utópico” ou “universal”

Uma terceira acepção de “local” que devemos ter em conta é o que aqui denomino “local ideal” ou, não conseguindo fugir a um paradoxo, “local universal” ou “local utópico”. Trata-se de uma noção metafórica do local como ambiente de fraternidade plenamente realizada. Segundo António de Sousa (2016), a leitura das obras do escritor francês Romain Rolland, hábito que Lopes-Graça manteve por toda a vida, teria sido uma de suas principais influências nesse aspecto. Deve-se destacar a forte influência mundial dessa linha de pensamento durante a vida de Lopes-Graça. A presença dessa concepção no horizonte de expectativas da intelectualidade foi proeminente desde o Iluminismo e especialmente forte a partir da difusão do pensamento marxista e em vários momentos do século XX, notadamente após a Revolução Russa. Essa crença em uma plena fraternidade seria, juntamente com a concepção teleológica da História, profundamente abalada a partir da crítica que se desenvolveu no pós-guerra e, com especial força, nos últimos anos do século passado, após o fim da Guerra Fria. A esse período ainda presente, marcado por grande incerteza e pluralidade de pensamento muitos estudiosos dão o nome de pós- modernidade. (JENKINS, 2004). Essa noção de “local” aparece na música de Lopes-Graça tanto no ideal estético internacionalista dos primeiros anos de sua produção quanto na mensagem textual das Heroicas e em obras como o Cosmorama (1963), suíte para piano em que convivem nações como Estados Unidos, Guiné, Moçambique, Suíça e Rússia. O compositor deixou nesta partitura, escrita no tempo da guerra colonial na África, um apelo textual à fraternidade de todas as nações, por meio de uma citação do livro As aventuras de Telêmaco, de François Fénelon (apud VIEIRA DE CARVALHO in MARTINS, 2012):

Todo o gênero humano não passa de uma família dispersa sobre a face de toda a Terra. Todos os povos são irmãos e devem se amar como tais. Ai dos ímpios que buscam uma glória cruel no sangue dos seus irmãos, que é o seu próprio sangue.

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Capítulo 3 – Fernando Lopes-Graça e o Brasil: as dimensões de uma relação O objetivo deste capítulo é fornecer um panorama das relações entre Lopes-Graça e o meio musical brasileiro, tendo em mente tanto o leitor d’aquém quanto d’além-mar. Apesar de ainda não ser muito conhecida, esta relação não é novidade no meio acadêmico, tendo sido abordada há quase duas décadas por estudiosos como Teresa Cascudo (1999, 2003, 2010), Mário Vieira de Carvalho (2006), Ricardo Tacuchian (2004, 2006) e Ana Cláudia de Assis (2011, 2012, 2013, 2016). Estes dois últimos autores realizaram pesquisas de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa sobre o tema, que está longe de se esgotar. O que apresento a seguir é fruto da consulta a esses trabalhos, aliada às minhas próprias análises de alguns documentos com os quais tive contato durante esta investigação.

3.1 – Lopes-Graça e o meio musical brasileiro: mais de quatro décadas de Correspondência

A correspondência estabelecida pelo compositor com personalidades ligadas ao meio cultural brasileiro - sobretudo musical e literário - constitui, tanto em termos numéricos quanto cronológicos, o mais extenso documento de sua relação com o país. Embora esta pesquisa não esteja centrada na sua análise, este material é aqui tomado como uma fonte de grande importância. Em levantamento realizado no Museu da Música Portuguesa, em Cascais, como parte de seu estágio pós-doutoral realizado entre 2002 e 2003, Ricardo Tacuchian encontrou 216 cartas de remetentes brasileiros ou ligados ao Brasil (TACUCHIAN, 2004). Ana Cláudia de Assis também realizou pesquisa pós-doutoral no acervo, tendo detalhado o período de correspondência dos principais interlocutores, com foco em sua relação com o compositor César Guerra-Peixe (ASSIS, 2013, 2016). Na tabela que se segue, apresento os dados resultantes da consulta a esses artigos e às fontes com as quais tive contato até o momento. Além do Museu da Música Portuguesa, também tive ocasião de pesquisar a correspondência do compositor com algumas personalidades brasileiras na divisão de música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, nos acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa e Centro Cultural Banco do Brasil, na mesma cidade, no acervo Curt Lange, da Universidade Federal de Minas Gerais e no Centro de Documentação de

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Música Contemporânea da UNICAMP. A fim de destacar a diversidade geracional e de interesses dessas relações e, ao mesmo tempo, melhor situar o leitor de origem portuguesa, indico a seguir aos nomes as datas e a(s) atividade(s) proeminente(s) de cada interlocutor(a). Destaco quando o interlocutor escreve do exterior e, no caso das cartas enviadas por Lopes-Graça, o acervo onde estão ou podem estar disponíveis. As lacunas referem-se a personalidades vivas, acervos ainda não disponibilizados para consulta pública ou que ainda não consegui localizar.

Tabela 1: Correspondência de Lopes-Graça com o meio cultural brasileiro Remetente Quantidade51 Período Cartas de FLG Acquarone, 2 não especificado Francisco (1898-1954) (pintor) Alvarenga, 4 08/03/1954 a Ainda não Oneyda 10/04/1967 consultado (1911-1984) (IEB-USP)52 (folclorista) Amado, Jorge 7 13/09/1960 a 1 – Resposta de (1912-2001) 22/05/1969 FLG - 18/11/1968 (escritor) (MMP)

Ainda não consultado Gattai, Zélia (Fundação Casa (1916-2008) de Jorge Amado, (escritora) 1 1984 Salvador - BA)53

51 Entre cartas, telegramas, bilhetes e postais. 52 Entrei em contato por e-mail com as responsáveis pelo arquivo do IEB no ano de 2015 e foi indicada a consulta ao Catálogo Eletrônico, no qual não constava, à altura, a referida correspondência, bem como a de outros interlocutores de Lopes-Graça com acervos aos cuidados desta instituição. 53 Entrei em contato com a Fundação em fevereiro de 2016 e fui informada de que a equipe da Divisão de Pesquisa e Documentação da FCJA estava ultimando alguns procedimentos a respeito da liberação da consulta à correspondência do escritor, uma vez que o seu desejo em torno desse acervo era de liberação apenas após 50 anos de seu falecimento. A publicação, em maio de 2017, da correspondência de Amado com o escritor português José Saramago, embora concretizada por mãos próximas e “poderosas”, veio dar novas esperanças aos pesquisadores. Trata-se de uma iniciativa conjunta da FCJA e da Fundação José Saramago, sob a direção de Paloma Jorge Amado, filha do escritor baiano e Pilar del Rio, viúva do autor português, realizada no contexto de homenagens aos dois escritores durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). A correspondência de Jorge Amado vem sendo organizada sistematicamente pela Fundação apenas desde 2015, tendo sido dada prioridade aos escritores contemporâneos. Com relação ao pedido de Jorge Amado, quando da criação da FCJA e doação de seu acervo, o escritor entregou à diretora executiva Myriam Fraga um pedido por escrito com a referida determinação. Chamando sua atenção para a importância cultural de tal documentação e pelo fato de que talvez não estivesse viva para garantir o cumprimento do pedido, Myriam ouviu do escritor a seguinte resposta: “Use seu bom senso. Você saberá o que pode vir a público antes disso”. (AMADO, SARAMAGO, 2017). Apesar de ser amigo dessas duas personalidades, Lopes-Graça não é mencionado na correspondência publicada. 85

Andrade Muricy, 1 s/d 1- s/d José Cândido de (BN-RJ) (1895-1984) (crítico) Araújo, Mozart de 9 25/04/1951 a 3 – 5/07/1958 a (1904-1988) 19/10/1971 30/07/195854 (musicólogo) (CCBB – RJ) Azevedo, Luiz 14 02/08/1949 a 6 – 11/05/195555 Heitor Correia de 28/10/1980 a 04/04/1961 (1905-1992) (Paris) (musicólogo) resposta de FLG (MMP) - 10/10/80

Bandeira, Manuel 2 17/01/1960 e Não encontrada (1886-1968) 23/10/1963 correspondência (escritor) (Fundação Casa de Rui Barbosa – RJ) Caldeira Filho, 5 20/02/1959 a João da Cunha 20/06/1973 (1900-1982) (musicólogo e crítico) Camargo 11 20/02/1957 a 1- resposta Guarnieri, Mozart 05/01/1968 de FLG - (1907-1993) 10/03/1958 (compositor) (CCBB)56

Ainda não consultado (IEB-USP) Cameu, Helza 5 10/03/1973 a 2 - 04/04/1973 e (1903-1995) 5/08/1974 20/07/1978 (compositora) (BN-RJ)

Correa de 2 26/07/1972 a 1 - 11/08/1972 Oliveira, Willy [sem dia e mês] resposta de FLG – MMP - sem dia e (1938- ) /1973 mês em 23/05/1973 (compositor)

54 Além dos 3 telegramas indicados na tabela, encontrei no acervo de Mozart de Araújo outros materiais, como um bilhete postal sem data informando mudança de endereço, críticas de vários autores em francês (Cochofel, Benoît, Santiago Kastner, Joaquín Rodrigo, João de Freitas Branco) sobre obras de FLG, recortes de jornal, formulários de despesas para a vinda de Lopes-Graça e a entrevista concedida por FLG a Araújo e que seria publicada com o título “Conversa com Fernando Lopes-Graça”. 55 Há algumas cartas sem indicação de ano, ainda por contextualizar. 56 Encontrada no acervo Mozart de Araújo no CCBB.

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Cosme, Luiz 1 Rio de Janeiro, Acervo ainda aos (1908-1965) março de 1959 cuidados da (compositor) família (segundo MATTOS, 2005) Curt Lange, 4 4/06/1952 - Não encontradas Francisco 25/08/1969 cartas de Lopes- (1903-1997) (Mendoza, Graça (Acervo (musicólogo) Montevidéu) Curt Lange - UFMG)

30/04/1948 (Montevidéu) – (UFMG) Estrela, Arnaldo 33 24/07/1948 a (1908-1980) 06/12/1978 (pianista) e Iacovino, Mariuccia (1912-2008) (violinista) Guerra-Peixe, 29 02(?)/12/1947 a 6 - 01/04/1958 a César 04/05/1975 15/10/1965 (1914-1993) (BN-RJ) (compositor) Janacopoulos, 3 13/04/1953 a Não encontrado57 Vera 10/06/1955 (Acervo Vera (1892-1955) Janacopoulos – (cantora) UNIRIO) Kiefer, Bruno 1 25 de agosto de (1923-1987) 1973 (compositor)

Koellreutter, 1 29/12/1948 Ainda não Hans-Joachim consultado (1915-2005) (Acervo (compositor e Koellreutter São educador João d’el Rei) musical) Krieger, Edino 1 29/04/196958 resp. FLG - (1928- ) 30/04/1969 (compositor) (MMP) Lutero, Martinho 3 12/02/1980 a (1953- ) 08/02/83 (regente) (Lisboa, Budapeste)

57 Entrei em contato com a equipe responsável pelo acervo em maio de 2017 e fui informada da não existência de nenhuma carta de Lopes-Graça. 58 Documento de difícil leitura, sem indicação de mês e ano. Deduzi a data pela menção ao “telegrama de ontem” na resposta de Lopes-Graça. Trata-se de um convite para participar do júri do Festival de Música da Guanabara. 87

Mariz, Vasco 6 27/03/1948 a 5- 06/04/1948 a (1921-2017) 18/08/1948 22/09/1948 (diplomata e (Porto) (BN-RJ) musicólogo) Martins, José 1 29/03/1963 Eduardo (1938- ) (pianista) Mignone, 3 12/05/1948 a Ainda não Francisco 04/12/1959 consultado (1897-1986) (IEB-USP) (compositor) Neves, José 1 08/03/1970 Ainda não Maria consultado (1943-2002) (Acervo José (musicólogo) Maria Neves – São João d’el- Rei) Nóbrega, 1 17 de novembro Adhemar de 1973 (1917-1979) (musicólogo e educador musical) Oliveira, José da 33 7/07/1954 a respostas de FLG Veiga 22/03/1993 11/06/62 e (?) 28/8/1973 (crítico musical) (MMP)

Pagano, Caio 5 3/5/74 - 24/11/77 (1940- ) – 17 de julho/ (?) (pianista) (Amsterdã, São Paulo, Kingston, Leça da Palmeira) Prates, Carlos 1 25/5/69 (Berlim) Eduardo [anexo programa (1934-2013) RIAS] (regente) Picchi, Achile 1 28 de novembro (1952- ) de 1979 (São (compositor, Paulo) pianista) Perez-Gonzalez, 2 20 de abril de resposta de FLG Eladio 1986 9/5/86 – (MMP) (1926- ) (cantor)

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Setti, Kilza 35 10/09/1970 a (1932- ) 26/01/1994 (etnomusicóloga e compositora) Schic, Anna 1 4/05/1954 Correspondência Stella não encontrada (1925-2009) (CDMC – (pianista) UNICAMP) Santoro, Cláudio 15 a partir de Ainda não (1919-1989) 02/08/194859 consultado (compositor) (UnB) Academia Brasileira de Música Academia 2 Natal de 1984- Internacional de 1985 e 3/01/1985 Música60 Círculo de Arte Vera Janacopoulos Cursos Latino- Americanos de Música Contemporânea Reitoria da UFBA

Sala Cecília Meirelles Sociedade 2 25/12/1983 e resposta de FLG Brasileira de 27/12/1984 – MMP - 5/3/1984 Musicologia I Festival de Música da Guanabara

Dada a magnitude da referida documentação, foi impossível, no limite desta pesquisa, sua abordagem aprofundada. Priorizei, portanto, a leitura e

59 Um incidente ocorrido em dezembro de 2016 ocasionou a perda material de importantes fontes para a pesquisa. Ocorreu um incêndio, felizmente de pequeno foco, no centro de documentação do Museu da Música Portuguesa, em Cascais, por negligência dos funcionários da empresa que realizava um procedimento de desinfestação no local. Por sorte, a maior parte da correspondência do compositor com os brasileiros já havia sido digitalizada. Faltam apenas as cartas de Cláudio Santoro. Há esperança de as encontrar, ao menos em parte, na Universidade de Brasília, visto que, segundo me relatou um seu estudioso em conversa informal, era hábito do compositor fazer cópias da correspondência por ele enviada. 60 Durante minha última visita ao Museu da Música Portuguesa em novembro de 2016 pude consultar apenas parcialmente a correspondência do compositor, devido às dificuldades de disponibilização do acervo durante a reforma em decorrência do incidente anteriormente relatado. Tomo como referência à presença de cartas das instituições indicadas o artigo “Relações da música brasileira com Lopes-Graça” (2004), de Ricardo Tacuchian. 89 fichamento da correspondência mais diretamente relacionada ao corpus da tese. As referências pertinentes à análise e contextualização desse material encontram-se em cada um dos capítulos referentes às obras musicais. O contato, ainda que superficial, proporcionou-me um panorama desta documentação, que inclui, além das discussões mais substanciais, cartões com saudações de fim de ano, postais, informes de mudança de endereço e documentos referentes a procedimentos burocráticos. A partir do que me foi possível efetivamente ler, pude distinguir alguns temas recorrentes, a saber: questões [mais diretamente] políticas, questões institucionais, indústria cultural, recepção musical, educação musical e música de tradição oral. Muitas destas questões já têm sido de alguma forma abordadas pelos estudiosos do compositor português. Creio, contudo, que, longe de estarem esgotadas, podem ser o fio condutor de pesquisas futuras.

3.1.1 – Uma rede tecida pelo comunismo?

Jorge Amado, Arnaldo Estrela, Cláudio Santoro... tais nomes costumam remeter o leitor a um ponto em comum: a ligação, ao menos em algum momento de suas trajetórias, ao Partido Comunista e, consequentemente, à orientação estética do realismo socialista. Segundo Mário Vieira de Carvalho (2012a, pp. 183-184), a doutrina do realismo socialista emergiu nos anos 1920 como reação ao princípio da arte pela arte e sua manifestação na produção cultural soviética do período. Em maio de 1932, a expressão surgiu nas deliberações de um comitê formado por cinco membros do comitê central do Partido Comunista da União Soviética, entre os quais estava o próprio Stalin. Nos anos subsequentes uma grande quantidade de artigos seria publicada sobre o tema em periódicos literários soviéticos, culminando na realização do Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934, evento em que Maksim Gorki teve papel de destaque. Na definição de Stalin, o realismo socialista consistia no desenvolvimento de culturas artísticas “nacionais na forma e socialistas no conteúdo”, tendo como aspiração a “construção de uma cultura geral, expressa numa linguagem geral e socialista tanto na forma quanto no conteúdo”. Gorki, por sua vez, definia-o como “ideologia socialista de uma maneira realista”. Em seu discurso no referido congresso, Andrei Jdanov definiu o conceito como uma arte tendenciosa, porém sem medo do fardo de o ser, uma vez que numa época de luta de classes não podia haver uma literatura apolítica, sem classes ou tendências.

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Conforme comentamos no capítulo 2, Lopes-Graça e Jorge Amado conheceram-se no Congresso dos Intelectuais pela Paz, realizado em Wroclaw, Polônia, em 1948 – evento organizado pelo governo do país, então pertencente à União Soviética. Arnaldo Estrela e Cláudio Santoro, assim como Lopes-Graça, estiveram presentes no célebre II Congresso de Compositores Progressistas, realizado em Praga no mesmo ano, organizado pelo sindicato de compositores da cidade e altamente influenciado pelo “jdanovismo”. A partir de sua participação neste evento, Santoro retornou ao Brasil decidido a estudar o folclore e o incorporar à sua música, trabalho que, no entanto, questões contingenciais o impediram de realizar (HARTMANN, 2010). O seguinte excerto de uma carta a Lopes-Graça, transcrita por Ana Cláudia de Assis (2012b), mostra sua intenção de, nas palavras da referida autora, tomar ”a classe proletária tanto como fonte de inspiração quanto público alvo”:

[...] convêm lembrar as palavras do velho bigodudo das torres bizantinas (...): “não devemos apoiar nossas ações nas camadas sociais que não mais se desenvolvem, mesmo que elas representem no momento a classe dominante, mas sobre as camadas sociais que se desenvolvem e que representam o futuro, mesmo que no momento elas não representem a força dominante”. Quanta verdade nessas palavras. Pensam alguns que o servir uma classe nova como é o proletariado é descer a arte a um nível em que ela não deve se por (...). Estão longe de imaginar que não se trata de descer e sim subir a esta fonte nova de inspiração porque sendo uma nova classe, traz consigo novas idéias, novo sentir, nova seiva, e isto tudo não se vai encontrar numa classe já em decadência que é a classe burguesa. Por isso ela se apega as idéias formais como “tabu estético” de vanguardismo (SANTORO, 1949).

Essa mudança de paradigma foi um dos grandes desencadeadores de seu rompimento com o grupo Música Viva61 e seu líder Hans Joachim Koellreutter e acabaria por influenciar a saída de outros membros do grupo, como Guerra-Peixe e Eunice Catunda. A pianista Anna Stella Schic, outra interlocutora de Lopes-Graça, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro em 1946 (ANNA STELLA SCHIC, 2017). Mozart

61 Fundado no Rio de Janeiro em 1938 e liderado pelo jovem professor e compositor alemão Hans Joachim Koellreutter, recém-chegado ao Brasil, o Grupo Música Viva reunia compositores, intérpretes, estudiosos e críticos empenhados na criação, formação e divulgação musical. Foi inspirado no grupo de mesmo nome fundado em Bruxelas pelo antigo professor de Koellreutter, Hermann Scherchen. Carlos Kater (2001; 2006) identifica três fases do movimento: a primeira, marcada pela coexistência de tendências estéticas e ideológicas muito distintas, a segunda, marcada pelo Manifesto Música Viva de 1944, mais voltada para a atualização musical e uma terceira, marcada pelo Manifesto Música Viva de 1946, caracterizado pela ênfase à complexidade social, estética e econômica do fenômeno musical. O grupo dissolveu-se em 1950. Koellreutter ficou conhecido como introdutor do dodecafonismo no Brasil por utilizar a técnica como ferramenta pedagógica em suas aulas de composição. 91

Camargo Guarnieri é associado ao Partido sobretudo pelo teor de sua Carta aberta aos críticos e músicos do Brasil, de que falaremos adiante, e pela militância de seu irmão, o escritor Rossini Camargo Guarnieri. A orientação marxista e atuação musical junto a grupos como as Comunidades Eclesiais de Base62 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra destacam-se na trajetória de Willy Corrêa de Oliveira, um dos principais nomes do movimento Música Nova. A referência a esses e outros interlocutores tem, durante minha participação em disciplinas, congressos e exames, frequentemente desencadeado perguntas e observações relativas ao peso da ligação ao Partido Comunista ou à sua ideologia na construção da rede de relações de Lopes-Graça com o meio cultural brasileiro. Para melhor esclarecer esta questão, peço licença ao leitor para um excurso. Apesar de a rede de contatos do músico português incluir personalidades de diferentes orientações ideológicas, deve-se reconhecer que grande parte de seus correspondentes mais frequentes sobretudo entre as décadas de 40 e 60 eram oficialmente ligados ao Partido ou manifestavam alguma simpatia pelas ideias comunistas. Deve-se observar, contudo, que tal relação não tinha por consequência um determinismo simplista sobre a produção artística do período. Todo criador engajado vivia um constante dilema entre o “político” e o “estético” [tomados numa concepção estreita], e quase sempre este último vencia o embate. O conhecimento de sua militância e a grande popularidade alcançada pelas Canções Heroicas têm levado a uma identificação apressada e reducionista de Lopes- Graça com o realismo socialista. Em seu artigo Between Political Engagement and Aesthetic Autonomy: Lopes-Graça’s Dialectical Approach to Music and Politics (2012)63, cuja leitura recomendo aos que desejarem se aprofundar nesta discussão, Mário Vieira de Carvalho procura situar o compositor em uma intrincada rede de relações entre distintas – e em muitos aspectos opostas - linhas de pensamento: a herança do Iluminismo, a arte pela arte, o realismo socialista e a teoria crítica de Benjamin e Adorno. Segundo o autor, Lopes-Graça defendia “a autonomia e liberdade

62Pequenos grupos, em maioria católicos, fortemente influenciados pela Teologia da Libertação, reunidos segundo proximidade territorial, cuja prática volta-se para a leitura bíblica articulada à discussão de sua realidade política e social. 63 Uma tradução deste texto, bem como de alguns artigos citados no Capítulo 2, acaba de ser publicada no livro Lopes Graça e a Modernidade Musical – Lisboa: Editora Guerra e Paz, 2017.

92 de qualquer subordinação da arte à política, a “música moderna”, face às demandas de simplificação da natureza de sua invenção musical e de composição de obras acessíveis às massas e uma ação cultural e política contra-hegemônica de resistência às estruturas sociais que conspiram para excluir o povo da educação e da “alta cultura”” (p. 176). Mais adiante, acrescenta que a atitude do compositor era norteada pela defesa da ligação entre arte (não apenas como beleza, mas como atividade de conhecimento) e vida, o que incluía, nos próprios termos de Lopes-Graça “a política, em seu mais alto sentido: o problema social da humanidade.” (p. 179). Tal posicionamento relaciona-se às noções de opção pelo local (específico) como atitude contra-hegemônica e de local “utópico”, “universal” ou “ideal”, discutidas no Capítulo 2 desta tese. Lopes-Graça via, no uso da música a serviço da propaganda política, uma similaridade e não uma oposição entre o realismo socialista e o salazarismo. Em 1954 foi publicado na revista Vértice em nome de António Vale (que mais tarde descobriu-se ser pseudônimo de Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista Português, escritor e artista plástico) o artigo Cinco notas sobre forma e conteúdo. Tal texto teve papel decisivo em um debate que já se desenrolava na revista entre intelectuais e artistas ligados ao PCP, como António José Saraiva, João José Cochofel, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira e Fernando Lopes-Graça e que ficaria conhecido como “polêmica interna do neorrealismo”. A principal questão em jogo, segundo Manuel Deniz Silva (2013, p. 176) era a autonomia da produção artística em relação ao social. O texto de “Vale” foi uma resposta direta a O sonho e as mãos, em que Mário Dionísio defendia que “a actividade criadora não será autónoma, mas é diferenciada”. Nas suas Cinco notas, o autor procurou demonstrar justamente a inexistência dessa diferença. Mário Vieira de Carvalho, no artigo anteriormente citado (pp. 186-187), resume as proposições do texto de Cunhal:

A arte nunca é pura, mesmo quando assim dela se diz; é sempre “o reflexo de um estrato social em um dado momento e em uma dada situação”; como qualquer outra ideologia, é baseada na vida e nas lutas da sociedade, e apenas pode ser explicada, avaliada e interpretada levando-se em consideração essa vida e essas lutas; há uma “arte tendenciosa” dos estratos sociais condenados pelo desenvolvimento social e também uma “arte tendenciosa” dos estratos sociais ascendentes; os ”artistas formalistas”, que tentam traduzir as aspirações dos estratos ascendentes, fazem-no através duma linguagem completamente impotente para esse fim”; “para alcançar uma forma superior, é válido o princípio: “primeiro o conteúdo!”; o artista precisa conceber a sua arte como um meio de comunicação com outras pessoas e, portanto, quanto mais clara a comunicação, mais poderosa e bela [sua arte] será. 93

Cunhal cita a música de Lopes-Graça e a pintura de Picasso como exemplos de concepção formalista da arte. Além da sua percepção da obra musical de Lopes-Graça, Cunhal teria baseado sua proposição na leitura da Introdução à música moderna (1942). Em resposta às Cinco notas, Lopes-Graça escreveu à redação da revista uma carta ([1954] 1974, p. 281-283) em que denuncia a descontextualização das frases citadas de seu livro e a consequente deturpação de suas ideias, indicando ao leitor uma série de textos de sua autoria, dentre os quais a Conversa com Fernando Lopes-Graça, fruto de uma entrevista concedida a Mozart de Araújo para o Jornal de Letras do Rio de Janeiro em 1951, sobre a qual falaremos mais adiante neste capítulo. Podemos encontrar na seguinte citação da Autobiografia de Mário Dionísio, escrita em 1987, uma lúcida análise daquele momento, dos dilemas de sua geração de artistas e da posição partilhada com Lopes-Graça, Cochofel e Carlos de Oliveira:

Tudo se complicava muito porque nós (mas quais de nós? quantos de nós?) sentíamos, como um espinho na carne, o dever de lutar pela felicidade dos outros. Não o fazer era uma espécie de pecado. Não sabíamos viver com esse peso, essa hipótese sequer, na consciência. Mas lutar seria obedecer de olhos fechados a uma orientação que (e assim me parecia mais e mais) não levaria a lado algum, à transformação dos homens certamente não? E o papel do intelectual (como o de qualquer outro militante) poderia limitar-se a subir e descer escadas com o único objetivo de subir e descer escadas? Não seria sua estrita obrigação (não só dele mas sobretudo dele) esclarecer, esclarecer, esclarecer os que só o não são, à partida, por defeituosa, criminosa organização da sociedade? Uns, como eu, pensavam (o Cochofel, o Carlos de Oliveira, o Lopes Graça, não só estes) que a militância do artista deveria ser sobretudo (sobretudo, não só) no campo cultural. E que ela de modo nenhum deveria impedir o artista de dedicar-se ao conhecimento profundo da linguagem específica da arte e seus problemas. Que não havia arte revolucionária sem começar por ser arte. (DIONÍSIO, 1987, p. 54).

Falando do próprio Álvaro Cunhal, Manuel Deniz Silva (2013, pp. 184-185) destaca sua contraditória relação pessoal com a arte. Se, por um lado, recusava ser considerado artista e declarou-se “intruso” nas Cinco Notas, mesmo escrevendo sob pseudônimo, sua paixão, seu senso estético e sua busca de aprimoramento técnico revelavam-se no traço.

Para Cunhal, não devia haver mediação entre a mão e o sonho. O sonho, que deveria necessariamente ser o mesmo no militante e no artista, deveria conseguir realizar-se integralmente na obra sem “diferenças”, através de uma mão obediente. E, no entanto, percorrendo à distância os inúmeros desenhos que Cunhal nos deixou, e que talvez venham a permanecer bem para lá da memória do militante, é precisamente essa diferença que nos salta à vista, a forma nunca neutra com que a mão do Cunhal artista se confrontou com o sonho do militante. As figuras que traçou, os rostos das camponesas, os

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homens no trabalho, em repouso ou a caminho da luta, as danças em ronda ou os cavalos espantados, procuram certamente representar uma determinada realidade social, apontando um horizonte fixado pelo sonho. Mas dizem mais, e por vezes muito mais, sobre Cunhal (as suas angústias, as suas hesitações, os seus gostos) e sobre a complexidade das próprias lutas para que remetem. Dizem sobretudo coisas efectivamente “diferentes”, na luta da mão que desenha com o carvão e o papel, espaços de outros possíveis que, Cunhal o quisesse ou não, só existiam e só existem no desenho enquanto desenho. E nessa diferença, nesse intervalo, praticou uma intervenção estética que nunca quis assumir nem pensar, ocupado que estava em encontrar a linha mais directa entre o sonho e o traço. A propósito dos “artistas puros”, dizia Cunhal no texto de 1954 que “julgando fazer uma coisa o artista faz coisa diferente ou contrária”. Talvez tenha sido esse também, ironicamente, o seu destino.

Como exemplo da defesa intransigente da liberdade do artista, Mário Vieira de Carvalho destaca, na música vocal de Lopes-Graça, a opção por poemas nacionais e estrangeiros, antigos e contemporâneos, sem distinção de ideologia ou orientação estética. “A produção vocal de Lopes-Graça une o que o partidarismo literário de seu tempo dividia. Além disso, Lopes-Graça, um ateu declarado, ao longo de sua vida musicou textos religiosos, a maioria de tradição oral, mas também alguns textos litúrgicos” (2012a, p. 187). Em entrevista a mim concedida em 2016, António de Sousa abordou detalhadamente a questão da relação entre o estético e o ideológico e os valores fundamentais de Lopes-Graça, destacando a presença de pessoas de diferentes orientações ideológicas em seu círculo de amizades.

[resumir a] o Lopes-Graça das Heroicas é apoucar [...] porque... de facto, aquilo que descobri nas relações dele e em Tomar, por exemplo, o grande amigo dele, que cá há uma estátua64 aí, o Nini Ferreira, era apoiante do Cavaco Silva65 [...] e foi sempre o seu posto de abrigo, o homem com quem ele desabafava. [Nini] tinha uma irmã que era a Maria José. Eu no livro66 falo muito deles, são os três irmãos Araújo Ferreira. O pai de Lopes-Graça foi cozinheiro no hotel do avô desses três, e eram os seis miúdos [contando com os irmãos de Lopes-Graça] que no hotel andavam aí a brincar, sempre juntos, portanto, são os grandes amigos de infância que se mantiveram ao longo da vida. A Maria José era uma senhora extremamente religiosa [...] era intelectualmente muito evoluída, foi das primeiras licenciadas em [Letras] Românicas cá em Portugal, mas muito conservadora. [...] O Lopes-Graça, sendo militante, sua estética não pode ser reduzida a esse tipo de necessidades. [...] Há aquela carta espetacular com o José Régio, em que ele começa por dizer: “Nós seguimos caminhos diferentes, mas creio que ainda temos a inteligência e a sensibilidade suficientes para fazermos uma grande obra, por exemplo, uma oratória”. Eu acho que esta frase é lapidar,

64 Na cidade de Tomar, à margem do rio Nabão, há uma estátua de Lopes-Graça e Nini Ferreira conversando, sentados em um banco. 65 Aníbal Cavaco Silva foi primeiro ministro de Portugal entre os anos de 1985 e 1995 e presidente entre 2006 e 2016. É ligado ao Partido Social Democrata, de centro-direita. 66 A Construção de uma identidade: Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça (2006). 95

ou seja, isto quer dizer simplesmente que... ele faz Heroicas, é óbvio que participa do MUD e de tudo aquilo que o Partido pedir, agora, esteticamente, ele nunca deixou de ser humanista. [...] Esse lado dele está muito pouco explorado.

Suas referências às Ideias Novas e à noção de nação alternativa, temas que já tem abordado em alguns trabalhos (p. ex. SOUSA, 2009), influenciaram fortemente o desenvolvimento do terceiro conceito de local (“ideal”, “universal” ou “utópico”) por mim proposto no Capítulo 2 desta tese.

[...] Nos anos 20, ele foi fortemente, na juventude, influenciado pelo Romain Rolland, e o Romain Rolland era um homem que dizia que o marxismo era uma evolução natural da cultura europeia, ou seja, não se pode pôr revolução soviética de um lado e humanismo europeu do outro. E uma coisa foi consequente da outra, o pensamento ocidental desembocou ali por acaso, mas faz parte, não pode ser o contra. [...] Quando Lopes-Graça tinha 80 anos, em minha casa, levou dois livrinhos do Romain Rolland, em francês. [...] Eu disse “Ó, Graça, a ler em francês?” e ele disse-me “Eh, pá, Romain Rolland é de facto o escritor onde eu volto sempre que tenho dúvidas, e eu passo a vida a ter dúvidas, de modo que regularmente releio, porque sempre há coisas aqui que me vêm dar respostas a outras. [...] Ele sempre manteve-se fiel a valores como a verdade, a vida, ou seja, a arte fora da vida, seja ela ou não pura, não faz sentido, e esses, de facto, são os grandes valores dele, que se confundem facilmente com militância política. [...] Uma outra coisa que nos anos 20, com o Romain Rolland, e depois, com o Bento de Jesus Caraça existiu eram as chamadas Ideias Novas, que é uma prática marxista. A teoria básica era que uma pessoa não tem idade cronológica, mas tem idade pelas ideias que tem. Às vezes tem ideias inovadoras, ideias no sentido de melhorar o meio em que está inserida, de resolver os problemas dos outros, enfim, toda essa filosofia rollandiana “somos todos da mesma idade – contra os das idades velhas que até podem ser mais novos que nós”. Estamos nos anos 20, quando começa a Revolução Soviética e, na Europa, ou estás pela revolução soviética ou estás pelo fascismo. Não havia socialdemocracia em lado nenhum. [...] Para mim, é mais ou menos claro, quando ele faz as Variações sobre um tema popular [português], que já é um nacionalismo por uma “nação alternativa”, que viria a ser definida pelo Plakov nos anos 30, a ideia de que numa ditadura fascista só se tem como solução criar estruturas de comunicação de uma nação alternativa. [...]. Eu acho que esta é a estrutura mental fundamental em Lopes-Graça (SOUSA, 2016).

A grande pressão e a presença de um certo maniqueísmo nas visões sobre a relação entre arte e política também desencadearam nos artistas brasileiros conflitos internos, revisões de paradigma e uma turbulenta recepção de suas obras. Concluo este subcapítulo com o caso de dois correspondentes de Lopes-Graça. Se Cláudio Santoro aderiu de uma maneira bastante radical às ideias do realismo socialista nos últimos anos da década de 40, os anos seguintes trouxeram uma grande abertura de sua posição, e, a partir daí, o diálogo e a experimentação de novas técnicas, como a composição eletroacústica, além de uma revisita ao serialismo.

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Embora reconheça, nos últimos anos de Santoro, um “desinteresse pela intervenção na prática política e social, tendência observada nos demais compositores igualmente contagiados pelo momento de indefinição da música contemporânea” Sérgio Nogueira Mendes (2009, pp.276-278) destaca, no discurso do compositor no período, a recorrente presença de expressões como “emancipação do homem” e “liberdade criativa”, que associa “à corrente política particularmente interessada em resgatar os escritos filosóficos do então jovem Marx, em que os direitos do homem, a liberdade e a democracia são considerados valores universais”. Temos um exemplo desse discurso no seguinte excerto de uma entrevista concedida ao compositor Raul do Valle em 1976. (In SOUZA, 2003, p. 79):

ali [nas suas primeiras obras] eu usava a técnica dodecafônica, mais como elemento de unidade pra minha obra, do que como uma camisa de força. Porque eu sempre fui a favor da liberdade sobre todos os aspectos, e eu acho que a arte, uma das funções mais importantes que ela tem hoje em dia, é a de transmitir uma mensagem de liberação do homem. Porque o homem hoje está praticamente submerso pela propaganda de todas as espécies, comercial, política, enfim todos os meios, pela massa mídia [sic] que existe hoje no mundo inteiro e que está alienando completamente a personalidade humana. [...]

Podemos facilmente encontrar similaridades entre esses valores e os apontados por Sousa como fundamentais em Lopes-Graça. Quanto a Jorge Amado, sua Gabriela, Cravo e Canela, que abordaremos no capítulo 5, é tratada por grande parte dos estudiosos como romance de transição de uma fase de explicita e dura crítica social para uma mais irônica e bem-humorada, com personagens mais sutis. Segundo Benedito Veiga (2003), os críticos da época dividiram-se entre os que viam esse momento como afrouxamento ou como apuração da crítica social do autor. Paulo Dantas, por exemplo, realiza uma “cobrança político- estética”, em uma crítica publicada em 6 de agosto de 1958 n’A Gazeta:

Gabriela Cravo e Canela é o romance dos “recuerdos” de Ilhéus, com alguns ímpetos-comoções de beira de cais, com alguns lampejos de matas virgens. O típico virou fácil universal e o romancista atingiu o que desejava, frustrou, porém, os seus leitores mais ardentes [...] (DANTAS, 1958, apud VEIGA, 2003, pp. 2-3). Nelson Werneck Sodré, malgrado sua orientação marxista, reconhece os méritos da obra, que considera marco da consolidação do autor na literatura brasileira – e do reconhecimento internacional da nossa literatura. 97

De acordo com a biografia do escritor disponível no site da Fundação Casa de Jorge Amado, este afasta-se, em 1955, da militância política, com a intenção de se dedicar inteiramente à literatura, sem, no entanto, deixar os quadros do Partido.

3.2 – Imprensa portuguesa - obras literárias

Conforme vimos no capítulo anterior, a escrita em diversos periódicos, musicais e não só, foi uma atividade desenvolvida por Lopes-Graça durante toda a sua vida, e que teve crucial importância para seu sustento entre os anos 50 e 70. Grande parte desse material foi reunida e republicada em livros, denominados as suas “obras literárias”.67 Quanto aos gêneros e temas, temos pequenos ensaios, memórias, críticas de espetáculos, entrevistas, homenagens, transcrições de conferências e cartas. Esse vasto material contém muitos textos relacionados ao Brasil e à sua música. A contribuição de Lopes-Graça, no âmbito jornalístico, para o estreitamento das nossas relações não se resumiu à autoria de textos. Promoveu também diversas entrevistas e publicou artigos de autores brasileiros ou ligados ao nosso meio musical: em 1951 a Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, de Camargo Guarnieri, na Gazeta Musical e de Todas as Artes e, em 1956, La música em Minas Gerais durante el siglo XVIII, do musicólogo teuto-uruguaio Francisco Curt Lange, em três volumes da mesma revista68. A seguir, comento brevemente essa produção, dividindo-a em “Visões sobre o Brasil” (textos de Lopes-Graça) e “Diálogos e polêmicas” (entrevistas e outros debates).

3.2.1 – Visões sobre o Brasil

O primeiro texto de Lopes-Graça que trata especificamente do nosso país é intitulado Língua Brasileira e data de 1930. Não consegui encontrar a fonte original da publicação, editada no volume Disto e Daquilo (1973). Depreendo, pela leitura, tratar-se de um posicionamento do compositor em relação aos debates em torno de um acordo ortográfico entre Portugal e Brasil, que seria aprovado em 1931. Lopes-

67 Duas coletâneas dos escritos de Lopes-Graça com esse título foram publicadas: a primeira pelas Edições Cosmos, na década de 70 e a segunda, pela Editorial Caminho, nos anos 80. 68 Encontrei ainda uma carta de Lopes-Graça ao jornalista Mário Neves (23 de agosto de 1946) verificando a possibilidade de publicação de um artigo de Alexandre Denís, português residente no Rio, intitulado “A verdade sobre a música portuguesa no Brasil”. Não encontrei nenhuma versão publicada deste artigo, que Lopes-Graça classificou como um tanto ingênuo, possivelmente devido, segundo minha análise do referido texto, à indistinção entre o que FLG denominava folclore autêntico e contrafacção folclórica (vide capítulo 2 desta tese) e a momentos em que o autor manifesta uma visão bastante elitista.

98 graça manifesta sua oposição, destacando a riqueza da diversidade linguística e apontando resquícios de colonialismo na iniciativa de unificação.

É justo, é humano o nosso interesse pelo Brasil, no mesmo título em que nos não deve ser indiferente a vida de qualquer outro povo. E é mesmo natural o interesse um pouco mais forte que tenhamos pelo Brasil, dados os laços históricos que nos ligam a ele. Mas daí a imiscuirmo-nos tão activamente e tão apaixonadamente numa questão tão superficial e que só superficialmente nos deve interessar, como é esta da língua, a pontos de parecer que é dum problema vital da nação portuguesa que se trata, parece-nos insensato, parece-nos mais uma manifestação de falso patriotismo – ou, se não de falso, de patriotismo mal compreendido. [...] Povos irmãos? Pouco importa. A quem o Brasil pode interessar verdadeiramente e dum modo superior, em que não entram em linha de conta as questões românticas de raças e de patriotismos - pouco importa um Brasil a falar português como um Brasil a falar brasileiro – e até, porventura, lhes interessará mais este do que aquele. O que lhes importa no Brasil é a sua civilização, a sua vida, a sua literatura, a sua arte, o seu pensamento, quanto mais livres, mais independentes, mais característicos, mais originais - tanto melhor. (pp. 145-146). No já citado livro Introdução à Música Moderna (1942), há uma referência a Villa-Lobos. Num capítulo em que traça um panorama histórico do nacionalismo musical e defende uma música “nacional pela forma e universal pelo conteúdo”, Lopes-Graça aponta o compositor como “a maior individualidade musical [brasileira] dos nossos tempos”, representante do “esforço do Brasil para se libertar das garras da música italiana e alemã” (p. 89). Num artigo publicado originalmente em 1955 no jornal O Comércio do Porto e reeditado no terceiro volume de A Música Portuguesa e os seus Problemas (1973), Lopes-Graça faz um balanço das “Relações musicais luso-brasileiras”. O panorama que começa por traçar, infelizmente não muito distante do apresentado nesta tese, não é nada positivo:

Nas nossas correspondências com músicos brasileiros, ou nas nossas conversas com os seus colegas aqui de passagem, com frequência abordamos a questão das relações musicais entre as duas pátrias irmãs para chegarmos à lamentável conclusão de que nem os portugueses conhecem nada da música brasileira, nem os brasileiros têm notícia alguma da música portuguesa, ou, pior do que isso: que o que nós conhecemos da música do Brasil se reduz ao samba, e que o que eles, os nossos irmãos de além- Atlântico, conhecem da música de Portugal se limita ao fado. Se isto é assim, quanto ao grosso do público, não se julgue que, nas esferas intelectuais e artísticas, se esteja mais bem informado do movimento de criação musical nos dois países. Nós aqui ainda sabemos vagamente da existência de um Villa-Lobos, vulto sem dúvida importante da arte musical brasileira mas que está longe de a representar na sua totalidade; quanto ao que por lá se sabe dos compositores portugueses, cremos ser ainda menos afortunados, pois que, ao que nos consta, nome nenhum da nossa música ali obtém qualquer espécie de ressonância. (LOPES-GRAÇA, [1955] 1973, p. 285). 99

Lopes-Graça lembra o leitor de que, malgrado a atual falta de diálogo, há que se reconhecer a influência histórica recíproca na música dos dois países. Destaca compositores brasileiros que aproveitam em suas obras a música popular, citando os nomes de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Radamés Gnattali, José Siqueira, Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe e Eunice Catunda. Segundo o autor, o povo português reconheceria, ao ouvir tais obras, algo da própria alma. Reafirmando a necessidade de se fazer conhecer os compositores portugueses na “pátria de Carlos Gomes”, mesmo estes não sendo “tão decididamente orientados” como os brasileiros, conclui apontando, embora com grande descrédito, as instituições políticas como as únicas capazes de possibilitar efetivamente esse intercâmbio. Contudo, a tarefa de mobilização estaria, ao fim e ao cabo, nas mãos dos próprios músicos.

Que fazer para chegar a este desiderato? Que medidas tomar para se efectivar um necessário e desejado intercâmbio musical luso-brasileiro? Que soluções tentar? A que portas bater? Fáceis e difíceis são as respostas: fáceis, porque se não trata de nenhuma utopia e porque não seria impossível nem complicado acertar-se num plano concertado de realizações; difíceis, porque haveria que pôr em acção, de parte a parte, boas-vontades, inteligências, o quanto de entusiasmo e de cabedal necessário para que se chegasse a algum resultado positivo, e isto não se consegue apenas por meio de artigos jornalísticos nem de discursos oficiais. O melhor seria evidentemente que músicos portugueses e músicos brasileiros tomassem em suas próprias mãos a tarefa de estreitarem as suas relações artísticas e de promoverem nos respectivos países o conhecimento e divulgação das suas obras. Uma comissão de músicos brasileiros avistando-se ou entrando em comunicação com uma comissão de músicos portugueses seria porventura o primeiro e mais eficiente passo para a solução do problema. Haveria que dar o sinal de partida. Quem poderá ou quem estará em condições de o fazer? Por estas bandas, reina grande confusão e desentendimento nas hostes musicais. Sucederá o mesmo no Brasil?

Em 1959, ano seguinte à sua primeira visita ao Brasil, Lopes-Graça envia, a pedido da editora da Universidade da Bahia, uma seleção de seus escritos de 1936 a 1958, que será publicada em 1960 sob o título Musicália. Embora essa edição não contenha nenhum texto relativo à música brasileira, ela é dedicada a quatro musicólogos brasileiros coevos: Renato Almeida, José Cândido de Andrade Muricy, Eurico Nogueira França e João da Cunha Caldeira Filho. Podemos ver a referida dedicatória na imagem a seguir.

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Figura 9: Dedicatória da edição brasileira de Musicália

LOPES-GRAÇA, 1960, p. iii.

Algumas semanas após a morte de Villa-Lobos, em dezembro de 1959, Lopes-Graça publica na revista Vértice um artigo em homenagem àquele que define como “a maior presença da música brasileira contemporânea” (p. 177). Na introdução, em grande parte aproveitada da do Inquérito aos Compositores Brasileiros, do qual falaremos adiante, é destacada a proficuidade e vigor físico e mental do homenageado, descrito, com sutil e bem-humorada iconoclastia, como “um primitivo que em todo o caso trocava com frequência o sertão (que podia situar-se mesmo no seu um tanto exótico apartamento da rua Araújo Porto Alegre, no Rio) pelas delícias e requintes da civilização Parisiense”. Em seguida, Lopes-Graça critica o pouco (re)conhecimento de sua obra em Portugal, porém sem deixar de atribuir ao artista parte da responsabilidade:

Com sobeja razão grandemente sentido no Brasil, não nos quer parecer que o seu desaparecimento tenha no país irmão de Aquém-Atlântico despertado mais que uma superficial comoção. Aqui conhece-se mal a obra do autor dos Choros, e o próprio Villa-Lobos, das duas ou três vezes que em Lisboa dirigiu composições suas, não as escolheu no mais significativo da sua vasta, torrencial e, digamo-lo também, certamente desigual produção, fornecendo- nos, assim, uma imagem incompleta da sua personalidade artística: daí certos erros circulantes no nosso meio musical e crítico (já sujeito a tantos erros...), mas que, por compreensíveis que em certa medida possam ser, não decorrem menos de prejuízos que se traduzem em real injustiça. (p. 178).

Por fim, retomando o lúcido olhar sobre sua imagem exuberante e exótica, identifica o compositor como “um dos [...] mais ilustres embaixadores artísticos [do Brasil] [...] aquele que, aos olhares estrangeiros, oferecia a imagem mesma da 101 torrencialidade caótica de todo um mundo genésico de florestas, rios, sertões, seres, cantos e mistérios”. (p. 179). Esse texto seria incluído na versão portuguesa, revista e ampliada, de Musicália, publicada em 1966, na coleção Ensaios Vértice. Em 1960, publica na Gazeta uma Notícia sobre os seminários livres de música da Universidade da Bahia. Republicado em Disto e Daquilo, este texto é um comentário do programa semestral dos cursos de Estética Musical e História da Estética Musical. Os Seminários surgiram nos anos 50 como uma iniciativa de Hans Joachim Koellreutter. Era recente a incorporação do antigo Instituto de Música da Bahia à Universidade69, de forma que era visível a sua vocação original de conservatório. Surpreendeu, portanto, o caráter humanístico do projeto pedagógico e a profundidade dos estudos teóricos naquela instituição.

Integrada à instituição, de facto, na Universidade de Salvador (concebe-se isto no nosso meio universitário?), não haverá porventura que estranhar o nível superior, verdadeiramente universitário, do seu programa de estudos estético-musicais (aliás, alargados aos estudos de Estética geral). (p. 266)

Em 1958, Lopes-Graça esteve nesta Universidade e testemunhou, como convidado, o acompanhamento das disciplinas pelos estudantes. Assim como na citação anterior, é possível perceber em seus comentários o forte tom de crítica em relação ao ensino musical português.

[...] tomando contacto com as actividades dos Seminários de Música, verifiquei o teor dos seus cursos de Estética e História da Música. Não, os programas destas disciplinas não ficavam apenas no papel. Os cursos funcionavam. Não pude apurar qual o proveito que os escolares deles tiravam, mas, o certo é que, convidado pelo titular da cadeira, o Prof. Yulo Brandão, a assistir a uma das suas aulas, foi-me dado pelo menos certificar- me de que a exposição do mestre não deixava indiferentes os alunos. Mais do que isso: convidado eu próprio a fazer uma espécie de lição, talvez melhor: uma palestra, seguida de controvérsia (pensou-se já em instituir no nosso ensino este pedagógico e culturalmente salutar hábito?) sobre problemas musicais de vária ordem (e não de todo fáceis ou cômodos), verifiquei, com alguma surpresa e muita edificação, que o debate não redundou numa troca de impressões meramente formal mas atingiu a animação de uma acalorada discussão entre o expositor e os ouvintes, alguns dos quais revelaram não serem nada pecos em conhecimentos e em argúcia intelectual (p. 267). Lopes-Graça mostrou ainda sua admiração pelo nível artístico e técnico dos grupos musicais e pela política de bolsas da instituição.

Aliás, os Seminários de Música são ainda exemplares noutros aspectos. Além de um coro (que, no momento em que em Salvador me encontrava, ensaiava nada menos do que a Missa de Stravinsky), possui uma orquestra, aquele

69 Também por iniciativa de Koellreutter foi fundada a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, durante a gestão do reitor Edgard Santos.

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obrigatório para os alunos, esta formada por professores e alunos. Ambos funcionam normalmente. E sabem o que sucede com a orquestra? Isto, simplesmente: os alunos nela integrados (muitos deles confluindo à capital do Estado da Bahia de vários pontos do incomensurável Brasil) – e calcula- se que grau de aptidão eles não deverão já possuir para desempenharem o seu papel num organismo sinfónico que está longe de ser rudimentar – esses alunos são estipendiados, como bolseiros, pela Reitoria da Universidade. Ensino e subsistência assegurados, e aproveitadas pràticamente as suas capacidades artísticas. Não é mesmo da gente cair p’rá banda? (pp. 268- 269).

O texto mais tardio sobre a vida musical brasileira, também publicado em Disto e Daquilo, foi um relato do compositor sobre sua participação no júri do I Festival de Música da Guanabara, ocorrido em 1969. Este artigo, a fonte mais substancial de que disponho sobre o evento, será abordado no item 3.6.

3.2.2 – Diálogos e polêmicas

No ano de 1951, Mozart de Araújo realizou por correspondência uma entrevista com Fernando Lopes-Graça, publicada no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, na Gazeta Musical. Intitulada Conversa com Fernando Lopes-Graça, continha questões sobre os rumos da música contemporânea, o nacionalismo musical e o dodecafonismo. Dada a similaridade com muitos temas tratados no Inquérito aos Compositores Brasileiros (1958), abordarei os dois textos em diálogo no item 3.2.2.5. Uma análise aprofundada deste texto pode ser encontrada no artigo Conversa com Fernando Lopes-Graça: trânsitos culturais na música brasileira (2013), de Ana Cláudia de Assis.

3.2.2.1 – Nacionalismo e cosmopolitismo: A repercussão da Carta Aberta na Gazeta e as polêmicas com Koellreutter e Pierre Boulez

Em fevereiro de 1951, a Gazeta Musical e de todas as Artes publicou excertos da Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, texto redigido pelo compositor Mozart Camargo Guarnieri e publicado em dezembro do ano anterior em vários jornais brasileiros. Guarnieri, ligado ao nacionalismo musical, alertava os jovens compositores para o que considerava os perigos do dodecafonismo, “corrente formalista que leva à degenerescência do carácter nacional de nossa música”. (CAMARGO GUARNIERI, 1951, p. 8). Lopes-Graça justifica a importância da publicação da carta “em vista do interesse e da actualidade do assunto debatido e do vigor polémico com que o autor expõe a sua opinião.” Lopes-Graça destaca que o dodecafonismo ainda não havia chegado a Portugal, não sendo o debate aplicável ao 103 país70. Deve-se observar, contudo, que os portugueses tinham contato com a técnica desde o início da década de 3071. Publicou-se também na Gazeta, por intermédio de Lopes-Graça, o artigo Que “ismo” é esse, Koellreutter?, dura crítica de Guerra-Peixe ao antigo mestre, publicada originalmente na revista brasileira Fundamentos em 1953, em que são mencionados plágios de excertos do prefácio de Mário de Andrade à biografia de Shostakovich, de um artigo do compositor argentino Juan Carlos Paz e de um grande número de trechos do livro Música e músicos Modernos de Lopes-Graça em textos do professor alemão. No caso de Lopes-Graça, tratava-se de plágios da estrutura textual e argumentativa de críticas a diversos artistas europeus adaptadas por Koellreutter a obras e artistas brasileiros. Em resposta a esse polêmico texto, Lopes-Graça publicou a Carta Aberta ao compositor brasileiro Guerra-Peixe72, em que expõe brevemente sua insatisfação com a apropriação indevida e descontextualizada de seus argumentos e chama a atenção para o que considera os problemas mais graves: a ignorância mútua acerca da música dos dois países e a luta por uma música “verdadeiramente brasileira”. Transcrevo a seguir a fala do compositor, em que se pode notar sua familiaridade com a produção intelectual brasileira, não só musical, mas literária e das ciências sociais:

Eu não posso deixar de admirar o vosso esforço no sentido de dar à música brasileira uma altura e uma significação que a emparelhem com a vossa alta e significativa literatura – e creio que estais em vias de o conseguir73. Não

70 Em seu artigo O aparecimento da vanguarda em Portugal: para um estudo da música portuguesa entre 1958 e 1965 (2003), Francisco Monteiro aponta que as primeiras peças portuguesas dodecafônicas, de autoria de Álvaro Cassuto e Jorge Peixinho, seriam compostas apenas em 1959. Mais recentemente, Joana Moreira, em sua dissertação de mestrado (2011) sobre a vida e obra de Gabriel Morais de Sousa (1927-1956) - que, por sinal, foi aluno particular de Lopes-Graça - apresenta a sua Pequena Suíte para piano [sem data], como a primeira obra portuguesa a utilizar a técnica. De qualquer forma, considerando-se a composição dodecafônica por músicos portugueses, confirma-se a observação de Lopes-Graça. 71 Segundo Teresa Cascudo (2003, p. 275), o próprio Lopes-Graça teria tido contato com obras de Schoenberg – nem todas dodecafônicas – durante seus estudos superiores no Conservatório Nacional, através de seu professor Luís de Freitas Branco e nos concertos da Divulgação Musical, organizados por Ema Fonseca da Câmara Reis. Num desses concertos, o compositor teria proferido uma conferência sobre as consequências do dodecafonismo na composição, ilustrada com obras de Schoenberg por ele tocadas ao piano. Cascudo indica que, seguindo o conselho de Freitas Branco, Lopes-Graça teria até mesmo cogitado estudar com o compositor austríaco. A autora afirma ainda ter encontrado, em sua coleção de partituras, um exemplar da Klavierstucke op. 33a (dodecafônica) e dos Gurrelieder (tonal) e que Lopes-Graça afirmava ter-lhe sido enviada esta última pelo próprio compositor. 72 Esta carta foi republicada na coletânea Um artista intervém/Cartas com alguma moral (1974) 73 Sobre a adoção da tradição literária como parâmetro no argumento da ausência e necessidade de uma tradição musical, ver o capítulo A história como tradição segundo Lopes-Graça, do livro A tradição como problema na obra do compositor Fernando Lopes-Graça: um estudo no contexto português, de Teresa Cascudo. Sevilha: Editorial Doble J, 2010. O referido tema também é tratado em um artigo da mesma autora: Que fazer sem um

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estranhe o reticente da expressão, que se explica pelo facto de, na realidade, nós aqui em Portugal conhecermos incomparavelmente menos da vossa música do que da vossa literatura. Os vossos romancistas, os vossos poetas, os vossos ensaístas – um Graciliano Ramos, um Manuel Bandeira, uma Cecília Meirelles, um Mário de Andrade, um Gilberto Freyre, para não citar tantos outros – são-nos familiares; dos vossos músicos, só Villa-Lobos se tornou ùltimamente mais conhecido do público, graças às suas frequentes passagens por Lisboa e aos seus concertos sinfónicos, onde aliás nem sempre revelou o melhor de si. O pior é que, no fundo, o grande público português segue julgando que a música brasileira é o samba e a modinha, como o grande público brasileiro segue naturalmente julgando que a música portuguesa é o fado e a canção revisteira.... Que haveria a fazer para acabar com este deplorável equívoco? Por certo, organizar um intercâmbio efectivo e liberto de compromissos que não fossem os da verdadeira cultura, a fim de dar a conhecer a portugueses a produção séria brasileira e a brasileiros a produção séria portuguesa – em ambos os casos o que de melhor e mais definidor temos, coisa que quanto a vós se me afigura fácil e quanto a nós um tanto mais problemática, mas não irremediàvelmente desesperadora. [...] A questão das apropriações literárias do Koellreutter é secundária. O que mais importa é a vossa denonada luta por uma música verdadeiramente brasileira, uma música que vos identifique artìsticamente com o vosso povo e com as coordenadas vivas da vossa cultura; e o que importaria era nós, portugueses e brasileiros, com os nossos traços étnicos e culturais comuns, conhecermo-nos melhor musicalmente. (LOPES-GRAÇA, 1953, p. 107). Ironicamente, o contato inicial entre Lopes-Graça e Guerra-Peixe foi intermediado por Koellreutter. Em sua primeira carta a Lopes-Graça, datada de 6 de dezembro de 1947, Guerra-Peixe diz que foi o seu então professor quem lhe deu seu endereço para que lhe enviasse algumas de suas composições.74 Ana Cláudia de Assis (2016) observa que Rossini Camargo Guarnieri havia publicado no ano anterior um texto em que também denunciava plágios de Koellreutter e que possivelmente teria encorajado Guerra-Peixe a levar sua crítica a público. A autora interpreta Que “ismo” é esse? como uma tentativa de Guerra-Peixe “fazer justiça consigo mesmo e com seu passado dodecafônico” (p. 167) e de aproximar-se mais de Lopes-Graça, tornado, aos olhos do jovem músico, pela semelhança de pensamento com o já falecido Mário de Andrade, uma promissora figura tutelar. Outro fator que Assis leva em consideração é uma possível campanha para a imigração de Lopes-Graça, manifesta na sua correspondência com amigos brasileiros no início da década de 50, e numa carta de Guerra-Peixe a Curt Lange verificando a possibilidade de conseguir trabalho para o amigo no Uruguai.

Camões músico? Fernando Lopes-Graça e o problema da tradição da música portuguesa. Revista Portuguesa de Musicologia, 6, Lisboa, 1996, pp. 127 -139. 74 Tratava-se, na verdade, do endereço da loja de discos e instrumentos musicais Valentim de Carvalho, localizada à Rua Nova do Almada, no Chiado. 105

Um texto em que se pode notar a ressonância da publicação da Carta Aberta em Portugal75 é a entrevista realizada por Manuel Dias da Fonseca a Pierre Boulez, então com apenas 28 anos. Acompanhava a reportagem uma crítica de Lopes-Graça a alguns argumentos expostos pelo jovem compositor francês, numa tentativa de apontar a diferença entre as visões da equipe da revista e de Fonseca, colaborador independente. Num discurso arrebatado e um tanto agressivo, Boulez afirma a evolução para o pensamento serial como fruto de uma necessidade histórica e chama aos críticos do dodecafonismo “imbecis que se servem de sofismas”, “estúpidos que nada assimilaram das recentes descobertas” e cuja mediocridade seria encoberta por pretextos políticos. Enfatiza o internacionalismo na História da música da Europa Ocidental, apontando o folclore como há muito tempo “degenerado” e como “fictícia” qualquer tentativa de seu restabelecimento. Rebate a crítica de que a música serial não atingiria o grande público: “Recentemente, na Alemanha, no Festival de Colónia, a obra dodecafónica dum jovem alemão, Stockhausen, dirigida por Scherchen, foi bisada com entusiasmo por uma sala cheia” (p. 175). O comentário de Lopes-Graça apresenta seis sofismas que, em sua visão, estariam presentes no discurso de Boulez. O primeiro seria a confusão entre técnica e linguagem; o segundo, a atribuição à organização serial da mesma importância histórica que a passagem da monodia para a polifonia; o terceiro seria a confusão do conceito de escolástica com o de academismo. Em sua visão, os processos que sub- estruturam os estilos musicais seriam fruto de uma necessidade histórica, de um desenvolvimento de certa forma orgânico, sancionado e provado por uma praxis (escolástica), não estabelecidos aprioristicamente (academismo). O quarto sofisma seria a afirmação da ausência de tradição musical e degenerescência do folclore no oeste europeu. O quinto sofisma, confusão de cosmopolitismo (a utilização “de uma linguagem internacional (afirmação já de si discutível)” (p. 176) com universalismo (alcance internacional da mensagem da obra), constitui uma crítica recorrente no discurso de Lopes-Graça. O sexto sofisma, por fim, seria a grosseira e covarde atribuição de racismo e mediocridade aos críticos do dodecafonismo.

75 Há inclusive a seguinte nota de rodapé, de autoria do entrevistador: “As afirmações dum Guarnieri ao fazer corresponder o dodecafonismo ao abstraccionismo na pintura, e ao charlatanismo na ciência, são do mais ridículo que é possível conceber-se”.

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Fonseca realizou em 1955 uma entrevista a Karlheinz Stockhausen, em que este também jovem compositor se manifestou em tom bem menos polêmico, mais de divulgação que de crítica ou defesa.

3.2.2.3 – Conversa com Camargo Guarnieri

Durante uma rápida passagem de Mozart Camargo Guarnieri por Lisboa, Lopes-Graça e João José Cochofel foram ao seu encontro no aeroporto e ali realizaram com o compositor uma breve entrevista, publicada em março de 1958 na Gazeta. As questões versavam sobre as relações musicais luso-brasileiras, a música contemporânea brasileira e a educação musical. Do primeiro tópico, os leitores portugueses foram informados de que Lopes-Graça era mais conhecido no além- Atlântico como escritor que como compositor e que Guarnieri era tocado em Portugal, embora bem menos que Villa-Lobos (este ainda assim, pouco conhecido). O entrevistado revelou-se aliviado pela falta de experiências no Brasil com a música concreta, a seu ver obra de engenheiros e prova de impotência criadora. Sobre o dodecafonismo, destaca o abandono da técnica por Guerra-Peixe, Santoro e Catunda, afirmando que “não chegou a pegar” por causa de sua Carta Aberta. Destaca o esforço do então ministro da Educação, Clóvis Salgado, de quem era assessor, para a inclusão da música no currículo da escola primária. Cochofel e Lopes-Graça observaram que em Portugal nada ainda havia de semelhante a esse respeito.

Figura 10: Da esquerda para a direita: João José Cochofel, Camargo Guarnieri e Fernando Lopes-Graça. Esta foto aparece no artigo da Conversa e provavelmente foi tirada por ocasião da entrevista

A abordagem e as opiniões manifestas nesta entrevista assemelham-se muito às presentes no Inquérito aos Compositores Brasileiros, próximo item a ser apresentado. 107

3.2.2.4 - Mostrando a casa ao visitante: a visão de seis compositores sobre a música no Brasil

Por ocasião da sua visita ao Brasil, Lopes-Graça realizou uma entrevista com seis compositores, texto que foi publicado em cinco partes, entre outubro de 1958 e março de 1959, na Gazeta Musical, sob o título Inquérito aos compositores brasileiros76. Ricardo Tacuchian (2004, p. 16) destaca esta entrevista como representativa de um “corte epistemológico do pensamento criativo brasileiro” no período. Embora não tenha sido esta a ordem da publicação das entrevistas na Gazeta, podemos relacionar os artistas entrevistados a três “gerações” distintas, não em termos de idade, mas de formação e opções estéticas. À primeira pertenceria Heitor Villa-Lobos (1887-1959), esquivo a escolas e rótulos e que se sentia mais à vontade compondo que falando de sua música. Os representantes da segunda geração seriam Francisco Mignone (1897- 1986) e Camargo Guarnieri (1907-1993), adeptos de um nacionalismo fortemente influenciado por Mário de Andrade. O artista português destaca o papel deste pensador no desenvolvimento do que chama o “brasileirismo essencial” de Mignone.77 Louva o fato de Guarnieri não se deixar “resvalar na sedução de um nacionalismo folclorizante, pitoresco e mais ou menos rapsódico”. Citando Luiz Heitor Correa de Azevedo, ressalta a “transfiguração da música brasileira” em sua produção, referindo- se à incorporação de elementos e processos da música folclórica à sua elaborada e esmerada escrita. Graça define Guarnieri, o “lúcido construtor das riquezas descobertas” e Villa-Lobos, o “heróico desbravador das terras virgens” (p. 223) como opostos complementares e fundamentais para a projeção mundial da música do Brasil. A terceira “geração” seria a dos compositores cuja produção não se vinculava totalmente ao nacionalismo musical. O gaúcho Luiz78 Cosme (1908-1965), é retratado como artista inquieto e sagaz, atento ao fenômeno sonoro contemporâneo e aberto às mais diversas experimentações técnicas. Graça o descreve como um dos raros casos na música brasileira em que o compositor se desdobra nas atividades de crítico

76 A entrevista foi republicada em 1984, em sua coletânea de textos Opúsculos 2. 77 Termo que nos remete ao seu conceito de “nacionalismo essencial”, apresentado no capítulo 2 desta tese. Uma definição do próprio Lopes-Graça encontra-se em seu livro Introdução à música moderna (1942). 78 Em algumas fontes, o primeiro nome do compositor é grafado com S (caso do Inquérito) e em outras com Z. Optei por manter esta última, presente nas obras literárias do compositor gaúcho.

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e ensaísta – funções às quais ele próprio também muito se dedicou. Os dois outros, César Guerra-Peixe (1914-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989), antigos discípulos do alemão Hans-Joachim Koellreutter, haviam rompido com o Grupo Música Viva e buscavam conciliar inovação e experimentação a uma escrita que refletisse a sonoridade nacional. Do primeiro, Lopes-Graça diz ser o único exemplo brasileiro de compositor-folclorista, aplicando seus conhecimentos de músico ao estudo disciplinado do folclore, trazendo-o à sua música como “elemento estruturador de uma arte individualizada”. De Santoro, o mais novo, por muito tempo considerado “o benjamim festejado da música brasileira”, diz ter dividido opiniões – “nem sempre num movimento puramente crítico” - quando de sua adesão ao nacionalismo progressista. O autor demonstra, em seu texto, amplo conhecimento da produção dos entrevistados, a cujas obras teve acesso por meio de partituras e gravações. Promoveu a execução de vinte delas em Portugal – seis em primeira audição portuguesa -, num total de sete concertos, realizados entre os anos de 1944 e 1960, através da sociedade Sonata, sobre os quais falaremos em mais detalhes no item 3.3. (CASCUDO, 1999, pp. 267-269, ASSIS, 2013b, p. 2). Dentre os entrevistados, apenas Luiz Cosme não teve obras executadas nos referidos concertos. Um esforço no sentido de estreitar as relações musicais luso-brasileiras foi a entrevista ao compositor realizada por Mozart de Araújo em 1951, intitulada Conversa com Fernando Lopes-Graça e brevemente comentada no item 3.2.2. Apresento, nos próximos parágrafos, uma análise do Inquérito, destacando os pontos mais presentes nos panoramas da situação musical brasileira apresentados pelos diferentes artistas e procurando relacioná-los aos muito coincidentes apontamentos de Lopes-Graça na Conversa com Mozart de Araújo, bem como aos argumentos presentes em outras interações com o compositor luso. A estrutura da entrevista é a mesma para todos os músicos. Logo de início, Lopes-Graça, colocando-se como colega dos entrevistados, propõe a seguinte questão: “Como compositor, posso perguntar-lhe se tem algum credo estético e se quer confessá-lo aos leitores de Gazeta Musical e de Todas as Artes?” Cláudio Santoro não acredita na dissociação entre estética e ideologia. Afirma, portanto, que sua obra tem forçosamente um princípio ideológico. Mignone também defende como pontos principais a acessibilidade e a comunicabilidade da música. Entretanto, alerta que se deve ter cuidado para não cair no excessivamente fácil, que tenderia ao vulgar, e para o risco de se escrever com excessiva preocupação 109

em agradar a crítica. Guerra – Peixe observa que o compositor não deve estar alheio às correntes estéticas e preocupações sociais de seu tempo. Para o compositor, a obra musical deve atuar como mensagem participante dos movimentos contemporâneos e refletir anseios da classe que o autor representa. Em ressonância com esse argumento, Camargo Guarnieri ressalta que o compositor é, antes de tudo, um ser social. Entendendo que a música universal seria a soma das músicas nacionais, defende o nacionalismo musical como única possibilidade de uma composição ser autêntica. O pensamento de Guarnieri reflete a influência do Ensaio sobre a música brasileira (1928), de seu mestre Mário de Andrade.

Se um artista brasileiro sente em si a força do gênio, que nem Beethoven e Dante sentiram, está claro que deve fazer música nacional. Porque como gênio saberá fatalmente encontrar os elementos essenciais da nacionalidade (Rameau, Weber, Wagner, Mussorgski). Terá, pois, um valor social enorme. Sem perder em nada o valor artístico porque não tem gênio por mais nacional (Rabelais, Goya, Whitman, Ocussai) que não seja do patrimônio universal. (ANDRADE, 1972, p. 4).

Tal visão coincide com a de Lopes-Graça apresentada na Conversa. O autor português destaca a distinção entre nacionalismo e chauvinismo, ressaltando a importância do estudo e incorporação das outras culturas, ponto que também está presente no texto andradeano: Está claro que o artista deve selecionar a documentação que vai lhe servir de estudo ou de base. Mas por outro lado não deve cair num exclusivismo reacionário que é pelo menos inútil. A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele. Não pela repulsa. (Idem, p. 7).

O compositor português diferencia também universalismo e cosmopolitismo, apontando esse último como um repúdio ao nacional que acaba por levar a uma “música assexuada ou pretensiosas locubrações acadêmicas”. Muito próxima da citação de Mário é o destaque conferido à neutralização do elemento nacional na música de determinados compositores, que passaram a ser considerados universais. O russo Mussorgsky ou o russo Prokofieff, o polaco Chopin ou o polaco Szymanowski, o checo Smétana ou o checo Martinú, o húngaro Bartok ou o húngaro Kodaly, o espanhol Albeniz ou o espanhol Falla, são tão universais e a sua música tão universal como o são as personalidades e a música dos mestres antigos clássicos ou românticos – um Janequin, um Monteverdi, um Rameau, um Bach, um Mozart, um Schumann, um Franck ou um Wagner, que nos habituamos, ou nos habituaram, a considerar sub speciae universalis, sem atentarmos em que eram, antes de mais nada, e profundamente, compositores italianos, franceses e alemães. (LOPES- GRAÇA, in ARAÚJO, 1952, p. 6).

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Villa-Lobos, em sua poética resposta, deixa perceber uma crítica irônica ao eurocentrismo na música de concerto. ” O meu credo estético é unicamente aproveitar os meus recursos técnicos artístico-musicais para ser útil à sensibilidade dos seres humanos, mesmo dos meios civilizados”. (LOPES-GRAÇA [1958], 1984, p. 198). Luiz Cosme centra seu credo em uma atuação social do compositor com vistas a acrescentar, por meio de seu trabalho artístico, algum contributo objetivo à realidade em que se insere, mas sem perder de vista o desenvolvimento de sua subjetividade criadora. O artista deve estar familiarizado com todas as escolas e técnicas possíveis e criar buscando a coerência e consistência, sem se prender rigidamente a determinada tradição. A segunda pergunta talvez seja a mais intimamente ligada ao cotidiano dos entrevistados: “Como encara a situação da música brasileira contemporânea, no que diz respeito às suas correntes e tendências e às reacções que estas provocam no público?” Camargo Guarnieri, destacando a condição de país jovem do Brasil, aponta, no uso da música popular como base, o caminho para uma música de concerto com características próprias. A meta é chegar de uma música “nacionalista” a uma música “Brasileira”, na qual o folclore esteja plenamente incorporado nos procedimentos e na linguagem composicional, a ponto de não ser percebido como um corpo estranho. Essa meta diz respeito à chamada terceira fase nacionalista teorizada por Mário de Andrade no Ensaio, a chamada “inconsciência nacional”. “Não pegamos numa música popular para a transcrever a nosso modo. Isolar as características do folclore e empregá-las, isso é o nacionalismo que eu entendo”, já dizia Guarnieri na entrevista a Lopes-Graça e João José Cochofel. Lopes-Graça, na Conversa, defende o mesmo processo:

A questão é sabermo-nos servir da nossa música popular apenas como uma fonte de ideias, como um método e uma disciplina para a consecução de uma linguagem e de um pensamento musicais autónomos, evitando cair no puro folclorismo, que nunca poderá constituir o ideal último de uma arte superior [...] (ARAÚJO, 1952, p. 7, grifos meus). Cláudio Santoro observa uma melhora na aceitação da música contemporânea nos últimos cinco anos. Para o autor, o que atrai o público é o conteúdo humano da obra, um significado mais profundo que ela possa conter. Mignone olha criticamente o autodidatismo dos compositores brasileiros como sinal da falta de uma escola brasileira de composição. Não vê avanços, tanto no que se 111

refere à aceitação da música contemporânea pelo público como à falta de diálogo entre os artistas das diferentes tendências estéticas. Contudo, tem esperanças de uma futura melhora desse quadro. Destaca a necessidade de um roteiro educacional para levar a música ao público. Villa Lobos ressalta a semelhança da situação da música contemporânea no país e na Europa. Guerra-Peixe, por sua vez, aponta a necessidade de experimentação e pesquisa, sobretudo de pesquisa folclórica, destacando a riqueza musical nordestina. Devido à sua vivência em Recife entre os anos de 1949 a 1952, onde trabalhou na Rádio Jornal do Comércio, teve oportunidade de pesquisar intensivamente as manifestações folclóricas da região. Chama a atenção para a necessidade de uso e pesquisa do modalismo de origem africana e critica o pouco aproveitamento da rítmica popular pelos compositores, que insistiriam em “fórmulas estereotipadas”. Não lhe agrada a combinação de influências do choro e da música modal, que aponta como praticada por muitos compositores brasileiros e que, a seu ver, resultaria num “hibridismo descabido. Define boa parte do público brasileiro de concertos como aburguesado e desinteressado em novas composições, o que nos remete a uma crítica ao que poucos anos mais tarde Theodor Adorno, em seu artigo Tipos de comportamento musical, denominaria “ouvinte de cultura ou consumidor cultural” (ADORNO, [1962] 2011). Guerra, assim como Adorno, observa que tais ouvintes se interessam mais no intérprete e em suas habilidades técnicas que na música. A crítica ao tratamento do intérprete como vedeta e ao virtuosismo exibicionista e estéril de muitos músicos também aparece no artigo Virtuosos, de Lopes-Graça. Digamos que há uma virtuosidade adjectiva e uma virtuosidade substantiva; aquela é a virtuosidade romântica, a virtuosidade dos virtuosos, numa palavra: o virtuosismo, que é a virtuosidade considerada não como meio, mas como fim; a outra é a virtuosidade, simplesmente, que consiste também, sem dúvida, na perícia técnica, mas já não existente por e para ela mesma, se não que posta ao serviço da obra e consubstancial a ela. A segunda é modesta e apaga-se ante a obra; a primeira é exibicionista e sobrepõe-se-lhe. Em geral, é esta espécie de virtuosidade que obtém o sufrágio do grande público dos concertos; mas quasi podemos dizer que, hoje, o virtuoso não satisfaz mais do que um certo gôsto pelo singular e pelo excepcional por parte da multidão, sempre em atraso sôbre a marcha viva do pensamento artístico. (LOPES- GRAÇA, 1941, p. 64). Contudo, Guerra-Peixe aponta esperançosamente algumas instituições brasileiras que se dedicam à divulgação da música contemporânea e à formação de novos músicos. Cita algumas sociedades de concertos, como a Sociedade Bartók, o papel do rádio e dos discos, o trabalho de Koellreutter com os Seminários de Música na

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Universidade da Bahia e a Escola de Música Santa Cecília, em sua cidade natal, Petrópolis, única instituição de ensino musical totalmente gratuito que conhecia, inclusive com um programa de empréstimo de livros e instrumentos aos estudantes mais necessitados. Luiz Cosme, de maneira geral, vê com otimismo a situação da música contemporânea no país, embora ainda sinta um certo conflito dos jovens compositores entre o nacionalismo que seguem e seu desejo enquanto criadores. “Quais os mestres por quem se sente devedor na formação da sua arte e da sua personalidade?” foi a terceira pergunta da entrevista. Johann Sebastian Bach é apontado como referência para Villa-Lobos e Cláudio Santoro e Igor Stravinsky para Villa e Luiz Cosme. Outros nomes aparecem: Guerra-Peixe cita Haydn, Beethoven, Bartók, Kachaturian e Gershwin. Villa-Lobos menciona Florent Schimitt, Mignone se diz basicamente influenciado por Debussy, Ravel e Richard Strauss. Cláudio Santoro destaca a aproximação com a obra de Brahms em seus estudos pessoais e, entre os modernos, a influência de Hindemith, Chostakovitch, Prokofieff e dos brasileiros Villa- Lobos e Guarnieri. Entre os mestres presenciais, o pai de Villa-Lobos foi a principal influência na sua formação musical. O compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter tem sua importância na formação de Guerra e Santoro devidamente reconhecida e destacada por seus antigos discípulos, mesmo estes tendo já deixado, à época, o Grupo Música Viva. Guerra-Peixe destaca ainda o papel de seu primeiro professor de composição, Newton Pádua. De maneira bem-humorada, assim descreve o legado de seus dois mestres: Na qualidade de candidato a.… compositor tive por professores Newton Pádua e H. J. Koellreutter. O primeiro me transmitiu a base clássica e a técnica de composição que hoje possuo; o segundo, algum conhecimento de estética e o gosto pela indagação. Aliás, depois disto, indaguei tanto que hoje me oponho ao seu catecismo... dodecafonizante. (LOPES-GRAÇA [1958], 1984, p. 210).

Cláudio Santoro destaca também seu professor de violino Edgardo Guerra e Nadia Boulanger, com quem estudou composição durante sua estada em Paris. Camargo Guarnieri se diz devedor das lições de composição do italiano radicado no Brasil Lamberto Baldi79 e de estética de Mário de Andrade, de quem foi discípulo por anos. A principal lição de Mário teria sido, segundo Guarnieri, o estímulo a contrariar

79 Há erros de grafia do nome do professor italiano no Inquérito. Ora aparece como Lambertini, ora como Lambert Baldi. 113

os cânones das escolas tradicionais de composição. Ao lado de tantos nomes, percebe-se que o folclore também é uma forte influência na obra de grande parte dos entrevistados. Entretanto, apenas Guerra-Peixe explicita essa fonte, destacando o folclore ibero-africano. À quarta questão, “Algumas influências extramusicais: literárias, filosóficas, plásticas, etc.?” Mignone e Guerra-Peixe responderam com o nome de Cândido Portinari. O primeiro afirma que a arte do pintor de Brodowski transmite-lhe um sentido rítmico, possivelmente relacionado à ideia de movimento em suas obras, muitas das quais retratam trabalhadores durante a realização de suas atividades. O compositor acrescenta ter sido tomado de grande empolgação pelas várias manifestações artísticas do movimento da Semana de Arte Moderna, que acompanhou em sua juventude. A figura de Mário de Andrade, mentor e amigo, também é lembrada. Além da pintura de Portinari, Guerra-Peixe menciona os textos do sociólogo Gilberto Freyre (embora faça ressalvas a seu “inacreditável apego ao feudalismo esclavagista”) e os romances de Jorge Amado e José Lins do Rego, autores que tinham como marca de seus trabalhos a crítica social.

Figura 11: Café, 1935, de Cândido Portinari

Villa-Lobos diz ter por única inspiração a natureza, em especial a do Brasil. Guarnieri e Santoro não especificam nenhuma referência. O primeiro afirma que é necessário que o artista encontre o “espírito do tempo”, fio que liga todas as artes. Santoro ressalta que o artista é um todo e, portanto, está sujeito, queira ou não, à influência de suas concepções filosóficas, literárias, plásticas, políticas, morais, etc.

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Luiz Cosme, por sua vez, disse inspirar-se no conceito de duração do filósofo francês Henri Bergson Para mim a duração é a substância própria da música e a sucessão não interrompida de momentos, sucessão que flui com uniformidade, isto é, a forma da nossa vida psíquica, tratando-se, nesse caso, de um devir orgânico, estranho ao espaço e refractário ao número, heterogeneidade pura. (p.218, grifo do autor)

Dadas as poucas referências a este filósofo nosso meio musical, o pensamento um tanto outsider de Cosme em relação aos demais entrevistados e sua resistência a tomadas radicais de posição, tomo a liberdade de trazer, neste momento mais um pequeno desvio do nosso tema central. Segundo Fernando Lewis de Mattos (2005), Luiz Cosme baseou seus conceitos estético-musicais na distinção entre duração subjetiva e objetiva, a partir do pensamento de Bergson relativo à diferenciação entre tempo e espaço. Para o filósofo, o espaço, tomado como a dimensão do real, é o ambiente matematicamente mensurável, homogêneo e descontínuo, onde as experiências podem ser repetidas. O tempo, heterogêneo, contínuo e irreversível, é a realidade interior. Cosme toma a duração objetiva como o som do ponto de vista acústico, mensurável, exterior, concreto, cujas relações podem ser repetidas e a duração subjetiva como a experiência perceptiva, irreversível e irrepetível. A forma musical, por sua natureza fluida, só é compreendida em sua totalidade quando é projetada pela consciência como memória. Ao mesmo tempo que absorve a experiência musical do passado, a consciência antecipa possibilidades de continuidade. É na “assimilação da exterioridade concreta na interioridade psicológica” (p. 100) que a música produz significados. Segundo Mattos (p. 93), a base na filosofia de Bergson em Cosme se faz sentir de forma profunda em seus processos de pensamento, através de seu frequente posicionamento entre dois polos opostos. O filósofo francês acreditava que colocar- se no intervalo entre dois termos de comparação era a forma mais adequada de analisar a relação entre ambos. Temos como exemplos desse procedimento em Cosme a definição do impulso criador como posicionado entre a condição subjetiva e os fatores objetivos determinados pelo contexto histórico-social, seu posicionamento pessoal no intervalo entre as duas principais posturas estéticas no Brasil de seu tempo – nacionalismo e universalismo, seu princípio de abertura a todas as técnicas e vertentes de composição e as relações que traça entre a música e as outras artes. 115

Mattos também percebe a influência bergsoniana em seus livros, nas comparações entre compositores aparentemente inconciliáveis temporal e esteticamente e, em sua abordagem histórica da música brasileira, entre elementos relativos à exterioridade do som e processos internos de seu entendimento, buscando compreender o desenvolvimento de uma “sensibilidade musical nacional”. Com relação à postura do compositor diante do nacionalismo dos discípulos de Mário e do universalismo que havia sido defendido pelo Grupo Música Viva, Mattos destaca seu maior interesse nas formulações teóricas de ordem abstrata, afastando-o do ideal de arte-ação presente em ambos os movimentos. Nas respostas à quinta questão, “Qual a sua posição em face das mais recentes correntes do pensamento e da técnica musical: dodecafonismo, serialismo, música concreta, música eletrônica, etc.?”, percebemos uma rejeição mais contundente às novas técnicas por parte dos compositores que não fizeram uso delas, muito embora alguns deles busquem minimizar essa rejeição em seu discurso ou evitem se posicionar. Villa Lobos diz não tomar nenhuma posição em relação às novas técnicas. Admira toda inovação em arte, mas reprova o que “foge às leis lógicas da humanidade”. Para Guarnieri, tratar som e ritmo em laboratório é desumanizar a arte. Mignone aponta a comunicabilidade como o maior requisito de toda manifestação musical, produzida a partir de qualquer técnica. Diz duvidar da música “que se queira impor por processos cerebrais ou artefeitos.” Guerra – Peixe teve muito contato, durante a sua formação, com a música dodecafônica, tendo até mesmo tentado, durante um bom tempo, a conciliação entre essa técnica e o uso de elementos da música nacional. Quanto à música eletrônica e concreta, o compositor apresenta bastante resistência, pois as considera demasiado artificiais e afastadas da natureza.

Acredito que os sentimentos do homem possam passar por alterações após séculos de evolução, mudando, igualmente, os estilos musicais. Mas seus princípios permanecerão vinculados à mesma base. Custa-me imaginar que no futuro as boas mães venham substituir os seus acalantos por máquinas que executem música concreta ou electrónica, junto ao berço de seu filho! A menos que o filho venha a ser feito por processo electrónico... (p.212). Luiz Cosme, conforme apontamos anteriormente, sempre buscou conciliar inovação e tradição. Utilizou dodecafonismo e serialismo em algumas composições, mas buscando uma atmosfera nacional e explorando possibilidades harmônicas mais consonantes, que oferecessem certa familiaridade aos acostumados com os sistemas tonal e modal. Segundo o autor, a escola expressionista de Schoenberg caminha para

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sua fixação80. Cláudio Santoro afirma não tomar partido de nenhuma técnica em particular. Utilizou várias, inclusive música eletrônica, e aconselha os jovens compositores a experimentar todas as possibilidades técnicas e estéticas na busca de um estilo pessoal. Critica fortemente o partidarismo de algumas escolas de composição, que, a seu ver, levaria a uma supervalorização da técnica em detrimento da arte. A última questão retoma o tema da recepção musical, agora buscando propostas. “Como é aceite a música moderna em geral no Brasil? A sua compreensão e difusão levantam problemas? Quais? Como pensa que eles poderiam ser solucionados?” Para Camargo Guarnieri, à semelhança de outros países, observa-se no Brasil, à medida que os movimentos musicais se sucedem, uma tensão entre corifeus do novo estilo e reacionários que o rejeitam. A reação do público conservador estaria, a seu ver, associada à falta de informação sobre as novas tendências. Aponta, antes de tudo, a necessidade de maior difusão musical, que forneceria ao público a base e o esclarecimento para formar sua opinião sobre o que ouve. Mignone retoma a questão do isolamento e falta de diálogo entre os grupos ligados às diferentes estéticas como o ponto mais prejudicial à recepção da música moderna e contemporânea no país. A seu ver o cerne da solução seria a formação do público jovem. É bastante crítico do sistema de educação musical, que considera obsoleto e pouco estimulante. Defende a educação musical desde a primeira infância, em todas as etapas com um sentido lúdico. Lamenta o isolamento, à época, das escolas de música e belas artes e sua ausência das cidades universitárias. A integração das escolas de arte aos campi seria um grande incentivo ao enriquecimento cultural da juventude81. Cláudio Santoro, por sua vez, reconhece no compositor a solução. Deve partir dele o esforço de buscar mais comunicabilidade através de sua música. O criador deve concentrar-se menos no impulso da especulação e nas inquietações individuais e buscar abordar questões mais gerais. “Não é o probleminha pessoal que

80 Cosme distinguia, em todos os períodos da História da Música, dois momentos estilísticos: o “romântico”, que se manifestaria no período de desenvolvimento das escolas de composição, e o “clássico”, momento de fixação de seus elementos característicos. 81 A integração das escolas de artes aos campi é hoje uma realidade em muitas universidades brasileiras, sobretudo nas mais jovens.

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interessa ao grande público, é o problema geral, é o penetrar nos grandes sentimentos humanistas que a cada dia nos oferece a vida. Criar é reviver.” (p. 222). Luís Cosme acredita que fatores além do valor da obra contribuem para sua maior divulgação. Compositores com uma personalidade mais “publicitária” e com uma rede maior de contatos teriam maior inserção no mercado e divulgação de sua obra. A falta de chance de alguns artistas, segundo o autor, teria deixado grandes obras desconhecidas do público. Retomando a crítica exposta na segunda questão, Guerra-Peixe aponta a preferência da elite conservadora pelo repertório clássico-romântico. Até a música de Wagner, segundo o autor, enfrentaria ainda muita resistência por parte do público brasileiro de concertos. A solução estaria em se olhar para um novo público. Destaca a necessidade de profissionais musicalmente capacitados na direção das organizações musicais e de execução de um repertório composto de obras de “substância estética”, em detrimento das compostas apenas com a preocupação de arte pela arte. A fim de difundir o hábito de ir a concertos, seria interessante realizar concertos sempre num mesmo horário, com programas bastante diversificados, ampla divulgação e instigante publicidade. A meta proposta pelo autor seria igualar o hábito de ir a concertos ao de ir ao estádio de futebol. O esporte, por sinal, foi um grande assunto nacional naquele ano, quando o Brasil foi campeão da Copa do Mundo, realizada na Suécia. Parece-me significativo o fato de, por exemplo, o espectador ir ao cinema para, em regra, assistir a um filme apenas uma vez; mas esse mesmo espectador, que não volta ao cinema e que não vai ao concerto, esforça-se por não perder uma partida de futebol, pois aqui o espectáculo é constantemente renovado pelas circunstâncias que criam os lances imprevistos. (p. 214) A formação dos professores de música, principalmente no que se refere à apreciação musical de vários estilos e períodos, também é uma grande bandeira do autor. Outra sugestão apresentada seria a promoção de concursos, incluindo, no repertório a ser interpretado, música moderna e contemporânea. Elogia o papel da rádio e dos discos na divulgação da produção artística mais recente82, observando mais uma vez que o público musicalmente mais atualizado não é o dos concertos. Repare-se como na discoteca daquele que frequenta os concertos habituais só se encontram, quase que exclusivamente, obras clássicas e românticas,

82 Embora não estivesse mais no ar à época da entrevista, o programa radiofônico Música Viva, produzido por Koellreutter e seus discípulos (entre os quais estavam Guerra e Santoro) foi um importante instrumento de divulgação musical entre os anos 1944 e 1950. (KATER, 2001).

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ao passo que na discoteca de outras pessoas é quase regra se encontrarem somente obras modernas, muito embora às vezes acessíveis. Logo, a meu ver, não adianta entre nós teimar em programar obras modernas para um público que não sabe senti-las e receia ouvi-las sem as prevenções de praxe. Se no passado os estilos mudaram quando mudou o público (lembro Palestrina, Bach, Beethoven, etc.), me parece que hoje deva ser o inverso, porque a música prosseguiu na sua evolução natural, enquanto o público de concerto – sem forças para vencer preferências burguesas já superadas – dorme ainda embalado pelas doces imagens que a literatura criou, ao supervalorizar apenas a criação musical até um certo momento histórico. Como os momentos históricos das artes e das outras coisas se inter- relacionam, é possível que aqui esteja uma explicação do que ora sucede com a música moderna... (p.215). A formação de público também é a maior preocupação de Villa-Lobos. Olhando criticamente o tecnicismo do ensino musical superior, afirma que “seria preferível fecharem-se algumas fábricas de artistas e abrirem-se escolas públicas de apreciação e discernimento musicais, com o fim de formar o público consciente.” (p.199). Observa-se que todos os entrevistados se ligavam, de alguma forma, a uma estética baseada na pesquisa e aproveitamento da música tradicional/popular. Em seu artigo Fernando Lopes-Graça e os compositores brasileiros (2003), Teresa Cascudo aponta a necessidade de se reconhecer a seleção, pela imprensa musical brasileira e portuguesa, das vozes a serem ouvidas, motivada pela defesa de interesses profissionais. Ainda que se considere discutível o caráter de controle das práticas dos periódicos, as observações de Cascudo levam a indagar onde estavam e o que faziam os músicos brasileiros que, no período, não se dedicavam à vertente nacionalista de composição. O texto do Inquérito não traz detalhes sobre seleção dos compositores que nele figuram. Lopes-Graça os chama, na introdução à segunda edição, o “escol da criação musical brasileira da época”, o que sugere a tomada da projeção nacional e internacional dos artistas como critério (1984, p. 195). Todavia, sem citar nomes, observa o não menosprezo de um ou outro artista com quem não lhe foi possível conversar. Salvador foi uma das paradas na tournée brasileira de Lopes-Graça, o que leva a questionar o motivo da não inclusão do professor na entrevista83. Teriam os dois se desencontrado? Seria o fato de ele não ser um brasileiro nativo?

83 O único exemplar de correspondência entre os dois músicos encontrado no acervo documental do compositor disponível no MMP é um bilhete postal enviado de Paris em 29 de dezembro de 1948, em que o músico alemão expressa o desejo de conhecer Lopes-Graça em sua passagem por Lisboa. Na correspondência com outras personalidades e na bibliografia consultada não encontrei, até o momento, referências à inclusão ou exclusão de Koellreutter da entrevista ou à sua presença no recital e conferências de Lopes-Graça na capital baiana. 119

É difícil apontar, nesse período, outros compositores brasileiros que não fizessem, de uma forma ou de outra, uso de música nacional, mesmo entre os antigos discípulos de Koellreutter. Edino Krieger, por exemplo, desde os estudos em Londres, em 1955, buscava abordar a temática brasileira em suas obras. (TACUCHIAN, 2006). Eunice Katunda já havia se desligado do Grupo Música Viva em 1950, durante um debate público realizado no Museu de Arte de São Paulo, motivada, segundo Carlos Kater (1991), por sua ligação com o Partido Comunista. Deve-se observar, entretanto, que a música brasileira e o folclore, a cuja pesquisa passaria a se dedicar mais intensamente, já faziam parte de sua obra mesmo compondo sob orientação de Koellreutter, como é o caso da cantata Negrinho do Pastoreio, de fatura modal, que lhe garantiu o Prêmio Música Viva de Jovens Compositores em 1946 e elogios do compositor norte-americano Aaron Copland, que assistiu à estreia. Esse fato põe em xeque o radicalismo atribuído a Koellreutter por seus ex-discípulos. As primeiras apresentações públicas de obras dos integrantes do que viria a ser o movimento Música Nova, marcado pelo experimentalismo e fortemente influenciado pelo Música Viva e pelos cursos de verão de Darmstadt, só se dariam a partir do início dos anos 60. Considerando-se esses dados, pode-se atribuir a falta de divergências estéticas contundentes entre os entrevistados mais a um hiato geracional que propriamente a um partidarismo estético-ideológico. Na introdução à republicação do Inquérito em seu livro Opúsculos 2 (1984), Lopes-Graça observa ser “natural que as questões debatidas tenham perdido de então para cá algo da sua pertinência” (p. 195). Considerando-se os principais problemas levantados - formação de público de concertos, [existência e] eficiência do sistema de educação musical, divulgação da música moderna e contemporânea e comunicabilidade da arte – deve-se discordar e reconhecer que, infelizmente, sua atualidade nem mesmo nos causa surpresa.

3.3 - A música brasileira nos concertos da Sonata

Conforme comentamos no capítulo 2 e brevemente no item anterior, Lopes- Graça promoveu, através da Sonata - sociedade de concertos dedicada à divulgação de música contemporânea, de cuja fundação e direção participou - apresentações de obras de diversos compositores brasileiros em Portugal. Teresa Cascudo (1999, pp. 267-269) fez um levantamento de todas essas audições, que listou de maneira

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bastante organizada, por ordem cronológica e por autores, numa tabela que reproduzo a seguir. Os asteriscos representam obras em primeira audição portuguesa.

Tabela 2: Composições de brasileiros apresentadas pela Sonata

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CASCUDO, 1999, pp. 267-269.

Podemos observar uma maioria de canções e a presença de formações pouco usuais, como violino solo (Sonata de Cláudio Santoro) e voz, flauta, clarinete e violoncelo (Poema da criança e sua mamã, de Villa-Lobos). A instrumentação da Sonata n° 4, de Camargo Guarnieri, posta em dúvida por Cascudo, é violino e piano. A autora apenas se esqueceu de mencionar em sua tabela a apresentação de três canções de Oscar Lorenzo Fernandez, no dia 2 de abril de 1946: Essa nega Fulô (poesia de Jorge de Lima), Canção do mar (poesia de Manuel Bandeira) e Canção da Fonte (poesia do próprio compositor). Lopes-Graça atuava frequentemente como pianista nesses concertos. Entre os compositores apresentados juntamente com os brasileiros estavam tanto nomes hoje famosos quanto pouco conhecidos: os franceses Germaine Tailleferre (1892-1983) Paul Dukas (1865-1935), Albert Roussel (1869-1937), Maurice Ravel (1875-1937), Olivier Messiaen (1908-1992), o suíço Arthur Honegger (1892-1955), o alemão Paul Hindemith (1895-1963), o catalão Frederico Mompou (1893-1987), o húngaro Pál Kadosa (1903-1983), o norueguês Harald Sæverud (1897-1992), o russo Sergei Prokofieff (1891-1953), o holandês Henk Badings (1907-1987), o islandês Jón 123

Leifs (1899-1968), e o polonês Karol Szymanowski (1882-1937), além do próprio Lopes-Graça. Os programas frequentemente continham notas biográficas dos compositores e, por vezes, uma pequena contextualização das obras.

Figura 12: Programa da Sonata, de 26 de abril de 1948, com obras de Villa-Lobos, Guerra-Peixe e Mignone

Em sua primeira carta a Lopes-Graça, de 6 de dezembro de 1947, Guerra- Peixe anuncia ao compositor o envio de seu endereço a Curt Lange, que provavelmente enviar-lhe-ia partituras de compositores latino-americanos, o que de fato ocorreu. O músico português recebeu, segundo Ana Cláudia de Assis (2016, p.149), o tomo VI do Boletim latino-americano de música, publicado em abril de 1946. O volume era integralmente dedicado à música brasileira e continha um suplemento musical com 19 partituras. Reproduzo a seguir a tabela com indicação das peças, elaborada por Ana Cláudia de Assis e Rafael Felício Silva Godoi (2016, p. 6), assinalando as obras efetivamente apresentadas pela Sonata.

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Tabela 3: Obras do VI Boletim apresentadas pela Sonata

adaptação da tabela de ASSIS e GODOI, 2016. p. 6.

É interessante observar que muitas destas obras foram pouco apresentadas e são hoje pouco conhecidas do público brasileiro, como o Poema da criança e sua mamã, de Villa-Lobos e Urutau, o pássaro fantástico, de Mignone. Há obras cuja estreia mundial, e não apenas portuguesa, deu-se nesses concertos, como as Trovas Capixabas e as Trovas Alagoanas, de Guerra-Peixe. Em carta de 22 de abril de 1957, o autor revela seu agradecimento, permeado por uma crítica ao descaso do meio musical brasileiro.

Tenho em meu poder o programa da SONATA, de quando foram cantadas as “Trovas Capixabas” e “Trovas Alagoanas”, bem como o seu atencioso comentário sôbre as ditas obras, publicado na GAZETA MUSICAL. Não tenho palavras para agradecer-lhe a atenção. Mòrmente se se tem em conta que até os dias que correm ninguém, entre nós, registrou, em jornais ou revistas, o aparecimento dessas publicações, assim como ainda não foram cantadas – apesar da falta de música nova, de autor brasileiro. Digo, música nova para canto. Sua nota veio, portanto, me confortar bastante.

Conforme discutiremos nos capítulos 4 e 6, é possível notar similaridades entre algumas das obras apresentadas e composições de temática brasileira de Lopes-Graça, o que leva a conjeturar o seu caráter de referência. É o caso da relação entre a canção Xangô, de Villa-Lobos, com a canção homônima das Sete Canções 125

Populares Brasileiras (1954) e das Bachianas Brasileiras n° 6, do mesmo autor, para flauta e fagote, com o quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos (1970).

3.4 – Dedicatórias

Como parte de sua pesquisa de pós-doutorado, Ricardo Tacuchian realizou um levantamento de obras de Lopes-Graça dedicadas a amigos brasileiros. A primeira delas é a Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho (1953), para piano solo, cuja primeira versão foi dedicada a Anna Stella Schic. Herculana de Carvalho era mãe de Guilherme de Carvalho, membro do Comitê Central do Partido Comunista Português, que mantinha contato com o amigo Lopes-Graça através dos pais durante seu desterro e internação no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Na Elegia é citada a canção heroica Jornada, de Lopes-Graça e José Gomes Ferreira, evocando a luta que os unia e causava sofrimento à família. (VIEIRA DE CARVALHO, 2006, p. 161). A mesma Heroica também será citada três décadas mais tarde em Morto José Gomes Ferreira, das Músicas Fúnebres, também para piano solo. Tacuchian (2004) encontrou no Museu da Música Portuguesa um bilhete de Anna Stella Schic ao compositor, datado de 4 de maio de 1954, agradecendo a dedicatória. Não se sabe, contudo, se a pianista chegou a apresentar a peça. A Balada de uma Heroína (1953), sobre um poema de José Gomes Ferreira, para coro misto a cappella, foi dedicada ao Madrigal Renascentista de Belo Horizonte e apresentada por este grupo no dia 14 de julho de 1958, sob a regência de Carlos Eduardo Prates, na reitoria da Universidade da Bahia, cerca de duas semanas antes da chegada de Lopes-Graça ao Brasil. Viagens na Minha Terra, para piano solo, foi composta entre 1953 e 1954, em comemoração ao centenário de morte do escritor Almeida Garrett, e dedicada ao pianista brasileiro Arnaldo Estrela, grande amigo e um dos mais frequentes correspondentes de Lopes-Graça. Em carta de junho de 1953, Estrela agradece a dedicatória e elogia as Viagens. “Achei-as ‘saborosas’. Fazem-me desejar ainda mais conhecer os Concertos”. Não encontrei até o momento registros de sua apresentação ou gravação pelo dedicatário. As Viagens foram posteriormente orquestradas pelo próprio compositor entre 1969 e 1970. A dedicatória seguinte em ordem cronológica é a das Sete Canções Populares Brasileiras, para voz e piano, à cantora Vera Janacopoulos. Também não

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temos registros de apresentação da obra pela dedicatária. Temos apenas notícia do seu agradecimento, numa carta datada de 26 de setembro de 1954.

Recebi suas músicas ante-hontem com a sua amável carta. Agradeço lhe muito ter pensado em mim para dedicar me [sic] suas bonitas canções brasileiras! Não pude ainda ver-les [sic] com piano, mas achei muito interessante a leitura. As canções francesas [Six vielles chansons françaises] são cantadas pelas minhas alunas em concertos, em rádio também. As Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras, para coro misto a cappella, foram dedicadas à memória de Mário de Andrade. As Sete e as Dezassete Canções serão analisadas em detalhes e a relação entre o pensamento nacionalista de Lopes-Graça e de Mário será brevemente comentada no capítulo 4. Numa carta de 16 de julho de 1965, Guerra-Peixe anuncia a Lopes-Graça a fundação do Quarteto Sul-Americano, onde atuava como violinista. O objetivo do grupo era a divulgação de música contemporânea, latino-americana e de obras antigas para esta formação pouco conhecidas do grande público. Solicita ao amigo o envio de obras “para quarteto de cordas (2 violinos, viola e celo [sic]), ou quarteto com piano (trio de cordas e piano) ou quinteto com piano, ou com violão, ou outro instrumento, ou, ainda não exatamente “quarteto”, mas qualquer obra para o referido conjunto”, bem como a extensão desse pedido a outros compositores portugueses que estejam interessados. Na resposta, datada de 12 de agosto de 1965, Lopes-Graça informa que o único quarteto de que dispõe está com os direitos de execução em 1ª audição comprometidos por ter sido a obra vencedora do Prémio de Composição Príncipe Rainier III de Mónaco. Mas avisa que está compondo, expressamente para o conjunto do amigo, a Suíte Rústica n° 2, sobre melodias folclóricas portuguesas. Esta peça foi dedicada a Guerra-Peixe, que agradeceu comovido na carta seguinte, ressaltando a sua condição de “descendente de velho aldeão português”. O Quarteto de arcos n° 1 (1964), vencedor do prêmio em Mônaco, consta nos catálogos das obras de Lopes-Graça como “dedicado ao Quarteto de cordas do Rio de Janeiro”. Possivelmente trata-se de uma dedicatória posterior ao conjunto de Guerra-Peixe. Por dificuldades diversas (problemas de saúde de um dos membros, dificuldade em organizar os horários de ensaio, etc.) nenhuma das duas obras acabou por ser apresentada. Por fim, a abertura sinfônica Gabriela, Cravo e Canela, composta entre os anos de 1960 e 1963, e que será abordada em detalhes no capítulo 5, foi dedicada à 127

Academia Brasileira de Música, em agradecimento à sua eleição como membro correspondente, por voto unânime, em 1961 Também um compositor brasileiro homenageou Lopes-Graça em uma obra. Curiosamente, não foi um contemporâneo seu amigo, mas sim um músico de uma geração mais nova. A aproximação com a vida e obra de Lopes-Graça durante sua pesquisa de pós-doutorado motivou Ricardo Tacuchian, em 2006, ano das comemorações do centenário de nascimento do compositor, a prestar-lhe homenagem, por meio da composição In Memoriam a Lopes-Graça, também uma encomenda do pianista José Eduardo Martins, a quem a obra foi dedicada. Foi estreada por Martins durante o 24° Festival de Música em Leiria (Portugal), em 19 de junho de 2006, no auditório da Escola superior de Tecnologia e Gestão. (TACUCHIAN, 2010).

3.5 – A tournée brasileira de Lopes-Graça

3.5.1 – Preparativos

A consulta à correspondência de Lopes-Graça com os brasileiros revela que os esforços para sua vinda ao Brasil iniciaram-se exatamente dez anos antes de sua concretização. O documento mais antigo em que a questão é tratada é uma carta de Francisco Mignone, de 12 de maio de 1948:

À sua carta de Fevereiro não pude responder com a solicitude desejada por uma porção de motivos entre os quais: a cisão da Orquestra Sinfônica Brasileira, a extinção da Sociedade de Música de Câmera e as obras em andamento na Escola Nacional de Música. – Essas três entidades estão praticamente incapacitadas de tomar a si a tarefa de concluir, neste ano, qualquer coisa de realizável. Temos, portanto, que esperar que as coisas melhorem no próximo ano – o que lhe posso assegurar é que terei sempre presente o seu desejo de vir a esta capital para iniciar e estimular um intercâmbio mais profícuo e eficiente do que se tem feito até hoje. Seguiram-se anos de correspondência entre Lopes-Graça e os amigos brasileiros e destes entre si. Além de Mignone, estavam empenhados na causa Mozart de Araújo, César Guerra-Peixe, Arnaldo Estrela e Mozart Camargo Guarnieri. Este último foi o articulador efetivo de sua vinda, devido à sua posição em cargos políticos, inicialmente no Departamento de Cultura de São Paulo e posteriormente do Ministério da educação e Cultura, na condição de assessor de Clóvis Salgado. Nas conversas é cogitada a imigração de Lopes-Graça para o Brasil, especialmente após o ano de 1954, quando sua permissão para o ensino particular é

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cassada, o que torna bastante difícil seu sustento em Portugal. Assim se lamenta o compositor em carta a Guerra-Peixe:

Esta nova e violenta pressão sobre a minha pessoa leva-me a pensar em abandonar o país, mas para onde ir, com as dificuldades e a crise geral que se verifica em toda parte? O meu desejo (que, aliás, já vem de longe) seria ir até ao Brasil. Terei eu todavia aí possibilidades de trabalho? nada sei e a aventura pode, na realidade ser arriscada. Gostaria que me desse algumas informações a esse respeito. Seria fácil obter, por exemplo, um que outro recital e Conferências nas estações de rádio brasileiras? E seria tal coisa suficientemente compensadora para poder eu aguentar, mesmo modestamente, os primeiros embates com o meio? Como sabe, não possuo aí quaisquer relações oficiais ou oficiosas, e teria apenas que marchar com os meus próprios pés ou com a ajuda e interesse de amigos e camaradas. Tudo isto é muito sério e convinha-me, antes de decidir qualquer coisa, na realidade, estar de posse de algumas informações não digo já inteiramente tranquilizadoras, mas, pelo menos, não de todo pessimistas. Arnaldo Estrela aconselha-o a entrar em contato com Joanídia Sodré, então diretora da Escola Nacional de Música (hoje UFRJ). Um mês depois, dá-lhe a sugestão detalhada de um plano, contudo, bastante incerto.

Estamos agindo, mas não é fácil dar-te uma resposta concreta e urgente. Escrevi ao Camargo Guarnieri (em S. Paulo). Telefonou-me ontem. Custou muito a receber minha carta porque estava em férias. Interessou- se pelo caso, mas pede prazo para trabalhar. O caso, em linhas gerais, é este: - si pudéssemos arranjar a viagem paga (por isso escrevi ao C. Guarnieri pensando no 4º centenário de S. Paulo) e si tivesse algum pecúlio para “aguentar” cinco ou seis mêses, estou certo de que construirias uma situação no Brasil. Penso que terias alunos de harmonia, contraponto, composição. Creio que poderias colaborar em suplementos semanais de alguns jornais, sobre assuntos de estética, sobre música contemporânea e sobretudo portuguêsa. Quanto a concertos – Tu reges? Em caso afirmativo, vou ver si há possibilidades para apresentar tuas obras, ao lado talvez de outras contemporâneas. Falei com um amigo meu, com força na “Rádio Jornal do Brasil” e na “Rádio Ministério da Educação”. Há possibilidades para ti. Poderias fazer programas de música portuguêsa, inclusive folclórica, desde que trouxesses os discos. Poderias também redigir programas de discos, sobretudo de música contemporânea. Com o tempo, poderias estudar a obra de um compositor como o C. Guarnieri, por exemplo, o que te traria talvez apoios... Enfim, penso que há campo para fazeres muito. A questão é a viagem e sobretudo poderes “aguentar” os primeiros tempos. (grifos do autor) Guerra-Peixe não vê muitas possibilidades em São Paulo, cujas instituições musicais muito critica. Intercede pelo amigo junto a Curt Lange, verificando as possibilidades de trabalho no Uruguai. Em fevereiro de 1957, já assessor de Clóvis Salgado, Camargo Guarnieri convida Lopes-Graça para vir ao Brasil fazer concertos, conferências, o que desejar. Diz que o ministro aprovou o projeto com muito interesse. Fala também de Lia 129

Salgado, ótima cantora, esposa do ministro. Pouco mais de um ano depois, é apresentada a proposta oficial:

A proposta que sua Excelência me incumbe de lhe fazer é a seguinte: você realizaria no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte, uma conferência (ou palestra) sobre a música portuguesa; um recital de suas obras de câmera (com cantora ou pianista ou os dois), tambem, nas trës cidades mensionadas [sic] e um concerto sinfônico em homenagem a Portugal, com obras de outros compositores portugueses, sendo uma parte dedicada a suas obras. Todas as despesas de viagem e estada correräo por conta do Ministério. O cachet para todas as suas atividades será cr$ 100.000, 00 (cem mil cruzeiros) líquidos. Mozart de Araújo lembra o problema da necessidade de um cantor com domínio da prosódia portuguesa e consegue a permissão para que traga consigo um cantor, sendo a viagem de navio. Assim como Arnaldo Estrela, sugere que se aprofunde na obra de Guarnieri e fale sobre ela. Aparentemente, o objetivo era de que a mostra de seus conhecimentos sobre um nome da música brasileira não tão conhecido quanto Villa-Lobos desencadeasse um maior acolhimento pelo meio musical brasileiro, sem contar o do próprio Guarnieri, à altura com considerável influência política.

[...] seria interessante você fazer pela rádio do Ministério de Educação, uma ou duas palestras sobre a obra do Camargo com ilustrações ao vivo ou em discos. Meu objetivo é interessar você na música brasileira. Parece-me que assim o intercâmbio se torna mais orgânico e menos aparente, entre os nossos países, ou melhor, entre as nossas culturas. Guarnieri possue uma obra vasta, de alto teor estético e de grande significação nacional. Enfim, coloco o assunto como lembrete e é mesmo possível que ele tenha aflorado à minha lembrança como um pretexto para justificar a sua permanência mais prolongada no Brasil. (ARAÚJO, 1958). A partir de uma carta de Guerra-Peixe, tomamos conhecimento de um hiato de notícias do Brasil. Guerra, isolado dos demais articuladores por desentendimentos pessoais, não tem informações para o amigo. Em julho, Mozart de Araújo escreve-lhe informando a redução da verba aprovada e sugerindo sua vinda sozinho via aérea ou a divisão do cachê com o tenor António Saraiva, que o acompanharia na viagem. Lopes-Graça opta pela segunda alternativa. Em 15 de julho Lopes-Graça envia um telegrama a Araújo dizendo estar alarmado com a falta da ordem de embarque. Finalmente temos, em 30 de julho, um telegrama onde Lopes-Graça anuncia a sua chegada.

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3.5.2 – Atividades realizadas

Não param por aí os imprevistos na vinda de Lopes-Graça. Grande parte das atividades, inclusive alguns destinos, foram decididos em cima da hora. Se, por um lado, o visitante ficou encantado com a calorosa recepção do público e o afeto dos velhos e novos amigos brasileiros, a desorganização e o clima foram motivo de grande estranhamento. A primeira notícia do Brasil a que tive acesso na correspondência de Lopes-Graça é um postal do Rio enviado a João José Cochofel, onde o compositor se mostra impaciente com o andamento das atividades até então realizadas e já um pouco desmotivado com a vida musical da cidade.

Querido amigo: Isto é lindo, esta gente é boa, mas é tudo bastante desnorteante. Realizadas, por agora, apenas duas conferências. Recital em breve. Interêsse? Não sei dizer. cá, como lá, neste particular... Enfim, cá vamos, numa adaptação lenta e, de certo modo, psicologicamente difícil.

No dia 22, Lopes-Graça volta a escrever ao amigo em mais detalhes, mas o discurso infelizmente não está muito modificado, apesar de narrar com entusiasmo o afeto dos brasileiros, o encontro com Manuel Bandeira e a positiva recepção ao cantor António Saraiva. É interessante observar a crítica ao afastamento de membros da comunidade portuguesa, motivada, a seu ver, por suas convicções ideológicas.

Querido amigo, isto é muito diferente do que se imagina, numas coisas para melhor, noutras para pior. Surpreendente e alarmante ao mesmo tempo. As minhas coisas não têm corrido de forma ideal, não por falta de atenção desta gente, que é, de facto, amiga dos portugueses, mas por qualquer coisa que eles próprios ainda não conseguiram acertar dentro e fora de si. Às primeiras isto é desconcertante e eu creio que nunca me adaptaria, talvez, por já estar por de mais [sic] enquistado, agarrado a coisas que podem não ter tanta grandeza, tanta surpresa, tantas promessas, mas que são aquelas com que posso respirar [...]. Em todo caso, creio que a experiência de alguma coisa me valerá. Musicalmente, a vida do Rio é fraca, muito mais fraca do que a de Lisboa e parece-me que no seu seio se desenvolvem os mesmos ou piores conflitos do que os nossos. Ontem, numa “seleta” reunião em casa do Estrela (com Ministro e tudo), travei conhecimento com o Manuel Bandeira. Um encanto de pessoa, muito interessado pelas nossas coisas. Hoje almoço com o Embaixador de Portugal, velho amigo meu que não [receia?] “comprometer- se” assistindo às minhas funções. Domingo parto para Belo Horizonte. Regresso ao Rio, onde ainda tenho várias coisas a fazer e sigo para São Paulo, visitando ainda possivelmente Porto Alegre. Há uma forte dose de anarquia nesta programação, que não prevejo ainda como nem quando acabará. O Saraiva tem obtido verdadeiro êxito como intérprete das nossas canções populares.

Nenhum dos programas dos recitais brasileiros traz uma nota biográfica do tenor António Simões Saraiva, apenas alguns trazem sobre Lopes-Graça. Por meio de uma reportagem de um jornal angolano, por ocasião de uma tournée realizada em 131

1959, ficamos sabendo que o cantor nasceu em Lisboa em 1925 e, à época, dedicava- se à música como amador. Foi aluno de Berta Rosa Limpo, Maria Amélia Duarte de Almeida e Arminda Correia84. A reportagem destaca a qualidade de seu timbre e dicção da língua portuguesa. É citado um excerto de uma crítica de Caldeira Filho - provavelmente por ocasião de sua vinda ao Brasil – a cujo texto original não tive acesso: Ao prazer de ouvir a língua portuguesa na sua pronúncia autêntica, aliava-se aquele outro causado pela finura da sua maneira de cantar, em que a música e palavra se identificam na mesma unidade técnica e expressiva. Algumas das suas versões, de tão convincentes, pareciam as únicas verdadeiras para certos trechos. No dia 24, o Jornal do Brazil publicou uma crônica/crítica de Manuel Bandeira85 sobre o referido sarau realizado na casa do pianista Arnaldo Estrela e de sua esposa, a violinista Mariuccia Iacovino, no qual se apresentaram Lopes-Graça, António Saraiva, a soprano Lia Salgado, esposa de Clóvis Salgado, e Francisco Mignone ao piano86. Reproduzo alguns excertos desse documento no capítulo 6, onde é analisada a canção Desafio, sobre um poema de Bandeira. O poeta mostra-se encantado com o que ouviu. Informa Bandeira em seu texto: “Lopes Graça vai a São Paulo e a Minas, e só na volta é que o teremos em concertos de apresentação pública de sua música. Raro prazer nos espera, minha gente”. Tive também acesso ao programa de um recital em homenagem a Bandeira, realizado no Lagoinha Country Club, em que participam os mesmos músicos, além do poeta português Antonio Botto. Embora o programa não esteja datado, as informações disponíveis levam a crer que se realizou em seu retorno ao Rio. O nome de Mignone não é mencionado neste programa, ficando em dúvida se foi esquecido ou se Lia Salgado teria sido acompanhada por Lopes-Graça. Ainda neste mês, Lopes-Graça concedeu uma entrevista a Antônio Bulhões, da revista carioca Para Todos (sem data). Temos registro da realização de um recital de Lopes-Graça e António Saraiva exclusivamente com suas composições, na Cultura Artística de Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 30 de agosto.

84 Esta última, grande amiga e intérprete de Lopes-Graça, talvez tenha sido a responsável por os colocar em contato. 85 Republicada na Gazeta Musical. 86 Durante seu estágio pós-doutoral, Ana Cláudia de Assis teve a oportunidade de entrevistar o tenor António Saraiva e este evento foi por ele destacado, devido à grande atenção a ambos dispensada pelos convidados.

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É provável que tenha sido por estes dias sua visita a Ouro Preto, de que temos notícia por meio de um postal enviado ao escritor Manuel Mendes e sua esposa Berta (Bá), com saudações “da terra de Aleijadinho, de Tiradentes, de Gonzaga e de Marília87”. Foi possivelmente esse passeio que o incentivou a se dedicar à composição da Contemplação de Ouro Preto - sobre poemas do livro homônimo de Murilo Mendes (1901-1975) - para voz, clarinete, viola e violoncelo. A obra, infelizmente, ficou apenas em esboço. Tive acesso à partitura no Museu da Música Portuguesa, em Cascais, mas não tive permissão para a reproduzir. Devido ao caráter fragmentário da análise que pude realizar, em razão tanto da natureza do esboço quanto do tempo disponível, não vou alongar os comentários sobre a peça. Ficamos sabendo pelo subtítulo que era intenção de Lopes-Graça musicar três poemas, porém, há apenas o trabalho sobre dois deles: Flôres de Ouro Preto e Acalanto de Ouro Preto. A linha da voz, nos excertos disponíveis, apresenta uma escrita basicamente silábica e respeita a prosódia. A clave indicada é de sol, supondo-se uma voz de soprano ou tenor. A melodia da primeira canção tem frequentes saltos de 7ª e cromatismos. Também há repetições de trechos basicamente similares, com pequenas alterações, características muito comuns no estilo do compositor que se podem observar, por exemplo, no Desafio e na segunda das Sete Canções Populares Brasileiras. Nota-se que as ideias ocorriam em simultâneo ao compositor. Em certos trechos a parte instrumental está incompleta, mas há a linha vocal e vice-versa.

Figura 13: Postal de Ouro Preto enviado por Lopes-Graça a Manuel e Berta Mendes. Data ilegível.

Casa Comum - Fundação Mário Soares

87 Referência ao escultor brasileiro Antonio Francisco Lisboa (1730-1814), conhecido pela alcunha de Aleijadinho devido a uma doença que fez com que perdesse as mãos, ao alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), cuja alcunha se refere ao trabalho como barbeiro-cirurgião, líder da Inconfidência Mineira, movimento pela independência do Brasil, ao poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e à sua musa. 133

A informação que temos a seguir é de sua estada em São Paulo, por meio de outro postal enviado ao casal Mendes. Sua visão da cidade e das perspectivas profissionais, no excerto que transcrevo a seguir, também não é animadora. Por meio de suas palavras, vamos tomando contato com os fatores que possivelmente o levaram a desistir da ideia de imigração. “Não poderei dizer que estou muito entusiasmado com São Paulo – nem com a cidade, incaracterística, apesar das aparências, nem com o tempo, há oito dias espessamente chuvoso, nem com o “negócio” cá da música, que não ata nem desata, pois que esta gente não é de atar nem desatar, antes pelo contrário [...].”

Figura 14: Postal de São Paulo, enviado por Lopes-Graça ao casal Mendes.

Casa Comum - Fundação Mário Soares

No aspecto pessoal, contudo, Lopes-Graça e Saraiva tiveram uma recepção bastante calorosa e agradável. Em entrevista a mim concedida em 2016, o pianista José Eduardo Martins comenta suas recordações do período em que ambos estiveram hospedados na casa de seu pai, o imigrante bracarense José da Silva Martins, amigo de Camargo Guarnieri. Lopes-Graça e Saraiva ficaram mais de uma semana. Martins lembra-se que seu pai deu uma recepção em sua casa e que Guarnieri lá esteve outras duas vezes para almoçar ou jantar. José Eduardo, à época com 20 anos, e seu irmão João Carlos, com 18, eram já pianistas de nível avançado e tocavam obras para o compositor, que os ouvia e aconselhava. Os dois irmãos também tiveram a oportunidade de ouvir os ensaios dos seus hóspedes. Lopes-Graça escreveu inclusive um depoimento no “Livro de Ouro”88 de José Eduardo, “vaticinando” o seu sucesso artístico. Martins diz lembrar-se bem de um recital de

88 Espécie de livro de visitas pessoal, em que os amigos deixam mensagens.

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Lopes-Graça e Saraiva na Casa de Portugal. Infelizmente, nos documentos a que tive acesso não há referências a este evento. Poucos meses após a vinda de Lopes-Graça, José Eduardo Martins participou de um concurso de piano em Salvador, no qual ganhou uma bolsa para estudar na França. Sentindo a necessidade de aprofundar seus estudos de teoria musical, escreveu a Lopes-Graça pedindo recomendações. O professor indicado foi Louis Saguer (1907-1991), compositor de origem alemã naturalizado francês. Estabeleceu-se por décadas uma amizade entre os três músicos. Martins tem ido regularmente a Portugal realizar recitais. Ao longo da vida de Lopes-Graça, esteve com ele em Lisboa algumas vezes e participou de convívios com o Coro da Academia de Amadores de Música. Recebeu de presente cópias heliográficas de diversas composições suas e tem se dedicado há alguns anos à gravação de algumas de suas obras. Figura 15: Da esquerda para a direita - José Eduardo Martins, Fernando Lopes-Graça e António Saraiva na casa da família Martins em 1958.

Disponível em . Acesso em 29 nov. 2017.

Em uma entrevista ao jornal paulistano A Gazeta, de 15 de setembro de 1958, é anunciado um recital no dia 19 no Auditório do Instituto de Educação Caetano de Campos. Este foi apresentado com um discurso de Camargo Guarnieri, que reproduzo a seguir89: Minhas senhoras, meus senhores, A modéstia de Fernando Lopes-Graça não autorizaria a interferência das palavras, quando aqui estamos reunidos para nos deliciar com a música deste ilustre compositor e musicólogo português. Mas, considero de tanta importância a honrosa visita de Lopes-Graça ao Brasil, que seria injusto calar-

89 Encontrei este texto entre a correspondência de Lopes-Graça no Museu da Música Portuguesa, em Cascais. Imagino que Guarnieri tenha presenteado Lopes-Graça com o texto do discurso após a realização do recital. 135

me, tendo sito eu um dos responsáveis pelo prazer que sentimos em abraça- lo pessoalmente e ouvir a mensagem fraternal que nos traz de Portugal. Lopes-Graça não precisa de apresentação, tal a soma de trabalhos que realizou em favor da cultura universal e tal a sua importância no cenário artístico internacional. Nada, pois, direi a respeito dos seus grandes méritos, que são reconhecidos e admirados por todos. Quero apenas, em duas palavras, agradecer-lhe o favor e a honra que nos concedeu quando aceitou o convite do Ministério da Educação e Cultura para visitar o Brasil. Meu caro Lopes-Graça: esta terra é, também, a sua terra natal. Este povo é o seu povo. Transmita, agora, travez [sic] da música, a sua mensagem fraternal, que nos tornará mais unidos e mais irmãos.

Figura 16: Programa do Recital de Lopes-Graça e Saraiva no Auditório do instituto de Educação Caetano de Campos.

Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria

No Diário da Noite do dia 22, é anunciada a ocorrência, naquele dia, de uma conferência sobre folclore musical português ilustrada com exemplos musicais interpretados por ele e Saraiva. Embora sem saber ao certo data e local e quantidade de apresentações, temos também conhecimento de outra conferência proferida no Brasil por Lopes-Graça, intitulada Claridades e sombras da História da música portuguesa e publicada no terceiro volume de A Música Portuguesa e os seus

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Problemas90 (1973). Analisei este documento, inicialmente no contexto da disciplina Tópicos Especiais em Teoria da História, que cursei como estudante especial no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e, posteriormente, no artigo As “claridades e sombras” da música portuguesa: teleologia e contingência na concepção de História de Fernando Lopes-Graça (LOPES, 2016), apresentado no XXVI congresso da ANPPOM e publicado nos anais do evento. Com receio de gerar neste capítulo excessiva digressão, optamos por não incluir aqui esta análise. Um postal de 30 de setembro a Cochofel, no qual o compositor se diz “morto por partir” indica-nos o retorno ao Rio de Janeiro. Numa carta ao amigo, de 3 de outubro, Lopes-Graça envia as entrevistas já realizadas com Villa-Lobos e Mignone para o Inquérito aos Compositores Brasileiros e informa que irá a Florianópolis para a realização de um recital-palestra a convite do filósofo e pedagogo português Agostinho da Silva, secretário de Cultura do estado de Santa Catarina. Retornará ao Rio para a repetição deste programa dia 9 na Academia Lorenzo Fernandez e dia 10 no Auditório do Ministério da Educação e Cultura91. Nesta carta, Lopes-Graça volta a reclamar da desorganização brasileira, acentuada pela realização das eleições. Elogia a atenção recebida pelas pessoas ligadas ao meio musical, mas diz que o literário é “pouco mais ou menos como o de lá [sic]: cheirando a música, tapa os ouvidos e foge...”. Pela mesma época, reclama ao casal Mendes do clima carioca, “enervante” apesar do inverno. Na segunda quinzena de outubro, Lopes-Graça já está em Salvador, última parada de sua tournée, após uma breve passagem por Recife, aparentemente apenas a passeio. Embora com humor e maior informalidade, o conteúdo do postal enviado no dia 15 ao casal Mendes a esta altura já não surpreenderá o leitor.

Amigos: ainda não sei o “que é que a baiana tem”, mas cá estou, a ver se o descubro. Isto tem sido uma visita desconcertante, com muito calor, muita “bagunça” (traduzir: confusão, trapalhada), coisas admiráveis, coisas detestáveis, pouco e mau vinho, alguma cachaça e surpresas de última hora, como este convite da Universidade da Baía, em circunstâncias que são pouco menos que cómicas... Estive em Recife, com o nosso Zaluar92, parece que a valer conquistado pelo Brasil. Em Florianópolis, com o Agostinho da Silva, mesmo, mesmo, católico, mas firmemente anti-Sal [anti-Salazar?]

90 Não encontrei o texto da conferência sobre folclore. Talvez o jornalista tenha se enganado e esteja se referindo a esta ou ao recital, cujo programa continha canções de Lopes-Graça sobre melodias populares portuguesas. 91 Tive acesso, no Museu da Música Portuguesa, ao programa deste último recital apenas. 92 Manuel Zaluar Nunes (1907-1967), matemático e professor universitário português, radicado no Recife. 137

Figura 17: Postal enviado de Salvador a Manuel e Berta Mendes.

Casa Comum - Fundação Mário Soares.

No dia 23, Lopes-Graça escreve a Cochofel anunciando a realização de seu último recital dia 28 e seu retorno no dia 29. Sabemos por essa carta que Saraiva voltou a Lisboa antes da viagem de Lopes-Graça a Salvador. O recital foi, portanto, composto exclusivamente de peças de Lopes-Graça para piano solo, sendo acrescentadas, em substituição às canções, as Melodias Rústicas Portuguesas e apresentados cinco em vez de quatro dos 24 Prelúdios e quatro em vez de três das 9 Danças [Breves]. O último postal enviado dessa “terra bem portuguesa” a Cochofel traz... novo imprevisto. O recital foi atrasado para o dia 3093, só podendo Lopes-Graça partir dia 1º de novembro. Finalmente pôde voltar à casa. Antes de encerrar este subcapítulo, gostaria de chamar a atenção, através do mapa a seguir, para a extensão das viagens realizadas por Lopes-Graça, ainda mais considerando-se as dimensões do território brasileiro. Estão assinaladas todas as cidades visitadas pelo compositor, seja a trabalho ou passeio.

93 No programa disponível no MMP consta como realizado no dia 28. Um dado interessante desse documento é a anotação do contato do regente e compositor Carlos Alberto Pinto Fonseca, à altura um estudante de regência da Universidade da Bahia, com 25 anos de idade.

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Figura 18: Cidades visitadas por Lopes-Graça. Recife, Salvador (região Nordeste), Belo Horizonte, Ouro Preto, Rio de Janeiro, São Paulo (região Sudeste) e Florianópolis (região Sul).

3.5.3 – Lopes-Graça na imprensa brasileira

Durante as pesquisas realizadas no Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, em Cascais, tive acesso a alguns recortes de jornais e revistas com notícias das atividades realizadas por Lopes-Graça e entrevistas com o músico português durante sua primeira visita ao Brasil. Não são estas as primeiras referências a Lopes-Graça na imprensa brasileira94. Temos, por meio de uma crítica de Eurico Nogueira França no jornal carioca Correio da Manhã, de 8 de agosto de 1954, notícia de uma apresentação, no Theatro Municipal de São Paulo, das suas Encomendações das almas, para coro misto a cappella, pela Agrupación Coral de Cámara de Pamplona.

94 Além de referências a Lopes-Graça na imprensa brasileira, também há registro de sua presença em um periódico brasileiro especializado: o artigo A música portuguesa no século XIX, fruto do trabalho apresentado para concorrer à bolsa de estudos em Paris, foi publicado na Revista Brasileira de Música, vol. 2, IV fascículo (1935). O texto foi republicado no primeiro volume de A Música Portuguesa e os Seus Problemas (1989). (LOPES- GRAÇA, 1989, CASCUDO, 2010, SOUSA, 2006). 139

Exemplo fascinante da repercussão direta do canto gregoriano em manifestações da atividade musical popular, essa espécie de rito procede a bôca fechada, por vocalizes melismáticos, ou seja, o canto com os lábios unidos, sobre vogais, com largas eflorescências ou flutuações melódicas, que são os melismas. Em côro misto, onde as vozes masculinas retomam a linha melódica das vozes femininas, o efeito que Fernando Lopes-Graça obtém se mostra particularmente intenso. Há, sem dúvida, uma distinção especial a estabelecer para esse balsâmico lamento fúnebre, entre as páginas que ouvi [...] (NOGUEIRA FRANÇA, 1954). A notícia foi enviada a Lopes-Graça por Guerra-Peixe, que esteve presente ao concerto. “Falam por sí [sic] os apláusos [sic] do público, que, nesse concêrto, reagiu como raramente se observa: aplaudindo as bôas obras mais que as outras”. Em setembro do ano seguinte, Guerra Peixe notificou, no jornal A Gazeta, a publicação, pelas Edições Valentim de Carvalho, da partitura das Trovas, para voz e piano. Em seu texto, Guerra destacava o modalismo na música portuguesa, que a divulgação maciça do fado em terras brasileiras não deixava conhecer, levando a associar a música popular daquele país exclusivamente ao sistema tonal. Via no conhecimento do folclore uma ponte para o estreitamento das relações luso- brasileiras. Conforme mencionamos anteriormente, Lopes-Graça concedeu, durante sua vinda, entrevistas à revista carioca Para Todos e aos jornais paulistanos A Gazeta e Diário da Noite. A partir da análise das referidas reportagens, podemos ter uma dimensão do conhecimento dos brasileiros, à época, sobre sua trajetória e produção, bem como da visão de ambos os lados sobre a vida musical do período. Percebe-se o maior conhecimento de sua trajetória como musicólogo que como compositor. O texto que acompanha o programa do concerto realizado no Instituto Caetano de Campos, apesar de não ser propriamente uma reportagem, menciona completa e explicitamente esta questão: “FERNANDO LOPES GRAÇA que é uma das figuras mais representativas dos meios artísticos da sua terra, já é bastante conhecido dos brasileiros como musicólogo, historiador musical e crítico, sendo, no entanto, praticamente desconhecido como compositor, faceta esta que o Ministério da Educação e Cultura [...] terá ensejo de mostrar agora ao público do Brasil. (PROGRAMA, 1958) O Diário da Note refere-se a ele como “conhecido dos musicólogos”. Títulos de sua obra didática e literária são amplamente mencionados em todas as

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reportagens95, com destaque para o recém-publicado Dicionário de Música, em dois volumes96, cuja extensa parte referente à música brasileira é destacada na reportagem d’A Gazeta. Quanto à obra musical, o Diário da Noite menciona apenas as canções sobre textos de ilustres poetas, ignorando seu trabalho sobre melodias de tradição oral. Faz referências à Sonata dizendo que a sociedade era conhecida no Brasil. Situando Lopes-Graça “entre a rubrica de moderno e de popular”, a antiga crítica de Eurico Nogueira França classifica a obra coral do autor como “de menor importância” no contexto de sua produção. Os entraves à sua carreira, motivados por sua oposição política ao governo vigente, nem sempre são mencionados e, quando o são, os redatores o fazem, na maioria das vezes, de maneira bastante sutil, o que talvez se possa entender como tentativa de o proteger de uma possível repressão do Estado Novo salazarista. A Gazeta chega a dizer que Lopes-Graça era então professor do Conservatório Nacional, em Lisboa, quando, na verdade, nunca pôde assumir o cargo. O mesmo jornal também exagera ao referir que suas canções seriam conhecidas em todo o mundo, o que contradiz as demais notícias e a surpresa de Bandeira em sua crônica. O Diário da Noite o descreve como “Afável e de rosto marcado por constantes preocupações, cabelos semi-grisalhos e de uma presença quase tímida”. Com relação aos temas abordados, podemos apontar a música portuguesa, a música no Brasil, a música contemporânea, o ensino, o nacionalismo musical e o folclore. Muitos títulos já trazem indicações de posicionamentos do compositor como, por exemplo, F. Lopes-Graça: Crise na música portuguesa, da revista Para Todos, onde o músico critica o “universalismo apriorístico e absurdo” de certos compositores portugueses contemporâneos, por um lado, e os entraves à música moderna, por outro. Lamenta o complexo de inferioridade dos portugueses em relação à sua música. “É preciso vir aqui para nos convencermos de que somos queridos e admirados, atualmente e até mesmo nas manifestações de nossa cultura pretérita ".

95 Ao longo desta pesquisa, surpreendeu-me a facilidade de acesso no Brasil à sua obra literária, apesar de não ser há muitos anos reeditada. Fui presenteada por um professor do interior de Minas Gerais com a 2ª edição (1958) do Dicionário de Música. Pude consultar diversos títulos em bibliotecas da Unicamp, USP e na Discoteca Oneyda Alvarenga, no Centro Cultural São Paulo. Também com grande facilidade adquiri diversos títulos por meio da Estante Virtual, site brasileiro de venda de livros antigos. 96 Tratava-se da edição e ampliação de um trabalho previamente desenvolvido pelo seu já falecido professor Pe. Tomás Borba. 141

A reportagem do jornal A Gazeta intitula-se O nacionalismo musical de simples indumentária vistosa ou de cartaz turístico não resolverá nada. Neste texto, além da manifesta crítica ao pitoresco, o ensino da composição recebe destaque, numa defesa de uma abordagem integrada entre pedagogia e criação. Também é destacada, no subtítulo, a importância de fatores econômicos e sociais, além dos artísticos. Por sinal, a foto que ilustra essa reportagem foi tirada durante uma audição de professores e alunos da Academia Paulista de Música, realizada em homenagem ao visitante. Encontramos entre os professores Guilherme Fontainha – fundador da Revista Brasileira de Música, ex-diretor do Instituto Nacional de Música e ex-aluno de Viana da Motta, Camargo Guarnieri e Ciro Monteiro Brisolla, autor de um famoso livro didático de Harmonia Funcional. Figura 19: Excerto da reportagem do jornal A Gazeta.

Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria

Lopes-Graça defende nessa entrevista a “necessidade histórica” do nacionalismo e o alcance de uma mensagem universal pelo retrato da música nacional. Atenta, porém, para a necessidade de se manter a fidelidade estética ao “eu”, sem utilizar o material folclórico de maneira ilusória e forçosa. A precariedade

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das pesquisas folclóricas em Portugal é destacada97. Na entrevista à Para Todos, Lopes-Graça elogia a Campanha Nacional de Folclore98. Sobre a composição, argumenta que devemos ser “portugueses [ou brasileiros] ainda que não folclorizantes”, tomando os “instrumentos do povo no campo da criação individual”. Quanto à música contemporânea, afirma, n’A Gazeta, que o seu ideal “é o da não recusa a toda e qualquer experiência”. Da mesma maneira, o título da notícia do Diário da Noite é Músicas concretista e eletrônica devem ser encaradas como legítima experiência. A esse respeito, José Eduardo Martins destacou, na nossa entrevista, o seu conhecimento extremamente atualizado das correntes e técnicas composicionais. Embora não faça uso dessa técnica, Lopes-Graça associa a música eletrônica à “expressão de angústias e estados psicológicos”. Reconhece que, pessoalmente, a fase atonalista do dodecafonismo não lhe serve. Afirmando que a criação deve, antes de tudo, “servir ao humano”, critica a arte pela arte e a experiência pela experiência, bem como a arte dirigida. Sobre esta última faz referência apenas ao jdanovismo. Sabemos, porém, que a mesma crítica é recorrentemente feita em suas publicações portuguesas em relação à política cultural do Estado Novo. Talvez estando fora do país – e já querendo voltar – temesse represálias e teria preferido manter nesse discurso uma maior discrição. Alguns dias após seu retorno a Lisboa, em 5 de novembro, Lopes-Graça concedeu ao jornal português República uma entrevista, em cujo título é exposta sua afirmação de que Os compositores brasileiros contam com o apoio e o estímulo das entidades oficiais, onde afirma que a música contemporânea brasileira não era atingida pela mesma crise que a portuguesa. “Quando eu me encontrava no Rio de Janeiro, a Orquestra Sinfônica Brasileira realizou, sob o patrocínio do Ministério da Educação e Cultura, uma série de concertos públicos, sob o título de “Série Nacional” dedicados exclusivamente a compositores nacionais e por eles próprios dirigidos”.

97 Deve-se lembrar que apenas dali a cerca de um ano Lopes-Graça iniciaria a colaboração com Giacometti. 98 Lopes-Graça referia-se possivelmente à Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, criada naquele ano e vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. Resultou da criação, em 1947, da Comissão Nacional de Folclore, vinculada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Denomina-se atualmente Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e integra o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 143

Embora com grande sutileza, não deixa de criticar a desorganização, maior motivo de seu desconforto em terras brasileiras e elogia o nível dos nossos pianistas e do nosso movimento coral. Nesta reportagem, temos notícia da realização de mais algumas atividades, a cuja documentação não tive acesso, bem como de planos futuros: No Rio de Janeiro realizei conferências-recitais sobre música folclórica portuguesa no Ginástico Clube Português e na Academia de Música Lorenço [sic] Fernandez, além de recitais pela Rádio. No Museu de Arte de São Paulo efectuei uma conferência-recital sobre o mesmo assunto. Fiz também conferências e recitais a convite da Secretaria de Cultura de Florianópolis99, à testa da qual se encontra Agostinho da Silva, e da Reitoria da Universidade da Baía. Recebi propostas oficiais para voltar ao Brasil, para fazer um curso na Academia Paulista de Música e para participar no IV Colóquio Luso-Brasileiro (em agosto de 1959) e nos Seminários Internacionais de Música da Universidade da Baía (também no próximo ano). Lopes-Graça retornaria, contudo, ao Brasil apenas onze anos depois, como membro do júri do I Festival de Música da Guanabara, do qual falaremos no item a seguir. 3.6 – O Festival de Música da Guanabara – Segunda vinda de Lopes-Graça ao Brasil

A segunda (e última) viagem de Lopes-Graça ao Brasil limitou-se à cidade do Rio de Janeiro. A estada também foi mais curta (pouco mais de uma semana). O convite oficial foi feito pelo organizador do evento, o também compositor Edino Krieger. Lopes-Graça é notificado inicialmente por telegrama e posteriormente, no dia 30 de abril, envia uma carta a Krieger dizendo ter aceito “gostosamente” o convite, e pedindo mais informações sobre o evento. Observa que precisava voltar a Lisboa antes de 6 de junho, pois Mstislav Rostropovich estrearia naquele dia o seu Concerto da câmera col violoncello obligato na Fundação Calouste Gulbenkian. Em carta do dia 10 de maio, o amigo Arnaldo Estrela ajudou a esclarecer o caráter do evento:” o festival é iniciativa de peso. Tem cunho oficial – trata-se de música de vanguarda e estão inscritos os melhores compositores brasileiros, desde

99 Em carta a Cochofel, Lopes-Graça descreve Agostinho da Silva como secretário de cultura do Estado de Santa Catarina, sendo esta a informação correta.

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Mignone até Marlos Nobre100”. Por esta carta, ficamos também sabendo que estava programado para outubro daquele ano um concerto com obras de Lopes-Graça e que Arnaldo e sua esposa Mariuccia estavam tentando antecipá-lo para aproveitar a presença do compositor na cidade. Não foi possível, durante esta pesquisa, saber se o concerto realmente ocorreu e qual era o repertório. Em 11 de junho, já de volta a Portugal, Lopes-Graça envia a Francine Benoît um artigo sobre o Festival. Querida Amiga, aqui vai a prosa prometida sobre o I Festival de Música da Guanabara, a que dará o destino que melhor entender – para “A Capital”101, naturalmente. À Parte segue também um exemplar do programa, donde poderão ser reproduzidos os retratos dos compositores premiados (ver no artigo) que acaso acharão últil para ilustrar a minha prosa um tanto desenxabida, valha a verdade, mas a cabeça não me veio a funcionar bem do Brasil. O referido texto foi posteriormente publicado em Disto e Daquilo (1973). O compositor começa por corrigir um mal-entendido do próprio jornal A Capital, que havia anunciado ser tarefa do júri do evento “classificar por grupos e modalidades todas as canções brasileiras registadas em disco nos últimos tempos” (p. 287). São informadas as datas do Festival (25 de maio a 1 de junho) e as instituições organizadoras, o Departamento de Cultura do estado da Guanabara e o Museu da Imagem e do Som. Segue-se uma descrição das fases e critérios do que foi, na verdade, um grande concurso de composição. Foram inscritas 91 partituras, que deveriam ser inéditas, para grande e pequena orquestra, com solistas ou coros e a possibilidade de utilização de fita magnética e sons eletrônicos. Esse grande investimento e abertura estética davam mostra, segundo Lopes-Graça, da “largueza de vistas com que o Festival foi gizado”. Uma comissão de seleção escolhia 16 dessas obras para três semifinais em concertos públicos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Oito iriam para a final, onde seriam selecionadas cinco peças. Lopes-Graça ficou admirado com a diversidade de idade e tendências estéticas e com o “espírito de compreensão e camaradagem” em que transcorreu o concurso.

100 Compositor pernambucano radicado no Rio de Janeiro, à época com 30 anos de idade. Estrela acentua nesta comparação sobretudo a diferença geracional, pois Mignone tinha, á altura, mais de 70 anos. 101 Jornal vespertino lisboeta, fundado no ano anterior. 145

Lembremos que, ao lado de mestres consagrados, como Francisco Mignone e Camargo Guarnieri (respectivamente, na casa dos 70 e na casa dos 60), ao lado de um Cláudio Santoro, um dos expoentes da geração que anda à roda dos 50, a que pertence também um Milton Gomes, figuravam os nomes de toda uma plêiade de jovens entre os 26 e os 36, que afinal se revelaram muito dignos émulos de seus maiores. Por mim, direi que, sem menospreço [sic] dos nomes consagrados, foram alguns dentre estes jovens que me trouxeram a melhor surpresa do festival, permitindo-me o conhecimento de talentos certamente ainda em vias de encontrar o seu caminho definitivo, se assim é lícito exprimir-me, mas dotados já de uma forte e inconfundível personalidade, cultivando uma arte de um apetrechamento técnico considerável e que sem epigonismo estéril – nos melhores casos – sabem o que podem e devem assimilar das mais actuais correntes do pensamento musical. (pp. 289-290). O júri era também bastante diverso. Lopes-Graça cita dois nomes: o “famoso compositor polaco” Krzysztof Penderecki e o “ilustre musicógrafo brasileiro” Ayres de Andrade. Ganhou o primeiro prêmio, de 25 mil cruzeiros novos, José Antônio de Almeida Prado (1943-2010), natural de Santos, SP e à época com 26 anos, pelos Pequenos Funerais Cantantes, para solistas, coro e orquestra, “obra sugestiva, de uma notável economia e delicadeza de meios, de um lirismo comovido, em parte de uma linguagem mitigadamente atonal-serial e empregando característicos glissandos de violoncelos e contrabaixos. (p. 290). O segundo prêmio, de dez mil cruzeiros novos, foi atribuído a Marlos Nobre (1939) pelo Concerto Breve, para piano e orquestra, “obra da nossa preferência pessoal, composição forte, tensa, de uma perfeita unidade construtiva nas suas diferentes e solidárias partes: Intrata, Variantes e Coda, de bem organizadas sequências tímbricas e fazendo apropositado emprego de processos aleatórios, e que pôs à prova as excepcionais faculdades pianísticas de Arnaldo Estrela”. (pp. 290-291). O baiano Lindembergue Cardoso (1939-1989), também com 30 anos, recebeu o terceiro prêmio, no valor de 5 mil cruzeiros novos, pela sua Procissão das Carpideiras, para orquestra, coro feminino (8 sopranos) e contralto solista, “obra profundamente sugestiva no seu como que folclorismo decantado, que não exclui o emprego de uma linguagem, de processos harmônicos e tímbricos inteiramente no

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campo de certas e aliciantes experiências actuais, de uma poesia penetrante no seu binómio voz-orquestra”. (p. 291). Heterofonia do Tempo, para dois solistas, coro, orquestra, percussão e fita magnética, sobre um poema de João Cabral de Melo Neto, do também baiano Fernando Cerqueira (1941) garantiu ao compositor o quarto prêmio, de 3 mil cruzeiros novos. Segundo Lopes-Graça, tratava-se de “obra de notável interesse no seu como que surrealismo dramático, intensa, com uma curiosa integração de dados de raiz folclórica no seu bi-serialismo estrutural (p. 291).” Curiosamente, o quinto prêmio, de dois mil cruzeiros novos, ficou com o mais velho dentre os vencedores: o também baiano Milton Gomes (1916-1974), por Primevos e Postrídios, para orquestra, percussão e coro vocalizado, “obra de um certo monolitismo hierático, desenvolvendo-se numa série de grandes planos horizontais sobrepostos, de uma resultante sonora complexa mas muito bem conseguida na impressiva fusão do elemento vocal e instrumental” (pp. 291-292). Lopes-Graça também ressalta a participação ativa e animada do público, o qual “manifestava-se, tomava partido, aplaudia ou vaiava consoante as suas preferências ou discordâncias”. (p. 292). Houve também o Prêmio do público, atribuído a Lindembergue Cardoso e ao paulistano Aylton Escobar (1943) pelos seus Poemas do Cárcere, para barítono, coro e orquestra, “obra sem dúvida interessante, fazendo largo uso de processos aleatórios mas denotando no entretanto uma certa imaturidade na integração dos seus diversos elementos compositivos”. (p.292). Os Poemas musicados por Escobar eram de autoria do revolucionário vietnamita Ho-Chi-Minh. Devemos lembrar que o Brasil estava em plena ditadura militar, contexto que possivelmente foi decisivo para que a peça ganhasse a simpatia do público. Em entrevista recente (2013, p. 377) a Edino Krieger, organizador do Festival da Guanabara, o compositor diz que “chateado com os arranhões da ditadura na carne da sua cantata inicial” [impedida de ser novamente apresentada], teria pensado em não se inscrever para o Festival no ano seguinte, acabando por ser convencido pelo crítico Antônio Hernandes e participando com a Missa Orbis Factor. Por fim, Lopes-Graça avalia os intérpretes, a começar pela Orquestra do Teatro Municipal, “nem sempre impecavelmente preparada, diga-se em verdade”, o Coro do mesmo teatro, “que demonstrou excelentes qualidades”, os coros femininos e os solistas, entre os quais destaca a soprano Maria Lúcia Godoy (1929), o barítono Eladio Perez [González] (1926), o barítono Nelson Portella (1943), os regentes 147

Armando Krieger (1940), Mário Tavares (1929-2003) e Henrique Morelembaum (1931). Segundo o visitante-avaliador, o Festival teve “indiscutível êxito”, numa “manifestação viva e dinâmica da actual música brasileira” (p. 293). Com este capítulo, encerramos a parte da tese predominantemente centrada na contextualização e passamos aos capítulos propriamente dedicados à análise do corpus.

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Capítulo 4 - A obra vocal sobre temas melódicos brasileiros Os próximos capítulos têm como foco as análises musicais do corpus. Em vez de uma ordenação cronológica das obras, optei por organizá-las segundo pontos comuns no tratamento composicional do “material temático102” identificados ao longo da pesquisa. Neste capítulo, trato das Sete Canções Populares Brasileiras, para voz e piano, e das Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras, para coro misto a cappella. Além de terem em comum o fato de serem obras vocais, ambas as séries foram compostas a partir de temas melódicos retirados de antologias compiladas por folcloristas brasileiros. Uma dessas antologias é fonte comum às duas: o livro Música Popular Brasileña (1947), de Oneyda Alvarenga. No que tange ao tratamento composicional, as melodias em ambas as séries são apresentadas integralmente, praticamente inalteradas e em primeiro plano. Conforme veremos nas análises que se seguem, Lopes-Graça incorpora a essas peças elementos harmônicos, rítmicos, de dinâmica e de textura muito característicos de sua escrita, resultando em uma nova sonoridade, mas cujas bases se pode ainda distinguir. Tomando como base a noção de alteridade radical proposta por Mário Vieira de Carvalho e discutida no Capítulo 2 (item 2.3.2), a convivência de material melódico folclórico e elementos idiossincráticos do compositor é aqui entendida como consequência de uma postura de alteridade explícita, que se configura como uma via de crítica ao exotismo. Trataremos este ponto em mais detalhes adiante.

4.1 - As Sete Canções Populares Brasileiras

As Sete Canções Populares Brasileiras103, para voz e piano, foram compostas em 1954 e dedicadas à soprano Vera Janacopoulos. A primeira audição

102 Conforme expliquei na introdução, denomino “material temático” não apenas as melodias tradicionais utilizadas como base na elaboração das composições, mas também qualquer elemento com o qual direta ou indiretamente o autor dialoga e que possa ter servido como referência em sua abordagem. Por exemplo, obras literárias, perfil dos dedicatários, etc. 103 Entre os meses de maio e julho de 2016, durante o estágio PDSE em Lisboa, tive a oportunidade de ensaiar as Sete Canções e o Desafio com a pianista Carla Ruaro, realizando um registro final desse processo em 20 de julho de 2016. Em 18 de novembro desse mesmo ano, o pianista Duarte Pereira Martins e eu realizamos o recital “Fernando Lopes-Graça e contemporâneos brasileiros”, no Museu Nacional da Música, também em Lisboa, no qual interpretamos algumas dessas obras. Optei por indicar, além da gravação da mezzo-soprano Dulce Cabrita com o próprio Lopes-Graça ao piano (1965) - importante documento histórico, com uma intérprete de maior maturidade técnica e vocal – versões minhas, ora com Ruaro, ora com Martins, como registro desse caminho prático de aproximação do corpus e por se tratar, até o momento, do único registro do Desafio com a pronúncia brasileira. 149

parcial da série foi feita em Lisboa em 1955, pela soprano Maria Alice Vieira de Almeida, acompanhada pelo autor. A primeira audição integral realizar-se-ia, no entanto, apenas dez anos mais tarde pela mezzo-soprano Dulce Cabrita, também acompanhada ao piano pelo compositor. Pode-se conjeturar a escolha do título e justamente de sete canções como uma referência às Siete Canciones Populares Españolas (1914), de Manuel de Falla. Para essa mesma formação, Lopes-Graça também compôs cinco séries de Canções Populares Portuguesas, além de Dez canções Populares Húngaras. A extensão vocal das canções não é grande – normalmente não ultrapassa uma oitava - o que se deve à natureza das melodias originais. A primeira tem por tema Virgem do Rosário104, canto de taiêras. Não há informação sobre a região de recolha, nem a fonte. Em seu livro Chants Populaires du Brésil (1930), a pesquisadora e cantora Elsie Houston inclui a mesma melodia, classifica-a como uma chula e indica sua origem no estado da Bahia, como parte das congadas. De acordo com o texto explicativo na antologia de Oneyda Alvarenga, as taiêras eram grupos de mulatas que, vestidas de branco e adornadas com fitas, realizavam um cortejo coreográfico (que ficou conhecido pelo mesmo nome) durante as festas de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Nas regiões onde se realizavam, tais cortejos foram incorporados às procissões católicas nas citadas festas.

Virgem do Rosário, senhora do mundo, (2x) Dá-me um côco d’água, se não vou ao fundo. (2x)

Indêré, ré, ré, ai, Jesus de Nazaré! Indêreré, ré, ré, ai, Jesus de Nazaré!

Virgem do Rosário, sob’rana Maria, (2x) Hoje este dia é de nossa alegria. (2x)

104 Gravação de Virgem do Rosário por Lopes-Graça e Dulce Cabrita https://soundcloud.com/guilhermina- lopes/5-sete-cancoes-populares-brasileiras-op-89-1954-virgem-do-rosario/s-qAoIR. Gravação por Guilhermina Lopes e Carla Ruaro https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/6-lopes-graca-virgem-do-rosario-guilhermina- lopes-e-carla-ruaro/s-PVZ4B?in=guilhermina-lopes/sets/doutorado-guilhermina-lopes/s-OLzcq. Aproveito para fazer uma pequena errata: cantei “copo d’água” em vez de “côco d’água”.

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Indêré, ré, ré, ai, Jesus de Nazaré! Indêreré, ré, ré, ai, Jesus de Nazaré!

Trata-se de uma canção estrófica, em compasso binário, andamento moderado, em si bemol, com certa ambiguidade entre maior e mixolídio. Enquanto o acompanhamento das estrofes apresenta um efeito polirrítmico, o ritmo no refrão é mais sincronizado e reforça a linha vocal. A entrada da estrofe é sempre anunciada pela citação suspensiva da sua semifrase inicial, em caráter de pergunta. Enquanto a primeira aparição do refrão apresenta uma harmonia mais fechada, com acordes de 3 sons onde predominam as sonoridades de 2as, 3as e 5as, a segunda vez traz uma harmonia mais aberta, com 8as na mão esquerda e acordes de 4 sons na mão direita e um jogo de alternância de mãos. Podemos notar na mão direita do piano na segunda repetição da estrofe um paralelismo de terças, incialmente nas vozes internas e posteriormente nas superiores.

Figura 20: Paralelismo de terças em Virgem do Rosário.

LOPES-GRAÇA, 1964, p. 2, c. 20-26.

Embora Alvarenga não especifique a presença desse elemento harmônico no canto das taieiras, transcrevendo apenas uma melodia simples, esse recurso se faz presente em outras manifestações brasileiras de tradição oral e foi muito utilizado 151

no tratamento composicional de melodias folclóricas por compositores brasileiros da primeira metade do século XX. Um exemplo é a composição de Luciano Gallet105 sobre outra versão da mesma melodia, recolhida no estado do Pará. Notem-se as terças paralelas nas vozes superiores da mão direita do piano.

Figura 21: Excerto das Tayêras, de Gallet.

Transcrita em RIBEIRO, 2003, p. 163.

Por meio da escuta comparativa das duas canções, percebe-se na versão de Gallet uma maior assertividade, regularidade agógica e rítmica e direcionalidade harmônica. O caráter é claramente vivo e alegre. Em Lopes-Graça, por outro lado,

105 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FDZnSt9Arms. Acesso em 17 abr. 2018. Lia Salgado, soprano e Alceo Bocchino, piano.

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coexiste com essa alegria uma forte instabilidade e tensão, provocada pelo realce da polirritmia e presença dos já mencionados intervalos de 2ª e 4ª, muito característicos de sua escrita. Associado a essa persistente sensação de instabilidade está o que Mário Vieira de Carvalho (2006) denomina anticlímax: inesperados rumos harmônicos, melódicos, de dinâmica, textura e/ou agógica. Esse recurso composicional é bem nítido na escrita pianística ao final da canção, onde ocorre uma aceleração rítmica em dinâmica forte e articulação marcada, seguida de uma súbita diminuição de intensidade e término em um acorde suspensivo de si bemol maior com 6ª menor e 9ª menor. Figura 22: Anticlímax em Virgem do Rosário (c. 36 a 39).

A segunda canção é Tatu é Caboclo do Sul106, colhida em Goiás e transcrita por Oneyda Alvarenga em Música Popular Brasileña a partir do Ensaio sobre a música brasileira, de Mário de Andrade (ALVARENGA, 1982, pp. 320-321). É uma toada, gênero que Alvarenga aponta como presente em diversas regiões do país e difícil de distinguir da moda de viola, sendo que essas denominações eram muitas vezes usadas indistintamente. Diferentemente do que ocorre em algumas modas, as toadas não possuem a forma de romance, mas sim de estrofe e refrão, com textos e melodias bastante simples, de temática lírica, amorosa ou cômica.

Tatu é caboclo do sul. Peixe-boi é barão de Pará. Peixe-boi é do fundo do rio, Mulata bonita é da banda de lá.

106 Versão de Dulce Cabrita e Lopes-Graça https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/sete-cancoes-populares- brasileiras-op-89-1954-tatu-e-caboclo-do-sul/s-hQ1rE. Versão de Guilhermina Lopes e Carla Ruaro https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/9-lopes-graca-tatu-e-caboclo-do-sul-guilhermina-lopes-e-carla- ruaro/s-urC15?in=guilhermina-lopes/sets/doutorado-guilhermina-lopes/s-OLzcq. 153

Mandei chamar generosa, Não me quiseram mandar, Mandei chamar Mariquinha, Domdom, Saudade quer me matar.

Lopes-Graça acrescenta à forma binária da melodia original uma seção C, com um motivo anacrústico vocalizado e uma coda, baseada na semifrase inicial. Nessa peça, temos o exemplo de um recurso frequente na escrita do compositor: a repetição de trechos musicais similares com algumas notas alteradas, boa parte das vezes cromaticamente. Isso ocorre tanto na escrita pianística, bastante perceptível na mão direita do piano entre os compassos 16 com anacruse e 19 quanto na escrita vocal, entre os compassos 24 e 31. Figura 23: Repetição com modificações cromáticas na escrita pianística.

LOPES-GRAÇA, 1964, p. 4, c. 16 com anacruse a 19.

Figura 24: Repetição com modificações cromáticas na escrita vocal, c. 24 a 35.

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A terceira canção é o acalanto Tutú Marambá107, presente em diversas regiões do Brasil. A região de recolha não é especificada por Alvarenga. O Tutu Marambá é um ser fantástico que come gente, uma espécie de bicho-papão.

Tutu Marambá, Não venhas mais cá, Que o pai do menino te manda matá. (2x)

Aranha tatanha, Aranha tatinha, Tatu anda arranhando a tua casinha.

Aranha tatanha, Aranha tatinha, Tatu é que arranha. a tua casinha.

Su, su,su,su, Atrás do murundu. Comer esse menino com feijão e angu.

107 Versão de Dulce Cabrita e Lopes-Graça https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/10-sete-cancoes- populares-brasileiras-op-89-1954-tutu-maramba/s-jl4Kg. Versão de Guilhermina Lopes e Carla Ruaro https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/11-lopes-graca-tutu-maramba-guilhermina-lopes-e-carla-ruaro/s- sU5xm. 155

Tutu Marambá, Não venhas mais cá, Que o pai do menino te manda matá. (2x)

Lopes-Graça realizou nesta melodia algumas pequenas modificações em relação à original. O andamento original de moderado (♩= 78) passou a lento (♩= 58), e a tonalidade foi transposta de si bemol menor para sol menor. Enquanto a transcrição de Alvarenga apresenta apenas compasso quaternário, a melodia de Lopes-Graça alterna os compassos quaternário e binário. A forma, que se pode dividir em ABCDA, é simétrica; B e D possuem melodias similares e C é em Sol Maior, enquanto as demais partes estão em sol menor. A parte A traz um acompanhamento em colcheias, com notas pedais e outras que vão se alterando cromaticamente. B e D iniciam-se com um acompanhamento pontuado por semínimas, com uma harmonia aberta, de acordes formados por 4as, 5as e 7as, à maneira de um coral. A seção C (“aranha tatanha” ...) é em modo maior, mais movida, menos piano e apresenta polirritmia entre as mãos do piano, sugerindo agitação e conflito. São frequentes as quiálteras nos compassos de transição entre as seções. O anticlímax mencionado por Vieira de Carvalho faz-se presente nessa canção, que termina com um lá bemol sustentado (9ª m), acrescentado a um acorde, aparentemente conclusivo, construído sobre a 4ª sol-ré, sugerindo a ideia de que o monstro que a mãe canta para expulsar está ainda à espreita.

Figura 25: Anticlímax em Tutu Marambá

LOPES-GRAÇA, 1964, p. 8, c. 38-42.

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Segue-se a canção pernambucana Ô três pega108 (ALVARENGA 1947, p. 229). Trata-se de uma embolada, gênero poético-musical bastante comum no litoral do Nordeste brasileiro, com melodias em figuras rápidas, intervalos curtos e um texto que requer grande agilidade de dicção. O texto costuma ser descritivo, satírico ou cômico. São frequentes as onomatopeias ou palavras associadas por seu valor sonoro (forte presença de assonâncias e aliterações).

Ô três pêga, repepêga, pelelêga. Peguei na pêga, dei a mulher pra pelá. (2x)

Ô! Antigamente Maceió era de paia Lá na rua d’Atalaia ninguém podia passa.

Ô três pêga, repepêga, pelelêga. Peguei na pêga, dei a mulher pra pelá. (2x)

Lopes-Graça utiliza nessa canção uma harmonização mais aberta e menos densa, predominando os intervalos de 4ª, com ocasionais segundas acrescentadas. Diferentemente das duas canções anteriores, esta apresenta um final conclusivo, em Mi Maior, imitativo entre as duas mãos do piano, com um salto ascendente de 8ª na melodia vocal.

108 Versão de Dulce Cabrita e Lopes-Graça https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/12-sete-cancoes- populares-brasileiras-op-89-1954-o-tres-pega/s-whJja?in=guilhermina-lopes/sets/doutorado-guilhermina- lopes/s-OLzcq. Versão de Guilhermina Lopes e Duarte Pereira Martins https://soundcloud.com/guilhermina- lopes/13-lopes-graca-o-tres-pega-guilhermina-lopes-e-duarte-pereira-martins/s-gQqu5?in=guilhermina- lopes/sets/doutorado-guilhermina-lopes/s-OLzcq. 157

Figura 26: Conclusão de Ô três pêga.

LOPES-GRAÇA, 1964, pp. 9-10, c. 19-27.

A quinta canção é composta a partir de um ponto de Xangô109, também retirado do livro de Alvarenga (p. 249). É descrita no livro e na partitura de Lopes- Graça como “canto de feitiçaria”. Xangô, olê, gondilê Ô-lá-lá, Gon gon gon gon gondilá.

Xangô, olê, gondilê Ô-le-lê, Gon gon gon gon gondilê.

Alvarenga a atribui ao culto de macumba, praticado no Rio de Janeiro. A melodia constrói-se sobre o pentacorde lá-mi. É provável que Lopes-Graça tenha se servido da descrição do culto realizada por Alvarenga, retratando um movimento repetitivo e crescente da música a partir do ritmo constante marcado pelos tambores, levando a um estado de transe. O ritmo marcado pela mão esquerda é constante, grave, pontuado por acordes abertos e notas longas na mão direita. A escolha do

109 Versão de Lopes-Graça e Dulce Cabrita https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/14-sete-cancoes- populares-brasileiras-op-89-1954-xango/s-Y76Fw. Versão de Guilhermina Lopes e Carla Ruaro https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/15-lopes-graca-xango-guilhermina-lopes-e-carla-ruaro/s-m1esO.

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ostinato grave pontuado por acordes longos e fortes pode ter sido influenciada pela descrição de Xangô, no livro de Alvarenga, como o orixá110 do relâmpago e do trovão. As frases não apresentam marcação interna de compasso, apenas linhas pontilhadas para orientação dos intérpretes. O ritmo orienta-se pela prosódia. As segundas, tão características da escrita do compositor, são percebidas nesta canção mais como um efeito percussivo que harmônico. Figura 27: Início de Xangô.

LOPES-GRAÇA, 1964, pp. 11-13, c. 1 a 5.

Teresa Cascudo (1999) assinala a canção de Villa-Lobos111 composta em 1919 e construída sobre o mesmo tema como modelo para a composição de Lopes- Graça. A referida obra havia sido apresentada em um concerto da Sonata112, realizado em 7 de maio de 1949. Diferentemente de Lopes-Graça, o compositor carioca baseou sua composição em uma melodia com centro em sol, síncopas mais recorrentes e uma métrica pensada numa quadratura quaternária e não de maneira aditiva como na

110 Como são chamadas as divindades em algumas religiões de matriz africana. 111 Áudio, pela mezzo-soprano Teresa Berganza e o pianista Juan Antonio Alvarez Parejo. Disponível em http://www.deezer.com/track/1304661?utm_source=deezer&utm_content=track1304661&utm_term=129212 263_1523993489&utm_medium=web. Acesso em 17 abr. 2018. 112 Sociedade musical dedicada especialmente à música contemporânea, da qual Lopes-Graça era membro fundador. Mais detalhes nos capítulos 2 e 3. 159

apresentada por Alvarenga. Tal melodia está presente na coletânea Chants Populaires du Brésil (1930), elaborada pela cantora e pesquisadora Elsie Houston- Péret, a quem a canção de Villa-Lobos foi dedicada113. O tratamento do piano nas duas canções é bastante semelhante, sobretudo no que se refere à textura; observe-se também em Villa-Lobos a presença do ostinato grave e, na mão direita, de acordes abertos, construídos por sobreposição de intervalos de 4as e 5as, porém num registro grave, diferentemente da versão do compositor português. Figura 28: Início de Xangô.

VILLA-LOBOS, 1957, c. 1-8. A sexta canção é Olê, Lionê114 (ALVARENGA, 1982, p. 167), colhido no Maranhão. Alvarenga o classifica como um “coco-canção115”, lento e de ritmo livre. Lopes-Graça se atém a esse caráter, tratando-o quase como um recitativo. A

113 Houston-Péret indica uma cozinheira do Rio de Janeiro como sua interlocutora. É possível que Houston tenha passado a Villa-Lobos a transcrição anos antes da publicação de seu livro ou que ambos tenham tido contato com a informante numa mesma situação. 114 Versão por Dulce Cabrita e Lopes-Graça https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/17-sete-cancoes- populares-brasileiras-op-89-1954-ole-lione/s-Y2aGr. Versão por Guilhermina Lopes e Duarte Pereira Martins https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/18-lopes-graca-ole-lione-guilhermina-lopes-e-duarte-pereira- martins/s-MDGch. 115 Comum no litoral do Norte e Nordeste, o coco é mais frequentemente um gênero de dança de roda.

160

harmonização é realizada a partir de um pedal do acorde de lá bemol maior, cujo baixo vai se alterando descendentemente. A textura é pouco densa, com predominância, no acompanhamento, de intervalos de 5ª na mão esquerda alternados com terças na mão direita, que também apresenta ocasionais comentários melódicos.

Da Bahia me mandaram uma camisa bordada. Na abertura da camisa tinha o nome da safada, Lionê!

Olê, Lionê! Cadê Lionô? Qu’eu tava na varanda Quando a morena passou, Lionê!

Figura 29: Início de Olê, Lionê.

LOPES-GRAÇA, 1964, pp. 13-14, c. 1-9. A sétima canção intitula-se Colônia, usina, Catende116 e é um canto de trabalhadores de engenhos de açúcar, colhido em Pernambuco.

Colônia, usina Catende,

116 Versão de Dulce Cabrita e Fernando Lopes-Graça https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/19-sete- cancoes-populares-brasileiras-op-89-1954-colonia-usina-catende/s-Y1PJ7. Versão de Guilhermina Lopes e Carla Ruaro https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/20-lopes-graca-colonia-usina-catende-guilhermina-lopes-e- carla-ruaro/s-YXh1c. 161

Roçadim de seu Mende, Pirangi de seu Cando, Neste mundo eu ando Cumprindo uma sina, Que até nas usina Já tou trabalhando.

Ai, Baiana! Baiana, que é que há? Ai, Baiana, Baiana, meu amô!

Palmares, Ribeirão, Escada, Eu tenho uma namorada Que me deu um broquel, A volta é cruel na namoração, No aperto de mão Foi-se embora o anel!

Ai, Baiana! [...]

Em seu livro, Alvarenga inclui algumas informações sobre o contexto dessa canção, fornecidas pelo informante. Colônia, Catende, Pirangi, Palmares, Ribeirão e Escada são nomes de engenhos. “A volta é cruel” significa que o caso é penoso e perigoso. “No aperto de mão foi-se embora o anel” quer dizer que a mulher explora o namorado. Há ainda duas estrofes que Lopes-Graça não incluiu em sua partitura. Em sua análise da canção, Alvarenga destaca o desencontro entre a prosódia do texto e a acentuação métrica da melodia. Lopes-Graça mantém o andamento original (♩ = 160) e o compasso quaternário, porém transpõe a melodia de mi bemol maior para fá maior. A textura do acompanhamento é pouco densa, predominando as 6as e 2as na mão direita e um ostinato melódico grave, pontuado por oitavas.

162

Figura 30: Excerto inicial da canção Colônia, usina Catende.

LOPES-GRAÇA, 1964, pp. 15-16, c. 1-9. . 4.2 – As Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras – breve panorama

As Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras, para coro misto a cappella, foram compostas entre 1960 e 1961 e dedicadas à memória de Mário de Andrade. Diversas audições parciais foram realizadas pelo Coro da Academia de Amadores de Música, sob a regência do compositor. A primeira audição integral foi realizada em maio de 1994, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, pelo coro dessa Universidade, sob a regência de José Robert. Lopes-Graça, no entanto, não pôde estar presente. Ouviu o coro no verão daquele ano em sua casa. A primeira (e, até o momento, única) gravação integral foi realizada no ano seguinte pelo mesmo grupo. (ROBERT, 1995). Em 25 de novembro de 2006, ano do centenário de nascimento do 163

compositor, os mesmos músicos tiveram a ocasião de reapresentar a série no Fórum Cultural José Manuel Figueiredo, na vila da Baixa da Banheira, no concelho de Moita. (CENTRO, 2017). Na partitura, Lopes-Graça indica que os temas utilizados nas Dezassete Canções foram extraídos, “com a devida vénia”, do livro Música Popular Brasileña (1947)117, de Oneyda Alvarenga, além de Cem Melodias Folclóricas (1957), de Alceu Maynard Araújo e Aricó Júnior e ABC do Folclore (1958), de Rossini Tavares de Lima. São abordados dezesseis gêneros distintos, provenientes das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste (chegando à fronteira com o Sul), abrangendo sete estados. Não é possível saber ao certo o que motivou a escolha de cada melodia. Acredito que o critério estético tenha um considerável peso. A maior presença de canções do Nordeste brasileiro, especialmente do estado de Alagoas, está possivelmente relacionada ao fato de o livro de Araújo e Aricó Jr. concentrar-se em canções desta região118. Não encontrei nenhuma referência, ainda, a algum contato direto do compositor com nossas manifestações tradicionais, o que leva a crer que Lopes- Graça teria se baseado apenas em “fontes secundárias” – no caso, certamente as mencionadas antologias e talvez alguma outra bibliografia, gravações, partituras e peças ouvidas em concerto. Apesento neste subcapítulo apenas um breve panorama da série. Uma análise mais detalhada de cada canção pode ser encontrada nos apêndices. No item 4.2.1, procuro apontar, a partir da análise de alguns excertos, os principais recursos do tratamento formal, textural e harmônico nas Dezassete Canções, em comparação com obras corais em que Lopes-Graça tomou como base material melódico português e de outras culturas. A primeira canção é composta sobre Ó Léo, ó Léo, melodia recolhida em Piaçabuçu, no estado de Alagoas119. É uma roda-pagode, dança de adultos, realizada por ocasião das festas juninas. Também costuma coincidir com o solstício de inverno. Inicia-se com várias rodas em volta de fogueiras espalhadas por várias ruas da cidade.

117 Lopes-Graça utilizou a primeira edição do livro de Oneyda Alvarenga, Musica Popular Brasileña (1947), publicada pelo Fondo de Cultura Económica (México/Buenos Aires). 118 O livro Cem melodias folclóricas consiste na parte artística de uma pesquisa sociológica realizada entre 1952 e 1953 na cidade de Piaçabuçu, Alagoas, na foz do rio São Francisco. (ARAÚJO, ARICÓ JR., 1957, p. 5). 119 As referências detalhadas às fontes serão indicadas na tabela, no item 4.3.

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As rodas vão se juntando em um único grupo, chamado quadro, que se reúne na praça principal, também em volta de uma fogueira.

Ó, Léo, ó, Léo, olha o balanço do mar (2x)

Eu subi num estaleiro, tirei um cravo co’a unha Quem roubar o amor dos outros não tem vergonha nenhuma.

Ó, Léo, ó, Léo [...]

Eu subi num mamoeiro Tirei um mamão maduro Namorei um moreninho Que namoro tão seguro!

Lopes-Graça dá à canção um tratamento formal em duas seções similares (A e A1), com o acréscimo de uma introdução, um episódio entre as duas seções e uma coda. A textura é homofônica e varia de 2 a 4 vozes, com ocasionais divises. Figura 31: Excerto de Ó, Léo, ó Léo.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 2, c. 11-15.

A segunda canção, Té minhã, recolhida na mesma cidade, é um aboio de roça. Diferentemente do aboio de tanger gado, que é cantado a solo, este é normalmente cantado como um duo (em diálogo, não em paralelismo). Possui caráter menos melancólico que o de gado e dá a impressão de um desafio, por meio de interjeições entremeadas, cuja finalidade é animar para o trabalho. 165

Té minhã, eu vou m’imbora; Já hôje ‘stô me arrumano, ‘ boi, ô boi, tá, meu boi, tá, ô tá. E o cavalo da viage tá no mato se criano, ‘ boi, ô boi, tá, meu boi, tá, ô tá.

A forma é responsorial, sendo que o barítono solista anuncia a melodia do refrão, que é repetida por um duo de sopranos. A textura do acompanhamento realizado pelo coro é homofônica, a 4 vozes (C I e II, T, B). Figura 32: Início de Té minhã.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 4, c. 1-5. Segue-se Eu plantei o roxo n’água, recolhida em Aparecida do Norte, interior do estado de São Paulo. É uma cana-verde, dança originária de Portugal, encontrada sobretudo no centro e no sul do Brasil. Apresenta diversas coreografias e disposições dos componentes, conforme a região. Rossini Tavares de Lima descreve a melodia em questão como proveniente de uma dança de roda acompanhada por viola [caipira], na qual homens e mulheres (ou apenas homens) cantam, um grupo por vez, em terças ou uníssono, quadras populares ou improvisadas, em forma de desafio.

Eu plantei o roxo n’água, O azul na beiradinha, Plante o roxo quem quiser, Que o azul é planta minha.

Uai, uai, Plante o roxo quem quiser, Que o azul é planta minha.

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A forma da composição coral é binária, com o acréscimo de uma coda. As seções são “ecoadas” por um octeto solista. A textura é homofônica, a 4 vozes.

Figura 33: Excerto de Eu plantei o roxo n'água.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 10, c. 5-9.

A próxima canção, Meu boi nasceu de manhã, faz parte do Romance do boi Surubi (ou Surubim) incluído na coletânea de Oneyda a partir da recolha de Luís da Câmara Cascudo no livro Vaqueiros e Cantadores. Romances são narrativas em verso, de origem ibérica. Os que têm o boi por protagonista centram-se na narrativa das façanhas e morte do animal.

Meu boi nasceu de manhã, Oh! Maninha! Ao meio dia se assinou. Às quatro horas da tarde, Oh! Maninha! Com quatro touros brigou!

Lopes-Graça trata a melodia em caráter responsorial, com alternância de duas sopranos e dois tenores solistas. 167

Figura 34: Início de Meu boi nasceu de manhã.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 12, c. 1-3.

Dorme, Suzana, retirada do livro de Araújo e Aricó Jr, é um acalanto, isto é, uma canção de ninar, colhida em Piaçabuçu, Alagoas.

Dorme, Suzana, que eu tenho que fazê, Vou lavá e gomá camisinha prá você.

Ê, ê, ê, ê, ê, Suzana é um bebê. I, i, i, i, i, Suzaninha vai dormi.

Dorme, Suzana [...]

A, a, a, a, a, Suzana quer apanhá. I, i, i, i, i, Suzaninha vai dormi.

O compositor brinca com as possibilidades harmônicas da melodia, originalmente em mi lídio, harmonizando-a a partir da tonalidade de sol sustenido menor. A textura, polifônica, é bastante variada, alternando-se solos e coro em

168

diferentes divisões de vozes. Estão presentes também muitas melodias vocalizadas ou em bocca chiusa, que funcionam como pedais.

Figura 35: Excerto de Dorme, Suzana.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 15, c. 13-18.

É lampi, é lampi, originária da mesma recolha, é uma melodia ainda bastante conhecida em todo o país. O texto faz referência a Lampião (Virgulino Ferreira da Silva - 1898-1938), famoso líder do Cangaço, movimento de salteadores que percorria a região Nordeste do país em grupos armados120.

É Lampi, é Lampião. Meu nome é Virgulino, Apilido é Lampião.

Papai me dê dinheiro Pra eu comprá um cinturão Que a vida de um soltêro É andá mais Lampião.

Lampião disse que tem um sobrado nim Princesa pra botá a moça rica que é neta da baronesa.

Trata-se de um coco, porém, diferentemente de Olê, Lionê, que é um coco- canção, este inclui dança e é acompanhado por palmas com as mãos encovadas,

120 Os cangaceiros eram frequentemente bem vistos no imaginário popular como exemplo de valentia e justiça social. Eram tidos como uma espécie Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres. 169

produzindo um som grave, semelhante ao quebrar da casca de um coco, daí o nome do gênero. Lopes-Graça mantem em sua harmonização o modo de mi bemol mixolídio e utiliza uma textura homofônica, a quatro vozes, com solo de barítono.

Figura 36: Excerto de É Lampi, é Lampi.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 19, c. 16-20.

A sétima canção, também de Alagoas, intitula-se Samba Negro e é baseada numa melodia do folguedo dos quilombos. manifestação dramática que remete ao episódio do Quilombo de Palmares121, mas como revanche dos negros contra os índios. Araújo e Aricó Jr. interpretam a manifestação como teatro encomendado, diversão promovida pelos senhores com o intuito de inibir rebeliões de escravos. Armam-se, no centro de uma praça, dois “mocambos122”, um pertencente aos caboclos (índios) e outro aos negros. Na noite anterior, os participantes “roubam” objetos da comunidade e os deixam no mocambo dos índios. O roubo da rainha dos quilombos pelos caboclos inicia a parte dramática. Estabelece-se a luta e entra em cena o terno de zabumba (zabumba, caixa e dois pífanos) tocando baiões e marchinhas. A luta é musicada, com a vitória dos negros, que vendem os “escravos índios”.

121 Os quilombos eram comunidades onde escravos se refugiavam durante o período colonial brasileiro. O Quilombo dos Palmares localizava-se na Serra da Barriga, região à época pertencente à capitania de Pernambuco e hoje ao estado de Alagoas. Foi um dos mais representativos quilombos do país, tendo seu auge na segunda metade do século XVII. As primeiras referências à existência de um quilombo na região remontam a 1580. Essa forma de resistência ao sistema escravista sofreu inúmeras repressões. O golpe mais forte foi uma empreitada iniciada em 1694, com um contingente de 6 mil homens, comandados pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Em 20 de novembro do ano seguinte, Zumbi, o líder do quilombo, foi morto e sua cabeça exposta em praça pública. Essa data é hoje celebrada no Brasil como o Dia da Consciência Negra e é feriado em diversas cidades. Por volta de 1710, o quilombo dos Palmares desfez-se por completo. 122 O termo tanto pode ser um sinônimo de quilombo quanto se referir a uma habitação rústica.

170

Samba negro! _ Branco não vem cá! Si vinhé? _ Pau há-de levá.

Lopes-Graça dá à canção um tratamento polifônico, iniciando a divisão das vozes duas a duas, talvez uma referência às equipes que disputam.

Figura 37: Excerto de Samba Negro.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 23, c. 15-16.

Ai! eu não sou daqui! colhida por Oneyda Alvarenga em Varginha, Minas Gerais, é um recortado, uma dança em filas opostas ou roda, ou em filas que acabam por formar uma roda, com grande influência da quadrilha europeia. São comuns as trocas de lugar entre componentes dos casais, giros, caminhar acelerado das filas ou movimentos de corpo para frente e para trás (este último mais comum em Minas Gerais). Também são comuns o sapateado e as palmas. A coreografia, em Minas, costuma ocorrer intercalada com o canto, e não simultânea a ele. A viola é o instrumento acompanhador habitual, embora Oneyda tenha sido informada de recortados acompanhados de grupos de instrumentos diversos: sanfona, bandolins e, muito apreciados, os violinos. Os textos podem ser líricos ou cômicos e possuem sempre um estribilho (refrão) coral. As estrofes, cantadas por solistas, podem ser improvisadas. A folclorista observa que as síncopas, tão presentes em Ai! Eu não sou 171

daqui! são raras em recortados, normalmente aparecendo apenas uma no estribilho. O recortado normalmente segue o cateretê, numa espécie de pequena suíte.

Ai! Eu não sou daqui, olerê. Nem aqui quero mora.

Coa o ouro, coa o ouro, Peneira que coa ouro, ai, iá-iá, Não pode coá fubá.

Uma infeliz como eu, olerê, mora em qualquer lugá.

Coa o ouro, coa o ouro [...]

Mandei pesar a minha sina, olerê, No morro da pedraria.

Coa o ouro, coa o ouro [...]

Lopes-Graça utiliza uma textura homofônica, com solos e duos de soprano em 3as paralelas, característica muito comum na música dessa região. O coro mantém pedais vocalizados durante os solos e entoa o texto no refrão.

Figura 38: Excerto de Ai! eu não sou daqui!

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 24, c.5-9.

172

Em seguida, temos a canção Tenho um vestido novo, colhida em Cananéia, no litoral sul do estado de São Paulo. É um fandango bailado, dança de roda presente nos estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. O termo “fandango” muitas vezes designa bailes rurais em que são dançados ritmos regionais em que o sapateado é mais ou menos constante. Em Cananéia, distinguem-se dois tipos de fandango: o batido, em que o sapateado é obrigatório, e o bailado, em que o sapateado é proibido. O canto é sempre em terças paralelas e normalmente os que dançam não cantam. Aparecem figurações coreográficas de valsa (“rocambole”, “chimarrita”), mazurca (“faxineira”) e polca (“dandão”).

Tenho um vestido novo Que me deu meu namorado Pra passeá no Domingo Com meu bem lá do outro lado.

Tudo isso acontece A quem casá contra vontade: Se o marido tá no sítio A mulher tá na cidade.

Vou-me embora prá cidade, Vou cuidar de pescaria, Arranjá um camarada Prá pesca de noite e dia.

É certo que vou-me embora Prá cidade De mim não tenhas cuidado.

Lopes-Graça transpõe a melodia original um tom acima e trata inicialmente a textura de maneira rigorosamente homofônica, com todas as vozes entoando o texto. As terças paralelas são mantidas nas vozes de soprano e contralto, que realizam a melodia, enquanto tenores e baixos realizam desenho semelhante, porém 173

com inversão de sentido. Segue-se, a partir do compasso 10, uma seção mais polifônica, com a presença de um divise de sopranos em quartas paralelas.

Figura 39: Início de Tenho um vestido novo.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 29, c. 1-3.

Eu não pensei, minina, recolhida em Alagoas, é definida como roda-pagode ou canto de trabalho.

Eu não pensei, minina, Não pensei de te levá.

Mané do Riachão123, Que pecado são os seu.

Eu não pensei [...]

Tanta chuva que choveu, Seu riacho não correu.

Eu não pensei [...]

123 Cantador lendário, referido no imaginário popular como um exímio repentista que teria feito um pacto com o diabo.

174

Meu riacho só corre Com água na cabeceira.

Eu não pensei [...]

Quando o ano fô de inverno, Vê como aparece barrêra.

A composição de Lopes-Graça é texturalmente tratada como uma espécie de cânone, com paralelismo de vozes femininas em 3as e de vozes masculinas, ora em 3as, ora em 5as. A melodia evita a sensível, o que gera ambiguidade entre mi menor e mi eólio. Em sua harmonização, Lopes-Graça mantém essa possibilidade.

Figura 40: Excerto de Eu não pensei, minina.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 32, c. 5-10.

A cantiga de cego Meu irmão que vai passando foi recolhida pela Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de São Paulo (1938) em João Pessoa, Paraíba e também foi encontrada em Recife, Pernambuco. Entoadas por cegos pedintes de esmola, tais cantigas são descritas por Alvarenga (1947, p. 191) como normalmente tristes e monótonas e “de caráter muito europeu”.

Meu irmão que vai passando com saúde e alegria, Favorece o pobre cego que não vê a luz do dia. 175

Deus lhe pague a santa esmola com saúde e alegria, Deus lhe dê felicidade E a toda sua família.

Lopes-Graça destaca a melodia na voz de soprano e utiliza uma textura homofônica a quatro vozes, sugerindo um caráter coral. Mantém na harmonização a estrutura modal da melodia, transpondo-a apenas um semitom acima (fá# lídio para sol lídio). Figura 41: Início de Meu irmão que vai passando.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 34, c. 1-3.

Olha o rojão é uma embolada colhida em Jaú, no interior de São Paulo. Assim como em Ô três pega, explora a articulação rápida das palavras, embora não com tanto virtuosismo. Destaca-se o seu caráter cômico.

Olha o rojão, olha o rojão Toma cuidado que explode na sua mão!

Eu fui num baile, Na fazenda dos coqueiros,

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Tinha muito cavaiêro, muita dama prá dançá. Tinha uma véia E por desgraça era perneta, Ela andava de muleta E tava lôca prá dançá.

Olha o rojão [...]

Levei a véia para o meio do salão Arredei a rapaziada Prá ninguém me atrapaiá. Ela caiu E foi batê numa janela, machucou as pernas dela e fez o baile se acabá.

Olha o rojão, olha o rojão!

Lopes-Graça utiliza nessa composição uma textura majoritariamente homofônica, destacando com a dinâmica piano as partes de maior comicidade e exigência articulatória. Figura 42: Excerto de Olha o rojão!

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 38. c. 23-25.

A alagoana São horas de eu virá negro é uma melodia da dança do bate- coxa. Praticada por descendentes de escravos, essa dança tem características de 177

luta, como a capoeira. Os dois contendores apoiam-se nos ombros, direito com direito. Ao ouvir o canto do “Eh, boi”, ambos afastam o máximo que podem as coxas e chocam-se num golpe rápido. No próximo estribilho, repetem o movimento com a outra coxa. Perde o jogo quem cair ou desistir por cansaço. Algumas vezes, sorteiam quem será o primeiro a bater. O grupo que canta posiciona-se em roda, em torno dos que lutam. O acompanhamento da melodia é feito apenas por um ganzá.

São horas de eu virá negro, Minha gente venha vê... Com meu mano vadiá.

Eh! boi...

São horas de eu virá negro, Tanto faz daqui pr’ali, Como dali pr’acolá.

Eh! boi...

São horas de eu virá negro, Quando eu vim da minha terra, Deixei meu amor tchorano,

Eh! boi...

Com saudade eu me arretiro, Adeus não sei até quano.

Eh! boi...

São horas de eu virá negro, Desdi da vez qu’eu te vi.

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Fiquei te quereno bem.

Eh! boi...

Sózinha comigo calado, Sem dizê nada a ninguém.

Eh! boi...

São horas de eu virá negro

A composição tem uma forma responsorial, sendo que tanto as estrofes quanto o refrão “Eh, boi!“ são entoadas de duas a duas vozes, numa possível referência ao caráter de competição.

Figura 43: Excerto de São horas de eu virá negro.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 41, c. 29-33.

Pega a enxada e leva o pito é um canto de trabalhadores rurais, colhido em S. João da Boa Vista, interior de São Paulo.

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Pega a enxada e leva o pito, Vamo ino, Sebastião, Vamo capiná o arrois da bêra do ribeirão.

Ói que o mato tá matano o miará do grotão, No roçado da baixada já deu cabo do fêjão.

O arrois é boa lavra Eu vou o mandá culê. Na entrada do verão Eu vou o mandá vendê.

A composição coral inicia-se com uma textura homofônica, com solo de soprano, passando posteriormente a um cânone. Possui desde o início uma harmonia mais dissonante, com frequentes 4as, 7as, 2as e 5as. São também comuns os choques pela manutenção de uma nota pedal em alguma das vozes.

Figura 44: Excerto de Pega a enxada e leva o pito.

LOPES-GRAÇA, 1976. p. 45, c. 21-25.

A décima quinta canção é Ia baiê, colhida em Recife. É um canto proveniente do culto de Xangô, de matriz africana, com algum sincretismo com elementos católicos e espíritas. É dedicado à orixá guerreira Obá, deusa do rio africano de mesmo nome (atualmente conhecido como rio Níger), primeira esposa de Xangô, identificada com Santa Marta ou Nossa Senhora dos Prazeres. Segundo Alvarenga, os textos dos cantos do culto de Xangô são normalmente nas línguas nagô e quimbunda, geralmente desfigurados e incompreensíveis até mesmo para os

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praticantes. Não encontrei, até o presente momento, uma tradução, mesmo que aproximada, do texto.

Iá baiê locô axá ossí corô-ô Ogum obá jatobá Aiê amirú ô jô bassá, iá bassábaú. Aiê Ogum odê, e caiobó Ogum Odé. Iá canfô essum só um. Iá cambêla di aruê... iá iá ô axa ossí, Cajoê anacipa ô. Ê o anilé sê iê. Ê iuále inale reu e puma de macique êmacique êmilê, iaô, Odeô.

A composição de Lopes-Graça apresenta estrutura responsorial, com solo de mezzo-soprano.

Figura 45: Excerto de Ia baiê.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 46, c. 10-14.

Adeus, campina da serra é uma moda de viola, canção rural muito presente no sudeste e centro-oeste do Brasil, cantada a duas vozes em terças 181

paralelas, com acompanhamento de viola124 (viola caipira). Grande parte das modas são narrativas de estórias tristes, líricas/amorosas ou cômicas/satíricas. Atribuída ao cantador goiano Ernestino Gomes dos Santos, Adeus, campina da serra foi transcrita pela compositora Clorinda Rosato e gravada no disco Victor do Brasil nº 34, 234. De acordo com Oneyda Alvarenga, o texto corre, pelo menos, por São Paulo e Goiás.

Adeus, campina da serra, Lugar que eu fui morador, O meu leal coração muita delícia gozou; No prazo de pouco tempo o meu gôsto se acabou. Despediu e foi embora Quem nesta terra morou.

A minha rosa dobrada Desta terra retirou; Deu o vento na roseira, Minha rosa desmaiou; Quando a rosa despediu A roseira desfolhou, De paixão e sentimento O passarinho chorou.

Lopes-Graça destaca a melodia, primeiramente em solo de tenor e, posteriormente, em duo de sopranos, sobre pedais do coro.

124 Como exemplo de uma interpretação tradicional de moda de viola por duo masculino, incluo a gravação de Adeus, campina da serra por Raul Torres e Serrinha https://www.youtube.com/watch?v=Lc6qEP3-3-E. Acesso em 17 abr. 2018.

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Figura 46: Início de Adeus, campina da serra.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 49, c. 1-4.

A última canção, Meus senhores, eu sou a bota, é um conto acumulativo cantado tradicional da região do Caitité, na Bahia. O termo foi traduzido de uma expressão inglesa por Câmara Cascudo. Em Portugal, são conhecidos como “lenga- lenga”. Trata-se de estórias em que se encadeiam palavras ou períodos, numa longa série. Normalmente as estrofes vão aumentando e há um final fixo que serve de estribilho.

Meus senhores eu sou a bota (2x) Que leva a vidinha fazendo patota. (2x)

Meus senhores eu sou a porta (2x) Que leva a vidinha fazendo patota. (2x)

Meus senhores eu sou a corda (2x) Que marre a bota E botei na porta, Que leva a vidinha 183

fazendo patota. (2x)

Meus senhores eu sou o sebo (2x) Que passe na corda Que marre a bota E botei na porta, Que leva a vidinha fazendo patota. (2x)

Meus senhores eu sou o rato (2x) Que roeu o sebo Que passe na corda Que marre a bota E botei na porta, Que leva a vidinha fazendo patota. (2x)

Inicialmente, o compositor dá à textura um tratamento homofônico, passando a alguns solos de naipe e finalmente dividindo o texto das estrofes entre os naipes, numa possível referência pessoal à brincadeira em questão. Trataremos em mais detalhes esse aspecto no subcapítulo a seguir.

Figura 47: Excerto de Meus senhores eu sou a bota.

LOPES-GRAÇA, 1976, p. 54, c. 18-21.

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4.2.1 – O tratamento composicional das fontes nas Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras: alguns exemplos

Praticamente não é feita nenhuma interferência nas melodias originais, salvo transposições que não ultrapassam a distância de uma 3ª maior e diferenças de notação que não alteram significativamente a estrutura rítmica. Tampouco o compositor altera os textos, transcrevendo a pronúncia coloquial tal qual em suas fontes. O que ocorre muitas vezes é suprimir algumas estrofes. Nesta série, Lopes - Graça deixa os temas sempre em primeiro plano, em vozes ou naipes solistas. Muitas vezes chega mesmo a indicar na partitura, com um pequeno colchete, a voz que canta o tema. Observa-se uma abordagem livre da forma, mas que leva em consideração elementos contextuais de cada manifestação. Tomemos como primeiro exemplo Ia baiê. Lopes-Graça mantém a estrutura responsorial inalterada segundo as indicações de Oneyda Alvarenga. Figura 48: Excerto de Ia baiê. Estrutura responsorial mantida.

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Por outro lado, no caso da última canção, Meus senhores, eu sou a bota, Lopes-Graça cria seu próprio jogo. É próprio dos contos acumulativos o aumento gradativo do texto das estrofes, o que constitui um desafio à memorização e, por vezes, à capacidade de improviso de quem está cantando. É comum, portanto, que o canto da estrofe seja tarefa de um solista por vez. Entretanto, Lopes-Graça cria uma espécie de desafio às vozes, a partir de sua alternância em cada novo elemento do conto, o que também resulta em um maior colorido vocal.

Figura 49: Jogo de alternância de vozes em excerto da canção Meus senhores eu sou a bota. Em azul a estrofe e, em amarelo, o refrão.

186

Edição da autora a partir de LOPES-GRAÇA, 1976, p. 55, c. 27-37.

Percebe-se a busca de uma conciliação entre a estrutura original das canções e a escrita pessoal do compositor. Mário Vieira de Carvalho (2006, p. 170) relaciona o processo composicional de FLG ao ideal de musique informelle proposto por Theodor Adorno125, que, grosso modo, consiste em interagir com as sugestões do próprio material em vez de se prender a esquemas formais pré-definidos. Nas palavras do filósofo alemão:

O que se denota é uma música que descartou todas as formas que a enfrentam de uma maneira externa, fixa, abstrata, mas que, perfeitamente livre do heteronomamente imposto e estranho a ela, constitui-se, não obstante, de uma maneira objetivamente obrigatória no fenômeno, não nestas legalidades exteriores. Além disso, uma liberação assim, na medida que seja possível sem uma nova opressão, deve também tentar desfazer-se dos sedimentos do sistema de coordenadas no interior dos fenômenos. [...] na estética o geral e o particular não simplesmente se contrapõem. Se a música informal renuncia às formas abstratas, à universalidade musicalmente má das categorias intracompositivas, as universais aparecem no mais íntimo da particularização e fazem com que esta brilhe. (ADORNO ([1961] 2006, pp. 506-507126).

O tratamento composicional das canções não difere do conferido a outras obras baseadas em temas portugueses ou de outras culturas. Por exemplo, em Não

125 O ensaio de Adorno tem como centro a crítica do dodecafonismo e do serialismo integral como “sistemas” ou “legislações” que aprisionam o compositor, oferecendo-lhe uma ilusória garantia a priori de coesão da obra, quando esta deve ser resultado de um ato de liberdade, de pesquisa não regulamentada, de conquista a posteriori do resultado, como produto da dialética sujeito/objeto. O atonalismo livre estava, portanto, próximo do ideal de musique informelle, enquanto o dodecafonismo e o serialismo integral a ele se contrapunham. No caso de Lopes-Graça, Vieira de Carvalho aplica o mesmo raciocínio, apesar de se tratar de um estilo composicional completamente diferente dos abordados no texto original. Ao se referir à musique informelle, considera a relação compositor-material (dialética sujeito-objeto) em Lopes-Graça, partindo das premissas técnicas e estéticas do material com que este trabalhava. 126 Tradução minha, a partir da edição espanhola (Akal, 2006). 187

segueis o trigo verde, da segunda série de Canções Regionais Portuguesas127 (1954/58), o uso de notas pedais que levam à formação de dissonâncias com as demais vozes é muito similar ao realizado em Ó Léo, ó Léo.128

Figura 50: Uso de notas pedais em Não segueis o trigo verde e Ó Léo, ó Léo

127 Os excertos das canções sobre temas portugueses e franceses foram obtidos a partir de manuscritos disponíveis no Catálogo da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça (CATÁLOGO, 2015). 128 Nas análises funcionais, optei pela notação proposta em Brisolla, 2006.

188

Nota-se a criação de efeitos de dinâmica a partir do recurso à rarefação e adensamento da textura em À ordem de César, da Segunda cantata do Natal, sobre cantos tradicionais portugueses da natividade ([1960/61] 1962), bem como em Dorme, Suzana. Nesta última, temos o início com solo de mezzo-soprano, acompanhado por duo dos naipes de contralto em notas longas, seguido de um refrão a quatro vozes (SCTB). Selecionei o trecho final da canção portuguesa, onde o tutti em três vozes (mezzos, contraltos e tenores) se abre em cinco vozes (SMCTB), reforçando a dinâmica forte.

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Figura 51: Rarefação (azul) e adensamento (vermelho) da textura em excertos de Dorme, Suzana e À ordem de César.

190

Tomemos agora uma canção baseada em tema francês: Voici le mois de mai, das Rondes et complaintes (1958/59). Podemos perceber dualidade modal M/m gerada pelo emprego frequente da tônica relativa e certa ambiguidade tonal-modal produzida pela presença de acordes sem 3ª, elementos muito presentes ao longo de toda a série das Dezassete Canções, assim como as cadências suspensivas. Observe-se, por exemplo, o recortado Ai, eu não seu daqui, apresentado logo adiante. 191

Figura 52: Dualidade modal, ambiguidade tonal-modal e cadência suspensiva em excerto inicial de Voici le mois de mai

Por vezes a harmonização de Lopes-Graça traz à tona afetos do texto ou mesmo da própria melodia que não ficam tão evidentes se a considerarmos em seu contexto funcional – aqui no sentido de função social. No recortado Ai, eu não sou daqui, por exemplo, as dissonâncias do acompanhamento coral e a ambiguidade gerada pela forte presença da tônica relativa e de acordes com as duas terças revela o aspecto melancólico do texto, o qual não nos vem à mente ao tomarmos apenas a melodia em seu contexto de dança. Os acordes dos quatro primeiros compassos são formados pelas mesmas notas. É interessante observar como, simplesmente posicionando no baixo a nota dó (quinto grau) o compositor surpreende ao criar, logo no primeiro compasso, a sensação de dominante, quebrando a expectativa da tônica, que se ouviria em uma harmonização tonal simples.

192

Figura 53: Excerto inicial da canção Ai! Eu não sou daqui.

Edição da autora a partir de LOPES-GRAÇA, 1976, p. 24, c. 1-13.

Na seção central da moda de viola Adeus, campina da serra, Lopes-Graça mantém a estrutura original da melodia em terças paralelas enquanto constrói um acompanhamento baseado em “cores intervalares” muito características de sua 193

escrita, como as quartas, as sétimas e os choques de segundas.129 Na figura a seguir apresentamos, a título de comparação, como se daria uma harmonização estritamente tonal da moda (cifras na parte superior) e uma análise das sonoridades intervalares privilegiadas por Lopes-Graça (parte inferior).

Figura 54: Excerto da moda de viola Adeus, campina da serra.

129 Lopes-Graça, ao optar por um duo de sopranos, não segue rigorosamente a tradição da moda de viola, comumente executada por duos masculinos.

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Edição da autora a partir de LOPES-GRAÇA, 1976, p. 51-52, c. 17-31. 195

Para descrever a luta entre quilombos (negros) e caboclos (índios), na canção Samba Negro, o compositor recorre a uma polifonia um pouco mais densa, relacionada à tradição escrita erudita, não se prendendo, neste caso, às sugestões formais de sua fonte. Não há na partitura transcrita por Aricó Jr e Alceu Maynard Araújo (1957, p. 137) nenhuma referência explícita a uma estrutura imitativa. A transcrição do texto (p. 51), por sua vez, faz referência a uma estrutura responsorial, a que o compositor se refere musicalmente em alguns momentos, por meio da alternância de vozes masculinas e femininas, mas não seguindo exatamente as indicações do texto.

Samba negro! _ Branco não vem cá! Si vinhé? _ Pau há-de levá.

Figura 55: Excerto final da canção Samba Negro.

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Edição da autora a partir de LOPES-GRAÇA, 1976, pp. 22-23, c. 14-23.

Podemos encontrar, nas Dezassete Canções, a exploração dos limites da escrita tonal por meio do uso de elementos muito característicos da paleta do compositor, como por exemplo ambiguidade tonal-modal (ausência de 3ª nos acordes, cadências plagais, presença frequente do acorde alterado de tônica (com 7ª menor nas tonalidades maiores), escolha de melodias que contenham ambiguidade), dualidade modal M/m (presença frequente da tônica relativa), ambiguidade M/m num mesmo acorde: (presença de ambas as 3as) e término das peças em acordes suspensivos (anticlímax).

4.3 – Alteridade explícita como crítica ao exotismo

A pesquisa realizada levou à hipótese de que, em sua obra vocal que utiliza temas musicais folclóricos brasileiros, a atenção à diversidade regional na escolha dos temas, sua citação explícita e praticamente inalterada e um tratamento formal que leva muitas vezes em consideração as referências de suas fontes ao contexto original das manifestações retratadas constituiriam uma preocupação de Lopes-Graça em evitar o exotismo musical. 197

Quanto ao primeiro ponto, optando por um material tão diversificado, Lopes-Graça acaba por revelar uma realidade musical complexa, resultando em uma crítica à visão estereotipada da música brasileira. É possível observar, na tabela e mapa a seguir, tanto a amplitude geográfica quanto a variedade de manifestações retratadas. Tabela 4: Gênero, Estado e Fonte das Sete e Dezassete Canções

Canção Gênero Origem Fonte Sete Canções Populares Brasileiras

ALVARENGA, 1947, I Virgem do Rosário Canto de Taiêras Bahia p. 102 Tatu é caboclo (Idem, ibidem, pp. II do sul Toada Goiás 225-226 Diversas regiões do Idem, ibidem, pp. III Tutu Marambá Acalanto Brasil 193-194 Idem, ibidem, pp. IV Ô três pêga Embolada Pernambuco 229-230 Macumba Idem, ibidem, p. V Xangô ("Canto de feitiçaria") Rio de Janeiro 180 Coco-canção Idem, ibidem, p. VI Olê, Lionê (“Côco”) Maranhão 124 Colônia, usina, Canto de trabalhadores Idem, ibidem, pp. VII Catende assucareiros [sic] Pernambuco 185-187 Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras ARAÚJO, ARICÓ JR, 1 Ó Léo, ó Léo Roda-pagode Piaçabuçu, Alagoas 1957, pp. 34, 130 idem, ibidem, 2 Té minhã Aboio de roça Piaçabuçu, Alagoas pp. 55, 137 Eu plantei o roxo Aparecida do Norte, 3 n'água Cana-verde São Paulo LIMA, 1958, p. 145 Meu boi nasceu Várias localidades ALVARENGA, 4 de manhã Romance do Nordeste 1947, pp. 219-220 ARAÚJO, ARICÓ JR, 5 Dorme, Suzana Acalanto Piaçabuçu, Alagoas 1957, pp. 43, 135 Idem, ibidem, 6 É lampi, é lampi Coco Piaçabuçu, Alagoas pp.73, 147 Idem, ibidem, 7 Samba Negro Quilombos Piaçabuçu, Alagoas pp. 51, 137 Ai eu não sou Varginha, Minas ALVARENGA, 8 daqui Recortado Gerais 1947, pp.158-159 Tenho um vestido Idem, ibidem pp. 9 novo Fandango bailado Cananéia, São Paulo 146-147 Eu não pensei, Roda-pagode/canto de ARAÚJO, ARICÓ JR. 10 minina trabalho Piaçabuçu, Alagoas 1957, pp. 37, 134 Meu irmão que vai ALVARENGA, 11 passando Cantiga de cego Paraíba/Pernambuco op. cit., pp. 191-192 LIMA, 1958, pp. 12 Olha o rojão Embolada Jaú, São Paulo 172-173 São horas de eu ARAÚJO, ARICÓ JR., 13 virá negro Dança do bate-coxa Piaçabuçu, Alagoas 1957, pp. 47, 136

198

Pega a enxada e São João da Boa LIMA, 1958, 14 leva o pito Canto de trabalho Vista, São Paulo pp.161-162 ALVARENGA, 15 Ia baiê Toada - culto de Xangô Recife, Pernambuco 1947, pp. 181-182 Adeus, campina da Idem, ibidem, 16 serra Moda de viola Goiás pp.223-224 Meus senhores, Conto acumulativo LIMA, 1958, 17 eu sou a bota cantado Caitité, Bahia pp. 163-166

Figura 56: Distribuição regional das Sete e Dezassete Canções

Aos olhos de hoje, tais escolhas podem vir a ser apressadamente interpretadas como ilusão ou pretensão de uma abordagem totalizante. No entanto, essa forma de destaque para a amplitude territorial e a diversidade cultural/musical brasileira deve ser entendida, antes de tudo, como uma resposta ao desconhecimento mútuo das nossas músicas, que o compositor lamentou em muitas ocasiões, por exemplo em um artigo publicado cinco anos antes da composição desta série:

[...] nem os portugueses conhecem nada da música brasileira, nem os brasileiros têm notícia alguma da música portuguesa ou, pior do que isso: que o que nós conhecemos da música do Brasil se reduz ao samba, que o que eles, os nossos irmãos de além-Atlântico, conhecem da música de Portugal se limita ao fado. (LOPES-GRAÇA, [1955] 1973, 285).

A utilização de coletâneas elaboradas por folcloristas brasileiros coevos e a reprodução praticamente inalterada das melodias pode ser também interpretada como fuga consciente ao exotismo, por meio do apoio em frutos de extensivas 199

pesquisas de campo que o autor não teria condições de realizar130. Entendo que a manutenção das melodias originais em primeiro plano e a sua convivência com elementos idiossincráticos da escrita do compositor estão relacionadas a um jogo de identificação e distância similar ao que Mário Vieira de Carvalho, conforme discutido no Capítulo 2, item 2.3.2, aponta em sua relação com o “povo” e sua música. Lopes- Graça tinha consciência de sua origem e formação numa pequena burguesia urbana e de sua condição de músico educado e inserido numa tradição grafocêntrica e, portanto, de sua distância em relação ao “povo” rural. Reconhecia estar criando algo novo, algo “outro” a partir do material musical com que trabalhava. Da mesma forma, creio que reconhecia os limites que sua condição de estrangeiro lhe conferia ao conhecimento da música de tradição oral brasileira. Em outras palavras, o compositor em nenhum momento tenta “dissolver-se” em música brasileira ou “disfarçar-se” de compositor brasileiro. Além da intenção de deixar sua marca identitária nas composições, a presença de elementos característicos de seu estilo pode ser entendida como explicitação da alteridade, numa tentativa de fuga ao exotismo por meio de um distanciamento crítico. É importante observar que não se entende a “identidade estilística” do autor como algo totalmente original, inventio ex-nihilo, e sim como parte de uma linguagem harmônica que se desenvolvia desde a virada do século, a partir da exploração dos limites do sistema tonal: sua expansão, diálogos com sistemas modais, um raciocínio intervalar mais colorístico e tímbrico, etc, além da exploração de novas possibilidades rítmicas e tímbricas. Podemos citar entre suas principais referências Béla Bartók, Claude Debussy, Manuel de Falla, Paul Hindemith, entre outros.

4.3.1 – O diálogo com uma outra escuta

Durante o estágio de pesquisa PDSE-CAPES realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tive a oportunidade de entrevistar o maestro José Robert, atual regente do Coro da Academia de Amadores

130 Acredito que a questão do exotismo na pesquisa e transcrição das melodias e no discurso dos autores das coletâneas de referência daria margem a discussões que, embora importantes, fugiriam ao escopo do presente trabalho. Deve-se destacar, contudo, a atualização dos portugueses em relação às pesquisas folclóricas brasileiras. Assim como os livros de Lopes-Graça chegavam ao Brasil, os livros brasileiros eram vendidos em Portugal. Não se sabe se as coletâneas de Rossini Tavares de Lima e Maynard/Aricó Jr. foram adquiridas durante a primeira viagem de Lopes-Graça ao Brasil, mas certamente o acesso à coletânea de Alvarenga foi anterior a esse período.

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de Música e responsável pela primeira audição e gravação integral das Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras com o Coro da Universidade de Lisboa. O projeto do disco realizou-se em 1994, meses antes da morte do compositor que, felizmente, ainda pôde acompanhar a sua preparação. Em consonância com o que esta pesquisa tem levado a afirmar, o maestro destacou, nessa série coral, a riqueza de detalhes e a busca de um retrato o mais preciso possível da cultura, uma preocupação muito característica de sua atitude enquanto compositor.

O Graça, de certeza que, ao agarrar nessas canções, não fez um arranjo pseudo-brasileiro, de maneira nenhuma. Reinventou-as, mantendo a sua traça, a sua perenidade, a sua seiva, e foi de facto [...] ao começar a trabalhá- las, senti, na leitura da partitura, que já possuía, tinha pressentido isso, mas já ao começar a trabalhar, conheci um mundo... cada sílaba, cada acorde, cada movimento, cada resolução era um mundo, um mundo. Acho que o Graça tinha andado por ali a vaguear o Brasil, a ouvir... depois, ao ler os comentários, ao ver, ao perceber o conteúdo de cada uma das canções, a maneira como ele trabalhou... tudo... os sentimentos, as emoções, a ironia, a graça que nela estavam contidos, fui convencido, fui vencido e as quis mesmo fazer e, pronto, foi assim. (ROBERT, 2016).

Perguntado sobre a existência de distinções entre o tratamento composicional nas Dezassete Canções e nas Canções Regionais Portuguesas, Robert apontou uma maior leveza, de maneira geral, na estrutura. Encontro diferenças muito grandes, tirando, naturalmente, a utilização de materiais comuns, o que é obvio, mas, sobretudo, no aspecto composicional que tem a ver com a arquitetura do todo e de cada uma das canções. Elas têm, digamos, uma arquitetura diferente, parece que pertencem a uma outra escola e não é, é Lopes-Graça. Isso diferencia-as muito das canções tradicionais portuguesas... em que eu sinto um peso mais fundo no conteúdo do edifício, um edifício com bases, com alicerces mais profundos e um teto não demasiado alto, e nas canções brasileiras eu sinto que esse edifício tem uma base mais leve (ROBERT, 2016).

Tal característica teria, a seu ver, relação com o material musical e, em certa medida, com algumas facetas de um ethos brasileiro. E aí ele foi realmente atrás de uma leveza que fará parte, digamos, da alma brasileira, da própria canção, mesmo que ela seja uma canção de aboio [como] Té Minhã. Eu sinto essa leveza nessa tal base não tão inserida no terreno e sinto as canções brasileiras mais atiradas para cima. Muitas daquelas canções são canções de dança e há como que uma coreografia. São canções coreográficas na sua estrutura e, por isso, aquela filigrana eleva-se mais para cima. Se compararmos, por exemplo, o românico com o gótico... só para ter uma ideia de leveza. Tem a ver com dança, provavelmente com um ato festivo de vida que se confunde com o próprio trabalho e obviamente que está no trabalho, mas que não é tão dramático como a nossa canção regional [...] embora contenham muita dor. Mas parece que toda a atmosfera tropical, o florescer, toda a natureza do Brasil está ali, como um aliviar de tensões, ou deixar que elas existam, mas suavizando-as. A própria canção do Samba Negro, por exemplo: toda a violência que existe, 201

inserida, sugerida nas próprias canções está lá, seja ela afetiva, social, de todo tipo, está nessas canções. É muito transparente. Tudo isto me parece que diferencia as canções do trabalho que ele fez com as canções tradicionais portuguesas. (ROBERT, 2016).

É interessante notar que Robert mais uma vez chama a atenção para o cuidado de Lopes-Graça para com a riqueza de detalhes do material temático, destacando a multiplicidade de camadas de afetos em cada texto e melodia. Observo uma curiosa tendência, em nossas escutas, para o destaque daquilo que é por cada um percebido como diferente – de minha parte, as idiossincrasias “gracianas” no tratamento harmônico e textural e, da parte do maestro, as diferenças no tratamento estrutural. Sobre esse último aspecto, confesso que por ora concordo parcialmente, embora reconheça o peso de sua experiência como estudioso desse repertório há mais de quarenta anos. É, à partida, bastante complicado comparar 14 séries de canções escritas ao longo de décadas e uma série escrita num mesmo ano. A recorrência de finais suspensivos nas Dezassete Canções - elemento que contribui para a sensação de leveza - não parece tão grande se tomarmos todos os volumes das Regionais. Contudo, tais finais estão bastante presentes nesse repertório, mas é como se se “dissolvessem” em meio a outras peças com finais mais conclusivos. O mesmo se pode dizer de uma textura mais aberta e variada e do uso de uma maior extensão vocal, elementos que se apresentam de forma mais constante e, portanto, concentrada, nas Dezassete Canções. Quanto ao papel da dança na construção dessa leveza e no disfarce das tensões, minha escuta vai ao encontro da do maestro. Muitas vezes temos, nas canções brasileiras, um texto que faz referência a um contexto de exploração de trabalho ou de desconforto e deslocamento do eu-lírico, embora esteja presente em uma manifestação coreográfica de caráter lúdico. É o caso, por exemplo, de Ai, eu não sou daqui! e São horas de eu virá negro. De qualquer forma, as duas escutas convergem no que diz respeito ao cuidado do artista com a sutileza e a simultânea presença de olhar crítico e busca de fidelidade à cultura retratada, desde a pesquisa do material musical até o seu tratamento composicional, revelando os detalhes especialmente nos contrastes.

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4.4 - À memória de Mário de Andrade

A visão de Lopes-Graça sobre o tratamento da música tradicional em muitos aspectos se assemelha ao pensamento do escritor e musicólogo brasileiro Mário de Andrade (1893-1945), a cuja memória as Dezassete Canções foram dedicadas. Apesar de não o ter conhecido pessoalmente, Lopes-Graça faz diversas referências ao seu trabalho em seus textos, dentre os quais podemos citar o verbete sobre o autor em seu Dicionário de Música (1956) e os comentários ao Inquérito aos compositores brasileiros, de que tratamos no capítulo anterior. Ciente de que semelhante comparação exigiria um maior aprofundamento e renderia certamente um trabalho de fôlego, aponto, contudo, algumas questões que nos podem ajudar a contextualizar a dedicatória. Em seu Ensaio sobre a música brasileira131, texto publicado em 1928 e que serviu de manual estético a boa parte dos compositores brasileiros do século XX, Andrade defende a criação de uma “música artística brasileira”, baseada, de um lado, na pesquisa da música popular – tomada como “matéria-prima” e, de outro, no diálogo com os movimentos vanguardistas europeus (CONTIER, 2004). Seu conceito de música popular baseava-se na “descoberta das “falas culturais” do “povo inculto” (folclore “puro” eminentemente rural) ou nos traços de brasilidade internalizados em algumas obras escritas pelos compositores urbanos, tais como Marcelo Tupinambá, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth” (Idem, 1995, 77-78). Para ambos, o tratamento erudito da música tradicional constituiria sua elevação a um patamar artístico superior. Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada. (ANDRADE, [1928] 1972, p. 16).

[...] como compositor, vim a concluir que o tratamento artístico da canção popular portuguesa é perfeitamente compatível com todos os recursos e conquistas da moderna técnica e gramática musicais; e direi mesmo que só aplicando-lhe, com o devido discernimento, está bem de ver, esses recursos e conquistas, é que ela se poderá valorizar completamente. (LOPES-GRAÇA, [1942] 1989, p. 140.)

131 Embora não tenha encontrado nenhuma citação direta do Ensaio sobre a música brasileira em Lopes-Graça e tampouco um exemplar do mesmo em seu espólio no Museu da Música Portuguesa, entendo que o compositor teria tido contato com o texto, uma vez que este é mencionado no Dicionário de Música ([1956]1962, p. 66), elaborado por Graça em colaboração com seu antigo professor, Pe. Tomás Borba. No Inquérito aos Compositores Brasileiros ([1958] 1984, p.199), Lopes-Graça destaca o papel decisivo de Andrade na formação do “brasileirismo essencial” de Francisco Mignone. 203

Tal visão deve-se possivelmente à grande influência, ainda à época, das ideias do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), um dos principais representantes do evolucionismo, para quem o sentido da evolução, entendida necessariamente como progresso dar-se-ia, em todos os aspectos da realidade, sempre do “simples” para o ”complexo”132. A busca de uma matéria-prima musical não contaminada pela indústria cultural também é um ponto comum aos dois pensadores. Ambos enfatizavam as particularidades do material, aquilo que diferia de uma linguagem tonal e ritmicamente regular; nos termos de Vieira de Carvalho (2006), elementos musicalmente transgressivos. No caso das Dezassete Canções pode-se considerar, por exemplo, a escolha de uma moda de viola que, embora possa ser considerada tonal, não tem uma forte relação de sensível, além de ter um ritmo livre, declamado. Mário de Andrade chama, no texto do Ensaio, a atenção para a versão paraibana da canção Mulher Rendeira, em que a sensível é evitada sistematicamente, o que também acontece na melodia de Eu não pensei, minina, décima das Dezassete Canções. É possível, todavia, observar algumas diferenças entre o pensamento dos dois autores. Mário considerava que o processo de nacionalização da música erudita passaria pelo estudo da música tradicional em direção à incorporação de suas idiossincrasias, resultando na criação de uma música totalmente nova, mas que soasse brasileira, ao que chamava “inconsciência nacional”. De acordo com Teresa Cascudo (2010, p. 246), Lopes-Graça destacava como fonte de inspiração para sua escrita três métodos praticados por Bartók: a utilização imediata do material tradicional, a invenção paralela à música tradicional e a assimilação inconsciente do idioma harmônico da canção tradicional. Algumas obras de Lopes-Graça refletiriam, segundo Mário Vieira de Carvalho (2006, p. 131), essa “osmose” das características da música tradicional, mas, diferentemente da proposta andradeana, não se pode dizer que o compositor via essa produção como estágio avançado de um processo evolutivo. As três formas de trabalho do material musical alternam-se ao longo de toda a sua produção.

132 É interessante notar que a relação entre evolução, complexificação e progresso perdeu rapidamente força nas ciências biológicas, domínio onde a noção de evolução pôde ser efetivamente corroborada por provas. Permaneceu, porém, como hipótese metafísica, não passível de comprovação. Segundo o verbete “Evolucionismo” no Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano (2007, pp. 396-397), a crença em um processo linear e necessariamente progressista está nas entrelinhas de distintas doutrinas filosóficas, tendo influenciado teórica e metodologicamente uma série de pesquisas nas ciências humanas.

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Mário de Andrade, apesar de destacar as particularidades regionais da música brasileira e a multiplicidade de influências culturais envolvidas, não deixa de transmitir em seus textos uma ideia de coesão nacional, bem como a busca do que seria a essência da música brasileira, por ele associada no Ensaio à mistura de influências negras, indígenas e portuguesas. Lopes-Graça, por outro lado, opunha-se radicalmente à essencialização de uma música portuguesa e tampouco se nota em seus escritos a busca de coesão nacional. O principal motivo dessa distinção parece estar no fato de que o Ensaio se insere, em um país consideravelmente jovem em termos políticos, no contexto de um projeto de construção de uma nação, e de construção de sua identidade artística a partir da cultura popular, ideia que remonta ao pensamento do filósofo alemão Johann Gottfried von Herder133 (1744-1804). Apesar de a busca andradeana da essência da música brasileira e de coesão nacional guardar semelhança com o que viria a ser a política cultural do Estado Novo (1937-1945) do presidente Getúlio Vargas, regime com elementos populistas e ditatoriais, marcado por forte exaltação nacional e busca de criação de uma identidade cultural homogênea do país, deve-se observar que Andrade possuía tendências esquerdistas e não se alinharia ao governo. Lopes- Graça, por sua vez, em pleno salazarismo, ia na contramão de uma política cultural que impunha uma identidade pretensamente homogênea.

133 Agradeço a abertura para essa discussão ao prof. Dr. José Roberto Zan, durante a arguição do exame de Monografia I. 205

Capítulo 5 – Gabriela, cravo e canela: abertura para uma ópera cómica

Gabriela, cravo e canela, abertura para uma ópera cómica, sobre o romance homônimo de Jorge Amado, foi composta entre os anos de 1960 e 1963. Em carta de 13 de setembro de 1960, Amado concede a Lopes-Graça a autorização para compor a abertura e diz estar “sumamente honrado com o fato da pequena Gabriela ter te inspirado uma peça sinfônica”.134 Foi dedicada à Academia Brasileira de Música, possivelmente em agradecimento pela sua eleição como membro correspondente em 1961. (TACUCHIAN, 2004). A obra teve sua primeira audição na Holanda em 24 de janeiro de 1964, pela Noordhollands Philharmonisch, sob a regência do português Joaquim da Silva Pereira (CASCUDO, 1997). Foi gravada pela Orquestra Sinfónica do Porto em 1968, também sob a sua regência. Uma primeira tentativa de apresentação no Brasil seria realizada em 1965 pelo maestro Alceo Bocchino, junto à orquestra da Rádio Ministério da Educação, conforme podemos ler na correspondência entre Lopes-Graça Guerra- Peixe135 que, à época, integrava a orquestra como violinista. Ricardo Tacuchian (2006, p. 105), a partir da leitura da referida documentação, atribui o problema ao fato de o então diretor da rádio ser designado pelo Regime Militar, que possivelmente fazia reservas à apresentação de uma obra inspirada em texto de um antigo militante comunista.

Jorge Amado recebeu a gravação em 1968136 e o maestro Carlos Veiga, amigo do escritor, entusiasmado, decidiu apresentar a obra com a orquestra da Universidade Federal da Bahia. A audição brasileira deu-se a 8 de maio de 1969, num programa que incluía ainda obras de Villa-Lobos, Glazunov e Borodin. Alguns dias depois, curiosamente, Lopes-Graça realizaria sua segunda visita ao Brasil, participando do júri do I Festival de Música da Guanabara, no Rio de Janeiro num roteiro que, desta vez, não incluía a capital baiana. Amado envia ao compositor um recorte do jornal A Tarde com a notícia da estreia, que aqui reproduzo. Sem fazer qualquer referência a tentativas prévias de apresentação no Rio de Janeiro, a

134 Não foi ainda possível ter acesso às cartas enviadas por Lopes-Graça, uma vez que a correspondência do escritor, aos cuidados da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, ainda não está disponível para consulta. Para mais detalhes, cf. item 3.1. 135 Carta de Guerra-Peixe a Fernando Lopes-Graça - Guanabara, 16 de julho de 1965/ Carta de Lopes-Graça a Guerra-Peixe – Parede, 12 de agosto de 1965 – Museu da Música Portuguesa – Cascais. 136 Conforme carta de Jorge Amado a Fernando Lopes-Graça – Salvador, 23 de outubro de 1968.

206

reportagem destaca a insistência do escritor para que fosse a capital baiana a primeira cidade brasileira a ouvir a abertura.

Figura 57: Reportagem sobre a primeira audição brasileira de Gabriela.

Museu da Música portuguesa – Casa Verdades de Faria 207

Gabriela137 também seria apresentada e gravada em 04 de dezembro de 1976 pela orquestra da Radiodifusão Portuguesa, novamente sob a batuta de Silva Pereira (SILVA PEREIRA, 2006) e em 14 de julho de 2006, ano do centenário de nascimento do compositor, no Teatro Nacional São Carlos, pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida por Cesário Costa (CENTRO, 2016). Segundo Romeu Pinto da Silva (2009), João de Freitas Branco (1968) e Sérgio Azevedo (2006), não era intenção de Lopes-Graça compor uma ópera inteira, mas propor, num bem-humorado jogo, uma “abertura sem ópera”, ou uma “abertura real para uma ópera imaginária”, nas palavras de Azevedo. Na música, os doze primeiros compassos [excerto até 43” na gravação anexa] trazem, com lentos arpejos de si bemol maior, à maneira de instrumentos sendo afinados (ideia que remete ao início da nona sinfonia de Beethoven138), essa “expectativa de abrir-do-pano”, nas palavras de Freitas Branco. Figura 58: "Abrir do pano" em Gabriela

137 Gravação por Silva Pereira e a Orquestra Sinfónica da RDP https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/39- gabriela-cravo-e-canela-op-156/s-LEclZ. 138 Disponível em http://www.deezer.com/track/107683198?utm_source=deezer&utm_content=track- 107683198&utm_term=129212263_1524066380&utm_medium=web. Acesso em 18 abr. 2018.

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Edição da autora a partir do manuscrito autógrafo (LOPES-GRAÇA, 1963).

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Figura 59: Início da nona sinfonia de Beethoven, possível referência para o "abrir do pano" de Gabriela.

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5.1 - Crônica de uma cidade do interior: as tópicas “urbana” e “nordestina” como retrato da Ilhéus do início do século XX

Uma primeira escuta, referenciada pela leitura do romance, põe em relevo a alternância entre momentos de agitação e tranquilidade, possivelmente refletindo a surpresa da simplória Gabriela ao chegar à cidade de Ilhéus (sul da Bahia), ou até mesmo a atmosfera da cidade no início do século XX, misto de raízes rurais e desenvolvimento urbano139.

Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e em Itabuna naquele tempo. Estava em todas as bocas, insistentemente repetida. Aparecia nas colunas dos jornais, no cotidiano e nos semanários, surgia nas discussões na papelaria Modelo, nos bares, nos cabarés. Os ilheenses repetiam-na a propósito das novas ruas, das praças ajardinadas, dos edifícios no centro comercial e das residências modernas na praia, das oficinas do Diário de Ilhéus, das marinetes saindo pela manhã e à tarde para Itabuna, dos caminhões transportando cacau, dos cabarés iluminados, do novo Cine- Teatro ilhéus, do campo de futebol, do colégio do dr. Enoch, dos conferencistas esfomeados vindos da Bahia e até do Rio, do Clube progresso com seus chás dançantes. “É o progresso! ” diziam-no orgulhosamente, conscientes de concorrerem todos para as mudanças tão profundas na fisionomia da cidade e nos seus hábitos. Havia um ar de prosperidade em toda parte, um vertiginoso crescimento. Abriam-se ruas para os lados do mar e dos morros, nasciam jardins e praças, construíam-se casas, sobrados, palacetes. Os aluguéis subiam, no centro comercial atingiam preços absurdos. Bancos do sul abriam agências, o Banco do Brasil edificara prédio novo, de quatro andares, uma beleza! (AMADO [1958] 2008, p. 19)140.

O compositor não faz uso direto de temas ou instrumentos tradicionais, mas em alguns trechos utiliza-se de recursos que evocam a música da região nordeste do Brasil. Um desses recursos é o uso de alguns motivos em modo mixolídio com quarta aumentada. Figura 60: Escala de si b mixolídio com quarta aumentada. O uso em um excerto (violoncelos soli) pode ser observado mais adiante.

139 Embora não tenha visitado precisamente a cidade de Ilhéus, devemos lembrar que Lopes-Graça esteve em Salvador durante sua primeira viagem ao Brasil, em 1958, e que, como podemos ler no postal enviado a Manuel e Berta Mendes (p. 156, item 3.5.2), o compositor não teve de sua experiência na cidade as melhores impressões: muito calor e desorganização, tanto do ambiente urbano quanto dos compromissos para ele preparados. A sua leitura do romance foi, portanto, mediada por essa experiência concreta, que teria possivelmente contribuído para o seu retrato da paisagem e dos costumes. 140 Utilizo como referência na realização das citações a edição de 2008, publicada pela Companhia das Letras. É interessante observar que 1960, ano do início da composição de Gabriela, foi o mesmo da publicação da primeira edição portuguesa, pelas Publicações Europa-América, a qual também tive a oportunidade de consultar. 211

É provável que Lopes-Graça tenha tomado conhecimento da presença dessa escala na música nordestina em sua correspondência com o compositor brasileiro César Guerra-Peixe. Em carta de 22 de abril de 1957, onde comenta sobre seu recém-concluído livro A Dança do Côco em Pernambuco, este faz referência a uma escala “de dó a dó com fá sustenido e si bemol”, cuja semelhança com exemplos publicados no livro A canção popular portuguesa (1953)141, de Lopes-Graça confirmariam a sua hipótese de que a raiz desse modalismo estaria nas monodias medievais ibéricas142. Para evocar a música nordestina, Lopes-Graça também recorre a duetos de piccolo [indica também a opção de duo de flautas] com alternância de sextas maiores e segundas menores, criando um efeito que faz lembrar a sonoridade dos pífaros [c. 1’10” da gravação]. Os choques de segundas, considerados uma das marcas estilísticas do compositor, e que seriam ouvidos com mais nitidez em uma obra para piano ou coro, apresentam-se aqui camuflados pelo timbre das madeiras como elemento de rusticidade.

Figura 61: Piccoli “imitando pífaros” em Gabriela (c. 21 a 23).

Edição da autora a partir do manuscrito autógrafo.

O compositor ainda indica, para três violoncelos soli, acordes em quartas e terças paralelas sobre um pedal das demais cordas, remetendo ao som das rabecas.

141 Além da referida escala, Guerra-Peixe aponta como típicas da música nordestina a “de dó a dó com si bemol” (modo mixolídio) e “de dó a dó com fá sustenido” (modo lídio). A consulta aos exemplos musicais em “A canção popular portuguesa” não revelou, contudo, a escala utilizada em Gabriela. Há melodias que evitam o uso do sétimo grau, gerando ambiguidade entre maior e mixolídio, como é o caso de Mineta, romance de Trás os Montes (p. 85), ou Ó da casa cavalheira, cantiga dos Reis do Douro Litoral (p. 91), e Lavra, boi, lavra, toadilha de aboiar do Minho (p. 64), em que há ambiguidade entre dó mixolídio e lá frígio. 142 Convém lembrar que o referido modo - que também pode ser entendido como um lídio com sétima abaixada ou uma mistura das escalas lídia e mixolídia - não é exclusivo destas regiões, estando presente na música de outras culturas, especialmente do leste europeu, tendo sido utilizado em obras de Liszt, Debussy, Prokofiev, Béla Bartók e no jazz. É também conhecido como escala acústica [acoustic scale], escala lídia de dominante ou escala de sobretons harmônicos [overtone scale]. Cf. PERSICHETTI (1961, p. 44), BERLE (1997, p. 55), TYMOCZKO (2011) e COOPER (2015, p. 354).

212

Apesar de não ser exatamente o mesmo procedimento, reminiscências do seguinte comentário de Guerra-Peixe, em carta de 28 de maio de 1958, podem ter servido de inspiração a Lopes-Graça para o uso desse recurso de orquestração:

Ontem o “Quarteto de Cordas Municipal”, de São Paulo, executou o meu QUARTETO N. 2143 [...] Baseado nas escalas nordestinas (escalas medievais e outra de origem africana) a coisa é completamente diversa disso que está na SUÍTE N. 1. No começo, o público se assustou com a obra. Não por causa de dissonâncias, que não são muitas, mas, parece-me, por causa do caráter um tanto áspero e estranho de um toque do segundo violino, imitando a rabeca nordestina.... Finalmente, o público foi aceitando o negócio e a música foi aplaudida”. Não sabemos se Lopes-Graça dispunha desta partitura, mas podemos observar que Guerra-Peixe enfatizou, no seu quarteto, não apenas o elemento tímbrico, a partir das articulações acentuadas com o talão do arco, mas também buscou retratar os pedais com cordas soltas, muito frequentes no idiomatismo da rabeca nos dois países144 No caso do quarteto, Guerra-Peixe não usa apenas cordas soltas. Em todos os instrumentos – e não só no segundo violino, recorre a intervalos harmônicos de quintas (intervalo entre as cordas soltas dos instrumentos de arco de orquestra) quartas, (intervalos muito frequentes entre cordas em afinações de rabecas [Cf. GRAMANI, 2002]) e oitavas - estes últimos, com sons harmônicos, recurso também utilizado pelos rabequeiros.

143 Gravação pelo Quarteto Radamés Gnatalli. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rhLkHubd0a4&t=23s. Acesso em 18 abr. 2018. 144 Ver, por exemplo, a chula recolhida no concelho de Resende (Viseu), no primeiro volume da antologia de discos Música Regional Portuguesa, com recolhas de Lopes-Graça e Giacometti (LOPES-GRAÇA, GIACOMETTI, [1929-1990] 2008) e o episódio da série Povo que Canta sobre a rabeca chuleira (GIACOMETTI, 2010, vol. 9). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kcMurrr0Moc. Acesso em 18 abr. 2018. 213

Figura 62: Excerto do Quarteto nº 2, de César Guerra-Peixe.

Edição SESC Partituras.

214

Partindo do trabalho de estudiosos como Kofi Agawu, Leonard Ratner e Robert Hatten sobre a música europeia dos períodos clássico e romântico, Acácio Piedade (2011) propõe algumas tópicas145 específicas da música brasileira. Adaptando sua proposta, podemos interpretar os elementos musicais há pouco descritos como tópicas nordestinas. Os momentos de agitação são marcados por uma textura mais densa, dissonante, com intervenções dos metais, numa tentativa de ilustrar a paisagem sonora da Ilhéus em modernização que, numa livre adaptação da proposta de Piedade, aqui chamo tópica urbana. Como exemplo, cito o excerto entre os compassos 75 a 77 [2’45” a 2’50” da gravação anexa].

145 Segundo o referido autor (2011, p. 103), uma possível definição de tópicas seria “elementos e figurações musicais [rítmicos, melódicos, harmônicos, tímbricos ou uma combinação destes] que […] carregam consigo nexos socioculturais e históricos que, de alguma forma, são experimentados [e, pode-se dizer, compartilhados] pelos músicos e audiências”. 215

Figura 63: "Tópica urbana" em Gabriela

Edição da autora a partir do manuscrito autógrafo.

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Outro aspecto musical que contribui para a “crônica de uma cidade do interior”, subtítulo do romance, é a presença, na orquestração, de instrumentos mais associados às bandas de música (chamadas bandas filarmônicas em Portugal), como o sarussofone contrabaixo - que pode ser substituído por saxofone alto em mi bemol - e o saxofone, além de uma grande variedade de instrumentos de percussão, o que também pode ser associado ao que Piedade chama tópicas “época de ouro”. José Paulo Paes, no ensaio Arte de Mestre (1991)146, destaca a justaposição de duas linhas narrativas: uma coletiva, centrada na luta entre o exportador de cacau Mundinho Falcão e os coronéis, representados por Ramiro Bastos, e uma individual, centrada no romance entre Nacib e Gabriela. Tal duplicidade faz-se também presente no título, cuja primeira parte traz o nome da protagonista e a segunda tem como foco os acontecimentos da cidade. Confluem e dialogam, segundo o referido autor, as questões do atraso/progresso urbano e da sujeição/libertação feminina. Esta confluência também se verifica no plano musical.

5.2 - Cave carmen: o uso da Habanera em Gabriela

Para o ouvinte minimamente familiarizado com o repertório operístico, salta aos ouvidos ainda outra referência, a Habanera147 da ópera Carmen de Georges Bizet, mais precisamente o Prends garde à toi! (Toma cuidado!) entoado pelo coro, que, em Gabriela, é repetido três vezes, alternando saxofone alto e cordas agudas com cordas e madeiras graves (c. 81 a 83) e volta a aparecer claramente no saxofone no compasso 100. Apesar de perfeitamente reconhecível, não se trata de uma citação literal em termos intervalares, mas ligeiramente modificada, com uma quarta justa, uma terça maior e uma terça menor, em vez de uma quarta justa seguida de duas segundas maiores, como no original.148 Figura 64: Primeira aparição do “tema” de Gabriela (c. 78 a 83)

146 Republicado como posfácio à edição de 2008 de Gabriela pela Companhia das Letras. 147 Gravação por Elina Garanca, Orquestra e Coro do Metropolitan Opera, sob a regência de Yannick Nézet- Séguin. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=K2snTkaD64U. Acesso em 18 abr. 2018. 148 O prends garde à toi original, por sua vez, é semelhante ao início do refrão L’amour est un enfant de Bohème (quatro primeiras notas, iniciando-se, porém, por uma quinta justa, inversão da quarta).

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Figura 65: Refrão “Prends garde à toi!” da Habanera de Bizet ([1877], p. 51).

Uma análise mais atenta leva a perceber a célula rítmica base da habanera - com ligeiras modificações - como elemento estruturador da partitura, presente também nas tópicas nordestinas e circenses - de que falaremos mais adiante – embora com diferentes desenhos melódico-harmônicos. Temos aqui uma curiosa situação: a habanera como ritmo de dança e, mais especificamente, o excerto da Habanera de Carmen, são percebidas como tópica, no sentido de elemento significativo, que se destaca na escuta superficial, nos trechos entre os compassos 78 e 83149 e 97 e 102 [excerto entre 2’50” e 3’50” da gravação], este último, com uma sensível variação agógica que, adaptando o termo de Raymond Monelle (2000), poderíamos denominar uma tópica disfórica da habanera. Se, por um lado, no início da peça, a presença dos tímpanos e uma maior regularidade agógica remetem para a habanera, a intrincada mistura de referências culturais acaba por destacar o elemento nordestino, num excerto que faz pensar na chegada dos retirantes à cidade, em passo lento e cansado, o que dificulta a percepção do elemento habanera enquanto tópica.

Figura 66: Ritmo de habanera na tópica nordestina (3 violoncelos soli “imitando rabecas”, c. 12 a 14).

5.2.1 – A transtextualidade no uso da Habanera

Em seu livro Palimpsestes: la litérature au second degré (1982), Gérard Genette propõe um estudo das obras literárias a partir do conceito de

149 Com um breve “aviso” nos compassos 63 e 64.

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transtextualidade, que define como “transcendência textual do texto [...], tudo o que o põe em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (p. 7)150. No ensaio La musique au second degré (2015), clara referência ao livro de Genette, Paulo Ferreira de Castro traça um breve histórico do conceito de transtextualidade, desenvolvido a partir da noção mais ampla de intertextualidade, termo que foi pela primeira vez utilizado por volta de 1966 por Julia Kristeva, no contexto da teoria literária pós-estruturalista. A estudiosa estava à época bastante envolvida com a noção de dialogismo de Mikhail Bakhtin. No mesmo período, Michel Foucault, sem usar diretamente a palavra intertextualidade, em seu livro A arqueologia do saber (1969), destacava as “fronteiras abertas” dos livros e a sua inserção numa rede de referências a outros livros. O termo logo passou a ser utilizado por outros estudiosos, principalmente franceses, por exemplo Roland Barthes, para se referir à presença, em qualquer texto, de diferentes textos. Segundo Castro (p. 83), essa forma de ver a relação entre os textos reflete uma [...] tendência generalizada nos estudos literários e culturais a afastar-se da noção herdada do texto - ou da obra de arte – como um objeto unitário, autocontido e, num sentido pleno, autônomo e original, em direção a uma visão que enfatiza a natureza relacional de todas as produções culturais.

Genette identifica cinco tipos de relações transtextuais. À primeira categoria o autor chama intertextualidade, referindo-se à presença literal de um texto em outro. A intertextualidade englobaria, portanto, os processos de citação, plágio e alusão. Em sua descrição de tais categorias, na busca de uma adaptação à linguagem musical, Castro acrescenta ainda os procedimentos de colagem. A segunda categoria é a da paratextualidade. Genette (1987, p. 3) define paratextos como um conjunto de produções, verbais ou não, que compõem o entorno de um texto e o prolongam para o apresentar e o tornar presente, garantindo sua recepção e consumo. Temos uma definição mais didática do termo nos próprios paratextos (prefácio e contracapa) elaborados por Richard Macksey para a tradução inglesa (1997, p. xviii) como “dispositivos e convenções liminares dentro (peritexto) e fora (epitexto) do livro que formam parte da complexa mediação entre livro, autor, editor e leitor”. Seriam os títulos, subtítulos, prefácios, notas de rodapé, epígrafes,

150 [...] transcendance textuelle du texte [...] “tout ce qui le met em relation, manifeste ou secrète, avec d’autres textes”. Tradução minha, assim como as seguintes. 219

sinopses, notas de publicidade, etc. No caso da música, deve-se destacar ainda nessa relação o papel das indicações textuais de caráter e andamento (peritexto)151. Metatextualidade, isto é, o comentário, crítica ou discussão do texto em outros textos, define a terceira categoria. A quarta categoria de relações é a da hipertextualidade, isto é, o desenvolvimento de um hipertexto (B) a partir de um hipotexto (A) pré-existente, por meio de um princípio de transformação. Finalmente, temos a relação de arquitextualidade – situada, segundo Serge Lacasse (2008, p. 12), no nível mais abstrato. Trata-se das categorias mais gerais (estilo, gênero, modo de enunciação) que envolvem, segundo Castro (2015, p. 85), a expectativa do leitor. Castro (p.88) destaca o alerta do próprio Genette para a interconexão entre tais categorias e sua natureza de “ferramentas heurísticas, cujo valor último pode ser aferido apenas em situações analíticas e interpretativas concretas”. Tomando como base a leitura da teoria das relações transtextuais de Genette por Paulo Ferreira de Castro e suas sugestões de adaptação à análise musical, poder-se-ia dizer que temos na peça uma relação de hipertextualidade. Gabriela é desenvolvida a partir da Habanera de Bizet, embora de uma forma aparentemente difusa em que se misturam as referências a essa peça específica e à habanera como gênero de canção e dança. Exploraremos melhor esse aspecto mais adiante. Concentremo-nos no momento onde juntamos Gabriela e Carmen: o primeiro excerto (c. 78 a 81) traz nas cordas e no saxofone alto, com a marcação da percussão, o que denomino o “tema” de Gabriela - embora se trate de uma frase de sentido bastante suspensivo - baseado no motivo do prends garde à toi. Interpreto este trecho como a “impressão” da chegada de Gabriela pela população ilheense, notadamente a masculina, que já se começa a seduzir. Susan McClary, sobre Carmen, observa a associação entre a incitação do desejo e um padrão rítmico de dança, que, em suas palavras, “envolve a parte inferior do corpo, exigindo meneios dos quadris em resposta” (2002, pp. 57-58). Podemos dizer o mesmo sobre a

151 Castro (2015) destaca ainda, no caso da música, a relação transmidiática entre texto e paratexto, uma vez que este assume normalmente a forma linguística ou visual.

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“sorridente e meneante Gabriela” (nas palavras de Freitas Branco), embora não da mesma maneira. O referido excerto musical traz, à partida, um paratexto, mais precisamente, um peritexto. A seção em apreço inicia-se com a indicação de caráter Lusingando, expressão italiana que, segundo o dicionário Grove de Música, pode ter os sentidos de “adulando, seduzindo, acariciando”. A escolha da palavra faz traçar um paralelo com a sedução de Carmen, mas já indica uma sedução diversa, não o impacto da cigana dominatrix e femme fatale (McCLARY, 2002 e LOCKE, 2009), mas uma sedução gentil, mais sutil e graciosa. Podemos interpretar o excerto entre os compassos 97 e 102 como um olhar mais detalhado de Lopes-Graça sobre Gabriela. Numa textura menos densa, seu “tema” é trazido agora por um saxofone solo, instrumento cuja associação à sensualidade é referida nos dois encartes que acompanham as gravações, erotismo que, conforme destaca Ralph Locke, está também carregado de exotismo152. O solo de Gabriela é imitado contrapontisticamente por uma trompa, que se poderia talvez entender como um homem seduzido que a segue. Figura 67: Segunda aparição do tema de Gabriela (c. 97 a 102).

Além do erotismo e do exotismo, outro traço da personalidade de Gabriela é aqui sugerido: o seu jeito um tanto desengonçado, representado pelo ritmo

152 Lembremo-nos, por exemplo, da proeminência desse instrumento no Boléro, de Maurice Ravel, composto originalmente para um balé de caráter espanhol da coreógrafa Ida Rubinstein, recebido à época como altamente escandaloso. 221

defasado do chocalho. A partir das subdivisões das relações de hipertextualidade apontadas por Genette e adaptadas por Castro, podemos dizer que Lopes-Graça realiza aqui uma paródia – transformação lúdica - da Habanera, sugerindo uma Gabriela que é uma “Carmen desajeitada”. Não quero dizer, com o uso dessa expressão, que o compositor português pretenda inferiorizar a personagem amadiana. Entendo, na verdade, como uma cúmplice brincadeira com as referências prévias do ouvinte, na tentativa de criar um retrato o mais sutil possível da personagem.

5.3 – Espontaneidade e ingenuidade: o circense e o pastoral

Outra característica presente na abertura é a ingenuidade infantil de Gabriela, representada por frases rápidas das flautas e piccoli e pelo que chamo “tópicas circenses” (excerto entre os compassos 174 com anacruse e 201, ou entre 5’40” e 6’25”). Proponho interpretar a densa e movimentada textura nas cordas, madeiras e percussão, com a referência proeminente do prends garde à toi pelos metais, compreendida entre 174 e 183 como o “alvoroço” da chegada do circo à cidade. O ritmo sincopado numa textura um pouco menos densa, de cordas, metais, madeiras graves e percussão pode ser entendido como uma referência a desengonçados palhaços (c. 183 a 186). Podemos talvez entender, por sua vez, o progressivo adensamento da textura, em legato e predomínio de cordas e madeiras como as graciosas bailarinas. A participação dos instrumentos de sopro e percussão nesses trechos pode também ser entendida como um pastiche (imitação lúdica de um estilo) da música circense. As intervenções mais ligeiras de flautas e percussão ao longo da peça poderiam também ser relacionadas às Pastorinhas, folguedo tradicional nordestino ligado ao período do Natal e festas de Reis. José Paulo Paes identifica também em sua análise literária uma ética pastoral, relacionada a uma oposição de base entre vida natural e artificial153 à qual associa os conceitos de “bom selvagem”, proposto por Rousseau e de “criança-juiz” - visão crítica das convenções a partir da perspectiva da ingenuidade -, proposto por William Empson em seu estudo da personagem Alice, de Lewis Carroll.

153 Associada imprecisamente, segundo o autor, à ideia de cidade e campo, visto que a protagonista não demonstra nostalgia de sua terra ou arrependimento pelo êxodo rural.

222

No romance, o fascínio pelo circo e pelas Pastorinhas desencadeia fugas de Gabriela de sua condição de “senhora dona”, já casada com seu antigo patrão Nacib, as quais constituem momentos marcantes de alegria infantil associada ao seu desejo de liberdade, outro de seus traços marcantes.

Gabriela não enxergava mais nada além do terno de reis, das pastoras com suas lanternas, Nilo com seu apito, Miquelina com o estandarte. Não via Nacib, não via Tonico, não via ninguém. Nem mesmo a cunhada de nariz insolente. Seu Nilo apitava, as pastoras formavam, o bumba meu boi já ia adiante. Outra vez apitava, as pastoras dançavam, Miquelina volteava o estandarte na noite. “As pastorinhas já vão noutra parte cantar...”. Iam noutra parte cantar, pelas ruas dançar. Gabriela descalçou os sapatos, correu para a frente, arrancou o estandarte das mãos de Miquelina. Seu corpo rolou, suas ancas partiram, seus pés libertados a dança criaram. O terno marchava, a cunhada exclamou: “Oh! ” (AMADO, [1958] 2008, pp. 271-272).

5.4 – Que fizeste, sultão, de minha alegre menina?154

Prends garde à toi! Cave carmen! O nome da cigana, além de referir a Carmo e carmim, relaciona-se com a palavra latina que significa charme, encanto, feitiço. Se o fascínio hipnotizante, de que ambas têm consciência é orgulhosamente usado por Carmen como instrumento de dominação (McCLARY, 2002), para Gabriela é algo que simplesmente não consegue evitar. Ambas querem gozar os prazeres da vida em plena liberdade, dançar a seguidilla, beber a manzanilla155, ou brincar nos folguedos populares. Se Carmen faz questão de escolher ao seu bel prazer os seus parceiros sexuais, Gabriela relaciona-se apenas com o bonachão Nacib no período anterior ao casamento156 não pelas convenções sociais, mas por ter prazer e satisfazer-se, tanto no aspecto afetivo quanto sexual. Casou-se por insistência do comerciante, sem qualquer interesse de ascensão social. Segundo Susan McClary, o fato de Carmen ser uma mulher desafiadora das convenções sociais e morais faz de seu assassinato condição inevitável na trama do escritor Prosper Merimée e, posteriormente, na ópera de Bizet. O mesmo se pode dizer da morte de Maria, em Wozzeck, de Alban Berg, referida por João de Freitas Branco no comentário da, em suas palavras, “mais voluntariamente enganadora e

154 Excerto do “Cantar de Amigo de Gabriela” (AMADO, 2008, p. 214), que introduz o capítulo onde são narrados os episódios malsucedidos posteriores ao casamento da personagem. 155 Referência ao texto da Seguidilla, da ópera Carmen, de Bizet. 156 Gabriela inicia seu idílio com Nacib já desinteressada do agressivo Clemente e trai o comerciante com Tonico Bastos apenas quando as regras sociais do malogrado matrimônio tornam a relação insustentável. 223

completamente eficaz preparação do final” de Gabriela (compassos 212 a 242, ou excerto a partir de 6’30”).

Engendra-se uma atmosfera expressionista, “mittel-europeia”. Nove das onze [sic] notas da escala cromática entram nesse acorde. Será que no calor dos trópicos a nossa Gabriela, tão espontânea, e natural, e pura nos seus atropelos cívicos se transformou numa outra Maria, a sucumbir nas mãos dum alucinado Wozzeck?” Nada disso. Uma dúzia de compassos em allegro non troppo bastam a explicar-nos que era tudo brincadeira. O si bemol vibrado com toda a alma do timpaneiro dá o sinal ao director de palco. Atenção: acabou a abertura, vai subir o pano. (FREITAS BRANCO, 1968). É o chamado anticlímax, marca estilística de Lopes-Graça observada por Mário Vieira de Carvalho (2006), que consiste em alterações inesperadas de dinâmica, harmonia ou caráter [caso desta peça], ou ainda finais de peças suspensivos, interrogativos, nas palavras do referido musicólogo. A espontânea Gabriela não pode ser “senhora dona”, mas pode divorciar- se e ser a concubina de Nacib. Em consonância com a ironia amadiana, temos aqui uma crítica de Lopes-Graça à hipocrisia de uma sociedade de rígida moral e costumes libertinos.

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Figura 68: Subversão musical da "morte necessária" (anticlímax) em Gabriela (c. 212 a 242)

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Edição da autora a partir do manuscrito autógrafo. 229

5.4.1 - Uma obra não característica ou uma faceta não percebida do compositor?

Curiosamente, como pude notar durante a apresentação de uma primeira versão do texto deste capítulo em um seminário durante meu estágio PDSE na FCSH- Universidade Nova de Lisboa, Gabriela foi percebida pelos colegas portugueses157 como portadora de uma leveza e irreverência pouco comuns ao panorama geral da obra de Lopes-Graça, mais imediatamente associada às ideias de seriedade e tensão. Em entrevista a mim concedida em 01 de julho de 2016, o tenor Fernando Serafim, amigo de Lopes-Graça e frequente intérprete de sua obra, destaca o humor como uma característica muitas vezes presente e pouco percebida em sua produção. Conforme já mencionado, mesmo os choques intervalares, tão presentes em sua escrita, apresentam-se aqui camuflados como elemento de rusticidade dos pífaros imitados pelos piccoli. O anticlímax do “falso final” talvez seja a única assinatura perceptível do compositor. Justamente esse recurso é assinalado por Mário Vieira de Carvalho (1987, 2012) como de intenção humorística (seja de matiz jocoso, irônico ou desafiador) em diversas de suas obras, como, por exemplo, em Os adufes troam na romaria da Senhora da Póvoa de Val-de-Lobo158, das Viagens na minha Terra.

5.5 – Habanera: instrumento consolidado de caracterização ou marca de exotismo?

Ao tentarmos verificar o papel do exotismo na abordagem musical de Lopes-Graça a partir de seu uso da habanera – gênero e ária, deparamo-nos com um cenário bastante complexo. Segundo a entrada escrita por Frances Barulich e Jan Fairley no dicionário Grove de música, a habanera é resultado de uma complexa rede de “ida e volta” estabelecida durante séculos entre Cuba, outras ilhas da América Central e distintas regiões da Espanha, como a Catalunha, a Andaluzia e as Ilhas Canárias, além da França e da Inglaterra. O gênero teria influenciado o danzón cubano e o tango argentino, que por sua vez, a influenciou de volta. Na Espanha, foi absorvida na zarzuela. Acrescento o tango brasileiro ou maxixe, presente na obra de compositores como Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, cuja audição muito

157 Um destes colegas inclusive relatou ter sido aluno do compositor na Academia de Amadores de Música. 158 Gravação por José Eduardo Martins. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU&t=1593s. (c. 34’00”). Acesso em 18 abr. 2018.

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influenciou as Saudades do Brasil159 do francês Darius Milhaud, obra apontada por Sérgio Azevedo como outra possível referência de Lopes-Graça.

Figure 69: Uso do ritmo de habanera na mão esquerda do piano - início de Sorocaba, das Saudades do Brasil, de Milhaud

Também há que se destacar o parentesco da habanera com a dança afro- brasileira do lundu (ou lundum), que teve grande popularidade em Portugal. A célula rítmica utilizada como base por Lopes-Graça em Noutros tempos a Figueira da Foz dançava o lundum160, das Viagens na minha terra (1954), é a mesma da “habanera de Gabriela” e das tópicas nordestinas.

Figura 70: Início de Noutros tempos a figueira da foz dançava o Lundum, das Viagens na minha terra.

Reprodução do manuscrito autógrafo em GAMA, 2013, p. 4

Segundo Cacá Machado (2007, p.108), a síncopa, nas Américas, constituiu-se, ao mesmo tempo, como um fenômeno recorrente e singular. Diversos gêneros, como o danzón, o ragtime e os tangos argentino e brasileiro desenvolveram- se a partir de deslocamentos rítmicos na interpretação de gêneros europeus, como a contradança e a polca, todos, segundo o autor “sob o signo da síncopa”. Na seção do Ensaio sobre a música brasileira dedicada ao ritmo, Mário de Andrade argumenta que,

159 Gravação por Antonio Barbosa. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zZanU1ZaN6k&t=6s. Acesso em 18 abr. 2018. 160 Gravação por José Eduardo Martins. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU&t=1593s. (c. 4:40). Este movimento das “Viagens na minha terra” é, por sua vez, baseado na melodia tradicional do “Lundum da Figueira”, recolhida na referida cidade. (GAMA, 2013).

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ao chegar às Américas, a síncopa europeia teria se convertido de elemento de exceção em norma, isto é, de contratempo que gera irregularidade e surpresa em elemento recorrente, percebido como regular e constituinte da identidade rítmica. Para o referido autor, a síncopa na música brasileira seria fruto de um frágil equilíbrio entre a síncopa tradicional (pensada a partir da divisão de tempos na quadratura do compasso) e a síncopa “livre” (que tem como base a adição de tempos, sem se prender a um determinado compasso). A intuição de Mário seria corroborada pelo trabalho de Carlos Sandroni sobre o samba (2001), a partir dos conceitos de cometricidade (quando o ritmo confirma o fundo métrico constante) e contrametricidade (quando o ritmo contradiz o fundo métrico constante) propostos por Mieczyslaw Kolinski em seu estudo do jogo de paridades e imparidades rítmicas na música centro-africana. Conforme observa Machado (2007, p. 113), “a padronização da síncopa característica pelas casas editoras de partituras no final do Oitocentos criou uma equivalência entre os gêneros sincopados sob o signo nacional”. Isso era percebido por diversas personalidades do meio musical letrado no início do século XX, como Mário e o também já citado Darius Milhaud, que, durante sua passagem pelo Brasil, ficou profundamente intrigado com tais sutilezas, esse “pequeno nada” que o papel não captava e que provavelmente só seus ouvidos puderam ajudar a apreender. E quanto ao exotismo em sua ópera-base? Quão espanhol, quão andaluz é o uso pelo francês Bizet da habanera, reconhecida, ainda que imprecisamente, na partitura como baseada na canção El arreglito, do basco Sebastián Yradier?161 É certo que, em Gabriela, as referências à ária de Carmen e o uso do paradigma rítmico do tresillo162 contribuem, conforme já mencionei, para o jogo com as referências prévias do ouvinte, levando-o a estabelecer relações entre as duas

161 Na primeira edição, é indicado apenas “Imitée d’une chanson espagnole. Propriété des Éditeurs du Ménestrel”. [Imitada de uma canção espanhola. Propriedade dos Éditeurs du Ménestrel]. 162 O tresillo é um termo que caracteriza um paradigma rítmico que pode ser entendido tanto como uma subdivisão dos ritmos binários em oito unidades, agrupadas em três, três e dois, ou, mais precisamente, de maneira aditiva, como um agrupamento de três articulações, sendo as duas primeiras mais longas.

( ). Fórmulas como , referida por Mário de Andrade como síncopa característica e , conhecida como ritmo de habanera são consideradas variantes desse padrão. Conforme discutido anteriormente, esse padrão rítmico não é exclusivo da habanera, estando presente em diversos gêneros ibero-afro-americanos, com sutis diferenças agógicas. Para mais informações, cf. SANDRONI, 2002.

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personagens. Creio, porém, que seria apressado qualificar como exótica a abordagem de Lopes-Graça partindo simplesmente da consideração do material temático utilizado, uma vez que a difusão mundial, tanto da ópera quanto do ritmo, na qual o exotismo não deixa de ter um importante papel, contribuiu para diluir, naturalizar esse mesmo exotismo.

5.5.1 - O exotismo no romance de Jorge Amado

Outro dado importante é a associação, na habanera como gênero de canção cubana, à figura sensual da mulata (BARULICH e FAIRLEY, 2001). A relação entre exotismo, erotismo e pele escura (ou outras diferenças étnicas) também é destacada por McClary e Locke na análise de diversas óperas, como Carmen, Samson et Dalila, de Camille Saint-Saëns, Aida, de Giuseppe Verdi e até mesmo Madama Butterfly, de Giacomo Puccini. E quanto ao [auto]exotismo em Jorge Amado, que não deixa de dar à sua protagonista um apelido de especiaria oriental que, por sua vez, se relaciona à sua cor, constantemente referida ora como mulata, ora como morena e de falar sempre no árabe (ou sírio, ou turco, como erroneamente o chamavam) Nacib, destacando também no marido-patrão sua condição de outro? A propósito, a sensualidade ou o apelo aos sentidos também se fazem presentes na obra através da valorização dos aromas e da culinária, associados por José Paulo Paes ao que Bakhtin denominava, em seu estudo de Rabelais, o “antigo complexo folclórico” onde haveria uma equiponderância e indistinção de valores materiais e espirituais - corpo, vestuário, alimentação, bebida, embriaguez, sexo, morte, excrementos. Consciente ou inconscientemente, o exotismo (e seu frequente companheiro, o erotismo) tiveram, tanto ou mais que a propalada universalidade de sua obra, papel determinante na popularidade por ela alcançada, que resultaria em traduções de Gabriela para 32 idiomas, e, além da abertura de Lopes-Graça, numa canção de Milton Nascimento, um samba-enredo da escola Estácio de Sá em 1969, três adaptações teledramatúrgicas, uma cinematográfica, um espetáculo de dança, 233

uma fotonovela, uma história em quadrinhos e um espetáculo de teatro musical163. (FUNDAÇÃO, 2016).

5.6 - Gabriela, Carmen, o exótico e o “universal”

Podemos pensar que, buscando um retrato o mais próximo possível do livro e, consequentemente, mais sutil da personagem e do que a cerca, Lopes-Graça teria se afastado ou, ao menos, estaria munido de uma atitude crítica ao exotismo. Apesar da discussão, já presente em seus textos e pronunciamentos, sobre a construção ideológica do termo “universal”, atribuído à música de determinados países centrais da Europa, a aproximação composicional a uma obra já consagrada pode ser entendida como uma busca de visibilidade e “universalidade” (no sentido de alcance da mensagem), em resistência a uma posição de subalternidade e relativa ausência da música de concerto, tanto brasileira quanto portuguesa.

163 Acrescentei à listagem constante no site da Fundação Casa de Jorge Amado, além da própria abertura de Lopes-Graça, que ali não está indicada, a minissérie produzida pela rede Globo no ano de 2012, a canção de Milton Nascimento e o musical de autoria João Falcão, estreado em 2016.

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Capítulo 6 - Desafio e O Túmulo de Villa-Lobos: dois curiosos retratos

Apesar de não serem subsequentes cronologicamente na produção de temática brasileira de Lopes-Graça, optei por reunir, neste último capítulo, a canção Desafio (1958), sobre um poema de Manuel Bandeira e o quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos (1970). Ao longo da análise das referidas obras, fui percebendo a presença de alguns elementos que levavam a estabelecer relações com aspectos mais gerais do estilo, respectivamente, do poeta e do compositor homenageado. É sobretudo nessa perspectiva que proponho abordá-las.

6.1 – Desafio: retrato [de um] “desconstelizador”

Os três primeiros itens deste subcapítulo, dedicado à análise da canção Desafio, sobre um poema de Manuel Bandeira, terão como foco características da poética do autor pernambucano. Considerando o contexto da fonte utilizada por Lopes-Graça (uma antologia das obras completas até então publicadas), situo o compositor português, antes de tudo, como leitor. A partir daí, procuro situar estilisticamente o poema Desafio em relação ao seu estilo de maneira geral e especialmente à coletânea de que faz parte.

6.1.1 - O poeta e a música

Não há nada no mundo de que eu goste mais do que de música. Sinto que na música é que conseguiria exprimir-me completamente. Tomar um tema e trabalhá-lo em variações ou, como na forma sonata, tomar dois temas e opô- los, fazê-los lutarem, embolarem, ferirem-se e estraçalharem-se e dar a vitória a um ou ao contrário, apaziguá-los num entendimento de todo repouso...creio que não pode haver maior delícia em matéria de arte. Dir-me- ão que é possível realizar alguma coisa de semelhante na arte da palavra. Concordo, mas que dificuldade e só para obter um efeito que afinal não passa de arremedo (BANDEIRA, 2009, p. 573).

A música não aparece apenas na ligação pessoal do poeta com esta arte, expressa em seu livro de memórias Itinerário de Pasárgada, e em sua atividade de crítico na Ideia ilustrada e no Diário Nacional, mas também em sua obra poética, seja nas referências a artistas e gêneros (Mozart no céu, Maísa, Toada de negros em Cuba, Tema e variações, Ponteios, Ovalle, O violoncelista estava a meio do concerto de Schumann, Letra para uma valsa romântica, Cantiga, Cantilena, Acalanto, etc.) ou na musicalidade da própria poesia, seja nos versos e rimas regulares, como no 235

Desafio, foco deste artigo, na referência sonora à cena representada, como em Trem de Ferro ou no conteúdo que sugere movimento em Debussy.

Para cá, para lá... Para cá, para lá... Um novelozinho de linha... Para cá, para lá... Para cá, para lá... Oscila no ar pela mão de uma criança (Vem e vai...) Que delicadamente e quase a adormecer o balança -Psiu... – Para cá, para lá... Para cá e... - O novelozinho caiu. (idem, p. 60)

Ao comentar seu processo criativo, Bandeira, que até mesmo se aventurou a estudar o Tratado de Composição de Vincent D’Indy, utiliza analogias musicais, como timbre da vogal ou resolução da estrofe. A intenção de se aproximar da composição musical é muitas vezes consciente e explícita.

Tentei [...] reproduzir num longo poema a estrutura da forma sonata. Sempre lamento ter destruído a minha sonata, onde havia um alegro, um adágio, um scherzo e o final. Não foi simples exercício: era expressão de uma profunda crise de sentimento: só que eu, como corretivo ao possível sentimentalismo, desejei estruturar os meus versos (eram versos livres) segundo a severa arquitetura musical (idem, p. 573).

Capiberibe a primeira vez com e, a segunda com a me dava a impressão de um acidente, como se a palavra fosse uma frase melódica dita da segunda vez com bemol na terceira nota. De igual modo, em “Neologismo” o verso “Teadoro, Teodora!” leva a mesma intenção, mais do que de jogo verbal (idem, p. 574).

Em A canção brasileira de câmara (2002), Vasco Mariz destaca Bandeira como o poeta com o maior número de poemas musicados (54 diferentes poemas, resultando, com as repetições, em 92 peças). A maioria das composições surgiu a partir dos poemas, mas Bandeira também recebeu encomendas de amigos para melodias já prontas ou trabalhou em conjunto com os compositores. Tal é o caso do Azulão, de Jaime Ovalle, da Modinha e do Martelo (2º movimento das Bachianas nº 5) de Villa-Lobos e do Desafio de Francisco Mignone, com poema diverso do estudado nesta tese, arranjo de versos atribuídos a Mané do Riachão.

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O musicólogo e diplomata atribui tamanha aceitação à sua “musicalidade inata”. Andrade Muricy (apud BANDEIRA, 2009, p. 588), por sua vez, identifica uma “musicalidade subentendida” em seus poemas:

Não será antes a presença nela de um acicate que lhe é peculiar, provocador do trabalho de expressão sonora? Explico de outra maneira. Os músicos sentem que poderão inserir a sua musicalidade – de música propriamente dita – naquela musicalidade subentendida, por vezes inexpressa, ou simplesmente indicada. Percebem que a sua colaboração não irá constituir uma superestrutura, mas que se fundirá com a obra poética, intimamente. Por outro lado, adivinham que, nas relações mútuas, o poeta não exorbitará, que será um bom camarada, que não tentará apossar-se da parte do leão, como fariam um Castro Alves, um Luís Delfino, um Cruz e Sousa, um Hermes Fontes, grandes sinfonistas.

O poeta discorda que haja uma musicalidade subentendida em sua poesia. Apesar de ser possível encontrar musicalidade em um poema, os versos não conteriam música em si, permitindo várias possibilidades de abordagem composicional. [...] dizer que um verso canta é falar por imagem. [...] A “musicalidade subentendida” poderia ser definida por outro músico noutra linha melódica. O texto será um como que um baixo numerado contendo em potência numerosas melodias. Assim explico que eu sinta a mesma adequação da música às palavras em duas ou três realizações musicais de um só texto (idem, p. 587).

Mais: considera que a poesia só atinge a plenitude quando musicada. Modesto, atribui aos compositores a aceitação de seus versos. [...] a música, embora afirmem todos que ela é uma escrava da palavra, se tornou uma escrava despótica [...]. Nunca a palavra cantou por si, e só com a música pode ela cantar verdadeiramente [...]. Creio que ninguém hoje se lembraria fora da Alemanha (talvez mesmo dentro da Alemanha) de Wilhelm Müller e dos seus ciclos de poemas Die schöne Müllerin e Winterreise se não fossem os admiráveis lieder de Schubert a que eles serviram de letra [...]. Posso dizer na mais inteira tranquilidade que pouco se me dá de, quando morrer, morrer completamente e para sempre na minha carne e na minha poesia. No entanto, já não será possível para alguns de meus versos aquela serena paz de morte absoluta, e até estou certo de que eles chegarão bem longe na posteridade, não por virtude própria, mas porque, a exemplo dos poemas alemães musicados por Schubert, ganharam indefinida ressonância como textos de deliciosos lieder de Villa-Lobos, de Mignone, de Camargo Guarnieri, de Lorenzo Fernandez, de Jaime Ovalle, de Radamés Gnattali... (idem, pp. 588-589).

6.1.2 - Bandeira, poeta vário e impuro

Desde agora digo que quem só canta en dó de peito não sabe cantar: que quem só trata em versos as coisas sublimes não vive a verdadeira vida da 237

poesia e das letras, mas as leva postiças como adorno para as festas164. Alfonso Reyes (apud BANDEIRA, 1996, p. 99).

Segundo Pedro Marques (2008, p. 37), “Manuel Bandeira fundiu à sua primeira poética, de linguagem predominantemente solene, o tom coloquial”. É nesse emaranhado do popular e do cotidiano em sua poesia que Aires de Andrade (apud BANDEIRA, 1996, p. 72) vê a razão de sua obra ter atraído a atenção de tantos compositores.

Mesmo nos momentos em que Manuel Bandeira se manifesta exprimindo anseios de universalização, não consegue o seu pensamento se emancipar inteiramente do jugo que estabelecem em suas faculdades criadoras as reminiscências acumuladas no espírito do poeta pela ação do observador apaixonado das coisas do povo. Há sempre em seu estilo a intromissão, às vezes franca, às vezes sorrateira, dessas forças que se agitam incessantemente nas camadas subterrâneas da sua emoção em atitudes expansionistas. Atribuo principalmente a esse aspecto da arte de Manuel Bandeira o motivo de atração que faz convergir para a sua poesia as preferências dos nossos compositores.

Desafio, poema que motivou a canção que analisaremos neste artigo, faz parte da Lira dos Cinquent’anos, publicada em 1940 pela editora Civilização Brasileira, mas custeada pelo autor, como acréscimo a uma edição de suas Poesias Completas165. Obra de um artista já maduro, mantém a diversidade temática e estilística dos livros anteriores. Sobre ela, diz o escritor português radicado no Brasil Adolfo Casais Monteiro (1943, pp. 49-51), num estudo que, segundo Ricardo António Alves e Teresa Cascudo (2013, separata) Lopes-Graça possuía em sua biblioteca:

Um Gérard de Nerval que tivesse o dom da ironia e do sarcasmo; um Antônio Nobre que soubesse sair da tôrre da doença e amar a vida apesar de tudo; um Paul Valéry a quem fosse dado chorar; um clássico sabendo viver profundamente todos os delíquios românticos, e um modernista amando o sabor de tornear uma bela estrofe de rigorosa geometria... eis o que eu diria do Manuel Bandeira da LIRA DOS CINQUENT’ANOS, se alguém que lhe ignorasse a poesia me pedisse para a sintetizar em breves palavras. [...] o poeta que brinca, o poeta que lança ao ar, de vez em quando, um ou outro poema que é puro divertimento, é ao mesmo tempo aquele que tem dado à poesia brasileira algumas das suas notas de mais profunda ressonância, de mais amarga tristeza e de mais séria contemplação da vida. E, como nunca, o contraste impressiona nos seus últimos livros, e é como um apêlo ao leitor para que não se deixe convencer demasiado, quando lê as brincadeiras, de que não haja um drama, e de que não haja fantasia, quando lê os poemas de

164 Tradução minha. 165 Na partitura, Lopes-Graça faz referência ao uso das Obras Completas de Bandeira, sem dar indicações mais detalhadas sobre ano e editora. O mais provável é que se trate de uma antologia de edição portuguesa intitulada Obras Poéticas e publicada pela Editorial Minerva em 1956. Também pode ser esta edição referida no corpo do artigo ou a primeira da Poesia Completa e Prosa, publicada pela Nova Aguilar em 1958, mesmo ano da composição da canção.

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mais grave angústia ou renúncia. Outros poemas parecem ser a ponte de passagem entre a hora da fantasia divertida e a hora grave; poemas em que, porém, quem saiba ler poderá encontrar, não uma passagem, mas a verdadeira síntese de todos os diversos rumos da poesia de Manuel Bandeira.

Davi Arrigucci Jr. intitula seu aprofundado estudo sobre o poeta (1990) Humildade, paixão e morte, numa referência às três principais linhas de força (na maioria das vezes misturadas) de sua poética – a primeira ligada ao retrato do cotidiano, à busca de uma linguagem simples e à manifestação da humildade propriamente dita (dizia-se “poeta menor”), a segunda ao amor e erotismo e a terceira à morte de maneira mais ou menos explícita (desde a constatação da fugacidade das experiências, manifestação da saudade dos que já se foram às referências à sua doença e meditações sobre a própria morte). Bandeira foi diagnosticado na juventude com tuberculose, o que o levou a abandonar os estudos universitários de arquitetura e passar um ano num sanatório na Suíça, ocasião em que conheceu, entre outras personalidades, o poeta Paul Eluard. O fantasma da morte iminente jamais abandonou sua escrita ao longo de sua ironicamente pródiga vida de mais de oitenta anos. Sua Lira traz tanto questões existenciais, como em Carta de Brasão, Velha Chácara, Peregrinação, Belo belo, preocupação social (Testamento), contemplação (Ouro Preto, Maçã), erotismo (Água-Forte) homenagens (A Alphonsus de Guimaraens Filho, Acalanto de John Talbot, Soneto em louvor de Augusto Frederico Schmidt, Mozart no céu) e referências a gêneros eruditos e populares consagrados (Desafio, Balada do rei das sereias, Cantar de amor, Canção, Soneto Italiano, Rondó do Capitão, Cossante). Utiliza tanto o verso livre quanto medido, com ou sem rimas. Temas e estilos diversos se misturam, por exemplo, nos versos livres e brancos de Mozart no céu e no curioso Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga:

Quis gravar “Amor” No tronco de um velho freixo: “Marília” escrevi. (BANDEIRA, 2009, p. 146).

O poeta utiliza-se da paródia em Rondó do Capitão e do jogo de palavras em Velha Chácara: ao recordar nostalgicamente o pequeno sítio (chácara) da infância, joga com a forma da xácara, baseada em quadras de origem ou sabor popular:

A casa era por aqui... Onde? Procuro-a e não acho. 239

Ouço uma voz que esqueci: É a voz deste mesmo riacho

Ah quanto tempo passou! (Foram mais de cinquenta anos.) Tantos que a morte levou (E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa Da velha chácara triste: Não existe mais a casa... _ mas o menino ainda existe.

Em Cossante, o poeta utiliza a estrutura de paralelismo e refrão desse gênero da lírica medieval galego-portuguesa para abordar um cenário que lhe era familiar e contemporâneo, a Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, onde morou. O vocábulo por ele criado no refrão “Ai Avatlântica!” tanto sugere a avenida, a partir de sua abreviação Av. Atlântica, quanto “ave atlântica”, possível metáfora para descrever a pessoa desejada (SILVEIRA, 2009).

Ondas da praia onde vos vi, Olhos verdes sem dó de mim, Ai Avatlântica!

Ondas da praia onde morais, Olhos verdes intersexuais. Ai Avatlântica!

Olhos verdes sem dó de mim, Olhos verdes, de ondas sem fim, Ai Avatlântica!

Olhos verdes, de ondas sem dó, Por quem me rompo, exausto e só, Ai Avatlântica!

Olhos verdes, de ondas sem fim, Por quem jurei de vos possuir, Ai Avatlântica!

Olhos verdes sem lei nem rei, Por quem juro vos esquecer, Ai Avatlântica! 166

166 O uso dos olhos verdes como elemento de sedução também era comum às cantigas de amor medievais e das ondas do mar, às cantigas de amigo. Cossante, nesse caso, é uma referência híbrida a esses gêneros, pois

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Massaud Moisés (in BANDEIRA, 2009) destaca a Lira dos Cinquent’anos como um momento de libertação do ideário modernista sem esquecer sua dívida para com o movimento, visível na liberdade de expressão, diálogo com a tradição e busca da simplicidade.

6.1.3 - Desafio, o poema mais “puro”: retrato fiel de um gênero tradicional

Em Musica Popular Brasileña (1947), Oneyda Alvarenga define o gênero desafio como um torneio poético em que dois cantores medem suas capacidades de improvisação. Presente em todo o Brasil, sobretudo na região Nordeste, inicia-se com uma provocação, improvisada ou baseada em um mote popular, à qual o outro responde, encerrando–se a disputa quando um dos oponentes não consegue responder ou se declara vencido. A autora destaca o papel da memória na criação dos versos, que normalmente se dá a partir de referências de práticas anteriores. Os cantadores, em sua maioria analfabetos, citam passagens da Bíblia, fatos históricos remotos temporal e geograficamente, noções de geografia, álgebra e até regras de retórica, muitas vezes sem saber claramente do que estão tratando. Além de demonstração de habilidade poética em si, boa parte dos desafios carrega manifestações vaidosas de proezas do eu-lírico, seja poéticas ou relacionadas a um cotidiano de atividades que envolvem valentia. Provocações ao adversário também fazem parte do conteúdo textual. Os cantadores pedem contribuições a quem assiste à sua contenda, retribuindo com versos agradecidos a quem lhes dá algum dinheiro. Dos poemas da Lira dos Cinquent’anos, Desafio é o que mais se aproxima do gênero que o inspirou. Nos outros versos de inspiração popular há sempre algo que o diferencia; uma erudição um tanto deslocada ou um humor não tão comum ao original. O poema, em linguagem simples, todo em redondilhas maiores167 e rimas nos versos pares – esquema originário dos romances medievais - bem poderia passar pela longa resposta de um cantador a uma provocação poética de seu adversário:

Não sou barqueiro de vela, Mas sou um bom remador: originalmente a forma era usada em cantigas de amigo, com eu-lírico feminino, mas Bandeira coloca-se como eu-lírico e expressa seu sofrimento (coita amorosa), numa referência às cantigas de amor. Também diferentemente da lírica cortês, neste poema o desejo sexual do eu-lírico é explícito. 167 Versos de sete sílabas (lembrando que se conta até a última sílaba tônica de cada verso). 241

No lago de São Lourenço Dei prova do meu valor! Remando contra a corrente, Ligeiro como a favor, Contra a neblina enganosa, Contra o vento zumbidor! Sou nortista destemido, Não gaúcho roncador: No lago de São Lourenço Dei prova do meu valor! Uma só coisa faltava No meu barco remador: Ver assentado na popa O vulto do meu amor... Mas isso era bom demais - Sorriso claro dos anjos, Graça de Nosso Senhor! (BANDEIRA, 1956, p. 297).

A multiplicidade e liberdade temática e estilística das obras de Bandeira leva a interpretar a presença do folclore brasileiro como mais uma forma de expressão – no caso do Desafio talvez ligada às recordações de sua infância em Recife – e não como parte de um programa estético nacionalista, o que o poeta confirma no ensaio Poesia Pau-Brasil:

Poesia Pau-Brasil. O nome é comprido demais. Bastava dizer Poesia Pau. Por inteiro: Manifesto Brasil da Poesia Pau. Porque poesia de programa é pau. O programa de Oswald de Andrade é ser brasileiro. Aborreço os poetas que se lembram de nacionalidade quando fazem versos. (BANDEIRA, in LOPEZ, 87, p. 52).

A mesma visão aparece em carta a Mário de Andrade, de março de 1929. Marques (2008, p.96) comenta as críticas do autor à obsessão do amigo com a língua nacional: Bandeira demorou a escolher o título [de Libertinagem]. Tinha uma porção de nomes para o novo rebento: Ó, Maninha; Novas Poesias; Outras Poesias; Novos Poemas de Ritmo Dissoluto e Marcha Soldado. Pediu ajuda a Mário de Andrade que lhe ofereceu opções folclóricas: Redondo, Sinhá; Mineiro Pau; Verso Maneiro e Verso Jeitoso. Desgostando de todos, chegou a alegar ao amigo: “não quero saber de brasileirismo gostoso agora. Não há nada que me aporrinhe mais.” [...]. Ainda que estimasse puxar traços da linguagem cotidiana para seus poemas, ele tinha restrições à obsessão de Mário em criar uma língua literária excessivamente recheada de elementos da fala popular.

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6.1.4 - O Desafio de Krieger: em busca do Brasil sonoro

Apresento neste item uma abordagem musical do mesmo poema, escrita três anos antes da de Lopes-Graça: a do brasileiro Edino Krieger168. Podemos perceber que o compositor tomou como principal referência o gênero folclórico e, por comparação, o quanto Lopes-Graça se distanciou do mesmo. Assim como Lopes-Graça e Bandeira, Krieger pode ser considerado um artista distante de um nacionalismo ortodoxo. Natural de Santa Catarina, aos 14 anos foi estudar no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, cidade onde conheceu o compositor e professor alemão Hans-Joachim Koellreutter. Por meio deste, tomou contato com a técnica dodecafônica, que utilizou por alguns anos e com a qual ganhou diversos prêmios. Segundo Ricardo Tacuchian (2006), a partir de 1952, Krieger abandona a escrita serial por uma mais nacionalista, buscando, a partir de 1965, uma conciliação entre tradição e vanguarda, presente em sua obra até a atualidade. Vencedor do Concurso para Jovens Compositores da América Latina, aos 20 anos, Krieger vai estudar no Berkshire Music Center, em Massachussets, com Aaron Copland e Darius Milhaud e, posteriormente, na Julliard School com Peter Mennin. No ano seguinte, volta ao Rio, iniciando uma carreira na Rádio MEC como produtor de programas, diretor musical e assistente da Orquestra Sinfônica da emissora. Em 1955 parte para Londres para estudar na Royal Academy of Music com Lennox Berkeley. Em entrevista realizada por e-mail, o compositor contou-me que compôs o Desafio nesse ano, quando estudava em Londres. Nesse período, preocupava-se em explorar elementos da temática brasileira, presentes também em outras obras, como o Quarteto de Cordas no. 1, o Concertante para piano e a Abertura Brasileira para orquestra. Procurando um texto poético para uma canção, encontrou o Desafio, de Manuel Bandeira, que lhe sugeria uma cantoria nordestina. Sobre este fato comenta Vasco Mariz (In LOPEZ, 1987, p. 69).

A querela dodecafônica no Brasil, no decorrer dos anos 50, provocou uma fuga dos compositores a um poeta de tanta força lírica como Bandeira. O único músico importante que o comentou com eficácia foi Edino Krieger, autor

168 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=smtvF0L3ezE. Acesso em 18 abr. 2018. 243

de mais uma versão do Desafio, com acompanhamento refinado, que aliás tem pouco a ver com a linha melódica do canto. 169

Para dar esse caráter à canção, Krieger utilizou o modo lídio com sétima abaixada170, com centro em mi. O acompanhamento sugere gestos musicais típicos da viola utilizada pelos repentistas, sejam os arpejos e alternância de terças com o baixo mi na introdução e na coda – sugerindo experimentação da afinação – ou o ostinato sincopado presente ao longo de todo o acompanhamento, comum em diversos ritmos nordestinos.171

Figura 71: Introdução do Desafio de Edino Krieger

Cópia de Luiz Paulo, 1983

A forma da canção, em uma seção apenas, corresponde à forma não estrófica do poema. Temos nos 5 primeiros compassos uma introdução. A parte A inicia-se com o canto no compasso 6 e se estende até o compasso 25. Divide-se, por sua vez, em duas seções: “a” (compasso 6 a 16), com centro em mi, correspondente às duas frases do primeiro período, e “b” (compassos 17 a 25), correspondente ao

169 Discordo da afirmação de Mariz referente ao acompanhamento, que acredito dar todo o apoio rítmico e harmônico necessário ao canto. 170 Esse modo, já referido na análise de Gabriela, também pode ser entendido como mixolídio com quarta aumentada ou ainda como uma mistura de lídio e mixolídio. 171 Oneyda Alvarenga, em Música Popular Brasileña (1947) e Luís da Câmara Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores (1939) indicam as afinações mais comuns na viola como mi-si-sol-ré-lá, si-fá-ré-lá-mi, lá-ré-sol-si-mi ou mi-lá-ré- sol-si-mi. Embora os arpejos utilizados pelo compositor não correspondam exatamente às cordas soltas mencionadas, destacamos a referência através do gesto musical, determinado pelo ritmo e direção. Os mesmos autores afirmam que, no desafio nordestino, o canto não recebe nenhum acompanhamento, servindo a viola apenas para os interlúdios instrumentais, chamados “rojão” ou “baião”. O canto acompanhado o tempo todo ocorre nos desafios de outras regiões do país. Krieger desconhecia essa informação ou, para garantir um efeito estético de preenchimento ou maior apoio harmônico ao solista, optou por não ser rigorosamente fiel à tradição nordestina.

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segundo período, cuja primeira frase (17 a 21) tem como centro o quinto grau, si, e a segunda (22 a 25) retoma o centro em mi. As duas pequenas seções estão separadas por um brevíssimo episódio instrumental (compasso 16), que seria correspondente ao “rojão” ou “baião” dos desafios tradicionais, onde o cantador tem espaço para tomar fôlego e elaborar os versos seguintes.

Figura 72: Episódio instrumental no Desafio de Krieger

Dois elementos melódicos recorrentes em ambas as seções são arpejos ascendentes e excertos melódicos centrados na repetição de uma nota. A coda (26 a 31), em caráter de recitativo, realça a intenção de comentário dos três últimos versos do poema, reforçada pelas interjeições “Ai, ai” acrescentadas pelo compositor.

Figura 73: Coda do Desafio de Edino Krieger

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6.1.5 - A abordagem de Lopes-Graça como retrato [de um] “desconstelizador”

Lopes-Graça concluiu a sua música para o Desafio172 em junho de 1958173, pouco antes de sua primeira visita ao Brasil. Nos programas dos concertos aqui realizados, não encontrei, contudo, indicação de apresentação da peça. A canção seria estreada em dezembro do ano seguinte pelo compositor e pelo tenor Fernando Serafim, em um recital realizado no Ateneu Comercial do Porto em 1959. Sabemos, por meio de uma crítica/crônica do próprio Bandeira no Jornal do Brazil [sic] (1958), que, por ocasião da tournée, os dois se conheceram pessoalmente em uma reunião na casa do casal Arnaldo Estrela (pianista) e Mariuccia Jacovino (violinista).

Nunca eu tinha ouvido nada de Lopes Graça, de sorte que foi um embevecimento quando Antônio Saraiva, jovem e fino cantor português, iniciou uma série de canções populares de várias províncias de Portugal. O compositor chama-nos a atenção para as letras, tão valorizadas pela melodia, letra e melodia por sua vez revalorizadas pelo arranjo harmônico, tão modernamente temperamental [...]. Depois ouvimos poemas de Camões, Nobre e Pessoa, musicados por Graça e baste dizer que o compositor subiu nêles à altura dos poetas.

Ainda durante a passagem do compositor pelo Brasil, Bandeira o ouviria tocar suas composições por ocasião de um sarau em sua homenagem, realizado no Lagoinha Country Club, no bairro de Santa Teresa. Também se apresentaram no

172 Gravação por João Rodrigues e Nuno Vieira de Almeida. http://www.deezer.com/track/131687320?utm_source=deezer&utm_content=track- 131687320&utm_term=129212263_1524079518&utm_medium=web. Acesso em 18 abr. 2018. Gravação por Guilhermina Lopes e Carla Ruaro https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/49-lopes-graca-desafio- guilhermina-lopes-e-carla-ruaro/s-pvfcw. 173 A referida data consta no final da partitura, o que leva a deduzir que era intenção do compositor apresentá- la aqui.

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evento António Saraiva, Lia Salgado174, acompanhada por Mignone, e o poeta português Antonio Botto. Passando à análise da canção, observa-se o predomínio do compasso 6/8, numa referência ao tradicional gênero da barcarola. A forma é uma espécie de rondó, ABACDA, com sugestão da tonalidade de lá menor. A esse respeito, convém esclarecer que o Desafio se enquadra melódica e harmonicamente na atualmente chamada linguagem pós-tonal, na qual estão presentes estruturas (“molduras”) tonais, mas que não obedecem rigorosamente a uma gramática tonal. Por exemplo, as transições entre centros ocorrem de forma mais abrupta e menos direcional que com o uso de modulações; estão presentes gestos cadenciais que, não seguindo rigorosamente a resolução segundo regras de contraponto tonal, não se podem denominar cadências. O intervalo de terça é ausente de boa parte dos acordes, normalmente construídos sobre intervalos de quarta e/ou quinta justa, com uma intenção colorística. Há também muitas dissonâncias acrescentadas, notas estranhas aos acordes175. Alguns autores, como José Carlos Picoto e Teresa Cascudo (2001, v. 10, pp. 243-245), definem de maneira geral o estilo de Lopes-Graça como tonal expandido - que se poderia aplicar ao Desafio - ou modal expandido, dependendo da peça. Considero especialmente pertinente a poética definição de Mário Vieira de Carvalho (2006, p. 130) que, entendendo sua linguagem mais como alargamento do que ruptura com o sistema tonal, considera que o compositor buscava “contestar a tonalidade por dentro” . As duas primeiras aparições de A consistem na apresentação do tema, seguido de sua repetição modificada cromaticamente, com algumas inversões de sentido melódico e a última (coda), de uma única apresentação, concluída em um glissando, em intervalo de oitava, todas as vezes com um acompanhamento baseado em um motivo em 6/8 com apoios no baixo a cada pulso e arpejos ascendentes na mão direita, numa referência ao remo de um barco no mar tranquilo, interrompido por compassos com alterações rítmicas que sugerem momentos de maior agitação.

174 soprano brasileira, esposa do ministro Clóvis Salgado. 175 Podem-se encontrar mais detalhes sobre o conceito e as características da música pós-tonal nos livros Introduction to post-tonal theory (2013), de Joseph Straus e Tonal Harmony: with an introduction to Twentieth- Century music, de Stefan Kostka, Dorothy Payne e Byron Almén, 2012. 247

Figura 74: Início do Desafio de Lopes-Graça. Tema (c.2 a 6) seguido de sua repetição modificada (c. 7 com anacruse a 9).

Edição da autora a partir da cópia do manuscrito (1960).

A seção B é construída no campo sonoro de Sol Maior. Em vez de utilizar- se de elementos que remetem ao folclore, Lopes-Graça toma como referência principal o texto, ilustrando musicalmente o que é descrito. Por exemplo, no trecho inicial de B, correspondente ao texto "remando contra a corrente" a "contra a neblina enganosa" (c. 12 com anacruse a 17), temos entre a voz e o acompanhamento uma dualidade métrica de pulsação simples e composta numa escrita em 6/8. A sensação de indeterminação tonal dos acordes formados pela superposição de quartas ou quintas, sem terças, também reforça a ideia de confusão gerada pela corrente e pela neblina. Em "contra o vento zumbidor" (c.18 com anacruse), o emprego de elementos da escala melódica de mi menor com uma suspensão na sensível sobre um acorde de sua dominante, Si Maior, gera uma sensação de vento, reforçada visualmente pela enarmonia ré sustenido-mi bemol a partir do 6/8 seguinte. Observe-se que a partir da nota sol temos uma escala de tons inteiros, também muito associada a esse tipo de ambientação.

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Figura 75: Seção B. Dualidade métrica na primeira parte e destaque para o uso de tons inteiros em "contra o vento zumbidor".

Na transição entre B e o retorno de A (c. 20 a 27), o compasso 25 apresenta uma polirritmia (tercinas na mão direita e pulso simples na mão esquerda), ainda uma referência à atmosfera da seção anterior.

Figura 76: Episódio que liga B ao retorno de A. Destaque para a polirritmia no compasso 25

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A segunda frase da segunda apresentação de A (c. 33 com anacruse a 35) tem como centro a nota Fá, sugerindo a tonalidade de Fá Maior. No compasso 37, apesar do emprego da expressão Agitato, reforçado pela repetição da nota dó sustenido, mantém-se o caráter de A, preparando o quasi lento de C (c.41). O exuberante episódio de B para A (c. 20 a 27) contrasta com este episódio para C (c. 37 a 41), que prepara uma melodia totalmente nova em Dó Maior, tônica relativa. O caráter lírico do quasi lento, con malizia de C cria uma expectativa, surpreendida no un poco animato (ver assentada na popa...), pelo bem-humorado uso da palavra "bunda". Após o retorno a Portugal, Lopes-Graça escreveu a Bandeira informando que havia trabalhado sobre seu poema. Este respondeu-lhe, em carta de 17 de janeiro de 1960, que ficou muito feliz pelo Desafio ter sido musicado, "com bunda e tudo", referindo-se à única alteração realizada no texto pelo compositor: a substituição do verso "o vulto do meu amor" por "a bunda do meu amor".

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Figura 77: Seção C. Surpresa do lírico ao malicioso 251

A transição para D baseia-se no motivo principal do acompanhamento, com pedal em Fá sustenido. A seção D, um comentário de devaneio do eu-lirico (mas isso era bom demais...), traz uma nova melodia, em Fá sustenido maior, ainda permeada pelo pedal. O Tempo I traz a retomada do tema principal, em lá menor, agora sem texto, apenas trauteado (trá lá lá...). O uso de sílabas, a dinâmica piano que posteriormente decresce e o fim em um glissando ascendente de oitava conferem malícia à expressão do eu lírico, o que é reforçada por um pedal de dominante (Mi) que decresce e ralenta, como se desaparecesse no horizonte.

Figura 78: Última repetição de A (coda)

A surpresa de uma frase ou palavra inesperada, deslocando o curso da narrativa e a mistura de vários registros da linguagem são características marcantes

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da escrita bandeiriana, e elementos-chave de seu humor. Como bem assinala Sônia Brayner (in LOPEZ, 1987, p. 42),

Manuel Bandeira, proveniente das vertentes do parnasianismo e simbolismo, absorveu a atmosfera estética do modernismo, reagindo gradativamente ao aspecto modelizador e sistemático das estéticas anteriores; o humour que injeta em seus poemas vai corresponder a uma transformação de óptica frente à razão e à emoção, dispondo-se criticamente a contemplar e a aceitar essa reconciliação dos contrários tão própria à faculdade de mudar de perspectiva da ironia. Será um recurso reconhecível em sua obra [...] a quebra da emoção pela antífrase, a mescla dos estilos com o intuito de criar o contraste propício à desmistificação lírica, muitas vezes, com forte dose de grotesco.

No ensaio Bandeira, o Desconstelizador ([1966] 2006, p. 111), Haroldo de Campos discorre sobre essa característica do poeta176, utilizando a metáfora das constelações como redes de significados comumente associados a determinada palavra ou associações vocabulares previsíveis ou tidas como lógicas e apropriadas.

[...] a informação estética de certos poemas bandeirianos [...] nasce do deslocamento repentino, fiado numa fímbria de linguagem apenas, do lugar comum para o lugar incomum [...]. Diante das palavras consteladas pelo uso num planetarium fixo de significados e associações, Bandeira se comporta como um operador rebelde, que se insubordina contra as figuras sempre repetidas do estelário dado (frases feitas do domínio comum) e, subitamente (luciferinamente), procura recompor a seu arbítrio poético os desenhos semânticos articulados pelo uso, resgatar as estrelas-palavras de suas referências e das imagens estáticas que projetam.

Um exemplo dessa “desconstelização”, tanto temática quanto vocabular, pode ser encontrado no poema Belo belo (II), publicado na coletânea de mesmo nome, subsequente à Lira dos Cinquent’anos.

Belo belo minha bela Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem tosse Nem obrigação de voto

176 Haroldo de Campos destaca nesse texto a defesa do movimento da poesia concreta (do qual foi um dos fundadores) por Bandeira e aponta elementos dessa estética em sua obra. Embora a pertinência dessa interpretação, proposta em 1966, no auge do concretismo, seja uma questão muito distante da proposta deste artigo, aproveito deste ensaio a metáfora das constelações, destacando, com relação à poesia bandeiriana, o aspecto da combinação de diferentes registros linguísticos. 253

Quero quero177 Quero a solidão dos píncaros A água da fonte escondida A rosa que floresceu Sobre a escarpa inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco Quero quero Quero dar a volta ao mundo Só num navio de vela Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdad e Cusco Quero quero Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero (BANDEIRA, 1956, p. 356).

No Desafio, o bem-humorado uso da palavra "bunda”, alteração ao texto realizada pelo compositor, pode ser entendido como uma referência a essa sua marca estilística. Em entrevista ao tenor Fernando Serafim, que realizou, juntamente com Lopes-Graça, a estreia da canção, perguntei-lhe que indicações de caráter haviam sido feitas pelo compositor durante os ensaios. O cantor respondeu, sem hesitação: “O caráter, ele disse-me logo: “Isto tem de ser brejeiro! ” [...] A própria letra implica que haja um sentido brejeiro, portanto, tire partido disso mesmo. ”Ouço, contudo, na

177 Além da mistura de diferentes registros da linguagem, destaca-se neste poema o jogo de palavras entre o verbo querer e o nome da ave sul-americana quero-quero (conhecida em Portugal como abibe do sul), cujo canto é associado à pronúncia dessa palavra.

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canção uma certa “impureza” manifesta na sobreposição de lirismo, brejeirice e valentia, que se misturam não apenas no texto (“sou nortista destemido, não gaúcho roncador” [...] “sorriso claro dos anjos, graça de Nosso Senhor”) e nas indicações de caráter (grazioso, agitato, con malizia, deciso) mas também no jogo entre barcarola e impulso de dança espanhola178, por meio do recurso a saltos anacrústicos ascendentes de 4ª, à alternância dos intervalos melódicos de 3ª maior e menor179 e à articulação non legato.

Figura 79: c. 60-64 - Jogo ente barcarola e dança espanhola por meio do salto anacrústico de 4a ascendente, da articulação non legato e da alternância melódica de 3ª menor e maior (c. 62).

Podemos encontrar tais características em obras de compositores espanhóis. Um exemplo do salto anacrústico de 4ª e do uso de non legato pode ser encontrado em El paño moruno180, primeira das Siete Canciones Populares Españolas (1914), de Manuel de Falla.

178 Agradeço a referência a esses aspectos que evocam danças espanholas à profa. Dra. Manuela Toscano, com quem cursei a disciplina Seminário de Especialidade em Ciências Musicais Históricas na FCSH-Universidade Nova de Lisboa. 179 O recurso à alternância de terças também se faz muito presente na obra de compositores de outros países, por exemplo, na do húngaro Bela Bartók; o caráter espanhol dá-se, neste caso, em relação ao contexto musical. 180 Gravação completa das Siete Canciones Populares Españolas por Isabel Penagos e Miguel Zanetti https://www.youtube.com/watch?v=Li9QXLarU7g. Acesso em 18 abr. 2018. 255

Figura 80: Início da canção El paño moruno - salto ascendente anacrústico de 4a e articulação non legato

Temos um exemplo do jogo melódico entre terças (embora ornamentadas e não diretamente seguidas como no Desafio) na canção Nana181, do mesmo ciclo: Figura 81: Jogo melódico de terças em Nana

O jogo entre barcarola e impulso de dança espanhola já havia sido utilizado por Lopes-Graça em Na Ria de Aveiro, das Viagens na minha terra182 (1954)

181 c. 8’53” do vídeo anterior. 182 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU&t=322s. (c 28’20”). Acesso em 18 abr. 2018.

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(MARTINS, 2004). Podemos perceber, por meio do ritmo da mão esquerda, que a dança a que se alude é a habanera, na verdade de origem hispano-americana. No Desafio, o ritmo da habanera não é exposto com tanta clareza. A presença, ao longo do Desafio, de acordes construídos à base de quartas e/ou quintas sobrepostas, muitas vezes sucessivos, gerando paralelismos, traz também aos ouvidos a referência ao chamado estilo impressionista, especialmente à música de Claude Debussy. Tal harmonia, como já mencionado, por sua indeterminação tonal e sensação sonora de rarefação, é frequentemente associada a elementos etéreos ou fluidos, como vento ou água. Não se pode crer que Lopes-Graça desconhecesse as bases estruturais do gênero folclórico brasileiro desafio, visto ser este, segundo Oneyda Alvarenga e Luís da Câmara Cascudo (1939), de origem portuguesa. A coletânea Música Popular Brasileña, de Oneyda Alvarenga, por sinal, foi a fonte das melodias das suas Sete Canções Populares Brasileiras (1954) e viria a ser também uma das fontes das Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras (1960). Apesar de o compositor não ter musicado nenhum desafio nestas séries, supõe-se que, ao selecionar as melodias, tenha passado pela descrição e pelos exemplos do gênero. Além disso, a definição apresentada por Lopes-Graça e Tomás Borba em seu Dicionário de Música, publicado dois anos antes, revela muita proximidade com a prática brasileira: “Duelo lírico que nas desfolhadas e bailaricos os cantadores de boa casta imprimem, com graça inventiva, aos seus diálogos felizes na arte de bem trovar”. Embora de ritmo menos movido e marcado que o desafio do Nordeste brasileiro, o Despique183, recolhido no Algarve (Casa Velha/Alferce, Monchique) por Lopes-Graça e Giacometti, é descrito pelos dois pesquisadores como uma “cantiga ao desafio, a que falta, porém, um dos contentores.”

Sofreri não é penari, (Ó) penari não é sofreri. (bis) Chorari não é riri, (Ó) riri não é chorari.

Ai, desceri não é subiri, (Ó) subiri não é desceri.

183https://www.youtube.com/watch?v=Yy0SVFSdElU&list=PLdsjWp47HQUe1Fl4GhQm4NuXn5r96WdQ6&index =5 Acesso em 18 abr. 2018. 257

Cá ‘stá o meu “compadro” Fernando184 (bis) Que me pode aqui valeri.

Eu posso levar duas noites, Ou três, ou quatro, Mas ninguém me há-de venceri.

Cá ‘stá o meu “compadro” Fernando Que me pode aqui valeri. (GIACOMETTI e LOPES-GRAÇA, 2008).

A partir dos elementos identificados, entendo a “impureza” estilística do Desafio de Lopes-Graça como uma abordagem bem-humorada do compositor, numa tentativa, ao mesmo tempo, de valorizar as imagens evocadas pelo texto poético e homenagear o marcante traço irreverente do poeta pernambucano.

6.2 - Tombeau para um artesão selvagem

O quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos185, concluído em 1970, é dedicado ao grupo estadunidense Pacific Arts Woodwind Quintet (Caryl Scott, flauta, Daniel Gundlach, oboé, William Dominik, clarinete, George Nemeth, trompa, Donald Da Grade, fagote). A escolha do tema está provavelmente relacionada às homenagens, no ano anterior, pelos 10 anos de morte do compositor carioca (1959- 1969). Em uma carta a Lopes-Graça, escrita em 1965, César Guerra-Peixe recomenda-lhe o Quinteto Villa-Lobos. Talvez Lopes-Graça tenha tido originalmente a intenção de dedicar a peça ao conjunto em questão. A dedicatória ao grupo ligado à University of Pacific, em Stockton, California, é aparentemente posterior, de 1972. Por meio de cartas de Dominik a Lopes-Graça, somos informados de que o conjunto havia recebido do compositor o seu outro quinteto [Sete Lembranças para Vieira da Silva, composto em 1966] e que o apresentou em março de 1972. Em uma carta de abril, Dominik pede a Lopes-Graça o envio de outras obras que porventura tenha escrito para essa formação. Temos por fim uma carta de junho agradecendo o envio do novo quinteto e informando a intenção de o incluir na programação da temporada

184 O prenome pode variar, segundo a pessoa para quem se canta. 185 Gravação ao vivo pelo Ensemble MPMP https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/52-fernando-lopes- graca-o-tumulo-de-villa-lobos/s-eDRLZ. Está previsto para breve o lançamento de uma gravação comercial de estúdio.

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seguinte, o que aparentemente não ocorreu186. Segundo os dois catálogos da obra musical de Lopes-Graça, a primeira audição aconteceu em Lisboa, no Cinema Tivoli, no dia 28 de junho de 1973, num concerto da Juventude Musical Portuguesa dirigido por Silva Dionísio. Os instrumentistas eram Hélder Ribeiro (flauta), Caldeira Lopes (oboé), Agostinho Romero (clarinete), Mendes do Carmo (trompa) e Jacinto Moniz (fagote). O conhecimento do título já chama a atenção, levando a questões sobre as referências do compositor e a relação com o homenageado. Utilizando um dos termos de Gérard Genette discutidos no capítulo anterior, quem toma contato com a obra é automaticamente instigado a partir, não de seu texto, mas de seu paratexto.

6.2.1 – Por que “O Túmulo?”

Vamos começar pela palavra “túmulo”, que sugere uma referência ao tombeau (túmulo, em francês), gênero que teve origem no período barroco e consiste em uma peça instrumental em caráter de lamento ou um grupo de peças, em memória de um mestre ou personalidade notável, já falecido(a). Segundo Edmundo Hora (2009), sua origem está ligada à música para alaúde. O primeiro exemplo de que se tem conhecimento é o Tombeau de Mezangeau (1638) de Ennemond Gaultier (c.1575-1651), que tem a forma de uma allemande187. Na França, o gênero foi fortemente influenciado por modelos literários, particularmente poemas memoriais que foram populares nos séculos XVI e XVII. Dentre os tombeaux barrocos mais conhecidos podemos mencionar o Tombeau fait à Paris sur la mort de Monsieur Blancrocher, de Johann Jakob Froberger188, o Tombeau de Chambonnières, de Jean- Henri D’Anglebert, na forma de uma gaillarde189, ambos para cravo, ou o Tombeau de Sainte-Colombe, para viola da gamba baixo, de Marin Marais, à maneira de uma fantasia.

186 Escrevi ao fagotista Donald DaGrade (único membro do quinteto a cujo e-mail tive acesso) em 2016 e 2017, a fim de solicitar mais informações, porém não obtive resposta. 187 Também conhecida como alemanda, alman ou almain, a allemande originou-se na Alemanha no século XVI como uma dança em compasso binário e andamento moderado, em duas ou três seções. No século seguinte, os compositores franceses passaram a utilizar nessa dança o compasso quaternário, sendo frequente o início com uma anacruse. Tais adaptações foram absorvidas por compositores alemães coevos e posteriores, como Johann Jakob Froberger e Johann Sebastian Bach. (ISAACS, MARTIN, 1985, SADIE, 1994). 188 Também escrito na forma de uma allemande, mas com a indicação para ser tocado de maneira não mensurada, isto é, com liberdade agógica, sem observar rigorosamente divisões de compasso. 189 (It. gagliarda, ing. galliard, pt. galharda). Dança cortesã em andamento vivo e compasso ternário. Teve origem no século XVI. Normalmente seguia-se à pavana, dança lenta em compasso binário. No século seguinte, tornou- se uma peça lenta. (SADIE, 1994). 259

De acordo com a entrada Tombeau no Grove Dictionary of Music and Musicians (LEDBETTER, 2001, v. 25, pp. 564-565), o uso de notas pedais é um recurso comum nos tombeaux barrocos para conferir à peça um caráter grave. Embora elas sejam frequentes no quinteto de Lopes-Graça, não se pode afirmar categoricamente que são uma referência ao tombeau, uma vez que também são elementos característicos do estilo pessoal do compositor. Passagens ascendentes de três notas, sendo as duas primeiras ornamentos (suspirations), outra característica do antigo gênero, não são estritamente utilizadas. Quanto aos baixos cromáticos descendentes (figura retórica que evoca lamento), estão presentes, mas de uma maneira que o caráter de lamento não é diretamente evocado. Sobre este aspecto trataremos mais adiante. Elementos mais comuns ao estilo barroco francês em geral são, contudo, frequentes ao longo da obra, como notas de passagem, escapadas e ritmos pontuados. No século XX foram compostas várias releituras do gênero190, como o Tombeau de Debussy, uma obra coletiva publicada em 1920 na Revue musicale, contendo peças em um movimento para piano, violão solo e diferentes formações camerísticas, dos seguintes compositores: Gian Francesco Malipiero, Albert Roussel, Paul Dukas, Manuel de Falla, Béla Bartók, Erik Satie, Maurice Ravel, Florent Schmitt, Eugène Goossens e Igor Stravinsky. Esta última é uma redução para piano do Chorale final das Symphonies d’instruments à vent191, originalmente composta para um conjunto de 24 instrumentos de sopro: 3 flautas (3ª alterna com piccolo), flauta alto em sol, 2 oboés, corne inglês, dois clarinetes em si bemol (1º alterna com clarinete em lá), clarinete alto em fá, três fagotes (3º alterna com contrafagote), 4 trompas em fá, 2 trompetes em dó, trompete em lá, três trombones e tuba. Esta obra foi possivelmente uma referência para Lopes-Graça na composição d’O Túmulo, a começar pela similaridade de instrumentação (em outras proporções, obviamente). Podemos encontrar vários pontos comuns, muitos já característicos da escrita de Lopes-Graça. Um deles é a grande presença e destaque dos contrastes, seja de dinâmica, andamento, articulação, textura, ou, mais comumente, de vários desses elementos. Tomemos como exemplo o excerto entre os

190 O próprio Lopes-Graça iniciou a composição d’ O Túmulo de Manuel de Falla, para coro e conjunto instrumental, que não chegou a concluir (CASCUDO, 1997). 191 Gravação pela New Zealand Symphony Orchestra https://www.youtube.com/watch?v=F68BMpyGecs. Acesso em 18 abr. 2018.

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compassos 209 e 216 das Symphonies. Entre 209 e 213 (nº 33 de ensaio) temos todo o grupo tocando, em uma dinâmica forte, com notas curtas e de articulação bem marcada. Esse aspecto, aliado a uma rápida alternância de compassos 2/4, 5/8 e 3/4, confere destaque ao ritmo. No compasso 214 ocorre uma brusca diminuição da dinâmica e rarefação da textura, com apenas os trompetes, os trombones e a tuba tocando em pianissimo. A escrita rítmica e de articulação também é completamente modificada, com notas longas, em legato. Figura 82: Contraste de dinâmica, articulação e textura nas Symphonies

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Em O Túmulo, pode-se notar um grande contraste, embora em menores proporções, num excerto da Pequena Rapsódia. Entre os compassos 38 e 51, temos um adensamento da textura, acompanhado de aceleração rítmica, dinâmica crescente

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e articulação gradativamente mais marcada. Nos compassos 52 e 53, a rarefação da textura, com pausas nos extremos grave e agudo (fagote e flauta), acompanhada de um rápido decrescendo, prenuncia o caráter da seção seguinte, cantabile, dolce, espressivo e legato.

Figura 83: Contrastes em O Túmulo

263

Outra sutil similaridade entre as duas obras é o uso de paralelismos, onde são frequentes as sonoridades verticais de 2ª (ou 7ª ou 9ª), trítono e sexta.

264

Figura 84: paralelismo nas Symphonies (c. 157 a 159)

Figura 85: Paralelismo em O Túmulo – Prelúdio, c. 35 a 39.

A presença dos intervalos harmônicos de 2ª, 7ª, 4ª 5ª e trítono é frequente, de maneira geral, nas duas peças. O uso, em muitos momentos, de aceleração rítmica a partir de uma lógica aditiva também é um procedimento em comum. 265

Figura 86: Aceleração rítmica em uma lógica aditiva - Symphonies

266

Figura 87: Aceleração rítmica em uma lógica aditiva - O Túmulo

Outro recurso bastante comum nas duas obras é a utilização de notas pedais, aliada a uma combinação de dissonâncias atacadas e formadas por retardo.

Figura 88: Pedais e dissonâncias nas Symphonies - c.263 a 267.

267

Figura 89: Pedais e dissonâncias em O Túmulo. Início do Prelúdio - c. 1 a 7.

A mais forte referência às Symphonies no quinteto de Lopes-Graça, contudo, parece ser a opção por concluir a obra com um coral.

Figura 90: Início do Poslúdio

268

Figura 911: Seção final do Chorale das Symphonies – c. 294-299

Outra célebre releitura do tombeau no século XX é Le Tombeau de Couperin, de Maurice Ravel, escrita primeiramente para piano solo em 1917. Todos 269

os seis movimentos aludem a formas barrocas: Prélude, Fugue, Forlane192, Rigaudon193, Menuet e Toccata. Em 1919, apenas as formas de dança, além do prelúdio, foram orquestradas pelo compositor. Essa versão em forma de suíte tornou- se um de seus trabalhos mais conhecidos. A escolha e disposição dos movimentos por Lopes-Graça em seu tombeau parece combinar referências ao caráter meditativo dos tombeaux barrocos e o caráter de suíte de sua mais famosa releitura194.

6.2.2 – Tratamento do material folclórico em O Túmulo

Os 11 movimentos estão organizados de maneira simétrica: o último, Poslúdio, basicamente homofônico, solene, como um coral, é baseado na mesma melodia tradicional que o primeiro movimento, Prelúdio, em caráter mais leve. Trata- se de Iemanjá Otô, uma canção do culto afro-brasileiro do candomblé, dedicada à orixá Iemanjá (a mãe d’água, associada ao mar) coletada na Bahia pelo compositor Mozart Camargo Guarnieri (ALVARENGA, 1947, p. 180). Há quatro meditações também baseadas nessa mesma melodia, intercaladas com movimentos baseados em outras melodias folclóricas brasileiras.

192 Dança popular originária do nordeste da Itália, em andamento vivo e compasso 6/8 ou 3/4, bastante utilizada nos opéra-ballets franceses do século XVIII. (DOLMETSCH, 2017). 193 Dança folclórica francesa, difundida nas cortes francesa e inglesa como dança e forma instrumental nos séculos XVII e XVIII. De andamento moderado a rápido, caráter alegre e compasso binário. (SADIE, 1994). 194 A comunicação realizada por José Eduardo Martins no Simpósio Fernando Lopes-Graça em retrospectiva, ocorrido em Cascais nos últimos dias 15 e 16 de dezembro, abriu novas possibilidades de análise de relações intertextuais para O Túmulo, a serem eventualmente exploradas em trabalhos futuros. Ao abordar a primeira versão do Canto de Amor e de Morte, para piano solo, Martins encontrou elementos comuns a outras obras pianísticas do compositor sobre o tema da morte, como os Epitáfios e as Músicas Fúnebres. Os principais recursos mencionados foram apojaturas acentuadas e repetições de uma mesma nota [este último elemento Martins associou a águas paradas, a partir de uma relação proposta por Vladmir Jankelevitch]. Os recursos referidos por Martins para o “código” da morte fazem-se presentes em diversos momentos deste quinteto. Para além de relações com outros tombeaux, seria, portanto, interessante buscar relações com o imenso corpus de obras do próprio Lopes-Graça que abordam o tema da morte.

270

Figura 92 Iemanjá Otô - melodia base do Prelúdio, Poslúdio e meditações.

ALVARENGA, 1947, p. 180

Conforme indicado na partitura, todas as melodias foram extraídas da antologia Música Popular Brasileña (1947), de Oneyda Alvarenga. Lopes-Graça deu a esses movimentos títulos que, embora aludam a gêneros folclóricos, são mais genéricos e não se referem diretamente a manifestações específicas. Nenhuma referência à origem ou título de cada melodia é indicada na partitura. A descrição que se segue é fruto da análise da partitura, em diálogo com a fonte. Para a contextualização, também foi consultada uma edição brasileira mais recente do livro de Oneyda, a de 1982, pela Editora Duas Cidades. Ritual195 é baseada em Eu bem que te disse, ó mamãe, um canto de pajelança, culto em que se destaca o sincretismo de elementos africanos, indígenas (em maioria) e europeus, praticado sobretudo no Amazonas, norte do Piauí e Maranhão – estado onde foi colhido este exemplo musical. O texto faz referência a Dom Estrêla, possivelmente o nome da entidade que com ele se manifesta. A melodia é utilizada quase integralmente, faltando apenas o fragmento formado pelo 2º tempo do compasso 6 e 1º tempo do compasso 7.

195 c. 2’43” de O Túmulo. 271

Figura 93: Melodia utilizada em Ritual.

ALVARENGA, 1947, p. 183.

Uma melodia do reisado do Zé do Vale (ALVARENGA, 1947, p. 36), que dramatiza a prisão do célebre bandoleiro assim chamado, entregue à justiça por uma cabocla sua antiga amante, é o material de onde parte Lopes-Graça no Pastoril 196. Foi colhida na Bahia (Salvador – então Bahia capital) por Camargo Guarnieri em 1937.

Figura 94: Melodia utilizada em Pastoril

ALVARENGA, 1947, p. 36.

O Baile197 é composto a partir da melodia de apresentação do personagem Gigante no Rancho de Boi de São Gonçalo (bumba meu boi), recolhida por Mário de Andrade na cidade de São Gonçalo, praia de Redinha, próximo a Natal, no Rio Grande do Norte (ALVARENGA, 1947, p. 42).

196 c. 7’ de O Túmulo. 197 c. 10’58” de O Túmulo.

272

Figura 95: Melodia principal utilizada em Baile

ALVARENGA, 1947, p. 42.

A melodia original é ligeiramente modificada, sendo as notas longas substituídas por pausas, enfatizando a estrutura rítmica. A divisão de vozes no compasso 8 também não é utilizada. Um excerto de Oh minha iaiá de ôro (ALVARENGA, 1947, p. 47), parte das despedidas no bumba meu boi, também é utilizado nesse movimento. A melodia foi recolhida por Mário de Andrade em Pernambuco.

Figura 96: Oh, minha iaiá de ôro, melodia utilizada no Baile

ALVARENGA, 1947, p. 47

O Acalanto com três variações198 é baseado no acalanto Nigue nigue ninhas, recolhido na Paraíba. Segundo Alvarenga, o sentido do texto, cantado em uma mistura de português com um dialeto africano, não é possível recuperar totalmente.

198 c. 15’05” 273

Figura 97: Nigue nigue ninhas - melodia utilizada no Acalanto com três variações

ALVARENGA, 1947, p. 195.

Na Pequena Rapsódia199, Lopes-Graça utiliza três melodias. A primeira é Oh sinhá minha vizinha, uma tirana-canção. De origem espanhola, a tirana foi uma dança cantada muito popular no século XVIII, com características próximas às do fandango. Sua coreografia caracterizava-se pela dança de um solista no centro de uma roda e continha palmas e sapateado. No nordeste brasileiro teria se convertido em uma canção ao desafio entoada por lavadeiras, conhecida pelo nome de arrazoar. Alvarenga retirou este exemplo do livro A música no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro decenio da República (1908), de Guilherme de Mello. Grande parte das melodias contidas neste livro são transcritas de memória pelo autor. Não é especificada a região de origem, mas acredito ser do seu estado natal, a Bahia, de onde provêm a maioria dos seus exemplos musicais.

Figura 98: Oh, sinhá minha vizinha - primeiro tema da Pequena Rapsódia

ALVARENGA, 1947, p. 142.

199 c. 20’43”.

274

A segunda melodia utilizada neste movimento é uma serandina, dança de roda de adultos, similar a uma ciranda. Alvarenga relaciona sua origem à Seranda, típica da região do Minho, no noroeste de Portugal. Oh serena, oh serandina foi recolhida pela própria Oneyda Alvarenga em 1935, em Varginha, sul do estado de Minas Gerais.

Figura 99: Oh, serena, oh serandina - segundo tema da Pequena Rapsódia

ALVARENGA, 1947, p. 143.

Ainda é utilizado um terceiro tema – o samba Xô-xô, Barata, recolhido em Salvador por Camargo Guarnieri em 1937. Figura 100: Xô-xô, Barata - 3o tema da Pequena Rapsódia

ALVARENGA, 1947, p. 115

A seguir, apresento uma tabela que sintetiza essas informações.

275

Tabela 5: Gênero e região das melodias utilizadas em O Túmulo

Movimento Melodia folclórica Gênero/Contexto Estado

Prelúdio Iemanjá Otô Ponto de candomblé Bahia

Ritual Eu bem que te Canto de pajelança Maranhão disse, ó mamãe

Meditação Iemanjá Otô Ponto de candomblé Bahia Primeira200

Pastoril Seu presidente, Reisado (do Zé do Vale) Bahia meu dinheiro vale

Meditação Iemanjá Otô Ponto de candomblé Bahia Segunda201

Baile Gigante/Oh, minha Rancho de boi de S. Rio Grande do iaiá de ouro Gonçalo/Bumba meu boi Norte/Pernambuco

Meditação terceira202 Iemanjá Otô Ponto de candomblé Bahia

Acalanto com três Nigue nigue ninhas Acalanto Paraíba variações

Meditação quarta203 Iemanjá Otô Ponto de candomblé Bahia

Pequena rapsódia Oh! sinhá minha Tirana/Serandina/Samba Bahia? /Minas vizinha/Oh, serena, Gerais/Bahia oh serandina/Xô-xô, Barata

Poslúdio204 Iemanjá Otô Ponto de candomblé Bahia

200 c.5’30” da faixa. 201 c. 9”47”. 202 c. 14’15”. 203 c.19’30”. 204 c. 24’13”.

276

Com exceção das meditações e do Poslúdio, onde as referências a Iemanjá Otô aparecem fragmentadas, praticamente imperceptíveis em alguns casos, as melodias em que são baseados os demais movimentos são integralmente apresentadas em uma ou mais vozes e posteriormente seus fragmentos são desenvolvidos. Entre os recursos composicionais mais frequentemente utilizados na obra, podemos citar:

 aceleração rítmica: este efeito se dá, em O Túmulo, de duas formas: por meio de diminuições (escrita da mesma melodia ou repetição de uma mesma nota em figuras gradativamente de menor duração) ou de forma aditiva, com a repetição de uma mesma figura musical, cada vez em maior número. Muitas vezes essa aceleração se realiza nas diferentes vozes com diferentes figuras e ritmos, gerando um efeito polirrítmico.  adensamento ou rarefação da textura, por meio do acréscimo ou diminuição de vozes. Muitas vezes é sincronizada com aumento ou diminuição da intensidade. Figura 101: Aceleração rítmica, adensamento da textura e aumento da intensidade em O Túmulo

Pastoril, c. 65 a 74. 277

 notas pedais, com frequente formação de dissonâncias, atacadas e por retardo, conforme exemplificado na discussão da relação com as Symphonies de Stravinsky. Frequentemente tais dissonâncias, quando combinadas ao adensamento da textura e, sobretudo, à polirritmia, geram um efeito de “massa sonora”.  Relacionado a este recurso está o frequente uso de clusters, sobretudo na conclusão dos movimentos ou de seções. Nem sempre se trata rigorosamente de graus conjuntos, às vezes a distância é de uma nona entre algumas notas do acorde; entretanto, o efeito de cluster ainda é perceptível. A dissonância nos clusters é ainda mais evidente - e estridente – nos instrumentos de sopro.

Figura 102: Efeito de "massa sonora" e conclusão num cluster - Pequena Rapsódia, c. 98-111.

 desenvolvimento a partir de fragmentos das melodias, por repetição, modificação intervalar, aumentação, diminuição ou inversão de sentido. Outro

278

recurso semelhante é o trabalho a partir de um intervalo ou grupo de intervalos melódicos, nem sempre associado(s) a um fragmento de tema.

Figura 103: Desenvolvimento a partir do fragmento final de Oh sinhá minha vizinha - Pequena Rapsódia, c. 13-37.

279

 exploração dos extremos de tessitura  anticlímax – um dos recursos mais idiossincráticos do compositor, já discutido em outros capítulos. Consiste em alterações inesperadas de dinâmica, textura, harmonia e/ou caráter.

Apresento a seguir uma tabela com os pontos principais da análise dos movimentos, destacando (em negrito) os recursos composicionais mais frequentemente utilizados.

280 Prelúdio c. 1-10 10-18 18-26 27-32 33-39 40-45 46-49 Introdução flauta: apresentação fragmentos do tema Melodia na trompa – 33-34-Agitato Flauta sugere uma anticlímax da melodia “Iemanjá 18 – 20: Clarinete e 5ª abaixo textura homofônica retomada do tema, pedais Otô” trompa – fragmento pedal na trompa mas na verdade caráter deciso (altura original) inicial demais instrumentos ocorre uma formam-se nos acompanham com 35-39 – Meno mosso, aceleração rítmica e textura basicamente pontos de apoio pedais homofônicos 20-26: aceleração notas curtas no allargando adensamento da homofônica, intervalos de 2ª. 4ª, sonoridades rítmica e contratempo textura. As vozes vão fragmento inicial da 5ª e 7a verticais de 2ª, 4ª e adensamento da (efeito evoca uma paralelismo se somando, da mais melodia 7ª textura banda de coreto do aguda para a mais interior) modificações grave, em textura quase um uníssono polifonia a partir do cromáticas nas homofônica (fagote uma 2ª menor fragmento final contraste de caráter melodias abaixo) crescendo na Culmina num trinado predomínio das dinâmica de clarinete sonoridades p-ff verticais de 2ª e 7ª Apoio numa fermata – formação de 2ª e trítono.

281

Ritual c. 1-5 5-16 17-22 23-34 35-39 40-49 49-65 Introdução 5-14 – Flauta: stringendo Più mosso Meno mosso diminuição rítmica Movimentação a partir apresentação da de fragmentos da pedais melodia “Eu bem aceleração rítmica, a forte e marcado melodia cromática melodia no oboé, melodia que te disse”, na partir do fragmento descendente no oboé pedais nas demais 5ª e 7a altura original – mi final, e adensamento 23-27: Melodia no (lembra melodias da vozes 56-58: movimentação com ambiguidade da textura piccolo e clarinete Sagração da cromática em entre Maior e vozes somam-se da Primavera, de sentido contrário no mixolídio (evita 7º grave para a aguda imitação com Stravinsky). oboé e fagote grau) inversão de sentido textura homofônica nos demais 59-65: pedais com acompanhamento instrumentos adensamento da apresenta “trinados” textura de dois em dois 28-34: aceleração instrumentos, em rítmica e 66: fermata apenas diferentes intervalos adensamento da da flauta (2as, 3as, 5as e textura, a partir do trítonos) fragmento final rarefação da textura

15-17 Clarinete crescendo “ecoa” o fim da melodia da flauta e o fragmento final da melodia retorna à flauta, 8ª acima

282

Meditação primeira c. 1 - 6 7-14 15 - 20 entrada gradativa das vozes em notas longas melodia no oboé, construída a partir das notas acompanhamento pedal lento, sincopado, com principais de Iemanjá Otô movimentação cromática formação de dissonâncias por retardo (lembra o início do Prelúdio – basicamente a mesma harmonia) fragmentos comentados pelas demais vozes melodia na flauta – ornamentação da melodia apresentada pelo oboé sutil aceleração rítmica na flauta, a partir do intervalo melódico de 7ª Maior sutil aceleração rítmica e conclusão num acorde com intervalos de trítono, 5ªe 4ª pedais nas demais vozes Pastoril c. 1- 10 11-20 20-37 38-64 65-74 Melodia “Seu Presidente” no transição Poco meno mosso notas longas em piano na Lento non troppo clarinete – tom original – Si b região aguda Maior, com articulação caráter burlesco fragmento inicial do tema – entrada do fragmento inicial do marcada oboé, ½ tom acima adensamento da textura – tema do Pastoril em Imitação e aceleração rítmica, modificação do intervalo efeito de “massa sonora” aumentação rítmica, imitada, continua, jocoso, no fagote e, a partir do intervalo de 3ª inicial da melodia (3ª m para 4ª do grave para o agudo posteriormente, na flauta (jogo entre M e m na flauta e J) citação do fragmento inicial da clarinete) suspensão na dominante melodia do Ritual, modificada pedal na trompa e fagote comentário das demais vozes – ritmicamente e um semitom ataque marcado após a 26 – Clarinete: fragmento abaixo do original – jogo com os intervalos de 3ª primeira parte do tema (c. 3, 5 e inicial do tema em Dó M (mais primeiramente no oboé e M (oboé) e alternância de 2ª M 7). ½ tom acima) posteriormente na trompa e m (clarinete)

retorno à atmosfera inicial 283

Deslocamento métrico aceleração rítmica e (antecipação de ½ tempo) adensamento da textura, acompanhadas de crescendo Fagote: ostinato aceleração rítmica a partir de 34

pedal e adensamento da textura nas demais vozes

Meditação segunda c. 1-17 18-21 repetição imitativa de um fragmento gerado a partir da célula rítmica inicial de Tranquilo, sostenuto Iemanjá Otô, com movimentação cromática ascendente e descendente. dissonâncias por retardo, a partir de notas pedais Textura polifônica conclusão em um cluster, com uso dos extremos grave e agudo (pianissimo Embora o compasso seja binário, os apoios na escrita rítmica sugerem uma valsa. atenua o efeito agressivo)

9-13: crescendo e adensamento da textura

13-17: diminuendo e rarefação da textura

284

Baile c. 1-12 13-16 17-24 25-34 35-45 45-67 67-79 trompa: apresentação transição tema na flauta e 25-28: aceleração Subito meno mosso polifonia a partir de súbita rarefação da da melodia do oboé, em 6as rítmica baseada em diferentes textura Gigante em mi dórico aceleração rítmica paralelas – dó dórico fragmento da flauta e oboé em fragmentos de “Oh, (3ª M acima) em notas pedais (original) segunda parte da movimento minha iaiá” ritenuto melodia contrário, a partir do Comentário dos termina em um pedais nas demais intervalo melódico de imitação a partir de outros instrumentos acorde de Lá Maior vozes – sincopados, flauta e oboé: 6as 2ª motivo com (notas curtas) destacam a marcação paralelas cromatismo rítmica pedal na trompa articulação de duas a descendente duas notas fagote e clarinete: 73 em diante: cromatismo pedais nas demais stringendo descendente vozes aceleração rítmica 29-34: flauta e oboé: c. 44: clarinete e aditiva com aceleração rítmica a trompa antecipam adensamento da partir de apojaturas fragmento de “Oh, textura ascendentes e minha iaiá de ôro” descendentes final num cluster

pedal nas demais vozes conclui com um cluster

285

Meditação terceira c. 1- 12 Escrita sobre as notas principais de Iemanjá Otô

Não aparece, contudo, nenhum fragmento reconhecível do tema

Efeito polirrítmico - cada voz é desenvolvida a partir de diferentes figuras

Acalanto com três variações c. 1-14 15-47 48-67 68-88 Introdução Variação I Variação II Variação III Apresentação da melodia Nigue nigue Lento desenvolvida a partir da 3ª menor entram as vozes, da grave para a ninhas na flauta – Ré b Maior (tom descendente e maior ascendente aguda, num motivo de 3 notas, ora original) pedais (fragmentos do início da melodia) baseado em 2as, ora em 2as e 3as. Trata-se do fragmento inicial da efeito de “massa sonora” nas demais desenvolvimento a partir do intervalo jogo entre pedais nas vozes extremas e melodia, com alterações cromáticas. vozes – grande número de dissonâncias melódico de 2ª menor movimentação nas intermediárias 54-59: o jogo se inverte. adensamento da textura, com notas 11-12: trompa repete o fragmento final motivo em 2ª Maior, seguida de 3ª pedais nas vozes – formação de do tema menor – referência ao fragmento final 60 e 62: motivo em 2ª e 3ª, ora Maior, dissonâncias – efeito de “massa da melodia ora menor sonora”

termina num cluster, formado por 86: citação do fragmento final da retardo melodia na flauta

Conclusão num acorde de Si b com 4ª e

7as Maior e menor. Dinâmica piano atenua as dissonâncias

286

Meditação quarta c. 1-3 4-9 10-15 In modo di una improvisazione Più mosso súbita rarefação da textura

Entram as vozes em notas longas, numa harmonia notas pedais, com ocasionais ornamentações vozes vão entrando aos poucos semelhante à do início do Prelúdio trompa segue a partir do intervalo melódico de 7ª flauta e oboé: referência ao motivo da Variação I do oboé: ornamentação com sutil aceleração rítmica, a Maior acalanto, em aumentação partir da 4ª mi-si (notas principais de Iemanjá Otô). flauta: aceleração rítmica referência ao ritmo do atabaque na trompa e oboé A célula rítmica com fusas ligadas a uma semínima, que será citada em outros momentos, é semelhante ao ritmo do atabaque na transcrição de Iemanjá Otô por Oneyda Alvarenga.

trompa: linha desenvolvida a partir do intervalo melódico de 7ª Maior, uma espécie de ostinato, porém com sutil diminuição rítmica.

Pequena rapsódia c. 1-23 24-29 30-52 53-75 76-111 Melodia 1 “Oh, sinhá minha repetição do fragmento final da Più mosso Subito sostenuto molto 75-85: clarinete – ostinato vizinha”, em dó mixolídio melodia, com modificações baseado em fragmento da 2ª (original), passa inteira, dividida intervalares ostinato em 3as menores – Melodias lentas em todas as parte de “Oh, sinhá” entre as vozes, num esquema modificação do fragmento vozes fagote: ostinato baseado em de “pergunta-e-resposta” diminuendo final da melodia 1 fragmento inicial de “Oh, cromatismo no clarinete serena, oh, serandina” 287

20-23: imitação e aceleração rarefação da textura fagote apresenta a melodia 2 – rítmica, a partir do fragmento “Oh serena, oh serandina” – pedal no fagote flauta entra com a Melodia 3 – final da melodia sol b mixolídio (original) Xô-xô, Barata” – mi mixolídio 60-63: flauta e oboé – melodia (original) trompa continua o tema – flauta a partir do fragmento final de adensamento da textura e oboé respondem “Oh, sinhá”, modificado. aceleração rítmica 80: volta a melodia 3, na flauta a partir de c. 40: adensamento 69: breve retorno do ostinato e oboé, em 8as. da textura em 3ª menor trompa segue com ostinato crescendo 70-75: poco a poco avivando – ligeiramente modificado crescendo - flauta – clarinete: figuras rápidas 49-52: notas curtas – forte – aceleração rítmica fagote: articulação marcada articulação marcada – sutil efeito de swing oboé – fragmento da 2ª parte polirritmia e efeito de “massa de “Oh, sinhá” sonora”

adensamento da textura

conclusão no fragmento inicial de “Xô-xô, Barata”, terminando num cluster.

288

Poslúdio c. 1-14 15-20 21-25 26-27 In modo di un corale, com solemnità 15-17: melodia sincopada Più lento, molto sostenuto Largo

escrita coral em notas longas, baseada movimentação cromática pedais pianissimo nas notas principais de Iemanjá Otô abertura das vozes crescendo e diminuendo oboé: fragmento inicial de Iemanjá Otô, ocasionais ornamentos (mordentes) sobre pedais das demais vozes. 18-20: melodia construída a partir dos flauta e clarinete: sutil aceleração predomínio das sonoridades verticais intervalos de 4ª, 5ª e trítono, em rítmica de 4ª, trítono, 7ª e 5ª uníssono, na flauta, oboé e clarinete, imitada por fagote e trompa 12-14: inversão de vozes – oboé mais agudo que flauta

fermatas de pontuação ao final das frases, como nos corais de J. S. Bach

Tabela 6: recursos composicionais mais frequentes em O Túmulo 289

6.2.3 – O Túmulo em sua dimensão de retrato

O caráter de homenagem do gênero tombeau leva a considerar a dimensão de retrato205 neste quinteto e a perscrutar a presença de características do estilo ou personalidade do compositor nesta obra. Espontaneidade e irracionalidade têm sido palavras proeminentes em muitas narrativas sobre a biografia e o estilo composicional de Heitor Villa-Lobos. As anedotas sobre o seu caótico e barulhento ambiente de trabalho e a construção para si próprio de uma imagem exótica, por meio de algumas atitudes e declarações, como um recurso para promover o seu trabalho, possivelmente contribuíram para o reforço dessa visão. Como exemplos, podem-se citar a não negação de uma estória publicada pela jornalista francesa Lucie Mardrus, na qual Villa-Lobos quase teria sido devorado por índios canibais, além de célebres frases atribuídas ao compositor, como “O folclore sou eu” (JARDIM, 2005). O próprio Lopes-Graça, em um pequeno artigo escrito algumas semanas após a morte de Villa-Lobos em 1959, disse que ele “compunha com a inocência de um primitivo” e descreve sua obra como “uma torrente, uma força incontrolada da natureza” (LOPES-GRAÇA, [1959] 1962, p. 177). Quanto ao estilo de Villa-Lobos, Acácio Piedade (2009) destaca o caráter rapsódico de algumas de suas obras, com referências cumulativas a diferentes elementos culturais, levando a um “excesso semântico”. Possivelmente o mais emblemático exemplo desse procedimento são os Choros n° 10206, para coro e orquestra sinfônica, compostos em 1926. Sua primeira parte, instrumental apenas, parece evocar a paisagem sonora da Amazônia, enquanto a segunda parte combina, nas linhas vocais, palavras percussivas e onomatopaicas, imitando palavras indígenas, (jakatakamarajá, jequiritumurutu) e a canção Rasga o Coração,

205 Curiosamente, a única outra peça de Lopes-Graça para quinteto de sopros tem também uma homenageada, a pintora Maria Luísa Vieira da Silva, porém não se trata de homenagem póstuma. As Sete Lembranças para Vieira da Silva foram compostas em 1966, ano em que a pintora, que residia em Paris, tornou-se a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Arts, e talvez a dedicatória esteja relacionada a este fato. Há muitos procedimentos composicionais em comum entre as duas obras, entretanto elas soam completamente diversas. Não são utilizados temas folclóricos; a escrita é desenvolvida a partir de pequenas estruturas que fogem ao tonal ou modal. De maneira geral, a textura é menos densa; contudo, os momentos de adensamento trazem a sensação de uma harmonia bem mais agressiva. São mais bruscos os contrastes entre as seções. Se pensarmos a obra em sua dimensão de retrato, poderíamos talvez associá-la ao caráter abstrato da produção e ao traço anguloso da artista. 206 Gravação pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a regência de John Neschling https://www.youtube.com/watch?v=VZjv4l9IUuw. Acesso em 18 abr. 2018.

290

originalmente um schottisch de Anacleto de Medeiros, com letra acrescentada posteriormente por Catulo da Paixão Cearense207. Os ritmos da densa percussão são muito similares ao que seria considerado, a partir da década de 30 e ao longo de todo o século XX, uma sonoridade de escola de samba.

Figura 104 : Excerto dos Choros 10, de Villa-Lobos

Editions Max Eschig, 1928

207 O acréscimo da letra e o reconhecimento da autoria geraram considerável polêmica, que foge, no entanto, ao escopo deste trabalho. 291

Suas Bachianas Brasileiras, contudo, são frequentemente tratadas como uma exceção, consideradas o marco de uma fase neoclássica, caracterizada, segundo Paulo de Tarso Salles (2009), por referências macro e microestruturais à música barroca, misturadas a elementos de gêneros tradicionais brasileiros, resultando em peças mais concisas, embora ainda estejam presentes aspectos associados ao Villa-Lobos mais “primitivo”. A escolha do gênero tombeau por Lopes-Graça, além do aspecto de homenagem, pode ser interpretada como uma referência a esta fase da produção villalobiana. A forma e o caráter coral e solene do Poslúdio, além da já mencionada referência à seção final das Symphonies de Stravinsky, apresenta semelhanças com o Prelúdio das Bachianas n° 4208, para piano, posteriormente orquestradas pelo próprio compositor. Figura 105: Início do Poslúdio

Figura 106: Início do Prelúdio das Bachianas 4

Primeira edição - Rio de Janeiro - Mário gravador, 1941

208 Gravação por Nelson Freire https://www.youtube.com/watch?v=A1Emge2-4AM. Acesso em 18 abr. 2018.

292

A escrita imitativa (por exemplo, a imitação no Baile ou a imitação invertida em Ritual) pode ser interpretada como uma referência a uma técnica composicional empregada nas Bachianas. A transformação cromática de fragmentos do tema, técnica presente ao longo d’O Túmulo, por sua vez, é tanto um procedimento comum nas Bachianas quanto uma característica do estilo de Lopes-Graça. Mário de Andrade, no seu Ensaio sobre a música brasileira (1928) destaca o que considera uma polifonia especificamente brasileira, baseada nas linhas de baixo do violão nas serestas e outros gêneros populares. Essa técnica é frequentemente aplicada por Villa-Lobos em suas Bachianas. A única obra dessa série que se pode comprovar ter sido conhecida por Lopes-Graça são as Bachianas n° 6209, para flauta e fagote, apresentadas nos concertos da Sonata em 1948 (CASCUDO,1999), e cuja partitura está presente em sua biblioteca pessoal. O tipo de contraponto mencionado por Mário de Andrade é proeminente nessa peça, que podemos ouvir, ao mesmo tempo, como uma invenção a duas vozes de Johann Sebastian Bach e uma evocação do gênero do choro, com a flauta tocando a sua parte e o fagote imitando um violão.

Figura 107: Excerto das Bachianas 6 de Villa-Lobos.

New York: Associated Music Publishers, 1946

Associadas à linguagem do choro e a essa atmosfera seresteira de princípios do século XX estão as valsas, nas quais também encontramos essa polifonia mais local apontada por Mário de Andrade. Podemos citar, dentre as representações desse gênero na obra villalobiana, a Valsa-Choro210, da Suíte Popular

209 Gravação por Adriana Ferreira e Rui Lopes https://www.youtube.com/watch?v=SjAJiidXLyk. Acesso em 18 abr. 2018. 210 Gravação por Odair Assad https://www.youtube.com/watch?v=5J7vXikEXTc. Acesso em 18 abr. 2018. 293

Brasileira, para violão solo, e as Impressões Seresteiras211, do Ciclo Brasileiro, para piano solo. Apesar de estar escrita em compasso binário, os apoios na escrita rítmica da Meditação Segunda sugerem uma valsa. A polifonia gerada nesse movimento é muito similar à polifonia referida por Mário de Andrade. A movimentação cromática descendente é, ao mesmo tempo, uma característica da valsa suburbana brasileira e uma figura retórica comum ao gênero tombeau. A ela convencionou-se atribuir o significado de lamento. Lopes-Graça indica, no início da Meditação, a dinâmica piano, acompanhada da expressão de caráter doloroso. Contudo, o andamento e o ritmo fazem com que o movimento soe com muita fluidez e leveza. Podem-se interpretar essas escolhas do compositor como uma brincadeira com as convenções do tombeau e a personalidade bon vivant do homenageado, algo como um tombeau para um boêmio seresteiro.

Figura 108: Início da Meditação Segunda

211 Gravação por Eduardo Monteiro https://www.youtube.com/watch?v=496MqibdCM0. Acesso em 18 abr. 2018.

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Outro excerto d’O Túmulo que podemos associar a essa polifonia mais local apontada por Mário de Andrade é um ostinato de fagote no Pastoril, que evoca uma banda na praça de uma pequena cidade.

Figura 109: Ostinato de fagote - Pastoril, c. 20-24

Se uma escuta preliminar e mais global da obra sugere o Villa-Lobos das Bachianas como a principal referência, a análise mais detalhada dos movimentos revela a forte presença do lado “selvagem” do compositor. Por exemplo, o contraste de lentos solos melódicos cromáticos com ostinati rítmicos e clusters, no Ritual, pode fazer o ouvinte pensar em uma “Sagração da Primavera212 de câmara”. As biografias do compositor brasileiro frequentemente destacam, apesar de certa dúvida e polêmica213, o impacto dessa obra de Stravinsky em sua escrita. Alguns autores, como Paulo Guérios (2009) e Nicolau Sevcenko (1992), destacam a valorização do exotismo e primitivismo na arte em Paris no início do século XX e atribuem a esse ambiente, onde viveu o compositor carioca entre os anos de 1923 - 1924 e1927 – 1930, a ênfase a tais aspectos nas obras desse período, especialmente nos Choros.

212 Gravação pela Orquestra Filarmônica da Rádio Holandesa, sob a regência de Jaap van Zweden. https://www.youtube.com/watch?v=5UJOaGIhG7A&t=9s. Acesso em 18 abr. 2018. 213 Paulo de Tarso Salles (2009) aponta grandes semelhanças entre a Sagração e o poema sinfônico Uirapuru que, apesar de datado de 1917, teria estreado apenas dez anos depois. Acredita-se que esta obra teria sido reescrita em Paris. Salles cita a referência de Lisa Peppercorn, em seu livro sobre o compositor, a uma apresentação do balé de Diaghilev no Brasil em 1917, mas alerta que esta hipótese não está devidamente documentada e que a data e local de tal apresentação não estão precisamente referidos. Segundo Jorge Coli (2006), Villa, alegando destacar a “concepção espiritual” das obras, teria antecipado datas de algumas de suas composições para evitar evidenciar influências de outros artistas e parecer mais arrojado e até mesmo nacional em seus procedimentos composicionais. 295

Figura 110: "Sagração de câmara" - Ritual, c. 35-38

Observando em perspectiva a macro e microestrutura d’O Túmulo, percebemos um mosaico de referências que pode remeter às múltiplas facetas de Villa-Lobos, inclusive e principalmente ao próprio caráter de mosaico de muitas de suas obras, conforme já comentado nas referências aos Choros 10. Lopes-Graça escolheu estruturar os movimentos a partir de danças de características muito diversas, alternadas com meditações – tudo isso decorado com convenções do tombeau e elementos que remetem ao resgate do Barroco por Villa, por ele posto em diálogo com a música popular urbana. Conforme fui apontando ao longo deste subcapítulo, mais do que considerar O Túmulo um retrato do estilo paradoxal do compositor brasileiro, observa- se que as referências ao músico homenageado são muitas vezes difíceis de distinguir das próprias idiossincrasias composicionais de Lopes-Graça como, por exemplo, o uso de aceleração rítmica aliado à aceleração do andamento e ao adensamento da textura, além do uso de dissonâncias, especialmente as segundas maiores e menores, cujo efeito é ainda mais estridente em instrumentos de sopro. Mário Vieira de Carvalho destaca o inacabado e não lapidado em muitas obras de Lopes-Graça, por meio do anticlímax, caráter fragmentário, gestos suspensivos, etc. O autor atribui esses elementos a uma atitude crítica do compositor.

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Um exemplo, já mencionado em outros capítulos, é o Malhão214, a última das Três Danças Portuguesas, para orquestra. Segundo Vieira de Carvalho, as notas fortes e marcadas dos trompetes ao final da peça criam “a imagem auditiva de uma gargalhada”, simbolizando “uma espécie de alegria popular que parece tornar-se gradativamente ameaçadora”. O entrelaçar de todos esses elementos dificulta a busca por referências na música e, consequentemente, a tentativa de entender o retrato de Villa-Lobos por Lopes-Graça. Poderíamos chamá-lo um “tombeau para um artesão selvagem?”, um “tombeau para um artesão da selvageria?” Ou, talvez, um “tombeau de um artesão selvagem”?

214 Disponível em https://soundcloud.com/guilhermina-lopes/malhao/s-77BVS?in=guilhermina- lopes/sets/doutorado-guilhermina-lopes/s-OLzcq. Coleção Centenário Fernando Lopes-Graça Arquivos da RDP (Radiodifusão Portuguesa) - Antena 2. 297

Conclusão - Conhecimento e alteridade: duas vias de crítica ao exotismo na obra musical de temática brasileira de Fernando Lopes-Graça

O conhecimento da existência de considerável número de composições de temática brasileira de Fernando Lopes-Graça levou-me a questionar, ainda de uma maneira imprecisa, a natureza de seu olhar sobre o Brasil nessa produção. Como um primeiro passo no sentido do refinamento da problematização desta pesquisa, procurei investigar, já de posse das referidas partituras, semelhanças e diferenças em sua abordagem de melodias brasileiras, portuguesas ou de outras culturas, tomando como base algumas obras para formação semelhante e compostas na mesma época. Também procurei investigar referências a composições brasileiras, de temática ou formação semelhante. Paralelamente, atentei para alguns elementos paratextuais: títulos, dedicatórias, referências a obras literárias (como na abertura Gabriela, Cravo e Canela, discutida no Capítulo 5) ou a outros gêneros musicais (caso da referência ao tombeau barroco e suas releituras no quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos, e ao gênero popular brasileiro desafio, na canção homônima sobre um poema de Manuel Bandeira, ambos analisados no Capítulo 6). A relação com esses aspectos também foi, portanto, uma questão desta pesquisa desde o seu início. Foi natural deparar, no caminho desta problematização, com a questão do exotismo e com as disputas em torno da pertinência e atualidade deste termo. Fui levada a questionar a aplicabilidade da questão numa pesquisa realizada em pleno século XXI, sobre um repertório composto já entre os anos 50 e 70 do século XX, passado praticamente um século e meio da independência política do Brasil, e em que a cultura do compositor e a retratada possuem entre si muitos pontos de identificação. Uma investigação do estado da arte sobre as recentes abordagens musicológicas e etnomusicológicas do tema do exotismo musical, a partir sobretudo dos volumes Western Music and its others (2000), organizado por Georgina Born e David Hesmondhalgh, com a participação de diversos autores, Beyond Exoticism (2007), de Timothy Taylor e Musical Exoticism (2009), de Ralph Locke, confirmou a pertinência e persistência da questão em um grande âmbito geográfico, cultural e estilístico, embora nem sempre tratada a partir dessa palavra. Muitos têm sido os termos utilizados na abordagem de questões referentes à identidade e à relação com a alteridade, como “diferença”, “representação”, “ocidente”, “oriente”, “outro”,

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“apropriação”, “hibridismo”, “transnacionalidade”, “multiculturalismo”, “fusão” e “world music”. O termo “exotismo”, especificamente, está longe de ser empregado com um sentido unívoco, em alguns casos simplesmente indicando, sem intenção de crítica, a referência a culturas distintas e em outros problematizando o conhecimento e a posição do observador. É nessa segunda vertente que se situa a abordagem proposta neste trabalho, tomando aqui o termo como sinônimo de abordagem apriorística e reducionista do outro. Com relação ao problema da pertinência da crítica ao exotismo num contexto pós-colonial, é importante lembrar que no início da segunda metade do século XX ainda vigorava o domínio português em diversos países africanos e que o retrato de uma grande nação fraterna e multicultural construído a partir da apropriação do conceito freyriano de lusotropicalismo permeava os discursos oficiais sobre as relações luso-brasileiras, passadas e presentes. O exotismo e, com grande frequência, o autoexotismo, são preocupações recorrentes na obra literária e em diversos pronunciamentos de Fernando Lopes- Graça. Um exemplo é o texto Quatro Apontamentos sobre Manuel de Falla e a sua obra (1943), em que o autor identifica, nas obras La Vida Breve (1905), El Amor Brujo (1915), El Retablo de Maese Pedro (1922) e Concerto para Cravo, Flauta, Oboé, Clarinete, Violino e Violoncelo (1926), o caminho entre um nacionalismo pitoresco e o que denominava um “nacionalismo essencial”, marcado pelo profundo estudo e incorporação de elementos locais na linguagem composicional, gerando um resultado sonoro orgânico e revelando facetas culturais radicalmente divergentes dos estereótipos internacionalmente divulgados. Diversas reportagens realizadas durante a primeira visita de Lopes-Graça ao Brasil em 1958 trazem como título frases por meio das quais o compositor expressa sua opinião sobre diferentes temas, sendo uma delas, publicada no jornal paulistano A Gazeta em 15 de setembro, justamente “O nacionalismo musical de simples indumentária vistosa ou de cartaz turístico não resolverá nada”. Embora a entrevista privilegiasse as questões relativas às músicas portuguesa e brasileira, Lopes-Graça naquele contexto não dirigia seu argumento a uma cultura ou nação específica. Numa homenagem póstuma a Heitor Villa-Lobos, escrita em dezembro de 1959, o tratamento da questão do exotismo por Lopes-Graça é um tanto ambivalente. Ao mesmo tempo em que critica a construção, fortemente impulsionada pelo próprio compositor carioca, de uma aura de excentricidade, selvageria, rusticidade e 299

primitivismo em torno de sua personalidade, atribui sem reservas a “inocência de um primitivo” à sua atitude enquanto compositor e destaca em sua obra, que descreve como uma “torrente, uma força incontrolada da natureza” (p. 178) justamente o aspecto da exuberância. Em entrevista concedida ao musicólogo Mozart de Araújo em 1951, Lopes-Graça utiliza um vocabulário bastante semelhante ao identificar a “verdadeira essência” da música brasileira na “sua luxuriância, (n)a sua fôrça primitiva derivada de um contacto directo com as fontes da vossa rica música popular” (p.6). Mais que no discurso verbal de Lopes-Graça, também é possível observar a crítica ao exotismo em sua atitude, enquanto compositor, em relação ao que denomino, num sentido alargado, “material temático” (fontes musicais e literárias, dedicatários, etc). As leituras e análises realizadas ao longo desta pesquisa levaram à conclusão de que esta crítica se manifesta em duas vias relacionadas: a do conhecimento e a da alteridade. A via do conhecimento refere-se ao seu interesse, por meio de seus estudos e de seus contatos, em informar-se sobre a cultura brasileira, suas diversas manifestações artísticas, sua música folclórica, erudita e popular, os debates estéticos e os acontecimentos políticos da época. Conforme vimos no Capítulo 3, sua relação com o Brasil abrange cerca de quatro décadas de correspondência com personalidades e instituições ligadas ao meio cultural do país, dentre as quais podemos citar o escritor Jorge Amado (de quem era leitor desde os anos 30), o pianista Arnaldo Estrela, os compositores César Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, Mozart Camargo Guarnieri, o musicólogo Mozart de Araújo e o diplomata Vasco Mariz. Promoveu a publicação, na Gazeta Musical, periódico de que era colaborador, de importantes textos sobre a música brasileira, como La música en Minas Gerais durante el siglo XVIII, de Francisco Curt Lange e a Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, de Camargo Guarnieri, impulsionadora de um grande debate estético entre os defensores do nacionalismo musical e de uma abordagem mais cosmopolita, representada, no texto, pela técnica do dodecafonismo. Através da sociedade de concertos Sonata, diversas obras solo e camerísticas brasileiras foram apresentadas em Lisboa, algumas em primeira audição portuguesa e até mesmo mundial. Dedicou obras a amigos d’além-mar, como os pianistas Arnaldo Estrela (Viagens na minha terra) e Anna Stella Schic (Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho), a cantora Vera Janacopoulos (Sete Canções

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Populares Brasileiras) e o compositor César Guerra-Peixe (Suíte Rústica nº 2). Foi eleito membro correspondente da Academia Brasileira de Música em 1963 e dedicou a essa instituição a abertura Gabriela Cravo e Canela. Visitou o país duas vezes: a primeira delas em 1958, por um período de 3 meses, realizando recitais e palestras nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Florianópolis, além de visitar, a passeio, Recife e Ouro Preto. A segunda visita, bem mais curta, limitou-se à cidade do Rio de Janeiro, para a participação no júri do I Festival de Música da Guanabara em 1969. As próprias relações musicais luso-brasileiras e a “língua brasileira” foram tema de artigos do autor. Já em 1930, criticava o projeto de um acordo ortográfico, destacando a riqueza das peculiaridades de cada variante. Em 1955, lamentava as restritas referências musicais mútuas e a falta de apoio institucional e de esforço dos próprios músicos em direção a um efetivo intercâmbio cultural entre os dois países. Na sua obra musical de temática brasileira essa vivência é perceptível nas sutis e surpreendentemente entretecidas referências ao material temático. Um exemplo é a Meditação Segunda, do quinteto de sopros O Túmulo de Villa-Lobos, onde o compositor realiza um bem-humorado jogo entre o tombeau e a valsa seresteira, utilizando o cromatismo descendente, elemento comum a ambos os gêneros, numa escrita rítmica que subverte o compasso binário inicial e o caráter de lamento, sugerido pelo uso da expressão doloroso. Nesse movimento, Lopes-Graça destaca uma faceta do compositor carioca muito distinta do primitivismo e exuberância a que sua obra era internacionalmente associada. Ao modificar o texto do Desafio, justamente o poema da Lira dos Cinquent’anos de forma mais regular e mais fiel ao gênero folclórico que o inspirou, Lopes-Graça homenageia a irreverência de Manuel Bandeira e seu uso do deslocamento linguístico e contextual, uma de suas marcas identitárias, num retrato também musicalmente “impuro”, misto de referências à barcarola e a danças espanholas, permeado por uma atmosfera impressionista. Por meio do anticlímax, narra, na abertura Gabriela, Cravo e Canela, o desvio que Jorge Amado dá ao socialmente previsível destino trágico da protagonista, cuja maior transgressão era a espontaneidade. Na produção vocal sobre temas folclóricos brasileiros, coexistem as melodias inalteradas e elementos idiossincráticos da escrita do compositor, como ambiguidade tonal-modal (ausência de 3ª nos acordes, cadências plagais, escolha de 301

melodias que contenham ambiguidade), dualidade modal M/m (presença frequente da tônica relativa), ambiguidade M/m num mesmo acorde: (presença de ambas as 3as) anticlímax (alterações inesperadas de dinâmica, harmonia ou caráter; peças terminadas em acordes suspensivos), efeitos de dinâmica aliados à rarefação e adensamento da textura, por meio da adição e subtração de vozes, além de notas acrescentadas aos acordes, frequentemente gerando dissonâncias (as 2as são as mais características). O mesmo procedimento ocorre em canções sobre melodias portuguesas e de outras culturas. A segunda seção da moda de viola Adeus, campina da serra, das Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras, exemplifica bem essa abordagem. Apesar de indicar um duo feminino em vez do masculino, mais comumente utilizado, Lopes-Graça mantém a estrutura original da melodia em terças paralelas enquanto constrói um acompanhamento baseado em “cores intervalares” muito características de sua escrita, como as quartas, as sétimas e os choques de segundas. O resultado sonoro mostra, simultaneamente, o contexto original e sua releitura. A presença desses recursos confere às obras uma “assinatura” do compositor, uma identidade, que, apesar do aparente paradoxo, pode ser também entendida como alteridade, a sua outra via de crítica ao exotismo. A explicitação de suas idiossincrasias estilísticas sugere uma postura de distanciamento crítico e reconhecimento dos limites de seu conhecimento e vivência da música de tradição oral brasileira. Em outras palavras, o compositor em nenhum momento tenta “dissolver-se” em música brasileira ou “disfarçar-se” de compositor brasileiro. Deve- se ter em mente que a identidade estilística do autor não é entendida neste trabalho como algo totalmente original, inventio ex-nihilo, e sim como parte de uma linguagem harmônica que se desenvolvia desde a virada dos séculos XIX-XX, a partir da exploração dos limites do sistema tonal: sua expansão, conduções harmônicas que não obedecem a uma gramática tradicional, diálogos com sistemas modais, um raciocínio intervalar mais colorístico e tímbrico, bem como de novas possibilidades rítmicas. Podemos citar entre suas principais referências Béla Bartók, Claude Debussy, Manuel de Falla, Paul Hindemith, entre outros. O compartilhamento de tais procedimentos conferia à música de concerto um caráter mais cosmopolita e possibilitava o seu trânsito internacional, diferentemente da música de tradição oral,

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que era divulgada mais em razão dos seus elementos distintivos que de uma base comum. Tomando como base a formação europeia do compositor e os relatos pessoais de suas impressões sobre a viagem ao Brasil, podemos também nos perguntar se nessa atitude de distanciamento, sobreposto a um gesto de humildade, não estaria, de forma paradoxal, mas não excludente, um desejo de diferenciação. O trabalho sobre a música tradicional a partir do destaque dos elementos que a diferenciavam da produção mais difundida nos meios de comunicação, também presente em sua abordagem da própria música portuguesa, como destacado por Mário Vieira de Carvalho (2006, 2012 a, d), constituem também uma manifestação dessa atitude crítica de alteridade. Essas duas vias de crítica ao exotismo frequentemente se misturam e por vezes até se confundem. É o caso do uso do intervalo de segunda como recurso tímbrico em Xangô, das Sete Canções Populares Brasileiras215, e na abertura Gabriela, Cravo e Canela. Sob as referências à sonoridade de instrumentos tradicionais, evocando atabaques no efeito percussivo do piano e pífaros no duo de flauta e piccolo, está camuflado o maior signo identitário de Lopes-Graça. É interessante observar que Lopes-Graça trabalha, em algumas obras, justamente a partir de estereótipos associados à cultura brasileira: a “bunda” (no Desafio), a sensualidade feminina (pela escolha da personagem Gabriela e pela referência a Carmen) e, também se pode dizer, da figura de Villa-Lobos, à altura já associada a um mito do qual o compositor português, como se percebe em seu texto de homenagem, não consegue escapar. Uma análise dessas obras em conjunto poderia sugerir a ideia de que Lopes-Graça estaria realizando uma espécie de brincadeira com a noção de exotismo e que, portanto, sua crítica seria consciente. Contudo, deve-se ter em conta que circunstâncias contingenciais motivaram cada uma dessas composições. Não encontrei indícios de que se tratasse do conjunto de uma “Obra” de temática brasileira planejada ao longo dos anos – o que, todavia, não invalida a hipótese de uma atitude bem-humorada de crítica que se manteria ao longo dessa produção. Se, em sua prosa, faz-se presente em alguns momentos a crítica ao [auto]exotismo musical, a crítica, por meio da música, ao exotismo, apesar de não explícita e não comprovadamente consciente, está na raiz de sua obra.

215 Na qual também se percebe claramente a referência à canção homônima de Villa-Lobos. 303

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APÊNDICE

Tabelas de análise formal das Dezassete Canções Tradicionais Brasileiras

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