Faculdade de Letras - UFRJ

O QUEM DA ASTÚCIA EM TUTAMEIA

Ana Maria Bernardes de Andrade

2013

O QUEM DA ASTÚCIA EM TUTAMEIA

Ana Maria Bernardes de Andrade

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética)

Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro Fevereiro de 2013

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O quem da astúcia em Tutameia

Ana Maria Bernardes de Andrade

Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética).

Examinado por:

______Presidente, Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro – UFRJ ______Profa. Doutora Martha Alkimin – UFRJ ______Prof. Doutor Igor Fagundes – UFRJ ______Profa. Doutora Ângela Maria Guida – UFMT ______Prof. Doutor Antônio Máximo Ferraz – UFPA ______Profa. Doutora Angélica Maria Soares –UFRJ (Suplente) ______Profa. Doutora Idalina Azevedo da Silva - UFRJ (Suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Andrade, Ana Maria Bernardes de.

O quem da astúcia em Tutameia/ Ana Maria Bernardes de Andrade. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.

203 p.; il.

Orientador: Manuel Antônio de Castro

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2013.

Referências Bibliográficas: p. 198-203.

1. Literatura Brasileira – Séc. XX. 2. Rosa, João Guimarães. 3. Tutameia : Terceiras estórias. 4. Poética. 5. Astúcia. 6. Mitos gregos. I. Castro, Manuel Antônio de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

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Dedicado à memória de meu pai,

Francisco Tarcízio de Andrade,

o Tarcízio da Pantera.

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Agradecimentos

Agradecer é reconhecer a importância do cuidado e do amor das pessoas, que nos iluminam enquanto a gente atravessa de uma margem a outra. Agradeço poder agradecer aos luminares que me favoreceram nesta jornada.

Aos deuses e poetas, de nomes muitos, inesquecíveis, inenarráveis.

À Cleusa Bernardes, melhor mãe de todas, que segura todas as minhas ondas, artista, poeta, professora querida, e que ainda por cima revisou esta tese. À minha filha, Bárbara, legal, divertida, antenada, me renasce a cada dia. Leitora dos mitos da atualidade, nossos diálogos foram fundamentais para a escrita da tese. Aos meus sobrinhos Luíza, Paulo e José Francisco, meus irmãos, Débora e Ênio, Cleide e Luana, toda a família, pelo amor do berço. Ao Samuel, parceiro do destino, pela presença.

Aos amigos que me receberam no Rio: Larissa, Rita, Cláudia, André, Jun, Joana, Dau, Ieda, pela gentileza e portas abertas. À Aline, pela acolhida, ao Josué, ao Castor, aos novos vizinhos, Maria, Pardal, Osmar, Chico, Roosivelt, Guto, Clarissa, e aos de longe que me alegraram com suas visitas: Flaviene e David, Ana Paula, Marcelo e Manuela, Sandrita, Amália, Jorge, os Porcas.

Ao sempre mestre, Manuel Antônio de Castro, tão sábio guia a abrir os caminhos, Aristeu de Miguilim. A ele dedico as palavras que o Rosa escreveu a seu tradutor italiano:

“Você é um MONSTRO. Você entrou em todas as células do livro, arejando-o sem o amarrotar, trazendo-lhe vida. Chego a ter medo para trás: imagine, se não tivesse sido Você...”

E ao Guimarães Rosa, sempre, por tudo. Ave!

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 Divino Pã,  e vós deuses outros destas paragens! Dai-me a beleza da alma, a beleza interior e fazei com que o meu exterior se harmonize com essa beleza espiritual. Que o sábio me pareça sempre rico; que eu tenha tanta riqueza quanto um homem sensato possa suportar e empregar! Teremos mais alguma coisa a desejar? Creio que pedi o suficiente.

Fedro, Platão (2007: 125).

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Lista de Figuras

Figura 1: Ilustrações do miolo de Tutameia : moeda caranguejo /coruja ...... 40

Figura 2: Moeda da Sicília Púnica, Magna Grécia: caranguejo (Hefesto) ...... 41

Figura 3: Dracma, antiga moeda de Atenas: coruja (Atena) ...... 41

Figura 4: Nascimento de Atena, ânfora ateniense, circa 550 a.C...... 59

Figura 5: Atena, relevo do Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C...... 75

Figura 6: Retorno de Hefesto ao Olimpo, ânfora da Magna Grécia,

circa 600 a.C...... 101

Figura 7: Hermes, vaso ático, 500-450 a.C...... 117

Figura 8: Publicação original de “Aletria e hermenêutica”, com o título

“Risada e meia”, A Manhã, RJ, 4 maio 1954 ...... 128

Figura 9: Porções de aletria decoradas com letras ...... 138

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Sumário

Apresentação – Se eu seria personagem ...... 13

Introdução – A astuta Tutameia ...... 18 Repercussão ...... 27 O figurar da obra ...... 36 A estória de Romão e Nhemaria ...... 45 As questões da astúcia ...... 47

Capítulo 1 – A barriga do rei ...... 58 Ouro de tolo ...... 62 A medida do destino ...... 68

Capítulo 2 – Olho de coruja ...... 71 O relevo de Atena ...... 75 Casa da palavra ...... 80 Armas de guerreiro, casa de bronze ...... 87 Flor da boca, casa do ser ...... 89

Capítulo 3 – Infinito circular ...... 92 O caranguejo: seu corpo mascarado ...... 94 A outra face ...... 100 A rede de Hefesto ...... 108

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Capítulo 4 – A luz do verbo ...... 115 Iscas de palavras ...... 118 Artes do fogo ...... 121 A primeira nota ...... 122 Bênção, padim ...... 124 Oroboro ...... 126 O sentido da hermenêutica ...... 132 Aletria, doce palavra ...... 138 - Eu vim para confundir...... 142 A estória do gigante ...... 148 E o autor não diz nada ...... 150 - Sou, mas quem não é? ...... 154 O poder da criação ...... 157

Capítulo 5 – Travessia ...... 166 A dupla origem de Ulisses ...... 168 O destino de Ulisses ...... 170 Mares de morros ...... 176 No eco da Odisseia ...... 179 Temulentus sumus ...... 181 A odisseia de Chico, o herói ...... 189 Terceira margem ...... 194

Conclusão ...... 197

Referências ...... 199

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Resumo

Esta tese propõe uma leitura de Tutameia — Terceiras Estórias, último livro publicado em vida por João Guimarães Rosa (1967). A hipótese inicial é que a composição de Tutameia seja orientada pela astúcia poética. Nesse sentido, propõe um diálogo entre as Terceiras Estórias e os mitos gregos da astúcia – Métis, Atena, Hefesto, Hermes e Ulisses –, à luz do pensamento de Heidegger. Trata-se de uma obra ainda pouco estudada pela crítica, que a considera demasiadamente hermética. Neste livro, o autor se vale de todos os recursos disponíveis, da retórica à tipografia, para capturar em suas malhas o leitor e convocá-lo ao trabalho, árduo e prazeroso, de lê-lo, letra por letra. Tutameia coloca questões fundamentais para Guimarães Rosa, cuja obra transita na ambiguidade das regiões fronteiriças. Este estudo pretende vislumbrar na leitura deste livro o sentido da astúcia na travessia humana: a valorização de uma sabedoria que supere a megera cartesiana, que reaproxime a gente de uma essência esquecida. Astúcia poética é saber que tudo é e não é. O exercício hermenêutico de leitura do livro leva a uma nova leitura do mundo, sem verdades acabadas nem soluções definitivas: a busca não tem fim, pois sempre coloca uma nova questão. A astúcia deste livro está em justamente desvelar velando, iluminar sombreando, explicar confundindo. A cada nova investida, novos pontos são levantados, tornando mais complexa a visão que ele articula.

• Palavras-chave: João Guimarães Rosa, Tutameia – Terceiras Estórias, Astúcia, Poética, Mitos gregos

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Abstract

This thesis proposes a reading of Tutameia – Terceiras Estórias, the last book published by João Guimarães Rosa (1967) while he was still alive. The initial hypothesis is that the writing of Tutameia was guided by poetic astuteness. In this sense, the thesis proposes a dialogue between the Terceiras Estórias, the Greek myths of astuteness – Metis, Athena, , Hermes and Odysseus – and Heidegger’s ideas. Tutameia presents fundamental issues for Guimarães Rosa, whose literary work lies on the border of ambiguity. This study aims to discern in this book the meaning of astuteness in human life: the value of wisdom that overcomes the Cartesian shrew – that reconnects us with an essence that has been forgotten. Astuteness is the knowing that everything is and it is not. A hermeneutic reading of the book leads to a new reading of the world, without finished truths or definite solutions: the search is endless, for it always brings up new issues. This book’s astuteness lies precisely in its unveiling and hiding, in its enlightening and obscuring, in its explaining and confounding. With each new trial, new points are raised, making more complex the viewpoint it articulates. Consequently, Tutameia has been little studied by critics, who consider it far too hermetic; however, its importance deserves to be reflected upon more carefully by Rosa’s readers.

Keywords: João Guimarães Rosa (1908-1967), Tutameia – Terceiras Estórias, Poetic, Astutenes, Greek myths

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Apresentação Se eu seria personagem

Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo dos meus pensamentos não entende minhas palavras; só sabemos de nós mesmos com muita confusão.

(Rosa, 1967: 138).

Uma obra de arte nos lança questões. Uma questão que Tutameia – Terceiras Estórias, de Guimarães Rosa, coloca de cara é o significado de seu título. Por que terceiras, se as estórias anteriores eram as primeiras, e o que quer dizer tutameia? Sobre o enigmático vazio entre as primeiras e as terceiras, as aventadas segundas estórias, muito vem imaginando a crítica, em momento oportuno talvez esta questão seja aqui retomada. Gostaria de trazer de início, porém, uma reflexão sobre o termo tutameia.

Esta palavra me move a uma vereda difícil de desemaranhar de mim, pois que remonta à minha origem. Tutameia quer dizer ninharia, preço baixo, pechincha, pouco valor, coisa que não dá dinheiro. Sei da boca dos meus parentes lá do Ibiá, da infância, de hoje e sempre. Trata-se de termo regional, de Minas, do lugar de onde, de primeiro, eu em menina lia Sagarana e Primeiras estórias, que parecia que estavam se passando ali, naquele cenário, diante dos meus olhos, e me encantava. Com o Rosa, menina, eu vi: meu mundo era mágico e rico, a fala de meu povo era de se escrever em livro.

Já estudante de Letras, soube que Tutameia era título de uma obra de Guimarães Rosa. Pensei comigo: o danado do Rosa tinha então registrado aquela palavra do povo da roça como título de uma de suas obras, legando imortalidade e fama ao humilde vocábulo caipira? Ele era mesmo demais! O professor disse que aquele era o livro mais difícil do Rosa, inclusive de

13 encontrar para comprar, pois estava esgotado. Procurei em todos os sebos e nada. Os da biblioteca estavam sempre indisponíveis: teriam sido surrupiados?

Enquanto isso, comecei um estágio na Editora UFMG, que me levou a pesquisar a importância do aparato editorial na produção social do sentido. Ao lado da empolgação em descobrir um novo campo de estudo, vivi a frustração de perceber que aqueles elementos, tão significativos, eram pouco explorados nos livros didáticos, objeto de estudo sugerido pelo orientador da pesquisa.

Depois do trabalho e das aulas noturnas, no campus da Pampulha, com o Grande sertão: veredas na mochila, encontrava os amigos no Bar do Lulu, reduto da contracultura, no bairro Santo Antônio, perto da antiga Fafich, esquina da rua Cristina com a Carangola, onde se lia a placa: “Nesta casa viveu o escritor Guimarães Rosa”. Em meio às esquetes dos alunos do vizinho Teatro Universitário, ao som de Deep Pourple, bebendo cerveja, quiçá tequila, colados da galera mais roquenrol de Belo Horizonte, a gente lia o Rosa na mesa, às vezes em voz alta. Envoltos na festa dionisíaca, a gente tentava entender o vasto mundo, o sentido da vida, numa temulice crônica que fazia andar em círculos, tangendo pato. No fim, só o silêncio e o negror das pupilas diante do espelho num banheiro imundo: eu via o demo? Se não me falha a memória, acho até que algumas vezes eu cheguei a conversar com a tal placa. Vinte anos...

Como o alferes no espelho, porém, eu já não sabia quem eu era. Entre o campo e a cidade, minha juventude ia se consumindo em satisfazer as demandas, construir uma carreira lucrativa, passar num concurso público, até entrar para a política era uma opção de futuro naquele momento. E no correr dos anos, entre tarefas e celebrações, a vida ia, divagando, sufocada. Precisava urgentemente dar um tempo em uma ilha deserta. Encontrar a mim mesma. Como no sucesso daquela época: “Quero assistir ao sol nascer, ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar, deixe-me ir, preciso andar...”

Sentia a proximidade das Veredas Mortas, dali a pouco seria inevitável o pacto. Era preciso dar o salto para o ser, aprofundar as experiências, alçar-me em voos delíricos, extravasar a linguagem, me perder de mim para alcançar o

14 sou, apropriar-me do que me era próprio, sair daquele círculo de ruídos viciosos. Voltar à origem, ir além. Ouvir o silêncio, atravessar o Liso. Carecia de ter coragem. Precisava me preparar para enfrentar a batalha.

Fui parar em Caraíva, Porto Seguro, onde o Brasil começou. De frente para o mar, mirar o horizonte amplo e sentir-se pulsando em vibração com o universo. Professora pública, voto de pobreza, vida alternativa, contato com a natureza, sem notícias da civilização, sem luz elétrica, telefone, correio, polícia, médico. Lata d’água na cabeça. Aprendi melhor dançar forró e entender em amor as pessoas, a natureza. Mas o fundo de mim, ainda, nada.

Eis que em mais um dia ensolarado e lindo, quando exercia alegremente minha tarefa voluntária de estar com as crianças na biblioteca comunitária, organizando a estante de literatura, encontrei: Tutameia  doação de um turista. Comecei a ler ali mesmo, na hora. E não parei mais, até hoje.

Conto como foi que começou.

Vi que o danado do livro era difícil mesmo. Eu me gabava de conhecer o Rosa, ser sua conterrânea, parente em espírito, e aquilo para mim era grego. Era desaforo, não podia. Ali fiz meu juramento: vou me dedicar a ler este livro, a vida inteira se preciso for, mas um dia eu vou entender esse trem.

Para entender Tutameia eu quis sair do limbo paradisíaco em que me escondia, assumir minha posição, encarnar meu destino: voltar para a faculdade, concluir meu curso, fazer mestrado e doutorado sobre este livro. Nem pensava em carreira docente, só em ter bolsa de estudo, para poder ficar uns anos dedicada somente à leitura daquelas estórias.

Quando enfim retornei ao mundo civilizado, a família respirou aliviada. Mas, quando anunciei meu plano de me dedicar a estudar um livrinho de estórias, ainda por cima chamado Tutameia, meu pai, finório comerciante ibiaense, disse, jocoso:

“ Tutameia? Não tinha ao menos um livro com nome melhor, não? Isso não dá dinheiro!...” – o que era astuta piada, a confirmar meu destino.

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Já lá se vão muitos anos, muita coisa tem mudado, mas até hoje, graças a Deus, o Rosa nunca me faltou. Eu posso até dizer que ele é o homem que me banca. Graças ao legado dele, tive assunto para mestrado e doutorado, nas melhores escolas, que eu escolhi, com bolsas de estudo e pesquisa financiadas pelo governo, ainda por cima agora podendo contar com a orientação de um profundo conhecedor e apreciador da obra rosiana, tão sábio e humano: Manuel Antônio de Castro. O Rosa me trouxe até ele, tenho certeza. Soprou no meu ouvido: doutorado no Rio de Janeiro, na UFRJ. Ouvi, vim, estou aqui. Amém. Isso porque o Rosa salva, garante. Mas ele exige muito. Faz para mais de quinze anos desde aquele dia na biblioteca de Caraíva, e só agora a tese está saindo. Tem que ser uma bagaceira para valer tanto tempo. Preciso honrar o empenho.

Aquela escolha, aquele compromisso levaram-me a vivenciar a maior parte dos acontecimentos que me constituem, que fizeram e fazem eu ser quem sou e serei. Nessas andanças e mudanças, buscando realizar minha pesquisa, acabei por conhecer amigos, amores, gerar minha filha, desenvolver projetos, trabalhar, aprender a cultivar uma ideia até ela brotar no real, sair para a luz.

A necessidade de realização da pesquisa levou-me a viver em diferentes cidades: Belo Horizonte, onde me graduei na UFMG; Campinas, para onde me mudei, para fazer o mestrado na Unicamp, de olho nas bolsas mais gordinhas da Fapesp; Aracaju, onde fui morar logo após a defesa da dissertação, já contratada pela Universidade Tiradentes (Unit) para ensinar Literatura no curso de Letras. Tudo ia de vento em popa. Aí, meu pai fingiu que morreu. Desesperada, voltei para Minas. Lá, fui professora substituta na Universidade Federal de Uberlândia, onde me encontrava quando me mudei para o Rio, para fazer o doutorado. E só Deus sabe o que me aguarda daqui em diante.

A dedicação, o empenho e o entusiasmo em me dedicar a este livro não são mera vaidade bairrista, sequer vontade de gozo em exegese lúdica porém fútil, gratuita. Acredito que Tutameia seja uma obra substancial, onde vigoram potências de pensamento e linguagem, em palavras depuradas, sopros de som vertidos em imagem e sentido que nos permitem dialogar.

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Palavras dispostas em livro, que é como em geral se apresentam as obras literárias, com os recursos de edição vigentes. Sem luxo, sem pompa, apenas tutameias. Mas o Rosa não era bobo. Queria que em cada canto do livro que o leitor batesse o olho, se produzisse o operar da obra. Por isso nele tanto me esmero, na busca do que me é próprio, verdade que se revela no operar da obra.

Hoje, na janela do meu quarto, no bairro histórico de Santa Teresa, sou a mesma menina da janela do bairro Rosa Maria, em Ibiá? Vejamos: onde era morro, é morro. Onde era o trem, é o bonde. Onde era o pé de abacate, é o abacateiro. Onde dormiam os pais, hoje dorme a filha. Acato. Sou eu e outra.

Mas sinto que ainda preciso viver muito, ser estrangeira e velha para saber melhor certas passagens de Tutameia. Abro as picadas que posso, com os meios de que disponho. Vou lançar para fora, com a ajuda do mestre parteiro, isso que em mim vigora, e que caia no mundo, e que engrosse o caldo da arte, o coro das Musas, filhas da Memória, e o canto de Hermes, mensageiro dos deuses, a guiar os homens na travessia do destino, entre vida e morte.

Viver é uma obra de arte. Se na espiral do destino, do que me é dado, encontro-me em um novo início, rezo a Deus e aos deuses que me auxiliem a cada passo, pois tenho consciência de que não é à toa que me vem esta oportunidade. Que a recordação de tudo que vivi se junte a tudo que estudei, e que meus olhos e ouvidos se abram sempre para o concertar inédito do mundo. Que eu saiba realizar o que este livro quer de mim. Não vai fazer nem sombra com o vulto da obra do Rosa, mas espero que sirva para alguma coisa.

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Introdução

A astuta Tutameia

Proponho uma leitura de Tutameia — Terceiras Estórias, último livro publicado em vida por João Guimarães Rosa (1967), em continuidade à pesquisa de mestrado, “A velhacaria nos paratextos de Tutameia – Terceiras estórias, de Guimarães Rosa” (IEL-Unicamp, 2004). Alguns pontos trabalhados no mestrado são fundamentais para o entendimento da tese. Por isso, sempre que necessário, trarei fragmentos da dissertação, em itálico, para que o estudo que venho realizando se apresente de forma completa. Optei por este recurso que dialoga com os itálicos de Tutameia, poupa-me da reescrita e, ao leitor, da necessidade de consultar a dissertação para melhor compreender alguma passagem. Além disso, permite assinalar mudanças e permanências na minha abordagem, nesses dois momentos de escrita, entremeados por um intervalo de nove anos de vivências. O título da tese, “O quem da astúcia em Tutameia”, retoma o da dissertação, modificando-o, para ficar mais preciso e enxuto. Troquei “velhacaria” por “astúcia”, pois a recepção do texto anterior revelou-me que o primeiro termo tem um peso altamente pejorativo, que não me interessava trazer para a cena logo de cara. Além disso, “astúcia” relaciona-se claramente com os mitos gregos, que já desde a dissertação eu percebera presente na obra em foco e que acabaram por se configurar como a espinha dorsal da tese, que dedica um capítulo a cada um dos deuses astucioso: Métis, Atena, Hefesto, Hermes e, por último, o humano Ulisses, num diálogo com Tutameia. “O quem” remete ao “Cara-de-Bronze”, de Corpo de Baile, em que o protagonista manda o vaqueiro Grivo viajar pelo sertão a procurar “o quem das coisas”, e depois voltar e contar para ele, que já estava doente e nunca mais poria os olhos em sua terra distante. Quis dizer essência presentificada. O quem da astúcia apresenta-se em Tutameia, está no DNA de cada conto-célula que compõe este corpo-livro, obra viva que vivifica.

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Omiti o outro título do livro e o nome do autor, além do gennettiano “paratextos”, os primeiros por mera economia vocabular, o último por não coadunar com a proposta da Poética, que se coloca diante da obra e a escuta. E por falar em escuta, a repetição da sílaba “tu” nos dois nomes que compõem assim o título deram-lhe uma sonoridade melódica. E ficou havendo esta, que ora se vos apresenta: “O quem da astúcia em Tutameia”. É importante ressaltar que trato apenas das cinco primeiras edições do livro, lançadas pela Livraria José Olympio Editora, e que tiveram a participação do autor em sua configuração, como adiante se verá. As edições atuais não apresentam o mesmo projeto gráfico, sequer as ilustrações, fundamentais para a interpretação da obra que aqui proponho. As atuais edições da obra rosiana, publicadas pela Nova Fronteira, não levam em conta o trabalho editorial realizado pelo próprio autor, lamenta Covizzi (2003), que traz como exemplo deste cuidado uma lista, manuscrita pelo autor, de motivos para a capa de Tutameia, sugeridos a Luís Jardim, responsável pelas ilustrações do volume. A sisífica tarefa de buscar o projeto estético de Guimarães Rosa nas cifras dos paratextos de Tutameia, pretendida nesta dissertação, parte do princípio de que existe aí uma intensa elaboração teórico-criativa do autor acerca de si mesmo, de sua obra, de suas intenções como escritor, de sua relação com a literatura. Em alguns momentos, esses sinais parecem servir apenas para despistar. Mas talvez a informação adquirida naquela volta inútil risque um fósforo em uma outra parte do texto. Tais elementos remetem-nos a questões caras a Guimarães Rosa, que explorava em suas obras os limites entre realidade e ficção, autoria e citação, inspiração e trabalho, início e fim, consciência e inconsciência, eu e outro, destino e livre arbítrio etc. Na delimitação desses conceitos, opostos e complementares, é sempre enfatizada pelo autor a ambiguidade das regiões fronteiriças, onde tudo é e não é (cf. Candido, 1983; Sperber, 1976, 1982; Galvão, 1972, Novis, 1989, Arrigucci, 1995, Duarte, 2001, Castro, 1976.) O diálogo com os mitos gregos da astúcia – Métis, Atena, Hefesto, Hermes e Ulisses –, e com o pensamento de Heidegger, que aqui proponho, busca expandir a leitura realizada no mestrado, lançando nova luz às questões colocadas por esta obra literária.

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Tutameia é uma coletânea de contos, compilados da revista médica semanal Pulso (onde, entre 1965 e 1967, o autor alternava-se na seção de literatura com Carlos Drummond de Andrade, amigo, conterrâneo e colega farmacêutico), reordenados, acrescida de dois d’O Globo (1961) e antecedida de um prefácio inédito, ou quase. A necessidade de contribuição quinzenal para o periódico obrigou o Rosa a levá-las a lume, e o número exíguo de laudas de que dispunha forçou os cortes, que acabaram por compactar ainda mais a já intensa prosa poética que brota das estórias rosianas. Sobre esta tarefa hebdomadária, confidencia o escritor a Manuel Bandeira (apud Costa, 2006: 11):

Começo a escrever, um mundo de coisas, ideias, imagens, reminiscências, me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. É preciso reduzir a três. Começo a cortar, começo a corrigir. Aí tomo gosto. Nunca se acaba de corrigir. O meu desejo é então continuar a corrigir até o fim da minha vida. Mas há que entregar os originais. E no dia seguinte recomeçar coisa nova.

Até hoje este título é um dos menos conhecidos do autor, conforme pudemos observar em nossa pesquisa bibliográfica. Além das análises presentes nas orelhas e apêndice do próprio volume, encontramos apenas alguns artigos, livros e estudos dedicados às Terceiras estórias. Esta pequena bibliografia específica fica ainda menor se comparada à de estudos sobre Grande sertão: veredas, hoje clássico nacional. Uma das explicações para essa aceitabilidade relativamente baixa pode ser o excesso de paratextos deste livro, o que por outro lado tem sido ponto de partida para as análises da obra por hora realizadas, que refletem sobre seus títulos, índices, prefácios, inter e intratextualidades. Em Terceiras estórias, encontramos nada menos que 2 índices (sendo um de releitura, ao final do livro), 4 prefácios (distribuídos entre os 40 contos), 24 epígrafes, 4 “hipógrafes” (neologismo que designa epígrafe ao final do texto), um “glossário”, uma “glosação em apostilas”, inúmeras citações, diretas e indiretas, de outros textos, seus e de outros autores, além da recorrência de lugares, personagens e acontecimentos em diversos contos do livro — fora a estranheza do próprio título: o que significa tutameia, e por que terceiras, se as estórias anteriores eram as primeiras?

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Recorrendo à metáfora borgiana, podemos dizer que Tutameia é um livro- labirinto, com várias entradas e passagens secretas; dentro dele, mora um homem-touro, boivaqueiro, figura ambígua e enigmática; o fio de Ariadne é a própria trama do texto, seus paratextos, que o leitor-herói-Teseu deve seguir, no caminho de volta (a ida se dá às cegas), para não se perder/prender nesse livro de areia. Tal fio, porém, não é inteiro, linear, havendo sempre o perigo de se andar em círculos, se não forem feitas as corretas amarrações, que são várias. Montagens e justaposições, técnicas usadas no cinema, no cubismo e nos haikais, são muitas vezes necessárias para se produzir o sentido desse texto, considerado hermético, apesar de (ou graças a) seus tantos paratextos. As bordas bordadas de Tutameia revelam a preocupação do autor com sua imagem construída, com a impressão de sua marca na história da literatura brasileira. No texto que viria a compor o Apêndice de Tutameia, Rónai (1969) transcreve parte de um diálogo que mantivera com Rosa que, “feliz por ter levado o amigo a uma cilada” (p. 194), lhe indicara o “macete” do índice do livro, dando a entender que, para testar a argúcia da crítica, ele havia plantado charadas naquele volume, transformando sua leitura em uma corrida de obstáculos. O mesmo crítico, já no ensaio sobre Primeiras estórias, comenta (2001, p. 16):

De [minhas] conversações com o autor, nas quais vislumbrou numerosos subentendidos que lhe tinham escapado durante a leitura, ficou-[me] a convicção de que mesmo ao olhar mais agudo seria impossível abranger a totalidade intrincada das intenções do mais consciente dos nossos escritores.

Acreditamos que a composição de Terceiras estórias seja orientada por um projeto estético que prima pela velhacaria, a astúcia do sertanejo, mestre em pregar peças, quer seja no jogo do truque, nos negócios ou na política. Velhacaria da raposa, que “avança, mas nuns passos de quem se retira” (Rosa, 1978, p. 95). O texto lança mão da astúcia, da velhacaria, para burlar as leis tácitas dos tradicionais contratos literários, que exigem, por exemplo, que o conto seja fechado sobre si mesmo, um todo absoluto — aqui, as intratextualidades os colocam em constante comunicação; que os prefácios sejam verdadeiros, críticos e que antecedam a obra — aqui, surgem travestidos em fábulas e espalhados ao longo do livro; que se citem as fontes das citações — aqui, elas podem ser forjadas ou apócrifas.

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Os contos, devidamente corrigidos pelo autor (cf. Costa, 2006), foram coligidos no livro, segundo a ordem alfabética das iniciais de seus títulos, exceto dois, que formam com o anterior a marca autoral JGR (cf. Sperber, 1982).

No índice de releitura, ao final do volume, estão à frente das demais estórias quatro textos designados como prefácios, cujas iniciais dos títulos formam o prenome HANS. Estes textos são grafados em itálico, diferentemente dos outros, em tipos redondos. As iniciais dos títulos das três estórias de ciganos presentes na obra formam a palavra FOZ. Essas e outras peculiaridades do livro estão elencadas em minha pesquisa de mestrado (Andrade, 2004).

Muitas dessas marcas são seguidas pela crítica, que com base nesses achados forma ainda outros subgrupos de estórias, como veremos a seguir. É preciso lembrar, porém, que não podemos ingenuamente ir seguindo as pistas plantadas pela raposa do Rosa. A linguagem poética não se dá assim marcadinha, se assim o fosse seria fácil e insosso.

Em toda a obra rosiana há o cuidado e empenho para que a verdade se manifeste, desvelando o sentido do ser. Os subgrupos formados pela crítica podem funcionar num contexto classificatório, mas não resistem a uma leitura poética, que busque o diálogo com a obra literária, pois que são arranjados pelas astúcias da lógica. Quem nisto se fia, se perde.

A astúcia poética se apreende na leitura e releitura de cada palavra, de cada estória, onde acompanhamos o consumar-se do destino do homem humano: sua hora e vez no duelo entre sertão e veredas, o amor e a morte, deus e o demo, na travessia a caminho da linguagem, a casa do ser.

O leitor viciado em apostilas e roteiros de leitura pode ficar atordoado com os letreiros das fachadas e perder o que no livro vigora. A trama e o texto são emaranhados de modo que, se o leitor buscar explicações, ficará perdido. O excesso de aparatos e regras de boa leitura, tantos espaços para saber o que o autor quis dizer, soam como uma resposta irônica do escritor a tentativas de valoração, análise e classificação de sua obra, que por vezes não alcançam a

22 profundidade de seu pensamento, perdendo-se em firulas e deixando escapar o boi. Para saber o sabor da obra, é preciso percebê-la como obra de arte, que opera a verdade do ser.

Antes de tudo, é preciso escutar a abertura da obra, seu nome, seu título. O termo TUTAMEIA, como vimos, quer dizer pechincha, ninharia, coisa de pouco valor, nonada. Trata-se de um regionalismo mineiro, originado de uma palavra africana e uma portuguesa, aglutinadas. Figurou-se de uma corruptela de mucuta e meia, sendo mucuta o nome da moeda africana com que se comercializavam os seres humanos escravizados, que cavaram as minas gerais. Dizem que alguns africanos trouxeram moedas de mucutas emaranhadas nas carapinhas, mas que por aqui de nada valiam, dinheiro de preto, mucuta e meia, nonada. Tutameia não valia era nada.

Antecipando-se à provável dúvida quanto ao significado do termo que dá título ao livro, Rosa o incluiu no “glossário” de Terceiras estórias (p. 166):

tutameia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia.

Conforme observa Galvão (1972, p. 73), a primeira parte desta definição, que antecede o ponto-e-vírgula, é uma cópia quase fiel do verbete “ninharia” da décima edição do Pequeno dicionário Aurélio da língua portuguesa, de 1963, a qual inclusive traz agradecimento a nosso autor pela colaboração. Tomamos conhecimento da origem deste termo em Nascentes (1952, p. 797):

TUTA-E-MEIA: Quem primeiro explicou esta expressão foi Júlio Moreira, em “A Revista”, do Porto, de novembro de 1905. “Uma tuta e meia ou simplesmente tuta e meia deve resultar de uma macuta e meia. Macuta é o nome de uma moeda de cobre, que tem curso na África Ocidental Portuguesa com o valor de 50 réis. Há também meia macuta. Assim, dar ou comprar uma coisa por uma macuta e meia seria uma frase equivalente a outra em que também entram designações de moeda, como: é um ovo por um real; dar uma coisa por dez réis de mel coado, não dar por uma coisa um chavo galego. De macuta proveio matuta por assimilação do c ao t seguinte.

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Depois, uma matuta transformou-se em uma tuta, por hapologia” (Júlio Moreira, Estudos, I, 226, II, 80). G. Viana aceitou esta explicação (RL, XI, 240, Apost., II, 514). João Ribeiro, Frases Feitas, I, 207-9, explica que tuta e mea é a espórtula sempre menor do sacristão e é um latinismo macarroneado das primeiras palavras do sacrista no ofício da missa. Efetivamente, o padre diz ao subir os degraus do altar: Introibo ad altere Dei. Ao que responde o sacristão engrolando e só dizendo claras como de costume as últimas sílabas: Ad Deum qui laetificat juventutem meam. A letra única que se percebe do rosnar do acólito é o tutem meam. Também é o que lhe pagam. Custa uma tutem meam ou uma tuta e mea. Rejeita a explicação de Júlio Moreira e acha inexplicável que se diga macuta e meia, porque a fração na gramática popular dá mais intensidade a todos os valores. Em Curiosidades Verbais, 151-2, voltando ao assunto, diz que a suposta origem macuta e meia tem contra si o nome de moeda quase desconhecida na Europa, a supressão da sílaba ma e a transformação da gutural c em t, coisas essas que considera inverossímeis, senão absurdas e até anti-fonéticas. Júlio Moreira deu as explicações necessárias quanto a essas transformações; parece aceitável a sua suposição.

Recentemente lançado pela Edusp, o Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins (2001), define literariamente o termo (p. 509):

TUTAMEIA. Nome de obra. / (V. TIL). por conta de tropeiros do Urucuia- a-fora não terem auxiliado de abrir a tutameia de um saquinho de sal, nem de vender para os dali... (MM—I, 27/42). / Pequena porção, bagatela. // No final do prefácio “Sobre a Escova e a Dúvida”, o A. acrescenta um pequeno glossário no qual arrola para o título do livro os seguintes sinôns: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia. A f. dic. é tuta-e- meia, para a qual J. P. Machado dá a seguinte explicação: “É provável que venha da expressão uma macuta e meia, que, por muito corriqueira, se reduziu, por hapologia, a uma cuta e meia e, com ou sem a supressão do num. uma e por assimilação de c a t, (uma) tuta e meia. Macuta era a moeda de cobre, que tinha curso na África Ocidental port., com o valor de 50

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réis. Tal hipótese deve-se a Júlio Moreira (Estudos I, p. 226; II, p. 80)”. [Cf. H. C. Borges: acabei ajustando-me, por tutameia, no cartório do registro civil (ap. B. Ortêncio, DBC)V. Silveira: fechou-se logo o negócio, e as dez cabeças foram largadas por um conto e duzentos: — Uma tuta-e-meia — disse o Tomás (O Mundo Caboclo de Valdomiro Silveira, p. 131)A. Azevedo: Arrecadei a fazenda da viúva por uma tuta e meia e hoje está produzindo, que é aquilo que você pode ver! (O Mulato, p. 176)].

No Pequeno Dicionário da Canastra1, encontramos o seguinte verbete:

Tutameia: pouca coisa, ninharia, corruptela de tuta e meia, por sua vez derivada do quimbundo — “mu’kuta”, moeda africana. Linda palavra, em franco desuso, que virou até título de um livro de Guimarães Rosa.

A origem do termo que dá título a este livro é o nome de uma moeda. Tal artifício explicita a função publicitária dos paratextos e desvela o caráter de mercadoria do objet livro: seu destino é a prateleira das livrarias, onde será consumido, ou seja, trocado por uma determinada quantia em dinheiro, por uma tutameia. Podemos relacionar a acepção “monetária” de tutameia a um dos significados da palavra conto, em expressões como “um conto de réis”. O termo em questão, que a princípio designava “número, cômputo, quantidade” (Moisés, 1985, p. 15), passou, com o uso, a significar, metonimicamente, “moeda”. Assim, no título deste livro, encontram- se aproximados os nomes de duas antigas moedas, macuta e réis, o que transforma Tutameia em uma espécie de porta-níqueis, ou seja, um lugar onde coexistem um punhado de pequenos contos, de pouco valor comercial, que tratam de quase nada, mas que são, ao mesmo tempo, toda a riqueza do autor. Vale lembrar que as ilustrações do miolo do volume têm a forma de uma moeda, que traz numa face um caranguejo e na outra uma coruja – símbolos de nascimento e morte, verso e reverso da vida. No nada de Tutameia, apresenta-se a riqueza disfarçada em ninharia, fingidamente humildezinha, a matéria miúda que contém o infinito. É, pois, com muita astúcia e ambiguidade que este título nos propõe a barganha da leitura.

1 Internet: página da Pousada São Francisco: http://serradacanastra.com.br/jornal/dialetos/html, 1999. 25

Costa (2006, p. 11-12) transcreve uma carta do Rosa, “Rogo e aceno”, publicada na revista médica Pulso em 29 de agosto 1967, em que ele se despede e anuncia aos leitores que os contos que ali publicados seriam lançados em uma coletânea, a ser intitulada Tutameia, aproveitando para fazer um pedido acerca da palavra do título:

Fazendo outro pedido ainda: que é quanto ao título do livro, a palavra mesma “TUTAMEIA”. Se bem os dicionários dêem apenas “tuta-e-meia”, sempre e desde menino em Minas ouvi só falar “tutameia” – correndo por ninharia, nonada, um quase-nada, bagatela. Mas, como vale a pena conhecer a ocorrência e forma do termo, nas diversas áreas do país, e os colegas e assinantes de Pulso situam-se felizmente em todos os pontos do território nacional, pergunto se quer alguém cordialmente a esse respeito informar-me.

Como já disse, também ouço falar sempre e desde menina em Minas esta palavra, som de língua materna, com este mesmo sentido. Na procura do estudar, soube que este título fora almejado por Rosa desde o início, pois que transcreve Sperber (1982, p. 100), extraído dos originais de Sezão (1937):

Também, ara!, isto já é falar de outro livro, o qual, se Deus der à gente vida e saúde, vai prestar mais, chamar-se-á “TUTAMEIA” e virá logo depois deste, queira Deus!...”

Sabendo disso, pode-se afirmar, com base em depoimento do autor, que o projeto deste livro foi chocado pelo Rosa durante toda sua vida. E vejo que hei de ficar erada e ainda terei muita coisa pra ouvir e calar no silêncio e som do ecoar desta palavra. A cada dia, uma nova descoberta abre novos caminhos na densa mata.

Descobri recentemente, por exemplo, através de Costa (2006), uma informação muito importante, que será aprofundada em momento oportuno: o prefácio “Aletria e hermenêutica”, ao invés de inédito, como supunha, calcada na fortuna crítica, fora publicado anteriormente, em 1954, no suplemento

26 literário do jornal A Manhã, apenas menor e com outro título: “Risada e meia”. O título original do texto muito se assemelha a tuta e meia, expressão que viria a ser consagrada treze anos depois, em 1967, como o título de um livro, do qual aquele texto, renomeado, seria prefácio. Estes registros, apontados por Sperber (1982) e por Costa (2006), comprovam a presença de Tutameia como projeto de livro ao longo de toda a carreira do Rosa.

A seguir, trarei um breve apanhado do que a crítica já disse sobre Tutameia, para compor o diálogo com esta obra literária tão importante para a literatura brasileira, para então introduzir a abordagem poética das Terceiras Estórias, a partir da retomada dos mitos gregos da astúcia e do pensamento de Heidegger, proposta desta tese.

Repercussão

Dito: meio se escuta, dobro se entende. (Rosa, 1967: 46).

Assim que é lançado ao público, o título do livro passa a designar uma obra existente na literatura, sendo possível ao leitor buscar na biblioteca ou livraria o volume por ele nomeado. O título torna-se, então, um verbete na historiografia literária de determinado país, contribuindo para registrar, produzir e divulgar sua cultura.

Após o lançamento do título, começam a surgir nas estantes textos sobre o livro. Em alguns casos, esses textos tornam-se imprescindíveis para uma melhor compreensão da obra intitulada. Tendo em vista a extensa bibliografia existente acerca de seu autor, são ainda escassas as páginas dedicadas às Terceiras estórias. Afora os textos incluídos no próprio corpo de Tutameia, nas orelhas e no apêndice, o livro recebeu algumas leituras, relatadas a seguir.

Nos números correspondentes aos primeiros seis meses de 1968, Assis Brasil publicou, no Jornal de Letras (RJ), um estudo sobre Tutameia (“A chave da obra de Guimarães Rosa”), o qual viria a compor a segunda parte de seu livro consagrado ao autor, publicado no ano seguinte (Guimarães Rosa, 1969). Trata-se da primeira

27 abordagem mais demorada sobre o livro, a qual pretende decifrar a mensagem de seus esdrúxulos prefácios, numa leitura que nortearia futuros estudos, como o de Daniel (1968) e o de Simões (1988).

Brasil (1969) considera que Guimarães Rosa, talvez intuindo a proximidade da morte, teria “tomado para si a tarefa de dar um roteiro mais claro e seguro para os estudiosos de sua obra” (1969: 59), através da inclusão de quatro prefácios neste livro. Para o crítico, desde 1961, quando Rosa iniciara no Globo a publicação de contos curtos, que viriam a compor no ano seguinte as Primeiras estórias, o “gigantismo” da primeira fase do autor – Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas –, cujo peso documental explicitava-se nas listas de nomes e descrições sertanejas, teria dado lugar à brevidade de suas estórias, que buscavam criar uma realidade “desligada e fora do alcance da percepção imediata das coisas, dos objetos” (Brasil, 1969: 62).

Nas Terceiras estórias, também uma coletânea de contos curtos, agora publicados na Pulso, estaria, para o crítico, a “síntese criativa” da prosa rosiana (Brasil, 1969: 60), que teria atingido seu máximo grau de compacidade, continuando o processo de ruptura formal iniciado por sua obra anterior:

Tutameia se completa, do ponto de vista formal, com as Primeiras estórias, formam um todo poético, e revelam o microcosmo criativo do escritor, a minúcia sintática, a fotografia do processo sintático no momento mesmo de sua eclosão, uma verdadeira anatomia nas raízes da língua, para atingir o macrocosmo criativo, o mundo habitado e humanizado (Brasil, 1969: 59).

Brasil (1969) ressalta, porém, que a importância da linguagem encontra-se presente em toda a obra rosiana, notadamente em “Meu tio, o Iauaretê”, onde ela manifesta a realidade da personagem-onça através da desarticulação e tupinização do português (H. Campos, 1983), e em “Famigerado”, onde a palavra adquire de personagem. Este estudo aponta para o forte impacto que causara a inclusão de quatro prefácios no livro, o que o tornava diferente dos anteriores. Entretanto, ressalta o sentido de continuidade da obra rosiana, ao receber Tutameia como a conclusão do processo de amadurecimento estilístico do autor.

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Ainda em 1968, Mary-Lou Daniel publica seu extenso estudo sobre a linguagem de Guimarães Rosa, no qual insere um post scriptum de cinco páginas dedicado a Tutameia, considerado pela autora “a afirmação definitiva da prosa rosiana” (Daniel, 1968: 178), corroborando a leitura de Brasil (1969), comentada acima. Daniel (1968) também ressalta a semelhança entre as Primeiras e as Terceiras estórias, ambas caracterizando-se pela concisão linguística e temática introspectiva. Além disso, Tutameia viria a confirmar as principais tendências estilísticas do autor, que criara “um estilo forte, viril, oral” (Daniel, 1968: 178), em sua busca por “achados” originais em padrões reconhecidos, sua sintaxe telegráfica, sua flexibilidade verbal e suas sinestesias, responsáveis pelo clima de simultaneidade e dinamismo que caracterizaria o universo rosiano, o qual apresentaria, assim, coerência interna e cronológica, evoluindo desde Sagarana. A autora chama a atenção para a “franqueza” (Daniel, 1968: 180) dos prefácios de Tutameia, e compara o conjunto das Terceiras estórias a uma galeria de retratos impressionistas de tipos sertanejos, que “povoam as páginas do livro com representantes dos numerosos e anônimos sertanejos mineiros cuja voz e cujo drama reclamam a atenção do leitor através de toda a obra do autor “(Daniel, 1968: 182).

Ao final do texto, há uma referência explícita ao estudo de Brasil (1969): “Podemos dizer que este seu último volume de ficção contém a chave de toda a obra de Guimarães Rosa e que vem muito a propósito como ‘última palavra’ do grande mineiro” (Daniel, 1968: 182).

Também em 1969, Benedito Nunes dedica um capítulo de um livro de crítica literária a Tutameia. Esta análise, suscinta porém profunda, de certa forma fundamenta, junto com a de Brasil (1969), toda a posterior crítica à obra.

Nunes (1969) caracteriza as Terceiras estórias como casos exemplares ou mitos, narrativas que personalizam verdades incompreensíveis, cuja intenção parabolizante seria a de demonstrar a relatividade entre o erro e o acerto: “quem perde ganha, quem se perde acaba por encontrar-se” (Nunes, 1969: 205). Os motivos das estórias seriam tutameias, “a matéria contingente e vária” (Nunes, 1969: 204) do cotidiano. O tom de comédia embeberia as Terceiras estórias, onde os personagens passam da carência à plenitude, “refazendo-se, por obra de espontâneo devir, a continuidade da existência” (Nunes, 1969: 204).

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O autor chama a atenção também para a existência no livro de quatro prefácios, aos quais dedica alguns parágrafos. Ainda segundo o crítico, o jogo de palavras, típico da prosa rosiana, tenderia, neste livro, ao extremo do paradoxo, num processo que levaria o leitor da dúvida à revelação do indizível:

Cada estória manteve em suspensão o conhecimento objetivo, o valor utilitário e prático das palavras da língua, para permitir a apreensão em profundidade do mundo, renovado e novamente percebido através de nova linguagem (Nunes, 1969: 209).

Covizzi (1978), cujo apêndice de seu estudo rosiano trata dos prefácios de Tutameia, destoa das críticas anteriores, pois não vê com bons olhos a prolixidade dos prefácios do livro. A autora considera que, se o autor sentiu a necessidade de acrescentar quatro prefácios ao livro, é porque tinha dúvidas quanto à existência autônoma das estórias. A excessiva carga explicativa destes textos seria o resultado da repercussão crítica sobre a obra rosiana, e dificultaria a fluência da leitura, conferindo ao volume um aspecto de livro didático. O insólito, presente na trama das obras anteriores, teria se estendido neste livro aos prefácios e índices, os quais apontariam para a existência de um significado sotoposto ao texto, intencionalmente introduzido e mascarado pelo autor — é o que chamei no mestrado de “velhacaria dos paratextos de Tutameia”.

Já para Sperber (1976; 1982), que demonstra em seus estudos uma evolução na obra rosiana, Tutameia seria a radicalização do estilo e da visão de mundo de Guimarães Rosa, que teria concentrado neste seu último livro a busca da poesia que é a sua linguagem forjada, empenhada na desintegração do sintagma como “elemento de desarticulação das virtualidades de sentido” (Sperber, 1982: 7), criando zonas de silêncio, cujos saltos levariam à transcendência: “A programática negação do visível pede o salto para o invisível” (Sperber, 1982: 100). A diminuição do tamanho dos textos contribuiria para a indefinição do sentido, a ser vislumbrado pelo leitor:

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Guimarães Rosa partiu de uma imitação do real para transcendê-lo. O real existiu na ação, pelas palavras, e foi transcendido na ação, pelas palavras. [...] A busca da palavra pela palavra só foi possível graças a uma concentrada atenção ao relato como justaposição, articulação da palavra. A busca, como tal, é intelectual, racional, lógica e voluntária. Só as soluções é que não o são. Caos e cosmos na estruturação da narrativa (Sperber, 1976: 155).

Sperber (1982) chama a atenção para a sutileza do índice de Tutameia, cuja ordem alfabética dos títulos é subvertida para formar as iniciais do autor: JGR (Sperber, 1982: 49). Outro dado importante divulgado pela autora é uma referência a Tutameia nos originais de Sezão, de 1937, manuscrita pelo autor, o que atesta a antiga predileção de Rosa por esta palavra, desde o início selecionada para ser um seu título de livro, guardado trinta anos na gaveta:

[...] melhor rende deixar quieto o mato velho, e ir plantar roça noutra grota. Também, ara!, isto já é falar de outro livro, o qual, se Deus der à gente vida e saúde, vai prestar mais, chamar-se-á “TUTAMEIA” e virá logo depois deste, queira Deus!... (Rosa apud Sperber, 1982: 100).

A autora analisa alguns contos do livro, comparando-os a estórias anteriores do autor, o que demonstraria a presença de temas recorrentes em sua obra. Assim, “Estoriinha” relaciona-se a “Sarapalha” e “Droenha” a “Duelo”, o que ligaria Tutameia a Sagarana, e “Ripuária” remeteria a “A terceira margem do rio”, de Primeiras estórias. Entretanto, em Tutameia a realidade é niilizada, servindo de trampolim para o irreal. Neste livro, a elipse e a incompletude dos sintagmas radicalizam-se, estimulando a inteligência do leitor, que deve dar o salto “em busca de uma significação que os transcenda” (Sperber, 1982: 109).

Até o início da década de 1980, cerca de quinze anos, portanto, após sua publicação, Tutameia merecera da crítica não mais que os poucos artigos de jornais e/ou capítulos de livros referendados acima. O primeiro livro sobre este título viria a ser lançado apenas em 1988, e traria o resultado da tese de doutoramento em Letras defendida na USP, seis anos antes, por Irene Gilberto Simões. No ano seguinte, publicar-se-ia a tese de Vera Novis sobre o livro, também defendida na USP, em 1987.

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Nestes trabalhos, as autoras perseguem marcas textuais que apontem para a totalidade de Tutameia, quiçá da obra e da vida do autor. Simões (1988) orienta sua leitura pelos prefácios do livro, enquanto Novis (1989) desvenda suas intratextualidades. Ora, tanto os prefácios quanto as intratextualidades constituem o que Genette chama de transtextualidade do texto, tipologia que inclui também os paratextos, objeto de minha leitura do mestrado. Podemos dizer, portanto, que este trabalho parte de uma visada semelhante.

Novis (1989) identifica intratextualidades entre os contos do livro, a partir das quais reúne as terceiras estórias em subgrupos com características semelhantes: “Assim, temos as estórias de amor, as estórias de ciganos, as estórias do vaqueiro Ladislau [alter ego do autor], as estórias de cunho metalinguístico, as estórias sobre a aprendizagem” (Novis, 1989: 25). Este último grupo abrangeria todos os contos do livro, por tratarem de um momento de transformação da personagem, que sofre uma mudança qualitativa de estado, passando por provações, como num ritual iniciático, até atingir o “completamento” ou iluminação. A difícil leitura deste livro encenaria também um processo de iniciação, sendo a linguagem cifrada do “mestre Rosa” o “batismo de fogo” do leitor-aprendiz (Novis, 1989: 27).

O estudo de Simões (1988) pauta-se nos prefácios de Tutameia como chaves para a obra de Guimarães Rosa. Foi o encontro com esta análise, que trazia sistematizadas muitas de minhas primeiras impressões acerca das Terceiras Estórias, que possibilitou a elaboração do projeto de mestrado sobre a leitura dos paratextos de Tutameia. Resumirei, a seguir, algumas características do livro apontadas pela autora.

Simões (1988) considera que Tutameia traz “elementos regionalistas ligados a uma temática universal” (Simões, 1988: 57), elaborando o autor neste livro uma “transfiguração da realidade” (Simões, 1988: 103). A autora analisa contos em que mitos como o do eterno retorno, da origem, do renascimento, da palavra mágica, da serpente, do boi e do rio, além de alegorias como a da primavera e a da viagem, e mesmo estórias de fantasmas e assombrações, seriam transpostos em Tutameia para o sertão, onde, como em todo lugar, a vida do homem se constitui em luta contra a natureza, externa e interna. Entretanto, “no mundo do faz-de-conta, a natureza surge

32 transformada e a linguagem acompanha esse movimento, a ponto de ‘desrealizar-se’ na busca de expressões adequadas para representar esse novo mundo” (Simões, 1988: 81).

Outro aspecto importante da prosa rosiana como um todo, ressaltado pela autora, é o caráter polifônico da instância narrativa. Enquanto a voz do narrador trata de efetivamente contar a estória, uma outra voz, que chega a ser diferenciada graficamente através de tipos itálicos (em “A estória do homem do pinguelo”, de Estas estórias, de e nos prefácios de Tutameia) ou deslocadas para notas de rodapé (em “Cara-de-Bronze”, de Corpo de baile), e que a autora atribui ao comentarista, organiza a narrativa, “reconstituindo o texto enquanto enunciado e enquanto espetáculo” (Simões, 1988: 144). A voz do autor se deixaria entrever nesse comentários, responsáveis pela organização do discurso, caracterizando o que Genette denomina de função ideológica do narrador:

Representando um segundo tom dentro da estória, a voz do comentarista deixa entrever novas perspectivas para a estória. Entre o cenário visível que se vai desenrolando para o leitor, impõe-se, como mediador, a voz do comentarista que ora atua como crítico, ora propõe uma perspectiva cômica, ora tece comentários filosóficos, num estilo bem próximo ao dos prefácios. [...] O comentário representa o momento do “corte”, trazendo o leitor para o plano da enunciação (Simões, 1988: 181-182).

Estes comentários funcionariam como as marcações e legendas dos textos dramáticos, o que acentuaria o caráter cênico das estórias rosianas, radicalizado em “Cara-de-Bronze”. Além disso, promoveriam um distanciamento em relação ao narrado, chamando a atenção do leitor para o caráter ficcional da estória, bem como para a parcialidade de seu narrador.

Para analisar esta estrutura textual, Simões (1988) lança mão das considerações de Eisenstein acerca da montagem, em que a ideia do autor não é expressa através de elementos que se sucedem linearmente, mas pela justaposição de elementos aparentemente isolados, a serem relacionados pelo espectador. A importância do trabalho interpretativo do espectador é ressaltada pelo cineasta, que por outro lado reafirma o caráter autoral da obra:

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Cada espectador recria, efetivamente, a imagem, segundo a orientação exata que lhe é fornecida pela indicação do autor e que o conduz infalivelmente ao conhecimento e à percepção afetiva do tema. É a imagem que o autor quis e criou, mas, ao mesmo tempo, recriada pela própria criação do espectador (Einsestein apud Simões, 1988: 159).

Acreditamos que Tutameia – Terceiras estórias tenha sido organizado segundo esta estrutura de montagem, sendo seus paratextos as mais visíveis indicações do autor para o leitor que buscasse a “imagem integral” (Simões, 1988: 158) do livro. Nesse sentido, cabe retomarmos as epígrafes dos índices, que cobram uma segunda leitura do livro. A própria existência de um índice de releitura sinaliza a necessidade de se relacionarem partes aparentemente desconexas, como bem o fez Novis (1989), ao investigar suas intratextualidades, e os críticos que se detiveram na análise de seus prefácios (Rónai, 1969; Nunes, 1969; Brasil, 1969; Daniel, 1968; Covizzi, 1978; Simões, 1988; Araujo, 2001).

Simões (1988) ressalta ainda, nos contos de Tutameia, a presença de fórmulas que indicam o início e o final de uma narrativa, num processo que lembra as narrativas folclóricas e, ao mesmo tempo, demarca a ficcionalidade do relato. Em algumas ocasiões, o final de um conto liga-se, por meio dessas expressões, ao início do seguinte, num artifício que atribui certa unidade ao volume. Algumas das terceiras estórias, por sua vez, são iniciadas com frases interrogativas e/ou interpelações, o que lhes confere um caráter cênico, visto chamarem a atenção do leitor, levando-o a “visualizar a cena externa” (Simões, 1988: 185). Na ausência dessas fórmulas introdutórias, cabe aos comentários do narrador a marcação da passagem para o ponto de vista externo. Enfim, sobre a estruturação de Tutameia, a autora conclui:

Interrogações, interferências, inversões de ditos populares provocam, no texto, o choque de entoações do qual o leitor participa, o que remete de volta aos prefácios que, no fundo, são também análises, indagações, propostas. “A leitura linear é substituída por uma leitura em travessias e correlações”, no dizer de André Topia [1979], e o espaço do texto amplia-se, possibilitando ao leitor vários percursos em vários sentidos.

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A citação feita pela autora refere-se a uma crítica sobre a obra de Joyce, caracterizada pela plurissignificação, proposta que acreditamos ser também a de Rosa, notadamente em Tutameia, onde o autor se esmera em romper a todo tempo o fluxo contínuo da leitura, provocando estranhamento no leitor, que se vê obrigado a retornar e retornar ao texto, buscando “a construção orgânica e não emendada do conjunto”, prometida na epígrafe do índice do próprio livro.

Após o lançamento quase simultâneo dos estudos vistos acima, Tutameia voltou para o limbo de nossa crítica literária, tornando-se novamente objeto de estudo apenas em 1995, com o estudo linguístico de Spera, sobre os neologismos rosianos, e voltou a receber uma leitura literária apenas em 2001, no livro de Araujo.

A crítica de Araujo (2001), embasada na filosofia cristã, tem o mérito de realizar, pela primeira vez, a leitura de cada um dos textos de Tutameia, tanto os quatro prefácios como os quarenta contos, ressaltando as intratextualidades existentes entre eles e qualificando de “emblemáticos” (Araujo, 2001: 105) os três contos cujas iniciais dos títulos formam no índice as iniciais do autor (“João Porém, o criador de perus”, “Grande Gedeão” e “Reminisção”), os quais trariam a visão de mundo de João Guimarães Rosa. A disseminação do nome do autor pelas páginas deste livro é assinalada pela autora, que lembra a recorrência deste recurso na obra rosiana, como o Moimeichego de “Cara-de-Bronze” (Bizzarri, 1981).

A autora resgata a fonte das epígrafes eruditas do livro, tais como Schopenhauer, Tolstoi e Sextus Empiricus. De nossa parte, optamos por não trilhar este interessante roteiro, que demandaria um tempo de estudo maior que o disponível, se não quisermos simplesmente parafrasear as análises da obra desses escritores propostas nesse estudo.

Quanto aos trabalhos acadêmicos dedicados a Tutameia, também são os mais escassos na fortuna crítica do autor. No programa de Poética da UFRJ, foi defendida em 2005 a tese de Faria, sobre as Primeiras e as Terceiras estórias, também, como esta, orientada pelo mestre Manuel Antônio de Castro. O estudo de Faria (2005) mostra a organicidade entre essas duas obras de Rosa, procedendo à leitura de cada uma das estórias, numa abordagem filosófica e poética das obras. Suas palavras sempre estarão sendo invocadas nesta tese.

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Também inédita em livro está ainda a importante pesquisa de Costa (2006), que compara os contos de Tutameia com suas versões originais, publicadas na Pulso, elencando as alterações de texto realizadas pelo autor ao passar as estórias do periódico para o livro. Tais informações são valiosíssimas para a recepção crítica da obra, trazendo novos elementos para a interpretação dos textos, que muito ajudaram na elaboração desta tese.

Levantamos, nesta seção, o que se publicou até hoje na crítica literária acerca de Tutameia. Notamos, nessas leituras, a presença de alguns denominadores comuns, como a aproximação dos contos aos mitos, a importância dos prefácios e a existência de cifras, a serem desveladas na leitura.

A partir do diálogo constante com a obra, e com base nas leituras realizadas pela crítica especializada, a presença da astúcia em Tutameia parece- me um importante aspecto a ser abordado na interpretação deste livro. A astúcia se manifesta no título, nas ilustrações e, nos chamados “paratextos”, como demonstrei em minha dissertação de mestrado.

O figurar da obra

Em uma obra literária, a apresentação do livro deve consumar o pensamento expresso no manuscrito. Nisto consiste a arte do editor: trazer a lume as obras. A elaboração arrojada de Tutameia percebemos no primeiro contato, ao manusear o pequeno volume e atentar para os detalhes de seu projeto gráfico. Além da ambiguidade do título, Tutameia se apresenta de modo peculiar. É preciso atravessar paredes e lutar com tentáculos, numa aventura de ler que não cessa de vigorar. Neste livro, notadamente, o “design ocorre em um contexto de astúcias e fraudes. O designer é, portanto, um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas” (Flusser, 2010: 182).

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Sobre o papel desses elementos na interpretação de obras literárias, escreveu um dos críticos mais influentes na cena literária brasileira do século XX, Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Athayde, cujo rodapé a Tutameia viria a compor as orelhas do livro. Lima (1945) considera que a crítica literária começa a ser preparada a partir das primeiras informações que recebemos sobre o livro, por escrito ou oralmente. Num segundo momento, tomamos o volume em nossas mãos, perscrutando sua concretude (p.23-24):

[o livro] Passa agora a ser uma coisa concreta em nossas mãos. Tem uma cor, um aspecto, por vezes um desenho sedutor ou ridículo na capa. É desta ou daquela editora. Tem este ou aquele formato. Tudo isso passa, por sua vez, a constituir um conjunto de impressões que não podem ser dissociadas da posição do crítico em face da obra. Um livro não é apenas um conjunto de ideias, de acontecimentos, de imagens e de personagens. É um objeto de arte que temos em nossas mãos, como uma escultura. Seu aspecto físico desempenha um papel importante na crítica literária. Os livros são tipograficamente simpáticos ou antipáticos, belos ou feios, indiferentes ou marcantes. A crítica literária faz do livro o objeto central, a razão de ser de sua existência. Nada, portanto, do que diz respeito ao livro é indiferente. Um tipo pequeno ou grande de mais, uma ausência de margem, uma revisão mal feita, um índice insuficiente ou incompleto, o mau gosto ou o bom gosto na disposição geral da obra, em sua apresentação física, tudo contribui para que o primeiro contato do crítico com a obra venha a desempenhar um papel favorável ou desfavorável na crítica a ser futuramente elaborada.

Assim, antes mesmo de conhecer o conteúdo do livro, o leitor já se predispõe, positiva ou negativamente, em relação a ele, influenciado por seus paratextos. E essa predisposição conduzirá a leitura da obra, como o rótulo de um produto pode definir seu consumo, ou o cartaz na bilheteria do cinema nos faz optar por este ou aquele filme. Nas palavras de Lima (1945, p.36), “o hábito exterior da obra é de importância para nosso contato imediato com a mesma.” Se o grande público influencia-se mais facilmente por essas artimanhas, os críticos literários também não passam incólumes por elas (p. 39):

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Não somos melhores do que o público. Somos apenas um público ranzinza... E as nossas reações são diferentes, mas igualmente ligadas a essa misteriosa alquimia das impressões e das sugestões inexplicáveis, que estão na base de tanta aceitação entusiástica ou de tanta repulsa rigorosa.

A indicação da relevância do aspecto físico do livro em um texto anterior às Terceiras estórias, escrito por um crítico considerado mestre por seus contemporâneos, corrobora nossa hipótese de que, talvez sob a influência deste crítico, talvez por sua própria experiência como leitor, Guimarães Rosa esmerava-se no aparato editorial de sua obra, como veremos.

O uso criativo do espaço paratextual por parte de Guimarães Rosa não se restringe a Tutameia, mas pode ser percebido em toda a sua obra, publicada com esmero pela Livraria José Olympio. A exigência do autor no que diz respeito à edição de seus livros é comprovada pelo volume-epitáfio Em memória de João Guimarães Rosa (1968), originariamente destinado a comemorar a posse do autor na Academia Brasileira de Letras, e de cuja Nota da Editora extraímos o trecho a seguir:

Guimarães Rosa logo começou a participar da preparação editorial do opúsculo, como acontecia sempre que preparávamos edição ou reedição de qualquer livro seu – “intervenções gráficas” que acatávamos: ele sugeria o feitio das capas (em 1956 ficou sete horas ao telefone, trocando ideias com Poty sobre o desenho de capa de Corpo de baile), rabiscava vinhetas ou ornatos (foram de sua escolha os cul-de-lamps de Tutameia feitos por Luís Jardim: um deles, desenho de um caranguejo, é o símbolo do signo zodiacal do escritor), apresentava curiosos originais por ele mesmo rascunhados, desenvolvidos definitivamente, e com satisfação, pelos artistas que ele também escolhia e que fizeram capas e ilustrações para seus livros. Trouxe sempre as “orelhas” para seus livros (p. 8).

A referida edição estampa ainda, à p. 119, fac-símile da primeira versão das orelhas de Grande sertão: veredas, com desenhos de Poty, que acabaram não sendo aproveitadas, como explica a legenda da ilustração:

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Acaso será fácil adivinhar o que são esses desenhos cabalísticos? Por certo que não: pois são desenhos que Poty executou – a pedido de Rosa e tudo por ele sugerido ou esboçado – para as orelhas da 2ª edição de Grande sertão. E por sinal que Rosa desistiu deles, encomendando outros que saíram naquela e nas subsequentes edições. Observamos nos títulos a omissão de todas as vogais. Procuramos com Poty identificar os símbolos que ele desenhara há anos. Em vão: nada sabia. Rosa sugeria-lhe os motivos mas nada explicava. A indicação de 1ª e 2ª orelha, nos desenhos, é do próprio Rosa.

Encontramos também, neste precioso volume, fac-símile da nota sobre Sagarana, redigida pelo autor para compor a 1ª orelha da 1ª edição de GS:V (p. 136), e sobre Corpo de baile, que deveria compor a 2ª orelha da referida 1ª edição (p. 200), e ainda sobre o próprio Grande sertão (p. 202), que comporia as orelhas de suas edições posteriores. Outra evidência do trabalho editorial do autor são os fac-símiles dos originais de seus livros, que ilustram as edições de suas obras. Provas da dedicação de Rosa aos detalhes da publicação de seus livros podem também ser encontradas na correspondência com seu tradutor italiano (Bizzarri, 1980), onde o autor, além de esclarecer pontos obscuros do texto, acerta detalhes da edição do livro, como epígrafes, orelhas, glossário e notas de pé de página. No trecho reproduzido abaixo, ele anuncia a divisão de Corpo de baile em três volumes (p. 79-80):

Sairá, agora, no decurso de 1964, uma nova edição do “CORPO DE BAILE” – a 3ª. A novidade é que ele vai ficar sendo em 3 volumes. Três livros, autônomos. A ideia já me viera, há tempos. Comecei por “vendê-la” aos editores na França e em Portugal, que se convenceram depressa das vantagens, e concordaram. E, por fim, consegui, facilmente, aliás, que o José Olympio também a esposasse. De fato, o “Corpo de Baile” vinha sendo prejudicado pelo “gigantismo” físico. A 1ª edição, em 2 volumes, unidos, pesava, já. Arranjamos então a 2ª num volume só, mas que teve de ser de tipo minúsculo demais, composição cerrada. E o preço caro, além de não ficar o livro convidativo. Agora, pois, ele se tri-faz. (...) Se bem que os livros se ofereçam como independentes mantém-se, de certo modo, a unidade entre eles, mediante as seguintes manhas: 1) o título ab-original, “Corpo de Baile”, é dado, entre parênteses, em letra discreta, no frontispício interno (mesmo porque garante e permite a menção de “3ª edição”, coisa que muito importa);

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2) a capa (a mesma da 2ª edição) será igual para os 3 volumes, variando apenas as cores (grená-arroxeado ou bourdeaux, para um; azul para outro; encarnado ou escarlate para o 3º); na relação das obras (“DO AUTOR”), explica-se que: “A partir da 3ª edição, desdobra-se em três livros autônomos:” e segue-se a indicação dos mesmos. Em consequência, distribuir-se-ão também, pelos três, as epígrafes de Plotino e Ruysbroek: cada um fica com uma, de cada; isto é, o “Noites do Sertão” pegará 2 de Plotino. (Porque eram 4.) O livro ficará sendo em três livros distintos e um só verdadeiro...

O Rosa não descuidava. As ilustrações de seus livros compõem um concerto com o texto. O próprio autor traçava os esboços. São famosas as capas de seus livros, as orelhas herméticas do Grande sertão: veredas, de Poty, e o índice ilustrado de Primeiras estórias, de Luís Jardim, mesmo artista que ilustrou Tutameia, com clichês ao final de alguns contos:

Figura 1: Ilustrações do miolo de Tutameia: moeda caranguejo / coruja.

Ora, a efígie de uma coruja pode ser vista em uma das faces do dracma, antiga moeda de Atenas; e a imagem do caranguejo aparece em moedas de cidades da vulcânica Sicília, na Magna Grécia:

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Figura 2: Moeda da Sicília Púnica, Magna Grécia: Figura 3: Dracma, antiga moeda caranguejo (Hefesto). de Atenas: coruja (Atena). Disponível em: http://www.wildwinds.com. Disponível em: http://1.bp.blogspot.com. Acesso em: 2 set. 2012. Acesso em: 13 mar. 2012.

Sendo ainda tutameia, como vimos, palavra originada do nome de uma moeda, acho viável a interpretação desta ilustração, salpicada ao final de alguns contos do livro, como os lados de uma moeda, que se alternam, num cara e coroa, ora a trazer a imagem da coruja, ora a figura de um caranguejo.

As questões provocadas por essas imagens em sua referência com os mitos gregos da astúcia serão aprofundadas nesta tese, num diálogo poético com Tutameia – Terceiras estórias.

Araujo (2001) vê essas figuras como símbolos de nascimento e morte. O caranguejo simbolizaria o nascimento, por se tratar do signo zodiacal do Rosa, nascido em junho, três dias depois do dedicado ao santo que lhe dá nome, João, que significa graça de Deus. Seria então a primeira das três graças, a gratis data, recebida no batismo: A coruja simbolizaria a Sabedoria, Palas Atena, a beatitude, a graça santificante, só recebida ao final, quando se completa o todo terminado do percurso. E nos contos que não se encerram com nenhuma das figuras, a autora vê o hiato, a graça recebida no dia a dia, onde ocorre o encontro com o desconhecido, sempre a renovar a vida. As Terceiras estórias descreveriam

uma caminhada do espírito de João Guimarães Rosa a Deus, por intermédio do recebimento da graça na vida ativa, interior e contemplativa. Essa caminhada é pontuada, assim, por influxos da

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graça: da graça gratis data, que é recebida no começo da vida, com o batismo (figurada na imagem do caranguejo, de Câncer), da graça santificante, que redime, justifica, recebida no final (figurada na imagem da coruja, Sapientia) e da graça recebida nos hiatos introduzidos na vida diária, no clinamen imperceptível que termina um mundo e inicia outro. As imagens da coruja, do caranguejo e a página em branco são pontuações da graça na vida de João Guimarães Rosa. O encontro final com Deus se faz no silêncio ao final do texto de Tutameia, do enredo de Tutameia (Araujo, 2001: 304).

Já para Faria (2005), “o contínuo ir-e-vir é ritmado, no livro, pela alternância dos símbolos do caranguejo e da coruja, que assinalam, respectivamente, um voltar e um transcender, um vir aquém e um divisar o além” (Faria, 2005: 201). O olhar para o além da coruja convidaria para as possibilidades do futuro ainda encobertas. O retroceder do caranguejo seria o chamamento da ancestralidade, “resguardado pelo sigilo ritual das coisas sagradas” (Faria, 2005: 339).

Num conjunto e simultâneo avançar e recuar, a ânsia de se ultrapassar é contrabalançada pela recorrente antiperipleia, de modo que o presente urdido por estes dois movimentos contrários se converte no tempo abissal que não cessa de mergulhar à própria foz para lançar-se adiante sempre mais inédito e mais antigo, dotado do frescor do que ainda não é, mas imbuído do louvor do que sempre será (Faria, 2005: 339).

De acordo com essas leituras, o caranguejo apontaria para o passado, como nascimento ou arché, e a coruja para o futuro, como télos ou morte. A origem e a consumação seriam os dois lados da moeda, em cujo lançar acontece a existência humana na terra. Mas por isso mesmo, por serem dois lados da mesma moeda, creio que as duas ilustrações condizem com todas e qualquer uma das terceiras estórias.

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Concordo com as autoras no que se refere à interpretação das ilustrações de Tutameia como elemento importante na leitura poética de suas estórias. Não acho conveniente, porém, procurar semelhanças entre as estórias carimbadas ou não, com caranguejo ou com coruja. Soa-me como mais uma tentativa de classificação que deixa passar entre as malhas a essência da obra.

Depois de muita observação, e também de alguma prática editorial, concluí que essas ilustrações, prenhes de significados, são vinhetas de remate, criadas para finalizar contos cujos textos terminam no alto da página.

Quanto à distribuição das ilustrações entre os contos, percebi o seguinte:

a) os contos sem ilustrações terminam no final da página; b) os contos ilustrados terminam no topo da página; c) todos os contos que terminam no topo da página são ilustrados; d) a alternância entre uma e outra ilustração não se quebra, começando pela coruja, seguida pelo caranguejo, e assim sucessivamente. Sabendo-se, ainda, que a disposição dos contos no livro segue a ordem alfabética (exceto dois, como vimos), seria muita coincidência que um critério tão pragmático, como a existência ou não de espaço em branco na página após o final do conto, resultasse em uma marca que identificasse a peculiaridade deste ou daquele conto específico, e que essa marca ainda resultasse em uma ordem em que os símbolos se alternassem regularmente.

É mais provável que, dos contos com espaço em branco, um recebeu a coruja, outro o caranguejo, e assim até acabarem todos, resultando em 26 contos ilustrados, 13 com cada uma das figuras, alternadamente, e 18 sem nenhuma ilustração, por pura falta de espaço na página.

Acredito que não se pode pensar na coruja sem o caranguejo, nem no caranguejo sem a coruja, pois ambos são o mesmo, figurações da astúcia poética de Tutameia, que ecoa em todas as terceiras estórias, independentemente da imagem que ela porte ao termo de suas palavras. É como se, a cada página, a coruja e o caranguejo fossem astuciosamente a marca d’água, a chancela, a rubrica, o selo da poética rosiana.

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Ao longo de Tutameia, piscam-nos as moedinhas: cara e coroa, coruja e caranguejo. A leitura do livro e da vida requer olhar mais a fundo, andar de banda, a ginga exata, a medida do destino. Para alçar-se ao que lhe é destinado, para encarar a travessia, carece de ter coragem, e se armar com as astúcias.

A vida e a morte são dois lados da mesma moeda. Uma de cada lado, sobre o globo ocular do morto, hão de serem colocadas, as tutameias moedas, os óbolos para o barqueiro. No círculo do vil metal estampam-se o fim e o começo, verso e anverso da página. A coruja e o caranguejo são os lados da moeda chamada tutameia, e cada estória é um conto desta moeda. Por isso para o autor tutameia é mea omnia:

tutameia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia (Rosa, 1067: 166).

Cada conto de Tutameia narra a vida de uma pessoa que se depara com o próprio destino, às vezes senta e chora, mas sempre encontra um jeito de se confrontar com o real e amorosamente instaurar mundo. Tutameia é a moedazinha que entregarás ao barqueiro, quando atravessar o rio do esquecimento, sua obra: a moedinha de si, cunhada em ferro em brasa: o caranguejo e a coruja, os olhos a te olhar do livro: decifrarás o enigma?

A leitura de Tutameia traz para a luz a presença da astúcia sábia, que se manifesta nas tramas de suas estórias, em suas ilustrações e mesmo na sua composição gráfica, evocando a voz que canta os mitos da astúcia, como vigorar de uma questão essencial que se apresenta para o leitor, para o homem.

Os personagentes das Terceiras estórias provocam o questionamento sobre o sentido do ser, suas aventuras são travessias no mar da realidade, singrando barcos ou nadando soltos. A astúcia poética atua na resolução dos conflitos, não pela imposição deste ou daquele, mas para que fique bom o negócio para ambos os lados, na busca do que lhes é próprio. Vejamos como isto se opera na leitura de um conto de Tutameia.

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A estória de Romão e Nhemaria

A astúcia poética encontramos na estória de Romão e Nhemaria, cuja travessia de vida, amor e morte nos é narrada no conto “Reminisção”, um dos que formam a marca autoral do índice, JGR, correspondente então ao nome do Rosa, que evoca ao soar o barroco motivo da beleza que fenece, Rosa cujas pétalas são as delicadas páginas que se curtem com o tempo, sem perder a cor, o aroma nem o toque de cetim. Poeta já desde o nome, nascido em Cordisburgo, cidade do coração, do coração finou-se, após colocar no mundo esta obra colossal, pela intensidade de sua linguagem poética, capaz de desvelar velando a essência da verdade, o sentido do ser, convocando o leitor para a possibilidade de um novo olhar, que se revela como o olhar primeiro, a nos lançar na travessia de viver, pensar, ser, amar, morrer.

Assim é o olhar de Romão a olhar Nhemaria, sua amada esposa. Ela era feia, chata, grossa, uma draga de fêmea. Chamavam-lhe a Drá, a Pintaxa, motivo de escárnio e zombaria. Saber dela ninguém queria, só aquele moço, o escolhido. Todos diziam que ele coisa melhor merecia. Mas amar não é merecer, é doação de Eros, do destino. “Não podemos jamais esquecer que ser é amar e o amar jamais pode ser reduzido a qualquer explicação causal ou genética, muito menos ser objeto de conhecimento científico” (Castro, 2011: 300).

O olhar de Romão cintilava esta sabedoria, só dele, cavaleiro amantíssimo, que levava a sério os “súbitos, encobertos acontecimentos, dentro da gente” (Rosa, 1967: 81). E os dois, ninguém sabe como, namoraram, noivaram, casaram, juntos viviam a vida. “Comparem-se: o vagalume, sua luzinha química; fatos misteriosos – a garça e o ninho por ela feito” (Rosa, 1967: 81-82). Realizavam o mistério.

O amar é a mais completa realização do mistério que, fundando toda proximidade, sempre se retrai, jogando-nos na distância, o entre ser e estar. No e pelo amar o mistério acontece naqueles que amam e se amam no e a partir do mistério (Castro, 2011: 292).

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Mas a feiúra de nascença baixava da mulher a autoestima, e ela se revoltava com essa triste sina, e descontava no marido, que por amá-la decerto ela achava que pouco valia. Espantava-o com a língua afiada e as garras em riste. O sábio sapateiro, porém, seguia batendo sola, enchia a monstra de mimos, em delírio lhe percebia a beleza. “Romão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gostar sentido e aprendido, preciso, sincero como o alecrim” (Rosa, 1967: 82).

Chegou a fugir com outro, a diaba, piorando ainda mais a fatura: feia, chata e sem-vergonha – como é que ele aceitava, não via? Mas só quem via era ele, que aceitou-a de volta, ignorando a matemática, que para esse tipo de acerto ele viu que não servia. “Sapateiro sempre sabe” (Rosa, 1967: 82). E foi o que todos viram, quando sem mais nem menos quedou-se Romão na cama, moribundo. A esposa do seu lado não saía, chorosa, amorosa, cuidava, desesperava-se em vê-lo partindo para o outro lado da curva, deixando-a para trás, só somente. No instante de sua passagem, com os olhos emprestados, todos puderam ver a luminosidade que emanava da alma de Nhemaria.

Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nessa se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria (Rosa, 1967: 83).

É isso que almeja quem se deixa tomar pela astúcia poética: a consumação do destino, a completude da vida, que na morte se realiza, os olhos de ver o amor, que logram sobrepujar os valores instituídos e alcançar a beleza da verdade, que se desvela num átimo e a tudo ilumina, não com a luz da razão, mas com a luz do amor, vaga-lume que do nada brilha e desaparece.

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Todo amar é sem finalidade, pois tem em si mesmo o seu fim, isto é, sua própria realização e consumação. Mistério. É a renúncia mais radical, proveniente de um saber radical, estranho. Mas foi uma renúncia que nada lhe tirou, renunciou ao mundo dos entes porque um “outro” saber o projetou no vigorar do ser: a terceira margem do rio (Castro, 2011: 304).

As questões da astúcia

O ser humano é ambíguo, é Entre-ser. O real é ambíguo: muda e permanece. A linguagem é ambígua, tanto mais fala quanto mais silencia. A palavra é ambígua, pois lavra sempre no vigor do “entre”. Ambíguo é o conhecimento, pois, como muito bem diz Platão, é dianoia, onde temos: diá-noia, o conhecimento que nos vem através de, em dois, entre. (Castro, 2005: 54).

Depois de nos encantarmos com a narrativa rosiana, onde se manifesta a astúcia poética, o saber ser, amar, morrer feliz, proponho pensar as questões que a astúcia nos coloca, em nossos enfrentamentos com o real.

Na sociedade em que vivemos hoje, dominada pela ciência e tecnologia, à astúcia é atribuído um juízo negativo, associado à desonestidade, mas sabendo todos nós que para além da letra o que vale mesmo é a lábia e o lucro. Aliada à corrupção das altas rodas está a racionalidade científica, a comprometer o caráter da astúcia, pois que esta opera justamente onde não há regras nem medidas capazes de mensurar objetivamente seu alcance, suas causas e efeitos. E, de acordo com Heidegger:

[Hoje] Só vale como verdadeiramente real aquilo que é cientificamente demonstrado, isto é, calculável. Graças à calculabilidade, o mundo se tornou, sempre por todos os lugares, submetido ao domínio do homem (Heidegger, 1983: 5).

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Mas, por mais que se tenha tentado tornar o tempo linear e a vida uma progressão para frente, a Terra ainda roda todo dia, sempre de um modo novo, original, fazendo girar os mares e os ventos, as ilhas e os continentes, onde vivem e migram os animais da água, da terra e do céu. Todo dia nasce e morre planta, bicho, gente. E azul é o céu. E o mato cresce, e o sujeito capina de novo, até ave-marias. Nessa barulheira toda, o artista compõe uma moda de viola, falando da brabuleta marelinha que poisou na rosa do seu quintal. É a vida vigorando na arte. Não tem explicação científica para que em uns esta sensibilidade brote mais, e em outros, menos. Como pode um peixe vivo?

A natureza não segue as regras dos homens, os homens é que tentam compreender o modo como opera a natureza. Os arredondamentos que a ciência efetuou para facilitar as contas não alteraram o curso dos fenômenos. Depois de tantas interpretações científicas, o homem acha que dominou o mundo. Mas o homem não dominou nada. Reconhecer isso é o primeiro passo da astúcia sábia. Uma coisa é a astúcia da razão, pela qual o homem busca dominar a natureza como recurso utilizável, e outra é a astúcia do pensar, que ouve o concerto da physis, o silêncio da origem, e toca o que lhe é destinado, soa o sentido do Ser. O sábio astucioso está sempre a ver navios, mesmo quando ainda não há mar. Soa conforme o concerto do corpo de baile. E percebe:

A astúcia em sua essência não é boa nem má, é ambígua, pois sendo astuciosa, só aparece conforme esteja dissimulada, não se dá a cálculos e pareceres. Ela anda pela sombra, come quieto, dorme com um olho fechado e um aberto. Pode ser a possibilidade que o fraco tem de ganhar do forte. Quem tem a boca maior, afinal, nem sempre engole o outro. É como diz o Rosa:

O diabo é às brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza (Rosa, 1986: 15).

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No jogo da vida, sabemos que cada lance é decisivo para o final da partida. Por isso é importante contar com uma boa equipe, bons craques e um bom técnico. A estratégia, o esforço, a mira e o lance, a velocidade dos pés e o senso de oportunidade fazem um grande artilheiro, sempre provido de astúcia. Porque não basta chutar, tem que ter a manha da aranha. A astúcia dos viventes provê aqueles que dela dispõem de recursos, como habilidade manual e capacidade de planejamento, e também aguça o senso de oportunidade, que possibilita ao astucioso agir rapidamente, no sentido da plena realização de seu destino. É o manejo do remo. A astúcia permite que, na disputas que disputar, o homem tenha sempre uma saída, que lhe permita obter o êxito desejado. Mas vencer não é destruir o adversário, é apropriar-se do próprio. Em situações agônicas, a intensidade do tempo condensa passado, presente e futuro, e o instante se abre da melhor forma para quem sabe aproveitar as possibilidades a ele destinadas, consumar o nadar na água brotejante.

O que a maioria das pessoas não percebe, porém, é que a lida do dia a dia se faz em cima de uma corda bamba, que ninguém tem garantia de nada, que enquanto vivemos, morremos, a cada instante, e nossa origem, assim como nossa finitude, consuma-se no entre-ser do aqui-agora, que condensa todas as possibilidades que nos doa nosso destino, o qual nos cumpre realizar: ser, feliz, amar, morrer. “A morte é o permanente horizonte no qual o homem tende e se lança, e só e tão-somente por isso ele é mortal. Ser mortal é querer ser o que não-é: feliz” (Castro, 2011: 205-206).

A vizinhança constante da Morte, míseros mortais que somos, se afigura poeticamente no Sétimo selo de Bergman (1956). A ceifadora lusófona é feminina, mas pros nórdicos é um homem, a quem constrangida preciso tratar por “ela”. A estória se passa na Idade Média, tendo como pano de fundo as Cruzadas, a Inquisição e a Peste Negra, conjuntura em que a Morte saltava aos olhos de tal forma que se pensava em fim dos tempos – daí o título da obra de Bergman, numa referência ao livro do Apocalipse, citado inclusive na estória, no início do filme, e ao final, quando o cavaleiro senta-se à mesa de casa, depois de tantas pelejas. 49

O protagonista é um nobre cruzado, como se vê pela cruz estampada em sua veste e no punhal da espada que carrega. Acompanhamos o regresso deste cavaleiro, numa travessia pontuada por encontros inesperados. Ao vislumbrar a Morte a alguns metros, a mirá-lo, o cavaleiro propõe uma partida de xadrez, valendo a vida dele. Ela concorda, dizendo porém que não poderia adiar. E começam o jogo, que irá durar toda a viagem, a travessia de volta, quando o destino se consuma. Ele não queria jogar com seu subordinado, o escudeiro, mas sim com a Morte, adversário digno de honra e fama.

Na Idade Média, época da ação do filme, o xadrez recém chegava à Europa, com os muçulmanos. Naquela época, era controversa a aceitação desse jogo pela poderosa Igreja Católica, que chegou a proibi-lo. Mas sua presença é comprovada por imagens que retratam jogadores diante do tabuleiro, como a do painel medieval da igreja sueca que inspirou Bergman, e que aparece no filme: um cavaleiro jogando xadrez com a Morte. Jogar xadrez significa para nosso herói cavaleiro não só a assimilação de um costume do povo a quem tinha como inimigo, os muçulmanos, ma também a independência de sua individualidade quanto às prescrições da Lei da Igreja. Seu julgamento estava acima do que reza esta ou aquela doutrina, sua consciência o deixava livre para jogar xadrez ou não, conforme queira ou não queira. A subjetividade moderna estava tomando forma, assim como se consolidavam naquela época as regras do xadrez moderno, com a inclusão do bispo e da rainha, os poderosos da Europa medieva. Como quem joga o jogo novo se posta o homem diante da Morte jogando xadrez, sobre os rochedos de uma praia deserta, a caminho de casa, de volta da guerra. Ele não só joga xadrez sendo um cruzado, como ao ver a Morte não a segue, e sim a desafia, convidando-a para este jogo de astúcias.

O homem poderia simplesmente ter ido com a Morte, mas acha que é tão bom estratego que seria capaz de enganá-la. Ele queria mais prazo, porque ainda não tinha entendido o sentido da vida. Ansiava por respostas às suas perguntas mais íntimas, não ouvia o retorno de suas preces. Agarrando-se às procuras da vida, não se doava à renúncia de apenas ser no entre, e morrer.

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O jogo então passa a ter características curiosas. Não é mais o próprio jogo que se joga  digo, o jogo de xadrez , mas o jogo de esquiva do jogo. Só que o cavaleiro não sabe que a morte perscruta suas confissões mais íntimas. E qualquer tentativa de lance que passe por sua mente, e que, para ele, faria parte de um jogo secreto de sua mente para ludibriar a morte, é rapidamente percebido pela morte. Ou seja, ele não sabe que suas esquivas e suas esperanças de ludibriar a morte são completamente vãs. O jogo é um passatempo; pior, um passatempo angustiante e desesperador. E isso ele só sabe porque não escolheu morrer no exato instante em que a morte lhe apareceu (Silva, 2011).

Achando que tudo pode, o homem julga poder lograr a morte. Ledo engano, no qual se perdem os homens, com a soberba dos assoberbados. Pensar em enganar a morte: pense! Querer ver a face de Deus: olhe! Mas, quando! Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

Estar a caminho é a condição humana. O encontro com a morte será sempre inusitado, pois o homem tem essa gana de querer ter mais, dominar, possuir, de gozar na cara do outro. A Morte ri da empáfia do gajo.

A travessia entre vida e morte é a difícil caminhada de renunciarmos à nossa vontade e ao nosso poder aparente para nos deixarmos tomar pelo único e necessário em todas as procuras: a renúncia ao ter para vivermos e experienciarmos a liberdade de ser [...] por inteiro, integralmente, em plenitude, dimensionados e cuidados pelo que nos foi destinado: sermos no ser, para sermos o que somos, o que nos foi dado: nosso destino (Castro, 2011: 233).

Na ambição de querer ter mais poder, de ser um star, o homem se esquece de si, só enxerga seu espelho. Querer ter mais é em si o demo, que vige nos crespos do homem.

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A ambição humana de dominar céus e terra, animais e vegetais, já se encontra no Coro de Antígona, de Sófocles (apud Leão, 2010a: 178-9):

Muitas são as coisas extraordinárias, mas nada é mais extraordinário do que o homem! Caminha por sobre as espumas da preia-mar no meio da tempestade sulina do inverno, atravessando montanhas de ondas abismadas de raiva. Extenua a inesgotabilidade indestrutível da mais sublime das deusas, a Terra, revolvendo-a ano após ano, puxando com cavalos pra lá e pra cá os arados. Sempre astucioso, o homem enreda o bando dos pássaros em revoada e caça os animais da selva e os agitados moradores do mar. Com engodo domina o animal que pernoita e anda nos montes, subjuga o dorso de crinas silvestres do corcel e põe o jugo das cangas de madeira no touro selvagem. A si mesmo encontrou tanto no soar da palavra e na compreensão, que, com a rapidez do vento, tudo abarca, como na coragem com que domina as cidades.

Também pensou como escapar aos dardos do clima bem como às inclemências da frieza. Pondo-se a caminho por toda parte, desprovido de experiência e em aporia, chega ele ao Nada. A morte é o único ataque, de que não se pode defender por nenhuma fuga, embora consiga esquivar-se com habilidade às indigências da enfermidade. Engenhoso muito embora, porque domina, além da expectativa, a lentidão da habilidade, cai algumas vezes até na perversão, outras saem-lhe bem nobres empresas. Por entre os estatutos da terra e a conjuntura

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exconjurada dos deuses caminha ele. Ao sobrepujar o lugar, o perde, a audácia o leva a favorecer o não-ser contra o ser.

Aquele que põe tais coisas em obra, não se torne familiar na minha lareira nem meu saber compartilhe comigo seu desvairar-se!

Preocupado em sobreviver e buscar ter domínio sobre o real, o bicho homem faz ouvidos moucos, se esquece do sentido do ser. Entretido na faina diária, empenha se em fabricar muros, armas, utensílios e máquinas que supostamente lhe permitam domesticar a natureza. Por isso estão todos tão tristes. Desplugaram-se da essência. Mas a vida é a maria-sem-vergonha que brota na trinca do concreto. A luz é o destino do ser. O que há são mistérios.

Aquilo que se manifesta na travessia entre o aqui e o lá é o que se percebe na astúcia de se deixar levar pelas ondas, como o Burrinho Pedrês de Sagarana, que dançando com a correnteza soube chegar do outro lado em meio a uma tromba-d’água, trazendo ainda uns viventes a salvo com ele. De acordo com Détienne e Vernant (2008), nos mitos gregos, a astúcia (métis) não é privilégio dos homens. Ela é sim de extrema importância na estruturação da teia alimentar, que hierarquiza os viventes. Em rio que tem piranha, jacaré nada de costas. A luta pela sobrevivência, tanto no sentido de se safar dos predadores como de abater a presa e garantir o alimento aos filhotes, leva os animais, dentre eles o homem, a desenvolverem estratégias de ataque e defesa, produzindo abrigos, estocando comida, defendendo território.

Entre todos os animais distinguidos pela métis, há dois que se impõem de maneira particular: a raposa e o polvo. Para o pensamento grego, eles têm valor de modelo; eles são como a encarnação da astúcia no mundo animal. Cada um representa um aspecto essencial da métis. A raposa tem muitos trunfos em seu bolso,

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mas sua astúcia culmina no que se pode chamar de conduta da revirada. De seu lado, o polvo simboliza, na infinita leveza de seus tentáculos, a inapreensibilidade pelo polimorfismo (Détienne e Vernant, 2008: 39).

Machado, no “Conto alexandrino” (2012), reparava na semelhança entre o caráter de certas pessoas e o de alguns animais. Tudo começa quando o filósofo Strobius convence seu colega Pítias a testarem sua nova filosofia: “os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe”. Os personagens empenham-se então em saber se essas características nos animais poderiam ser inoculadas, bebendo-se o sangue daquele animal cujas características gostaríamos de adquirir, como a astúcia da raposa ou a bravura do leão.

Visando comprovar a tese, passaram a ingerir sangue de rato, para ver se se tornavam gatunos. Nisso se esmeraram em sádicos algozes, judiando e tirando sangue dos bichinhos, aos montes. O avanço do método, que erradicava ainda por cima os maléficos roedores, inspirou a que se usassem também os humanos malfeitores como cobaias em experiências em prol do progresso da medicina. E os filósofos, enfim cleptomaníacos e plagiadores, acabaram presos, tornando-se cobaias de um novo experimento científico: de que o pendor para o roubo estaria nas mãos dos larápios. Antes de serem executados, tiveram as mãos destrinchadas, e também lhes arrancaram os olhos e o estômago, para estudos. Herófilo, o anatomista, dissera-lhes ainda por cima que lhes seria uma honra colaborar com a ciência. A isso brindaram os ratos, mas os outros animais não acharam graça, temendo serem os próximos. “Ao que retorquiu um rato: ‘Mas até lá, riamos!’”

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A funcionalidade torna os animais objetos de pesquisas científicas. A penicilina proporcionou o surto demográfico. O plástico, que não existia, hoje se acumula nos solos e águas. Mas não se sujuga Mama Gaia impunemente. Hão de cair raios e trovoadas, até todo mundo acordar para o desconcerto do mundo. Ouçamos o singelo apelo das tutameias no nada, obras de arte, poesia. Entre-ser. Travessia. Nonada. Tutameia: coisica de nada: ser tomado pela astúcia de Métis, a arteira, dar ouvidos a seus bons conselhos, consumar o destino de ser feliz. Como disse o Dito, ser alegre de teimoso. A astúcia poética é o soar consoante o logos, é a astúcia de querer ser, consumar o destino.

A astúcia da razão compreende o plano da lógica, acessível aos mortais, muito útil por sinal, responsável pelo atual avanço tecnológico da humanidade. É a astúcia do querer ter, do poder, do dominar, de querer tirar proveito sempre que neguinho der bobeira: vacilou, perdeu – vai que cola?

Mas a razão não explica a vida e a morte, o sentido do ser. Disso quase não fala. E acaba se iludindo de que isso não existe, e crê-se acima dos deuses, que podem lograr a Morte, desafiar o destino. Reles humanos, míseros mortais que somos, ousamos desafiar os deuses. O que pode o homem? Nonada. No aqui e agora ele é um sendo, a realizar um destino – ou é apenas marionete de sistemas e ideologias que se colocam como a verdade? A astúcia poética atua na consumação do destino, tanto no sentir do sentente, como no elaborar do pensamento do artista, no produzir e apresentar ao real aquele sentimento, aquele olhar, aquela percepção, de modo a fazer funcionar o comboio de cordas, que se chama coração, cujo tuntum harmoniza o tom dos humanos. Às vezes um acorde acorda um homem, o olhar apruma e ele olha os lírios do campo.

O que nos aparece como natural é provavelmente apenas o habitual de um longo hábito que esqueceu o in-habitual do qual aquele se originou. Um dia, contudo, aquele in-habitual tomou de assalto, como um estranho, o homem e levou o pensar para a eclosão do admirar (Heidegger, 2010: 22).

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É isso que encontro na obra do Rosa. O boi que me viu e que agora tenho que agarrar com a unha se chama Tutameia, e seu João Rosa criou esse boi com tanto capricho que dá é trabalho para cuidar. É um boi cheio de astúcias. Para encarar com mais recursos esta tarefa, aproximei-me do pensamento de Heidegger, buscando situar as questões da astúcia na sua referência com o ser humano, o ser, a linguagem, a arte, num diálogo com a obra do pensador e a do escritor mineiro, atravessadas pela presença dos mitos gregos da astúcia. No empenho de ser, não ser e vir a ser, carece de ter coragem, e as astúcias, para deixar acontecer o realizar-se poético, que do nada criativo recebe tudo que tem. O que soa na escuta do logos é o destinar-se do ser no tempo: travessia de nonada a tutameia. A astúcia poética é a coragem de saber ser, por isso faz acontecer, traz para a luz, deixa viger. A astúcia poética sabe o tempo de plantar e de colher, de dar e de receber, de amar e de morrer. A questão da astúcia em Tutameia, que ecoa desde seu título, afigura-se nas ilustrações e orienta as tramas das estórias, aponta para várias outras questões, a ela relacionadas. Como fica a astúcia em relação ao destino, à morte, à arte, à ciência, à linguagem? Que pensamento vigora nas páginas deste livro?

No encalço dessas indagações, proponho debruçar-me sobre os mitos gregos da astúcia – Métis, Atena, Hefesto, Hermes e Ulisses – tomados como imagens-questões, para pensar a posição da astúcia diante da Moira, do Logos, do Tempo, da Linguagem, do Mistério, da travessia do entre-ser, procurando apropriar-se do que lhe é próprio. A cada um desses mitos será dedicado um capítulo desta tese, dialogando sempre com as Terceiras estórias. Procuro atentar para as imagens-questões que se manifestam nos mitos da astúcia, escutando a fala e o silêncio da linguagem poética. Estará sempre no horizonte desta abordagem a renúncia a qualquer explicação científica ou metodológica deste ou daquele aspecto demonstrado pela narrativa dos mitos ou pelas estórias rosianas. Buscarei escutar o insondável mistério em que estamos mergulhados, e que nos leva a levantarmos as questões essenciais, diante das quais a arte e os mitos nos colocam com seus enigmas.

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Recorrer à leitura dos mitos da astúcia constituiu-se, na tarefa imposta pela escuta de Tutameia, exercício de leitura de suas estórias, no sentido de operar a verdade da obra. O constante perigo é o de racionalização desses mitos, numa tentativa de utilizá-los para esclarecer o hermetismo das Terceiras estórias. Mas qualquer aplicabilidade do mito neste sentido estaria traindo seu próprio vigor originário, de ao invés de explicar, colocar ao homem sempre e a cada vez novas questões. Os mitos da astúcia serão aqui pensados não como alegorias que representem ou expliquem algo, mas como imagens-questões, que “concretizam o real se realizando em realizações incessantes”, na “tensão permanente entre o ditar da língua e a ausculta da linguagem” (Castro, 2005: 19-20).

A leitura metafísica dos mitos irá buscar sua lógica, explicar sua simbologia, calcular sua significação a partir de elementos antepostos a priori, com a bitola da causalidade e da finalidade. Ou seja, buscará no mito a explicação da realidade, ignorando o vigorar do mistério insondável com que nos defrontamos quando pensamos as questões que os mitos colocam.

As imagens-questões nos mitos concretizam o real se realizando em realizações incessantes. Nas imagens-questões há uma tensão permanente entre o ditar da língua e a ausculta da linguagem. No trânsito desse transe, transam o saber e o sabor de toda sabedoria da poiesis como imagens sonoro-visuais que manifestam o real em caminhos que não conduzem a lugar nenhum, porque o caminho é o próprio real se dando em desvelo velado de realizações. Nesta escuta erótico-amorosa, a linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambiguidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, possibilitando sempre novas leituras e interpretações (Castro, 2005: 19-20).

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Capítulo 1

A barriga do rei

E Métis permaneceu dissimulada nas entranhas de Zeus.

Détienne & Vernant

A palavra métis quer dizer medida: “Provém de uma raiz verbal que significa ’medir’, o que pressupõe ‘cálculo, conhecimento exato’. Este sentido se conservou em métron, ‘medida’” (Brandão, 2008, v. 2: 121).

Na mitologia grega, a astúcia é personificada pela deusa Métis, Astúcia ou Sabedoria, primeira esposa de Zeus. Filha de Oceano e Tétis, “símbolo do poder e da fecundidade feminina do mar” (Brandão, 2008, V. 2: 181), provém das águas, potência fluida que se adapta às circunstâncias, maleável, cuja profundidade não se deixa entrever na superfície. Métis traz uma Sabedoria oracular, é capaz de prever as possibilidades possíveis e, a partir desta previsão, saber a medida do que deve ou não deve ser feito para se obter êxito naquilo que se almeja realizar. Explicam os estudiosos:

Métis diz respeito ao futuro considerado no sentido aleatório; sua palavra tem valor hipotético ou problemático; ela aconselha o que convém fazer para que as coisas tenham chance de chegar de um jeito mais do que de outro; ela diz o futuro, não como o que já está fixo, mas como desdita ou sorte possíveis, entregando os meios de que dispõe seu astucioso saber para fazê-lo virar para o melhor mais do que para o pior (Détienne e Vernant, 2008: 98).

Na estória do mito de Métis, conta-se que ela deu de beber a Crono uma erva que o fez desengolir os filhos, dentre eles Zeus, que pôde assim tomar o poder do pai. Entronado, Zeus se casou com Métis, e num jogo de amor engoliu a companheira, que passou a vigorar dentro dele.

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Tendo Métis em si mesmo, Zeus dispõe da astúcia necessária para enfrentar os desafios inesperados que a existência oferece, vencer os adversários e reger o seu domínio.

Engolindo-a, Zeus fecha sobre Métis o liame que a retém para sempre prisioneira; ele a fecha definitivamente dentro de si para que, incorporada à sua própria substância, ela lhe entregue a todo instante este conhecimento dos azares do futuro que vai dar-lhe o domínio sobre o curso móvel e incerto dos acontecimentos. (Détienne e Vernant, 2008: 103).

Figura 4: Nascimento de Atena. Ânfora ateniense, circa 550 a. C. Louvre, Paris. Disponível em: http://images.wikia.com/fantasia/pt/images/7/70/Metis_greek.jpg. Acesso em: 15 jul. 2012.

Na origem do domínio de Zeus, vigorando em seu reinado, encontra-se Métis dissimulada, que gera Atena. O senhor dos deuses, aquele que detém os raios que a tudo clareiam, encontra-se sentado no trono que traz em sua base a sabedoria fluida de Métis, que o orienta na lida com o inesperado. A abertura para o desvelamento da verdade vigora na latência deste saber velado, a potência de Zeus assenta-se sobre o retraimento de sua esposa, Métis, que

59 sabiamente e na encolha aconselha o monarca sobre as possibilidades de ser o senhor e ter o domínio do reinado. A astúcia de Métis, na sua latência escondida, incorpora-se no poder de Zeus. Métis é, pois, a prudência, a astúcia que medita, engendrada no ventre de Zeus e fulgurante nos olhos de Palas Atena. Na barriga do deus ela vigora, e nos olhos da deusa, cujo raio vislumbra a medida do brotamento das coisas.

Dissimulada nas entranhas de Zeus, Métis confere ao soberano a medida do improvável, tornando-o capaz de reger sobre céus e terra, deuses e homens, articulando seus poderes de forma harmoniosa, para que os conflitos sejam resolvidos com justiça. Estando em seu âmago provido de astúcia, Zeus pode enfim reinar sobre o imprevisível. “Métis é uma faculdade do espírito de Zeus e Zeus tem incorporada a seu espírito essa faculdade nomeada Métis tanto quanto Métis é Métis com uma existência e uma história outras que não são nem a existência nem a história de Zeus” (Torrano, 1992: 76, apud Castro, 2011: 165).

Diz a estória do mito que, após se casar com Métis e a engolir, Zeus tomou como segunda esposa a Têmis, uma das Titânidas, filha de Urano e Gaia. Ao contrário de Métis, cuja atuação se dava nos terrenos da incerteza, Têmis personifica a Lei Eterna, a imutabilidade das coisas, o inexorável. Vinda da essência das águas, Métis é fluida, polimórfica, vai seguindo seu curso conforme a caída do solo. Vinda da essência da Terra, Têmis é fixa, categórica, “ela anuncia o futuro como se ele estivesse já escrito; exprimindo o que será no modo do que é, ela não formula conselhos, ela pronuncia as sentenças; ela ordena ou ela proíbe” (Détienne e Vernant, 2008: 98).

Estes dois casamentos complementam-se para assegurar a supremacia do novo rei dos deuses, como se respondesse as duas divindades associadas em um casal de potências solidárias e opostas. Uma e outra são divindades oraculares cujo saber abrange todo o ciclo do tempo; uma e outra, por sua relação com as realidades cósmicas primordiais que são a água e a terra, dispõem de poderes anteriores ao reino de Zeus e mesmo ao nascimento do jovem filho de Crono (Détienne e Vernant, 2008: 97).

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Têmis e Zeus geraram as Horas, que regem as estações do ano, e as Moiras, que regem o destino. As Horas e as Moiras são, portanto, providas de astúcia, pois todos os filhos de Zeus são providos da astúcia nele incorporada. Mas o mito não fala de um passado remoto, e sim do que a cada instante irrompe na travessia humana entre vida e morte, no combate originário e incessante entre dia e noite, luz e trevas. O combate originário, o pólemos de clareira e floresta não cessa nunca de vigorar, e nele o ser humano é lançado e se lança na procura de realizar-se.

Também Zeus, o deus diurno do raio, não é um vitorioso definitivo. Seu domínio se funda na força dos Titãs que sustentam o Olimpo. É que a luz recebe a luminosidade de seus raios de um combate com as trevas. Uma claridade sem sombras é uma onipotência impotente. Não ilumina, cega. Luz e trevas, espírito e matéria, história e natureza, céu e terra, o racional e o irracional, ordem e caos, eros e penia recebem a potência de seus poderes de ser de um combate sem tréguas. Neste combate originário toda vitória é aparente. Trata-se apenas de fenômeno de superfície (Leão, 2010b: 114).

O domínio de Zeus se funda também nos conselhos de Métis, que dentro dele vigora e vige sob seu trono. Métis vigorando encolhida, entranhada em Zeus, como uma imagem-questão, diz do retraimento do que não sendo, somos. “Retrair-se não é um nada puramente negativo. Retraimento pertence à dinâmica do próprio pensamento. O que se retrai, até nos afeta e nos reivindica mais do que qualquer objeto” (Leão, 2010b: 115). O pensamento só se dá enquanto se retrai como mistério.

O mito de Métis, como imagem-questão do que, ao se dar, se retrai, convoca-nos a pensar o sentido da verdade, como desvelar do velado. O encobrir-se não é fenecer, é permanecer na latência, como possibilidade de vir a ser. O que permanece encoberto é o que não se ilumina, mantém-se na sombra, para manter-se a luz. “É no encobrir-se que predomina a tendência para descobrir-se” (Heidegger, 2008: 239).

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Através das sábias ações dos seres sobrevém a métis, da qual cada um recebe um quinhão, como um dote. A filha de Oceano e Tétis, Métis, dispunha desta essência. Deixou-se engolir para que não lhe nascesse o filho, que destronaria seu marido, entronizado por ela. Engolida, no entanto vigora. Pensemos um pouco mais no mito de Métis, como imagem-questão do que vige e vigora no retraimento, concedendo potências de ser e ter ao senhor dos deuses e homens. Como este mito ecoa nas estórias rosianas?

Ouro de tolo

A imagem da mulher enclausurada sob o trono do monarca lembra Flausina, do conto “Esses Lopes”, encurralada no canto do catre pelo marido. As astúcias da Métis deglutida manifestam-se na estória dessa mulher-menina, assimilada a seus opressores. Sua afirmação de felicidade contrasta com os infortúnios que ela vai narrando, e a cada nova revelação refaz-se o espanto diante de tamanha violência. Ouvimos dela mesma a própria estória.

Nascida linda e pobre, passou por muitos trabalhos nas mãos daqueles, mas agora forra e desforrada, querendo gozar a vida. É ela quem diz: “Mas, primeiro, os outros obram a estória da gente” (Rosa, 1967: 45). Levada à força pelo Zé Lopes, ainda menina, virgem e sonhadora, tudo o que depois obrou ela vê como vingança de quem colheu o que plantou. Continuamente vitimada pela violência, incorporou do agressor o desejo de poder e a falta de escrúpulos. Diante do poderio dos valentões, ela percebera: “A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor” (Rosa, 1967: 45). Caladinha no seu canto, ela estava “abrindo e medindo” (Rosa, 1967: 45). Caçava um jeito de virar o jogo.

Ninguém põe ideia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de catre, com o volume do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o ressonar, qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, delicada moça, cativa assim, com o abafo daquele, sempre rente, no escuro. Daninhagem, o homem parindo os ocultos pensamentos, como um

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dia come o outro, sei as perversidades que roncava? Aquilo tange as canduras da noiva, pega feito doença, para a gente em espírito se traspassa. Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer outras larguras (Rosa, 1967: 46).

O marido contratou uma mulher para vigiá-la, mas Flausina engabelou a ambos: “Regi de alisar por fora a vida. Deitada é que eu achava o somenos do mundo, camisolas do demônio” (Rosa, 1967: 46). Pariu do marido um filho, também Lopes, e com isso ganhou-lhe a confiança. Com mentiras e engodos livrou-se da carcereira e ainda levou o marido a matar um parente, outro Lopes. Em seguida levou o próprio marido à morte, misturando ervas venenosas em seu de beber. Assim como Métis fez a Cronos, Flausina fez a Zé Lopes, envenenando-o com potentes drogas, para seu desgoverno.

Na cachaça, botava sementes de cabaceira-preta, dosezinhas; no café, cipó timbó e saia-branca. Só para arrefecer aquela desatada vontade, nem confirmo que seja crime. Com o tingui-capeta, um homem se esmera, abranda. Estava já amarelinho, feito ovo que ema acabou de pôr. Sem muito custo, morreu. Minha vida foi muito fatal. Varri casa, joguei o cisco para a rua, depois do enterro (Rosa, 1967: 46-47).

Em breve os herdeiros vieram. Um primo e um irmão do defunto, mais dois Lopes, pleiteavam a viúva. Levou-a o mais esperto. “Padeci com jeito. E o governo da vida? Anos, que me foram, de sutil sujeição, custoso que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve” (Rosa, 1967: 46). Deu-lhe talvez dois filhos. Mas, embebedando-os com doçuras, ela pôs um contra o outro e, em duelo, mataram-se, deixando-a coberta de posses. Restou o Lopes mais velho, que levou-a para casa. Ela, com malinas lábias, com ele casou no papel e, enchendo o raposo de excessos, cama e mesa de delícias, levou-o ao falecimento (com este são cinco assassinatos, friamente calculados e arquitetados, sem sujar as mãos de sangue: primeiro o Zé Lopes mata o parente, depois o próprio é envenenado, depois o irmão e o primo em duelo se

63 despacham, depois enfarta o velhote). “Tudo o que é bom faz mal e bem” (ibidem: 47). Os filhos, Lopes também, arrenegados, ela os manda para longe.

Agora Flausina restava rica, namorando um moço lindo, sonhando em ter outros filhos. As tantas mortes nas costas tornaram-na poderosa e rica, a rata venceu os gatos, e agora um gatinho mimava. Mas ainda assim, ela indaga: “De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta da questão da saudade?” (Rosa, 1967: 48).

A trajetória de Flausina lembra a trajetória de Charles Foster Kane, o Cidadão Kane do filme de Orson Welles (1941). Também de origem humilde, do campo, Kane torna-se rico, funda um império midiático, sua riqueza é tanta que ele passa a querer adquirir tudo que o dinheiro pode e não pode comprar, inclusive o amor das pessoas. Constrói um suntuoso palacete, Xanadu, que enche de obras de arte e animais exóticos. Mas, como Michael Jackson em Neverland, quanto mais poder ele alcança, mais fica amargurado e solitário. Ao fim da vida, profere uma palavra enigmática: Rosebud.

Atrás do significado desta palavra um jornalista percorre o passado de Kane, pintando-nos seu fragmentado retrato. Os personagens não descobrem a resposta, apenas o público atento vê nas últimas cenas a palavra dissolvendo-se no fogo onde queimavam a tralha, gravada no trenozinho com que ele brincava. Rosebud é tutameia, um brinquedinho de nada, a memória da infância perdida, que na morte ele encontrava.

Kane e Flausina são vencedores do ponto de vista dos valores dominantes. Mas ambos ressentem-se de não terem conseguido o que sempre buscavam: a felicidade. Porque se aliaram à astúcia do capital, do poder, do desmando dos opressores, por mais que acumulem, sempre sentem que algo está faltando. É que no fundo eles percebem que se esqueceram do sentido do ser, pois quando pareciam estar construindo um novo destino, de si mesmos cada vez mais se afastavam. Porque a medida de seu agir era o querer ter, não o querer ser. Seu agir não tinha como medida o ético. E “ser feliz é procurar e deixar vigorar o ético” (Castro, 2011: 186).

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Ser feliz é ser vida, e não mero vivente. O horizonte da vida é a morte. Caminhar para a plenitude é experienciar a dobra de estar sendo até alcançá-la. “De tanto olhar para o longe, não vê o que passa perto. Subo monte, desço monte, minha vida é só deserto” (Meireles, 1958: 30). A travessia da vida se dá sempre no entre do riachinho barrento. A vida é destino dado, a morte é a certeza do incerto. No destinar-se, o homem se doa como sentido, na medida do que lhe foi destinado: ser feliz – morrer. O não ser de cada sendo vigora no nada acontecendo. Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Viver é pender para a banda do ser, que vigora no tempo, a caminho da linguagem, sua casa. Felicidade é a renúncia ao ter para viver a liberdade de ser, experienciar a aprendizagem, amar para que surja a figura.

No combate de vida e morte, pensar a medida da Cura é a astúcia poética, que atua na manifestação do ser e na escuta de seu sentido, a caminho de consumar o que lhe é destinado: morrer – ser feliz. Como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Como permanecer encoberto face ao que nunca declina? Flausina vive a ilusão de Midas, esquece o sentido do ser, e é triste. Quem sabe um beijo de amor verdadeiro poderia desencantá-la, feliz para sempre?

Em que pesem as palavras, o que vale mesmo neste conto são os silêncios: “Dito: meio se escuta, dobro se entende” (Rosa, 1967: 46). Flausina desde o princípio de sua fala se gaba se ser sacudida e de ter talentos, fita no cabelo e dinheiro na caixinha. “Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo” (Rosa, 1967: 45). Ao narrar sua estória vai removendo véus, se descortinando, e o que se vê afinal é a dança sinuosa de uma engolidora de homens. Métis, Sereia, Diaba, Mãe D’Água? O discurso de Flausina escorre entre os dedos. Trataremos das astúcias da linguagem quando abordarmos o mito de Hermes, no quarto capítulo. Por ora, atentemos para a fala da moça. Ela, com malinas lábias, tenta levar o leitor a inocentá-la da culpa de exterminar uma numerosa família de valentões, os “Irmãos Dagobés” (Rosa, 1981: 22) do pedaço. Flausina é o demo de saia. Ela apostou no ter, se pensa por cima da carne seca, embora já desde sempre dance a dança da morte. Iludida, ainda não ouviu o grito de Sileno, cantado no mito de Midas: 65

O rei Midas se embrenha na floresta em busca de Sileno, o sábio preceptor de Dioniso. Uma angústia o move: É que nem o viver, nem o poder, nem o ter asseguram a felicidade dos homens. Por isso Midas vai à floresta em busca de Sileno, com uma pergunta angustiante: O que então o homem tem de fazer para ser feliz? Sileno responde: (Átlios brotós) Mísero mortal, por que queres sabê-lo? O que o homem pode fazer para ser feliz é não ter nascido, mas, uma vez que já nasceu, só lhe resta morrer (apud Castro, 2011: 188).

A lábia envenenada de Flausina levou ao destino fatal um clã odiado, e o doce sabor da vingança estala de suas palavras, que não demonstram nenhum arrependimento, antes orgulho e preconceito. Se acha dona do seu destino. Será mesmo? Falta o que ela não conta, quer esquecer, o que de mal houve e resta em sua memória. “Para trás, o que passei, foi arremendando e esquecendo” (Rosa, 1967: 45). Os abusos, violências e covardias que a viúva negra possa ou não ter sofrido na fala de Flausina não se encontram. Sua vaidade e brio não lhe permitem narrar o borrado da vida, esquecer as malas cosas é o corretivo dos olhos, o ruge na face é o querer ser feliz.

A presença da lembrança é tão [...] abrangente que nos esquecemos da memória como velamento-silêncio-esquecimento. Esquecer não significa deixar de ser, mas ser a memória só no âmbito do lembrar, isto é, do ente, do desvelado, da luz da clareira do desvelado. Ficamos tão empolgados pela luz da razão que esquecemos a clareira e o que nela se ausenta: o velado, o ser (Castro, 2011: 201).

Com a narrativa, busca absolver-se? Lançada no seio da violência, mais que o instinto de sobrevivência, impulsionou-a o ódio. Pensando em obrar a morte, deixou escapar a vida. A estória de Flausina fala dos descaminhos que nos levam a ser o que não somos, sem nunca deixarmos de ser o que já fomos, no consumar-se de nosso destino histórico. O trono manchado de sangue para sempre será marcado. O que vale mesmo é a inocência de já nunca ter sido, virgindade de menina, rosebud, tutameia.

66

O ente que irrompe na clareira e é iluminado pela luz de Apolo não pode nem se opõe ao ente pensado no âmbito da clareira e o que nela se ausenta. O ente é ambíguo também. Se não fosse nem poderia ser, ser o ente do ser. Vigendo no vigor do ser, ele é também ambíguo: se articula como o que se descobre no desencobrimento da clareira da floresta (Castro, 2011: 201).

A fala ambígua de Flausina mostra e encobre a complexidade da realidade realizando-se em realizações de vida e morte, no seu empenho e procura de querer ser feliz, realizar-se. Para sair da clausura, quis manipular seu destino, com frieza, racionalidade, cálculo. Sua frivolidade compara-se à dos pesquisadores do “Conto alexandrino”, de Machado. Com seus caçadores aprendeu os ardis da caçada, como os ratos da anedota chinesa sobre o sentido grego de caos, contada por Leão (2010b: 42-47). Mas, para o inimigo que não tem método, não há recurso. De vítima a justiceira, Flausina saiu do espeto e caiu na brasa. Iludida pelo brilho do ouro, trocou o ser pelo ter. Danou-se.

O olho da coruja finaliza esta estória, o olhar que perscruta o velar e o desvelar da verdade, que sabe as ambiguidades dos entes, da realidade, do ser, manifestando-se no eclodir para o aberto da luz e no que se esconde na clareira. Do saber de Atena nos vêm as artes, a técnica, a sabedoria gerada na união de Métis com Zeus. Mas também poderia estar aí o caranguejo, com seu andar tortuoso e sua maestria em tecer armadilhas invisíveis.

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A medida do destino

Em última instância trata-se de na questão da medida, em que já sempre nos movemos e nos move, pensar a moira, o que como medida é a medida do que nos é próprio (Castro, 2009).

Mirem a estória de Flausina. Mirem as estórias do Rosa. Mirem e vejam: em um momento da vida que seja, a gente encara o próprio destino. A pauta que tem que seguir para se apropriar do próprio. Porque não adianta o destino se não houver consumação. Às vezes o bolo encroa. Para o pulo do gato, carece de ter coragem – e dom. Cada quinhão recebido é aquilo de que se dispõe para que cada destino se realize. É como diz Riobaldo:

Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, o tempo todo, o que eu pelejei para achar, era uma coisa só – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num papel... (Rosa, 1986: 427).

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Para realizar o destino, o homem precisa, ao agir, pesar a medida de suas ações, no sentido de se apropriar do que lhe é próprio. Para a plena realização do destino, é preciso pesar a medida da moira, da dor e delícia de ser o que é. Cabe ao homem deixar-se tomar por esta medida, o limite de seu destino, para livre e amorosamente agir. Origem e fim encontram-se quando o homem se deixa arrebatar pelo extraordinário e enfim percebe a claridade da luz que alumia e permite enxergar. “Moira nunca é uma questão de escolha da vontade, mas uma questão de ser tomado pelo extraordinário e é neste ser possuído que se dá o acontecer poético” (Castro, 2008a).

A tradução tradicional de moira é destino. Mas o que compreender como destino enquanto a medida da dobra de ser humano e Ser? A moira não diz apenas um destino pessoal, aquele quinhão que cada sendo recebe. Toda moira provém originária e concretamente de um genos. E este, como Gênesis, diz do nascer em que se dá toda a physis. Porém, não podemos esquecer que a physis ama velar-se. A própria physis se dá uma medida: o amar. O amar é o a-ser-pensado: o critério, a medida (Castro, 2009).

A physis ama velar-se, e o pensamento leva o homem a se encantar com o descobrimento, e a verdade quer se manifestar, e pensamento quer muito percebê-la, e na nossa cabecinha eles dançam um tango: a vida e a arte: o amor. O brotejar incessante da physis, que ama velar-se, que é e não é, vigora assim como Métis, que permanece dissimulada nas entranhas de Zeus e se manifesta em suas ações realizadoras. Este amor antropofágico instaura Mundo, define o destino e o orienta o percurso do tempo. Tudo na physis é e não é.

Ninguém pode escapar do próprio destino, mas para que ele se realize cada um deve fazer a sua parte. O esquecimento do ser leva o homem a alhear- se de si, descomprometer-se de sua existência. Bate ponto, cumpre regras, caga, trepa e dorme. Desliga-se do pensamento. Zumbiza. A arte sacode os homens e espanta esta letargia, ao operar a verdade da obra, que instaura seu vigorar originário, o amor como medida.

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É o que ocorre na Odisseia, quando Ulisses astuciosamente encara os maiores desafios já vividos por um mortal. É isto o que ocorre em Tutameia, quando a gente se liberta do círculo-de-giz-de-prender-peru, astuciosamente se apropria da existência, e sabe que nada sabe de si. Assim reflete o eu- personagem, diante da amada:

De dom, viera, vinha, veio-me, até mim. Da vida sem ideia nem começo, esmaltes de um mosaico, do mundo – obra anônima? Fique o escrito por não dito. Sós, estampilhamo-nos. Tem-se de a algum general render continência. Ei-la, alisa a tira da sandália, olha-se terna ao espelho, eis-nos. Conclua-se. Somos. Sou – ou transpareço-me? (Rosa, 1967: 141).

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Capítulo 2

Olho de coruja

A coruja – confusa e convexa – belisco que se interroga: cujo, o bico, central.

(Rosa, 1985: 67).

A coruja que ilustra Tutameia, como vimos na Introdução, assemelha-se muito à imagem deste animal impressa em uma das faces do dracma, antiga moeda de Atenas, consagrada à deusa de olhos glaucos. A referência de Atena a esta ave é assim explicitada por Heidegger (1985: 2):

O olho de Atena é o olho que aclara e resplandece. É porque lhe pertence, como um signo do que ela é, a coruja [...]. Seu olho não tem somente o ardor da brasa, ele atravessa também a noite e deixa visível o que seria, de outra forma, o invisível.

Os esmartes olhos de Atena vislumbram a claridade. Seu olhar flamejante traz o brilho do fogo, que incandesce a liga do bronze de que são feitas suas armas. “Quando o calor do fogo esquenta a chaleira, meu Mocinho, tudo vai virando bolha...”, diz Rosalina, em Corpo de baile (Rosa, 1994: 787). O fogo de Atena que alumeia seu olhar vigora em seu pensamento, que como um raio ilumina o fim do túnel. Mas, o que nos diz mesmo o mito de Atena? Que questões a deusa nos coloca? O que ela torna pressente?

Atena é antes do mais nada a deusa da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside às artes, à literatura e à filosofia de modo particular, à música e a toda e qualquer atividade do espírito [...]. É também no domínio das atividades práticas a guia das artes e da vida especulativa. E é como deusa dessas atividades, com o título de Ergáne, “Obreira”, que ela preside aos trabalhos femininos da fiação, tecelagem e bordado (Brandão, 2008, V. 1: 138).

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Conta o mito que, certo dia, sentindo uma terrível dor de cabeça, Zeus pediu a Hefesto que com o machado lhe rachasse a nuca. De lá despontou Atena, cintilante, em armas de bronze, soltando um grito de guerra, reverenciada pelos imortais. Era a filha de Métis, engolida grávida, que nas entranhas do deus engendrara sua filha armada. Nascida diretamente da cabeça de Zeus, não tem marido nem filhos. Ela é a nascida em armas, encouraçada. O bronze do machado de Hefesto quebrou na cabeça do soberano a abertura por onde saiu a deusa, de bronze armada. Filha de Métis, viera em auxílio do pai e dos homens.

Nascida da cabeça de Zeus, a força atuante da deusa não desvia do alvo por qualquer canto da sereia. O bem-suceder da empresa é seu horizonte. Sua armadura, seu escudo, seu elmo protegem a essência do que nela vigora, assim como a carapaça protege a carne mole do caranguejo, como o osso envolve o tutano. Mas a armadura de Atena é inquebrantável. Pertence a ela o que cobre sua carne. A essência de Palas Atena extravasa no brilho de seu olhar, no gume de sua espada, na habilidade de seus dedos, que figuram obras, utensílios e armadilhas. No horizonte da dobra do vir-a-ser, ao olhar de Atena se apresenta a ideia, que ela captura e traz para a luz de sua manifestação, dirigindo as ações dos homens no sentido de apropriar-se da verdade do ser. A proveniência da cultura, da humanidade do homem, é o envio sábio de Atena. Tudo que é mecanismo, o que o homem inventa e funciona, é doação de Atena, a deusa que doa a techné, a arte de produzir coisas que não existem na natureza sem o trabalho do homem. Traz da mãe a capacidade de divulgar as distâncias, do pai guarda o raio, que clareia o encoberto.

Donzela guerreira, sempre armada, sempre virgem, fiel ao pai, como Diadorim, de Grande sertão: veredas. Filha e mãe, jovem e velha, sábia conselheira, como Rosalina, de Corpo de baile. “O que as palavras de dona Rosalina abriam era só uma claridade em seu espírito – uma claridade forte, mas no vazio: coisa nenhuma para se avistar” (Rosa, 1994: 779).

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Do vazio que o olhar de Atena clareia, desvela-se o que ainda não se vê, mas já se pressente em seu manifestar. Atena sabe a medida do limite que reúne o que há na permanência do que lhe é próprio. Sob seu olhar as coisas vêm à presença, mostrando-se em sua plenitude, divulgam-se seus contornos, que as identificam e diferenciam. O saber de Atena direciona a produção do homem no sentido da plena realização do seu destino.

Quem constrói uma casa ou um navio, quem funde um cálice sacrificial des-encobre o a ser produzido [...]. Este des-encobrir recolhe antecipadamente numa unidade o perfil e a matéria do navio e da casa numa coisa pronta e acabada e determina daí o modo de elaboração. O decisivo da techné não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a techné se constitui e cumpre em uma pro-dução. [...] A técnica vige e vigora no âmbito onde se dá descobrimento e des-encobrimento, onde acontece aletheia, a verdade (Heidegger, 2008: 18).

A ação da deusa doa ao homem o instrumento, a técnica e a magia para montar a fera e conduzir o carro, aproveitando sempre as melhores oportunidades. Dizem que foi Atena Hippia quem forjou o freio com que Belerofonte domou Pégaso, o que lhe possibilitou derrotar a Quimera e as Amazonas. O freio divino, forjado no fogo, detentor de poderes mágicos, traz em si esta força escondida, que o torna capaz de domar o cavalo alado.

O freio que Atena dá a Belerofonte [...] permite dominar um animal de reações imprevisíveis. É no modelo mítico deste instrumento que reside o segredo do modo de intervenção próprio de Atena: ela é a potência que confere aos homens, sob a forma de um instrumento, um poder ao mesmo tempo técnico e mágico sobre o animal de Posídon (Détienne e Vernant, 2008: 179).

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Não é à toa, porém, que Atena instruiu Belerofonte a apresentar o cavalo arreado e com o freio a Posídon, e em sua honra sacrificar um touro. Atena respeita a força incontida da physis, em cujo limite de velar e desvelar elabora astúcias para que o homem supere os obstáculos e realize o que lhe é destinado, amanse o cavalo, fique mesmo amigo dele. É como diz o Rosa:

As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido com isto, compreenderá certamente o que quero dizer. Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!” Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor (Rosa, 1994: 32).

Como os vaqueiros, os navegantes precisam galgar o ímpeto de Posídon, e assim é que Palas Atena doou aos homens também a primeira embarcação, o Argos, ensinando-os a construí-lo e conduzi-lo.

A inteligência navegadora sabe conduzir reto o navio, sem jamais se desviar da rota que ela de antemão meditou seguir. Todas as intervenções de Atena se situam do lado do piloto, de sua parte ativa na navegação, de sua inteligência astuta e técnica, na qual a filha de Zeus pode legitimamente reconhecer um reflexo de sua própria métis (Détienne e Vernant, 2008: 204).

Esta dupla competência da deusa guerreira, de construir e conduzir, são manifestações de sua métis, de sua inteligência sagaz em conceber (médesthai) projetos e os instrumentos para realizá-los, “por força de uma operação de inteligência ao mesmo tempo em que por uma atividade de caráter técnico” (Détienne e Vernant, 2008: 217). Diante do gigante Adamastor, da pedra no meio do caminho, eis que surge Atena e inventa a alavanca, servindo-se de um pedaço de pau. Quebrar o galho é a especialidade de Atena, a do jeitinho.

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O relevo de Atena

O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos. (Rosa, 1986: 8).

A imagem da coruja no miolo de Tutameia presentifica Atena, ao reproduzir a figura de um artefato da Grécia Antiga consagrado à deusa. Há ainda uma outra famosa antiga imagem da filha de Métis, um relevo que retrata a deusa, presente no Museu da Acrópole, em Atenas:

Figura 5: Atena, relevo do Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C.

Disponível em: http://palavrasinconjuntas.blogspot.com. Acesso em: 14 mar. 2012.

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Nas palavras de Détienne e Vernant (2008), o relevo de Atena na Acrópole, acima figurado, representa a deusa meditando sobre as futuras batalhas, mirando o limite e buscando em seu espírito os recursos para lograr o êxito almejado nas disputas de que participar.

É porque a vitória é incerta e porque os jogos se desenrolam num espaço aberto que Atena “medita”, mas, desta vez, no sentido grego de médesthai, que participa estritamente da atividade intelectual da métis. Apoiada sobre a lança, a cabeça inclinada para o limite que marca a linha de partida, a Atena da Acrópole é a imagem, não da Razão, mas da Prudência, da phrónesis, procurando prever as peripécias do percurso e ocupada em pensar na corrida que vai disputar. Com seus pontos perigosos, com seus tempos críticos, o espaço agonístico é o lugar onde todas as reviravoltas são possíveis, onde o caminho fixado pelas regras do jogo se dobra em todas as vias que a métis saberá traçar e abrir. Espaço móvel e polimórfico, onde a intervenção de Atena toma necessariamente a forma que lhe dá, na navegação, o jogo da métis, nas lutas, com os movimentos do mar e o sopro dos ventos (p. 209).

Já para Heidegger, o olhar da deusa se volta para o limite, seus ouvidos atentam para a escuta verdadeira. Esta deve ser a postura do artista, para que de suas mãos surja o operar da obra, em consonância com o concerto da physis.

Em direção a que o olhar meditativo da deusa se vira? Em direção à borda, ao limite. O limite não é somente o contorno e o enquadramento, não é somente o lugar onde alguma coisa está presa. Meditando sobre o limite, Atena já tem em vista aquilo em direção a que a ação humana deve de antemão olhar para trazer o que há na visibilidade de uma obra (Heidegger, 1983: 2).

Dirigindo seu olhar para o limite, Atena vislumbra a physis, para antever “aquilo pelo que alguma coisa é reunida no que ela tem de próprio, para aparecer em toda sua plenitude, para vir à presença” (idem).

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O limite liberta para o desvelado. Através de seu contorno, à luz da visão grega, a montanha põe-se em seu erguer-se e repousar. O limite que fixa é o que repousa – a saber, na plenitude da mobilidade – e tudo isto vale para a obra no sentido grego do ergon [obra], cujo “ser” é a energeia, que reúne infinitamente em si mais movimento do que as modernas “energias” (Heidegger, 2010: 199).

É na direção do olhar de Palas Atena que deve se voltar o homem que busca a realização plena de seu destino histórico. O olhar de Palas Atena concede ao homem o envio da techné, modo de saber que antevê a obra, ainda velada, a ser produzida pelo artista.

A palavra techné nomeia, muito mais, um modo de saber. Chama-se saber: o ter visto, no sentido amplo de ver, o qual significa: perceber o que se presentifica como um tal. A essência do saber repousa, para o pensar grego, na aletheia, isto é, na revelação do sendo. Ela porta e guia toda relação para com o sendo. Como saber experienciado pelos gregos, a techné é um pro-duzir do sendo, na medida em que ela o traz para diante, isto é, ao desvelamento do aspecto que lhe é próprio, como o que se presentifica enquanto tal, a partir do velamento. Techné nunca significa a atividade de um fazer. [...] O artista não é um technités pelo fato de ser também um artesão, mas, sim, pelo fato de tanto o elaborar obras como também o elaborar utensílios acontece naquele pro-duzir que, de antemão, deixa vir para diante o sendo, para sua presença a partir do seu aspecto. Contudo, tudo isso acontece em meio do próprio auto-nascer do sendo da physis (Heidegger, 2010: 126-127).

Arte e astúcia, portanto, encontram-se na techné, mais que a habilidade do artesão, orador ou engenheiro, mais que as regras de gramática, de navegação ou de trânsito; mas: o arrebatamento a que se doa o artista para a eclosão da verdade, aletheia, na medida em que, para agir consoante o que soa, é preciso saber ouvir e saber calar, mas também saber fazer e saber falar.

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O raio que emana do olhar da filha de Zeus clareia o que se deixa clarear e reúne a tudo em uma direção que norteia, um sentido que governa as ações dos homens. Atena doa a techné, em seu pertencimento misterioso com a physis. Aquilo que se revela e desvela na luz do pensamento deixa sempre ainda no limite o a ser desvelado, que se dissimula e se retrai, como o que não se deixa calcular, o obscuro, o silêncio do que não se disponibiliza ao homem. Apesar de, na sociedade de hoje, o que não é calculável não ser levado em conta, ainda assim, vigora a cada instante o mistério, de onde o artista arranca brotos de quase nada, ossos de borboleta, quiquiriqui, tutameia, nonada, o lavrar da ideia em obra de arte. Aquilo que já é se dá a ver ao homem quando ele pensa, quando ele joga a luz do fogo do pensamento no aberto da clareira, trazendo para a claridade aquilo que demorava no recolhimento. Atento ao envio sábio, o homem que escuta não a si, mais ao logos, é o homem que pensa, e pensando é. No pensar advém a ideia, o envio sábio, desvela-se a verdade do ser, e então ele traz para a presença do aberto aquilo que surge no pensamento.

O pensador, tomado pela essência da ação, deixa-se envolver pelas provocações da realidade, do ser, e toda vez que surge uma oportunidade para que, tomado por uma posição, operem-se as possibilidades que ela oferece, sem se importar com os perigos, decide agir. Ainda que, como já disse o pensador-poeta Guimarães Rosa, “Viver é muito perigoso” (Rosa, 1968: 16) (Castro, 2011: 19).

Para que a ação humana aconteça no sentido da realização de seu destino, é preciso que ele sempre e a princípio perceba o a que ele está destinado, que ele medite sobre a sua ação, vislumbrando no horizonte do limite de sua finitude o incessante vigorar da physis, que traz para a luz o que sempre esteve encoberto e que, entretanto, nunca se despe de todo. O olhar preliminar constitui já o fazer do artista, que mira naquilo que “mostra a forma e dá a medida, mas que é ainda invisível, e que deve ser preliminarmente engendrado na visibilidade e perceptibilidade da obra” (Heidegger, 1985: 6).

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Meditar é deixar-se ser possuído pelo mistério, pelas questões, é abandonar-se ativamente à invasão e à posse das e pelas questões. Elas, se meditarmos, se aproximarão silenciosas e sub-reptícias tomando posse de nós no silêncio e repouso pleno de fala e sentido. É o agir ético-poético do silêncio. Sua etimologia é a raiz indo- europeia med-, com o sentido de pausar, refletir, medir, pesar, julgar e cuidar de, a mesma que originou a palavra médico. (Castro, Meditação, 1. In: Castro, Dicionário de poética e pensamento.)

A meditação, a pre-meditação já constitui o agir poético, que co-responde ao apelo da physis, que ama velar-se. Por isso os grandes poetas são grandes pensadores, mais que técnicos da linguagem. O que vigora na obra de arte produzida por Guimarães Rosa toca a todo homem humano, porque em sua obra ele medita sobre as questões que nos movem em nossa travessia.

Nós sertanejos somos [...] tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer. Gostaríamos de tornar a explicar diariamente todos os segredos do mundo. Chocamos tudo que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer. É por isso que normalmente não costumo conversar se antes não posso pensar tranquilamente e até o final. [...] E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias. [...] Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; daí seriam escritos livros melhores. Os livros nascem, quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras. (Rosa, 1994: 44.)

De acordo com Platão, as ideias brotam do hyperouranious topos, expressão que nomeia não o supraceleste, como geralmente se interpreta, mas sim, o lugar superfértil, o nada criativo, o ser. O envio sábio de Atena doa aos homens a techné, modo de saber que co-responde ao mistério da physis. Tomado por este saber, o homem pro-duz a obra poética, promove o desvelamento (aletheia) daquilo que se resguarda.

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Dessa forma, “a obra não se refere em primeiro lugar à coisa elaborada, mas ao que brota e se apresenta numa presença provocante. A obra é antes de tudo uma pro-dução. Manifesta o que surge, eclode e se mostra como tal” (Leão, 2010: 150). Nesse sentido, pode-se compreender a relação entre aletheia, techné, mímese e poiesis, na medida em que a produção poética acontece quando na obra vigora o sentido da verdade do ser que, velando, se desvela. Pois, como afirma Heidegger (1983: 24), “só pode ser con-sumado o que já é”.

Pensando no mito de Atena, encontramos as paragens de onde provêm o pensamento, a arte, a ciência, a habilidade, a sabedoria. Seu olhar clareante ilumina o que se dá a ver ao homem, que desse modo produz sua cultura, governado pelo raio da deusa, que doa o sentido, a techné, o saber por já ter visto. As questões evocadas por este mito iluminam um pouco mais a efígie da coruja, que marca as terceiras estórias.

O projetar a obra na abertura do extraordinário encontra-se manifesto em um conto de Tutameia, que narra a construção de uma casa extravagante, intitulado “Curtamão”, o qual abordarei a seguir.

Casa da palavra

Em três, reparto quina pontuda, no errado narrar, no engraçar trapos e ornatos? Sem custoso, um explica é as lérias ocas e comuns, e que não são nunca. Assim, tudo num dia, nada, não começa. Faço quando foi que fez que começou.

(Rosa, 1967: 34).

Em “Curtamão”, o narrador, que se encontra defronte a uma estranha casa, conta a um interlocutor e a nós leitores a estória da origem daquela obra ali erguida. Paralelamente ao narrar dos fatos, encontra-se uma meditação em que se delineia, como bem apontou a crítica, a base da poética rosiana:

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O conto em questão representa texto de ars poetica, dotado de alcance universal e do especialíssimo alcance referente à escrita de Guimarães Rosa lui-même, sem prejuízo da narratividade: antes, enriquecendo-a. Uma poética de texto que se reveste da narração de um desacerto/rearranjo amoroso, de uma intriga de ações ferozes. Em meio aos acontecidos e ao que está acontecendo e por acontecer, um depoimento que se insinua e vai marcando os caminhos do poietes, útil ao próprio texto em que se instaura e aos demais da obra rosiana (Wanderley: 1996, 20, apud Faria: 2004, 298-299).

O narrador da estória é um pedreiro, que de Atena herdou, portanto, o dom de conceber e produzir a partir daquilo que lhe é dado, no caso, a pedra, de acordo com o modo de saber da arte, techné. Como pedreiro, vivia trabalhando segundo as ordens dos outros, alheios projetos, nos quais se empenhava para seu sustento. Construir não para si, mas para os outros, era este o seu ofício. Produzia utensílios, objetos de troca. Contudo, consigo mesmo, ele sonhava mais era em construir a casa, que lhe aparecera em ideia por sobre o planalto ensolarado, no terreno propício, de propriedade de Armininho, confrontada com o horizonte, querendo acordar da pedra e erguer- se rumo ao firmamento.

Oficial pedreiro, forro, eu era, nem ordinário nem superior; de chegar a mais, me impedia esse contra mim de todos, descrer, desprezo. Minha mulher mesma não me concedia razão, questionava o eu querer: o faltado, corçoos do vir a ser, o possível. Todos toleram da gente só os dissabores do diário e pouco sal no feijão. Armininho possuía o terreno – alto – espaço de capim, sol e arredor... (Rosa, 1967: 34).

Os olhos da deusa voltados para o limite percebem e definem os contornos das coisas, trazem para a luz aquilo que estava encoberto: “o faltado, corçoos do vir a ser, o possível”. Os corçoos do vir a ser é o que Atena vislumbra, meditando diante do limite, des-encobrindo o encoberto.

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O impulso subjacente ao seu arroubo de construção foi um apelo do Ser, atendido em forma de poesia. Seja tratando com pedra e cal, seja trabalhando com palavras, edificando ou narrando, é a vocação do poético que inspira os atos de quem autenticamente constrói (Faria, 2005: 300).

A casa como obra o artista a recebera como envio do Ser a manifestar-se no vazio do terreno propício. Coube a ele executá-la, na medida de seu destino. No tocante à obra defronte, conta-nos o artista que tudo fez que começou quando ele, incompreendido e ensimesmado, topou justo com o Armininho, também desacorçoado, porque sua amada noiva havia sido tomada pelo valentão Requincão. Em já temulenta confidência, o coitado contou choroso ao “copoanheiro” que tinha até guardado o dinheiro para construir a casinha de amor lá deles. Levantando-se num pulo, propôs então o pedreiro, dedo em riste, que eles levantassem a casa. Ele via no possível o impossível. E houve. Diante do desânimo do outro, impôs sua vontade de artista:

Mas ele recedia, ao triste gosto, como um homem vê de frente e anda de costas. Teso em mente forcejei – por de mim arredar desânimo pegador. Enquanto o que, eu percebia: a sina e azo e hora, de cem uma vez: da vida com capacidade. – “A casa levada da breca, confrontando com o Brasil” – e parti copo, também o dele, me pondo em pé, o pé em chão, o chão de cristão. Armininho, só então. Só riu ou entendeu, comigo se adotou. De lá a gente saiu, arrastando eu aquele peso alheio, paixão, de um coração desrespeitado (Rosa, 1967: 35).

E eis que de fato surgiu a obra, trazida para o des-encoberto graças a uma estória de amor, o fogo que tudo nutre. “O autêntico princípio é sempre como salto um salto-prévio, no qual tudo que está por vir, ainda que velado, já se acha traspassado. O princípio já contém velado o fim” (Heidegger, 2010: 176).

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Aquela casa surgiu de uma disputa amorosa. Seu fim, almejado desde o começo, seria abrigar a Helena do Sertão. “Tomara, o extrato desse amor, para ingerir no projeto exato” (Rosa, 1967: 36). O encontro de dois delirantes trouxera para o mundo aquela aparição: a casa. Disse, fez-se.

Deserto do mais, tranquei minha presença, com lápis, régua e papel, rodei a cabeça. Minha mulher a me supor: desrespondi a quem me ilude. Tantas quantas vezes hei-de, tracei planta – só um solfejo, um modulejo – a minha construção, desconforme a reles usos. Assim amanheci (Rosa, 1967: 35).

Mostra-se o herói aqui a projetar, não uma casa funcional, mas uma obra de arte arquitetônica, que corresponda ao apelo do Ser, de onde ela se origina e que sempre pressentia. “O que a poiesis, como projeto iluminante, desdobra no desvelamento e pré-lança no traçar da figura é o aberto que a deixa acontecer e, certamente, de jeito que o aberto, somente no meio do sendo, traga agora este para o iluminar e o ressoar” (Heidegger, 2010: 163).

De alvenel a mestre-de-obras, apareci frente ao Armininho. Tresnoitado, espinhoso, eu, ardente; ele, sonhado com felizes idos. Porque, quem sabe. Confirmou, o caso era fato. Tudo a favor e seguro: escritura, carta-branca, tempo bom, nem chuvas. Dinheiro – o que serve principalmente, mesmo ao sofrido amargurado (Rosa, 1967: 35).

Enquanto construíam a casa, o malvado Requincão, ladrão de noiva alheia, rondava, mas isso servia somente para atiçar ainda mais a gana do construtor, que se colocava também como estrategista, chefe guerreiro:

Vinham avispar, os do Requincão; logo aborrecidos do que olhado. A cova – sete palmos – que antes de tudo ali cavei, a de qualquer afoito defunto, estreamento, para enxotar iras e orgulho. Primeiro o sotaque, depois a signifa – eu redizendo; com meu Tio o Borba, ajudador, e nosso um Lamenha dando serventia. Nhãpá e o Dés

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cavavam os aprofundamentos: o risco eu mudamente caprichava. Um alvo ali em árvore preguei, e tiros de aviso-de-amigo atirávamos. Eu, que a mais valentes não temo, não haviam de me pôr grosa (Rosa, 1967: 36).

Além do bando inimigo, o povo também se metia, estranhava tamanha ousadia. Ao que, o mestre mandou: - “Boto edifício ao contrário!”, e definiu um novo traçado para a famigerada construção: “de costas para o rual, respeitando frente a horizonte e várzeas” (Rosa, 1967: 36). Quanto mais as pessoas estranhavam, mais ele extravagava: ”sem açamouco, diferençado, vistoso, o pé- direito da moda”, e depois, mais: - “Redobrar tudo, mais alto! sobrado!”, e ainda: “a casa sem janelas nem portas – era o que eu ambicionava” (Rosa, 1967: 37).

Surgida de tão intensa disputa, a casa se superava, revirava e endoidecia, empinava, entesava, perdia o rumo, transcendia o habitual e rescendia ao afrodisíaco extrato do amor. E amar é perder-se para encontrar-se, é a escuta do destino, a liberdade de ser, em que se des-vela a verdade e o mistério. Mas aí o próprio sócio, Armininho, deu para trás. Disse que faltava dinheiro, desfez a sociedade, fiado vendeu sua parte ao pedreiro, que se enchia de dívidas, era tido como louco, mas não arredou pé, havia de concluir sua obra-prima.

Me culpavam desta à-sozinha casa, infinito movimento, sem a festa da cumeeira. Seja agora a simplicidade, pintada de amarelo-flor em branco, o alinhamento, desconstrução de sofrimento, singela fortificada. Sem parar – e todo ovo é uma caixinha? Segui o desamparo, conforme. Só me valendo o extraordinário (Rosa, 1967: 37).

Enfim, a peripécia: Armininho foge com a noiva, no caminhão das telhas. Restou nosso herói com a casa, a qual defendeu com bravura da vendeta dos requincães. O povo agora o louvava, como o que trouxera o progresso para o arraial. A dita casa, que lhe rendeu fama e respeito, ele a dedica a Deus, mestre arquiteto dos projetos todos, a quem copia, e conclui a narrativa com o silêncio, a medida da palavra: “E o que não dito” (ibidem: 37). 84

As vicissitudes do real na travessia do destino histórico não impediram a realização do sonho do poeta-arquiteto. Agora, através de sua narrativa, projetam-se nas paredes altas ali erguidas as imagens de batalhas de uma estória de amor e arte. É a verdade do ser que se manifesta naquela casa, elevando de todos os olhos e pensamentos, destinada enfim a abrigar uma escola, farol da luz do esclarecimento. Sua firmeza de ideia fixa, contrária ao fluxo do hábito corrente, foi o que tornou possível a existência da casa.

O traçar precisa retirar-se no peso atrativo a pedra, na dureza muda da madeira, no fulgor sombrio das cores. No que a Terra retoma em si o traçar, este é então elaborado no aberto e assim situado neste, ou seja, posto naquilo que se ergue no aberto como aquilo que se fecha e que abriga (Heidegger, 2010: 138).

Ao construírem a casa, artista e amante duelam com a esfinge do real, a lhes impor desafios. A história se escreve em carne viva, e o pedreiro cava as oportunidades com suas curtas mãos, para cortar o laço e findar a obra: consumar a verdade do ser, desvelar-se, dispor da casa a quem chega, vê e ouve: a festa da cumeeira. Erguida ali a obra, diante dela o herói se encontra, narrador da estória daquela casa e das pelejas de Armininho e sua amada, mote de toda a glosa. Ao amigo as alegrias das bodas, a ele, “de repletos ganhos, essas frias sopas e glória” (Rosa, 1967: 37). O povo agora aplaudia a casa iluminante, comprada pelo governo, seria uma escola. Abria-se um novo horizonte para o arraial, “o progresso”, ali a luz das letras iria difundir mais saber aos meninos. “Mas o mundo não é remexer de Deus? – com perdão, que comparo?” (Rosa, 1967: 34).

Nosso herói tinha, portanto, uma vidinha de rame-rame, mas visionava alguma coisa além, que nem ele mesmo divulgava muito bem o que viria a ser. Só sentia mesmo era um buraco de uma fundura, como se a alma não tivesse almoçado nem jantado por três dias. Sua Festa de Babette foi construir aquela casa. Vamos pensar um pouco nesta obra de arte do cinema, para compreender melhor a grandiosidade da realização daquela obra para o artista pedreiro.

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No filme do diretor dinamarquês Gabriel Axel (1987), inspirado em um conto da escritora sua conterrânea Karen Blixen, Babette é uma parisiense que vive em um isolado vilarejo da gelada Dinamarca, trabalhando como doméstica para a família de um pastor puritano. Ela foi parar naquelas distâncias fugindo da perseguição política em repressão à Comuna de Paris, cidade onde antes morava e trabalhava, como chef do famoso Café Anglais. Muitos anos ela passa servindo àquela família, para quem prazer corporal era coisa do demo.

Um dia, porém, ela recebe um prêmio da loteria – e gasta todo o dinheiro na produção de um sofisticado jantar, que ela oferece à comunidade que a acolhera. Na realização daquele banquete, consuma-se o destino da cozinheira, sua arte se revela, e eleva pelo paladar a experienciação dos sabores da vida, para aqueles que até então se negavam o prazer e a alegria da doação de um excesso de beleza.

Como, pois, a famosa chef francesa, condenada a cozinhar insossas sopas de pedra, e tendo na mão o dinheiro tratou de preparar um despropositado banquete de regalias, assim o pedreiro da vilazinha sertaneja assombrou a todos com seu arrojado projeto. “Num solfejo, num modulejo” (Rosa, 1967: 35), sua alma de arquiteto flanava livre e armava ninhos. O artista de pedra e cal ouviu o clamor da casa, que insistia em brotar, para além das conveniências comumente consagradas. A casa viraria escola, por ela teria fama. As letras nas mãos de todos, quem sabe veriam Helena no lugar da mocinha roubada das estórias dos velhos parentes. A casa, cavalo de Troia, ali enfim legendada. Em todo canto que há, no fundo é miolo de pote, vazio onde tudo pulula.

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Armas de guerreiro, casa de bronze

Palas Atena salva-cidade começo a cantar Deusa terrível, a ela com Ares concerne trabalhos de guerra cidades arrasadas, o reboar da guerra, os combates; Também salva a tropa que parte e retorna; Salve, Deusa, dá-nos sorte e felicidade.

Hino homérico XI

Pensando no mito de Atena, a conselheira de múltiplos recursos, encontramos as paragens de onde provêm o pensamento, a arte, a ciência, a habilidade, a sabedoria. Seu olhar clareante de coruja, voltado para o limite, ilumina o que se dá a ver ao homem, que desse modo produz sua cultura, através do agir poético apropriante, governado pelo raio da deusa, que doa o sentido, a techné, o saber pro-duzir, con-sumar o destino.

Atena orienta as ações, clareia o caminho, dá os toques. Seu olhar é luz, é raio que permite divulgar o contorno do que está presente e do que se anuncia, se vislumbra no horizonte, a ser realizado sob seus conselhos pela ação do homem, provocado pelo manifestar-se da clareira, convocado a trazer para a luz o que ainda não há. O que não havia, acontecia. O olhar fulgurante de Atena divulga o limite, de onde brota o que permanece velado.

Esparta, cidade guerreira, louvava Atena chamando-a Khalkíoikos [da casa de bronze], e o santuário da deusa grega lá era revestido do metal rosado, símbolo daquela raça de homens, “cuja vocação à guerra é tão absoluta que suas casas (oikoi) são feitas do mesmo metal que as armas por que eles morrem, como eles viveram” (Détienne e Vernant, 2008: 162).

A arte astuciosa eclode em tempos de guerra. Vermelha, da cor do sangue e do bronze, é a capa de Tutameia. A época de Guimarães Rosa, o bélico século XX, e sua posição histórica como soldado, diplomata e renomado autor brasileiro requeriam os auxílios de Atena, para voltar a salvo das batalhas.

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Como diplomata brasileiro, Rosa acabou indo morar justamente na Alemanha na época do nazismo. Hoje se sabe que ele e sua esposa, Araci, à época também funcionária do Consulado Brasileiro em Hamburgo, facilitaram a concessão judeus alemães, para que eles fugissem para o Brasil, contrariando as restrições do governo brasileiro. Sobre essa arriscada burla diplomática, comentou o escritor na famosa entrevista concedida a Günter Lorenz, em 1967:

O diplomata acredita que pode remediar o que os políticos arruinaram. Por isso agi daquela forma e não de outra. E também por isso mesmo gosto muito de ser diplomata. [...] Eu, o homem do sertão, não posso presenciar injustiças. No sertão, num caso desses imediatamente a gente saca o revólver, e lá isso não era possível. Precisamente por isso idealizei um estratagema diplomático, e não foi assim tão perigoso (Rosa, 1994: 42).

Mas esta contingência bélica só salienta a situação agônica que vige sempre na relação do homem com o mundo. Nos conflitos em que nos vemos lançados, a filha de Zeus divulga os limites e age a partir deles, para alcançar superá-los. Percebe as possibilidades do existir onde ainda não há.

Na travessia da vida, do sertão das veredas, do mar de Ulisses, é mister, no tempo de um raio, perceber o instante oportuno: sabedoria é o abrir-se à adveniência do Ser. Saber-se destinado a ser o que nem se sabe, sendo a seta rumo ao alvo do Ser. Na brancura do nada, flechar-se na trajetória precisa. Estamos lançados na brancura do alvo do Ser. Nosso destino está traçado no arremesso que nos antecede rumo ao alvo branco do nada.

Trazendo para o clareado aquilo que estava encoberto, a medida e o limite escondidos na natureza, a arte vigora na obra de Guimarães Rosa enquanto nela se manifesta a verdade, da qual o artista se apropria, apenas e na medida em que por ela se deixa apropriar. Meditando, percebe e recebe o apelo do ser e se deixa atravessar pela linguagem, para que através dele possa a verdade se manifestar como obra de arte literária, soando no som das palavras.

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Flor da boca, casa do ser

As estórias de Guimarães Rosa se passam no sertão, origem do autor, referência de todo seu existir. O vaqueiro e o jagunço, seus principais personagens, não habitam grandes cidades, mas sim fazendas e vilas, entre árvores e campinas. O sertanejo acorda com os galos, dorme com as galinhas, anda a cavalo, conversa com bois. Aprende a sobreviver observando a physis, os modos de ser dos animais e das nuvens.

Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais, pois isso diminuiria sua humanidade. [...] Um gênio é um homem que não sabe pensar com lógica, mas apenas com a prudência. A lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não serve para nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o homem não é composto apenas de cérebro. [...] A lógica, meu caro amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica (Rosa, 1994: 57-58).

A obra rosiana traz para a luz este modo originário de se relacionar com o mundo, através da narrativa de alguém que é ao mesmo tempo de dentro e de fora, do campo e da cidade, espaços e temporalidades distintos que coexistem no universo migrante do sertanejo que habita as grandes metrópoles. Na saudade da minha terra existe um dia em que eu volto para lá, passado, presente e futuro coexistem na lembrança e no esquecimento do sertão, que se presentifica e se esconde na leitura da obra rosiana.

De acordo com Leão (2010a), nossas cidades estão cheias desses desenraizados, que vivem à margem da sociedade industrial, arrancados que foram da sociedade agrária e não integrados nessa nova ordem, “que vai se construindo por eles, mas não se edifica para eles” (p. 255). A sabedoria dos

89 antepassados parece que já não serve mais, e o proletário paraíba se vê analfabeto diante do saber da ciência, marginalizado pelo seu domínio.

Mas a língua é a pátria dos desterrados. “A língua é cada ser humano desabrochando temporal e espacialmente naquilo que é, e não numa estrutura formal expressiva. Por isso ela é o núcleo da resistência essencial da identidade” (Castro, 1994: 205). Guimarães Rosa, sertanejo letrado, soa em sua obra o som de sua língua materna, misturado a tudo mais que ele ouve pelo mundo. A musicalidade daquela fala natalina goteja de suas palavras como leite em teta de vaca. A pátria-língua embebeda a fala de suas narrativas. A marca de sua identidade é a sua língua, lugar de sua diferença cultural. O sertanejo da obra rosiana manifesta a identidade brasileira em um universal humano, concreto, tensionado entre identidade e diferença. Assim como nas obras de Machado, “os leitores conhecem a contribuição da identidade e cultura brasileira, à cultura humana” (Castro, 1994: 204).

Um navio no mar não deixa rastros. Navega, conforme a rota ou ao sabor das marés, aportando em novas terras, ou na terceira margem. Erguer uma obra talvez seja uma forma de jogar com o silêncio do nada, mas que obra não será finalmente esquecida? Sentir-se integrante de um tempo poético, memória, experienciação e oportunidade, em que nas ações se realiza o destinar-se do ser em linguagem: “aquilo que não havia, acontecia” (Rosa, 1981: 28).

O artista nonada cria, ele lida com o que encontra, o que já existe muito antes dele e vai perdurar após sua passagem. “Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento, ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se” (Heidegger, 1967: 25). Juntando pedras num todo arreunido, o homem compõe vazios habitáveis. Ao erguer-se como monumento, eclode a obra do artista. Mas que não é dele, e sim doação dos deuses, invenção de Cura, disposta a ficcionar no barro a ideia projetada em seu pensar vaguejante. Pois, conforme profere Heidegger (1967: 24-25):

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Só pode ser con-sumado o que já é. O que é, antes de tudo, é o Ser. O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é um con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem.

A responsabilidade poética e existencial de buscar ser o que se é, como luta e jogo com o vigorar da physis, é fundamental para o surgimento do que é e do que ainda não é mas pode vir a ser, através da ação do homem, a partir do que lhe é dado. O limite da ação poética é a ética de saber o limite que se manifesta no velar e desvelar da physis, é a eterna procura pelo conhecimento, que move o homem em busca de sua ascese de ser feliz. Como diz o Rosa:

Cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem, ou chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso, tudo é muito simples para mim, e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas. Acho isso ridículo. A vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida. Um escritor que não se atém a essa regra não vale nada, nem como homem nem como escritor. Ele está face a face com o infinito e é responsável perante o homem e perante si mesmo. Para ele não existe uma instância superior (Rosa, 1994: 38).

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Capítulo 3

Infinito circular

Como já foi dito na Introdução, os dois lados da moeda, a coruja e o caranguejo, manifestam-se no jogo da leitura de Tutameia, a apontar para o quê? Para a téchne, a astúcia, a sabedoria, e a origem, a proveniência de tudo isto, que é o nada criativo, o ser, a physis, que ama ocultar-se. O olho de rapina da coruja conjuga-se com as patas tortas do caranguejo e, na doação do fogo, elaboram obras da cultura humana. Ver além e andar de banda, assim se manifesta a astúcia da poética rosiana, nas parcas páginas cinzeladas pelo artista, a elaborar no magma sua obra encouraçada.

Assim disse o Rosa, no seu discurso em agradecimento à Academia Brasileira de Letras pelo prêmio que obtivera com sua obra poética Magma, primeiro livro escrito (1937), só postumamente publicado (1997):

A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera: relampeja fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para a exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento (Rev. ABL, Anais 1937, ano 29, v. 53, p. 261-263, apud Rosa, 1997: 8-9).

Já neste livro primeiro, revela-se a imagem do caranguejo, pincelada num poema meio parnasiano, de escritor iniciante, a tatear o barro das palavras. A leitura do poema de início de carreira permite-nos saber alguns elementos relacionados pelo autor à figura do caranguejo, o que pode lançar luz sobre o significado da presença desta imagem ao longo das páginas de Tutameia. Vamos, pois, observar as características deste animal apontadas pelo poema, lembrando sempre que se trata de uma obra antiga, e que outras referências podem ter sido posteriormente construídas pelo autor, no decorrer de suas leituras e vivências.

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Caranguejo

Caranguejo feiíssimo, monstruoso, que te arrasta na areia como a miniatura de um tanque de guerra...

Gosto de ti, caranguejo, Câncer meu padrinho nas folhinhas, pois nasci sob as bênçãos do teu signo zodiacal...

Teu par de puãs cirúrgicas oscila à frente do escudo lamacento do velho hoplita. E mais oito patas, peludas, serrilhadas, de crustáceo nobre, retombam no mole desengonço de pés e braços muito usados, desarticulados, de um bebê de celuloide.

Caranguejo sujo, desconforme, como um atarracado Buda roxo ou um ídolo asteca...

És forte, e ao menor risco te escondes na carapaça bronca, como fazem os seres evoluídos, misantropos, retraídos: o filósofo, o asceta, o cágado, o ouriço, o caracol...

Caranguejo hediondo, de armadura espessa, prudente desertor...

Para as lutas de amor, quero aprender contigo, quero fazer como fazes, animalejo frio, que, tão calcariamente encouraçado, só sabes recuar...

(Rosa, 1997: 42-44.)

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O caranguejo: seu corpo mascarado

Para um jovem mineiro, como um dia foi João Guimarães Rosa, o caranguejo é um animal exótico, um ET do mangue, feio, assustador, medonho. Percebemos este estranhamento na adjetivação pejorativa concedida ao crustáceo: “feiíssimo”, “monstruoso”. O arrastar-se na areia, o modo de andar do caranguejo, chama a atenção logo de cara. A evocação da imagem do tanque de guerra, por sua vez, empresta uma feição futurista ao poema, condizente ao espírito bélico da época.

Contrapondo-se a esta visão que nega, contudo, o autor ensaia uma proximidade, ao tomar o caranguejo não como o bicho vero, mas como símbolo de seu signo zodiacal, Câncer, já que Rosa é nascido em junho, 27. Na Folhinha Mariana fixada na parede lá da venda de seu pai, em Cordisburgo, o menino Rosa via aquela estranha imagem, a selar as previsões a ele dirigidas pela Astrologia. Nesse sentido, o poeta se assume aqui como afilhado do caranguejo.

A crítica já assinalou, como vimos no início, a relação da imagem do caranguejo, a ilustrar Tutameia, com o signo zodiacal do escritor mineiro, e sem dúvida encontraram dados que comprovassem sua teoria (Araujo, 2001; Faria, 2005). Desconfio, porém desse biografismo, pois na obra quem fala não é o artista, é a linguagem, o ser se manifestando, neste caso, em tutameias nonadas.

A partir da ligação do caranguejo com o signo zodiacal do autor, Faria (2005) infere que a imagem do animal a ilustrar Tutameia se refere ao nascimento, à vida, à origem, arché, em oposição à coruja, que representaria a morte, o fim, télos, já que é sabido por todos que o pio da coruja é presságio maus agouros. Mas, como vimos no capítulo anterior, e que pode ser expresso nas palavras de Rosa: “A coruja não agoura: o que ela faz é saber os segredos da noite” (Rosa, 1985: 194). O que se consuma no fim está dado desde o início, e desde o início o final já está destinado. No limite tensional entre arché e telos o homem realiza sua travessia, a coruja e o caranguejo são as duas faces de sua sorte lançada.

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Voltemos ao poema. Rosa descreve na segunda estrofe as características físicas do caranguejo – puãs, carapaça, patas – emprestando-lhe adjetivos retumbantes, a confirmar a monstruosidade anunciada no início. Sai o zodíaco, volta o zoológico. Note-se outra possível similitude do crustáceo com o escritor: as puãs, as pinças do caranguejo são qualificadas de “cirúrgicas”, numa alusão à semelhança desta parte do corpo do animal com as ferramentas utilizadas no ofício dos cirurgiões – como se sabe, Guimarães Rosa é médico formado na UFMG, e exerceu a profissão no interior de Minas Gerais, antes de ingressar no Itamaraty, onde faria carreira diplomática, paralelamente à sua produção artística. À imagem impressa na folhinha o escritor acrescenta outra, das salas de cirurgia, pela feição da pinça do caranguejo.

A carapaça lamacenta do animal leva Rosa a se lembrar de sua condição de soldado, ao compará-lo a um “hoplita” (cf. Houaiss Eletrônico: “na Grécia antiga, soldado da infantaria duramente armado” [capacete, escudo, couraça, cnêmides, lança e espada]). Esta imagem reforça a comparação ao tanque de guerra da primeira estrofe. Mas agora não se trata mais da guerra moderna, com tanques motorizados, e sim da Grécia Antiga, tornando-se o animal um hoplita, personagem de sangrentas e legendárias batalhas. Na figura do caranguejo a natureza aparece vestida para a guerra.

As patas cabeludas e serrilhadas do caranguejo são desengonçadas, contrastam com a concretude de seu escudo e completam a imagem do animal esdrúxulo: puãs cirúrgicas, carapaça hoplita, patas “desarticuladas de um bebê de celuloide”. O celuloide é uma substância plástica, maleável ao calor, utilizada desde o final do século XIX. Bebês de celuloide devem ser bonecos de plástico, com pernas e braços molengas, como as patas do caranguejo.

A concretude empresta peso ao caranguejo, que se resguarda em sua forma compacta. Seu aspecto “sujo, desconforme”, confere-lhe um ar grotesco, que no entanto se associa à imagem do totem sagrado, ídolo asteca ou Buda roxo, cujo peso concentra a força do sagrado. O estranhamento leva ao fascínio, à admiração. O poeta parece ter se deixado hipnotizar pelo feioso animal.

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Na próxima estrofe, já encantado, o poeta percebe a força escondida na “carapaça bronca”, que se retrai ao menor sinal de perigo. O ser disforme e desconjuntado esconde-se sob a dura carapaça, que o mantém protegido, no retraído velar-se. O poeta passa a descrever não mais a aparência, mas o comportamento do crustáceo, caracterizando-o com a personalidade circunspecta daqueles que se fecham em si mesmos, recolhendo-se no abrigado de si. Os seres assim animados, considerados evoluídos, são os misantropos, filósofos e ascetas, cada qual em seu píncaro gelado, a retrair-se e mostrar-se na vizinhança do ser, da linguagem. Pois, como já indagava Heráclito (fragmento 16): “Como alguém pode permanecer velado ante o que nunca declina?” É no seu velar-se que a physis se manifesta, o brilho do mistério trespassa a carapaça espessa, ao mesmo tempo em que nela se resguarda. A mera existência de um ente como um caranguejo, se a gente parar para pensar, pasma: como pode?

Mas ele vigora lá, na dele, parado, na espreita, esquisito, feio, hediondo. Nas disputas para se manter, tanto ataca, com suas ferozes tenazes, quanto se defende, com seu escudo lamacento. Seu andar claudicante, aparentemente prejudicial ao seu desempenho em se locomover, acaba se mostrando como mais uma estratégia a lhe garantir a sobrevivência. Sua carapaça dura e seu esgueirar-se o protegem nos confrontos com o real, os “jogos de amor” que ainda tanto assustam o jovem poeta, a ponto de ele invejar do caranguejo a maestria em desertar. Quem sabe um andar oscilante e uma carapaça dura impeçam a dor de uma saudade?

Andando de banda é que o caranguejo viaja, debaixo de sua couraça rescende o fogo do ser. A lama, o húmus, o magma, é a origem, arché desse bicho desconforme. Se neste poema encontramos um Rosa ainda novato, contudo, de sua leitura pudemos depreender o exercício especulativo do poeta em tentar encontrar semelhanças entre seu modo de ser e o do caranguejo, numa tensão entre estranhamento e reconhecimento, identidade e diferença. Ora ressaltando aspectos positivos, ora negativos, a descrição do “animalejo frio” é construída num ir-e-vir, tal como a marcha do crustáceo. Já era o Rosa, mas verde. 96

O jovem Rosa, poeta-amante, quer aprender com o caranguejo, seu padrinho do zodíaco, a se proteger nos jogos de amor, se encouraçar, recuar. Mas a gente sabe que o amor vem, não tem jeito. Uma hora o caranguejo sai da toca, e quem tem a boca maior engole o outro.

A imagem deste animal nas páginas de Tutameia pode, a partir da leitura do poema de Magma, ser associada ao gosto pelo retraimento, comum ao caranguejo e também à physis que, nos dizeres de Heráclito, ama velar-se. Nesse sentido, a tendência para o velamento do caranguejo tensiona com a tendência para o iluminar-se da coruja. A sombra do animal rastejante destaca a luz do olhar da ave, e na disputa entre estas duas potências opera-se a verdade da obra. Na poética de Guimarães Rosa, onde tudo “se finge primeiro, germina autêntico é depois” (Rosa, 1967: 149), vêm a lume as estórias, a narrar percursos do homem humano, discursos acerca do ser, que se doa no seu velar-se, “no cujo caber do caramujo” (Rosa, 1967: 108).

Leonel (2000), em pesquisa que buscou mapear a recorrência de elementos dos poemas de Magma na posterior produção de Guimarães Rosa, indica-nos outra aparição deste animal nas páginas rosianas, desta vez na também publicação póstuma Ave, palavra (lançado em 1970), onde o caranguejo ressurge nas anotações do escritor sobre o Aquário de Berlim, das quais pinçamos as seguintes (Rosa, 1985: 38; 40):

Os caranguejos atenazam-se. O caranguejo: seu corpo mascarado. Em casa de caranguejo, pele fina é maldição.

*

O caranguejo a encalacrar-se, tão intelectualmente construído. O caranguejo carrascasco: comexe-se nele uma ideia, curva, doida e não cega.

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A leitura dessas anotações permite perceber que a imagem do caranguejo desenhada por Rosa configura-se pela presença de alguns elementos recorrentes: uma carapaça dura, a esconder uma substância volúvel, seu corpo mole, desarticulado, que se move não de forma linear, porém seguindo um traçado próprio, de vai-não-vai; suas pinças, puãs, tenazes, com precisão cirúrgica, garras torturantes, armas de ataque, instrumentos, ferramentas. A máscara que envolve o corpo do caranguejo compõe-se de um escudo-couraça, pinças cortantes e pernas tortas, que lhe conferem um andar cambaio. Tanques de guerra a atenazarem-se, os caranguejos, porém, trazem por debaixo daquela máscara mortífera a essência que anima todo ente: “comexe-se nele uma ideia, curva, doida e não cega”.

Pode parecer cega a rota do caranguejo para quem segue o traçado reto da racionalidade técnica. Seu andar cambaio e seu retrair-se, contudo, nas malhas da poética, do caos à lama, pode vir a ser a melhor distância entre dois pontos. Convida para uma caminhada pelas veredas tortas, pelos caminhos de floresta, caminhos silvestres, trilhas abertas para o livre da descoberta.

Caminhos silvestres são aqueles que, nos passos ordinários de cada dia, nos abrem silenciosamente passagens extraordinárias para a selva selvagem do pensamento, por onde o mistério de ser sempre nos faz passar [...] Como caminhos silvestres, elas nos convidam a caminhá-las de coração leve, isto é, livre, sem a carga da funcionalidade de sujeito e objeto. É a caminhada pela essência do caminho! (Leão, 2010a: 175-176).

O andar vacilante do caranguejo espelha o itinerário de re-leitura de Tutameia, que convida a um percurso de idas e vindas, voltas e retas, sinuosas rotas, como os caminhos de floresta, que às vezes simplesmente chegam no nada, levando ao assombro diante do mistério impenetrado da floresta em ser verdor verdejante.

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O coxear do caranguejo se faz presente também na caracterização de alguns personagens das terceiras estórias. Em “Como ataca a sucuri”, Pajão “caranguejava”, “em roda tornava a coxear torto, estragando muito espaço” (Rosa, 1967: 31). Vivendo à margem das águas, o caboclo assemelha-se ao caranguejo de pernas tortas, seu facão faz as vezes das tenazes do crustáceo. Hospeda em sua casa, nas brenhas, um moço de fora, estranho, que viera ali disposto a caçar a sucuri do poço e inquiria dicas do “aleijado hospedeiro” (Rosa, 1967: 32). Quando, porém, o forasteiro esquisito consegue enfim matar a cobra-grande, que restou boiando no poço fundo, Pajão demonstra sua habilidade em lhe tirar o couro: “Ladino, avançou, quase quadrumanamente, desembaiando o facão, feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze” (Rosa, 1967: 33).

O conto se constrói no confronto e estranhamento entre os dois personagens, o nativo e o de fora, este cheio de parafernálias tecnológicas, aquele integrado ao ambiente silvestre. Em um parágrafo temos o ponto de vista do sertanejo, a descrever o viajante, no outro, o contrário. É necessária uma leitura repetida, para perceber esta diferença, identificar cada parágrafo, ler cada ponto de vista separadamente, depois juntar tudo de novo, e outra vez de trás para frente... Enfim, não se trata de uma narrativa linear, e sim de um trançado de caranguejo, que para ir adiante precisa andar de esgueio.

“No prosseguir” é outra estória que conta com um personagem coxo, desta vez o visitante jovem na casa de um vizinho mais velho. Eram, ao final do conto se descobre, pai e filho, e viviam do ofício de caçar onça. A danada fizera um baita estrago no mais novo. Por isso, ao caminhar pela mata, o rapaz “coxeava, o tanto, pela clareira, no devagar da ligeirez, macio” (Rosa, 1967: 97). O velho se casara de novo, com uma moça mais jovem, e tencionava deixar como herança a mulher para o filho. Porém, a própria condição física do rapaz torna presente o tempo todo o fato de que ele, apesar de moço, já vira a vó pela greta, que na vida não vale a certa matemática. “As coisas, mesmas, por si, escolhem de suceder ou não, no prosseguir” (Rosa, 1967: 99).

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Diante do inesperado, na volta pra casa, ao atravessar novamente a mata, o filho se vira como pode: “Mas, tinha o rifle! E o saber – pelo desassombrar, abarbar, com ela igualar-se à mão-tente – fugir o perigo” (Rosa, 1967: 99). O jovem e coxo onceiro, para sobreviver, faz como o caranguejo do poema de Magma, que “ao menor risco se esconde na carapaça bronca” (Rosa, 1997: 44).

Mas da indesejada das gentes ninguém escapa. É o que percebe Mechéu, protagonista do conto homônimo, que “marchava com desajeito, bamba bailava-lhe a perna direita, puxada pela esquerda” (Rosa, 1967: 90). Aqui também se dá o confronto entre diversos pontos de vista, a compor um mosaico que deve ser montado e desmontado pelo leitor, a buscar novos prismas para formar a imagem deste personagem tão ensimesmado que leva ao silêncio.

Já em “Nós, os temulentos”, o herói bêbado Chico oscila na sarjeta entre a rua e a calçada, até que “o bom transeunte lhe estendeu a mão, acertando-lhe a posição. – Graças a Deus! – deu. – Não é que eu pensei que estava coxo?” (Rosa, 1967: 103). O andar sinuoso condiz melhor com as tortas linhas?

Na floresta de Tutameia, o que há são veredazinhas de nada – e as picadas, abertas pelo facão do pensamento, ao caminhar. A beleza de suas trilhas é não ter lugar pra chegar, é caminhar só pra ver a brabuleta poisar na fulô, saída do bolso da paisagem. A perdição leva à luz da clareira.

A outra face

Ao longo de Tutameia, piscam as moedinhas: cara e coroa, coruja e caranguejo. Como vimos no capítulo anterior, a coruja é imagem-questão da deusa da Sabedoria, Atena. E o caranguejo, além do signo zodiacal, há alguma referência a este animal na mitologia? Ora, como já adiantamos no início, o caranguejo, na iconografia grega, está justamente relacionado ao deus da metalurgia, Hefesto, “o fogo nascido das águas celestes” (Brandão, 2008: 489). De acordo com Détienne e Vernant (2008: 239-240):

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Este animal que se caracteriza simultaneamente pela estranheza de seus membros e por sua cumplicidade com o metalúrgico é o caranguejo, karkínos, o monstro marinho que é associado aos Cabiros ao mesmo tempo em que a Hefesto. [...] Karkínos, que é o nome do caranguejo em grego, significa igualmente a tenaz do ferreiro. A imagem do crustáceo marinho aparece assim, para os gregos, indissociável da representação do instrumento que prolonga as mãos do ferreiro e permite-lhe manipular o metal incandescente.

Conhecido por sua habilidade em forjar objetos de metal, como armas e joias, o instrumento de trabalho de Hefesto é a tenaz, instrumento que prolonga as mãos do ferreiro, permitindo-lhe manipular o metal incandescente. “Kyllopodíon, Hefesto é um deus de pés curvos, de membros tortos. [...] Kyllós designa tanto o coxo quanto a mão recurvada, a mão cavada e pontiaguda, cuja forma evoca também para os gregos a pinça do caranguejo” (Détienne e Vernant, 2008: 241).

Figura 6: Retorno de Hefesto ao Olimpo. Ânfora da Magna Grécia, circa 600 a.C. Disponível em: http://web.uvic.ca/grs/department_files/classical_myth/gods/hephaistos_i.html Acesso em: 5 set. 2012.

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Mas, se suas mãos de pinça lhe conferem habilidade manual, suas patas retorcidas, entretanto, tornam seu andar enviesado, oblíquo. “Que ele seja provido de dupla orientação ou que seja dotado de pernas curtas, o ferreiro mítico é sempre um ser de andar ambíguo e de extremidades singulares” (Détienne e Vernant, 2008: 242).

A cumplicidade de Atena e Hefesto, presentes, respectivamente, nas imagens-questão da coruja e do caranguejo, cara e coroa das moedas de Tutameia, já se entoa no hino homérico ao deus metalúrgico, que agradece pelos engenhos que possibilitaram o desenvolvimento da civilização. Assim ele soa:

Hino homérico XX: A Hefesto

Hefesto de ínclito engenho canta, Musa de voz límpida, que com Atena Glaucópida dons esplêndidos aos homens ensinou sobre a terra, que antes mesmo em antros montanhosos viviam como feras. Hoje por Hefesto de ínclita arte obras aprenderam e facilmente a vida até o fim do ano livres de cuidado passam em seus lares. Sê propício, Hefesto, dá-me virtude e felicidade! 2

Se, como vimos no capítulo dedicado a Atena, o Hino homérico XI canta o conluio da deusa com Ares, o deus da guerra, aqui ela se une ao deus das forjas, Hefesto, para doar aos homens as possibilidades de sair das cavernas e se diferenciar das feras, resguardados em suas moradas, com o auxílio das ferramentas e das coisas criadas para o conforto dos homens.

A métis de Atena que participa do saber de Hefesto faz uso dos valores do bronze, na qualidade de metal produzido e animado pelo fogo do ferreiro, mas a aplicação que ela faz sentir se situa no nível da guerra ativa, no desdobramento eficaz das armas carregadas e brandidas pelos homens da guerra (Détienne e Vernant, 2008: 166).

2 Disponível em: http://primeiros-escritos.blogspot.com.br/2009/09/hino-homerico-xx-hefesto.html. Acesso em: 15 ago. 2012.

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O templo de Hefesto em Atenas abrigava uma estátua da deusa, e vice- versa. Além disso, nas festas em homenagem a ambos os deuses era realizada a Lampadedromía, “corrida com fachos acesos” (Brandão, 2008, V. II: 491).

Hefesto e Atena são responsáveis pelo conjunto das habilidades técnicas representadas no mundo dos homens por um amplo leque de habilidades, desde a metalurgia e a cerâmica até a tecelagem e o trabalho de madeira, passando pela habilidade do cocheiro, a arte do piloto e uma certa maneira de fazer uso das armas. [...] a competência de um encontra-se delimitada estritamente pela do outro. [...] Atena só poderá exercer [seu poder] com cumplicidade ativa de seu compadre Hefesto. Pois se o instrumento de metal [freio] é tão vivo para dominar a violência e o ímpeto do cavalo, é porque ele nasceu da chama, porque ele é um produto do fogo metalúrgico (Détienne e Vernant, 2008: 248).

Dizem inclusive que Hefesto e Atena teriam gerado um filho, Erictônio, um dos primeiros reis da Ática, a quem se atribui a introdução do uso do dinheiro. A união desses deuses estaria assim na origem da pólis grega e também do uso do dinheiro, alçando-nos novamente à imagem da moeda, presente nas ilustrações e no próprio título de Tutameia. Assim diz o mito:

Tendo a deusa [Atená] se dirigido à forja de Hefesto, para lhe encomendar armas, o deus, que havia sido abandonado por Afrodite, se inflamou de desejo pela deusa virgem e tentou prendê-la em seus braços. Atená fugiu; o deus, todavia, embora coxo, a alcançou. A filha de Zeus se defendeu, mas, na luta, o sêmen do senhor das forjas lhe caiu numa das pernas. Atená retirou-o com um floco de lã, que foi lançado na terra. Esta, fecundada, deu à luz um menino que, tendo sido recolhido pela protetora de Atenas, recebeu o nome de Erictônio, isto é, popularmente o “filho da terra” (Brandão, 2008, V. I: 349).

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A vizinhança de Atena e Hefesto foi assinalada também por Platão, em dois de seus diálogos: Protágoras (Platão, 1999) e Crítias (Platão, 2011). Neste último, discorrendo sobre a distribuição dos lotes de terra entre os deuses, assim narra o filósofo:

Em determinada altura, os deuses dividiram toda a terra em regiões [...] e, havendo obtido a região que lhes agradava, de acordo com as sortes da Justiça, povoaram esses lugares. [...] Enquanto que aos outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de um modo diferente, Hefesto e Atena, por terem uma natureza comum – por um lado, eram irmãos de um mesmo pai e, por outro, em virtude do gosto pelo saber e pela arte, tinham a mesma orientação –, a ambos assim coube em sorte uma única porção, que é este lugar aqui, porque era, por natureza, afim e adequado à virtude e à sabedoria. Então, colocaram aqui homens bons, os autóctones, e introduziram-lhes a ordem política no intelecto (Platão, 2011: 109b-d).

De acordo com Platão, portanto, coube a Atena e Hefesto ocuparem o terreno onde se situa Atena, porque aquele lugar seria “por natureza, afim e adequado à virtude e à sabedoria”. Tal observação lembra a fala de Heidegger na Academia de Ciências e Artes da capital grega (1967), na qual, em uma passagem, o pensador ressalta a peculiaridade daquele sítio, em resposta ao qual o homem desenvolveu as bases da civilização ocidental:

É só aqui, na Grécia, onde o tudo do mundo se endereça ao homem na medida em que a physis lançou sobre o homem seu destino, que a percepção e a ação humana podiam e deviam corresponder a um tal destino: o homem era primacialmente forçado a trazer de si mesmo, pelo seu próprio poder, à presença, o que devia como obra deixar aparecer, um mundo até então não aparecido (Heidegger, 1983: 1).

Os raios de Zeus, lembra Heidegger, é Atena quem guarda. Seu olho ilumina, traz para a luz o que antes velava encoberto. Mas Hefesto, companheiro da deusa, também guarda a pólis grega. De sua fornalha saem as

104 armas forjadas no ferro, as cortantes espadas, os brilhantes escudos, as pesadas armaduras, com as quais os guerreiros combatem. Voltando ao diálogo, Platão, mais adiante, complementa a descrição da suposta Atenas originária:

A parte exterior, junto às suas próprias vertentes, era habitada por artesãos e pelos agricultores que cultivavam as imediações. Quanto à parte superior, habitava-a a classe dos guerreiros, de forma autônoma e isolada, junto ao templo de Atena e Hefesto, que eles tinham vedado com uma única cerca, como se fosse uma só casa (Platão, 2011: 112c).

Na parte baixa da cidade, ficavam os artesãos e agricultores, gente trabalhadeira, e no alto ficavam os guerreiros, pegados no fogo de Hefesto e Atena, reforçando o compartilhamento do espaço sagrado pelos dois deuses, cujos templos ocupavam um mesmo lugar.

Também no Olimpo os deuses habilidosos dividiam o mesmo ateliê. É o que afirma Platão, agora no Protágoras (Platão, 1999), que narra o modo como Prometeu, vendo a penúria dos humanos, rouba as artes e o fogo de Atena e Hefesto, para doá-los aos mortais:

Sem encontrar qualquer outra solução para assegurar a sobrevivência do homem, Prometeu roubou a sabedoria artística de Hefesto e Atena, juntamente com o fogo – porque sem o fogo era-lhe impossível possuí-la ou torná-la útil – e, assim, ofereceu-a ao homem. [...] Entrara, sem ser visto, na sala partilhada por Hefesto e Atena, na qual ambos se dedicavam às suas artes, e roubara a arte do fogo a Hefesto e as outras artes a Atena, para as dar ao homem, que delas retirou os meios necessários à vida (Platão, 1999: 321-322).

O brilho de fogo resplandece no claro dos olhos de Atena, que lançam o fulgor dos raios de Zeus, dando a ver o que permanecia encoberto. Assim como a deusa, Hefesto possui a techné, a maestria para produzir inventos. Tudo, portanto, para ser produzido, precisa da doação do fogo e ferro, e da techné,

105 dom partilhado por Atena e Hefesto. O fogo não só aquece os lares e cozinha os alimentos, como também possibilita a fundição de metais, tecnologia essencial para a civilização humana, de suas origens aos dias de hoje, como nos lembram as palavras que caíram em meu colo, da História do mundo para crianças, do escritor, editor e minerador brasileiro Monteiro Lobato (1933). Ensina D. Benta:

A descoberta do fogo foi o maior dos acontecimentos, porque permitiu tudo mais. A descoberta do fogo trouxe logo a do ferro e foi do ferro que saiu toda a nossa civilização de hoje. Nada existe que não tenha por base o fogo e o ferro. [...] Um livro é feito de papel e impresso em prelos. O papel faz-se com o machado de ferro que corta a árvore, com a máquina de ferro que mói a madeira, com a máquina de ferro que desdobra a pasta de madeira em camadinhas finas, com as calandras de ferro que imprensa essas camadinhas, tudo isso sempre ajudado pelo calor – isto é, pelo fogo. Esse papel, assim feito graças à ajuda do fogo e do ferro, vai em seguida para as tipografias, onde é impressa em prelos de ferro, é desdobrado em dobradeiras de ferro, é grampeado em grampeadeiras de ferro e é remetido para as livrarias em veículos de ferro – automóveis, carroças ou trens. 3

Além do elemento fogo propriamente dito, o fogo dos deuses, roubado por Prometeu, é o fogo do pensamento, o intelecto, sem o qual os humanos viveriam como bestas. “Pensar é articular o destino do ser” (Leão in Heidegger, 1967: 16). Consumar o destino, manifestar o Ser, é o que buscam os pensadores e poetas, na sua vigília da linguagem, casa do Ser, morada do homem. A ação poética, capaz de criar inventos, está impregnada do fogo do pensamento, dom divino entregue aos homens, que assim puderam acender suas próprias fogueiras e fornalhas, com também suas bombas atômicas e seus tanques de guerra. O esquecimento do sentido do ser, vigente no império da racionalidade técnica, ofusca a chama, mas não apaga a brasa deste fogo, pois sempre estão a assoprar-lhe os artistas, inflamando a chama que humaniza o homem.

3 Extraído de apostila de Português da prof. Luciana Jablonski, Ceat- 2012. Cedido por minha filha, Bárbara de Andrade Campos. 106

Como o caranguejo de Rosa, “intelectualmente construído”, assim são as ações humanas, que enviam o homem a operar o seu destino. Pela luz do pensamento o homem, locanda do Ser, imprime sentido às suas ações, “abre sulcos invisíveis na linguagem” (Heidegger, 1967: 100). Só se lançando na abertura da clareira, na procura do sentido da Verdade do Ser, é que a ele é dado o envio sábio, a ausculta da linguagem, à qual ele responde, figurando formas poéticas.

Olhos claros, coragem, habilidade, andar tortuoso. A leitura e a escrita do livro da vida requerem olhar à frente, passo atrás, a ginga exata, na medida do destino, a malícia de ser o que é. O tilintar das moedas de Tutameia ecoa a batida metálica dos tipos datilográficos, o pipoco dos tiros da Europa e dos Tucanos. Literatura deve ser vida, e como viver é muito perigoso, é preciso ter olhos de coruja, carcaça e patas de caranguejo. Premeditar as ações, saber executá-las, a partir dos limites da physis. Para agir poeticamente, há que se armar de astúcias, consoante o concerto do mundo.

A imagem do caranguejo, a pulular nas páginas de Tutameia, encontra assim referência no mito de Hefesto, que conjuga com o de Atena, proposto como imagem-questão pela coruja, a outra ilustração do miolo do livro. Podemos supor que Guimarães Rosa, dada sua conhecida predileção pela cultura grega, como atestam seus registros de leitura de Platão e Homero, dentre outros, soubesse da intimidade desses dois deuses.

Independentemente da intencionalidade do autor, contudo, que não pode ser confirmada por ele não estar mais entre os vivos, a relação construída a partir da referência das ilustrações com esses dois mitos gregos sem dúvida amarra perfeitamente a interpretação dessas imagens aqui proposta, e reforça a hipótese, aqui levantada, de que a astúcia, como modo de saber diverso do da racionalidade técnica, é ressaltada nesta obra rosiana, como doação dos deuses, que possibilita aos mortais a produção mais do que de utensílios, mas de obras de arte, da própria humanidade do homem.

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A rede de Hefesto

O mito de Hefesto, como imagem-questão, além da referência à téchne e ao fogo do pensamento, apresenta ainda outra faceta. A este deus, monstruoso e coxo como o caranguejo, foi dado produzir a mais bela riqueza, e desposar também da mais bela deusa, Afrodite, que, dizem, dava suas saidinhas com Ares, o sarado deus da guerra.

Sabemos pela Odisseia de um babado olímpico, envolvendo este triângulo amoroso. Pensar sobre esta estória nos ajuda a refletir sobre o modo de ser deste deus, buscando encontrar relações entre sua potência e a poética de Tutameia. A cena, cantada por Demódoco na corte dos feácios, diante de Ulisses, narra o episódio em que Hefesto, ao saber da trairagem de Ares e Afrodite, resolveu dar o troco. Teceu uma rede mágica, mais invisível que uma teia de aranha, que só ele sabia desatar, e colocou a armadilha sobre a cama. Quando os amantes estavam bem gozando a vida, o marido traído desarmou a rede, e os dois se viram pendurados, diante de todos os deuses, que haviam sido convidados por Hefesto, para a humilhação dos safados. De acordo com Homero: “Os liames forjados pelo saber (tékhne) e a alta prudência (polyphron) de Hefesto caem sobre eles” (apud Détienne e Vernant, 2008: 252). Por isso diz o provérbio: “Eis que Hefesto, este vagaroso (bradýs), pegou Ares que é, no entanto, o mais rápido (okýtatos) dos deuses que habitam o Olimpo. Por sua habilidade (tékhne) técnica, é o aleijado (kholós) que vence” (Détienne e Vernant, 2008: 254).

Diante da cena , caçoa Hermes: “ Que três vezes mais liames apeírones [circulares] me cerrem, de modo que eu durma ao lado de Afrodite” (ibidem). A zombaria do deus caracteriza os liames de Hefesto como apeírones, circulares. Assim é a rede de Hefesto, circular, sem limites, sem fim nem começo, atadora e atada, conjunto de nós mágicos que prendem a presa e a imobilizam, só seu autor sabendo como soltá-la. Assim também os anéis e colares forjados por Hefesto, de extremidades retorcidas, sem fim nem começo. De acordo com Détienne e Vernant (2008: 270): 108

As obras de arte de Hefesto assemelham-se a seu mestre pelo que nos pareceu definir de maneira mais adequada a métis do ferreiro: a circularidade do andar e a dupla orientação de extremidades tortas e curvas, inscrevendo sobre o solo um traçado enigmático que, como esses anéis “sem limite”, parecem não ter nem fim, nem princípio.

Assim também é a rede da trama das Terceiras estórias: “uma porção de buracos, amarrados com barbante” (Rosa, 1967: 10). Assim também Tutameia, ilustrado pelas circulares moedinhas, forjadas de metal, domínio de Hefesto. Como as pinças do caranguejo, cujas extremidades se voltam para dentro, nesta obra, um índice de releitura, ao final do volume, remete novamente para o início, num jogo infinito capaz de prender para o resto da vida. O “caranguejo encalacrado”, ‘intelectualmente construído”, é bem uma imagem do formato de Tutameia, cuja essência resta hermeticamente fechada sob uma carapaça espessa. Nesse sentido, revisitando a leitura feita no mestrado, resgatada na Introdução desta tese, agora com um novo olhar, poético, vale a pena pensar na apresentação deste livro, em seu formato, como integrante do operar da obra de arte literária, que se realiza neste suporte, configurada num volume de páginas enfeixadas por uma capa. Pois, como afirma Castro (1994: 145):

O texto-obra é constituído pelo discurso literário, perseguindo o todo completo. Nele, discurso e conteúdo se fundem. E sua modalidade de ser é a presença. Não a pseudo-presença de um número na multidão, de um lombo de livro posto na estante. Mas a presença de um livro aberto.

O desvelo do Rosa na edição de suas obras, como vimos, é tal que beira a esquizofrenia. Tudo está cifrado, tudo é código, cada ponto é um nó, a levar o leitor por infinitas veredas. Os “rosianos” não se cansam de se surpreender com o inextrincável das malhas da obra do Rosa, a apontarem os nós de sua elaborada rede, numa volúpia devoradora como a de Afrodite e Ares, amantes das belas formas, capturados pela rede de Hefesto, flagrados na rede com o livro-amante, naquela boa e velha felicidade clandestina.

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Quando tive meu primeiro contato com Tutameia, já havia ingressado na senda da edição de livros, vocação que ainda hoje garante meu sustento. De dom, veio-me. Esmero-me em burilar um texto, poli-lo, para que não haja nenhuma mancha sobre o espelho, e a dança da linguagem possa se manifestar em seu esplendor, na alegria do jogo das palavras. Naquela obra enfim eu via arte naquele espaço do livro, normalmente utilizado apenas dentro dos princípios da funcionalidade. Em Tutameia, este também é um espaço de gozo, de imaginação, do bater das asas amorosas da ideia. Ali eu nadei de braçada, altos mergulhos em corais multicores.

Minha pesquisa de mestrado em Teoria Literária teve, como já foi dito, o objetivo de analisar estes nós, encontrados na trama de Tutameia. Esforcei-me em decifrar códigos, resolver enigmas, encontrar provas que demonstrassem as amarrações descobertas. Mas, quando vi que nunca mais que a rede desatava, que por mais que explicasse sempre haveria silêncio e mistério, percebi o que já lá desde o início estava escrito: a questão não são os nós, mas os buracos que eles amarram. Hoje estou a escutar os buracos, o que abre outra perspectiva para a apreensão desses nós de marinheiro.

O texto não é composto apenas de linhas, mas também das entrelinhas, dos seus vazios. É o que nos lembra Guimarães Rosa ao dar a definição de rede: “Uma porção de buracos amarrados com barbante (Rosa, 1967: 10). O discurso e a Linguagem aí estão enredados e quem traz à luz este enleio é o texto poético, a obra literária. Assim como as linhas da rede estão sempre imersas nos vazios, da mesma maneira nos achamos imersos no retraimento da Linguagem, diante da articulação das linhas em formas, em discurso. Vivenciar a experiência do retraimento da Linguagem ou imaginário é experienciar a impossibilidade de o texto ou a forma discursar o imaginário. É uma impossibilidade positiva. No experienciá-la do concreto literário nos apercebemos da Linguagem de todos os nossos discursos (Castro, 1994: 151).

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A realidade ficcional produzida por Guimarães Rosa em suas Terceiras estórias extravasa os limites convencionais do texto literário e impregna cada espaço da superfície do livro. O estranhamento do título provoca dúvida e curiosidade, o espelhamento dos índices incita ao movimento da releitura, o lançar das moedas imprime sentido ao texto, e a leitura do livro se realiza no “pesar em passar a página”, nas palavras do poetamigo Danislau Também (2005: 75), em homenagem ao mestre Rosa:

Todo esforço é vau

Guimarães Rosa, pétala por pétala Pesar em passar a página

Não há formalismos gratuitos no hermetismo de Tutameia. O que no artista se dá, ele incorpora e apresenta, em forma de obra de arte, a qual somente opera aquilo que a ele se dá. O operar da obra desvela a verdade do Ser. É a obra que nos desvenda, não somos nós a desvendá-la.

Quem tece por vezes observa as próprias mãos atuarem, trazendo para a visibilidade aquilo que antes permanecia velado. Produzir é dar forma à ideia, para que ela possa se manifestar em sua presença.

O pôr-em-obra da verdade faz irromper o extra-ordinário e revoga ao mesmo tempo o habitual e o que assim se considera. A verdade que se inaugura na obra jamais é para ser comprovada ou deduzida a partir do até então existente. O até então existente é refutado em sua realidade vigente exclusiva através da obra. Por isso, o que a arte funda não pode nunca ser contrabalançado nem compensado através do já existente e do disponível. A fundação é um exceder, uma doação (Heidegger, 2010: 173).

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A elaboração do livro como obra de arte acontece em editoras como a José Olympio, que publicou não só Rosa como a maioria dos escritores brasileiros mais importantes do século XX. Sua equipe se empenhava em trazer a lume obras cuja editoração estivesse à altura do texto apresentado, para isso contando com ilustradores, como demonstram documentos já publicados pela crítica, apontados em minha dissertação de mestrado. Não podemos, pois, deixar de considerar significativos esses elementos no conjunto da obra rosiana, que pôde contar com a qualidade dos serviços de sua casa editora, para quem

formato, ilustração, texto e diagramação devem ser consoantes de tal maneira que a união desses referentes faça surgir a harmonia: a apresentação da obra. [...] Quando é atingida uma radical e harmônica integração entre formato e forma, consegue-se uma modalidade de presença concretizada na apresentação. A apresentação surge como um esforço de integração das facetas do formato e da forma (Castro, 1994: 144).

As vanguardas exploraram sobremaneira esta dimensão concreta da literatura, o que levou a muitos experimentalismos vãos, como aponta Castro (1994: 86):

O formato nas artes tem como uma das consequências tornar cada vez mais necessário um aprofundamento do conceito de criatividade, um conceito mágico que sagrava como artístico qualquer pequena transformação formal, consagrando experimentalismos inócuos, encobrindo repetições e desviando a atenção dos verdadeiros processos de realização criativa.

Descontados os excessos dos modismos de época, o “formato” interfere na criação literária, não só em termos de limitações quanto ao tamanho do texto ou ao uso de cores, por exemplo, mas podem se constituir também em um elemento coerente com a ideia que o autor expressa no texto.

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Não podemos radicalmente descartar as possibilidades do formato, mesmo no uso exclusivo do signo verbal. Lembraríamos os textos medievais e suas iluminuras. O formato da letra não era só a forma do conteúdo. Ele mesmo era significante. Esse aspecto, pouco usual para nós, seres racionais e econômicos da modernidade, e, por isso, insensíveis muitas vezes ao operar da obra, onde significado e significante se empenham em deixar ser o que é, e não em ser isto ou aquilo, inclusive significante e significado, nós, modernos, precisamos deixar falar em nós o infante reprimido, o imaginário, a liberdade de simplesmente ser (Castro, 1994: 88-89).

Pensar é significar o mistério. Na rede do pensamento, o pensador é o tecelão da realidade, traz para a luz o que permanecia encoberto. O retraimento do mistério é a mata virgem por onde o homem, ao caminhar, vai abrindo caminho entre os cipoais espessos. Mão à frente, passo alto, boca fechada não entra mosca. E o gume do facão a abrir as picadas.

As trilhas batidas das convenções sociais dispensam o pensamento. Somos engrenagem nas malhas da funcionalidade, esquecidos do sentido do ser. Mas a janela fechada não impede a luz que entra pela fresta e o sonoro canto dos pássaros, indicando o vigorar da realidade. A obra de arte é o vento que abre batendo tambor, convocando ao pensamento.

Todo pensamento é integrador: aglutina sempre o real com a realização. E quando esta aglutinação restitui à realização do real sua proveniência no mistério inesgotável da realidade, temos um pensador originário. Heráclito é um deles: um tecelão da realidade (Leão, 2010b: 124).

A leitura do habitual pode ser límpida e transparente, basta seguir as convenções sociais. Para perceber o ser em sua presença, porém, é preciso que a luz do pensamento enrede a ideia na teia do discurso.

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Ficção são as linhas. As entrelinhas são o mundo aberto pela metáfora para que o discurso se manifeste como não-discurso e a ficção como imaginário. Por ser a sua força de articulação, ela é estranha. Pela metáfora o discurso articula e expõe os buracos, os vazios da rede, porque a rede não são as linhas, mas os vazios amarrados. Como é isto possível? Pela metáfora, porque a metáfora é a mimesis se expondo como um discurso (fingidor), que abre espaço para a manifestação do imaginário (vivenciador): nisto se colhe o sentido do real. A mimesis é o sentido do real se discursando (ficcionalmente) (Castro, 1994: 156).

Olhar de luz, andar de banda, o animal que voa e vê longe e o que rasteja e se retrai conjugam-se para formar esta obra de poesia e pensamento. Todas estas questões nos evocam as imagens da coruja e do caranguejo, e outras mais, pois que uma obra de arte nunca esgota as possibilidades de adentramento. A leitura das Terceiras estórias se articula na tensão das moedas que se lançam ao longo de suas páginas. A potência dos deuses tornados questões pelas imagens impressas nas duas faces da moeda de Tutameia. Des-atando os nós dessa rede, falaremos a seguir de outro deus mestre em atar e desatar: Hermes, o mensageiro dos deuses, o deus da linguagem e das trapaças.

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Capítulo 4

A luz do verbo

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu Serão bonitas, não importa São bonitas as canções

Mesmo miseráveis os poetas Os seus versos serão bons

Mesmo porque as notas eram surdas Quando um deus sonso e ladrão Fez das tripas a primeira lira Que animou todos os sons

Chico Buarque (1986)

Hermes vem vagueando por este texto desde o início, e eis chegada a hora de abordá-lo, pensando as questões que este mito levanta, a partir do diálogo poético com Tutameia.

No capítulo anterior, encontramos o deus dos ladrões ao lado de Apolo, a debicar do embaraço de Ares e Afrodite, presos nas malhas de Hefesto. Como vimos, Hermes disse que adoraria estar atado à bela deusa. É que ele também tem o dom de atar e desatar, como realça a tradição. Conta-se que, quando nasceu o filho de Zeus e Maia, esta o enfaixou e o colocou no oco de um salgueiro, para escondê-la do fatal ciúme de Hera. Mas, conta o mito:

No mesmo dia em que veio à luz, desligou-se das faixas, demonstração clara de seu poder de ligar e desligar, viajou até a Tessália, onde furtou uma parte do rebanho de Admeto, guardado por Apolo, que cumpria grave punição (Brandão, 2008, V. I: 548 1).

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Hermes e Hefesto avizinham-se na arte de atar e desatar, compor tramas, desfazer nós, armar armadilhas. O ligar do logos manifesta-se no modo de operar desses deuses, mestres em engodos e estratégias, artes compartilhadas aliás também por Atena e sua mãe, Métis, a deusa da astúcia.

Tão logo se soltou, Hermes, asinha, tocou a roubar o gado do irmão mais velho, Apolo, valendo-se para tanto de astutos estratagemas: tangeu o gado roubado de fasto, de trás para diante, e amarrou ramos nos rabos das reses. Usou ainda umas pernas de pau e também sandálias de arbustos trançados, para despistar seus rastros, confundir quem quisesse segui-los. O deus dos ladrões de gado, em sua “astúcia-audácia”, assemelha-se, assim, ao modo de ser da velhaca irmã raposa, terror dos rebanhos, tal como retratada por Guimarães Rosa, em suas anotações, postumamente publicadas, referentes a uma visita que o autor fizera ao zoológico de Hamburgo, onde então residia:

A raposa, hereditária anciã: vid. seu andar, sua astúcia-audácia. Avança, mas nuns passos de quem se retira (Rosa, 1985: 121).

A imagem do deus, reproduzida a seguir (Figura 7), mostra bem a divergência entre o sentido de seu olhar e a direção de seus pés, como num passo de dança.

Note-se a marc(h)a sinuosa e dissimulada deste deus, que, como o caranguejo, que ilustra as Terceiras estórias, não segue o paradigma dominante da progressão linear. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Nas palavras dos mitógrafos Détienne e Vernant (2008: 271):

Hermes e suas vacas formam uma equipe de direção dupla e divergente, cuja estranheza se localiza inteiramente na silhueta desconcertante de uma personagem cujas partes alta e baixa se dirigem a direções opostas, exatamente como Hefesto de duplo sentido, chamado amphigyéeis.

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Figura 7: Hermes. Vaso ático, 500-450 a.C.. Metropolitan Museum de Nova York. Disponível em: www.theoi,com.. Acesso em: 27 dez. 2012.

Se os liames de Hefesto, cambaio caranguejo, não tinham fim nem começo, os rastros de Hermes, velhaca raposa, registram pistas falsas: as famosas tortas linhas – ai de quem tentar atá-las. São caminhos de floresta, veredazinhas de nada. Ainda segundo os mitógrafos:

O que se inscreve no entrelaçado de direções opostas, traçados no chão pela métis de Hermes, é, no sentido próprio, um enigma, que os gregos chamam ora aínigma, ora griphos, o mesmo nome que uma rede de pesca de uma certa espécie. Pois um enigma se trança como um cesto ou um covo (Détienne e Vernant, 2008: 272-273).

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Como veremos adiante, “Aletria e hermenêutica”, primeiro prefácio de Tutameia, apresenta a poética dos enigmas, cujo trançado se mostra nas linhas de suas estórias, mas cujo sentido se encontra no vazio que os nós amarram, o oco onde ecoa o som de Hermes.

Redes de pesca, armadilhas, são armas de caçadores, liames invisíveis, como a rede de Hefesto, como as pegadas de Hermes, as estratégias de Atena, que com trançados enigmas capturam suas presas. Estórias de caçada também aparecem em Tutameia. Além de “Como ataca a sucuri”, já mencionada ao falarmos do mito de Hefesto, Rosa nos presenteia com uma estória de caça a uma anta, no conto “Tapiiraiauara”, que abordarei agora.

Iscas de palavras

O estranho termo que compõe o título deste conto, Tapiiraiauara, provém do tupi, conforme explica o autor, em correspondência com seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason (1966):

Trata-se de uma entidade em que os índios tupis acreditavam: um espírito que protegia as antas (anta = tapiira) contra os caçadores; de certo modo, confunde-se um pouco com o “diabo” dos Tupis = anhangá, que também defendia a caça contra o caçador. Tinha a forma de uma anta ou tapir, assim era que aparecia (Rosa, 2003: 364).

Numa manhã translúcida da nação sertaneja, um fazendeiro resolve se distrair caçando uma anta parida. O narrador, seu hóspede e convidado, apesar de contrariado, não faz a desfeita de recusar o convite, e de repente se vê num caso de vida ou morte. A ação começa já na tocaia, os protagonistas escondidos na vereda da aguada, com cães anteiros. O narrador comenta no texto seu desagrado, mas na ação a princípio expressa alheamento, olhando para o alto, em silêncio, culpando o outro de assassinato.

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A satisfação de Iô Isnar em assassinar os animais causava osga no narrador, que se compadeceu da anta. Haveria de salvá-la. “Doer-se de um bicho, é graça” (Rosa, 1967: 172). Enquanto esperavam, Iô Isnar, que distraía caçando uma anta indefesa e o filho dela, contou que tinha um filho soldado, e que por isso temia que o Brasil enviasse tropas à guerra.

O narrador percebeu que Iô Isnar tolo não era, pois conhecia todos os hábitos de sua caça e mostrava-se ladino na espreita da tocaia, punha todo seu pensamento nisso. Viu então que precisava desviar o foco do atirador, para evita o pior. A força do pensamento atuaria através da linguagem:

À mão de linguagem. A de meneá-lo, agi-lo, nesse propósito, em farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos, no dói-lhe-dói, no tintim da moeda! Iô Isnar, carrasco, jeito abjeto, temente ao diabo. A pingo de palavra, com inculcações, em ordem de atordoá-lo, emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.

Ponteiro menor, a anta. Ponteiro grande, os cães.

E dependi daquilo.

– “Sim, o Brasil mandará tropas...” – deixei-lhe; conforme à teoria. Sem o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores (Rosa, 1967: 173).

Contra o diabo do carrasco, o narrador recorre ao Anhangá das antas, que se manifesta em palavras aladas, capazes de reverter catástrofes. Por equivalência, “no tintim da moeda”, aventa a possibilidade de que o filho do sertanejo fosse mesmo enviado à guerra. E ressalta:

– “É grave...” Luta distante, contra malinos pagãos, cochinchins, indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente matavam. Guerra de durar anos... (Rosa, 1967: 172).

O narrador abandona a neutralidade inicial e intervém do desfecho da ação. Ele não se furta de sua responsabilidade e age, com as armas que tem, na defesa de seus valores. Num jogo de vida e morte, atende seu coração.

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Diante do vaticínio do visitante, o fazendeiro se benze. Em pânico, trêmulo, mal consegue segurar a arma. Quando enfim chega a anta, está tão atordoado que erra o tiro. O vento do pensamento varreu a violência.

Em alarido, disparados em fuga, o tapir e seu filhote caem n’água sãos e salvos, num tchibum de alívio. Aliás, aliviava-se já ela desde a descida, coroando com estrume a vitória sobre o velho, que restava impotente. A viril aventura do fazendeiro transformara-se em drama cômico, descambando para o escatológico das fezes do animal.

Diante de uma situação extrema, o narrador se viu impelido a agir. Sua autonomia superou a presumida impotência. A astúcia de seu discurso rendeu- lhe a vitória.

Talvez agora se possa perceber com alguma transparência porque um derivado de - constitua a palavra grega para o leito, a cama, o repouso,  -, e outro derivado,  -, que diz a tocaia e emboscada, onde repousa uma armadilha (Leão, 2010b: 32-33).

Há ainda outra semelhança entre Hermes, Hefesto e Atena, além das habilidades estratégicas, que deve ser mencionada: é a referência ao fogo, como veremos a seguir.

Artes do fogo

De acordo com o Hino homérico IV, Hermes foi o primeiro a, friccionando gravetos, produzir o fogo na terra:

Basta lenha reuniu, artes inventou de fogo: Glório loureiro cortou a ferro, e o girou nas palmas Sobre lenho de granada: sopro cálido exalou-se [Hermes o primeiro foi que fez o fogo: achou os meios] [...] Enquanto a força de Hefesto fazia aflorar o fogo, Tirou Hermes do curral duas vacas sinuosas (Serra, 2006: 135).

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O fogo do pensamento manifesta-se no deus dos ladrões, portador da Mensagem. Esta faísca é o logos, pensamento e linguagem, brilho dos raios de Zeus. Através do olhar de Hermes, assim como do de Atena, brilha a chama que clareia. União recolhedora, logos, aletheia. Hermes, Atena e Hefesto são deuses arteiros, doadores da arte e da artimanha.

Na travessia da vida, Hermes ilumina os caminhos da arché ao telos, o acontecer do destino no tempo poético. “Mais do que qualquer outro, o caminho que nos permite alcançar o lugar em que já estamos carece de um guia que avance o alcance dessa estrada” (Heidegger, 2011: 156). Enquanto lugar de manifestação da potência de Hermes, o homem escuta e profere as sábias palavras, que guiam rumo ao que desde sempre fomos. A mensagem de Hermes ecoa o sentido da verdade do ser, infelizmente hoje tão esquecido pelos mortais. Ouvi-la é atender ao apelo do pensamento, consumar o destino, apropriar-se do que é próprio, alcançar o que tanto se deseja: amar, ser, feliz.

E o que Hermes queria mesmo era sair da sombra, revelar-se filho do soberano, ocupar seu lugar entre os deuses, gozar o dom que lhe cabia. Nesse empenho ele se esmerava, urdindo tramas, fogos de artifício. “Eis aí o ético: a obstinação de ser as possibilidades que já recebemos” (Castro, 2011: 35). Mas, quando Apolo foi cobrar o irmão, encontrou-o dissimulado, no escuro, tapando os olhos para manter escondido o fogo do pensamento:

Hermes finge estar mergulhado num doce sono, enquanto na realidade está à espreita, bem acordado e tão ocupado combinando e meditando astúcias, que ele deve frequentemente, com um gesto de mão, coçar seus olhos, para atenuar o clarão e esconder o fogo cujo brilho poderia descobri-lo até no fundo de seu esconderijo obscuro. Como se este deus da noite, que sabe melhor que ninguém esconder e ao mesmo tempo ser escondido, só pudesse ser traído pelo resplandecer de sua própria métis (Détienne e Vernant, 2008: 251).

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Interpelado pelo irmão sobre o roubo do gado, o jovem deus negou tudo, inclusive perjurando em nome do pai. Só que a própria argumentação elaborada do garoto desmentia sua inépcia, provocando riso e encanto no irmão, que acabou por aclamá-lo “príncipe dos bandidos” (Serra, 2006: 151). Hermes propôs levarem a questão ao julgamento de Zeus. Diante do pai celeste, Apolo narrou o ocorrido. O acusado seguiu afirmando sua inocência, ao que Zeus, reconhecendo no filho sua própria astúcia, reagiu com sonorosa gargalhada, ordenando porém ao caçula que guiasse o mais velho até o gado roubado, e também que não aprontasse mais daquele jeito.

Obrigado a prometer que nunca mais faltaria com a verdade, Hermes concordou, acrescentando, porém, que não estaria obrigado a dizer a verdade por inteiro (Brandão, 2008, V. II: 549).

Zeus fez de Hermes seu mensageiro, guia dos homens na travessia entre vida e morte, portador da mensagem do destino. O astuto foi reconhecido em sua divindade, tomou seu lugar no Olimpo.

Antes de dar seguimento ao enredo do mito, que tanto faz pensar, é preciso introduzir outra imagem-questão evocada pelo mito de Hermes, até agora não mencionada, apenas na epígrafe do capítulo: a invenção da lira.

A primeira nota

Diz a lenda que, logo ao sair do antro de Maia, Hermes topou uma tartaruga. O barulho da topada no côncavo casco do animal acendeu em Hermes a ideia da lira, tripas esticadas naquela concha acústica:

O deus funde imagens de um modo instantâneo: a da tartaruga que ele depara e a da lira que ela será: uma, presente diante de seus olhos, a outra, na sua ideia. [...] A seus olhos divinos, é logo tão real o instrumento imaginado como o bicho encontrado. [...] Torna real sua profecia: executa a passagem de tartaruga a lira, com gestos ágeis de perito (Serra, 2006: 40).

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Hermes diz a abertura dos ouvidos para o que ecoa nas possibilidades doadas pela physis e, a partir dessa escuta, manifesta-se consoante o concerto do mundo. Feita a lira, restava tirar o som do oco, acompanhá-lo com o corpo. Em seu canto inaugural, Hermes entoou “a glória de sua origem” (Serra, 2006: 129), em que estava inscrito seu destino, o qual cabia consumar. Esta lira viria a ser crucial nesse sentido, para resolver a tensão gerada pelo roubo do gado de Apolo, que agora podemos retomar.

Tendo guiado Apolo até o rebanho roubado, Hermes tomou de sua lira e começou a tocar, para deleite do irmão, amante da música. Neste seu novo cantar, Hermes cantou os deuses e deusas, “como eles se originaram, e o lote de cada um”, iniciando por Mnemosíne, Mãe das Musas, a quem pediu bênção (Serra, 2006: 163). Não é à toa que Hermes é o “mensageiro dos deuses, [que] traz e transmite a mensagem do destino que trama as vicissitudes da história de homens e deuses” (Leão, 2010b: 117).

O canto com que a divina criança abençoada por Mnemósine fascina Apolo é uma teogonia. Tal qual o poema de Hesíodo, descreve o cosmos, a ordem do mundo. Cinge a totalidade do ser às figuras dos deuses, exprime o universo em imagens míticas. Os mitos que despontam de Mnemósine figuram, pois, o cosmos manifesto aos divinos músicos – Apolo e Hermes – que assim se descobrem (Serra, 2006: 112).

A referência entre Hermes e a linguagem poética será abordada ao longo deste capítulo, quando tratarmos dos prefácios de Tutameia. Por ora, pensemos na reação de Apolo diante da música do irmão. Ao ouvir a mensagem do destino, acompanhada pelo toque do inédito instrumento, Apolo, encantado, propôs a Hermes trocar o objeto sonoro pelo gado roubado, dizendo: – “Vale bem cinquenta vacas a prenda de teu desvelo!” (Serra, 2006: 165). Realiza-se o comércio, domínio de Hermes, que sabe oferecer ao freguês o irresistível objeto de desejo.

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Para resolver a questão com Apolo, no sentido de ressarcir o prejuízo e o dano causado, bem como a honra do deus, que havia sido logrado, exposto ao ridículo, Hermes lança mão de algo que para o irmão valia tanto quanto pesava o objeto do furto – afinal, um negócio só é bom quando é bom para todo mundo, diz a tradicional sabedoria do comércio, que aprendi com meu pai.

As trocas que precisamos realizar ao longo de nossa existência material e finita levam-nos a valorizar isto ou aquilo, investir tempo e dinheiro, para adquirirmos o que desejarmos. A inversão de valores e o esquecimento do sentido do ser, porém, levam as pessoas a tomarem gato por lebre, ao escolher o ter em lugar do ser. Neste contexto a balança nunca é justa, e quanto mais se deseja menos se consuma. No consumismo alienante que move a sociedade ocidental, quase nada restou da troca divina que foi a do gado de Apolo pela lira de Hermes, com a qual se solucionou um conflito e se inaugurou a amizade entre esses dois deuses, filhos de Zeus.

Bênção, padim

O comércio, presente no título e nas moedas que ilustram Tutameia, é domínio de Hermes, que tem a ginga do caranguejo, o fogo do olhar da coruja, e mais o ar da graça e o mel da linguagem. A presença do deus neste livro já foi percebida por Faria (2005: 202), para quem Hermes é o patrono das Terceiras estórias.

Hermes comparece em Tutameia, senão, sobretudo, na própria alma do livro. A inextrincável conexão da vida e da morte, a proximidade entre o além e o aquém, a convergência do tudo e do nada, a oscilação do diurno e do noturno, que singularizam o universo de Hermes, compõem o cosmos em que florescem as Terceiras estórias.

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A autora aponta ainda, como manifestação de Hermes em Tutameia, a presença constate de guieiros, personagentes destas estórias (o vaqueiro Ladislau, por exemplo). Além disso, elenca as várias aparições dos ciganos, povo conhecido pela astúcia, que para ela são “parentes” do deus manhoso.

Parentes próximos de Hermes são os ciganos, que percorrem o livro todo. Não somente por serem comerciantes e ladrões, astutos e velhacos, alegres e desordeiros, afeitos igualmente aos prazeres do corpo e às sutilezas do espírito, mas, principalmente, por viverem quase à boca dos ventos, na intensa mobilidade do devir (Faria, 2005: 202).

Ora, no âmbito do comércio é que se usa o termo tutameia e também circula a moeda que ilustra as Terceiras estórias. Diante dos apelos da sociedade de consumo, onde um livro é uma mercadoria do mercado editorial, mass media, o que Rosa, autor de best sellers, oferece ao público ele mesmo avalia como uma tutameia, do mesmo modo que um feirante de xepa liquida suas bananas. Mas não se engane, leitor incauto, arrisca de tudo o que você oferecer ser pouco perto do que ele irá exigir, pois, parafraseando o poema “Ulisses”, de Mensagem (Pessoa, 1934), tutameia “é o nada que é tudo”. Como ressalta Faria (2005: 227), a respeito da leitura das Terceiras estórias:

O alargamento da visão ocasiona uma ampliação do horizonte vital e é a condição básica para a decifração das estórias. Sem uma decisão existencial do novo, assumida com a força do espírito e com o calor do sangue, o homem não é capaz de realizar a rotação estelar do seu eixo vital, que lhe ganhará novas perspectivas para ver mais longe e mais claro.

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Não acredito na possibilidade de decifração das estórias, não no sentido de tirar-lhes todo o sumo. A cada nova leitura, como venho ressaltando, abrem- se novas clareiras de interpretações. A tese da autora citada, por exemplo, revelou-me aspectos até então insuspeitados, muitos dos quais inclusive questiono, como este, da possibilidade de decifração.

Acredito na possibilidade de um diálogo permanente com esta obra, que irá sempre surpreender e nos fazer sacudir nossas pretensas soluções e respostas, na busca de se afinar com o sentido da verdade do ser, que se manifesta em linguagem no operar da obra de arte. Na busca deste diálogo, deparamo-nos com um texto hermético, falseado, fingido, urdido por um autor que entretanto não é leviano nem sem sentido. O alcance de sua mensagem poética se dá na dobra de decifração e mistério. A leitura deste livro se dá aqui na referência com os mitos gregos da astúcia e o que eles trazem como possibilidade de interpretação da mensagem poética.

O esforço de interpretação que ora realizo busca lançar novas luzes em tão enigmático livro, num diálogo com a obra de Heidegger e com os mitos gregos da astúcia. Neste capítulo dedicado a Hermes, cuidarei de três dos quatro prefácios de Tutameia: “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico” e “Sobre a escova e a dúvida”. Algumas estórias serão trazidas para a cena, na medida em que apresentem em suas narrativas as questões levantadas nos ditos prefácios, relacionadas, como veremos, ao deus da linguagem. O prefácio “Nós, os temulentos” será interpretado no próximo e último capítulo desta tese, dedicado ao mito de Ulisses, que encarna a travessia do homem humano.

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Oroboro

O texto que abre o livro em estudo, “Aletria e hermenêutica”, vem sendo tomado como inédito pelos leitores e pela crítica especializada. Eu mesma acreditava que ele havia sido elaborado com o intuito de ser propriamente o prefácio de Tutameia (cf. Andrade, 2004). Entretanto, a pesquisa de Costa (2006) informa que, na verdade, trata-se de uma reedição, revista e ampliada, de um pequeno texto já publicado, em 1954, no suplemento literário “Letras e Artes” do jornal A Manhã, periódico oficial do Estado Novo, editado pelo poeta nacionalista Cassiano Ricardo (Figura 8).

Naquela época, Rosa era ainda só mais um escritor mineiro, autor de um único livro, Sagarana. A título de ilustração, reproduzimos a página em que o texto foi publicado, para que se possa perceber a falta de pompa e o reduzido espaço destinado ao autor então iniciante, ainda no nublado da neblina.

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Figura 8: Publicação original de “Aletria e hermenêutica”, com o título “Risada e meia”, Jornal A Manhã, Rio de Janeiro, 4 maio 1954. Disponível em: www.bn.br. Acesso em: 20 dez. 2012.

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Esta informação é importante, pois revela que: primeiro, o texto não foi escrito para ser um prefácio; segundo, ele antecede em pelo menos dez anos a publicação do livro, tendo sua publicação no referido periódico passado despercebida do público. Aliás, apresentar o primeiro texto como se fora o mais recente, quando na verdade era o mais antigo, é bem uma artimanha de Hermes, andado de caranguejo: os últimos serão os primeiros.

É interessante pensarmos ainda que o Rosa publicou em um jornal sério, A Manhã, um texto com a cara de jornal humorístico. Novato, dispondo de pouco espaço na mídia, em vez de um douto ensinamento do que quer que seja, ou mesmo uma estória colorida, pitoresca, trouxe uma defesa do chiste.

Aquele rol de piadas comporia melhor em outro periódico da época, que parodiava este, o humorístico esquerdista A Manha, editado por Apporelly, o Barão de Itaraté (Apparycio Torelly), citado inclusive no texto, “de memória” (Rosa, 1967: 6):

“As minhas ceroulas novas, ceroulas das mais modernas, não têm cós, não têm cadarços, não têm botões e não têm pernas.”

Já na leitura do livro, esta referência se configura em outra pista falsa, caranguejeira, com as manhas de Hermes: o autor cita indiretamente a fonte do texto, usando o seu duplo. O teor do prefácio poderia levar algum pesquisador a suspeitar que o texto tivesse sido publicado no humorístico A Manha, quando na verdade havia sido publicado no adversário, A Manhã.

O autor dá risada, e meia. Naquela conjuntura bélica, a posição de Rosa é a astuta esquiva, para o bem da arte, para o bem da vida, para o bem do ser. Pode ser até a história se repita, mas a estória, por mais que seja a mesma, será sempre única e original, pois que leva ao pensamento, à inaugurabilidade da arte, manifestação do ser.

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Dez anos depois, sob nova ditadura, Rosa de novo repete a mesma piada – que se esmera, como veremos, em chamar nossa atenção para as piadas repetidas. Aquele texto de início passara despercebido. Agora, em vésperas de posse na Academia Brasileira de Letras, consagração máxima, Rosa era pauta de toda mídia. Relança então o texto, esperando melhores ouvidos.

Em sua carta de despedida da Pulso, Rosa afirma:

Digo, devo ao convite de PULSO a realização da obra. Para minha especial sorte: porquanto os temas de alguns dos contos andavam-me sem solução na cabeça, uns há cerca de vinte anos; até que, só nesta forma curta, forçada pela limitação de espaço, encontraram como compor-se (Apud Costa, 2006: 97).

Para abrir sua mais recente publicação, o Rosa tira da gaveta um textículo que publicara lá no início e que passara despercebido. Afinal, naquele tempo ele não era o monstro sagrado da literatura brasileira, odiado por uns, amados por outros, sem dúvida reconhecido de todos os leitores lusófonos, ao lado de Machado, Eça, Camões e Pessoa. Naquele tempo ele era só um novato. E vejam que já era o Rosa.

Aliás, o título original do texto, “Risada e meia”, retirado do corpo do texto, tem a mesma estrutura de “tuta e meia”, variante de tutameia, que viria a ser o título do próximo livro que o autor pretendia lançar. Lembremos que, de acordo com informação coletada por Sperber (1982), existe a menção de um futuro livro, a se chamar Tutameia, já nos originais de Sagarana, ainda nos anos 1940. O título original do texto é mais uma prova cabal de que Tutameia é o resultado de um projeto maturado durante toda a vida do autor.

“A escova e a dúvida”, por sua vez, foi o texto que inaugurou a colaboração do autor na Pulso. A edição da revista, de 15 de maio de 1965, dá destaque para a novidade, trazendo em primeira página matéria intitulada “Guimarães Rosa em Pulso revezando com Drummond”, ilustrada por uma foto do Rosa a cavalo, e em seguida o referido texto, à página 3 (Cf. Costa, 2006). É

130 um espaço bem mais nobre que aquele que o autor recebera uma década antes, no A Manhã: o topo de uma página par (no verso, menos lido), no meio do caderno. O Rosa já tinha mais valia quando começou a publicar Tutameia.

Este texto primeiro, introdutório, viria a ser aumentado e publicado como o último prefácio das Terceiras estórias. Ora, como vimos, na compilação dos textos para a edição em livro, o autor não se deteve na ordem cronológica das publicações no periódico, e sim na ordem alfabética de seus títulos. Com o acréscimo da palavra “sobre” anteposta ao título original, o texto passou da letra A para a letra S.

Esta informação constitui-se em mais um argumento objetivo para não se agruparem os contos do livro de acordo com a posição em relação aos prefácios, conforme vêm insistindo alguns colegas rosianos. Seria muito fácil. Hermes, patrono de Tutameia, dissimula suas marcas enquanto nos guia pelas Veredas Tortas. Põe o que é da frente atrás, o que é de trás na frente, a gente não pode se fiar em marcas posicionais, porque elas são móveis e arbitrárias. No infinito circular do caranguejo, precisamos ver o que não está visível, nos abrirmos para a escuta poética. Em vez de se preocupar em classificar, a gente podia era sorver o sumo de suas palavras, manga madura caída na porta de casa, doce, sadia e cheirosa, doação do Ser. É o que intento fazer nestas páginas.

A caminhada cheia de extravios que venho realizando na leitura desta obra, eternamente revisitada, possibilita sempre um novo adentramento. O cotejo com as publicações originais dos textos permitiu observar que foram entremeadas novas tramas e enfeites, como se recompõe uma antiga fantasia de carnaval. O texto ficou ainda mais sobrecarregado de adornos: itálicos, aspas, recuos, rodapés, citações de textos estrangeiros e autores eruditos, uma profusão de enguias a petrificar o leitor incauto. Cada fiozinho solto estupefaz quem anima a seguir o seu riscado.

A fantasia do palhaço disfarça o oco dos olhos brilhantes. Enquanto os leitores, vorazes, futucam o chão a catar cascalho, ouro de tolo, por entre eles, sem ser notado, desfila o boi, o Ser, dançando na rua com suas ceroulas

131 modernas, que ninguém vê. A inaugurabilidade do instante, único, repleto de possibilidades, impregnado de memória, no empenho da busca do desvelamento da verdade do Ser, é o que nos apresentam as Terceiras estórias.

O sentido da hermenêutica

No título do texto que introduz Tutameia, “Aletria e hermenêutica”, Hermes já se faz presente. É Heidegger (2011: 96) quem esclarece o sentido e a origem do segundo termo do referido título:

A palavra hermenêutico vem do grego . Refere-se ao substantivo  que pode se articular com o nome do deus Hermes, , num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidão filológica. Hermes é o mensageiro dos deuses. Traz a mensagem do destino;  é a exposição que dá notícia, à medida que consegue escutar uma mensagem. Esta proposição se transforma em interpretação da mensagem dos poetas que, nas palavras de Sócrates, no diálogo Íon, “são mensageiros dos deuses”.

Hermes, deus da linguagem, convoca Rosa ao adentrar o corpo do texto. Hermes, sabemos, é o portador da mensagem do destino, a qual se nos apresenta, porém, cifrada em tortas linhas, em cujo entre ele trafega. A comicidade da criança esperta anima o iniciar da leitura. A graça e a leveza do deus menino enchem os olhos do público, ávido de novidades. A palavra, bola de fogo, se joga no entre da travessia, nonada de faísca rara.

Hermenêutico não diz interpretar, mas trazer mensagem e dar notícia. [...] Trata-se de fazer aparecer o ser dos entes [...] de maneira a deixar aparecer o próprio ser. O próprio ser significa: o vigor vigente, i. é., da duplicidade de ambos a partir da unicidade. É o que reivindica o homem em seu vigor (Heidegger, 2011: 97).

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Assim como o episódio da rede de Hefesto narrado na Odisseia, bem como o Hino Homérico IV, ambos protagonizados por Hermes, este prefácio é marcado pelo “jocoso, por uma juvenil irreverência, um humor muito rico” (Serra, 2006: 28). Hermes anima a festa. Liberdade, sagacidade e graça eclodem das palavras e ações deste deus menino. Abrir-se à escuta de sua mensagem requer despojar-se de qualquer sapiência, entregar-se à potência viva do novo: o soar das cordas da lira ecoa inaudito na palavra poética.

É por isso que “Aletria e hermenêutica”, como prefácio, desorienta o leitor que busca um guia confiável, que o leve no colo durante a leitura. Neste texto, como veremos, o autor não diz nada. Elenca referências múltiplas sobre o que não há o que se diga. Atente para as entrelinhas, os vazios, os silêncios, os cortes. “Tudo é e não é” (Rosa, 1986: 3).

Ligado ao deus mensageiro, o sentido da hermenêutica, como mediação entre mortais e imortais, luz e trevas, é trazer para o clareado as manifestações da realidade em suas realizações do real. Hermenêutica é trazer para a luz, aletheia, velamento e desvelamento.

Pensar hermenêutica é pensar Hermes ou a Palavra como lugar, isto é, a transcendência do ser humano enquanto abertura de mundo. [...] Interpretar poeticamente é [...] interpretar-se a partir da medida de todas as dimensões e medidas: o ser/ nada ou a realidade de toda realização como real. Enquanto éthos e poíesis o ser advém sempre como lógos. [...] O que vigora no diálogo poético-hermenêutico é a escuta do lógos. Sem autoescuta do lógos não há diálogo poético. Todas as obras de arte solicitam e aguardam o diálogo poético (Castro, Dicionário de Poética).

Nenhuma interpretação dá conta da palavra poética. Nem por isso deixaremos de dialogar com ela, não seguindo cânones, mas os apelos da obra. Através da leitura, o verbo-linguagem desvela a mensagem, o leitor se abre à escuta das Musas, no que elas têm de mistério e memória. Abre-se à escuta do Logos, que lança luz no que vigora velado. No eco da hermenêutica, assomam as

133 questões da linguagem, as questões originárias. A leitura do livro nos lança na leitura de nós mesmos. Aventurar-se além das trilhas conhecidas, adentrar as veredas do sertão, correndo o risco de se perder, não é possível tal façanha sem o consórcio de Hermes, deus das encruzilhadas, onde o demo vigora.

Hermes é verbo/ação e palavra/linguagem. Já caminho se diz em grego: hodós. Poiesis, caminho, sentido, verbo e palavra se implicam mutuamente. Eles constituem o real, pois o verbo de todos os verbos é o ser. Por outro lado, Hermes é o deus das encruzilhadas. É que estas mostram a ambiguidade dos caminhos, em seus encontros e desencontros, em sua confluência e difluência. Por isso o real se mostra na tripla dimensão ambígua de ser, não-ser e vir-a-ser (aparecimento) (Parmênides). É o que o grego expressa com o prefixo metá, em seu triplo significado: em direção a, junto a e entre. Método diz essencialmente o caminho do entre. Embora o ser humano viva sob a densidade de um destino (histórico e genético), saber o que cada um é só advém da caminhada (Castro, 2005: 58).

Na medida em que o homem vigora como lugar de manifestação, quando ele se lança na procura do que lhe é próprio, ouvindo a fala do Logos, ocorre a aprendizagem, pois ele se deixa tomar pelo vigorar da physis, que nele se manifesta no sentido de uma consumação do que está destinado.

Na arte, o caminho, enquanto linguagem, transfigura a vida vivida em vida experienciada como vida narrada. Essencialmente, narrar é fazer de Hermes o caminho (Castro, 2011: 58).

A leitura das estórias corresponde à leitura do mundo, mergulhar na experiência humana, vivenciar a travessia entre o nonada e o infinito, projetar o pensamento para fora dos padrões comumente aceitos. Tutameia exige um leitor dedicado, cuidadoso, este livro muito pede e pouco dá, mas pouco com Deus é muito. E a felicidade vigora no brilhar das estrelas. A consumação do destino é o que busca a astúcia poética, que se manifesta sempre a favor do ser. Servir às

134 potências da astúcia poética é o que fazem os artistas do verbo, herdeiros de Hermes, patrono dos que exercem os ofícios da palavra.

O poeta Hermes, sob os auspícios das Musas, filhas da Memória, canta o seu destino, sua proveniência, na qual já situa aquilo a que está destinado. Enquanto canta, confabula meios de consumá-lo. Toma posição, atua, inventa, dá seu jeito. Com ele nasceram juntos a lira e o comércio, atravessados por um roubo de gado. Aquilo que se dissimula no entrecruzar das mensagens é do domínio de Hermes, Verbo, Linguagem, Logos.

Com os pensadores surgiu o Logos. Como tal, em sua etimologia, esta palavra não significa em primeiro lugar dizer (embora tenha este sentido). Ela ex-põe e reúne o real em seu sentido. Por isso, o seu sentido principal é reunir com sentido, isto é, manifestar o real em sua sintaxe poética. [...] A exposição do real como sintaxe poética é como se entendeu a linguagem. É nesse sentido que Logos é linguagem e diz. A diretriz fundamental é a “ordem”, o sentido de ordenamento por oposição ao kaos. Nisto consiste a verdade do real, o se expor como ordem poética, com sentido enquanto Logos (Castro, 2005: 47).

A linguagem, porém, é ambígua como as jogadas de Hermes, chegar ao destino só é possível pelas vias tortuosas de seu caminhar dissimulado, a estória é um fingir com as palavras. Hermes é um fingidor. A arte o constitui como sentido, figura-o, pois ele só é quem é a partir do ser. “No fazer artístico não só o ser se dá em seu sentido fundando os sentidos, mas, se dando, constitui o ser humano em seu sentido” (Castro, 2005: 36).

Nas peripécias da criação ouvir é escutar a ação de legein, seguindo o advento de sua força de reunião e poder de recolhimento no curso da história (Leão, 2010b: 34).

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A linguagem, Logos, Hermes, em seu desempenho de por, depor, dispor, propor e compor, traz para a luz o que permanecia encoberto no velamento, assim como leva para o velamento o que parecia aparente. Não podemos nos esquecer de que Hermes sempre diz a verdade, mas não a verdade por inteiro.

A mensagem de Hermes dá-se aos mortais através de um envio sábio, a palavra vem ao pensamento e, pronunciada, corresponde a esta mensagem. Só chegaremos a ser quem realmente somos se nos abrirmos para esta mensagem, a mensagem do destino; atendermos a seu apelo, correspondermos poeticamente, na medida do que nos é dado.

Condizendo, o dizer dos mortais é uma resposta. Toda palavra já é resposta: é um contra-dizer, um vir ao encontro, um dizer que escuta. O ser e estar apropriado dos mortais para a saga do dizer libera o vigor humano para a recomendação de que o homem se faz necessário para trazer o sem som da saga do dizer para a verbalização da linguagem (Heidegger, 2011: 209).

Hermes, Logos, Linguagem, é a “operação primordial nas línguas de todos os códigos e nos discursos de toda realização deste de - inaugural que instala ordem e desordem, coesão e dispersão no mundo” (Leão, 2010b: 35).

A vitalidade do poético é a força-luz que traz do não ser para o ser, na tensão ordenadora da linguagem, geradora de posições e oposições, nas peripécias de realização do real. O casamento de ser e linguagem é a morada do homem.

A leitura de Tutameia exige que o leitor se desamarre das prescrições dos especialistas, que ele entre neste mato sem cachorro. No estranhamento da palavra poética, é preciso se sentir em casa, na casa da linguagem, onde habita o homem – nos vãos, não emparedados.

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Para se dar e acontecer mistério é indispensável morar nos vãos da linguagem e descobrir-se no seio de Logos. A forma mais frequente de se sentir e descobrir esta morada é a narrativa do extraordinário no Mythos e a forma mais intensa de vigência da narrativa mítica é a poesia, o Epos, pois todo desempenho de um real instala poesia, é poético (Leão, 2010b: 29).

Concentrar-se no nada que vigora nas estórias, vislumbrar a faísca do Ser no sendo de cada personagem, do Rosa, de nós mesmos, seguir o fio do trançado da rede esburacada, conforme a imagem construída por Rosa (1967: 10), da rede como “uma porção de buracos amarrados com barbante”, comentada por Castro (2005: 53-54):

A obra, enquanto todo orgânico (rede), tem o seu vigor no aórgico ou não-orgânico (vazio ou silêncio da rede). Porém, o vazio ou silêncio precisam dos fios e nós da rede, assim como a música precisa, na teia do seu ritmo, dos sons e harmonia.

Este amarrar o nó é a ação do Logos, a luz do verbo, o ordenar ajuntado que faz de uma casa mais que um amontoado de tijolos. São os nós que delimitam os vazios, assim como são as paredes que delimitam os cômodos vazios onde a gente se aloja. Os fios delimitam os buracos, trazem para a visibilidade o trançado da rede, das estórias, dos mitos, em que Rosa vê “malhas para captar o incognoscível” (Rosa, 1967: 5). Busco, pois, com as astúcias, uma interpretação em que se manifeste a verdade da obra.

O exercício de interpretação que aqui se realiza procura o sentido poético da mensagem cifrada nas herméticas Terceiras estórias. No diálogo com esta riquíssima obra de arte literária, dissimuladamente intitulada Tutameia, abre-se o lugar de manifestação da força reunidora do Logos, que ordena o mundo, dá sentido às palavras. A presença Hermes neste texto de Guimarães Rosa vem recordar que a mensagem do destino é aquela que nos guia ao que nos é próprio. A consumação se consagra no agir poético, que corresponde ao apelo desta mensagem. 137

Até agora, falamos de Hermes e de hermenêutica, palavra presente no título do primeiro prefácio de Tutameia. Antes de abordarmos o conteúdo do dito prefácio, é preciso pensar na outra palavra que forma seu título: aletria. O que esta palavra tão saborosa vem acrescentar ao sentido da hermenêutica, como experienciação da obra literária? Como conjugar aletria e hermenêutica?

Aletria, doce palavra

Aletria é o nome de um macarrão fininho, também conhecido como cabelinho-de-anjo. Tem um doce português muito gostoso, comum na região topônima do Rosa (Guimarães), feito com leite e esse macarrãozinho. Dizem que em uma casa com muitas bocas, para não ter confusão, é costume a doceira marcar a porção de cada um, salpicando com canela a letra inicial do nome da pessoa. Dizem também que no campo, nas fazendas de gado, o doce oferecido aos capatazes traz a marca do dono, gravada com o mesmo ferro em brasa usado para marcar o rebanho.

Figura 9: Porções de aletria decoradas com letras. Disponível em: http://komifala.com/2012/04/04/aletria-easy. Acesso em: 10 nov. 2012.

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Essas imagens emanam um cheiro doce e ancestral. Como a madeleine proustiana, a lusófona aletria rosiana transporta-nos para tempos imemoriáveis. É o cheiro da origem, do leite materno, a fonte e o limite do que nos é dado. A obra se abre pela boca, cuja flor é a linguagem.

Ora, lembremos da iniciais do autor – JGR – incrustada no índice de Tutameia, e das efígies da coruja e do caranguejo, a chancelarem as Terceiras estórias, marcas do autor em seu rebanho de ideias, e vemos surgir no prisma desta palavra não só a marca do autor, mas também o bom bocado que nos cabe, a medida do que nos é destinado, no diálogo com a mensagem poética impressa naquelas páginas, onde o Rosa deixou a marca de sua obra. A assinatura do autor reforça a busca pelo sentido da verdade, a justa medida. Pensei sobre a questão da autoria diante dessas visíveis marcas, mas hoje os vejo como trilhas de Hermes. A leitura dos prefácios leva a entender que maior que o controle do autor na criação poética é o mistério inaudito em que estamos mergulhados, de onde emana o eclodir da physis, o soar da palavra.

Por sua posição-chave, como abertura, título do prefácio que inaugura a leitura da obra, a crítica vem ensaiando leituras desta palavra. Para alguns, a- letria indicaria a não-letra, tanto a fala do analfabeto quanto o ainda não dito, o resguardado, que vigora no velamento (cf. Araujo, 2001; Faria, 2005). A-letria seriam os buracos da rede com que se tenta apreender a realidade.

Essa interpretação é enriquecedora, ao mesmo tempo em que provoca novas possibilidades de questionamento. O inusitado do encontro destas duas palavras de ordem diversa, aletria e hermenêutica, evoca questões, leva a pensar, e acaba encontrando o canto onde elas ecoam em concerto a música de Hermes, doação das Musas, da Memória. Buscando outras possíveis decifrações, vem ao ouvido a semelhança com: a-letheia, o desvelar da verdade no operar da obra.

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É neste movimento complexo de encobrimento, ocultação, esquecimento e latência que se edifica a experiência originária e radical que os gregos chamam, com toda propriedade, de aletheia: desencobrimento, revelação, desocultação, patência [...] O verdadeiro é o des-velado, o não mais encoberto; o que está sem ocultação, por se ter arrancado à vendagem e extraído do velamento. O verdadeiro é, portanto, o que já não traz consigo apenas o seu contrário: o ocultamento, é o que se já livrou de uma total latência (Leão, 2010b: 51).

Nesse sentido, aletria conjuga-se a hermenêutica, já que interpretar é trazer para a luz, juntar num todo arreunido o que se desoculta. A verdade do ser se dá e se oculta na obra, onde se manifesta em linguagem. O trazer para a luz de aletheia abre-se no topo da página, na altaneira cabeceira da obra, que dá o tom inicial, que vem ao poeta do vigorar da linguagem, que nele se manifesta como obra poética: o fingir do manifestar-se do mito.

Tentar capturar a essência da linguagem pelo código da escrita é tentar, como Apolo, decifrar os rastros dissimulados do deus dos larápios. A escrita, o código-língua não dá conta do vigorar da linguagem. Mas ao poeta a palavra originária, Hermes, ecoa o impronunciável destino, canto das Musas. Não pode se furtar a andar em círculos quem se propõe a seguir os rastros de Hermes.

A verdade vigora como ela própria, na medida em que o denegar velante, como recusar, atribui antes de tudo a toda clareira a constante proveniência. Todavia, como dissimular, atribui a toda clareira a não negligenciável agudeza do equívoco. Junto com o denegar velante deve, na essência da verdade, ser nomeada aquela mútua oposição que há entre a clareira e o velamento na essência da verdade. É o enfrentamento da disputa originária. A essência da verdade é, em si mesma, a disputa originária, na qual é conquistado aquele meio aberto, dentro do qual o sendo vem se situar e do qual o sendo se retira para si mesmo (Heidegger, 2010: 110).

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Na medida da astúcia, aletria e hermenêutica se conjugam na poética de Guimarães Rosa. Sob o letreiro deste título, adentramos em seu território, dispostos a atravessar as páginas, viajar pelas Veredas Tortas, orientados pelo som que mostra o caminho, o marulhar da água que brota da fonte. Os caminhos de florestas são feitos pelos animais a procurar as aguadas. Alguns chegam, outros se perdem. A água, em si, brota. Tutameia é olho d’água.

A fonte é doação da physis. O homem é doação do Ser, lançado em meio a tudo que é e não é, no livre e incessante manifestar-se e velar-se da realidade. O modo como opera a obra de arte que se inicia, o nada (tutameia) que é tudo (mea omnia) expressa-se nestas palavras poéticas: aletria e hermenêutica, mensagens de Hermes, enigmática em sua revelação.

Aletheia, a-letria, é velamento e desvelamento, fogo iluminador, faísca que ilumina a clareira mergulhada na floresta. Temos que abrir espaço para deixar crescer o que em nós desde sempre fomos. Apropriar-se do próprio é estar a caminho. Nosso guia é Hermes, o deus da linguagem, mensageiro do destino. O sentido da verdade do ser só o apreendemos se nos abrirmos à escuta de Hermes e Atena, Aletheia e Logos, aletria e hermenêutica, a luz do verbo lançada no inesperado, no nada criativo, de onde tudo brota.

Na leitura de uma obra literária a verdade se põe em obra, logos e aletheia a vigorarem no pólemos originário, disputa de terra e mundo, o confrontar-se do homem com a realidade em que está lançado, buscando o sentido dos fenômenos – sem porém arrancar de todo os véus do mistério, sua neblina.

Encontrar respostas prontas, na ciência, na religião ou em qualquer outra forma de compreensão sistemática da realidade é o que estamos acostumados a querer. E o Rosa finge que nos corresponde, demonstrando em textos pretensamente explicativos, metacríticos, uma possível classificação. Mas o que ele nos apresenta são anedotas, mitos, que dizem muito mais do que ele consegue expressar em palavras. Em vez de explicações, Rosa propõe enigmas, como iniciação hermenêutica. Como o médico de uma das anedotas do prefácio, a este leitor viciado o doutor João Rosa receita a mais pura água da fonte:

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E houve mesmo a áquica e eficaz receita que o médico deu a cliente neurótico: “R. / Uso int.º / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa repetita, 20 c.c. / Eadem stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q. s.” (E eliminou-se de propósito, nesta versão, o “Hidrogeni protoxidis”, que figura noutras variantes.) (Rosa, 1967: 7).

As narrativas rosianas contam a irrupção do mistério em linguagem, luz da verdade. Porque na arte não há respostas, sempre enigmas que nos colocam novas questões. O que na estória se manifesta é muito mais do que a poética rosiana, criação de um indivíduo: é a verdade do Ser. Por isso sua obra nos toca.

Os grandes pensadores sempre falam em paradoxos e contradições. E não o fazem por escolha e sim por terem sido colhidos pela simplicidade, com que a realidade se realiza nas peripécias e vicissitudes do real. Para evitar o paradoxo e fugir à contradição, tem-se de substituir o real, na simplicidade de sua realização, pelos artifícios de um sistema de teorias e explicações (Leão, 2010b: 142).

- Eu vim para confundir...

O aparecer inaparente da clareira eflui do resguardado salutar que abriga de modo duradouro o destino.

(Heidegger, 2008: 249).

Espera-se de um prefácio que ele lhe dê parâmetros para orientar a leitura da obra em mãos. Rosa cumpre e não cumpre este contrato tácito, na medida em que ele diz, sim, sobre sua poética, mas à moda do Chacrinha: “- Eu vim para confundir, e não para explicar!” O velho palhaço bem poderia ornar o elenco de anedotas que compõem este texto. Conforme comenta Faria (2005: 222):

O prefácio é aquele ponto médio onde poesia e pensamento se aliam, onde a imaginação se urde com a razão, onde o engenho e o juízo unem forças, e onde mais fecundantemente pode vicejar o diálogo

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entre o autor e o leitor. No prefácio, o autor se “desesconde” do leitor, e mesmo se, ao gosto de Rosa, ele continua a praticar um certo brincar de esconde-esconde, nem por isso ele deixa de se revelar, velando, ou de se velar, desvelando, como o próprio ser, que se compraz num ritmo de máscara e ostentação.

A necessidade de explicação ante o público atônito corresponde ao pressuposto de que o autor daria conta de explicar sua criação poética. Isso diria um sujeito capaz de controlar a criação, quando sabemos que não sabemos de nada. A busca do sentido da verdade do ser, esta se dá nas obras de arte e pensamento, onde acontece o inesperado. Mistério, Mito, Memória, Musas, tudo é doação do Caos, do Nada Criativo, do Ser.

Mas, vamos, com as armas de Hermes, finalmente adentrar o texto. Assim se abre “Aletria e hermenêutica”, num parágrafo curto e enigmático, aposto ao texto publicado originalmente havia mais de dez anos:

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota (Rosa, 1967: 3).

Rosa parece classificar e situar suas estórias, no jargão da crítica, construindo conceitos e categorias classificatórias com base nos atributos, calcados numa bipartição (estória x história) em que se deve tomar partido de um lado ou de outro, mas que acaba por se resolver num terceiro elemento (anedota).

A diferença entre estória e história remonta a Aristóteles (1995), cuja Poética reza que o poeta conta o que poderia acontecer, construindo a verossimilhança a partir de verdades gerais, e narra uma única ação, ordenando organicamente as partes de sua estória; o historiador, por sua vez, refere-se somente a fatos ocorridos (sendo portanto menos sério e filosófico), e mostra várias ações ocorridas em um espaço de tempo, “ligado cada fato aos demais por um laço apenas fortuito” (p. 45). Já na sociedade ocidental iluminada, perseverou a ideia de que a arte deveria submeter-se à verdade histórica, não mais valendo a máxima aristotélica segundo a qual “um impossível plausível é preferível 143 a um possível que não convença” [...] aponta para a existência de um discurso histórico oficial, com H maiúsculo, responsável por registrar os fatos acontecidos na sociedade. Porém, sabemos hoje que esse discurso é comprometido com o ponto de vista da classe dominante, e que o resgate do passado a partir de ângulo diferente só é possível se o historiador, consciente deste apagamento forçado, colocar a seu serviço “coisas finas e espirituais [...], como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade” (Benjamin, s.d., p. 2).

Mas o mais curioso a se reparar é que neste pequeno parágrafo introdutório não há a expressão de um conceito definidor do que seja a estória. O autor não diz o que a estória é, mas o que ela quer ser. Ou melhor, o que ela não quer ser. E notem que quem quer ou não quer ser não é o autor, e sim a estória. O autor apenas explicita seu apelo, o apelo da linguagem em se manifestar em riso, poesia e pensamento, como uma anedota.

O querer ser é o que move a estória, e não o que é. E nem isso, porque mais à frente notamos que a estória nem quer mais ser, ela quer apenas às vezes parecer um pouco. A referência entre os verbos ser, querer e parecer figuram a estória como algo que configura a expressão do inusitado, como o homem humano figurado por Cura na travessia de um riachinho barrento.

O que está em jogo no operar de Cura é sempre o destino de cada ser humano, que é o acontecer de seu próprio. E este é absolutamente original para cada um. Não dá para reduzi-lo a classificações. Na regência de Cura se decide o destino do que cada um deve e consegue realizar. Mas para isso, o ser humano, enquanto Cura, se defronta com questões essenciais e originárias (Castro, 2011: 226).

A obra de arte não quer ser circunstancial, nesse sentido não quer ser história. O mito não perde a validade, já as contingências históricas variam com as épocas, e o discurso oficial assume o tom de quem momentaneamente ocupa lugares de poder político. Mas a arte quer ser sempre atual e criativa.

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As forças políticas conjunturais, circunstanciais nem sempre escutam esta força de tempo e ser e se deixam tomar pelo jogo político das forças conjunturais dominantes, que [...] com o tempo deixarão de ser dominantes, já que a força de todo poder não é o poder dos segmentos dominantes [...] mas as possibilidades de ser e chegar a ser. O acontecer da história é bem mais enigmático do que julga e deseja nossa frágil racionalidade (Castro, 2011: 27).

A história que se diferencia da estória diz os sistemas constituídos das causalidades e regras. A História a que se opõe a estória diz o discurso autoritário, que impõe a sua verdade como a única aceitável. A anedota que às vezes a estória quer ser diz a surpresa do inesperado, o fósforo que ilumina o cinzento e monótono cotidiano. Anedota e mito são o mesmo, o querer da linguagem se manifesta no mistério insondável da realidade.

Sabendo disso, desconfiados, seguimos o texto, e eis que surge a luz:

A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência (Rosa, 1967: 3).

Aqui o Rosa parece que explica o que ele quer dizer com anedota, usando o exemplo do fósforo – não por coincidência o fogo iluminador da verdade, presente no vigorar dos mitos gregos da astúcia, aqui abordados. A anedota, como o enigma, como o mito, narra, faz aparecer o inesperado, surpreende, leva a pensar, questionar.

O pensamento do homem moderno está viciado em escadas rolantes e em shopping centers, em livros de bolso, manuais de instrução. Os enigmas de Tutameia querem dar o tombo, para ensinar o pensamento a andar de novo com as próprias pernas, tornar a engatinhar, nadar na lama originária de Cura: querer ser, escutar-se, morrer, feliz.

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A obscuridade do Mito é sobretudo positiva no sentido de nos atrair e pôr em condições de aceitar nos limites de que não sabemos, a doação de novas possibilidades de ser e realizar-se. Os limites não apenas nos retiram e recusam alguma coisa. Os limites, quando o fazem, só o fazem para nos conceder e pôr nas possibilidades que somos e por isso mesmo temos (Leão, 2010b: 47).

Para satisfazer a necessidade do leitor formatado, porém, Rosa segue ensaiando uma classificação das anedotas, ressaltando aquelas com as quais a estória quer parecer, aquelas que levam a pensar o inusitado:

E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva – demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato – a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de: anedotas de abstração. Serão essas – as com alguma coisa excepta – as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins: e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”(Rosa, 1967: 3-4).

A escuta poética das estórias rosianas, compreendidas como anedotas de abstração, convoca ao pensamento originário, na medida em que abre os ouvidos do leitor para a “escuta de um saber inaugural que tudo move, tudo atravessa, tudo empurra para o abismo da realidade” (Leão, 2010b: 161).

Dá-se a aprendizagem, como experienciação das questões, na interpretação das Terceiras estórias, quando a procura do sentido do texto é ao mesmo tempo o apropriar-se do que nos é próprio, nossa destinação, deixar que o ser se manifeste em sua verdade como o que ele propriamente é. Cada narrativa de Tutameia conta o modo como esse inusitado acontecimento apropriador se dá, ou não, na travessia da vida de cada personagem.

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Só enquanto se a-propria a clareira do Ser, é que o Ser se entrega, no que Ele é propriamente, ao homem. Que, porém, o Da (lugar), a clareira, como Verdade do próprio Ser, se a-proprie, é destinação do próprio Ser. É o destino da clareira (Heidegger, 1967: 60).

A irrupção da verdade pelo acontecimento apropriador que se manifesta a partir da linguagem é o que narra a primeira anedota deste prefácio:

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: - “Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!...” Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... e exclama: - “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...” (Rosa, 1967: 4).

Novamente irrompe o fogo clareante, inesperado: como um fósforo, faísca o raio do pensamento, logos, aletheia. Precisou um fogo fátuo de um suposto incêndio para fazer o infeliz padeiro acordar do sono do esquecimento do sentido da verdade do ser, no qual ele seguia autômato, resignado, a puxar carroça. Ao fim da anedota, talvez ele ainda não saiba quem ele seja, mas pelo menos já sabe quem ele não é, o que já é um começo para a escuta de si, antes de sair seguindo sem pensar qualquer vã palavra propalada ao vento.

O despertar pela escuta da palavra encontramos no conto “Grande Gedeão”, cuja inicial do título refere-se no índice à letra G, do JGR, que agora trago para esta leitura.

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A estória do gigante

Como o português da anedota de “Aletria e hermenêutica”, Gedeão Gouveia cumpria sua tarefa, mourejando feito burro de carga, alheio de si. Pequeno sitiante, labutava de sol a sol, no Afundado, para arrancar da terra o sustento dos seus. Só folgava nos domingos e dias santos, quando ia à missa.

Um dia vieram uns padres de fora, a santa missão, e no cochilo da homilia, Gedeão escutou as ditas palavras:

– “Os passarinhos – não colhem, nem empaiolam, nem plantam, pois é... – Deus cuida deles.” Em fato, estrangeiro, marretou: – “Vocês sendo não sendo mais valente que os pássaros?!” (Rosa, 1967: 77).

O protagonista caiu de maduro, se deu conta da palavra e decidiu experienciá-la: parou de trabalhar. Dali em diante para ele seria sempre domingo, doação do Altíssimo. A escuta da palavra propiciou o acontecimento apropriador, pelo qual Gedeão pôde vir a ser o que sempre fôra, mas não era ainda. Seguiu, com a melhor roupa, fiando na venda, largou a enxada, “desagachou-se” (Rosa, 1967: 78).

Vagava-lhe tempo e o repouso mandava-o meditar – renovado o carretel de ideias – de preguiçoso infatigável. Vigiava. Atento, a- cercas, ao em volta: ao que não se passava. Nisso o admiravam (Rosa, 1967: 79).

Alguns o tomaram por louco. Outros achavam que ele tinha encontrado um tesouro, panela de dinheiro enterrada, supunham explicações plausíveis onde havia só a ousadia de sair da linha. Olhar de coruja, andar de caranguejo, ouvidos atentos para o ecoar do verbo, a mensagem do destino.

A partir da escuta da palavra, a mostrar que tudo é doação da physis, do Ser, aconteceu o inesperado. A escuta levou à ação poética, à não ação, ao nada criativo. Parado, pôde “assuntar a assunteza do mundo”, nas palavras de meu

148 amigo Tazinho, índio visionário que vigia a barra do rio Caraíva. Pôde perceber o rame-rame dos viventes, ocupados em extrair da physis os recursos para o sustento, filmando as astúcias do mundo:

De pura verdade, recuidasse em que os pássaros não voam de-todo no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos ninhos, de alt’arte; pela moradia – o joão-de-barro? Decidiu uns outros movimentos (Rosa, 1967: 79).

Quis vender o Afundado. A mulher tocou-o de casa. Ao que então os vizinhos lhe propuseram negócios, como administrar a reforma da casa de uma fazenda, por exemplo. Não mais cessaram as novas oportunidades de ganho.

E – tome realidade! Vindo-lhe, com pouco, cifrão e caduceu, quantias que tantas: seu dinheiro estava já em aritméticas. Reavultava, prezado ante filhos e mulher – avoado – apotestado, sócio da sábia vida (Rosa, 1967: 79).

Herdeiro de Hermes, portador do caduceu, Gedeão em seus novos negócios tirava muito mais do que conseguia agarrado no cabo da enxada. Aprumou-se, consumou-se, este é um que morreu feliz, pois se arriscou a ser o que quis, e foi. A mensagem de Hermes pode ser esquisita, mas não tem erro, é a verdade velada. Bem-sucedido é o que se deixa arrebatar pela palavra poética, mensagem do destino.

Voltemos, agora, ao prefácio em estudo, “Aletria e hermenêutica”, onde paramos ainda na primeira piada.

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E o autor não diz nada...

No quinto parágrafo de “Aletria e hermenêutica”, entramos na seção que denominamos “anedotário”. Estendendo-se até a penúltima página do texto (p. 11), esta seção é composta de anedotas populares (de português, bêbado, crianças, loucos e capiaus), entremeadas a diversas referências ao cânone e articuladas através de comentários do autor, que as relaciona a temáticas recorrentes em sua obra, como o mito, o nada, o erro, o zen, a “posição-limite da irrealidade existencial” (p. 4). Através deste extenso rol de anedotas e ditos chistosos, Rosa reafirma insistentemente o exercício de releitura proposto em Tutameia.

A saída do Rosa, diante dos apelos do público por explicações, facilitações, foi falsear num aparente sistema uma explanação do mistério. Mas, em vez de dar a lume uma teoria sobre seu fazer poético, após breve introdução a exaltar o cômico, elenca um rol de anedotas, pequenas narrativas em que a verdade se manifesta de forma velada.

Isso porque o velar-se da verdade não pode ser exposto em proposições declarativas. O que nos prefácios de Rosa se dá não é a explanação sobre seu fazer poético, mas já é a própria obra acontecendo, estórias narradas, a proporem enigmas, que promovem a ação questionadora do pensamento.

E o assunto de todas aquelas anedotas é simplesmente o nada, origem de tudo. Neste ponto Rosa emparelha-se com Heráclito, o obscuro, a propor enigmas nadificantes. Ao público, lança, palhaço, mais ou menos isso:

“O cano é um buraco com um pouquinho de chumbo em volta.” “A rede é uma porção de buracos amarrados com barbante.” “A vitrola é como uma máquina de costura, só que muito diferente.”

Quando foi impresso no periódico, este texto passou batido pelo público. Mas em livro, já consagrado o autor, os críticos iriam esmiuçar cada uma daquelas anedotas como se fossem sentenças oraculares. E são mesmo, desde

150 sempre foram. Eles é que não tinham ainda aberto os ouvidos para o envio sábio, que emana das narrativas, que soa em suas palavras.

No sopro da palavra poética ecoa o vigorar da physis, em seu desvelar velante. As estórias, os mitos, narram a irrupção do inesperado, que se dá ao homem, do nada, como alface fresca coberta de oruvaio.

As anedotas de abstração volteiam em redor do nada, que é o grande assunto do primeiro prefácio, justamente porque constitui o substrato abissal do livro. O nada é o princípio de toda criação. No nada, suspende-se o homem, no nada, precisa edificar o seu existir. A operação poética segundo a qual o nada vem a ser tudo é a matéria do livro, e ela se assume já em seu título, no qual “tuta e meia” chega a ser “mea omnia”. Mas o nada [...] é impossível de se apreender, mais ainda de se compreender (Faria, 2005: 227).

Rosa convida a pensar o nada, o não ser, ouvir o silêncio, confrontar-se com o absurdo, nadar no “mistério geral, que nos envolve e cria” (Rosa, 1967: 4). A “niilificação enfática” (Rosa, 1967: 9) que se manifesta no operar de Tutameia vem mostrar que não há esquema totalizante que dê conta do inusitado voo da brabuleta. A Terra não para de rodar, embora pareçamos parados.

Dá para imaginar o estupor dos leitores diante daquele circo de cavalinhos, banca de ninharias, bugigangas baratas, entremeadas de citações livrescas, eruditas, avalizadas pelo escol do cânone.

No livro ele se explica melhor que no periódico. Em nota de rodapé, num adjutório, aproxima as anedotas de abstração aos koan do zen, enigmas sem solução, propostos para se alcançar a luz através do absurdo:

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______

* Ainda uma adivinha “abstrata”, de Minas: “O trem chega às 6 da manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista?” (Porque é o sol.). Anedótica meramente.

Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem: velocidade horária, pontos de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina: - “Qual é o nome do maquinista?” Sem resposta, só ardilosa, lembra célebre koan: “Atravessa a moça a rua; ela é a irmã mais velha, ou a caçula?” Apondo a mente a problemas sem saída, desses, o que o zenista pretende é atingir o satori, iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções.

(Rosa, 1967: 7-8, rodapé).

Diante dos enigmas do destino, não há uma resposta lógica, única. O desenredo da vida é o mundo à revelia. Sendo, o homem avança, nuns passos de quem se retira. Ninguém escolhe nascer, nem escapa da morte certa, nem soluciona o enigma. O nada criativo, insondável, é a origem de tudo que é e não é. Nada é Ser, já diziam os pensadores originários. Nesse sentido, comenta Leão, a propósito dos enigmas de Heráclito:

Pensar o nada é a maior provocação para o pensamento. Pensar o nada não é pensar nada. É pensar em nada mas pensar, pensar no nada e por isso é tão difícil como pensar o ser. [...] Não se trata de duas tarefas mas de uma tarefa só que constitui a única tarefa do pensamento. [...] É o nada que sustenta a radicalidade de todo porquê! Nenhum real [...] pode oferecer amparo ou dar proteção contra a radicalidade do nada (Leão, 2010b: 162).

O leitor que espera uma estória amena, confortável, que lhe reforce os conceitos, que trilhe o já sabido, que estiver à procura de um método analítico, aqui ficará com cara de tacho, pois não há respostas, não há um método, sistema que, após mapeado, possa ser dominado e utilizado para exploração. Diante um texto que só diz o nada, o leitor formatado se sente como os ratos e o

152 príncipe ambicioso, acuados diante do velho gato caçador, na anedota zen com que Leão (2010b) explica o sentido grego do caos. O gato não tinha método, dormia o tempo todo, era imprevisível, incontrolável, enigma invencível:

Os ratos se recolheram para observar qual seria a técnica e o método do novo caçador. Passou o dia e o gato dormia. Passou a noite e o gato dormia. Veio a manhã e o gato dormia. Os ratos começaram a tremer. Não tem método, não tem modelo, não tem técnica, não tem ferramenta: o caçador perfeito. Nele tudo é o silêncio de uma realização perfeita. E contra isso não há o que fazer. Junto com o príncipe, os ratos abandonaram a região do Sung e deixaram o império da dinastia Chou. É o sentido grego do Cáos! (Leão, 2010b: 41).

O pulo do cômico ao excelso, que Rosa menciona na conclusão do texto, é o próprio pulo do gato, que não se ensina, só se aprende, na experienciação da vida, jogando com a manha do inesperado. Para tornar a ser livre, no percurso da travessia, o pensamento humano precisa desatar os nós das armadilhas que o prendem em convenções alienantes, porque distanciadoras do próprio.

O autor acrescenta no texto publicado em livro uma última página, uma lista de aforismos, muitos constituídos de provérbios adulterados. Na pesquisa de mestrado, destrinchei alguns desses ditos, com as ferramentas da análise do discurso. Mas o sentido de todos é o mesmo do restante do texto: um apelo para que o leitor, ao pensar o nada, ao ouvir o silêncio, desperte da inércia teleguiada e acorde para os próprios pensamentos, permita que uma luz nova clareie o que parecia por demais oculto ou desocultado. Diante do hermetismo do texto, atender seus apelos, deixar-se levar pela graça das palavras, lançadas no abismo do nada, sementes dançando ao vento.

O que não pesa é o que vale no nada de Tutameia.

Abrir-se à escuta da mensagem do destino, renunciar às respostas prontas, questionar o visível e o invisível, obedecer à voz do sagrado, que convoca o homem a apropriar-se do que lhe é próprio, habitar a linguagem,

153 existir, ser: eis o apelo que nos lança toda obra de arte. Do mistério da realidade brotam o poeta e a palavra. Tudo é doação do Ser, do nada criativo. O vigorar da physis explode na palavra poética, resposta ao apelo do Ser.

Toda palavra (do grego pará-ballein, jogar no entre) origina-se do vazio, do silêncio, do nada criativo. [...] Sempre já estamos, como sendos existentes, jogados nessa experienciação como provocação do pensamento, proveniente do nada criativo (Castro, 2011: 22).

“Aletria e hermenêutica” apresenta o desenredo da anedota de abstração, que narra a irrupção do inesperado. Mostra como a ausculta da mensagem do destino promove o acontecimento apropriador, trazendo o homem a habitar novamente os vãos da linguagem.

Já “Hipotrélico”, que abordarei a seguir, mostra que, a despeito de quaisquer teorias científicas, linguísticas, biológicas, antropológicas, filosóficas, as palavras saem da boca do povo, desocultam-se, lançadas no entre do diálogo.

- Sou, mas quem não é?...

Nunca se deve dizer da palavra que ela é. Deve-se dizer que ela se dá – não no sentido de que as palavras “estão” dadas, mas de que a palavra ela mesma dá e concede. A palavra: a doadora. Mas o que dá a palavra? Segundo a experiência poética e de acordo com a tradição mais antiga do pensamento, a palavra dá: o ser (Heidegger, 2011: 151).

A origem da palavra é o tema de “Hipotrélico”, que apresenta a questão de modo anedótico. O termo que compõe o título deste prefácio é um neologismo que designa aquele que não tolera neologismos. Assim como “Aletria e hermenêutica”, este texto ironiza o cientificismo classificatório do discurso lógico, com que supostamente conceitua e classifica suas estórias.

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Aqui o alvo da ironia são os gramáticos, puristas, que implicavam muito com as ousadias verbais que o Rosa realizava com a língua. O autor elenca e desconstrói os abomináveis argumentos com que os conservadores da paróquia buscavam desmerecer sua criatividade no trato com o idioma materno.

Em minha dissertação de mestrado, tive a oportunidade de me debruçar sobre este texto, por tanto tempo que nem consegui chegar aos outros prefácios (Andrade, 2004). A investigação ali empreendida me deu meios para a abordagem poética que ora apresento, no entretecer dos nós e buracos da rede.

“Hipotrélico”, posso hoje dizer, é a própria palavra narrante. O texto, após muito digredir, narra a origem do vocábulo que o intitula:

Já outro, contudo, respeitável, é o caso – enfim – de “hipotrélico”, motivo e base desta fábula diversa, e que vem do bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas. Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente: – E ele é muito hiputrélico... Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto: – Olhe, meu amigo, esta palavra não existe. Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo: – Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer? – É. Mas não existe. Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz da descoberta, e apontando para o outro, peremptório: – O senhor também é hiputrélico... E ficou havendo (Rosa, 1967: 66-67).

Rosa é conhecido cunhador de palavras, moedas suas acrescentadas ao tesouro da língua. Mas o que ele nos mostra com esta anedota é que a palavra nasce do inesperado, do instante imprevisto em que o homem se depara com o que ainda não foi nomeado. O poeta se deixa tomar por esses nomes, quando escuta e deixa falar a linguagem, a mensagem do destino.

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No que a linguagem nomeia o sendo pela primeira vez, tal nomear traz então o sendo para a palavra e para a manifestação. Este nomear nomeia o sendo para seu ser a partir deste. Tal narrativa inaugural é um projetar do iluminar em que é anunciado como o sendo, no que ele é, advém ao aberto (Heidegger, 2010: 167).

Da fonte-borda originária broteja a palavra poética, doadora de ser (Heidegger, 2011: 173). Para ser capaz de pronunciá-la o poeta precisa aprender a renunciar a si mesmo, seu julgamento e vontade de poder, para deixar a palavra vir a ser o que ela é. Deixar-se tomar pela palavra é se embebedar de ser, agir sem sentido lógico, abrir-se ao acontecer da natividade e do encobrimento, e neste entre-acontecer tornar-se o portador da mensagem.

Para alcançar os nomes, o poeta deve em sua travessia chegar ao lugar em que sua reivindicação encontra a satisfação procurada. Isso acontece à margem de sua terra [onde] encontra-se a fonte-borda, o poço em que a norna cinzenta, a antiga deusa do destino, busca os nomes. Com os nomes, ela concede ao poeta aquelas palavras que ele, com toda confiança e segurança, aguarda como a representação daquilo que ele toma por existente (Heidegger, 2011: 178).

O cabedal de palavras que forma um vocabulário de um idioma está sempre a receber novas moedas, tutameias cunhadas por artimanhosos poieteiros. A manifestação do sentido do ser se dá no narrar da palavra poética, doadora de ser, que traz para a luz, nomeando, o que permanecia velado, no inominado. A experienciação do viver nos cobra novas palavras, para nomear a originalidade incessante da physis. Nós, míseros mortais, temos que dar conta do riscado. Navegar é preciso, enfrentar os monstros, contar a estória.

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O poder da criação

Não, ninguém faz samba só porque prefere Força nenhuma no mundo interfere Sobre o poder da criação

Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito Nem se refugiar em lugar mais bonito Em busca da inspiração

Não, ela é uma luz que chega de repente Com a rapidez de uma estrela cadente E acende a mente e o coração

É, faz pensar Que existe uma força maior que nos guia Que está no ar Bem no meio da noite ou no claro do dia Chega a nos angustiar

E o poeta se deixa levar por essa magia E um verso vem vindo e vem vindo uma melodia E o povo começa a cantar: laraiá... Lá, laraiá, laiá, laraiá!

João Nogueira e Paulo César Pinheiro4

O questionar nos encaminha para “Sobre a escova e a dúvida”, em que a angústia da insatisfação diante da obra acabada mistura-se ao espanto diante do mistério da criação poética.

Não é o poeta que põe o é, ele apenas finge, que é o fazer eclodir, enquanto posição, o que já é. Em vista disso só pode ser poeta fingindo a partir do ser. É no vigorar do ser que o poeta se torna poeta e o agir inerente ao poeta pode fazer surgir o que finge, figura, o poema. O que reúne o poeta e o finge é o ser (Castro, 2011: 229).

4 Disponível em: www.cifras.com.br. Acesso em: 17 dez. 2012. 157

“Sobre a escova e a dúvida” aborda o mistério em que estamos lançados, de onde proveem as estórias, mito e memória. São episódios isolados, que dizem o espanto diante do mistério da criação artística, que acontece quando o autor se deixa arrebatar pelo vigorar da linguagem. Como texto inaugural que, como vimos, a princípio abriu os trabalhos na Pulso, tem originalmente vocação para prefácio, assemelhando-se mais a este gênero textual, pelo seu teor autorreflexivo e confessional, sem abandonar o humor.

Costa (2006) informa que, das sete partes que compõem este texto, os itens de número II, III e VII foram publicados isoladamente, com títulos próprios, em edições da Pulso de 1967, já entre as últimas colaborações do autor ao referido periódico. Faria (2005) fez uma pormenorizada e atenta leitura deste prefácio, longo, fragmentado, esquisito, cheio de epígrafes, citações, rodapés, ainda mais pesado de marcas gráficas do que “Aletria e hermenêutica”. Araujo (2001) procedeu a uma exaustiva leitura a partir das fontes eruditas relacionadas no texto, como Sêneca e Sextus Empíricus, que fornecem ao leitor menos versado em antiguidades informações muito úteis na interpretação das estórias.

Neste pasto a tarefa é grande, carece de mutirão para terminar no prazo. Um só, sozinho, não consegue. Compondo com as companheiras, nesta leitura pretendo navegar, porém sem perder meu rumo: o sentido da astúcia rosiana.

O que me proponho a fazer aqui, dadas as limitações impostas, é passar rapidamente por suas páginas, buscando em sua unidade o sentido da astúcia rosiana, num diálogo poético com o mito de Hermes.

No sincretismo que tudo mistura, Hermes é associado ao deus egípcio Thoth, inventor da escrita. No Fedro, Platão narra esta passagem, quando Thoth oferecia seus inventos ao rei, gabando-lhes a utilidade. Cito a cena narrada:

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Quando chegaram à escrita, disse Thoth:

“Essa arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fornecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria.”

Responde Tamuz:

“Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar a utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber, embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência, serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios” (Platão, 2007: 118-119).

O pensador ressalva que há uma espécie superior de discurso: “conscienciosamente escrito com a ciência da alma, [...] o discurso vivo e animado do homem sábio” (Platão, 2007: 120). São os diálogos, que, ao semearem palavras, espalham sementes de felicidade. Esses discursos, que instruem e reavivam a memória, apesar de escritos, se gravam na alma, geram descendentes nas almas de outras pessoas.

A comparação entre palavras e sementes reportou-me ao item II do texto (originalmente publicado em 1967, sob o título “Inteireza / Incessância”), em que, diante da infinita natividade de uma mangueira, Rosa manifesta sua dúvida em relação à capacidade de seus escritos manifestarem a vivacidade do real. Apresenta seu mestre urucuiano, Tio Cândido, devoto possuidor da supradita árvore, à qual contemplava com devoção:

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Diz o que dizia, apontava a árvore: - Quantas mangas perfaz uma mangueira, enquanto vive? – isto, apenas. Mais, qualquer manga traz, em caroço, o maquinismo de outra mangueira igualzinha, do obrigado tamanho e formato. Milhões, bis, tris, lá sei, haja números para o Infinito. E a cada mangueira dessas, por diante, as corações-de-boi, sempre total ovo e cálculo, semente, polpas, sua carne de prosseguir, terebentinas. Tio Cândido olhava-a valentemente, visse Deus a nu, vulto. Via os peitos da Esfinge.

Daí, um dia, deu-me incumbência:

– Tem-se de redigir um abreviado de tudo.

Ando a ver. O caracol sai ao arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza (Rosa, 1967: 149).

O chamado de Hermes para o ofício do verbo o autor conta escutar em todos os lugares, quer seja em Paris ou no Sertão mineiro, em conversas alheias ou ouvindo a si mesmo, em átimos de felicidade e mistério. O que vem até ele assim, do nada, ele sente que precisa agarrar, dar forma, fingir, figurar.

A abertura para as manifestações da realidade realizando-se no real possibilita a percepção da pauta a ser seguida, seguir as tortuosas trilhas de Hermes, inalcançáveis pela lógica calculista, apenas pela palavra poética.

A suspensão do tempo cronológico, o tênue limite entre a razão e a loucura, os inexplicáveis lapsos de completude, a incessante inaugurabilidade da vida são enigmas diante dos quais o autor se coloca, não no intuito de explicá-los, mas no sentido de experienciar na linguagem o vigorar do mistério.

O item VI é de especial interesse para a crítica rosiana, por constituir um dos raros momentos em que o autor comenta expressamente a sua obra. O texto é adornado por uma epígrafe de Sêneca (apud Rosa, 1967: 156-157):

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Problemas há, Liberális excelente, cuja pesquisa vale só pelo intelectual exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se a indagação deve perseguir-se até ao fim, ou simplesmente limitar-se a uma encenação para ilustrar o rol dos divertimentos.

O leitor fica com a pulga atrás da orelha. Haverá naquele texto pistas falsas misturadas a verdadeiras? Sim, hoje claro vejo, visto que o falseado da linguagem é o manifestar-se do mistério, através da palavra poética. Bola de fogo figurada pela fala humana, cada nova palavra lançada ao vento tilinta na fonte dos desejos de Cura, de onde brotara.

Rosa compartilha com o público a sua renúncia à pretensão de dizer que é propriamente o autor de suas estórias narradas, pois são elas que vêm até ele, intimando-o a narrá-las. Ele diz que as recebe, como o público, vindas não se sabe de onde. É como se ele tivesse poderes mânticos, recebesse avisos (de Hermes?). Em nota, explica que este fenômeno, que acontece com algumas pessoas, é conhecido como serendiptismo, numa alusão ao conto de fadas dos Três Príncipes de Serendipt, que tinham a faculdade de “estar sempre obrando achados, por acidente ou sagacidade, de coisas que não procuravam”(Rosa, 1967: 157). Em tom confessional, conta como as estórias é que misteriosamente veem até ele:

Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. À Buriti (NOITES DO SERTÃO), por exemplo, quase inteira, “assisti” em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de bois (SAGARANA), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerara como definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (MANUELZÃO E MIGUILIM) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de fato

161

um conto, para o qual só soubesse um menino morando à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatus: entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. O tema de O Recado do Morro (NO URUBUQUAQUÁ, NO PINHÉM) se formou aos poucos, em 1950, no estrangeiro, avançando somente quando a saudade me obrigava, e talvez também sob razoável ação do vinho ou do conhaque. Quanto ao GRANDE SERTÃO: VEREDAS, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas (Rosa, 1967: 157-158).

Um leitor mais cético poderia pensar que se trata de jogada de marketing. Mas, mesmo se o fosse, a nós só comprovaria a presença de Hermes, se não pela inspiração poética, por ser o deus do comércio. O que entrevemos neste entrecho, porém, é uma outra faceta do deus: a de condutor de almas.

É que o autor dá notícia de um romance inacabado (que de fato existe), intitulado A fazedora de velas, que foi parar na gaveta depois de coincidências mórbidas entre o triste enredo e a vida do autor. Porém, não tinha mais jeito. Quando a danada quer, é quando ela chega. Dali a pouco o escritor estava com a doença do personagem, figurada fatal. O medo da morte o impediu de concluir o livro. E o Rosa não sobreviveu mesmo à Fazedora de velas: Tutameia ficaria órfão dali a quatro meses, na ressaca da festa de posse na Academia Brasileira de Letras, doadora de imortalidade.5

O motivo da escova é esclarecido no item V, quando o autor explica que o título do prefácio se refere a uma de suas primeiras dúvidas quanto à validade das regras convencionadas: por que se escovam os dentes antes do café-da-manhã, e não depois? É um questionamento típico da infância, tempo

5 O curioso é que, acreditem, há comigo aqui também coincidências, das brabas. Quando garota, lá no Ibiá, eu fazia velas decoradas para vender, e em Caraíva, onde conheci este texto, reciclava velas, para iluminar a casa. Quando li este trecho, à luz de uma vela feita por mim, olhei-me no espelho e, pela primeira vez na vida, aos vinte e dois anos, me vi finita e limitada. Ouvi a risada chiada da Morte. Que aquela era a mensagem do destino, minha presença aqui hoje confirma. Veio até mim Tutameia. Talvez seja o medo da morte que faça com que, quanto mais eu ande, mais eu me distancie do termo das palavras. Acabam os prazos, as laudas, os cursos; fica a obra, mel de mistério.

162 em que a gente não sabe de nada, por isso mesmo faz as mais sábias perguntas. Ainda não fomos totalmente tragados pelas regras, não fomos formatados pelas instituições.

A dúvida quanto à escova é a tomada de consciência da possibilidade de escolha que o homem tem de obedecer ou não às regras convencionadas. Os outros, comenta Rosa, “cumprem o inexplicável”(Rosa, 1967: 156): escovam os dentes antes de comer. O autor resolve escovar os dentes só depois do café. Neste ato de liberdade, tão pequeno e prosaico, ele se posiciona independentemente do senso comum. Questiona o automatismo com que as pessoas simplesmente seguem as regras, cumprem ordens, como o português da carrocinha de “Aletria e hermenêutica”. “Até que a luz nasceu do absurdo” (Rosa, 1967: 156). A liberdade se manifesta no modo de lidar com as regras, inclusive da língua, para o bem da verdade que se manifesta na obra, subvertendo a sintaxe ou re-criando nomes, como os listados no glossário que encerra o prefácio.

A libertação estará sempre na tensão de verdade e não-verdade. [...] Ela, como poiesis, busca em cada ato, em cada ação o seu sentido e essência. Então acontece a libertação. A leitura dos textos poéticos nos lança na libertação poético-ontológica: sermos como caminhada de ascensão e descensão o que já desde sempre somos. É a procura do ser (Castro, 2005: 57).

”Mais Essencial para o homem do que todo e qualquer estabelecimento de regras é encontrar um caminho para a morada na Verdade do Ser” (Heidegger, 1967: 95). O que a estória quer é conduzir o pensamento na procura do sentido da verdade, pela abordagem das questões originárias, que levam o homem ao encontro do próprio, à consumação do destino, pela ação poética, a qual corresponde ao envio sábio, mensagem do sagrado, aletheia, revelação do vigorar do inesperado. Por isso,

163

Não é ao poeta, ao compositor, ao cantor, enfim, ao homem que devemos escutar, mas ao logos. Este é a irrupção, em nossa vida ordinária, do extraordinário, da Linguagem poética, do mito, enfim, do sagrado. Só então somos tomados pelo saber e sabor da sabedoria. Sabedoria nunca é modelo de vida, mas a diuturna aprendizagem do próprio irrepetível e único. Eis porque não há modelo de sabedoria. Esta é muito mais o silencioso sabor da inaugurabilidade (Castro, 2011: 152).

Na procura da verdade, o homem é lugar de manifestação do Ser, da linguagem. Sua obra, porém, limita-se pelas configurações dos códigos das línguas e das convenções canônicas. A disputa entre luz e mistério se realiza na obra poética, travessia onde se opera o sentido da verdade, no vigorar da Memória, das Musas, da lira de Hermes.

Em Hermes encontramos o vigor do verbo, da palavra, do pensamento, força de reunião, fogo iluminador, que permite ao homem, empilhando tijolos, erguer uma obra, uma casa, e habitar seus vazios. O homem se vê lançado na realidade misteriosa, da qual faz parte e na qual atua, no manifestar-se da linguagem, em palavras e ações poéticas.

A unidade entre os episódios de “Sobre a escova e a dúvida” se constrói no diálogo entre suas partes, manifestações da língua de fogo de Hermes. O sentido da astúcia, como potência que vigora no confrontar-se do homem com a physis e com a linguagem, dirige-se para o lugar onde o homem numa abertura se doa ao eclodir da verdade do ser, que se manifesta e se esconde, na busca do que lhe é próprio. A astúcia poética consiste em perceber que tudo é e não é, na travessia de ser, não ser e vir a ser.

Para se ler Tutameia, deve-se ouvir o silêncio, concentradíssimo, o velado além e em torno da clareira. É de lá do escuro do oco que brota tudo que vigora na claridade da luz. As tutameiazinhas veredas picadas cortadas no dorso da terra são trilhazinhas de nada, caminhos de floresta, casos de caipira. De cada uma daquelas estórias viceja o broto e jorro da palavra poética, enchendo

164 nossos olhos e ouvidos de espanto. Ali vigora a poesia, de trás para diante, como os rastros de Hermes: “- Aí, Zé, opa!” (Rosa, 1969: 26).

No diálogo com Tutameia, transportamo-nos para o limite que miram os claros olhos de Atena. À sabedoria da deusa conjuga-se a artimanha do fogo de Hefesto. A eles vem juntar-se Hermes, o jocoso deus guia, formando a intrépida trupe que ilumina esta leitura.

O olho de Atena enxerga as distâncias, o de Hermes na tartaruga vislumbra a lira, suas mãos hábeis trazem para a luz o que se doa ao ser: obras, objetos, palavras, ações, poiesis. Astúcia e criatividade encontram-se nesses deuses poieteiros, sempre a inventarem moda neste mundão sem fim.

A imponderável medida de viver e morrer apresenta-se nas ardilosas palavras aladas de Hermes, mensageiro das Moiras, inventor da lira e do comércio, patrono das artes, o deus da linguagem.

O homem, lugar de manifestação do Ser, da potência dos deuses, encarna o mito de Ulisses, que escuta e atende as palavras de Hermes. A travessia deste herói em sua volta para casa será abordada no próximo e último capítulo.

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Capítulo 5 Travessia

Nesta longa estrada da vida vou correndo e não posso parar na esperança de ser campeão alcançando o primeiro lugar.

Mas o tempo cercou minha estrada e o cansaço me dominou minhas vistas se escureceram e o final da corrida chegou.

Este é o exemplo da vida para quem não quer compreender: Nós devemos ser o que somos, ter aquilo que bem merecer.

Milionário e José Rico6

A escuta da astúcia não pode deixar de abordar o mito de Ulisses, o herói astucioso, cujas aventuras nos canta a Odisseia de Homero. O motivo que me levou a deixar Ulisses por último não foi parodiar o famigerado gigante Polifemo, que, ao devorar os gregos, isso prometeu ao nosso herói: comê-lo por último. Não foi intencional, mas pôde a coincidência gerar uma anedota, motivo para abrir este diálogo num tom antropofagicamente bem-humorado. No presente estudo, venho tratando dos mitos gregos da astúcia, em sua ordem de antiguidade: Métis, Atena, Hefesto, Hermes, e eis que é chegado o momento de falarmos do mítico Ulisses, rei de Ítaca, que lutou na Guerra de Troia e, depois de muito sofrimento, pôde retornar a casa. Este é o princípio da ordem.

6 Famosa canção sertaneja (1978). Disponível em: letras.mus.br. Acesso em: 3 jan. 2013. 166

Depois de trazer para a presença os dons dos imortais, é que podemos acolher a presença de Ulisses, mortal e limitado, lugar de manifestação das potências do Ser, abrindo caminho no mar, no rasgo da nau capitânia, no empenho de consumar seu destino, ocupar seu lugar, existir, ampliando os horizontes do mundo pelo percurso de sua travessia.

Ulisses é o homem humano em travessia, enfrentando a morte, matando um leão por dia, no empenho de vir a ser o que é, consumar o destino, ouvir o inaudito, experienciar o inenarrável.

[Ulisses] nos aparece poeticamente como o nobre, ou como deus, o exemplo da astúcia sábia e rara. Ulisses realiza poeticamente o que nós aspiramos a fazer vivencial e existencialmente, é para cada um de nós a possibilidade de realizar a travessia enquanto enfrentamento da morte, através da astúcia sábia (Castro, 2011: 175).

Mas, quem, afinal, é Ulisses? E mais: onde podemos encontrar Ulisses em Tutameia? No encalço destes questionamentos, desenvolvo o presente capítulo. A princípio, será abordado o mito, na sua referência com os demais mitos gregos da astúcia vistos anteriormente. A seguir, com base no estudo de Castro (1976), apresentarei um diálogo entre a Odisseia, que narra a travessia do mar por Ulisses, e Grande sertão: veredas, que narra a travessia do sertão por Riobaldo, numa aproximação entre a épica homérica e a poética rosiana. Finalmente, abordarei algumas estórias de Tutameia em que se manifesta o mito de Ulisses, ao narrarem as aventuras do homem humano em travessia, no empenho da consumação do destino, através da astúcia sábia.

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A dupla origem de Ulisses

Para sabermos a essência de alguém, precisamos conhecer seu génos, sua origem, pois é sua linhagem que constitui sua natureza:

Génos deriva de gignomai (nascer, devir). O génos comum a um grupo de indivíduos marca a comunhão de uma natureza por nascimento. Essa natureza é que os constitui mais do que outro fator qualquer. O indivíduo vale e se define por seu génos (Castro, 2011: 166).

E qual é a origem de Ulisses? Ao aprofundar a pesquisa sobre este mito, soube que a versão da Odisseia não era a única, havia outras variantes da estória, que trouxeram uma nova luz no estudo da linhagem deste herói. Vejamos os diferentes registros do mito:

Como todo herói, o rei de Ítaca teve um nascimento meio complicado. Desde a Odisseia a genealogia de Odisseu é mais ou menos constante: é filho de Laerte e de Anticleia, mas as variantes alteram-lhe sobremodo os antepassados mais distantes. É assim que, do lado paterno, seu avô, desde a Odisseia, chamava-se Arcísio, que era filho de Zeus e de Euriodia. Do lado materno o herói tinha por avô Autólico, donde seu bisavô era nada mais nada menos que Hermes. Se bem que desconhecida dos poemas homéricos, existe uma tradição segundo a qual Anticleia já estava grávida de Sísifo, quando se casou com Laerte (Brandão, 2008, V. II: 468).

Sobre a mãe não há dúvida: Ulisses é filho de Anticleia, que por sua vez é filha de Autólico, que é filho de ninguém menos que o deus Hermes, de quem o herói é portanto bisneto pelo lado materno. Autólico teria aprendido com Hermes as manhas do roubo de gado, tornando-se também famoso larápio. Autólico também é avô de Jasão, dos Argonautas, mas esta é outra estória.

Já sobre o pai, há controvérsias. A versão oficial diz que Ulisses é filho de Laerte, marido de Anticleia. E como Laerte era filho de Arcísio, que era filho de Zeus, que aliás povoou muitas terras, Ulisses seria descendente do Soberano.

168

Há quem diga, porém, que ao se casar a moça já estava grávida de Sísifo, rei de Corinto, tão manhoso que chegou a engambelar a própria Morte, como diz a lenda. Quando Zeus raptou Egina, filha do rio Asopo, passou por Corinto e foi visto por Sísifo, que o delatou. Como castigo, Zeus mandou-lhe Tânatos,

mas o astuto rei de Corinto enleou a Morte de tal maneira que conseguiu encadeá-la. Como não morresse mais ninguém e o rico e sombrio reino do Hades estivesse empobrecendo, a uma queixa de Plutão, Zeus interveio e libertou Tânatos, cuja primeira vítima foi exatamente Sísifo (Brandão, 2008,V. II: 390).

Desta feita ele armou outro estratagema: pediu à mulher que não fizesse seu cortejo. Chegando ao Hades sem os ritos funéreos, pediu para voltar para castigar a mulher e providenciar as honrarias. Assim retornou do reino dos mortos. Mas jacaré cumpriu a promessa? Nem ele... Depois de alguns anos, veio-lhe Tânatos, indeclinável. Foi condenado ao Tártaro, obrigado a levar morro acima uma pedra, que despenca de novo, num trabalho sem fim.

Como teria se dado o encontro entre Sísifo e a filha de Autólico, para que o astucioso Ulisses pudesse ter como pai o Engana-Morte? Diz a lenda que, numa disputa entre espertos, Autólico certa vez roubou um gado de Sísifo. Este foi à casa de Autólico reclamar o gado roubado. Nesta ocasião, o anfitrião teria arranjado o encontro da filha com o notório safado, para que eles gerassem o maior dos velhacos: Ulisses.

Filho de Sísifo, o mais astuto e atrevido dos mortais, neto de Autólico, o maior e mais sabido dos ladrões, e ainda bisneto de Hermes, o deus também dos ardis e trapaças, o trickster por excelência, Ulisses só poderia ser mesmo, ao lado da inteligência exuberante, da coragem e da determinação, um herói polymetis, cheio de malícia e habilidade, e um polytropos, um solerte e manhoso em grau superlativo (Brandão, 2008, V. II: 469).

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Com base nesta outra linhagem, acentua-se o caráter ardiloso do herói, confirmado pela ascendência materna, que o liga indiretamente a Hermes (que seria seu bisavô) e diretamente a Sísifo (seu pai).

Ulisses era rei, era líder, cabia a ele a solução dos problemas. Diante das ameaças terríveis com as quais se defrontou em sua conturbada existência, nele se manifesta o génos da astúcia. Buscando lograr a morte, age astuciosamente, apropriando-se do que lhe é próprio, consumando seu destino.

O destino de Ulisses

Ulisses realiza sua travessia como destino no mar. Nele se entretece o que estando será. Deste estar lhe advém a experienciação do que será, do seu destino, do seu próprio.

(Castro, 2011: 164).

Conforme conta Homero, o astuto rei de Ítaca teve uma participação fundamental na vitória dos gregos na Guerra de Troia e, finda a demanda, protagonizou inúmeras aventuras no mar e em terras distantes, onde enfrentou monstros sinistros, como os Ciclopes e as Sereias, enleou-se nos braços da maga e da ninfa Calipso, até conseguir chegar a casa e desbaratar os presunçosos pretendentes, reassumindo seu trono.

Por todo esse tempo o heroísmo e a astúcia de Ulisses brilharam intensamente. Durante todo o cerco de Ílion o rei de Ítaca mostrou extraordinário bom-senso, destemor, audácia, inteligência prática e criatividade. Convocavam-no para toda e qualquer missão que demandasse, além de coragem, sagacidade, prudência e habilidade oratória. Polymekhanes, industrioso, fértil em recursos, é o epíteto honroso, que lhe outorga Atena logo no canto segundo: Il., II, 173. É assim que sua solércia e atividade diplomática se desdobram desde os primeiros cantos do poema (Brandão, 2008, V. II: 472).

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Na Ilíada encontramos os relatos dos feitos bélicos de Ulisses, seus estratagemas e estratégias, sua bravura em combate. Focaremos nossa leitura na Odisseia, que narra as venturas e desventuras do herói no seu retorno a casa, atravessando o sem caminho do mar, via instável e imprevisível como a essência da astuciosa Métis, potência das águas, filha de Oceano e Tétis. Para vencer os obstáculos, atravessar os mares nunca dantes navegados, Ulisses, além da sua natural astúcia, em muitas ocasiões contou com o auxílio direto dos imortais, quer seja através de intervenções favoráveis ao herói no conselho dos deuses, quer seja através de mensagens, avisos, orientações que lhe permitiram o retorno aos seus. Dentre esses seres imortais, além do ancestral Hermes, é muito atuante a deusa Palas Atena, ambos deuses, assim como o herói, portadores de astúcia.

Foi Atena quem convenceu os deuses a findarem com o exílio de Ulisses, ordenando a Calipso que o deixasse ir embora. Havia sido a deusa também a doadora da ideia do cavalo de Troia, que lhes garantira a vitória. Era ela quem também inspirava a rendeira Penélope a enrolar os pretendentes. Em forma humana, chegou a interferir diretamente nos acontecimentos, dirigindo seus sábios conselhos a Telêmaco e ao próprio Ulisses.

Já Hermes encontra Ulisses, seu descendente, em diversas ocasiões, como mensageiro dos deuses, portador da palavra do destino. Quando Circe encantou os sócios e os transformou em porcos, Ulisses se safou porque no caminho Hermes deu a ele uma erva que cortava o feitiço da bruxa. O herói venceu a bruxa e ainda ficou lá por um tempo, usufruindo das regalias de amante, até resolver partir.

Ulisses para vencer [Circe] terá que ser portador da linguagem, isto é, de Hermes, o portador da palavra sagrada. [...] Não basta ao homem apelar para a razão. É necessária a própria linguagem, Hermes, a referência Essencial de ser e ser humano [...] o mito dos mitos e ritos, o sagrado primordial e originário (Castro, 2011: 156).

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Ulisses, em sua astúcia sábia, se abre para a Escuta da palavra, jogada no entre vazio do nada. Sempre que ele recebe a mensagem do destino, ele a percebe e a obedece, porque ele está aberto para a Escuta, e só assim pode vencer os inimigos. Ele é da estirpe de Hermes: bom de ouvido, bom de jogo.

O advento e a possibilidade da Escuta não é fruto de um desejo de Ulisses, isto é, nosso. Podemos ou não apenas acolhê-la. É um poder impotente, porque o acolher não é uma questão de vontade, mas de acolhimento do destino (Castro, 2011: 176).

A abertura de Ulisses para a Escuta e acolhimento da mensagem do destino leva-o a agir poeticamente, na medida em que se pauta não pela lógica ou pelos valores dominantes, mas pelo querer poder que move e promove o homem a ser o que ele é, apropriar-se do que lhe é próprio, consumar o destino. O filho de Sísifo foi o único de sua esquadra a escapar da morte, foi quem restou para contar a estória. Por sua fala, cantada na Odisseia, os mortais puderam tomar conhecimento do que ele escutou da boca das Sereias. A travessia de Ulisses ao largo do lar das Sereias é um episódio da Odisseia repleto de significações, tem dado margem a inúmeros discursos ao longo da tradição ocidental, na filosofia, nas artes, na cultura popular e na cultura de massa. As sereias povoam o imaginário de todos nós. Como imagem-questão, a escuta do Canto das Sereias nos confronta com a mensagem do destino, enigmática, vital: Como proceder no confronto com a realidade, que dá e tira com a mesma desfaçatez? Qual o sentido da existência?

O pano de fundo no qual está inscrito o mito do Canto das Sereias [é] o destino. Trata-se da questão maior e permanente para o humano de todo ser humano e que tece e entretece os fios sutis não só da narrativa homérica, mas também das ações e percalços de Ulisses, na sua tra-vessia, na busca do seu sentido e da sua verdade, essa busca que é de todos nós em todos os tempos: fazer de nossas ações e escolhas a realização e acolhida do que somos, nosso próprio, nosso destino (Castro, 2011: 159).

172

Para sobreviver às Sereias, Ulisses escutou o conselho de Circe: o herói deveria estar atado ao mastro do navio, enquanto os sócios, com os ouvidos tapados, deveriam remar até se afastarem de todo. Isso porque em seu canto elas anunciam o que o homem mais deseja: o pleno saber do destino.

O pleno saber das Sereias, da palavra cantada como voz do silêncio, que é a possibilidade de experienciação da morte, é a oferta do não- saber em todo saber da fala, é a oferta do não-caminho e do não- sentido em todo caminho e sentido do mar, em toda finitude e não- finitude. Por isso Ulisses tem que ser amarrado ao mastro do navio. O navio e seu mastro é o limite e a finitude no limiar do ilimitado e inefável do mar (Castro, 2011: 179).

Para o homem, ser sábio e astuto é saber-se existindo em um corpo vivo, destinado à morte. O que acontece no percurso da travessia depende de suas ações e suas buscas, a partir do que lhe foi destinado, de seu próprio, que a ele cabe deixar consumar, na eclosão do ser que acontece em cada vivente. Como ente mortal e limitado, desconhecedor do mistério da realidade, do qual faz parte, para atravessar o mar do destino, o homem carece de atender à palavra poética, na dobra de saber e não saber, de limite e não limite, configurando na travessia a dissimulada verdade do ser, que se manifesta em linguagem, em palavras, em ações poéticas.

Na travessia poética se dá o saber do não-saber de toda sabedoria. Por isso o herói é Ulisses, no qual a astúcia se faz sabedoria, uma sabedoria viva, concreta, ética e poética (Castro, 2001: 154).

A travessia da vida não cessa, só quando acaba. Na busca de vir a ser o que é, o homem humano atende ao apelo do inesperado, se lança na travessia, com os recursos que lhe são dados, atento ao envio sábio. Não tem certeza de nada, apenas ginga seu barco, no balanço das ondas, guiado pelas estrelas, indo ao encontro de si, buscando escapar da morte.

173

Nossos caminhos, o frágil navio que singra, o mastro ao qual estamos em pé, amarrados e o sentido da Escuta são uma doação do mar instável e infinito, da realidade se realizando, do destino se destinando, e não uma conquista de nosso querer. Sempre em estado de limiar somos um frágil e instável corpo que, em meio às infinitas possibilidades, abre seu caminho a cada escolha, a cada escuta, fazendo da existência da vida uma travessia poética. Só amarrados ao mastro do nosso corpo-navio podemos manter os ouvidos bem abertos para acolhimento do Canto das Sereias e, assim, nos preservarmos da morte, fazendo da travessia poética uma caminhada de saber, sabor e sabedoria, em direção à con-sumação e plenitude do que somos (Castro, 2011: 180-181).

Ao homem não é dado escolher seu destino, suas possibilidades, sua essência, o que recebe ao nascer. A ele cabe apenas acolher ou não aquilo que lhe está destinado, e consumar ou não sua estória. Isso nos diz o mito. A Escuta poética leva a consumar o destino. Disso Ulisses bem o sabia. E nós, sabemos?

Para nós, seres pós-modernos, o destino se apresenta como algo que foge ao nosso alcance e vivência, não porque seja algo extraordinário, mas porque somos filhos do sistema de controle e da sociedade em rede. Tendemos cada vez mais para o sistema de controle total, daí a urgência do poético como o inesperado de todo sistema e controle. É dessas instâncias que depende o nosso destino, sem a dimensão de uma fatalidade e de desafio de uma ordem que nos transcende (Castro, 2011: 162).

O burburinho da vida moderna abafa a mensagem do destino. A astúcia sábia abre os ouvidos para a Escuta poética. “A alegria é a prova dos nove”, promulga Oswald de Andrade (1928). Se o homem faz tudo certo, obedece às regras do sistema, satisfaz seus desejos, conquista poder e fama, e mesmo assim a tristeza o acompanha, algo não soa bem. É como dizem os versos que encerram “Retrato de cavalo” (Rosa, 1967: 133):

174

Era verdade de-noite, Era verdade de-dia, Mentira, porque eu sofria. RECAPÍTULO.

O homem moderno, ao negar o destino e a Escuta poética, se perde nas vias do impróprio, vivendo alheio de si, sem questionar a verdade de suas vivências, sofrendo, enganando a si mesmo, até que encontra algo que não procurava, que o convoca ao questionamento, na busca do que lhe é próprio.

A via do impróprio nos faz sofrer porque nos lança no esquecimento do próprio e na aparência de ser o que não somos. Podemos mentir e nos enganar muito, mas não podemos fazer isso o tempo todo. Há sempre o kairós, instante de verdade que a cada um, no mais íntimo do seu íntimo, se revela e manifesta (Castro, 2011: 176).

Os sucessos e infortúnios de Ulisses em sua travessia, narrados na Odisseia, são os modos de consumação do seu fado. Nesse sentido, as artimanhas de Ulisses são envio dos deuses, que o herói apanha no tempo oportuno, kairós:

Há um tempo próprio, que os gregos denominavam kairós, o tempo do ad-vento, do momento oportuno, que não se regula por datas nem por causas e consequências conhecidas cientificamente, muito menos por análises ou explicações técnicas e críticas. É o advento do inesperado, do extraordinário, do mistério, do acontecer poético da palavra cantada, da fala do lógos. Não é o desejo de algo consciente ou inconscientemente manifestado, mas um despertar para realizar a travessia do que somos (Castro, 2011: 175).

A travessia no mar por Ulisses é a travessia da vida pelo homem. Neste mundão velho sem porteira, o homem caminha para a morte querendo voltar para o útero. A arte é o salto mortale, palavra poética, no nada lançada. O que existe é homem humano, lançado na travessia, na dobra de tudo e nada.

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Sem ilusões nem modelos, com agir ético, precisamos nos abrir para a palavra cantada e seu convite à escuta, porque somos finitos e precisamos de sistemas, mas só para ultrapassá-los e afirmar igualmente a não-finitude, pelo poder libertador da palavra cantada (Castro, 2011: 182).

O mito de Ulisses assoma a literatura moderna ocidental, explicitamente, como na gigantesca narrativa de James Joyce, e de forma mais ou menos direta na obra de inúmeros escritores. Existem inclusive versões midiáticas, do cinema e da indústria do entretenimento, que contam as aventuras e peripécias do herói, em narrativas esvaziadas de seu poder criativo, transformado-se o mito em mera mercadoria barata e previsível. Na obra dos grandes artistas, contudo, como é o caso de Guimarães Rosa, o mito de Ulisses ressurge de forma vigorosa, na medida em que as estórias rosianas evocam a questão da essência do homem e do destino como travessia.

Mares de morros

Na travessia da vida, viver é muito perigoso, como nos lembra insistentemente Ulisses nas suas aventuras e desventuras. É o mesmo itinerário de Riobaldo.

(Castro, 2001: 154).

Como Ulisses, o homem humano se depara com a realidade, imprevsível, bem mais potente do que ele, mísero mortal limitado. As marcas do mito de Ulisses e dos textos de Homero na obra de Guimarães Rosa já são notórias, e muitos estudiosos operam o diálogo entre a épica grega e a saga rosiana.

Não só Homero, como Platão e Aristóteles, por exemplo, constituem o universo virtual do escritor mineiro, e os diálogos com esses textos e tantos outros da literatura mundial são tão originárias em sua prosa como o dialeto caipira, estilizado em suas narrativas.

176

A leitura de Castro (1976) é bastante esclarecedora de como a temática da travessia, motivo da Odisseia, também conduz a narrativa de Grande sertão: veredas, sendo Riobaldo o homem humano em travessia, na busca da consumação do destino.

Como Ulisses se prende ao mastro do navio, Riobaldo segue o traçado das veredas, para não se perder no mar do grande sertão:

Na paisagem geofísica as veredas são uma garantia e certeza de vida dentro do inóspito sertão. No segundo sentido, o da busca humana, elas simbolizam o alcance da compreensão de que os homens necessitam para não serem tragados pelo enigma do Sertão. As veredas como oásis ou riachos do grande sertão tornam-se o símbolo da travessia: única certeza vivencial (Castro, 1976: 45).

Riobaldo percebe a ambiguidade da Realidade, onde tudo é e não é, e conclui que nas linhas tortas da vida carece também de entortar os caminhos, para não perder o bonde. Rememorando suas andanças, a todo momento Riobaldo questiona o sentido de sua existência, o motivo de tudo aquilo ter acontecido com ele. Por mais que ele pergunte, contudo, sempre fica a dúvida, diante dos mistérios da Realidade.

O homem em sua relação com o Real tenta compreendê-lo, estabelecendo um conhecimento através da pergunta. Ora, algo é conhecido na medida em que é. Porém, tal conhecimento não conduz à certeza, à resposta tão ansiosamente perseguida, exatamente porque o que é pode manifestar-se como não sendo, e o que não é pode vir a ser: há uma mutabilidade constante, que corrói a equação de qualquer conhecimento. Mas o homem persegue uma resposta para essa contínua ambiguidade do Real (Castro, 1976: 32).

Da mesma forma que Ulisses, para vencer os obstáculos e realizar a travessia de seu destino, precisou se abrir para a Escuta poética, ser tomado pela mensagem de Hermes, o deus das encruzilhadas, também Riobaldo, para

177 encarar os desafios que se apresentavam diante dele, precisou fazer o pacto com o diabo, na encruzilhada das Veredas Mortas. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o romance narra o confronto do homem com a Realidade, também realiza o confronto do homem com a Linguagem.

Grande sertão: veredas é o percurso da demanda da linguagem [...] Desse percurso são símbolos centrais o pacto e o diabo. E o símbolo diz exatamente isso: é nele que se estabelece a tensão entre a língua e a linguagem. A obra artística resulta do esforço de desrealização que o poeta opera no sistema linguístico, através da instauração simbólica substituindo o signo linguístico pelo signo literário. Ao passo que aquele é o estabelecido e definido, este se afirma e vivencia na medida em que se nega a ser signo, porque portador de uma energia atuante e libertadora (Castro, 1976: 80).

Como vimos no capítulo anterior, ao tratarmos do mito de Hermes, o deus da linguagem, a dúvida em relação à capacidade do signo linguístico de expressar a Linguagem enquanto verdade e sentido do Ser se faz presente também em Tutameia, sendo tematizada explicitamente no prefácio “Sobre a escova e a dúvida”. Neste texto, o autor se coloca, como vimos, possuído pela linguagem, como Ulisses e Riobaldo, mas como este último, moderno herói problemático, não cessa a dúvida em sua relação tanto com a realidade quanto com a linguagem.

Tomando o diabo como símbolo da linguagem, da poesia, o poeta, no entanto, continua consciente de que ele ainda é símbolo de, daí sua dúvida permanecer viva: “O diabo não há! É o que digo, se for...” (GS: V, p. 460). Torna claro que a poesia se manifesta é na demanda, única e humana certeza que lhe resta: a travessia literária (Castro, 1976: 80).

A partir dessa leitura, fica a possibilidade de, em estudos futuros, investigar as manifestações da astúcia nas demais obras rosianas. Nos limites desta tese, ensaiarei a seguir uma breve aproximação entre Odisseia e Tutameia.

178

No eco da Odisseia

– E o senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta.

(Rosa, 1967: 13).

Uma ressonância entre Tutameia e a Odisseia se percebe logo na semelhança entre os títulos, motivo de minha primeira abordagem do tema, ainda no mestrado: “Odisseia e Tutameia: rima ou solução?”7 foi o título que encontrei para o estudo feito à época, com base na leitura do mito feita por Adorno e Horkeimer na Dialética do esclarecimento. Na ocasião, apontei a predileção do autor mineiro pelos textos de Homero, já bastante comentada pela crítica, ressaltando algumas semelhanças entre a epopeia homérica e esta obra rosiana, como a temática e da travessia, tão caro ao Rosa. Naquela primeira leitura, percebi uma semelhança entre os estratagemas de Ulisses e do escritor mineiro, lançando luz no episódio de Polifemo.

No glossário do próprio livro (p. 166), constatamos que “tutameia” apresenta certa valoração negativa (quase-nada), mas significa também, paradoxalmente, mea omnia (“todas as minhas coisas”). Assim, esse termo caracteriza um discurso ambíguo, contraditório, em que um signo pode representar, ao mesmo tempo, tudo e nada. Foi com ardil semelhante que Ulisses logrou o ciclope Polifemo, conseguindo sobreviver à sua força colossal8.

A partir da leitura de Gagnebin (1997), soube que a palavra grega para ninguém é outis, semelhante ao nome do herói, Odisseus. Com base nessa semelhança, a autora afirma que ao se denominar como Ninguém, Outis, Ulisses estaria fazendo um trocadilho com essa palavra, seu nome e ainda a palavra métis, já que ou e me são partículas de negação, donde: ou-tis = me-tis. Segundo a autora, Ulisses supera as ameaças das potências míticas que encontra em sua

7 Disponível em: www.oocities.org/textossbec/andrade.doc. Acesso em: 5 jan. 2013. 8 Quando o “monstro que pensa sem lei” pede ao herói que se identifique, este responde que se chama Ninguém. Depois de embebedar o gigante, Ulisses e seus companheiros furam seu único olho. Polifemo grita por socorro, mas quando seus amigos perguntam o que está havendo, o monstro responde que Ninguém o está atacando. Os outros ciclopes vão embora, possibilitando a fuga dos gregos. 179 jornada pelo uso da inteligência da métis, “uma inteligência ardilosa, cheia de recursos, entre a malandragem e o jeitinho brasileiro”.

O encontro com estas leituras levou-me a conhecer o nome grego daquilo que na cidade se chama astúcia e que em Minas se chama velhacaria: métis. No encalço desta palavra lancei-me na pesquisa de doutorado, buscando a origem mítica deste modo de pensamento, deste enfrentamento da realidade de que o homem lança mão para superar os obstáculos, na consumação do destino, na busca do que lhe é próprio. Isso percebo agora, depois de introduzida nos estudos da poética, do pensamento de Heidegger.

Para encerrar o presente estudo, retorno ao mito de Ulisses, o primeiro com quem me encontrei quando percebi que Tutameia tinha me escolhido e abri- me para a Escuta poética de suas palavras. Percebo agora, ainda mais do que antes, que o diálogo entre este mito e a obra rosiana dá margem para muitos adentramentos, impossíveis nos limites desta tese. Exigiria que eu parasse para reler novamente a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, o Grande sertão: veredas, para então poder me confrontar novamente com Tutameia e percorrer mais uma vez cada uma de suas estórias.

Por ora, apresento uma leitura do prefácio “Nós, os temulentos”, além da referência a alguns textos do livro que trazem a temática da travessia, os quais pretendo oportunamente abordar.

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Temulentus sumus

O estudo do prefácio “Nós, os temulentos” vem me intrigando há muito tempo. Como um a narrativa composta pela justaposição de um rol de conhecidas piadas de bêbado poderia ser tomado como um prefácio? A justaposição é de tal forma explícita neste texto que todos os seus parágrafos começam com a conjunção enumerativa “E”.

Além dessa complexa relação entre o texto e o gênero prefácio, há ainda a dificuldade, também comum ao leitor rosiano, de saber o sentido próprio da palavra que compõe este título, temulento, termo que causa o mesmo estranhamento inicial de tutameia, hipotrélico e aletria.

O primeiro termo, tutameia, é regional, apropriado poeticamente pelo Rosa, no glossário do próprio livro; hipotrélico é um neologismo, cuja criação é narrada no texto o qual intitula; aletria é no vernáculo o nome de uma massa; já temulento é um latinismo, que significa encharcado, embebido, bêbado, embriagado (cf. Araujo, 2001: 32). O termo condiz, portanto, com o conteúdo do texto: piadas de bêbado.

Mas o pronome de primeira pessoa do plural, nós, a identificar personagens, leitor e autor como bêbados ainda me causava estranheza. O viés biográfico cairia bem ao colega Vinicius de Moraes, talvez, mas não ao Rosa. Entretanto, em “Sobre a escova e a dúvida”, como vimos, ao segredar o modo como lhe vieram suas estórias, Rosa afirma que “O recado do morro” fora formado “talvez também sob razoável ação do vinho e do conhaque” (Rosa, 1967: 158).

Além disso, ao ler a correspondência do autor com seu tradutor italiano, soube que o autor apreciava uma branquinha de vez em quando, e que, o principal, identificava o buquê dionisíaco em sua obra:

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Hem? Por exemplo, não sei se Você gosta, às vezes, de beber, um pouco. Pelo retrato seu, que vi, parece-me que não. Parece-me que Você é mais para o lado dos sóbrios, a não ser talvez um pò di vino, ou um stregha. Se não, diria que talvez valesse a pena, agora, no acabar a “bella copia”, encher bicchiere e experimentar a companhia de Sileno. Não é que eu faça isso. Não fiz. Mas, como Você já viu, o nosso “Corpo de Baile” tem no espírito e no bojo qualquer coisa de dionisíaco (contido), de porre amplo, de enfática “desmesura” (Rosa apud Bizzarri, 1981: 83).

O amigo responde dizendo que bebe, sim, aprecia com moderação a boa bebida alcoólica de todas as partes do mundo, e aproveita para perguntar ao autor onde seria possível encontrar a legítima januária, famosa cachaça mineira, consumida pelo bando de Riobaldo. O Rosa gentilmente envia umas garrafas da branquinha sertaneja ao italiano:

A januária já estaria aí com Você, como um dia estará, só ainda não sei quando, não fosse o cuidado que a gente tem de ter na obtenção da melhor, genuína e supra, capaz de não desmerecer uma fama grande e justa, nesses tempos de falsificação e comercialização indisciplinada e gananciosa. (A gente põe num copo, com pedaços de gelo, fica para mim muito melhor que o uísque.) Beberemos à saúde de tudo, de Diadorim, Otacília, Riobaldo (Rosa apud Bizzarri, 1981: 88-89).

Agora, importante: 3 pícolas garrafinhas da januária devem ir para São Paulo, à sua procura. Veja se gosta. Encomendei a um amigo meu, que veio de Montes Claros, de automóvel, elas chegaram bem. Penso que gelada é sempre mais gostosa. É um pouco do sertão, em todo o caso (Rosa apud Bizzarri, 1981: 100). 9

9 Tive a oportunidade de conhecer a cidade de Januária, onde fui falar sobre a obra do Rosa e a cultura sanfranciscana, em 2007. Na ocasião, ouvi estórias de pescadores na beira do rio, lindo, apesar de assoreado, e pude apreciar in loco a famosa cachaça local. As “curraleiras”, feitas nas roças, são as mais saborosas. Hoje existe até uma cachaça chamada Sagarana, boazinha, mas a que Riobaldo e os outros jagunços bebiam parece que não existe ou não é mais fabricada. 182

O tradutor muito se alegrou ao receber o presente, como afirma ao amigo em resposta, agradecendo. Agradecida também fiquei eu, percebendo que ali poderia se abrir uma trilha para a interpretação da obra rosiana. Eu já havia ficado com a pulga atrás da orelha por causa de uma coisa que tinha visto no prefácio “Sobre a escova e a dúvida”, no item em que o autor fala dos achados e coincidências, e que agora posso trazer para a discussão.

Após falar dos mistérios da criação literária e das coincidências entre ficção e realidade, Rosa faz um tipo de resenha de um lançamento da época, Dona Sinhá e o Filho Padre, de Gilberto Freire (também publicado pela José Olympio), que retrata justamente essas misteriosas coincidências, as quais fizeram o autor abandonar, como vimos, a escrita de A fazedora de velas.

O livro de Freire conta a estória de um escritor que, depois de dar uma entrevista divulgando seu próximo lançamento, cujos personagens seriam uma mulher, Dona Sinhá, e seu filho padre, recebe a visita de uma senhora dizendo que aquela era e história da vida dela.

A narrativa se constrói nestes dois planos, com tipos diferentes de letras (redondo e itálico) para diferenciar as partes do livro que estava sendo escrito e as partes que relatavam a relação do escritor com a “verdadeira” Dona Sinhá, de quem ele acabou se aproximando.

Além de apresentar um mistério semelhante ao que lhe acontecera com o livro inacabado, o Rosa encontrou outra coincidência entre aquele livro e “A fazedora de velas”: um personagem comum, “o francês”. Pensei que aquela estória de francês poderia ser uma pista: haveria um escritor francês que traria luz para a leitura de Tutameia? Aquilo ficara esperando resposta.

A leitura de “Nós, os temulentos” levou-me a reparar na menção do Rosa à bebida e ao dionisíaco de “Corpo de baile”, o que me fez lembrar de outra carta ao tradutor italiano, em que Rosa menciona Rabelais para falar das congadas retratadas em “O recado do morro”:

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Onde poderia encontrar dados que caracterizem essas imaginações populares?

Só, talvez, em Rabelais, nas narrações de sabaths, de bruxarias medievais, sugestões de catedrais góticas, nas górgulas e carantonhas (Bizzarri, 1981: 33).

A leitura de “Aletria e hermenêutica” havia me levado a pesquisar sobre o cômico e a cultura popular, quando acabei me deparando com o famoso estudo de Bakhtin sobre a obra de Rabelais.10

Como eu estava encafifada querendo encontrar um francês que me auxiliasse na interpretação de Tutameia, pensei que esse francês pudesse ser Rabelais. A presença dos gigantes no livro, como no conto “Grande Gedeão”, reforçava minha desconfiança. Além disso, o Rosa era médico como Rabelais, e devido a sua estatura avantajada, era muitas vezes descrito como gigante. Fui à procura da obra do francês de que tratava Bakhtin (2008), a estórias dos gigantes Gargantua e Pantagruel,11 para ver o que encontrava, sem saber o que estava procurando, invocando Serendipty. E, como ler Tutameia é cambalear no escuro, esperando encontrar o inesperado, no prólogo do primeiro livro de Rabelais encontrei uma possível solução para o título “Nós, os temulentos”.

No texto, Rabelais convoca os leitores tratando-os por “bebedores ilustres”, fórmula que irá usar também no prólogo do terceiro livro da obra, no qual cita Diógenes e as Danaides, citados também no terceiro prefácio de Tutameia.

Temulentos seriam então os leitores de Rabelais, pantragruelistas, grupo ao qual pertencia Guimarães Rosa. O vocativo com que Rabelais inicia o texto, “bebedores”, permite, portanto, a aproximação de “Nós, os temulentos” ao chamado pantagruelismo, assim definido por Auerbach (1998: 246):

10 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 2008. 11 RABELAIS, François. A vida de Gargântua e de Pantagruel; livro primeiro: mui horripilante vida do Grande Gargântua, pai de Pantagruel. Escrita por Mestre Alcofibras Nasier, extrator da quinta-essência – um livro repleto de pantagruelismo. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003.

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Aquilo que se oculta na obra, embora se comunique de mil maneiras, é uma atitude de espírito, que o próprio Rabelais chama de pantagruelismo: uma forma de captar a vida, que apreende simultaneamente o espiritual e o sensível, que não deixa escapar nenhuma das possibilidades que oferece.

Nesse sentido, temulentos somos nós todos, leitores de Rabelais, de Rosa, do riscado da vida. Vejamos, portanto, o esclarecedor prólogo de Rabelais. Transcrevo o texto na íntegra, a seguir, por considerar elucidativa esta aproximação, a qual, até onde eu sei, não havia sido realizada pela crítica.

Bebedores ilustres e preciosíssimos bexigentos (pois a vós, não a outros, se dedica o meu engenho): Alcebíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, louvando seu preceptor Sócrates (sem controvérsia, príncipe dos filósofos), entre outras coisas disse ser ele semelhante aos “silenos”. Silenos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que hoje vemos nas vendas dos boticários, tendo pintadas umas figuras alegres e frívolas, como harpias, sátiros, gansos ajaezados, lebres chifrudas, patos com cangalhas, bodes voadores, veados atrelados e outras figuras semelhantes, nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso, como fazia Sileno, mestre do excelente Baco. Dentro delas, porém, guardavam-se drogas valiosas, como o bálsamo, o âmbar-cinzento, o amomo, o almíscar, joias e outras preciosidades. Tal se dizia ser Sócrates, porque, quem o visse por fora, e estimando apenas sua aparência exterior, não lhe daria o mínimo valor, tanto ele era feio de corpo e ridículo em sua aparência, com nariz pontudo, olhos de boi, cara de bobo, simples em seus modos, rústico em suas vestes, parco de riquezas, infeliz com as mulheres, inapto para todos os ofícios da república, sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso, sempre brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber. Quem abrisse aquela caixa, porém, lá dentro encontraria um bálsamo celeste e inapreciável, um entendimento mais que humano, virtudes maravilhosas, coragem invencível, sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança

185 perfeita, incrível desprendimento com relação a tudo que os humanos tanto prezam, tudo aquilo que tanto cobiçam e em prol do que correm, trabalham, navegam e batalham.

A que propósito, em vossa opinião, vem este prelúdio e este esclarecimento? É porque vós, meus bons discípulos, e alguns outros doidivanas ávidos de lazer, lestes os divertidos títulos de alguns livros de nossa invenção, como Gargântua, Pantagruel, Fesepinte, A dignidade das braguilhas, e mui levianamente julgais que, dentro, não se tratou senão de brincadeiras, fantasias e mentiras divertidas, visto que, sem se examinar o conteúdo, o rótulo externo (isto é, o título) insinuava zombaria e pândega. Não convém, todavia, encarar tão levianamente a obra dos humanos, pois vós mesmos dizeis que o hábito não faz o monge; pode alguém usar as vestes monacais, e por dentro nada ter de monge, como pode um outro, vestido de capa espanhola, nada ter que ver com a Espanha por sua coragem. Por isso, é preciso abrir o livro e cuidadosamente verificar o que contém. Quando conhecerdes a essência que ele encerra, vereis que vale bem mais do que aquilo que a caixa prometia. Em outras palavras: as matérias aqui tratadas não são fúteis, como o título sugere.

Sem dúvida, no sentido literal, achareis matérias bem divertidas, e que correspondem bem ao nome, mas não vos fieis muito nelas, como no canto das sereias, convém em alto sentido interpretar o que porventura vos parece dito levianamente. Nunca abriste uma garrafa? Pois é: o que importa é o conteúdo. Já vistes um cão encontrando um osso com tutano? É, como diz Platão (lib. 2, De Rep.), o animal mais filósofo do mundo. Se já vistes, podeis ter notado com que devoção ele o olha, com que cuidado o guarda, com que fervor o segura, com que prudência o parte, com que afeição o quebra, com que diligência o chupa. O que o induz a assim agir? Qual o resultado de seu esforço? Que pretende? Nada mais do que um pouco de tutano. Na verdade, esse pouco é mais delicioso que todos os outros muitos, visto que o tutano é o alimento elaborado com perfeição pela natureza, como diz Galeno (III Facult. Nat. e XI De Usu Partium).

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Seguindo esse exemplo, convém que sejais sábios, para farejar e apreciar estes belos livros, de alto valor, fáceis de procurar, mas difíceis de encontrar. Depois, por curiosa lição e meditação frequente, romper os ossos e sugar o substancioso tutano: eis o que pretendo dizer com esses símbolos pitagóricos, com fundada esperança de ser feita com prudência e zelo a leitura, porquanto nela achareis outro deleite, estudando a doutrina impenetrável, que vos revelará altos segredos e mistérios horríficos, tanto no que concerne à nossa religião, como ao estado político e à vida econômica.

Porventura acreditais que Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisseia, tivesse imaginado as alegorias que lhe atribuiriam Plutarco, Heráclides Pôntico, Eustátio, Fortuno, repetidos mais tarde por Poliziano? Se acreditais, bem longe estais da minha opinião, que é a de que tais alegorias foram tão pouco sonhadas por Homero quanto o foram, por Ovídio, em suas Metamorfoses, os Sacramentos do Evangelho, conforme Frei Lubino, grande papalvo, se esforçou por demonstrar, julgando ser possível encontrar gente tão idiota quanto ele, ou (como diz o provérbio), uma tampa digna do caldeirão.

Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com estas novas e divertidas crônicas? Eis que, dizendo-as, não pensei senão em vós, que porventura bebeis como eu bebo. Porque, na composição deste livro senhoril, não perdi, e jamais empreguei um outro tempo, do que aquele que gasto para tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo. São estas as horas mais adequadas para escrever sobre estas altas matérias e ciências profundas, como bem fez saber Homero, paradigma de todos os filólogos, e Ênio, pai dos poetas latinos, assim como testemunha Horácio, embora um grosseirão tenha dito que seus “Odres” cheiravam mais a vinho do que a azeite.

Coisa idêntica disse um bufão dos meus livros: mas a merda para ele! O odor de vinho, ó, como é mais saboroso, mais agradável, mais atraente do que o do azeite!

E sinto-me muito mais lisonjeado, quando se diz que gasto mais vinho do que azeite, do que ficou Demóstenes quando dele disseram

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que gastava mais azeite do que vinho. Para mim, só me sinto honrado e jubiloso por ter fama de ser um bom copo e um bom companheiro: graças a isso sou bem recebido em todos os bons grupos de pantagruelistas. Um rabugento disse de Demóstenes que as suas orações fediam como a serapilheiras de uma galheta porca e suja. Por isso, interpretai meus atos e meus ditos de maneira perfeitíssima: reverenciai o cérebro caseiforme que vos oferece essas belas fantasias, e na medida que estiver ao vosso alcance, conservai-me sempre alegre.

E agora diverti-vos, meus queridos, e lede alegremente, para satisfação do corpo e benefício dos rins. Mas escutai, sem vergonhas e que a úlcera vos corroa: tratai de beber por mim, que eu começarei, sem mais demora (Rabelais, 2003: 33-36).

Filósofo pantagruelista seria, de acordo com Rabelais, o cachorro que quebra o osso para degustar o tutano. Esta imagem lembrou-me a temporada em Aracaju, onde aprendi a apreciar a principal iguaria local: caranguejo. Para usufruir de sua deliciosa, branca e tenra carne é preciso quebrar sua carapaça com um martelo e depois chupar as patinhas, cabeludas, grudentas. Num nível mais avançado, aprendi a abrir a cabeça, tirar o pulmão, o fel, as fezes e comer o miolo do bicho com farinha, lambendo os beiços.

Mais esta significação pode ser atribuída à ilustre figura que orna as páginas de Tutameia: um animal de que o homem se alimenta quebrando a carapaça e sorvendo o tutano. Assim deve se comportar o leitor de Tutameia: quebrar os hermetismos da língua até encontrar a essência da linguagem, doadora de vida.

Voltemos ao texto de Rabelais. Assim como as Sereias oferecem a Ulisses, o que o autor oferece aos leitores que atenderem seu convite, e adentrarem o livro de espírito aberto, é o saber pleno, pois na leitura daquela obra eles estariam “estudando a doutrina impenetrável, que vos revelará altos segredos e mistérios horríficos, tanto no que concerne à nossa religião, como ao estado político e à vida econômica”. 188

Assim como o irresistível canto, o que encanta e engana nestes textos são os títulos, embalagens risíveis, e as palavras divertidas, que escondem em seu bojo mensagens muito importantes. Por isso, “convém em alto sentido interpretar o que porventura vos parece dito levianamente”. Como vimos, isto também nos diz “Aletria e hermenêutica”, quando Rosa compara as estórias a anedotas de abstração, que levam o leitor a realizar o pulo do cômico ao excelso.

A leitura do prólogo de Gargântua, de Rabelais, num diálogo com “Nós, os temulentos”, prefácio de Tutameia, de Guimarães Rosa, lança nova luz na interpretação deste texto, o que por sua vez realça o sentido das terceiras estórias: despertar o leitor para a questão originária, que move a existência humana: apropriar-se do que lhe é próprio, consumar seu destino, ser feliz.

Com essa nova perspectiva, podemos agora partir para a leitura do texto, procurando desocultar as questões que ele coloca, que são, como veremos, as questões que se colocam na escuta do mito de Ulisses: a procura do sentido da existência, o destino como travessia, o homem como ser-do-entre.

O ser humano é ambíguo: é ente e não-ente, está e não-está, tem limite e não-limite. Por isso, em alemão, existência diz-se Da-sein: o ser do entre, o entre-ser (Castro, 2011: 26).

A odisseia de Chico, o herói

“Nós, os temulentos”, pude já presenciar, faz muito sucesso nas dramatizações do Grupo Miguilim, de Cordisburgo, que emprestam a legítima oralidade mineira aos textos do autor consagrado. O público vai às gargalhadas com o rol de anedotas de bêbado que o autor desfia, sem nada dever às apresentações humorísticas tão ao gosto dos ouvintes. Penso que este texto ficaria ótimo se interpretado por Ari Toledo. Sem uma gota de sangue, traição ou violência, a leveza cômica dum palco circense encontra aqui os leitores, um momento de descanso em meio a tanta tragédia. Mas ao final há um certo desconcerto, alguma coisa parece estar errada.

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Ouçamos o texto de Rosa. Assim ele inicia o referido prefácio:

Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perqueria tanto. Deixava de interpretar as séries de símbolos que são esta nossa outra vida de aquém- túmulo, tãopouco pretendendo ele próprio representar sob farsa. De sobra afligia-o a problemática corriqueira quotidiana, a qual tentava, sempre que possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar a bar (Rosa, 1967: 101).

Assim como Ulisses, Chico realiza uma travessia cheia de perigos e obstáculos, até voltar para casa. Buscando escapar da “sozinhidão”, vai perambular pela rua, tirando onda com todos que cruzavam seu caminho: o padre, a mulher feia, em cada encontro uma nova piada velha, bebendo para esquecer do que já nem mais lembrava.

E, vindo, noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com o que, casual, por ele perpassou um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos, para a ele dizer: - Bêbado, outra vez... – em pito de pastor a ovelha. – É? Eu também... – o Chico respondeu, com, báquicos, o melhor soluço e sorriso.

E, como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o apostrofaram: - Bêbado, outra vez? – E: - Não senhor... – o Chico retrucou - ... ainda é a mesma.

E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. – Feia! – o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. – E você, seu bêbado!? – megerizou a cuja. E, aí, o Chico: - Ah, mas... Eu?... Eu... amanhã, estou bom... (Rosa, 1967: 101).

Seguindo sua jornada, encontrou seus “copoanheiros”, João e José, e com eles seguiu a via sacra, agora no carro de José, já quase apagando, mas que toma uma coca-cola para melhorar.

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E – quem sabe como e a que poder de meios – entraram no auto, pondo-o em movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com mais o milagre de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os bafos inclusive. – Qual dos senhores estava na direção? – foi-lhes perguntado. Mas: - Ninguém nenhum. Nós todos estávamos no banco de trás... (Rosa, 1067: 102).

Depois do acidente automobilístico, cada um dos amigos segue seu rumo. Os outros vão para casa, o Chico segue perambulando a esmo – assim como Ulisses na Odisseia, demora a voltar para casa.

Segue falando com estranhos, procurando o que não perdeu, perambulando em ziguezague, de cá para lá, confunde o chão e o céu, anda na sarjeta com um pé na calçada pensando estar coxo, avançando, recuando, caindo, levantado, topando com as pessoas, sempre fazendo piadas, que pelo inusitado levam a questionar as convenções estabelecidas, relativas, como tempo e espaço, levianamente tomadas pelo comum como absolutas:

E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: - Pode me dizer onde é que eu estou? – Na esquina da 12 de Setembro com a 7 de Outubro. – Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da cidade! [...]

E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: - Faz favor, onde é que é o outro lado? – Lá... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá... [...]

E, vai, uma árvore e ele esbarraram, ele pediu muitas desculpas. Sentou-se a um portal, e disse-se, ajuizado: - É melhor espera que o cortejo todo acabe de passar... [...]

E deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: - Não entendo... – ingrato resmungou. – Recebo respostas diferentes, o dia inteiro. (Rosa, 1967: 103-104).

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As questões do Chico acerca do óbvio nos levam a questionar a obviedade do óbvio, deixam evidente o arbítrio das convenções inquestionadas. A irrupção do inesperado manifesta-se nos chistes de Chico, levando o leitor ao questionamento de suas aparentes verdades.

Somos um tento ou cento temulentos? Até que ponto estamos mesmo sóbrios, conscientes, e não perdidos como o Chico, esquecidos do sentido do ser? A temulência do Chico é uma hipérbole do sono cotidiano.

Bêbados todos nós o somos, se nos deixamos emplastrar na goma arábica da vida cotidiana. Temulento é o homem humano, anulado pela mediocridade generalizada. O fato de as piadas encadeadas serem batidas ressalta a ideia da temulência geral em que nos encontramos. Precisamente, como já se acentuou, o trajeto que todas as estórias descrevem é a travessia do nada ao tudo (Faria, 2006: 238).

Por mais que fuja de si e adie a hora do retorno ao que lhe está destinado, uma hora o homem precisa voltar para casa. É quando a estrada acaba.

Ulisses, com sua natural astúcia e o auxílio dos deuses, retorna depois de uma longa jornada, por lugares desconhecidos, distantes do lar. Ao chegar, encontra a família à sua espera, luta e reassume seu lugar de direito.

Já Chico percorre os caminhos de sempre, a via sacra dos bares, buscando o advento do inesperado escondido sob as aparências. Como o cachorro atrás do tutano, como a comer caranguejo, ele vai quebrando tudo que constitui o amálgama amorfo da sociedade anônima, “removendo as camadas de cinzas com que pintaram nossos sentidos”, com o sopro de suas palavras revigora a brasa da linguagem, luz do fogo que ilumina o oculto no clareado.

O herói enfim chega ao lar, mas ninguém o espera, nem esposa, nem filho, só a solidão amarga. Ao se ver no espelho não se reconhece, toma a imagem como um intruso, atira-lhe uma sapatada, e finalmente apaga.

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E, caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e de que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiquíssima anedota. Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do armário: - Que?! Um homem aqui, nu pela metade? Sai, ou te massacro! E, avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe. – Desculpe, meu velho. Também, quem mandou você não tirar os óculos? – o Chico se arrependeu. E, com isso, lançou: tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si mesmo (Rosa, 1967: 104).

Nas anedotas do terceiro prefácio, “Nós, os temulentos”, o discurso dionisíaco do filósofo embriagado conduz, de riso em soluço, a diante do espelho: imagem que ao leitor rosiano evoca a questão essencial: “você chegou a existir?” (Rosa, 1981: 68). O espelho, que o personagem encontra no final de sua travessia, reporta ao conto de Primeiras estórias, em que se questionam os limites entre eu e outro, realidade e ilusão, na procura no sentido da existência.

O estar-no-mundo – Dasein – é o drama não só de Chico, o “herói” do prefácio, mas de toda a humanidade, e portanto, de todos os personagens das estórias. Como estar-no-mundo e “chegar a existir”, segundo o “julgamento-problema” proposto pelo narrador de “O espelho”(Rosa, 1978a: 68). [...] “Converter em irrealidade” a rasa e insatisfatória realidade, como faz o Chico através da bebida, ilude a “corriqueira problemática quotidiana” (p. 101), mas não a resolve. Para a solução, o que se demanda é a “realidade superior”, que abre “dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento” (p. 3) (Faria, 2005: 236).

O filósofo Henri Bergson (2001), ao refletir sobre o humorismo a partir das comédias de Molière, elabora uma bela imagem poética para esclarecer o efeito do riso nas pessoas. Ele compara o humor à espuma das ondas do mar, leve e linda, mas que deixa na boca um travo de sal: é quando, depois de rirmos do outro, percebemos que rimos de nós mesmos. Este travo de sal levaria o

193 público a refletir sobre sua postura diante da existência, corrigindo o que fosse motivo de chacota, já que todos temem ser ridicularizados. No caso deste hilário prefácio, acredito que, além de pensar duas vezes antes de tomar um porre, o que este texto nos sugere é que estamos lançados na realidade, sem termos certeza de nada, a não ser da travessia, em que se realiza nosso destino.

Para nós não há outro destino senão procurar o que todos os pensadores e poetas procuraram em tudo que pensaram e poetaram. Isso exige de nós, o termos de nos confrontar com o nosso destino, com o que em nós, em cada um, acontece inauguralmente (Castro, 2011: 170).

Terceira margem

O tema da travessia comparece em muitas das Terceiras estórias. Além do prefácio “Nós, os temulentos”, acima abordado, que “conta a odisseia que para um borracho representa a simples volta a casa” (Rónai in Rosa, 1967: 196), está presente também no item IV de “Sobre a escova e a dúvida”, que narra a travessia de um transeunte paranoico a caminho do trabalho, em pleno carnaval carioca, topando com iminentes perigos, achando-se com pouca sorte, insatisfeito, perdido na multidão de formas, esbarrando-se em possíveis ameaças – o gigante que topa na calçada, o ônibus desenfreado, o taxista desconfiado, o colega de trabalho -, até que se depara com a inesperada musa, doação de Apolo:

Mas é Apolo quem guia as musas. Dizer e dizer – Walfrida. Imperava ela de costas, embrulhei olhos em seu vestido, outroverde, do que as alfaces mais ofertam. Em tir-te também as pernas com sardas, ancas, cintura, o bamboleio. Tudo de cor se seguiu. Isto é: o rato, rápido; o gato mágico. Oh que para desejável amorável pervê-la eu precisara estar recuado a raso grau. Mas todos somos bobos ou anões em volta do rei. Do que nem ela não se admirava, de eu antes desazado correr tão tortas linhas; pois noivamos, no dia mesmo, lindo como um hino ou um ovo. Tudo está escrito; leia-se, pois, principal, e reescreva-se (Rosa, 1967: 155).

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Nos caminhos cotidianos, os personagens dessas duas narrativas, um bêbado e outro perdido em devaneios, enxergam nos episódios cotidianos o inexplicável mistério da realidade, a compor incessantes e sempre novas e imprevisíveis realizações. Seguem atravessando o mar da realidade, buscando com o pensamento extrair o mel da existência. Se Chico sucumbe solitário ao escuro de si mesmo, partido o espelho, aqui o transeunte encontra o amor no fim do túnel. Consumação de vida e de morte, amor e esquecimento, chegar ao termo é alcançar a plenitude.

Recorrente em toda a obra rosiana, encontramos a questão da travessia, em Tutameia, além disso, ainda em contos como “Ripuária”, “Barra-da-Vaca” e “Antiperipleia”. Percebo que esta questão se configura de diferentes modos na obra de Guimarães Rosa.

Em contos como “A terceira margem do rio”, de Primeiras estórias, e “Ripuária” e “Barra-da-Vaca”, de Terceiras estórias, os personagens não completam simplesmente a travessia de um lado a outro da margem. Eles permanecem no entre, presos a algo inefável que os impede de atravessar e seguir adiante. Vigoram suspensos no nada. O vento do amor é a brisa que toca a vela do barco e o ajuda a completar a jornada.

No romance Grande sertão: veredas, como vimos pelo diálogo com a leitura de Castro (1976), a travessia do sertão por Riobaldo é a travessia do mar por Ulisses. As veredas são os caminhos de floresta por onde o homem humano transita na sua passagem pela terra, onde a única certeza possível é o percurso que se realiza na e pela travessia.

Em vez de jagunços, quem atravessa o sertão em Tutameia são os vaqueiros, liderados por Ladislau (nome do santo do dia de nascimento de Rosa). Este personagem aparece guiando a comitiva em algumas das Terceiras estórias, como “Intruje-se” e “Vida ensinada”. Nestes contos, o líder da comitiva comporta-se como o comandante de uma esquadra, a transportar gado e gente pelo sertão afora, lidando com as adversidades e os desafios que eclodem pelo caminho, usando de astúcia para vencer as batalhas.

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Referente ainda ao mito de Ulisses, a questão da Escuta é abordada em contos como “Grande Gedeão”, como vimos, e os temas náuticos surgem em contos como “Azo de almirante” e “Sota e barla”.

Findo o prazo, o que posso fazer agora é deixar indicadas essas recorrências, prometendo retomá-las em momento oportuno.

Convido também o leitor a re-visitar as Terceiras estórias, pois muito do que lá está aqui não deveu caber.

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Conclusão

Eu estou depois das tempestades. O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele? Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.

(Rosa, 1986: 527).

A leitura de Tutameia sempre foi para mim muito mais do que um trabalho acadêmico para conseguir um diploma. É um honesto e humilde exercício de escuta desta obra, como projeto de vida. Desde o momento em que pus as mãos neste livrinho, vi que jamais iria me livrar dele. Chegando ao termo do doutorado, apresento o que pude realizar até aqui, na esperança de possibilidades futuras de novas abordagens desta obra, tão densa, cheia de silêncios inexplorados.

A crítica ainda não deu a devida atenção às Terceiras estórias, e as tentativas de análises classificatórias realizadas pela maioria dos poucos que ousaram tratar deste enigmático livro, se por um lado trazem informações esclarecedoras, por outro lado não alcançam a essência da obra, que a todo o momento nos convoca a romper o gesso das classificações.

A via da Poética trouxe para meu universo a possibilidade da abordagem aqui apresentada, num diálogo criativo com a obra, deixando que ela me levasse num caminho tortuoso, às escuras, num exercício hermenêutico de extrair o sentido da verdade que eclode no inesperado da realidade. São tantas as questões e os desvios ao longo do percurso da leitura, que para chegar a este final tive que muitas vezes, como Ulisses, atar-me ao mastro e seguir adiante, pois se me rendesse a cada apelo insinuante jamais chegaria ao final do texto.

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Espero que os exercícios de leitura aqui apresentados possam servir de auxílio para os futuros leitores de Tutameia, que certamente irão trazer para a luz novos sentidos por mim insuspeitados.

O fim da escrita da tese é o término de um longo ciclo, e depois de concluir essas páginas não sei o que o destino me reserva. No nada que se me apresenta, vislumbro miríades de possibilidades de vir a ser, lançada que estou no empenho de consumar meu destino.

Depois do prazeroso, porém árduo, trabalho de leitura e releitura de Tutameia, do enfrentamento do desafio de me embrenhar nos textos de Heidegger, de perceber que muito do que eu não entendia desde sempre eu já sabia, depois de me jogar de corpo e alma na elaboração deste texto, muitas vezes me sentindo miudinha diante da grandiosidade das questões abordadas, na minha limitada compreensão tentei figurar um texto com pés e cabeça, mas também com olhos de coruja e patas de caranguejo.

O operar de Tutameia não se faz na linearidade nem nas categorias atributivas. Como obra de arte que é, seu apelo se dá num jogo de esconde- esconde, em que o que não se mostra é o que se dá a ver. Para fugir às armadilhas das classificações sistemáticas, e ao mesmo tempo necessitando encontrar uma ordem para encaminhar o texto, após várias tentativas, acabou se configurando a ordem dos mitos, que segui na abordagem das Terceiras estórias. Com isto, o mito de Ulisses foi o último a ser abordado.

A complexidade e a riqueza de questões colocadas por este mito merecem uma aproximação mais demorada, num diálogo não só com Tutameia, mas também com todo o conjunto da obra rosiana. Assim como Ulisses em sua travessia encontra os conselhos de Hermes e Atena, assim o leitor deste livro encontra ao longo da leitura a coruja e o caranguejo, a lembrar que é preciso manter sempre os olhos abertos para enxergar no escuro, com a luz do pensamento, e não esquecer que a travessia não se faz em linha reta nem em direções previsíveis. Só com astúcia o homem alcança o que lhe é próprio.

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